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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
CRISTIANE MOREIRA COBRA
PATATIVA DO ASSARÉ
Uma hermenêutica criativa
A reinvenção da religiosidade na nação semi-árida
São Paulo
2006
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2
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
CRISTIANE MOREIRA COBRA
PATATIVA DO ASSARÉ
Uma hermenêutica criativa
A reinvenção da religiosidade na nação semi-árida
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Ciências da Religião da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do grau de
Mestre em Ciências da Religião, sob a
orientação do Professor Doutor Ênio José da
Costa Brito.
São Paulo
2006
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3
CRISTIANE MOREIRA COBRA
PATATIVA DO ASSARÉ
Uma hermenêutica criativa
A reinvenção da religiosidade na nação semi-árida
Banca Examinadora:
São Paulo, ____________________________
_____________________________________
_____________________________________
_____________________________________
4
Dedico essa dissertação à minha filha
Jéssica que, eu espero, compreenda meus
objetivos e todo tempo dedicado a esse
trabalho. Meu amor.
5
Agradecimentos
À CAPES e ao Programa de Estudos Pós Graduados em Ciências da Religião da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo pela bolsa parcial de Mestrado, cujo
auxílio financeiro possibilitou a realização dessa dissertação. Em especial, aos
professores Gilberto Gorgulho, Fernando Londoño, Frank Usarski, e também às
professoras Denise Ramos e Maria José Rosado Nunes, com os quais pude ampliar e
aprofundar meus conhecimentos através das disciplinas cursadas; bem como à
coordenação, na pessoa do professor Eduardo Cruz, e à secretária Andréa pela
atenciosa e constante colaboração.
Ao professor Ênio, orientador paciente, amigo compreensivo e dedicado, que
soube aceitar as mudanças de projeto e temática durante o processo, por sua
sensibilidade e perspicácia ao perceber e valorizar a importância da paixão na escolha
do tema. Agradeço a constante receptividade e generosidade mineira com que me senti
muito honrada e agraciada; além de seu apoio e dos contatos imprescindíveis na busca
de obras e de informações para o trabalho.
Aos professores e membros da banca do exame de qualificação: José J. Queiroz,
Alexandre Otten e Ênio José da C. Brito, pelo incentivo fundamental, além das críticas
e sugestões que serviram de estímulo e orientação na finalização desta dissertação.
Ao grande amigo e mestre que me iniciou pelos caminhos da Filosofia, Maurílio
Camelo, pelo seu apoio incondicional, pelo constante incentivo e carinho com que me
recebeu em suas aulas, mesmo quando já não era mais sua aluna, pelas longas prosas
poéticas que tivemos e, além de tudo, pela leitura dos capítulos desta dissertação. Toda
gratidão.
Aos amigos que conheci como alunos do programa Kleber, Cíntia, Ricardo,
Juliana, Márcia, Fernanda, Jorge e outros que não convém citar para não me estender.
Todos pela convivência prazerosa nas disciplinas e alguns pela partilha de estudos e
trabalhos. Em especial à Denise pela amizade construída nesses anos.
Aos amigos do NIPPC (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas de Práxis
Contemporâneas) que continuam no Vale do Paraíba persistindo com a
“intelectualidade caipira”, Régis, André e Pimenta; à amiga Cecília que em suas
viagens semanais de São Paulo para o Vale colabora com as elaborações dessa
6
“intelectualidade caipira”; aos amigos Leandro e Rogério, que literalmente de Norte à
Sul do país seguem espalhando os frutos das pesquisas e produções do Vale do Paraíba;
e também à amiga Vanessa que, inicialmente fez parte desse grupo, muito me apoiou e
incentivou a prosseguir por tais caminhos.
Às grandes amigas de profissão e do coração da Rede Municipal de Educação
de Caçapava, Zezé, Gláucia, Ana Paula de Oliveira, Adriana, Lúcia Helena, Tânia
Mara, Elaine Queiroz, Cláudia Valéria, Cláudia Carvalho, Martha Beatriz, Ana Paula
Brito e todas que demonstraram apoio incondicional e entusiasmo para com a minha
jornada. Também às novas amigas da Rede Municipal de Educação de Tremembé,
Mary, Kátia Graziolli, Kátia Mendonça, Bete, Zilda, Marise, Maria e todas que, apesar
de pouco me conhecerem, confiaram no meu trabalho e me apoiaram.
Às amigas e aos amigos com os quais pude me descontrair, divertir e relaxar nos
momentos de lazer, extremamente necessários para que durante a produção da
dissertação conseguisse manter a sanidade e a qualidade da produção.
Aos meus pais e familiares que, apesar e depois do medo, conseguiram
compreender e acreditar nos meus objetivos que pareciam inviáveis e distantes da
minha real condição e possibilidade. Obrigada pela vida e pela liberdade para errar e
acertar.
À minha filha Jéssica que acompanhou todo esse processo, cresceu em meio aos
livros e papéis, viagens e estudos, textos e correções; e que com certeza colherá comigo
os frutos dessa produção.
É glória bastante fria
A daquele que estudou
Formou-se em Filosofia
Mas nunca filosofou
Patativa do Assaré
7
Passe o tempo a limpo,
descarne a memória,
a história, o suspiro anacrônico
do amor,
ensaio e frustrada tentativa,
a vontade branca da chuva
umedecendo os olhos da terra:
de pé, infinita,
a poesia.
Maurílio Camello
8
RESUMO
Este trabalho é fruto de uma pesquisa bibliográfica e teórica sobre a poesia de
Patativa do Assaré; constata que o discurso poético constituído em sua obra aponta para
elaboração de uma forma de contestação e resistência diante das desigualdades
vivenciadas pelo seu grupo, que toma por referência a religiosidade cristã popular.
Como elementos dessa poética resistente ressaltamos a memória, a oralidade, a
ressignificação de conceitos instituídos pela ortodoxia da Igreja, bem como a
abordagem de temas pertinentes aos membros desse grupo. A interpretação analítica dos
poemas tem como referências a teoria literária de Alfredo Bosi, a idéia de metamorfose
identitária desenvolvida por Ciampa, bem como as análises da Cultura desenvolvidas
por Renato Ortiz e Clifford Geertz. Patativa recorre ao imaginário religioso cristão
católico como fonte de sentido e significado, revelando formas típicas à Cultura Popular
de compreensão da religiosidade e da idéia de Divina Providência; não somente revela,
mas recria, reelabora, reinventa e ressignifica essas maneiras populares de atribuir
sentido e significado à realidade. O aspecto contestatório presente na poesia de Patativa
significa uma forma de resistência ao traduzir-se em utopia; seus poemas revelam-se
prece e profecia, valorização e consciência crítica do passado e do presente, bem como
esperança no futuro com bases na fé cristã popular. O discurso poético se mostra assim
discurso profético. O trabalho contribui com a discussão sobre a religiosidade e a
cultura popular no Brasil ao considerar a elaboração de uma hermenêutica poética
popular, além disso, propicia uma consideração da literatura popular sob moldes até
então proclamados como eruditos. Sua conclusão principal é que a poética popular de
Patativa corrobora a constituição de uma identidade nordestina ao resgatar a valorização
da memória, dos valores, bem como da auto-estima desse grupo; considerando o
processo identitário como metamorfose que inclui condições do meio e condições
internalizadas, o discurso elaborado pelo poeta revela-se como hermenêutica criativa,
como forma de significar e doar sentido ao mundo.
Palavras-chave: Patativa do Assaré; Poesia; Identidade; Cultura; Religiosidade;
Ressignificação; Hermenêutica; Contestação; Resistência.
9
ABSTRACT
This work is the result of a bibliographic and theorical research about Patativa do
Assaré´s poetry. It ascertains that the poetical discourse present in his work indicates the
elaboration of contention and resistance concerning the inequality lived by his group,
which uses the popular Christian religiosity as reference. The memory, orality, re-
signification of concepts instituted by Church´s ortodoxy as well as the approach of
pertinent themes to the members of this group are emphasized as elements of his
resistent poetry. The analytical interpretation of the poems is based on the literary
theory of Alfredo Bosi, the idea of identity metamorphosis developed by Ciampa as
well as the analysis of Culture developed by Renato Ortiz and Clifford Geerts. Patativa
makes use of the Christian Catholic religious imaginary as source of sense and meaning.
He reveals to the popular culture typical forms of understanding the religiosity and the
idea of Divine Providence. Furthermore he recreates, re-elaborates, re-invents and re-
signifies these popular ways of attributing sense and meaning to the reality. When
translated into utopia the contesting aspect present in Patativa´s poetry denotes a form
of resistance. His poems manifest prayer, prophecy, value and critical conciousness of
past and present, as well as hope based on popular Christian faith. The poetical
discourse reveals itself as prophetic. This work contributes to the discussion about
religiosity and Brazilian popular culture regarding the elaboration of a popular poetical
hermeneutics. Besides, it propitiates a conception of the popular literature under models
until then proclaimed as erudite. Its main conclusion is that the popular poetry of
Patativa corroborates the constitution of a northeastern identity when it brings back the
memory, the values, as well as the group´s self steem. Considering the identity process
as a metamorphosis, which includes environmental and inner circumstances, the
discourse produced by the poet is manifested as creative hermeneutics which brings
sense to the world.
Key words: Patativa do Assaré; Poetry; Identity; Culture; Religiosity; Re-signification;
Hermeneutics; Contention; Resistance
10
SUMÁRIO
Introdução 12
Capítulo I Literatura Popular no Brasil: de ‘repente’ na
história 20
1.1 Oralidade poética: origens da Literatura Popular 21
1.2 Literatura Popular e/ou Cordel: sinônimos? 25
1.3 Suporte gráfico: veículo e encarnação momentânea 29
1.4 Corpus literário nordestino: modalidades do repente 32
Capítulo II Resumo de uma grande obra: verso e reverso,
vida de Patativa 37
2.1 Primeiro verso: a meninice sertaneja 38
2.2 Reverso: a juventude e a busca de novos mundos 45
2.3 O poeta feito: maturidade e equilíbrio familiar 47
2.4 O lugar como não lugar: a Serra 48
2.5 A cantoria: o talento público e notório 52
Capítulo III Patativa do Assaré: mímesis, contestação e
resistência 60
3.1 O poeta em obra: o fazer e o dizer do poeta, seu obrar 62
3.2 Códigos da oralidade: o poeta popular e a constituição de uma identidade 66
11
3.3 Corpo, Letra e Voz: proximidades entre o oral e o escrito 71
3.4 Poesia em prosa: outros elementos 73
3.5 Poética em contraponto: contestação e resistência 78
3.6 Topos negativo: memória e utopia 90
Capítulo IV Divina Providência em Patativa: elementos de
ressignificação na poética popular 95
4.1 Do que é popular: cultura, religião e significado 96
4.2 Aspectos da religiosidade popular na poética de Patativa 101
4.3 Divina providência: breve histórico do conceito 127
4.4 Discurso profético: a poética popular elaborada como missão 132
4.5 Patativa do Assaré: a reinvenção poética da Providência 135
Conclusão 140
Referências Bibliográficas 145
12
INTRODUÇÃO
A Literatura Popular, rica em seu macrocosmos variado de autores, temas e
obras, revela-se também riquíssima no microcosmo de cada um de seus autores, sendo
hoje amplamente reconhecida e divulgada na pessoa do poeta Antônio Gonçalves da
Silva, o Patativa do Assaré, considerado por Sylvie Debs um personagem chave do
panteão nordestino.
1
As possibilidades de expressão humana através da linguagem compõem um
vasto campo de análise, em diversas áreas do conhecimento; o “dizer” poético revela a
palavra como representação simbólica da realidade e, através da Literatura, no papel de
leitores temos acesso tanto ao mundo exterior (contexto) como ao mundo interior
(simbólico) do poeta. O estudo da poesia de Patativa do Assaré, enquanto elemento da
Cultura denominada Popular, decorre da percepção e do interesse particular pela busca
de compreensão das especificidades da manifestação de religiosidade popular presente
na Literatura.
Se todo discurso revela uma forma de ver o mundo e de interpretá-lo, pois
através da palavra atribuímos sentido e significado a esse mundo, no caso do discurso
poético de Patativa o sentido é dado pela relação com a natureza e pela religiosidade
popular, que é o ponto focal de nosso interesse.
Sob a ótica das Ciências da Religião, aprofundar a análise da obra de Patativa do
Assaré, além de responder a interesses de satisfação pessoal, possibilita ampliar o
conhecimento sobre a Literatura Popular no Brasil, bem como a respeito da
religiosidade popular e da Cultura Popular em geral. As principais motivações para a
realização desse trabalho têm a ver com o desejo de melhor compreender as
“necessidades, esperanças e teimosias”, como lembra Houaiss, que caracterizam a
Cultura Popular e sua lógica, que muitas vezes consideramos fragmentária e incoerente,
como se o nosso modo de viver e de pensar muitas vezes também não o fosse.
2
Segundo diversos autores, entre os quais Márcia de Abreu, a Literatura Popular
pode ser considerada uma das expressões populares mais brasileiras que existem,
marcadamente comuns na região Nordeste e naquelas regiões que abrigam os migrantes
de origem nordestina. Com as grandes navegações aportaram no Brasil trovadores e
1
ASSARÉ, Patativa do. Patativa do Assaré: uma voz do Nordeste. Int. e seleção Sylvie Debs, São Paulo:
Hedra, 2000.
13
artistas populares, que trouxeram em sua bagagem cultural o que alguns consideravam
ser as origens dessa literatura, porém no Brasil a Literatura Popular desenvolveu
temáticas próprias e hoje ultrapassa um século de história.
3
Trata-se de uma Literatura dinâmica e flexível, que atinge os mais diversos
temas, com objetivos múltiplos e vasta divulgação e aceitação social, tanto em meios
populares, como nas elites acadêmicas. O folheto é um veículo popular de participação
na vida do país, que permite ao povo debater a realidade, expressar suas necessidades e
aspirações.
4
O território nordestino demonstrou-se altamente propício para o surgimento
dessa forma de literatura, devido a inúmeras características comuns no século XIX,
como a agravação da situação econômica, disputas pelo poder, organização popular,
movimentos religiosos, diversas revoltas populares e também pelo surgimento da
imprensa. Apesar de serem impressos, no entanto, os folhetos de cordel caracterizam-se
por sua tradição oral, suas marcas de oralidade e o fato de serem feitos para serem
declamados, lidos ou “cantados em voz alta” para um grande número de pessoas,
mesmo as analfabetas; características comuns às culturas que valorizam a oralidade
segundo Paul Zumthor.
5
A tipologia característica dessa Literatura, segundo Antônio Houaiss, presume:
recursos mnemônicos (medidas dos versos, estruturas estróficas, esquemas rítmicos,
refrão, deixas); uso de instrumentos musicais (como o violão), para o acompanhamento
dos recitativos e cantorias.
6
A variedade de temas presentes na Literatura de Cordel é marcante e um dos
mais recorrentes temas de folhetos é a religiosidade popular, a história de seus santos, a
trajetória de milagres e outros fatos relacionados. A religiosidade popular tornou-se um
dos motes preferidos e freqüentemente usados na criação dos versos, sendo decisiva
talvez por sua identificação com a realidade nordestina. Líderes religiosos, como
2
Antônio Houaiss, In.: LONDRES, Maria José Fialho. Cordel: do encantamento às histórias de luta. São
Paulo: Duas Cidades,1983.
3
ABREU, Márcia de. Histórias de cordéis e folhetos. Campinas: Mercado das Letras/Associação de
Leitura do Brasil, 1999.
4
Visando ampliação dos conhecimentos a respeito do Cordel e do poeta Patativa, como leitura
introdutória, indico as obras:
CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré. 3ª ed., Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001.
CURRAN, Mark J. História do Brasil em Cordel. 2ª ed., São Paulo: EDUSP, 2003.
DIÉGUES JR, Manuel e outros. Literatura popular em verso: estudos. Belo Horizonte: Itatiaia/São
Paulo: EDUSP/Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986
5
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trads. Jerusa Pires Ferreira, Suely Fenerich. São
Paulo: EDUC, 2000.
14
Antônio Conselheiro, padres como Pe Cícero e Pe Antonio Henrique, além de Frei
Damião e outras lideranças religiosas são temas de inúmeros folhetos dessa Literatura;
tanto por seus feitos heróicos, sociais e políticos, como por seus milagres, bênçãos e
graças atendidas junto ao povo nordestino e brasileiro em geral. Segundo Mark Curran,
o primeiro grande evento histórico brasileiro registrado, quase que simultaneamente,
pela Literatura Popular foi a Guerra de Canudos, uma revolta de origem religiosa, sendo
que esse relato foi efetuado por um soldado participante da campanha.
7
Analisar os elementos da Cultura Popular e do Senso Comum exige cuidado,
visando não sobrepor elementos comuns a uma ideologia, descaracterizando a riqueza
das manifestações populares. A esse respeito tomamos por referência o trecho abaixo do
prefácio escrito por Antônio Houaiss:
Nós, os seres ‘de lado’, supomos saber lê-la, a essa literatura. Por ora, ou a lemos a
‘nosso’ modo, com o nosso sistema de valores, e – alienados e (in)dependentes - a
julgamos uma graça, uma lindeza, uma boniteza, um prodígio, e ficamos no encomiástico
laudatório apologético ufanístico, ou polarizamos e a julgamos arcaica, inoperante,
dominada, caduca, apassivadora, servil (pois a quereríamos com os ‘nossos’ heroísmos e
inconformismos...). Eis que a suposta cultura nacional parece não saber ler a cultura
regional ‘de baixo’, não só nesse particular como talvez em tudo mais: na subnutrição não
a sabemos ler, na submoradia não a sabemos ler, na subsaúde não a sabemos ler, nas suas
necessidades não a sabemos ler e nas suas esperanças – não a sabemos ler nem na sua
teimosa vontade de sobreviver, onde quer e como quer que seja, contanto que um dia lhe
seja dado reviver seu torrão natal e sua gente.
8
Talvez o mais difícil ao realizarmos uma leitura e análise de obras como as da
Literatura Popular, seja encontrar uma metodologia adequada, uma “lente propícia” que
ajuste o olhar, externo ao movimento em si, mas que cuide em não deformar o real
conforme nossos vícios. Conseguir ir além da “apologia ufanística”, sem cair em um
“julgamento ideológico elitizado” constitui-se no principal problema para os
acadêmicos interessados em direcionar sua curiosidade e pesquisa para a Cultura
Popular.
6
cf. Houaiss, In.: LONDRES,1983.
7
CURRAN, Mark J. História do Brasil em Cordel. 2ª ed., São Paulo: EDUSP, 2003.
8
cf. Houaiss, In.: LONDRES,1983.
15
De acordo com Sylvie Debs, Patativa propõe uma visão dicotômica do mundo,
em diversos planos (espacial, temporal, ético, etc), opõe o Sertão à Cidade, o Nordeste
ao Sul, o Passado ao Presente, o Rural ao Urbano, os Valores Humanos aos Bens
Materiais, a Tradição à Modernidade. A poesia de Patativa é vasta em seus temas e ao
mesmo tempo profunda em suas análises, retratando a compreensão popular de questões
cotidianas e também das mais complexas; seus versos revelam a heterogeneidade de
possibilidades da Cultura Popular. A obra poética de Patativa é marcada por sua
preocupação em descrever a vida cotidiana do sertão e exigir o reconhecimento da
dignidade, da integridade do sertanejo, como afirmação de sua própria identidade.
Na análise da obra de Patativa, pesquisas em trabalhos precedentes a este como
os de Luis Tadeu Feitosa desenvolveram sua elaboração sob aspectos interessantes,
relacionando biografia e produção poética; as publicações “Digo e não peço segredo”,
de autoria do próprio Patativa, mas que foi organizada e prefaciada pelo pesquisador em
2001 e “Patativa do Assaré: a trajetória de um canto” publicada por Feitosa em 2003.
O presente trabalho tem como objeto a obra poética de Patativa do Assaré,
considerando principalmente os elementos de contestação e resistência, de religiosidade
popular, da ressignificação do conceito de Divina Providência e da elaboração de um
discurso profético. Num de seus poemas, chamado “Filosofia de um trovador sertanejo”,
Patativa elabora uma síntese dos principais temas recorrentes na vida cotidiana do povo
sertanejo e constituinte da chamada “filosofia de vida” característica da Cultura Popular.
Os diversos assuntos pontuados nesse poema elaboram uma teia de significação da dura
realidade experimentada, constituindo-se de elementos do Senso Comum decorrentes
das mais variadas experiências. O imaginário religioso cristão católico é a principal
fonte de sentido para as diversas situações descritas nesse poema de Patativa, que toma
por base as Sagradas Escrituras e suas narrações do exemplo divino de perdão.
FILOSOFIA DE UM TROVADOR SERTANEJO
(...)
Tudo geme neste carce,
Grita um __ai! ôto __ôi!
E a causa dessa derrota
Eu vou lhe dizê quem foi:
Apois bem todo motivo
De hoje nóis vivê cativo,
No mais horrive pená,
16
Foi Adão e sua esposa,
Que os mais veio faz as coisa
Mode os mais novo pagá
(...)
Por essas causa, no mundo
Sofe o grande e o pequenino,
Eu inté fico abusado,
Seu dotô quando magino
Em Adão, êsse marvado
Sacudí nóis no pecado,
Podendo nós tá inocente!
Mas não tem jeito que dá,
O jeito é nóis perdoá
Pruquê Deus perdoa a gente.
(...)
9
Assim como nesse trecho exemplar, em diversos outros poemas de toda sua
obra, Patativa recorre ao imaginário religioso cristão católico como fonte de sentido e
significado; entretanto revela-se sua elaboração popular de tais elementos como
presença marcante da religiosidade do povo nordestino e brasileiro.
Os principais problemas a serem analisados nesse trabalho procuram esclarecer
qual é o contexto do poeta e de sua Literatura Popular, como se constitui seu discurso
poético, quais são os elementos de resistência e contestação presentes na poética de
Patativa, como ele descreve e dialoga com a religiosidade popular e como reelabora o
conceito de Divina Providência.
Conforme o aporte teórico de Alfredo Bosi, é preciso debruçar-se sobre a obra
do poeta, iluminando-a sob a luz da história da consciência humana, que não é estática e
nem mesmo homogênea.
10
Considerar o contexto do poeta, sua relação com a História
Geral, bem como a história particular imanente e operante em cada um de seus poemas;
repensando o conceito de historicidade dessa obra poética, derrubando cronologismos
apertados e relacionando poesia e sociedade.
A principal hipótese a que se propõe defender esse trabalho consiste em afirmar
que a poesia de Patativa revela formas típicas à Cultura Popular de compreensão da
religiosidade, da idéia de Divina Providência e conseqüentemente das relações entre o
9
ASSARÉ, Patativa do. Inspiração Nordestina: cantos de Patativa, São Paulo: Hedra, 2003, p. 96-97.
10
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 6ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.13.
17
Homem e Deus; entretanto, não somente que as revela, mas recria, reelabora, reinventa
e ressignifica essas maneiras populares de atribuir sentido e significado à realidade.
As particularidades da visão de mundo popular e de sua religiosidade traduzem
sua resistência às ideologias dominantes e representam formas próprias de enfrentar a
crise histórica de seu tempo. O discurso poético de Patativa traduz-se em discurso
profético que elabora seu passado e suas tradições, considerando o presente sob uma
perspectiva crítica e anunciando esperança no futuro, como utopia. Segundo Alfredo
Bosi, o poema é uma expressão poliédrica, herdada e inventada, pela qual o poeta
enfrenta a rotina retórico-ideológica da sociedade usando livremente instrumentos da
própria tradição e é preciso reconhecer o sim e o não em todas as coisas.
11
Nesse trabalho nosso objetivo é, a partir da palavra poética, compreender as
relações entre produção literária, religiosidade, imaginário e cultura; para então:
aprofundar o conhecimento a respeito da obra poética de Patativa do Assaré,
compreender as formas populares de reelaboração e ressignificação do imaginário
católico e discutir a hipótese de que a poesia de Patativa e seus elementos da Cultura e
Religiosidade Popular, caracterizem fator de resistência.
Segundo Foucault, a Linguagem constitui teias de significado que operam em
todos os âmbitos da vida.
12
Referindo-se à fala, Roland Barthes afirma que essa se
constitui como uma forma de organização pessoal e implica sempre em exercício de
poder.
13
Sendo a Literatura Popular, uma Linguagem própria que evoca significados e
também caracteristicamente oral (fala), deve considerar-se que, portanto implica
exercícios de poder.
O principal autor tomado como referência teórica, pensando em tais aspectos
vem a ser Alfredo Bosi, principalmente por sua consideração (conceituação) da poesia
como uma forma de resistência. No quinto capítulo de seu livro “O ser e o tempo da
poesia”, intitulado Poesia–resistência, Bosi afirma que o poeta é caracterizado como o
“doador de sentido”, mas que no mundo moderno ocorre uma cisão, restando à poesia o
papel de aguçar a consciência dessa contradição do sentido, pois não se integra mais aos
discursos correntes na sociedade.
De acordo com Bosi, “o poema pode ter o papel de acender no homem”, ou de
revelar, o inconsciente desejo de uma outra existência, mais livre e mais bela e, sendo
11
Ibidem, p.15.
12
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad.: Salma
Tannus Muchail, 8ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1999.
18
assim, a poesia traduz em sons e símbolos essa realidade pela qual ou contra qual vale a
pena lutar. São consideradas aqui, como aporte teórico, as três grandes obras de Alfredo
Bosi; quais sejam, “O ser e o tempo da poesia” publicada em 2000, “Dialética da
colonização” publicada em 1992 e “Literatura e resistência” publicada em 2002.
Para análise de aspectos da Cultura Popular, bem como da religiosidade popular
servimo-nos das elaborações de Renato Ortiz, principalmente sob o enfoque gramsciano
de suas considerações da Cultura; as principais obras estudadas do autor foram “A
consciência fragmentada” publicada em 1980, “Mundialização e Cultura” publicada em
1998 e “Cultura brasileira e identidade nacional” publicada em 1985.
A questão do significado, discutida também nesse trabalho ao analisar as formas
populares de ressignificação de conceitos estabelecidos pela ortodoxia religiosa, incorre
conforme as elaborações desenvolvidas por Cliford Geertz; principalmente com base em
suas afirmações encontradas na obra “A interpretação das Culturas” publicada em 1989.
Além dessas, a categoria identidade também exigiu-nos o apoio de um aporte
teórico específico, para tanto tomamos como referência a obra “A estória do Severino e
a história da Severina. Um ensaio de psicologia social” publicada em 2001 por Antonio
da Costa Ciampa; consideramos ainda alguns elementos da análise elaborada por
Gilberto Velho em sua obra “Projeto e Metamorfose: antropologia das sociedades
complexas” publicada em 1999.
A metodologia básica do trabalho consiste em pesquisa bibliográfica e teórica, a
respeito da biografia do autor, de suas obras e de obras referentes. Análise, interpretação
e discussão, com apoio de autores reconhecidos de aspectos da obra, dos temas
levantados e de abordagens da Literatura Popular.
No primeiro capítulo o principal objetivo é compreender a trajetória da
Literatura Popular no Brasil, analisando a gênese de sua formação, os elementos
incorporados das tradições estrangeiras, as novas composições elaboradas e
ressignificadas de modo próprio pela cultura popular brasileira, visando assim melhor
contextualizar e analisar a vida e a obra do poeta Patativa do Assaré.
No segundo capítulo procuramos ler e conhecer as experiências vividas pelo
poeta, visando elaborar um resumo introdutório, como fizeram outros pesquisadores;
conhecer o verso e reverso de um mesmo poeta, de uma só e simples vida, mas de uma
grande e reveladora obra; a simplicidade da luta diária no trabalho como agricultor em
13
BARTHES, Roland. O prazer do texto. 3ª ed.,Coleção Elos, São Paulo: Editora perspectiva, 2002.
19
contraponto à riqueza de seus versos, de sua versatilidade lingüística e temática; a
rudeza da realidade natural do sertão com a seca, ao lado da riqueza de belezas naturais
narradas pelo poeta; a descrença e a denúncia diante das injustiças sociais vividas pelo
povo, paralelamente à fé cristã viva.
No terceiro capítulo visamos elencar os elementos identitários presentes nos
versos de Patativa do Assaré, analisá-los e esmiuçar sua relação com a possibilidade de
elaboração de uma poética resistente ou de uma resistência poética popular nordestina.
Ao discutir elementos identitários, consideramos o conceito de Identidade como
Metamorfose, o qual afirma que o movimento decorrente dessa metamorfose identitária
humana pode ser tanto o de superação como o de reposição, e que o interesse humano
racional de auto-conservação engloba não só a reprodução da vida biológica, mas
principalmente daquilo que merece ser vivido. Sob esse prisma considerar a poesia de
Patativa como doadora de um novo e vital sentido para a existência do povo nordestino,
como poesia que restaura a importância da vida, bem vivida, de valores humanitários,
da religiosidade e de uma consciência crítica diante da realidade inóspita; enfim como
uma poesia que se faz transformação e metamorfose identitária desse povo nordestino,
portanto contestação e resistência, esta é a ambição desse capítulo.
Finalizando a análise proposta da obra de Patativa do Assaré, o quarto capítulo
procura focar o olhar sob os elementos mais diretamente relacionados à religião e a
influência mútua entre ela e a poética popular nordestina. Considerar a poesia de
Patativa como elemento da cultura popular nordestina que, conseqüentemente, envolve
a religiosidade popular; compreender assim as características e condições específicas da
produção dessa obra. Para tanto, compreender melhor as teorias e conceitos já
desenvolvidos a respeito das idéias de Cultura Popular, de Religiosidade Popular e de
Ressignificação; mais especificamente deter-se no que se refere ao conceito de Divina
Providência e evidenciar a forma particular com que é articulado na poesia de Patativa,
suas especificidades em relação ao conceito tradicionalmente utilizado e estabelecido
pela ortodoxia da instituição religiosa católica e perceber o modo como é ressignificado
na poética popular desse sertanejo. Discutiremos a seguir a atitude assumida pelo poeta
de uma função profética para si e para seus versos; o aspecto utópico e referencial desta
atitude para a identidade nordestina no que se refere ao resgate da memória de um
grupo, de sua auto-estima e de suas perspectivas de futuro como projeto coletivo e
existencial.
20
CAPÍTULO I
LITERATURA POPULAR NO BRASIL: DE
‘REPENTE’ NA HISTÓRIA
“(...)
Descobri que na península
Ibérica, há séculos atrás,
Essa arte era uma espécie
De narrativas orais
Recitadas nos castelos
E nos Palácios Reais
E foi com os portugueses
Que essa arte aqui chegou,
Instalou-se no Nordeste
E se aperfeiçoou,
Modernizou-se e em seguida
Pelo Brasil se espalhou. ”.
14
Esse capítulo tem como principal objetivo compreender a trajetória da Literatura
Popular no Brasil, analisando a gênese de sua formação, os elementos incorporados das
tradições estrangeiras, as novas composições elaboradas e ressignificadas de modo
próprio pela cultura popular brasileira, visando assim melhor contextualizar e analisar a
vida e a obra do poeta Patativa do Assaré. Nesse intento a primeira dificuldade com que
nos deparamos refere-se à adoção da nomenclatura e definição de Literatura Popular; no
caso a que nos referimos, aqui denominada por alguns de Literatura de Cordel, por
outros Literatura de Folhetos, enfim com poucas possibilidades de encontrar um termo
14
Trecho do folheto: O beabá do Cordel, Moreira de Acopiara. São Paulo, 2004, p.9.
21
ideal e novo que possa definir essa Literatura que existe e é tão fecunda em nosso país.
Portanto, permanece aqui o termo Literatura Popular considerando seu uso, já corrente,
e a ciência de que “o termo que tudo abraça nada segura”
15
.
Consideram-se como principais fontes da Literatura Popular brasileira, os
códigos da oralidade, a voz e a performance
16
, marcantemente presentes nas cantorias,
nas rodas de violeiros, nas pelejas e nos desafios. O presente capítulo ambiciona ainda
salientar as especificidades dessa Literatura no Brasil, destacar a criatividade e a
singularidade dessa poética popular, pois, conforme a pesquisadora Márcia Abreu
“compõem-se versos e contam histórias em todas as partes do mundo, mas a forma
específica das composições nordestinas foi trabalhada e constituída no Nordeste do
Brasil a partir do trabalho de alguns homens pobres e talentosos”
17
.
1.1 Oralidade poética: origens da Literatura Popular
Em suas origens, a Literatura Popular aparece no Ocidente em duas etapas
18
, de
acordo com o pesquisador Joseph M. Luyten, sendo a primeira ainda no século XII
caracterizada por uma manifestação popular leiga e independente do sistema de
comunicação eclesiástico, a qual narrava histórias do povo em versos e na língua
regional, negando o latim e contrapondo-se às comunicações oficiais que tratavam de
assuntos eruditos e religiosos. Já a segunda etapa surge em fins do século XVIII após a
Revolução Francesa, com a ascensão da burguesia e o desenvolvimento industrial; com
mudanças que geraram um distanciamento entre a cultura chamada Erudita e aquela
denominada Popular, sendo que cultura não latina ficou caracterizada como popular.
19
No período inicial de desenvolvimento dessa literatura, durante o século XII, o
regime feudal limitava o trânsito de pessoas, sendo somente permitida a saída dos
feudos em duas ocasiões, quais sejam, a guerra e a peregrinação. Os pontos de
peregrinação da época eram Roma, Jerusalém e Santiago de Compostela, para os quais
ocorriam grandes movimentações populares. Os caminhos rumo a esses três focos de
15
Afirmação encontrada na obra de BOSI, Alfredo. Literatura e Resistência. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002, p.46.
16
Visando compreensão dos conceitos de performance, letra e voz, leitura introdutória da obra de
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trads. Jerusa Pires Ferreira, Suely Fenerich. São
Paulo: EDUC, 2000.
17
ABREU, Márcia de. Histórias de cordéis e folhetos. Campinas: Mercado das Letras/Associação de
Leitura do Brasil, 1999, p.18.
18
LUYTEN, Joseph M. O que é Literatura Popular. (Col. Primeiros Passos, 98) 2ª edição, São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1984, p.16-18.
19
Visando ampliação dessas informações consultar também a obra de BURKE, Peter. A cultura popular
na Idade Média (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1985.
