Download PDF
ads:
Geison Fernando Vendramini de Araújo Campos
ADOLESCÊNCIA: DE QUE CRISE ESTAMOS
FALANDO?
Mestrado em Psicologia Social
PUC / SP
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Geison Fernando Vendramini de Araújo Campos
ADOLESCÊNCIA: DE QUE CRISE ESTAMOS
FALANDO?
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social
Núcleo de Psicanálise e Sociedade
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de MESTRE
em Psicologia Social, sob a orientação do
Prof. Doutor Raul Albino Pacheco Filho.
PUC / SP
2006
ads:
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________
_____________________________________
_____________________________________
Resumo
Este estudo teórico empreende uma reflexão sobre o que é chamado de crise de
identidade do adolescente ou crise da adolescência. Para tal, revisita teorias sobre a
adolescência consideradas ‘tradicionais’, por terem se tornado referências sobre este
tema e por compreenderem as dimensões de indivíduo e sociedade como que
estabelecidos num par de eixos em oposição. As teorias analisadas são apresentadas em
dois eixos: 1) teorias de orientação psicanalítica, tais quais as de Erikson (1987), Knobel
(1992) e Aberastury (1992), que dão primazia aos elementos biológicos, como fatores
desencadeantes da crise da adolescência; e, 2) teorias de orientação sociológica, como
as de Groppo (2000) e Santos (1996), que explicam a crise a partir das mudanças sociais
e históricas. A análise sobre a chamada crise da adolescência, empreendida nesta
pesquisa, privilegia a compreensão da constituição dos conceitos de indivíduo e
sociedade, mostrando que esta oposição não é um dado natural, mas sim um processo
histórico. Apresentamos a possibilidade de compreensão da temática da crise da
adolescência, através do conceito de sujeito, proposto por Lacan, que prevê uma
dialética constitutiva. A adolescência é vista como parte desta dialética entre interno e
externo, própria da constituição do sujeito: o que era recoberto pelos dispositivos
societários (externo) passa a ser uma operação psíquica (interno). A crise da
adolescência é muito mais conseqüência das exigências subjetivas postas em
movimento pelos conflitos e contradições da sociedade, de que modificações próprias
do corpo biológico.
Palavras-chave: adolescência; adolescente; sujeito; indivíduo; psicanálise;
psicologia social; sociedade.
Abstract
This theoritical study attempts a reflection about what we use to call
adolescent`s identity crisis or crisis of adolescence. For this, it revisits theories about
adolescence considerated `tradicionals`, because they became reference about this
theme and included the dimensions of individual and society like a arranged pair of axes
in opposition. The analysed theories are presented in two axes: 1) theories of
psychoanalytical orientation, such as Erikson (1987), Knobel (1992) and Aberastury
(1992), they give primacy to biological elements, as factors that bring out the crisis of
adolescence; and, 2) theories of sociological orientation, such as Groppo (2000) and
Santos (1996), they explain the crisis since social and historical changes. The performed
analysis in this research, about crisis of adolescence, privileges the comprehension of
the constitution of subject and society concepts, showing that this opposition is not a
natural basis, but a historical process. We are presenting the possibility of the
comprehension of the crisis of adolescence through the concept of subject, proposed by
Lacan, who foresees a constitutive dialectic. Adolescence is seen as a part of this
dialectic between internal and external, it is proper of subject`s constitution: what was
recovered by societary devices (external) becomes a psychic operation (internal). The
crisis of adolescence is much more consequence of subjective exigences that were put in
motion by conflicts and contradictions of the society than proper changes of biological
body.
Key words: adolescence; adolescent; subject; individual; psychoanalysis; social
psychology; society.
Agradecimentos
Agradeço a todos que estiveram presentes, direta e indiretamente, e colaboraram
para a realização deste trabalho, através de incentivo, apoio ou sugestões a respeito do
tema.
Ao meu orientador, Raul Albino Pacheco Filho, por me ensinar a importância da
fidedignidade teórica sem deixar de estimular o posicionamento crítico e reflexivo,
fazendo-me compreender o que é um trabalho científico.
Aos colegas do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Sociedade, pelas
importantes e constantes discussões.
Aos professores da Banca Examinadora, Fernando Megale e Sergio Ozella, pelas
sugestões e críticas que tiveram grande valia.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
pelo financiamento desta pesquisa.
Ao Ricardo dos Santos, pelo incentivo às minhas idéias e acolhida profissional.
Ao Nadir, Tiago, Juliana, Carla, Netto, Aluísio e Renato, presentes em diversos
momentos do mestrado.
À Heloísa Gröff, exemplo de ética psicanalítica e sempre disposta ao diálogo.
À minha família: minha irmã Gesiele, que reapresentou Lacan para mim; meus
pais e também revisores de texto; e ao irmão e consultor em informática Gustavo.
À minha avó Lourdes, que deu suporte ao início de minha caminhada na
psicanálise e na pesquisa.
À Valéria, fonte de inspiração, lente que colore minha visão quando teimo em
enxergar a vida apenas em preto e branco.
Sumário
Introdução.......................................................................................................04
Capítulo 1 – Algumas aparições do sujeito adolescente na história ..........14
Os jovens na Grécia e Roma antigas..........................................15
A juventude da época medieval..................................................19
Aparições do jovem ‘moderno’..................................................26
Capítulo 2 – Visões ‘tradicionais’ sobre a crise da adolescência................38
A crise como formadora da identidade do adolescente..............38
O luto pelo corpo infantil no processo de constituição
adolescente..................................................................................47
As influências culturais e os rituais de passagem no processo
de constituição da adolescência..................................................58
Capítulo 3Sujeito, indivíduo e sociedade: entidades distintas?..............72
A indissociabilidade entre indivíduo e sociedade........................73
Mudanças na sociedade que favoreceram o individualismo ......85
O surgimento do indivíduo .........................................................93
Da relação entre indivíduo e sujeito
..........................................98
Capítulo 4 – A operação psíquica da adolescência: uma contribuição
psicanalítica...............................................................................110
O corpo na teoria psicanalítica é o biológico?............................111
Por uma concepção de sujeito não-relativista.............................123
A função simbólica dos rituais de passagem..............................130
Crise da adolescência: movimento dialético ou de oposição?....137
Considerações finais.......................................................................................164
Referências bibliográficas..............................................................................167
4
Introdução
A adolescência... corpos esculturais no auge de seu vigor físico, o despertar da
sexualidade, tempos de experimentação, luta por ideais, engajamento por um futuro
melhor. A adolescência... crises de identidade, angústia em relação ao amanhã, rebeldia,
ataque às figuras de autoridade, fase que ninguém entende. A adolescência... de que
crise estamos falando?
A julgar pela exposição que a mídia tem oferecido nos últimos anos, a
adolescência tem papel central na sociedade moderna. Temos revistas semanais voltadas
aos adolescentes (Todateen, Capricho...), o jornal A Folha de S. Paulo tem anos um
caderno chamado Folhateen, que discute as questões ‘típicas’ da vida adolescente, a
Rede Globo de Televisão mantém em seu programa dominical Fantástico um quadro em
que explora os comportamentos do adolescente em relação a relacionamentos, dinheiro,
autonomia e gostos musicais, além de uma série-novela (Malhação) voltada a
temáticas consideradas próprias dos jovens – há mais de dez anos em exibição com altos
índices de audiência. A Rede Cultura marcou época com a rie Confissões de
Adolescente, que mostrava a história de um pai as voltas com as mudanças que ocorriam
na família devido à adolescência de suas filhas. E, para citar apenas mais um exemplo,
lembremos da MTV, uma emissora que tem praticamente toda a programação voltada ao
público adolescente com: ‘músicas para adolescentes’, programas de paquera,
curiosidades e entrevistas com ícones dos adolescentes.
A exposição do adolescente na mídia sempre ressalta as características que são
julgadas como ‘internas’, próprias do período de vida pelo qual estão passando. Logo,
determinados temas abordados, como: sexualidade, relacionamentos, ciúmes, conflitos
com os pais, uso de álcool e drogas e gravidez, entre outras problemáticas, seriam
5
características ‘naturais’ do desenvolvimento do ser humano durante o período
adolescente. A visão presente, que parece majoritária, é que, para estes conflitos serem
superados, é necessário, inicialmente, um ‘amadurecimento’ – que só viria com o passar
dos anos –, e um processo ‘educativo’ que ensinasse aos jovens como realizar estas
tarefas. Tanto o é que estas revistas e jornais abrem espaço para a participação do
adolescente e contam com especialistas (geralmente médicos) que dão dicas para a
‘resolução’ dos problemas adolescentes. Mesmo o programa Malhação, apresenta forte
caráter educativo.
Impossível não nos lembrarmos da obra Emílio de Rousseau. A aposta,
celebrada pelo autor no século XVIII, de que o ser humano precisaria ser educado para
poder usufruir de sua liberdade, onde o ser humano aderiria a sua participação no
sociedade através de um contrato social, aparece através dos modelos educacionais que
estariam preparando o adolescente para poder viver em sociedade.
Assim sendo, a sociedade parece entender a adolescência como um período
único da vida, onde as experimentações tempestuosas referentes a relacionamentos,
sexualidade e escolha da profissão são inerentes a todos os indivíduos. Existe um
entendimento, no senso comum, que tornou justificável dizer: ‘sou assim porque sou
adolescente’.
É como se os adolescentes pudessem usufruir de uma liberdade poética
pertinente à idade a qual estão vivendo, que justificaria seus atos. São considerados
como se estivessem ‘de fora’ da sociedade, em um momento em que, ainda, não
precisam aderir às regras sociais; estão escolhendo o que querem ser.
Esta visão explicitada, presente no senso comum, não é muito distante da visão
de algumas áreas da ciência. A crise de identidade do adolescente é quase unanimidade
entre os especialistas que tratam do assunto, como uma oposição marcada entre o
6
desenvolvimento biológico que entraria em choque com o social. A maioria dos autores
procura reforçar a supremacia dos fatores biológicos enquanto outros debatem que a
ênfase está em torno do movimento histórico e social como formador do ser humano.
Entre os estudiosos, do tema adolescência, que pesquisam esta crise de
identidade do adolescente, tendo por base o desenvolvimento biológico como
desencadeador das questões adolescentes, parecem ser fundamentais as mudanças que
incluem a maturação sexual, o aparecimento dos caracteres sexuais secundários e o
pleno desenvolvimento físico e motor do corpo.
Nesta linha de pesquisa, consideramos Erik Erikson, que teve grande influência
na concepção da adolescência enquanto uma fase de crise. O autor procura conciliar as
dimensões biológicas e sociais.
À medida que os progressos tecnológicos ampliam cada vez mais o intervalo
de tempo entre o começo da vida escolar e o acesso final do jovem ao trabalho
especializado, a fase de adolescência torna-se um período ainda mais acentuado e
consciente; e, como sempre aconteceu em algumas culturas, em certos períodos,
passou a ser quase um modo de vida entre a infância e a idade adulta. Assim, nos
últimos anos de escolaridade, os jovens, assediados pela revolução fisiológica de sua
maturidade genital e a incerteza dos papéis adultos à sua frente, parecem muito
preocupados com as tentativas mais ou menos excêntricas de estabelecimento de uma
subcultura adolescente e com o que parece ser mais uma final do que uma transitória
ou, de fato, inicial formação de identidade. (Erikson, 1987, p. 128-129)
O autor apresenta a interação entre o biológico (a revolução fisiológica) e os
fatores presentes na cultura (maior tempo na escolarização e novas exigências do
mercado de trabalho) como fatores que interagem sendo os ingredientes da crise de
identidade do adolescente.
7
Porém, além desta solução, que visa juntar os fatores biológicos com os sociais,
existe uma tendência de alguns autores, inclusive da psicanálise, como Arminda
Aberastury, por exemplo, que coloca o desenvolvimento psicológico como diretamente
relacionado às mudanças no corpo, ou seja, uma base biológica é o que permite e
desencadeia as mudanças e a estruturação psicológica do ser humano. A tensão criada
na adolescência seria devido ao confronto do indivíduo com a sociedade repressora
que cerceia as possibilidades de desenvolvimento do adolescente, evidenciado pela
autora como um ser que solicita mudanças devido ao chamado biológico próprio da
fase.
Que motivo tem a sociedade para não modificar as suas rígidas estruturas,
para empenhar-se em mantê-las tal qual, mesmo quando o indivíduo muda? Que
conflitos conscientes e inconscientes levam os pais a ignorar ou não compreender a
evolução do filho? O problema mostra assim o outro lado, escondido até hoje
debaixo do disfarce da adolescência difícil: é o de uma sociedade difícil,
incompreensiva, hostil e inexorável, às vezes, frente à onda de crescimento, lúcida e
ativa, que lhe impõe a evidência de alguém que quer atuar sobre o mundo e modificá-
lo sob a ação de suas próprias transformações. (Aberastury, 1992, p. 16)
O trabalho psíquico é evidenciado, as mudanças presentes na adolescência
também, mas o que parece importante, nesta visão, é o modo pelo qual a sociedade
estaria indo contra o desenvolvimento ‘natural’ que o indivíduo deveria trilhar. Isso
poderia ser atribuído como a razão para a crise adolescente, na visão da autora.
De outro lado, existem posições que atribuem as mudanças que ocorrem na
estrutura da sociedade, na passagem para a modernidade, como as que colocaram o
jovem em meio à crise da adolescência. Mudanças como: o maior tempo de
escolaridade, a diminuição da força dos rituais de passagem e a maior especialização
exigida por uma sociedade altamente industrializada, seriam os fatores que ampliaram a
8
adolescência fazendo com que o sujeito adolescente entrasse em uma crise, pois mesmo
estando pronto a assumir o papel de adulto perante a comunidade, ser-lhe-ia negado este
lugar.
O mundo adulto moderno parece não ser tão seguro para as crianças como
antigamente, e alguns pais manifestam o desejo de retê-las no período da infância,
agora vista como um tempo lúdico, de lazer e de estudos. O processo de transição
para a puberdade é concebido como uma época de grandes mudanças emocionais e
morais, e a noção de adolescência se liga à idéia de um tempo de turbulência e crise.
Contudo, não se pode esquecer que as crianças e adolescentes eram vistos como
organismos que precisavam ser mantidos financeiramente pelos pais, muitos dos
quais se angustiavam com a diferença entre sua renda e as despesas com a criação
dos filhos – o custo de criação entra para a contabilidade doméstica. (Santos, 1996, p.
137)
Deste modo, as transformações históricas e culturais pelas quais passam a
família e a economia de uma cultura parecem ser os fatores determinantes para a
aparição do adolescente e sua crise.
Ao pensar a questão da crise de identidade da adolescência, encontramos os
fatores desencadeantes dispostos num par de eixos opostos. É como se houvessem dois
pólos contrários, que entram em conflito e desencadeiam a manifestação de crise no
adolescente. O esforço de Erikson está em teorizar a crise adolescente buscando sair do
estereótipo de crise enquanto processo problemático, tentando formular a questão
enquanto momento crucial de mudanças. O autor busca indícios tanto presentes na
estrutura biológica do ser humano quanto na cultura para entender o processo que se
inicia na adolescência. Chega a falar na necessidade da psicanálise e da psicologia
social superarem barreiras para entender a questão: a crise de identidade da adolescência
9
surge por ser inata ao ser humano ou ocorre porque temos a expectativa de seu
surgimento?
Anos se passaram após seus estudos e ainda encontramos uma visão dicotômica
entre indivíduo e sociedade. Autores da psicologia e da psicanálise, que aqui
analisaremos, como Knobel (1992
e 1992a), Aberastury (1992) e Osório (1992),
sustentam a tese de que a adolescência e suas manifestações só existem devido à
presença de uma estrutura biológica desencadeadora, que os processos sociais viriam
a facilitar ou dificultar este processo. De outro lado, autores da sociologia como
Abramo (1994), Groppo (2000) e Santos (1996) destacam que a ausência de rituais e a
mudança na forma de socialização permitiram o desenvolvimento do que chamamos de
crise da adolescência.
A questão ainda permanece sem ser superada, quando é tratada como um duelo
entre entidades opostas – indivíduo e sociedade. Grande parte da ciência ainda
indivíduo e sociedade como estruturas independentes na qual uma determina o
funcionamento da outra. Penso que é necessário dar um passo à frente nesta questão e
podemos fazê-lo através do estudo do processo de crise da adolescência.
As vertentes que acusam Freud de ter ficado preso a um biologicismo na
explicação da sexualidade humana e também em relação à puberdade talvez não tenham
compreendido o caminho que nos foi aberto pelo autor.
Freud (1905), em sua obra que discute a sexualidade humana, Três ensaios sobre
a teoria da sexualidade, coloca ênfase especial na fixação da energia libidinal em
determinadas fases (oral, anal, genital) até atingir o primado da genitalidade, com o
desenvolvimento da sexualidade sendo completado.
Com a chegada da puberdade, operam-se mudanças destinadas a dar à vida
sexual infantil sua forma final normal. O instinto sexual fora até então
10
predominantemente auto-erótico; encontra agora um objeto sexual. Sua atividade até
então origina-se de diversos instintos e zonas erógenas distintas, que,
independentemente uma das outras haviam buscado determinada espécie de prazer
como seu único objetivo sexual. Agora, contudo, aparece um novo objetivo sexual e
todos os instintos parciais se combinam para atingi-lo, ao passo que as zonas
erógenas ficam subordinadas ao primado da zona genital. (Freud, 1905, p. 213)
Pela colocação acima e por uma análise geral deste trabalho de Freud, seria
possível pensar que a maior influência sobre a adolescência estaria nos processos de
maturação sexual, que teriam uma vinculação com o desenvolvimento do ser humano.
Porém, é necessário analisar a época em que Freud escreveu tal obra e levar em
consideração um prefácio, acrescentado em 1914, que parece na busca de um
distanciamento, ainda maior, das pesquisas em psicanálise das do campo da medicina,
procurando estabelecer um campo de estudo próprio à investigação da subjetividade
humana:
Devo acentuar, entretanto, que este trabalho se caracteriza não por se
basear inteiramente na pesquisa psicanalítica, como também por ser deliberadamente
independente das descobertas da biologia. Preconceitos, quer derivados da biologia
sexual genital, quer da de determinadas espécies de animais, neste estudo que se
preocupa com as funções sexuais dos seres humanos e que se tornou possível por
meio da técnica da psicanálise de fato, meu objetivo tem sido mais o de descobrir em
que medida a investigação psicológica pode esclarecer a biologia da vida sexual do
homem. (Freud, 1905, p. 130)
Freud aponta um caminho que não nos leva a pensar somente na determinação
biológica, pois, conforme afirma, a investigação psicológica é que nos levaria ao
entendimento da biologia sexual, e não o contrário. Ou seja, concede primazia à
investigação através da via do sujeito para entender sua relação com as questões
biológicas e sociais.
11
Com as considerações acima apresentadas, este estudo revisita alguns dos mais
importantes autores que elaboraram teorias a respeito da adolescência, buscando
caracterizar o modo próprio pelo qual apreendem e buscam explicar aquilo que é
denominado crise da adolescência ou crise de identidade do adolescente. Como já ficou
insinuado por uma primeira aproximação a algumas dessas propostas, um aspecto
importante nessa caracterização refere-se ao modo pelo qual eles levam em conta as
dimensões de indivíduo e de sociedade. Concede-se privilégio a alguma delas? São
tratadas como pólos contraditórios ao longo de um eixo em que se inscreve uma
oposição? Concebem possibilidades de superação dos conflitos daí originados? Um
outro aspecto igualmente importante, intrinsecamente conectado ao anterior, refere-se
ao modo pelo qual são consideradas as dimensões biológico e social do adolescente. As
mesmas perguntas permanecem relevantes para este novo par de pólos referentes ao
tema em questão.
Não é a intenção de se proceder a um levantamento bibliográfico exaustivo dos
autores que trabalham com a questão do adolescente. A escolha foi feita a partir do
critério de relevância do autor, mas também pelo fato de suas teorias se mostrarem úteis
à discussão das diferentes maneiras pelas quais as distintas teorias analisam os pólos
indivíduo x sociedade e biológico x social, em suas compreensões explicativas do tema
da crise da adolescência. Disto decorre que um fator específico da referência da
dissertação, é discutir as possibilidades de se considerar esses pólos, não como
elementos separadamente exclusivos, mas como integrantes de uma estrutura que
desaconselha considerá-los independentemente, em separado de si.
Autores psicanalistas são abordados com maior amplitude neste estudo em vista
de ser esta a orientação teórica do autor da presente dissertação.
12
Este trabalho, tem início com um capítulo que aborda algumas aparições do
jovem no decorrer da história, onde será discutido de que forma o jovem era visto pela
sociedade e qual lugar era endereçado a ele. Passaremos pelo jovem na era antiga, onde
havia a noção de que o indivíduo deveria agir em função da ordem social, passando pela
época medieval, onde começa a aparecer uma maior valorização das famílias e da
continuidade da família através dos filhos; e estes começam a ocupar uma posição
diferente, não mais atuando em função dos objetivos da sociedade mas sim, os da
família. Dessa forma chegamos ao século XX, onde o jovem aparece como portador das
esperanças e das ameaças em relação à sociedade, uma época onde é cobrada uma maior
individualização dos adolescentes, que estes busquem e sustentem seus próprios sonhos.
Em um segundo capítulo, são apresentados alguns autores que trabalham com
uma visão que consideramos como ‘tradicional’ sobre a adolescência, como Erik
Erikson, que é o nome mais referenciado sobre este tema. A seguir serão expostas
posições que defendem que a crise do adolescente ocorre devido ao conflito dos fatores
do desenvolvimento fisiológico e psicológico em confronto com as exigências sociais,
posição defendida por Arminda Aberastury e Mauricio Knobel. Também serão
apresentados alguns autores que trabalham com a questão do impacto das
transformações históricas e sociais como desencadeadoras da crise do adolescente, e dão
atenção, em especial, às transformações das instituições sociais e à questão dos rituais
de passagem, que marcavam a passagem da condição de criança a de adulto.
A concepção da indissociabilidade entre indivíduo e sociedade é estudada em
um terceiro capítulo, utilizando autores como Nobert Elias e Louis Dumont. Este
último, aliás, também é a referência para o estudo de como o individualismo ganhou
formas e superou o holismo presente nas sociedades tradicionais. Percorrer a questão da
impossibilidade de considerar indivíduo e sociedade como entidades distintas, nos
13
possibilitará chegar à noção de sujeito, segundo a psicanálise. Para esta articulação entre
sujeito, indivíduo e sociedade, utilizaremos Althusser e Paulo Silveira, para fazer
interlocução com as proposições de Dumont e Elias.
O último capítulo traz uma análise das proposições teóricas sobre a crise da
adolescência dos autores apresentados no segundo capítulo, através da conceituação
teórica do que é a adolescência segundo a psicanálise, conforme autores como Serge
Lesourd, Sonia Alberti, Rodolpho Ruffino e Contardo Calligaris. A discussão também
trará uma analise sobre a oposição entre indivíduo e sociedade, apresentando uma
possibilidade de superação desta visão dicotômica através do conceito de sujeito. Deste
modo, a explanação sobre sujeito, iniciada no terceiro capítulo, será ampliada com
base na obra de Jacques Lacan e interlocutores (como Pierre Bruno, Slavoj Zizek e
Paola Valderrama) permitindo vislumbrar a questão da crise da adolescência de forma
a superar a contradição colocada como um par de eixos considerados como opostos
(indivíduo e sociedade ou biológico e social) e apresentar a indissociabilidade
interno/externo presente na dialética constitutiva do sujeito.
14
1 - Algumas aparições do sujeito adolescente na História
O objetivo deste capítulo é realçar algumas aparições do adolescente no
transcorrer da história, acompanhado das interpelações feitas pela sociedade, destacando
a imagem considerada como sendo ‘típica’ do adolescente em determinada sociedade e
momento histórico. Nestes recortes selecionados, poderemos observar algumas
convocatórias que a sociedade dirige ao sujeito na condição adolescente.
Estas interpelações ao sujeito feitas pela sociedade, apresentam uma certa
variação de acordo com a sociedade que estiver sendo observada, o que poderá subsidiar
nossos estudos em relação à progressiva separação que houve entre indivíduo e
sociedade vistos, atualmente, como entidades distintas.
Embora varie a forma como a juventude
1
é descrita em cada época, a
convocatória ao jovem é encontrada em todas as sociedades. Poderemos notar que nas
sociedades mais antigas, os jovens, assim como os demais participantes da cultura em
questão, vivem como se a construção e continuidade da sociedade fossem a finalidade
de sua existência. São preparados para assumir um lugar público e uma função que traga
ganhos ao meio do qual fazem parte. Enquanto, na sociedade moderna, a noção de
indivíduo ganha espaço e, a continuidade do ser, não se dará mais através da sociedade
mas sim de projetos supostamente ‘individuais’: o adolescente deve encontrar o ‘seu’
lugar na sociedade.
1
Embora não exista uma definição homogênea para os termos adolescência e juventude, adotarei a
distinção apresentada por Matheus (2002), que relaciona o uso do termo adolescência como mais comum
no campo da psicanálise e da psicologia enquanto juventude seria mais usado na sociologia e na história.
Segundo o autor: “... o termo adolescência parece ser privilegiado no campo da psicologia e da
psicanálise, que tem como foco a singularidade do sujeito (toma-se o indivíduo como ser psíquico,
pautado pela realidade que constrói e por sua experiência subjetiva), ao passo que a noção de juventude é
mais usada na sociologia e na história, que priorizam uma leitura do coletivo (como corpo social
determinado pelo contexto do qual faz parte e que é resultado da história que o precede).” (Matheus,
2002, p. 83).
15
Procuraremos destacar algumas convocatórias, em diferentes sociedades e
tempos históricos, dirigidas ao sujeito no momento em que é solicitado que deixe o
meio familiar para assumir um lugar na rede social.
Os jovens na Grécia e Roma antigas
A Grécia antiga tinha como valores marcantes em sua sociedade a busca de uma
vida social considerada como equilibrada, procurando encontrar o prazer e a arte em
viver. Para que os seus cidadãos pudessem atingir este estágio, era suposta a
necessidade de um desenvolvimento de determinadas habilidades, e o momento
considerado ideal para este treinamento para a vida, era a juventude.
A cidade, para os gregos, é como a expressão de uma vida social bem
regulada. Trata-se de uma instituição tão comum e tão profundamente ligada a uma
situação particular de cultura, a um modo singular de viver em comunidade, que é
difícil defini-la e caracterizá-la, a não ser empreendendo, à maneira de Aristóteles,
uma tipologia das instituições sociais. A coluna vertebral da vida em sociedade é a
paidéia, a educação, a distinção que permite o acesso dos jovens a um saber
partilhado sem o qual a cidade não poderia existir. A cidade depende de um
equilíbrio de instituições e práticas que supõe uma arte de viver, uma estilização dos
comportamentos, um savoir-faire social encarnado na noção de paidéia. (Schnapp,
1996, p. 19)
Os jovens recebiam uma educação especial para atingir um saber social, que os
preparava para um ideal de vida comunitária. Este modelo de educação não é o mesmo
que encontramos, nos dias atuais, nas instituições educacionais. A preparação oferecida
aos jovens visava não somente o aprendizado das letras e da oratória, mas o treinamento
militar e a educação sexual. Nesta, inclusive, o eram encontradas fronteiras entre o
16
amor heterossexual e o homossexual, sendo comum a iniciação dos mais jovens ser feita
pelos mais sábios. A prática da pederastia era comum na sociedade grega.
O conjunto de treinamentos de habilidades para a vida feitos na juventude,
buscando a preparação do sujeito para assumir a condição de um cidadão, integravam a
noção de paidéia.
A paidéia não busca somente a adaptar o cidadão à cidade. Ela deve
contribuir para revelar qualidades humanas presentes em estado virtual em todos os
futuros cidadãos, mas que precisam ser descobertas e desenvolvidas por meio de
treinamentos específicos. (Schnapp, 1996, p. 19)
A paidéia era um processo para conduzir o jovem a um discernimento entre
causas e efeitos, o desenvolvimento de um saber que o levasse a práticas consideradas
dignas de um cidadão integral. A paidéia visava a formação do cidadão de virtude (um
cidadão completo), estabelecer solidariedade entre os jovens e fortalecer as classes
etárias. Assim, vale a pena destacar alguns dos valores que eram vistos nos jovens. Na
época não era o belo que era destacado, mas sim o forte e o corajoso, sendo a juventude
sinônimo de disposição e vigor físicos. Este vigor era sinônimo de coragem para a
passagem para a vida pública, ou seja, no sujeito grego eram valorizadas características
que trouxessem benefícios à comunidade.
Existia uma grande diferenciação no lugar a ser ocupado pelos jovens do sexo
masculino e do sexo feminino na sociedade grega. Enquanto a preparação para se tornar
cidadão e tomar parte da vida política, citadas nos parágrafos anteriores, era reservada
aos homens, a mulher não ocupava este lugar. Por outro lado, esta exclusão da mulher
da pólis não significava que as jovens estavam excluídas de rituais que as preparassem
para seus novos papéis na condição de adultas. Schnapp cita um ritual que marcava a
iniciação das jovens gregas:
17
Não faltavam provas históricas da importância das iniciações femininas na
Grécia. O ritual das arktèia, em Brauron, é um dos mais conhecidos. Nesse santuário,
a alguns quilômetros de Atenas, meninas muito jovens (menos de dez anos),
cuidadosamente escolhidas, era reunidas para participar das festas em honra da
‘ursa’: elas deviam ‘imitar a ursa’ antes de seu casamento. Imitar a ursa era participar
de rituais que envolviam animais selvagens, práticas de caça, disfarces animais.
(Schnapp, 1996, p. 52)
Podemos observar que embora houvesse uma preparação para ocupar lugares
diferenciados o jovem era preparado para assumir seu lugar na vida pública e política
e, a jovem, para a família –, a juventude em geral era considerada um momento de
preparação na sociedade grega.
A Roma antiga também reserva suas peculiaridades na caracterização que faz do
jovem e também podemos notar o período preparatório presente em sua cultura. É fácil
perceber que o jovem ocupava um lugar específico no mundo romano, a começar, pela
maneira como era estruturada a cobrança de impostos no mundo romano, que tomava
como base as fases da vida. Em cada fase, existia um imposto específico.
... no tesouro de Ilícia, que os romanos chamam de Juno Lucina, para os que
nasciam; no de Afrodite do bosque, que chamam Libitina, para os que morriam; no
da Juventude para os que começavam a alcançar a idade adulta . (Fraschetti, 1996, p.
70)
Porém, embora a divisão em períodos da vida fosse adotada para o Estado cobrar
seus impostos, não havia um consenso sobre a correspondência entre a idade e as fases
da vida, nem mesmo as nomenclaturas das faixas etárias eram as mesmas. Dependendo
do pensador invocado, havia termos diferentes e classes etárias distintas. Chama a
18
atenção, também, o uso do termo juventude para faixas etárias onde, hoje, designamos
de idade adulta.
... segundo Varrão, em Roma continuava-se puer até os quinze anos, a
adolescência (adulescentia) durava dos quinze aos trinta, a juventude (iuventa) dos
trinta aos 45 anos. Com leves alterações, para Isidoro de Sevilha, no início do século
VII d. C., a infância durava até os sete anos, a pueritia dos sete aos catorze, a
adolescência (adulescentia) dos catorze aos 28, a juventude (iuventus) dos 28 aos
cinqüenta anos. (Fraschetti, 1996, p. 70)
O final da adolescência era marcado após o uso da toga viril e os jovens romanos
começavam o tirocínio que era uma espécie de aprendizagem para a vida adulta. Os
principais valores buscados nos jovens eram habilidades para a caça, esgrima, equitação
e os treinamentos para a vida adulta eram marcados por exercícios formadores do corpo
e do espírito. Porém, assim como na Grécia, a classificação etária e os treinamentos não
eram destinados a todos os jovens, há aqui também a diferenciação entre os sexos.
Fraschetti afirma que as classificações adotadas acima valiam apenas para a
idade dos homens, para as mulheres romanas o critério utilizado era outro, baseado na
condição física ou social das mulheres. Assim, eram classificadas como virgines (ou
seja, pela condição física) antes do casamento, após o matrimônio era designadas como
uxores; quando tinham filhos se tornavam matronae, estas baseadas na condição social.
Já na velhice, eram genericamente chamadas de anus.
Nestas duas sociedades, tanto na forma como estipulam a passagem através de
rituais quanto no período preparatório a que os jovens são submetidos, parece evidente o
valor dado à formação do jovem para a atuação na vida política e social. A educação
não era somente para o trabalho, mas formadora de um cidadão segundo os valores que
poderiam elevar o nível de desenvolvimento da sociedade. O processo educacional e de
19
treinamento parecem o estar voltados ao indivíduo, mas para a harmonia social e a
busca em desenvolver uma sociedade ideal.
A figura do jovem aparece marcada pela preparação em assumir um lugar, mas
não um lugar enquanto indivíduo, mas uma função que alimente a estrutura vigente da
sociedade. A finalidade do processo de formação do jovem parece ser a educação para a
sociedade, ou seja, a sociedade é considerada a continuidade das pessoas, todos agem
em função da continuidade da cultura da qual fazem parte.
A juventude da época medieval
Na Idade Média italiana, o termo juventude designava um estado no qual as
pessoas se encontravam necessitadas de atenção e cuidado, merecedores de orientação e
desenvolvimento espiritual. Os jovens eram marcados especialmente pela situação
sócio-econômica de dependência. Para Frota (2001), esta imagem, de dependência e de
merecedores de muitos cuidados, foi formada pelo fato das juventudes anteriores às da
época medieval serem conhecidas como irresponsáveis e sem limites, gastando muito
dinheiro com luxúria, fazendo algazarras e criando desordens pela cidade.
Segundo Frota (2001) havia uma suspeita em relação às ambições e aos
impulsos dos jovens, com isto apesar de poderem participar da vida política e social,
eram proibidos de assumir funções políticas e sociais.
Interessante perceber que, mesmo participando da vida política, os giovani
não podiam deliberar sobre nenhum assunto, o que ressalta a desconfiança que
pesava sobre eles. Nem a morte do pai, no caso da burguesia ou da aristocracia,
determinava a saída deste grupo. (Frota, 2001, p. 14)
20
Existia um temor de que pudessem constituir uma cultura juvenil, portanto
continuavam sob a responsabilidade dos adultos. A manutenção do status de
dependência vinha, então, numa tentativa de conter a ameaça presente no suposto
potencial de rebeldia identificado com a juventude. A única função social que poderiam
ocupar era a militar, pois era uma alternativa criada para mudar o comportamento
intempestivo dos jovens e, ainda, sob a égide da disciplina, aproveitar a rebeldia juvenil
em uma função considerada como social. que os jovens eram identificados como
portadores de determinadas características como a energia, a tentativa era de corrigir os
jovens, sendo o modelo militar o paradigma da boa educação e formação preparatória
para a idade adulta.
Com o advento da cavalaria na Itália, em meados do século XIII, novos valores
culturais foram incorporados, como a dignidade cavalheiresca. Segundo Frota (2001),
os jovens representavam um mal e uma ameaça aos valores da sociedade, para que fosse
possível uma modificação e estes se enquadrassem no ideal societário, deveriam ser
educados dentro do ideal cortês. Mesmo com as modificações que haviam surgido, com
a incorporação do treinamento militar e o controle das festas juvenis, a mudança de
comportamento dos jovens foi descrita como lenta e conflituosa.
A consolidação em um novo sistema de valores foi tomando novas formas a
partir da metade do século XV, quando a Itália cortesã exalava o sentimentalismo
amoroso proveniente do amor cortês. O sistema de valores foi sendo modificado e a
função social da juventude italiana toma formatos do amor cortês, acompanhado pela
valorização da dignidade e da valentia provenientes da cavalaria. Enquanto na época da
Roma antiga o treinamentos dos jovens valorizava a formação do cidadão, na época
medieval, com estes novos valores disciplinares cavalheirescos, o valor estava no
ímpeto, na coragem e na ousadia. Frota (2001) afirma que, ainda na Idade Média, com o
21
avanço do amor cortês e da cavalaria, a imagem que iria se formar da juventude era a do
jovem digno e apaixonado, gentil e corajoso.
Para ampliar a questão da Idade Média para além da Itália, a obra História social
da criança e da família de Ariès pode nos ajudar. Em seus textos, o autor relata
observações feitas sobre o período e as mudanças que ocorreram, como precursoras do
modelo de família e de criança que temos na modernidade.
Destas mudanças, destaca o surgimento do conceito de idade, com a inscrição
dos nascimentos nos registros paroquiais da França, por imposição do rei Francisco I,
no século XVI, sendo que este registro inicialmente era restrito às camadas mais
instruídas da população que passavam pelos colégios. Durante o século XVI e no século
XVII começam a surgir os registros nas escolas e, nos retratos, começam a ser datadas
as idades. Ainda no século XVI, apesar desta valorização da idade nos registros da
família, ainda era considerado boas maneiras dizer a idade com reservas. Estes registros,
para além dos registros familiares, aparentam ter sido uma das primeiras marcas de uma
busca maior de individualidade.
Tanto, que o autor propõe que, atualmente, a identidade civil de uma pessoa está
ligada a três mundos: o do nome (localizado na mundo da fantasia), o do sobrenome
(relativo à tradição) e a idade (que chama de mundo da exatidão e do número).
As idades da vida na época medieval não estavam atreladas às etapas biológicas
mas sim às funções sociais que eram desempenhadas. Eram nomeadas em latim, sete
diferentes etapas etárias
2
, enquanto em francês haviam apenas três: enfance, jeunesse e
vieillesse. Dentro deste quadro, presente na Idade Média, Ariès procura mostrar que, nas
palavras francesas, não existia uma diferenciação entre a juventude e a adolescência:
2
As faixas etárias: enfant (0 - 7 anos), pueritia (7 - 14 anos), adolescencia (14 - 28 anos), juventude (28 -
45 anos), senectude (45 - 70 anos), velhice (50 70 anos) e senies (entre a velhice e a morte). Nota-se
inclusive, que faixas etárias se sobrepõem, não há uma divisão clara.
