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1
ANGELO JUNQUEIRA GUERSONI
BOA-FÉ OBJETIVA NO DIREITO CONTRATUAL DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
Dissertação apresentada à banca
examinadora da Universidade Federal do
Paraná, como exigência parcial para a
obtenção do título de Mestre em Direito
em Mestrado Interinstitucional com a
Faculdade de Direito do Sul de Minas.
Orientador: Professor Doutor Elimar
Szaniawski
CURITIBA
2006
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2
Ao Pedro e Renata, filho e esposa, meu amor
incondicional e minha força geradora de
crescimento humano, intelectual e profissional.
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AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Elimar Szaniawski, que com tanta sensibilidade e
disponibilidade, me orientou
À Direção da Faculdade de Direito do Sul de Minas – Pouso Alegre – pela
oportunidade e confiança em mim depositada.
Ao meu avô Ângelo Guersoni , meu paradigma de vida.
À minha mãe Nilce de Paula Junqueira e meu pai Adelmo Ramos Guersoni por
sempre acreditarem no alcance de minhas conquistas.
Aos professores da Universidade Federal do Paraná- Minter – Pouso Alegre-
MG, por me transformar em um pensador mais humano, mais preocupado com a
dignidade do próximo e no desenvolvimento de uma sociedade mais justa e solidária.
4
SUMÁRIO
RESUMO…………………………………………………………………………….............vi
ABSTRACT………………………………………………………………………………….vii
1 INTRODUÇÃO.........................................................................................................1
2 CONTRATO E MUDANÇA SOCIAL........................................................................5
2.1 PRINCÍPIOS INFORMADORES DO CONTRATO..............................................11
3 ORIGENS DA BOA-FÉ..........................................................................................20
3.1 BOA-FÉ NO DIREITO ROMANO........................................................................21
3.2 BOA-FÉ NO DIREITO CANÔNICO.....................................................................24
3.3 BOA-FÉ NO DIREITO GERMÂNICO..................................................................26
3.4 BOA-FÉ NO DIREITO ALEMÃO.........................................................................27
4 BOA-FÉ NO DIREITO COMPARADO...................................................................31
4.1 DIREITO ALEMÃO..............................................................................................31
4.2 DIREITO ESPANHOL.........................................................................................33
4.3 DIREITO ITALIANO.............................................................................................33
4.4 DIREITO PORTUGUÊS......................................................................................37
4.5 DIREITO SUÍÇO..................................................................................................38
4.6 DIREITO INGLÊS................................................................................................38
4.7 DIREITO FRANCÊS............................................................................................39
4.8 DIREITO URUGUAIO..........................................................................................40
4.9 DIREITO ARGENTINO........................................................................................40
4.10 DIREITO CHILENO...........................................................................................41
4.11 DIREITO AMERICANO.....................................................................................42
5 BOA-FÉ NO DIREITO BRASILEIRO.....................................................................43
5.1 EVOLUÇÃO DA BOA-FÉ NO DIREITO BRASILEIRO........................................43
5.2 BOA-FÉ NO CÓDIGO CIVIL DE 1916................................................................52
5.3 BOA-FÉ NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR...................................58
5.4 BOA-FÉ NO CÓDIGO CIVIL DE 2002................................................................61
5
6 BOA-FÉ OBJETIVA NO DIREITO CONTRATUAL DO CÓDIGO CIVIL
BRASILEIRO.............................................................................................................69
6.1 NATUREZA JURÍDICA DA BOA-FÉ OBJETIVA.................................................69
6.1.1 Princípios..........................................................................................................69
6.1.2 Cláusulas Abertas de Interpretação.................................................................72
6.1.3 Conclusão da Natureza Jurídica da Boa-Fé Objetiva.......................................74
6.2 DIFERENÇA ENTRE BOA-FÉ OBJETIVA E BOA-FÉ SUBJETIVA...................79
7 BOA-FÉ OBJETIVA E A CRIAÇÃO DE DEVERES ACESSÓRIOS.....................84
8 BOA-FÉ OBJETIVA E RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL, CONTRATUAL
E PÓS-CONTRATUAL..............................................................................................90
8.1 RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL......................................................90
8.1.1 Análise do Projeto 6.960/02.............................................................................92
8.2 RESPONSABILIDADE CONTRATUAL...............................................................95
8.3 RESPONSABILIDADE PÓS-CONTRATUAL......................................................96
9 BOA-FÉ OBJETIVA E ABUSO DE DIREITO........................................................99
9.1 ORIGEM DO ABUSO DE DIREITO....................................................................99
9.2 CONCEITO DE ABUSO DE DIREITO..............................................................100
9.3 TIPOS DE ATOS QUE CONFIGURAM ABUSO DE DIREITO.........................102
9.3.1 Venire Contra Factum Proprium.....................................................................102
9.3.2 A Supressio e a Surretio.................................................................................105
9.3.3 Regra Tu Quoque...........................................................................................107
9.3.4 Desproporção entre Vantagem e Prejuízo no Exercício dos Direitos............107
10 SEGURANÇA JURÍDICA NA INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS DIANTE DA
BOA-FÉ OBJETIVA...........................................................................................108
10.1 SEGURANÇA JURÍDICA NA INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS COM
FUNDAMENTO NO CÓDIGO CIVIL DE 1916.........................................................108
10.2 SEGURANÇA JURÍDICA NA INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS COM
FUNDAMENTO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002, DIANTE DA CLÁUSULA ABERTA DA
BOA-FÉ OBJETIVA..................................................................................................111
6
11 BOA-FÉ OBJETIVA E PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA..................................................................................................................116
12 CONCLUSÃO....................................................................................................121
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................124
7
RESUMO
A presente obra trata do tema Boa-fé objetiva no Direito Contratual do Código Civil
brasileiro, abordando os princípios informadores, sua evolução histórica e legislativa em
nosso ordenamento jurídico bem como no direito comparado. Será dado ênfase a
natureza jurídica do instituto da boa-fé objetiva para delimitação e determinação no
campo interpretativo, principalmente no que tange à sua aplicação, imputação de
responsabilidades e a repressão do abuso de direito , pelo juiz.
Procurou-se desenvolver o tema sempre levando-se em consideração o princípio da
dignidade da pessoa humana para demonstrar uma maior segurança jurídica na
interpretação dos contratos diante da boa-fé objetiva sempre com a preocupação do
desenvolvimento de uma sociedade livre, justa e solidária de forma a manter a
igualdade das partes contratantes.
Palavras-chave: Boa-fé : histórico, origem, evolução, subjetiva e objetiva, natureza
jurídica da boa-fé objetiva. Boa-fé objetiva: Deveres Acessórios, Responsabilidades e
Abuso de Direito. Interpretação da Boa-fé objetiva, segurança jurídica e dignidade da
pessoa humana.
8
ABSTRACT
The present study deals with the matter of objetive good-faith in Contractual Law in the
Brazilian Civil Code, approaching the informative principles, its historical and legislative
evolution in our legal system, as well as in comparative law. It will be emphasized the
legal nature of the institute of objective good-faith on delimitation and determination in
the interpretative field, specially regarding its application, inputation of responsibilities
and the repression of legal abuse by the judge.
The objetive was to explore the subject always considering human dignity as a mean to
demonstrate legal confidence in contract interpretation in sight of objetive good-faith,
always aiming for the development of a free society, a just and solidary way to mantain
balance between counterparts.
Key-words: Good-faith: description, origin, evolution, subjective and objective, legal
nature of the objective good-faith. objective Good-faith: Accessory duties,
Responsibilities and Abuse of processs. Interpretation of the objective Good-faith, legal
security and dignity of the person human being.
1
1 INTRODUÇÃO
Para MIGUEL REALE, o contrato nasce de uma ambivalência, de uma
correlação essencial entre o valor do indivíduo e o valor da coletividade. O contrato é
um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que o cria, mas, de
outro, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato será executado e onde vai
receber uma razão de equilíbrio e medida.
Os indivíduos, em grande parte de suas condutas, são regidos por relações
contratuais, seja por expressa manifestação de vontade, seja por atos omissivos de
adequação a acordos pré-estabelecidos em uma sociedade de massa.
O contrato é uma das maiores expressões do poder de autodeterminação do
ser humano livre, consciente e capaz, como exteriorização do princípio da dignidade da
pessoa humana, demonstrando a solidariedade, a igualdade, a honestidade e a
confiança entre as partes.
Em razão disto foi feita a opção pelo presente tema que tem a finalidade de
demonstrar a nova tendência de interpretação e repressão aos abusos contratuais,
baseado no instituto da boa-fé objetiva, esclarecendo a influência humanista
demonstrada pelo diploma civil brasileiro de 2002, com seus princípios norteadores da
sociabilidade, eticidade e economicidade, em atenção ao Estado Social, sem, contudo,
eliminar os princípios liberais (do Estado Liberal, predominante no Código Civil de
1916), a saber, autonomia de vontade, o princípio da pacta sunt servanda, e o princípio
da relatividade subjetiva.
2
A boa-fé objetiva, aqui estudada, norteará os negócios jurídicos e representará
um superamento normativo e como tal, imperativo, daquilo que no plano psicológico se
põe como intenção legal e sincera, buscando sempre a solidariedade e a perfeita
harmonia entre as relações privadas.
Dessa forma, será feito um “passeio” pelas origens da boa-fé no direito romano,
canônico e germânico para então passarmos a análise deste instituto em diversos
ordenamentos jurídicos: alemão, francês, italiano, inglês, português, dentre outros que
abordam o tema em suas facetas objetivas e subjetivas de interpretação, determinando
a raiz e os fundamentos sociológicos e filosóficos em nossa legislação.
Será abordada a evolução histórica da boa-fé no nosso ordenamento jurídico,
passando pelos projetos do Código Civil das Obrigações, pelo Código Civil brasileiro de
1916, pelo Código de Defesa do Consumidor até chegarmos à normatização atual do
Código Civil de 2002.
A pesquisa especificará a natureza jurídica da boa-fé objetiva e os reclames de
sua inaplicabilidade, gerando as responsabilidades contratuais, pós-contratual e pré-
contratual, além de proteger as partes contra o abuso do direito. E dentro desta
perspectiva, será analisada a segurança jurídica da boa-fé objetiva na interpretação dos
contratos e sua aplicação pelo juiz diante de seu conceito metajurídico na manifestação
de vontade das partes.
Por isto, uma visão geral da boa-fé será desenvolvida em nosso estudo para, em
uma segunda fase, examinarmos a boa-fé objetiva e seus efeitos na manifestação de
vontade, na interpretação e na segurança jurídica contratual.
3
A escolha do tema proposto - A BOA-FÉ OBJETIVA NO DIREITO
CONTRATUAL DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO - ocorreu em razão de três pontos:
primeiramente como fonte de novos deveres especiais de conduta durante o vínculo
contratual, os chamados deveres anexos da relação contratual (dever de informar, de
lealdade, cooperação, cortesia, etc...). Depois, para demonstrar a nova tendência de
interpretação da manifestação de vontade das partes contratantes como razão
finalística. E, por fim, para demonstrar a carga valorativa deste princípio geral para a
aplicação do Poder Judiciário sem que este concorra com discricionariedade ou até
mesmo intolerância ou tirania.
O presente tema é de grande relevância para o direito, principalmente à nova
ordem social para a qual tende o espírito do Código Civil brasileiro 2002. É pretensão
deste tema conciliar o confronto entre a autonomia da vontade, em sua obrigatoriedade
plena, com os princípios informadores do Estado moderno, ou seja, com o
individualismo, predominante no Código Civil de 1916, com o equilíbrio da sociedade, o
lugar onde o contrato será executado, seus efeitos serão exauridos, tudo em uma razão
de equilíbrio e medida.
Esta nova tendência do direito contemporâneo é que induziu à escolha do tema,
ainda mais em relação à descoberta da carga valorativa e do alcance deste dispositivo
na aplicação do caso concreto.
O que se pretende analisar é o caminho percorrido pelo contratante, falando de
forma psicológica-normativa, ou seja, sua intenção, sempre em comunhão com a lei,
tanto na proposta quanto no desenvolvimento contratual até sua conclusão, respeitando
os princípios contratuais da livre manifestação de vontade e pacta sunt servanda e o
4
novo paradigma do direito contemporâneo, a boa fé objetiva. Almeja-se aplicar a
interpretação da boa-fé objetiva conciliando os novos princípios contratuais com os
princípios liberais do contrato.
Justifica-se também o tema proposto diante das novas tendências do direito
contemporâneo, levantando o interesse de intérpretes de diversas áreas de atuação da
dogmática jurídica, uma vez que será argüida questão de grande importância na
consecução e manutenção do direito das partes, influenciando principalmente na
intenção real da manifestação de vontade e seus efeitos no mundo, ou seja, seu efetivo
resultado naturalístico.
Por fim não há maior interesse no mundo jurídico do que a determinação da
eficácia e o alcance valorativo da manifestação de vontade das partes, levando em
consideração a situação atual dos partícipes, o fim social do contrato e principalmente o
controle da atuação jurisdicional na interpretação e aplicação do instituto da boa-fé
objetiva, sempre em busca de uma justiça contratual.
5
2 CONTRATO E MUDANÇA SOCIAL
A idéia de codificar o direito surgiu por obra do pensamento iluminista na
segunda metade do século XVIII. Pensamento que se encarnou em forças histórico-
políticas, dando lugar à Revolução Francesa. Segundo BOBBIO
1
, foi durante o
desenrolar da Revolução Francesa (entre 1790 e 1800) que a idéia de codificar o direito
adquire consistência política. Com efeito, a cultura racionalista da época partia da
convicção de que podia existir um legislador universal, ou seja, um legislador que dita
leis válidas para todos os tempos e para todos lugares e da convicção da exigência de
realizar um direito simples e unitário. A concepção racionalista considerava a
multiplicidade e a complicação do direito como fruto do arbítrio da história. As velhas
leis deviam, portanto, ser substituídas por um direito simples e unitário, que seria ditado
pela ciência da legislação, uma nova ciência que, interrogando a natureza do homem,
estabeleceria quais eram as leis universais e imutáveis que deveriam regular a conduta
do homem. De acordo com BOBBIO
2
, inspirando-se precisamente nas concepções de
Rousseau e iluministas em geral, os juristas da Revolução Francesa se propuseram a
eliminar o acúmulo de normas jurídicas produzidas pelo desenvolvimento histórico e
instaurar no seu lugar um direito fundado na natureza e adaptado às exigências
universais humanas.
1
BOBBIO, N. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Trad. de Marco
Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. passim.
2
Id.
6
Entrou em vigor na França, em 1804, o Código de Napoleão. Esse Código, que
é considerado um marco do pensamento jurídico, teve uma influência fundamental na
legislação e na cultura jurídica dos últimos dois séculos. Países como a Bélgica e a
Itália seguiram formal e materialmente o modelo do Código de Napoleão na Codificação
de suas legislações. O presente Código consagrava a igualdade formal, baseada na
idéia abstrata de pessoa, individual, tendo como pilar a autonomia da vontade e a
iniciativa privada , princípios informadores do direito contratual na época.
Por outro lado, a Revolução Industrial, iniciada na Segunda metade do século
XVIII, na Inglaterra, consolidou um modo de produção que gerou uma concentração da
propriedade (ou dos meios de produção) nas mãos de poucos, aprofundando as
diferenças sociais que resultaram nos movimentos operários e na luta pelo socialismo.
A Revolução Russa de 1917 e o final da Primeira Guerra Mundial podem ser
tomados como marcos históricos da ruptura com o modelo sócio-econômico
desenvolvido nos 100 (cem) anos precedentes. O medo da Revolução Proletária,
reivindicada por inúmeros movimentos operários, a doutrina social da Igreja, expressa
na encíclica papal rerum novarum, fizeram com que os países do ocidente reformassem
o modelo sócio-econômico até então vigente e sua igualdade formal. Nasce uma nova
concepção de Estado, que resultaria no chamado "Estado Social" e este “Estado Social”
influenciaria legislações do mundo inteiro e determinaria um novo modelo contratual
ajustado às exigências sociais.
Na antiga visão do Estado Liberal, o contrato é instrumento de intercâmbio
econômico entre os indivíduos, onde a vontade reina ampla e livremente. O contrato
tem força de lei, mas esta força se manifesta apenas entre os contratantes sem
7
qualquer preocupação “ultra partes”, salvo as normas de ordem pública. O direito
contratual que se tornou paradigma é o que se desenhou durante a hegemonia
liberalista, corporificando nas codificações a concepção iluminista da autonomia da
vontade.
Este quadro é retratado por ENZO ROPPO
3
como a ideologia novecentista da
liberdade de contratar, corresponde, sem dúvida, a orientações e valores positivos de
progresso afirmados na evolução das sociedades ocidentais, tornando-se, inclusive,
sua promotora direta. Ainda neste sentido, ENZO ROPPO entende que o liberalismo,
em se tratando dos contratos, de um lado desamarra o indivíduo das corporações, dos
vínculos feudais, garantindo-lhe a abstrata possibilidade, igual para todos (sob o
aspecto formal) de desenvolver sua livre iniciativa. De outro, configura, de fato, um
instrumento funcionalizado para operar do modo de produção capitalista e neste sentido
realiza institucionalmente o interesse da classe capitalista.
Sucede que este modelo de estrutura não tardou a revelar a desigualdade real
que ele escondia. Foi diante disto que se passou a exigir do Estado um papel diverso
no campo jurídico, retirando-se da sua posição de Estado-garantidor, que apenas
protegia o direito, inclusive por meio de repressão, para uma posição de Estado-
dirigista, com a finalidade de promover novos valores intervindo para assegurar o
predomínio dos interesses sociais sobre os individuais.
3
ROPPO, E. O contrato. Trad. de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina,
1988. p. 36.
8
Interessante o detalhamento de CLÁUDIO LUIZ BUENO DE GODOY
4
, onde o
Estado invade a autonomia da vontade por meio da lei para garantir uma igualdade que
faça o papel de equilibrar a desigualdade inversa que a situação das partes
intrinsecamente envolve.
Significa, de outra parte, dotar o juiz de meios e modos de alterar as
disposições do contrato para corrigir situações de desigualdade, desde a contratação
ou em momento posterior, mas sem trazer à tona uma certa insegurança jurídica nas
relações contratuais.
O Estado de direito em que vivemos, como já mencionado, com as garantias
constitucionais já alcançadas, não mais comportava a simples igualdade formal entre os
indivíduos, requerendo intervenção do Estado para assegurar que interesses
particulares não se sobreponham a interesses sociais, buscando sempre a
concretização de uma igualdade dita material nas relações firmadas entre os cidadãos.
Torna-se necessário, portanto, estabelecer um equilíbrio entre a liberdade individual e o
bem estar coletivo.
O Código Civil de 2002 assinalou novos rumos ao direito privado como a
eticidade, a socialidade e a economicidade.
Essas características predominam com muita força no campo do contrato, onde
o Código destaca normas explícitas para consagrar a boa-fé objetiva, a função social do
contrato e o equilíbrio econômico.
4
GODOY, C. L. B. Função social do contrato: os novos princípios contratuais. São Paulo:
Saraiva, 2004. (Coleção Prof. Augusto Alvim). passim.
9
O contrato é fenômeno onipresente na vida de cada cidadão e nos dizeres de
PAULO LUIZ NETO LOBO
5
, parafraseando-o: o contrato, não é uma categoria abstrata
e universalizante, mostrando-se inalterável e peremptório, ainda mais diante das
circunstâncias e vicissitudes históricas.
Em verdade, seus significados e conteúdo conceptual modificaram-se
profundamente, sempre acompanhando as mudanças de valores da humanidade.
Com esta nova visão do contrato, muitos doutrinadores chegaram a proclamar
seu fim, opinião que não foi seguida pelo insigne doutrinador CAIO MÁRIO DA SILVA
PEREIRA
6
, que professava a “publicização do contrato”, ou seja, havendo um maior
regramento de ordem pública para assim atingir os interesses sociais e a necessidade
particular.
As transformações que vêm sofrendo o direito das obrigações, mais
precisamente no âmbito contratual, não importam em anulá-lo e por menos afastar a
incidência dos princípios clássicos que regem essa indispensável categoria jurídica.
O Contrato, segundo a lição de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, continua se
originando da “declaração de vontade”, tendo “força obrigatória” e se formando, em
princípio, “pelo só consentimento das partes”.
E, mais ainda, continua nascendo em regra “da vontade livre, segundo a
autonomia da vontade”
7
, e também nos dizeres de WASHINGTON DE BARROS
MONTEIRO, o contrato têm três elementos fundamentais para sua estrutura: o
5
LOBO, P. L. N. Contrato e mudança social. São Paulo: RT/722, dez. 1995. p. 41-45.
6
PEREIRA, C. M. da S. Instituições de direito civil. 10. ed. v. III. n. 186. Rio de Janeiro:
Forense, 1997. p. 13.
7
Ibid., p. 9.
10
“princípio da autonomia da vontade”, “o princípio da ordem pública” e o “princípio da
obrigatoriedade da convenção, limitado, tão somente, pela escusa do caso fortuito ou
força maior.”
8
Outrossim, é certo que essas autonomias e princípios fundamentais do contrato
não têm hoje as mesmas proporções de outrora.
A autonomia da vontade sofre evidentes limitações, não só em face dos tipos
contratuais impostos pela lei, como também pelas exigências de ordem pública, que
cada vez mais são prestigiadas pelo direito contemporâneo.
Sem dizer da adequação deste instituto às exigências sociais, necessidades
locais e mantença da dignidade das partes contratantes que mantém o equilíbrio
contratual entre elas e o estabelecimento de relações solidárias entre as pessoas.
Parafraseando CLÁUDIA LIMA MARQUES
9
, a nova concepção de contrato é
uma concepção social deste instrumento jurídico para a qual não só o momento da
manifestação de vontade importa, mas onde também, e principalmente, a repercussão
dos efeitos do contrato na sociedade será levada em conta e onde a condição social e
econômica das pessoas nele envolvidas ganha em importância.
Neste mesmo sentido, para SÍLVIO RODRIGUES
10
, o princípio da autonomia
da vontade consiste na prerrogativa conferida aos indivíduos de criarem relações
órbitas do direito, desde que se submetam às regras impostas pela lei e que seus fins
8
MONTEIRO, W. de B. Curso de direito civil: direito das obrigações. 2. parte. 28. ed. v. 5. São
Paulo: Saraiva, 1995. passim.
9
MARQUES, C. L. Contratos no código de defesa do consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1999. p. 101.
10
RODRIGUES, S. Direito civil: dos contratos e das declarações unilaterais de vontade. 28.
ed. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 15.
11
coincidam com o interesse social. Por fim, ao lado dos clássicos princípios contratuais,
como determinado por Washington de Barros, Caio Mário, Orlando Gomes e outros
doutrinadores, há outros decorrentes das premissas que assentam o Estado Liberal, e
principalmente, como dito anteriormente, da dignidade da pessoa humana e do
solidarismo na relação entre as partes, o que veremos de forma resumida, uma vez que
o propósito deste trabalho importa especificamente no exame da boa–fé objetiva.
2.1 DOS PRINCÍPIOS INFORMADORES DO CONTRATO
Para ANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO
11
, seguido por HUMBERTO
THEODORO JÚNIOR
12
, estamos em época de mudança, onde os três princípios
clássicos que gravitam em volta da autonomia da vontade irão se somar a três outros
princípios decorrentes da ordem pública, a boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico do
contrato e a função social do contrato
13
.
11
AZEVEDO, A. J. de. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do
mercado. São Paulo: RT/775, maio 2000. p. 11-17.
12
TEODORO JÚNIOR, H. O contrato e sua função social. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2004. passim.
13
AZEVEDO, op cit., p. 11-17.
12
Para o ilustre doutrinador, os princípios clássicos da autonomia da vontade
14
,
do princípio da ordem pública e do princípio da obrigatoriedade da convenção
15
coexistem com os novos princípios.
14
O poder às partes reconhecido de regrar suas relações jurídicas, voltadas à satisfação de
seus interesses. È bem de ver que, em rigor, essa noção de autonomia da vontade convinha ao
paradigma liberal, em cujo campo ganhou relevo. Em momento de firme separação da esfera pública e
da esfera privada, em que se refutava a ingerência estatal própria do absolutismo e da estrutura feudal,
que então encontravam seu ocaso, fortaleceram-se as iniciativas de garantia das liberdades, dos
denominados direitos de primeira geração.
15
Conforme ensinamento de Orlando Gomes:“...o princípio da força obrigatória, consubstancia-
se na regra de que o contrato é lei entre as partes(...).Nenhuma consideração de eqüidade justificaria a
revogação unilateral do contrato ou a alteração de suas cláusulas, que somente se permitem mediante
novo concurso de vontades.”“...Justifica-se, ademais, como decorrência do próprio princípio da autonomia
da vontade, uma vez que a possibilidade de intervenção do juiz na economia do contrato atingiria o poder
de obrigar-se, ferindo a liberdade de contratar.”(GOMES, O.Contratos.9. ed.Rio de Janeiro:Forense,
1983.p. 38-39.).Rizzard na mesma linha de pensamento, nos orienta:"O princípio da obrigatoriedade dos
contratos se limita pelo princípio da relatividade, de maneira que a força de lei que a convenção adquire
somente se manifesta entre os próprios interessados e seus sucessores."(RIZZARD, A.Contratos. v.1, n.