22
convergência humana eram: o sul da França, visando chegar à Palestina; o norte da
Itália, para chegar a Roma, e a Galícia, península Ibérica, onde ficava o santuário de
Santiago.
20
Pois é justamente nesses locais que surge a Literatura Popular, com poetas
nômades que assim contavam com livre locomoção, apesar do regime feudal, e
assumiam as funções de verdadeiros jornalistas divulgadores das novidades, cantadores
das aventureiras e heróicas bravuras de sua época. Tais narrativas populares
contrariavam o estabelecido e caracterizavam uma espécie de oposição à Literatura
Oficial da Igreja. Com o passar do tempo, nesses locais, essa manifestação se fortaleceu
e surgiram focos de línguas nacionais, rompendo mais fortemente com o uso obrigatório
do latim; na Galícia, por exemplo, o uso do dialeto galaico, do qual originou-se tanto o
Português, quanto o Espanhol.
21
Desse modo, no Ocidente, esses três focos de convergência humana tornaram-se
núcleo e fonte de produção cultural regional, que acabou sendo transportada para o
restante da Europa por três categorias de poetas andarilhos: os menestréis, os trovadores
e os jograis.
22
No decorrer desse processo de surgimento e solidificação da Literatura Popular
ocidental, na segunda etapa referente ao século XVIII, ocorreu que a nova classe média
acabou por acentuar o distanciamento entre cultura Erudita e Popular. Na busca pelo
poder e pelo acesso aos bens culturais pertencentes à cultura oficial latina, a burguesia
definiu as concepções pertencentes a essa cultura Erudita oficial, como também os
grupos adeptos dos bens de cada uma dessas culturas, reforçando a desvalorização das
produções populares e das respectivas classes sociais que lhes corresponderiam.
23
Dessa
oposição inicial podem ter decorrido as inúmeras classificações e diferenciações entre
Cultura Popular e as demais modalidades da cultura em geral; tema amplamente
estudado, mas que até os dias atuais proporciona debates e anima diversas pesquisas.
24
Entre os séculos XVIII e XIX, a Literatura Popular se estabeleceu nos países
europeus e também na América do Norte, onde a imprensa já era de domínio público
desde 1700 e assim o povo pode publicar suas produções literárias.
25
20
LUYTEN, Joseph M. O que é Literatura Popular, p.16.
21
Ibidem, p.17.
22
Ibidem, p.17.
23
Ibidem, p.18.
24
QUEIROZ, José J. VALLE, Edênio (orgs). A cultura do povo. ed., São Paulo: Cortez: Instituto de
Estudos Especiais, 1984, p.9
25
LUYTEN, Joseph M. O que é Literatura Popular, p.19.
23
As manifestações da Literatura Popular nos mais diversos países revelam que
nos países de língua árabe, bem como na Índia eram comuns os contadores oficiais de
história, ocorrendo o predomínio da prosa, talvez pelo fato de contar com uma
linguagem recheada de termos poéticos.
26
Na Nigéria, ocorre uma vasta Literatura Popular crioula, caracterizada
predominantemente por peças teatrais
27
; enquanto que na Holanda e na Alemanha
registra-se também uma vasta produção literária destinada às classes de menor poder
aquisitivo, o que acabou por extinguir-se com o ensino obrigatório aos povos e com a
penetração da imprensa.
28
É interessante o fato de que os relatos poéticos passados para a prosa, ao serem
registrados acabam por desaparecer
29
; principalmente considerando que as
manifestações poéticas seriam a origem de toda Literatura desde as sociedades iletradas
que recorriam à versificação, ordenando a mensagem na forma poética, com ritmo e
rima, o que facilitava à memorização.
30
A variedade de manifestações da Literatura Popular conhecidas é ampla, tanto
em prosa como na forma poética; entretanto, na poesia popular desde suas origens os
versos eram feitos de improviso, em voz alta, para um público presente que se
manifestava conforme suas preferências, ficando o registro apenas a cargo da
memória.
31
Na Europa há uma forte literatura popular em verso, desde os primórdios da
Idade Média, com os trovadores e menestréis cantadores; reforçada pelas Cruzadas e
guerras religiosas, que geraram movimentação e grande intercâmbio cultural.
32
O início da produção literária Popular na França ocorreu na cidade de Troyes,
com os folhetos e almanaques, que se tornaram famosos por quatrocentos anos; esses
livretos de Troyes receberam o nome de Bibliothèque Bleue (biblioteca azul), devido a
capa azul dos mesmos. Os vendedores desses livretos franceses costumavam carregá-los
26
Ibidem, p.26
27
Ibidem, p.27.
28
Ibidem, p.32.
29
Exemplo citado por Luyten das sagas germânicas e escandinavas chamadas “Edda”, que depois de
passadas para prosa e registradas por folcloristas desapareceram na tradição popular. Cf.: Joseph M.
LUYTEN. O que é Literatura Popular, p.28.
30
Ibidem, p.7.
31
Comentário elaborado por Marisa Lajolo em sua apresentação à obra de ASSARÉ, Patativa do.
História de Aladim e a lâmpada maravilhosa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. (Col. Literatura em minha
casa, 2002, vol.5)
32
LUYTEN, Joseph M. O que é Literatura Popular, p.30.
24
numa caixa diante do peito, presa com uma corda que passava pela nuca (col), sendo
decorrente disso a nomenclatura Literatura de Colportage.
33
Desde o funcionamento das primeiras gráficas, na Inglaterra a Literatura Popular
existia já impressa, sendo denominada de ballads, pelo fato de ser feita para cantar, e
broadsides ou lado largo, por ser impressa só de um lado do papel.
34
Na Península Ibérica os livretos eram expostos em locais públicos pendurados
em cordas ou barbantes, sendo daí decorrente a nomenclatura de Literatura de Cordel.
No Brasil, infelizmente, a Literatura Popular em verso foi, por muitos anos, mal
compreendida e interpretada, excluída dos estudos oficiais de literatura, permanecendo
em desconhecimento por longo período. Como principais motivos da demora no
reconhecimento e inclusão dessa modalidade literária nos estudos oficiais, Joseph M.
Luyten levanta alguns problemas históricos como a introdução tardia da imprensa no
país, que foi o último das Américas a dispor desse recurso, e a excessiva imitação de
modelos estrangeiros pela intelectualidade.
35
O início dessa manifestação literária no
Brasil remonta a fins do século XIX e conta hoje com maciça bibliografia crítica e uma
vasta produção de folhetos e autores que constituem um panorama das influências dessa
poética popular em nossa cultura.
(...)
Histórias que divertiam
O Brasil colonial
Foram logo adaptadas
À realidade local;
Mais outros temas, porém,
Ainda de cunho oral.
Só no século XIX,
Acompanhando o progresso,
Essas histórias rimadas,
Depois de fazer sucesso
Entre o povo sertanejo,
Passaram para o impresso
36
33
Ibidem, p.31.
34
Ibidem, p.32.
35
Afirmações encontradas no prefácio de Joseph M. Luyten à obra de ASSARÉ, Patativa do. Patativa do
Assaré uma voz do nordeste. Int. e Sel. Sylvie Debs, São Paulo: HEDRA, 2000.
36
Trecho do folheto: O beabá do Cordel, Moreira de Acopiara. São Paulo, 2004, p.10
25
As pesquisas com respeito à Literatura Popular decorrem de diversos âmbitos,
promovendo análises dos mais diversos aspectos, sob pontos de vista cada vez mais
amplos. Estudiosos de áreas como antropologia, história, sociologia, letras, etc,
desenvolveram e continuam desenvolvendo pesquisas com enfoques em diferentes
perspectivas dessa modalidade da Literatura Popular.
37
1.2 Literatura Popular e/ou Cordel: sinônimos?
Em nosso país, o Cordel aparece como sinônimo de poesia popular em verso,
para alguns pesquisadores, sendo caracterizado pelas histórias de batalhas, sofrimentos,
amores, crimes, fatos políticos e sociais da realidade do país e do mundo, além das
famosas disputas entre cantadores, que compõem esse conjunto de narrativas em verso,
denominado por muitos como Literatura de Cordel.
38
Em fins do século XIX e início do
século XX, o Cordel representava parte integrante e primordial da vida dos nordestinos,
que viviam no campo como agricultores ou nas pequenas cidades como comerciantes.
39
Essa denominação da poesia popular como Literatura de Cordel, é
imprescindível ressaltar, foi por muito tempo na história associada a uma interpretação
negativa dessa modalidade literária, interpretação essa que a situava como algo menor
em oposição à Literatura.
40
Tal visão bucólica da poesia popular constituiu-se como
uma banalização das características da Literatura de Cordel, uma idealização caricata da
identidade popular.
A importância da devida valorização e o que nos encanta na visão popular típica,
não é o fato de ser uma obra elaborada por quem desconhece o saber convencional, mas
sim o fato de ser obra nascida da própria experiência do sofrimento e da beleza, narrada
por aqueles que, na pele, o vivenciaram e exatamente por essa razão tão bem o
exprimem.
41
Os primeiros estudiosos a empregarem a expressão Literatura de Cordel no
Brasil designavam nesses termos os folhetos vendidos nas feiras, assim como se fazia
em Portugal, onde cordéis eram livretos impressos em papel barato, portanto de baixo
37
PINHEIRO, Helder e LÚCIO, Ana Cristina Marinho. Cordel na sala de aula. São Paulo: Duas
Cidades, 2001, p.7.
38
Ibidem, p.11.
39
Ibidem, p.11.
40
Distinção comentada na introdução à obra de ASSARÉ, Patativa do. Patativa do Assaré uma voz do
nordeste. Int. e Sel. Sylvie Debs, p.11.
41
Ibidem, p.14.
26
custo, vendidos pendurados em barbantes.
42
Inicialmente em nosso país essa poesia era
registrada nos folhetos, produzidos em tipografias de jornal, e mais tarde passaram a ser
feitos em tipografias dos próprios poetas; no período que corresponde a fins do século
XIX e início do século XX, a nomenclatura mais utilizada para designar essa produção
literária era a de Folhetos
43
, que definiram suas características principais com as
publicações de Leandro Gomes de Barros
44
em 1893, seguido por Francisco Chagas
Batista em 1902 e João Martins de Athayde
45
em 1908.
Esse período de virada do século XIX no Brasil trouxe mudanças nas relações de
trabalho que afetaram trabalhadores do campo e revelaram a crise em vários setores da
sociedade, além da exclusão das camadas mais pobres da população; a busca por novas
e melhores possibilidades de subsistência levou a migração das pessoas do campo para
as pequenas e grandes cidades. Nesse movimento, os grupos populares levaram consigo
suas esperanças, suas lembranças, seu imaginário, suas canções e repentes; a
transposição para o papel de todo esse universo das experiências populares, resgatou da
memória, os sons e os costumes característicos dessa cultura Popular, sua riqueza e
diversidade.
46
Mais especificamente no contexto nordestino, essa poesia popular insere-se pela
tradição oral comum à região, tendo como principal agente a figura do cantador,
trabalhador rural e geralmente analfabeto que narra seus versos de improviso, graças a
uma memória invejável. Esse cantador popular utiliza-se, como recurso ou técnica de
memorização, de uma versificação própria caracterizada por sextilhas ou décimas,
enfocando especialmente a narrativa dos acontecimentos.
47
42
PINHEIRO, Helder e LÚCIO, Ana Cristina Marinho. Cordel na sala de aula, p.13.
43
Publicações com 8 a 16 páginas, para pelejas e folhetos de circunstâncias; 24 a 56 páginas para
romances. De acordo com PINHEIRO, Helder e LÚCIO, Ana Cristina Marinho. Cordel na sala de aula,
p.17.
44
Segundo pesquisadores, Leandro representa os grandes poetas populares do nordeste, não só pelo fato
de ter sido pioneiro nas impressões, mas também por ser dos mais prolíficos, escreveu cerca de mil
folhetos; nascido em Pombal na Paraíba, em 1868, publicou e viveu da venda de folhetos por toda vida
até sua morte em 1918. CURRAN, Mark J. A sátira e a crítica social na literatura de cordel. In.:
DIÉGUES JR, Manuel e outros. Literatura popular em verso: estudos. Belo Horizonte: Itatiaia/São
Paulo: EDUSP/Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986, p.316.
45
Nascido em 1877, na vila Cachoeira de Cebola na Paraíba, João Martins de Athayde é por alguns
considerado o príncipe dos poetas populares do Norte do país, não freqüentou escola e seu maior sonho,
na infância, era aprender a ler, com mais idade e já alfabetizado começou a arriscar seus primeiros versos
e imprimir folhetos, tirando daí seu sustento (p.9-12); segundo o pesquisador Mário Souto Maior, não era
um poeta de temática sobrenatural, circunstancial ou poeta-repórter, caracterizou-se principalmente como
poeta voltado para o amor, para a aventura, para o grotesco e para o mundo da imaginação. ATHAYDE,
João Martins de. João Martins de Athayde. Introdução e seleção Mário Souto Maior, São Paulo: Hedra,
2000. (Biblioteca de Cordel)
46
PINHEIRO, Helder e LÚCIO, Ana Cristina Marinho. Cordel na sala de aula, p.12.
47
ASSARÉ, Patativa do. Patativa do Assaré uma voz do nordeste. Int. e Sel. Sylvie Debs, p.12-13
27
A questão da especificidade da produção dessa Literatura no Brasil, mais
especificamente no Nordeste do país, toma corpo com a nova hipótese explicativa
levantada pela pesquisadora Márcia Abreu que propõe um confronto entre o Cordel
português e a Literatura de Folhetos nordestina visando, a partir da apresentação da
trajetória histórica e da comparação dos textos, discutir a independência entre essas duas
formas literárias.
48
A autora aponta para o equívoco da hipótese de uma associação ou
decorrência entre Literatura de Cordel portuguesa e Literatura de Folhetos do Nordeste
brasileiro; questiona ainda o uso do termo Literatura Popular como sinônimo de cordel,
já que tanto os autores quanto o público dessa literatura não pertence exclusivamente às
camadas populares.
49
Através de um esmiuçado levantamento do trajeto histórico do Cordel
português, Márcia conclui pela completa ausência de unidade dessa produção, que
inclui textos em verso, em prosa, de gêneros variados, produzidos e consumidos por
camadas amplas da população, não somente as populares.
50
Salienta ainda que a
possível característica de uniformidade dessa produção não inclui o texto, nem os
autores e nem mesmo o público; somente a materialidade do cordel, sua aparência e seu
preço.
51
Segundo essa pesquisa, os Cordéis portugueses mais enviados ao Brasil, durante
a colonização, narravam histórias que já haviam sido publicadas sob a forma de livros
anteriormente, por autores eruditos; algumas delas inclusive tendo sido escritas fora de
Portugal e com circulação principalmente no interior da cultura letrada.
52
Apesar de caracterizarem diferentes narrativas e gêneros, esse conjunto de textos
organiza-se de maneira similar, tendo diversos pontos em comum; a trama é estruturada
no confronto entre Bem e Mal, herói e vilão, do equilíbrio inicial entre os personagens
surge um ponto de tensão do qual decorre um encadeamento de ações entre os
protagonistas; a narrativa não se preocupa em constituir cenário, ambiente, paisagem,
estados psicológicos ou outros acontecimentos paralelos, a configuração das
48
ABREU, Márcia de. Histórias de cordéis e folhetos, p.12.
49
Ibidem, p.22-23.
50
Ibidem, p.46.
51
Ibidem, p.48.
52
“histórias de Carlos Magno, “Bertoldo, Bertoldinho e Cacasseno”, “Belizário”, “Malagona”, “D.
Pedro”, “Imperatriz Porcina”, “Donzela Teodora”, “Roberto do Diabo”, “Paixão de Cristo”, “D. Inês de
Castro”, “João de Calais”, “Santa Bárbara” e “Reinaldos de Montalvão”.” Ibidem, p.54.
28
personagens resume-se aos atributos morais que definem as diferenças entre Bem e
Mal.
53
É interessante salientar que a caracterização desses personagens heróicos,
associados ao Bem, geralmente constitui soberanos que sempre são justos, benevolentes
e a tudo perdoam.
54
A causa dessa quebra da harmonia inicial é sempre a existência de
sentimentos moralmente reprováveis, vindos de um malfeitor; no entanto o herói revela
sua maior capacidade ao permanecer sempre Bom diante de qualquer adversidade, seja
a existência de um vilão ou a ação do próprio Destino, sobre o qual deve permanecer a
retidão moral.
55
Ainda ao caracterizar o Cordel lusitano, a pesquisadora constata e ressalta o fato
de todas as histórias se passarem entre nobres, conterem poucas referências à vida e aos
problemas ou dificuldades dos pobres; sendo que estes aparecem sempre em harmonia
com seus senhores, revelando uma simbiose entre ricos e pobres.
56
Segunda a autora,
uma noção que permeia todos esses cordéis portugueses é a de que “os pobres são
felizes quando conhecem o seu lugar.”
57
Entretanto, uma outra pesquisadora, Marisa Lajolo afirma como traços de
histórias populares de todos os povos a astúcia dos fracos e dos pobres para livrarem-se
da pobreza e derrotarem os poderosos.
58
Sob o ponto de vista lingüístico, os Cordéis distanciavam-se das narrativas orais,
pois seus textos constituíam-se de períodos longos, com sintaxe distante da fala
coloquial e sem as recorrências sonoras e os ritmos marcados, que são como apoios para
a memória.
59
Ao abordar a Literatura produzida no Brasil, denominada de Folhetos
Nordestinos, a autora a define como bastante codificada e muito diferente do Cordel
lusitano. Segundo ela, ocorreu um processo de constituição dessa nova forma literária, a
partir de cantorias e folhetos de fins do século XIX e início do século XX que
corroboraram para cristalização de uma nova forma.
60
53
Ibidem, p.56-57.
54
Ibidem, p.60.
55
Ibidem, p.61-62.
56
Ibidem, p.65.
57
Ibidem, p.66.
58
Comentário a respeito da situação e atitude de personagens pobres, de acordo com apresentação de
Marisa Lajolo na obra de ASSARÉ, Patativa do. História de Aladim e a lâmpada maravilhosa. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002. (Col. Literatura em minha casa, 2002, vol.5)
59
ABREU, Márcia de. Histórias de cordéis e folhetos, p.71.
60
Ibidem, p.73.
29
As cantorias prevaleceram no Nordeste brasileiro, como forma específica de
jogo verbal oral no qual se apresentam, tanto poemas como desafios; a partir dessa
prática surgem as primeiras impressões de folhetos com Leandro Gomes de Barros e
Francisco das Chagas Batista.
61
As apresentações desses cantadores contavam, além do
desafio, com glosa a partir de motes, descrições, ABC’S, sátiras, comentários,
louvações e narrativas.
62
Inicialmente as narrativas eram compostas em forma de quadras setessilábicas
com rimas em ABCB, predominante em quase todo século XIX, e essa foi uma
contribuição lusitana que não permaneceu; as mais apreciadas contavam a vida de bois
valentes que eram os narradores de suas próprias peripécias e no geral mostravam os
confrontos entre perseguidores (humanos) e perseguidos (animais).
63
A oralidade marcante dos desafios foi preponderante para a ampliação das
quadras, que dificultavam a resposta dos desafiados pelo pouco número de versos para
responder às provocações do oponente e devolver-lhe outra; também nas narrativas,
expor uma unidade de sentido completa e desenvolver um tópico do tema ficava difícil
contando apenas com quadras.
64
Silvino Pirauá de Lima foi o primeiro a compor seus
versos na forma de sextilhas, “sentindo falta de espaço nas quadras para a expansão das
idéias, introduziu a sextilha e (...) a regra da deixa.”
65
Outras importantes alterações na impressão de folhetos foram introduzidas por
João Martins de Athayde, segundo a pesquisa de Márcia de Abreu, reformulações
gráficas, sistematização das edições e estabelecimento de revendedores nas cidades;
além disso, ele vinculou a criação poética a um número determinado de páginas,
múltiplo de quatro, visando atender a demandas tipográficas e econômicas, e
estabelecendo uma única história ou poema por folheto.
66
1.3 Suporte gráfico: veículo e encarnação momentânea
Ao fazer a transposição de um modo do discurso característico da oralidade,
como é o caso dos desafios de feira, para um meio escrito, ocorrem inúmeras alterações
61
Ibidem, p.74.
62
Ibidem, p.79.
63
Ibidem, p.79-84.
64
Ibidem, p.85.
65
ALMEIDA, Átila e ALVES SOBRINHO, José. Dicionário Bio-bibliográfico de Repentistas e Poetas
de Bancada. João Pessoa, Editora Universitária, 1978. In.: ABREU, Márcia de. Histórias de cordéis e
folhetos, p.84.
66
ABREU, Márcia de. Histórias de cordéis e folhetos, p.102-104.
30
e ajustes, porém permanecem as características do ‘repente’. Nos Folhetos escritos esses
desafios entre cantadores de viola, comuns às feiras nordestinas, recebem o nome de
pelejas; mantém como tipo de estrofe mais usada a sextilha, seguindo a mesma rima,
métrica e construção geral de versos na estrofe, sendo portanto escrita sob as
modalidades do repente.
67
Essas pelejas caracterizam-se pela exposição das habilidades de dois cantadores
oponentes, podem basear-se em desafios reais ou imaginários e são, geralmente, escritas
em ritmo de martelo, decassílabos com acentuação nas sílabas terceira, sexta e décima.
Anteriormente à descrição da luta, como numa pequena introdução, são apresentados na
peleja os cantadores, o local e o público presente.
68
As temáticas presentes nos desafios ou pelejas podem ser variadas, mas segundo
os pesquisadores Helder Pinheiro e Ana Cristina Marinho Lúcio as mais comuns são as
que se referem à Ciência, com exposição de conhecimentos adquiridos, e aquelas nas
quais os cantadores se detratam mutuamente.
69
Outra forma de folhetos que se assemelha aos repentes é o mote, um tema
proposto em forma de verso aos cantadores durante uma disputa que funciona como um
refrão, entre as glosas, e pode tratar dos mais variados temas e questões pertinentes ao
momento.
70
Há ainda os folhetos de circunstância que, apesar de relatarem fatos e
acontecimentos, não podem ser diretamente relacionados aos relatos jornalísticos dos
acontecimentos, pois possuem uma linguagem própria. Podem tratar das últimas
notícias de fatos políticos do país e do mundo, bem como também de histórias curiosas
de assassinatos de pessoas famosas ou assombrações do sertão. Os fatos, no entanto, são
narrados nesses folhetos logo depois de acontecidos e tem um prazo de venda curto; a
não ser aqueles que se tornam clássicos por relatarem morte de famosos, de santos, de
políticos ou algum milagre.
71
Além desses folhetos, existem os ABCs, poemas narrativos em que cada estrofe
inicia-se e corresponde a uma letra do alfabeto; esses procuram encerrar um tema ou
assunto em versos que vão de A a Z, revelando a agilidade e a criatividade do poeta.
72
67
PINHEIRO, Helder e LÚCIO, Ana Cristina Marinho. Cordel na sala de aula, p.19.
68
Ibidem, p.19.
69
Ibidem, p.21.
70
Ibidem, p.22.
71
Ibidem, p.23.
72
Ibidem, p.24.
31
Vale salientar que todas essas modalidades variadas do discurso poético oral, no
registro escrito do folheto, recebem o mesmo tratamento gráfico caracterizando-se pelo
tamanho de 11 x 16 cm, com capa em papel diferente do miolo e com ilustração, feita
atualmente em xilogravura, além do título do folheto e o nome do autor, editor ou
proprietário.
73
Há ainda os famosos romances, mais comumente escritos em sextilhas, que nas
primeiras estrofes apresentam os heróis ou heroínas, os vilões e o local em que se passa
a história, bem como o tipo de história. A valentia e a trajetória mítica marcam a
vivência dos personagens heróicos e, nesses romances, o tempo é aquele ‘antigamente’
incalculável e indefinido, que mistura passado e presente, personagens míticos
antepassados e situações próprias ao universo nordestino.
74
Os romances contam geralmente com poucos personagens, descrições pouco
detalhadas de paisagens e situações, podendo ressaltar que os aspectos da vida no
Nordeste são colocados em destaque. Essas histórias se passam sempre num tempo de
reis e rainhas, em países distantes, mas com personagens, paisagens, comidas, desejos e
sonhos bastante comuns e semelhantes aos do povo nordestino.
75
O Romanceiro Popular nordestino é um fenômeno de Literatura Oral, formado
por um conjunto de obras, temas, estilos e formas poéticas que, segundo afirmação de
alguns pesquisadores e ferrenha negação de outros, herdamos da cultura ibérica. Esse
romanceiro existe, independentemente de veículos impressos e é constantemente
transformado pela dinâmica social do universo nordestino e brasileiro. Não se pode
afirmar a necessária ligação desse romanceiro ao folheto de cordel, mas esse acabou
sendo seu melhor veículo, caracterizando-se como suporte gráfico, ou seja, encarnação
momentânea desse espírito oral, de acordo com Bráulio Tavares.
76
A longevidade de um corpus literário é, quase sempre, maior do que a do suporte
gráfico por meio do qual é divulgado; isso ocorreu da mesma forma com o romanceiro
popular nordestino que já existia muito antes da imprensa em folhetos.
77
A base de subsistência do romanceiro popular nordestino, anteriormente ao
registro escrito no século XIX, constituía-se pela conjunção entre memória e oralidade;
73
HELENA, Raimundo Santa. Raimundo Santa Helena. Introdução e seleção: Bráulio Tavares, São
Paulo: Hedra, 2003, (Biblioteca de Cordel), p.28.
74
PINHEIRO, Helder e LÚCIO, Ana Cristina Marinho. Cordel na sala de aula, p.25-26.
75
Ibidem, p.26-27.
76
HELENA, Raimundo Santa. Raimundo Santa Helena, p.29.
77
Ibidem, p.30.
32
sendo que os primeiros manuscritos compunham os cadernos pessoais de poetas, com
versos próprios e de grandes mestres, que podiam ser vendidos ou trocados
eventualmente.
78
Apesar dos poetas populares europeus utilizarem-se da impressão desde o século
XVIII, Leandro Gomes de Barros foi o primeiro brasileiro a consagrar os folhetos como
veículo ideal para o romanceiro popular nordestino. Com a passagem ao uso do linotipo
por toda indústria gráfica mundial, barateou-se muito o custo das impressoras de tipos
móveis, possibilitando acesso a essa técnica para as classes menos favorecidas
economicamente.
79
1.4 Corpus literário nordestino: modalidades do repente
A versatilidade desse Corpus literário nordestino, representante de um conjunto
de elementos do inconsciente sertanejo, revela-se hoje por sua ágil inserção na era da
fotocomposição e da reprografia; assim como encarnou momentaneamente através do
suporte gráfico da escrita, tanto nos Folhetos inicialmente como nos livros
posteriormente, a Literatura Popular encarna hoje inúmeros websites, gravações em cds
e cd-roms que trazem textos antigos e contemporâneos, biografias de poetas e até
antologias poéticas. Essa versatilidade representa ampliação das possibilidades de
perpetuação dos textos da tradição e de sua maior veiculação pública; entretanto, como
bem ressalta Bráulio Tavares, tais veículos são provisórios, tanto quanto a escrita o foi,
já que o romanceiro é oral e só tem sentido através da oralidade, mesmo que repouse
num suporte material.
80
A Literatura Popular Nordestina constitui um Corpus específico, não pelo
formato gráfico dos folhetos, mas por sua especificidade de gênero literário construído
na e pela oralidade conjugada à memória. A principal característica que garante
especificidade aos Folhetos Nordestinos é a rigidez de regras quanto à rima, à métrica e
à estruturação do texto, sendo que essas regras são conhecidas pelos autores e também
pelo público; e como afirma a pesquisadora Márcia Abreu, essa rigidez da forma parece
ser uma criação brasileira, já que em Portugal não existe essa uniformidade nas
produções.
81
78
Ibidem, p.31.
79
Ibidem, p.33.
80
Ibidem, p.36.
81
ABREU, Márcia de. Histórias de cordéis e folhetos, p.108.
33
Ao argumentar sobre a constituição dessa teoria poética nordestina, claramente
delimitada, Márcia Abreu afirma ainda que os próprios autores e seus respectivos
consumidores a utilizam como critério de distinção entre os bons poetas, os poetas
maiores, e os maus poetas, poetas menores.
82
O primeiro elemento característico dessa poética é a versificação restrita às
sextilhas, que são usadas em narrativas; às setilhas, usadas nos folhetos que narram
fatos circunstanciais ou jornalísticos; e às décimas, empregadas principalmente em
glosas a partir de motes, como ocorre nas cantorias.
83
Essa estruturação padrão refere-se
unicamente à forma, inexistindo qualquer restrição temática; a rigorosidade do padrão
estrófico, da forma de versificação, dos tipos de rimas utilizadas, bem como dos
recursos lingüísticos empregados necessitam, entretanto, submeter-se ao sentido
84
e
assim possibilitarem a apreciação estética.
O vínculo com a oralidade é perceptível nas publicações impressas da Literatura
Popular (de Folhetos) Nordestina, principalmente por sua facilidade de memorização, a
rima funciona como auxiliar mnemônico, sendo pressuposto o som com que termina
cada verso e o universo temático a que pertence.
85
O BEABÁ DO CORDEL
(...)
No começo esses livretos
Eram em QUADRAS escritos;
Com versos de sete sílabas,
Porém poetas perito
Acharam que com sextilhas
Ficariam mais bonitos.
SEXTILHA é esse estilo
Que você está lendo agora;
Seis versos de sete sílabas,
E foi enorme a melhora
Pois cada estrofe assim vibra
82
Ibidem, p.109.
83
Ibidem, p.111.
84
Ibidem, p.112.
85
Ibidem, p.113.
34
De maneira mais sonora.
Cada verso é uma linha,
Como você vê aqui.
Os versos dois, quatro e seis,
Esses rimam entre si
Mas os ímpares não rimam,
Isso, cedo eu aprendi.
Esse estilo de seis linhas
É o mais utilizado
Hoje pelos bons poetas,
Como em recente passado.
Mas SETE LINHAS também
É bastante apreciado.
(...)
Muitos escrevem em décimas,
Eu não faço objeção.
Pois pra mim o que interessa
Para a realização
De um bom cordel, são três itens:
Métrica, Rima e Oração.
Infelizmente inda há
Poetas despreparados
Que não sei porque publicam
Cordéis desmetrificados,
Muito pobres de teor,
E o mais cruel: mal rimados.
86
A rigidez das regras que caracterizam o Corpus literário nordestino, no entanto,
devem ser considerados não como amarras e sim instrumentos para criação, como
lembra Márcia Abreu; a qualidade dos versos vai depender da habilidade de manejo do
poeta, de sua capacidade em compor e recompor versos e narrativas, sobre essas
estruturas tradicionais. A pesquisadora salienta que os poetas populares, produtores de
Folhetos, não necessitam romper as fórmulas padronizadas como tentativa de mostrar
86
Trecho do folheto: O beabá do Cordel, Moreira de Acopiara. São Paulo, 2004, p.13-14.
35
sua originalidade, como ocorre na cultura letrada moderna; lembra ainda que isso se
deve ao fato da produção e recepção dos folhetos vincular-se ao ambiente oral.
87
Registrar graficamente os poemas produzidos, torná-los Folhetos
comercializáveis ou até mesmo livros, antologias, coleções publicadas hoje em editoras
reconhecidas pela cultura letrada e todos os demais esforços de contenção desse Corpus
literário nordestino, com certeza, visam sua permanência e a possibilidade de apreciação
por um público cada vez maior.
A fixação na forma impressa não eliminou a oralidade como referência para essas
composições. Os poetas populares nordestinos escrevem como se estivessem contando uma
história em voz alta. O público, mesmo quando a lê, prefigura um narrador oral, cuja voz se
pode ouvir. Desta forma as exigências pertinentes às composições orais permanecem, mesmo
quando se trata de um texto escrito.
88
Constatando-se essa oralidade marcadamente presente, mesmo no registro
escrito dessa Literatura Popular nordestina, propõe-se aqui a existência de um Corpus
Literário Nordestino, como uma variação das modalidades do repente. Em analogia à
crença kardecista na reencarnação, poderíamos dizer que esse Corpus Literário
Nordestino momentaneamente “encarnou-se” pelo registro escrito, obteve
reconhecimento e permanência em nossa sociedade letrada, desenvolveu-se e plenificou
sua existência. Entretanto a escrita, o suporte gráfico, não o isola, não o define, não
pode limitar a abrangência de sua livre expansão, de seu desenvolvimento de seu
“espírito livre”.
Conforme o comentário de Paul Zumthor, a conservação de uma poética ou de
um Corpus Literário, na sociedade moderna, se deve ao livro que fixa determinada
produção e sua identidade na permanência
89
; entretanto o que temos observado é a
vertiginosa alteração nos modos de registro das produções humanas devido ao
desenvolvimento das tecnologias.
Se a escrita, por alguns séculos garantiu sua hegemonia na transmissão do saber
e na expressão de um poder para aqueles que a detinham e utilizavam
90
, englobando
87
ABREU, Márcia de. Histórias de cordéis e folhetos, p.117.
88
Ibidem, p.118.
89
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich.
São Paulo: EDUC, 2000, p.77.
90
Ibidem, p.81.
36
assim também manifestações populares como a Literatura Popular Nordestina, hoje se
possibilitam inúmeras e variadas outras formas de registro, de transmissão e de
permanência dessa poética e que mesmo metamorfoseando seu suporte gráfico, mantém
suas características de produção literária específica.
Nesse breve capítulo procuramos delinear, de modo resumido, o
desenvolvimento histórico das manifestações de Literatura Popular em todo mundo;
bem como atentar mais detidamente para as especificidades dessa manifestação no caso
particular do Brasil. Para além de salientar as divergências na adoção de uma
nomenclatura definitiva para essa manifestação em nosso país, seja a de Cordel ou a de
Folhetos; procuramos enfatizar o caráter historicamente momentâneo dos vários
suportes gráficos possíveis para essa manifestação oral. Enfim afirmamos a constituição
de um corpus literário tipicamente nordestino, baseado nas modalidades do repente, nos
códigos da oralidade e, portanto, versátil e flexível quanto às formas de registro; que,
entretanto, propõe regras rígidas de enquadramento para seus autores em relação à rima,
à métrica e à estruturação do texto.
37
CAPÍTULO II
RESUMO DE UMA GRANDE OBRA: VERSO E REVERSO, VIDA
DE PATATIVA
“E quero a licença agora
Mode eu contá minha histora
Com a língua que Deus me deu”.