22
Observamos que, como a juventude significava força da idade, ‘idade
média’, não havia lugar para a adolescência. Até o século XVIII, a adolescência foi
confundida com a infância. No latim dos colégios, empregava-se indiferentemente a
palavra puer e a palavra adolescens. (Ariès, 1981, p. 41)
Essa não diferenciação entre a infância e a adolescência decorria da pequena
importância que era dada aos fenômenos biológicos, sendo que ninguém havia pensado
em traçar o limite entre infância e adolescência a partir do advento da puberdade. O que
marcava a infância era a idéia de dependência, e o vocabulário que era usado para
descrever as pessoas que se encontravam em tal estado continuava ligado à função
social de cada um. As palavras que eram usadas para descrever estas pessoas na
condição que hoje chamamos de infância (fils, valets e garçons) eram palavras usadas
para designar relações feudais ou senhoriais de dependência. Só se deixava a infância ao
sair da relação de dependência.
No século XVIII começa uma maior diferenciação entre a infância e a
adolescência, embora ainda exista certa confusão entre os dois conceitos. Porém, Ariès
salienta que a valorização do jovem enquanto ideal da sociedade viria durante os
séculos XVI e XVII quando a imagem deste passou a ter maior valor, quando o homem
tido como um ideal era o jovem, como o exemplo do oficial com a echarpe, que tinha
uma idade próxima ao do que é convencionado chamar, atualmente, de juventude.
Ao fazer um estudo sobre a representação artística medieval, Ariès conclui que
esta não reconhecia o conceito de infância ou não o representava em suas produções
artísticas. Detecta três tipos de aparições das crianças em retratos da época, onde: num
primeiro tipo, as crianças era representadas como miniatura dos adultos, com traços e
musculatura de um adulto; um segundo tipo era a representação do menino Jesus ou a
Nossa Senhora quando menina, até então este era o único vínculo da infância com o
sentimento de encanto por ela, que perdurou até o século XIV; e num terceiro tipo,
23
destaca a arte gótica, onde a criança nua representava a inocente chegada ao mundo da
alma.
O surgimento da iconografia religiosa da infância, para retratar o nascimento da
Virgem Maria durante os séculos XV e XVI, foi o que desencadeou a iconografia leiga
e o retrato de crianças. Com isto, embora a mortalidade infantil continuasse com altas
taxas, a influência religiosa fez notar que a criança também tinha alma, Ariès atribui isto
a uma cristianização dos costumes.
Até então, era comum os adultos e as amas brincarem sexualmente com as
crianças, Ariès (1981) descreve, inclusive, que no diário do médico de Luís XIII,
relatos sobre a ama que sacode seu pênis e ele cai em gargalhadas. O autor diz que na
sociedade muçulmana, por ter sido mantida alheia ao progresso científico e, também, à
reforma moral, existe o hábito de brincar com o sexo das crianças.
Ariès (1981) atribui estas mudanças, ocorridas a partir do século XVI, aos
educadores, que começaram a impor suas concepções e escrúpulos, distribuindo versões
censuradas de livros clássicos. Já no século XVII não eram mais apenas moralistas
isolados mas toda a prática pedagógica se volta para a iconografia religiosa e práticas de
devoção, que resultam na concepção de inocência infantil. Se, conforme Ariès coloca,
até por volta do século XIII o conceito de infância era bastante indefinido e pouco
representado em retratos, com o progressivo aumento da importância da família na
estrutura da sociedade, a infância passa a ser observada como a continuidade dos
membros da família. Esse reconhecimento do conceito de infância reflete também a
nova concepção da religião, de que a criança também possui alma. Concomitante ao
movimento de filósofos como Rousseau, acredita-se que a criança nasce inocente e,
portanto, é tarefa dos educadores garantir que sejam guiados por moral que procurasse
preservar essa inocência que supunham ser própria do ser humano enquanto infante.
24
O sentido de inocência infantil resultou portanto numa dupla atitude moral
com relação à infância: preservá-la da sujeira da vida, e especialmente da sexualidade
tolerada quando não aprovada entre os adultos; e fortalecê-la, desenvolvendo o
caráter e a razão. Pode parecer que existe uma contradição, pois de um lado a
infância é conservada, e de outro é tornada mais velha do que realmente é. Mas essa
contradição existe para nós, homens do século XX. Nosso sentimento
contemporâneo da infância caracteriza-se por uma associação da infância ao
primitivismo e ao irracionalismo ou pré-logismo. Essa idéia surgiu com Rousseau,
mas pertence à história do século XX. apenas muito pouco tempo ela passou das
teorias dos psicólogos, psiquiatras e psicanalistas para o senso comum. (Ariès, 1981,
p. 146)
Ariès parte deste ponto para declarar que o conceito de infância, que até então
não existia, começa a tomar contornos, através dos moralistas e educadores do século
XVII e vai inspirar as correntes da educação até o século XX. O erro dos adultos havia
sido acostumar-se à leviandade das crianças, mas era necessário conhecê-la para corrigi-
la. Segundo o autor, os educadores e psicólogos do século XX irão se guiar por este
conceito de infância.
Com estas modificações, a família teve sua estrutura alterada profundamente, na
mesma medida em que mudou as relações internas com a criança.
A criança aprendia pela prática, e essa prática não parava nos limites de uma
profissão, ainda mais porque na época não havia (e por muito tempo não haveria)
limites entre a profissão e a vida particular; a participação na vida profissional
expressão bastante anacrônica, aliás acarretava a participação na vida privada, com
a qual se confundia aquela. Era através do serviço doméstico que o mestre transmitia
à criança, não ao seu filho, mas ao filho de outro homem, a bagagem de
conhecimentos, a experiência prática e o valor humano que pudesse possuir. (Ariès,
1981, p. 228)
25
A transmissão de aprendizagem não era feita pelas escolas, sendo garantida a
transmissão do conhecimento entre gerações pela participação familiar da criança na
vida dos adultos. A partir do século XV, a realidade da família se transformaria de uma
forma lenta e gradual devido à extensão da freqüência escolar, a educação passa a ser
oferecida pela escola, deixando de ser um privilégio dos clérigos se tornando o
instrumento de iniciação social de toda a sociedade, presente na passagem do estado de
infância ao adulto. Além destes fatores, destaca que houve uma maior necessidade dos
pais em não ficarem separados dos filhos, ligando o sentimento de família ao de
infância, agora a criança era o centro da família:
O clima sentimental era agora completamente diferente, mais próximo do
nosso, como se a família moderna tivesse nascido ao mesmo tempo que a escola ou,
ao menos, que o hábito geral de educar as crianças na escola. (Ariès, 1981, p. 232)
Esta nova preocupação colocou a família como o centro da sociedade, deixando
de ser apenas uma instituição privada com direito a transmissão dos bens e do nome. A
preocupação não estava apenas em criar o filho mais velho, mas proporcionar a todos,
meninos e meninas uma preparação para a vida. A nova estrutura familiar encontrou
forte auxílio da educação formal na escola para a empreitada desta tarefa. Aos poucos
notamos que o centro foi sendo deslocado das pessoas em função da sociedade para o
surgimento de uma força na família. E, a própria família, faz mudanças começando a
valorizar mais cada membro como a possibilidade da continuidade de sua história.
Parece que, aos poucos, as histórias começam a se individualizar mais.
26
Aparições do jovem ‘moderno’
Santos (1996) considera que Ariès (1981) teve um grande mérito que foi o de
mostrar que as categorias de infância, adolescência e família não são constantes, variam
de acordo com as formações históricas e sociais, não estando presos a uma natureza
específica imutável. Estas mudanças nos conceitos sobre a criança, o adolescente e a
família ocorridas no período da Idade Média são consideradas pelo autor como
fundamentais, pois são o que nos faz entender estas categorias em suas configurações na
modernidade.
Para Santos (1996), a mudança na concepção de infância, na passagem das
sociedades tradicionais para a era moderna, pode ser resumida como: a criança que,
como o adulto, era vista como um membro da linhagem, torna-se gradativamente um
indivíduo; ela passa de uma condição – como um estágio no desenvolvimento humano –
para um estado.
Nesse estado, a infância é um conceito construído como uma abstração das
propriedades individuais de cada criança, através de um processo de desnaturalização
e particularização. O modo pelo qual a sociedade ordenava e significava os ciclos da
vida também mudou, para acomodar as alterações demandadas pela sociedade
industrial moderna na maneira de socializar as crianças, significativamente diferente
das antigas sociedades agrárias. A infância continua a ser vinculada à fase de
aprendizagem; contudo, prolonga-se e ganha subdivisões: emerge a ‘criança de meia-
idade’ e a adolescência, fases dedicadas à preparação para vida adulta. (Santos, 1996,
p. 125)
As novas formas de socialização da criança e do jovem, devido à nova estrutura
que tomava conta da sociedade são fatores fundamentais, na visão do autor, para
propiciar o surgimento da adolescência. Até então, não havia um tempo específico de
27
preparação para a entrada na vida adulta, que começa a acontecer com a instituição da
escolarização e de outros meios preparatórios.
A infância e a adolescência, como tempo de espera e preparação para a vida
adulta, se tornou possível com a emergência das cidades, o que mudou
substancialmente as formas de socialização das crianças. (Santos, 1996, p. 147)
Santos (1996) afirma que, apenas com Rousseau (1712-1778), a filosofia
apresentou um programa educacional para a infância, sendo ele considerado o ‘pai’ dos
conceitos modernos de infância e adolescência. Caso Santos esteja se referindo à
educação formal, talvez tenha razão, porém, como abordamos anteriormente, a
educação estava presente na Grécia antiga e em Roma também. Embora os projetos
educacionais fossem diferentes, a preocupação em desenvolver habilidades no indivíduo
não é nova, como pudemos observar.
Para Rousseau (1999) a adolescência é vista como um estado específico, com
características próximas das que encontramos nas descrições atuais. É descrita como um
segundo nascimento, uma fase de diferenciação sexual entre a criança e o homem pois,
para ele, até a idade núbil não nada que diferencie as crianças dos dois sexos. O
primeiro nascimento é para a espécie e o segundo para a vida. Rousseau (1999)
descreve a fase adolescente como um tempo de crise, onde o púbere não se encaixa nem
como criança nem como homem, sendo um período de curta duração mas com
influência duradoura. As metáforas que Rousseau (1999) usa são metáforas fortes, que
anunciam uma fase de turbulência e perigo.
Santos (1996) considera as idéias de Rousseau mais como contribuições do que
como limites de pensamento, pois, pensa a infância e a adolescência como um estado
particular e não como uma condição natural do ser humano.
28
Rousseau (1999) em seu livro Emílio, que foi finalizado em 1759, destaca a
educação de um humano desde o nascimento até a chegada da idade adulta. Como nossa
análise recai sobre a crise da adolescência, destaco uma passagem onde o autor diz que
o homem não nasceu para ser sempre uma criança, e a passagem a adulto, envolve uma
crise, que apesar de considerar curta, deixa muitas influências no ser que a atravessa.
Descreve este momento de crise como das paixões e do perigo, o que torna o
adolescente quase indisciplinável.
Aos sinais morais de um humor que se altera, somam-se mudanças sensíveis
na figura. A fisionomia desenvolve-se e é marcada por um caráter; o algodão raro e
leve que cresce nas faces do menino ganha cor e consistência. Sua voz muda, ou
antes, perde-a; ele não é nem criança, nem homem e não pode ter a voz de nenhum
dos dois. Seus olhos, esses órgãos da alma que nada disseram até aqui, ganham
linguagem e expressão; um fogo nascente os anima, seus olhares mais vivos ainda
têm uma santa inocência, mas já não têm sua primeira imbecilidade; já sente que eles
podem dizer demais; começar a saber baixá-los e corar; torna-se sensível antes de
saber o que sente; inquieta-se sem razão para isso. Tudo isso pode chegar lentamente
e ainda vos dar tempo, mas se sua vivacidade se torna muito impaciente, se seu
ímpeto se transforma em furor, se ele se irrita e se enternece de uma hora para outra,
se chora sem motivo, para ele, seu pulso se acelera e seus olhos se incendeiam, se a
mão de uma mulher pousando sobre a sua o faz tremer... (Rousseau, 1999, p. 272)
É importante notar que várias das características do adolescente descritas por
Rousseau (1999) são próximas das que iremos encontramos descritas na crise de
identidade adolescente. O autor refletia essas idéias por volta de 1750, mas existem
especificidades em sua obra que mostram posições de pensamento próximas das
configurações que encontramos hoje na sociedade contemporânea. O autor acreditava
que o homem natural se transformava no homem político através do contrato social, ou
seja, como a visão atual dicotômica entre indivíduo e sociedade, existe uma adesão do
29
indivíduo ao social. Destaca também valores como a liberdade, tentando conciliar a
liberdade do indivíduo e da sociedade.
Assim como considera Rousseau como o ‘pai da adolescência’, Santos (1996)
enxerga Stanley Hall como o ‘padrinho’
3
da concepção de adolescência. Cita a obra
Adolescence (1904) como um marco para a psicologia. Estes escritos são vistos por
Santos (1996) como a transposição da teoria biológica de Darwin para o campo da
psicologia, pois dividiria as etapas da vida com base no desenvolvimento das eras
históricas pelas quais passou o ser humano.
Hall divide a evolução da criança em estágios correspondentes às eras pré-
históricas do desenvolvimento da raça humana: a primeira infância (os primeiros
quatro anos) corresponde ao estágio ainda animal da raça humana, quando o homem
ainda usava quatro pernas. A infância propriamente dita (dos quatro aos oito anos),
relaciona-se com a era da caça e da pesca. O período entre os oito e doze anos,
chamado ‘jovem’, corresponde à fase em que os traços superiores haviam
aparecido, mas o homem ainda vivia na barbárie. Assim, na sua lógica, a
adolescência representa um estágio transacional e turbulento na história da raça,
depois que níveis de civilização mais elevados foram alcançados. (Santos, 1996, p.
141)
Discordando deste tipo de análise, Santos (1996) buscou evidências na evolução
das imagens da infância e da juventude durante a história, o que o possibilitou a afirmar
que ambas são categorias históricas. Confrontando as imagens, analisou se elas eram
cristalizadas ou se modificavam durante o curso da história e chegou à conclusão que
variavam durante o desenvolvimento histórico.
Santos (1996) cita Morin para afirmar que uma das versões para a origem da
adolescência é seu surgimento enquanto uma classe de idade. Este fato teria ocorrido
3
Esta nomeação feita por Santos (1996) de Rousseau como ‘pai’ e Hall como ‘padrinho’ da adolescência
é utilizada para marcar a importância de suas obras sobre o tema. Rousseau é ‘pai’ pois foi quem primeiro
utilizou tal conceituação. Hall, ‘padrinho’, pois teve grande impacto sobre a concepção de adolescência.
30
durante o século XX, mais especificamente nos Estados Unidos, espalhando-se depois
para a Europa e para o Terceiro Mundo. Sendo assim, a adolescência não seria uma
categoria antropológica constante, seria sócio-histórica, devido ao fato de existirem
civilizações onde está presente e outras onde não está. Porém descarta a idéia de ser um
fenômeno recente ou original na história pois esteve presente em outras sociedades.
... a adolescência já estava prefigurada numa espécie de cultura alcebiadiana
na Grécia do fim do culo V a.C., nas contestações dos universitários da Idade
Média, no teatro e na poesia do século XVIII e, mais tarde, na intelligentsia
romântica européia sua originalidade, na forma como ela ocorre neste século, se
prende ao seu ‘caráter extensivo, maciço e mundial’. (Santos, 1996, p. 152)
Porém a marca de uma cultura adolescente, esta sim seria mais recente, estando
presente apenas desde a metade do século XX, quando os adolescentes começam a se
organizar em grupos, formando uma cultura à parte e são considerados pela sociedade
como anti-sociais ou delinqüentes.
Um dos motivos levantados pelo autor para o surgimento da cultura da
adolescência, como é caracterizada atualmente, se deve a ausência de rituais
institucionalizados que cumpriam importante papel na fixação clara e formal da
mudança do estado de infância para o estado adulto. Propõe que sua ausência ou
diluição, ou mesmo a função meramente legalista dos rituais contribui para que a
criança em vias de se tornar um adulto passe por uma fase de transição e conflito.
Nessas sociedades [capitalistas] estabeleceu-se o seguinte paradoxo: a
exigência de maior tempo de preparação das crianças e adolescência para a vida
adulta, devido à sua hipercomplexificação e especialização, prolonga a duração
dessas fases em comparação com as sociedades do passado. (Santos, 1996, p. 175)
31
Santos (1996) destaca que a mudança de status da criança e o surgimento da
adolescência, além de influenciados pelos próprios pais, filósofos e educadores, foi feita
também por um outro agente, os ativistas em direito da criança e do adolescente.
No Brasil, eles foram os protagonistas principais da elaboração do projeto de
lei, da mobilização e do lobby pela sua aprovação, que deu origem ao Estatuto da
Criança e do Adolescente – ECA. (Santos, 1996, p. 185)
A criança e o adolescente surgem, a partir deste novo modelo, como um sujeito
de direitos, com participação na vida democrática da sociedade da qual fazem parte.
Não somente como um sujeito de direitos mas também como um sujeito político.
Peguemos o exemplo do Brasil onde o direito eleitoral reconhece adolescentes, a partir
dos dezesseis anos de idade, como aptos a participar das decisões políticas.
a elevação de status da criança e do adolescente, não apenas como sujeito de
direitos mas como promessas do futuro. Porém, não são vistos apenas como promessas,
como veremos mais claramente em exemplos a seguir, a partir da metade do século XX,
a juventude também pode representar uma ameaça à ordem social estabelecida.
Passerini (1994) em seu texto A juventude, metáfora da mudança social. Dois
debates sobre os jovens: a Itália fascista e os Estados Unidos da década de 1950,
procura entender a juventude à luz de acontecimentos históricos (o fascismo na Itália e a
juventude rebelde norte-americana) e, acaba por enfocar a representação que a
sociedade tinha sobre a juventude durante estes dois períodos. Usa os exemplos do
cinema italiano, e as manifestações fascistas na Itália para analisar a juventude enquanto
uma metáfora da mudança, dizendo que a juventude é chamada a representar as
mudanças que ocorrem na sociedade, e nota que a imagem da juventude esatrelada a
32
uma preparação para a idade adulta e também é vista como representante das angústias
pelas quais a sociedade passa no momento:
Existe uma idéia de jovem comum a tais representações que vão sendo
sobredeterminadas, enquanto reúne em si os problemas e as preocupações da
sociedade em seu conjunto. O jovem como conceito simbólico revela-se o
concentrado das angústias da sociedade – do desemprego ao sentido da inutilidade da
vida –, mas torna-se também o modelo do futuro, portanto, ameaça e esperança.
(Passerini, 1994, p. 351)
Argumenta que a junção entre juventude e modernidade carrega especialmente a
junção da ambivalência que o moderno manifestava nas diversas possibilidades de
escolha que eram oferecidas aos jovens, mas que aparecia como uma terra de ninguém,
onde o moderno surgia como o “... sem raízes e deslocado ou então resolutamente,
‘fascistamente’ decidido a mudar a si próprio e o mundo.” (Passerini, 1994, p. 341).
A caracterização da juventude tem grande importância quando analisados os
fenômenos que vão sendo colados à imagem do jovem. Na década de 1950, o principal
tema levantado à respeito da juventude é o desvio, como se a juventude contivesse um
gene do mal social que poderia contaminar a sociedade, seriam perigosos e subversivos.
Se pensarmos esta observação à luz da sociedade do controle e da manutenção do status
das classes dominantes, que procura adaptar e minimizar as formas de reivindicação,
realmente a juventude, especialmente como colocada por Passerini, que poderia ser uma
metáfora para a mudança, seria uma ameaça; e como um gene do mal, precisaria ser
combatida. Porém o autor mostra a contradição da visão que a sociedade tem sobre a
juventude ao notar que, na década de 1960, prevalece a imagem otimista do jovem,
como capaz de redesenhar o mundo segundo novos critérios que seriam os de liberdade
e justiça.
33
Essas duas faces atribuídas à juventude, associadas ao prolongamento da
escolarização e a formação de um mercado para os jovens, propiciaram as bases para a
formação de uma cultura juvenil, baseada na democracia consumista, com uma
importância similar entre a luta de gerações e a luta de classes. Segundo Passerini
(1994):
A dimensão da juventude como problema, presente nos Estados Unidos
desde o final do século passado, tem uma etapa significativa com a publicação, em
1904, de ‘Adolescence’, a obra do psicólogo G. Stanley Hall, que anuncia a
‘descoberta’ do adolescente americano. Hall insiste, atribuindo a essa faixa etária
qualidades antitéticas retomadas de Rousseau hiperatividade e inércia,
sensibilidade social e autocentrismo, intuição aguda e loucura infantil... (Passerini,
1994, p. 352)
Passerini critica posicionamentos de Stanley Hall pois este estaria sugerindo que
fossem eliminadas as pressões e condicionamentos a fim de deixar o adolescente
realizar todas as possibilidades que caberiam a esta época específica de sua vida.
Passerini considera contraditória a proposição de Hall de encaminhar os jovens ao
treinamento militar como possibilidade de realização das potencialidades do adolescente
e como modo de respeitar suas especificidades. Afinal, procurar aproveitar o potencial
adolescente dentro do contexto militar seria uma forma de aproveitar essa energia
considerada ‘típica’ dos jovens, evitando com que eles utilizassem sua força
transformadora em forma de revolta contra a sociedade, canalizando a energia juvenil
no militarismo, ou seja, servindo às finalidades do Estado.
Mas, para Passerini (1994), o que ocorreu na prática difere das propostas de
Hall. Em sua análise sobre a adolescência na cultura dos Estados Unidos dos anos de
34
1950 – esta se transformou em um universo fechado em si
4
e acentuou uma distinção de
papéis sociais jamais vista naquele país, os jovens passavam a maior parte do tempo na
escola e a interação agora não era mais com os adultos (nem os pais nem os professores)
mas sim entre os pares, o que serviria de base para a formação de uma subcultura
juvenil.
Os adolescentes da década de 1950 eram um grupo muito diversificado, com
gostos e valores contraditórios, e também fortes conflitos internos. Mas o
polimorfismo é algo mais que a multiplicidade: é a disponibilidade para assumir
diversas configurações, incluindo aquelas que a própria cultura define como
irremediavelmente outras. (Passerini, 1994, p. 367)
Esse polimorfismo apontado por Passerini é característico da modernidade, cada
sujeito é convocado a assumir uma configuração específica, sob a égide do
individualismo que propaga a possibilidade do indivíduo de escolher o que e quem quer
ser. É uma fetichização das escolhas, o prazer está em poder ser o que quiser. O
polimorfismo é escamoteado sob o termo diversidade o respeitar as diferenças,
quando na verdade está ligado a assumir formas diferentes. O sujeito adolescente
começa a ter que achar sua própria forma de realização – individualmente.
Ainda sobre a década de 1950, Abramo (1994) também destaque ao
surgimento de uma cultura juvenil, um sentimento que embora não seja o mesmo em
todos os grupos juvenis, pode ser observado em termos de formação de grupos de uma
maneira genérica no comportamento dos adolescentes.
Após a Guerra Mundial, os anos 1960 são marcados pelo conflito geracional
acentuado especialmente pela formação de uma sociedade com diferenças etárias muito
grandes, pois um enorme número de homens, pais de família, havia sido enviados à
4
Um dos fatores que levou psicólogos e psicanalistas, daquele contexto, a cunhar o termo moratória.
35
guerra e, mesmo os que regressavam, o faziam depois de um período de tempo bastante
longo. Este fator, aliado aos imperativos sócio-econômicos impostos pelo período de
guerra, provoca mudanças na estrutura social e familiar o que faz com que os jovens
mostrem bastante revolta contra a sociedade dos adultos que oferece um modelo de
mundo que não é compartilhado pela cultura adolescente. Segundo Abramo, os anos
1960 são marcados por um conflito de gerações:
... o da revolta dos jovens contra a sociedade dos adultos – fundado sobre um
profundo gap geracional, provocado pelas mudanças sociais no período. (Abramo,
1994, p. 28)
Acrescenta-se a este fato, o novo ciclo de desenvolvimento industrial e aumento
do apelo pelo consumo, aumento do tempo escolar e o tempo livre para lazer.
... o aumento da disponibilidade e da procura por diversão e por elementos
diferenciados de consumo provoca rápida resposta por parte da indústria, do
comércio e da publicidade, que passam a produzir bens específicos para esse público,
alimentando o espraiamento de novos hábitos. (Abramo, 1994, p. 29)
A autora nomeia os anos 60 de revolução juvenil, destacando as seguintes
mudanças: aumento populacional dos jovens, crescimento da escolarização (expansão
do ensino superior), aumento do intervalo de transição para o mundo adulto,
crescimento econômico, valorização do lazer e menor severidade na educação dos
jovens e crianças, como reflexo da maior liberalização dos costumes.
A juventude aparece como um tempo privilegiado: um tempo de
permissividade, de diversão sem reservas, de busca de intensidade, prazer e
liberdade, de irreverência em relação às instituições e valores do mundo adulto.
(Abramo, 1994, p. 39)
36
Na visão de Abramo (1994), a juventude dos anos 80 apresenta uma
fragmentação dos grupos juvenis, que perdem a dimensão e a importância, passando a
aparecer de forma pontual e localizada, a contracultura perde sua força e desaparece a
idéia de uma ‘revolução juvenil’. Maiores movimentos jovens estão ligados à formação
de tribos (e são mais numerosos e exagerados). Como exemplo, o aparecimento do punk
na Inglaterra (1976/1977), que trouxe uma reversão musical dentro do rock e modo de
se vestir inusitado e anormal; o rompimento com os parâmetros de beleza e virtuosismo,
valorização do caos, intenção de provocar, a postura anárquica. O lema desta juventude
é: Do it yourself”, ou seja, faça você mesmo. Aqui aparentamos estar no auge do
individualismo e da busca da liberdade.
Assim, esperamos ter apontado aparições do adolescente em alguns momentos
históricos e como este acompanha a própria convocatória que a sociedade lhe dirige. Se
em um primeiro momento olhamos para a Grécia antiga, onde a manutenção e a
evolução da sociedade era a finalidade das ações tomadas pelas pessoas que
compunham a comunidade; pudemos observar que toda a educação, treinamento e
valores que o jovem recebia, ou seja, a interpelação do adolescente feita pela sociedade
tinha o intuito de formá-lo enquanto mais um membro do laço social que pudesse dar
continuidade ao processo de desenvolvimento social.
No outro extremo da história, temos os adolescentes sendo convocados a
responder enquanto indivíduos. Isto pode ser visto através da promulgação de um
estatuto específico (no Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente), ou mesmo na
revolta dos jovens punks que por nutrirem um sentimento de abandono por parte da
sociedade, estarem ‘de fora’ da sociedade, adotam um lema que responde à
convocatória da sociedade individualista: ‘Faça você mesmo’. Poderíamos
complementar esta frase com: faça você mesmo pois a sociedade não fará por você.
37
Estas transformações na concepção de indivíduo e sociedade, que localizamos na
constituição da juventude e da adolescência, serão aprofundadas adiante (no terceiro
capítulo), quando estudaremos as transformações que ocorreram na sociedade como um
todo, em relação à concepção de indivíduo e sociedade.
38
2 - Visões ‘tradicionais’ sobre a crise da adolescência
Apresentaremos, neste capítulo, visões que aparentemente são dicotômicas em
relação à formação da crise do adolescente. Iniciaremos com Erik Erikson, que é o
nome mais referenciado quando abordamos este assunto. Passaremos, a seguir, para o
destaque de outros autores (como: Knobel, Aberastury, Osório, Santos e Abramo), que
acirram o antagonismo em relação ao motivo pelo qual é desencadeada a crise da
adolescência, conferindo ênfase na contraposição entre indivíduo e sociedade.
Consideramos a visão destes autores como tradicional, em um primeiro aspecto, por
serem referências em seus campos de domínio sobre o tema da adolescência e, num
segundo momento, por acreditarmos que, por ficarem presos num determinismo
biológico ou social, como pares opostos no desencadeamento da crise da adolescência,
não ultrapassam a questão abordada neste trabalho.
A crise como formadora da identidade do adolescente
Ao associarmos o termo crise com adolescência, é impossível não levarmos em
consideração o trabalho Identidade: juventude e crise, de Erik Erikson (1987)
5
. Se,
atualmente, praticamente em todos os debates sobre a adolescência esta proposição
ocupa lugar central, podemos considerar que este livro publicado por Erikson foi o
precursor da caracterização da adolescência enquanto uma etapa de crise. Autores, que
5
Dos autores que serão apresentados neste capítulo, Erikson (1987), Santos (1996) e Abramo (1994)
foram influenciados pelos estudos de Margaret Mead: Adolescencia, sexo y cultura en Samoa (publicado
originalmente em 1928). Nesta pesquisa realizada na década de 1920, Mead descarta a universalidade da
adolescência, ao comparar e encontrar diferentes formas de vivência adolescente entre uma cultura
considerada primitiva (a de Samoa) e uma cultura considerada moderna (a dos Estados Unidos).
39
seguiram Erikson, mostram a importância que seu trabalho teve nas gerações que o
sucederam tanto, na psicanálise quanto na psicologia.
Osório (1992), por exemplo, parte da análise do trabalho de Erikson, e propõe o
uso dos termos crise e identidade para um melhor entendimento da adolescência. Crise
seria usada no sentido do grego krisis, que significa o ato ou faculdade de distinguir,
escolher, decidir e/ou resolver. Lembra que Erikson chamou a adolescência de crise
normativa, como um momento evolutivo de organização e estruturação do indivíduo,
este seria o motivo da associação do termo crise à adolescência.
Erikson (1987) procura separar o conceito, que elabora de crise, da significação
que é, usualmente, lembrada quando pronunciamos este termo, ou seja, associado à
conotação de catástrofe iminente. Promove uma nova conceituação para ser utilizada em
relação ao processo adolescente, neste contexto, a crise é definida como representante
de um momento decisivo, um ponto necessário pelo qual os adolescentes atravessam,
com uma grande mobilização de recursos internos, pois o adolescente necessita, além de
tomar suas decisões por si próprio, seguir um caminho de diferenciação em relação à
identidade dos pais.
O autor considera que esta compreensão da identidade pela psicanálise seria uma
evolução metodológica, pois passamos a pensar uma psicanálise que chama de
suficientemente sofisticada de molde a incluir o meio (Erikson, 1987, p. 23). Acredita
que esta junção entre psicanálise e psicologia social poderia dar origem a um novo
campo do saber que superaria questões que são divergentes em ambos.
A conceituação sobre a crise de identidade feita por Erikson (1987) surgiu
durante a Segunda Guerra Mundial, na Clínica de Reabilitação de Veteranos de Monte
Sion, onde atendia soldados que haviam perdido a noção de identidade pessoal e
continuidade histórica devido à participação na guerra. Em seu trabalho com estes
40
pacientes, o autor concluiu que eles não sofriam da chamada ‘neurose de guerra’, como
era comum serem diagnosticados naquela época, muito menos estavam simulando
doenças para fugir do serviço militar. O motivo, que os levava ao tratamento, é que,
devido às situações que ocorriam na guerra, sua identidade pessoal entrava em crise.
Então deu-se, na teoria desenvolvida por Erikson, que este conflito, esta guerra que se
dá no interior do seu ego, receberia o nome de crise de identidade.
Transpôs esta questão da crise de identidade, que era estudada entre os militares,
para a adolescência pois notou semelhanças, ambos (adolescentes e soldados), tinham
problemas com a noção de identidade pessoal. Levanta uma questão que diz merecer ser
melhor estudada para ser respondida: se a adolescência é um período mais propício para
o surgimento da crise de identidade ou se esta surge pois é o que esperamos deles.
Segundo Erikson (1987), em cada geração, a juventude cria uma identidade
própria que reflete tal momento cultural, fazendo com que compartilhe de um destino
comum. Sobre a formação da identidade, o autor afirma:
... em termos psicológicos, a formação da identidade emprega um processo
de reflexão e observação simultâneas, um processo que ocorre em todos os níveis do
funcionamento mental, pelo qual o indivíduo se julga a si próprio à luz daquilo que
percebe ser a maneira como os outros o julgam, em comparação com eles próprios e
com uma tipologia que é significativa para eles; enquanto que ele julga a maneira
como eles o julgam, à luz do modo como se percebe a si próprio em comparação com
os demais e com os tipos que se tornaram importantes para ele. Este processo é,
felizmente (e necessariamente), em sua maior parte, inconsciente exceto quando as
condições internas e as circunstâncias externas se combinam para agravar uma
dolorosa ou eufórica ‘consciência de identidade’. (Erikson, 1987, p. 21)
Afirma que a formação da identidade é iniciada no verdadeiro primeiro encontro
entre a mãe e o bebê. Este verdadeiro encontro ocorre quando a mãe e o bebê se vêem
41
como duas pessoas que podem tocar-se e, principalmente, reconhecerem um ao outro.
Afinal, o toque existe desde a concepção do bebê mas o reconhecimento de que duas
pessoas envolvidas, não. Embora este processo de formação da identidade tenha sido
iniciado enquanto bebê, o momento crucial, para Erikson, é a adolescência, pois a crise
normativa existente neste período leva em consideração questões surgidas na infância
sendo muito influente na identidade adulta.
A questão da identidade seria chave na compreensão da adolescência pois, com
um maior distanciamento em relação aos pais, a estrutura ideológica presente na cultura
se faz mais presente na estruturação do ego adolescente. Na visão de Erikson é como se
existisse um distanciamento das marcas infantis e inconscientes, às quais se refere como
primitivas, para uma valorização do contexto ideológico no qual está inserido, e que
seria assimilado pelo adolescente através deste processo de formação de identidade.
Assim, a adolescência é uma fase em que o indivíduo está muito mais
próximo do dia histórico do que nas fases mais primitivas do desenvolvimento
infantil. Enquanto que os antecedentes infantis da identidade são mais inconscientes
e mudam muito lentamente, quando mudam, o próprio problema da identidade
transforma-se com o período histórico; de fato, essa a sua tarefa. (Erikson, 1987, p.
26)
Colocando esta questão da formação da identidade como algo mais externo ao
ego do indivíduo, diz que a maior dificuldade neste processo de formação da identidade
se intensifica por um problema de gerações. Critica a geração contemporânea por estar
abdicando das responsabilidades que fariam parte das gerações mais velhas, que seria a
de passar às gerações seguintes ideais poderosos e convincentes que serviriam como
referenciais à formação da identidade das próximas gerações, mesmo que estes ideais
42
fossem rejeitados e combatidos pelos mais jovens, estariam mostrando a importância de
se ter um conjunto de valores mais bem definidos.
Como introduz a questão da maior influência dos fatores presentes na sociedade
na constituição da identidade do adolescentes, considera necessário distinguir entre dois
tipos de formação de identidade, uma identidade pessoal, esta apresentada como
influenciada pelos ideais do meio e outra vinculada ao ego:
Mas, neste ponto, é necessário diferenciar entre identidade pessoal e
identidade do ego. O sentimento consciente de se possuir identidade pessoal baseia-
se em duas observações simultâneas: a percepção da uniformidade e continuidade da
existência pessoal no tempo e no espaço; e a percepção do fato de que os outros
reconhecem essa uniformidade e continuidade da pessoa. Aquilo a que chamei
identidade do ego, porém, diz mais a respeito ao mero fato da existência; é, por assim
dizer, a qualidade do ego dessa existência. Assim, a identidade do ego, em seu
aspecto subjetivo, é a consciência do fato de que existe uniformidade e continuidade
nos métodos de sintetização do ego, o estilo da individualidade de uma pessoa, e de
que esse estilo coincide com a uniformidade e continuidade do significado que a
pessoa tem para os outros significantes na comunidade imediata. (Erikson, 1987, p.
49)
Esse sentimento de continuidade de uma pessoa estaria seriamente ameaçado
pelo que chama de uma crise da globalidade. Associada à falta de ideais e valores
passados pelas gerações precedentes, os jovens estariam sós, tendo que buscar de forma
individual sua formação como o que chama de ‘pessoas inteiras’, em meio a uma etapa
de desenvolvimento com grandes mudanças no crescimento físico, amadurecimento
genital e formação de uma consciência social. Para que este processo ocorresse dentro
de um rumo menos tempestuoso, seria necessário que houvesse uma maior
continuidade, uma progressividade, assim o jovem poderia associar sua identidade
43
interior, que é aquilo que ele concebe ser, com as mudanças que vão ocorrendo e como
passa a ser visto pelos outros e o que esperam dele.
Segundo Erikson (1987), a crise de identidade é um momento chave para a
constituição da pessoa enquanto adulto, já que este sintetizaria as experiências da
infância, seria um tempo de mobilização de recursos e estaria na base da formação de
uma consciência para a vida social, esta crise crucial só vem a existir devido ao
momento propício da adolescência:
Entre as indispensáveis coordenadas da identidade está o ciclo vital, pois
partimos do princípio de que só com a adolescência o indivíduo desenvolve os
requisitos preliminares de crescimento fisiológico, amadurecimento mental e
responsabilidade social para experimentar e atravessar a crise de identidade. De fato,
podemos falar da crise de identidade como o aspecto psicossocial do processo
adolescente. Nem essa fase poderia terminar sem que a identidade tivesse encontrado
uma forma que determinará, decisivamente, a vida ulterior. (Erikson, 1987, p. 90)
O processo de crescimento humano representa para Erikson uma sucessão de
conflitos, internos e externos, os quais levariam o indivíduo a uma crise. Na ‘saída’ de
cada crise haveria um ganho para o indivíduo, pois aumentaria o sentimento de
identidade interior. Destaca que características morais também teriam um ganho, pois
ao final de cada crise é como se houvesse um aumento na capacidade de agir dentro de
seus próprios padrões e o que chama ‘bom juízo’ das pessoas.