85.Rio de Janeiro:Aide, 1988.p. 36.). Sílvio Rodrigues, reafirmando a força dos contratos, assim
assevera:"Constituindo em contrato de lei privada entre as partes, adquirindo força vinculante igual a
preceito legislativo, torna-se obrigatório entre as partes, que dela não podem desligar senão por outra
avença em tal sentido."(RODRIGUES, S.Dos contratos.v. III.São Paulo: Saraiva, 1972. p. 18.).Sílvio
Venosa posiciona-se de forma categórica dizendo:"Não tivesse o contrato força obrigatória, estaria
estabelecido o caos."(VENOSA, S.Teoria geral dos contratos.3. ed. São Paulo: Atlas, 1997.p. 26.).
Jefferson Daibert (DAIBERT, J.Dos Contratos.4. ed. Rio de Janeiro:Forense, 1995.p 6.), em magistral
transcrição do Giorgi (GIORGI, J.Teoria de las obligaciones en el derecho moderno.v.3.n. 16. Madrid:
Espanha, 1901.p 28-30), que dizia que o homem deve manter-se fiel à sua postura, concluiu: "Ninguém é
obrigado a tratar, mas se o fez, é obrigado a cumprir”.Caio Mário (PEREIRA, p. 5-6): o contrato obriga os
contratantes.Lícito não lhes é permitido arrepender, lícito não é revogá-lo senão por consentimento
mútuo, lícito não é ao juiz altera-lo ainda que a pretexto de tornar as condições mais humanas para os
contratantes.O princípio da força obrigatória do contrato significa, em essência, a irreversibilidade de
escolher os termos da avenca, o condão de sujeitar, em definitivo, os agentes.Uma vez celebrado o
contrato, com observância dos requisitos de validade, tem plena eficácia, no sentido de que cada um dos
participantes, que não tem liberdade de se forrarem às suas conseqüências, a não ser com a cooperação
13
Todavia, terão que ser balizados para que haja uma existência harmônica, ou
seja, deverá ter uma relativização e uma mitigação para que possam atender as novas
exigências sociais e também para que possam manter uma existência harmônica com
os novos princípios.
Estes novos princípios, no entendimento de ANTÔNIO JUNQUEIRA DE
AZEVEDO e HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, dentre outros doutrinadores, são:
boa-fé objetiva, o princípio do equilíbrio econômico do contrato e o princípio da função
social do contrato.
A boa-fé objetiva, também denominada de boa-fé lealdade, apresenta-se como
definidora de regras de conduta. Em nome da estabilidade e da segurança dos
negócios jurídicos, bem como para a tutela das legítimas expectativas daqueles que
contraem direitos e obrigações, a boa-fé objetiva impõe comportamentos socialmente
recomendados: fidelidade, honestidade, lealdade, cuidado, cooperação e confiança.
Tutela-se, portanto, aqueles que numa relação jurídica acreditam que a outra parte
procederá conforme os padrões de conduta social exigíveis. Veremos posteriormente,
de forma mais pormenorizada, que a boa-fé objetiva atua e obriga as partes na fase
pré-contratual, antes mesmo do aperfeiçoamento do contrato; perdura no momento da
definição do ajuste contratual, assim como no seu cumprimento; e subsiste, até mesmo,
depois de exaurido o vínculo contratual.
O princípio do equilíbrio econômico do contrato, por este princípio, tenta manter
a eqüidade entre as parte contratantes, ou seja, numa reformulação do pensamento de
anuente do outro. Foram as partes que escolheram os termos de sua vinculação, e assumiram todos os
riscos.
14
RUI BARBOSA, manter iguais como iguais e desiguais como desiguais na medida de
suas desigualdades. Ocorre que esta eqüidade expressa no contrato será, na esfera
patrimonial, onde o sinalagma do contrato leva a ordem jurídica a proteger o contratante
contra a lesão e a onerosidade excessiva. Diante deste princípio é que se admite a
revisão do contrato ou sua anulação para adequá-lo a uma situação de equilíbrio
econômico entre prestação e contraprestação.
Já o princípio da função social do contrato procura a integração do contrato
entre as partes e a coletividade. Na lição de ANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO
16
, é
uma nova ordem social que visa impedir tanto aqueles que prejudiquem a coletividade
quanto os que prejudiquem pessoas determinadas. Este princípio transformará a
posição clássica da individualidade do contrato em benefício social, onde os efeitos e
seus reflexos na sociedade deverão atender às exigências e necessidades dos
indivíduos de uma forma geral.
Enfim, diante do reconhecimento da moderna função social atribuída ao
contrato, com os novos princípios acima mencionados, a autonomia da vontade não
desaparecerá e continua sendo a base de sustentação do instituto jurídico. Nos dizeres
de HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, a autonomia da vontade será limitada, isto é, o
poder individual que dela deflui, pela agregação das idéias de justiça e solidariedade
social. Parafraseando FRANCISCO AMARAL, o exercício da autonomia da vontade,
nos nossos tempos, deve se orientar não só pelo interesse individual, mas também pela
utilidade que possa ter na consecução dos interesses gerais da comunidade.
16
AZEVEDO, p. 11-17.
15
Os princípios contratuais novos, apontados pelos doutrinadores, são
interessantes porque mantêm os princípios consagrados no individualismo, ensejando
segurança jurídica, de certo modo, confiante, determinante e vinculada na vontade das
partes, mas relativiza-os para se adaptarem às necessidades sociais a fim de alcançar
a dignidade da pessoa humana e uma maior solidariedade entre as partes.
ANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, de certa forma, mantém os efeitos do
contrato entre as partes, mas com conseqüências ultra partes.
Por outro lado, FERNANDO NORONHA
17
, seguido por Cláudio LUIZ BUENO
DE GODOY
18
, em posição contrária a anterior, asseveram que premido o contrato pelo
contexto coletivo em que é inserido e pela função social que se lhe reconhece, passa a
ter novos princípios fundamentais, tais como o da autonomia privada, o da justiça
contratual e o da boa-fé objetiva, retirando por completo o individualismo contratual.
Estes doutrinadores não admitem a existência dos princípios clássicos dos
contratos, mas sim na subsunção destes por novos princípios contratuais.
Entendendo os novos princípios como:
a) Princípio da autonomia privada - para os autores, autonomia privada não se
confunde com autonomia da vontade. Este é o clássico princípio da “era
individualista”, aquele, um novo princípio da “era liberal”. A autonomia da
vontade, oriunda dos denominados direitos de primeira geração, “o poder
das partes de determinar livremente tudo no negócio jurídico, que seria lei
17
NORONHA, F. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia
privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 82-86.
18
GODOY, passim.
16
para elas (voluntas facit legem )”
19
. A autonomia privada vai retirar da
vontade dos sujeitos como fonte geradora dos contratos seus efeitos e suas
conseqüências e atribuir ao ordenamento jurídico a força e o controle das
relações contratuais, ou seja, através do dirigismo contratual em
consonância com a lei e os valores da sociedade. Anota PIETRO
PERLINGIERI
20
que a autonomia da vontade não é mais o pilar do contrato,
o seu auto regulamento, mas sim que ela terá sua fonte nos usos e na
eqüidade. Por este princípio as partes terão um espaço para exercer a
autonomia de vontade e gerir seus interesses individuais, mas este espaço
será concedido pelo ordenamento jurídico que lhe impõe limites e gere seus
efeitos. Entende CLÁUDIO LUIZ BUENO DE GODOY
21
que a autonomia
da parte privada e a vontade individual não perderam seu significado. Na
verdade, trata-se de recompreender o direito privado, à luz de um novo
modelo jurídico, em que a um só tempo não só se garanta a liberdade de
atuação, que é, em última análise, uma forma de expressão do livre
desenvolvimento da personalidade humana, aspecto positivo da dignidade,
no Brasil elevada a fundamento da República (artigo 1, III, da CF), mas
também se entenda o papel de um Estado do qual se reclama o efetivo
cumprimento de uma tarefa distributiva, assecuratória do bem estar social.
19
NORONHA, op. cit., p. 15.
20
GODOY, p. 141
21
Id.
17
b) Princípio da justiça Contratual - considerada por FERNANDO NORONHA
22
como um desmembramento do princípio da boa-fé objetiva, por ser uma
antecâmara” do princípio da justiça contratual. A Constituição brasileira, em
seu artigo 3, I, expressa objetivo fundamental da República, o
estabelecimento de relações justas e solidárias. Demonstra a preocupação
com a dignidade da pessoa humana , o que também está expresso no artigo
1, III da CF, e com o solidarismo que irá impor um novo padrão de conduta
das partes para assegurar o equilíbrio das prestações. Enfim, CLÁUDIO
LUIZ BUENO DE GODOY
23
considera que o princípio da justiça contratual
se manifesta nos contratos chamados de recíprocos, mantendo a
equivalência objetiva entre prestação e contraprestação e pela eqüitativa
distribuição de ônus e riscos contratuais entre as partes contratantes. E
como forma objetiva de atuar a justiça contratual é que há controle e a
apreciação do Estado-Juiz nos casos de lesão e de cláusulas abusivas.
c) Princípio da boa-fé objetiva - padrão de correção, de lealdade, de
solidarismo, de cooperação e colaboração no comportamento dos
indivíduos. Entende UBIRAJARA MACH DE OLIVEIRA, em trabalho
apresentado no Curso de Pós-Graduação – Mestrado em Direito da UFRGS,
Cadeira de Teoria Geral do Direito Privado, no 2.º semestre de 1995, e
elaborado sob a orientação da professor JUDITH MARTINS COSTA
24
, na
22
NORONHA, p. 15.
23
GODOY, p. 141
24
COSTA, J. M. Princípios informadores do sistema de direito privado: a autonomia da
vontade e a boa-fé objetiva. São Paulo: RT, 2002, 382.
18
mesma linha de raciocínio de COUTO E SILVA
25
, que diante da
conformação social, política e econômica do século XX, e o respectivo
substrato filosófico em muito alteraram o quadro anterior, onde a autonomia
da vontade era o princípio quase exclusivo, sem querer dizer que hoje isto
não tenha mais relevância. Ao contrário, ocupa um lugar de relevo dentro da
ordem jurídica privada, mas, a seu lado, a dogmática moderna admite a
jurisdicização de certos interesses, em cujo núcleo se manifesta o aspecto
volitivo.
Os princípios demonstrados conduzem à nova realidade das relações
contratuais. Vimos que todos os doutrinadores são pacíficos em considerar novos
princípios informadores do contrato oriundo da nova realidade social e da nova
sistemática do Código Civil de 2002.
Não obstante isto, em uma última análise, são de prestígio e fomento do valor
fundante da pessoa humana, afastando do modelo individualista, muito embora não o
abandonando, mas agregando aos novos princípios uma finalidade social e solidária.
Assim, os princípios clássicos do contrato, da forma como era apresentada pelo
modelo liberal, são incompatíveis com uma função que ultrapassa a autonomia e o
interesse dos indivíduos contratantes, mas não podemos subsumi-los por completo
pelos novos princípios contratuais. Devemos relativizá-los e harmonizá-los a fim de
adequar sua utilização com a carga normativa exigida pelo Estado Social de direito,
mantendo a confiança no instituto contratual e sua segurança perante o ordenamento
jurídico.
25
SILVA, C. V. do C. e. A obrigação como processo. São Paulo: Bushatsky, 1976. p. 27.
19
Ocorre que estas mudanças sociais não podem ser interpretadas como o fim do
instituto do contrato balizado na vontade das partes. Como nos ensina ARRUDA
ALVIM
26
, um contrato, no fundo, apesar dessas exceções que foram apostas ao
princípio do pacta sunt servanda, é uma manifestação de vontade que deve levar a
determinados resultados práticos que são representativos da vontade de ambos os
contratantes, tais como declaradas e que se conjugam e se expressam na parte
dispositiva do contrato. Nunca se poderia interpretar o valor da função social como valor
destrutivo do instituto do contrato.
Enfim, não é nos novos princípios contratuais e na ampla liberdade do juiz que
irá se descaracterizá-lo como fonte das obrigações e manifestação de vontade,
transformando-o em instrumento de assistência social ou de caridade à custas do
patrimônio alheio. O contrato, em sua nova concepção social, deverá ser instrumento
de igualdade, fortalecedor da dignidade da pessoa humana e de atitudes solidárias,
gerando conseqüências no campo individual e também no campo social, ou seja,
deverão ser utilizados os novos princípios sempre com bom senso, conjugando a
vontade das partes com a função social do instituto.
Para melhor entendermos esta nova concepção do contrato no que tange a boa-
fé, veremos uma evolução histórica que nos dará base à interpretação atual deste
instituto.
26
ALVIM, Arruda. A função social dos contratos no novo código civil. In: PASINI, N.; LAMERA,
A. V. Ú.; TALAVERA, G. M. (Coord.). Simpósio sobre o novo código civil brasileiro. São Paulo:
Método, 2003. p.100.
20
3 ORIGENS HISTÓRICAS DA BOA-FÉ
Pela evolução do conceito, a boa-fé, anteriormente, somente era relacionada
com a intenção do sujeito de direito, estudada quando da análise dos institutos
possessórios, por exemplo.
Nesse ponto, era conceituada como boa-fé subjetiva, eis que mantinha relação
direta com a pessoa que ignorava um vício relacionado com outra pessoa, bem ou
negócio.
Mas, desde os primórdios do Direito Romano, já se cogitava uma outra boa-fé
relacionada com a conduta das partes, principalmente nas relações negociais e
contratuais.
No sistema romano, já se reconhecia a importância dos “pactos adjetos aos
atos de boa-fé”. Lembram ALEXANDRE CORREIA E GAETANO SCIASCIA, antigos
professores das Arcadas, que:
os pactos acrescentados aos atos de boa-fé tiveram uma função de grande importância no
desenvolvimento do sistema contratual, pois contribuíram fortemente para a erosão do antigo
princípio do direito civil que não reconhecia nenhuma eficácia ao pacto puro e simples (nudum
pactum), despido de formalidades. Substancialmente, os pactos adjetos eram convenções
isentas de formas, e por isso ineficazes no ius civile. Dado, porém, que se acrescentavam,
como pactos acessórios, a contatos reconhecidos civilmente, eram consideradas partes
integrantes do principal, sendo portanto protegidos pela mesma ação do contrato principal. O
reconhecimento de tais pactos não foi absoluto, a não ser no respeito às convenções limitativas
do conteúdo da obrigação principal, exigindo-se em qualquer outro caso fosse ela de boa fé e
que o pacto acessório se acrescentasse desde o momento em que tal contrato se perfez.
Assim, por exemplo, se depois da conclusão duma stipulatio, o credor aquiescia em não exigir
do devedor a prestação (pactum de no petendo), este podia repelir a eventual pretensão do
21
credor mediante a exceptio pacti conventi, concedida pelo pretor para proteger as convenções
acrescentadas a obligationes civil; ao contrário se dava, mesmo mediante ação, qualquer que
fôsse o conteúdo do pacto acrescentado, se o contrato principal era de boa fé e fosse concluído
desde a constituição da relação. Por isso se dizia pacta convena inesse bonae fidei iudicis.
27
Desse modo, com o passar dos tempos, o conceito de boa-fé sentiu diversas
evoluções, passando a existir no plano objetivo, relacionado a sua presença com as
condutas dos envolvidos na relação jurídica obrigacional.
A primeira sistemática da boa-fé retornou aspectos da bona fides romana , que
tinha como finalidade regulamentar à matéria jurídico-obrigacional, principalmente no
que tange a área contratual.
Por razão de haver sistematização diferenciada acerca da boa-fé, será
analisada nos três institutos de direito privado, chamados de tríplice raíz
28
, ou seja, no
direito romano, canônico e germânico.
3.1 BOA-FÉ NO DIREITO ROMANO
A doutrina é unânime em apontar as origens da boa-fé no direito romano, mais
precisamente, ao período romano clássico, a bona fides. Entretanto, pode-se encontrar
as verdadeiras raízes do instituto no período arcaico, na fides. O vocabulário fides é
polissêmico e pode designar três realidades distintas:
27
CORREIA, A.; SCIASCIA, G. Manual de direito romano. 5. ed. Rio de Janeiro: Estado da
Guanabara , 1969. (Série “Cadernos Didáticos”) p. 208.
28
Conceito tríplice raiz dado por COSTA, J. M. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica
no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
22
a) a fides-poder: a fides, nas relações de clientela implicava a existência de
pessoas adstritas a certos deveres de lealdade e obediência perante outras,
em troca de proteção
29
;
b) a fides-promessa: o aspecto relevante residia na obrigação de respeito à
palavra dada, de garantia que se expressava com um gesto formal e que
obrigava o envolvido;
c) a fides-externa: inicialmente invocava a fé nos tratados internacionais,
designadamente aquele que se seguiu à primeira guerra púnica, entre Roma
e Catargo. Posteriormente, a fides externa nada mais significaria do que a
imposição da supremacia do poderio romano, após a rendição por meio da
deditio infidem.
30
Posteriormente à palavra fides, é acrescentado o adjetivo bona, passando a
fides bona e a bona fides, em razão da difusão dos negócios no ordenamento romano
com a inexistência da formalidade. A agregação da palavra bona (FREZZA
31
, apud
COSTA, 1999, p. 115) é uma fides que constringe a quem prometeu a manter sua
promessa não segundo a letra, mas segundo o espírito; não tendo em vista o texto da
fórmula promissória, mas ao próprio organismo contratual posto em sim mesmo: não
seguindo um valor normativo externo ao negócio concretamente posto em si, mas
29
Cf ROCHA, A. M. da; CORDEIRO, M. Da boa-fé no direito civil. v. I-II. Coimbra: Almedina,
1984.
30
Ibid., passim.
31
FREZZA, P. Fides Bona, Studi sulla buona fede. Publicação da Facoltà di Giurisprudenza
della Università di Pisa. Milão: Giufrè, 1975.
23
fazendo do próprio concreto intento negocial a medida da responsabilidade daqueles
que a fizeram nascer.
A fides atuava como o filtro do conteúdo econômico dos contratos, porque,
funcionalmente, constringe as partes a ter claro e presente qual o conteúdo concreto
dos interesses que se encontram no ajuste. Clarificação essa necessária para vincular
os contratantes para o cumprimento do avençado. Parafraseando os dizeres de Judith
Martins Costa
32
, em obra já citada, tanto mais intensa é a necessidade privada de
constrição quanto menor a força do Estado para constringir externamente os
contraentes ao cumprimento das obrigações assumidas. A boa-fé atua como forma de
definição do contrato bem como forma de responsabilidade dos contratantes.
Só posteriormente o direito pretoriano tutelaria os interesses aí envolvidos
através da criação dos bonae fidei iudicia, que consistia em um procedimento perante o
juiz no qual o demandante apresentava uma fórmula especial, não podendo demonstrar
uma intenção baseada na lei, fundava-a na fides, ordenando então o pretor que o juiz
sentenciasse conforme os ditados da boa-fé. Esta fórmula especial, denominada de
aportet (ser correto, ser preciso), ex fides bona, era alegada pelos bonae fidei iudicia.
HORVAT, citado por UBIRAJARAH MACH DE OLIVEIRA
33
, frisa que todo o
desenvolvimento do Direito Romano está estritamente ligado à noção de fides bona, de
tal maneira que esta chegará a se constituir em verdadeira cláusula geral no sistema
32
COSTA, A boa fé..., passim.
33
OLIVEIRA, U. M. de. Princípios informadores do sistema de direito privado: a autonomia
da vontade e a boa-fé objetiva. Rio Grande do Sul, 1995. Trabalho de Pós-Graduação (Disciplina Teoria
Geral do Direito Privado) – Mestrado em Direito, Setor de Pós-Graduação, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
24
romano. É, segundo ele, “ clausola generale di diritto materiale, la quale domina tutto il
sistema contrattuale”.
Pela mencionada cláusula, o juiz não ficava adstrito ao pactuado pelas partes,
mas devia interpretar a lei e agir com uma maior liberdade de movimento.
Concluindo, na esteira do pensamento de MENEZES CORDEIRO
34
, a boa-fé
tem duas vertentes. Na primeira, é considerada uma expressão qualitativa de um
instituto jurídico concreto passando a designar também um instituto jurídico diferente, é
o que ocorreu quando a boa-fé passou a nomear uma realidade nova. Na outra
vertente, verificou-se a evolução do bônus et aequum e da equitas de expressões
técnicas para princípios de grande extensão, acabando por mesclá-los com a bona
fides que, a partir de então, indica também justiça, honestidade e lealdade. Nesta
vertente, comunica-se um instituto jurídico concreto a um princípio de Direito,
integrando-se de modo a ampliar o significado deste.
3.2 BOA-FÉ NO DIREITO CANÔNICO
A boa-fé no direito canônico é vista como “ausência de pecado”
35
. A sociedade
é vista como uma grande família, na qual sobressai o dever de amor ao próximo,
seguindo-se a conclusão de que quem ama o próximo não mente e não trai a palavra
dada.
34
ROCHA; CORDEIRO, passim.
35
Ibid., p. 148, 153.
25
O direito canônico trata da boa-fé em dois setores: na prescrição e na
legitimação dos nuda pacta, vale dizer, a questão da tutela da usucapião e dos
contratos consensuais.
O problema da proteção possessória pode ser bem avaliado em passagem
relatada por FRANCESCO CALASSO
36
, citado por JUDITH MARTINS COSTA (
1999:128 ) em sua obra “A boa fé no direito privado: sistema e tópica no processo
obrigacional”, onde nos relata essa proteção com base na boa-fé, independente do
título de compra e venda.
Para o direito canônico, o agir em boa-fé, no âmbito obrigacional, significa
respeitar fielmente o pactuado, cumprir pontualmente a palavra dada, sob pena de agir
em má-fé, em pecado.
No âmbito do direito canônico, a boa-fé estava intimamente ligada ao pecado.
Por esta razão, unificou-se o conceito de boa-fé sob o signo da referência ao pecado,
situando-a em uma dimensão ética e axiológica
37
, enquanto no direito romano, que
considerava uma condição técnica da boa-fé, bipartiu-a, ou seja, boa-fé aplicada às
obrigações ou à posse. Aqui no direito canônico não há uma precisão de significado da
boa-fé como há no direito romano.
36
CALASSO, Francesco. Il negozio giuridico, Milão, Giufrè, 1959, pág 121. “...entre as frases
áridas do formulário intercalado aos textos dos Capitulare Italicum, a propósito de um capítulo de Guido,
(... ) se imagina a hipótese de que um proprietário diga a alguém que lhe invadiu a terra: quod tu tenes
sibi malo ordini terram, e o outro se defenda afirmando que a terra é sua, e mostre o documento feito por
quem lhe vendera a terra. Entretanto, o proprietário rersponde em contrário, afirmando que aquele
documento não pode ferir o seu interesse, porque o vendedor havia invadido terra; e então, àquele só
resta defender-se com a própria boa-fé: licet invasisset tamem perdere nom debeo, quia eum invasisse
ignorabam”.
37
ROCHA; CORDEIRO, p. 155.
26
Menezes de Cordeiro entende que, em razão desta falta de precisão no
conceito da boa-fé, no direito canônico, acabou por promover “amputações e
simplificações”
38
neste instituto, o que geraria, com as dimensões dadas pelo direito
romano, um princípio geral ordenador da matéria obrigacional
39
. Em síntese, unindo o
conceito técnico do direito romano com a subjetividade, ou seja, com a inexistência de
uma determinação técnico-jurídica dada pelo direito romano, tornou a boa-fé objetiva
como uma categoria vazia de qualquer “conteúdo substancial”
40
, como uma cláusula
geral.
3.3 BOA-FÉ NO DIREITO GERMÂNICO
No direito germânico, a boa-fé se desenvolverá como elemento afetivo exterior.
A boa-fé no direito germânico guarda correspondência com a bona fides da cláusula
aportere. Conforme MENEZES CORDEIRO
41
, a boa-fé objetiva traduz a expressão
alemã Treu und glauben e a boa-fé subjetiva é expressa por Guter Glauben, tendo
como significados atuais Treu ou treue como lealdade e Glauben ou Galube como
crença. Anota Menezes de Cordeiro que Treu, tanto significa “ firmeza, comportamento
autêntico de alguém em consequência de um contrato concluído” como o próprio
contrato em si, numa semântica que se manteria em médio-alto-alemão. Neste último
período, adere-se a Treu, um sentido ético, traduzindo “ um conceito cerne no sistema
38
ROCHA; CORDEIRO, p. 155.
39
COSTA, A boa fé...., p. 131.
40
ROCHA; CORDEIRO, op. cit., p. 160.
41
Ibid., p. 162.
27
de valores cavalheirescos”
42
. Por sua vez, Glauben foi utilizado em velho-alto-alemão
para traduzir a fides latina no sentido cristão de fé, crença, confiança.
A boa-fé no direito germânico assumiu o conteúdo do instituto medieval do
juramento da honra, traduzido no dever de garantir a manutenção e o cumprimento da
palavra dada.
A boa-fé objetiva germânica firmou como campo de atuação jurisdicional por
razão das decisões e jurisprudências firmadas.