91
Em quase todas as obras editadas de Patativa do Assaré, encontramos textos
introdutórios narrando sua biografia ou mesmo contendo uma pequena autobiografia;
além disso, todos os pesquisadores que publicaram obras a respeito do poeta, iniciam
sua empreitada com comentários a respeito da vida simples e, ao mesmo tempo,
surpreendente desse homem do sertão
92
.
Num dos resumos biográficos mais difundidos a respeito de Patativa, encontrado
em sua obra Inspiração Nordestina de 1956 e reeditada em 2003, é reafirmada sua
condição de importante poeta brasileiro; que desde menino fazia versos e se apresentava
aos ouvintes, mas que teve seus poemas publicados pela primeira vez somente em 1956.
Seria errôneo afirmar que, mesmo tomando por base uma autobiografia, aqui
relataríamos a vida do autor em minúcias, como se pudéssemos transmitir sua própria
91
Trecho do poema “A escrava do dinheiro”, encontrado na obra de ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que
eu canto cá: Filosofia de um trovador nordestino. 8ª ed., Petrópolis: Vozes/Crato: Fundação Pe. Ibiapina,
1992, p. 47.
92
“Com uma extensão de 430 mil km2, o semi-árido se estende por parte do estado do Piauí, todo o
Ceará, a maior parte do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Bahia e uma pequena área dos
estados de Sergipe e Alagoas. As características principais são: períodos secos, variando de cinco a oito
meses; chuvas irregulares e mal distribuídas; precipitação pluviométrica baixa, variando de 400 a 800
mm/ano; pequena umidade relativa do ar; taxas de evaporação elevadas (2000 mm/ano); rios e riachos de
regime temporário (secos a maior parte do tempo, com exceção dos rios São Francisco e Parnaíba); e a
caatinga é a vegetação predominante. É a região mais seca do Nordeste e a sua paisagem natural já foi
quase toda substituída por pastagens e culturas”. Além dessas características físicas de difícil
adaptabilidade, o sertão conta ainda com grande concentração da propriedade de terra, o que agrava a
desigualdade social e os níveis de miséria; seu solo é mal utilizado, o que o esgota e acaba causando sua
desertificação, a irrigação visando amenizar a falta de água gera a salinização das terras, além da
contaminação dos açudes por agrotóxicos. Informações encontradas no capítulo “Degradação no espaço
brasileiro” de ARNALDO e PEDRO. Geografia: 1ª série do ensino médio. Belo Horizonte: Editora da
Universidade, 2002, p. 3. (Coleção Pitágoras)
38
voz narrando a história, com a língua que Deus lhe deu, parafraseando a epígrafe citada
acima, retirada de seus próprios versos.
Ler e conhecer as experiências vividas pelo poeta, visando elaborar um resumo
introdutório, como fizeram outros pesquisadores, pode parecer tarefa de fácil realização.
Entretanto, é interessante como, a cada novo texto lido, seja de autobiografias em prosa,
de resumos biográficos elaborados por outros ou mesmo de poemas do autor que
traduzem autobiografias, parecemos estar diante do reverso visto anteriormente. Verso e
reverso de um mesmo poeta, de uma só e simples vida, mas de uma vasta e reveladora
obra; a simplicidade da luta diária no trabalho como agricultor em contraponto à riqueza
de seus versos, de sua versatilidade lingüística e temática; a rudeza da realidade natural
do sertão com a seca, ao lado da riqueza de belezas naturais narradas pelo poeta; a
descrença e a denúncia diante das injustiças sociais vividas pelo povo, paralelamente à
fé cristã viva.
Patativa do Assaré, homem do sertão, agricultor pobre que passou por poucos
meses de contato com o aprendizado escolar é considerado aqui sob o signo de poeta e
artesão da linguagem
93
, autor de uma obra consistente e reconhecida, emblemática da
Literatura Popular nordestina
94
e nacional. Sua poética marcada pela oralidade
constituiu-se como voz que, posteriormente, fez-se letra
95
; foi originalmente um artesão
da palavra falada, narrador performático de improvisos versificados numa linguagem
matuta.
2.1 Primeiro verso: a meninice sertaneja
Antonio Gonçalves da Silva, o Patativa, cearense nascido no Cariri em Serra de
Santana, próximo a Assaré, no dia 5 de março de 1909, seria já pelo nascimento alguém
marcado pela espiritualidade, um idealista, dotado de grande sensibilidade, dedicação,
com uma fantasia privilegiada e grande amor pela Humanidade, de acordo com as
influências dos astros citadas por um Gilmar de Carvalho.
93
Signo atribuído ao cantor e intelectual Chico Buarque por MENEZES, Adélia Bezerra de. Desenho
Mágico - Poesia e política em Chico Buarque. 2ª edição, São Paulo: ATELIÊ EDITORIAL, 2000, p.17.
94
Interessante distinção entre cordel e literatura popular nordestina é elaborada na obra de ABREU,
Márcia de. História de cordéis e folhetos, 1999.
95
Visando compreensão dos conceitos de performance, letra e voz, leitura introdutória da obra de
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trads. Jerusa Pires Ferreira, Suely Fenerich. São
Paulo: EDUC, 2000.
39
No dia de seu nascimento não foram registradas chuvas, segundo o mesmo
pesquisador
96
, e a previsão meteorológica para todo o ano de 1909 contava com
perspectivas de seca e preocupações para os agricultores. Sob esse agonizante contexto
comum ao sertão nasceu o menino que se tornou poeta e fonte inspiradora para
identidade do povo sertanejo.
Antônio, como era chamado o poeta, segundo filho do casal de agricultores,
Pedro Gonçalves da Silva e Maria Pereira da Silva, nasceu e viveu sua meninice no sítio
dos pais, distante três léguas da vila de Assaré, ao sul do Ceará; vivenciando desde
menino as agruras do trabalho com a terra no nordeste seco.
97
Na época o estado do Ceará contava com oitenta e dois municípios, dos quais
vinte e oito cidades e cinqüenta e quatro vilas; Assaré era uma dessas vilas desde 1865,
quando se desmembrou de Saboeiro, e era administrada pelo Intendente Pedro Pereira
Tamiarana desde 1904.
98
Esse pequeno vilarejo de origem do poeta contava ainda com um juiz de Direito,
um Promotor, um farmacêutico e um pároco chamado Francisco Silvano de Sousa, o
qual batizou o bebê Antonio no dia 25 de abril do ano de seu nascimento, apesar dele só
ter sido registrado em 1917. É interessante salientar que Assaré, “etimologicamente
significava atalho, antigo desvio do caminho das boiadas dos Inhamuns para o Piauí
99
”;
e também para o poeta Patativa seria um atalho para o mundo, um acesso rápido à
universalidade da experiência humana da existência.
Nas biografias do poeta, encontradas em suas obras ou nas de seus
pesquisadores, é marcantemente narrado o infeliz fato de sua cegueira, decorrente da
combinação de duas doenças que o acometeram por volta de um ano de idade, segundo
alguns pesquisadores, ou até por volta dos quatro anos segundo outros
100
. A seqüela,
apesar de marcada pela negatividade, acabou sendo posteriormente associada a
características de outros grandes poetas, entre os quais Homero e o violeiro cego
Aderaldo
101
; ou associada a Camões, pelo próprio Patativa.
96
CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré. 3ª ed., Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001, p.7-8.
97
Informações colhidas em diversas de suas biografias, entre as quais no livro de ANDRADE, Cláudio
Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção (capítulos de uma poética sertaneja). Fortaleza:
Editora UFC / São Paulo: Nankin Editorial, 2003, p.25.
98
CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré, p.10.
99
Ibidem, p.11
100
Ibidem, p.13.
101
De acordo com Raquel de Queirós as apresentações de Cego Aderaldo consistiam em um espetáculo
impressionante que atraía a todos, segundo ela tratava-se de um verdadeiro ator experiente, atento ao seu
público e performático em suas apresentações poéticas; a história de sua cegueira conta com relatos
controvertidos, resquícios dessa oralidade marcante, várias versões apresentadas conforme a ocasião
40
Perdi meu ôio dereito,
Ficando mesmo imperfeito
Sem vê nem perto, nem longe,
Mas logo me conformei
Por saber que assim fiquei
Parecido com Camonge
102
Alguns anos depois, Patativa fica órfão de pai e, juntamente com seu irmão,
assume o trabalho da roça e as responsabilidades de sustento da família; em 1919 sua
família passa fome por causa da seca; sendo que estas duras experiências de perda e
sofrimento ocorreram antes mesmo de completar dez anos. Em contraposição a essas
experiências negativas, vale ressaltar a significação positiva atribuída pelo poeta à
descoberta da poesia em cordel, bem como à sua breve alfabetização e à possibilidade
da leitura.
103
AUTOBIOGRAFIA
(...)
Mas porém como a leitura
É a maió diciprina
E veve na treva iscura
Quem seu nome não assina,
(...)
Meu professo era fogo
Na base do português,
Catálogo, era catalôgo,
Mas grande favô me fez.
O mesmo nunca esqueci,
Foi com ele que aprendi
Minhas premêra lição,
(...)
dramática. QUEIRÓS, Raquel de. O cego Aderaldo. In.: DIÉGUES JR, Manuel e outros. Literatura
popular em verso: estudos. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: EDUSP/Rio de Janeiro: Fundação Casa de
Rui Barbosa, 1986, p.349-367.
102
Referência a Camões encontrada na obra de ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré:
as razões da emoção (capítulos de uma poética sertaneja). Fortaleza: Editora UFC / São Paulo: Nankin
Editorial, 2003, p.26.
103
Ibidem, p.27.
41
Depois só fiz meus estudo,
Mas não nos livro escolá
Eu gostava de lê tudo,
Revista, livro e jorná.
104
No poema A estrada da minha vida, que contem o trecho abaixo, ao elaborar
um resumo autobiográfico, o poeta compara a infância ao inocente e desprevenido
caminhar por uma estrada de pura beleza, ingenuidade, alegrias e prazeres. Em sua
analogia, o poeta aproxima infância e divinos fulgores, caracterizando-a pelos ingênuos
olhos infantis que em tudo percebem as maravilhas da Divindade.
A ESTRADA DA MINHA VIDA
Trilhei, na infância querida,
Composta de mil primores,
A estrada de minha vida,
Ornamentada de flores.
E que linda estrada aquela!
Sempre havia ao lado dela
Encanto, paz e beleza;
Desde a terra ao grande espaço,
Em tudo eu notava um traço
Do pincel da Natureza (...)
105
O próprio poeta afirma que na criança o simbólico e a realidade se misturam, são
a mesma coisa, pois se acredita em tudo; ele diz que sua infância foi marcada pela
ingenuidade das brincadeiras, pela pureza e ausência de pecado. Entretanto, ao mesmo
tempo diz que em sua infância já trabalhava na roça, mas que foi uma fase boa.
106
Num de seus poemas, Patativa fala de sua avó, das histórias de tesouros, reis,
príncipes e feiticeiras. Afirma ter muitas saudades de tudo isso e dos brinquedos como:
bodoque, carrapeta, cavalo de pau.
104
Trecho do poema de Patativa. Apud.: ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as
razões da emoção (capítulos de uma poética sertaneja). Fortaleza: Editora UFC / São Paulo: Nankin
Editorial, 2003, p.28.
105
ASSARÉ, Patativa do. Inspiração Nordestina: cantos de Patativa, o Paulo: Hedra, 2003,
p.203.
106
ASSARÉ, Patativa do. Digo e não peço segredo. Org. e prefácio de Luiz Tadeu Feitosa, São Paulo:
Escrituras Editora, 2001, p.15.
42
Atribuindo seu aprendizado à natureza e admitindo como seu único mestre Deus,
em um de seus poemas Patativa se afirma como autodidata que aprendeu lendo de tudo.
Afirma que seu livro é a natureza, com seus sinais, e que é possível perceber Deus
visível em tudo, nos animais e nos demais elementos da natureza.
Eu nasci ouvindo os cantos
das aves de minha serra
e vendo os belos encantos
que a mata bonita encerra
foi ali que eu fui crescendo
fui vendo e fui aprendendo
no livro da natureza
onde Deus é mais visível
o coração mais sensível
e a vida tem mais pureza.
Sem poder fazer escolhas
de livro artificial
estudei nas lindas folhas
do meu livro natural
e, assim, longe da cidade
lendo nessa faculdade
que tem todos os sinais
com esses estudos meus
aprendi amar a Deus
na vida dos animais.
Quando canta o sabiá
sem nunca ter tido estudo
eu vejo que Deus está
por dentro daquilo tudo
aquele pássaro amado
no seu gorgeio sagrado
nunca uma nota falhou
na sua canção amena
só canta o que Deus ordena
só diz o que Deus mandou.
107
107
Poema sem título encontrado na obra de ASSARÉ, Patativa do. Digo e não peço segredo. Org. e
prefácio de Luiz Tadeu Feitosa, São Paulo: Escrituras Editora, 2001, p.18.
43
O mundo do menino Antônio era a Serra, Serra de Santana, na qual o lazer era
contemplar a paisagem e brincar com os cinco irmãos, além do constante trabalho na
roça; em sua memória da infância, porém, impregnou-se a visão performática de
violeiros e versejadores repentistas, os quais presenciou ainda criança e almejou um dia
aventurar-se a imitar.
108
Apesar da visão bucólica de sua própria infância, as análises constituídas sobre o
poeta e sua obra, revelam indícios da forte influência do mundo adulto na formação de
sua personalidade, o trabalho precocemente presente e o pouco contato com crianças de
sua idade, corroboraram a construção dos sentidos e valores de sua vida e,
conseqüentemente, de sua poética. Sem determinar por completo ou delimitar
diretamente caminhos pré-concebidos unicamente pela tradição, Patativa revela sua
individualidade ao reelaborar essa visão adulta do mundo e transcrevê-la em sua
poética, sem, contudo negar sua infância.
109
Seu período de freqüência escolar foi mínimo, apenas alguns meses, segundo ele
próprio quando já tinha doze anos; aprendeu usando os livros de Felisberto Rodrigues
Pereira de Carvalho, uma espécie de cartilha
110
editada a partir de 1982 pela livraria
Francisco Alves, com a função de disseminar as letras pelo interior do Brasil
111
. O
menino Antonio adiantou-se na leitura dos livros, que deveriam ser usados durante dois
anos, mas foram facilmente devorados em meses, abrindo acesso à cultura escrita para o
sagaz leitor.
O menino, apesar das agruras da seca e da simplicidade de sua família, cresceu
com elevada auto-estima, valorizando a dignidade e a altivez de sua condição de
agricultor; talvez principalmente pelo fato de crescer como filho de pequenos
proprietários rurais e não se ter submetido a regime feudal, no qual os donos da terra
ficam com boa parte da produção.
112
Na biografia de Patativa ocorreu uma mudança de atitude, por volta dos seus
dezesseis anos, que influencia sua postura posterior, bem como sua poética. Talvez esse
108
CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré. 3ª ed., Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001, p.14.
109
FEITOSA, Luiz Tadeu. Patativa do Assaré: a trajetória de um canto. São Paulo: Escrituras Editora,
2003, p.100.
110
A respeito do uso de cartilhas visando à alfabetização no Brasil, de modo semelhante ao aplicado no
Nordeste, região em que viveu Patativa do Assaré, na região Sudeste utilizou-se por várias décadas a
tradicional cartilha de LIMA, Branca Alves de. Cartilha “Caminho Suave” Renovada. (Manual do
professor), 2ª ed., São Paulo: Editora Caminho Suave Limitada, 1984. Sendo posteriormente editado o
livro das séries iniciais pela mesma autora LIMA, Branca Alves de. Caminho Suave: comunicação e
expressão: 1ª série do 1º grau, 29ª ed., São Paulo: Caminho Suave, 1989.
111
CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré. p.14.
112
Ibidem, p.12.
44
fato tenha passado despercebido por outros de seus pesquisadores, por representar
prática corriqueira entre jovens do sertão e de outras regiões interioranas; as
competições de tiro com bodoque e as caçadas aos passarinhos faziam parte das
distrações de infância do poeta, mas aos dezesseis anos ele abandona essa prática, pois
percebe seu próprio sentimento de pena ante aos maltratos com esses animais.
113
Patativa vive um período de mudanças dos oito aos dezesseis anos, durante o
qual começa a fazer poesias antes de ser alfabetizado e a cantar viola antes de ter seu
próprio instrumento, interessa-se pelos folhetos, mas não sabe ler ainda, arrisca versos
enquanto brinca de caçadas com bodoque. Alguns pesquisadores consideram essa fase
de hesitações coincidente com o momento em que Patativa ganha sua própria viola, de
presente de sua mãe, e passa a entusiasmar-se com as cantorias e convites para
apresentações.
114
Num relato bastante particular do próprio Patativa, conseguido em entrevistas
gravadas, ele narra o momento em que tomou consciência de seu dom, de sua
potencialidade em versejar.
(...) Eu passei a minha infância em extrema pobreza, mas uma infância alegre, cheia de
beleza, porque já nasci, posso dizer, com este dom... ouvindo os passarinhos cantar... (...)
Quando eu tinha apenas oito anos que nem era alfabetizado ainda, foi quando eu vi pela
primeira vez uma mulher ler um folheto de cordel... , então fiquei maravilhado com aquilo,
com aquela linguagem tão bonita! (...) daquele dia, daquele momento em diante, eu pude
conhecer que poderia reproduzir, também em versos, qualquer coisa que eu quisesse (...)
115
Em seus comentários a respeito desse relato, o pesquisador percebe dois
momentos da mesma biografia, aquele dos afetos relacionados à contemplação da
natureza como o entusiasmo diante da beleza e um modo particular de ser e estar no
mundo, e outro marcado pela presença de elementos sociais, nos quais as relações com
outros seres humanos possibilita novo e diferenciado momento de contemplação da
beleza. Nesse relato o poeta traduz a correspondência entre duas formas de beleza, a da
Cultura e a da Natureza; sendo crucial em sua biografia e, conseqüentemente, em sua
poesia essa capacidade de perceber a beleza nas diversas instâncias.
116
113
ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção (capítulos de uma
poética sertaneja), p.30.
114
Ibidem, p.31.
115
Ibidem, p.32.
116
Ibidem, p.33-35.
45
Pesquisadores, como Gilmar de Carvalho, consideram que a vocação poética de
Patativa teve origem já na infância, no lazer de contemplação da natureza, bem como
nas participações de leituras coletivas de folhetos de cordel, de ponteios de viola e de
pelejas
117
; a partir dessas experiências contemplativas da beleza, natural e cultural,
descobriu a possibilidade da criação própria e do improviso de versos.
2.2 Reverso: a juventude e a busca de novos mundos
A passagem da meninice à juventude, sendo considerada como processo pessoal
na trajetória do poeta, pode ser demarcada mais claramente aos dezesseis anos, apesar
da dificuldade em afirmarmos a idade exata em que tais processos se desfecham. É fato
conhecido nas biografias existentes que, nesse período o jovem Patativa, convenceu a
mãe a vender uma ovelha para que pudesse comprar sua primeira viola.
118
Coincidentemente ou não, a partir de então, abandona as caçadas aos passarinhos
passando a improvisar seu próprio canto como eles; vindo depois, ironicamente, a
receber o codinome de uma de suas próprias caças, a Patativa.
Iniciam-se as apresentações públicas, sempre a pedido de vizinhos e amigos da
região, nos sítios das redondezas, nas festas de casamento e aniversários; e como
comenta um de seus pesquisadores, “não em volta das fogueiras, como nas vigílias
medievais, mas nos alpendres das casas, nos terreiros, nas noites de luar.”
119
Na autobiografia de 1956, já citada, escrita para a primeira edição de Inspiração
Nordestina a pedido de José Arraes de Alencar, o próprio Patativa relata de modo
simples sua trajetória sofrida e comum a tantos de sua região; enfatizando seu pouco
tempo de estudo formal.
Com a idade de doze anos, freqüentei uma escola muito atrasada, na qual passei quatro
meses, porém sem interromper muito o trabalho de agricultor. Saí da escola lendo o
segundo livro de Felisberto de Carvalho e daquele tempo para cá não freqüentei mais escola
nenhuma, porém sempre lidando com as letras, quando dispunha de tempo para este fim.
120
117
CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré. p.14-15.
118
Idem, p.19.
119
Ibidem.
120
ASSARÉ, Patativa do. Inspiração Nordestina: cantos de Patativa, São Paulo: Hedra, 2003, p.11.
46
Nesse mesmo texto, o poeta narra sua viagem ao Pará com apenas 20 anos de
idade, na qual conheceu José Carvalho autor de O matuto cearense e o caboclo do
Pará, que contém um capítulo referente à Patativa.
Finalizando essa pequena autobiografia, o poeta se define dizendo “Não tenho
tendência política, sou apenas revoltado contra as injustiças, que venho notando desde
que tomei algum conhecimento das coisas, provenientes talvez da política falsa, que
continua muito fora do programa da verdadeira democracia.”
121
Essa viagem realizada aos vinte anos é percebida por alguns pesquisadores
como um rito de passagem na vida de Antonio Gonçalves da Silva, sendo em
decorrência dela que o poeta recebe o pseudônimo que marcaria sua vida e sua obra, em
referência à pequena ave canora do sertão nordestino, através de um artigo de José
Carvalho
122
no Correio do Ceará, escrito pouco depois de contato com o poeta.
Em sua jornada, Patativa passa por volta de seis meses viajando, entre Belém, a
fronteira do Pará com Maranhão e o Amapá, dos quais nos últimos dois meses começa a
demonstrar certo estranhamento com aquela vida a transcorrer sobre águas, em casas de
palafitas e canoas; e então decide voltar.
123
Nessa viagem do poeta, alguns aspectos permitem relacioná-la a um rito de
iniciação: a pouca idade de Patativa, o fato de ser esta a primeira saída das proximidades
da família e também porque o trajeto atravessou parte do Brasil numa área que liga duas
regiões contrastantes, sob o ponto de vista geográfico e populacional; impregnada de
simbolismo de uma passagem para a idade adulta, de um afastamento do lar e do fato de
ser uma viagem “de trabalho”, visando a divulgação de seu talento.
124
Na viagem de volta, Patativa trouxe uma carta de apresentação para a Dra.
Henriqueta Galeno, filha do poeta Juvenal Galeno
125
, autor de Lendas e Canções
Populares, e pôde, fascinado, visitar esse famosíssimo poeta popular que se baseara em
121
Ibidem, p. 12.
122
Escreveu no livro “O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará”, Oficinas Gráficas Jornal de Belém,
1930. Aí refere-se à Patativa como sertanejo puro, sempre acompanhado de sua viola e que teve pouca
instrução escolar. Esse livro representou a primeira menção pública sobre Patativa, transcreveu alguns de
seus improvisos e pode ser considerado uma referência histórica; foi republicado em 1973, mas raramente
é encontrado, segundo o pesquisador CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré, p.82.
123
ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção (capítulos de uma
poética sertaneja), p.38-40.
124
Ibidem, p.41.
125
Juvenal Galeno, considerado grande monumento da poesia popular, era primo de Capistrano de Abreu,
por parte de pai, e de Clóvis Bevilácqua e Rodolfo Teófilo, por parte de mãe; baseava-se nos cantos de
vaqueiros e jangadeiros para elaborar sua poesia de dicção popular, segundo o pesquisador CARVALHO,
Gilmar de. Patativa do Assaré, p.22-23.
47
cantos de vaqueiros e jangadeiros e usava a dicção popular como opção estética; a
mesma dicção popular adotada pelo próprio Patativa, porém como fruto de sua vivência
e experiência pessoal.
Ao retornar de sua viagem ao Pará, o poeta voltou a Serra, ao trabalho no campo
e ao roteiro de improvisações e pequenas apresentações públicas; é interessante
acrescentar que nesse período, fez-se necessário incorporar ao epíteto de pássaro a sua
procedência geográfica, devido a grande profusão de patativas poetas e cantores
surgidos naquela região, sendo assim que Antonio tornou-se Patativa do Assaré.
126
Depois de algum tempo do retorno de sua viagem ao Pará, Patativa pede uma
jovem serrana em casamento, Belarmina Cidrão, conhecida de infância de sua família; e
realizadas as conversas costumeiras entre as mães dos noivos, casaram-se em janeiro de
1936. Dessa união nasceram quatorze filhos, dos quais só nove chegaram à idade adulta,
e apenas sete estão vivos.
127
Dona Belinha foi a companheira amorosa do poeta e,
infelizmente, faleceu em 1994 deixando-o solitário e emocionado sempre que o tema é
levantado.
128
2.3 O poeta feito: maturidade e equilíbrio familiar
Após o casamento, o poeta seguiu sua vida de agricultor e pai de família, sendo
sempre um pai rigoroso, segundo seus próprios filhos, que cresceram acompanhando-o
no trabalho da roça e vivendo a mesma vida simples do pai.
129
Dos nove filhos de Patativa, sete encontravam-se vivos em 2001, sendo três
mulheres, três homens agricultores que viviam em Assaré e um que morava em São
Paulo; havendo ainda dois filhos falecidos, um casal.
130
No período de 1930 a 1955, a poesia de Patativa era composta sem
reconhecimentos e aplausos grandiosos, a não ser os dos conterrâneos, era um poeta
refugiado na Serra.
Nesse período, sua poesia era difundida pela transmissão oral, em suas cantorias
e nos desafios com parceiros que subiam a Serra para encontrá-lo, como João
Sobre ele Patativa improvisou “Sei que há muitos poetas/ uns grande e outros pequeno/ brancos,
mulatos, moreno/ porém não há um na terra/ como o Juvenal Galeno.
126
CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré, p.23.
127
ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção (capítulos de uma
poética sertaneja), p.43-44.
128
CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré, p.25.
129
Ibidem, p.26.
130
Ibidem, p.26.
48
Alexandre, Anacleto Dias, Miceno Pereira, Vicente Granjeiro e Andorinha. O poeta
andava pelos sítios da região, de paletó e gravata, montado em seu cavalo Ventania,
lembrando aqueles trovadores e menestréis de outros tempos.
131
A oralidade da poesia de Patativa é cristalizada nesse período de 1930 a 1955,
permanecendo na memória de sua gente como poesia para ser dita e ouvida, sendo voz e
performance os elementos definidores dessa poética; é na maturidade de vida do poeta,
portanto, que se estabelecem as características mais marcantes e preponderantes de toda
sua poética futura.
132
2.4 O lugar como não lugar: a Serra
A serra de Santana representa importantíssimo papel, não só na biografia de
Patativa como em sua poética, é o lugar idílico do poeta, como já afirmaram outros
pesquisadores; apesar de geograficamente se tratar de uma serra com muitas pedras e
sem a exuberância comum a esse acidente geográfico, conta com onze lagoas, sendo
algumas permanentes, o que amplia a fertilidade da terra e possibilita o plantio de
culturas diversas como: feijão, milho, arroz e maracujá.
133
Mesmo depois de mudar-se para Assaré, a serra de Santana continua
representando o ideal de paraíso do poeta, para onde foge à procura do cheiro de mato,
do canto dos pássaros como a patativa e de torneios poéticos com seus parceiros da
região.
134
INLUSTRÍSSIMO SINHÔ DOUTÔ
(...)
Mas eu quero lhe contá
As coisa aqui cumo é.
Eu pertenço ao Ceará,
Nasci aqui no Assaré
Mas porém Deus que é bondoso
E misericordioso,
E é potretô munto exato,
Graças à bodade sua
Não nasci dentro da rua,
131
Ibidem, p.28-29.
132
Ibidem, p.31.
133
Ibidem, p.17.
134
Ibidem, p.15.
49
Foi aqui mêrmo nos mato.
(...)
Aqui, da serra ao sertão,
Grande pobreza se encerra,
Mas reina paz e união,
Ninguém convessa na guerra.
(...)
Nesta boa terra nossa,
No tempo das invernada
Bora jirmum, chega a roça
Fica tôda encaroçada.
Melancia ninguém conta,
Pra todo lado se encronta
Uma fartura tamanha,
A gente goza um prazê
Que eu sou capaz de dizê
Que o Paraíso não ganha.
135
Em diversas autobiografias publicadas, Patativa considera e retrata o sertão
136
como a maior riqueza natural, para aqueles que sabem observar, pois ali se revela tudo
de bom, belo e puro da natureza. Em um de seus poemas, Patativa diz que muitos já
cantaram o sertão e ele ainda continua cantando, pois seus mistérios são indecifráveis,
sua beleza é enorme e sempre há o que cantar. Atribui a beleza do sertão ao seu
afastamento natural do mundo civilizado que, com a chuva, se modifica e torna-se mais
belo e festivo, oferecendo uma riqueza de rimas.
137
O clima, o canto do galo e a noite enluarada, constituem a paisagem do sertão
retratada pelo poeta, culminando com a afirmação de que “Jesus foi sertanejo”.
Analogamente, Patativa se diz um sertanejo da gema, comparando-se ao próprio Jesus
Cristo; considera o sertão como um livro aberto, como um poema rico em inspiração.
Fala do sofrimento do sertão, do analfabetismo e das injustiças; mas ao mesmo
tempo cita as aves características do lugar como: sabiá, canário, campina, relacionando
135
ASSARÉ, Patativa do, Inspiração Nordestina: cantos de Patativa, p.71 a 76.
136
Nessa visão poética e mítica de centro do mundo, o intelectual e escritor Ariano Suassuna também
representa o Sertão como centro da cultura brasileira, pela fusão dos diversos mitos e outros elementos
essenciais da cultura brasileira. Cf.: MORAES, Maria Theresa Didier de. Emblemas da sagração
armorial: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial (1970-76). Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2000,
p.160.
137
ASSARÉ, Patativa do. Digo e não peço segredo. São Paulo: Escrituras Editora, 2001, p.21.
50
seu canto com a Graça Divina e seu imenso poder. Conclui percebendo que ser
sertanejo é um prazer e que o sertão é puro como um diamante antes de ser lapidado.
138
Patativa diz que a tristeza é tudo que mais o nordeste tem. Em um de seus
poemas fala da seca, da fome, da miséria e da migração para o sul como uma ilusão;
porém fala também do tempo de chuva, de fartura, de festa, de alegria e do canto das
aves.
Sendo seu lugar no sertão, a Serra de Santana é o espaço afetivo por excelência
do poeta, permanentemente presente no domínio da memória, contava com energia
elétrica na maior parte das casas, uma escola de primeiro grau e ônibus escolar para
levar os maiores à sede do município.
139
Cristalizada como a terra partilhada, a Serra de Santana representa um ideal
solidário de comunidade cristã, que aliada a um socialismo utópico, constitui uma das
bases da explicação de mundo do poeta.
140
Em uma simples casa na Serra de Santana Patativa viveu com sua família até o
final dos anos 70, quando se mudou para Assaré, instalando-se à rua Coronel Pedro
Onofre, 27, ao lado da igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores, por exigência da
esposa Belinha que fazia questão de proximidade a uma igreja.
141
Ao falar de Assaré, sua cidade natal, particularmente, Patativa não poupa os
elogios em versos com profundas declarações de amor e fidelidade; afirma suas riquezas
naturais e também a ausência do reconhecimento histórico devido. Coloca-se como filho
desta terra, despojada de bens como ele próprio; e garante sempre enaltecer seu nome
nos versos de sua “Lira Selvagem”.
ASSARÉ
(...)
Eu também, meu Assaré,
Sou pobre, quage de esmola;
Sou assim como tu é,
Só pissuo esta viola.
Nasci e mi criei nos mato,
Sem palito, sem sapato,
E sem recebê lição.
138
Ibidem, p.25
139
CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré, p.18.
140
Ibidem, p.19.
141
Ibidem, p.28.
51
Pobre, sem nada, na rapa,
Não conheço nem as capa
Dos livro de estudação!
Não posso te protegê,
Nada tenho pra te dá,
Mas porém quando eu morrê
Com razão vou te dêxá
Uma pequena lembrança,
Uma pequenina herança,
Em prova do meu amô:
O nome de um passarinho,
Uma viola de pinho
E os verso de um cantadô.(...)
142
Descrevendo seu lugar de origem, tendo como referência Assaré e o Sertão em
geral, Patativa mantém sua indignação e tristeza diante da pobreza e ausência de
recursos e investimentos econômicos nessa região; prossegue sempre aperfeiçoando o
tom de sua crítica social, chegando inclusive a identificar toda a classe pobre ou matuta,
como ele mesmo diz, com seu próprio Estado.
SEU DOTô ME CONHECE?
(...)
Se não sabe, escute agora,
Que eu vou contá minha histora,
Tenha a bondade de uví:
Eu sou da crasse matuta,
Da crasse que não desfruta
Das riqueza do Brasí.
(...)
Sofrendo a mesma sentença,
Tou quage perdendo a crença,
E pra ninguém se enganá
Vou dexá meu nome aqui:
Eu sou fio do Brasí,
142
Trechos do poema “Assaré” encontrado na obra de ASSARÉ, Patativa do. Inspiração Nordestina:
cantos de Patativa, p.43-50.
52
E o meu nome é Ceará!
143
Apesar do amor declarado à serra de Santana, por volta dos setenta anos de
idade Patativa resolveu deixar seu sítio e morar no Assaré, como já foi dito
anteriormente, devido a um acidente que lhe deixou seqüelas na perna e o impediu de
plantar sua roça pessoalmente. O poeta estava cada vez mais envolvido e atarefado com
os compromissos referentes à divulgação de sua obra, sendo mais cômodo morar na
cidade; além disso, uma outra grande motivação para a mudança, seria o desejo de
oferecer estudo aos netos.
144
2.5 A cantoria: o talento público e notório
Reconstruir e descrever resumidamente a trajetória do poeta revela-se como
tarefa árdua e complexa, pois Patativa se mostra como um ser metalingüístico, plural e
ao mesmo tempo específico, bastante híbrido, como afirma Luiz Tadeu Feitosa.
145
Aspectos interessantes sobressaem-se no resumo biográfico elaborado pelo pesquisador
Luiz Tadeu Feitosa, atentando menos para ordem cronológica, e mais para os fatos
preponderantes na construção de sua poética e de seu reconhecimento enquanto poeta.
Anteriormente ao reconhecimento e a divulgação impressa da obra de Patativa,
um outro veículo foi imprescindível na mediação entre seus versos e o público; esse
processo se deu primeiramente através do rádio, em meados dos anos 50,
principalmente após a inauguração da rádio Araripe.