As fases do desenvolvimento, na teoria de Erikson, seriam necessariamente
marcadas por crises pois estariam mudando a função da energia instintiva, o que
causaria uma vulnerabilidade. Uma energia que estava voltada a uma determinada
finalidade necessitaria redirecionar o seu uso, e este conflito existente entre o destino da
energia instintiva que se tinha e o que se pretende ter em uma nova função, é o
desencadeador da crise. As fases do desenvolvimento preconizadas por Freud (oral,
44
anal...) são aqui os momentos cruciais de cada crise devido ao redirecionamento da
energia instintiva que estava acomodada em uma determinada função. Comentando as
fases do desenvolvimento, especialmente na infância, afirma:
Portanto, cada passo sucessivo é uma crise potencial por causa de uma
mudança radical de perspectiva. A palavra crise é usada aqui num sentido de
desenvolvimento para designar não uma ameaça de catástrofe, mas um ponto
decisivo, um período crucial de crescente vulnerabilidade e potencial; e, portanto, a
fonte ontogenética da força e do desajustamento generativos. (Erikson, 1987, p. 96)
Se as crises de identidade estão diretamente ligadas às mudanças na economia da
energia instintiva, a adolescência certamente estaria ligada às mudanças provocadas
pelo primado da genitalidade. Erikson nota que certas mudanças que ocorreram na
sociedade, como os progressos tecnológicos, ampliaram o espaço de tempo existente
entre a vida escolar e a entrada do adolescente no mercado de trabalho. Com estas
mudanças, a adolescência torna-se um período mais longo e consciente, chegando a se
tornar um modo específico de vida compreendido entre a infância e a idade adulta. Sem
ter uma definição sobre o futuro em seus últimos anos na escola, com a dúvida sobre
quais papéis no mundo adulto poderão desempenhar e sentindo as mudanças
fisiológicas referentes a seu amadurecimento genital, a procura do reconhecimento em
grupos de pares com a formação de uma subcultura adolescente marcada pela
excentricidade em relação ao mundo adulto, lhes parece com a assunção de uma
identidade final e não como um processo de formação de identidade, que é o que estão
vivenciando.
Essa busca pela continuidade e uma uniformidade do ego, marcada também
pelas transformações provocadas pela maturidade sexual, inclui que o adolescente passe
pelas crises dos anos anteriores. A adolescência compreenderia então, uma reelaboração
45
dos conflitos das etapas anteriores, até que o indivíduo possa tomar posse de novos
ídolos e ideais que serviriam para sustentar uma identidade tida como final e que
corresponde à idade adulta. Estaria ainda mais problematizada a fase da crise, devido às
condições sociais citadas acima que impedem a definição do futuro do adolescente.
Daí viria a importância da chamada moratória que se instalaria durante a
adolescência. A serviço de que viria a moratória? Se uma volta às crises das fases
anteriores, há uma necessidade de reorganização do indivíduo, para que este possa
substituir o meio em que estava assentado, o infantil, pelo meio no qual está sendo
inserido, a sociedade. Os elementos de identidade que foram experimentados na
infância terão que ser integrados para que o indivíduo esteja preparado para sua entrada
na sociedade, que não apresenta contornos tão bem definidos como na infância. Essa
organização identitária é tão importante para Erikson, que ele afirma que a juventude
que consegue se sentir parte dos ideais de uma cultura, desfrutará mais e melhor dos
supostos benefícios que ela traz:
A adolescência, portanto, é menos ‘tempestuosa’ naquele segmento da
juventude talentosa e bem treinada na exploração das tendências tecnológicas em
expansão e apta, por conseguinte, a identificar-se com os novos papéis de
competência e invenção e a aceitar uma perspectiva ideológica mais implícita.
(Erikson, 1987, p. 130)
O autor afirma que a incapacidade em definir uma identidade ocupacional seria
uma das principais problemáticas dos jovens, o fator que mais os desestabiliza.
Decorrente deste fator, poderia surgir um processo ao qual chama de
‘superidentificação’, onde o jovem procuraria heróis para seguir, chegando ao ponto de
anular sua individualidade devido a este processo identificatório. Mesmo o amor não
seria devido à questão sexual na adolescência, estaria também ligado aos processos
46
identificatórios, na busca de uma identidade própria. O apaixonar surgiria como uma
projeção da própria imagem em uma outra pessoa, na busca de enxergar a si mesmo.
As identificações e a formação da identidade, aparecem como a principal tarefa
adolescente. Considerando a adolescência como uma fase última das fases da infância,
ressalta que a finalidade da adolescência está em trocar o caráter lúdico das
identificações que existiam na infância por identificações que terão uma base sólida
para o jovem fazer escolhas e decisões para a seqüência da vida.
A adolescência é a última fase da infância. Contudo, o processo adolescente
está inteiramente concluído quando o indivíduo subordinou as suas identificações
da infância a uma nova espécie de identificação, realizada com a absorção da
sociabilidade e a aprendizagem competitiva com (e entre) os companheiros de sua
idade. (Erikson, 1987, p. 156)
Assim, Erikson (1987) considera que, para a juventude alcançar uma identidade
própria é necessário o processo de rejeitar os legados dos pais e das autoridades, pois,
como afirmado anteriormente, ela é sensível às questões existentes em sua biografia
e/ou história. Para superar as identificações da infância que o privariam de uma
identidade própria, precisaria rejeitar seus pais. No plano social, para que um grupo
possa escapar dos poderes do grupo predecessor, também precisa rejeitá-lo.
Por estas razões, a juventude rejeita freqüentemente os pais e as autoridades,
e deseja subestima-los como inconseqüentes, pois está procurando indivíduos e
movimentos que afirmem ou pareçam afirmar que são capazes de predizer o que
é irreversível, assim se adiantando ao futuro o que significa invertê-lo. (Erikson,
1987, p. 248)
47
Essa ênfase da crise na formação da identidade, que leva em conta tanto os
fatores de desenvolvimento biológico quanto os fatores culturais presentes na
adolescência através do conceito de identidade, como disse o próprio Erikson, busca
repensar a psicanálise e a psicologia social de modo que ambas levassem em
consideração os avanços promovidos por cada um destes campos, ou mesmo, como
sugeriu, a possibilidade de formar um novo campo do saber que se utilizaria dos
melhores avanços conseguidos em cada área do conhecimento. A questão crucial para
Erikson está fundada no estabelecimento de uma identidade, ou seja, que o indivíduo
alcance um grau de amadurecimento’ que lhe confira um sentimento de ‘continuidade’
e ‘unicidade’. O autor acredita que após uma crise de identidade, o indivíduo poderia
percorrer um caminho ‘normal’, adaptado às estruturas da sociedade.
Após os desenvolvimentos de Erikson, autores que retomam sua obra, aumentam
a ênfase na determinação biológica para o entendimento da crise adolescente ou pensam
somente nas características culturais que estariam por trás dessa noção de crise. É
importante, neste momento, visitarmos estas proposições teóricas.
O luto pelo corpo infantil no processo de constituição adolescente
Em seu clássico livro, Adolescência normal, organizado em conjunto com
Aberastury, Knobel afirma que Anna Freud alertava sobre a dificuldade em assinalar
o limite entre o normal e o patológico na adolescência, o que a leva considerar como
normal a instabilidade neste período e pensar a presença de um equilíbrio como
anormal. Knobel afirma que o adolescente passa por “desequilíbrios e instabilidades
extremas” (Knobel, 1992, p. 9) mas que isso seria necessário para o estabelecimento de
48
sua identidade. Comentando proposições de Aberastury, Knobel (1992) afirma que para
integrar o mundo dos adultos o adolescente teria que operar três tipos de lutos:
a) o luto pelo corpo infantil perdido, base biológica da adolescência, que se
impõe ao indivíduo que não poucas vezes tem que sentir suas mudanças como algo
externo, frente ao qual se encontra como espectador impotente do que ocorre no seu
próprio organismo; b) o luto pelo papel e a identidade infantis, que o obriga a uma
renúncia da dependência e a uma aceitação de responsabilidades que muitas vezes
desconhece; c) o luto pelos pais da infância, os quais persistentemente tenta reter na
sua personalidade, procurando o refúgio e a proteção que eles significam, situação
que se complica pela própria atitude dos pais, que também têm que aceitar o seu
envelhecimento e o fato de que seus filhos não o crianças, mas adultos, ou estão
em vias de sê-lo. (Knobel, 1992, p. 10)
Acrescenta a estes três lutos, o luto pela bissexualidade infantil, que também é
perdida.
A passagem à idade adulta, que é enfrentada na adolescência, significa
abandonar as relações pessoais da infância. Isto é posto em marcha, segundo Knobel
(1992), devido à realização evolutiva do indivíduo. Um conjunto de características
essenciais poderão ser observadas na adolescência, devido à interação do indivíduo com
o meio, e dá origem ao que ele chama de síndrome normal da adolescência.
Para ter acesso ao mundo dos adultos, o adolescente sente este momento de
passagem como a perda definitiva de sua condição de criança, pois teque estabelecer
uma nova relação com os pais e com o mundo. As mudanças psicológicas que surgem
durante a adolescência teriam uma correspondência direta às mudanças corporais.
Sendo assim, com as mudanças corporais existentes, é necessário que seja elaborado um
trabalho de luto, que será lento e doloroso para os jovens. Correlativo ao trabalho de
luto pelo corpo, será feito também o luto pela identidade de criança, não menos
49
doloroso que o outro, esta identidade de criança deverá ser substituída por uma
ideologia que permita a adaptação do jovem ao mundo ou possibilidades de ação para
modificá-lo.
Aberastury (1992) afirma que o adolescente varia de uma extrema
independência a uma dependência e somente com a maturidade (sexual e social)
entenderá que pode ter independência dentro de uma certa dependência, com isto sente-
se confuso e cheio de contradições tendo atritos no meio familiar e social e isto acaba
por ser confundido com “crises e estados patológicos” (Aberastury, 1992, p. 13).
Para a autora, as mudanças biológicas provocadas pela puberdade agem com
grande impacto no jovem, e o luto pelo corpo inclui duas tarefas: a perda do corpo
infantil e a necessidade de assumir um papel sexual definitivo:
A perda que o adolescente deve aceitar ao fazer o luto pelo corpo é dupla: a
de seu corpo de criança, quando caracteres sexuais secundários colocam-no ante a
evidência de seu novo status e o aparecimento da menstruação na menina e do sêmen
no menino, que lhes impõem o testemunho da determinação sexual e do papel que
terão que assumir, não na união com o parceiro, mas também na procriação.
(Aberastury, 1992, p. 14)
Neste ínterim, somente quando o adolescente for capaz de aceitar essa dupla
especificidade que toma conta de seu corpo, ou seja, características de um corpo de
criança e de adulto, e as mudanças daí decorrentes, é que teinício a formação de uma
nova identidade.
A autora afirma que, se apenas as mudanças biológicas acontecerem não existe a
entrada no mundo adulto, é necessário que elas sejam acompanhadas pela maturidade
afetiva e intelectual, ou seja, contar com um sistema de valores e uma ideologia própria
50
para poder confrontar com a do meio, e através deste confronto, realizar críticas e ações
que sejam construtivas para o meio no qual está inserido.
Assim, estariam acompanhando esta fase, a revolução que o adolescente provoca
em seu meio familiar e social, o que levanta os problemas de gerações, que nem sempre
foram bem resolvidos. Os pais também precisam operar o luto pelo corpo do filho
pequeno, o que impõem renúncias por parte dos pais também. Ao perder o corpo do
filho enquanto imagem de uma criança, terá que pensar em seu envelhecimento e morte.
Deixará o papel de líder e se tornará alvo de críticas.
A adolescência é acompanhada de uma imposição biológica de mudanças, pelas
mudanças corporais e em seguida viriam as mudanças psicológicas. O adolescente deve
renunciar ao papel de ser tratado como criança. O adulto quer impor seus valores e o
adolescente desdenha deles e defende os seus. “O sofrimento, a contradição, a confusão,
os transtornos são deste modo inevitáveis...” (Aberastury, 1992, p. 17).
O que se apreende desta compreensão de Aberastury é um embate (oposição
entre biológico e social) entre o corpo biológico e as modificações psíquicas que
chama de maturidade emocional contra a ideologia que vem do meio. A idéia de
oposição entre indivíduo e sociedade encontra lugar em sua teoria.
Aberastury (1992) diz que o conceito de moratória social cunhado por Erikson
(conceito citado anteriormente) seria mais profundo do que propõe o autor. Não se
trataria apenas de um período de maturação que a sociedade impõe à criança, mas
estaria relacionado a uma necessidade mais profunda, sendo esta, o luto pelo corpo.
Portanto a moratória vem a ser um tempo necessário para que a criança possa fazer as
pazes com seu corpo, conformar-se com as novas formas que tomam conta dele. Este
processo só seria possível através do processo de luto, longo e doloroso e ultrapassaria o
abandono do corpo infantil, teria também que abandonar a fantasia da bissexualidade,
51
que sustenta a atividade masturbatória. A renúncia da onipotência no campo sexual,
com a queda da fantasia (tanto de homens como de mulheres) da possibilidade de gerar
a criança sozinho, faz com que o indivíduo comece a aceitar a necessidade da união com
o outro sexo para a concepção de um filho.
Aberastury (1992) considera que uma das bases da moratória social é a
dificuldade do adulto em aceitar o amadurecimento intelectual e sexual da criança.
Knobel (1992a) concorda com os autores que apontam grande influência dos
fatores sócio-culturais nos fenômenos da adolescência (à qual se refere aqui como ‘nesta
idade da vida’), porém considera que em parte está sendo desviado “... o problema
básico fundamental da circunstância evolutiva que significa esta etapa, com toda a sua
bagagem biológica individualizante.” (Knobel, 1992a, p. 24).
Afirma que estudar a adolescência como apenas determinações sociais seria
desconsiderar o conhecimento trazido pela psicologia evolutiva. Ou seja, procura
demonstrar que existem períodos da vida marcados pelo desenvolvimento biológico do
indivíduo, todo fenômeno humano teria esta marca biológica e sua expressão
independente da época histórica, mas apresentaria também, características singulares
dentro de contextos sociais específicos:
Assim, devemos em parte considerar a adolescência como um fenômeno
específico dentro de toda a história do desenvolvimento humano e, por outro lado,
estudar a sua expressão circunstancial de caráter geográfico e temporal histórico-
social. (Knobel, 1992a, p. 24)
Identificamos a adolescência como ‘natural’ do ser humano no referencial de
Knobel, pois, para o autor, não dúvidas sobre a presença do elemento sócio-cultural,
mas também não como desconsiderar a base psico-biológica que lhe
características universais. Para sustentar esta afirmação, cita o que chama de
52
‘redespertar da sexualidade’, que ocorre no processo de maturação genital, como sendo
um fenômeno elementar da adolescência, dizendo que negar a existência deste processo
no meio humano, seria como negar as circunstâncias sócio-econômicas do
desenvolvimento da humanidade, que estes fenômenos também não teriam influído
sobre a personalidade das pessoas.
Osório (1992) parte das mesmas proposições que Knobel, procurando enfatizar a
influência das condições biológicas na constituição do indivíduo, mas também sem
negar a influência dos fatores que podemos qualificar de externos, da interação do
indivíduo com o meio. Para esclarecer sua proposição, diferencia a puberdade
6
da
adolescência, colocando as duas como universais, mas sendo a puberdade presa à idade
cronológica do indivíduo, ou seja, dependente exclusivamente dos caracteres biológicos
presentes no desenvolvimento do indivíduo:
O fenômeno da PUBERDADE é universal e seu início cronológico, em
condições de normalidade física, coincide em todos os povos e latitudes (com
raríssimas exceções, como o caso dos pigmeus, púberes por volta dos oito anos de
idade, mas cuja expectativa de vida também é menor do que no restante da espécie
humana). A ADOLESCÊNCIA, por seu turno, embora um fenômeno igualmente
universal, tem características bastante peculiares conforme o ambiente sócio-cultural
do indivíduo. Portanto, determinar seu início é tarefa singularmente complexa e que
não pode apoiar-se apenas em certa constância dos elementos psicológicos, todos
eles, contudo, apontando na direção de um objetivo axial, que é o estabelecimento da
identidade pessoal... (Osório, 1992, p. 12)
Diz não ser possível aceitar a adolescência, exclusivamente, como a irrupção
da sexualidade, porque Freud provou que esta não surge repentinamente. Reafirma
6
Não incluímos o termo puberdade na diferenciação, feita anteriormente entre os conceitos de
adolescência e juventude, por achar mais pertinente fazer neste momento, juntamente com a citação de
Osório. O termo puberdade é mais utilizado na área médica e supõe a existência de um desenvolvimento
biológico universal dos seres humanos. Nossa posição, sobre adolescência e puberdade, não coincide com
a de Osório e é justamente um dos assuntos explorados por esta dissertação.
53
que a adolescência “...é um complexo psicossocial, assentado em uma base biológica...”
(Osório, 1992, p. 12).
Knobel (1992a) define a adolescência como uma etapa da vida onde o indivíduo
procura estabelecer sua identidade adulta, a partir das relações objetais-parentais
primárias que foram internalizadas perante a realidade social no qual está inserido,
usando dos elementos biofísicos, que estão atingindo seu ápice, até alcançar a
genitalidade. Mas o estabelecimento desta identidade é possível quando se efetua o
luto da identidade infantil. A estabilização da personalidade seria atingida depois de
uma certa conduta patológica, normal nesta etapa.
Acredita ser difícil dizer o que é normalidade, pois varia dentro de cada
realidade cio-econômica, política e cultura, mas seria uma melhor adaptação ao meio
para atingir as satisfações básicas para o indivíduo ou modificá-lo para melhor para si
ou para a comunidade. Neste momento de conflito com o meio em que seria
necessária uma aceitação temporária deste o adolescente poderia vir a falhar por não
conseguir se adaptar temporariamente.
As lutas e rebeliões externas do adolescente não são mais do que reflexos dos
conflitos de dependência infantil que intimamente ainda persistem. Os processos de
luto obrigam a atuações que têm características defensivas, de caráter psicopático,
fóbico ou contrafóbico, maníaco ou esquizoparanóide, conforme o indivíduo e suas
circunstâncias. É por isso que considero que posso falar de uma verdadeira patologia
normal do adolescente, no sentido de que precisamente este exterioriza seus conflitos
de acordo com a sua estrutura e suas experiências. (Knobel, 1992a, p. 27)
A síndrome normal da adolescência, descrita por Knobel, é semelhante à
descrição de enfermidades que podemos encontrar em manuais de saúde mental, são
definidas por uma sintomatologia que estaria, desde sempre, vinculada a um distúrbio: a
crise da adolescência é entendida como universal e natural ao indivíduo.
54
A composição da síndrome normal da adolescência, inclui os seguintes fatores
(Knobel, 1992a, p. 29):
1) busca de si mesmo e da identidade;
2) tendência grupal;
3) necessidade de intelectualizar e fantasiar;
4) crises religiosas, que podem ir desde o ateísmo mais intransigente até o
misticismo mais fervoroso;
5) deslocalização temporal, onde o pensamento adquire as características
próprias de pensamento primário;
6) evolução sexual manifesta, que vai do auto-erotismo até a
heterossexualidade genital adulta;
7) atitude social reivindicatória com tendências anti ou associais de diversa
intensidade;
8) contradições sucessivas em todas as manifestações de conduta, dominada
pela ação, que constitui a forma de expressão conceitual mais pica deste
período de vida;
9) uma separação progressiva dos pais;
10) constantes flutuações do humor e do estado de ânimo.
Destes componentes, acima citados como pertencentes à síndrome normal da
adolescência, gostaria de destacar alguns pontos para demonstrarmos que, na teoria de
Knobel, o biológico é apresentado como fator de maior peso, sendo considerado
desencadeador da crise da adolescência.
Comecemos pelo processo de busca de si mesmo e da identidade, onde o autor
afirma que a identidade é característica a cada momento evolutivo. A possibilidade do
adolescente utilizar a genitalidade para a procriação é um fato considerado como um
feito biopsicodinâmico, pois determinaria que o adolescente conquistou a identidade
55
adulta, conseguindo se sobrepor à turbulência e à instabilidade que caracterizam a
identidade adolescente.
O acontecimento do amadurecimento genital, psicodinamicamente
considerado, junto com a reativação de todas as etapas pré-genitais (nas quais,
logicamente, é necessário incluir a fase genital prévia, que é a que marca grande
parte das modalidades de comportamento do adolescente e depois do adulto) da
evolução libidinal e com a interação tumultuosa dos processos psicológicos básicos
de dissociação, projeção, introjeção e identificação, irão estabelecendo, de uma
maneira algo confusa no começo e mais estruturada depois, a personalidade mais ou
menos definida. (Knobel, 1992a, p. 30)
Como o processo de identidade teria uma finalidade de chegar a um estágio
adulto e ao reconhecimento de uma individualização que o biológico do ser possibilita,
o resultado final da adolescência, na visão de Knobel, estaria num reconhecimento de si
mesmo, ou seja, de sua identidade, “como uma entidade biológica do mundo, o todo
biopsicossocial de cada ser nesse momento da vida.” (Knobel, 1992a, p. 30).
Cita as mudanças físicas impostas pela puberdade (hormônios da hipófise e
desenvolvimento dos caracteres sexuais) para afirmar que o esquema corporal é um
resultante intrapsíquico da realidade do sujeito em relação a estas transformações que o
corpo sofreu. Então o processo de luto do corpo infantil perdido recebe ainda maior
destaque na teoria sustentada, pois este processo que obriga uma modificação do
esquema corporal e conseqüentemente de uma mudança na visão de seu corpo físico, a
pois o adolescente terá que reconhecer este novo corpo que se transforma perante seus
olhos.
As energias, que o adolescente retira para enfrentar estes lutos, estariam na base
de seu próprio ego e das figuras que foram introjetadas durante a infância, sendo que
56
estes processos ocorridos na infância seriam, então, de vital importância no sucesso
destas tarefas da adolescência:
A busca incessante de saber qual a identidade adulta que vai constituir é
angustiante, e as forças necessárias para superar estes microlutos e os lutos ainda
maiores da vida diária obtêm-se das primeiras figuras introjetadas que formam a base
do ego e do supergo deste mundo interno do ser. A integração do ego se produz pela
elaboração do luto em partes de si mesmo e por seus objetos. (Knobel, 1992a, p. 35)
Embora Osório (1992) não aborde a questão do luto pelo corpo de forma tão
incisiva quanto Knobel, deixa claro a influência da imagem corporal na identidade do
adolescente. Para ele, a identidade do adolescente é estruturada a partir da sexualidade
que toma papel central na adolescência, e essa função estruturante ocorre porque o
adolescente formará representação mental da imagem de seu corpo, que contribuirá para
a formação de sua identidade. Ainda sobre este processo, afirma:
Assim como o processo de discriminação ‘eu - não eu’ não se faz ex-abrupto
e segue o princípio epigenético das aquisições graduais e sucessivas sem que a
rapidez do desenvolvimento possa alterar essa sucessão, tal diferenciação nunca se
completa inteiramente e certo grau de simbolização se mantém indefinidamente.
(Osório, 1992, p. 17)
Podemos observar, no trabalho de Knobel (1992a), que outros processos que
compõem a síndrome normal da adolescência também estão calcados nas necessidades
do corpo biológico. A necessidade de intelectualizar e fantasiar, por exemplo, surge
devido à renúncia ao corpo, ao seu papel e aos pais da infância. Os pensamentos e
fantasias que comumente tomariam conta da mente do adolescente, estariam a serviço
de deslocar o foco das renúncias e lutos que estão sendo feitos.
57
Outro luto pelo corpo, que Knobel diz poder influenciar o adolescente a
fantasiar, é sobre a perda da bissexualidade que está presente na identidade infantil. A
masturbação adolescente viria suprir mudanças que ocorreram desde o auto-erotismo
inicial, quando a fantasia da bissexualidade da criança era ainda mais aguçada; com o
desenvolvimento e o progressivo distanciamento do auto-erotismo, aquela tomaria seu
lugar, neste caminho que Knobel chama de evolução sexual desde o auto-erotismo até a
heterossexualidade:
De acordo com o que estou expondo, a masturbação é primeiro uma
experiência lúdica na qual as fantasias edípicas são manejadas solitariamente,
tentando descarregar a agressividade misturada com erotismo através da mesma, e
aceitando a condição de terceiro excluído. É, além da tentativa maníaca de negar a
perda da bissexualidade, parte do processo de luto normal da adolescência. (Knobel,
1992a, p. 50)
Na visão do autor, também as crises religiosas teriam caráter relativo às
mudanças no corpo biológico, sendo que viriam como tentativas de solução para a
angústia que toma conta do adolescente frente à sensação de morte do ego corporal. Se a
sensação é de morte, nada mais propício que buscar saídas sticas para aplacar as
angústias.
Seguindo a mesma lógica apresentada nos processos anteriores, a separação
progressiva dos pais não estaria livre de um luto. O luto que aqui se faz é em relação aos
pais da infância. Knobel (1992a) considera esta tarefa como facilitada pelo viés
biológico, pois as mudanças biológicas que são impostas ao corpo imporiam este
‘momento cronológico do indivíduo’. Este momento cronológico determinado
biologicamente seria a possibilidade da capacidade de executar plenamente sua
genitalidade, forçado por este impulso corporal, é imposta a separação dos pais. Cita
58
que a angústia em relação aos pais, pode ter maior ou menor impacto em cada
adolescente devido a modo pelo qual foram tidas as experiências infantis nas etapas
anteriores do desenvolvimento.
O período adolescente aparece, nesta visão, caracterizado especialmente pelas
mudanças do corpo biológico e o impacto que causam na formação da identidade do
indivíduo. Se por vezes os autores dizem considerar também os fatores presentes no
meio como influentes na formação da identidade adolescente, por outro lado enfatizam
a importância das transformações biológicas como a base para todo o desenvolvimento
psíquico e social. Podemos considerar, conforme posição dos autores, que as crises e
lutos enfrentados seriam muito mais conseqüência das manifestações biológicas e
seriam universais, pois a puberdade, enquanto representante do desenvolvimento
humano, está presente em todos os seres humanos. Com a apresentação do
posicionamento de Knobel e Aberastury, temos o exemplo de uma corrente que entende
a crise da adolescência como desencadeada por uma primazia do constituinte biológico
do indivíduo. De acordo com nossa proposta de análise, quando citamos que as teorias
tradicionais sobre a crise da adolescência apresentam fatores biológicos e sociais como
que estabelecidos num par de eixos em oposição, podemos caracterizar a argumentação
de Knobel e Aberastury segundo esta nossa proposição, e neste eixo citado, o peso
maior está calcado no biológico.
As influências culturais e os rituais de passagem no processo de constituição
da adolescência
A crise e o próprio processo adolescente não são analisados somente do ponto de
vista que coloca maior peso na emergência biológica. O impacto das mudanças na
59
cultura e na estruturação da sociedade moderna também aparecem como fatores que
desencadeariam um mal-estar nos jovens. Fatores como a industrialização altamente
avançada, alta especialização no trabalho, maior tempo de escolaridade e, especialmente
para alguns pensadores, a diminuição da presença de rituais de passagem no período de
transição de criança a adulto, são questões que dão um contorno específico às crises e à
adolescência contemporânea.
O posicionamento dos autores que apresentaremos, privilégio às mudanças
históricas e sociais como causa da crise da adolescência, ou seja, a crise seria um efeito
identificado no indivíduo em decorrência das transformações pelas quais passa a
sociedade.
Groppo (2000) traz uma definição sobre adolescência, do sociólogo
Hollingshead, para ilustrar uma visão comumente difundida na sociologia sobre o tema:
Sociologicamente, a adolescência é um período da vida de uma pessoa que se
define quando a sociedade na qual ela funciona cessa de considerá-la... uma criança e
não lhe atribui o status, os desempenhos e funções do adulto (...). Acreditamos que o
comportamento adolescente é um tipo de comportamento de transição que depende
exclusivamente da sociedade e, mais ainda, da posição que o indivíduo ocupa dentro
da estrutura social, e não dos fenômenos biopsicológicos relacionados a essa idade.
(Hollingshead apud Groppo, 2000, p. 10)
Chama a atenção, na colocação do autor, que o comportamento adolescente é
descrito apenas e tão somente como um reflexo da sociedade, não sendo levado em
consideração uma maior complexificação: todas as ações comportamentais de um
indivíduo adolescente são derivadas do social. Procurando destacar que a adolescência
não é um fenômeno biopsicológico, acaba por negar qualquer possibilidade de escolha
subjetiva por parte do indivíduo e, até mesmo, que a história de vida do indivíduo tem
60
influência em sua adolescência. O adolescente, na visão de Hollingshead, é um produto
social da posição que a sociedade oferece.
Esta é uma conceituação que Groppo (2000) critica, devido ao relativismo na
qual fica presa, não conseguindo definir seu objeto de estudos e deixando sua
caracterização apenas como um reflexo do contexto sócio-cultural. Afirma que
definições como a de Hollingshead surgiram para corrigir um outro erro de
determinadas correntes da sociologia, que se utilizou do critério etário para definir o
início da adolescência e circunscreveu seu final a partir de critérios cio-culturais.
Porém estas definições caíram num outro tipo de relativismo e não conseguiram definir
a adolescência.
Para sair desta armadilha, Groppo (2000) se escora no conceito de categoria
social. Destaca o caráter de construção social da terminologia juventude, pois esta vem
a significar uma rie de atos e comportamentos atribuídos aos jovens. Define a
juventude como uma categoria social, ou seja, enquanto uma representação específica
de um contexto sócio-cultural e de uma situação social.
... a juventude é uma concepção, representação ou criação simbólica,
fabricada pelos grupos sociais ou pelos próprios indivíduos tidos como jovens, para
significar uma série de comportamentos e atitudes a ela atribuídos. (Groppo, 2000, p.
7-8)
Groppo (2000) acredita que a juventude e outras categorias sociais têm enorme
importância no entendimento das sociedades modernas em relação a seu modo de
funcionamento e transformações. A juventude pode ser entendida como uma criação
social, no sentido que as faixas etárias e as próprias categorias sociais são criações
sócio-culturais. A questão etária, porém, não seria o único determinante da juventude, a
diversidade cio-cultural é fator preponderante na análise da juventude, deste modo, o
61
autor propõe que temos que pensar em juventudes devido à existência de uma
pluralidade de grupos, devido a fatores como: classe social, etnia, religião, gênero, etc.
As juventudes estariam diferenciadas não somente em relação às crianças e adultos mas
dentro de uma mesma época histórica e, dentro da própria juventude existem as
variações que permitem caracterizar vários tipos de juventude.
Procurando ir além de um determinismo biológico, considera as faixas etárias
como importantes devido ao significado que adquiriram na cultura moderna, ressalta
que não são naturais, tanto que receberam diversas novas nomenclaturas, inclusões e
supressões (cita alguns dos termos: infância, adolescência, juventude, jovem-adulto,
adulto, maturidade, idoso, velho, terceira idade...), mas coloca como próprios a todos os
indivíduos “... três momentos básicos do curso da vida social nascimento-ingresso na
sociedade, fase de transição e maturidade...” (Groppo, 2000, p. 13). Todas as
nomenclaturas, citadas anteriormente, viriam recobrir um destes três estágios
considerados fundamentais.
O autor afirma, ainda, que cabe a cada juventude, de acordo com o contexto
social e situação histórica que o envolve, redefinir sua própria posição enquanto
juventude. Essa possibilidade de redefinição, à luz das modificações sócio-históricas, é
que confere o status de categoria social à juventude.
Cada juventude pode reinterpretar à sua maneira o que é ‘ser jovem’,
contrastando-se não apenas em relação às crianças e adultos, mas também em relação
a outras juventudes. (Groppo, 2000, p. 15)
Groppo corrige o percurso de determinados sociólogos por não ficar amarrado
ao conceito de juventude que estava atrelado ao período etário, e avança ao o
considerar como uma evolução biológica do humano, mas se distancia da compreensão
62
de como se o processo de constituição da adolescência para o sujeito. Apesar de
afirmar que existe a vivência de forma diferente para cada indivíduo, continua apenas a
relatar sobre o fenômeno social juventude. Não fica claro como o indivíduo pode ter sua
margem de escolha
7
para além das modificações da categoria na qual está inserido.
A juventude também é vivida diferentemente em cada um dos gêneros,
mesmo quando se trata de indivíduos da mesma classe ou estrato social, do mesmo
ambiente urbano ou rural, etnia etc. Diversos estudos descreveram as dificuldades,
em geral, de as adolescentes experimentarem todas as prerrogativas dadas aos
adolescentes – inclusive dentro de um mesmo grupo concreto juvenil. (Groppo, 2000,
p. 16)
Groppo (2000) propõe que a criação de grupos é uma característica da juventude
contemporânea. Esta multiplicidade de juventudes tem origem nas formações sócio-
históricas anteriores ou atuais, sendo que a juventude moderna tem como principal traço
as contradições do projeto moderno, o que acabou por criar a juventude enquanto fase
preparatória para a idade adulta.
Embora importante para a compreensão das transformações da modernidade, as
definições de juventude utilizadas não permitem um acesso à experiência particular do
sujeito. Não apresenta a possibilidade de constituição dialética indivíduo-sociedade,
pois sempre que avança em relação à explicação sobre a formação da juventude, toma
apenas os fatores ‘externos’ ao indivíduo, ou seja, a formação sócio-cultural como
determinante da ‘vida individual’. Nesta visão, a formação do sujeito adolescente seria
resultado apenas do entrecruzamento das experiências sócio-culturais.
7
Embora a margem de escolha não seja tão grande como é propagada, afirmamos que o sujeito tem
escolhas possíveis de serem feitas. O tema da possibilidade de escolha pelo sujeito será melhor discutido
no decorrer da dissertação.
63
... a multiplicidade das juventudes não se funda num vazio social ou num
nada cultural, não emerge de uma realidade meramente diversa, ininteligível e
esvaecida. Tem como base experiências sócio-culturais anteriores, paralelas ou
posteriores que criaram e recriaram as faixas etárias e institucionalizaram o curso da
vida individual projetos e ações que fazem parte do processo civilizador da
modernidade. (Groppo, 2000, p. 19)
Coerentemente com este modelo, que prioriza os aspectos sócio-culturais e
formações grupais para o entendimento da vida particular, o autor afirma que uma
análise social considerada como ‘eficiente’ deveria levar em conta estudos que façam o
cruzamento das categorias juventude e geração, ou seja, para se chegar ao entendimento
da multiplicidade individual que temos em nossa sociedade, deveríamos analisar,
conjuntamente, estas ‘criações sociais’.
... uma análise social eficiente deve sempre combinar a categoria social
juventude ou geração com outras categorias sociais, procurando tornar mais
inteligível a reconhecida multiplicidade social... (Groppo, 2000, p. 23)
Nesta proposta de Groppo, a análise parte sempre do fenômeno social para
entender o plano individual. Embora não coloque o indivíduo num eixo oposto à
sociedade, não sugere uma possibilidade dialética de constituição, uma vez que o
entendimento das categorias sociais leva ao entendimento das diferenças individuais.
Groppo (2000) procura dar maior ênfase na juventude enquanto uma categoria
social, enquanto Santos (1996) considera a adolescência uma categoria histórica, ou
seja, primazia aos fenômenos históricos (as transformações ocorridas na sociedade
no decorrer da história como condições fundamentais para o entendimento da
construção de um conceito).
64
Santos (1996) aborda a adolescência enquanto um período de transição,
analisando-a como uma condição pela qual as pessoas passariam devido às
configurações da modernidade. Esta condição adolescente existiria devido à confluência
de três fatores (histórico, biológico e cultural), que têm variabilidade conforme a
sociedade e tempo histórico no qual são analisados.
... pode-se dizer que os conceitos de infância e adolescência são constituídos
por elementos de três ordens: o tempo, a natureza e a cultura, ou seja, eles referem-se
a três dimensões: sua variabilidade histórica, biológica – mudanças na natureza física
e psíquica do ser humano e cultural que são os significados, funções e valores
atribuídos a cada uma das idades da vida. (Santos, 1996, p. 145)
Santos (1996) também nota que, com as mudanças ocorridas na modernidade, os
rituais de passagem, se não desapareceram, no mínimo perderam a força que tinham
antes, não legitimam mais o jovem a assumir o estado de adulto. Para o autor, além da
questão da ausência de rituais, a falta de modelos claros, que definem o papel de adulto,
também são fatores que criam dificuldades no decorrer do processo adolescente:
Esses ritos de passagem cumprem um importante papel na fixação formal e
clara de quando ocorre a mudança de estado da infância para o estado adulto, e são
fundamentais para a construção da identidade do novo homem jovem. Sua ausência
ou diluição, ou ainda sua mera formalidade legalista nas sociedades modernas,
associada à falta de modelos e a indefinição de papéis claros, provocam uma
dificuldade de identificação da criança, contribuindo para produzir naquelas na época
de se tornar adultas uma fase de transição e conflito. (Santos, 1996, p. 155)
A principal problemática apontada por Santos refere-se à eliminação progressiva
que sofreram os rituais de passagem, fazendo com que a transição de criança a adulto,
que antes acontecia de modo gradual, não fosse mais um processo contínuo. A
65
adolescência, como fase de crise e conflito, seria fruto de um cultura onde não existe
mais uma integração da criança na ordem social adulta, faltam rituais que tenham uma
função demarcatória na vida dos jovens, o que pode as jogar numa ambigüidade que
desencadeia a característica crise da adolescência.
... a ausência de ritos de passagem que delimitem claramente o início e o
término dessa transição, a falta de definição explícita dos seus diretos e deveres, do
seu papel, e a diversidade dos modelos de identificação, imprimem à condição
adolescento-juvenil imensa ambigüidade. (Santos, 1996, p. 158)
Osório (1992) tem um posicionamento diferente em relação à presença dos
rituais na cultura contemporânea, descreve que os rituais continuam presentes na
cultura. Para ele, os ritos de iniciação estão presentes desde as primeiras civilizações e
têm a função de demarcar estágios cruciais de mudança na evolução dos membros e das
próprias instituições, considera os ritos de passagem à idade adulta como um destes e
ainda presentes na sociedade humana. Nos tempos de povos primitivos, diz que estes
rituais eram marcados por conteúdos mágicos, o que deixou resquícios até os dias de
hoje em alguns cerimoniais. A função, do ritual de entrada no mundo adulto, era
dificultar o acesso dos jovens aos privilégios deste mundo e também mostrar a mudança
de status que caracterizava este período de transição da adolescência. Narra que ainda
hoje seriam encontrados rituais, que os chama de modernos:
Entre os ritos de iniciação contemporâneos lembraríamos certas cerimônias
religiosas, como a primeira comunhão dos católicos, a confirmação dos protestantes
ou o barmitzvah dos judeus, o serviço militar, o baile de debutantes e o exame
vestibular às universidades. É de se observar que muitas vezes os próprios
adolescentes estabelecem seus ritos de iniciação, tais como o trote universitário ou as
provas exigidas para admissão em determinada ‘patota’ ou grupo de iguais. (Osório,
1992, p. 51)
66
Acredita que o prolongamento da adolescência, através de um maior número de
exigências e rituais para que se seja considerado adulto, presente na contemporaneidade,
é devido ao grande número de jovens cada vez mais bem preparados para assumir o
lugar dos adultos, com isto, as gerações precedentes procuram dificultar o acesso de
novos jovens ao status de adulto, para evitar uma maior competição. Afirma que a
manutenção desta situação também é responsabilidade dos adolescentes, pois eles não
seriam somente vítimas desse movimento feito pelas gerações compostas de adultos,
mas boicotariam seu desenvolvimento através de práticas alienantes que visariam a
formação de uma cultura adolescente.