3.4 BOA-FÉ NO DIREITO ALEMÃO
Com a unificação do Direito Comercial alemão, prossegue a aplicação da boa-
fé objetiva como fonte de normas de conduta, como delimitação ao exercício de
posições jurídicas, como elemento de reforço da ligação obrigacional e como bitola para
interpretação dos negócios jurídicos.
Citando MENEZES DE CORDEIRO, transcrito da obra de Ubirajara Mach de
Oliveira
43
, onde colaciona exemplos jurisprudenciais de cada uma das funções da boa-
fé objetiva no direito alemão, em decisões do Tribunal Comercial criado em Leipzig, a
saber:
42
ROCHA; CORDEIRO, p. 167-168.
43
OLIVEIRA, U. M. de. Princípios informadores do sistema de direito privado: a autonomia
da vontade e a boa-fé objetiva. Rio Grande do Sul, 1995. Trabalho de Pós-Graduação (Disciplina Teoria
Geral do Direito Privado) – Mestrado em Direito, Setor de Pós-graduação, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
28
a) Como fonte de normas de conduta: O Tribunal Superior da Reich, em 29-10-
1870, a propósito de um comissão em compra e venda, discorria sobre o
valor do silêncio no tráfego negocial. Como regra, entendeu que o valor do
silêncio como aceitação, fixado, em alguns casos, por lei ou por costume,
não é conseqüência de um querer geral, mas apenas um princípio
manifestado em certas direções. Admitiu que a omissão da declaração
apareceria como violação da observância da boa-fé necessária no tráfego
comercial, em especial quando o silêncio tenha manifestamente intenção de
dolo. A simples ausência de resposta não integraria, por si só, violação da
boa-fé. Ainda sobre o silêncio, numa questão de Direito marítimo, o Tribunal
Superior do Império, em 26-11-1873, acentuou: “Segundo o princípio da
boa-fé , imprescindível para o tráfego comercial, a autora, pelo envio de sua
carta (...) ao réu, tinha a expectativa justificada de que ele, caso não
estivesse de acordo com a redação expressa das condições contratuais, o
exteriorizaria sem hesitação.” Assim é que, sem que haja expressa
disposição contratual, extraiu-se da boa-fé uma regra do comportamento
comercial.
b)
Como delimitação ao exercício de posições jurídicas: Num caso de
negociação de farinha, asseverou o BOHG (Tribunal Comercial Superior da
União), em 09-03-1871, que, tendo sido remetida uma mercadoria à prova,
quando o comprador a guarde durante tempo suficiente para uma análise
regular, sem dar conta, ao vendedor, de quaisquer falhas, se deve concluir
29
que ele aceitou a celebração do negócio e renunciou a indenizações por
quaisquer vícios.
c)
Como reforço de ligações obrigacionais: ROHG (Tribunal Superior do
Império), 11-03-1874, considerou como “dura violação contra o princípio da
boa-fé que domina o comércio” a atitude do negociante que, não querendo
sancionar determinada atuação, deixasse sem resposta uma comunicação
feita oportunamente.
d)
Como bitola para a interpretação de contatos: ROHG, 24-09-1873, entendeu
que o princípio da boa-fé, que domina o tráfego comercial, manda apenas
que a vontade real prevaleça para a determinação do conteúdo da
declaração, e não que uma vontade incompleta seja de complementar pelo
Juiz, quando lhe falta, para mais, pelas circunstâncias do caso, qualquer
parâmetro objetivo para tanto. Em outras questões, porém, como em ROHG,
30-06-1874 e 23-11-1874, a boa-fé se mantém como amparo para
interpretar o silêncio em declarações negociais.
Observa MENEZES DE CORDEIRO que as decisões da época mencionada
reconhecem pacificamente a boa-fé como princípio geral do tráfego mercantil,
destacando-se pelo pragmatismo das soluções encontradas, sem a preocupação em
buscar qualquer apoio legislativo ou conceitual.
O Código Civil alemão trouxe uma contraposição clara entre a boa-fé objetiva e
a subjetiva.
O conteúdo da boa-fé no Código Civil alemão – BGB _ gira em torno de dois
centros: a boa-fé subjetiva constitui um expediente técnico para exprimir, em situações
30
complexas, elementos atinentes ao sujeito; a objetiva traduz o reforço material do
contrato.
A codificação alemã acabou por adotar um sistema aberto, capaz de, por
desenvolvimentos internos ou externos, responder a problemas impensáveis quando da
elaboração do Código Civil alemão – BGB. E, conforme Menezes de Cordeiro
44
, na
boa-fé foi centrada a capacidade reprodutora do sistema, pois foi dotada de um peso
juscultural capaz de dar credibilidade às soluções encontradas.
Com a entrada em vigor do BGB, verificou-se o verdadeiro desenvolvimento da
doutrina da boa-fé, tanto a objetiva como a subjetiva. A noção atual da boa-fé,
sobretudo a objetiva, bem como a inspiração para a disciplina no Código Civil Brasileiro
de 2002, devem-se em grande parte à experiência alemã. Os alemães estabeleceram
inúmeros deveres a partir do desenvolvimento doutrinal e jurisprudencial a serem
observados pelos contratantes no transcurso da relação contratual. O contrato deixa
assim de obrigar apenas o que concerne às disposições nele expressas. Deve garantir
a satisfação das expectativas legitimamente criadas na contraparte, por esta ter
confiado que determinados interesses seus seriam atendidos na seqüência da
celebração do contrato.
Após a análise histórica dos institutos da boa-fé, veremos como outras
legislações entendem sua aplicabilidade e normatização.
44
ROCHA; CORDEIRO, p. 331.
31
4 BOA – FÉ: DIREITO COMPARADO
Como visto anteriormente, foi na Alemanha, influenciada pelo pandectismo, que
o princípio da boa-fé desenvolveu seu caráter objetivo de regra de conduta, passando a
traduzir a idéia de cláusula geral.
MENEZES DE CORDEIRO
45
tem um entendimento peculiar a respeito da
evolução da boa-fé no direito alemão, mencionando que o desenvolvimento deste
instituto, mesmo com a entrada do BGB, deu-se peremptoriamente com a continuidade
de práticas comerciais com a formação de jurisprudência. A difusão da boa-fé objetiva,
na seqüência da entrada em vigor do BGB, é apenas práticas assentes na
jurisprudência alemã.
4.1 DIREITO ALEMÃO
Todavia, o direito alemão nos trouxe deste a pandectítica e com a entrada em
vigor do BGB um grande avanço na conceituação e normatização da boa-fé.
O parágrafo 242 do BGB, tradução de JUDITH MARTINS COSTA, ressalta da
seguinte forma a importância da Boa-fé: “§ 242: Os contratos devem ser interpretados
como exigem a boa-fé e a intenção das partes determinadas segundo os usos”
46
.
45
ROCHA; CORDEIRO, p. 315.
46
COSTA J. M. A incidência do princípio da boa-fé no período pré-negocial: reflexões em torno
de uma notícia jornalística. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: RT, v.4, p. 140-191, 1992.
32
Igualmente, o parágrafo 157 do BGB, traduzido por PAULO LUIZ NETO LÔBO,
ressalta a boa-fé: “§157: Os contratos hão de se interpretar como exigem fidelidade e
boa-fé em atenção aos usos do tráfico”
47
.
Por sua vez, o parágrafo 320 nos revela: “§ 320: Se, de um lado a prestação foi
executada parcialmente, a contraprestação não pode ser recusada, em sendo
recusada, contraria a boa-fé, a qual deve ser apreciada segundo as circunstâncias e,
em particular, segundo a modicidade relativa da parte restante”
48
.
Ainda no direito Alemão há que se destacar o parágrafo 9 da AGB-Gesetz,
Gesetz zur Regelung dr Allgemeinem Geschuftsbendingungen, de 09/12/76, (Lei para o
Regulamento das Condições Gerais dos Negócios):“§ 9: As cláusulas contidas em
condições gerais de contratos não produzem efeitos quando prejudicam, contra os
princípios da boa-fé, de uma maneira inadequada, o aderente”
49
.
O direito alemão demonstra a utilização da boa-fé nas interpretações de
relações contratuais, diferenciando a boa-fé subjetiva, interpretando a intenção das
partes contratantes, e a boa-fé objetiva, analisada sobre o prisma de circunstâncias do
fato e a particularidade dos contratantes. Estas diferenciações demonstradas pelo
direito alemão irão influenciar nosso ordenamento jurídico civil, mais precipuamente o
nosso Código Civil de 2002.
47
LOBO, P. L. N. Condições gerais dos contratos e cláusulas abusivas. São Paulo:
Saraiva, 1991. p. 144.
48
RÀO, V. Ato jurídico: noção, pressuposto, elementos essenciais e acidentais. O problema do
conflito entre os elementos volitivos e a declaração. 3 ed. anot. e atual. por Ovídio Rocha Barros
Sandoval. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 191.
49
LOBO, op. cit., p. 146.
33
4.2 DIREITO ESPANHOL
Na Espanha, segundo FERNANDO NORONHA “na reforma do Título Preliminar
do Código Civil espanhol, introduzida por uma lei em 1973 e por um decreto de 1974,
foi incluído o preceito segundo o qual “ los derechos deben ejercitarse conforme a los
dictados de la buena fé”
50
. Ainda na Espanha, informa NELSON NERY JÚNIOR, que a
cláusula geral da boa-fé está preconizada pelo “ artigo 10, 1, c, da Lei Espanhol de
Proteção ao Consumidor ( Lei n 20/1984, de 19 de julho )”.
51
4.3 DIREITO ITALIANO
Na Itália, no Código Civil Italiano de 1942, verificam-se as seguintes
disposições referentes à boa-fé, nos artigos 1.175, artigo 1.337 , artigo 1338, 1355,
1366, 1371, 1375.
Segundo o artigo 1.175, “o devedor e o credor devem comportar-se segundo as
regras da honestidade”
52
.
O artigo 1337 reza que “as partes, no desenvolvimento das negociações e na
formação do contrato, devem comportar-se de acordo com a boa-fé”
53
.
50
NORONHA, p. 126.
51
NERY JÚNIOR, N. Os princípios gerais no código brasileiro de defesa do consumidor.
Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: RT, v. 3. p. 44-77, 1999. p. 62.
52
Livre Tradução: Il debitore e il creditore devono comportarsi secondo de regole della
corretezza
53
Livre Tradução: Le parti, nello svolgimento delle trattative e nella formazione Del contrato,
devono comportarsi secondo buona fede”.
34
Este dispositivo, expresso no artigo 1337 do Código Civil Italiano, equivale
parcialmente ao dispositivo do artigo 422
54
do nosso Código Civil de 2002.
Entretanto, o artigo do Código Civil Italiano prevê expressamente
responsabilidade pré-contratual, fazendo o dever anexo das partes se comportar dentro
dos limites da boa-fé também na fase de negociações contratuais, o que não ocorre em
nosso dispositivo. Todavia, já existe o Projeto de Lei 6.960/02 que irá incluir no
dispositivo do artigo 422 do Código Civil brasileiro a responsabilidade pré-negocial.
Também já entende o Conselho Superior da Magistratura Federal
55
como dever anexo
da boa-fé no artigo 422, interpretando-o e admitindo esta possibilidade, o que será
análise em tópico abaixo.
Segundo o artigo 1338, “Conhecimento da cláusula de invalidade, a parte que
conhecendo ou devendo conhecer a existência de uma causa de invalidade do contrato
(1418 e seguintes), não tenha dado notícia a outra parte, é obrigado a ressarcir o dano
daquela que confiou, sem sua culpa, na validade do contrato”
56
.
Este artigo nos mostra claramente o dever acessório da confiança nas relações
contratuais, que será um dos deveres acessórios da boa-fé objetiva no Código Civil
brasileiro como norteador e interpretação de conduta.
54
“Artigo 422 do Código Civil Brasileiro: Os contratantes são obrigados a guardar, assim na
conclusão do contrato, como em um sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.”
55
Enunciado 25, aprovado pela Jornada de Direito Civil I, promovida pelo Centro de Estudos do
Conselho da Justiça Federal, no período de 11 a 13 de setembro de 2002, sob a coordenação científica
do Ministro Ruy Rosado, do STJ.
56
Livre Tradução: Conoscenza delle cause d´invalidità. La parte Che, conoscendo o dovendo
conoscere l´esistenza di uma causa d´invalidità Del contratto (1418 e seguenti) , non ne há dato notizia
all´altra parte è tenuta a risarcire il danno da questa risentito per avere confidato, senza sua colpa, nella
validità Del contratto (1308).
35
O artigo 1355 diz que “Condições meramente potestativa é nula alienação de
um direito ou assunção de uma obrigação subordinada a uma condição suspensiva que
a faça depender de mera vontade do alienante ou, respectivamente, do devedor.”
57
Explicita este dispositivo a igualdade das partes no contrato. Igualdade esta que
irá manter a relação como solidária, justa e com finalidade de atendimento das
necessidades almejadas pelos contratantes.
Artigo 1366: Interpretação da boa-fé. O contrato deve ser interpretado segundo a boa-fé
58
.
Artigo 1460: Exceções de inadimplemento. Nos contratos com prestações correspectivas,
qualquer dos contratantes pode deixar-se de adimplir a sua obrigação, se o outro não adimplir
ou não oferecer o adimplemento oportunamente, salvo termos diversos para o adimplemento
fazer parte do resultado da obrigação natural do contrato ( 1565 ). Todavia não pode deixar-se
de executar, resguardadas as circunstâncias, se for contrário a boa-fé”
59
.
Estes dois artigos demonstram a proximidade da legislação civilita italiana com
o Código Civil brasileiro, na matéria contratual. Primeiramente pela interpretação do
contrato no artigo 422 e posteriormente sobre a exceção de contrato não cumprido
expresso no artigo 476 e 477.
57
Livre Tradução: Condizione meramente postestativa . E´nulla L´alienazione di um diritto o
l`assunzione di um obbligo subordinata a uma condizione sospensiva Che la faccia dipendere dalla mera
volontà dell´alienante o, rispettivamente, d quella Del debitore.
58
Livre Tradução: Interpretazione di buona fede. Il contratto deve essere interpretato secondo
buona fede (1337, 1371, 1375).
59
Livre Tradução: Eccezione d´inadempimento. Nei contrattti com prestazioni corrispettive,
ciascuno dei contraenti può rifiutarsi di adempiere la sua obbligazione, se l´altro nono adempie o non offre
di admpiere contemporaneamente la própria, salvo Che termini diversi per l´adempimento siano stati
stabiliti dalle parti o risultino dalla natura Del contratto (1565) Tuttavia nono può rifiutarsi l´esecuzione se,
avuto riguardo alle circonstanze, il rifiuto è contrario allá buona fede ( 1375 ).
36
“Artigo 1371: Regras finais. Agora, não obstante a aplicação das normas
contidas no “ caput” 1362 e seguintes, o contrato permanece obscuro. Isto deve ser
entendido de forma menos gravosa para o obrigado, se é a título gratuito, e de forma
que realize uma igualdade de interesses das partes, se é a título oneroso.”
60
Nota-se a preocupação do legislador italiano em manter a igualdade das partes
contratantes.
“Artigo 1375: Execução da boa-fé. O contrato deve ser executado segundo a
boa-fé”
61
.
Enfim, podemos concluir, no direito Italiano, que a boa-fé objetiva é um estado
de espírito que conduz a parte negocial a agir dentro das regras da ética e da razão.
62
Mas esse estado de espírito somente pode ser analisado, no plano concreto, com a
conduta leal e de probidade que a parte mantém em todas etapas pela qual passa o
negócio jurídico. Por certo é que a ética e a boa-fé não podem somente ficar somente
60
Livre Tradução: Regole final. Qualora,noonostante Lápplicazione delle norme contenute in
questo capo (1362 e seguenti), il contratto rimanga oscuro, esso deve essere inteso nel senso meno
gravoso per Lóbbligato, se è a titolo gratuito, e nel senso che realizzi l`équo contemperamento degli
interessi delle parti, se è a titolo oneroso.
61
Livre Tradução: Esecuzione di buona fede. Il contratto deve essere eseguito secondo buona
fede (1337, 1358, 1366, 1460).
62
AZEVEDO, A. V. Teoria Geral dos contratos típicos e atípicos. São Paulo: Atlas, 2002.pág
26. O Professor V
ILLAÇA entende que a boa-fé objetiva constitui “um estado de espírito, que leva o sujeito
a praticar um negócio em clima de aparente segurança. Assim, desde o início devem os contratantes
manter seu espírito de lealdade, esclarecendo os fatos relevantes e as situações atinentes à contratação,
procurando razoavelmente equilibrar as prestações, expressando-se com clareza e esclarecendo o
conteúdo do contrato, evitando eventuais interpretações divergentes, bem como cláusulas leoninas, só
em favor de um dos contratantes, cumprindo suas obrigações nos moldes pactuados, objetivando a
realização dos fins econômicos e sociais do contratado; tudo para que a extinção do contrato não
provoque resíduos ou situações de enriquecimento indevido, sem causa”.
37
no plano das idéias. A atuação da parte é que irá demonstrar se realmente há essa boa
intenção.
4.4 DIREITO PORTUGUÊS
Em Portugal, temos a boa-fé expressa nos seguintes artigos: 227, I, 239, I, 473,
n.º 1 e artigo 762, n.º 2, ambos do Código Civil Português de 1966, dispõe que “Artigo
227, I: Quem negocia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nas
preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena
de responder pelos danos que culposamente causar a outrem”
Este dispositivo do Código Civil Português aproxima do nosso artigo 422 do
Código Civil. Porém, novamente, como ocorre similar ao Código Civil Italiano, faz
menção expressa a responsabilidade pré-contratual, como dever anexo a boa-fé
objetiva, o que infelizmente nossa disposição não trata. Outrossim, como anteriormente
dito, há doutrina que já se manifestou a respeito da responsabilidade pré-contratual em
uma interpretação extensiva do artigo 422 e também temos um projeto de Lei 6.960/02,
de autoria do Deputado Ricardo Fiúza, que propõe alteração deste artigo para incluir
expressamente o dever anexo mencionado. Abaixo será melhor analisado.
Artigo 239, I: Na falta de disposição especial, a declaração negocial deve ser integrada de
harmonia com a vontade que as partes teriam tido se houvesse previsto o ponto omisso, ou se
acordo com os ditames da boa-fé, quando outra seja a solução por eles imposta.
Artigo 437, n.º 1: Se as circunstâncias em que as partes fundarem a decisão de contratar
tiverem sofrido um alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à
modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela
38
assumidas afete gravemente os princípios da boa-fé e não esteja coberta pelos riscos próprios
do contrato.
Artigo 762, n.º 2: No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito
correspondente, devem as partes proceder de boa-fé.
4.5 DIREITO SUÍÇO
Na Suíça, os contornos da boa-fé aparecem no artigo 2 do Código Civil Suíço
que demonstra a tendência dos demais ordenamentos jurídicos analisados sobre a
interpretação conforme este instituto.
“Artigo 2: Cada um deve exercer os seus direitos e cumprir suas obrigações
segundo as regras da boa-fé”
63
.
4.6 DIREITO INGLÊS
FERNANDO NORONHA esclarece que na Inglaterra a boa fé é expressa e
regulamentada como atuação correta , fair dealing, ao invés de good faith. E menciona
que, nas leis de proteção ao consumidor deste país, impõe-se a observância dos
razoáveis padrões comerciais de atuação correta nas transações.
63
Chacum est tenu d´exercer sés droits et d´éxécuter sés obligations selon lês régles de la
bonne foi” Tradução de Edvado Sapia Gonçalves.
39
4.7 DIREITO FRANCÊS
Conforme JUDITH MARTINS COSTA
64
, o direito francês é marcado pela
autonomia da vontade, como princípio central do direito contratual e de toda a matéria
obrigacional. E é tão forte este princípio que há dicção final do artigo 1.134
65
, onde o
pactuado deve ser executado de boa-fé, reforçando a obrigatoriedade da convenção de
forma livre. A boa-fé expressa neste artigo é para apoiar a autonomia da vontade nas
convenções onde estas só serão justas e cumpridas se manterem esta liberdade
assegurada pela boa-fé.
A matéria de boa-fé é presente no Código Francês em matéria possessória e no
campo obrigacional, ambos, porém, presos a um critério subjetivo, interno ao agente. A
boa-fé do direito francês é a boa-fé objetiva que influenciou fortemente nosso Código
Comercial de 1850 e também o antigo Código Civil de 1916.
JUDITH MARTINS COSTA
66
demonstra o avanço do direito francês, que
somente neste final do século XX e com caráter de novidade, o tema da boa-fé, através
da afirmação de seu próprio conteúdo jurídico, será enfim retomado, procurando a
doutrina francesa mais recente atentar para as potencialidades da terceira alínea do
artigo 1134 como princípio limitativo da autonomia da vontade, ao qual se liga a criação
de certos deveres, positivos e negativos, na conduta contratual.
64
COSTA, A boa fé..., passim.
65
Artigo 1134 do Code Napoléon: “ Elles doivent être exécutêes de bonne foi”.
66
COSTA, op. cit., p. 207.
40
4.8 DIREITO URUGUAIO
No Uruguai, a boa-fé é determinada no artigo 1.291 do Código Civil Uruguaio.
O artigo 1.291 nos impõe a obrigatoriedade da interpretação da boa-fé não
somente “inter partes”, ou seja, entre os contratantes, mas sim todos os efeitos que
advirão dele, principalmente na sociedade, mantendo a igualdade na relação contratual.
“Artigo 1.291: Devem executar-se de boa-fé e, por conseguinte, obrigam não
apenas ao que neles se expressa, mas a todas as conseqüências que, segundo sua
natureza, sejam conformes à equidade, ao uso da lei”
67
.
4.9 DIREITO ARGENTINO
Na Argentina também encontramos regulamentação da boa-fé no artigo 1198
do Código Civil Argentino:
“Artigo 1.198: Os contratos devem celebrar-se, interpretar-se e executar-se de
boa-fé e de acordo com a verossimilhança do entendimento das partes, agindo com
cuidado e previsão”
68
.
67
RODRIGUES, A. P. Princípios de direito do trabalho. Trad. de Wagner D. Gliglio. 3. tirag.
São Paulo: LTR/EDUSP, 1994. passim.
68
Livre Tradução: Los contratos de bem celebrarse, interpretarse e ejecutarse de buena fé y de
acuredo com lo que verosímilmente las partes entendieron o pudieron entender, obrando con cuidado y
previsión”
41
Este dispositivo engloba a boa-fé em sua forma objetiva nas fases pré-
contratual, durante o contrato e pós-contratual, interpretando condutas de acordo com
os deveres acessórios de cuidado e previsão.
4.10 DIREITO CHILENO:
O Código Civil Chileno estabelece:
“Artigo 1546: Os contratos devem executar-se de boa-fé e por conseguinte
obrigam não somente os que nele se expressa, mas todas as coisas que emanam
precisamente da natureza da obrigação, o que por lei ou pelo costume pertencem a
ela.”
69
( Livre tradução )
Analisando os ordenamentos acima, concluímos que a boa-fé é estabelecedora
de regras comportamentais entre os contratantes. Assim, temos a Boa-fé no direito
alemão como grande influenciador das demais ordenações, mais especificamente a
italiana e a brasileira.
Neste diapasão vemos grandes semelhanças entre a sistematização da boa-fé
no Códice Civile Italiano de 1942 com os artigos que tratam desta cláusula no nosso
Código Civil de 2002, que será tratado no próximo capítulo.
Enfim, a boa-fé é uma tendência de todas as legislações como forma de aferir a
conduta ética, honesta, retida e igualitária entre as partes contratantes. Vimos forte
69
“Artigo 1546: Los contratos deben ejecutarse de buena fe, i por sonsiguiente obligan no solo
a lo que em elles se expressa, sino a todas las cosas que emanan precisamente de la naturaleza de la
obligación, o que por la lei o l costumbre pertenecen a ella”.
42
evolução e normatização deste instituto no direito alienígena e com isto desenvolvemos
nossa regulamentação e a incidência em nosso ordenamento jurídico, o que abaixo se
demonstra.
4.11 DIREITO AMERICANO
Nos Estados Unidos, temos a boa-fé , tratada pelo Uniform Commercial Code,
verbis:
“Seção 1-203: Todo contrato ou obrigação no âmbito desta lei impõe uma
obrigação de boa-fé no seu adimplemento ou na realização do direito do credor”
70
.
“Seção 1-201 (19): Boa-fé significa honestidade de todos na conduta ou
transação em causa”
71
“Seção 2-103 (1) (b), aplicáveis a merchants ( comerciantes): Boa-fé significa
honestidade de fato e a observância de razoáveis padrões comerciais de atuação
concreta no tráfico”.
72
Interessante observar a preocupação da legislação americana com a
conceituação da boa-fé, padrão de conduta das partes na interpretação dos contratos.
70
NORONHA , p. 126. Tradução de Fernando Noronha, “Every contract or duty within this act
imposes na obligation of good faith in its performance or enforcement” .
71
Id. Tradução de Fernando Noronha, “Good Faith´ means honesty in fact in the conduct or
transaction concerned”.
72
Id. Tradução de Fernando Noronha, “ Good faith´... means honesty in fact and the observance
of reasonable commercial standards of fair dealing in the trade”.