146
À época, a cidade do Crato podia ser considerada o grande centro comercial do
Cariri e, sempre às segundas-feiras, reunia pessoas de todas as localidades, desde
Pernambuco até o Piauí, para famosa feira de compra, venda e troca de tudo o que era
produzido na região. Nessa feira, com ares de festa, Patativa encontrava o espaço para a
comercialização de sua produção rural, para fazer compras daquilo que sua família
necessitava e também para rever os amigos.
147
143
Ibidem, p.112 a 114.
144
ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção (capítulos de uma
poética sertaneja), p.59.
145
Para compreender melhor tais características ver: FEITOSA, Luiz Tadeu. Patativa do Assaré: a trajetória de um
canto. São Paulo: Escrituras Editora, 2003, Capítulo I.
146
CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré, p.18.
146
Ibidem, p.33.
147
Ibidem, p.34.
53
Estreou suas publicações em 1956, com Inspiração Nordestina
148
, e consagrou-
se posteriormente como poeta popular e símbolo dessa genuína inspiração, com dezenas
de livros e discos, tendo seus poemas musicados, além de inúmeros e tradicionais
folhetos.
Dez anos depois, Patativa lançou a segunda edição do livro, com acréscimo de
alguns poemas; porém um fato curioso é narrado por um dos pesquisadores da vida do
poeta: o poema Caboclo roceiro fica excluído dessa publicação, pois despertou atenção
de censores da ditadura militar.
149
O pesquisador Gilmar de Carvalho, no prefácio à
“Antologia Poética” de Patativa, comenta os intencionais esquecimentos e silêncios do
próprio poeta, em determinados períodos, em relação a alguns temas e poemas; sobre
isso afirma:
Das insistências com que Patativa nos faz ouvir aquilo que gosta de dizer, das lacunas em
relação ao que finge ter esquecido e ao silêncio que ainda envolve sua produção perseguida
pelo regime autoritário, instalado com o golpe de 1964, que ele soube driblar com argúcia e
competência.
150
Uma outra publicação, em 1970, traz novos poemas juntamente com
comentários do professor J. de Figueredo Filho, organizador da coletânea; é interessante
ressaltar um outro fato curioso ocorrido após essa publicação, em relação ao poema
Prefeitura sem prefeito que, com seus versos satíricos, acarretou uma breve prisão para
o autor.
151
Além disso, a experiência de prisão foi registrada, também em versos, pelo
poeta
Patativa descontente,
Nesta gaiola cativa,
Embora bem diferente,
Eu sou também Patativa.
Linda avezinha pequena,
Temos o mesmo desgosto,
Sofremos a mesma pena,
Embora, em sentido oposto.
148
ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção (capítulos de uma
poética sertaneja), p.44.
149
Ibidem, p.46.
150
ASSARÉ, Patativa do. Antologia Poética. Organização e prefácio de Gilmar de Carvalho. 4ª edição,
Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004, p.11.
151
ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção (capítulos de uma
poética sertaneja), p.50.
54
Meu sofrer e teu penar
Clamam a Divina Lei.
Tu, presa para cantar
E eu preso porque cantei.
152
Estabelecer as fontes da aguçada criticidade, bem como da conscientização
política e social desse poeta sertanejo, aparentemente considerado por alguns como
ingênuo devido ao seu locus de origem, é uma tarefa bastante complexa. Entretanto é
inegável o tom de sua
poesia militante de quem não se omitiu nos principais momentos da vida brasileira, como
no período autoritário, em que colaborou com os jornais da UNE, com a imprensa nanica
ou alternativa ou se engajou na luta pela Anistia, na campanha pelas Diretas-Já e na
denúncia às mazelas que resultam no drama do menor abandonado
153
A publicação de Cante lá que eu canto cá, com trinta e sete poemas reeditados e
sessenta e seis inéditos, foi incentivada por Plácido Cidade Nuvens, funcionário da
Fundação Pe. Ibiapina à época.
154
Sendo, posteriormente, considerada e reconhecida
como a obra mais famosa de Patativa; talvez, principalmente, por seu título ter sido
adotado pela SBPC como emblema de sua reunião no ano de 1979.
155
A riqueza de detalhes com que o pesquisador Cláudio Henrique Sales Andrade
compõe o resumo biográfico de Patativa do Assaré impressiona, não só pelo volume de
informações novas, não encontradas em outros pesquisadores, bem como pela análise
desenvolvida desses fatos e experiências. Comenta as diversas iniciativas de interesse
pela obra do poeta, principalmente a partir de 1978; sua procura pelos compositores,
pesquisadores e organizadores de eventos artísticos. Ressalta ainda, a inauguração do
Centro de Cultura Popular Patativa do Assaré, em 1984, como iniciativa de jovens
estudantes que resistiu apenas por um ano.
156
No ano de 1988 Patativa publica o quarto título, Ispinho e fulô, com apoio de
Rosemberg Cariri; livro que conta com setenta e um poemas novos e algumas
152
Ibidem, pp.50-51
153
ASSARÉ, Patativa do. Antologia Poética. Organização e prefácio de Gilmar de Carvalho, p.14.
154
ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção (capítulos de uma
poética sertaneja), p.54.
155
Ibidem, p.59.
156
Ibidem, p.60.
55
ilustrações, revela e ressalta a criatividade e a fecunda inspiração desse poeta popular. A
partir daí, já eram comuns as homenagens ao poeta, vindas dos mais diversos locais:
Universidades, Câmaras Municipais, Governos e Secretarias.
157
Na década de noventa,
o poeta ainda lança mais duas obras, Balceiro (1991) e Aqui tem coisa (1994), sendo o
primeiro uma coletânea conjunta com poemas de mais de vinte outros poetas de Assaré
e o segundo com quarenta e sete poemas inéditos, do próprio Patativa, de seu último
livro que seria publicado.
158
Patativa recebeu título de Doutor honoris causa em diversas universidades: da
Universidade Regional do Cariri (URCA) em 1989, da Universidade Estadual do Ceará
(UECE) por seu nonagésimo aniversário, da Universidade Federal do Ceará (UFC); foi
estudado em teses diversas, despertou muitas reflexões acadêmicas, teve sua vida e obra
registrada em filmes e peças teatrais. Faleceu no dia 8 de julho de 2002, aos 93 anos.
159
Patativa em sua obra representa o lirismo e a perspicácia de quem vive e
interpreta as peculiares circunstâncias nordestinas e interpreta os sentimentos do povo
nordestino. A temática de sua poética é, ao mesmo tempo, particular e universal, sua
linguagem é a do sentimento, seu horizonte é o mundo.
160
Na obra Digo e não peço segredo Patativa traça uma autobiografia em prosa,
quase como um diálogo que relata seu canto mavioso de pássaro, variante conforme as
situações e o seu estado de espírito. A autonomia e liberdade em dizer e não fazer
segredo são conseqüências de sua segurança e confortável posição, enquanto mito que
se revela homem e poeta nessa autobiografia. Sua notoriedade e o reconhecimento de
todo país, além de sua maturidade e uma visão de mundo construída ao longo de sua
trajetória permitem que faça desse livro a síntese de uma vida que se fez obra.
A memória, característica surpreendente em Patativa, é processo feito e refeito
diariamente; interage com o passado, é dinâmica no presente e projeta-se para o futuro,
mostrando-nos o profeta que, segundo Feitosa
161
, revela a circularidade da vida.
Enquanto processo, em constante transformação, a memória do poeta é traduzida em
discurso poético, mas também profético, já que seus versos não se perdem no tempo e
traduzem não só uma realidade local passada e presente, como um desejo humano
universal de esperança num futuro utópico. Na trajetória de Patativa, vida e obra são
157
Ibidem, p.61.
158
Ibidem, p.62.
159
CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré. 3ª ed., p.48-60.
160
ASSARÉ, Patativa do. Digo e não peço segredo. Org. e prefácio de Luiz Tadeu Feitosa, p.5.
161
Ibidem, p. 8.
56
como um rio perene de permanência e novidade; ele traduz o universal, deixando de ser
somente de Assaré e passando a significar o mundo com sua dicção matuta por opção,
tornando-se imortal.
Com sua vida e obra, Patativa derruba as muralhas entre Cultura Erudita e
Cultura Popular
162
, pois revela que tais falsas muralhas, construídas provavelmente por
aqueles que se consideram eruditos, não passam de uma necessidade de auto-afirmação
equivocada. Em seu livro Cante lá que eu canto cá, o primeiro poema traduz um recado
à Cultura Erudita e à classe que a representa; na forma de uma autobiografia em versos,
o poeta define sua própria poética em oposição e crítica à poesia moderna, carente de
rima, representante da elite erudita.
AOS POETAS CLÁSSICOS.
163
(...)
Se a gente canta o que pensa,
Eu quero pedir licença,
Pois mesmo sem português
Neste livrinho apresento
O prazê e o sofrimento
De um poeta camponês.
Eu nasci aqui no mato,
Vivi sempre a trabaiá,
Neste meu pobre recato,
Eu não pude estudá.
(...)
Na minha pobre linguage,
A minha lira servage
Canto o que minha arma sente
E o meu coração incerra,
162
Se consideramos como Cultura a herança de valores e objetos compartilhada por um grupo humano
coeso, no caso do Brasil poderíamos falar em Cultura Erudita, centralizada no sistema educacional e nas
universidades, e Cultura Popular, iletrada e que envolve hábitos e costumes materiais e simbólicos das
pessoas simples do povo. Além dessas duas faixas extremas, acrescente-se ainda a Cultura Criadora,
composta por intelectuais de fora da Universidade, e a Cultura de Massas, imbricada com o sistema de
produção e mercado de bens de consumo e denominada também de Indústria Cultural ou Cultura de
Consumo. Informações encontradas no capítulo X Cultura Brasileira e Culturas Brasileiras da obra de
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. o Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.308-344.
163
ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador nordestino. 8ª ed.,
Petrópolis: Vozes/Crato: Fundação Pe. Ibiapina, 1992, p. 17-20.
57
As coisa de minha terra
E a vida de minha gente.
(...)
Sou um cabôco rocêro,
Sem letra e sem instrução;
O meu verso tem o chêro
Da poêra do sertão;
(...)
Dêste jeito Deus me quis
E assim eu me sinto bem;
Me considero feliz
Sem nunca invejá quem tem
Profundo conhecimento.
(...)
Negar a possibilidade de uma racionalidade diferente, contrária àquela que se
afirma erudita, revela-se como atitude decorrente da crença num princípio que vê a
identidade como não contradição, que nega a diferença como constitutiva da
interpretação e significação da realidade. Patativa traduz uma racionalidade diferente,
em sua poesia, identificando-se com o povo sertanejo e sua região, atribuindo
características divinas e naturalizadas à sua própria poética.
Sob essa perspectiva múltipla de pássaro, mito e profeta, Patativa revela muitas
faces, diversos ninhos e inúmeras dicções, conforme Luiz Tadeu Feitosa apresenta em
seus registros dessa prosa autobiográfica.
No já citado livro, O matuto cearense e o caboclo do Pará, José de Carvalho
enaltece a imortalidade da obra de Patativa, afirmando-o como exemplo de sertanejo
puro, sempre acompanhado de sua viola, caracterizado pela pouca leitura e pelo
desconhecimento a respeito de tecnologias como o Trem, o Vapor e a respeito da beleza
natural que é o mar.
O próprio Patativa, em vários de seus poemas, afirma sua identidade de
sertanejo, agricultor, integrado ao seu meio natural e consciente de sua situação
desfavorável; como exemplo é possível citar trechos de seu poema O poeta da roça,
58
segundo na ordem estipulada pelo próprio poeta para publicação do livro Inspiração
Nordestina.
O POETA DA ROÇA
Sou fio das mata, cantô da mão grossa,
Trabaio na roça, de inverno e de estio.
A minha chupana é tapada de barro,
Só fumo cigarro de páia de mio.
Sou poeta das brenha, não faço o papé
De argum menestré, ou errante cantô
Que veve vagando, com sua viola,
Cantando, pachola, à percura de amô.
(...)
E assim, sem cobiça dos cofre luzente,
Eu vivo contente e feliz com a sorte,
Morando no campo, sem vê a cidade,
Cantando as verdade das coisa do Norte.
164
Nesse capítulo, além de um esboço biográfico e histórico do homem e do poeta
Patativa do Assaré, procuramos enfatizar a relação entre sua existência peculiar de
sertanejo e sua poética popular ou sua Lira Selvagem, como gostava dizia ele próprio.
Perceber o contexto em seu texto e valorizar esse texto no contexto em que está
inserido, ressaltar de sua vivência as situações que influenciaram temas, metáforas,
analogias e a própria linguagem de sua poesia; como afirma o título do capítulo, revelar
o verso e o reverso de Patativa.
Se, como afirma Gilmar de Carvalho, é “impossível condensar a poesia de uma
vida inteira em uma Antologia”
165
; menos possível ainda se faz traduzir sua vida e sua
poética em um único e despretensioso capítulo de dissertação, tomando por base
escritos de outros pesquisadores, já que o próprio Patativa se foi. Como na oralidade
popular se afirma quem conta um conto aumenta um ponto e sabemos que cada reconto
ou versão traz em si muito do narrador; as únicas certezas possíveis quanto à biografia
164
ASSARÉ, Patativa do. Inspiração Nordestina: cantos de Patativa, p. 14-15.
165
ASSARÉ Patativa do. Antologia Poética. Organização e prefácio de Gilmar de Carvalho, p.9
59
de Patativa são os fatos narrados por ele próprio nas autobiografias publicadas junto a
seus poemas.
Com as leituras de alguns resumos biográficos elaborados por pesquisadores da
vida do poeta e de sua poética, nesse capítulo procuramos mostrar o verso e o reverso
dessa biografia, salientando fatos presentes em diversos autores, percebendo detalhes e
pequenas diferenças no registro de fatos e datas marcantes; sempre considerando os
limites de nosso ponto de vista e deixando explícitas as conseqüências de nossas
escolhas, pois “selecionar é tomar um partido. A operação é assumidamente
ideológica”
166
como bem diz Gilmar de Carvalho.
No registro narrativo da trajetória biográfica e poética de Patativa do Assaré,
além da constituição de uma obra consistente e publicamente reconhecida e celebrada,
percebe-se a viabilização de discussão de elementos identitários através dos versos
sertanejos do poeta; no próximo capítulo, dando continuidade a essa discussão, faremos
a análise desses elementos e sua relação com a elaboração de uma forma de resistência
poética ou talvez de uma poética resistente, muito mais pelo conteúdo temático do que
pela estrutura formal dos versos.
166
Ibidem.
60
CAPÍTULO III
PATATIVA DO ASSARÉ: MÍMESIS,
CONTESTAÇÃO E RESISTÊNCIA
“resistir é opor a força própria à força
alheia. O cognato próximo é in/sistir; o
antônimo familiar é de/sistir.”
167
O intento desse capítulo tornou-se a cada revisão mais amplo, e delicado,
portanto, a princípio elencar os elementos identitários presentes nos versos de Patativa
do Assaré, analisá-los e esmiuçar sua relação com a possibilidade de elaboração de uma
poética resistente ou de uma resistência poética popular nordestina.
Se há pretensão de discutir elementos identitários, imprescindível que se
considere um conceito de Identidade para, posteriormente, desmembrá-lo e
compreender seus aspectos individuais e sociais, relacionando-os mais particularmente
com a produção poética em questão e com o próprio poeta. Portanto, nesse capítulo
tomamos por base a idéia de Identidade como Metamorfose
168
, a qual considera que o
sentido de uma atividade social é o que metamorfoseia o real e cada indivíduo
169
, isto é,
a capacidade humana de atribuir sentido às coisas e situações, quando reconhecida
socialmente por um grupo, possibilita transformar a realidade e também o próprio
indivíduo; em decorrência disso pode-se afirmar a inesgotável plasticidade do ser
humano e sua gama de possibilidades vastíssima em realizar-se, o que depende apenas
de condições do meio e de condições interiorizadas.
170
167
Comentário inicial a respeito do conceito Resistência, encontrado no capítulo “Narrativa e
Resistência” da obra de BOSI, Alfredo. Literatura e Resistência, São Paulo: Companhia das Letras, 2002,
p.118-135.
168
Categoria definida por CIAMPA, Antônio da Costa. A estória do Severino e a história da Severina.
Um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 2001.
169
Ibidem, p.34.
170
Ibidem, p.35.
61
É importante ressaltar ainda que, segundo essa conceituação de Identidade,
quando as condições do meio impedem as inúmeras alternativas de realização do ser
humano de se concretizarem, é que se revela a imensa desumanidade desse próprio
grupo; nessa situação traduz-se a negação da vida, da liberdade e das possibilidades
humanas.
171
Assim considerando o que foi, até o momento, descrito nos capítulos anteriores,
as condições vividas no contexto nordestino, meio do qual se origina a poesia de
Patativa do Assaré, podem ser consideradas como desumanas e cruelmente
avassaladoras das inúmeras possibilidades de vida que todo ser humano almeja e têm,
potencialmente, condições de realizar.
Se a teoria adotada enfatiza como de suma importância para o indivíduo o meio
no qual ele se desenvolve, mostra-nos que o grupo é responsável por nossa identificação
e reconhecimento como humanos, pois reafirma e enfatiza valores
172
; são os
significados socialmente compartilhados que legitimam a realidade e a própria
identidade dos indivívuos, de acordo com Ciampa
173
, a Identidade se concretiza na
atividade social, mas necessita de condições objetivas.
174
Considerando então o meio rude do sertão, com suas condições naturais,
econômicas e sociais de aguda dificuldade, compreendemos o quanto é negado à
população sertaneja nordestina o desenvolvimento de suas possibilidades como ser
humano, e podemos considerar ainda o quanto a vida humana se desenvolve com
dificuldades nesse grupo; entretanto, como afirma a própria teoria desenvolvida por
Ciampa a respeito da Identidade, não só as condições do meio/objetivas são
extremamente importantes, mas também as condições internas dos próprios
indivíduos/subjetivas, são imprescindíveis.
Considerando tais condições internas, sem esquecer das externas obviamente, é
possível compreender melhor o desenvolvimento de uma poética que, sendo popular e
rústica, demonstra criticidade e consciência para refletir sobre a situação de seu grupo
social e propor caminhos para superação das dificuldades.
Salientando que, ainda segundo a teoria de Ciampa, o movimento decorrente
dessa metamorfose identitária humana pode ser tanto o de superação como o de
171
Ibidem, p.35-36.
172
Ibidem, p.38.
173
Ibidem, p.71.
174
Ibidem, p.86.
62
reposição
175
, e que o interesse humano racional de auto-conservação engloba não só a
reprodução da vida biológica, mas principalmente daquilo que merece ser vivido; sendo
assim importa não somente viver, mas fazê-lo com dignidade e realização pessoal.
176
Sob esse prisma considerar a poesia de Patativa como doadora de um novo e
vital sentido para a existência do povo nordestino, como poesia que restaura a
importância da vida, bem vivida, de valores humanitários, da religiosidade e de uma
consciência crítica diante da realidade inóspita; enfim como uma poesia que se faz
transformação e metamorfose identitária desse povo nordestino, portanto contestação e
resistência, esta é a ambição desse capítulo.
3.1 O poeta em obra: o fazer e o dizer do poeta, seu obrar
177
Na publicação intitulada Antologia Poética, Patativa opinou e auxiliou a escolha
de seus mais representativos poemas, pouco antes de sua morte, em parceria com o
pesquisador Gilmar de Carvalho; e, apesar das dificuldades de se fazer uma justa
seleção diante de tão vasta obra, o livro traduz, em resumo, a versatilidade do poeta.
178
Propondo uma seleção por obras publicadas e não por temas, a Antologia revela
a multiplicidade dos versos de Patativa, que pode ser aqui interpretada como um dos
principais elementos identitários de sua poesia.
Segundo a pesquisa dessa Antologia, o primeiro livro do poeta Inspiração
Nordestina surgiu, como já afirmamos anteriormente, da idéia do filólogo e bancário
José Arraes de Alencar, que se impressionou com a qualidade das produções de Patativa
ao ouvi-lo na rádio Araripe; esse livro foi publicado em 1956 por Bolsói Editor, do Rio
de Janeiro, teve uma 2ª edição em 1967 e ainda uma 3ª edição em 1999 pela UECE.
179
Dessa obra foram selecionados catorze poemas, entre os quais o pesquisador
destaca A terra é naturá, por abordar o trabalho, a festa e sua dimensão xamânica, além
de alertar para urgência da reforma agrária
180
; e também os poemas O puxadô de roda e
Ingém de ferro por sua característica de elogio às formas solidárias de convivência em
contraposição ao progresso.
181
175
Ibidem, p.233.
176
Ibidem, p.234.
177
Parafraseando o autor CIAMPA, Antônio da Costa, A estória do Severino e a história da Severina. Um
ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 2001, p.155.
178
ASSARÉ, Patativa do. Antologia Poética. Organização e prefácio de Gilmar de Carvalho, 4ª edição,
Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004.
179
Ibidem, p.20.
180
Ibidem, p.13.
181
Ibidem, p.14.
63
Pela ordem estabelecida nessa Antologia em 1970 foi publicado Patativa do
Assaré: novos poemas comentados, pela Imprensa Universitária, o livro foi organizado
pelo folclorista cratense J. de Figueiredo Filho, reúne poemas e episódios curiosos da
biografia de Patativa.
182
Dessa obra foram selecionados dez poemas, entre os quais os
famosos e polêmicos, Prefeitura sem prefeito e Caboclo roceiro.
O livro seguinte na Antologia é considerado como aquele que proporcionou à
Patativa uma divulgação mais ampla de sua obra, foi uma proposta da Fundação Pe.
Ibiapina do Crato, que teve apoio da Editora Vozes de Petrópolis, sendo editado em
1978 é o, hoje famoso, Cante lá que eu canto cá que no momento da elaboração dessa
Antologia estava em sua 11ª edição; pouco depois de seu lançamento foi título de um
encontro da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) em 1979, evento
no qual o poeta foi homenageado.
183
Sendo que desse livro, foram escolhidos oito poemas para a Antologia, e o
próprio Patativa selecionou poemas como Cante lá que eu canto cá que dá título à obra,
Eu quero que traduz posições políticas, O maió ladrão que revela uma reflexão
filosófica sobre a passagem do tempo
184
e Eu e o sertão que discute a relação entre
natureza e cultura de forma telúrica, de acordo com os comentários de Gilmar de
Carvalho.
185
Posteriormente, nessa Antologia, é citado o livro Ispinho e Fulô, publicado em
1988, organizado e prefaciado por Rosemberg Cariry, com apoio da Secretaria de
Cultura e Desporto do Estado do Ceará; segundo o organizador da Antologia, sendo
esse um livro de marcada conotação política, do qual foram selecionados também dez
poemas, obra que passou a fazer parte do catálogo da Vozes e ganhou 3ª edição da
UECE em 2000.
186
Sendo o poema O agregado e o operário, selecionado pelo próprio
Patativa para complementar a sua Antologia e enfatizar suas convicções políticas.
187
Gilmar de Carvalho considerou para essa Antologia também as publicações
pequenas, mas não menos importantes, de Patativa do Assaré e incluiu uma coletânea
dos poetas da pequena cidade de origem do poeta, intitulada Balceiro e organizada por
ele mesmo e por seu sobrinho Geraldo Gonçalves de Alencar; esse livro lançou alguns
182
Ibidem, p.94.
183
Ibidem, p.152.
184
Ibidem, p.10.
185
Ibidem, p.13.
186
Ibidem, p.196.
187
Ibidem, p.10.
64
poemas inéditos de Patativa, bem como “causos” e foi publicado também pela
Secretaria da Cultura e Desporto do Estado do Ceará, em 1991, dele foram selecionados
apenas dois poemas para compor a Antologia.
188
Estão incluídos também nessa Antologia versos publicados e lançados numa
caixa de cartolina, em 1993, contendo folhetos de Patativa e intitulado Cordéis que
foram publicados primeiramente pela gráfica Lira Nordestina de Juazeiro do Norte,
levantados por uma pesquisa do Programa Editorial da Secretaria de Cultura e Desporto;
esse mesmo material ganhou publicação como livro pelas Edições UFC, em 1999,
quando o poeta recebeu o título de Doutor Honoris Causa dessa Universidade.
189
Desses cordéis foram escolhidos cinco para compor a Antologia e, segundo Gilmar de
Carvalho, o preferido de Patativa seria Brosogó, Militão e o Diabo.
190
Na 1ª Bienal do Livro de Fortaleza, em 1994, foi lançado o livro Aqui tem coisa
de Patativa do Assaré e que também está incluído nessa Antologia, o mesmo fez parte
do Programa Editorial da Secretaria de Cultura e Desporto do Estado do Ceará,
integrando a rubrica Obras Raras e de Referência; já em 1995 esse mesmo livro foi
republicado pela UECE, com substituição de prefácio, orelhas e texto de quarta-capa.
191
Dessa obra foram selecionados quatro poemas, incluindo Mote e glosas que revelam sua
vertente de violeiro e Menino de Rua que canta o drama do menor abandonado.
192
O último livro incluído nessa Antologia, é a obra Balceiro 2, organizada por
Geraldo Gonçalves de Alencar que contém versos de Patativa, bem como registro de
desafios em motes e glosas, entre os dois poetas primos; foi publicado pela Secretaria da
Cultura e Desporto do Estado do Ceará em parceria com a editora paulista Terceira
Margem, em 2001.
193
Desse apenas dois poemas foram incluídos na Antologia.
Visando discutir os elementos identitários encontrados na obra do poeta, analisar
os seus versos e sua possível relação com a elaboração de uma poética resistente ou de
uma resistência poética, é que esse capítulo pode aproveitar-se dessa Antologia Poética
e também dos comentários tecidos pelo organizador da obra.
188
Ibidem, p.230.
189
Ibidem, p.236.
190
Ibidem, p.10.
191
Ibidem, p.306.
192
Ibidem, p.14.
193
Ibidem, p.320.
65
O dizer de Patativa, seus versos, traduz seu fazer humano em historicidade,
considerando-se que o momento de elaboração dessa Antologia aproxima-se do fim de
sua existência, enquanto homem, mas não enquanto poeta; momento em que pôde olhar
sua obra, indicar e/ou excluir suas próprias produções consideradas mais ou menos
significativas em todo seu “obrar” de poeta.
A opção pela multiplicidade, tanto de temas como de formas poéticas, apontam
para o desejo do poeta de revelar-se como ser múltiplo, como poeta-em-obra
multifacetado e em constante transformação de si e de sua obra.
Ele faz questão de selecionar e retomar àqueles em que se mostra sua
versatilidade, seja pela assimilação do conhecimento poético erudito, pela dicção
camoniana e o uso de uma gramática culta; como no caso do poema O Inferno, o
Purgatório e o Paraíso, como lembra Gilmar de Carvalho; seja pela abrangência de
temas abordados por ele em sua vasta obra: cotidiano, sertão, política, progresso,
humor, religiosidade, amor, cidadania, a própria poesia e a morte; seja pela sua origem
como violeiro que se eternizou em motes e glosas ou pelo poeta de bancada que com
suas releituras mostrou antigas histórias sob o enfoque sertanejo nordestino.
Além das obras citadas nessa Antologia, há ainda algumas já citadas em
capítulos anteriores dessa dissertação como Digo e não peço segredo (2001), organizada
por Luiz Tadeu Feitosa; e outras descobertas que não encontramos citadas pelos
pesquisadores de Patativa com os quais tivemos contato que são Ao da mesa (2001),
com prefácio de Gilmar de Carvalho traz motes e glosas de Patativa e outros poetas de
Assaré, além de Balceiro Três (2003) que também traz versos, repentes, motes, glosas e
sonetos de Patativa e parcerias com outros poetas de Assaré e foi publicada depois da
morte de Patativa do Assaré.
Se Patativa, incluindo-se na tradição de poeta nordestino, enquadra-se de alguma
forma nesse contexto e, assim sendo, faz-se mímesis de um tempo, de uma poética; seu
obrar de poeta reconstrói pela multiplicidade e pela variedade de temas e de formas de
produzir poesia uma atitude de contestação, seu fazer e seu dizer poético de homem
pobre, mas consciente de seu tempo e de seu papel, traduzem resistência aos desígnios
injustos impostos ao povo sertanejo como naturais ou divinos. Enfim, através dessa obra
antológica Patativa e o organizador mostram-nos um poeta sempre novo e nunca
66
totalmente definível; uma poética em constante transformação, construção e
desconstrução de temas, de imagens e de formas de traduzir-se.
3.2 Códigos da oralidade: o poeta popular e a constituição de uma identidade
Como afirma o pesquisador Paul Zumthor, “a voz humana constitui em toda
cultura um fenômeno central”
194
, é o suporte vocal da Língua e realiza a Linguagem de
fato; em suas pesquisas ele mesmo analisou problemas da voz e da palavra,
aprofundando suas questões sobre a palavra e a voz poética como finalidade interna. A
principal questão, levantada por Zumthor, partiu de sua inicial curiosidade por esse
movimento que compele os poetas a realizarem vocalmente sua poesia e, para além
disso, as diversas formas de poesia sonora daí decorrentes.
195
A sonoridade da poesia de Patativa, as marcas típicas da oralidade e certa
ausência do corpo que traduza as peculiaridades de seus versos em performance são
perceptíveis no poema do qual citamos aqui um trecho.
O MEU LIVRO
Meu nome é Chico Braúna
eu sou pobre de nascença,
diserdado de furtuna
mas rico de conciênça.
Nas letra num tive istudo
sou mafabeto de tudo
de pai, de mãe, de parente.
Mas tenho grande prazê
Pruquê aprendi a lê
Duma forma deferente.
ABC nem bea
no meu livro não se incerra.
O meu livro é naturá
é o má, o céu e a terra,
cum a sua imensidade.
Livro cheio de verdade,
194
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000, p.13.
195
Ibidem, p.12.
67
de beleza e de primô,
tudo incadernado, iscrito
pelo pudê infinito
do nosso Pai Criadô.
196
Patativa do Assaré inclui-se na linhagem de cantadores sertanejos, dando
continuidade a essa tradição século XX adentro
197
; cresceu em meio ao trabalho rural,
bem como presenciando leituras de folhetos e apresentações de cantadores e violeiros
do Nordeste. O personagem principal desse poema, chamado Chico Braúna, mostra-nos
um eu-poético que defende em linguagem popular a sabedoria popular, o senso comum
e a consciência crítica como constituintes do ser humano, graças à sua racionalidade;
vale ressaltar, ainda, que o poema atribui essa racionalidade como diretamente
relacionada ao Pai Criador.
É PRECISO SABER COMPOR SONETO
(...)
Patativa- Poesia é um dom da Natureza
Que nos enche de graça e de alegria
Mesmo o tema tratando de ironia,
De revolta, de choro e de tristeza.
Foi Olavo Bilac com certeza,
Com o Guima na sua companhia
Nos mostrando a maior filosofia
Versejando com muita realeza.
Pois conheço a ciência bem completa
Para o cara provar que é bom poeta
É preciso saber compor soneto.
198
196
ASSARÉ, Patativa do. Ispinho e fulô. Fortaleza, Secretaria de Cultura, Turismo e Desporto/Imprensa
Oficial do Ceará, 1988, p.67.
197
ASSARÉ, Patativa do. Patativa do Assaré uma voz do nordeste. Int. e Sel. Sylvie Debs, p.9.
198
Glosa para seu próprio Mote, para sonetos, encontrado na obra ASSARÉ, Patativa do e ALENCAR,
Geraldo Gonçalves de. Ao pé da mesa: motes e glosas. São Paulo: Terceira Margem; Ceará: Secretaria da
Cultura e Desporto do Estado do Ceará, 2001, p.149.
68
Após o reconhecimento público de sua obra, o próprio poeta afirma sua poesia
como dom desenvolvido ‘de ouvido’ e melhorada com o tempo e a leitura do livro de
versificação de Olavo Bilac e Guimarães Passos, portanto sua origem poética baseada
nos códigos da oralidade, como pudemos observar em seus versos no soneto citado
anteriormente.
A POESIA É UM DOM
DADO PELA NATUREZA
(...)
Patativa- Geraldo eu digo a verdade
Com muita filosofia
Eu tenho na poesia
A maior felicidade
A Divina Majestade
Com seu poder e grandeza
Me entregou esta riqueza
Sempre faço verso bom
A poesia é um dom
Dado pela natureza.
199
Inserido nesse contexto sertanejo, Patativa sofre influências das tradições dos
trovadores, dos repentistas, dos violeiros e da literatura de cordel; faz-se poeta
testemunha de um modo de vida, tipicamente rural, que reivindica valores e elabora sua
própria identidade. Descreve a vida cotidiana no sertão, mas principalmente protesta e
propõe o reconhecimento da dignidade e da integridade do povo sertanejo.
200
Sob essa condição de herdeiro de toda uma tradição nordestina, Patativa elabora
sua obra, inicialmente, marcada pelo aspecto lúdico e comemorativo, com poemas
associados a acontecimentos sociais, fatos religiosos, festas de casamento e de
padroeiros; como improviso declamado em momentos diversos do cotidiano, ato
efêmero e circunstancial, livre da rigidez e permanência do escrito, portanto tipicamente
oral.
201
199
Ibidem, p.119.
200
ASSARÉ, Patativa do. Patativa do Assaré uma voz do nordeste. Int. e Sel. Sylvie Debs, p.14.
201
Ibidem, p.20-21.
69
Essas características originárias da poética de Patativa, no entanto, permanecem
mesmo depois da transcrição e passagem de seus poemas para o registro escrito,
elementos da oralidade permanecerão intactos, talvez como marca essencial de sua
poesia. O recurso sistemático do emprego da língua como é falada, do estilo e pronúncia
popular, denominada por alguns como o uso da língua cabocla, representa uma dessas
principais marcas.
202
PEGUE UM VERSO E VÁ EMBORA
(...)
Patativa- Você com sua indireta
Quer dar prova positiva
Dizendo que o Patativa
Não é um grande poeta
Eu faço a rima completa
Improvisando na hora,
Meu verso nunca demora
Nesta lira sertaneja
Deixe de tanta peleja
Pegue um verso e vá embora.