A negação das vicissitudes da convivência humana, a percepção da sofrida
ascensão à autonomia da identidade adulta e a escassa tolerância ante a frustração de
postergar certas necessidades agudizadas pelo consumismo hodierno são alguns
fatores que estão na origem de muitos chamados movimentos contestatórios dos
jovens dos tempos atuais, que quando examinados à lupa escrutinante dos métodos
psicológicos e sociológicos hoje disponíveis mostram-se muito menos contestatórios
do que parecem e muito mais conservadores do que pretendem. (Osório, 1992, p. 52)
Abramo analisa a questão das instituições modernas e sua função na
adolescência. Propõe que, nas sociedades modernas, a preparação para a entrada no
mundo adulto está confiada à instituição escolar, e este tempo de preparação para um
momento posterior implicaria em uma “... segregação do mundo adulto e um longo
adiamento da maturidade social, que assim se desconecta da maturidade sexual e
fisiológica.” (Abramo, 1994, p. 3).
A função de ritual de passagem estaria, então, confinada à escola, pois esta seria
a única instituição que prepara o jovem conforme os valores e modelos que seriam
importantes no mundo adulto. Essa maior valorização da escola teria sido efeito da
67
maior especialização e divisão de trabalho que ocorreram após a industrialização da
sociedade. A falta de referências do mundo moderno é criticada por Abramo, que na
especialização econômica e no distanciamento da família das demais instituições da
sociedade como propulsoras da descontinuidade entre o mundo da criança e o do adulto.
A escola passa a ser um meio formal de preparação, porém distante das questões que
movimentam a sociedade adulta. Comparando com as sociedades primitivas, considera
a sociedade moderna menos institucionalizada e com papéis menos definidos.
Abramo acredita que a falta de rituais socialmente reconhecidos para marcar a
passagem da condição de criança a adulto, causa uma imensa ambigüidade. Escorada no
conceito de moratória de Erikson, cita a existência de uma suspensão da vida social,
com os jovens estando à margem do sistema produtivo e da ordem de interesses
constituídos.
Se, como vimos anteriormente, autores como Erikson, Knobel e Aberastury
apresentam a base biológica e maturacional como fundamentais para a adolescência e
assim adotam uma postura de naturalização do ser humano, vemos que Santos e
Abramo dispõem sobre os rituais de passagem como dispositivos sociais fundamentais
para o adolescente, sendo que a falta destes dispositivos resulta em crise. Seguindo esta
linha de raciocínio, é como se os rituais fizessem parte de uma estrutura social
elementar para um desenvolvimento ‘normal’ do adolescente, o que nos levar a pensar
que existe uma naturalização: a necessidade dos rituais de passagem para que exista
uma adolescência sem crise.
Abramo também confere grande importância, como outro fator desencadeante da
crise da adolescência, à multiplicidade de referências da modernidade, situação
diferentes das sociedades tradicionais, que contavam com referências mais restritas.
Considera que a família e as instâncias encarregadas de socializar os adolescentes
68
apresentam grande contraste entre as orientações, apelos e referências que passam aos
jovens, chegando a ter concepções opostas, com isso, a percepção sobre a juventude é a
de uma crise potencial:
Esses conflitos carregam a possibilidade de ruptura do processo de
integração do jovem à ordem, da transmissão da herança cultural ou mesmo da
própria ordem social. E é esta mesma crise, plantada no centro da condição juvenil,
que coloca a juventude como um problema da sociedade moderna. (Abramo, 1994, p.
14)
Abramo (1994) propõe, ainda, que existem dois tipos de crise: da adolescência,
uma crise própria do indivíduo, e a crise juvenil, uma manifestação coletiva onde
indivíduos, que se reconhecem em uma mesma situação, formam um grupo.
Deste modo, Abramo parece querer juntar duas visões diferentes: a) a crise da
adolescência como sendo do indivíduo com a primazia dos fatores internos, o que a
remete a autores como Knobel e Aberastury; e, b) quando cita a crise juvenil como
manifestação grupal, o que a aproxima do modelo de compreensão da sociologia.
Supondo a junção destes dois ‘pólos de crise’, a autora encontra a ‘explicação’
para a participação da juventude nas mudanças sociais pois, segundo Abramo (1994),
quando a crise individual é combinada com uma crise social, a juventude emerge como
uma categoria social que questiona a ordem, produzindo uma modificação na própria
juventude em questão e apontando os problemas da sociedade e a necessidade de
mudança social.
Ainda sobre a concepção da crise adolescente, a autora cita os estudos da Escola
de Chicago sobre delinqüência e subcultura na juventude. Esta pesquisa aponta que tais
manifestações surgem quando o processo de socialização do sistema social falha. A
sociologia funcionalista norte-americana defende que, devido à disjunção entre infância
69
e maturidade, é necessário um segundo processo de socialização a fim de preparar os
jovens para o mundo adulto, o que inclui preparar para os papéis modernos relativos à
profissão, casamento, cidadania política, entre outros.
A sociologia funcionalista reequaciona o caráter de crise e mudança
potencial contida na condição juvenil, localizando o seu papel na atualização do
processo de transmissão da herança cultural, na modernização e no rejuvenescimento
da sociedade, restando, no entanto, sempre um perigo potencial de radicalidade e
ruptura por parte de determinados grupos juvenis. (Abramo, 1994, p. 18)
Ou seja, por esta visão a crise e a rebeldia adolescentes teriam um componente
subversivo, surgiriam com maior intensidade nas sociedades onde o processo de
adaptação do jovem a uma determinada cultura não surtiu o efeito esperado. Embora os
jovens carreguem a tarefa de rever conceitos da sociedade e aos poucos modificá-los, a
autora destaca que a visão da sociologia funcionalista fica sempre alerta ao perigo de
que a juventude possa tomar ações radicais, é como se fosse necessário vigiar os atos
dos jovens. A crise adolescente, por vezes aos olhos dos estudiosos, teve um caráter
perigoso, de ameaça à continuidade social.
Santos (1996) também nota a importância que pesquisadores, filósofos e
educadores têm na modernidade para a construção dos novos modelos de infância e
adolescência. Acrescenta a influência de determinados ‘agentes’ na construção do
modelo de adolescência o qual consideramos atualmente como parâmetro da juventude.
... a mudança de status da criança foi gerada pela difusão de novos modelos
de infância e adolescência. Os agentes importantes na construção desses modelos
foram os filósofos e educadores, além dos próprios pais, cujas representações de
infância são passadas oralmente. Nas sociedades contemporâneas, além daquelas
categorias de agentes, um novo ator entra em cena: os ativistas em, direitos da
criança e do adolescente. (Santos, 1996, p. 185)
70
O papel das entidades representativas da sociedade na consolidação do modelo
de adolescência, bem como as características consideras como marcantes e gerais dos
indivíduos que se encontram em tal período, são de grande importância, para o autor.
Abramo (1994), como já citado anteriormente, considera esta visão atual da
adolescência, como inserida em um contexto de crise de referências culturais, por
representar características tão distintas, como a ameaça aos valores de uma sociedade, e
também por ser entendido (o adolescente nas novas legislações) como um sujeito de
direitos. Com isto a crise da adolescência seria compreensível, diante de tal
fragmentação do mundo moderno.
É então [crise das referências culturais] que emergem como personagens
expressivos desse novo universo juvenil os grupos articulados em torno do estilo.
São fenômenos que se desenrolam justamente no cruzamento dos campos do lazer,
do consumo, da mídia, da criação cultural e lidam com uma série de questões
relativas às necessidades juvenis desse momento. Entre elas, a necessidade de
construir uma identidade em meio à intensa complexidade e fragmentação do meio
urbano, e que se reflete no peso sinalizador e na velocidade das modas; a necessidade
de equacionar os desejos estimulados pelos crescentes apelos de consumo e as
possibilidades de realiza-los; a necessidade de se situar frente à enxurrada de
informações veiculadas pelos meios de comunicação; a necessidade de encontrar
espaços de vivência e diversão... (Abramo, 1994, p. 83)
Na visão dos autores acima apresentados há, então, uma preponderância dos
fatores considerados como ‘externos’, ou seja, provenientes da dinâmica social, como
desencadeadores da formação do conceito moderno do que chamamos de adolescente e,
também, como originários da crise do adolescente, a partir da suposta falta de
referências e marcas que determinassem a passagem da condição de adolescente para a
de adulto. O indivíduo seria, assim, formado à luz das transformações que ocorrem na
71
cultura, assimilando os impactos da mudanças na sociedade, com reflexo em seu
comportamento e em suas características. Por vezes, a adolescência é apresentada como
um tempo de transição e mudanças, e nesse momento, os autores mencionam também as
variações biológicas que a pessoa sofreria durante a adolescência, porém não noto, para
além de um determinismo dos mecanismos históricos e sociais sobre o indivíduo, uma
conexão que procure entender de que forma os aspectos sociais, históricos, psicológicos
e biológicos possam estar em um relação de constituição dialética.
72
3 - Sujeito, indivíduo e sociedade: entidades distintas?
Conforme nosso pressuposto a crise de identidade da adolescência está
vinculada à questão de como se a relação de constituição entre sujeito e sociedade ,
é necessário pensar como se estabelece a relação entre estas duas entidades, se é que
podemos considerá-las como duas entidades distintas. Introduziremos inicialmente a
discussão através da análise da construção dos conceitos de indivíduo e sociedade até
chegar à via do sujeito, que é a que nos concerne na psicanálise.
Apesar de aparentemente existir um consenso sobre o que estamos falando
quando nos referimos aos termos indivíduo e sociedade, é necessário pensar no que está
implicado nestes conceitos, pois a significação que está sendo passada a partir de quem
emite esses termos nem sempre é a mesma, especialmente se tratarmos de diferentes
filiações teóricas.
Na introdução deste trabalho, ao expor as diferentes teorias que procuram
explicar a crise adolescente, pudemos observar que o sujeito adolescente parece ser
compreendido e pesquisado sob duas principais vertentes: a) a partir da emergência de
uma essência humana de origem biológica presente na adolescência que desencadeia a
crise adolescente; ou, b) a crise adolescente como um reflexo dos efeitos culturais (mais
especificamente a desritualização e as mudanças nas esferas institucionais), onde o
adolescente seria constituído por uma força externa presente na sociedade.
Essas duas hipóteses, que foram levantadas no início deste trabalho, utilizam
uma conceituação de indivíduo que carrega uma essência de um ‘mundo interno’ e a
sociedade como uma ‘força externa’, que estariam em constante luta e não em uma
relação de constituição dialética.
73
Procuraremos mostrar, neste capítulo, que uma separação entre o que é do
indivíduo e da sociedade, ou seja, o indivíduo e a sociedade sendo considerados como
entidades distintas, não é possível de ser feita. O próprio conceito de indivíduo,
conforme veremos, não aparece desde sempre na cultura, tendo se configurado devido a
eventos e construções sociais que se efetuaram no decorrer da história.
Este será um primeiro passo para analisarmos o processo de individualismo pelo
qual a cultura contemporânea passa e pensarmos qual a conexão deste com o sujeito,
sobre o qual a psicanálise opera sua escuta.
A indissociabilidade entre indivíduo e sociedade
Norbert Elias em sua obra, A sociedade dos indivíduos, discute justamente a
questão da impossível dissociação entre indivíduo e sociedade. Torna-se, então,
indispensável ser uma de nossas referências neste percurso.
Elias (1994) afirma que cada sociedade tem suas peculiaridades, o que faz com
que uma sociedade localizada na Índia apresente formação e características muito
diferentes de uma na América, assim como uma do século XII é muito diferente de uma
do século XX. O autor diz que embora uma sociedade seja constituída por vários
indivíduos, a mudança de uma forma para outra de sociedade e as próprias
particularidades de cada uma delas, não é planejada por nenhum dos indivíduos, não é
movida por uma força individual.
Ela [sociedade] existe porque existe um grande número de pessoas,
continua a funcionar porque muitas pessoas, isoladamente, querem e fazem certas
coisas, e no entanto sua estrutura e suas grandes transformações históricas
independem, claramente, das intenções de qualquer pessoa em particular. (Elias,
1994, p. 13)
74
Desta forma, o modo de funcionamento de uma sociedade é mais complexo do
que uma simples explicação pela soma das ações dos integrantes da mesma e, a
diferença entre as sociedades, pode ser explicada pelas transformações históricas da
mesma, transformações que não são atos planejados por um ou mais indivíduos, mas
que se formam devido ao encadeamento funcional que gere uma organização social.
Para Elias (1994), as sociedades não são apenas uma junção dos membros que
fazem parte delas, ou seja, a soma dos indivíduos que a compõem, e também não foram
arquitetadas por determinados indivíduos ou organismos em um momento histórico
específico.
Existem dois posicionamentos majoritários no campo de estudo dos fatos
históricos e sociais que buscam explicar a origem das formações sociais, segundo o
autor. E, como poderemos observar, estes posicionamentos parecem estar bastante
próximos das teorias citadas no capítulo dois, que visam a dar conta da crise
adolescente: um modo de análise credita apenas a fatores históricos de uma sociedade a
emergência da crise adolescente, enquanto o outro supervaloriza os determinantes
biológicos.
O primeiro posicionamento, que Elias (1994) destaca, é o que considera que as
sociedades e outros tipos de formações sócio-históricas teriam sido criadas e
desenvolvidas pela ação direta de determinados indivíduos ou organismos sociais. Deste
modo, a organização social, que temos hoje, seria um resultado direto da ação e do
planejamento de determinados indivíduos. Este tipo de pensamento deriva da forma de
justificar o surgimento da sociedade através da criação racional e deliberada. Para o
autor, é um modelo que poderia servir bem caso fosse aplicado no entendimento da
75
construção de máquinas ou prédios, mas que é absolutamente insuficiente para pensar
no nascimento das instituições sociais.
[Os estudiosos desta corrente] Ao depararem com formações em que esse
tipo de explicação é difícil a linguagem ou o Estado, por exemplo -, ao menos
procedem como se essas formações sociais pudessem ser explicadas deliberadamente
produzidas por pessoas isoladas para fins específicos. (Elias, 1994, p. 14)
De acordo com este tipo de visão, é como se estes processos mais sofisticados e
complexos tivessem sido criados com uma finalidade específica, quando, na verdade,
esta explicação utilizada serve apenas para esconder a insuficiência explicativa da teoria
que propõe que foram atos deliberados que criaram a sociedade.
Elias (1994) sugere que, para este tipo de posicionamento, a análise dos fatos
históricos leva principalmente em consideração as ações individuais. Este seria o ponto
de partida para a compreensão de qualquer fenômeno. Os que não podem ser
explicáveis como tendo sido planejados ou criados por indivíduos, acabam saindo do
escopo da análise.
Um segundo posicionamento sobre as formações sociais despreza justamente o
papel do indivíduo nas transformações históricas e sociais, seguindo um modelo
biologicista de desenvolvimento e progresso. Para Elias:
Seus modelos conceituais são primordialmente extraídos das ciências
naturais; em particular, da biologia. Mas nesse caso, como tantas vezes acontece, os
modos científicos de pensamento misturam-se, fácil e imperceptivelmente, com os
modos religiosos e metafísicos, formando uma perfeita unidade. A sociedade é
concebida, por exemplo, como uma entidade orgânica supra-individual que avança
inelutavelmente para a morte, atravessando etapas de juventude, maturidade e
velhice. (Elias, 1994, p. 14)
76
Para Elias (1994), existe, neste segundo campo, um estudo sobre uma ‘natureza’
específica de cada fenômeno, as formações sociais específicas são entendidas como se
fossem habitadas por um ‘espírito’, ou seja, existiria um ‘espírito’ Romano, um
‘espírito’ da França revolucionária, que explicaria o porquê das formações culturais e
determinantes econômicos ocorrerem de uma maneira diferenciada em cada cultura.
Além destas duas correntes teóricas que buscam explicar as formações sociais
através do estudo dos fatos históricos e sociais, Elias destaca (e critica) correntes que
buscam explicar a relação entre indivíduo e sociedade apenas através do estudo das
funções psicológicas.
Elias (1994) afirma que determinadas correntes da psicologia tentam
compreender indivíduo e sociedade apenas através do estudo das funções psicológicas.
Estas correntes pesquisam o indivíduo isolando-o dos demais e das relações sociais,
como se fosse possível compreender a singularidade do indivíduo e o modo de
funcionamento de suas funções psicológicas. o poupa a psicologia social, pois esta
faria o oposto das correntes citadas acima, não conferindo nenhum espaço para as
funções psicológicas individuais. A análise dos fenômenos sociais feita pela psicologia
social e as ciências sociais geralmente considera a sociedade apenas como a soma ou a
média dos indivíduos:
... é comum se contentarem em tratar os fenômenos sócio-psicológicos como
a soma ou - o que na mesma a média das manifestações psicológicas de muitos
indivíduos. A sociedade se afigura, neste caso, simplesmente como uma acumulação
aditiva de muitos indivíduos, e o processamento estatístico dos dados psicológicos
aparece não apenas como um auxiliar essencial, mas como a meta e a evidência mais
sólida da pesquisa psicológica. (Elias, 1994, p. 15)
77
O exemplo da Gestalt mostra que o todo não é o mesmo que a soma das partes
envolvidas, pois é regido por leis especiais que o podem ser detectadas na análise dos
elementos isolados. Conforme Elias (1994) afirma, embora não haja um abismo entre
indivíduo e sociedade, ainda é difícil encontrar modelos conceituais que expliquem, sem
incorrer nos erros dos posicionamentos levantados anteriormente, como uma série de
indivíduos forma uma sociedade e como a sociedade se transforma.
Penso que, quando os debates sobre indivíduo e sociedade são levantados, a
questão sobre a existência de um dos dois pólos como mais importante (ou como fim) e
o outro como menos importante (ou como meio) recebe destaque. A pergunta seria: os
indivíduos ou a sociedade deveriam ter relação entre eles de meio para se atingir
uma finalidade? Em ambos os casos (indivíduo como meio e sociedade como finalidade
ou ao contrário), algo acaba sendo sacrificado às custas do outro. Parece existir uma
disputa entre qual é o meio e qual o fim e não se transcende esta questão. O que
superaria esta disputa é colocado como irrelevante de se pensar. Como se existisse um
objetivo maior que justificaria isto, possivelmente esse objetivo maior seria uma tomada
de posição em favor de indivíduo ou sociedade, ‘sacrificando’ o que for considerado
como meio para se atingir o fim.
A posição de Elias (1994) é de que sociedade e indivíduo não existem
separadamente, um não é meio para atingir um objetivo maior vinculado ao outro.
Considerados num nível mais profundo, tanto os indivíduos quanto a
sociedade conjuntamente formada por eles são igualmente desprovidos de objetivo.
Nenhum dos dois existe sem o outro. Antes de mais nada, na verdade, eles
simplesmente existem o indivíduo na companhia de outros, a sociedade como uma
sociedade de indivíduos - de um modo tão desprovido do objetivo quanto as estrelas
que, juntas, formam um sistema solar, ou os sistemas solares que formam a Via-
Láctea. E essa existência não-finalista dos indivíduos em sociedade é o material, o
78
tecido básico em que as pessoas entremeiam as imagens variáveis de seus objetivos.
(Elias, 1994, p. 18)
A relação entre os indivíduos se através da função que a pessoa ocupa na
sociedade. Cada pessoa tem um trabalho, uma família, uma casa, enfim, uma função
específica na sociedade. Elias (1994) afirma que não se muda de função simplesmente
por ter a intenção de mudar, pois existe uma ordem invisível que oferece aos indivíduos
um leque de opções restrito quanto às possibilidades de escolha que podem ser feitas.
Desde o nascimento, o ser humano estaria inserido em um complexo funcional de
estrutura bem definida, com isso suas possibilidades de mudança dependem de como irá
crescer na estrutura funcional da sociedade, o que está ligado também à situação de seus
pais e a escolarização que terá.
Desta maneira, por mais que uma pessoa não conheça a outra, está ligada por
laços invisíveis aos outros, pelo afeto, trabalho e propriedade: desde que nasceu, vive
numa estrutura de dependências e não tem como abandonar magicamente isto. Essa rede
de funções estruturais é muito específica em cada sociedade e não surgiu devido a um
contrato social, emergiu “...muito gradativamente, das cadeias de funções relativamente
simples do início da Idade Média, que no Ocidente, por exemplo, ligaram as pessoas
como padres, cavaleiros e escravos.” (Elias, 1994, p. 22).
Esta rede de funções da qual cada indivíduo faz parte é regida por leis próprias e
existe uma pequena margem de movimentação dentro dela, a extrapolação de seus
limites levaria ao derramamento de sangue.
Em nossa sociedade complexa, a interdependência das funções individuais está
encadeada a atos de indivíduos distintos para que cada um cumpra sua finalidade, ou
seja, as pessoas estão presas a viver em dependência funcional às outras, isso é o que
Elias chama de estruturas sociais.
79
Porém, segundo Elias (1994), grande parte das pessoas, consciente ou
inconscientemente, acredita que a origem dos indivíduos e da sociedade está calcada em
algum mito de criação. Enquanto algumas pessoas tomam para si o modelo religioso,
como a descrição bíblica, outros acreditariam numa forma laicizada de Adão, como um
pai originário ou primitivo como fundador.
O que o autor salienta é a crença do início a partir de uma pessoa só (seja no
caráter religioso ou no laico). Afirma que as pessoas que sustentam esta visão imaginam
que o início foi a partir de um adulto, como elas mesmas, esquecendo que um dia foram
crianças. Segundo Elias, alguns mitos científicos sobre a origem, vieram a colaborar
para a manutenção desta crença.
Devemos lembrar que, atualmente, nos Estados Unidos, existem pressões para
que o ensino do criacionismo volte a ser obrigatório nas escolas do país. E, em 2004, a
governadora (Rosinha Matheus) do estado do Rio de Janeiro instituiu o ensino do
criacionismo nas escolas públicas.
Mas Elias (1994) ressalta que esta visão só ajuda a ampliar este equívoco.
Sempre existiram pais e filhos, e o indivíduo nasce dentro de um grupo que havia
antes dele e precisa do grupo para poder crescer. É necessário ressaltar a dependência
do indivíduo frente às outras pessoas, pois somente em sociedade e na relação com
humanos que a criança pequena se transforma num ser mais complexo, sem isto
evoluiria para um animal semi-selvagem. Da linguagem ao controle dos instintos, tudo
viria do grupo com o qual convive. Assim que é gerado um ser humano singular, e não a
partir de um momento de criação mítico.
Mesmo dentro de um grupo, as relações conferidas a duas pessoas e suas
histórias individuais nunca são exatamente idênticas. Cada pessoa parte de uma
posição única em sua rede de relações e atravessa uma história singular até chegar à
80
morte. Mas as diferenças de rumos seguidos por diferentes indivíduos, entre as
situações e funções por que eles passam no curso de sua vida, são menos numerosas
nas sociedades mais simples do que nas complexas. E o grau de individualização dos
adultos nestas últimas sociedades é consoantemente maior. (Elias, 1994, p. 27)
A estrutura básica da sociedade existe antes da criança e da família e isto influi
muito no modo que ela vai se formar. A individualidade que um indivíduo vai atingir
depende não apenas da constituição natural (a qual Elias também considera importante)
mas do processo de individualização. O autor cita o exemplo da Renascença, onde não
foi uma mutação em pessoas isoladas que propiciou um avanço na individualização,
mas eventos sociais e mudanças na posição social dando origem a novos grupos que
possibilitaram o avanço da individualização.
O individualismo trouxe um sentimento por parte das pessoas como se estas
tivessem um ‘dentro de si’, que seria como uma existência do ser inteiramente só, sem
relação com os outros e que só ‘depois’ se relacionaria com os outros ‘do lado de fora’.
Este tipo de sentimento, se formou a partir de uma visão cindida entre indivíduo e
sociedade.
O controle ‘externo’ da sociedade teria aumentado muito, acompanhado do
distanciamento que a criança passou a ter do mundo adulto. Seria como se a criança
vivesse em um mundo ‘fora’ da sociedade e quando jovem, teria que se adaptar a essa
realidade social. Com essa abrupta separação que existe entre as funções de uma criança
e de um adulto em nossa sociedade, a adaptação ficou muito mais difícil.
... a maneira como a sociedade promove a adaptação do indivíduo a suas
funções adultas acentua, com muita freqüência, a cisão e a tensão internas a seu
psiquismo. Quanto mais intenso e abrangente é o controle dos instintos, quanto mais
estável é a formação superegóica exigida pelo desempenho das funções adultas numa
sociedade, maior se torna, inevitavelmente, a distância entre o comportamento das
81
crianças e dos adultos; quanto mais difícil se torna o processo civilizador individual,
mais longo é o tempo necessário para preparar as crianças para as funções adultas.
Justamente por ser tão vasta a discrepância entre a atitude das crianças e a que se
exige dos adultos, o jovem já não é colocado, quando criança, no degrau mais
inferior da carreira funcional que está destinado a escalar, como nas sociedades mais
simples. Não aprende diretamente, servindo a um mestre adulto de sua futura função,
como fazia o pajem de um cavaleiro ou o aprendiz de um mestre artesão. Ele é
inicialmente afastado da esfera dos adultos por um longo período e que ainda
continua a crescer. Os jovens que se preparam para uma gama cada vez mais variada
de funções não são diretamente treinados para a vida adulta, mas o são
indiretamente, em institutos, escolas e universidades especializados. (Elias, 1994, p.
32-33)
As tensões, provenientes deste distanciamento do mundo adulto e a divisão tão
especializada do trabalho, exigem uma preparação bastante estrita como um abismo que
se forma entre o jovem e o adulto, sendo que o jovem é cercado de falsas promessas que
não se realizam, o que aumentaria a tensão psíquica do indivíduo.
Entre a vida nas reservas juvenis e no campo bastante restrito e especializado
do trabalho adulto, raramente existe uma verdadeira continuidade. Muitas vezes, a
transição entre os dois é uma ruptura brusca. Não raro se oferece ao jovem o mais
amplo horizonte possível de conhecimentos e desejos, uma visão abrangente da vida
durante seu crescimento; ele vive numa espécie de ilha afortunada de juventude e
sonhos que marca um curioso contraste com a vida que o espera como adulto. É
incentivado a desenvolver várias faculdades para as quais, na estrutura atual, as
funções adultas não deixam margem alguma, e diversas inclinações que o adulto tem
que reprimir. Isso reforça ainda mais a tensão e a cisão intrapsíquicas do indivíduo a
que anteriormente nos referimos. (Elias, 1994, p. 33)
A impressão que acaba por ficar é que o indivíduo, devido a estas pressões
contra sua ‘natureza interior’, sente como se a sociedade o tivesse trancafiado em uma
cela. Esta é a discussão que está em pauta pelas teorias ambientais, a luta entre o
82
‘interno’ e o ‘externo’, sendo que algumas correntes propõem uma solução conciliadora
que seria a interação entre o ‘dentro’ e o ‘fora’, fatores psíquicos e sociais,
respectivamente. Essa concepção de um eu o qual Elias denomina de eu puro (objeto
de estudos da psicologia) como ‘externo’ à sociedade (objeto da sociologia), traz a
falsa possibilidade de isolar esse eu do entorno social, como forma de extrair uma
essência humana. O autor considera esta visão equivocada e insuficiente para explicar a
relação indivíduo e sociedade e faz sua proposição:
Assim como, numa conversa contínua, as perguntas de um evocam as
respostas do outro e vice-versa, e assim como determinada parte da conversa não
provém apenas de um ou do outro, mas da relação entre os dois, a partir da qual deve
ser entendida, também cada gesto e cada ato do bebê não são produtos de seu
‘interior’ nem de seu ‘ambiente’, nem tampouco de uma interação entre um ‘dentro’
e um fora’ originalmente distintos, mas constituem uma função e um precipitado de
relações, podendo ser entendidos como a imagem do fio numa trama - a partir
da totalidade da rede. (Elias, 1994, p. 35)
Imaginamos o ser humano como dotado de compartimentos psíquicos (mente,
alma, razão, sentimento, consciência, instinto, ego e id), sendo que estes termos são
produtos de um processo sócio-histórico, da transformação da estrutura da vida
comunitária. Usados desta forma, passam a impressão de repouso e não de movimento,
como devem dar.
De acordo com Elias (1994), o alto grau de maleabilidade do ser humano é o que
condições de ser diferente dos animais, o ser humano é um ser social, em relação
com os outros. O que faltaria em determinação hereditária para a relação com outros
seres é substituída por uma determinação social, assentada nas funções psíquicas.
Elias considera que para entender a psique das pessoas é necessário compreender
as relações entre os indivíduos, que a função da hereditariedade não é grande na
83
determinação psíquica dos indivíduos, então a chave para se chegar à psique da pessoa
singular seria a compreensão das relações entre os indivíduos.
Os seres humanos são parte de uma ordem natural e de uma ordem social. As
considerações precedentes mostraram como é possível esse duplo caráter. A ordem
social, apesar de muito diferente de uma ordem natural, como a dos órgãos no
interior de determinado corpo, deve sua própria existência à peculiaridade da
natureza humana. Essa peculiaridade consiste na mobilidade e maleabilidade
especiais pelas quais o controle comportamental humano difere do dos animais.
(Elias, 1994, p. 41)
Essa peculiaridade da natureza humana distingue o homem de todos os outros
animais. Assim, as tentativas de explicar o homem através de experiências com animais
ou mesmo apenas através de regularidades biológicas não são úteis. Aproximar a
ciência social das explicações fornecidas pelas ciências naturais também é um grande
erro. Mas nosso pensamento ainda está muito condicionado a pensar os acontecimentos
da humanidade através da causalidade, procurando sempre uma causa ‘externa’ que
forneceria uma explicação. Elias nota que as mudanças ambientais sofridas pelo planeta
ou pela espécie humana foram ínfimas nos últimos milênios, e o que realmente mudou
foi a estrutura da sociedade ocidental, influenciando assim o indivíduo e suas formações
psíquicas.
Toda sociedade grande e complexa tem, na verdade, as duas qualidades: é
muito firme e muito elástica. Em seu interior, constantemente se abre um espaço para
as decisões individuais. Apresentam-se oportunidades que podem ser aproveitados ou
perdidas. (Elias, 1994, p. 48)
Mas essas oportunidades que são criadas na sociedade não foram criadas tão
livremente pelos indivíduos, foram criadas e são limitadas pela própria estrutura da
84
sociedade em relação com as funções que as pessoas exercem nela. Nenhuma pessoa,
por mais forte ou inteligente que seja, consegue sozinha ultrapassar as leis autônomas
que regem o funcionamento da sociedade.
enfatizamos que essa noção de individualidade como expressão de um
núcleo natural extra-social dentro do indivíduo, em torno do qual os traços ‘típicos’
ou ‘sociais’ se depositam como uma concha, está ligada, por sua vez, a uma vida
íntima específica e historicamente determinada. Essa noção está ligada à tensão entre
as funções egóicas e superegóicas, de um lado, e as funções instintivas, de outro
uma tensão que jamais, em nenhuma sociedade, está completamente ausente, mas se
mostra especialmente intensa e difusa quando o processo civilizador atinge um
estágio avançado. Essa tensão as contradições entre os desejos do indivíduo
parcialmente controlados pelo inconsciente e as exigências sociais representadas por
seu superego é o que alimenta constantemente a idéia de um núcleo individual
natural na concha condicionada pela sociedade ou pelo ambiente. (Elias, 1994, p. 52-
53)
Essa noção de individualismo marcaria como que uma contradição entre
indivíduo e sociedade. O indivíduo seria aquele que possui seus desejos, instintos que
buscam ser satisfeitos, possuiria uma essência ‘interna’ que carrega desde o seu
nascimento, algo dado pelo seu biológico, enquanto a sociedade seria o ‘externo’,
representaria os controles que afastam cada vez mais o indivíduo de seu núcleo
‘natural’. As outras pessoas e a própria formação social são sentidas pelo indivíduo
como algo que não lhe diz respeito, que não faz parte de sua essência. Colocar o ser
enquanto separado dos demais, permitiu, no Renascimento, ao sujeito se perceber como
indivíduo, separado do mundo e do que o cerca, numa relação com estes últimos de
objeto. Isso possibilitou ao indivíduo olhar a si como ‘externo’ aos outros e à natureza.
Somente quando o indivíduo pára de tomar a si mesmo como ponto de partida de
seu pensamento e consegue ver a si como parte e em relação com a rede humana, que é
85
móvel, que se torna possível pensar no ‘dentro’ e no ‘fora’. Caso contrário continuará a
entender as formações sociais como autônomas em relação a si.
’Individualidade’ é uma expressão que se refere à maneira e à medida
especiais em que a qualidade estrutural do controle psíquico de uma pessoa difere da
outra. Mas essa diferença específica das estruturas psíquicas das pessoas não seria
possível se sua auto-regulação em relação a outras pessoas e coisas fosse
determinada por estruturas herdadas, da mesma forma e na mesma medida em que o
é a auto-regulação do organismo humano, por exemplo, na reprodução de órgãos e
membros. (Elias, 1994, p. 54)
Ou seja, Elias considera que o que possibilitou uma maior individualidade e um
sentimento de separação do indivíduo do todo social, considerando este como algo
externo e como seu objeto (de uso ou de pesquisa), é justamente a não existência de
uma essência humana baseada na hereditariedade. Por ser mais maleável do que os
outros seres, o humano conseguiu um grau maior de diferenciação. Devido à sua
especial tendência a formar grupos (desde o nascimento necessita do cuidado dos
demais) que conseguiu esta maior individualidade. E foi a articulação dos indivíduos na
sociedade através das funções que possibilitou essa maior diferenciação, conforme as
sociedades ficaram mais complexas e a estrutura funcional foi ampliando, maior foi a
possibilidade de uma diferenciação entre os membros, mais a configuração psíquica dos
indivíduos começou a diversificar.
Mudanças na sociedade que favoreceram o individualismo
Um número cada vez maior de funções relativas à proteção e ao controle do
indivíduo que era exercido por grupos pequenos (tribo, paróquia, feudo ou o Estado)
vem sendo transferido para os Estados altamente centralizados e cada vez mais
86
urbanizados. Com essa tendência, grande número de pessoas adultas deixam os grupos
locais próximos, baseados na consangüinidade, o que traz uma ruptura na coesão dos
grupos e transfere o poder a sociedades cada vez maiores. Exemplo maior disto é a
própria globalização, se antes eram comunidades que detinham o controle social, este
foi sendo passado a organizações cada vez maiores, e hoje os blocos comerciais
começam a organizar a sociedade, vide o exemplo da União Européia e do Mercosul.
Nesta situação, o indivíduo, cada vez mais longe do centro decisório, necessita lutar
muito mais por seus direitos. Por outro lado, sua possibilidade de mobilidade na rede
social aumenta muito e os laços com grupos próximos ou de parentesco ficam cada vez
mais distantes.
E, à medida que os indivíduos deixam para trás os grupos pré-estatais
estreitamente aparentados, dentro de sociedades nacionais cada vez mais complexas,
eles se descobrem diante de um número crescente de opções. Mas também m que
decidir muito mais por si. Não apenas podem como devem ser mais autônomos.
Quanto a isso, não tem opção. (Elias, 1994, p. 102)
A questão da autonomia e da luta individual pelo que uma pessoa quer, deixa de
ser um direito, passa a ser uma imposição, a única forma do indivíduo conquistar seu
lugar na sociedade. Essa busca solitária que o indivíduo faz se assemelha a um controle
geral dos afetos. A busca solitária por um lugar na rede social, que por um lado é visto
como aspecto de individualização, por outro se apresenta como processo de civilização.
Elias (1994) chama este processo de ‘privatização’, no qual o indivíduo se sente
separado dos demais, não necessitando de um intercâmbio social. Desta forma, o
indivíduo se percebe como um ser ‘internamente’ separado dos demais, se
relacionaria com os demais indivíduos retrospectivamente.
87
Nas sociedades que atingem este estágio, a transição entre a condição de criança
à condição adulta assume um caráter mais complexo, que realça tensões e cisões na
personalidade. Isto seria devido à própria complexidade das funções e papéis que são
desempenhados pelos adultos, aliados a um controle dos instintos multifacetado. O
autor acredita que, partindo de um comportamento infantil padrão, inicial a todas as
crianças, a adaptação é mais penosa nas sociedades modernas pois existe um padrão de
civilização extremamente complexo, o que demandará um tempo muito maior de
preparação para que as crianças possam atingir um nível esperado para exercer os
papéis e funções adultas.
À medida que aumenta o hiato entre o comportamento espontâneo das
crianças e a atitude exigida dos adultos, torna-se cada vez menos possível colocar a
criança, em idade precoce, como se faz nas sociedades mais simples, no degrau
inferior da escada funcional cujo topo se pretende que ela alcance. Até na sociedade
da Idade Média européia, era freqüente o jovem ser treinado diretamente a serviço de
um mestre adulto. O pajem servia ao cavaleiro, o aprendiz, ao mestre da guilda. E,
ainda que fosse inatingível para o indivíduo, a escala da carreira era relativamente
baixa e tinha poucos degraus. Quando as sociedades se tornam mais complexas e
centralizadas, quando a especialização aumenta e se diversificam as carreiras
oferecidas pela sociedade, a preparação necessária para o desempenho das tarefas
adultas também se torna mais prolongada e complexa. Durante um período extenso e
que ainda continua a se alongar, as crianças e os jovens são isolados dos círculos
adultos: freqüentam a escola e estudam em universidades, agremiações técnicas e
outras instituições especialmente organizadas para o preparo dos moços. (Elias, 1994,
p. 104)
A alta especialização, que as profissões adultas exigem, faz com que mais e mais
cursos de aperfeiçoamento e instituições de ensino sejam criados, aumentando o acesso
à educação e também ampliando o tempo que o jovem passa na fase de preparação. Se
observarmos retrospectivamente, há menos de vinte anos atrás, o nível de graduação era
88
considerado de uma alta especialização, poucas universidades possuíam cursos de
mestrado e doutorado, ou mesmo de especialização. Atualmente, inúmeras
universidades oferecem mestrados e doutorados, mestrados profissionalizantes,
extensões universitárias, cursos técnicos, faculdades de tecnologia, cursos de MBA... o
tempo de preparação parece ter se estendido para toda uma vida.