43
5 BOA-FÉ NO DIREITO BRASILEIRO
5.1 EVOLUÇÃO DA BOA-FÉ
A primeira inserção pode ser verificada nas Ordenações Filipinas de 1603, no
Livro I, Título LXII, § 53:
E, por não convir em dúvida qual he Morgado ou Capella, declaramos ser Morgado, se na
instituição, que dos bens os Administradores e possuidores dos ditos bens cumpram certas
Missas ou encarregos, e o que mais renderem haja para si, ou que os Instituidores lhes
deixaram os ditos bens com certos encarregos de Missas, ou de outras obras pias. E se nas
instituições for conteúdo, que os Administradores haja certa cousa, ou certa quota das rendas
que os bens renderem, assim como terço, quarto ou quinto, e o que sobejar se gaste em
Missas, ou em outras obras pias: em este caso declaramos, não ser Morgado, senão Capella.
E, nestas taes instituições e semelhantes póde e deve entender o Provedor, postoque nas
instituições se diga que faz o Morgado, ou que faz a Capella; porque às semelhantes palavras
não haverão respeito, sómente á fórma dos encarregos, como acima dito he.
73
Mais tarde, no Código Comercial de 1850
74
, através de norma estabelecida no
art. 131, I, cujo potencial não foi aproveitado nem mesmo por nossos melhores
comentaristas, citando RUY ROSADO DE AGUIAR DIAS
75
, tal dispositivo permaneceu
73
COELHO, A. F. Código civil dos Estados Unidos do Brasil: comparado, comentado e
analisado. Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil. 1924, p. 221.
74
BRASIL. Código Comercial, Lei 0556, de 25 de junho de 1850. São Paulo: Saraiva, 2005.
75
AGUIAR JÚNIOR, R. R. de. Do incumprimento contratual. Rio de Janeiro: Aide, 1991.
passim.
44
letra morta por falta de inspiração da doutrina e nenhuma aplicação nos tribunais , os
quais não fizeram qualquer consideração acerca da possibilidade de sua utilização,
como fonte autônoma de direitos e obrigações:
Art. 131 – Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das
regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: I – a inteligência simples e
adequada, que for mais conforme a boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato,
deverá sempre prevalecer a rigorosa e restrita significação das palavras;...
A presença da regra interpretativa da boa-fé pode ser igualmente constatada no
Projeto de Código Comercial organizado por Herculano Marcos Inglez de Souza, de
1911:
Art. 714 – As palavras do contrato devem entender-se segundo o uso do lugar em que foi
celebrado o mesmo contrato e no sentido em que as costumam empregar as pessoas da
profissão ou indústria a que disser respeito o ato, posto que, entendidas as palavras doutro
modo, possam significar coisa diversa.
Art. 715 – Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além da regra
do artigo antecedente, será regulada da maneira seguinte:
I – a inteligência, simples e adequada, que for mais conforme à boa-fé e o verdadeiro espírito e
a natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das
palavras.
45
Em Direito Civil, é no Esboço de Teixeira de Freitas de 1855
76
que se percebe a
sua presença pela primeira vez, sendo válido salientar que o iluminado jurista, na Parte
Geral, Livro Primeiro, Seção III, destinou alguns artigos ao tratamento da boa-fé dos
atos jurídicos, tendo-a identificado como elemento inerente à própria substância destes
atos.
Art. 504 – Haverá vício de substância nos atos jurídicos, quando seus agentes não os
praticaram com intenção, ou liberdade; ou quando não os praticaram de boa-fé.
Art. 505 – São vícios de substância, nos termos do artigo antecedente:
1º Por falta de intenção, a ignorância ou êrro, e o dolo (art. 450).
2º Por falta de liberdade, a violência (art. 451).
3º Por falta de boa-fé, a simulação e a fraude.
Art. 517 – Consiste a boa-fé dos atos jurídicos na intenção de seus agentes relativamente a
terceiros, quando procedem sem simulação ou fraude.
Art. 518 – Reputar-se-á ter havido boa-fé nos atos jurídicos, ou nas suas disposições, enquanto
não se provar que seus agentes procederam de má-fé, isto é, como um dos vícios do artigo
antecedente (arts 504 e 505, nº 3).
...
Art. 1954 – Os contratos devem ser cumpridos de boa-fé, pena de responsabilidade por faltas
(arts 844 a 847) segundo as regras do art. 881. Eles obrigam não só ao que expressamente se
tiver convencionado, como a tudo que, segundo a natureza do contrato, for de lei, eqüidade, ou
costume.
76
FREITAS, A. T.de. Appontamentos ao código do commercio. Rio de Janeiro: Typografia
Perseverança, 1878. passim.
46
Além disso, alguns dispositivos podem ser encontrados tanto no Projeto do
Código Civil Brasileiro quanto no Comentário de Joaquim Felício Santos de 1881
77
:
Art. 256 – Na interpretação dos atos jurídicos se observarão as seguintes regras:
1º - Quando a expressão do ato é duvidosa, deve-se atender à intenção que os agentes
tiveram, de preferência ao sentido literal dos termos;
2º Os termos devem ser entendidos no sentido que tinham ao tempo da celebração do ato;
3º Uma cláusula suscetível de diversos sentidos entende-se naquele em que possa ter efeito, e
não em outro em que não teria efeito algum;
4º Os termos suscetíveis de diversos sentidos devem ser entendidos naquele que mais convém
à matéria de que se trata e à natureza e o objeto do ato;
5º O que é ambíguo deve ser entendido segundo o uso do lugar em que o ato é celebrado;
6º As cláusulas que são de costume subentendem-se estipuladas ou declaradas no ato;
7º As cláusulas dos atos interpretam-se umas pelas outras, quer sejam antecedentes, quer
conseqüentes;
8º As cláusulas e expressões absolutamente ininteligíveis devem se reputar não escritas;
9º Na dúvida, a prova de uma obrigação ou de sua extensão se interpreta em favor do devedor,
e a prova da extinção ou limitação se interpreta a favor do credor;
10º Por gerais que sejam os termos em que for concebido um ato, este só compreende as
coisas, das quais os agentes se propuseram tratar, e não as coisas de que não cogitaram;
11º Se no ato se expressou um caso para explicar a obrigação, não se deve julgar que os
agentes quiseram restringir àquele único caso, quando ela por lei é extensiva a outros casos;
77
Projeto do Código Civil Brasileiro e Commentário de Joaquim Felício Santos (1881), Tomo I,
Parte Geral, Livro III – Dos Atos Jurídicos em geral, Capítulo III – Da Interpretação dos Atos Jurídicos
47
12º Tratando-se de contrato a título gratuito, ou de legado em relação a herdeiro, na dúvida, a
interpretação se fará pela menor transmissão de direitos e interesses;
13º Os fatos dos agentes na ocasião do ato, ou anteriores ou posteriores, e que tenham relação
com a questão, também servirão para a interpretação;
14º As cláusulas e termos de um ato poderão interpretar-se pelas cláusulas e termos de outro
ato, entre as mesmas partes e sobre o mesmo objeto, ou pela aplicação prática, que delas
tenham feito os agentes;
15º No caso de dúvida de uma cláusula ou expressão, se interpretará, antes no sentido de um
modo, que de uma condição; no sentido antes de uma condição resolutiva, que suspensiva. "
Este artigo, com seus parágrafos, nos ensina regras para interpretação dos
contratos em diversas situações, em casos de obscuridade, dúvida do avençado, tempo
do contrato, os limites e o alcance da manifestação da vontade.
Prestigia a boa-fé em sua forma subjetiva, como intenção, o sentido psicológico
das partes no momento da celebração da vontade no contrato, e com isto, na
interpretação deverão ser observados os limites expostos pelos normativos.
Interessante notar a influência dos costumes como forma implícita na interpretação dos
contratos, ou seja, independente da manifestação de vontade ela deverá estar em
consonância com os fatos e ditames da época e das partes. Vemos também no Projeto
de Código Civil Brasileiro de A. Coelho Rodrigues de 1893
78
:
78
Projeto de Código Civil Brasileiro de 1893, elaborado por A.Coelho Rodrigues. Parte geral,
Livro III – Dos fatos e atos jurídicos, Título IV – Dos atos jurídicos, Capítulo V – Da interpretação dos atos
jurídicos
48
Art. 353 – Na interpretação dos atos jurídicos serão observadas as seguintes regras:
§ 1º Se o texto for coerente e claro, deve ser atendido literalmente.
§ 2º Se for claro numas partes e obscuro ou dúbia noutras, estas deverão ser entendidas de
acordo com aquelas.
§ 3º Se for inexeqüível num sentido e exeqüível noutro, deve ser entendido neste, ainda que
seja menos literal que aquele.
§ 4º Se as disposições expressas não forem taxativas, deverão ser subentendidas as
conseqüências naturais e usuais do ato.
§ 5º Se alguma das cláusulas expressas não excluir as usuais, ou for inconciliável com elas,
estas deverão ser subentendidas.
§ 6º Se o ato carecer de alguma coisa essencial para valer como tal, mas contiver quanto baste
para valer por outro título, deverá ser entendido com as restrições correspondentes a este.
§ 7º Se o ato for benéfico unilateral, não será interpretado extensivamente.
§ 8º Se as palavras tiverem diversos sentidos, deve ser preferido o mais conforme à matéria do
ato.
§ 9º As dúvidas que ocorrerem na execução devem ser resolvidas de acordo com o costume do
lugar.
§ 10º Por mais gerais que sejam os termos de um ato, deve-se entendê-los conforme o fim
manifestado pelos agentes.
§ 11º As dúvidas sobre a existência ou sobre a extensão da obrigação devem ser resolvidas em
favor do devedor, e as relativas à extinção ou limitação dela em favor do credor."
Igualmente no Projeto do Código Civil brasileiro e no Comentário de Joaquim
Felício dos Santos (1881), estes normativos prestigiam muito o costume na
49
interpretação dos contratos. Outrossim, notamos uma grande tendência de
interpretação literal se esgotando no próprio texto da lei. Temos também no Direito
Civil Brasileiro Recompilado ou Nova Consolidação das Leis Civis vigentes em 11 de
agosto de 1899
79
, do advogado Carlos Augusto de Carvalho, os quais, embora não
atinentes à boa-fé objetiva, guardam relações de proximidade com esta.
"Art. 284 – A inteligência simples e adequada que for mais conforme à boa-fé e
ao verdadeiro espírito e natureza do ato deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita
significação das palavras."
Apesar destes antecedentes históricos à época da elaboração do Código Civil
Brasileiro de 1916 que será analisado posteriormente, embora Clóvis Beviláqua tenha
feito constar inúmeras remissões à boa-fé, apenas excepcionalmente mencionou a
boa-fé objetiva, nos artigos 1443 e 1444, inexistindo em nosso Código uma regra geral
acerca da necessidade de sua observância em matéria de obrigações, exteriorizando
mais a boa-fé subjetiva.
No Título I – Da Constituição das Obrigações, do Anteprojeto de Código das
Obrigações de 1941, elaborado por Orosimbo Nonato, Philadelpho Azevedo e
Hahnemann Guimarães, três dispositivos prestigiaram a boa-fé: os dois primeiros (arts
65 e 66), inseridos no Capítulo I – Da Declaração de Vontade; o outro (art. 156), no
Capítulo VI – Da Reparação Civil:
79
Parte geral, Livro único – Dos elementos dos direitos, Título III – Dos fatos, Capítulo III – Da
interpretação dos atos.
50
Art. 65 – Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção do que ao sentido literal da
linguagem.
Art. 66 – As declarações devem ser interpretadas conforme a boa-fé e o uso dos negócios.
Art. 156 – Fica obrigado a reparar o dano quem o causou por exceder no exercício do direito os
limites do interesse por este protegido ou os decorrentes da boa-fé.
Nota-se a presença da boa-fé em sua forma subjetiva, ou seja, levando-se em
consideração a importância da intenção do que o declarado em vontade, expressa ou
tácita. Similar ao Anteprojeto de Código das Obrigações de 1941, existe o Anteprojeto
de Código das Obrigações de 1963, cuja comissão revisora foi integrada por Orosimbo
Nonato, Caio Mário da Silva Pereira, Theóphilo de Azeredo Santos, Sylvio Marcondes,
Orlando Gomes, Nehemias Gueiros e Francisco Luiz Cavalcanti Horta, que unificava o
direito privado, identificamos novamente a presença de duas previsões da boa-fé (arts
21 e 22):
Art. 21 – Nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção do que ao sentido literal
da linguagem.
Art. 22 – As declarações de vontade devem ser interpretadas conforme a boa-fé e os usos dos
negócios, presumindo-se, no silêncio ou ambigüidade das cláusulas, que se sujeitaram às
partes ao que é usual no lugar do cumprimento da obrigação.
80
80
Parte Primeira – Obrigações e suas Fontes, Título I – Negócio Jurídico, Capítulo I –
Disposições Gerais, Seção III – Interpretação da Declaração de Vontade, do Anteprojeto de Obrigações
de 1963
51
É importante salientar que a Constituição Federal de 1988 foi muito importante
para o avanço do instituto da boa-fé, com a inclusão das relações de forma justa e
solidária, como objetivo fundamental, no artigo 3, I e dos valores sociais da livre
iniciativa como fundamento da República, no artigo 1, IV , como esclarece ANTÔNIO
JUNQUEIRA DE AZEVEDO
81
O Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990,
também consagrou o instituo da boa-fé em dois artigos, 4, III e 51, IV, que será
analisado posteriormente
E, finalmente, foram dedicadas novamente duas disposições à boa-fé no
Anteprojeto de Código Civil de 1972, subscrito por Miguel Reale, José Carlos Moreira
Alves, Agostinho Arruda Alvim, Sylvio Marcondes, Ebert Vianna Chamoun, Clóvis do
Couto e Silva e Torquato Castro, na Parte Geral, Livro III – Dos Fatos Jurídicos, Título I
– Do Negócio Jurídico, Capítulo I – Disposições Gerais (arts 111 e 112).
Foi na redação final da Câmara dos Deputados que o referido projeto de Código
Civil, que recebeu o n.º 118, de 1984 (antigo projeto de lei n.º 634-B, de 1975), além da
previsão da boa-fé interpretativa (art. 112), trouxe dois dispositivos que não só
explicitaram os valores primordiais da boa-fé e da probidade, mas também
estabeleceram o condicionamento do exercício da liberdade de contratar ao
atendimento dos fins sociais do contrato (arts 420 e 421), que será analisado
posteriormente.
81
AZEVEDO, A. J. de. A boa-fé na formação dos contratos. Revista da Faculdade de Direito
USP, São Paulo, n. 87, p. 79-90, 1992.
52
Após uma análise da trajetória da boa-fé com sua conseqüente evolução
histórica no direito brasileiro, passamos a demonstrar a sua incidência e normatização
no Código Civil de 1916, no Código de Defesa do Consumidor e finalmente o avanço e
tipificação no Código Civil de 2002.
A evolução histórica nos demonstrou a preocupação do legislador brasileiro em
regulamentar a confiança e intenção das partes contratantes, vindo a ser o pilar do
desenvolvimento posterior da jurisprudência da boa-fé e com conseqüente
normatização, passando primeiramente pela sua interpretação subjetiva (forte presença
no Código Civil de Bevilácqua e no Código de Defesa do Consumidor) para
posteriormente à objetiva (Código Civil de 2002), o que será abaixo delimitado.
5.2 BOA-FÉ NO CÓDIGO CIVIL DE 1916
A codificação do direito civil brasileiro teve grande influência da codificação
francesa e alemã, uma vez ser dado assente que, do ponto de vista estrutural, o Código
Civil se aproxima da divisão posta no BGB e do ponto de vista material, no que tange
ao Código Civil brasileiro de 1916, sofreu forte influência do Códe Napoleón, “à qual se
mescla ainda a importância das fontes relativas ao direito comum alemão, anterior ao
BGB”
82
.
O antigo Código Civil brasileiro, obra iniciada em abril de 1899 e concluída em
novembro do mesmo ano, aprovada em 1912 pelo Senado Federal com 186 emendas e
82
MIRANDA, P. Fontes e evolução do direito civil brasileiro, Rio de Janeiro: Forense, 1981.
p. 93.
53
vigentes desde 1.º de janeiro de 1917, constitui, segundo Pontes de Miranda, “o
antepenúltimo Código do século passado”
83
.
Seu espírito é oitocentista, bem como a concepção de sistema que nele pode
ser retratada, o sistema como ordem interna e unidade interna.
No estudo do antigo Código Civil de 1916, Lei 3.071 de 1.º de janeiro de 1916,
é importante estudar, além das influências do centralismo e do bartolismo
84
, as
circunstâncias da “personalidade do legislador”, nos dizeres de Pontes de Miranda
85
.
Clóvis Bevilácqua era um professor, disto resultando um código de cunho doutrinário,
no qual resta denotado o valor da lei como solução, como regra estável, e não como
ordenamento de orientação social.
Para Clóvis Bevilácqua, a noção de sistema estava conotada apenas à de
método unificado e harmônico de organização das matérias jurídicas.
83
MIRANDA, p. 259.
84
Cf. COSTA, A boa-fé ..., p. 241. Centralismo Jurídico: Corrente doutrinária de base do
Código Civil brasileiro que busca o sentido e o alcance da lei num ato de autoridade, a “ vontade do
legislador” . Isto demonstra o porquê da utilização de tantas legislações aplicáveis no Brasil após a
independência de 1822, com a edição da Lei de 20 de outubro de 2823 , em que determinou que
continuavam em vigor as ordenações , leis, regimentos, alvarás, decretos e resoluções promulgadas
pelos reis de Portugal até 25 de abril de 1821, enquanto não se organizasse um novo Código ou não
fossem os mesmos especialmente alterados, além da evolução do direito privado iniciado pelas
Ordenações, no século XV, mesmo tendo uma diferença geográfica e cultural das regiões. Bartolismo:
indica o fato de as sentenças judiciais refletirem as opiniões dos autores de diversos sistemas jurídicos,
servindo-se os juízes de autores nacionais, e de outros países como se existisse um Direito Comum ,
suprancional. Seria a utilização , em razão de lacunas nos preceitos legislativos, de um direito comum, o
que era utilizado como método por Bartolo de Saxoferrato (1375-1357, o mais célebre dos comentaristas,
justamente o que particularizou por um singular método, qual seja o de compatibilizar os ensinamentos
universais com os costumes, locais, e por situar a vontade do soberano como fonte de legitimidade do
costume.
85
MIRANDA, op. cit., p. 93.
54
No sentido do entendimento de JUDITH MARTINS COSTA
86
, o código civil de
1916 traduz em seu conteúdo liberal as manifestações de autonomias individuais e
conservador no que diz respeito às questões sociais e as relativas à família.
O Código Civil de 1916 carece de qualquer dispositivo consagrador da boa-fé
objetiva. Percebe-se, em várias passagens, alusões à boa-fé subjetiva, sem entretanto
que se pudesse extrair do ordenamento jurídico qualquer adstrição dos contratantes a
deveres de conduta. Conforme nos ensina JUDTITH MARTINS COSTA
87
, a obra de
Bevilácqua não permitia espaço para inserção de cláusulas gerais tão grande era a
preocupação com a segurança, certeza e clareza, deixando para o instituto da boa-fé
pequenas regulamentações no direito de família e no tratamento da proteção
possessória.
A esse respeito é interessante a análise feita por CLÓVIS DO COUTO E SILVA:
Quanto ao direito brasileiro, os juristas não deram importância e valor às cláusulas gerais.
Assim aconteceu com Clóvis Beviláqua, e, depois, com Eduardo Espínola. Em alguns que
representaram a mesma tendência de aplicação da Pandectística, muito embora com
concepções filosóficas diversas, como Lacerda de Almeida, não se pode dizer que tivesse tido
reflexos a essa feição de encarar a relação obrigacional. Pontes de Miranda, como se sabe, é o
ponto mais alto da civilística pátria, mas nele não se manifesta a aplicação desse tipo de
raciocínio, em que, de alguma forma, se procuram harmonizar concepções tão dissemelhantes,
como o pensamento sistemático e o tópico, dando lugar, com diversas matizes, às diferentes
concepções dos sistemas abertos. Mas fato é, que é impossível uma obrigação cumprir-se
normalmente se uma das partes não está de boa-fé.
88
86
COSTA, A boa fé..., passim.
87
Id.
88
SILVA, C.V, do C. e. O princípio da boa fé no direito brasileiro e português. In: FRADERA, V.
M. J. de. (Org.).O direito privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. Porto Alegre. Livraria
do Advogado, 1997, pág 33-58.
55
Enfim os dispositivos que tratam da boa-fé no Código Civil de 1916 são:
a) parte geral do Código , artigo 112;
b) parte especial, Direito das Coisas, artigos 490, 491, 510, 511, 514, 516, 549,
551, 612, 619, 622 , os quais fazem menção clara da boa-fé subjetiva,
quanto as matérias possessórias;
c) parte especial , efeitos da obrigação, nos artigos 933, parágrafo único, 938 e
968, com referência também a boa-fé subjetiva, no que tange a intenção de
quem recebe pagamento, de quem faz o pagamento e de quem aliena
imóvel acreditando agir conforme a retidão, ou seja, acreditando agir
conforme a boa-fé;
d) parte especial, cessão de crédito, artigo 1.072;
e) parte especial, parte contratual, mais especificamente quando trata das
espécies de contratos, artigos 1.272, no que tange ao Mandato, artigos 1318
e 1321, Sociedade Civil, artigos 1382 e 1404, todas as referências são de
boa-fé subjetiva, seguro, artigo 1443 e 1444, aqui, já se encontra a única
referência da boa-fé objetiva, quando trata da retidão que as partes devem
agir na constância do contrato
89
, bem como a forma que as partes devem
agir, fazendo referência a “declarações verdadeiras e completas, omitindo
89
“Art. 1.443. O segurado e o segurador são obrigados a guardar no contrato a mais estrita
boa-fé e veracidade, assim a respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele
concernentes”.“Art. 1.444. Se o segurado não fizer declarações verdadeiras e completas, omitindo
circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o direito ao
valor do seguro, e pagará o prêmio vencido”.
56
circunstâncias que possam influir na aceitação...)(artigo 1444).E ainda na
parte que trata do Jogo e Aposta, no artigo 1477, volta-se à boa-fé objetiva;
f) parte especial, das declarações por atos unilaterais de vontade, no que
tange a circulação de títulos ao portador, artigo 1507, também boa-fé
subjetiva.
O Código Civil de 1916 têm 25 artigos que tratam da boa-fé, sendo 23 artigos
sobre a boa-fé subjetiva e apenas dois, que mesmo assim, fazem uma pequena
exceção e tratam de forma indireta da boa-fé objetiva.
Por razões sociológicas, o Código Civil de 1916, com forte subjetivismo e
grande formalismo, teve em sua época influência do Estado Liberal, século XIX, tendo
raízes do Código de Napoleão, Código Francês e nos ensinamentos da escola alemã
dos pandectistas, entre os quais figuravam os elaboradores do Código Civil alemão, o
BGB que entrou em vigor em 1900.
Enfim, o desenvolvimento do instituto da boa-fé, ou seja, a passagem de
interpretações subjetivas para interpretações objetivas, ocorrera mais tarde no nosso
ordenamento jurídico, com o Código de Defesa do Consumidor, como veremos abaixo,
e nos dizeres de FERNANDO NORONHA, como assevera crítica a esta passagem e
desenvolvimento do instituto, imputando a responsabilidade a Pontes de Miranda:
57
Na verdade, no longínquo ano de 1943, o Supremo Tribunal Federal já decidia, em Sessão
Plenária, que 'a boa-fé domina a interpretação das convenções' (RT, 157:358). O ministro
Castro Nunes disse, então, que 'a noção de contrato vai cedendo dia-a-dia às imposições, sem
necessidade de haver no direito positivo de cada país, como existe no suíço, texto expresso
armando o juiz do poder de fazer prevalecer aquela regra, que se deve haver como implícita na
interpretação e execução das convenções'. Infelizmente, porém, Pontes de Miranda, com todo o
peso de sua indiscutível autoridade, reputou este entendimento de absurdo, no Tratado, e,
assim, parece ter coibido o desenvolvimento de um jurisprudência que se prenunciava
promissora.
90
O Código Civil de 1916 preocupava-se demasiadamente com um rigorismo em
sua forma e mantinha a individualidade como tema central de sua ideologia,
principalmente na matéria contratual e na proteção da propriedade. Não dava margem
a cláusulas gerais e a interpretações valorativas flexíveis, como a boa-fé objetiva. Havia
uma forte predominância de um positivismo exacerbado, influência de um Estado
Liberal, com raízes no Código Napoleão e no Código Civil Francês. Não obstante isto,
já se notava o avanço da jurisprudência e da própria legislação, com o Código de
Defesa do Consumidor, em interpretações mais flexíveis, utilização de cláusulas
abertas de interpretação e uma relativização da autonomia da vontade nos avencas.
Com isto, acredita-se que o Código Civil de 1916 foi a inspiração para a modificação da
mentalidade subjetiva e individual para uma maior preocupação social predominante no
Código Civil de 2002.
90
NORONHA, p. 62.