203
Outra marca significativa da poética de Patativa é a forte presença da função
conativa da linguagem, como uma interpelação do leitor ouvinte, seja nos títulos dos
poemas ou nos primeiros versos de alguns deles, como uma introdução a um ritual
discursivo.
204
Há ainda o emprego de tom familiar que sublinha uma relação de
vizinhança com o leitor, através do qual Patativa iguala a si mesmo enquanto poeta e ao
seu público alvo.
205
No caso da glosa citada acima, percebemos essa interpelação do
leitor ouvinte, tanto no título (mote) como no decorrer dos versos; e é possível notar
ainda certo tom familiar que enfatiza a proximidade, senão a presença, do ouvinte.
A própria figura histórica de Patativa, emblemática do caboclo do sertão, traz em
si características dessa oralidade, não tendo jamais escrito seus versos, fez uso
unicamente da memória e da fala, tanto nas composições do início de carreira como nas
202
Ibidem, p.21.
203
Glosa para seu próprio Mote, encontrado na obra ASSARÉ, Patativa do e outros. Balceiro Três.
Geraldo Gonçalves de Alencar e Jurandy Temóteo (Orgs), Crato: A Província, 2003, p.78.
204
ASSARÉ, Patativa do. Patativa do Assaré uma voz do nordeste. Int. e Sel. Sylvie Debs, p.22-23.
205
Ibidem, p.23.
70
mais recentes, e ainda continuou a improvisar com agilidade mesmo na velhice. O que
ele dizia era transcrito por outros para o papel, mas seu discurso permaneceu fiel aos
códigos da transmissão oral.
206
Analisar a poética de Patativa nos leva, forçosamente, a adentrar no “campo
movediço da memória, com a recuperação de fragmentos, de trechos de poemas”
207
e
atentar constantemente para a problemática do registro escrito da oralidade. No caso
particular de Patativa, a transcrição e publicação dos versos ocorreu sem regras pré-
estabelecidas; “cada livro foi ditado a uma pessoa diferente, ficando a revisão e a
padronização dessa escritura para uma futura edição crítica.”
208
Essa poética baseada em
códigos da oralidade reafirma a importância da voz, já que se caracteriza como uma
produção para ser dita/cantada ou lida em voz alta; a realização em plenitude dessa
poesia envolve a performance, o gesto, o corpo todo em expressão, como bem afirma
Gilmar de Carvalho.
209
Os estudos que constituíram um exame crítico da idéia de oralidade, em
diferentes regiões do mundo, analisaram o funcionamento da voz poética, chegando a
conclusão que a performance oral é o único modo eficaz de comunicação poética e
caracteriza-se como um fenômeno heterogêneo; porém, elaborou-se uma hipótese de
relação entre essa performance oral e a leitura, como espécie de continuidade baseada
no desejo.
210
O que ocorre em toda a trajetória, bem como em toda obra de Patativa é a
transposição de um discurso oral e performático
211
, para a rigidez e a permanência do
registro escrito; seus poemas memorizados e declamados com fluidez em locais
públicos adquirem, com a fixação escrita, a possibilidade de permanência temporal e de
expansão espacial, ampliando seu público através da leitura. Talvez pela hipótese de que
a leitura represente continuidade da performance oral com base no desejo, seja possível
a ampla assimilação pelo grande público da poesia de Patativa, que através da escrita e
da leitura amplia o contato com as mais diversas classes sociais e desperta o prazer,
mesmo distante da performática expressão de sua poesia oral.
206
Ibidem, p.23-24.
207
ASSARÉ, Patativa do. Antologia Poética. p.11.
208
Ibidem.
209
Ibidem, p.11-12.
210
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. p. 39-40.
211
Ibidem, p.59 “A performance é outra coisa. Termo antropológico e não histórico, relativo, por um lado,
às condições de expressão, e da percepção, por outro, (...) designa um ato de comunicação como tal”.
71
É claro que todo registro escrito da poética de Patativa é um documento
extremamente importante, mas carrega em si o caráter de falta, de perda dessa
importante dimensão da voz e do corpo.
212
3.3 Corpo, Letra e Voz: proximidades entre o oral e o escrito
A proposta teórica de Paul Zumthor, com sua inversão indutiva, aprofunda as
análises a respeito da natureza do poético, concentra sua atenção sobre o papel do corpo
na leitura e na percepção do literário, como aquele que reage ao prazer da leitura em
todo seu conjunto de órgãos, percepções e sentidos.
213
O autor não considera a leitura
somente como decodificação de um grafismo e enfatiza que o ato de ler não envolve
somente os elementos informativos a serem decodificados, acrescentam-se à estes
aqueles que propiciam prazer e constituem critério de poeticidade.
214
Zumthor comenta ainda que em seus estudos literários tomando por base o corpo
e a voz esbarrou em problemas de método, e afirma que perseguiu sempre em suas
análises o funcionamento, as modalidades e o efeito das transmissões orais da poesia;
considerando a voz, portanto, como emanação do corpo que o representa plenamente em
nível sonoro.
215
Enfatiza o imprescindível papel de poeticidade da performance do poeta
ao declamar seus poemas, argumenta que mesmo com o texto em mãos e realizando a
leitura não se obtém o mesmo conjunto de sensações vividas no momento do espetáculo
da performance. Salienta que a tentativa do leitor de cantarolar, declamar, como faz o
poeta em sua performance, pode trazer uma ilusão um pouco mais forte dessa presença
corpórea, mas não a substitui.
216
Para esse pesquisador, a performance é uma noção central no estudo da
comunicação oral, compreende e engloba não só a voz, mas o tempo, o local, a
finalidade da transmissão, a ação do locutor e também a resposta do público. Todos
esses elementos importam e muito na comunicação, nesse processo baseado na
oralidade, incorrendo em reducionismo o estudo literário que só trate do escrito, do
texto e desconsidere a forma global de uma obra performatizada.
217
212
ASSARÉ, Patativa do. Antologia Poética. p.11-12.
213
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. p. 28.
214
Ibidem, p.29.
215
Ibidem, p.31.
216
Ibidem, p.33.
217
Ibidem, p.35.
72
Ao debruçarmo-nos sobre a obra de Patativa, é imprescindível, portanto,
considerar tais elementos da performance e seus efeitos no processo de receptividade de
sua poesia pelo público; o insubstituível papel do seu corpo e de sua teatralidade ao
declamar seus poemas, motes e glosas para os diversos grupos; a fatídica importância do
momento histórico vivido e compartilhado pelo poeta e seu público no momento de um
improviso de versos ou de um poema especialmente preparado para determinada
circunstância; e é claro que a resposta imediata do público às apresentações
performatizadas revela muito dessa obra. Para nossa análise póstuma, entretanto,
permanece o caráter de falta, já que não mais podemos presenciar tais momentos de
deleite ante a figura performática de Patativa, a não ser em vídeos e reportagens que
recuperam em parte esses elementos.
É interessante salientar ainda que, de acordo com Zumthor, a performance
envolve um papel didático, não sendo simplesmente um meio de comunicação; ela se
liga ao conhecimento que transmite, modifica-o e o marca.
218
E transpondo tais
elementos propostos pelo pesquisador para a análise da obra de Patativa percebemos
também seu papel didático e pedagógico na constituição de uma identidade nordestina,
não só pela transmissão de uma mensagem através do discurso poético, mas também
pela revelação de uma postura ante a realidade.
Considerando que nossa análise da obra de Patativa restringe-se ao texto escrito,
isto é, às obras publicadas do poeta e de seus comentadores e estudiosos, interessa-nos a
análise do ato de ler elaborada por Paul Zumthor; o pesquisador percebe similaridades
entre leitura e performance, afirma que a leitura também provoca reações no corpo de
quem lê, porém em grau diferenciado.
219
O autor afirma a poesia e a escrita como práticas discursivas que insurgem como
uma revolta contra o tempo, produtoras de uma certa ruptura como real, através de um
encontro saboroso entre linguagem e técnica.
220
Seja no momento da realização da
performance ou num ato de leitura, aquele a quem se dirige o texto, seu público,
percebe-se envolvido num clima de teatralidade, numa situação de alteridade espacial,
que se traduz em reações corporais.
Sob esse enfoque, e cientes da situação de falta em que nossa análise se
posiciona, dado o falecimento de Patativa e a impossibilidade de presenciarmos suas
218
Ibidem, p.37.
219
Ibidem, p.38-40.
220
Ibidem, p.56-58.
73
apresentações públicas ou entrevistá-lo, nosso objeto reduz-se aos textos do poeta e aos
comentários já elaborados por outros pesquisadores. No entanto não podemos
desconsiderar o sucesso da obra de Patativa, nos diversos meios econômicos da nossa
sociedade, a ampliação do número de seus leitores e de interessados em compreender
sua obra, independentemente da ausência de sua performance original.
3.4 Poesia em prosa: outros elementos
Entretanto, além da típica oralidade, algo mais caracteriza a poesia de Patativa
como popular, sua própria origem social, bem como a de seu público alvo inicial, e
também os temas por ele abordados, a função do poeta segundo seu ponto de vista e a
filosofia empregada por ele ao longo de sua obra. Temas próprios ao povo, personagens
e ambiência característicos e tradicionais do sertão, e principalmente o caráter educativo
e reflexivo marcam a poesia de Patativa do Assaré, já que de forma lúdica sempre são
introduzidos pelo poeta valores morais tradicionalmente herdados ou adquiridos pela
experiência. Alguns pesquisadores, como Sylvie Debs consideram que a poesia de
Patativa revela uma concepção de mundo ou ‘filosofia’ baseada no chamado
humanismo cristão e constituída com referências no cotidiano.
221
Em seus versos, ele discorre sobre o papel do poeta, definindo-o como um
doente alucinado que sofre de um mal incurável:
QUADRAS
Ser trovador é ser louco,
É cantar a desventura,
Morrendo de pouco a pouco
De um cancro que não tem cura.
222
Caracteriza-o como aquele que busca insaciavelmente o inexorável, como
necessidade última:
QUADRAS
O poeta é um vagabundo
Que vive vagando além,
Procurando neste mundo
221
ASSARÉ, Patativa do. Patativa do Assaré uma voz do nordeste. Int. e Sel. Sylvie Debs, p.24-28.
222
ASSARÉ, Patativa do. Inspiração Nordestina: cantos de Patativa, p.219.
74
O que este mundo não tem.
223
A função do poeta popular, conforme depoimentos do próprio Patativa, envolve
o papel de educador que trabalhe em benefício de seu povo, visando o bem comum;
principalmente no caso particular da realidade nordestina, no qual a miséria, o
analfabetismo e ausência de estruturas educativas geram ainda mais exclusão. O poeta
popular, segundo ele próprio, deve despertar a consciência cívica e política,
solidarizando-se com a luta de seu povo, no reconhecimento e na busca por direitos.
Através de seus versos, portanto, Patativa exerce tal função e a reforça ao mesmo
tempo, denunciando a morosidade política, o descaso com a situação da seca e
reivindicando inclusive a reforma agrária para melhora na qualidade de vida do
sertanejo.
224
No poema intitulado Ao Leitô, define sua obra e alerta para características de sua
poética:
Leitô, caro amigo, te juro, não nego,
Meu livro te entrego bastante acanhado,
(...)
É simpre, bem simpre, modesto e grossêro,
Não leva o tempero das arte e da escola,
É rude poeta, não sabe o que é lira,
Saluça e suspira no som da viola.
Tu nele não acha tarvez, com agrado
Um trecho engraçado que faça uma escôia,
Mas ele te mostra com gosto e vontade,
A luz da verdade gravada nas fôia
(...)
Em vez de prefume e do luxo da praça,
Tem chêro sem graça de amargo suó,
Suó de cabôco que vem do roçado,
223
Ibidem, p.221.
224
ASSARÉ, Patativa do. Patativa do Assaré uma voz do nordeste. Int. e Sel. Sylvie Debs, p.28.
75
Com fome, cansado e queimado do só.
225
As reivindicações, contidas no discurso poético de Patativa, caracterizam-se pela
pertença a esse universo tipicamente sertanejo, manifestam as aspirações sociais,
políticas e econômicas desse povo excluído. O poeta reafirma como qualidades
fundamentais desse povo sertanejo, ante tantas dificuldades, a coragem, a paciência e a
resistência; estabelece assim sua identificação particular com esse público sertanejo e
com sua vida difícil numa terra hostil.
226
A Lira Selvagem de Patativa, ou seja, sua poesia, caracteriza-se pela busca de
compreensão e definição do mundo, através de uma afiada crítica social que se tornou
referência poética para a posteridade.
Seu verso, seu canto de pássaro patativa, ganhou distância e elevou-se pelo país
e pelo mundo através das diversas ondas midiáticas; fazendo-se universal e assumindo
dimensão profética, por sua inserção no presente, seu respeito pela tradição e sua
projeção para o futuro.
227
Sua poética popular é trabalhada com recursos e informações da memória
popular tradicional, porém de modo a atualizá-los, situando essa tradição no contexto
contemporâneo.
228
Sua poesia, caracteristicamente oral em sua origem, ganha
permanência ao tornar-se livro; entretanto não perde sua força originária mesmo sendo
amplificada pelas diversas mídias: rádio, televisão, imprensa.
229
A divulgação da obra de Patativa pelos diversos mídia: visual (escrita), auditivos
(rádio, cd, k7) e audiovisuais (vídeo, cd-rom, dvd), apesar de possibilitar sua
permanência no tempo e ampliar o público atingido e estabelecido, traz penosas
conseqüências que atingem em cheio suas características performáticas.
230
Os meios
auditivos e visuais podem inclusive caracterizar certa revanche, certo retorno forçado da
voz, mesmo que fixa e mediada eletronicamente; voz que perde sua tactilidade, seu
225
ASSARÉ, Patativa do. Inspiração Nordestina: cantos de Patativa, p.13.
226
ASSARÉ, Patativa do. Patativa do Assaré uma voz do nordeste. Int. e Sel. Sylvie Debs, p.30-31.
227
CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré, p.12.
228
Ibidem., p.71.
229
Ibidem., p.73.
230
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. p.17.
“1. abolem a presença de quem traz a voz;
2.mas também saem do puro presente cronológico, porque a voz que transmitem é reiterável,
indefinidamente de modo idêntico;
3. (...) tendem a apagar as referências espaciais da voz viva: o espaço em que se desenrola a voz
midiatizada torna-se ou pode tornar-se um espaço artificialmente composto.”
76
caráter efêmero, mas ressurge como energia humana reprimida pelo curso hegemônico
da escrita
231
, mas este é um ponto importante que retomaremos mais adiante
Ao retratar questões políticas regionais em seus versos, Patativa compara o
camponês do sertão a um peixe inocente diante do anzol, quando da campanha eleitoral,
por ser facilmente iludido com as promessas características desse período.
232
Tema
constante na obra de Patativa é a política, principalmente a típica “má política” exercida
em sua região e no Brasil em geral; que traz consigo grandes malefícios a toda nação.
O poeta afirma, também em seus versos, que operários e camponeses sofrem da
mesma opressão e, mesmo assim, permanecem ausentes um do outro; os agregados sem
posse de sua terra e os operários sem posse de sua casa. Convoca então essas duas
classes oprimidas a se darem às mãos fraternalmente para juntos buscarem soluções.
233
Patativa segue esse poema, propondo a aliança e o entendimento entre as duas classes,
em busca de reivindicações de Democracia e direitos humanos.
Noutro poema, o qual narra sua participação na campanha das Diretas Já,
Patativa convoca a todos: camponeses, operários, estudantes, artistas e poetas;
chamando-os de companheiros e incluindo as donas de casa, lavadeiras e cozinheiras,
com o objetivo de abalar toda a massa, segundo ele.
234
Aguçando seu tom de crítica,
Patativa clama à Democracia e critica a demagogia do veto ao voto; questiona o fato de
“o Brasil de cima” não enxergar “o Brasil de baixo”, dos representantes que não vivem
como o povo e não reconhecem suas dores.
No ano de 1966, Patativa quase foi preso devido a um poema chamado Caboclo
Roceiro, no qual fala do roceiro do Norte, que não tem sorte e vive choroso e cativo. Em
seus versos, Patativa descreve o roceiro como braço que move a cidade, com seu
trabalho rural de enxada e palhoça; e também como aquele que erroneamente considera
Deus vingativo, sem perceber a opressão dos ingratos que lhe tomam a terra.
235
Um de seus poemas clássicos, bastante divulgado, refere-se ao lugar do poeta
popular; delimita seu território de atuação, bem como salienta as particularidades de seu
discurso peculiar em contraposição ao discurso poético corrente nos centros urbanos.
231
Ibidem, p.18.
232
ASSARÉ, Patativa do. Digo e não peço segredo, p.40.
233
Ibidem, p.45.
234
Ibidem., p.58.
235
Ibidem, p.95.
77
CANTE LÁ, QUE EU CANTO CÁ
Poeta, cantô da rua,
Que na cidade nasceu,
Cante a cidade que é sua,
Que eu canto o sertão que é meu.
(...)
Você é munto ditoso,
Sabe lê, sabe escrevê,
Pois vá cantando o seu gozo,
Que eu canto meu padecê.
Inquanto a felicidade
Você canta na cidade,
Cá no sertão eu infrento
A fome, a dô e a misera.
Pra sê poeta divera,
Precisa tê sofrimento.
Sua rima, inda que seja
Bordada de prata e de oro,
Para a gente sertaneja
É perdido este tesôro.
Com o seu verso bem feito,
Não canta o sertão dereito,
Porque você não conhece
Nossa vida aperreada.
E a dô só é bem cantada,
Cantada por quem padece.
(...)
Canto as fulô e os abróio
Com todas coisa daqui:
Pra toda parte que eu óio
Vejo um verso se bulí.
Se as vez andando no vale
Atrás de curá meus male
Quero repará pra serra,
Assim que eu óio pra cima,
78
Vejo um diluve de rima
Caindo inriba da terra.
Mas tudo é rima rastêra
De fruita de jatobá,
De fôia de gamelêra
E fulô de trapiá,
De canto de passarinho
E da poêra do caminho,
Quando a ventania vem,
Pois você já tá ciente:
Nossa vida é deferente
E nosso verso também.
(...)
236
Ressaltando as diferenças entre a realidade rural sertaneja e a urbana, Patativa
salienta que são concepções de mundo diferentes e, portanto, produtoras de uma poesia
diferente; não necessariamente excludentes e aniquiladoras entre si, mas que
compreendem processos identitários diferentes. O poema é construído com elementos
comuns ao sertanejo, ao seu meio natural e às suas referências identitárias de sofrimento
e trabalho; valoriza sua concepção de mundo, sua atitude diante da vida e reforça a
importância de sua própria ação visando a melhoria de sua qualidade de vida, além de
insistir no importante papel da poesia como constituída e constituinte na identidade
sertaneja.
3.5 Poética em contraponto: contestação e resistência
A partir das considerações a respeito da Literatura e suas relações com o
tempo histórico, podemos afirmá-la como reflexo desse ritmo dialético da história;
entretanto, como bem lembra Otto Maria Carpeaux
237
, ela não só acompanha o ritmo
dialético da história, como um mero documento de situações e transições sociais. Entre
Literatura e Sociedade, ainda segundo o mesmo autor, ocorre algo de muito mais
complexo que uma relação de mera dependência; diversos fatores, entre os quais,
236
ASSARÉ, Patativa do. Cante lá, que eu canto cá: filosofia de um trovador nordestino, p.25-29.
237
Epígrafe do autor citada por BOSI, Alfredo. Literatura e Resistência. São Paulo: Cia das Letras, 2002,
p.7.
79
ideológicos, sociais, econômicos e estilísticos, concorrem de modo a gerar
interdependência e complexidade.
Para Alfredo Bosi, o modo mais plausível de abordagem da Literatura supõe
um historicismo aberto, largo e profundo, isto é, a persistência em considerar as
particularidades de cada obra literária e de cada autor, para além de seu contexto
histórico, como um sistema que a condiciona, a atravessa e a transcende.
238
Ao propor a
constituição de uma história da Literatura brasileira, o autor argumenta em favor da
possível descontinuidade das obras produzidas no decorrer do tempo histórico,
considerando seu caráter de representante das individuações descontínuas do processo
cultural, que podem exprimir reflexos, distanciamentos, problematizações e até rupturas
ou negações das convenções.
239
Em outra de suas obras, reflete mais detidamente a respeito da linguagem
poética, como um dos aspectos da Literatura sobre o qual pesa, ainda mais, esse caráter
de complexidade e de múltiplas relações de interdependência com o contexto histórico.
Segundo ele, a poesia não se integra nos discursos correntes da sociedade
240
,
permanecendo sob formas estranhas e sobrevivendo mesmo nesse meio hostil; afirma
ainda que a poesia pode representar resistência sob variadas formas, seja através de sua
forma mítica, de um lirismo de confissão ou de sátira, paródia, utopia.
241
Na publicação da obra Cante lá que eu canto cá de Patativa do Assaré, dois
pesquisadores fazem as apresentações do poeta, com comentários que podem ser
analisados como complementares, Francisco Salatiel de Alencar
242
denomina Patativa
de ‘poeta compassivo’ e diz que seu canto não seria protesto ou demonstraria revolta,
somente revelando compaixão pelo povo. Enquanto que o pesquisador Plácido Cidade
Nuvens
243
, na mesma obra, vislumbra o caráter utópico da obra de Patativa e enfatiza a
238
Ibidem, p.9.
239
Ibidem, p.10.
240
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 6ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.165.
241
Ibidem, p.166.
242
“Patativa do Assaré, o poeta do ‘sertão sofredor’, tem uma inesgotável capacidade de comunhão e
simpatia pelos que sofrem, pelos que vivem humilde e pobremente, pelos fracos, pela gente simples do
nosso povo.
Seu canto não é de protesto, nem de revolta, mas de compaixão”. Trecho da apresentação escrita por
Francisco Salatiel de Alencar, na obra de ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá: Filosofia de
um trovador nordestino. 8ª edição. Petrópolis: Vozes, 1992, p.10.
243
“Na linguagem espontânea do povo, Patativa aborda o problema brasileiro que um estudioso de
renome diagnosticou como ‘a concomitância do não-coetâneo’, numa sofisticada interpretação
sociológica.
A realidade local emerge com toda sua vitalidade na poesia de Patativa. Não apenas na candura lírica do
seu telurismo acendrado. Mas numa configuração social bem delineada. E não apenas na sensibilidade
80
importância do conteúdo ‘social’ de sua poesia, pela compreensão dos problemas
humanos vividos cruamente na realidade do sertão nordestino, que o poeta capta e
descreve em abrangência, com sensibilidade e sofisticada interpretação.
Fica inegavelmente perceptível o caráter compassivo dos versos de Patativa,
de sua identificação com sua origem e com o povo sertanejo, porém também permanece
evidente o tom utópico desses mesmos versos; apesar de concordar com Salatiel no que
diz respeito à raiz cristã bíblica dos versos de Patativa, que vê nos pobres os escolhidos
de Deus e de Jesus que vem libertar e restaurar a dignidade, e de também perceber que
seu discurso não é fatalista ou providencialista, já que o poeta reconhece as causas
humanas dos males do sertão; considero bastante pertinente a apresentação elaborada
por Nuvens que atenta para a forte presença do caráter social no discurso poético de
Patativa.
Ao reinterpretar e, depois de tantos outros, me propor analisar aspectos da
poética de Patativa, recuso-me a definir ou enquadrar esta obra, sob um único emblema,
seja de “compassivo” ou de “social”; até mesmo e talvez exatamente por considerar o
desenvolvimento da identidade humana semelhante à metamorfose, enquanto processo
contínuo, considero que a poesia de Patativa revele constantemente esse processo de
mudança em sua obra, bem como em sua vida.
Alfredo Bosi supõe vários caminhos de resistência poética, entre os quais o da
poesia mítica
244
como aquela que responde ao presente ressacralizando a memória
como base da infância recalcada, na qual as figuras da infância e da tradição assumem
sentido encantador, proporcionando o reencontro do adulto com o mundo mágico da
criança. E ao deparar-nos com versos de Patativa, como não reconhecê-lo um, também,
poeta mítico que, como comenta Bosi, iguala-se a Manuel Bandeira e Jorge de Lima, ao
proporcionar o encontro com o mundo mágico da criança nordestina.
245
Como poesia mítica, a obra de Patativa se enquadra, pois recupera figuras e
sons
246
, faz-se poesia da natureza e da saudade, revelando o poeta como uma
consciência que se volta para aquilo que não é, ainda, consciência
247
; ao falar da
descritiva, mas numa rigorosa interpretação que aponta (...) a preponderância da estrutura agrária (...)
como responsável pela ‘situação precária’ do camponês (...)
É possível vislumbrar na obra poética de Patativa as utopias sertanejas, minidimensionadas (...)”. Trecho
da apresentação escrita por Plácido Cidade Nuvens, na obra de ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu
canto cá: Filosofia de um trovador nordestino. p.13-14.
244
BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da poesia. 6ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.174.
245
Ibidem, p.176.
246
Ibidem, p.179.
247
Ibidem.
81
natureza, das plantas
248
e dos bichos como o Jumento
249
, dos maquinários, das
ferramentas
250
, de algum pássaro ou outro animal
251
, Patativa se mostra um
representante dessa poesia mítica, marcada pela resistência ao tempo do domínio e do
cálculo no qual vivemos.
252
Apesar de caracterizar-se pelo circuito presente-passado-presente, derivando
possível estagnação; essa poesia mítica pode incluir momentos sofridos da realidade e
engendrar certa recusa ao presente, com vistas a um futuro diferente.
253
Como exemplo poético similar ao da poesia mítica, encontrado na obra de
Patativa, podemos citar os versos que seguem abaixo, lembrando que diversos outros
poemas poderiam ser enumerados, prevalecendo aqui a preferência pessoal de quem os
lê e analisa.
O PUXADÔ DE RODA
(...)
Eu sei que seu moço dêxa
Eu contá minhas razão,
Pois eu tenho munta quêxa
Da tá civilização.
Escute, que eu vô dizê
Promode o senhô sabê,
E tê bem conhecimento
Do bicho que me incomoda:
Eu sou puxado de roda,
De roda de aviamento.
Sim, senhô, sou puxadô.
Naquele tempo passado,
Por todos agricur
Da serra eu fui percurado.
248
Poemas como “Eu e o Sertão”, “O paraíso do Crato”, “A festa da natureza” e “A terra é Naturá”
contidos na obra de ASSARÉ, Patativa do. Cante lá, que eu canto cá: filosofia de um trovador
nordestino, 1992.
249
Poemas como “Meu caro jumento” e “O Burro”, contidos na mesma obra citada anteriormente.
250
Poemas como “Minha impressão sobre o trem de ferro” e “Minha vingança” contidos na obra de
ASSARÉ, Patativa do. Aqui tem coisa. São Paulo: Hedra, 2004. E também os poemas “Ingém de Ferro” e
“O puxadô de roda” contidos na obra de ASSARÉ, Patativa do. Cante lá, que eu canto cá: filosofia de um
trovador nordestino, 1992.
251
Poemas como “O Vim-vim”, “O Pica-Pau”, “Vaca Lavandeira”, “O Sabiá e o Gavião” contidos
também na mesma obra.
252
BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da poesia. 6ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.181.
253
Ibidem, p.185.
82
(...)
Sei que o senhô não conhece
E também não adivinha
O ilugio que merece
Uma casa de farinha;
Pois seu dotô tem vevido
Na capitá, invorvido
Na política danada,
Discuçando na Sembréia,
Não pode tê boa idéia
Do que é uma farinhada.
(...)
Sinto o meu corpo gelá,
Meu coração triste chora
Quando eu pego a me lembrá
Das farinhada de otrora,
(...)
Hoje tudo tá mudado,
Tudo que é bom leva fim,
Porém naquele passado
Eu me orguiava de mim!
De todos trabaiadô
Da desmancha, o puxadô,
Com sua força aprovada,
É sempre o mais preferido,
E tombém o mais querido
Do povo da farinhada
(...)
Seu moço, fique ciente
Que as farinhada dagora,
Tudo é triste e deferente
Das farinhada de otrora.
Me lembro, nome por nome,
Das muié, tombém dos home;
83
(...)
Eu trago tudo guardado
Na minha maginação,
(...)
(...)
Mas hoje, nas farinhada,
Nem histora, nem toada,
Nem mermo adivinhação,
Tudo é tristeza e deslêxo,
E eu, seu moço, só me quêxo
Do diabo da invenção.
(...)
Mas quando chegou na serra
O danado do motô,
Este estrangêro enxerido,
Fazendo grande alarido,
O meu prazê se acabou.
(...)
Era boa a vida minha,
E o tempo, não era mau,
Quando as casa de farinha
Só tinha roda de pau.
Quando os galo miudava,
Os trabaiadô já tava
Cantando suas toada,
Mas o diabo da ingresia
Tirou toda poesia
Que havia nas farinhada.
(...)
Motô, tu és um castigo!
Bicho feio, sem futuro,
Sou sempre o teu inimigo,
Te dou figa e desconjuro
84
Do mestre que te inventou,
(...)
Tu é o pió instrumento
Que já fizero na terra,
Acabou o divertimento
Da riba da nossa serra;
Eu morro e não te perdôo,
Safado, eu te amaldiçôo
Com toda a tua zoada,
Em nome das rapadêra,
Lavadêra e cuzinhêra
Das alegre farinhada.
254
Nesse poema exemplar, o poeta revela sua consciência voltada àquilo que não
é consciência, o eu-poético narrador representa e dá voz à máquina inanimada através
de um discurso saudosista e, profundamente, resistente aos novos tempos. Como uma
personificação do puxador de roda, o eu-poético traduz queixas à civilização,
enaltecendo sua própria importância para a vida sertaneja; enumerando características
humanas como corpo, coração, voz e consciência, o poeta refere-se a essa máquina.
No decorrer dos versos, o passado é lembrado com saudades, como período
em que o puxador era motivo de orgulho e preferência entre os membros da farinhada.
Em oposição ao que ocorria no passado, o poeta denuncia a coisificação das relações, a
despoetização das ações cotidianas no mundo moderno; a imaginação associada à
memória é usada como recurso auxiliar de saudosismo e comparação. As inovações
tecnológicas, como a chegada do motor, representam progresso e desenvolvimento;
mas são descritas no poema enfatizando as conseqüentes alterações nas relações
humanas e o esvaziamento de seus sentidos.
Percebe-se, portanto, nesse poema de Patativa certa resistência ao mundo pós-
industrial
255
, no qual prevalecem o domínio e o cálculo; nota-se uma recusa ao presente,
uma ressacralização da memória, na qual a tradição assume um sentido encantador e
quase mágico.
254
ASSARÉ, Patativa do. Cante lá, que eu canto cá: filosofia de um trovador nordestino, 1992, pp.340-
348.
255
Entende-se aqui mundo pós-industrial como civilização tecnológica, em toda sua tendência sufocante
diante das variadas formas de cultura e de sua costumeira imposição do modelo baseado na sociedade de
consumo. ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. p.73.
85
Através da definição de poesia sátira, épos revolucionário e poesia utópica
256
propostas também por Alfredo Bosi, é possível analisar e perceber afinidades com a
poética de Patativa do Assaré. Nessa linhagem da poesia, segundo o autor, o modo de
resistência preferido é o ataque, no qual o poeta-profeta busca atingir diretamente as
circunstâncias de seu momento
257
, vivendo uma constante tensão, recusando seu
presente e, apresentando através da imagem e do desejo, uma invocação ao futuro
aberto de possibilidades.
258
Patativa como poeta-profeta revela em seus versos o agora, de seu tempo, mas
move-se na direção do ainda não, como antecipação do novo tempo, de um futuro
utópico.
259
No entanto, somente o contexto da obra poética pode ajudar-nos a decifrar
se essa crítica-sátira é conservadora ou realmente revolucionária, se essa palavra
poética clama ao passado ou ao futuro; e qual a relação proposta entre recusa e
utopia.
260
Segundo Bosi, o lugar de onde se move uma autêntica sátira-crítica constitui-
se como um topos negativo, caracterizado pela recusa aos costumes, à linguagem e ao
modo de pensar corrente.
261
E, nesse ponto exatamente, como não identificar de
imediato a poesia de Patativa como um discurso que ecoa a partir de um topos negativo;
que critica novos costumes e valoriza a moral tradicional, que se coloca numa
linguagem totalmente própria e singular como representante de um grupo ou classe
definida e que recusa o modo de pensar e agir correntes em seu tempo e crê num novo
tempo.
Nos diversos poemas de Patativa, é possível notar características desse topos
negativo, seja ao comentar de modo crítico os costumes modernos, que contrariam a
moral tradicional, seja através de sua linguagem matuta, marcada pela oralidade, ou
ainda ao criticar diretamente o modo de pensar de seu contemporâneos, através da
poesia. Como exemplo, no poema que citamos a seguir são notáveis alguns desses
elementos de boa negatividade.
256
“A sátira e, mais ainda o épos revolucionário são modos de resistir dos que preferem à defesa o ataque.
(...) O poeta-profeta que, em vez de voltar as costas e perder-se na evocação de idades de ouro, revela-se e
fere no peito a sua circunstância”. BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da poesia, 2000, p.187.
257
Poemas como “Menino de rua”, “Melo e meladeira”, “Meu avô tinha razão e a justiça tá errada”,
“Reforma agrara é assim”, “O bode de Miguel Boato e o efeito da maconha” contidos na obra de
ASSARÉ, Patativa do. Aqui tem coisa. São Paulo: Hedra, 2004.
258
BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da poesia, p.187.
259
Ibidem, p.188.
260
Ibidem, p.189.
261
Ibidem, p.191.
86
EMIGRANTE NORDESTINO NO SUL DO PAÍS
Neste estilo popular,
Nos meus singelos versinhos
O leitor vai encontrar
Em vez de rosas, espinhos.
(...)
Porém o maior tormento
Que abala este sentimento
Que a Previdência me deu,
É saber que há desgraçados
Por este mundo jogados
Sofrendo mais do que eu.
(...)
Com o flagelo horroroso,
Com o grande desacato,
Infiel e impiedoso,
Aquele patrão ingrato,
Como quem declara guerra,
Expulsa de sua terra
Seu morador camponês,
O caboclo flagelado,
Seu inditoso agregado
Que tanto favor lhe fez.
(...)
Cheia de necessidade
Sem rancor e sem malícia
Entra a turma na cidade
E sem temer a polícia
Vai falar com o prefeito.