Elias (1994) salienta que pessoas que estão biologicamente maduras ainda são
consideradas como imaturas para as tarefas sociais, são tratados como aprendizes,
adolescentes ou jovens, mas não obtém o acesso às categorias de homem e mulher. Com
isto existe a criação de uma cultura jovem, à espera de que sua expansão cultural e de
conhecimento lhe traga o passaporte para a vida adulto. Mas, se toda esta preparação
deveria facilitar o ingresso no mundo social adulta, não é isto que vem ocorrendo, o
tempo de transição e a própria entrada no mundo adulto parece uma tarefa difícil para o
psiquismo. A expectativa de sucesso e de encontrar um lugar que o diferencie, que
satisfaça sua busca parece não se completar na sociedade à qual eles conseguem
entrada.
As tarefas profissionais acessíveis à massa dos indivíduos, na longa estrada
da industrialização e da urbanização das tensas sociedades de transição, só coincidem
com as expectativas dos jovens na minoria dos casos. Especialistas como são, dão
margem limitada, na maioria deles, às inclinações e faculdades dos indivíduos.
Muitas vezes, não uma congruência ou continuidade adequada entre a vida na
reserva da juventude e nos campos predominantemente restritos da atividade adulta.
Nessas sociedades complexas, a primeira assemelha-se a encraves ou ilhas especiais
de onde nenhuma via direta leva à segunda. (Elias, 1994, p. 105)
Assim, a continuidade esperada entre a transição de jovem a adulto não
corresponde ao que é encontrado, pelo contrário, parece haver um corte doloroso que
marca a passagem de jovem a adulto, toda a preparação que o jovem faz não é aplicada
89
em grande parte da sua potencialidade. As aptidões e interesses que os jovens
desenvolvem durante seu período de formação não são utilizados para as funções
adultas que irão assumir e, por vezes, as inclinações, interesses e habilidades dos jovens
acabam por ser censurados pelos adultos por não serem compatíveis com a função
social que estes pretendem assumir.
Essa crescente especialização das sociedades abre inúmeras possibilidades de
funções sociais aos indivíduos, mas cada função é extremamente específica, ou seja, se
a gama de funções sociais aumentou, o controle rígido sobre cada função também
aumentou. O longo tempo de preparação individual aumenta a sensação de uma
preparação ‘interna’, da existência de um ‘mundo interno’ a ser aplicado ao ‘mundo
externo’. Conforme a tentativa de conjugar esses dois supostos mundos, o indivíduo
se apercebe que as inclinações pessoais podem não encontrar correspondência na
civilização da qual faz parte, o indivíduo começa a querer conciliar esses ‘dois mundos’.
Para Elias (1994), conforme o homem vai conhecendo e conseguindo dominar
os processos naturais, começa a diminuir a barreira existente entre o ‘mundo externo’
que vai perdendo terreno para o ‘mundo interno’ humano, mas não que isto signifique
que encontramos uma solução epistemológica para a questão entre ‘interno’ e ‘externo’.
O que toma o lugar de discussão é a questão a ser resolvida, entre a parte ‘interna’ do
indivíduo e a sociedade ‘externa’. Esse sentimento de uma verdade interior, que o
indivíduo tem, começa a ser ameaçado pela representação que ele forma de ‘sociedade’
que seria o externo que vem para controlar e reprimir as tendências que supõe ser
naturais. A sociedade seria aquilo que impede o ser humano de realizar toda a sua
potencialidade, sua vida ‘natural’ e ‘autêntica’.
Essa visão não existia nas comunidades mais primitivas e unidas, pois as pessoas
sabiam estar ligadas umas às outras durante toda a existência. Todos os pensamentos e
90
decisões passam pela referência ao grupo. Elias diz que isso não significa que, por este
fator, eles convivam harmoniosamente, mas ressalta que o pensamento e a ação estão
ligados ao ‘nós’, não há pensamento individual, o importante é a sociedade.
Por outro lado, no que chamamos de sociedade moderna, este panorama é
diferente, o pensar como indivíduos desligados de uma sociedade e as oportunidades de
escolha não são apenas possibilidades, mas requisitos da vida contemporânea.
Nas sociedades industrializadas, urbanizadas e densamente habitadas, os
adultos têm muito mais oportunidade, bem como necessidade e capacidade, de ficar
sozinhos, ou pelo menos de ficar a sós aos pares. Escolher por si entre as muitas
alternativas é exigência que logo se converte em hábito, necessidade e ideal. Ao
controle do comportamento pelos outros vem juntar-se um crescente autocontrole em
todas as esferas da vida. (Elias, 1994, p. 108)
Esse tipo de sociedade é marcada, também, por uma valorização de
determinados atributos: a liberdade, independência e o responder por si próprio são
algumas destas características. Por outro lado, esta enorme busca de um responder por si
mesmo e da verdade interior parece levar grande parte dos indivíduos a sentir solidão ou
não estarem vivendo uma vida própria.
Aumenta a possibilidade de cada um buscar sua felicidade, seu sonho e, mesmo,
gastar tempo e fracasso em busca de suas realizações, as oportunidades de escolha se
multiplicam. Por outro lado, as coisas a não serem vividas também aumentam, pois se
aumentam as possibilidades, é necessário que deixemos de lado um enorme número de
opções, o que cria uma sensação de que o indivíduo não está aproveitando ou está
deixando muitas coisas da vida de lado.
Nas sociedades mais simples menos caminhos, quando não há um só, e é raro
que alguém seja colocado em uma encruzilhada sozinho para realizar uma escolha.
91
Nessas sociedades o maior risco são as forças naturais. As exigências a serem lidadas
são as do momento e não as do futuro, não a possibilidade de alguém deixar sua
função social para buscar ‘realizar-se’ em outra.
Nas sociedades complexas, o processo crescente de aumento dos passos na
consecução de um trabalho, onde cada pessoa passa a se tornar um especialista em uma
tarefa determinada, faz com que o indivíduo se distancie cada vez mais de uma
compreensão global da sociedade da qual faz parte.
Quanto mais extensas se tornavam as cadeias de ação, mais difícil se fazia,
para o indivíduo entremeado na rede de dependência por suas capacitações, obter
uma visão global; e mais árduo se tornava distinguir o que era meio do que era fim.
(Elias, 1994, p. 112)
O aumento na cadeia de ação pode ser notado no uso de objetos nas transações
até chegar na circulação da moeda. Apesar da vinda do homo sapiens, Elias afirma
ainda ter sido necessário centenas de gerações até que se acumulasse experiência
suficiente para isto acontecer, que não foi derivado de um desenvolvimento biológico
do ser humano, apenas partiu do que ele chama de uma matéria prima biológica. O
desenvolvimento desta cadeia de ação altamente complexa foi produto de um controle
da natureza somado ao controle social e também a um autocontrole, seria a reunião
destas três formas de controle (não a reunião, mas os três controles interligados) que
possibilitaram ao ser humano este desenvolvimento visto atualmente.
É necessário lembrar como foi a história do domínio do homem sobre as forças
naturais para saber como ele ficou livre para outras tarefas que não as do presente
imediato, possibilitando outros tipos de ações não ligadas ao dia-a-dia e sim voltadas à
construção de uma sociedade.
92
É provável que seja especialmente difícil reconhecer, nos dias atuais, que as
qualidades dos seres humanos designadas por termos como ‘individualidade’ não são
simplesmente dadas pela natureza, mas constituem algo que se desenvolveu a partir
de uma matéria prima biológica, embora somente no decurso de um longo processo
social. Trata-se de um processo de ‘individualização’ que, no grande fluxo do
desenvolvimento humano, é inseparável de outros processos, como a crescente
diferenciação das funções sociais e o controle cada vez maior das forças naturais não-
humanas. (Elias, 1994, p. 117)
Essa diferenciação de funções sociais levou os indivíduos a uma maior
individualização, não somente enquanto requisito da sociedade em relação à
funcionalidade do indivíduo, mas na criação de ideais que valorizavam a diferenciação
entre os indivíduos. Na infância, o indivíduo recebe coordenadas para buscar um
autocontrole e sua independência. Durante todo o ciclo de vida constata que os ideais da
sociedade o incentivam à competição com os demais e à busca do sucesso, que somente
serão atingidos se ele se mostrar diferenciado em relação aos outros membros de sua
comunidade. Por outro lado, Elias diz que existe um enorme controle social que não
deixa tão livre assim essa busca do indivíduo, pois este controle serve para restringir as
áreas em que o indivíduo poderá buscar essa ‘diferenciação’ que é exigida dele.
A estrutura mental que a sociedade oferece, de uma antítese entre uma
individualidade inata e uma sociedade ‘externa’, serve então para explicar fenômenos
que, na realidade, são produto de discrepâncias dentro da sociedade, do desencontro
entre a orientação social do esforço individual e as possibilidades sociais de
consumá-lo. (Elias, 1994, p. 121)
A luta entre o indivíduo e a sociedade fica acirrada, o sentimento é como se uma
força coercitiva ‘externa’ (a sociedade) agisse de forma a sufocar a ‘natureza humana’
que o indivíduo carrega internamente, ‘dentro de si’. Com isto, a busca de uma
93
individualização ainda maior e o sentimento de não pertencimento a um grupo social
aumenta, o pensamento individualista se acirra.
O surgimento do indivíduo
Em seu livro O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia
moderna, Dumont (2000) afirma que o modelo do individualismo moderno está
prefigurado desde os primeiros cristãos e apenas após dezessete séculos de cultura e
história cristã o modelo, após várias e lentas transformações, se consolidou.
Segundo o autor houve uma passagem do que denomina de sociedades holistas,
aquelas em que a sociedade constitui no valor supremo, para as individualistas, onde o
Indivíduo (destaque de Dumont em maiúsculo para marcar o indivíduo enquanto valor)
constitui o valor supremo.
Para a análise desta passagem da sociedade holista para a individualista, Dumont
usa o modelo de sociedade da Índia tradicional, onde, apesar de ser uma sociedade que
impõe uma rígida interdependência entre seus membros, destaca a figura do renunciante
como a possibilidade de se conseguir a plena independência. O renunciante, em busca
da verdade, abandona a vida social considerando o mundo social que deixou muito
distante, e o isolamento aparece como uma libertação das dificuldades que a vida em
sociedade apresenta. Sendo então uma busca que pode ser feita individualmente, este
seria o caminho da descoberta do eu, único e autônomo.
...o renunciante basta-se a si mesmo, só se preocupa consigo mesmo. O
pensamento dele é semelhante ao do indivíduo moderno, mas com uma diferença
essencial: nós vivemos no mundo social, ele vive fora deste. Foi por isso que chamei
ao renunciante indiano um ‘indivíduo-fora-do-mundo’. Comparativamente, nós
94
somos ‘indivíduos-no-mundo’, indivíduos mundanos; ele é um indivíduo
extramundano. (Dumont, 2000, p. 38)
Dumont refere-se ao renunciante como um indivíduo-fora-do-mundo, ou seja,
aquele que se isolou da sociedade. Marca esta oposição em relação ao indivíduo
moderno que ele chama de indivíduo-no-mundo. O indivíduo moderno não seria a
continuação do renunciante, embora guarde características do indivíduo-fora-do-mundo.
Apesar da grande semelhança de pensamento entre o indivíduo-fora-do-mundo e o
indivíduo-no-mundo, o renunciante indiano vive ‘fora’ do mundo social enquanto, o
indivíduo moderno, vive o mundo social. O surgimento deste indivíduo-no-mundo tem,
segundo o autor, origem na doutrina cristã.
A concepção proveniente do cristianismo é que o homem nasceu dos
ensinamentos de Cristo, está em relação com Deus, ou seja, ele é um indivíduo-em-
relação-com-Deus, o que significa afirmar que é um indivíduo-fora-do-mundo. Neste
ponto, se aproximam o renunciante indiano e o indivíduo moderno, ambos são
constituídos através de uma relação extramundana.
Paulo Silveira (1997), analisando a questão da gênese extramundana do
indivíduo e suas relações com a ideologia, realça a questão levantada por Dumont que é
a constituição da sociedade através de um laço que chama de extra-social, ou seja, o
laço que os indivíduos mantêm não é com os indivíduos da sociedade, mas sim com o
que está fora do mundo.
...o indivíduo como tipo sociológico é essencialmente extra-social, isto é, ele
não é constituído por nenhum laço social, quer seja o indivíduo-fora-do-mundo (da
Índia Antiga ou do advento do cristianismo) ou o moderno indivíduo-no-mundo.
(Silveira, 1997, p. 14)
95
Dumont (2000) considera que, progressivamente, a vida mundana está sendo
deslocada para dar lugar ao extramundano. Se os primeiros renunciantes cristãos
apresentavam características mais próximas ao renunciante indiano, na modernidade,
existe uma distância muito menor entre o valor supremo que era suposto no
extramundano e o mundo que habitamos. Com isto, é levada em conta a possibilidade
de conciliar o elemento mundano com o valor supremo, que era buscado no
extramundano. A partir desta possível conciliação entre elemento mundano e valor
supremo, o indivíduo-fora-do-mundo se transformará no indivíduo-no-mundo.
O autor nota esta mudança com o imperador Constantino, no século IV, que
obrigou a Igreja a parar de depreciar o Estado como fazia até então. Com esta
aproximação, “o Estado tinha, em suma, dado um passo fora do mundo, na direção da
Igreja mas, ao mesmo tempo, a Igreja tornou-se mais mundana do que fora até aí.”
(Dumont, 2000, p. 53).
O grande debate sempre foi em formular a união entre Deus e o homem, em
Jesus Cristo, o extramundano e o intramundano. Para esta junção, colaborou o fato de os
Papas terem conquistado uma função política, aproximando ainda mais o extramundano
do mundano. Houve mudanças nas duas instituições: a Igreja começa a se tornar mais
mundana e o Estado passa a compartilhar de valores absolutos e universalistas. O
Estado moderno acaba por ser uma Igreja reformada, pois ele não é constituído de leis
ou de funções sociais, mas de indivíduos.
Silveira (1997) considera que Dumont não quis ignorar o caráter laico do Estado
moderno com esta afirmação de que o Estado moderno seria uma Igreja transformada.
Seria uma forma de salientar a gênese extramundana e religiosa que tomou conta da
formação deste Estado, e que o fez ser constituído por indivíduos. Além deste fator,
ressalta-se a elevação do indivíduo a valor supremo, que ocorre com esta transformação.
96
O Estado moderno é uma Igreja transformada no sentido de que sua própria
constituição deve ser compreendida numa relação íntima com o desenvolvimento da
interioridade do poder mundano e do poder divino ou extramundano. (Silveira, 1997,
p. 33)
A imagem de Cristo como suporte de identificações é o que Silveira (1997)
considera essencial para que Dumont tenha considerado o cristianismo, e não o
renunciante indiano, como o precursor do indivíduo moderno. Pois, foi justamente nesta
junção, onde o extramundano tem acesso ao mundano, que valores essenciais presentes
na sociedade moderna, como a liberdade e a igualdade, antes presentes apenas no
contexto extramundano, oferecem acesso ao mundano. Assim, o indivíduo-fora-do-
mundo consegue a junção dos valores que eram extramundanos, no próprio mundo e
transforma-se no indivíduo-no-mundo. Existe um sentimento de interioridade e
unicidade que somente a Igreja havia conseguido desenvolver no ser humano e não mais
do que em alguns momentos.
...o Estado moderno é uma ‘Igreja’ por resultar do desenvolvimento da
unicidade ou da interioridade do poder extramundano e do poder mundano, o que,
aliás, foi objetivo histórico da Igreja, apenas alcançado parcial e episodicamente. E é
uma Igreja transformada por apresentar-se dotado de poder puramente mundano ou
temporal, isto é, por recalcar a dimensão extramundana do poder, dimensão que, no
entanto, lhe é consubstancial. (Silveira, 1997, p. 34)
Mas a prefiguração do indivíduo-no-mundo, que aparece desde o início do
cristianismo, vem a ser completada com Calvino, quando a dicotomia entre o poder
religioso e o poder mundano chega ao fim.
Com Calvino, a dicotomia hierárquica que caracterizava o nosso campo de
estudo chega ao fim: o elemento mundano antagônico, ao qual o individualismo
97
devia até então reservar um lugar, desaparece inteiramente na teocracia calvinista. O
campo está completamente unificado. O indivíduo está agora no mundo, e o valor
individualista reina sem restrições nem limitações. Temos diante de nós o indivíduo-
no-mundo. (Dumont, 2000, p. 63)
Silveira (1997) assinala que o caráter essencial para esta transformação ocorrer é
a mundanização do valor supremo. Assim, o valor supremo que antes poderia ser
considerado como uma esfera privada de poder, torna-se acessível ao mundo, torna-se
público. Apesar de continuar sendo um valor extramundano, com o fim da separação
existente entre os poderes religioso e político, passa a ser um valor acessível à
sociedade.
Existe um distanciamento de Deus com Calvino e Lutero, menos com Lutero,
pois apesar deste rejeitar a mediação que a Igreja católica oferecia, Deus ainda é
acessível pela e o amor. em Calvino, o amor cai para segundo plano e o que se
aplica neste mundo é apenas a razão. Em ambos, há uma forte conotação de Deus como
vontade (ação de propagar os desígnios de Deus). Com a vontade sendo aplicada ao
mundo e sendo um desígnio do indivíduo (aplicar a vontade de Deus ao mundo) a
extramundanidade agora é representada pela vontade individual, é o novo elo com o
extramundano, identificar a vontade dos homens com a vontade de Deus.
Silveira (1997) nota que este indivíduo-no-mundo moderno apresenta em sua
constituição um elemento de extramundanidade que não é percebido, mas é essencial na
formação do indivíduo moderno:
O valor supremo se mundaniza, não apenas porque o indivíduo encarna esta
vontade heterônoma, identificando-se com ela, mas, sobretudo, por torná-la ativa
numa ação incansável sobre este mesmo mundo. (Silveira, 1997, p. 25)
98
Assim sendo, se o valor supremo se mundaniza não apenas enquanto
representação de uma vontade, mas se ele aparece nas ações sobre o mundo, podemos
notar que o indivíduo-no-mundo traz aquele elemento de extramundanidade, que é a
reificação do indivíduo enquanto valor supremo, e não apenas sobre um suposto
discurso, mas as ações que sustentam o indivíduo-no-mundo são ações que buscam
confirmar este valor extramundano individualista.
A ciência elegeu o indivíduo como o centro
8
, a verdade estaria no indivíduo, que
carrega uma verdade que só poderia ser verificada se este for isolado do contexto social,
esta é a mesma ideologia moderna que coloca o indivíduo como portador da verdade e
das decisões e escolhas que faz no mundo, muito provavelmente o valor extramundano,
que este indivíduo-no-mundo traz, faz com que ele se apresente acima de qualquer
verdade, como o portador único da essência humana. O individualismo aflora pois,
deste, poderia sobressair a essência da liberdade que é suposta ao indivíduo.
Daremos um passo adiante, procurando o sujeito que parece estar escondido sob
este indivíduo, construído pela ideologia moderna.
Da relação entre indivíduo e sujeito
Conforme observamos em Elias (1994), o sentimento de separação que ocorreu
entre indivíduo e sociedade foi gradual. A complexificação da sociedade e a
estruturação em funções criaram um abismo cada vez maior entre cada membro e o todo
social, a ponto de surgir o sentimento de indivíduo enquanto uma ‘essência interna’,
algo que vem de dentro, e a sociedade como uma organização que cerceia a liberdade e
8
Com a progressiva desvinculação da ciência da religião, o saber absoluto para as coisas inexplicáveis,
anteriormente buscado em Deus, passa a ser suposto no indivíduo, identificado ao desígnio de Deus.
99
impõe controles ‘externos’ ao indivíduo. A sociedade começa a ser vista como inimiga
das potencialidades do humano.
Dumont, com uma análise que privilegia o entendimento da construção do valor
individualista, também realça a separação entre interno e externo como fator que
propicia um pensamento dicotômico entre indivíduo e sociedade. Salienta o processo de
elevação do indivíduo a valor supremo, o qual chama de Indivíduo, através da saída
deste da sociedade (rumo ao extramundano) adquirindo o caráter de um valor supremo e
a volta, enquanto indivíduo-no-mundo, com o fim da separação entre extramundano e o
poder. Com esta conciliação, a imagem do individualismo se mundaniza como valor
supremo da sociedade.
Esse valor supremo do Indivíduo é caracterizado por Dumont como o principal
ponto da ideologia moderna, o que referencia nossos conceitos de homem e sociedade.
O indivíduo carrega como sinônimos: a moralidade, a independência e a autonomia, ou
seja, todos ingredientes que nos fazem vê-lo como não-social, o ser supremo que
carrega a essência.
Sendo assim, Silveira (1997) afirma que, por Dumont considerar o indivíduo
como não-social devido à sua origem extramundana, ele não seria um fato social
constituído pela sociedade global, mas sim um fato ideológico.
...Dumont articula as características mais importantes que atribui ao
‘indivíduo-no-mundo’ ao lugar proeminente que este ocupa na ideologia moderna.
Esta articulação realça, assim, inequivocamente, o estatuto atribuído ao indivíduo e à
individualidade: um estatuto ideológico. (Silveira, 1997, p. 37)
Silveira (1997) salienta que, para Dumont, a ideologia não recobre as
instituições sociais. Ela seria uma esfera autônoma em relação ao social. Entre a
ideologia e a esfera social não existiria nenhum elo que as unisse. Neste ponto reside o
100
que de radical no conceito de ideologia de Dumont, sua característica autônoma em
relação ao campo social. Essa conceito da ideologia é melhor entendido se pensarmos
na gênese extramundana, ou seja, extra-social do indivíduo-no-mundo.
...para Dumont, a ideologia moderna é constituída pela presença e pelos
efeitos que o elemento extramundano produz no mundo. Assim, a ideologia moderna
não é senão o nome (conceptual ou teórico) dessa presença e desses efeitos no mundo
e, portanto, na sociedade. (Silveira, 1997, p. 39)
A elevação do indivíduo a valor supremo foi um verdadeiro ato fundador da
ideologia moderna. Esta transformação do indivíduo em valor supremo, a partir de sua
característica extramundana e seu posterior retorno ao mundo, possibilitou uma única
via de acesso ao extramundano: a via do Indivíduo.
Assim Silveira (1997) encontra o significado do que chama de gênese
extramundana do indivíduo. A ideologia moderna nasce com a mundanização do
Indivíduo; seu retorno o consolidou como um valor supremo na condição de
extramundano, aquele que oferece a única porta de acesso à transcendência. Assim,
entende o indivíduo como um ‘primeiro lugar’, ou seja, “um lugar exclusivo, é condição
do estabelecimento de todos os outros valores ideológicos.” (Silveira, 1997, p. 40).
O Indivíduo não é feito de um corpo, de carne e osso, é a ‘idéia de um ideal’.
Silveira considera que o Indivíduo pode ser considerado um significante. E, um
significante primeiro
9
, ou seja, não seria apenas um significante, mas o portador de toda
a cadeia de significação. Afinal, se ele é um lugar exclusivo, a porta de entrada de toda a
cadeia de relação dos demais valores ideológicos, então todos os valores estão
encadeados ao valor supremo Indivíduo, sendo ele, analogamente, o significante que
contém a chave para todas as demais significações.
9
Ou significante mestre.
101
... admitir que o Indivíduo como significante produz efeitos sociais, implica
descartar o caráter não-social atribuído por Dumont ao Indivíduo e, ao mesmo
tempo, sua concepção de uma autonomia da ideologia em relação às demais esferas
do social. (Silveira, 1997, p. 43)
Silveira (1997) afirma que esta seria uma das saídas para superar o reducionismo
político que estava presente anteriormente, com a esfera do recalque
10
estando presente
apenas em relação ao poder do Estado. Assim, admitir que o Indivíduo possui uma
condição de significante na esfera social, significa estender o recalque e o valor
supremo da ideologia (também a do individualismo) às instituições sociais e não
somente ao poder do Estado. Segundo Silveira, esta concepção de Indivíduo como
significante portador das significações da esfera social, implica em questionar dois
posicionamentos de Dumont: a) o caráter não-social do indivíduo e, b) a ideologia sendo
autônoma em relação às demais esferas da sociedade.
A questão da esfera ideológica atuando na manutenção da ideologia do Estado
foi desenvolvida por Althusser em seu texto Ideologia e aparelhos ideológicos de
estado. O autor propõe, em seus escritos, uma teoria geral da ideologia para dar conta
das ideologias em particular. Segundo o autor, haveria uma forma geral de manifestação
da ideologia que seria possível ser identificada no conteúdo de cada ideologia em
particular. Com isto, aproxima a ideologia e o inconsciente, dizendo que tal como o
inconsciente que é eterno, a ideologia também não tem história. Esta ideologia que não
tem história é usada para a formulação da teoria da ideologia em geral, o que ele deixa
claro que é diferente de falar em ideologias em particular.
10
Silveira (1997) considera que creditar o recalque somente ao poder do Estado, pois Dumont o considera
o sucessor do poder religioso (a Igreja transformada), é um reducionismo político. Alerta para a
necessidade de considerar outras esferas sociais, como demonstrado por Althusser (1999) através dos
Aparelhos Ideológicos do Estado.
102
...nossa proposição de que a ideologia não tem história pode e deve (e de um
modo que não tem absolutamente nada de arbitrário, mas, muito pelo contrário, é
teoricamente necessário, pois um vínculo orgânico entre as duas proposições) ser
diretamente relacionada com a proposição freudiana de que o inconsciente é eterno,
isto é, não tem história. (Althusser, 1999, p. 125)
Em Althusser, diferentemente de Dumont, a ideologia não é autônoma em
relação à esfera social, assim como o inconsciente existe para todos os sujeitos, a
ideologia permeia todas as relações dos indivíduos com as suas condições de existência.
A ideologia é uma ‘representação’ da relação imaginária dos indivíduos
com suas condições reais de existência. (Althusser, 1999, p. 126)
A analise da citação acima poderia levar ao entendimento de que a ideologia
seria a busca por uma representação imaginária do mundo real, quando não é esta a
afirmação de Althusser. Sua reflexão é sobre a relação com as condições de existência.
A relação, que é representada na ideologia, não é a com as condições reais, mas sim a
relação imaginária que os indivíduos fazem que é posta em causa na ideologia.
Obviamente, que esta relação imaginária foi estruturada a partir de uma interação com
as condições reais de sua existência.
... o que ‘os homens’ ‘representam para si’ na ideologia não são suas
situações reais de existência, seu mundo real; acima de tudo, é sua relação com essas
condições de existência que se representa para eles na ideologia. É essa relação que
está no centro de toda representação ideológica, portanto imaginária, do mundo real.
(Althusser, 1999, p. 127)
Assim, o que é representado na ideologia não o as condições reais e sim as
relação imaginárias que os indivíduos fazem das condições reais de existência. A
103
ideologia, por existir em um Aparelho Ideológico ou através das práticas deste aparelho,
tem uma existência material. Estas instituições presentes na sociedade, que Althusser
denomina de Aparelhos Ideológicos de Estado(AIE religioso, AIE escolar, AIE familiar,
AIE jurídico, entre outros), fazem confundir o blico e o privado, pois os Aparelhos
Ideológicos de Estado pertencem ao privado, mas, através da repressão ideológica,
buscam impor práticas que propaguem sua ideologia. Portanto, a ideologia, através das
ações práticas, tem uma existência material.
Em todo esse esquema, observamos que a própria representação ideológica
da ideologia é forçada a reconhecer que todo ‘sujeito’ dotado de uma ‘consciência’, e
confinado nas idéias’ que sua consciência’ lhe inspira e livremente aceita, deve
‘agir de acordo com suas idéias’ portanto, deve inscrever suas idéias, como sujeito
livre, nos atos de sua prática material. Se não o fizer, está errado. (Althusser, 1999,
p.129-130)
A ideologia preconiza que as idéias dos indivíduos devem ser correspondentes a
atos. Esses atos, para que tenham efeitos correspondentes a uma determinada ideologia,
devem estar inseridos em práticas, essas práticas por sua vez constam da lista de rituais
de um determinado Aparelho Ideológico. Assim, através de pequenos atos e práticas que
estão vinculados a Aparelhos Ideológicos, está presente a ideologia que se busca
propagar: desde uma missa realizada em uma comunidade distante até em uma aula na
universidade, todos os rituais estão vinculados a ideologias que os sustentam.
As idéias de um sujeito são seus atos materiais que são definidos por um
aparelho ideológico. Com estas considerações, Althusser formula duas teses coligadas:
1. não existe prática, a não ser através de uma ideologia, e dentro dela;
2. não existe ideologia, exceto pelo sujeito e para sujeitos.
(Althusser, 1999, p. 131)
104
Desta maneira, chegamos a um ponto de amarração. Se não existe uma prática
que não seja através de uma ideologia, como disse Althusser, estamos próximos do
sujeito alienado no desejo do Outro
11
, de Lacan. O desejo do Outro certamente traz as
ideologias ao sujeito, as ideologias que irão aliená-lo.
Mas, para Althusser, esse processo de alienação que ocorre, é compreendido
segundo sua afirmação:
A ideologia interpela os indivíduos como sujeitos.
(Althusser, 1999, p. 131)
Segundo o autor, esta tese seria uma reafirmação da inexistência da ideologia
sem que esta esteja ligada a sujeitos concretos, existe ideologia onde sujeito. A
ideologia estaria então ligada à própria constituição do sujeito, ela atuaria junto ao que
Althusser chama de indivíduo concreto transformando este em um sujeito. O sujeito está
desde sempre fundado em uma ideologia, “... toda ideologia invoca ou interpela os
indivíduos como sujeitos concretos, pelo funcionamento da categoria de sujeito.”
(Althusser, 1999, p. 133).
Uma das características da ideologia seria impor ao sujeito as evidências como
evidências, ou seja, teria uma função de reconhecimento. O sujeito estaria desde sempre
na ideologia. Se os indivíduos são desde sempre interpelados enquanto sujeitos pela
ideologia, isso equivale a dizer que “... os indivíduos são sempre sujeitos. Daí os
indivíduos serem ‘abstratos’ em relação aos sujeitos que eles sempre o são.”
(Althusser, 1999, p. 134).
11
“O Outro é aquilo que determina a interpretação de seus sonhos, sintomas e atos falhos, aquilo que
pensa no sujeito apesar de ele às vezes não querer saber nada sobre isso, aquilo que preexiste ao sujeito e
que existe na cultura, no desejo da mãe, na estrutura da linguagem, em suma, tudo aquilo que Freud
descobriu e que faz parte do simbólico. Esse grande Outro, que é o Outro da fala e da linguagem, implica
que, ainda que o sujeito não fale, ele possa ser falado.” (Alberti, 1999, p. 30)
105
Esta consideração de Althusser, abrange a idéia de que, desde antes de nascer, a
criança pode ser considerada um sujeito, pois o Aparelho Ideológico Familiar, no
qual ela é esperada, carrega ideologia que configura o ambiente e a constituição da
qual fará parte. Desde sua concepção estava transformada de indivíduo em sujeito pela
ação ideológica que a cerca.
Até então, nossa linha de pesquisa, seguia um caminho que mostrava uma
dissociação entre indivíduo e sociedade, a qual fez o indivíduo estar elevado a valor
supremo de nossa sociedade, o que aparentava um processo de individualização dos
membros de uma sociedade. Porém, embora Althusser não conceitue indivíduo, somos
levados a pensar, a partir de suas considerações, na existência de um processo de
sujeitamento do indivíduo, o qual chama de concreto. Indivíduo desde sempre sujeitado
à ideologia da sociedade, logo, desde sempre, o indivíduo é um sujeito, não haveria
indivíduo a não ser na esfera abstrata.
Paulo Silveira faz uma análise deste texto de Althusser em um ensaio
denominado Ideologia, indivíduo e sujeito. Penso que, para podermos dar um passo
adiante na compreensão desta convocatória do sujeito pela sociedade, seja vital levar em
conta suas considerações. Estas reflexões que estamos fazendo certamente nos levarão a
uma análise que não seja superficial sobre a crise do adolescente e desvele como o
sujeito é convocado enquanto indivíduo para viver sua crise adolescente.
Sobre a afirmação de Althusser, da interpelação dos indivíduos enquanto
sujeitos, Silveira (1994) considera que este é o próprio modo de funcionamento da
ideologia proposto por Althusser. A ideologia convocando os sujeitos, constituindo o
indivíduo a partir de uma relação de sujeitamento deste a determinados estatutos
ideológicos.
106
Porém, para Silveira (1994), uma questão paradoxal é revelada nesta forma de
funcionamento: se os indivíduos são sempre sujeitos, como seriam constituídos
enquanto tal?
...a ideologia transforma/constitui os indivíduos concretos em sujeitos e, no
entanto, os indivíduos já são desde sempre sujeitos. (Silveira, 1994, p. 28)
O que está em jogo não é a necessidade da interpelação ideológica, mas que a
interpelação se numa relação entre sujeitos. Se não uma relação de
reconhecimento como base da operação de sujeitamento, o que manteria a interpelação
entre os sujeitos seriam as próprias relações, ou seja, estaríamos no âmbito da
intersubjetividade.
... os indivíduos não necessitam se confirmar como sujeitos ideológicos
pois o são desde sempre cada relação ‘concreta’ de reconhecimento realizada
num dado momento pontual do tempo ‘empírico’. Entretanto, os indivíduos são,
desde sempre sujeitos apenas nas relações que estabelecem com outros sujeitos. Em
suma: não sujeitos fora das relações, por suposto, intersubjetivas. (Silveira, 1994,
p. 30)
Colocando desta forma é como se o sujeito fosse e não fosse o centro de si
mesmo, o sujeito é ideológico porque vive na ideologia. Silveira (1994) afirma que, para
sair deste rculo, Althusser trará o exemplo da ideologia religiosa cristã, pois ele quer
destacar dessa ideologia a existência de um Outro Sujeito, o sujeito central e absoluto
que seria o que interpela os demais, este sujeito seria Deus. Deste modo a ideologia
religiosa convoca os indivíduos a estabelecer uma relação de sujeitos.
Althusser abre uma correspondência entre a eternidade da ideologia e do
inconsciente e a eternidade do Sujeito Único e Absoluto. É esta que justifica a
afirmação de que os indivíduos são sujeitos desde sempre. Não no sentido próprio e
histórico do termo (a eternidade do Sujeito é única), mas no sentido de que cada
107
indivíduo tem desde sempre seu lugar reservado como sujeito (sujeitado) nesta
estrutura centrada num Sujeito Único e Absoluto. (Silveira, 1994, p.32)
Silveira (1994) chama a atenção por Althusser não ter feito nenhuma definição
sobre o que é indivíduo. Este seria o que o sujeito poderia ter sido se não estivesse desde
sempre remetido ao Outro. O indivíduo seria a esperança que existe por-vir, ele nunca
existiu e provavelmente nunca chegará a vir-a-ser, porém uma suposta desalienação do
sujeito em relação ao Outro, cria a suposição de que algo poderia se desprender desta
operação de desalienação, que seria o indivíduo. a noção de sujeito é central para
Althusser, pois ocupa lugar especial na teoria da ideologia em geral.
Há, todavia, entre os encaminhamentos de Lacan e Althusser, uma diferença
teórica decisiva. Para Lacan o movimento da dialética de reconhecimento é
circunscrito ao Eu; a mola mesmo deste movimento advém de uma demanda do Eu.
Assim, o reconhecimento de que se trata nesta dialética é o reconhecimento do Eu
(Moi), enquanto uma dasinstâncias’ psíquicas, e não o reconhecimento do sujeito, e
entre sujeitos, como resultado do encaminhamento de Althusser. Longe de ser uma
diferença semântica, a distinção e a irredutibilidade entre o Eu (Moi) e o sujeito (je)
pode seguramente ser considerada como uma das que mais especifica a contribuição
teórica de Lacan. (Silveira, 1994, p. 33)
Silveira (1994) considera pertinente fazer esta distinção pois acha que Althusser
não diferencia entre eu (moi) e o sujeito do inconsciente (je), o que faz perder uma
grande contribuição de Lacan, que conseguiu separar esta problemática.
A proposta de Silveira seria a mesma que acompanhamos no decorrer deste
capítulo, com Norbert Elias e Louis Dumont, que a interpelação ideológica age sobre os
indivíduos e não sobre os sujeitos, conforme a proposição de Althusser. Assim, o
processo de reconhecimento passaria a ocorrer entre indivíduos, ou seja, os indivíduos
reconhecem e são reconhecidos enquanto tais pelos outros indivíduos. Ao invés de
108
relações intersubjetivas, conforme Silveira (1994) observa na tese de Althusser, as
relações passariam a ser interindividuais.
Essa substituição dos termos da tese de Althusser implica atribuir à
interpelação ideológica um caráter eminentemente social, pois é irrecusável a idéia
de constituição histórica e social do indivíduo e da individualidade. (Silveira, 1994,
p. 35)
A Sociedade, viria a ocupar o lugar do Outro Sujeito proposto por Althusser.
Para Silveira, a proposição poderia ser reformulada da seguinte maneira: “a Sociedade
como Sujeito (ou a ideologia, o que no mesmo) interpela os sujeitos como
indivíduos.” (Silveira, 1994, p. 35).
Os sujeitos é que estão agora no lugar de testemunho emudecido da
interpelação ideológica dos indivíduos. (Silveira, 1994, p. 35)
Silveira (1994) diz que esta é uma proposta para resgatar o espírito da tese de
Althusser. E pretende fazer um avanço em relação a Althusser que é pensar o
mecanismo inconsciente que dá suporte a esta operação de interpelação.