58
5.3 A BOA-FÉ NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
No Brasil, a partir do século XX, como já dito, todo o individualismo e
voluntarismo presentes nos contratos começaram a não mais se adaptar à nova
realidade. O Estado iniciara um processo de dirigismo contratual e de intervenção na
atividade econômica, com a proliferação dos contratos de adesão, dos contratos de
longa duração e da hegemonia e superioridade econômica das indústrias.
Porém, somente na década de oitenta, mais especificamente com a edição da
nova ordem constitucional e de seu reflexo mais importante até agora no campo
contratual: O Código de Defesa do Consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor propõe restringir e regular, através de
normas imperativas, o espaço antes reservado totalmente para autonomia da vontade,
instituindo como valor máximo a equidade contratual.
A decadência do voluntarismo e da autonomia da vontade, como convenção
obrigatória e peremptória, levou à relativização dos conceitos. O direito dos contratos,
em face das novas realidades econômicas, políticas e sociais, teve que se adaptar e
ganhar uma nova função social, procurando a realização da justiça e do equilíbrio
contratual.
Preconiza a nova realidade contratual CLÁUDIA LIMA MARQUES
91
ao nos
ensinar que esta nova tendência do contrato procura uma maior equidade, boa-fé e
segurança jurídica nas relações entre as partes. Será a transformação do contrato
91
MARQUES, C. L. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das
relações contratuais. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 155.
59
como instrumento máximo da proteção individual da vontade para uma maior
socialização e intervencionismo do Estado, impondo-se o princípio da boa-fé objetiva na
formação e na execução das obrigações. A reação do direito virá através de
ingerências legislativas cada vez maiores nos campos antes reservados para a
autonomia da vontade, tudo de modo a assegurar a justiça e o equilíbrio contratual na
nova sociedade de consumo”.
A nova realidade contratual é bem exposta nas relações de consumo diante dos
contratos de massa. Nos dizeres de CLÁUDIA LIMA MARQUES
92
, na sociedade de
consumo, com seu sistema de produção e de distribuição em grande quantidade, o
comércio jurídico se “despersonalizou” e se “desmaterializou”.
Os métodos de contratação em massa, ou estandardizados, predominam em
quase todas as relações contratuais entre empresas e consumidores.
Este trabalho não irá focar os contratos de massa, mas sim, expor a boa-fé,
mais precisamente a boa-fé objetiva, entendida como cooperação e respeito, conduta
esperada e leal, tutelada em todas as relações sociais como o início da nova forma de
interpretação contratual.
Para CLÁUDIA LIMA MARQUES
93
“a boa-fé objetiva é um standard”, um
parâmetro objetivo, genérico, que não está a depender da má-fé de uma das partes,
mas de um patamar geral de atuação, do homem médio, do bom pai de família que
agiria de maneira normal e razoável diante da situação analisada.
92
MARQUES, C. L. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo..., p. 52.
93
Ibid., p. 181.
60
O Código de Defesa do Consumidor, Lei 8.078/1990, trouxe como grande
contribuição à exegese das relações contratuais no Brasil a positivação da boa-fé,
como linha teleológica de interpretação, em seu artigo 4, III, e como cláusula geral, em
seu artigo 51, IV, positivando em todo o seu corpo de normas a existência de uma
série de deveres anexos às relações contratuais, senso estes entendidos como deveres
de conduta e cooperação para a formação da relação contratual desde seu
desenvolvimento até sua extinção.
O primeiro e mais conhecido dos deveres anexos é o dever de informar,
constantes nos artigos 30 e 31 do CDC. Este dever é o constante na fase pré-
contratual, fase de tratativas entre o consumidor e o fornecedor. A importância do
dever de informar acompanha o contrato desde o seu “ nascimento até a morte total,
não se esgotando na fase pré-contratual.”
94
. Este dever, em síntese, é o de informar
corretamente os consumidores acerca do produto ou serviço disponibilizado, mantendo
a harmonia e cooperação entre os contratantes.
O dever de informar, imposto ao fornecedor, estabeleceu um novo patamar de
conduta e é imposto sempre que o fornecedor visa atrair consumidores para a
realização de um ato negocial.
O segundo dever anexo destacado pela doutrina é o dever de cooperação, agir
com lealdade e não obstruir ou impedir, entendendo CLÁUDIA LIMA MARQUES
95
como
o dever de manter as expectativas contratuais das partes para assim gerar de forma fiel
a expectativa do contrato, como desejada pelos contratantes.”. Neste sentido, para
94
AZEVEDO, p. 79.
95
MARQUES, Contratos no código de defesa do consumidor: o novo..., p. 195.
61
COUTO E SILVA “é dever de boa-fé deste agente econômico , impedir que sua conduta
venha dificultar a prestação do credor”
96
.
Em síntese, o fornecedor ou prestador de serviços não deve abusar da sua
posição contratual preponderante de poder impor “normas”, cláusulas em relação ao
consumidor, que façam este ter que suportar gastos desnecessários, destruam o seu
patrimônio ou cláusulas que tentem obstruir, ou expor o consumidor à situação
constrangedora, quando tenta simplesmente cumprir com suas obrigações contratuais
ou adimplir.
A boa-fé trouxe para as relações consumeristas uma forma de interpretação
que leva em conta a retidão do fornecedor e também uma ampliação na interpretação
dos contratos com o reconhecimento dos deveres anexos.
5.4 A BOA-FÉ NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
O Código Civil foi instituído pela Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002,
entrando em vigor após um ano de “vacatio legis”. Como é do conhecimento de todos,
o Código Civil teve uma longa tramitação no Congresso Nacional, com seu embrião no
ano de 1975, ocasião em que o Presidente da República submeteu à apreciação da
Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n.º 634-D, com base em trabalho elaborado
por uma Comissão de sete membros, coordenada por Miguel Reale.
Assim foi concebida a estrutura básica do Projeto que gerou a nova codificação,
com uma Parte Geral e cinco Partes Especiais, tendo sido convidado para cada uma
96
SILVA, C. V. C. e. A obrigação como processo. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 120.
62
delas um jurista de renome e notório saber, todos com as mesmas idéias gerais sobre
as diretrizes a serem seguidas. Convocados foram para a empreitada: José Carlos
Moreira Alves (SP), Agostinho Alvim (SP), Silvio Marcondes (SP), Erbert Chamoun (RJ),
Clóvis do Couto e Silva (RS) e Torquato Castro (PE), respectivamente relatores da
Parte Geral, do Direito das Obrigações, do Direito de Empresa, do Direito das Coisas,
do Direito de Família e do Direito das Sucessões.
Conforme lembra Gerson Luiz Carlos Branco
97
, a escolha foi abrangente, já que
foram contemplados juristas de todos os cantos do país e de todas as esferas da
justiça, levando em consideração convicções políticas e sociais e sempre afinando
para a necessidade da sociedade.
Inúmeros foram os debates realizados e a troca de conhecimento em relação às
matérias constantes da codificação, já que os autores apresentavam grande saber e
experiência, o que justifica as quatro redações iniciais que teve o Projeto de Código
Civil, todas publicadas no Diário Oficial da União, em 1972, 1973, 1974 e, por fim, em
1975, com a redação final.
De acordo com afirmação do próprio Miguel Reale
98
, comentando o estrutural
da nova codificação, afirmando não estar diante de uma obra redigida por um legislador
solitário, “por um Sólon ou Licurgo, como se deu para Atenas e Esparta”, mas sim
perante uma ‘obra transpessoal’, submetida que foi a sucessivas revisões.
97
REALE, M. Diretrizes teóricas do novo código civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002.
p. 43.
98
REALE, M. Visão geral do novo código civil. Jus Navigandi, Teresina, a.4, n.40, mar. 2000.
Disponível em <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2718>. Acesso em: 30 dez. 2003.
63
Das inúmeras modificações introduzidas pelo Código Civil brasileiro de 2002,
uma das mais importantes foi acerca dos negócios jurídicos com a nova teoria
contratual, com a inclusão da boa-fé objetiva e da função social dos contratos.
Interessante também notar a proximidade principiológica existente entre o
Código Civil brasileiro de 2002 e o Código de Defesa do Consumidor, no que tange a
esta nova teoria contratual.
Sobre essa aproximação, aliás, foi aprovado o Enunciado n.º 167 na III Jornada
de Direito Civil
99
, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em dezembro último,
com o seguinte teor: “Com o advento do Código Civil de 2002, houve forte aproximação
principiológica entre esse Código e o Código de Defesa do Consumidor, no que
respeita à regulação contratual, uma vez que ambos são incorporadores de uma nova
teoria geral dos contratos”.
As razões apontadas pelo magistrado paraibano e civilista Wladimir Alcibíades
Marinho Falcão Cunha, autor da proposta, são pertinentes, merecendo transcrição o
seguinte trecho:
Entretanto, pode-se dizer que, até o advento do Código Civil de 2002, somente o Código de
Defesa do Consumidor encampava essa nova concepção contratual, ou seja, somente o CDC
intervinha diretamente no conteúdo material dos contratos. Assim, a corporificação legislativa de
uma atualizada teoria geral dos contratos protagonizada pelo CDC teve sua continuidade com o
advento do Código Civil de 2002, o qual, a exemplo daquele, encontra-se carregado de novos
princípios jurídicos contratuais e cláusulas gerais, todos hábeis a proteção do consumidor mais
fraco nas relações contratuais comuns, sempre em conexão axiológica, valorativa, entre dita
norma e a Constituição Federal e seus princípios constitucionais. O Código de Defesa do
Consumidor e o Código Civil de 2002 são, pois, normas representantes de uma nova
99
III – Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal.
64
concepção de contrato e, como tal, possuem pontos de confluência em termos de teoria
contratual, em especial no que respeita aos princípios informadores de uma e de outra norma.
Enfim, há tempos tem-se defendido essa aproximação do direito civil com a
Constituição Federal (direito civil-constitucional)
100
.
O Código Civil de 2002 faz referência à boa-fé em 44 artigos
101
, demonstrando
a nova tendência deste diploma social em contraposição ao Código Bevilácqua que faz
referência em 25 artigos.
100
TEPEDINO, G. A constitucionalização do direito civil: perspectivas interpretativas diante do
novo código. In: FIUZA, C; NAVES, B. T. de O.; SÁ, M. de F. F. (Coord.). Direito civil: atualidades. Belo
Horizonte: Del Rey, 2003. 119-120, nos ensina que a sociedade contemporânea alcançou três conquistas
fundamentais: primeira A primeira dessas conquistas seria a descoberta do significado relativo e
histórico dos conceitos jurídicos, que sempre foram encarados como neutros e absolutos. Hoje, inclusive,
nos parece óbvio que nenhum direito, dever ou construção jurídica seja revestido de absoluteidade. Cada
instituto jurídico se torna insuficiente fora de um contexto histórico ou cultural. A segunda conquista
elencada pelo Prof. Gustavo Tepedino é a superação da dicotomia entre Direito Público e Direito Privado.
Esta classificação não serve para atender reivindicações sociais, onde é necessário funcionalizar as
relações patrimoniais a valores constitucionais, tendo em vista o amplo compromisso social de nossa
Constituição Federal de 1988. Por fim, a terceira conquista se traduz na absorção definitiva pelo texto
constitucional de valores que presidem a iniciativa privada e seus institutos (família, propriedade e
contrato). Por tudo isso fala-se em Direito Civil-Constitucional.
101
Parte Geral: dos negócios jurídicos, artigo 113, da condição, termo e encargo, artigo 128,
fraude contra credores, artigo 164, da invalidade do negócio jurídico artigo 167, dos Atos ilícitos, artigo
187, Parte Especial: Direito das Obrigações, artigo 242, Parte Especial: Cessão de Crédito, artigo 286,
Parte Especial: Pagamento, artigos 307 e 309, Parte Especial: Contratos, artigo 422,523, 686, 689, 765,
814, Parte Especial: Dos Atos Unilaterais, artigo 878, Parte Especial: Dos Títulos de Créditos, artigo 896
e 925, Parte Especial: Sociedades, artigo 1049 e estabelecimento empresarial, 1149, Parte Especial:
Posse, artigos 1201, 1202, 1214 parágrafo único, 1217, 1219, 1222, 1228, parágrafo quarto, 1242, 1243,
1243, 1247 e parágrafo único , 1255 e parágrafo único, 1258, 1259, 1260, 1261, 1268 e parágrafo
primeiro e segundo e 1270, Parte Especial: Direito de Família, artigos 1561, 1563 e 1741, Parte Especial:
Direito das Sucessões, artigos 1817, 1827 e 1828.
65
O Código Civil de 2002 aponta diversos artigos sobre a boa-fé subjetiva, na
cessão de crédito, no pagamento, nos atos unilaterais, nos títulos de crédito, nas
sociedades. Aponta também alguns artigos na parte de posse e propriedade , no direito
de família e no direito das sucessões,ou seja, matéria que corresponde
fundamentalmente a uma atitude psicológica, isto é, é uma decisão da vontade,
denotando o convencimento individual da parte para agir conforme o direito, mas traz
ao seu bojo a boa-fé objetiva com forte predominância na parte geral, no direito das
obrigações e principalmente na nova teoria contratual, modelo objetivo de conduta o
qual impõe o poder-dever que cada pessoa ajuste para agir de forma honesta e leal.
Outrossim, como vertente do presente trabalho analisaremos a boa-fé objetiva
em todas as fases contratuais sob pena de viciar o contrato, uma vez que irá ferir um
dos princípios sociais norteadores do contrato – a função social. É um contraponto ao
Código Civil de 1916, que contemplava a boa-fé subjetiva.
Seguindo a tendência da socialidade, eticidade e operabilidade
102
, princípios
informadores e axiológicos do Código Civil de 2002, e seguindo a linha do presente
102
REALE, M. Visão geral do projeto de código civil. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 40,
mar. 2000. Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=509. Acesso em: 15 nov. 2005.
Socialidade, é a prevalência dos valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor
fundante da pessoa humana. A eticidade significa a superação do apego que se verifica no Código de
1916 ao formalismo jurídico, influência do Direito tradicional português e da escola germânica dos
pandectistas. Imperativo se fazia reconhecer, como vetor axiológico hodierno, a participação dos valores
éticos no ordenamento jurídico, sem deixar de lado as conquistas da técnica jurídica. A adoção desse
valor explica a opção, no novo Código, por normas genéricas ou cláusulas gerais, de forma a possibilitar
a "criação de modelos jurídicos hermenêuticos, quer pelos advogados, quer pelos juízes, para a contínua
atualização dos preceitos legais. A operabilidade exsurge em que o novo Código procura "estabelecer
soluções normativas de modo a facilitar sua interpretação e aplicação pelo operador do Direito."
66
trabalho, prestigia em seu artigo 113 a boa-fé-objetiva como meio auxiliador de
aplicação de norma quanto à interpretação dos negócios obrigacionais, particularmente
dos contratos, in verbis: “Artigo 113: Os negócios jurídicos devem ser interpretados
conforme a boa-fé e os usos do lugar da sua celebração.”
Essa norma consagra a eleição específica dos negócios jurídicos como
disciplina preferida para regulação genérica das relações sociais, sendo fixadas , desde
logo, a eticidade de sua hermenêutica, em função da boa-fé, bem como a socialidade,
ao se fazer alusão aos usos do lugar de sua celebração.
Obstante isto deverá sempre harmonizar e conjugar interpretação do artigo 113
com o artigo 112 também do diploma civilista, in verbis: “nas declarações de vontade se
atenderá à intenção nela consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem” que
prestigia a intenção das partes na declaração de vontades para haver um real encontro
de vontades, criador de direitos e obrigações. Vê-se um forte traço da boa-fé subjetiva
no artigo 112, verbis, mas deverá ser conjugado com a boa-fé objetiva para manter a
conduta no padrão de lealdade e honestidade.
O Código Civil de 2002 também expressou a boa-fé objetiva como padrão de
conduta dos contratantes em toda a relação contratual, no artigo 422, verbis: “Artigo
422: Os contratantes são obrigados a guardar, assim, na conclusão do contrato, como
em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé”.
Para ilustrar, este artigo fora interpretado pelo Enunciado n.º 26 do Conselho da
Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil, onde “a cláusula geral contida
no art. 422 do Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e
corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de
67
comportamento leal dos contratantes”. E, como forma de coibir o abuso do direito, o
Código Civil em vigor traz em seu artigo 187, verbis: “Art. 187. Também comete ato
ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Este artigo pressupõe uma forma de responsabilidade objetiva, conforme
enunciado n.º 37 do CJF: “Art. 187: a responsabilidade civil decorrente do abuso do
direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”
Como foi visto, o atual Código Civil prestigiou a boa-fé trazendo marcadamente
em quase todas suas regulamentações, delimitando a boa-fé subjetiva e a boa-fé
objetiva, mas sempre norteando suas regulamentações para um padrão social.
A boa-fé não constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma norma que
condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos
mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas conseqüências.
Daí a necessidade de ser ela analisada como conditio sine qua non da
realização da justiça ao longo da aplicação dos dispositivos emanados das fontes do
direito, legislativa, consuetudinária, jurisdicional e negocial.
Interessante notar a passagem da interpretação e da normatização dos
legisladores na questão relativa à boa-fé objetiva. O entendimento expresso pelo
Código Civil de 1016, com forte influência lusitana e com um individualismo exacerbado
consubstanciado como exemplo na proteção da propriedade e na interpretação do
contrato para uma grande evolução social e ética trazida pelo Código Civil e a
tendência das cláusulas abertas.
68
Enfim, o desenvolvimento da legislação acima mencionado demonstra a
tendência da nossa sociedade e aos aclames das necessidades sociais. No que tange
a boa-fé, o Código Civil de 1916, bem como as legislações anteriores, com influências
de Pontes de Miranda, serviram como base para a regulamentação consumerista e
como norte para a criação e para a nova interpretação na forma objetiva. O Código Civil
nos traz as duas formas de boa-fé: a subjetiva e a objetiva, as quais serão objetos de
diferenciação, de demonstração e de aplicação, no capítulo abaixo, para podermos
delimitar sua interpretação.
69
6 BOA-FÉ OBJETIVA NO DIREITO CONTRATUAL DO CÓDIGO CIVIL
BRASILEIRO DE 2002
6.1 NATUREZA JURÍDICA DA BOA-FÉ OBJETIVA
A doutrina diverge a respeito da natureza jurídica do instituto da boa-fé objetiva,
ou seja, grande parte considera como princípios, entre ele Cláudia Lima Marques e
Humberto Theodoro Júnior. A outra parte, como cláusula aberta de interpretação, entre
elas Judith Martins Costa, Cláudio Luiz Bueno de Godoy.
Para chegarmos a uma conclusão, analisaremos a conceituação de Princípio e
das Cláusulas abertas de interpretação e, posteriormente, diante dos dispositivos
exteriorizados da boa-fé objetiva no Código Civil, na parte contratual, será determinada
assim sua natureza jurídica.
6.1.1 Princípios
A palavra princípio conota a idéia de “mandamento nuclear de um sistema”,
utilizando o célebre conceito de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, para quem
princípio é, por definição:
70
mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se
irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata
compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema
normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos
princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há
por nome sistema jurídico positivo. E, por isso, violar um princípio é muito mais grave que
transgredir uma norma qualquer.
103
A despeito de ser uma noção bastante clara, não podemos deixar de lado que
princípio é um termo multifacetário, equívoco
104
e polissêmico
105
.
MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, discorrendo sobre o tema, nos
ensina três sentidos diferentes para o emprego do termo princípios.
Em um primeiro, chama-o de “supernorma”, considerando-o como as normas
gerais que exprimem valores e são consideradas como paradigma para outras regras.
Em um segundo sentido seriam “standards”, modelo para o estabelecimento de
normas específicas, preordenando o conteúdo da regra legal.
No último, seriam generalizações obtidas por indução a partir das normas
vigentes sobre determinada ou determinadas matérias.
103
MELLO, C. A. B. de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1980. p. 230. Em sentido semelhante, a Corte Constitucional italiana assim definiu princípios:
“são aquelas orientações e aquelas diretivas de caráter geral e fundamental que se possam deduzir da
conexão sistemática, da coordenação e da íntima racionalidade das normas, que concorrem para formar
assim, num dado momento histórico, o tecido do ordenamento jurídico.”
104
Cf. SILVA, J. A. da. Curso de direito constitucional positivo. 9 ed. São Paulo: Malheiros,
1994. p. 84.
105
Cf. GRAU, E. R. A ordem econômica na Constituição de 1988. 4.ed. São Paulo:
Malheiros, 1998. p. 76.
71
Importante assinalar, a despeito da multi-dimensionalidade do sentido da
palavra, é que, no atual estágio de evolução da Teoria Geral do Direito, sobretudo do
Direito Constitucional, os princípios jurídicos, em qualquer ângulo em que se ponha o
jurista ou operador do direito, caracterizam-se por possuírem um grau máximo de
juridicidade, ou seja, uma normatividade potencializada e predominante.
“Tanto uma constelação de princípios quanto uma regra positivamente
estabelecida podem impor uma obrigação legal”
106
, na sugestiva passagem de
RONALD DWORKIN. E mais, parafraseando o autor, violar um princípio é muito mais
grave do que transgredir uma norma.
A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico
mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de
ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido.”
107
Dada a fundamental característica normativa dos princípios, afigura-se acertada
a noção desenvolvida por CRISAFULI
108
, que em 1952 já entendia que o princípio é o
fator determinante de toda norma jurídica que irá especificar o conteúdo das normas
gerais e das normas particulares.
106
BONAVIDES, P. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p.
238.
107
MELLO, p. 230.
108
BONAVIDES, op. cit., p. 230. Em sentido contrário, ARNALDO VASCONCELOS: “Os
princípios gerais de Direito, nada obstante sua força vinculante, não são, contudo, normas jurídicas no
sentido formal do termo” (VASCONCELOS, A.Teoria da norma jurídica. 3. ed. São Paulo: Malheiros,
1993. p. 210). "...apesar de terem positividade, não constituem normas jurídicas” (p. 208). Porém, mais à
frente, o professor cearense, a meu ver, contraditoriamente, sustenta que o princípio “não representa
mera aspiração ideológica (...), mais do que isso: uma norma jurídica iguais às outras, sem mais, nem
menos, tanto que não lhe falta a possibilidade de sancionamento”(p. 210).
72
Nesta mesma linha, BOBBIO
109
faz uma análise do que é princípio como
normas fundamentais.
Considera os princípios como normas gerais, primeiramente porque estas são
extraídas dos princípios, através de um procedimento de generalização sucessiva e por
esta razão eles também serão considerados normas; e segundo, diz respeito à
finalidade, ou seja, ambos, princípios ou normas têm a mesma, regular um caso
concreto.
Acredita-se que os princípios, metaforicamente, seriam a raiz de uma árvore,
onde todo o desenvolvimento dela depende da genealogia e da estrutura de sua base.
Do princípio se irradia os fundamentos normativos e valorativos da norma, sejam
particulares, sejam gerais, serão eles que irão fundamentar as exigências de criação de
todo o ordenamento jurídico e o alcance de sua interpretação.
6.1.2 Cláusulas Abertas de Interpretação:
Para tratar do presente assunto, JUDITH MARTINS COSTA
110
faz uma
abordagem, uma limitação e a diferenciação das cláusulas gerais, com os princípios e
conceitos indeterminados, o que será a base deste tópico.
A autora acima citada faz uma abordagem das cláusulas gerais apontando a
sua ligação com o problema das fontes, pois a cláusula é o meio que permite o
ingresso, no ordenamento jurídico, de princípios valorativos, viabilizando a sua
109
BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico. 7. ed. Brasília: Unb, 1996. p. 159.
110
COSTA, A boa fé..., passim.
73
sistematização. O ordenamento jurídico, a partir das cláusulas gerais, passa a ser um
sistema aberto, sempre apto a buscar, caso a caso, uma solução adequada, justa,
equânime e igualitária.
Entende a autora
111
que do ponto de vista de técnica legislativa, a cláusula
geral constituiu uma disposição normativa aberta, vaga, caracterizando-se pela ampla
extensão do seu campo hermenêutico, a qual é dirigida ao juiz de modo a lhe conferir
um mandato para que, à vista dos casos concretos, crie, complemente ou desenvolva
normas jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar fora
do sistema.
A autora delimita bem a cláusula geral para que não seja confundida com
“termos indeterminados”, sendo que basta ao juiz precisar o seu conteúdo para ter a
norma pronta a ser aplicada. Aqui são significados que necessitam de precisão,
enquanto a outra depende de fatores valorativos e de um trabalho de criação do juiz
diante de seu livre convencimento.
Distingue também as cláusulas gerais dos princípios, dizendo que estes são “
uma norma considerada como fundamento de outra”.
A cláusula geral pode expressar um princípio, mas não é um princípio. O
princípio pode ser expresso ou não, enquanto a cláusula geral sempre é e só pode ser
expressa.
A cláusula geral exige do juiz uma atuação especial e através dela é que se
atribui uma mobilidade ao sistema, ou seja, a utilização de conceitos valorativos que
irão além do sistema, deslocando para outros casos semelhantes regramentos criados
111
COSTA, A boa fé..., p. 303.
74
especificamente para um caso. Enfim, a cláusula geral insere um critério ulterior de
relevância jurídica, à vista do qual o juiz seleciona certos fatos ou comportamentos para
confrontá-los com um determinado parâmetro e buscar, neste confronto, certas
conseqüências jurídicas, que não estão pré-determinadas.