E se ele não der um jeito,
Agora o jeito que tem
É os coitados famintos
Invadirem os recintos
Da feira e do armazém.
87
(...)
Rompendo mil impecilhos,
Nisto tudo o que é pior,
É que o pai tem oito filhos
E cada qual é menor.
Aquele homem sem socego,
Mesmo arranjando um emprego
Nada pode resolver,
Sempre na penúria está
Pois o seu ganho não dá
Para a família manter.
(...)
Naquele ambiente estranho
Continua a emergência,
Rigor de todo tamanho
Sem ninguém dar assistência
Ninguém vê, ninguém assiste
Àquela família triste
Quase sem pão e sem veste,
Que sente no coração
Saudosa recordação
Das cousas do seu Nordeste.
(...)
Estes pobres delinqüentes,
Os infelizes meninos,
Atraem os inocentes
Flagelados nordestinos
E estes, com as relações,
Vão recebendo instruções,
Com aqueles aprendendo
E assim, mal acompanhados,
Em breve aqueles coitados
Vão algum furto fazendo.
(...)
88
Quem examina descobre
Que é sorte muito infeliz
A do nordestino pobre
Lá pelo sul do país.
A sua filha querida
Às vezes vai iludida
Pelo monstro sedutor
E divido a ingenuidade
Finda fazendo a vontade
Do monstro devorador.
Foge da casa dos pais
E vai vagar pelo mundo,
Padecendo muito mais
Nas garras do vagabundo.
O pobre pai, desolado,
Fica desmoralizado,
Com a alma dolorida,
Para o homem nordestino,
O brio é um dom divino
A honra é a própria vida.
(...)
Leitor, veja o grande azar
Do nordestino emigrante
Que anda atrás de melhorar
Da sua terra distante.
Nos centros desconhecidos
Depressa vê corrompidos
Os seus filhos inocentes,
Na populosa cidade
De tanta imoralidade
E custumes diferentes.
(...)
Meu divino Redentor
Que pregou na Palestina
Harmonia, paz e amor
Na vossa santa doutrina:
89
Pela vossa Mãe querida,
Que é sempre compadecida,
Carinhosa, terna e boa,
Olhai para os pequeninos,
Para os pobres nordestinos
Que vivem no mundo à toa.
Meu Bom Jesus Nazareno,
Pela vossa majestade,
Fazei que cada pequeno,
Que vaga pela cidade,
Tenha boa proteção;
Tenha, em vez de uma prisão,
Aquele horroroso inferno
Que revolta e desconsola,
Bom conforto, boa escola,
Um lapes e um caderno!
262
Nesses versos Patativa relata, mais uma vez, as mazelas sofridas pelo povo
nordestino, o sentimento de perda, de abandono e de expulsão, bem como traduz
resumidamente os motivos da migração. A narrativa inclui detalhes da experiência
vivida pelo povo nordestino como emigrante, da marginalidade que condena à
criminalidade, da ausência de direitos que dentre outras conseqüências traz perda da
auto-estima. Essa situação de indigência e abandono traduz-se como falta de sentido
para a existência, considerando um destino (in) certo rumo à miséria e ao sofrimento
também em outras regiões do país.
O eu-poético revela às saudades vividas pelo povo nordestino, dá voz a esse
sentimento em forma de lamento diante da dura realidade do emigrante, comenta a
ausência de políticas públicas que objetivem a assistência de direitos básicos como
moradia e alimentação; denuncia ainda a exposição dos filhos de nordestinos à
marginalidade e à criminalidade, devido à necessidade dos pais trabalharem deixando-
os sozinhos.
As conseqüências da migração, descritas nesse poema, revelam similaridades
com o topos negativo conceituado por Alfredo Bosi como característico da poesia
profética e da sátira-crítica; nesse processo vivido pelo migrante ocorre o embate de
262
ASSARÉ, Patativa do. Cante lá, que eu canto cá: filosofia de um trovador nordestino, p. 324-333.
90
divergentes valores, a quebra de costumes e rigores morais concernentes ao Sertão, a
perda de sentido das relações humanas. Exemplarmente nesse poema, como em outros
de Patativa do Assaré, encontramos recusa diante da situação vivida pelo nordestino,
que é revelada através de um discurso caracterizado pela linguagem tipicamente
popular, fora de padrões lingüísticos convencionais e que clama um futuro diferente,
uma utopia. Ao concluir o poema traduz-se em prece, em apelo à instância divina nas
pessoas do Bom Jesus e de Nossa Senhora; na qual o eu-poético clama rogando
compaixão e conforto para o seu povo ante tantos sofrimentos.
A forma de contestação que transparece na poética de Patativa varia, desde
manifestações de uma poesia mítica e de uma sátira crítica, até culminar em uma poesia
utópica e profética; relevante para a reflexão a que se propõe esse capítulo, no entanto,
é considerar que todas essas variantes presentes na obra poética de Patativa traduzem
certa resistência através do discurso.
Sendo resistência um conceito originariamente ético e não estético, segundo
Alfredo Bosi, adotar esse termo exige-nos certa cautela; a resistência na narrativa,
segundo Bosi, comumente surge como tema ou como processo inerente à escrita.
263
Em
Patativa, a resistência revela-se nos temas, bem como na tessitura da escritura de seus
poemas, no uso da linguagem como demonstração e valorização de uma condição de
classe. Intuição e desejo fundamentam a arte poética de Patativa sem, entretanto,
inibirem a força cognitiva de sua compreensão de mundo e de sua vontade ética,
extremamente consciente dos critérios da realidade sertaneja e dos ditames da coerência
entre sua condição de sertanejo e de sua libido de poeta. Enfocar os elementos de
resistência incutidos na poética de Patativa implica considerar um objeto estético sob
aspectos éticos; fruto da libido artística que envolve intuição e desejo a poesia enquanto
discurso traduz em si também uma visão de mundo baseada em certos valores e
princípios éticos.
3.6 Topos negativo: memória e utopia
Ao elaborar um discurso literário, o autor dispõe de liberdade inventiva,
trabalha não só com a memória, mas também com a imaginação, o narrador cria
conforme o desejo e também traduz valores ou antivalores; no caso de Patativa e sua
263
BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da poesia, p.120.
91
poética calcada nos códigos da oralidade e da memória é perceptível esse tratamento
direto dos valores e antivalores em discussão na sociedade.
A poética de Patativa revela uma interpretação histórica à luz da fé Cristã, seu
olho foca diretamente a situação presente, demonstra respeito pela tradição com uma
particular consideração do passado, mas constantemente efetiva o anúncio poético com
vistas a um futuro promissor.
Considerando a historicidade como uma qualidade específica do humano, uma
busca constante de sobrevivência, significação e sentido; o trabalho intelectual humano
é histórico, seja ele desenvolvido por um profeta ou pelo poeta. Assim sendo, o fazer
histórico humano, tanto de um como de outro, traduzem essa dimensão do existir
histórico, do humano que se faz sujeito diante do mundo e que o constitui como
totalidade de sentido.
Conforme o pesquisador Pe. Manoel Matusalém, a proximidade funcional entre
profetas e poetas se revela, por sua interpretação dos acontecimentos da vida do povo,
no tempo e no espaço, revelando idéias, dinamizando e possibilitando conscientização.
Para definição característica de Profeta a tradição exige a confluência de dois aspectos
marcantes dessa origem vocacional, quais sejam, ser homem de Deus e homem do
povo; isto é, o profeta é um ser humano consciente de seu compromisso com Deus e
com o povo, assim como ocorre com alguns poetas.
264
A partir dessa perspectiva de profetas como pessoas do povo, os poetas do
cordel podem ser considerados como anunciadores da vontade Divina que descrevem a
realidade cósmica em paralelismo à realidade humana, apontando para harmonia como
sinal da presença de Deus e para desarmonia como ausência do mesmo.
265
Da mesma
forma que os profetas combatiam os latifundiários, os poetas também revelam essa
mesma sensibilidade, elaboram verdadeiros tratados de doutrina social enfocando
questões como o Coronelismo, remanescente do feudalismo.
266
Tanto os profetas bíblicos como os poetas do cordel denunciam os maus usos do
poder em relação ao povo, explicitam isso fazendo referências à corrupção.
267
Os poetas
populares e os profetas bíblicos só se distanciam no tempo, mas aproximam-se na fé e
na visada humana popular.
268
A esperança pregada no Cordel segue a mesma linha dos
264
SOUSA, Pe Manoel Matusalém. Cordel, Fé e Viola. Petrópolis: Vozes, 1982, p.22.
265
Ibidem, p.25.
266
Ibidem, p.26.
267
Ibidem, p.39.
268
Ibidem, p.43.
92
profetas, apontando para o novo dia, para o julgamento e a ressurreição, a crise e sua
superação; enfim a utopia.
269
Além das similaridades temáticas, o autor cita ainda uma semelhança literária na
forma de divulgação desses dois discursos, o profético bíblico e o poético de Cordel;
segundo ele ambos aparecem inicialmente como folhas volantes, sendo que
prescindindo do aspecto oral.
270
A atribuição de caráter profético ao cordel passa necessariamente pela figura do
poeta popular, o homem que se afirma inspirado e iluminado por Deus e se faz signo
simbólico, traduzindo a função religiosa de seus anúncios e de sua transmissão da
palavra nova, da boa nova; nesse momento da análise encaixa-se com perfeição a
imagem constituída, bem como a auto-imagem divulgada pelo próprio Patativa de si
como poeta-profeta. Auto imagem essa que é propagada até os dias atuais mesmo em
publicações direcionadas ao público infantil, como vemos a seguir:
“Ele fazia versos enquanto trabalhava na sua roça de milho, feijão e mandioca.
Fez versos que falam do trabalho, da terra, das injustiças sociais. Estudou pouco, mas
sabia muito. Sentia na pele o que sentem todos os que não têm terra, não têm ajuda e
sobrevivem na secura do sertão.
Por isso, Patativa fez uma poesia que denuncia estes problemas, mas não deixou de
fazer poemas bem-humorados uns, apaixonados outros, cantou o passado, com um
no presente, e de olho no futuro.”
271
A palavra anunciada pelo poeta popular, como aquela anunciada pelos profetas
bíblicos, interpreta a história presente à luz da história salvífica anterior e estabelece um
elo de comunicação entre os humanos e Deus.
272
No discurso elaborado pela Literatura de Cordel se realiza a afirmação da
individualidade humana e de sua busca por um centro convergente de referência que,
traduz-se na certeza bíblica de que a humanidade é expressão da atividade criadora de
Deus. A condição criatural humana de livre arbítrio transparece nos discursos dos
poetas populares que representam o humano como transcendente a toda natureza devido
269
Ibidem, p.51.
270
Ibidem, p.55.
271
Apresentação de Gilmar de Carvalho à obra de ASSARÉ, Patativa do. Lagartixas verdinhas pelo chão.
Ilustrações de Mariza Viana, 2ªed., Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004. (Coleção Patativa para
crianças).
272
SOUSA, Pe Manoel Matusalém. Cordel, Fé e Viola, p.56.
93
a sua inteligência livre
273
e, como apontaremos no próximo capítulo, essa é uma das
principais características da poética de Patativa do Assaré
Na Literatura de Cordel, o Deus anunciado pelos folhetos e pela viola nordestina
revela-se como uma ressignificação do Deus Criador, imagem discursiva constituída
pelas Sagradas Escrituras.
274
A tematização da Divina Providência, isto é, da atividade
criadora de Deus pelos poetas populares, o apresenta como perfeição absoluta;
representa-o como Senhor da História, sempre presente e atuante no mundo.
275
Outro elemento de caracterização profética do Cordel é a elaboração de uma
Cristologia Popular condizente com uma concepção de homem; os textos poéticos do
Cordel abordam Jesus sob variados signos: homem, símbolo da esperança e do perdão,
realização da promessa de Deus. Essa variedade de representações elaboradas pela
Cristologia Popular e registradas pelos poetas, no entanto, converge para uma
consciência da humanidade de Jesus.
276
O conhecimento bíblico é que enriquece a habilidade dos poetas populares na
elaboração dessa Cristologia; um conhecimento não apologético, mas caracterizado por
uma exegese popular
277
, a mesma elaborada por Patativa, um poeta “Lúcido, corajoso,
talentoso”
278
, no decorrer de sua obra. Essa Cristologia do Cordel toma sempre o
caminho da praticidade, apontando para a experiência cotidiana e sendo, portanto,
bíblica e existencial.
279
Os poetas através de versos simples conseguem, atingir uma resposta
antropológico-cristã para a origem e finalidade da humanidade, além disso, transmitem
um conteúdo capaz de despertar consciência sobre a vida e sua finalidade através da fé.
Com seus escritos poéticos, os autores populares elaboram um discurso ético que
influencia a consciência moral e religiosa do povo, gerando confiança utópica no futuro
e fazendo-se uma extensão da mensagem bíblica.
280
273
Ibidem, p.58.
274
Ibidem, p.62.
275
Ibidem, p.63.
276
Ibidem, p.67.
277
Ibidem, p.69.
278
Afirmação encontrada na apresentação de Gilmar de Carvalho à obra de ASSARÉ, Patativa do. A
Sariema da Totelina. Ilustrações de Mariza Viana, 2ªed., Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004.
(Coleção Patativa para crianças).
279
SOUSA, Pe Manoel Matusalém. Cordel, Fé e Viola, p.73.
280
Ibidem, p.80.
94
Como vimos até aqui, nesse terceiro capítulo, esmiuçamos um pouco mais a
poética de Patativa do Assaré, procurando compreendê-la à luz de algumas hipóteses
teóricas, buscamos os elementos identitários que a caracterizam preponderantemente e
relacionamos tais elementos à elaboração de sua poética resistente.
Os principais elementos identitários percebidos na poesia de Patativa foram o
uso da memória, dos códigos da oralidade, da performance e da emblemática popular.
Tais elementos constituem um discurso poético carregado de temáticas comuns às
pessoas pertencentes ao grupo social de origem do poeta, discurso esse que assume não
só função didática e pedagógica na constituição de uma visão de mundo, de uma
elaboração de sentido para realidade vivida por essas pessoas, mas também um discurso
que propõe refletir sobre essa realidade, através do resgate da auto-estima desse povo e
da valorização de suas formas de resistência.
As estratégias de divulgação da própria obra poética, utilizadas por Patativa
conforme a ampliação e notoriedade de seu talento, acabam por significar também
valorização dessa manifestação da cultura popular, desse grupo social e de sua
identidade. A ação política e social do poeta constituem e fortalecem seu discurso de
contestação e resistência.
Sob o aporte teórico de Alfredo Bosi, constatamos na poética de Patativa
elementos coincidentes às categorias elaboradas pelo autor para análise da poesia em
geral; como vimos, elementos da poesia mítica, da poesia sátira, do epos
revolucionário e da poesia utópica. De acordo com a proposta inicial desse capítulo,
tais elementos corroboram a hipótese de que a poética patativana constitui-se como
discurso contestatório e resistente; como poesia utópica que se caracteriza pela recusa e
pela crença num novo tempo e constitui seu discurso como topos negativo, no qual
prevalece a recusa dos costumes, o uso de uma linguagem e de uma visão de mundo
diferenciada. Constatamos nos versos de Patativa essa atitude de recusa ante a
realidade, bem como também a valorização da esperança num novo tempo, que se
revela na tradução de seus poemas em prece e profecia.
No capítulo a seguir, pontuaremos os aspectos da constituição desse discurso
poético em prece e profecia, considerando os elementos de religiosidade popular
elaborados pelo poeta e de sua forma peculiar de ressignificação de conceitos
estabelecidos pela ortodoxia religiosa.
95
CAPÍTULO IV
DIVINA PROVIDÊNCIA EM PATATIVA: ELEMENTOS DE
RESSIGNIFICAÇÃO NA POÉTICA POPULAR
“Uns vivem na pobreza, outros na
opulência; assim o dispôs a Providência.”
281
Finalizando a análise proposta da obra de Patativa do Assaré, esse capítulo
procura focar o olhar sob os elementos mais diretamente relacionados à religião e a
influência mútua entre ela e a poética popular nordestina. Considerar a poesia de
Patativa como elemento da cultura popular nordestina que, conseqüentemente, envolve
a religiosidade popular; compreender assim as características e condições específicas da
produção dessa obra. Para tanto, compreender melhor as teorias e conceitos já
desenvolvidos a respeito das idéias de cultura popular, de religiosidade popular e de
ressignificação.
Especificamente no que se refere ao conceito de Divina Providência, evidenciar
a forma particular com que é articulado na poesia de Patativa, suas especificidades em
relação ao conceito tradicionalmente utilizado e estabelecido pela ortodoxia da
instituição religiosa católica e perceber o modo como é ressignificado na poética
popular desse sertanejo.
Além desses elementos relacionados à religiosidade popular, encontrados na
poética de Patativa, captamos e discutiremos a seguir a atitude assumida pelo poeta de
uma função profética para si e para seus versos; ao analisarmos sua obra no capítulo
anterior, tocamos no aspecto utópico e referencial desta para a identidade nordestina no
que se refere ao resgate da memória de um grupo, de sua auto-estima e de suas
perspectivas de futuro como projeto coletivo e existencial.
281
Trecho da fala de um bispo belga, do século XIX, citado por FRANGIOTTI, Roque. A doutrina
tradicional da providência. Implicações sociopolíticas. São Paulo: Paulinas, 1986, p.160.
96
4.1 Do que é popular: cultura, religião e significado
A questão da cultura brasileira para o pensador Alfredo Bosi traduz-se em
multiplicidade, pois se há frações no interior do grupo, é claro que sua cultura tende
também a fragmentar-se e desvelar a ilusão de aparente fisionomia homogênea
282
;
reconhecer essa pluralidade seja em qualquer sociedade complexa da atualidade e ainda
mais no caso da sociedade brasileira, é imprescindível
283
.
Tomando por definição de cultura, a herança de valores e objetos compartilhada
por um grupo humano relativamente coeso, Alfredo Bosi afirma que no Brasil podemos
falar em cultura erudita, centrada no sistema educacional e cultura popular, iletrada,
baseada nos mores materiais e simbólicos do homem rústico. Entretanto o pensador
acrescenta ainda cultura criadora, intelectuais de fora da universidade, escritores,
compositores, artistas e outros; e cultura de massas, imbricada com os sistemas de
produção e mercado de bens de consumo, também denominada indústria cultural.
284
Em sua análise, Bosi propõe reagrupar essas múltiplas culturas em dois grupos,
um que representa os institucionalizados (Universidade e meios de comunicação) e
outro que agrupa os desinstitucionalizados (Cultura criadora e cultura popular); salienta
ainda que fora da Universidade existem faixas culturais de caráter mesclado com a vida
psicológica e social, com símbolos e bens culturais que são vividos em intensidade e
pensados apenas esporadicamente, caracterizando-se exatamente pelo oposto do que é a
prática acadêmica concentrada e especializada.
285
Numa abordagem mais específica da Cultura Popular, um dos intérpretes
brasileiros reconhecidos, dos textos de Antonio Gramsci, é o pensador Renato Ortiz,
principalmente no que se refere a esses fenômenos populares e a abordagem dos
mesmos, desenvolvida pelo italiano. Ortiz enfatiza como positiva a questão da
ambivalência ou ambigüidade dos fenômenos populares, colocada por Gramsci, isto é, a
questão da complexidade da realidade social que é constituída tanto de elementos
positivos quanto negativos.
286
Ortiz considera que a noção gramsciana de hegemonia propiciou um salto
qualitativo nas análises da religiosidade popular ao considerar a relação de força entre
282
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.308.
283
Ibidem, p.309.
284
Ibidem, p.309.
285
Ibidem, p.320.
286
ORTIZ, Renato. A consciência fragmentada. Ensaios de cultura popular e religião. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1980, p.61.
97
os grupos, religiosos ou não, o que ajudou a evitar incoerência e reduções analíticas
comuns às abordagens da religiosidade como dupla alienação.
287
Ao atentar para a ambigüidade característica dos fenômenos de cultura popular
que ora traduzem reprodução social, ora traduzem elementos de transformação, Gramsci
possibilitou um novo olhar para esse objeto; Renato Ortiz, entretanto salienta a
importância de não interpretar essa alternância como fragmentariedade negativa, como
dualidade, e sim procurar compreender a totalidade dessa ambivalência.
288
Ampliando a proposta de Gramsci de uma visada da cultura popular, Ortiz
propõe considerar esse fenômeno como totalidade, numa análise diferenciada que
englobe a polaridade antagônica
289
; para além das análises já estabelecidas que pensam
a Cultura em termos de oposições e permanecem na alternância de pólos, bem como na
ilusão de um pensamento dialético.
290
De acordo com as conclusões de Ortiz, a abordagem relevante dos fenômenos de
cultura popular a que considerar a relação de inclusão entre esses fenômenos e a
sociedade que os transcende e determina; além disso, deve considerar ainda o fato de
que esses fenômenos trazem em si tanto a dimensão de reprodução social, como
elementos de contestação e de desordem simbólica. É preciso ainda atentar para
existência de relações de poder entre esses fenômenos e a sociedade, sendo que a
hegemonia dominante tende a gerar reprodução social, enquanto os focos de utopia
popular demonstram a virtualidade da desorganização social.
291
Além desses, outro elemento imprescindível à compreensão dos fenômenos de
Cultura Popular é a percepção de sua constituição como espaço internamente
heterogêneo, em dois níveis, sendo primeiro em relação à cultura hegemônica, por se
constituir de pedaços heteróclitos de tradições diversas, e também em relação a si
mesma, pela fragmentação no interior de suas próprias manifestações.
292
Em suas análises, Ortiz enfatiza ainda que sua visão de heterogeneidade não se
traduz como sinônimo de incoerência, mas sim como uma lógica coerente que é
diferente daquela estabelecida cientificamente, aproximando assim sua compreensão da
construída por Levy-Strauss.
293
Ressalta ainda que as características de heterogeneidade
287
Ibidem, p.65.
288
Ibidem, p.68.
289
Ibidem, p.68.
290
Ibidem, p.71.
291
Ibidem, pp. 77-79.
292
Ibidem, p. 81.
293
Ibidem, pp. 82.
98
e fragmentação não podem ser consideradas apenas como elementos de reprodução
social, pois representam também uma forma de resistência, de entrave à hegemonia
dominante e à implantação de uma única ideologia.
294
Apesar da ausência de uma única mundivisão, a partir dos fenômenos de Cultura
Popular elabora-se uma ética instrumental e um pensamento que opera sincreticamente,
com pedaços heteróclitos da cultura hegemônica e da tradição, o que permite
combinações várias; portanto sua fragmentariedade corresponde a um processo de
resistência à veracidade da ideologia hegemônica global.
295
Também tomando por base o pensamento de Gramsci, Renato Ortiz desenvolve
uma análise do fenômeno religioso, na qual compara e aproxima teóricos reconhecidos
procurando enfatizar a singularidade da proposta do pensador italiano ao articular os
conceitos de relações de poder e de coesão social, num só denominado hegemonia.
296
Gramsci considera a religião como uma forma de dominação que é fundamentada pela
coesão social, mas também percebe que a inversão desse processo ocorre quando o
pensamento religioso adquire caráter messiânico.
297
Principalmente no caso do catolicismo, com a existência de uma dupla
religiosidade, institucional e popular, o principal problema é articular esses dois níveis
de crença e de filosofia religiosa; portanto, o consenso não corresponde à
homogeneidade, já que subsistem divergências entre os próprios membros da
instituição, quais sejam os teólogos e os fiéis, ocorre uma relação de força que se traduz
em crise de hegemonia, segundo a interpretação elaborada por Ortiz do pensamento de
Gramsci.
298
O pensador italiano considera a religião como uma forma de conhecimento,
como um universo simbólico que orienta a experiência humana, com um eixo de
mundivisão, que difere da Filosofia e também do Folclore, sendo mais um bloco
hegemônico em busca de poder; portanto, a função conservadora ou transformadora da
religião só pode ser compreendida quando considerada junto às condições reais que a
determinam.
299
294
Ibidem, pp. 83-87.
295
Ibidem, pp. 87-88.
296
Ibidem, p. 148.
297
Ibidem, pp. 151-152.
298
Ibidem, p.173
299
Ibidem, p.187.
99
Um outro pensador que busca compreender o fenômeno religioso, Clifford
Geertz, procura salientar a dimensão cultural da análise religiosa, lembra que toda
cultura denota padrões de significados transmitidos historicamente que se incorporam
em símbolos e elaboram sistemas de concepções herdadas expressas de forma simbólica
que comunicam, perpetuam e desenvolvem os conhecimentos e atividades em relação à
vida. Segundo ele, os símbolos sagrados sintetizam o ethos de um povo e sua visão de
mundo, formulam congruência básica entre estilo de vida particular e metafísica
específica.
300
A religião formula, através de símbolos, uma imagem do mundo que abarque as
ambigüidades percebidas e incompreendidas; sua importância está na capacidade de
servir, tanto para o indivíduo quanto para o grupo, de um lado como fonte de
concepções gerais do mundo, de si e das relações entre cada um e o mundo, de outro
lado fornecendo disposições mentais enraizadas.
301
Para Geertz, portanto, o estudo da
religião é uma operação em dois estágios, o primeiro de análise de significados
incorporados nos símbolos e o segundo do relacionamento desses sistemas aos
processos sócio-estruturais e psicológicos.
302
Segundo o mesmo Clifford Geertz, o conceito de cultura torna-se mais
compreensível pela via semiótica, ele acredita que o homem está sempre amarrado a
teias de significados que ele mesmo teceu, sendo a cultura o conjunto dessas teias.
303
Analisar a cultura seria, portanto, elaborar uma ciência interpretativa dos significados,
pois o comportamento humano é sempre ação simbólica de atribuir significado.
304
Para Geertz o que importa no estudo da cultura são os atos simbólicos, eles é que
são significantes, sendo importante manter a análise dessas formas simbólicas ligadas
aos acontecimentos sociais, com a certeza de toda análise cultural é intrinsecamente
incompleta e, quanto mais profunda, menos completa.
305
Atribuir significado à vida, segundo Geertz, é o fim principal e a condição
básica da existência humana, sendo que esse acesso à significação compensa
amplamente qualquer custo envolvido
306
; seja através da poesia, de outras formas de
300
GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. LTC Editora: Rio de Janeiro, 1989, pp.66-67.
301
Ibidem, pp.79-90.
302
Ibidem, p.91.
303
Ibidem, p.4.
304
Ibidem, p.8.
305
Ibidem, pp.18-21.
306
Ibidem, p.200.
100
literatura ou de hábitos como as brigas de galo o ser humano assume temas importantes
e ordena-os numa estrutura globalizante, apresentando-os de modo a aliviar a visão
particular da sua natureza essencial.
307
Geertz percebe e ressalta que esses fenômenos da cultura possuem uma função
interpretativa, constituem uma leitura elaborada pelos próprios sujeitos de sua
experiência, isto é, “uma estória sobre eles que eles contam a si mesmos.”
308
Essa
elaboração discursiva, esse sistema partilhado de crenças e valores constitui uma rede
de significados, uma forma de ressignificação.
Analisar a obra de Patativa exige relacionar esses três elementos cultura
popular, religião e significado, considerando sua poesia como manifestação
representativa da cultura de um grupo, de sua religiosidade, recheada de significados.
Para além de considerá-lo como um representante da cultura popular, podemos
incluir Patativa no grupo denominado por Bosi de cultura criadora, não só devido ao
seu perfil de intelectual autodidata, mas também por sua característica criativa e
artística; e ainda também na cultura de massas por sua produção voltada ao mercado e
ao consumo.
Originalmente Patativa se enquadra ainda tanto no reagrupamento das
manifestações culturais desinstitucionalizadas, quanto no âmbito das institucionalizadas;
já que sua criação e produção literária surgem do povo, como manifestação artística,
elaboração de significado representativa de um grupo; mas que também se enquadra nos
ditames do mercado enquanto bem de consumo, além de penetrar a Universidade
através de estudos sobre sua biografia e sua obra.
Nas análises a seguir será possível perceber, tanto os elementos de ambigüidade
e complexidade, característicos do popular conforme Ortiz e sua leitura de Gramsci,
bem como as relações de força entre os grupos da sociedade, citadas e discutidas nos
poemas, que se traduzem como espaço heterogêneo de manifestações. Se a voz poética
de Patativa revela ora reprodução social, ora contestação e desordem simbólica é
justamente porque se constitui de pedaços heteróclitos da tradição; entretanto não há
incoerência nessa forma de elaboração, trata-se somente de uma lógica diferenciada.
307
Ibidem, p.206.
308
Ibidem, p.209.
101
A fragmentação interna, comentada por Ortiz, que caracteriza esse pensamento
sincrético popular encontra-se perceptível na poética de Patativa do Assaré, mas em sua
relação de força com a hegemonia dominante pode ser considerada um entrave, um
elemento de resistência ao estabelecimento de uma única ideologia.
Além disso, pelo fato de revelar em seus versos uma religiosidade, Patativa
traduz outra forma de conhecimento, um outro universo simbólico que orienta a ação
humana; a religião transparece nos poemas como imbricada com a realidade popular,
ora funcionando como forma de dominação, ora como subversão da ordem, como
contestação e resistência, discurso sobre a realidade que difere da filosofia e do folclore.
Principalmente por incluir-se no catolicismo a poesia de Patativa ressignifica elementos
da tradição institucionalizada sob a ótica popular, revela as divergências entre a
Instituição e seus fiéis.
Na poética de Patativa fica clara a formulação de uma imagem de mundo,
através de símbolos populares, de ressignificações populares para símbolos já existentes
no catolicismo tradicional; imagem essa que abarca ambigüidades e lhes dá sentido,
tanto individualmente, quanto coletivamente, como afirma Cliford Geertz. Ao tecer suas
teias de significado, poeticamente, Patativa atribui significado aos elementos da
realidade, lê essa realidade e elabora um discurso sobre ela; discurso esse que assume
função interpretativa e supre necessidades individuais e coletivas.
Por isso a interpretação a seguir pretende analisar o significado atribuído aos
símbolos, metáforas e temas abordados pela poesia de Patativa, bem como relacioná-los
aos processos sócio-estruturais e psicológicos envolvidos; enfim abordar esses atos
simbólicos ligados aos acontecimentos sociais.
4.2 Aspectos da religiosidade popular na poética de Patativa
Um dos aspectos interessantes e característicos da religiosidade popular,
apontado por Patativa em seus versos refere-se às superstições, tão comuns ao povo
sertanejo, referindo-se a presságios advindos dos cantos dos pássaros e outros elementos
da natureza.
A FESTA DA MARICOTA
(...)
102
E tem bichinho servage
Que, com a sua linguage
E a musga da sua voz,
Conta tudo certo e exato,
Apois tem bicho no mato,
Que sabe mais do que nós.
(...)
No fundo de um cafundó,
Uma coã gargaiava,
Gargaiava e agôrava,
Na copa da um pau-mocó.
(...)
Quando eu contá nesta histora
Tudo quanto se passou,
O senhô fica ciente
Que aquela coã não mente,
Pois a bicha adivinhou.
(...)
E ante que a histora eu acabe
Seu jornalista, dê fé,
Veja a coã como sabe!
É como eu digo ou não é?
Ela, quando gargaiava,
Com certeza me contava
Que a desgraça ia se dá,
Mas porém ningm comprende,
Ninguém sabe nem entende
A língua dos animá.
309
O poeta demonstra e salienta a divergência entre saber cientificamente aceitável
e sabedoria popular, ressalta a distância entre esses dois saberes e realça seus pontos de
vista diferentes, mas não excludentes, valorizando a multiplicidade de maneiras de lidar
com os fatos da realidade.
309
Trecho do poema A festa da Maricota, contido na obra de ASSARÉ, Patativa do. Inspiração
Nordestina, p.77-94.
103
Patativa relata e elogia aspectos da religiosidade popular característica do povo
sertanejo, com suas superstições, hábitos, costumes, festas, simpatias e outros elementos
que compõe o imaginário religioso popular.
NO MEU SERTÃO
(...)
É munto mais boa a vida
Da minha gente matuta,
Lá onde tudo é sossego,
Lá onde ninguém escuta
Essa zoada mardita,
E onde tombém se acredita
E se crê de coração
Em muita coisa da vida
Que essas pessoa sabida
Chama de suprestição
(...)
A gente do meu sertão
Tem a vida acotelada.
Nas noite de sexta-feira
Caçadô não faz caçada,
Temendo grande desgraça.
No meu sertão ninguém passa
Entre dois pau de portêra,
Pois é grande o sacrifico,
Se arrisca a pegá feitiço
Da gente catimbózeira.
E nas noites de São João
As moça casamentêra
Leva uma bacia d’água
Bem pra junto da foguêra,
E ali, com munta prudênça
Vão fazê esperiença
Sobre o futuro que vem,
Deitanlo a sorte nas braza
104
Promode sabê se casa
Com os moços que elas qué bem.
(...)
310
As fogueiras em louvor a São João
311
, um outro costume característico da
devoção religiosa popular nordestina, principalmente em Caruaru onde hoje se
comemora o maior ‘São João’ do mundo, também aparecem nos versos do poeta,
revelando a valorização desse ato de fé primordial na constituição do campo simbólico
religioso popular.
A FOGUEIRA DE SÃO JOÃO
(...)
É tão grande, é tão imensa
A minha fé e minha crença,
Que se Deus me dé licença,
Quando eu morrê, vou le
Grosso fêcho de madêra
De angico e de catinguêra,
Pra fazê uma foguêra
Lá no céu, quando eu chegá.
312
Além de poemas que descrevem o modo particular da religiosidade tipicamente
popular, Patativa trabalha ainda em seus versos com as divergências entre o imaginário
religioso popular, carregado de sentidos e significados próprios do povo sertanejo, e
aquelas imagens propostas pela Igreja como devoção institucionalmente aceita e
constituída. De modo claro, mas sutil, no poema O padre e o matuto, o poeta demonstra
as incongruências entre o Catolicismo Clerical Ortodoxo e o Catolicismo Popular dos
rezadores, das benzedeiras e de suas práticas; propõe questionamentos comuns ao povo
sertanejo, a respeito dos critérios de validação da santidade, do respaldo nas Sagradas
Escrituras e do reconhecimento pela Instituição. A figura do sacerdote, representando a
310
Trecho do poema No meu sertão, contido na obra ASSARÉ, Patativa do. Inspiração Nordestina,
p.123-127.