Partindo da hipótese de que os sujeitos são convocados a ser indivíduos, estes
últimos teriam a missão de tamponar a falta, ou seja encobrir a divisão que caracteriza o
sujeito proposto por Lacan, o desejante. O indivíduo teria uma suposta condição, que
não é possível ao sujeito, a de acabar com a divisão que marca a constituição subjetiva.
Haveria ainda o mecanismo do recalque que opera sobre o momento da interpelação que
a sociedade opera sobre os sujeitos.
Num outro registro, o efeito ideológico fundamental é o de recalcar (isto é,
tornar inconsciente) o momento da constituição/interpelação dos indivíduos pela
109
Sociedade como Sujeito. É este efeito que produz a ‘naturalização’ da autonomia e da
liberdade da consciência e vontade e, portanto, o valor de verdade com que
consideramos esses aspectos ‘essenciais’ da ‘constituição’ do indivíduo e da
individualidade. Será que não estamos aqui diante da verdade, que não podemos
deixar de reconhecer, e que é tão consoante àquela do ‘em verdade vos digo’, que
caracteriza precisamente o reconhecimento ideológico? (Silveira, 1994, p. 36)
Esse recalque, que seria operado, produziria, no indivíduo, verdades absolutas
como a autonomia e a liberdade do ser. Uma das marcas, que encontramos aqui como
verdade absoluta, é a aposta na crise adolescente como ‘inata’ a todo indivíduo. Uma
das dimensões que podem estar sendo abertas é a possibilidade de pensar a crise do
adolescente não como resultado entre as lutas de um par de opostos, biológico e social,
como nos leva a pensar a ideologia moderna, que traz uma separação clara entre
indivíduo e sociedade. Assim, avançaremos, no próximo capítulo, a análise em torno do
sujeito adolescente e sua crise: o sujeito nomeado como adolescente em crise através da
interpelação individualista da ideologia da sociedade moderna, ou ainda, a metonímia
do significante ‘adolescência em crise’ em relação ao significante mestre indivíduo.
110
4 - A operação psíquica da adolescência:
uma contribuição psicanalítica
Consideramos essencial o entendimento das categorias indivíduo e sociedade e a
existência (ou não) de uma dicotomia entre biológico e social para empreendermos uma
reflexão sobre a chamada crise da adolescência. Deste modo, os capítulos anteriores
abordaram como diferentes teorias procuram explicar a origem da crise da adolescência,
baseadas em determinações biológicas e/ou sociais. Após este momento, pudemos
acompanhar a evolução da conceituação de indivíduo e empreender uma reflexão sobre
o que chamamos de sociedade. Mas por que estamos dando primazia ao estudo das
categorias indivíduo e da sociedade e da polarização entre biológico e social, se nosso
objetivo é empreender uma reflexão pelo modo que as teorias compreendem a crise da
adolescência? Não seria esperado que procurássemos as supostas ‘causas’ que
desencadeiam tal crise?
Penso que a questão das ‘causas’ da crise é o objeto de estudo destas diferentes
teorias. E, como pudemos verificar, as ‘causas’ foram descritas como emergências
biológicas do ser ou como advindas de um determinismo social.
A relação direta entre causa e efeito é uma característica presente nas teorias que
chamamos de tradicionais da adolescência. Numa primeira vertente, a causa está
vinculada ao desenvolvimento e maturação do biológico do indivíduo e a conseqüência
são as modificações psíquicas que denominamos de crise. Num segundo campo de
pesquisa, notamos um posicionamento que procura fugir da naturalização do conceito
de crise, existente neste primeiro campo, e aponta, como causa da crise da adolescência,
as modificações históricas e sociais.
111
Faremos uma análise, do que consideramos como insuficiente por parte das
teorias apresentadas anteriormente, a partir das proposições psicanalíticas
desenvolvidas, em especial, a partir da teoria de Jacques Lacan. O modelo de
constituição do sujeito, proposto pelo autor, permeará esta análise trazendo uma
compreensão dialética, que não pôde ser observada nos modelos anteriormente
apresentados, retirando a questão da crise da adolescência de uma relação simples entre
causa e efeito ou ainda do que chamamos de par de eixos em oposição (biológico versus
social). Reafirmamos: para nós, a constituição do sujeito não se trata de oposição
natureza e cultura, mas produto de uma dialética.
O corpo na teoria psicanalítica é o biológico?
Conforme pudemos observar na teoria sobre a crise de identidade do adolescente
proposta por Erikson (1987), a crise da adolescência seria um momento propício para
uma reelaboração de conflitos da infância que ocorrem no interior do ego. Assim, o
autor demonstra um posicionamento em que supõe que a crise própria da adolescência,
aliada às anteriores (cada estágio do desenvolvimento anal, oral e genital
corresponderia a uma crise) contribuiria para a formação de uma identidade final. Do
que seria composta tal identidade? De sentimentos de continuidade e unicidade do ser
que, após tal crise, se tornaria uma ‘pessoa inteira’.
Este tipo de construção teórica supõe uma conceituação de indivíduo como
sendo o produto mais bem acabado para a vida em sociedade. Retomando as
considerações de Silveira (1994), esta suposição de que o indivíduo é um ser dotado de
uma essência natural e sem faltas é justamente o que postula a ideologia contemporânea.
112
O entendimento que Erikson, Aberastury e Knobel têm sobre a teoria freudiana
da sexualidade tende a uma vertente desenvolvimentista. Cada estágio do
desenvolvimento da sexualidade é baseado em uma cronologia sustentada pelo aparato
biológico; se atinge determinado estágio com a maturação física. O ultrapassar de
cada estágio seguiria um caminho conflituoso mas rumo a uma ‘normalidade’
psicológica, que poderia ser alcançada através da primazia (orgânica) da genitalidade. O
estabelecimento de cada fase do desenvolvimento seria derivado da canalização da
energia instintiva em cada zona erógena. Para os autores, esta polarização energética em
um determinado estágio originaria um trabalho psíquico para acomodar tal energia, até
o alcance de sua finalidade: a fase genital.
Porém, conforme indicamos anteriormente neste trabalho
12
, Freud criou um
método para investigar as questões da subjetividade humana e sua sexualidade no
campo propriamente psíquico, sem apelar para um reducionismo biologicizante, ainda
que sem negar a relevância do corpo biológico. Assim, Freud aponta que o caminho
para as pesquisas psicanalíticas é o estudo da linguagem, afinal a técnica psicanalítica
incide sobre a fala, a escuta do inconsciente.
É necessário apontar estes desvios que foram feitos sobre sua teoria e apresentar
autores que trazem a pesquisa nesta direção (inconsciente e sua relação com a
linguagem). Muito mais do que um simples desenvolvimento maturacional do corpo
biológico, a emergência das chamadas fases oral, anal e genital, é produto de sua
inscrição no simbólico, na linguagem e no mundo da sociedade e da cultura; uma
demanda que chega à criança por meio de uma solicitação das figuras paternas. O corpo
está, desde sempre, subordinado às demandas da linguagem do Outro.
12
Ver na Introdução deste trabalho onde a citação de um prefácio que Freud (1905) acrescenta (em
1914) aos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.
113
Fink (1998) afirma que a linguagem mata o corpo biológico, ou seja, a libido, as
zonas erógenas, e os ‘estágios de desenvolvimento’ são produtos da linguagem que
‘contornos’ ao corpo da criança.
Freud nos mostra como a libido da criança perversa polimorfa é
progressivamente canalizada para (desse modo criando) zonas erógenas específicas –
oral, anal e genital através da socialização e do controle dos esfíncteres, isto é,
através de demandas, expressas verbalmente, feitas à criança por seus pais e/ou
figuras paternas. O corpo da criança é subordinado de forma progressiva a essas
demandas (talvez nunca totalmente, mas a revolta contra elas demonstra, ao mesmo
tempo, sua importância), as partes diferentes do corpo tomam sentidos determinados
pela sociedade e pelas figuras paternas. O corpo é subjugado; ‘a letra mata’ o corpo.
(Fink, 1998, p. 30)
A crença de determinados psicanalistas na importância do corpo biológico no
desenvolvimento da sexualidade humana, reforça aquela visão que chamamos de
‘mundo interno’. Pressupõe a existência de uma essência a ser buscada ‘dentro’ do
indivíduo, afinal, se estes autores consideram que o biológico é o desencadeador das
mudanças psicológicas, é de se supor que o psicológico viria a revelar verdades e
essências ‘próprias’ ao indivíduo como se o digo genético carregasse a essência de
cada um. Salientamos a coincidência desta visão com o conceito de indivíduo, pois,
conforme a trajetória narrada por Dumont, o surgimento deste carrega a suposição de
um valor supremo e interno ao ser.
Mas essa essência ‘interna’ não é compartilhada pela corrente lacaniana da
psicanálise, inicialmente por não compartilhar do uso da terminologia indivíduo que
marca um ser sem faltas (indivisível), sendo que o termo sujeito, utilizado por Lacan,
vem justamente a apontar a dimensão faltante.
114
O corpo do qual falamos não é o biológico
13
, o corpo, do qual trata a psicanálise,
é produzido pelo efeito da linguagem. É o processo de socialização do sujeito que
demarca as zonas erógenas, o corpo existe a partir do recalcamento promovido pela
linguagem. Sendo o corpo produto da linguagem, certamente não estamos nos referindo
ao ‘pedaço de carne’ biológico.
O corpo, o da psique, é extraído da carne originária pelo efeito da linguagem
sobre essa carne, efeito do recalcamento, como lembraria Lacan. O corpo e sua
imagem só podem existir pelo recalcamento da carne. (Lesourd, 2004, p. 32)
Este corpo recalcado não garante, em nenhum momento, que o sujeito terá um
caminho de desenvolvimento linear e muito menos culminará na formação de uma
identidade plena durante a adolescência. Este corpo, produto da linguagem e do
recalque, estará sujeito a marcas que ocorrerão na vida do sujeito e não segue o
princípio da maturação biológica.
Contrariamente a isto, seguindo um caminho normativo sustentado pelas
descobertas da biologia, Erikson (1987) acredita que as crises diminuem quando a
genitalidade assume primazia, coincidindo com a estruturação da identidade: o
indivíduo está pronto para assumir as demandas que a sociedade lhe solicita.
Assim, como afirmamos anteriormente, não pretendemos partir de descobertas
biológicas nem da defesa da adaptação do sujeito numa identidade que lhe é solicitada
pelo social. Não é o corpo quem determina o psíquico, mas sim a demanda do Outro que
precipita uma imagem corporal no psiquismo.
A estruturação da imagem corporal pela socialização, imposta pela demanda do
Outro, está longe de ser harmônica. Na teoria lacaniana, o simbólico procura dar conta
13
A definição de Osório (1992) sobre puberdade, que se baseia no desenvolvimento biológico normal e
universal do corpo, contrasta com a visão psicanalítica que propõe que o corpo que nos referimos é
produzido pelo efeito da linguagem, logo singular e não universal.
115
do real mas não o recobre por inteiro, podendo tomar o sujeito de ‘assalto’ a qualquer
momento; o real é impossível de ser representado por completo no campo da linguagem.
Então, se para Erikson a saída da infância é alcançada através do primado da
genitalidade, que é visto como a confluência dos instintos primitivos para o
estabelecimento de uma harmonia do ego e de uma identidade final, a teoria lacaniana
propõe que o encontro que acontece na saída da infância é com o real do sexo.
O real do sexo não é o desenvolvimento dos órgãos genitais, é o encontro com a
real (im)possibilidade do encontro sexual como encontro complementar entre sujeitos.
Isto é algo que não é simbolizado a priori, logo, não é um momento harmônico ou
formador de uma identidade final.
A partir do momento em que o sujeito, saído da infância, se depara com o
real do sexo, a puberdade é o próprio encontro, malsucedido, traumático com esse
real. O real do sexo é por definição algo que jamais poderá ser totalmente
simbolizado, deixando o sujeito em linguagem do senso comum ‘sem palavras’.
(Alberti, 1999, p. 26)
O que diferencia os dizeres de Alberti das proposições de Erikson não é somente
a troca de terminologia, não estamos apenas trocando nomes o desenvolvimento dos
caracteres sexuais pelo real do sexo. O real do sexo compreende a descoberta, por parte
do sujeito durante a operação adolescente, da impossibilidade da completude através do
encontro sexual, ou seja, o homem e a mulher não são seres complementares. Isto é o
que quer dizer Lacan quando afirma que não há relação sexual, não há enquanto
complementaridade entre os sexos. A promessa edípica de completude pela posse do
falo, revela-se um logro, não possibilidade de um gozo pleno. É esta impossibilidade
da completa simbolização que Alberti considera como traumática. Para Lacan, esse
encontro faltoso é a emergência do real e o sujeito deve assumir sua dimensão de falta.
116
A genitalidade é incômoda pois condena a libido à submissão ao significante fálico. Não
o estabelecimento de uma identidade final a partir da vivência adolescente, seja ela
composta por momentos de crise ou não. O sujeito, proposto por Lacan, não tem como
objetivo construir identificações que dêem um sentimento de completude ao ser.
O ‘redespertar da sexualidade’ apontado por Knobel também não é a mesma
coisa que o encontro com o real do sexo. O ‘redespertar da sexualidade’ é a ‘prova’ que
Knobel utiliza para afirmar que a adolescência tem base psico-biológica, enquanto, para
Lacan, a sexualidade é determinada pela constituição do sujeito pela linguagem, logo é
simbólica. O real do sexo é a aparição não-simbolizada da (im)possibilidade real da
consecução do ato interditado pela lei edípica. O sujeito não encontra a
complementaridade esperada diante da descoberta do Outro sexo
14
.
O tratamento para a crise proposto por Erikson, é o fortalecimento do ego e o
estabelecimento da identidade final. O adolescente que sofre menos com sua crise é
aquele que está mais adaptado e treinado para atender aos papéis que a sociedade lhe
oferece e pronto para ‘aceitar uma perspectiva ideológica mais implícita’. Assim, para
este autor, aceitar a perspectiva ideológica da sociedade aparece como a melhor saída da
adolescência.
Neste contexto, a moratória adolescente observada por Erikson, seria um tempo
específico que a sociedade reservaria para que as experiências infantis fossem
integradas, preparando a entrada do indivíduo no mundo adulto. Na leitura que
Aberastury faz da moratória, afirma que Erikson errou ao não dar ênfase ao luto que a
criança faz pela bissexualidade perdida e na dificuldade dos adultos em aceitar o
desenvolvimento das crianças. De qualquer modo, na visão de Erikson ou na de
14
Outro sexo é o feminino por excelência, ou seja, aquele que é castrado, não possui o falo símbolo da
completude. Não estamos nos referindo a feminino em relação à biologia mas à diferenciação sexual
fálica/castrada. A descoberta do Outro sexo é feita por ambos, homens e mulheres, geneticamente
falando.
117
Aberastury, a moratória tem a função de integrar o indivíduo, dando uma identidade ou
uma continuidade de ser, formando o adulto completo pronto para a atuação em
sociedade. Penso que isto significa afirmar que um ser completo é aquele que se adapta
à estrutura social vigente, o ser constantemente alienado nas identificações que lhe são
oferecidas pelo Outro.
Calligaris não vê essas vantagens na moratória, ao contrário, afirma que a
moratória forçada, imposta pela sociedade contemporânea ao sujeito, o priva de suas
capacidades, jogando-o em um período de preparação interminável. E ainda eleva a
adolescência a um ideal da cultura atual, pois é carregada de ideais valorizados, como:
ostentar um corpo no auge da forma, a possibilidade de múltiplas escolhas e a não
necessidade (suposta) de assumir responsabilidades. O sujeito se vê obrigado a ser feliz.
O adolescente vive um paradoxo: ele é frustrado pela moratória imposta, e,
ao mesmo tempo, a idealização social da adolescência lhe ordena que seja feliz.
(Calligaris, 2000, p. 18)
Analisando a questão do trabalho, que aparenta ser um passaporte para a
condição adulta, a moratória surge como uma longa (ou interminável) preparação –– os
adolescentes estudam e realizam diversos cursos na expectativa de poder escolher um
lugar na vida profissional. Preparação que geralmente é frustrada, pois a sociedade não
acolhe as escolhas do adolescente. Embora o discurso seja de igualdade para todos,
poucos terão a oportunidade de conseguir um ‘emprego dos sonhos’. Além deste fato,
um restrito número de adolescentes está realmente identificado com o ideal de
felicidade a eles suposto. Embora a publicidade venda a imagem do adolescente como:
o ser que tem escolhas, prazer no amor, muita diversão e um belo corpo, poucos
conseguem se identificar com estas imagens. E mesmo os que se identificam, não têm
118
garantia de felicidade. Pois, diferentemente do que Erikson, Knobel e Aberastury
afirmam, não é o ser mais bem adaptado à ideologia da sociedade que será mais feliz.
Este pode até ser um caminho de estabelecimento de uma identidade (baseada na
ideologia dominante) mas não é um caminho para a desalienação.
Lacan (1956-1957) denomina de psicologia do ego esta psicanálise que procura
normatizar o sujeito.A psicologia do ego ressalta a possibilidade do indivíduo manter
uma relação com um objeto constituído a priori (natural, da essência humana). Um dos
maiores erros cometidos por muitos dos psicanalistas é eliminar o caráter subversivo da
psicanálise –questionador da ordem social vigente ao procurarem estabelecer uma
caminho de normatização ou fortalecimento do ego.
O fortalecimento do ego (ou estabelecimento da identidade final) é uma forma
de domesticação do sujeito e é um sintoma premente na modernidade. o precisamos
ficar presos à psicologia do ego para pensarmos neste tipo de normatização do sujeito.
A utilização de ferramentas de auto-ajuda com suas técnicas de fortalecimento do ego
(lembremos das frases patéticas que visam o convencimento do sujeito de seu ‘poder’:
‘eu posso’, ‘o sucesso depende de mim’, ‘sou feliz porque tenho a mim’) são outra
forma de manter o sujeito alienado em sua suposta busca da essência interna e colabora
para a manutenção do status quo. Afinal, ao adaptar os indivíduos à realidade que é
exigida, afasta-se a possibilidade de mudança. Logo, na psicologia do ego, na qual
Erikson pode bem se encaixar, a saída dos conflitos é um fortalecimento do ego do
indivíduo, a tentativa de torná-lo um ser sem faltas, um ser completo. O indivíduo é
autônomo e livre; poderíamos até mesmo chamá-lo de indivíduo da ideologia da
democracia liberal. É com esta posição de normalizar o sujeito que o pensamento
lacaniano vem romper.
119
O significante crise da adolescência pode não representar o indivíduo como um
ser completo mas é mais um traço identificatório oferecido ao sujeito. A adolescência se
torna mais uma positividade
15
que mascara o sujeito, se todos têm crise, este sujeito
identificando-se como adolescente também poderá desfrutá-la. Seus atos acabam por
ficar subordinados à crise da adolescência. É esperado do sujeito adolescente que entre
em crise, o que pode torná-lo refém deste significante (crise). E como a psicanálise
revelou, todo sintoma, por mais penoso que seja, tem um ganho que Freud chamou de
secundário. Ao virar um refém da crise da adolescência, o sujeito tem a justificativa
para seus atos, deixa de ser responsável por eles.
A crise da adolescência, sendo considerada como um significante que representa
o sujeito, é uma tentativa de dar conta da falta que se impõe no real. Aceitar a crise
como normativa é procurar tamponar a falta e buscar a completude.
Esta completude é questionada por Lacan, pois não existe uma harmonia
primitiva que possa ser reativada após o indivíduo passar por tais crises. Ao propor uma
releitura de Freud, Lacan procura justamente mostrar o caráter subversivo da
psicanálise, que foi perdido por alguns autores. O ego, que Lacan faz questão de chamar
simplesmente de eu, que não é uma instância ou compartimento corporal, é justamente a
sede das resistências, a imagem que é preciso ser deposta para que o inconsciente
advenha, desvelando o verdadeiro sujeito.
O erro é partir da idéia de que existem linha e agulha, a moça e o rapaz, e
entre um e outro uma harmonia preestabelecida, primitiva, de tal maneira que se
alguma dificuldade se manifesta, só pode ser por alguma desordem secundária,
algum processo de defesa, algum acontecimento puramente acidental e contingente.
Quando se imagina que o inconsciente quer dizer que o que está num sujeito foi feito
15
Isto é, a oferta de um suporte ou traço identificatório a partir do campo do Outro para o sujeito buscar
tamponar a sua falta constitutiva.
120
para adivinhar o que lhe deve responder num outro, não se faz outra coisa senão
supor uma harmonia primitiva. (Lacan, 1956-1957, p. 48)
Não existe um ‘objeto interno’, a harmonia primitiva da qual Lacan fala, que
poderia ser reestabelecida com o trabalho da adolescência. Não há complementaridade
entre homem e mulher que poderia ser atingida através do relacionamento sexual ou de
qualquer tipo de relacionamento. uma dessimetria entre os sujeitos que deve ser
revelada e não será um trabalho de luto pelo corpo infantil que terá de volta uma
harmonia que nunca existiu, senão enquanto imaginada pelo sujeito.
Porém Knobel acredita que o trabalho de luto que o adolescente faz é em relação
ao que foi perdido na infância, o corpo, a completude. A saída, para o autor, é adaptar o
adolescente ao mundo através de uma ideologia, ou seja, mantê-lo na alienação.
Aberastury (1992) aponta que o trabalho de luto do adolescente refere-se sempre
à emergência biológica do corpo e, por isto, se todos os indivíduos passam por estas
modificações corporais, seria anormal o adolescente que não enfrentasse um processo
doloroso durante estas transformações. Knobel (1992a) ainda afirma que este
desenvolvimento biológico não pode ser desconsiderado pois carrega em si sua
‘bagagem biológica individualizante’, ou seja, o desencadear deste processo que
permitiria a separação dos pais e a assunção de um papel enquanto indivíduo na
sociedade. Vemos, aqui, acentuada a naturalização da formação do indivíduo que os
elementos biológicos estão dispostos a priori.
Ruffino acredita que se algum luto na adolescência, este não está referido ao
corpo infantil, mas seria uma tarefa. Não considera a adolescência como um período do
desenvolvimento humano, e sim uma operação que vem repor a eficácia da
simbolização que estava presente nas sociedades ditas tradicionais. Se esta eficácia
cessou e agora o sujeito tem contato com o real do sexo e a falta constitutiva que funda
121
o sujeito, o caráter de luto seria reconhecer que a adolescência é uma operação que vem
repor a simbolização que antes dava conta do real e agora não está mais presente nos
dispositivos sociais.
Se definirmos a adolescência como tarefa, devemos agora admitir que sua
tarefa é um trabalho de luto. E acrescentamos: não é primordialmente um luto pela
infância perdida, mas é antes um luto por uma certa forma de eficácia simbólica
comunitária destruída. (Ruffino, 1993, p. 46)
A formação do sujeito nada tem de natural, não é o real biológico quem o
determina. A própria noção de corpo não tem correspondência direta com o corpo
biológico, pois a imagem corporal é dada a partir do reconhecimento que o sujeito
recebe dos outros de que aquele corpo é seu. O corpo não passaria de uma imagem
despedaçada, pois é impossível assimilarmos em sua totalidade. Supomos ter dois rins e
pulmões porque a ciência pesquisou isto em outras pessoas, mas não abrimos o próprio
corpo para ter certeza de tal correspondência. Mesmo a imagem externa corporal não
nos é fornecida integralmente e, pegando o exemplo do espelho, o que estamos
observando é nossa imagem invertida. Logo, a imagem de um corpo total é um engodo.
A constituição do eu
16
é alienante, pois supõe uma totalidade corporal.
... o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da
insuficiência para a antecipação e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo
da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem
despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de
ortopédica e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que
16
Esse eu formado por uma operação imaginária de completude corporal é chamado por Lacan de moi. A
visão que Lacan tem do moi contrasta com a de ego proposto pelas correntes da psicologia do ego.
Segundo Lacan, fortalecer o moi será manter o sujeito alienado em sua falsa sensação de completude. E é
justamente o fortalecimento do ego que propõe autores da psicologia do ego. Deste modo, o
estabelecimento da identidade a partir do fortalecimento do ego pode ser lido como fortalecer a alienação
desta falsa sensação de completude.
122
marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental. (Lacan, 1949,
p. 100)
Assim sendo, a individualização e a unicidade que Knobel propõe também são
um engodo. O indivíduo como um ser indivisível é apenas essa armadura alienante que
o sujeito supõe. O projeto de uma análise que venha a dar esse sentimento de unicidade
ao ser é apenas mantê-lo alienado, ideologizado. A crise da adolescência, enquanto uma
normalidade que levaria o indivíduo a um crescimento interior e uma fortificação de seu
ego buscando a completude, é produto desta mesma ideologia que nos faz pensar ser
possível a existência do indivíduo como dotado de suas potencialidades próprias,
independente da ‘sociedade que o oprime’. Esta é a máxima expressão da ideologia
contemporânea.
Se existe crise de adolescência, ela existe porque o sujeito humano é um
sujeito em crise, e essa crise se pelo fato que, como diz Lacan, a sexualidade,
muito antes de fazer sentido, faz furo no real. Na psicanálise de Freud com Lacan, a
crise da adolescência se no encontro com o sexo, porém esse encontro é muito
mais um desencontro do que uma tendência à harmonização. (Alberti, 1999, p. 100)
O indivíduo significa o ser indivisível, aquele que não é dividido e é, justamente,
contrariamente este tipo de lógica que Lacan teoriza. A crise, como sendo do sujeito, a
retira da especificidade de uma fase etária. Se a discussão sobre um sujeito em crise
nunca foi tão elaborada como na modernidade, isto se deve ao fato de que, apenas na
modernidade, houve uma centralidade do indivíduo, enquanto objeto da existência
(religiosa e material), e da ciência. A marca central da sexualidade não é o
desenvolvimento biológico da sexualidade, mas sim a emergência de um real do sexo,
que é carente de sentido, é impossível de ser completamente simbolizado. A tentativa de
normatizar a falta causada pela intrusão do real é procurar normatizar o sujeito, teorizar
123
sobre a normatização do sujeito querendo dar conta dele por completo, como um ser
sem ‘furo’, é construir uma teoria nos moldes do paradigma científico atual, a que traz a
verdade absoluta sobre o real e continuar realizar a interpelação do sujeito enquanto
indivíduo.
Por uma concepção de sujeito não-relativista
Criticar as correntes que apostam que a formação e desenvolvimento do
indivíduo são correspondentes diretos de sua evolução biológica, não nos leva a apostar
que a saída seja encontrar no determinismo social a explicação para a origem da crise do
adolescente.
Um dos autores que trouxemos para ilustrar este tipo de construção teórica,
Hollingshead, afirma que o comportamento adolescente depende exclusivamente das
exigências da sociedade.
Se tomássemos este princípio como verdadeiro, deixaríamos o sujeito sem
possibilidade de escolha: ele é um adolescente quando a sociedade o considera e, pára
de ser, quando esta cessa de considerá-lo.
Além de estarmos em um campo onde a subjetividade desaparece, o sujeito é
concebido como um mero efeito reflexo das exigências históricas e sociais: o sujeito
adolescente estaria eximido da responsabilidade em relação a seus atos
17
. que tudo é
movido pelo contexto da sociedade, é esta quem teria que mudar seu modus operandi e
17
Afirmar que o sujeito deve se responsabilizar por seus atos em nada legitima pensamentos ou ações que
visem a diminuir a idade da maioridade penal. A questão da penalização jurídica do sujeito, ainda que
tenha relação com a temática em questão, não se esgota na mesma. Derivar implicações diretas do tema
de que me ocupo para proposições sociais normativas, que dizem respeito à legitimação social e ao
código penal, seria abusivo e absurdo. Estamos afirmando sobre a necessidade do adolescente estar
implicado nos atos que produz e não ter seus atos considerados simplesmente como atos reflexos da
situação social ou histórica. Conceber a crise da adolescência como um processo do desenvolvimento
biológico é outra forma de desresponsabilizar o sujeito.
124
não restaria espaço para o sujeito adolescente promover mudanças e responder pelos
atos que pratica.
Lacan critica este privilégio dado ao ambiente na constituição do sujeito, pois
afirma que, neste caso, estamos voltando a adotar uma postura objetivante, ou seja,
como se fosse possível separar o sujeito do objeto, através da ciência. A análise do
social, excluindo o sujeito desta, colocando-o apenas como determinado pela estrutura
social, seria como separar o cientista de seu ‘problema-objeto’ de estudo. Essa postura
em nada elimina a oposição entre indivíduo e sociedade, apenas coloca a questão de
uma outra maneira, disfarçando a dicotomia. Se o problema dos teóricos anteriores era
explicar o social através do biológico, esta outra tentativa de resolução do impasse
também é equivocada, pois toma-se o social para explicar tudo que é relativo ao sujeito,
ou seja, apenas, muda-se o lado da balança que recebe mais peso.
A ênfase no ambiente constitui uma redução do que é proporcionado por toda
experiência analítica. É um retorno à posição simplesmente objetivante que coloca
em primeiro plano a existência de um certo indivíduo em sua relação mais ou menos
adequada, mais ou menos adaptada, ao seu meio. (Lacan, 1956-1957, p. 17)
Nem todos os autores incorrem neste mesmo erro quando fazem a análise da
crise da adolescência a partir do social. Groppo (2000) coloca a importância de lembrar
que as terminologias são construções teóricas que visam dar conta da realidade. Porém,
no momento de analisar o sujeito que está referenciado na categoria de adolescente ou
de juventude, faz análises que levam a compreender este processo sempre a partir de
grupos específicos (classes sociais, etnias, gênero, etc.) e aponta que, a solução (para
não ficar na superficialidade) seria fazer um cruzamento da análise entre os diversos
grupos. Apesar de fazer um bom trabalho de desconstrução dos conceitos de criança,
adolescência e juventude, entre outras categoriais, tem uma tímida aproximação do que
125
poderia oferecer bases para uma compreensão dialética e não apenas histórica e social
do adolescente. Chega a citar a existência das particularidades em cada jovem, mas não
avança além deste ponto, deixando uma incógnita sobre o modo que seria constituído
este ‘para-além’ de uma construção social.
A comparação das categorias ou grupos leva, necessariamente, a um apagamento
do sujeito. Conforme observamos em Elias (1994), uma sociedade é mais do que a soma
ou a média dos participantes que a compõe. A análise de um grupo, mesmo caso, estaria
levando em conta o fenômeno das relações funcionais e identificatórias que o
sustentam, mas não fornece a singularidade de cada um dos sujeitos.
A busca da explicação da crise adolescente, através da constituição do indivíduo
pela ação cultural e histórica, retira o caráter naturalizante que as explicações biológicas
tentavam dar para a adolescência, porém deixa um conceito relativista de sujeito.
Os que explicam o mundo através da biologia dos seres humanos atribuem um
caráter natural ao indivíduo na tentativa de achar uma essência não relativista do
indivíduo, assim o indivíduo é o portador de uma essência ‘interna’. Já os autores como
Hollingshead e Groppo pensam o indivíduo como um ponto de ligação das redes
complexas da história e da cultura.
Lacan fez críticas ao estruturalismo justamente por este cair num relativismo
(críticas que podem se encaixar também aos autores acima citados), tudo seriam
estruturas, nada para além delas. Deste modo, não é o indivíduo que interessa à
psicanálise, pois ele é uma unidade indivisível. O sujeito é quem nos interessa, por estar
dividido pelo significante e ser mais do que um ponto de encruzilhada da estrutura das
redes de influência existentes.
Deste modo, Ogilvie (1991), comentando esta face do sujeito proposto por
Lacan, traz uma importante distinção entre história e sujeito. O que nos permite afirmar
126
que falar sobre fatos históricos é de uma dimensão diferente do que analisar sujeitos, a
análise de grupos pode demonstrar as particularidades de um grupo, mas não a de cada
sujeito.
O pensamento de uma época não é, efetivamente, a soma dos pensamentos
dos sujeitos’. A história é precisamente um ‘processo sem sujeito’: mas o sujeito,
este não é um processo sem sujeito. (Ogilvie, 1991, p. 46)
Essa é uma importante virada que Lacan faz, não considera o sujeito como
correspondente biológico mas também não negligencia a existência do sujeito, este não
é somente um ponto na estrutura complexa, se assim o fosse, estaria novamente
esvaziado. Lacan vai em busca do sujeito que chama verdadeiro: “O sujeito verdadeiro,
é o sujeito do inconsciente...” (Lacan, 1954, p.373), procurando desvelar o sujeito
apagado por trás deste eu forte, que postulam os psicólogos do ego, e também escapar
de um relativismo que desresponsabiliza o sujeito ao considerá-lo apenas como
determinado histórica e socialmente.
Lacan propõe que o sujeito do inconsciente (je) é o sujeito a ser revelado através
da experiência analítica. Este é o que poderia superar a visão dicotômica entre biológico
e social, não ficando preso ao sujeito como uma estrutura biológica sem possibilidade
de realizar seus próprios atos, nem cair no risco estruturalista que prevê uma espécie de
funcionamento autômato, sem possibilidade de escolha pelo sujeito.
Lacan diverge do estruturalismo, uma vez que os estruturalistas tentam
explicar tudo em termos do primeiro nível, isto é, em termos de uma combinação
mais ou menos matematicamente determinada que se desdobra sem qualquer
referência a sujeitos ou objetos. Enquanto a estrutura representa um papel muito
importante na obra de Lacan [...] ela nunca representa tudo no desenvolvimento de
suas idéias. (Fink, 1998, p. 51)
127
O sujeito não é uma combinatória de fatos históricos e culturais, o sujeito tem
algo de real. O efeito do recalcamento produzido pela linguagem, produz o sujeito,
embora este esteja submetido à lei do significante. Afirmar que um significante
representa o sujeito para outro significante, é revelar que o recalcamento promovido
pela linguagem faz com que o sujeito seja representado sempre pelo significante. O
sujeito é revelado através de aparições evanescentes por meio da enunciação.
A origem do sujeito se joga na submissão (no sentido de pôr embaixo) ao
significante; é o recalcamento originário, ou seja, a criação de um real interno, de
uma extimidade, para retomar o eloqüente neologismo de J. Lacan. O sujeito é o
vestígio desse recalcado originário, que não cessa de não se escrever para esse sujeito
determinado, e nisso a busca do ser é impossível. (Lesourd, 2004, p. 280)
A extimidade, implica em conceber que a linguagem, enquanto Outro que
constitui o sujeito, é social. O sujeito do inconsciente (je) se releva, especialmente,
através dos atos falhos, chistes e atos, ou seja, a partir de furos no discurso. A
extimidade é a mais externa (constituído a partir do Outro) intimidade do sujeito. O que
é estranho ao discurso (chamado por Lacan de enunciação) que revela o verdadeiro
sujeito (je), enquanto o enunciado é resultado eu (moi), alienado ao discurso do Outro.
Não há separação clara entre interno e externo, um mesmo discurso contém o sujeito do
enunciado (moi) e o da enunciação (je). Assim, o modelo ideal para representar o sujeito
é a banda de Moebius, uma superfície topológica como um oito inverso, onde verso e
reverso são contínuos, o há separação absoluta entre interior e exterior, são contíguos.
Esta é a dialética do sujeito.
A psicanálise primazia ao significante, pois este representa o sujeito, nos
conduz à enunciação. A questão da linguagem, em especial do significante, não tem o
mesmo uso para Groppo e Santos. E aqui encontramos uma marca de superação na
128
psicanálise proposta por Lacan: a linguagem não é apenas um meio de comunicação ou
de ordenação social, pois, através do significante, tem existência material.
Groppo entende a adolescência como uma categoria social, ou seja, uma criação
simbólica ou representação dos comportamentos que são atribuídos aos adolescentes. Já
Santos afirma que a adolescência é uma categoria histórica, aparece especificamente
num determinado contexto histórico-social. Mas isto se torna pouco para entender a
importância que a adolescência tem na contemporaneidade. A adolescência e a crise da
adolescência devem ser considerados como significantes que representam sujeitos e não
apenas como categorias.
Valderrama afirma que, ao contrário de outros campos do conhecimento (aqui
incluso o marxismo), a linguagem tem caráter material a partir do olhar da
psicanálise. Traz um interessante exemplo sobre o uso dos significantes ‘não’ e
‘mulher’:
A linguagem recorta os objetos e as coisas. Por exemplo, no Japão, apesar da
brutal crise econômica, quase 30 maneiras de dizer ‘não’. Se diz ‘não’ de modo
diferente a uma esposa e a uma filha. E já que estamos com mulheres, também
uma grande quantidade de modos de dizer mulher. Isto é, o objeto’ ou a ‘coisa’
‘mulher’, não ‘existe’ no Japão da mesma maneira que aqui. Se as mulheres
japonesas acostumaram a andar alguns passos atrás de seu esposo não é por uma
simples questão ‘cultural’. Isso responde a toda uma delimitação do que significa ser
‘esposa’. (Valderrama, 1998, p. 17)
18
Assim, o significante adolescência é diferente do significante juventude, mas
não isto, está relacionado a uma delimitação do que significa ser adolescente, da
18
Tradução livre, feita pelo autor da dissertação. Texto original: “El lenguaje recorta los objetos y las
cosas. Por ejemplo, en el Japón, además de la brutal crisis económica, hay casi 30 maneras de decir que
‘no’. Se le dice ‘no’ de modo diferente a una esposa que a una hija. Y ya que estamos con mujeres, ahí
también hay una gran cantidad de modos de decir ‘mujer’. Es decir, el ‘objeto’ o la ‘cosa’ ‘mujer’, no
‘existe’ en Japón de la misma manera que aquí. Si las mujeres japonesas acostumbran a caminar unos
pasos detrás de su esposo no es por una simple cuestión ‘cultural’. Ello responde a toda una delimitación
de lo que significa ser ‘esposa’.” (Valderrama, 1998, p. 17)
129
posição que é outorgada a um adolescente na sociedade. Os sujeitos, que adotam este
significante para identificá-los, estão dizendo de qual lugar partem. Identificar-se com o
significante adolescente em crise pode significar liberdade para ser depressivo, para ser
contestador, enfim, o significante adolescente em crise impede a emergência do sujeito
colocando limitações para sua ação e oferecendo formas específicas de gozo, como por
exemplo, a desresponsabilização pelo ato.