Isto exigirá do juiz um poder interpretativo e aplicador mais amplo, uma
sensibilidade factual e técnica extraordinária, porque irá estabelecer o significado do
enunciativo normativo a fim de completar e determinar as conseqüências de certas
condutas.
6.1.3 Conclusão da Natureza Jurídica da Boa-Fé Objetiva:
A cláusula geral envia uma ordem ao Juiz para que, diante do caso concreto,
crie uma “fórmula” que melhor atenda às exigências do preceito normativo determinado
no ordenamento jurídico, valorando e criando regras de conduta do tipo casuístico.
O que precisa ser esclarecido é que se o mandato enviado ao Juiz deverá
atender a critérios jurídicos ou critérios metajurídicos, éticos, morais ou sociais a fim de
estabelecer a regra no caso concreto. O juiz é enviado a modelos de comportamento e
também deverá lançar mão de conceitos valorativos individuais para assim criar uma
“regra” de conduta naquele caso concreto.
Não haverá uma regra comportamental definida para ser utilizada como forma
de valorar a cláusula aberta e suprir o normativo, mas sim deverá ter uma diretriz ou um
padrão social exigido que, diante daquela situação casuística, sirva como parâmetro
para interpretação e mantenha uma certa segurança jurídica. Segurança jurídica no
75
sentido de que não mantenha a cláusula aberta tão “aberta” à interpretação a ponto do
juiz ser totalmente discricionário na sua aplicação.
A cláusula aberta deverá ter uma certa medida e esta medida será a
experiência social concreta, a valoração do juiz diante do caso específico e um
parâmetro de conduta geral ética, capaz assim de objetivar os julgados.
As exigências éticas atuais devem ser harmonizadas de modo que o aplicador
não atue subjetivamente, mas sim a mercê de um ato cogniscivo que leve em conta
interesses dignos de assim serem considerados como padrão. A natureza jurídica da
boa-fé objetiva se encaixa perfeitamente como cláusula geral de interpretação. Porém,
muitas vezes a cláusula geral encontra seu substrato interpretativo em princípios, como
afirma CLÓVIS DO COUTO E SILVA
112
. As máximas, que penetram na cláusula geral
no corpo do direito público e privado, encontram-se em certos princípios constitucionais,
nas acepções culturais claramente definidas e susceptíveis de serem objetivadas, na
natureza das coisas e na doutrina e julgados acolhidos.
A boa-fé objetiva é considerada uma cláusula geral, mas a carga valorativa e
interpretativa imposta por ela poderá levar o seu intérprete a lançar mão de princípios,
ou seja, o juiz procura da norma uma decisão do caso concreto, que se pode conter
num princípio.
A cláusula geral pode dar margem a interpretações que levem a disposições
com normatividade e tipicidade própria de um princípio como forma de estabelecimento
do normativo, mas não pode ser confundida, como bem observa LUIGI MENGONI:
112
SILVA, C. V. do C. e. A obrigação como ..., p. 28.
76
As cláusulas gerais concedem ao juiz uma medida, uma diretriz para a procura da norma de
decisão; elas são uma técnica de formação judicial da regra a aplicar ao caso concreto, sem
modelo de decisão pré-constituído por um tipo normativo abstrato como nos princípios. Neste
sentido as cláusulas gerais são normas incompletas, fragmentos de normas: não têm uma
autonomia típica, própria (princípios), sendo destinadas a concretizar-se no âmbito dos
programas normativos de outras disposições.
113
A boa-fé objetiva apresenta mandados comportamentais. Ela deve sempre
estar expressa no ordenamento jurídico e são sempre normas incompletas prontas para
serem interpretadas e completadas, diferentemente dos princípios que apresentam um
grau de abstração muito elevado, expressam um valor ou uma diretriz, sem descrever
uma situação jurídica, nem se reportar a um fato particular, exigindo, porém, a
realização de algo, da melhor maneira possível, observadas as possibilidades fáticas e
jurídicas.
Diante disto, podemos afirmar que a boa-fé objetiva é uma cláusula aberta de
interpretação, que exige uma valoração para o estabelecimento objetivo de sua
positivação e regramento e com isto pode ter como base os princípios.
Ora, a interpretação da cláusula geral da boa-fé poderá se socorrer dos
princípios, sendo estes idéias básicas que servem de fundamento ao direito positivo,
como a base de um edifício que uma vez desmanchada implica em ruína de todo o
conjunto do “prédio normativo”.
113
MENGONI, L. Spunti per uma teoria delle clausole generali, In: Quaderni della Scuola
Superiore di Studi Universitari e di Perfeziionamento. v. 3. Milano: Giufrè, 1985. p 10. No original: “....
impartiscono al giudice uma misura, uma direttiva per la recerca applicare al caso concreto, senza um
modello di decicione preconstituito da uma fattispecie normativa astratta. In questo senso le clausole
generali sono norme incomplete, frammenti di norme: non hanno uma própria autônoma fattispecie,
essendo destinate a concretizzarsi nell´ambito dei programmi normativi di altre disposizione”.
77
Além disto os princípios têm função orientadora de interpretação, ou seja, se
eles servem como fundamento para as normas, nada melhor que servirem de
fundamento para a fixação de critérios objetivos para a aplicação dos normativo e,
neste trabalho, do artigo 422 do Código Civil de 2002.
Diante disto que a boa-fé objetiva sendo uma cláusula geral de interpretação,
além de critérios do livre convencimento, da circunstância do caso concreto, da
experiência social, da exigência ética e do bom sendo do juiz , deverão ser observados
os princípios para que seja determinado um arquétipo de conduta leal, honesta, proba ,
igualitária e principalmente social.
Com isto o novo sistema, aberto de cláusulas gerais, busca aproximar cada vez
mais o direito da moral, uma vez que o direito separado da moral perde a razão de ser.
O que procura evitar é que o direito, mesmo dissociado da moral, continue a ter
validade e eficácia.
Sob tal esteira de raciocínio, o pensamento do professor francês GEORGES
RIPERT
114
, de forma magistral, nos ensina que a ordem jurídica positiva e as leis não
podem ser interpretadas como fins nelas mesmas, de forma literal.
114
RIPERT, G. A regra moral nas obrigações civis. Campinas: Bokseller, 2002. p. 28, 394.
“Quando se afirma assim a plenitude da ordem jurídica positiva é preciso evitar pensar que esta ordem
seja capaz de se bastar a si própria e que as leis civis possam encontrar o seu fundamento na autoridade
pública e o seu fim no reino da paz social. É uma visão superficial das coisas acreditar na plenitude da
ordem jurídica positiva quando ela não tem para dar outras provas do seu valor se não a sua própria
existência. Se o direito não é mais que a coleção das regras de conduta, aparece como a obra arbitrária
dos governantes ou o produto natural do estado social existente.”Conclui o autor que: “ se quiser que o
direito fique impregnado de ideal, é preciso mantê-lo em comunhão com as idéias morais que julgamos
superiores a todas as outras quer por uma crença invencível, quer por uma confirmação científica de
progresso que elas trouxeram à sociedade dos homens.”
78
É superficial acreditar que a norma jurídica não expressa interpretações
valorativas. O direito deverá ser impregnado por normas que expressem idéias de
moral, ética e preocupação com as necessidades sociais, para assim não ser fruto de
autoritarismo dos governantes e apenas um produto natural da regulamentação de
condutas da sociedade.
Independente da natureza jurídica da boa-fé objetiva, ela sempre deve nortear
as regras comportamentais nos negócios jurídicos contratuais. Sua valoração deverá
ser feita diante das exigências e necessidades sociais, “em comunhão com as idéias
morais”. Sendo interpretada como cláusula aberta ou não, deverá ser determinada e
delimitada, o que não pode é ser violada , esquecida ou utilizada como arbítrio . Se
assim acontecer, propugno para o conhecimento de sua natureza jurídica como
princípio, porque nos dizeres de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELO
115
, “violar
um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma”, porque são standard e
parâmetro de todo o ordenamento jurídico, são normas que dão fundamentos e criam
outras normas.
Enfim, deverá haver uma interação entre cláusula aberta de interpretação, entre
princípios ou entre conceitos jurídicos indeterminados, mas todos utilizados como “um
arsenal” nas mãos do legislador para que, assim, possa aplicar e interpretar condutas
em consonância com os interesses e necessidades econômico-sociais, garantindo a
dignidade da pessoa humana, a solidariedade e a igualdade entre as partes.
115
MELLO, C. A. B. de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1980. p. 230
79
Ilustra bem o parágrafo anterior os ensinamentos de Nelson Nery Jr. e Rosa
Maria de Andrade Nery
116
, para quem as cláusulas gerais são fonte de direito e
obrigações. Diante disto é preciso conhecê-las e interagi-las com os princípios gerais do
direito e com os conceitos jurídicos indeterminados, como se fossem um arsenal bem
utilizado para a batalha da interpretação.
6.2 DIFERENÇA ENTRE BOA-FÉ OBJETIVA E BOA-FÉ SUBJETIVA
A boa-fé se divide em duas espécies, a boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva.
A boa-fé subjetiva era normatizada no nosso antigo Código Civil de 1916 e hoje
ainda deixa traços no Código Civil de 2002, preconizado e marcado pela nova
tendência contratual que é a boa-fé objetiva.
A diferença entre as duas espécies é de suma importância, como nos ensina
JUDITH MARTINS COSTA
117
. Onde há a boa-fé subjetiva, leva-se em consideração a
intenção, a consciência individual das partes contratantes de atuarem conforme o
direito aplicável, devendo o juiz levar em consideração o estado de consciência do
sujeito da relação jurídica, seu estado psicológico, sua íntima convicção. Já a boa fé
objetiva é um modelo de conduta social, um parâmetro ou standard jurídico, segundo o
qual cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse parâmetro, aplicando isto no
116
NERY JÚNIOR, N.; NERY, R. M. de A. Novo código civil anotado. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003. p. 141.
117
COSTA, J. M. Princípios informadores do contrato de compra e venda internacional na
Convenção de Viena de 1980. Revista de informação Legislativa. Brasília, n. 126, abr./jun., 1995.
p.120.
80
caso concreto diante da situação atual das pessoas envolvidas, levando-se em
consideração seus status pessoal e cultural.
Em síntese, a boa-fé subjetiva se resume a uma situação de um determinado
sujeito perante certo fato. É a intenção, o estado de ignorância ou conhecimento de um
particular a respeito de determinada conduta negocial. É o animus pré-conduta que irá
levar um sujeito a agir do modo pensado por ele.
Já a boa-fé objetiva se resume no estabelecimento de padrões de
comportamento, segundo critérios fixados pela doutrina e jurisprudência. É uma
cláusula geral que faz com que todos os contratos sejam interpretados conforme
ditames valorativos e objetivos de determinada conduta leal, honesta e correta, desde
as tratativas iniciais até a execução do contrato.
Foi um grande avanço para o nosso ordenamento jurídico a adoção da boa-fé
objetiva como fonte de interpretação dos negócios jurídicos diante de sua natureza
jurídica de cláusula aberta.
Um dos grandes problemas da boa-fé subjetiva é, na sua utilização, o juiz saber
a intenção dos agentes envolvidos no contrato e diante desta intenção saber se a
conduta deles é ética ou não. A boa-fé subjetiva traz o inconveniente de premiar a
incúria, a torpeza, o desconhecimento. Estimula um certo descaso para o conhecimento
da realidade e as conseqüências geradas por um negócio jurídico. Parafraseando
RONNIE PREUS DUARTE
118
, por muitas vezes poderá se portar como injusta, porque
118
DUARTE, R. P. Boa-fé , abuso de direito e o novo código civil brasileiro. Doutrina Cível
– Primeira Seção. ano 92. RT/817. nov. 2003.
81
protege alguém que age sem considerar as conseqüências do ato contratado por
desconhecer e ignorar completamente os fatos e a lei que o resguarda.
Esclareça-se que, no entendimento de RONNIE PREUS DUARTE, não está
protegendo o indivíduo que age de má-fé, uma vez que a boa-fé objetiva independe
deste estado de consciência, mas sim, fazendo uma crítica à determinação da boa-fé
subjetiva diante de um estado psicológico do agente.
O antigo Código Civil de 1916 tutelava a aparência em diversos momentos,
para lhe dar validade e produzir efeitos jurídicos, uma vez que tinha como parâmetro a
boa-fé subjetiva. Mesmo presente o erro do que crê na aparência, como diz VICENTE
RÀO:
...o ordenamento, atendendo à conveniência de imprimir segurança e celeridade ao comércio
jurídico e à necessidade de dispensar proteção aos interesses legítimos, reconhece como
válidos os atos desse modo praticados e efeitos jurídicos lhes atribui. O erro, destarte, é
eliminado por força de lei e a vontade de quem assim errou é preservada, não mediante a
anulação do ato como sucede com os casos comuns do erro-vício, mas mediante o
reconhecimento da eficácia das declarações que do mesmo ato formam o conteúdo.
119
Quanto à boa-fé subjetiva ainda se discute se ela é um estado psicológico ou
um estado ético, predominando o entendimento de que se trata do segundo.
No estado psicológico de boa-fé alguém ignora a real situação que tem diante
de si. Basta que a ignorância, para tanto, seja desculpável. Como salienta FERNANDO
119
RÁO, V. Ato jurídico: noção, pressupostos, elementos essenciais e acidentais. O problema
do conflito entre os elementos volitivos e a declaração. 3. ed. anot. e atual. por Ovídio Rocha Barros
Sandoval. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 196-197.
82
NORONHA
120
, dependerá sempre do grau de culpabilidade da pessoa na ignorância
dos fatos reais para se saber se agiu de boa-fé ou de má-fé. No estado ético de boa-fé,
por sua vez, alguém tem a convicção de que pratica um ato legítimo e acredita
sinceramente que ele não acarreta prejuízo a outrem. Mas erra a respeito disso,
devendo seu erro ser, no mínimo, desculpável. Impõe-se uma valoração moral da
conduta social do indivíduo no qual se presume a boa-fé. Para dela se beneficiar, deve
ter agido com diligência e cautela.
A verificação da boa-fé, nesse caso, tem por parâmetro o cuidado que o comum
das pessoas tem no trato dos negócios, salvo quando se tratar de um especialista, que
nesse caso terá por parâmetro o comportamento comum de um outro especialista.
Dessa forma, ainda que o erro ou a ignorância sejam meramente culposos, ter-se-á
pela má-fé.
Já a boa-fé objetiva caracteriza-se por uma norma de comportamento leal,
principalmente na consideração para com os interesses alheios, respeitando-o como
membro de um conjunto social. A boa-fé objetiva é uma regra de conduta fundada na
honestidade, retidão, na lealdade, servindo de controle das chamadas cláusulas
abusivas e limitadoras dos interesses individuais, evitando assim o abuso de direito.
A importância da boa-fé objetiva é bem explicitada por ALVÁRO VILLAÇA
121
que entende que a boa-fé objetiva constitui um estado de espírito imputando ao sujeito
uma aparente segurança. Por esta razão, há a exigência da lealdade, da transparência,
120
NORONHA, passim. “... ou a pessoa ignora os fatos reais, desde que sem incorrer em erro
crasso, e está de boa-fé, ou não ignora, e está de má-fé. Mesmo quando ela ignore com culpa,
continuará de boa-fé, a menos que se trate de ignorância grosseira, caracterizando culpa grave, ...".
121
AZEVEDO, A. V. passim.
83
da confiança entre as partes, esclarecendo as situações do avençado para manter um
estado de equilíbrio e aparente de segurança, como acima dito, evitando assim,
eventuais interpretações divergentes e alegação de ignorância levando a situações de
enriquecimento indevido , sem causa.
Não poderíamos deixar de transcrever os ensinamentos de ORLANDO GOMES
sobre a boa-fé objetiva:
Ao princípio da boa-fé empresta-se ainda um outro significado. Para traduzir o interesse social
de segurança das relações jurídicas, diz-se, como está expresso no Código Civil alemão, que
as partes devem agir com lealdade e confiança recíprocos. Numa palavra, devem proceder com
boa-fé. Indo mais adiante, aventa-se a idéia de que entre o credor e o devedor é necessária a
colaboração, um ajudando o outro na execução do contrato. A tanto, evidentemente, não se
pode chegar, dada a contraposição de interesses, mas é certo que a conduta tanto de um como
de outro, subordina-se a regras que visam a impedir dificulte uma parte a ação de outra.
122
Concluindo a boa-fé objetiva, a boa-fé é um standard, um parâmetro objetivo
genérico, dependendo de um patamar geral de atuação, do homem médio, do bom pai
de família que agiria de maneira normal e razoável naquela situação analisada. Boa-fé
objetiva significa, portanto, uma atuação refletida, uma atuação confiável e equilibrada
para sempre manter as partes em total conhecimento das situações acordadas e
demonstrando uma aparente segurança jurídica para assim atuar conforme as
necessidades sociais e visando o fim do contrato. É cláusula geral de interpretação,
permitindo ao intérprete a busca da sua real valorização e adequação da conduta real
da parte, como parâmetro de retidão, honestidade e igualdade.
122
GOMES, Contratos, passim.
84
7 BOA-FÉ OBJETIVA E A CRIAÇÃO DE DEVERES ACESSÓRIOS
A relação jurídica contratual passou por uma grande evolução no que se refere
à doutrina clássica e moderna.
A doutrina clássica sempre levou em consideração apenas a prestação principal
(dar, fazer e não fazer), sendo o contrato analisado pela ótica das prestações a cargo
das partes.
Entretanto, a doutrina moderna reconhece que ao lado dos deveres de
prestação, considerados de cláusulas centrais ou nucleares, que nada mais são do que
as principais obrigações das partes dentre de um contrato, existem outros deveres
envolvendo as partes na relação negocial.
Nesse sentido, podemos dizer que a relação jurídica é complexa, dotada de
vários deveres, não simplesmente unitária, composta apenas pelos deveres de
prestação.
Serão analisados os deveres de conduta no que tange a relação contratual, os
deveres de prestação vertendo-se em normativos como a boa-fé objetiva e a função
social que engendra um desdobramento dos princípios da solidariedade e da justiça
social, constante na Constituição Federal (artigo 3, I e artigo 170 da CF), que
transforma profundamente o paradigma individualista do Código Civil anterior.
Em cada relação contratual se alocam certos deveres de prestação, os quais se
subdividem nos chamados deveres principais, ou deveres primários de prestação, os
deveres secundários e os deveres laterais, anexos ou instrumentais, também chamados
85
de “deveres acessórios de conduta, deveres de conduta, deveres de proteção e
deveres de tutela, relativos e oriundos da boa-fé objetiva”.
Como define JUDITH MARTINS-COSTA
123
, temos os deveres principais do
contrato como o núcleo da relação obrigacional e os deveres acessórios do contrato.
Estes se subdividem em duas espécies: os deveres secundários acessórios da
obrigação principal preparam o cumprimento do avençado e asseguram o cumprimento
da obrigação principal (v.g compra e venda o dever de conservar a coisa vendida, ou de
transportá-la, ou de embalá-la) e os deveres secundários com prestação autônoma, os
quais podem se revelar como verdadeiros sucedâneos da obrigação principal (como o
dever de indenizar resultante da impossibilidade culposa da prestação), podendo ainda
ser autônomos ou coexistentes como o dever principal (v.g. o dever de indenizar, por
mora ou cumprimento defeituoso, que acresce à prestação originária).
Cabe ressaltar que os deveres primários e secundários não esgotam a
complexidade da relação obrigacional. O fato é que a redução da relação unicamente a
esses dois tipos de deveres não atribuiria o caráter de complexidade que esta
realmente possui, uma vez que tais deveres sempre foram reconhecidos como
presentes no vínculo obrigacional, não havendo inovação nessa colocação.
O que aqui importa destacar são os deveres acessórios de conduta, também
denominados deveres de proteção, deveres de conduta ou deveres laterais, que
atribuem caráter complexo à relação obrigacional e que emanam da boa-fé objetiva.
No que tange aos deveres acessórios de conduta, podemos evidenciar que
dizem respeito, de maneira indireta, à prestação, buscando resguardar os interesses
123
COSTA, A boa-fé..., p. 437-438.
86
envolvidos na relação negocial, não encontrando, portanto, uma ligação direta com o
adimplemento do contrato.
Nesse sentido, vislumbra-se que deveres acessórios de conduta são outros
comportamentos que as partes devem adotar para a perfeita realização do contrato,
comportamentos que não se limitam à realização dos deveres principais. Estes deveres
são, nas palavras de ENÉAS COSTA GARCIA “, a exata satisfação dos interesses
globais envolvidos na relação obrigacional complexa”
124
.
Segundo DONNIMI
125
, podem classificar os deveres acessórios de conduta
como deveres de informação, proteção e lealdade.
Os deveres acessórios são analisados a partir do cumprimento inadequado da
obrigação, uma vez que há situações em que apesar do devedor cumprir a obrigação,
acaba causando danos ao credor, ou seja, há o cumprimento da obrigação principal,
porém não há o dever de informar corretamente sobre determinado produto ou serviço
ou sobre o uso de determinada coisa, etc., causando assim, prejuízo à outra parte, com
conseqüente descumprimento do dever acessório de informação.
Citando um relato de ADALBERTO PASQUALOTO
126
, um interessante caso
julgado por um Tribunal alemão que versava sobre um jogador de bilhar, que atingiu
com a parte posterior do taco a um jogador de cartas. O proprietário da casa de jogo foi
condenado por não ter disposto as mesas de forma a evitar perigo. A indenização, sob
124
GARCIA, E. C. Responsabilidade pré e pós-contratual à luz da boa-fé. São Paulo: Juarez
de Oliveira, 2003. passim.
125
DONNIMI, R. F. Responsabilidade pós-contratual no novo código civil e no código de
defesa do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2004,
126
PASQUALOTO, A. A boa-fé nas obrigações civis. Revista da Faculdade de Direito da
PUC/RS. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 114.
87
o prisma da boa-fé objetiva, parece correta, no sentido de que faltou ao
estabelecimento o dever de segurança que dever guardar em face de seus clientes.
Os deveres acessórios são indispensáveis para constatação de eventual
responsabilidade por violação contratual. Existem situações em que o dever acessório
está previsto em lei. Como exemplo podemos citar o transporte de coisas, onde existe a
possibilidade do transportador exigir que o remetente lhe forneça uma relação das
coisas que serão transportadas (dever de informação), sendo certo que, em caso de
informação inexata ou falsa, será o transportador indenizado pelos prejuízos sofridos,
nos termos do artigo 744 e 745 do Código Civil.
Os deveres acessórios, nos dizeres de JUDITIH MARTINS-COSTA
127
, tratam-
se de situações que exprimem determinados comportamentos diante de circunstâncias
concretas da situação contratual. Ao criar esses deveres, a boa-fé atua como o
elemento de otimização e especificação das condutas estabelecidas.
Podemos definir três deveres acessórios da boa-fé objetiva:
a) dever de proteção;
b) dever de esclarecimento;
c) dever de lealdade.
Quanto aos deveres acessórios de proteção, as partes, desde as tratativas
imediatamente antecedentes ao contrato e até o término da execução dele, encontram-
se vinculadas a determinados deveres. O Direito exige um comportamento ético da
parte, uma vez que acima de suas próprias conveniências pessoais existe o interesse
social na preservação econômico-social.
127
COSTA, A boa-fé..., p. 441.
88
Os deveres acessórios de esclarecimento tornam obrigatória às partes a
prestação de todas as informações relevantes atinentes ao contrato, mais precisamente
sobre o objeto do contrato e os efeitos do contrato em sua execução.
Os deveres acessórios de lealdade obrigam as partes a evitar adoção de
condutas que possam tornar inútil à contraparte a prestação, ou ainda torná-la menos
valiosa ou excessivamente onerosa. Aqui será levada em conta a possibilidade de cada
parte garantir o cumprimento do contrato e seu efeito na medida do esperado pela outra
parte. Importante salientar que a concorrência e a quebra de sigilo e negócios que o
exigem é fruto da quebra do dever acessório de lealdade.
Enfim, a relação contratual deve ser amparada pela lealdade, confiança,
solidariedade e em um verdadeiro dever ético-social e econômico, sendo certo que os
deveres centrados na boa-fé objetiva são formas de evitar desigualdades e prejuízos.
É de se notar que os deveres acessórios de conduta são um mecanismo de
abertura do sistema jurídico, uma vez que não é necessário que haja uma prévia e
específica determinação de quais os comportamentos que as partes deveriam adotar
ou não poderiam realizar. O recurso da boa-fé objetiva, como cláusula aberta de
interpretação, permite ao julgador identificar, no caso concreto, qual deveria ser o
comportamento leal devido pelos contratantes.
É a boa-fé objetiva que vai dar o conteúdo dos deveres acessórios de conduta,
a fim de limitar a atuação subjetiva das partes e determinar a forma correta, leal,
honesta e digna de se contratar e cumprir o contratado, diante daquele caso concreto,
ou seja, será a imposição aos contratantes para que façam não apenas aquilo que
89
tenham comprometido, mas tudo aquilo que é necessário para fazer garantir o pleno e
efetivo resultado do almejado por eles.