311
Festas de São João caracterizam tradição amplamente divulgada do Nordeste brasileiro, sendo
inclusive exploradas turisticamente; como exemplo cito uma matéria a respeito dessa comemoração no
Maranhão, a qual afirma que “O aspecto mais marcante da festa é o caráter popular. A festa dura
praticamente todo o mês.” ALMANAQUE BRASIL DE CULTURA POPULAR. Especial São João de
São Luís. Almanaque de bordo da TAM, (Editor Elifas Andreato), Ano 4, nº 39, junho de 2002, p.16-17.
312
Trecho do poema A fogueira de São João, contido na obra de ASSARÉ, Patativa do. Inspiração
Nordestina, p.128-131.
105
autoridade clerical, é questionada pela figura do benzedor popular, homem do povo, fiel
à religião e descrente das novidadeiras mudanças na religião; dessa forma coloca-se
uma crítica às novas imagens do Cristo, impostas pela ortodoxia, levantando
questionamentos sobre a validade de tantas novas imagens.
O PADRE E O MATUTO
O digno padre Luís,
Graças à sua bondade,
Tem sido muito feliz.
Quando prega na Matriz,
Seu sermão tem um encanto
Que do triste enxuga o pranto,
Ao fraco dá esperança;
Ali pela vizinhança
Muitos lhe chamam de santo.
(...)
Dali um pouco afastado,
Em uma pobre arapuca,
Habita o Cinco Mutuca,
Um camponês atrasado,
À Igreja conchegado,
Fervoroso rezador,
Porém com o confessor
Muito desgostoso andava,
Em Cristo rei não creiava
Nem para fazer favor.
Dizia ele zangado:
_ “ Eu creio é no Bom Jesus,
Que morreu por nós na cruz,
Pra nos livrá do pecado!
Cristo Reis foi inventado
Lá no Rio de Janêro,
Nem a troco de dinhêro
Eu nele não tenho fé
Pois eu sei que ele não é
O nosso Deus verdadêro.”
106
(...)
_” Muié, amenhã bem cedo
Você perpare o armôço,
Que o Serviço vai sê grosso,
Discussão não é brinquedo!
De padre eu não tenho medo,
Conheço a lei do Senhô,
Dizê ao vigaro eu vou
Que o Cristo Reis tão falado
Não tá no livro sagrado
Que eu herdei do meu avô”.
(...)
_ “Seu vigaro, é uma histora
que anda na boca do povo,
Sobre um tá de Cristo novo
Que os padre inventou agora.
Credo em cruz! Nossa Senhora!
Vá descurpando o senhô,
Mas porém é um horrô
O que faz vossemincêis,
Afirmá que o Cristo Rêis
É o nosso Redentô!”
(...)
_ “Portanto, Chico, você
Se defenda do perigo,
Nas palavras que te digo
Grande verdade se lê.
Ai daquele que não crê
Neste título honroso!
Em vez de supremo gozo
E santa felicidade,
Terá lá na eternidade
Um sofrimento horroroso!”
107
_” Pois agora, seu vigaro,
Me perdoe, se já pequei,
Vou rezá pra Cristo Rêis
Nas conta do meu rosáro,
Vou vê se rezando saro
As chaga do coração,
Apois a tá confusão
Que munta gente fazia,
Fez eu e minha famia
Se afastá da confissão.”
_ “Agora, que eu acredito
De todo meu coração,
Vou trazê pra confissão
Ciço, José, Benedito,
O Migué, o Espedito,
O Romão e o Mozá,
O Antõi e o Alencá,
A Izefa e a Tonica,
Lá em casa ninguém fica,
Vem tudo se confessá!...”
313
Nesse poema, revela-se ainda o espanto do sertanejo diante das novas imagens
do Cristo, como a estátua do Cristo Redentor na capital carioca, que causam dúvidas e
geram questionamentos na busca de esclarecimentos sobre a legitimidade da própria fé.
Nos versos Patativa mostra a figura do Padre e suas palavras de representante clerical,
recheadas de erudição e autoridade, afirmando a legitimidade das imagens, símbolos e
ritos divulgados pela Instituição; apelando inclusive aos temores característicos da
religiosidade popular de castigos futuros. Curiosamente, o próprio poeta termina seus
versos reafirmando a autoridade institucional e validando o sacramento da confissão,
instaurado exatamente com o objetivo de enfatizar o papel da Instituição como
mediadora exclusiva dos desígnios Divinos.
Esse poema revela um discurso popular que abarca as ambigüidades da própria
religião, que aceita a dominação institucional, mas subverte a ordem e contesta a
imposição de conceitos e de símbolos desprovidos de significado para os fiéis;
313
Trecho do poema “O padre e o matuto”, contido na obra de ASSARÉ, Patativa do. Inspiração
Nordestina, p.224-231.
108
transparece as divergências entre o institucional e o popular, reafirma uma forma de
conhecimento popular baseado na experiência, um universo simbólico que orienta a
ação humana desse povo sertanejo ante a religião.
Num outro poema intitulado O Inferno, o Purgatório e o Paraíso, Patativa do
Assaré realiza interessante analogia entre a vida real e as instâncias constituintes do
imaginário religioso popular católico, recheada de críticas irônicas; elabora uma crítica
social, a partir de elementos desse imaginário religioso popular relacionando-o a
situação da sociedade dividida em classes desiguais; mas o autor decepciona-se quando
da publicação desse poema, devido a um erro da editora no trecho em que afirma o
Inferno como repleto de cenas de tortura e a publicação dizia repleto de cenas de
ventura.
O INFERNO, O PURGATÓRIO E O PARAÍSO
Pela estrada da vida nós seguimos,
Cada qual procurando melhorar,
Tudo aquilo, que vemos e que ouvimos,
Desejamos, na mente, interpretar,
Pois nós todos na terra possuímos
O sagrado direito de pensar,
Neste mundo de Deus, olho e diviso
O Purgatório, o Inferno e o Paraíso.
Este Inferno, que temos bem visível
E repleto de cenas de ternura, (sic)
Onde nota-se o drama triste horrível
De lamentos e gritos de loucura
E onde muitos estão no mesmo nível
De indigência, desgraça e desventura,
É onde vive sofrendo a classe pobre
Sem conforto, sem pão, sem lar, sem cobre.
(...)
Mas acima é que fica o Purgatório,
Que apresenta também sua comédia
E é ali onde vive a classe média.
Este ponto também tem padecer,
109
Porém seus habitantes é preciso
Simularem semblantes de prazer,
Transformando a desdita num sorriso.
E agora, meu leitor, nós vamos ver,
Mais além, o bonito Paraíso,
Que progride, floresce e frutifica,
Onde vive gozando a classe rica.
Este é o Éden dos donos do poder,
Onde reina a coroa da potência.
O Purgatório ali tem que render
Homenagem, Triunfo e Obediência.
Vai o Inferno também oferecer
Seu imposto tirado da indigência,
Pois, no mastro tremula, a todo instante,
A bandeira da classe dominante.
(...)
Já mostrei, meu leitor, com realeza,
Pobres, médios e ricos potentados,
Na linguagem sem arte e sem riqueza.
Não são versos com ouro burilados,
São singelos, são simples, sem beleza,
Mas, nos mesmos eu deixo retratados,
Com certeza, verdade e muito siso,
O Purgatório, o Inferno e o Paraíso.
314
Nesse poema, o autor realiza uma comparação entre o imaginário religioso
Cristão: Inferno, Purgatório e Paraíso; e a organização de nossa sociedade por Classes
Sociais, respectivamente: classe pobre, classe média e classe rica.
Com a classe pobre, visualiza o Inferno e seu drama triste de exploração,
indigência, desgraça e desventura, sem conforto, sem pão e sem lar. Na classe média,
Patativa vê o Purgatório e sua comédia, de quem padece e mesmo assim simula
semblantes de prazer. E com a classe rica, nosso autor reconhece o florescimento, a
fartura e o conforto do Paraíso.
315
314
ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador nordestino, pp.43-47.
315
ASSARÉ, Patativa do. Digo e não peço segredo, p.55.
110
Percebe-se novamente aí a constituição de uma imagem de mundo, com base na
simbologia religiosa popular católica, simbologia essa que abarca ambigüidades da
realidade e lhes confere um sentido através da linguagem poética; ao mesmo tempo que
mostra uma crítica social dessa realidade, demonstra uma ressignificação de elementos
da religião católica sob uma visada popular que atribui novo sentido a imagens
estabelecidas pela instituição.
Patativa comenta ainda, num outro poema, a probabilidade e as vantagens da
existência do Inferno, local incutido no imaginário religioso popular pela Instituição
Eclesial; o poeta salienta o fato de que o inferno pode ser considerado um consolo
futuro aos justos, por seus sofrimentos diante das injustiças vividas no mundo. Nesse
poema, a metáfora poética de um outro mundo se perfaz como crítica desse mundo
injusto
SE INFERNO EXISTE
Se existe inferno, como diz a Briba,
Se lá de riba é que o castigo vem,
Se o espríto vai se derretê queimado,
Purgá os pecado que o sujeito tem.
(...)
Se o cabra ruim quando morrê padece
E triste desce os inferná degrau,
Se os anjos preto lá nos tacho ardente
Dá banho quente castigando os mau,
Se geme as arma dos pió canáia
Nessas fornáia onde o Demônio ta,
Nas braza acesa desse forno imundo,
O nosso mundo vai se escangaiá!
316
Nesse poema o pensamento sincrético popular elabora elementos da tradição
católica institucionalizada com imagens ressignificadas que constituem uma mundivisão
316
Trecho do poema Se inferno existe, contido na obra de ASSARÉ, Patativa do. Inspiração Nordestina,
p.160.
111
peculiar do povo nordestino; a simbologia atribuída ao Inferno pela instituição é
ressignificada na poesia que lhe atribui novo sentido individual e coletivo, como espaço
de redenção dos sofrimentos vividos pelo povo.
Como outra figura preponderante nas formas populares de religiosidade, a
mulher rezadeira, tão comum ao sertão, é também abordada pela poesia de Patativa do
Assaré; em um de seus poemas o autor retrata, em meio a uma narrativa, as funções e
responsabilidades assumidas por tal figura. Introduzir as crianças numa vivência
religiosa pode ser considerada uma das principais funções dessas figuras arquetípicas
que são as mulheres rezadeiras, extremamente representativas da religiosidade popular
sertaneja e de seu papel imprescindível na constituição individual dos sujeitos.
CHIQUITA E MÃE VÉIA
(...)
De menhãzinha, bem cedo,
Depois do só apontá,
Mãe Véia chamava nós,
Mode aprendê a rezá.
Quando Mãe Véia chamava,
Nós ia e se ajueiava
Como se faz nas igreja.
E Mãe Véia, paciente,
Ia dizendo na frente:
_Bendito e lovado seja
Nosso Deus, nosso Jesus,
Que pra nos livrá das curpa
Morreu pregado na cruz.
(...)
Muntas vez, nós no terrêro,
Tudo sentado no chão.
Mãe Véia contava histora
Iscoroçando argudão.
Falava em Nosso Senhô
Quando neste mundo andou,
Tombem em Nossa Senhora
E notas coisa engraçada.
112
Ah! muié abençoada
Pra sabê contá histora!
Mas aquelas coisa boa
Desapareceu da terra.
(...)
Mãe Véia já não existe,
Chiquita tombém morreu.
(...)
A vida é tão esquesita!
Nem Mãe Véia, nem Chiquita,
Tudo, tudo se acabou!
Pois inté o jacarandá
Do ninho do sabiá,
Veio o vento e derrubou.
317
Nesse poema reafirma-se também a dupla religiosidade do catolicismo,
institucional e popular, na qual Patativa enfatiza no catolicismo popular o caráter de
universo simbólico peculiar de orientação para a ação humana; ao produzir poemas
específicos que tratem das rezadeiras, das festas e de outros temas tipicamente
populares o poeta salienta e reafirma o significado desses elementos para o povo, sua
obra revela uma função interpretativa da realidade, como um discurso elaborado
visando compreensão a respeito dessa realidade.
Além de apresentar em seus versos, elementos cotidianos da religiosidade
popular, Patativa elabora comentários poéticos também a respeito de elementos
componentes da ortodoxia institucional, bem como de personagens bíblicos; sempre de
modo ressignificado, incorporando-os ao campo simbólico popular, de modo crítico e
criativo.
No caso de um outro poema endereçado ao seu amigo Padre Antônio Vieira, o
personagem abordado é o jumento que recebe de Patativa inúmeros elogios por sua
força e sua importante função na narrativa bíblica de salvação.
Surpreendente é o modo como o poeta finaliza esse poema, acirrando o tom de
sua crítica social, pois compara o descaso da sociedade ao jumento com o descaso ao
317
ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador nordestino, p. 336-339.
113
povo sertanejo, também personagem de grande valor para agricultura e subsistência
inclusive das cidades.
MEU CARO JUMENTO
(...)
O seu valô subrimado,
Não é só pruquê trabaia
Levando os costá pesado
E os quatro pau da cangaia
Pois você não merecia
Sofrê tão grande narquia
Vivendo como um criado,
Com o seu valô profundo,
Era pra sê neste mundo
Um animá respeitado.
Merecia até mora
Num jardim belo e perfeito
Mode todos visitá
Com amô e com respeito.
Basta a gente maginá
Que de todos animá
Que esta grande terra cria
E tem o nome na históra,
Só você teve a gulora
De carregá o Missia.
(...)
Você, meu caro jumento,
Foi quem teve a grande sorte,
O grande merecimento
De servi como transporte
Na noite desta fugida,
Defendendo a santa vida
De Cristo Nosso Senhô.
Até nos livro sagrado
Seu nome ta carimbado,
Mas ninguém lhe dá valo.
114
(...)
E agora, caro jumento,
Se eu errei, peço perdão,
Mas, todo seu sofrimento
É falta de potreção,
De assistença e de respeito.
Você é do mesmo jeito
Do matuto agricurtô
Que trabáia até morrê
Pro mundo intero comê
Mas ninguém lhe dá valo.
318
Como bem afirma Geertz, uma abordagem completa da cultura deve analisar os
atos simbólicos ligando-os aos acontecimentos sociais, dessa forma a poesia de Patativa
revela-se como discurso crítico sobre a realidade, já que o significado simbólico
atribuído ao jumento é ainda reforçado por sua relação com o povo sertanejo e sua
sofrida situação social e econômica. Nessa análise é imprescindível o significado cristão
e bíblico atribuído ao animal, bem como os elogios à sua força física e utilidade no
trabalho cotidiano que, posteriormente, são relacionados em analogia à situação do povo
matuto.
Nessa mesma linhagem temática de defesa do jumento, Patativa produziu
também outra obra, publicada no mesmo livro que o poema citado anteriormente; neste,
de forma mais crítica, o poeta narra a crueldade dos matadouros da Bahia por consumir
carne desse animal considerado, por ele, sagrado. Além de relembrar o valor simbólico
do animal, recorrendo à sua função bíblica, Patativa relembra seus sofrimentos ao arcar
com pesadas cargas e, ainda, ser feito alimento para os humanos; encerra clamando à
Deus, à Jesus, ao Padre Antonio Vieira e, até, ao poeta Castro Alves, solicitando auxílio
a esse pobre animal.
MEU PROTESTO
Minha gente, o frigorico
Lá das terra de Bom Fim,
Promode abatê jirico
É coisa qui eu acho ruim.
(...)
318
Ibidem, p.100-104.
115
Jirico, que vida amarga!
Como é triste o seu vivê!
Quando lhe estragam na carga,
Vão sua carne comê.
Meu pensativo jumento,
Isto é um atrevimento,
Um crime, um grande pecado,
Um sacrilejo, um capricho,
Comê a carne do bicho
Que Jesus andô muntado.
(...)
Meu bom Jesus Nazareno,
Venha a este mundo, ou mande,
Pois seu animá piqueno,
Mais porém dum valô grande,
Qui fez o pape bonito
Lhe conduzindo ao Egito
Junto com José e Maria,
O povo sem compaxão,
Sem arma e sem coração
Ta matando na Bahia.
Distinto Padre Viera,
Que sobre o jegue escreveu,
Veja que grande sujêra
Fizero cronta o lepeu!
Para o sinhô, iscritô,
Do jumento o defensô,
É grande a decepição;
Meu prezado reverendo,
A Bahia tá comendo
O Jumento nosso irmão.
Ó Crasto Arve, incelente
E primoroso poeta,
Que no poema “O VIDENTE
Tombém mostrô sê profeta,
116
Peça na sua gulora
A licença de uma hora
Dum segundo ou dum momento,
E venha vê o grande agravo,
Você defendeu o iscravo
Venha defendê o jumento!
319
Em contato com a vasta obra de Patativa e a variedade encantadora de seus
poemas, outros dois também podem ser caracterizados como referentes à religiosidade:
Antônio Conselheiro e O Padre Henrique e o dragão da maldade, o primeiro devido à
pertinência do movimento de Canudos
320
e da pessoa do próprio Conselheiro na
constituição da identidade popular do sertanejo, bem como de sua religiosidade típica. O
segundo poema, feito a pedido de Dom Hélder por Patativa, decorre do movimento
católico da Teologia da Libertação
321
.
São poemas exemplares, pois se dirigem diretamente ao religioso e suas
manifestações na Cultura Popular, revelando suas imbricações com aspectos do social,
do econômico e do político.
O misticismo caracteriza o poema que trata da figura messiânica de Antonio
Mendes Maciel, o Conselheiro; enquanto a tônica mais forte do poema sobre o Pe
Henrique é a crítica social.
Em seu poema sobre o Conselheiro, Patativa enaltece a figura messiânica do
líder que foi Antonio Vicente Mendes Maciel, retratando sua função organizadora e
defensora do povo oprimido, em diversos momentos. Enaltecendo ainda, o caráter
missionário da vida do Conselheiro, que apesar de sua total intenção religiosa
provocava reações políticas.
319
ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador nordestino, p. 164-166.
320
A respeito da guerra de Canudos, seu histórico religioso milenarista e político, é possível recorrer a
diversas fontes; como indicação literária o livro “Os Sertões” de Euclides da Cunha e como exemplo de
textos acadêmicos, entre inúmeros outros, a REVISTA USP. Dossiê Canudos. Textos de José Calasans.
Nº 20, Dez./Jan./Fev., 1993/94.
321
Esse novo enfoque epistemológico sobre noções teológicas, além de instaurar uma reflexão que visa o
pleno compromisso de caridade da Igreja, pretende ressaltar seu compromisso libertador. Cf. introdução
da obra de GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação: perspectivas. Trad. Jorge Soares, 5ª ed.,
Petrópolis: Vozes, 1985, p.9-11.
Para maiores informações a respeito da Teologia da Libertação buscar também a obra em parceria de
BOFF, Leonardo. BETTO, Frei. Mística e espiritualidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
117
O líder do movimento milenarista adquire atributos de herói e passa a
representar a revolta contra a opressão, a resistência na marginalidade da religiosidade
popular.
De forma resumida e bela, Patativa retrata esse episódio marcante e triste da
história da Bahia e do Brasil e retrata também de modo claro e sucinto o seu mais ilustre
personagem. Na literatura popular em verso, a história se mostra sob uma perspectiva
diferente e o povo demonstra reconhecer sua própria opressão e as injustiças de que é
vítima, revelando seu caráter resistente através dos poemas, das palavras.
ANTÔNIO CONSELHEIRO
Cada uma na vida tem
o direito de julgar,
como tenho o meu também,
com razão quero falar
nestes meus versos singelos
mas de sentimentos belos,
sobre um grande brasileiro
cearense, meu conterrâneo
líder sensato e espontâneo
nosso Antônio Conselheiro
Este cearense nasceu
Lá em Quixeramobim,
Se eu sei como ele viveu,
Sei como foi o seu fim.
Quando em Canudos chegou,
com amor organizou
um ambiente comum
sem enredos nem engodos,
ali era um por todos
e eram todos por um
Não pode ser justiceiro
e nem verdadeiro é
o que diz que o Conselheiro
enganava a boa fé.
O Conselheiro queria
acabar com a anarquia
118
do grande contra o pequeno
pregava no seu sermão
aquela mesma missão
que pregava o Nazareno
(...)
Seguindo um caminho novo,
mostrando a luz da verdade,
incutia entre o seu povo
amor e fraternidade
em favor do bem comum,
ajudava a cada um
foi trabalhador ordeiro
derramando o seu suor
foi ele o líder maior
do Nordeste brasileiro
(...)
Mediante a sua instrução
naquela sociedade
reinava paz e união
dentro do grau de igualdade,
com a palavra de Deus
ele conduzia os seus
era um movimento humano
de feição socialista
pois não era monarquista
nem era republicano
(...)
E assim, bem acompanhados,
os planos a resolver
Foi mais tarde censurado
pelos donos do poder;
o taxaram de fanático
e um caso triste e dramático
se deu naquele local,
o poder se revoltou
e Canudos terminou
numa guerra social
119
(...)
Quem andar pela Bahia
chegando ao dito local
onde aconteceu um dia
o drama triste e fatal,
parece ouvir os gemidos
entre os roncos e estampidos
e em benefício dos seus
no momento derradeiro,
o nosso herói brasileiro
pedindo justiça a Deus.
322
A difusão da ideologia na sociedade, nunca é uniforme e total; podendo ser
“despistada” pelo pensamento popular, caracteristicamente assistemático e fragmentado,
que através de um dinamismo lento re-elabora e re-significa suas práticas culturais.
Com Patativa do Assaré, o povo nordestino vivencia a ressignificação da sua própria
vida, a recriação de sua identidade, a reelaboração de suas angústias e a reinvenção de si
mesmo.
A realidade nordestina de um povo espoliado das condições elementares de
dignidade, ao deparar-se com a ruptura do Tradicional, procura encontrar formas de
reorganizar-se demonstrando sua indignação ante tantas desgraças. Se, como vimos com
Renato Ortiz e sua leitura de Gramsci, a religião ora se apresenta como forma de
dominação, ora adquire caráter de subversão da ordem, de contestação e de resistência,
é justamente em suas manifestações messiânicas que ela insurge contra a hegemonia.
No caso do poema sobre Canudos e o líder Conselheiro, Patativa reforça esse caráter
messiânico das manifestações populares insurgentes, da importância desse líder
profético e político para a vida das pessoas simples do povo; mais uma vez seu discurso
poético se mostra elaboração crítica da realidade, buscando ressignificá-la sob insígnias
populares.
A religião do povo aglutina suas visões de mundo, possibilita uma maior
segurança perante a vida e ajuda a superar tanto dificuldades materiais, como aquelas de
322
ASSARÉ, Patativa do. Cordéis Patativa do Assaré. Fortaleza: EUFC, 1999. (Coleção Nordestina)
120
significado simbólico; no poema de Patativa a respeito do Pe. Henrique fica
extremamente realçada a função social, política, conscientizadora exercida pela Igreja
Católica, junto ao povo necessitado e sofrido, principalmente com a Teologia da
Libertação.
Por tudo isso a teologia da libertação nos propõe talvez não tanto novo tema para a
reflexão quanto novo modo de fazer teologia. A teologia como reflexão crítica da práxis
histórica é
assim uma teologia libertadora, teologia da transformação libertadora da história
da humanidade, portanto também da porção dela – reunida em ecclesia – que confessa
abertamente Cristo. Teologia que não se limita a pensar o mundo, mas procura situar-se como
um momento do processo através do qual o mundo é transformado: abrindo-se – no protesto
ante a dignidade humana pisoteada, na luta contra a espoliação da imensa maioria dos
homens, no amor que liberta, na construção de nova sociedade, justa e fraterna – ao dom do
reino de Deus.
323
A lógica da espiritualidade popular é rica, não doutrinária e incorpora inúmeros
elementos da vida, destoando em alguns pontos da intelectualidade vigente entre os
adeptos da Teologia da Libertação; entretanto nesse poema de Patativa podemos
perceber afinidades e respeito mútuo entre clérigos e povo.
O movimento da Teologia da Libertação tem como questão básica os pobres e os
oprimidos, posicionando-se a favor dos marginalizados e excluídos; talvez por isso a
religiosidade popular e a Cultura Popular identifiquem-se tanto com esse movimento da
Igreja Católica e seus adeptos, como podemos observar no poema O Padre Henrique e o
dragão da maldade.
O aspecto de resistência e crítica, próprio da Teologia da Libertação aprofundam
seu compromisso de serviço ao povo e propõe a Teologia como uma reflexão crítica da
práxis histórica. No poema, Patativa relata as perseguições políticas sofridas pelos
militantes e resgata o movimento estudantil atuante na época, junto à instituição Igreja.
O PADRE HENRIQUE E O DRAGÃO DE MALDADE
(...)
E, por falar de injustiça
traidora da boa sorte
eu conto ao leitor um fato
de uma bárbara morte
que se deu em Pernambuco
323
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação: perspectivas. p.27.
121
famoso Leão do Norte
Primeiro peço a Jesus
uma santa inspiração
para escrever estes versos
sem me afastar da razão
contando uma triste cena
que faz cortar coração
Falar contra as injustiças
foi sempre um dever sagrado
este exemplo precioso
Cristo deixou registrado.
Por ser reto e justiceiro
foi no madeiro cravado
(...)
Vou contar neste folheto
com amor e piedade
cujo título encerra
a mais penosa verdade:
O Padre Henrique
e o Dragão da Maldade
O Padre Antonio Henrique
muito jovem e inteligente
a 27 de Maio
foi morto barbaramente,
no ano 69
da nossa era presente
Padre Henrique tinha apenas
29 anos de idade,
dedicou sua vida aos jovens
pregando a santa verdade
admirava a quem visse
a sua fraternidade
Tinha três anos de padre
depois que ele se ordenou
122
pregava a mesma missão
que Jesus Cristo pregou
e foi por esse motivo
que o dragão lhe assassinou
(...)
Por causa do seu trabalho
que só o que é bom almeja
o espírito da maldade
que tudo estraga e fareja
fez tristes acusações
contra D. Hélder e a igreja
Com o fim de atemorizar
o apóstolo do bem
chegavam cartas anônimas
com insulto e com desdém,
porém quem confia em Deus
jamais temeu a ninguém
Anônimos telefonemas
com assuntos de terror
chegavam constantemente
cheios de ódio e rancor
contra Pe. Henrique, o amigo
da paz, da fé e do amor
(...)
A igreja de Jesus
nos oferece orações
mas também precisa dar
aos humildes instruções
para que possam fazer
suas reivindicações
Veja meu caro leitor,
a maldade o quanto é:
o Padre Henrique ensinava
cheio de esperança e fé,
aquelas mesmas verdades
123
de Jesus de Nazaré
E foi por esse motivo
que surgiu a reação,
foi o instinto infernal
com a fúria do dragão,
que matou o nosso guia
de maior estimação
(...)
Rádio, TV e jornais,
nada ali noticiaram
porque as autoridades
estas verdades calaram
e o padre Antonio Henrique
morto no mato encontraram
Estava o corpo do padre
de faca e bala furado,
também mostrava ter sido
pelo pescoço amarrado
provando que antes da morte
foi bastante judiado
(...)
Invadiram o Diretório
Estudantil, um recinto
Universidade Católica
de Pernambuco e, não minto,
foi atingido por bala
o estudante Cândido Pinto
Foi seqüestrado e foi preso
o estudante Cajá
o encerramento no cárcere
passou um ano por lá
Meu Deus! a democracia
deste país onde está?
Cajá o dito estudante
124
pessoa boa e benquista,
pra viver com os pequenos
deixou de ser carreirista
e por isto, o mesmo foi
taxado de comunista
(...)
Tudo isto, leitor, é truque
de gente sem coração
que, com o fim de trazer
os pobres na sujeição,
da palavra comunismo
inventa um bicho papão
(...)
Mostrando a mesma verdade
de Jesus na Palestina
o movimento se estende
contra a opressão que domina
sobre os nossos irmãos pobres
de toda América Latina
Quando Jesus Cristo andou
pregando sua missão
falou sobre a igualdade,
fraternidade e união,
não pode haver injustiças
na sua religião
Por este motivo a Igreja
nova posição tomou
dentro da América Latina
a coisa agora mudou,
o bom cristão sempre faz
aquilo que Deus mandou.
(...)
Vendo a medonha opressão
que vem do instinto profano,
me vem a mente o que disse
125
o grande bardo baiano
O Poeta dos Escravos
apelando ao Soberano
Senhor Deus dos desgraçados
dizei-me vós, Senhor Deus,
se é mentira, se é verdade
tanto horror perante os céus.
(...)
A vida do padre Henrique
Vamos guardar na memória
ele morreu pelo povo,
é bonita a sua história
e foi receber no céu
sua coroa de glória
Pensando no triste caso
entristeço e me comovo,
o que muitos já disseram
eu disse e digo de novo
o padre Henrique é um mártir
que morreu pelo seu povo
(...)
324
Mesmo sabendo que esse poema foi produzido a partir de um pedido de um
representante da instituição eclesiástica, percebemos a visada popular de determinado
momento histórico da realidade brasileira; permanece a criticidade social comum a
outros poemas de Patativa, a pertinente conscientização política do autor e ainda a
percepção da situação de perseguição e autoritarismo vivenciada no período. O
humanismo cristão já perceptível em outros versos de Patativa e marcante em toda sua
obra, ressalta nesse poema em parceria com a elaboração popular das propostas
teológicas do grupo da Teologia da Libertação.
Para além dos diversos elementos de religiosidade popular elaborados pela
poética de Patativa, revelando-se a fragmentação e ambigüidade de sua visada popular,
324
ASSARÉ, Patativa do. Cordéis Patativa do Assaré. Fortaleza: EUFC, 1999. (Coleção Nordestina)
126
sob as formas ora de recusa, ora de reinvenção, de elementos similares; fator marcante e
peculiar é sua reinvenção do conceito de Providência Divina. Patativa rejeita a hipótese
de que o sofrimento do povo sertanejo possa ser atribuído a Deus ou ao pecado, como
pagamento por alguma dívida; sua visão a respeito da Divina Providência diverge
completamente dessa hipótese do sofrimento como sina ou destino do povo sertanejo;
afirma que todos possuem a razão, dom de Deus, sendo ingratos e opressores aqueles
que negam os direitos aos demais.
Para Patativa, não é Deus quem castiga ou a seca que obriga o sertanejo à
sentença de sofrimento, ao contrário são as injustiças, a indiferença e a exploração dos
próprios humanos; permanecendo clara essa sua visão das injustas condições de vida do
sertanejo em diversos poemas
325
, como por exemplo, no poema que segue.
A TRISTE PARTIDA
(...)
Entonce o rocêro, pensando consigo,
Diz: isso é castigo!
Não chove mais não
(...)
Mas nada de chuva! Tá tudo sem jeito,
Lhe foge do peito
O resto da fé.
326
A poesia de Patativa, como podemos perceber nessa pequena amostragem, é
vasta em seus temas e ao mesmo tempo profunda em suas análises, retratando a
compreensão popular de questões cotidianas ou complexas; seus versos revelam a
heterogeneidade de possibilidades interpretativas da realidade, elaboradas na e pela
Cultura Popular.
325
ASSARÉ, Patativa do. Digo e não peço segredo, p.42.
326
Trecho do poema A triste partida, musicado por Luiz Gonzaga posteriormente, contido na obra
ASSARÉ, Patativa do. Inspiração Nordestina, p.51-54.
127
4.3 Divina providência: breve histórico do conceito
Comumente usada no discurso religioso cristão, a palavra providência evoca
algo ou alguém que dirige os acontecimentos do mundo e da vida humana; estando
sempre associada à sorte ou ao destino de cada um e de cada coisa.
327
O termo é relacionado ao governo ou cuidado que um ente sobrenatural tem com
o mundo e com cada uma das pessoas em ordem à realização de seu desígnio salvador;
tratando-se nesse sentido de uma personificação da divina providência, ou seja, de Deus
mesmo cuidando de cada uma de suas criaturas.
328
Tendo como fonte a filosofia estóica, que considerava a providência como lei do
mundo que deveria ser respeitada pelos humanos; a providência não é um simples
conceito, nas religiões reveladas, mas é considerada como algo que se deduz das obras
de Deus. No Antigo Testamento são diversos os trechos que mostram o próprio Deus
agindo em favor de seu povo, cuidando de suas criaturas e realizando pactos em seu
benefício.
329
Também no Novo Testamento, a providência é o próprio Deus Pai dos
homens, fonte de confiança e salvador na figura do Cristo.
330
Porém, para essa doutrina tradicionalmente instituída que relaciona providência
e ação de Deus na vida cotidiana dos seres humanos, é difícil conciliar essa ação
providencial com a existência do Mal.
331
Aprofundando essa questão, é bastante interessante a tese desenvolvida por
Roque Frangiotti a respeito das implicações sóciopolíticas da doutrina tradicional da
providência. O autor levanta questões a respeito dos significados implícitos à idéia de
Deus como providência, numa sociedade de marginalizados na qual vigora uma injusta
ordem estabelecida; enfim procura explicitar os laços entre as representações de Deus e
a situação histórica vigente.
332
De acordo com esse autor, a doutrina dos primeiros cristãos que mostrava um
Deus libertador reverteu-se em uma doutrina legitimadora da ordem estabelecida, sendo
uma das principais causas dessa reversão a própria doutrina tradicional da providência
327
SANTIDRIÁN, Pedro R.. Dicionário básico das religiões. Aparecida, São Paulo: Editora Santuário,
1996, p.399.
328
PEDRO, Aquilino de. Dicionário de termos religiosos e afins. Trad.: Pe. Francisco Costa. Aparecida,
São Paulo: Editora Santuário, 1993, p.255.
329
Gn 1, 22.28; Is 42, 5; Jô 38 e Sl 104.
330
Rm 8,28 ss.
331
SANTIDRIÁN, Pedro R.. Dicionário básico das religiões. Aparecida, São Paulo: Editora Santuário,
1996, p.399.
332
FRANGIOTTI, Roque. A doutrina tradicional da providência. Implicações sociopolíticas. São Paulo:
Paulinas, 1986.
128
divina.
333
Segundo ele, certos modos de crer e representar Deus fornecem suporte
sobrenatural às formas de dominação estabelecendo uma caricatura de Deus, que
engloba as esferas: psicológica, sacralizando um modelo autoritário de pai; sociológica,
sacralizando a ordem estabelecida geradora de injustiças; filosófica, sacralizando a
causalidade mecânica; e cósmica, sacralizando a natureza.
334
Como conseqüência dessa concepção, carregada de subordinação rígida, o ser
humano permanece como mero subordinado desse Deus Providência, perdendo a
consistência e autonomia de suas ações.
335
Nessa análise cuidadosa, Frangiotti aproxima-se do aspecto teológico-político da
doutrina tradicional da divina providência
336
; examinando primeiramente as conotações
originárias dos termos destino, fortuna e logos no mundo Greco-romano, realizando
aproximações semânticas entre essas palavras e as noções referentes ao domínio
conceitual do termo providência.
337
No decorrer de seu trabalho, o autor defende a tese de que a doutrina tradicional
da providência divina legitimou respostas elaboradas anteriormente, alimentou um
sistema autoritário e exerceu função de justificação da ordem sociopolítica
estabelecida.
338
Os principais termos originários do conceito de providência decorrem do mundo
clássico grego e relacionam-se à sorte e às forças ocultas; sendo que destino ou
heimarméné significava a parte ou sorte que cabe a cada um, como uma predestinação
inflexível ou uma disposição imutável na ordem das coisas.
Desde a tragédia grega e também na filosofia estóica considerava-se krâsis como
a ordem das coisas, atribuindo sabedoria àqueles que agissem segundo uma resignação
voluntária diante do destino. Portanto, o ser humano deveria considerar sua existência
como determinada pelo Logos Universal, aderindo a ele e assim atingindo a
felicidade.
339
Nas Sagradas Escrituras, o termo providência aparece no Antigo Testamento,
como pronóia nas últimas páginas, sendo de origem helenística, grega e estóica;
juntamente com a revelação de Deus (Iahweh) como providente, protetor e paternal. Já
333
Ibidem, p.7.
334
Ibidem, p.8.
335
Ibidem, p.9.
336
Ibidem, p.12.
337
Ibidem, p.14.
338
Ibidem, p.11.
339
Ibidem, p. 19-31.
129
no Novo Testamento, o termo não é aplicado a Deus diretamente, mas aparece como
presciência e provimento de bens.
340
De acordo com as pesquisas desse autor, é possível sustentar a hipótese de uma
origem sóciopolítica dessa concepção de Providência; pois já no início do Cristianismo
constitui-se uma tradição teológica a respeito do conceito, baseada em idéias estóicas,
na qual os padres apologistas elaboraram uma imagem de Deus providente, onipotente,
onisciente, transcendente e senhor da história.
341
Outros pensadores cristãos, no decorrer da história, seguiram confirmando
afinidades entre a filosofia helênica e a fé, substituindo a antiga crença no destino pela
crença na providência; entre eles Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, além de
textos do Concílio de Trento e também do Concílio Vaticano I.
342
Ao descrever a trajetória histórica e os desdobramentos do conceito de
Providência, ele realiza uma interessante reflexão, levantando questões diversas sobre a
finalidade da existência humana (em si), sobre a relação entre a ordenação divina pela
providência e as misérias vigentes no mundo, e também a respeito dos propósitos de
Deus em relação à existência humana criatural.
343
Como base para tais questionamentos, o autor cita o teórico e teólogo Paul
Tillich, para o qual o conceito de Providência acaba por estancar a criatividade, tanto de
Deus quanto dos humanos; falar em desígnio divino traz em si um modelo
preconcebido, redutor das contingências históricas e aniquilador da liberdade.
Frangiotti levanta ainda objeções contra essa doutrina tradicional da Providência
e inicia sua análise baseando-se no Novo Testamento; percebe no Evangelho de Lucas
uma apologia dos pobres, para os quais Jesus destina suas promessas de bem
aventurança; sendo os ricos narrados como produtores de violência e perseguição,
segundo esse livro bíblico, os cristãos deveriam, portanto, despojar-se de seus bens em
favor do próximo.
344
Na epístola de Tiago, afirma que é recorrente a indignação ante as distinções e
privilégios entre ricos e pobres; sendo os ricos acusados nos termos de: acumulação de
340
Ibidem, pp. 36-44.
341
Ibidem, p. 60.
342
Ibidem, pp. 61-71.
343
Ibidem, p. 72.
344
Ibidem, p. 142-144.
130
capital, exploração dos trabalhadores, abuso das posses e assassínio do justo.
345
O autor
cita ainda o teor crítico de outros livros bíblicos como: Profetas, Eclesiástico e Jó.
346
Os argumentos do autor prosseguem demonstrando que, apesar da contrariedade
às Escrituras, essa doutrina tradicional da Providência manteve os pobres imóveis e os
dispôs a ser mais facilmente presa dos ricos e exploradores.
347
As interpretações e
explicações elaboradas pela teologia tradicional cristã, segundo Frangiotti, operaram um
desvio da mensagem do Evangelho referente aos humildes; desvio esse que foi usado
em proveito da ordem estabelecida e daqueles que monopolizam o poder.
348
Para a Teologia Moderna, questões referentes à relação entre Deus e o mundo,
bem como sobre Sua imanência ou transcendência, persistem e mantém sua capacidade
de permanecer sem respostas totalmente satisfatórias; o teólogo Paul Tillich ao elaborar
seu Sistema Teológico discute questões referentes à imanência ou transcendência de
Deus, considerando a utilização desses termos afora seus aspectos espaciais.
Tillich procura explicar essa simbologia espacial de modo a apontar para uma
relação qualitativa, afirmando que “Deus é imanente ao mundo como seu fundamento
criativo permanente e é transcendente ao mundo através da liberdade”
349
. O autor
substitui o conceito de finalidade da criação por telos da criatividade, considerando a
idéia de uma criatividade diretiva de Deus como sinônimo do termo tradicionalmente
usado, Providência.
350
Anteriormente à pormenorização de seu conceito sobre a providência, faz-se
necessário compreender minimamente sua idéia de doutrina da criação, para melhor
acompanhar as reflexões elaboradas por Paul Tillich; para o teólogo essa doutrina não
descreve um evento, mas aponta para uma situação de relação entre, Deus e o mundo,
entre criatividade infinita e criaturalidade finita. Afirma que a vida divina é
essencialmente criativa e deve ser simbolizada nos três modos do tempo, passado,
presente e futuro; pois Deus criou, é criativo no presente e plenificará sua criação, e
devemos portanto distinguir criação originante, criação mantenedora e criação diretiva,
que seria a providência.
351
345
Ibidem, p. 146-147.
346
Ibidem, p. 147.
347
Ibidem, p. 163.
348
Ibidem, p. 180.
349
TILLICH, Paul, Teologia Sistemática. Trad. Getúlio Bertelli, 2ª ed., São Paulo: Paulinas/ São
Leopoldo, RS: Sinodal, p.221.
350
Ibidem, p.222.
351
Ibidem, p.213.
131
Para o teólogo Tillich, Providência é um conceito paradoxal, que se estabeleceu
com a vitória do Cristo sobre as forças da fatalidade e propõe a fé apesar da situação
existencial; entretanto o autor ressalta que durante a era cristã o conceito de providência
foi, pelos humanos, transformado em princípio racional que poderia ser definido e
descrito. Em sua ânsia por estabelecer quais seriam as razões da atividade providencial
de Deus, os humanos elaboraram três formas sob as quais essa atividade providencial se
manifestaria: a teleológica, a harmônica e a dialética.
352
Tillich ressalta que, no entanto, as catástrofes do século vinte abalaram a crença
nessa providência racional, trazendo novamente à tona a fatalidade e aguçando o desejo
humano pela possibilidade de realização pessoal. O teólogo propõe um outro sentido
para Providência como atividade permanente de Deus, aquele que dirige tudo à
plenitude, mas que cria através da liberdade humana.
353
Aprofundando suas questões e levantando temas como a relação entre liberdade
e destino, entre necessidade e contingência, Tillich afirma que muitos fatores ajudam a
determinar o destino humano, sendo que tudo aquilo que lhe acontece é conseqüência de
seu destino, mas também é ato de sua liberdade, sem esquecer que sempre sob a
criatividade diretiva de Deus.
354
Aproximando a teologia sistemática elaborada por Tillich da poética popular
elaborada por Patativa do Assaré percebemos afinidades no que se refere à Providência,
já que para o teólogo não se pode entender a criatividade diretiva de Deus de forma
determinista, como decreto divino ou mecanismo supranatural. O teólogo ressalta a
polaridade ontológica básica entre liberdade e destino e afirma que a Providência atua
mediante a espontaneidade das criaturas e também mediante a liberdade humana. Tillich
salienta ainda a importância de se considerar os poderes do mal na história e sua relação
com a providência, dadas as conseqüências trágicas já conhecidas; afirma que somente a
partir de tais considerações, faz-se possível elaborar um conceito de providência que
exclua aquele costumeiro otimismo teleológico, lembra que a liberdade dada a cada
indivíduo, procede tanto para o bem como para o mal e a providência histórica inclui
tudo isso.
355
352
Ibidem, p.222.
353
Ibidem, p.224.
354
Ibidem, p.334.
355
Ibidem, p.669.
132
Mesmo com relação às mensagens proféticas Tillich afirma que a ação da
providência não supõe desígnio concreto, mas apenas o domínio universal da ação
divina em termos de criatividade histórica, juízo e graça, conjunto todo dos atos
providenciais particulares.
356
No caso da poética de Patativa, percebemos a elaboração de um discurso
profético que através da memória valoriza o passado com seus valores, critica o presente
por suas injustiças e proclama a esperança no futuro.
4.4 Discurso profético: a poética popular elaborada como missão
O discurso poético ou a representação, seja ela qual for, não é passiva, nem
mecânica e nem estática, com bem afirma Alfredo Bosi
357
, as temáticas recorrentes no
quadro social de uma época ou em um autor, como Patativa, revelam consciência da
situação vivida, desmascaram ações reificadas e denunciam imposturas
convencionalizadas. Os textos literários podem caracterizar-se como reflexo e também
como reflexão, como espelho e também como resistência, a depender de sua
historicidade; histórico, segundo Bosi, é o que ficou na consciência e a memória é a
responsável por manter vivo esse passado, acrescendo-lhe o estatuto de consciência
histórica.
358
Para a compreensão desse conceito de memória é interessante recorrer a
interpretação feita por Ortiz do conceito de memória coletiva desenvolvido por
Halbwachs, no qual o grupo é a unidade de referência; os grupos podem ser diversos,
ocasionais ou permanentes, possuem características comuns e comunidades de
lembranças. Lembrar nesse caso atualiza fatos, situações, acontecimentos vivenciados e
partilhados por todos do grupo, o empenho dessa memória coletiva é lutar contra o
esquecimento; ocorre aí um entrelaçamento entre comunidade e memória.
359
No caso da poética de Patativa, além da memória, outro fator importante é a
perspectiva de futuro presente em seus versos, a utopia que se revela num projeto,
através de sua atitude profética; seu discurso além de resgatar o vivido, atribuindo
significado a determinados elementos, resgatando a auto-estima de seu grupo social e
356
Ibidem, p.670.
357
BOSI, Alfredo. Literatura e Resistência. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p.50.
358
Ibidem, p.53.
359
ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura. 3ª edição, São Paulo: Brasiliense, 1998, p.137.
133
propondo novos elementos identitários a esse grupo, propõe ainda um projeto comum
de futuro.
Como bem resume Muniz Sodré, em sua complexa análise da sociedade
contemporânea, o discurso profético é a palavra de um porta-voz que representa
estruturas imutáveis e intemporais, reflete a voz do Absoluto, é como a Boca de Deus;
ocorre que esse discurso profético religioso tem uma força moral e transmuta-se,
eventualmente, em revolta política.
360
O próprio Patativa se intitula poeta que traduz a voz divina, como aquele que
apesar do pouco ensino formal, elabora sua poesia a partir da natureza, como dom
divino; o tom profético de seu discurso denota-se por sua memória, sua valorização do
passado e da tradição, bem como por sua crítica utópica com vistas a um futuro melhor
para seu grupo social, com bases no catolicismo tradicional popular.
A criticidade política e social presente e marcante nos versos de Patativa, que
acabam por reforçar o tom de seu discurso profético de crítica das desigualdades
vigentes em sua época, podem ser melhor compreendidas a partir das informações
trazidas por Cláudio Henrique Sales Andrade em sua pesquisa a respeito da vida e da
obra do poeta; segundo ele em fins da década de cinqüenta eclodiu um processo de
lutas e reivindicações sociais no campo, denominado de Ligas Camponesas,
organização que oficialmente surgiu em 1955 no Recife.
361
Essas Ligas Camponesas se espalharam por todo o Nordeste, discutiam conflitos
e insatisfações diante das condições do trabalho rural, associaram-se também às
reivindicações da esquerda brasileira e, por proximidade e afinidade de classe, podem
ter influenciado a poética de Patativa do Assaré.
362
Conhecer e reinterpretar o passado, fazer a crítica do presente e dar sentido ao
futuro coincide com o desenvolvimento humano no tempo, enquanto processo
identitário, já que a identidade se transforma e vai se concretizando pelas novas
relações sociais nas quais se enreda, de acordo com Ciampa, já citado em outros
capítulos.
363
360
SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2002, p.50.
361
ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção (capítulos de uma
poética sertaneja), p.140.
362
Ibidem, p.141.
363
CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a história da Severina. Um ensaio de psicologia
social. São Paulo: Brasiliense, 2001, pp.105-109.
134
Elemento importante na constituição da identidade humana, segundo a teoria
desenvolvida por Ciampa, é transformar as determinações exteriores em
autodeterminações, elaborar certa unidade entre subjetividade e objetividade; essa
autodeterminação supõe uma finalidade, um objetivo, um projeto
364
que pode ser
individual e também coletivo, como é o caso daquele projeto de vida vislumbrado
poeticamente para o povo nordestino pelo poeta.
A consideração de seu discurso poético como profético, decorre tanto de sua
importante formulação das determinações exteriores em autodeterminações, num
projeto que se traduza como perspectiva de futuro para o sertanejo nordestino
individualmente e enquanto classe; como também por sua forte ligação ao passado e à
tradição, criticamente consciente do presente e esperançosa diante do futuro.
A constituição de universos simbólicos, de acordo com a análise de Ortiz a
respeito da obra de Peter Berger, tem valor central em todas as sociedades, pois é
através dela que interpretam a ordem das coisas, conferem sentido à própria vida e
ordenam a história.
365
Um desses universos simbólicos é o utópico, no qual presente e
passado são preteridos pelo futuro, com um topos imaginário no qual o pensamento
entra em contradição com a realidade vigente, as energias são canalizadas para a
construção de uma nova ordem, alimentada pela transformação e a esperança.
366
Enfim a constituição de um discurso poético-profético aponta para a utopia,
enquanto universo simbólico de sentido da realidade vivida, esse caráter messiânico
religioso do discurso poético, encontra-se presente na poesia de Patativa; caracteriza-se
como elemento de subversão da ordem, de contestação da dura realidade nordestina e
de resistência às injustiças sofridas pelo povo.
Considerando a utopia como universo simbólico de sentido da realidade, o
discurso poético-profético elaborado por Patativa diverge daquele reproduzido e
incutido pela Instituição católica em alguns aspectos; apesar de sua base cristã católica
e da enorme influência dos valores morais estabelecidos pela Instituição na obra do
poeta, faz-se necessário ressaltar a originalidade de sua interpretação hermenêutica do
conceito de providência, considerando ainda que a conceituação de um Deus pai,
providente e totalmente responsável pelo destino da existência humana, não poderia
coincidir com o discurso poético utópico e libertário como o de Patativa do Assaré.
364
Ibidem, pp.144-146.
365
ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura, p.132.
366
Ibidem.
135
4.5 Patativa do Assaré: a reinvenção poética da Providência
Nas leituras da obra patativana, em busca dos aspectos marcantes de sua
religiosidade tipicamente popular, um entre outros chama atenção logo de início; qual
seja, sua visão extremamente peculiar e particular em relação à Providência Divina.
Um outro estudioso também percebeu esse diferencial da poética de Patativa; no
livro, em que apresenta sua tese sobre Patativa, o autor Cláudio Henrique Sales Andrade
salienta a marcante e consciente preocupação do poeta em seus versos de não
naturalizar ou reduzir a problemática nordestina a desígnios divinos.
367
O pesquisador cita, em sua análise, diversos poemas de Patativa nos quais
aparecem referências à associação entre a situação de exploração vivida pelo povo
sertanejo e os desígnios divinos; entre eles Nordestino sim, nordestinado não, Caboclo
roceiro e Vingança de matuto. Sob esse mesmo ponto de vista, considero que além
desses, são inúmeros os poemas ou trechos de poemas de Patativa que ressaltam uma
elaboração popular da doutrina da Providência; podemos inclusive afirmar esta como
uma das principais temáticas, senão a principal, levantada de modo recorrente pelo
poeta.
VIDA SERTANEJA
(...) Por força da natureza,
Sou poeta nordestino,
Porém só canto a pobreza
Do meu mundo pequenino. (...)
Canto a vida desta gente
Que trabáia inté morrê
Sirrindo, alegre e contente,
Sem dá fé do padecê, (...)
(...)
E, como nada conhece,
Diz, rezando a sua prece:
Foi Deus que ditriminou!
Pensando assim desta forma,
367
ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção (capítulos de uma
poética sertaneja), p.138.
136
Resignado, padece;
Paciente, se conforma
Com as coisa que acontece.
Coitado! Ignora tudo,
Pois ele não tem estudo,
Também não tem assistença.
E por nada conhecê
Em tudo os camponês vê
O dedo da Providença. (...)
368
Patativa inicia o poema acima fazendo elogios à força trabalhadora do sertanejo,
valorizando esse povo sofrido e colocando-se irmanado às mágoas de seu povo; retrata
e reforça a identidade, os valores e as crenças desse povo, enaltecendo os preceitos
cristãos respeitados por eles. Porém Patativa ressalta e denuncia as injustiças sociais
que são, muitas vezes, vistas pelo povo como desígnio divino, Providência. O poeta
percebe que às condições desfavoráveis de vida do pobre permanecem e sobressaem-se
as posturas resignadas, decorrentes da doutrina tradicional da Providência que foi
incutida à mentalidade popular.
CABOCLO ROCEIRO
Caboclo roceiro das plagas do norte,
Que vives sem sorte, sem terras e sem lar,
A tua desdita é tristonho que canto,
Se escuto teu pranto, me ponho a chorar.
Ninguém te oferece um feliz lenitivo,
És rude, cativo, não tens liberdade.
A roça é teu mundo e também tua escola,
Teu braço é a mola que move a cidade.
De noite, tu vives na tua palhoça,
De dia, na roça, de enxada na mão,
Julgando que Deus é um pai vingativo,
Não vês o motivo da tua opressão.
Tu pensas, amigo, que a vida que levas,
368
Trechos do poema “Vida Sertaneja” encontrado na obra de ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu
canto cá: Filosofia de um trovador nordestino, p.75-78.
137
De dores e trevas, debaixo da cruz
E as crises cortantes quais finas espadas,
São penas mandadas por Nosso Jesus.
Tu és, nesta vida, um fiel penitente,
Um pobre inocente no banco do réu.
Caboclo, não guardes contigo esta crença,
A tua sentença não parte do céu.
O Mestre Divino, que é Sábio Profundo,
Não fez, neste mundo, o teu lado infeliz.
As tuas desgraças, com tuas desordens,
Não nascem das ordens do Eterno Juiz.
A Lua te afaga sem ter empecilho,
O sol o seu brilho jamais te negou,
Porém, os ingratos, com ódio e com guerra,
Tomaram-te a terra que Deus te entregou.
De noite, tu vives na tua palhoça,
De dia na roça, de enxada na mão.
Caboclo roceiro, sem lar, sem abrigo,
Tu és meu amigo, tu és meu irmão.
369
Mais diretamente, nesse poema, Patativa desnuda as condições de opressão
vividas pelo povo sertanejo; alertando para a ilusão da crença popular na Divina
Providência como foi incutida historicamente pela Instituição e perfazendo a crítica,
bem como a ressignificação, em moldes populares, desse conceito.
Persiste, por toda obra de Patativa, a recorrente temática da providência como
crítica da ideologia institucionalmente estabelecida; é preciso considerar, no entanto,
que todo texto é marcado por diversos tempos convergentes e imbricados num sujeito,
numa trama social que o envolve; e no caso da poesia de Patativa e sua recorrente
temática da Providência, é possível perceber um encontro de tempos, através do qual
enfrenta a rotina retórico-ideológica da sociedade usando livremente instrumentos da
própria tradição.
370
369
ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um trovador nordestino, p.99-100.
370
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia, p.14-15.
138
O enfrentamento dessa ideologia dominante pela cultura e religiosidade popular,
no entanto, não pode ser visto como uma oposição sistematizada; principalmente por
seu caráter fragmentário, pelo fato dessa concepção de mundo utilizar-se de elementos
reinterpretados da própria cultura dominante, combinados às tradições.
371
VINGANÇA DE MATUTO
(...)
Minha vingança é que depois da morte,
Tem ele a sorte de vivê afrito,
Lá nas caldêra do purão do Inferno,
Tem fogo eterno para o Binidito.
372
Essa estrofe de Patativa pode ser incluída entre as inúmeras narrativas
produzidas a partir de situações de crise e opressão, que detonam forças de resistência e
se revelam como formas simbólicas de crítica do presente e expectativa de melhores
condições, mesmo que depois do juízo final.
373
A recorrência ou retorno, recurso comum à poesia, presente em Patativa quando
se trata do tema da Providência, pode ser considerada como reflexo de um desejo, qual
seja o de recuperar, através do signo, o estrato de uma experiência vivida
anteriormente.
374
É interessante considerar que, segundo Alfredo Bosi e seus estudos
sobre a recorrência poética, esse modo pelo qual a linguagem recupera a sensação de
simultaneidade, reitera e retoma, apesar da repetição revela que se perfaz um caminho,
dando idéia de prosseguimento e continuidade.
375
Minha interpretação particular da idéia de recorrência aqui se refere à constante
repetição, explícita ou implícita, de uma crítica da doutrina tradicional da Providência
na obra de Patativa do Assaré; considerando-a como intencionalmente elaborada; como
algo que se refaz, mas também se renova, se intensifica e não somente se repete.
376
371
ORTIZ, Renato. A consciência fragmentada. Ensaios de cultura popular e religião. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1980, p.47.
372
Última estrofe do poema encontrado na obra de ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá:
Filosofia de um trovador nordestino, p.286.
373
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia, p.204.
374
Ibidem, p.37.
375
Ibidem, p.41.
376
Parafraseando BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia, p.42.
139
Como o próprio Bosi alerta, “Ao decifrar um texto antigo, tentamos descobrir os
‘valores’ que lhes eram próprios, mas, às vezes, ajuntamos os nossos aos dele, ou
mesmo substituímos os dele pelos nossos.”
377
Há que se considerar sempre, portanto, o texto como encontro de tempos
heterogêneos, do próprio poeta e de sua experiência histórico-social registrada no
poema, bem como de quem o lê e interpreta. Ainda segundo Bosi, o tempo histórico
produtor de valores e saturado de conotações ideológicas e míticas, é mutante; sendo
que para reconstituí-lo é preciso esforço e empatia, já que a consciência histórica e
crítica do leitor não é estável.
378
Ao propor sua crítica dessa doutrina, imposta pela ortodoxia da Igreja, Patativa
reelabora e ressignifica, segundo elementos da cultura popular, a idéia de Providência
vigente; a partir da percepção popular constitui uma concepção de Deus, como criador
e pai amoroso, porém não responsável pelas condições injustas de nossa sociedade.
A poesia pode incluir momentos sofridos da práxis como geradores de recusa
irada do presente e vistas ao futuro
379
, e no caso da poesia de Patativa é o que ocorre;
ele perfaz um caminho de aproximação dos sentimentos populares com a poesia, com a
literatura, com a escrita, representando ele próprio um ‘intelectual’ do povo, semelhante
aos parâmetros de um intelectual orgânico delimitados por Gramsci.
380
377
Ibidem, p.144.
378
Ibidem, p.145.
379
Ibidem, p.185.
380
ORTIZ, Renato. A consciência fragmentada, p.57.
140
CONCLUSÃO
Neste trabalho, inicialmente, consideramos como principais fontes da Literatura
Popular brasileira, os códigos da oralidade, da voz e da performance e, além disso,
procuramos salientar as especificidades dessa Literatura no Brasil. Posteriormente,
além de um esboço biográfico e histórico do homem e do poeta Patativa do Assaré,
procuramos enfatizar a relação entre sua existência peculiar de sertanejo e sua poética
popular.
Depois de elencar os elementos identitários presentes nos versos de Patativa e
analisá-los, procuramos esmiuçar sua relação com a possibilidade de elaboração de uma
poética resistente. Consideramos a poesia de Patativa como doadora de um novo e vital
sentido para a existência do povo nordestino, como poesia que restaura a importância da
vida, de valores humanitários, da religiosidade e de uma consciência crítica diante da
realidade inóspita, enfim como uma poesia que se faz transformação. Constatamos as
variantes presentes na poesia de Patativa, desde a poesia mítica, sátira, revolucionária e
utópica, além da constituição de um discurso poético que parte de um topos negativo,
caracterizando contestação e resistência.
Confirmada a hipótese inicialmente sustentada de elaboração de uma poética
resistente, pudemos focar o olhar sob os elementos mais diretamente relacionados à
religião e sua influência na poética popular do autor; focamos o conceito de Divina
Providência, evidenciando a forma com que é articulado na poesia de Patativa, suas
especificidades em relação ao conceito tradicionalmente utilizado e enfatizamos o modo
como é ressignificado. Captamos e discutimos ainda, a atitude assumida pelo poeta de
uma função profética, tocamos no aspecto utópico e referencial desta para a identidade
nordestina no que se refere ao resgate da memória de um grupo, de sua auto-estima e de
suas perspectivas de futuro como projeto coletivo e existencial.
A constituição de uma concepção de mundo própria do povo, de acordo com a
leitura de Gramsci elaborada por Ortiz, deve atentar para a questão da produção e
141
consumo de bens culturais, bem como para a ambigüidade intrínseca a esses
fenômenos, enquanto reprodução social e elemento de transformação.
381
Na obra de Patativa atualiza-se a constituição de uma concepção de mundo
popular, já que além da vasta produção dos bens culturais, elaboram-se ainda
mecanismos de distribuição e consumo desses mesmos bens; para além da distribuição
comum à Literatura Popular Nordestina, qual seja o comércio dos folhetos em feiras e
locais públicos de grande circulação popular e a apresentação dos cantadores, o
diferencial da poesia de Patativa se dá pela amplitude de público atingido por sua
produção. Os diversos recursos midiáticos (livros, filmes, entrevistas, músicas,
documentários e etc) responsáveis pela divulgação e consumo da obra de Patativa,
acabaram por universalizar seu público e divulgar sua obra sem limites de classe, grupo
social e até mesmo de Nação.
Contudo, a universalidade da obra poética de Patativa, devida não só a
divulgação comercial de suas obras, mas certamente a estética de sua poética e ao
conteúdo ético de seu discurso, corrobora a discussão sobre a cultura popular e sua
importância para possível constituição de uma identidade brasileira.
Sob esse aspecto é interessante o estudo de Maria Theresa D. de Moraes, que
aborda o movimento armorial, seus projetos e representações sobre a cultura popular;
procura delinear o significado de cultura popular no projeto de realização de uma
cultura brasileira configurada no pensamento armorial e procura também analisar os
confrontos entre os projetos do Movimento Armorial e de outros intelectuais,
considerando diferenças de enfoque da cultura popular e importância referencial
exercida nas elaborações armoriais, seja sob recusa ou reinvenção.
382
Apesar das divergências existentes nas posições de intelectuais da época,
existiam pontos de intersecção, segundo Moraes, principalmente no que se refere à
cultura popular; por exemplo, a concepção de cultura popular como unidade orgânica,
guardiã da tradição e fonte de autênticos valores, além da idéia de que o Nordeste seria
um celeiro dessas tradições, representando (sob uma ótica evolucionista) a infância do
país, local que não se desenvolveu e preservou suas tradições. A autora afirma que sua
381
Ibidem, p.63.
382
MORAES, Maria Theresa Didier de. Emblemas da sagração armorial: Ariano Suassuna e o
Movimento Armorial (1970-76). Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2000, p.18.
142
tentativa é desconstruir essa representação da cultura popular como possuidora de
essência e linearidade.
383
Evitando reducionismos entre dimensão real-social e as representações mentais
da sociedade, afirmando que o simbólico é parte desse real sendo sua compreensão,
portanto, fundamental para uma completa abordagem da realidade; Moraes propõe uma
crítica ao movimento armorial e elabora, intrinsecamente a essa discussão, uma reflexão
sobre as representações constituídas de cultura popular.
384
A autora afirma a cultura como expressão de um modo de vida, que é
distintamente construída nas relações sociais do grupo com seu meio; caracterizada por
diferenças que dificilmente podem ser reunidas de modo sincrético como constituintes
de uma identidade nacional. Segundo ela, interpretações que, através da união das
diferenças num pluralismo sincrético, pretendam constituir uma única representação de
povo acabam por desconsiderar a construção histórica dos símbolos e significados,
incorrendo no erro do estabelecimento de estereótipos reducionistas.
385
Também de acordo com essa afirmações podemos citar novamente Renato Ortiz,
em outro de seus livros, o qual afirma que toda identidade é uma construção simbólica,
portanto não havendo uma única identidade autêntica e sim uma pluralidade de
identidades, construídas por diferentes grupos sociais, em diferentes momentos
históricos.
386
Como se vê a procura de uma identidade brasileira que seja em sua essência
verdadeira é na realidade um falso problema, como bem afirma Ortiz
387
; assim sendo a
forma plausível de se pensar em uma identidade ou em um processo identitário humano,
coincide àquela proposta por Ciampa; que considere as condições do meio, mas também
as condições internas dos indivíduos, que pontue as determinações externas, bem como
aquelas tornadas autodeterminações pelos próprios indivíduos, enfim uma construção
processual. Se consideramos a poesia de Patativa importante e influente no decorrer
desse processo identitário, sua importância relaciona-se diretamente com a possibilidade
de uma ressignificação da realidade, de um resgate da auto-estima e da configuração de
sentido para o mundo vivido pelos nordestinos.
383
Ibidem, p.19.
384
Ibidem, p.197.
385
Ibidem, p.198.
386
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.8.
387
Ibidem, p.139.
143
O enfoque sob a cultura popular, mais especificamente sob uma manifestação
dessa cultura, qual seja a literatura poética, se abre hoje para o entendimento da
mundialização da cultura, fato que não coincidentemente afirma o aniquilamento de
manifestações culturais diferenciadas, como comenta Renato Ortiz, em outra de suas
obras.
388
Nessa situação de mundialização a língua permanece como instrumento de
comunicação e de poder, sendo que toda fala deve ter legitimidade para ser considerada,
isto é, a aceitação social do discurso é essencial para o ato de comunicação; na leitura de
Bourdieu feita por Ortiz nesse livro, a Linguagem é uma práxis que está sempre
contextualizada, na qual a língua oficial tem seu valor simbólico e se impõe como
hegemônica, enquanto a fala representa as pluralidades.
389
As fronteiras, antes rígidas, que existiam entre arte erudita e cultura popular se
desgastaram com o processo de mundialização
390
; os diversos elementos, populares,
eruditos e outros, dialogam e assimilam ainda na sua constituição os traços da cultura de
mercado.
391
Na obra de Patativa, desde sua origem e gradativa divulgação e
mercantilização é possível perceber também elementos dessa constituição de traços da
cultura de mercado.
Segundo Gilberto Velho, a modernidade das metrópoles é um óbice ao
desenvolvimento integrado dos indivíduos, a situação desses indivíduos é a de um ponto
de intersecção de vários mundos; nessa situação a negociação da realidade viabiliza-se
pela Linguagem, produzida e produtora de redes de significados, conforme Geertz. O
que se percebe é a coexistência de diferentes discursos numa mesma sociedade, que são
relacionados e mantém suas particularidades, segundo a interpretação de Velho a
respeito da obra de Bakhtin.
392
Na poesia, elemento da cultura, seja ela popular ou não, a representação se dá
através da Linguagem que, como bem definiu Michel Foucault, constitui um não-lugar e
possibilita certo encanto exótico com um outro pensamento, o qual nos revela o limite
do nosso próprio pensamento, isto é, a impossibilidade de pensar de tal forma. No
contato com o diferente, representado aqui pelo texto poético popular, convalidam-se as
388
Renato ORTIZ. Mundialização e Cultura. 3ª edição, São Paulo: Brasiliense, 1998, pp.21-27.
389
Ibidem, pp.98-99.
390
Ibidem, p.127.
391
Ibidem, p.128.
392
Gilberto VELHO. Projeto e Metamorfose: Antropologia das sociedades complexas. 2ª edição, Rio de
Janeiro: Jorge Zahar ED., 1999, pp.18-22.
144
indicações de Foucault a respeito do heteróclito que, para além da desordem do
incongruente, caracteriza-se como uma desordem de fragmentos possíveis, gerando a
heterotopia. Segundo ele, as utopias consolam, enquanto que as heterotopias inquietam
porque contestam a própria linguagem e suas estruturas.
393
O processo de organização elaborado pela Linguagem, principalmente a
Ocidental, segundo Foucault, não ultrapassa a condição de aproximação e isolamento,
que visa estabelecer alguma ordem entre as coisas, através das palavras. E o poeta não é
senão aquele que aproxima e isola, que ordena pela Linguagem, pela fluidez dos versos,
que atribui um sentido e uma ordem entre as coisas e as palavras.
Patativa, pelo que pudemos observar e constatar aproxima e isola as coisas do
mundo daquelas pessoas do sertão, ordena através de sua linguagem poética todas essas
coisas, assim como ordena o próprio mundo que nos rodeia e confunde; na fluidez de
seus versos doa sentidos à realidade, para tanto tomando por base a religiosidade
popular e sua multiplicidade sincrética de significação.
Em sua hermenêutica popular o poeta reinventa os modos de ser do povo
sertanejo nordestino, contesta posturas estabelecidas e cristalizadas, propõe novos
modos de viver e reagir às agruras da nação semi-árida; procuramos até aqui
compreender as formas dessa reinvenção, cientes da necessidade de continuidade desse
projeto que por enquanto não esgota as possibilidades de compreensão do objeto.
393
Prefácio à obra de FOUCAULT, Michel. As Palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências
humanas. Trad.: Salma Tannus Muchail, 8ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. IX-XXII.
145
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