O significante impõe ao sujeito despojar-se de qualquer resto de natureza
biológica que poderia existir, falar do significante adolescência é buscar uma forma para
significar as supostas modificações, sejam elas hormonais ou sociais de um sujeito, é
representar o real partindo do registro do simbólico.
O que a prática da psicanálise descobre, precisamente, é que a linguagem,
longe de ser um instrumento a serviço de nossa vontade é um espaço que nos
constitui, com essa particularidade de confrontar-nos a uma perda de tudo pretendido
como ‘ser’ prévio (seja biológico, anatômico, etc.), a uma perda de ‘naturalidade’, de
que não dialética hegeliana que nos possa restituir, sob a forma de um saber
absoluto, isto é, uma reconstrução no significante, esse ser ‘natural’ perdido. ‘Somos’
a partir de um dizer. (Valderrama, 1998, p. 17)
19
Reconhecer, que a adolescência é uma categoria com variações ao longo da
história e com conotação social específica em cada momento, é de grande importância.
Mas não podemos deixar de articular a importância que esta categoria ganha ao ser vista
também como um significante. Não é apenas um significado referido a pessoas de uma
determinada faixa etária, adolescência, ou crise da adolescência, são significantes
constitutivos do sujeito que se identifica a eles, que se nomeia ou é nomeado desta
19
Tradução livre, feita pelo autor da dissertação. Texto original: “Lo que la práctica del psicoanálisis
descubre, precisamente, es que el lenguaje, lejos de ser un instrumento al servicio de nuestra voluntad es
un espacio que nos constituye, con esa particularidad de confrontarnos a una pérdida de todo pretendido
‘ser’ previo (sea biológico, anatómico, etc.), a una pérdida de ‘naturalidad’, de la que no hay dialéctica
hegeliana que nos pueda restituir, bajo la forma de un saber absoluto, es decir, una reconstrucción en el
significante, ese ser ‘natural’ perdido. ‘Somos’ a partir de un decir.” (Valderrama, 1998, p. 17)
130
forma. A forma que cada sujeito vai usar para ser representado por este significante,
será a forma pela qual ele se articula com o real que insurge.
A função simbólica dos rituais de passagem
A maior parte dos autores citados parece concordar em uma questão: os rituais
de passagem facilitavam o processo de transição do sujeito, do papel socialmente
designado como criança ao designado como adulto. O único autor que discorda desta
tese é Osório (1992).
Para este autor, os rituais de passagem tinham a função de dificultar a entrada do
adolescente no mundo adulto e, hoje em dia, seriam cada vez mais difíceis (cita o
vestibular como exemplo), pois, com um número cada vez maior de jovens bem
preparados intelectualmente, os adultos estariam se sentindo ameaçados e procurariam
impor barreiras cada vez maiores, dificultando o acesso do adolescente ao status de
adulto. Daí resultaria a crise, no impedimento desta troca de condição, que os adultos
impõe aos adolescentes.
Confrontando esta hipótese com as demais apresentadas, a análise de Osório
parece ser marcada por um sociologismo superficialista, pois nega o caráter simbólico
que os rituais oferecem. Não queremos negar o fato de que os rituais são uma barreira a
ser transposta pelo sujeito adolescente, e no caso do vestibular, em específico, podem
vir a retardar a entrada do sujeito na condição de adulto, reforçando o caráter da
necessidade permanente de preparação propagada pelo ideário capitalista liberal. Porém,
afirmar que a relação envolvida pelos rituais seja apenas uma tentativa dos adultos em
frear a ameaça dos sujeitos adolescentes, devido à possibilidade de que estes tomem
seus lugares, é simplificar em demasia a gica social e psíquica que rege sociedade e
131
sujeitos. Conforme vimos em Elias (1994), as ações sociais não são uma mera
combinatória de atos de determinadas pessoas ou de determinados grupos etários, mas
sim uma complexa relação funcional na qual os sujeitos estão dispostos.
a posição de Santos coincide com a visão da psicanálise em relação a força
simbólica que os rituais possuem. O autor indica que os rituais de passagem e os papéis
sociais bem definidos, presentes nas chamadas sociedades tradicionais, forneciam um
‘banho simbólico’ que demarcava o campo que o adolescente viria a percorrer,
deixando menos espaços em branco para que este precisasse buscar as soluções de
forma individual.
Santos (1996) acredita que a necessidade dos rituais de passagem encadeava-se
às modificações da natureza física e psíquica pelas quais o adolescente passava, o que
forneceria suporte a este para lidar com estas modificações.
Por mais que possamos entender que Santos está se referindo às mudanças
corporais impostas pela puberdade, essa análise parece ainda superficial. Não uma
explanação sobre qual a relação do biológico com o psíquico. E, colocado desta
maneira, os rituais surgiriam como a única forma de se fazer a passagem tranqüila da
adolescência, seriam então uma suplência cultural criada para dar conta de uma
necessidade biológica da transformação do corpo do indivíduo.
Este tipo de explicação acaba mais uma vez por colocar a base biológica como
delineada pelas referências culturais. Conceber esta ‘integração’ entre biológico e
cultural é bastante diferente do que citamos, que é analisar o sujeito como produto
dialético da divisão imposta pela linguagem.
Calligaris (2000) apresenta uma visão diferente da relação entre adolescência e
rituais de passagem. Para o autor, a presença de rituais, em culturas diferentes da
ocidental moderna, tinha um forte valor para os jovens membros da sociedade em sua
132
passagem da condição de criança à de adulto. Propõe que, o que chamamos hoje de
adolescência, tenha um valor correspondente ao que tinha um rito de iniciação em
outros tempos. A própria origem da crise adolescente viria da moratória que lhe é
imposta, seria muito mais fácil para os jovens de outras culturas passarem pelos ritos de
iniciação, que incluíam provas (que não eram simples, mas que lhes conferiam a entrada
no mundo adulto), do que enfrentar a moratória cultural que é imposta hoje durante o
período adolescente.
Esta moratória cultural imposta aos jovens uma vez que eles atingiram a
maturação sexual, internalizaram os valores da cultura estando prontos para alcançar
destaque nos campos social, financeiro, amoroso e sexual impede-os de realizar estas
tarefas possíveis. Assim surge a adolescência, enquanto nas tribos existiriam os rituais
em seu lugar. Calligaris afirma, ainda, que falta uma definição em nossa sociedade do
que é necessário para ser um adulto:
De certa forma, a moratória da adolescência é o fruto dessa indefinição.
Numa sociedade em que os adultos fossem definidos por alguma competência
específica, não haveria adolescentes, candidatos e uma iniciação pela qual seria
fácil decidir: sabe ou não sabe, é ou não é adulto. (Calligaris, 2000, p. 21)
Este posicionamento de Calligaris retira o caráter naturalizante dos rituais de
passagem, pois autores, como Santos, descrevem os rituais de passagem como uma
necessidade para a estruturação do sujeito adolescente. Ao analisar e comparar a cultura
presente nas sociedades tradicionais com a contemporânea, é comum observarmos este
tipo de saudosismo, que seria uma invocação pela volta de certos ‘valores’ presentes em
sociedades do passado, como se fossem a solução para o tempo histórico (outro) em que
vivemos. o posicionamento de Calligaris não remete a uma nostalgia dos rituais,
apenas afirma que a passagem poderia ser considerada mais fácil pois, a cultura das
133
sociedades tradicionais fornecia ao sujeito as demarcações para sua passagem. Os
papéis estavam claramente definidos e não existia possibilidade de escolhas
subjetivas: o filho de um artesão, necessariamente seria artesão, a identificação já estava
pronta para ser assimilada pelo sujeito. Este o é ‘banho simbólico’ promovido pela
cultura. Assim, elevar a adolescência como substituta dos rituais, é entendê-la como esta
passagem das identificações presentes na cultura, para uma convocação à subjetivação.
A cultura do indivíduo prega justamente isto, cada sujeito deve ser diferente, singular,
buscar seu próprio caminho, tomar suas decisões... o adolescente é convocado a
procurar suas próprias identificações. E reside o paradoxo: ele deve identificar-se
com o diferente, deve ser ele mesmo, mas identificar é tomar outro para si. Se tomar
outro para si, estará infringindo a regra e se igualando, não sendo diferente.
A moratória da adolescência torna-se então este processo em que é criada tal
indefinição identificatória, pela qual passa o sujeito adolescente.
Podemos notar que alguns autores também parecem estar procurando quais
seriam os rituais de passagem da atualidade. Se Osório busca acreditar que o vestibular
pode ser um ritual de passagem, Abramo cita a escola como único ritual legítimo. Mas a
autora aponta a principal dificuldade do sujeito adolescente, causa da ambigüidade:
como é possível ao adolescente construir uma identidade num mundo particularmente
fragmentado?
Preocupação semelhante à de Santos, que afirma que justamente esta
fragmentação da sociedade, diluição de rituais e papéis pouco definidos seriam a
principal causa da chamada crise adolescente.
Assim estes autores creditam a passagem do estado de criança a adulto, isento do
caráter de crise, como a possibilidade do sujeito atingir sua ‘estabilidade’ ao se
identificar a papéis que a sociedade oferece a ele. Deste modo, as sociedades
134
tradicionais ofereciam uma maior disponibilidade de dispositivos simbólicos que
vinham tamponar a falta constitutiva do sujeito. Embora esse fator facilitasse a transição
do sujeito adolescente, esta completude se fazia através do modelo que Elias descreve:
as pessoas agiam como se fossem um meio para a manutenção e continuidade da
sociedade. A falta constitutiva do sujeito não aparecia por este ‘trabalhar’ integrado à
sociedade, encarando a continuidade de sua vida na continuidade do social. As
modificações históricas e sociais trouxeram, inicialmente, a família para o centro, e
atualmente, o indivíduo como finalidade da vida. Se por um lado o individualismo
aumentou, por outro aumentou a possibilidade de questionar a ordem social instituída.
Se a crise existe, não é devido à ausência de rituais, é porque ficou exposta a falta
constitutiva do sujeito. Ele não encontra mais o campo demarcado pelas identificações
que vem preencher esta falta. O real do sexo pôde emergir sem uma significação prévia
(antes dada pelos rituais), siderando o sujeito.
O adolescente hoje não mais encontra um campo mapeado de significações
par as transformações que sofre. Se, de um lado, isso dificulta enormemente a sua
trajetória, que muitas vezes transforma-se em um impasse, por outro, o obriga a um
contato com um campo cultural muito mais amplo e diferenciado. Efetivamente, a
responsabilidade de uma solução para suas próprias questões também recai sobre ele,
onde, sem dúvida alguma, subjetiva as questões antes tratadas na coletividade.
Todavia, no imaginário coletivo, pouco lugar para o desejo de cada um, pouco
lugar para cada sujeito, em sua singularidade. (Alberti, 1999, p. 164)
A função dos rituais, do político, das ideologias e das religiões, é procurar
recobrir a falta própria à estrutura da linguagem, o furo do simbólico. Cada sujeito é
levado a formular suas próprias respostas às questões, que antes apresentavam uma
resposta ‘coletiva’. De fato, a adolescência seria uma operação psíquica presente em
135
um tempo onde reina o sentimento de indivíduo e individualismo, da busca das soluções
individualmente, ou seja, subjetivadas.
Portanto, não se trata de ser melhor ou pior para o sujeito a existência dos rituais.
No momento histórico onde existia uma significação prévia na cultura, não havia espaço
para a falta, mas também não havia muitas possibilidades de escolha ou de
diferenciação entre os sujeitos. Na modernidade não existindo uma significação social a
priori, o próprio sujeito terá de criar uma significação, porém, como demonstra a
psicanálise, toda significação criada pelo sujeito é à posteriori.
...adolescência faz parte dos elementos que participam da ordem simbólica
desde o momento da história da humanidade em que sua existência surgiu como
necessária, sendo constituída, a partir de então, em elemento fundamental da
estrutura subjetiva do homem para que este possa se fazer adulto. (Ruffino, 1993, p.
30)
A diluição dos rituais de passagem e a sociedade multifacetada contribuem para
a possibilidade de uma busca singular. Mas o caminho de uma busca singular não está
necessariamente atrelado a uma crise. A ambigüidade presente no discurso do Outro,
que convoca o sujeito adolescente para buscar sua ‘essência interior’, não admite a
possibilidade da falta. Ao serem chamados a fazer suas escolhas: na profissão, no amor,
nos objetos de consumo..., os sujeitos adolescentes estão envoltos na falsa promessa do
capitalismo liberal, da possibilidade plena. As escolhas não são tão livres. Como Elias
(1994) aponta, a margem de articulação e mudança do sujeito são muito pequenas em
relação às possibilidades que são prometidas. E, mesmo as escolhas, que cabem ao
sujeito, são sobredeterminadas pelo inconsciente, conforme Freud (1893-1895) afirmava
desde Estudos sobre a histeria, uma de suas primeiras obras. Não havendo mais
dispositivos culturais que garantam a significação à priori para a falta constitutiva do
136
sujeito, este é impelido a buscar sua identidade e sua individualidade em ‘si mesmo’,
encontrando, justamente, a falta, a impossibilidade de responder com sua ‘essência
interna’ às emergências do real. Essa ambigüidade, que é apresentada ao sujeito, que se
nomeia de crise da adolescência.
O adolescente descobre que o saber absoluto falta. Compreende que todo
discurso comporta, na origem, uma falta fundamental, que a verdade o está
garantida, em virtude dessa própria falta. O adolescente se diante dessa
‘impotência’ parcial do adulto, que o obriga a ‘se virar’ para falar simultaneamente o
seu corpo e a sua relação com os outros. (Lesourd, 2004, p. 225-226)
A verdade, anteriormente garantida pelos pais e pelas figuras representativas da
sociedade (líderes, chefes de tribo...), passou para o lado das descobertas científicas, que
fragmentam o saber e apontam verdades absolutas. O saber deixou de estar vinculado a
um sujeito que ocupa uma função parental ou social e passou a estar disponível e sem
nome. O declínio das respostas únicas e autoritárias, que garantiam uma certa
‘tranqüilidade’ ao sujeito, por não precisar elaborar subjetivamente seu lugar na
sociedade, deixou exposto o vazio e a falta fundamental. Este é o movimento dialético
da constituição do sujeito do qual falamos, a linguagem, que estrutura o sujeito, deixa
um vazio não recobre o real. O movimento da subjetividade compreende justamente
esta tensão, o simbólico procurando dar conta do real. O trabalho psíquico da
adolescência visa dar um sentido, sempre à posteriori, a uma emergência do real. É
como o exemplo citado da banda de Moebius, interno e externo não possuem uma
delimitação objetiva: o que era uma simbolização à priori dada pela cultura (rituais de
passagem), passa a ser um trabalho subjetivo à posteriori realizado pelo sujeito
(operação psíquica da adolescência).
137
Crise da adolescência: movimento dialético ou de oposição?
Para Nobert Elias e Louis Dumont, autores que utilizamos como base para o
estudo sobre a evolução da concepção de indivíduo, a oposição entre indivíduo e
sociedade passou a ser concebida quando determinadas configurações sociais
permitiram, ao indivíduo, ser visto como uma unidade independente dos demais e como
valor supremo da cultura.
A partir do momento em que a configuração da sociedade permitiu que os
indivíduos fossem vistos como centro da existência o que envolveu mudanças na
política, na religião e na ciência –, houve a reificação do indivíduo. Tomado como um
ser natural, em oposição ao processo de construção social e histórico, passou a receber a
primazia dos estudos da maior parte da ciência.
A questão da adolescência segue a mesma tendência, afinal esta aparece como
um dos desdobramentos das ‘fases’ consideradas naturais do desenvolvimento do ser
humano, e não como um processo, que se torna necessário devido a configurações
históricas e sociais específicas, atuando na constituição do sujeito. Desta forma, as
teorias, que visam dar conta da crise da adolescência, acabam por estabelecer uma
oposição em um par de eixos opostos como fator desencadeador da crise, que poderia
ser resumido conforme o esquema
20
:
Indivíduo------------------------------------------------------Sociedade
Biológico----------------------------------------------------------Social
Interno-----------------------------------------------------------Externo
20
Os sinais
representam o ponto que teria mais peso como causa da crise da adolescência: conforme
deslocado para o eixo à esquerda ou à direita, tal componente teria mais influência como desencadeador
da crise, ou seja, estão em oposição. A psicanálise não se encaixa em nenhuma das categorias, pois
propõe que o sujeito é marcado pela tensão entre interno e externo, numa superfície onde um está
inevitavelmente conectado ao outro, como a banda de Moebius.
138
Este tipo de concepção, que mostra uma dualidade, procura marcar a existência
de uma realidade objetiva, acessível pelo encontro de uma verdadeira essência. O
movimento que elevou o indivíduo ao centro da verdade científica e, portanto, portador
da essência a ser pesquisada, não coincide com a visão de sujeito da psicanálise. A
concepção de sujeito, da teoria lacaniana, não propõe a existência de uma essência
interna ao sujeito nem este como produto do determinismo social.
Aceder à objetividade plena é um engodo, pois o real não existe para os sujeitos,
existe o que está dentro do mundo da linguagem, o que foi significado. Portanto, o
sujeito ‘ex-siste’: existe fora ou separado de nossa realidade
21
. Sobre terminologia ‘ex-
sistência’:
... Lacan a usa para falar a respeito de que ‘uma existência separada de’ que
insiste, digamos assim, do lado de fora; alguma coisa não incluída no interior, algo
que, ao contrário de ser íntimo, é ‘extimo’. (Fink, 1998, p.151)
Esta concepção de existência marca uma tensão entre interno e externo, dentro e
fora da realidade, do real e do que foi possível de ser simbolizado. A dimensão de
indivíduo não tem o mesmo estatuto que a de sujeito, é considerado como uma unidade
que contém uma essência própria. O conceito de indivíduo vem a cessar a tensão que o
sujeito denuncia.
Conforme acompanhamos nos desenvolvimentos de Dumont
22
(2000), o fim da
dicotomia entre poder religioso e poder mundano possibilitou aos indivíduos
mundanizar o valor supremo, o indivíduo torna-se uma opção para realizar as ações de
21
A psicanálise não confunde real com realidade. O real é aquilo que não pode ser representado, que não
é acessível ao sujeito. A tentativa de aceder o real através da linguagem é impossível pois o simbólico não
coincide com a coisa em si. A realidade é constituída pelo registro do imaginário através da formação do
eu (moi) iniciada no estádio do espelho.
22
O terceiro capítulo apresenta uma sessão (‘O surgimento do indivíduo’) onde discutimos a partir de
Dumont (2000) e Silveira (1997) como ocorre a elevação do indivíduo a valor supremo da modernidade.
139
Deus no mundo, ou seja, o indivíduo é reificado a valor supremo ao ser assumido como
um instrumento divino.
A elevação do indivíduo a valor supremo, fez este ser eleito o objeto da
ciência
23
. A ciência que tinha como última instância a referência a Deus – como
explicação para tudo o que não pudesse ser explicado elege o indivíduo, que vem a
ocupar o lugar central, a partir da integração deste com a vontade divina.
Este é um paradoxo da ciência moderna: enquanto procura afirmar seu caráter
laico através da investigação do indivíduo pela objetividade do biológico (a essência do
ser estaria no ‘interno’), reifica o indivíduo, o herdeiro do valor supremo extramundano
centrado na explicação religiosa. A ciência, que investiga a essência interna do
indivíduo, apenas colabora para manter a ideologia que sustenta ser possível ao cientista
a produção de um conhecimento objetivo sobre seu objeto de estudo. Esta ciência supõe
que conseguiria aceder ao real através da produção de seu conhecimento. A psicanálise,
especialmente depois das contribuições trazidas por Lacan, deixa claro que a ciência
não é uma transcrição do real, mas produto de uma dialética infinita. A ciência (seja a
considerada exata, biológica ou humana) faz construções teóricas que sempre deverão
ser retificadas, pois ela mesma faz uso da linguagem, portanto nunca recobrirá todo o
real.
A objetividade que daí se destaca pode ser resultado de uma dialética, de
uma retificação sem fim. Nunca é uma simples transcrição do real. (Ogilvie, 1991, p.
50)
23
Nos referirmos às áreas da ciência que acreditam produzir um conhecimento puro e objetivo. Em
hipótese alguma estamos excluindo a psicanálise, ou qualquer outra área, que não segue esta objetividade,
do campo científico. Ver mais sobre o assunto no texto de Pacheco Filho (2000), O método Freud para
produzir conhecimento: revolução na investigação dos fenômenos psíquicos?, sobre o posicionamento
paradigmático que a psicanálise adquire ao romper barreiras da ciência objetiva: “Qualquer teoria ou nova
proposição nunca pode ser mais do que uma aproximação relativa da realidade, aguardando que uma
melhor formulação venha a substituí-la no futuro.” (Pacheco Filho, 2000, p. 263).
140
Portanto, a produção do saber não é coincidente com a produção do que iremos
chamar de verdade. O sujeito
24
é o único que poderia aceder a uma verdade, justamente
quando despojado do saber que lhe é trazido pelo discurso do Outro. A desidentificação
com a verdade do Outro que não passa de um saber, pois é uma produção de sentido
que pode útil àquele Outro seria uma forma de colocar o sujeito para produzir sua
própria verdade. Ao analista não cabe informar ao sujeito qual a sua verdade, mas criar
condições para que este produza sua própria verdade.
Sabe-se que Lacan situa o sujeito da psicanálise como tributário do sujeito da
ciência. Ele faz da experiência cartesiana
penso, logo sou
–, a expressão da forma
como o recalque originário incide na cultura moderna. Sobretudo, o psicanalista
desenha na esteira de Descartes a divisão entre saber e verdade, em que aquele fica a
cargo da racionalidade científica na medida em que esta é de responsabilidade divina.
Dito de outro modo: a ciência moderna, segundo a interpretação de Lacan da
filosofia cartesiana, estabelece seu campo de ação e sua forma de funcionamento a
racionalidade científica pela manutenção da religião no domínio da verdade. (Poli,
2005, p. 194)
A existência não é garantida pelo pensamento. Lacan inverte a lógica cartesiana
para afirmar que o sujeito existe onde não pensa. A verdade não se encontra com o
saber, a verdade é da ordem do real, enquanto o saber é produto da significação humana,
da realidade. O indivíduo (ir)racional, pensado pelo racionalismo cartesiano, não ‘ex-
siste’.
A superação do embate entre indivíduo e sociedade se dá justamente pelo
conceito de sujeito, que propõe um processo de constituição dialético e não de oposição.
Deste modo, concebemos a crise da adolescência não como conseqüência de pólos
opostos, que entram em conflito, mas a partir de uma superfície onde não é possível
24
O je, sujeito do inconsciente, é quem vem a desvelar a verdade subjetiva.
141
distinguir onde ‘começa’ a questão biológica e onde ‘começa’ a influência do social.
Negar a existência de uma separação clara entre indivíduo e sociedade não significa
dizer que pensamos em um campo, onde exista uma harmonia entre estes, mas, ao
contrário, por fazerem parte de um mecanismo onde estão em constante movimento
dialético. A relação entre interno e externo (ou indivíduo e sociedade, ou biológico e
social) é marcada pela tensão. A possibilidade da construção da singularidade e a
própria existência do sujeito, enquanto efeito da linguagem (ou seja, social) num pedaço
de carne (corpo biológico), são efeitos desta tensão.
Antes de dizermos se a irracionalidade é do indivíduo, da sociedade ou de
ambos, devemos apontar que é a tensão entre eles que precisa ser preservada, porque
a harmonia entre indivíduo e sociedade supõe a indiferenciação dos indivíduos, ou
seja, a uniformização ou destituição do psíquico que implica a particularização e
isto condiz, em se tratando de uma reconciliação forçada, com a irracionalidade
plenamente realizada. Em vez da harmonia, é a tensão existente entre o indivíduo e
sociedade que nos oferece os elementos racionais necessários para esclarecer a
existência da irracionalidade, tanto do indivíduo quanto da sociedade, sem perder de
vista as diferenças marcadas pelas relações desta irracionalidade com a dominação
(no caso da sociedade) ou com a resistência (no caso do indivíduo). (Ramos, 2004, p.
26)
A permanente tensão entre o que chamamos de biológico e o que chamamos de
social é o que nos permite marcar a diferença entre um automatismo biologicista e um
relativismo social. Reconhecer esta tensão presente no sujeito, através de sua
confrontação com a falta, a impossibilidade de explicar o todo e de nomear
completamente o real, permite uma via (mesmo que utópica) de conceber o sujeito
‘fora’ da ideologia.
Lacan, ao propor que o objeto da psicanálise é o sujeito e não o indivíduo, não
aponta simplesmente para uma troca de conceitos. O indivíduo é o representante da
142
falsa sensação de completude, a unidade que esconde a divisão que marca o sujeito. Esta
concepção, propagada sobre o indivíduo, nega a existência da tensão, ou seja, produz a
irracionalidade e a dominação. a concepção que trazemos sobre sujeito, dividido pelo
significante, não possui uma essência interna de bagagem biológica como é suposto ao
indivíduo, é produto da tensão entre interno e externo.
A linguagem não é um instrumento para utilização do ser humano, é a própria
forma de inauguração do sujeito pelo Outro a partir da ação do significante. A
linguagem é o que diz tanto sobre o sujeito quanto sobre o social, apesar de ser um
código coletivo, também possui significação singular para o sujeito.
A relação do homem com a linguagem não é de domínio nem instrumental.
O homem habita a linguagem como poderíamos dizer que habita as relações de
produção, mais atuado do que ator, sem compreender as determinações que o regem.
um ponto que tem que ser claro: a visão psicanalítica sempre se organiza a partir
do caso individual. A psicanálise se constituiu desde seu começo como uma prática
da singularidade do sujeito. (Valderrama, 1998, p. 16)
25
Segundo Valderrama (1998), a psicanálise não se pretende a uma cosmovisão,
pois sua prática reside no estudo de caso por caso justamente isto dificulta sua própria
teorização. O que diferencia a psicanálise é a utilização do estudo do singular (partindo
do sujeito) para chegar à verdade social e histórica.
Conceber a crise da adolescência a partir da questão do sujeito, significa
reconhecer a tensão existente entre sujeito e sociedade. Não partimos do princípio que
há um desenvolvimento biológico que desencadeia a crise da adolescência nem somente
25
Tradução livre, feita pelo autor da dissertação. Texto original: La relación del hombre al lenguaje no
es de dominio ni de instrumento. El hombre habita el lenguaje como podríamos decir que habita las
relaciones de producción, s actuado que actor, sin comprender las determinaciones que lo rigen. Hay
un punto que hay que tener claro: la visión psicoanalítica siempre se organiza desde el caso individual. El
psicoanálisis se constituyó desde sus comienzos como una práctica de la particularidad del sujeto.”
(Valderrama, 1998, p. 16)
143
transformações sócias e históricas, mas uma tensão que marca o interno e o externo,
própria à estruturação do sujeito.
A segmentação dos campos do conhecimento são formas que a ciência busca
para tamponar a falta e dar uma resposta definitiva, chegar à verdade absoluta, que é
impossível. Acabam por produzir um saber absoluto. As especialidades da psicologia:
psicologia do desenvolvimento, psicologia do aprendizado, psicologia social e, até
mesmo, psicologia da adolescência, apenas contribuem para a concepção de indivíduo
como dotado de compartimentos psíquicos e biológicos independentes, ou, ainda, de
uma cisão tão profunda entre indivíduo e sociedade que se faria necessário existir uma
ciência específica para cada um.
Penso que Erikson chega a vislumbrar o erro, que contém este tipo de
pensamento, quando propõe que a psicanálise e a psicologia social deveriam fundar um
novo campo do conhecimento, que seria mais sofisticado e poderia dar espaço ao
entendimento da confluência entre fenômenos individuais e os sociais. Mas essa visão
demonstra que o autor não conseguiu captar a essência da teoria psicanalítica, pois
Freud propôs que, ao escutar o sujeito, jamais estaremos desconsiderando o social, pois
o sujeito está sempre em relação com o Outro. Freud propõe que é impossível pensar em
uma psicologia individual que não seja social.
O contraste entre a psicologia individual e a psicologia social ou das massas,
que à primeira vista pode parecer pleno de significação, perde grande parte de sua
nitidez quando examinado mais de perto. É verdade que a psicologia individual
relaciona-se com o homem tomado individualmente e explora os caminhos pelos
quais eles buscam encontrar satisfação para seus impulsos instintuais; contudo,
apenas raramente e sob certas condições excepcionais, a psicologia individual se
acha em posição de desprezar as relações desse indivíduo com os outros. Algo mais
está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um
objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia
144
individual, nesse sentido ampliado mas inteiramente justificável das palavras, é, ao
mesmo tempo, também psicologia social. (Freud, 1921, p. 91)
Freud (1930) não apontou com clareza para a constituição do sujeito, tal qual
temos hoje na teoria lacaniana, porém sempre manteve presente esta tensão entre
indivíduo e sociedade em seus trabalhos. É impossível não observar esta tensão em O
mal-estar na cultura, obra na qual analisa os mais diversos aspectos da cultura da época
(que estava prestes a entrar na Segunda Guerra Mundial) e a forma pela qual os sujeitos
se enlaçam a ela. Freud não propõe uma separação antagônica entre sujeito e cultura,
salienta a tensão entre as pulsões e o recalque. Durante todo este trabalho, Freud
demonstra que o sujeito abre mão de uma parcela de gozo para viver em sociedade, fica
submetido a uma lei que o impede gozar plenamente, pois não possibilidades plenas
de realização em sociedade, a tensão sempre está presente.
Ressaltamos que as teorias sobre a crise da adolescência, dos autores que
apresentamos anteriormente, pressupõem a primazia de um pólo sobre outro. O uso que
Erikson, Aberastury e Knobel fazem do termo indivíduo, nos faz acreditar em uma
possível primazia do biológico sobre o social, afinal, Aberastury (1992) propõe: por que
não adaptar a sociedade ao desenvolvimento do indivíduo? Ela traz à tona um embate
entre sociedade e indivíduo, no qual somos levados a acreditar que a sociedade é um
meio para os objetivos do indivíduo serem atingidos. Por outro lado, autores como
Groppo e Hollingshead apostam em uma primazia do determinismo social.
Bruno (1990) afirma que a problemática da psicologia atual está na concepção
do sujeito como uma disjunção entre individual e social, concebido a partir do modelo
organismo/meio.
145
por um lado uma forma psíquica individual, que possui leis próprias de
funcionamento, por outro lado um envolvimento social concebido de resto, a maior
parte das vezes, de maneira indiferenciada. (Bruno, 1990, p. 191)
Bruno afirma que o principal mérito da psicanálise é compreender a necessidade
do inconsciente como resultado da existência social do sujeito humano, por meio da
linguagem. Não se trata de tomar um dos ‘lados’ do eixo verificando quem tem mais
peso, indivíduo ou sociedade.
É justamente este tipo de raciocínio que propomos para conceber a adolescência
e a crise da adolescência. A aparição destas na contemporaneidade não se deve a uma
predisposição biológica ou simplesmente a um fator social desencadeante, mas
resultado da tensão entre o real, que invade o sujeito, e as condições sociais e históricas,
que se apresentam.
Esta necessidade pode ser notada a partir das mudanças que observamos na
passagem das sociedades tradicionais para a moderna. Conforme pudemos observar no
primeiro capítulo, a noção de transição entre a condição infantil e a adulta também
estava presente nas sociedades tradicionais. Havia toda uma simbolização específica
dada à priori pela sociedade que marcava a passagem do sujeito à condição de adulto.
Esta passagem não se dava de acordo com uma idade biológica, variava nas diversas
sociedades e tempos históricos. Atualmente, embora existam diversas tentativas de
estabelecer uma idade padrão para a adolescência, não um consenso sobre a qual
faixa etária corresponderia à adolescência. Isto decorre, do fato de que a adolescência é
uma operação psíquica simbólica. Os dispositivos simbólicos, antes disponibilizados
pelo social, se tornaram uma operação subjetiva.
A partir dessa noção de operação, podemos considerar que a adolescência é
um tempo do sujeito, quase independente da idade cronológica de um indivíduo, dito
146
o
adolescente
. Se não é
totalmente
independente desta condição, é porque um sujeito
deve sempre ser considerado em relação ao campo do Outro, ao discurso. Assim,
é
no adolescente que o discurso do Outro realiza o tempo no qual a operação
adolescente se efetiva
. (Poli, 2005, p. 219-220)
É essencial esta distinção apresentada por Poli, embora não exista uma
correlação direta entre as faixas etárias e a adolescência, elas não estão completamente
desvinculadas, pois o sujeito está sempre remetido ao discurso do Outro. No discurso
contemporâneo, podemos notar a chamada adolescência tardia, quando considera que a
idade do sujeito ultrapassou a época que ele deveria viver sua adolescência. Como o
discurso do Outro está vinculado à idade desde a Idade Média, conforme demonstrou
Ariès (1981), o sujeito está remetido a esta definição que vem do campo do Outro,
mesmo que as faixas etárias não sejam significações tão legitimadas (além de não darem
a condição de transição) como os rituais foram em outro tempo.
A passagem, da sociedade tradicional (chamada de holista por Elias) à sociedade
baseada no individualismo, provocou uma mudança no discurso que vem do campo do
Outro. Numa sociedade holista, havia uma significação e integração que definiam a
época de passagem. A sociedade tradicional produzia um saber social e significava o
sujeito com este saber. a sociedade contemporânea, embora produza um saber social
sobre o indivíduo, convoca este a buscar seu saber individual. As bandeiras da liberdade
e autonomia, marcas da sociedade moderna, são o saber produzido, ou seja, convocam o
indivíduo a buscar sua verdade ‘interior’. Como se o saber social não mais existisse,
tendo sido substituído pelo individual. A promessa é que o indivíduo encontrará sua
essência internamente, pois é dotado de potencialidades inatas. Mas ao fazer esta busca
interna o sujeito nada encontra, ou melhor, encontra a falta, que é negada pelo saber
social produzido sobre o indivíduo (o ser completo com a essência interior). A crise da
147
adolescência é mais uma tentativa de dar um nome ao real inominável, escamoteando a
desordem estabelecida no social.
O eu do homem moderno adquiriu sua forma [...] no impasse dialético da
bela alma que não reconhece a própria razão de seu ser na desordem que ela denuncia
no mundo. (Lacan, 1953, p. 283)
O eu, do homem moderno, que é denunciado por Lacan, é aquele que se
identifica ao individualismo, que acredita que pode encontrar sua unidade. O momento
chamado de adolescência na sociedade moderna pode ser considerado de especial
interesse, pois desnuda a falta que sempre é tamponada pelo discurso do Outro. O
mutismo adolescente é a impossibilidade em responder ao real que se impõe. As teorias
de Erikson, Knobel e Aberastury estão baseadas na construção de uma identidade, ou
seja, um eu forte que renuncia à possibilidade de denunciar a desordem presente no
mundo. O recurso que outros teóricos (Santos e Abramo) utilizam, presos a questão dos
rituais de passagem, também pressupõe a existência de uma unidade a ser atingida. A
denúncia feita por Lacan é a ausência da unidade.
A adolescência questiona o registro do simbólico como tal, simbólico que até
então era suficiente para todo questionamento do sujeito e que agora não basta para
dar conta do real. Assim, o adolescente se põe efetivamente a questionar o simbólico
no que ele se inscreve perfeitamente nessa ordem tal como Descartes a introduziu na
era moderna – ou o evita. (Alberti, 1999, p. 28)
A adolescência é um momento privilegiado para a aparição da falta, onde as
figuras paternas, que forneceram a simbolização, começam a ser questionadas. Nas
sociedades tradicionais a passagem da condição infantil à condição adulta era realizada
de modo contínuo, demarcado simbolicamente e sustentado por figuras que não tinham
148
seu saber questionado, portanto o estatuto simbólico, que prometia ao sujeito dar conta
do real, não encontrava a falta, a simbolização seguia um processo contínuo, sem
rupturas. nas sociedades modernas, o saber está cada vez mais difuso e não um
mestre único a ser seguido, os sujeitos adolescentes são convocados, pelo discurso do
Outro, a escolher seus caminhos, abrindo a possibilidade de questionar o simbólico. Não
mais um saber absoluto como havia nas sociedades tradicionais, mas vários saberes,
o que impede que o sujeito adolescente encontre uma significação contínua como
outrora. “A adolescência é assim a passagem do discurso infantil referido ao Pai para os
discursos sociais referidos ao Outro social.” (Lesourd, 2004, p. 12).
Atualmente ouvimos falar em pré-adolescentes e, cada vez mais cedo, vemos as
crianças questionando o discurso do Outro parental, pois este não conta mais com a
mesma legitimidade que em outro tempo. Quando o discurso do Outro parental, que
garantia a promessa da recuperação do gozo perdido pela submissão à lei edípica, se
revela falacioso, há o questionamento do simbólico. Nas sociedades tradicionais, a
promessa da recuperação deste gozo era através da continuidade e realização sociais. A
promessa contemporânea reside na busca da completude através do ‘eu interior’.
A busca da completude ou do prazer narcísico é estimulada, uma vez que o
discurso do Outro estimula a busca interna, solitária. A forma de convocação do sujeito
pelo Outro na modernidade, através da via do indivíduo, supõe a unidade perfeita.
Sintomatologias, apresentadas como típicas da crise da adolescência, tais como: o uso
de drogas e a falta de comunicação dos adolescentes com os outros, são convocatórias
do discurso do Outro, que interpela o sujeito a se realizar de forma individualista.
Apanhado pelas irrupções do real, não mais significadas previamente como outrora, o
sujeito adolescente a sociedade como oposta aos próprios interesses (a mesma
oposição que as teorias sobre a crise da adolescência trazem). A obtenção do prazer,
149
hedonista por pressuposto moderno, tem sua efetivação na tentativa de gozar o próprio
corpo.