Por fim, o Conselho da Justiça Federal
128
, na Jornada de Direito Civil, realizada
no período de 11 a 13 de setembro de 2002, manifestou-se no sentido de que: “...a
violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente
de culpa”. Assim, a inobservância de qualquer dos deveres laterais decorrentes da boa-
fé objetiva gerará o dever de indenização.
128
Enunciado n. 24 do Conselho da Justiça Federal, prolatado na 1 Jornada de Direito Civil.
90
8 BOA-FÉ OBJETIVA E RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL, CONTRATUAL
E PÓS-CONTRATUAL
A boa-fé objetiva exige das partes uma conduta de probidade em todas as
fases por que passa o contrato. A quebra da boa-fé objetiva por uma das partes
induziria em possíveis danos à outra parte, gerando assim, responsabilidades.
A responsabilidade contratual por quebra da boa-fé objetiva está intimamente
ligada ao desrespeito dos deveres acessórios de conduta acima mencionados e isto
está presente em todas as fases do contrato, desde suas tratativas (responsabilidade
pré-contratual), passando pela execução (responsabilidade contratual) até momentos
posteriores a sua conclusão (responsabilidade pós-contratual).
Neste capítulo analisaremos as espécies de responsabilidades, pré-contratual,
contratual, e pós-contratual fazendo um elo aos deveres atingidos.
8.1 RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL
A responsabilidade pré-contratual, também chamada de culpa in contrahendo,
ou culpa pré-negocial, é a responsabilidade que tem como campo operacional o
momento das tratativas, ou seja, ainda não há o contrato, porque se há contrato é o
caso de imputação da responsabilidade contratual.
Melhor expondo, é a fase de formação do contrato. É sabido que a proposta ou
oferta e a aceitação constituem atos unilaterais, mas para que vincule as partes deverá
haver uma bilateralidade entre elas para que suas vontades sejam expressas na
91
concretização do contrato e isto se dá por intermédio da aceitação, formando assim o
elo entre as manifestações unilaterais, transformando-as em bilaterais.
Ocorre que há fases anteriores a proposta, chamada de fase de formação do
contrato
129
, onde não há ainda a bilateralidade, ou seja, o acordo de vontades como
fusão das declarações negociais (proposta ou oferta e aceitação) para constituir o
contrato que irá representar quebra de deveres acessórios com conseqüente
responsabilidade pré-negocial, decorrente da lesão à boa-fé objetiva.
Para concluir, é necessário, primeiramente, analisar o caso concreto por suas
concretas circunstâncias para somente determinar se é ou não caso de
responsabilidade pré-negocial. Posteriormente, deverá analisar se houve dano
comprovado e o nexo de causalidade entre ele e o ato, ou omissão, imputável a um dos
sujeitos da relação.
E por fim, que o ato tenha sido capaz de gerar, na parte lesada, confiança
legítima, isto é, confiança fundada em dados concretos, inequívocos, avaliáveis
segundo critérios objetivos racionais de que o contrato seria concluído e que não
surgissem na conduta danos indenizáveis.
No entendimento de JUDITH MARTINS COSTA
130
, as condições da
responsabilidade pré-negocial estão na confiança das partes na conclusão do contrato,
por atos dirigidos a este fim, os danos oriundos da quebra desta confiança e na
indesejável ruptura da relação contratual.
129
COSTA, A boa-fé..., p. 482.
130
Ibid., p. 485.
92
Verifica-se que o principal dever previsto para a fase pré-negocial é o dever de
informar. Como entende CLÁUDIA LIMA MARQUES
131
, o dever de esclarecimento,
imposto ao fornecedor de serviços sobre a forma de utilização e a qualidade dos
serviços e o dever de aconselhamento imposto a um profissional especialista para com
alguém que não é especialista, dando a este último as informações necessárias para
que possa escolher entre os vários caminhos e soluções possíveis, qual irá seguir.
8.2 ANÁLISE DO PROJETO 6.960/02
O Código Civil de 2002, dessa forma, não seguiu o exemplo do Código Italiano
de 1942, que prevê expressamente a necessidade de presença da boa-fé nas
tratativas, conforme o seu artigo 1.337 já abordado.
Por tal razão, consta do Projeto n.º 6.960/02, de autoria do DEPUTADO
RICARDO FÍÚZA, proposta de alteração do artigo 422 do Código Civil de 2002, que
passaria a ter a seguinte redação: “os contratantes são obrigados a guardar, assim nas
negociações preliminares e conclusão do contrato, como em sua execução e fase pós-
contratual, os princípios de probidade e boa-fé e tudo mais que resulte da natureza do
contrato, da lei, dos usos e da exigência da razão e da eqüidade”.
Sobre a proposta, o próprio RICARDO FIÚZA
132
conclui que apresenta
deficiências na questão objetiva da boa-fé nos contratos. As principais insuficiências
131
MARQUES, Contratos no código de defesa do consumidor: o novo..., passim.
132
FIUZA, R. O novo código civil e as propostas de aperfeiçoamento. São Paulo: Saraiva,
2004. p. 77.
93
convergem às limitações fixadas (período da conclusão do contrato até a sua
execução), não valorando a necessidade de aplicações da boa-fé às fases pré-
contratual e pós-contratual, com a devida extensão do regramento.
Mas, infelizmente, essa proposta foi inicialmente rejeitada. Consta do parecer
do DEPUTADO VICENTE ARRUDA, relator nomeado para a apreciação do Projeto n.º
6.960/02 na Comissão de Constituição, Justiça e Redação da Câmara dos Deputados,
a seguinte fundamentação de rejeição: Pela manutenção do texto, que fala em
‘conclusão do contrato’, que compreende a fase de negociação, elaboração, assinatura,
e da sua ‘execução’, que compreende o cumprimento ou descumprimento das
obrigações contratuais, bem como a solução dos conflitos entre as partes. Não
devemos ceder à tentação de deixar tudo explícito, até mesmo o óbvio”.
133
Não obstante isto, o enunciado n.º 25 do Enunciados aprovados na Jornada de
Direito Civil I, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça
Federal no período de 11 a 13 de setembro de 2002, sob a coordenação científica do
Ministro Ruy Rosado, do STJ, indica: “ o artigo 422 do Código Civil brasileiro de 2002
não inviabiliza a aplicação, pelo legislador, a aplicação da boa-fé nas fases pré e pós-
contratual.”
Isso demonstra a tendência em admitir e interpretar extensivamente o artigo
422 do NCC, para admitir a imputação de responsabilidade pré-contratual e pós-
contratual.
133
O parecer nos foi enviado, por e-mail, em março de 2.004, por Mário Luiz Delgado Régis,
assessor parlamentar do Deputado Ricardo Fiúza.
94
Neste mesmo diapasão, recentemente, a Jornada de Direito Civil III aprovou o
enunciado n.º 170, de autoria do Ilustre Professor da Faculdade de Direito do Sul de
Minas, em Pouso Alegre-MG, e Defensor Público, Francisco José de Oliveira
134
, que em
sua peculiar sensibilidade jurídica entende que o artigo 422 deverá ser aplicado a boa-
fé objetiva tanto nas fases preliminares do contrato, em todo o seu desenvolvimento e
se estendendo em fase posterior para sua conclusão, quando tal exigência decorrer da
natureza do objeto.
Por fim, a aplicação da boa-fé objetiva nas fases pré-contratual e pós-contratual
se subentendia na interpretação do artigo 422 do NCC, ou seja, bastava uma
interpretação sistemática do ordenamento jurídico civil, especialmente dos contratos
regidos pelo código consumerista e também, diante das novas perspectivas e
sustentações filosóficas deste novo diploma de direito privado, o Código Civil de 2002,
por seus princípios de socialidade, eticidade e economicidade . Com isto, não há
necessidade de um projeto de lei para expressamente prever esta possibilidade, pois os
enunciados, a doutrina e a jurisprudência são capazes de suprir e determinar tal
entendimento.
134
“De maneira posta pelo Código, somente na conclusão e na execução do contrato haveria
necessidade de boa-fé, contrastando com a nova sistemática contratual. O contrato não pode mais ser
considerado em seu modelo clássico. Assim, existe uma expectativa antes da conclusão, e alguns efeitos
podem prolongar-se no tempo, dependendo do tipo de relação contratual. Vejamos o exemplo da
contratação de uma empregada doméstica: Concluído o contrato de trabalho, meses depois, a
empregada procura o ex-patrão para conseguir carta de referência. Se a primeira exerceu corretamente
suas funções, seria lícito ao segundo, por mero capricho, negar-lhe a carta? Nesse mesmo exemplo, pós
findo o contrato de trabalho, poderia a empregada revelar segredos ou intimidades do patrão, de que
soube apenas pelo tipo de relação jurídica travada? Nos estritos termos do artigo 422, a resposta às duas
questões seria negativa, e os prejudicados dificilmente obteriam qualquer ressarcimento.”
95
Em síntese, o disposto no artigo 422 do NCC já prevê a possibilidade, implícita,
de interpretação para abarcar responsabilidade pré-contratual e pós-contratual, não
haveria necessidade de regulamentação específica.
8.3 RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
A responsabilidade contratual, quanto à conclusão e execução, não restam
dúvidas de que a boa-fé objetiva deverá estar presente, exigindo o comportamento
conforme os parâmetros de conduta aceito e interpretado como honesto, probo etc.,
durante o cumprimento da avença, o que é retirado por simples leitura do artigo 422 do
Código Civil brasileiro de 2002. Aqui está compreendida a fase posterior à formação do
contrato e temos como dever acessório o dever de informar e o dever de colaborar, de
agir com lealdade, de forma a não obstruir ou impedir que a outra parte cumpra com
suas obrigações contratuais, para que a conclusão do contrato, bem como sua
execução, estejam conforme o pretendido pelas partes no momento da avença.
Por fim temos também para a incidência da responsabilidade a quebra do dever
de cuidado, compreendendo o zelo pela integridade física e moral do contratante, bem
como de seu patrimônio.
96
8.4 RESPONSABILIDADE PÓS-CONTRATUAL
A boa-fé objetiva insere deveres mesmo após a fase pré-contratual e contratual,
permanecendo interligados até mesmo na conclusão e exaurimento total das
obrigações assumidas.
A idéia de responsabilizar uma pessoa após a extinção de uma relação
obrigacional, mesmo estando cumprida a prestação, não é recente. Este tema tem sido
enfrentado, dentre outros, pela doutrina alemã, criadora da culpa post factum finitum.
Relata Menezes de Cordeiro que “a culpa post factum finitum tem origem na
jurisprudência alemã da década de 20. A jurisprudência alemã construiu a teoria da
culpa post factum finitum a partir de situações em que, mesmo após o cumprimento da
obrigação, nos exatos termos do contrato, continuavam existindo para as partes certos
deveres laterais, acessórios ou anexos, que deveriam persistir mesmo posteriormente à
extinção da relação jurídica.”
135
Tais deveres, de acordo com a doutrina e a jurisprudências alemãs, não
estariam inseridos expressamente num contrato ou ato jurídico unilateral, mas seriam
decorrentes do princípio da boa-fé.
O Professor Rogério Doninni
136
entende que a Culpa Post Pactum Finitum se
subdividiria em aparente e em stricto sensu. Para o professor, quando há um mínimo de
previsão legal para uma obrigação posterior ao encerramento do contrato, esta seria
uma Culpa Post Pactum Finitum aparente.
135
ROCHA; CORDEIRO, passim
136
DONNIMI, p. 37.
97
É o caso do artigo 6.º, VI, artigo 10, §1º e o artigo 32. Ocorrendo também
quando se tratar de garantia legal e contratual, ou seja, há previsões para elas. Assim,
para que ocorra uma Culpa Post Pactum Finitum srticto sensu não pode existir previsão
contratual nem legal, pois estas suprir-se-iam por seu vínculo obrigacional.
Acresce o Prof. Doninni
137
que os deveres acessórios de conduta, informação,
proteção e lealdade não necessitam estar expressamente previstos em texto legal,
porque a responsabilidade pós-contratual advém da quebra deles.
Já se a fundamentação surge do dever de boa-fé objetiva e da probidade,
mesmo que previsto em lei, devido a sua determinação ampla, poderá se justificar uma
Culpa Post Pactum Finitum stricto sensu.
Mesmo nossa legislação e doutrina sendo escassa a respeito da
responsabilidade pós-contratual, é interessante narrar decisão prolatada em agosto de
1988, tendo como relator o Des. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Apelação Cível, n.º
588.042.580, 5 Câmara Cível, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (
16-8.1988): “ Compra e Venda. Resolução. Culpa post factum finitum. O vendedor que
imediatamente após a venda torna inviável à compradora dispor do bem, ameaçando-a
de morte e escorraçando-a do lugar, para aproveitar-se disto e vender a casa para
outrem, descumpre uma obrigação secundária do contrato e dá motivo à sua resolução.
Princípio da boa-fé. Preliminar de nulidade Rejeitada.”
O referido acórdão demonstra que a responsabilidade pós-contratual pode ser
invocada, tendo em vista que o antigo Código Civil de 1916, embora não tivesse
previsto uma cláusula geral de boa-fé, que serviria de fundamento para a teoria da
137
DONNIMI, p. 85.
98
culpa post factum finitum, tinha como um de seus princípios fundamentais a boa-fé, que
serve perfeitamente de base para o acolhimento dessa teoria.
Para compreendermos a culpa post factum finitum, responsabilidade pós-
contratual, não se pode basear entendimentos em contrato extinto, mas sim que a
extinção da relação contratual mantém “vivos” os deveres acessórios de conduta,
principalmente o que tange a confiança e a cooperação, ou seja, manter as
expectativas de um negócio realizado conforme os padrões de probidade e realmente
desejável.
Ora, estes deveres não decorrerão mais do contrato, mas sim da boa-fé
objetiva. Coaduna a esta idéia ENÉAS COSTA GARCIA
138
ao expressar que a
responsabilidade pós-contratual é de natureza aquiliana. A boa-fé atua como fonte do
dever de conduta que a parte está constrita a observar e a violação desse dever
caracteriza o ato ilícito e gera o dever de indenizar.
Como fundamento da responsabilidade pós-contratual, além do Código de
Defesa do Consumidor, temos o artigo 422 do Código Civil de 2002. Porém, é
necessário ampliar a interpretação deste dispositivo para abarcar estas relações
jurídicas e imputar a culpa post factum finitum.
138
GARCIA, p. 275.
99
9 BOA-FÉ OBJETIVA E ABUSO DE DIREITO
Não obstante constituir matéria de vasta amplitude, não haveria como discorrer
acerca da boa-fé objetiva nas relações contratuais sem sequer tecer alguns
comentários sobre o abuso de direito. Ainda mais, como já demonstrado, que a boa-fé
objetiva está intimamente ligada à figura do abuso de direito, na medida em que torna
parâmetro para a verificação da regularidade ou não do exercício de direitos subjetivos.
9.1 ORIGEM DO ABUSO DE DIREITO:
O abuso de direito tem sua origem na França, no início do século XIX.
Construção da jurisprudência, a figura do abuso de direito foi proclamada pelos
tribunais franceses em 1808 com a condenação de um industrial cuja fábrica de
chapéus expelia vapores desagradáveis para a vizinhança, considerava-se como um
abuso do direito de propriedade e de vizinhança
139
.
Todavia, há doutrinadores
140
, que há resquícios do abuso de direito em Roma,
onde já se reconheciam limitações ao exercício de direito subjetivos.
Enfim, é inconteste que a origem da figura do abuso de direito ocorreu na
França como importante substrato jurisprudencial que veio posteriormente influenciar a
positivação em diversos ordenamentos mundiais.
139
ROCHA; CORDEIRO, p. 670-671.
140
LOUREIRO, L. G. Teoria geral dos contratos no novo código civil. São Paulo: Método,
2002. passim.
100
9.2 CONCEITO DE ABUSO DE DIREITO:
COUTINHO DE ABREU, dispondo acerca do artigo 334 do Código Civil
Português
141
, ensina-nos que no abuso de direito temos não verdadeiramente um
direito, mas sim um direito aparente.
ORLANDO GOMES aponta que:
A concepção do abuso de direito é uma construção doutrinária destinada a tornar mais flexível a
aplicação das normas jurídicas inspiradas numa filosofia que deixou de corresponder às
aspirações sociais da atualidade. Neste sentido, é um conceito amortecedor. Em verdade, sua
função precípua é amortecer os choques freqüentes entre a lei e a realidade. Trata-se, no
fundo, de uma técnica de reanimação de uma ordem jurídica que se está esgotando. Em última
análise, o conceito nega a tese que pretende reanimar, mas, ainda assim, assegura a
estabilidade do sistema em que se introduz.
Concluindo: "o abuso de direito é uma fórmula elástica que permite conter toda
ação que se reputa inconveniente à nova ideologia das relações humanas, ao novo
sentido que se vem emprestando ao comportamento social".
142
Corroborando PLANIOL, que acreditava ser antinômica a idéia de conceber um
abuso no exercício de um direito lídimo, a doutrina e jurisprudência mais modernas
paulatinamente assentaram a antijuridicidade objetiva daquele que em exercício de um
direito próprio excede-lhe em detrimento alheio
143
, o que veio a moldar, como dantes
pontuado, a faceta objetiva da conduta de boa-fé calcada em padrão jurídico finalístico.
141
ABREU, J. M. C. de. Do abuso de direito. Coimbra: Almedina, 1999. p. 67-68.
142
GOMES, O. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1957. p. 124.
143
Id.
101
Sob tal flanco, em termos latos, CUNHA LUNA
144
nos mostra que o direito
subjetivo não é uma faculdade ou poder do indivíduo, mas sim como função social e o
abuso do direito seria um ato contra esta finalidade. Trata-se de um autêntico standard
jurídico, se o indivíduo desvia o poder jurídico do seu próprio e característico fim social
ou econômico, incide na prática de abuso de direito.
Nosso ordenamento jurídico determina o abuso de direito no artigo 187 do
nosso Código Civil de 2002, onde nosso legislador, com mínimas alterações, reproduziu
o artigo 334 do Código Civil Português.
145
O abuso de direito, como exposto no artigo 187 do Código Civil de 2002, realça
um critério que não reside no plano psicológico da culpabilidade, mas no desvio do
direito de sua finalidade ou função social, ou seja, no comportamento diverso dos
padrões éticos de lealdade, eticidade e socialidade. O artigo 187 expõe que o direito
subjetivo seria um direito-finalístico, onde o exercício abusivo romperia o equilíbrio
econômico social, gerando assim, independentemente de culpa (intenção), a obrigação
de reparação de danos.
Coaduna com este entendimento o Enunciado n.º 37 da I Jornada de Direito
Civil, do CJF (Conselho da Justiça Federal, no período de 11 a 13 de setembro de
2002, sob a coordenação científica do Ministro Ruy Rosado, do STJ: “A
responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe de culpa e fundamenta-
se exclusivo no critério objetivo-finalístico”.
144
LUNA, E. da C. Abuso de direito. Rio de Janeiro: Forense, 1959. passim.
145
Artigo 334 do Código Civil Português: È ilegítimo o exercício de um direito quando o titular
exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou
econômico desse direito”.
102
Enfim, é o ato lícito no antecedente e ilícito no conseqüente, como bem
colocado por NELSON ROSENVALD
146
ao afirmar que no abuso de direito a pessoa
não fere diretamente a estrutura normativa, mas sim ofende a valoração no uso do seu
direito subjetivo, conduzindo de forma contrária aos fundamentos materiais da norma,
por negligenciar o elemento ético que preside a sua adequação ao ordenamento
jurídico.
9.3 TIPOS DE ATOS QUE CONFIGURAM ABUSO DE DIREITO
9.3.1 Venire Contra Factum Proprium
O Venire contra factum proprium atinge diretamente o princípio da confiança.
Por ele a pessoa não pode desdizer o que disse, retirar o valor da promessa em
determinado negócio jurídico em momento posterior, ou seja, não é dada alteração na
postura inicial de um negócio após se portar de um mesmo modo por determinado
período, uma vez que já criou uma certa expectativa na parte contrária.
O venire contra factum proprium impede que a pessoa, em uma relação jurídica
negocial, aja com condutas contraditórias àquela adotada no momento anterior,
conforme nos ensina MENEZES CORDEIRO
147
: o agente fica adstrito a não contradizer
o que primeiro fez e disse. Ainda continua: a proibição de venire contra factum proprium
146
ROSENVALD, N. Dignidade humana e boa-fé no código civil. São Paulo: Saraiva, 2005.
(Coleção Prof Agostinho Alvin). p. 122.
147
ROCHA; CORDEIRO, p. 200.
103
não visa manter a uma atuação gerada primeiramente, onde não é reconhecido pelo
direito, mas sim proteger a pessoa que confiou e acreditou nesta situação e a teve por
boa.
148
A doutrina considera como requisito para que seja configurado o venire contra
factum proprium: a) a existência de uma conduta anterior, relevante e eficaz; b)
exercício de um direito subjetivo pelo mesmo sujeito que criou a situação litigiosa
devido à contradição existente entre as duas condutas; c) a identidade de sujeitos que
se vinculam em ambas as condutas.
149
Anderson Scheiber considera como
pressupostos para a incidência do venire: a) um factum proprium, isto é, uma conduta
inicial; b) a legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo desta
conduta; c) um comportamento contraditório com este sentido objetivo; d) um dano ou ,
no mínimo, um potencial de dano a partir da contradição.
150
Temos como exemplo o dispositivo introduzido pelo artigo 330 do Código Civil
de 2002
151
cuja natureza corresponde ao dever de não contradizer o ato próprio. Outro
dispositivo é o artigo 619 do Código Civil de 2002 que diz respeito ao contrato de
empreitada, mediante o qual o dono da obra é obrigado a pagar ao empreiteiro os
aumentos e acréscimos, segundo o que for arbitrado, se, sempre presente à obra, por
continuadas visitas, não podia ignorar o que se estava passando e nunca protestou;
148
ROCHA; CORDEIRO, p. 769.
149
BORDA, A. La teoria de los actos próprios. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1993. p. 12.
150
SCHREIBER, A. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e
venire contr factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 271.
151
“Artigo 330: (...) O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do
credor relativamente ao previsto no contrato”
104
não pode prevalecer o contrato contrariando essa conduta assim consolidada, dentre
mais.
O Superior Tribunal de Justiça definiu, de forma bem taxativa e interessante
este instituto, que para se ter um comportamento por relevante, há de ser lembrada a
importância da doutrina sobre os atos próprios. Assim:
O direito moderno não compactua com o venire contra factum proprium, que se traduz como o
exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido
anteriormente (MENEZES CORDEIRO, Da Boa-fé no Direito Civil, 11/742). Havendo real
contradição entre dois comportamentos, significando o segundo quebra injustificada da
confiança gerada pela prática do primeiro, em prejuízo da contraparte, não é admissível dar
eficácia à conduta posterior.(Resp n. 95539-SP Relator Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR)
Restou consignado pelo então relator Min. RUY ROSADO que o sistema
jurídico nacional deve ser interpretado e aplicado de tal forma que através dele possa
ser preservado o princípio da boa-fé, para permitir o reconhecimento da eficácia e
validade de relações obrigacionais assumidas e lisamente cumpridas, não podendo ser
a parte surpreendida com alegações formalmente corretas, mas que se chocam com os
princípios éticos, inspiradores do sistema. De outra feita, consignou-se que o terceiro de
boa-fé não pode ser prejudicado por erro próprio da administração, sob a "aplicação
dos princípios de que nemo potest venire contra factum proprium e de que nemo
creditur turpitudinem suam allegans" (Resp. n. 47.015(94.011462-1) – SP Relator
Ministro ADHEMAR MACIEL). A Corte de Estrito Direito Ordinário já se pronunciou no
sentido de que ninguém pode se opor a fato a que ele próprio deu causa, ou seja, voltar
105
sobre os próprios passos para infringir a estabilidade da boa-fé objetiva, restringindo-se
com isso o uso abusivo de um direito teoricamente legitimado.
Com isto demonstra a preocupação em se proteger a confiança demonstrada
em uma relação contratual. O venire contra factum proprium, em síntese, atinge
diretamente o dever acessório da confiança porque infere uma perspectiva contratual,
mediante condutas direcionadas para uma determinada finalidade e, posteriormente,
atua de forma contraditória afetando a perspectiva que a parte contratante mantinha na
avença. As partes deverão manter a retidão de conduta anterior não podendo quebrar a
estabilidade da boa-fé objetiva, porque, em tese, já definiram a expectativa gerada no
contrato. Como já anteriormente mencionado, representaria desdizer o que já disse.
9.3.2 A Supressio e a Surretio
A supressio é situação do direito que deixou de ser exercida em determinado
momento. A parte quebra o dever de confiança e deixa de agir em determinada
situação, ocasionando assim prejuízo à outra parte.
A surrectio, o exercício continuado de uma situação jurídica ao arrepio do
convencionado ou do ordenamento implica nova fonte de direitos subjetivos.
Ambas, a supressio e a surrectio são formas de repercussão do tempo nas
relações jurídicas, que no nosso Código tem uma disciplina específica nos artigos 178,
205 e 206 do Código Civil de 2002.
Em recente julgado, o Superior Tribunal de Justiça aplicou estes institutos em
um caso que envolvia um condomínio edilício que possuía uma isolada parte do terreno
106
constituída de área comum, mas cuja utilização seria razoavelmente adequada a
apenas dois condôminos. Durante muitos anos, a área foi utilizada apenas por eles,
inclusive com anuência dos condôminos em assembléia-geral. Após muito tempo, o
condomínio decidiu solicitar novamente o referido terreno sem, entretanto, demonstrar a
utilidade da área para si, fundamentando seu pedido apenas e tão-somente no direito
de propriedade, sendo assim julgado:
Para isso pode ser invocada a figura da supressio, fundada na boa-fé objetiva, a inibir
providências que já poderiam ter sido adotadas há anos e não foram, criando a expectativa,
justificada pelas circunstâncias, de que o direito que lhes correspondia não mais seria exigido.
(....) A supressio pode ser bem aplicada neste caso, pois houve prolongado comportamento dos
titulares, como se não tivessem o direito ou não mais quisessem exercê-los; os condôminos ora
réus confiaram na permanência desta situação. Ademais, a vantagem da autora ou do
condomínio seria nenhuma, e o prejuízo dos réus considerável. Penso que, no caso, se pode
fazer boa aplicação do princípio.
152
Em contrapartida aos dois condôminos que utilizavam a área, a conduta
tipificou a surrectio por terem adquirido a eficácia de um direito pela inércia alheia.
152
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 4. Turma. Área comum. Prescrição. Boa-fé. Área
destinada a corredor que perdeu sua finalidade com a alteração do projeto e veio a ser ocupado com
exclusividade por alguns condôminos, com a concordância dos demais. Consolidada a situação a mis de
20 anos sobre área não indispensável à existência do condomínio, é de ser mantido o status quo.
Aplicação do princípio da boa-fé ( supressio ). Recurso. Conhecido e provido. Recurso Especial n
1999/0042832-3. Recte: Baptista Marconi Netto e outros, Recto: Sônia Fochi Sanita. Relator: Ruy Rosado
de Aguiar. Data do Julgamento: 10 de agosto de 1999. http:// www.stj.gov.br
107
9.3.3 Regra Tu Quoque
Aqui seria mais ou menos o brocárdio jurídico que ninguém poderá alegar a
própria torpeza. Importa dizer que quem viola determinada norma jurídica não poderá
exercer a situação jurídica que essa mesma norma lhe atribuiu.
O tu toque age simultaneamente sobre os princípios da boa-fé e da justiça
contratual, pois pretende não só evitar que o contratante faltoso se beneficie de sua
própria falta, como também resguardar o equilíbrio entre as prestações.
153
Aqui o
sujeito abusa de uma norma jurídica e depois tenta tirar proveito da situação em
benefício próprio.
9.3.4 Desproporção entre Vantagem e Prejuízo no Exercício dos Direitos
Este tipo de exercício abusivo de direito se aproxima muito do instituto da lesão,
constante no artigo 157 do Código Civil brasileiro de 2002. Seria a desproporção entre
a vantagem excessiva de uma parte em detrimento do prejuízo de outra.
Por força da cláusula geral da boa-fé, é de evitar a desproporção entre
benefício auferido e sacrifício imposto.
153
ROSENVALD, p. 142.
108
10 SEGURANÇA JURÍDICA NA INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS DIANTE DA
BOA –FÉ OBJETIVA
A preocupação deste capítulo é a aplicação da cláusula geral da boa-fé objetiva
pelo juiz nas relações contratuais sem que seja gerada insegurança jurídica entre as
partes.
10.1 SEGURANÇA JURÍDICA NA INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS COM
FUNDAMENTO NO CÓDIGO CIVIL DE 1916
Com a predominância das raízes sociológicas e filosóficas do Estado Liberal em
nosso Código Civil de 1916, tínhamos o apogeu da autonomia da vontade como fonte
geradora de deveres contratuais. Da autonomia da vontade se extraia os arestos da
obrigatoriedade da convenção como forma de vincular os contratantes ao avençado. O
contrato era o símbolo e o instrumento de atuação da iniciativa individual e da vontade
autônoma, ao qual o poder estatal dá validade.
A segurança jurídica das partes contratantes se exteriorizava com a vinculação
da manifestação da vontade no contrato, “fazendo lei entre as partes”. Havia esta
segurança uma vez que as interpretações seriam vinculadas ao poder de liberdade
contratual e à declaração desta vontade no contrato.
Ao contratar, as partes manifestam sua vontade, em regra são livres e capazes.
Diante disto, as cláusulas do contrato têm força obrigatória — pacta sunt servanda — e
qualquer alteração só poderá ser efetuada mediante o concurso de vontades. Assim,
109
em face da força vinculante dos contratos
154
e do princípio da autonomia da vontade, os
contratos devem ser fielmente cumpridos entre as partes, de acordo com o pactuado,
cabendo a cada um dos contratantes suportar as conseqüências, ainda que
indesejáveis, mas previsíveis que decorrem da celebração de um contrato.
Essa força obrigatória atribuída pela lei aos contratos é a pedra angular da
segurança do comércio jurídico, conforme abalizado ensinamento de Orlando
Gomes
155
, demonstrando a força obrigatória, consubstanciando-se na regra de que o
contrato é lei entre as partes, na intangibilidade do conteúdo dos contratos e na
impossibilidade de intervenção do juiz sob pena de ferir a liberdade de contratar.
Na mesma linha de pensamento, ARNALDO RIZZARD
156
nos orienta no sentido
que a força da lei que a manifestação de vontade gera se manifesta entre os próprios
contratantes.
A vinculação da vontade no contrato transformava-o em um instrumento de
grande segurança jurídica e tranqüilidade de cumprimento do avençado, uma vez que
as partes se comprometem sponte sua na relação jurídica contratual, previamente
conhecendo os alcances e limites do negócio.
Ocorre que os tempos mudaram, a sociedade brasileira se desenvolveu e o
contrato modificou, no sentido econômico e social, demonstrando a necessidade do
órgão jurisdicional intervir na manifestação de vontade para atingir uma finalidade mais
equânime, justa e solidária do avençado.
154
Artigo 928 do Código Civil Brasileiro de 1916.
155
GOMES, Contratos, p. 38-39.
156
RIZZARD , p. 36
110
A manifestação de vontade de forma absoluta começou a ter uma certa
relativização e adequação às reais necessidades das partes e repercurtir em um
interesse geral, social.
Mesmo a doutrina e jurisprudência já assinalando, na vigência do Código Civil
de 1916, a relativização da vontade e a possibilidade de controle judicial ao alcance e
limite do negócio jurídico, as partes confiavam no ato jurídico perfeito e acabado e na
força vinculante dos contratos. Ora, o contrato é a maior expressão econômica de um
país, geradora de expectativa, de direitos e obrigações, por isso deve-se manter a
certeza de seu cumprimento como manifestado.
Embora esta confiança no cumprimento seja uma assertiva, o Estado não pode
ficar de fora de relações jurídicas que repercutem na esfera social e econômica sem
apreciar os alcances valorativos do negócio jurídico, a fim de manter o equilíbrio destas
relações. O Código Civil de 2002 trouxe isto, ou seja, a possibilidade de interpretar os
contratos conforme os ditames da boa-fé e os usos e costumes do local, sempre
almejando uma relação jurídica digna e honesta que atendam as expectativas das
partes e mantenha a segurança jurídica no cumprimento do avençado.
111
10.2 SEGURANÇA JURÍDICA NA INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS COM
FUNDAMENTO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002, DIANTE DA CLÁUSULA ABERTA DA
BOA-FÉ OBJETIVA
Vimos que a boa-fé objetiva cuida do disciplinamento ético do comportamento
dos contratantes, um em relação ao outro. O que se pode afirmar é que as partes, tanto
nas tratativas (responsabilidade pré-contratual) como na consumação e na execução
(responsabilidade contratual), bem como na fase posterior do contrato já cumprido
(responsabilidade pós-obrigacional), sujeitam-se aos ditames da boa-fé objetiva como
fator basilar da interpretação do negócio e da conduta negocial. Em todas estas fases
negociais, sobreleva a atividade do juiz na aplicação do direito ao caso concreto,
porque não encontrará apenas na norma legal o tipo normativo a aplicar ao caso
concreto, mas terá de descer até aos usos e costumes locais para definir a eticidade e,
conseqüentemente, a licitude do comportamento dos contratantes, e ainda para bem
definir o conteúdo da relação obrigacional.
A boa-fé objetiva tem a finalidade não só como conceito ético de conduta, mas
também econômico, ligado à funcionalidade econômica do contrato e sua finalidade
econômico-social, razão da necessidade de inspirar segurança jurídica entre as partes
contratantes.
O Código Civil de 2002 nos trouxe, iluminado pela boa-fé objetiva, a função
social do contrato visto como um dos fenômenos integrantes da ordem econômica em
um contexto constitucional de justiça social, solidariedade, livre concorrência, liberdade
de iniciativa e dignidade das partes, fornecendo assim a base e os fundamentos para
112
uma intervenção no âmbito da autonomia contratual. Além do contesto externo do
contrato, ou seja, sua incidência, ultra partes, internamente aparece como vínculo
funcional que estabelece uma planificação econômica entre as partes, às quais
incumbe comportar-se de modo a garantir a realização de seus fins e a plena satisfação
da expectativas dos participantes do negócio.
Diante da intervenção econômica da intervenção social do contrato que a boa-
fé objetiva irá manifestar na regulamentação e intervenção na manifestação de vontade
das partes, a manifestação de vontade existirá e permanecerá de forma livre e
consciente como exteriorização do poder de autodeterminação do ser humano. O que
será, de certa forma, controlado serão os efeitos desta manifestação na ordem
econômica, na função social e no interesse das partes.
O controle e apreciação da conduta das partes, manifestada pela vontade nos
contratos, será feita pelo juiz levando-se em conta a cláusula aberta de interpretação, a
boa-fé objetiva, regulando a extensão e o exercício dos direitos subjetivos.
Chegamos, anteriormente a conclusão de que a boa-fé objetiva tem a natureza
jurídica de cláusula aberta de interpretação, e como tal, de forma resumida, exigindo do
juiz uma atuação especial, atribuindo uma certa mobilidade ao sistema, buscando tanto
externamente sua aplicação em conceitos além do sistema jurídico, como os costumes
e usos do local, como internamente através de princípios e regras que serão
transladadas para a situação concreta.
113
Quando a norma
157
determina ao contratante comportar-se de acordo com a
boa-fé, mas não lhe diz qual o comportamento esperado nas circunstâncias do negócio,
caberá ao juiz, em caso de litígio, fixar o comportamento que deveria ter sido observado
quanto ao prazo, modo, lugar, enfim, as relações de manifestadas no contrato.
Evidentemente que isso gerará uma insegurança jurídica, porque os
contratantes dependerão da interpretação do juiz para definir qual o comportamento
que seria exigido para se adequar à lei, uma vez que deverá suprir a cláusula aberta da
boa-fé objetiva.
Disso sobressai a responsabilidade do juiz de agir com extremo cuidado ao
estabelecer a norma de dever que ele usará como parâmetro para resolver o caso
concreto.
Tratando a boa-fé objetiva de cláusula a aberta de interpretação, impondo
assim, ao julgador, uma técnica judicial especial de julgar com maior atenção, maior
sensibilidade, maior conhecimento social é que vinculará a atividade interpretativa de
modo discricionário, nunca arbitrário, sempre em atenção a alguns parâmetros, para
retirar a sensação de insegurança jurídica:
Vejamos:
a) as decisões deverão ser sempre motivadas: o juiz deverá explicar às partes
e à comunidade jurídica como e por que tais condutas foram consideradas
como devidas no caso concreto e no processo, que levaram a solução da
causa. A motivação da decisão como garantia constitucional, artigo 93,
157
Artigo 422 do Código Civil Brasileiro: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na
conclusão do contrato, como em sua execução os princípios de probidade e boa-fé”
114
IX
158
, manterá as partes seguras, confiantes e alerta em suas condutas,
além de mostrar transparência do órgão jurisdicional e um modo de controle
do sistema judiciário.
b) também se extrairá , para interpretação e aplicação da boa-fé objetiva, no
ordenamento jurídico infra-constitucional em seus princípios fundamentais,
como o Código de Defesa do Consumidor, pela princípio da equidade e da
vulnerabilidade do consumidor.
c) deverá o juiz deverá buscar o resultado prático e econômico que visa o
contrato alcançar e das legítimas expectativas que dele pode esperar as
partes, como homem comum.
d) por fim, deverá ter em conta às experiências comuns nos usos e costumes
do local de celebração do contrato.
Com isto o juiz atenderá àquela recomendação de interpretar o contrato
conforme a boa-fé e os usos e costumes do local, além de interpretar os contratos nos
ditames de probidade, preservando assim o equilíbrio das partes em uma relação justa,
solidária e digna. Não cairá em um subjetivismo de uma interpretação, que pode
corresponder o que do contrato esperava as partes, mas sem ser o senhor do interesse
do jogo, promoverá sua adaptação em conformidade com a expectativa, que em torno
de seu resultado, nutre o homem comum, independente de conhecer todas as
cláusulas.
158
Artigo 93, IX da Constituição Federal: “....todos os julgamentos dos órgãos do Poder
Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o
interesse público o exigir, limitar a presença em determinados atos, às próprias partes e a seus
advogados, ou somente a estes;”
115
Conciliam-se, desse modo, a necessidade de segurança das relações jurídicas
e o respeito ao ato jurídico perfeito, mas de outros, não se transforma o contrato em um
instrumento de submissão de uma das partes em relação à outra. Com isto o juiz
desempenhará se papel de criador de norma em caso concreto, diante da abertura do
sistema da boa-fé objetiva atendendo as necessidades sociais e os ditames
constitucionais da produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana digna,
justa e equânime.
116
11 BOA-FÉ OBJETIVA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Um novo movimento doutrinário surge para dar um enfoque dos direitos civis
pelo manto do direito constitucional
.
Nos dizeres de LUIZ EDSON FACHIN, “todo o
Standard normativo infraconstitucional deve se amoldar ao modelo axiológico
constitucional”
159
, é reflexo evidente da evolução dos valores sociais e da necessidade
de, em prol destes, obtemperar-se a faceta privatística das leis ordinárias sob o prisma
da Lei Fundamental. Justamente na esteira principiológica dos preceitos 1º III, 3º I e 5º
da Carta Magna de 1988, mormente na dignidade da pessoa humana, nos lindes do
diploma Civil de 2002, ainda que ideologicamente, a primazia do formalismo jurídico
deu lugar à eticidade, à socialidade e a operabilidade.
A dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 1, III da Constituição
Federal, como princípio superior, trata do respeito à dignidade de todas as pessoas,
norteador de condutas dignas, justas e solidárias, definida, do ponto de vista jurídico,
como atributo da pessoa humana, “fundamento primeiro e a finalidade última, de toda
atuação estatal e mesmo particular”
160
.
159
FACHIN, L. E. Apreciação crítica do código civil de 2002 na perspectiva constitucional do
direito civil contemporâneo. Coligido in Revista Jurídica. Rio Grande do Sul: Notadez, ano 52, n. 304,
17-22, fev. 2003.
160
SAMPAIO, D. F. A intervenção do estado na economia e o princípio da dignidade da
pessoa humana ante a nova lei ambiental. n. 1. Brasília: CEJ, 2000.
117
A dignidade da pessoa expressa, como afirma Elimar Szaniawski
161
, este direito
que garante ao indivíduo a autodeterminação como expressão maior do exercício da
cidadania, garante o respeito como ser intelectual.
A dignidade da pessoa humana é um princípio de importância ímpar, pois
repercute sobre todo o ordenamento jurídico. É um mandamento nuclear do sistema
que irradia efeitos sobre as outras normas e princípios, é um “verdadeiro supraprincípio,
a chave de leitura e da interpretação dos demais princípios fundamentais e de todo os
direitos e garantias fundamentais expressos na Constituição”
162
. E se o texto
constitucional diz que a dignidade da pessoa humana é fundamental à República
Federativa do Brasil, importa concluir que o Estado existe em função de todas as
pessoas e não estas em função do Estado.
No entendimento de ELIMAR SZNIAWSKI
163
,o princípio da dignidade da
pessoa humana pode ser analisado sob dois aspectos. O primeiro como essência da
pessoa humana em suas relações individuais e o outro como fundamento da ordem
política e da paz social, emitindo juízos de valores gerais e determinantes que vinculam
o poder público e seus órgãos, podendo inclusive trazer limitações às liberdades
públicas. Diante disto, ao consideramos o primeiro aspecto, o princípio da dignidade da
pessoa humana atuará como uma cláusula geral de tutela da personalidade e, no
segundo aspecto, como princípio fundamental, matriz e gerador dos direitos
fundamentais.
161
SZANIAWSKI, E. Direitos da personalidade e sua tutela. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005. p. 140.
162
Id.
163
Id.
118
Nas relações intersubjetivas, o princípio da dignidade da pessoa humana,
analisada como cláusula geral, impõe um comportamento correto, ético e equânime na
celebração de qualquer negócio jurídico. Frise-se, por oportuno, que desse princípio,
atuando como cláusula geral decorre a boa-fé objetiva, que ordena, em suma, um
comportamento ético entre os contratantes, não transgredindo a boa-fé, probidade e a
função social do contrato, além de derivar os direitos concernentes ao respeito da
pessoa humana em todas as suas dimensões, o respeito da integridade física e
psíquica da pessoa, sua liberdade individual, dentre outros.
No enfoque do direito contratual, a violação dos deveres acessórios (laterais ou
anexos), após a extinção de uma obrigação prevista em um contrato, fere a cláusula
geral da boa-fé e, conseqüentemente, sua base inspiradora, que é o princípio da
dignidade da pessoa humana.
Decorrem do princípio da dignidade da pessoa humana os princípios da
solidariedade e da igualdade, pois são verdadeiros instrumentos da efetiva proteção
dos direitos personalíssimos do homem.
A solidariedade, prevista no artigo 3, I da Constituição Federal, está vinculada
às cláusulas gerais, pois estas buscam o comportamento solidário entre as partes, ou
seja, uma atitude compatível com a concepção social no contrato e a boa-fé objetiva.
Já o princípio da igualdade, previsto no artigo 5, caput, da Constituição federal,
deve ser visto como um princípio da justiça social e da dignidade de pessoa humana.
Há evidente vínculo desse princípio com uma política de justiça social e da boa-fé
objetiva. Sendo assim, está compreendido no ideal de igual e dignidade social da
119
pessoa humana. Cabe ainda dizer que a igualdade tem por objetivo realizar a igual
dignidade do ser humano, para que seja efetivada a justiça social.
Portanto, os princípios da solidariedade e da igualdade têm por fim o
desenvolvimento e o respeito à pessoa humana. Assim, não há justiça social com a
violação, numa relação jurídica, dos deveres acessórios que são oriundos da boa-fé
objetiva. A boa-fé objetiva, inspirada na confiança, lealdade, probidade, solidariedade e
função social, só se materializa e toma espaço no mundo jurídico e metajurídico quando
está inspirada sempre na realização e busca da dignidade da pessoa humana, e no
vertente caso na dignidade das partes contratantes.
Cogitando de um sistema aberto, cuja supremacia axiológica é referida pela
dignidade da pessoa humana, o direito civil e a Constituição manterão intenso vínculo
comunicativo, com repercussão material dos princípios que lhe são comuns. Nessa
constante travessia, a boa-fé objetiva é sentida como a concretização do princípio da
dignidade no campo das obrigações. Consiste no chamado direito civil-constitucional
justamente na reconstrução do direito privado mediante envio dos valores aos
princípios constitucionais e, posteriormente, do ingresso desses princípios no Código
Civil através da “janela” das cláusulas gerais .
164
TEREZA NEGREIRO
165
nos ensina que deverá haver uma “coesão sistêmica”
entre o direito civil e o direito constitucional para assim haver o direito privado, no
instante, contratual, por uma perspectiva constitucional. A boa-fé objetiva só ingressa
164
ROSENVALD, p. 142.
165
NEGREIRO, T. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da
boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1988. passim.
120
como cláusula aberta de interpretação por razão de sua natureza de dever de conduta,
visando a proteção da sociedade e a dignidade das partes contratantes.
Colhemos, neste sentido os ensinamentos de JUDITH MARTINS COSTA
166
:
“Toda e qualquer norma do ordenamento se funda no princípio da dignidade, cuja
eficácia se projeta por todo o ordenamento. Por seu específico significado, a
solidariedade social, exigência também decorrente do reconhecimento da fundamental
dignidade da pessoa, atine com a boa-fé objetiva de modo mais direto e imediato.”
Como o direito quer prestigiar as condutas cooperativas, a boa-fé objetiva
guardará sensivelmente nos objetivos fundamentais da República, uma vez que a
Constituição pretende garantir uma sociedade solidária.
Enfim, o Código Civil de 2002 trouxe a cláusula geral da tutela da personalidade
da pessoa humana oriunda do princípio maior da dignidade da pessoa humana que
origina os princípios da solidariedade e igualdade que tem sempre a finalidade de
produzir, reproduzir e desenvolver a vida do homem como ser intelectual. As cláusulas
gerais deverão ser interpretadas em conformidade com a Constituição Federal que é a
base de princípios e interesses sociais. A boa-fé objetiva como cláusula geral de
regulamentação da conduta do homem nas relações contratuais origina-se da cláusula
geral da tutela da personalidade.
166
COSTA, J. M. Mercado e solidariedade social. In: ____. A reconstrução do direito privado.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. passim.
121
12 CONCLUSÃO
O Código Civil de 2002, traz a boa-fé, relacionada aos negócios jurídicos,
positivada em três artigos (113, 187 e 421), agora com conotação objetiva, como
princípio a ser observado em todas relações civis e comerciais.
Como norma de interpretação no artigo 113 estabelecendo que os negócios
jurídicos deverão ser interpretados conforme a boa-fé. O artigo 187 coloca a boa-fé, ao
lado da função social do contrato e dos bons costumes, como limitadora da autonomia
da vontade e da liberdade contratual.
Já o artigo 421, disciplina a incidência da boa-fé objetiva nas fases de
conclusão do contrato como em sua execução. Como se vê, neste artigo, a boa-fé está
inserida como uma cláusula geral implícita a todos os contratos civis e comerciais, bem
como associou a boa-fé ao que se denominou de princípio da 'probidade'. Outrossim, o
presente dispositivo tem seu alcance normativo nas fases pré-contratuais, diante dos
entendimentos do Conselho da Magistratura Federal, a doutrina mais especializada e
demonstrada no vertente trabalho, bem como está sendo inserido como projeto de lei
n.º 6.960/02.
A incidência da boa-fé objetiva, sobre a disciplina obrigacional, determina uma
valorização da dignidade da pessoa humana em substituição à autonomia da vontade,
na medida em que se passa a encarar as relações obrigacionais como um espaço de
solidariedade e cooperação entre as partes, auxiliando a produção, reprodução e
desenvolvimento da vida humana em seu aspecto intelectual.
122
A boa-fé objetiva está hodiernamente presente em todas as relações
contratuais como parâmetro de conduta honesta, digna, confiável e ética. A
manifestação de vontade sai de uma esfera individual para repercutir no âmbito social
para demonstrar a solidariedade e igualdade que os contratos têm de manter em uma
sociedade justa, para que assim se possa atingir seu fim ético e comum.
É a manifestação do desejo de cooperação e confiança na realização de um
contrato que abrange interesses particulares e também sua função social que irá
exteriorizar os fundamentos da boa-fé objetiva.
A boa-fé objetiva é tendência de interpretação de condutas, no contrato,
utilizada em diversos ordenamentos jurídicos alienígena e com forte influência na nossa
regulamentação do Código Civil de 2002. Influência esta do Código Civil Alemão, como
fonte de normas de conduta, como delimitação ao exercício de posições jurídicas, como
elemento de reforço da ligação obrigacional e como bitola para interpretação dos
negócios jurídicos.
A boa-fé objetiva como cláusula geral de interpretação dá uma margem muito
grande ao poder discricionário do juiz na aplicação e determinação de condutas
contratuais, o que pode gerar uma certa insegurança jurídica para as partes e para o
sistema da liberdade individual. Todavia, a insegurança jurídica gerada é somente
aparente, uma vez que o próprio sistema e seus fundamentos principiológicos regulam
e limitam a atuação do juiz na interpretação e aplicação deste instituto.
Os poderes do juiz advêm de um Estado democrático de direito e como tal
exige a motivação de suas decisões como forma de controle de atuação de seu poder,
ainda mais quando se trata de cláusula aberta de interpretação da boa-fé objetiva,
123
demonstrando os fundamentos da sentença e o raciocínio do entendimento do órgão
julgado na situação concreta. Não obstante isto, o poder discricionário do juiz esbarra
nos princípios constitucionais vigentes e nos princípios infra-constitucionais para assim
decidir e determinar a conduta que irá se adequar às exigências da boa-fé objetiva
diante do contrato celebrado.
A boa-fé objetiva é uma forma de interpretação contratual mais equânime e com
fundamentos determinantes na pessoa humana em sua dignidade intelectual,
preservando sua liberdade contratual como exteriorização de seu poder de auto-
determinação, regulando assim a conduta do indivíduo contratante em consonância
com princípios sociais e preocupação com a sociedade em que vive.
124
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