A elevação do indivíduo como finalidade da vida, em detrimento da sociedade, é
o processo que marca a diferença entre a sociedade tradicional e a moderna. Na
sociedade tradicional havia um processo de continuidade social, cada membro tinha
funções específicas bem delimitadas e as irrupções do real tinham significações prévias
na cultura que funcionavam para todos os membros, pois estes acreditavam no saber
criado pela instituição social. Não havia possibilidade de escolha, os caminhos estavam
pré-definidos. A passagem para a modernidade, ao elevar o indivíduo a valor supremo,
propõe que cada sujeito possa escolher seu próprio caminho. O desenvolvimento da
sociedade leva a crer isto, pois se antes a função social era definida pelos antepassados,
agora pode ser obtida através de um suposto mérito individual. A figura do ideal do
indivíduo, que tem tudo para ser bem sucedido em nossa sociedade, é o da pessoa que
completou seus estudos e se dedica à constante atualização. Tudo dependeria de suas
próprias possibilidades: os que seguem essa receita à risca e não conseguem obter o
sucesso prometido, explicam seu fracasso através da falta de sorte ou de sua limitação
biológica (alguém apresentava mais vocação do que ele para ocupar determinado lugar).
A própria psicologia durante muitos anos se propôs a descobrir a vocação das pessoas.
O que seria a vocação senão a crença de um desígnio divino (aplicar a vontade de Deus
ao mundo) concedido ao indivíduo?
A centralidade da adolescência no discurso social aparece a partir desta
preocupação com a continuidade do indivíduo e não mais da sociedade. Os jovens são
considerados como o futuro da nação, um ideal, pois, supostamente, teriam toda a
liberdade e possibilidade de escolha que os adultos não têm mais.
150
A maneira moderna de olhar para as crianças, esse jeito de amá-las que faz
da infância uma verdadeira divindade cultural, triunfou quando a sociedade
tradicional cedeu o passo ao individualismo. (Calligaris, 2000, p. 62)
Calligaris destaca um traço fundamental para o entendimento do momento de
invenção da infância: a mudança na experiência de morte, pois na sociedade tradicional
a comunidade é a depositária da continuidade da vida, ou seja, mesmo com a perda de
um dos membros, o mais importante não é o indivíduo, é a comunidade. E esta continua
existindo. Com o fim da sociedade tradicional, que tem fundamento na experiência
grupal, o sentido deve ser procurado no espaço de vida do indivíduo: as crianças e
adolescentes aparecem como uma espécie de continuidade do indivíduo.
Na sociedade moderna mudou também a forma de estruturação da família. A
família, que era baseada no casal, agora não é mais definida pela união do casamento,
do marido e da esposa. O que marca a família na modernidade é a existência dos filhos.
Lesourd (2004) denomina este tipo de família de monoparental, pois só há
necessidade de um dos pais com um filho para constituir uma família. O autor cita que a
principal preocupação não é mais a preservação da tradição mas a continuidade do
sujeito. Exemplifica com o código penal da França, que eliminou o artigo que descrevia
o parricídio para incorporar outro, a respeito do infanticídio, em seu lugar.
Não é mais matar os seus genitores, ou seja, a sua origem, que é
inadmissível, mas matar a criança, ou seja, matar o futuro que se criou. (Lesourd,
2004, p. 268)
Trocou-se a dívida simbólica do parricídio pelo narcisismo de sobrevivência
pessoal. Os pais eram os responsáveis pela família, agora os filhos carregam a
151
responsabilidade pelo sucesso, pois são considerados o prolongamento dos pais. O valor
supremo está centrado na continuidade do indivíduo.
E é justamente este indivíduo adolescente, supostamente contendo o valor
supremo ou uma essência interna, que é apresentado pelas teorias que analisam os
conteúdos internos (sejam eles de origem biológica ou de compartimentos psíquicos
internos), feita por autores de psicanálise, que apresentamos como tendo uma visão
‘tradicional da adolescência’. Lacan critica as correntes da psicanálise e da psicologia
que buscam essa ‘unidade interior’ do indivíduo, como se este fosse o portador de um
conhecimento, o qual a ciência busca revelar.
Seu critério é a unidade do sujeito que existe com base nos pressupostos
desse tipo de psicologia, nela cabendo até tomar como sintomático que seu tema seja
cada vez mais enfaticamente isolado, como se se tratasse do retorno de um certo
sujeito do conhecimento, ou fosse preciso que o psíquico se fizesse valer como
duplicando o organismo. (Lacan, 1960, p. 809)
O isolamento dos temas é o processo aplicado à crise da adolescência. Isolada
como fenômeno natural, a adolescência seria um processo psíquico correspondente a
uma fase do desenvolvimento.
Outra questão, que sobressai nestas teorias que visam explicar a crise da
adolescência, é a busca e obtenção de uma identidade – tanto para os autores da
psicanálise, que dão ênfase nesta sobreposição entre biológico e psíquico, quanto para
os autores da sociologia, que sustentam a questão do impacto das determinações sociais
e históricas.
O referencial teórico, formulado por Erikson, está baseado nas crises como
propiciadoras da formação e da reformulação da identidade de um indivíduo. Este
referencial, desenvolvimentista de sujeito, considera que a harmonia seria alcançada
152
através dos processos identificatórios que são estabelecidos durante o período da
adolescência.
Santos e Abramo também destacam que a adolescência é um período onde é
necessário construir uma identidade para o ingresso na vida adulta.
Assumir uma identidade significa reconhecer-se idêntico a algo. O processo de
constituição do sujeito, segundo a psicanálise, começa com um processo de
reconhecimento e identificação, o estádio do espelho. Neste processo o eu (moi) é
formado como uma instância imaginária, ou seja, uma suposição de que o sujeito é
idêntico àquele que o reconhece através do olhar. O processo de constituição do sujeito
prevê então, necessariamente, esta alienação. A constituição do sujeito é um duplo
processo de alienação: este é alienado pela imagem e pelo significante.
Este processo de constituição do sujeito é dialético, pois o sujeito busca lidar
com o desejo do Outro que o causou (alienação) e separar-se da submissão total a este
Outro. O sujeito é formado pelo Outro mas não é puro reflexo
26
, a separação é a uma
forma de dar esta resposta: a busca do sujeito por um lugar para si. O sujeito ‘ex-
siste’ a partir da linguagem, a alienação inscreve o sujeito no lugar da falta, o sujeito é
falta-a-ser.
Se, então, a alienação consiste na causação do sujeito pelo desejo do Outro
que precedeu seu nascimento, por algum desejo que não partiu do sujeito, a
separação consiste na tentativa por parte do sujeito alienado de lidar com esse desejo
do Outro na maneira como ele se manifesta no mundo do sujeito. (Fink, 1998, p. 73)
Embora esteja, desde antes do nascimento, remetido ao discurso do Outro, o
sujeito não fica completamente submetido a este devido ao movimento de separação.
26
Estar completamente idêntico ao Outro é não separar-se do Outro, processo causador da estrutura da
psicose, onde há alienação mas não há separação.
153
Portanto, assumir uma identidade é manter o sujeito alienado
27
ao discurso do Outro,
como um produto do discurso ideológico, identificado a particularismos. No caso de
Erikson, Aberastury e Knobel, os particularismos, que positivam o sujeito na saída da
adolescência criando uma identidade, estão ligados a identificação proveniente da
sexualidade, ou seja, do que chamam de primazia da genitalidade assumir sua função
reprodutora e escolha sexual.
Santos e Abramo apontam uma identificação mais ampla, tanto a papéis sociais
(trabalho, identidade familiar...) quanto à escolha sexual. Estas seriam as formas de
afirmar ao sujeito a sua existência.
Mas a psicanálise lacaniana discorda da posição de positivar o sujeito, pois isto
seria apenas mantê-lo na alienação, assumindo o discurso ideológico do Outro. O sujeito
é desvelado
28
pela negatividade, ou seja, ele não é idêntico aos papéis e identificações
sociais.
... a experiência da negatividade do sujeito indica, entre outras coisas, como o
desejo não se satisfaz na assunção de identidades ligadas a particularismos sexuais. O
sujeito é aquilo que nunca é totalmente idêntico a seus papéis e identificações sociais,
que seu desejo insiste enquanto expressão da inadequação radical entre o sexual e
as representações do gozo (seja na forma de identidades como:
gay
, lésbica,
queer
,
SM, andróginos, etc., etc.). Isso permite a Zizek afirmar que
a tolerância da
multiplicidade liberal (‘cada um pode ter sua forma de gozo’) esconde a intolerância
diante da opacidade radical do sexual
. (Safatle, 2003, p. 183)
Considerar o sujeito como portador de uma identidade significa buscar uma
adequação ao ‘mundo externo’ para positivar sua existência. A existência do sujeito
estaria relacionada ao simbólico, porém conforme afirmamos, o simbólico sempre
27
Faz-se necessário distinguir a alienação estrutural (causadora da psicose) da alienação como um
processo identificatório.
28
No sentido de retirar o véu das identificações que encobrem o sujeito do inconsciente.
154
fracassa e não conta do real, pois não são idênticos nem simétricos. Promulgar a
necessidade do estabelecimento de uma identidade para o sujeito é adequar e buscar
uma caminho de normalização do sujeito, ignorando a inadequação entre o real sexual e
as identificações fornecidas pelo discurso do Outro.
A questão adolescente quanto ao sexual é, pois, realmente, a da existência do
segundo sexo (o feminino), não de maneira social e exterior, [...] de maneira interna
ao sujeito. dois sexos e no entanto isso não constituiu relação, mas disjunção
interna ao sujeito. A clivagem entre gozo e prazer é um outro modo de enunciar a
ausência da relação sexual. (Lesourd, 2004, p. 41-42)
A proposição, de que o sujeito adolescente atinge seu estágio maduro para a
vivência sexual através da maturação sexual e busca a complementaridade no Outro
sexo, é um engodo. Não complementaridade entre homem e mulher como existe no
mundo animal entre machos e fêmeas. Este é o enunciado de Lacan quando afirma que
não relação sexual. Não existe enquanto complementaridade e completude entre os
sexos. “A impossibilidade de escrever a relação entre os sexos situa o real no campo
próprio do discurso inconsciente.” (Poli, 2005, p. 138).
A adolescência pode ser considerada como um sintoma social por ser um
representante paradigmático da questão social na contemporaneidade, especialmente
quando observada através da crise de identidade do adolescente: supõe-se que o sujeito
adolescente poderia vir-a-ser um indivíduo adulto com identidade final, tendo superado
suas faltas através de seu desenvolvimento.
A ideologia do indivíduo prega que as próprias potencialidades podem levar o
sujeito a escolher uma posição única na sociedade, podendo transitar entre as diversas
classes sociais, dependendo exclusivamente de seu próprio esforço.
155
O jovem recebe falsas promessas que não se realizam, promessa de que, quando
se tornar adulto, poderá aplicar seus conhecimentos e desejos, escolhendo o lugar que
gostaria de ocupar na sociedade. Mas como Elias (1994) aponta, há uma pequena
margem de manobra para a locomoção dos sujeitos na estrutura social, pois uma
complexa relação funcional entre os membros que impede o livre acesso. Como a
promessa não se realiza, o indivíduo se sente cerceado de suas potencialidades
‘internas’ pela coerção da sociedade. Porém, a esperança, em atingir a liberdade e a
autonomia, é mantida, pois o capitalismo reserva lugar para exceções (ganhadores de
loteria, o pobre que virou executivo de empresa ou o ex-viciado que se tornou jogador
de futebol da seleção) e conserva a ilusão da possibilidade de se atingir uma vida livre
das ‘amarras sociais’.
Portanto a identificação, fenômeno presente (e necessário) no momento de
constituição do sujeito, é a própria armadura alienante, pois o eu (moi) é a sede da
alienação. A identificação é um processo do eu (moi). Portanto, a psicologia do ego, ao
promover o fortalecimento do ego, imerge o sujeito na alienação.
A imagem de um indivíduo completo, portador de uma essência interna e da
possibilidade de objetivação do conhecimento, é uma fantasia ideológica que sustenta a
realidade da ciência contemporânea. A fantasia sustentada pelo discurso do Outro é a da
possibilidade do indivíduo obter sua autonomia em relação à sociedade. Conforme
afirmou Silveira (1997), a elevação do indivíduo a valor supremo foi o verdadeiro ato
fundador da ideologia moderna. Esta imagem do indivíduo, como um ser pleno, sustenta
a realidade do chamado capitalismo liberal.
Que significa, mais exatamente, dizer que a fantasia ideológica estrutura a
própria realidade? Expliquemos isso partindo da tese lacaniana fundamental de que,
na oposição entre o sonho e a realidade, a fantasia fica do lado da realidade: ela é,
156
como certa vez disse Lacan, o suporte que coerência ao que chamamos
‘realidade’. (Zizek, 1996, p. 322)
Silveira (1997) considera o indivíduo como um lugar primeiro, a condição para o
estabelecimento de todos os outros valores ideológicos. É o significante portador de
toda a cadeia de significação. O discurso, que está lá desde antes do nascimento de cada
sujeito, é o do individualismo. Os sujeitos estão, desde sempre, convocados – a partir da
ideologia individualista – a se tornarem indivíduos.
A noção de indivíduo, como um ser completo e com essência própria, está tão
arraigada não apenas na cultura mas no discurso científico também –, que passa a ser
uma ideologia implícita (está presente desde antes da concepção de um sujeito, através
do discurso do Outro a linguagem). A ciência parte do pressuposto desse indivíduo
como invariável ao longo dos tempos, exemplo que podemos notar, de forma clara, na
análise da crise universal e ‘desde sempre’ da adolescência. Também são considerados
como dados naturais: a criança, o adolescente, o adulto, o velho... uma aceitação
destas categorias como naturais, o que os torna ideológicos. O conceito de indivíduo
pressupõe a essência humana, nega que faça parte de alguma ideologia. O indivíduo
teria acesso ao real através do desenvolvimento de seu conhecimento objetivo.
O que com isso se divisa é um terceiro continente de fenômenos ideológicos:
nem a ideologia como doutrina explícita, como convicções articuladas sobre a
natureza do homem, da sociedade e do universo, nem a ideologia em sua existência
material (das instituições, rituais e práticas que lhe dão corpo), mas a rede elusiva de
pressupostos e atitudes implícitos, quase- ‘espontâneos’, que formam um momento
irredutível de reprodução de práticas ‘não-ideológicas’ (econômicas, legais, políticas,
sexuais etc). (Zizek, 1996a, p. 20-21)
157
Conceber a ideologia como uma distorção do real ou como práticas
institucionais que foram postas em marcha, não nos ajuda a entender o funcionamento
da ideologia do capitalismo liberal que sustenta o individualismo. Zizek propõe que o
funcionamento ideológico da modernidade é baseado numa série de pressupostos que
tornam ideologia implícita e quase ‘não-ideológica’. Assim, sai de cena uma visão que
acredita que por trás da ideologia poderíamos encontrar a verdade. Não sujeitos fora
da ideologia, a alienação é um processo primeiro da constituição do sujeito humano. A
diferença é que, como citado por Zizek, a ideologia moderna nega que seja ideológica,
criando a fantasia da objetividade do conhecimento, procurando criar uma realidade sem
antagonismos, com um gozo sem falhas.
O próprio princípio, negado pela ciência moderna, é que ela é uma construção
simbólica sobre o real, por mais que busque objetivar o conhecimento, estará sempre
produzindo uma realidade norteada por uma construção social. O não reconhecimento
deste fato acreditar que a ciência pode tornar o conhecimento objetivo é um produto
ideológico.
Do seqüenciamento do DNA às propriedades medicinais do suco de laranja, a
ciência moderna produz verdades absolutas definitivas que, ironicamente, são
descartadas rapidamente por novas verdades absolutas. Pressupostos são levantados a
todo instante como um verdades absolutas e o indivíduo ‘crê’ no discurso científico que
afirma ter alcançado o real. O discurso moderno comporta, nele próprio, os
antagonismos. Modificado a todo instante, elimina a possibilidade de falhas, pois
conta de todas as possibilidades. O antagonismo, que viria a denunciar a falha do
discurso em dar conta do real, é o próprio instrumento que nega a existência de um real
inexplicável, tudo está implícito no discurso, a ele nada escapa.
158
Guerra é paz
Liberdade é escravidão
Ignorância é força.
(Orwell, 1949, p. 9)
Impossível não nos remetermos a 1984, obra de George Orwell que narra um
cenário totalitarista onde a verdade é imposta por um Estado absolutista. Na história
narrada, o Ministério da Verdade é encarregado de modificar todos os fatos históricos
de acordo com cada mudança de posição do Estado. Se mudavam os aliados, todas as
notícias e livros históricos eram retificados, de modo a fazer com que aquilo fosse uma
verdade desde sempre. E através de seu discurso, apesar da total censura e da péssima
situação econômica, convocava os indivíduos a viverem a época de liberdade e fartura
que o Estado promovia.
A ideologia moderna não está longe disto, pois, o discurso é modificado a todo
momento permeando todas as possibilidades através da negação de suas contradições,
postulando que a realidade não é ideológica. O saber produzido pela ciência moderna é
propalado como verdade objetiva e absoluta. Os próprios enunciados contraditórios
tamponam qualquer possibilidade de apontar que existe uma incompletude
29
, pois,
sendo contraditórios, os enunciados procuram dar conta de todas as possibilidades, a
fantasia sustentada é a da possibilidade de adequação do sujeito a seus objetos.
Deste modo, as teorias, que apresentamos sobre a adolescência, não conseguem
escapar deste discurso e apontar como está agindo a ideologia sobre o conceito de crise
da adolescência. Discutir se a crise da adolescência é resultado do interno ou externo, do
indivíduo ou da sociedade, é escamotear a existência da ideologia desde sempre,
levantando pressupostos que desviam a atenção daquilo que, muito tempo, a ciência
29
O que não implica, no meu entender, na defesa de uma posição passiva e apolítica perante o
establishment social.
159
perdeu de vista: o sujeito. Pois o conhecimento objetivo do biológico do indivíduo ou o
conhecimento objetivo sobre a realidade social material, ignora a ‘ex-sistência’ da
subjetividade. Identifica o surgimento da crise da adolescência devido a um movimento
de oposição: peso maior nos fatores fisiológicos ou ênfase nas questões sociais e
históricas. Isto é o mesmo que criar pressupostos ideológicos acreditando que sejam
não-ideológicos.
a concepção de sujeito, da psicanálise lacaniana, reconhece a alienação no
princípio da constituição do sujeito: não processo de constituição sem alienação. O
sujeito é constituído pela alienação ao desejo do Outro, portanto está fadado à ideologia.
A teoria lacaniana aponta para o engano da substancialidade do mundo interno: não
realidade interna objetiva. Estando o sujeito no campo das representações e não
operando diretamente o real, podemos aproximar esta visão de sujeito da definição de
ideologia de Althusser, onde a relação do sujeito não é com as condições reais de
existência, mas sim com a representação que o sujeito faz destas condições.
Ao neutralizar o real, o simbólico cria a realidade’ entendida como aquilo
que é nomeado pela linguagem e pode, portanto, ser pensado e falado. A ‘construção
social da realidade’ implica em um mundo que pode ser designado e falado com as
palavras fornecidas pela linguagem de um grupo social (ou subgrupo). O que não
puder ser dito na sua linguagem não é parte da realidade desse grupo; não
existe
, a
rigor. Na terminologia de Lacan, a existência é um produto da linguagem: a
linguagem cria coisas (tomando-as como parte da realidade humana) que não tinham
existência
antes de serem cifradas, simbolizadas ou verbalizadas. (Fink, 1998, p. 44)
A realidade, produto da linguagem, jamais estará livre da ideologia. O processo
de construção da realidade é ideológico, logo, a realidade é ideológica. O conceito
moderno de indivíduo nega duas diferentes dimensões: a presença da ideologia
permeando o sujeito e a incompletude do sujeito.
160
Segundo Silveira (1994), o efeito ideológico fundamental da ideologia moderna
é recalcar o momento de constituição/interpelação dos indivíduos pela Sociedade
30
,
criando a ilusão do indivíduo autônomo e livre, aspectos considerados atualmente como
parte da essência humana.
A missão deste indivíduo seria tamponar a falta, questão impossível para o
sujeito, pois as irrupções do inconsciente sempre irão mostrar a existência da mesma.
Assim podemos entender uma dimensão de conflito que pode ser chamada de crise: a
tensão que se cria, devido às irrupções do real, no discurso que busca ser tamponado
pela ideologia de um indivíduo completo.
Apesar de denunciarmos por diversas vezes o estatuto alienante e ideológico
próprio da constituição do sujeito, não pretendemos indicar com isto que a saída, que a
psicanálise oferece, é o conformismo. A psicanálise afirma seu caráter de subversão da
ideologia dominante ao reconhecer a existência desta alienação.
A psicologia do ego, ao propor que a crise do adolescente é normal, acaba por
desarmar a possibilidade de questionamento da realidade ideológica por parte dos
sujeitos adolescentes, pois desconsidera suas reivindicações ao banalizá-las através de
uma normalidade de crise, sem ao menos escutar qual verdade o sujeito tem a desvelar.
Abramo (1994) mostra que os sociólogos da Escola de Chicago preferiam
compreender os ‘desvios’ dos sujeitos adolescentes como uma falha específica do
sistema social, chegando a propor uma segunda socialização para corrigir os erros da
primeira e eliminar os perigos da radicalidade juvenil.
Tanto a psicologia do ego quanto os sociólogos da Escola de Chicago propõem
reforçar o ego, adaptando-o ao discurso ideológico. Não é o sujeito quem deve ser
30
Utiliza a letra ‘S’ em maiúsculo para demarcar de dimensão de Outro da linguagem da sociedade na
constituição do sujeito.
161
adaptado à ciência, pois esta não possui a objetividade que sustenta ter sobre o real, a
ciência deve promover ao sujeito que seja responsável pela construção da verdade.
Dizer que o sujeito sobre quem operamos em psicanálise pode ser o
sujeito da ciência talvez passe por um paradoxo. É aí, no entanto, que se deve fazer
uma demarcação, sem o que tudo se mistura e começa uma desonestidade que em
outros lugares é chamada de objetiva: mas que é falta de audácia e falta de haver
situado o objeto que malogra. Por nossa posição de sujeito, sempre somos
responsáveis. (Lacan, 1966, p. 873)
A visão da psicanálise mostra que o sujeito é quem deve ser revelado, pois ele é
o limite tensional que desfaz a oposição entre indivíduo e sociedade. O sujeito, dividido
pelo significante, carrega neste próprio código sua marca singular e também a social.
No registro do simbólico, o sujeito encontra-se representado pelo significante
e no registro imaginário, encontra-se identificado com o outro, no registro do real,
o sujeito escapa a toda relação com o outro; ele é, e este ser encontra-se separado do
Outro, presentificando o que no sujeito ex-siste à sua determinação. Não obstante,
esse terceiro registro é possível porque os outros dois existem; como tudo em
psicanálise, inclusive o real é a
posteriori
. (Alberti, 1999, p. 52)
Desta forma, afirmamos que a psicanálise nada tem de conformista, pois a
dialética de reconhecimento e alienação está circunscrita ao eu (moi), enquanto o
sujeito, como afirmamos, é dividido em moi e je, sendo este último o sujeito do
inconsciente.
Quando afirmamos que o sujeito ‘ex-siste’, onde não pensa, é porque o moi, sede
da alienação, pode ser deposto pelo je, ao ser criado um novo ato, desvinculado do
discurso do Outro.
162
A esse ‘sujeito alienado’ Lacan chama também ‘sujeito dividido’. Assim, ele
é, ao mesmo tempo, o ‘eu’ (
moi
), imagem ficcional do sujeito, e o Eu (
Je
), sujeito do
inconsciente. O ‘eu’ (
moi
) e o Eu (
Je
) são, para dizê-lo brevemente, formas de
denominar os dois lados do sujeito, dividido em sua relação ao Outro. Eles
representam a estrutura própria à linguagem: o primeiro ‘sujeito do enunciado’, o
segundo ‘sujeito da enunciação’. (Poli, 2005, p. 123)
Portanto, imaginar que o sujeito adolescente deve confinar-se a uma identidade é
conformá-lo ao eu (moi) alienado. A tensão presente na operação adolescente,
convocada pelo individualismo, é uma tentativa de conciliar je e moi, porém estes são
cindidos pela própria estrutura do sujeito. Não há possível conciliação.
A interpelação do discurso do Outro, que promove o indivíduo como sinônimo
de autonomia e liberdade, impede o sujeito adolescente de criar suas próprias respostas,
ou seja, realizar sua enunciação. Ele é convocado, enquanto indivíduo, a responder
através do enunciado, ou seja, remetido ao discurso do Outro.
Cada indivíduo é o sujeito de um destino particular, um destino que não
escolheu mas que, por mais aleatório ou acidental que possa parecer no início, deve,
entretanto, subjetivar. O indivíduo deve, na opinião de Freud, tornar-se um sujeito. O
recalque primário é, de certa forma, o jogar dos dados no começo do universo de
cada um que cria uma divisão e põe a estrutura em movimento. O indivíduo precisa
enfrentar essa jogada aleatória essa configuração específica do desejo de seus pais
e de alguma forma tornar-se um sujeito.
Wo Es war, soll Ich weden
”. Eu devo vir
a ser onde as forças estranhas o Outro como linguagem e o Outro como desejo
uma vez dominaram. Eu preciso subjetivar essa alteridade. (Fink, 1998, p. 92)
A mesma modernidade, que abriu um espaço para o questionamento das
posições autoritárias e pré-definidas das sociedades tradicionais, trouxe a sua própria
forma de autoritarismo que é a convocação do sujeito como indivíduo. A sensação de
crise, que toma conta do sujeito contemporâneo, é extremada pelo fato de que, enquanto
163
nas sociedades tradicionais não havia espaço para o questionamento do autoritarismo, e
a falta constitutiva do sujeito não era exposta devido à gida configuração social, no
projeto ideológico da modernidade anuncia-se espaço para o questionamento do
simbólico. Mas este questionamento está apenas no enunciado do Outro, não é
permitida a enunciação do sujeito, é exigido do sujeito comportar-se como um
indivíduo: aquele que tampona sua falta e acredita que a liberdade e a autonomia são
conquistadas através do enunciado. Esta ideologia implícita faz o sujeito conviver com
o antagonismo: é dividido mas deve negar esta divisão através da dimensão de
indivíduo.
164
Considerações finais
Após o caminho percorrido, podemos afirmar que as teorias são construções que
visam dar conta do real e, deste modo, o termo adolescência também é um construto
teórico. Quando utilizado em relação a uma fase da vida estágio de desenvolvimento
biológico ‘normal’ da espécie assume caráter naturalizante. Se entendido como uma
operação, conforme a psicanálise propõe, refere-se a uma operação subjetiva
proveniente da tensão interno/externo. A ciência deve ser uma retificação dialética
constante, pois nunca conseguirá ser uma representação perfeita e fiel do real. Quando
postula ter atingido a verdade última, está se tornando uma ideologia implícita.
A psicanálise
31
, através do conceito de sujeito, evidencia a tensão existente entre
os pólos (indivíduo/sociedade, interno/externo, biológico/social) sem se utilizar da
ideologia do indivíduo – que procura através da utilização de antagonismos negar a falta
constitutiva e realça o Indivíduo: livre e autônomo.
Pensar a adolescência enquanto uma operação psíquica é uma forma de conceber
a constituição do sujeito como uma dialética entre interno/externo um movimento
onde o real ora é recoberto pelos dispositivos sociais, ora produto de significações
subjetivas. E não como um par de eixos em oposição, onde um desloca o outro, obtendo
uma posição central e de supremacia. Deste modo, a adolescência surge como um
momento de especial interesse para ilustrar a dialética interno/externo: nas sociedades
tradicionais o que mais se salientava era o processo pelo qual o real era recoberto pelos
dispositivos simbólicos encontrados no social, na modernidade ressalta o processo pelo
qual o sujeito necessita subjetivar o real utilizando uma operação psíquica. Logo,
31
A psicanálise não é o único campo do conhecimento que entende a adolescência como um produto da
dialética constitutiva. Um exemplo de outra corrente que busca compreender a crise da adolescência sem
se utilizar de um modelo de oposição é a psicologia sócio-histórica Ozella afirma: A adolescência não
é um período natural do desenvolvimento. É um momento significado e interpretado pelo homem.
marcas que a sociedade destaca e significa. Mudanças no corpo e desenvolvimento cognitivo são marcas
que a sociedade destacou.” (Ozella, 2002, p. 21)
165
podemos notar a dialética interno/externo, em um princípio de funcionamento
semelhante à forma topológica da banda de Moebius superfícies que se entrecruzam
não havendo isolamento entre a parte interna e externa da banda.
Nesse sentido, a crise da adolescência é conseqüência mais das exigências
subjetivas que foram postas em movimento devido às contradições e conflitos da
sociedade e da cultura, do que de transformações exclusivamente referidas a mudanças
no corpo biológico. Isto não significa entender esta crise como reflexo direto das
modificações socais, pois o sujeito deve subjetivar a história que lhe foi imposta
tomando sua parte nesta, assumindo seu desejo.
Olhar para a crise da adolescência como produto da tensão interno/externo
permite denunciar a contradição existente no individualismo contemporâneo: a busca do
ser pleno e da realidade definitiva, a imposição do saber absoluto. A isto, a psicanálise
só tem a desvelar a falta constitutiva – e o impossível recobrimento do real pelas
construções teóricas. A normatização da crise da adolescência, oferecendo uma saída
através da adequação do ego ou da identidade do sujeito à ideologia moderna, procura
tamponar uma emergência do real que aparece na modernidade com a possibilidade de
questionamento dos dispositivos simbólicos. Escutar a crise da adolescência, enquanto
uma mera sintomatologia, é ignorar o antagonismo existente na interpelação do sujeito
enquanto indivíduo pela ideologia moderna: não harmonia nem oposição entre
indivíduo e sociedade, mas sim a tensão necessária.
As construções teóricas sobre o tema muitas vezes são tomadas como próprias
do humano, assim: ‘interno’, ‘natural’, ‘amadurecimento’ e educativo’ são modos de
tamponar a falta a partir de um certo ideal a ser alcançado. Desta forma, os referenciais
de ‘progresso’ e ‘desenvolvimento’, marcadamente históricos, passam a ser referenciais
da ‘essência humana’. A ideologia individualista busca normatizar e naturalizar o
166
sujeito, promovendo a irracionalidade sobre o próprio sujeito, baseada na utilização da
ideologia implícita.
O sujeito precisa questionar a necessidade de agir segundo estes ideais vindo do
discurso do Outro, portanto, deixamos de conferir um cunho ideológico à adolescência
ao promover com que o sujeito possa tornar-se dono de um destino particular, a despeito
da interpelação do discurso do Outro. Interrogar o significante crise da adolescência
para questionar o significante mestre indivíduo é uma forma de remeter a questão à
dimensão de sujeito, ou seja, apostar que existe a possibilidade de uma enunciação e não
apenas da repetição de um enunciado.
As várias considerações, que fizemos sobre a adolescência operação psíquica,
operação simbólica, substituta dos rituais de passagem e tantas outras –, vêm justamente
demarcar o que esta é para o sujeito: um significante, que pode assumir diferentes
posições na cadeia inconsciente para representar o sujeito para outro significante.
Utilizamos, nesta dissertação, ‘crise da adolescência’ como um primeiro
significante a ser investigado, assim como um sintoma ou queixa que nos são
apresentados. Buscamos refazer a cadeia metonímica à qual este significante está
ligado, e outros surgiram: adolescente, sociedade, cultura, biológico, social, etc.
Chegamos ao significante indivíduo, significante mestre portador da cadeia de
significação presente na cultura contemporânea. Reconhecer a existência de um sujeito,
que é interpelado por estes significantes, é apostar na possibilidade da produção da
verdade subjetiva a partir da singularidade do sujeito não remetido totalmente a um
discurso implícito ideológico que o faz negar que é assujeitado. Sabemos que uma
construção teórica nunca estará fora da ideologia e, reconhecendo este fato, podemos
contribuir para o sujeito se desprender das amarras alienantes do discurso do Outro,
realizando sua enunciação – mesmo que evanescente.
167
Referências bibliográficas
ABERASTURY, A. O adolescente e a liberdade. In: Aberastury, A. & Knobel, M.
(orgs.) Adolescência normal. Trad: Suzana Maria Garagoray Ballve. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1992.
ABRAMO, H. W. Cenas juvenis: punks e darks no espetáculo urbano. São Paulo:
Editora Página Aberta Ltda., 1994.
ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 1999.
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do estado. In: Zizek, S. (org.) Um
mapa da ideologia. Trad: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.
ARIÈS, P. História social da criança e da família. Trad: Dora Flaksman. Rio de
Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1981.
BRUNO, P. Psicanálise e antropologia. Os problemas de uma teoria do sujeito. In:
Sève, L., Clement, C.B & Bruno, P. (orgs.) Para uma crítica marxista da teoria
psicanalítica. Trad: José Eduardo Pereira Ramos. São Paulo: Edições Mandacaru
Ltda., 1990.
CALLIGARIS, C. A Adolescência. São Paulo: Publifolha, 2000.
168
DUMONT, L. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna.
Trad: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
ELIAS, N. A sociedade dos indivíduos. Trad: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1994.
ERIKSON, E.H. Identidade: Juventude e Crise. Trad: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:
Editora Guanabara S.A., 1987.
FINK, B. O sujeito lacaniano; entre a linguagem e o gozo. Trad: Maria de Lourdes
Sette Câmara. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
FRASCHETTI, A. O mundo romano. In: Levi, G. & Schmitt, J.-C. História dos Jovens.
Trad: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 59-96, vol I.
FREUD, S. (1893-1895). Estudos sobre a histeria. In: Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad: Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago, 1974, v. II.
______ (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad: Jayme
Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1972. p. 122-250, v. VII.
169
______ (1921). Psicologia das massas e análise do eu. In: Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad: Christiano Monteiro
Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 89-179, v. XVIII.
______ (1930). O mal-estar na cultura. In: Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad: Jayme Salomão. Rio de Janeiro:
Imago, 1974. p. 75-173, v. XXI.
FROTA, Ana. M. M. C. O desalojamento e a reinstalação do si-mesmo : um percurso
fenomenológico para uma compreensão da adolescência, a partir de narrativas.
2001. Tese de Doutorado em Psicologia. USP.
GROPPO, L. A. Juventude: ensaios sobre Sociologia e História das juventudes
modernas. Rio de Janeiro: Difel, 2000.
LACAN, J. (1949) O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos.
Trad: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
______ (1953) Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos.
Trad: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
______ (1954) Introdução ao comentário de Jean Hyppolite sobre a ‘Verneinung’ de
Freud. In: Escritos. Trad: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
170
______ (1956-1957) O seminário. Livro 4. A relação de objeto. Trad: Dulce Duque
Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
______ (1960) Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In:
Escritos. Trad: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
______ (1966) A ciência e a verdade. In: Escritos. Trad: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1998.
LESOURD, S. A construção adolescente no laço social. Trad: Lucy Magalhães.
Petrópolis: Vozes, 2004.
MATHEUS, T. C. Ideais na adolescência: falta (d)e perspectivas na virada do século.
São Paulo: Annablume Editora, 2002.
KNOBEL, M. Introdução. In: Aberastury, A. & Knobel, M. (orgs.) Adolescência
normal. Trad: Suzana Maria Garagoray Ballve. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
______ A síndrome da adolescência normal. In: Aberastury, A. & Knobel, M. (orgs.)
Adolescência normal. Trad: Suzana Maria Garagoray Ballve. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1992a.
OGILVIE, B. Lacan: a formação do conceito de sujeito (1932-1949). Trad: Dulce
Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
171
ORWELL, G. (1949) 1984. Trad: Wilson Velloso. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1990.
OSÓRIO, L. C. Adolescente hoje. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas, 1992.
OZELLA, S. Adolescência: uma perspectiva crítica. In: Contini, M.L.J. & Koller, S.H.
(orgs.), Adolescência e Psicologia: concepções, práticas e reflexões críticas. Rio
de Janeiro: Conselho Federal de Psicologia, 2002.
PACHECO FILHO, R.A. O método de Freud para produzir conhecimento: revolução na
investigação dos fenômenos psíquicos? In: Pacheco Filho, R. A.; Coelho Junior,
N. & Rosa, M. D. (orgs.), Ciência, Pesquisa, Representação e Realidade em
Psicanálise. São Paulo: EDUC Editora, 2000.
PASSERINI, L. A juventude, metáfora da mudança social. Dois debates sobre os
jovens: a Itália fascista e os Estados Unidos da década de 1950. In Levi, G. &
Schmitt, J.-C. História dos Jovens. Trad: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia
das letras, 1994. p. 319-382, v. II.
POLI, M. C. Clínica da exclusão: a construção do fantasma e o sujeito adolescente.
São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.
RAMOS, C. A dominação do corpo no mundo administrado. São Paulo: Escuta, 2004.
172
ROUSSEAU, J.-J. Emílio ou da educação. Trad: Roberto Leal Ferreira. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
RUFFINO, R. Sobre o lugar da adolescência na teoria do sujeito. In Rappaport, C. L.
Adolescência: abordagem psicanalítica. São Paulo: EPU, 1993. p. 25-57.
SANTOS, B. R.. A emergência da concepção moderna de infância e adolescência.
Mapeamento, documentação e reflexão sobre as principais teorias. 1996.
Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais - Antropologia PUC-SP, São
Paulo.
SCHNAPP, A. A imagem dos jovens na cidade grega. In: Levi, G. & Schmitt, J.-C.
História dos Jovens. Trad: Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
p. 19-58, vol I.
SILVEIRA, P. Ideologia, indivíduo, sujeito. In: Cadernos de subjetividade. São Paulo,
1994. n. especial, p. 25-37, v. II.
______ A gênese extramundana do indivíduo: a ideologia moderna em Dumont. In:
Cardoso, I. & Silveira, P.(org.) Utopia e Mal-estar na cultura: perspectivas
psicanalíticas. São Paulo: Editora Hucitec, 1997.
VALDERRAMA, P. Psicoanálisis y Marxismo: ¿Un diálogo imposible? In: Revista
EDM. Argentina, Maio de 1998, n. 20. Disponível em: <http://www.po.org.ar>.
173
SAFATLE, V. A política do real de Slavoj Zizek. In: Zizek, S. Bem-vindo ao deserto do
real! São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
ZIZEK, S. Como Marx inventou o sintoma? In: Zizek, S. (org.) Um mapa da ideologia.
Trad: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 297-331.
______ Introdução: o espectro da ideologia. In: Zizek, S. (org.) Um mapa da ideologia.
Trad: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996a, p. 7-38.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo