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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
CURSO DE MESTRADO EM DIREITO
VERA MARIA ALÉCIO BRASIL MEDEIROS
DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
Uma análise da concretização dos direitos fundamentais à luz da
hermenêutica constitucional
Natal,RN
2006
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VERA MARIA ALÉCIO BRASIL MEDEIROS
DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
Uma análise da concretização dos direitos fundamentais à luz da hermenêutica constitucional.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Direito, do Centro de Ciências Sociais Aplicadas,
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como
requisito para obtenção do Título de Mestre em Direito.
Orientadora: Profª. Doutora. Maria dos Remédios Fontes Silva
NATAL/RN
2006
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Medeiros, Vera Maria Alécio Brasil.
Da jurisdição constitucional: uma análise da concretização dos direitos
fundamentais à luz da hermenêutica constitucional. / Vera Maria Alécio Brasil
Medeiros, – Natal, 2006.
214 f.
Orientadora : Maria dos Remédios Fontes Silva.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Curso Mestrado em Direito.
Bibliografia f ...212-227.
1. Controle da constitucionalidade. 2. Jurisdição constitucional. 3 Direitos
Fundamentais. I. Silva, Maria dos Remédios Fontes Silva. II. Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.
Normalize, 2006
CDU 342.4 (043.2)
VERA MARIA ALÉCIO BRASIL MEDEIROS
Da Juridisção Constitucional
Uma análise da concretização dos direitos fundamentais à luz da hermenêutica
constitucional
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Direito, do Centro de Ciências
Sociais Aplicadas, da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, como requisito para
obtenção do Título de Mestre em Direito.
Aprovado em : ___ /___/______ .
___________________________________________________________________
Prof
a
Doutora Maria dos Remédios Fontes Silva
UFRN
___________________________________________________________________
Prof. Doutor Edílson Pereira Nobre Júnior
UFRN
___________________________________________________________________
Prof. Doutor Raymundo Juliano R. Feitosa
UFPE
A Deus, pelas bênçãos de cada dia.
Para Aldo, com permanente admiração e amor profundo.
Para Daniela e Vítor, com carinho pela constante partilha de amor.
Aos familiares e amigos, sempre lembrados e presentes no meu coração
AGRADECIMENTOS
Agradeço à Professora Doutora Maria dos Remédios Fontes Silva pela sua
dedicação na orientação deste trabalho.
Agradeço a Ítalo Medeiros de Azevedo pela valiosa ajuda na formatação do
texto.
Agradeço ao Professor Michel Germain e à Daniela Brasil Medeiros pela
elaboração do abstract.
Agradeço à bibliotecária Maria Lúcia Lagreca de Sales Cabral pela
normalização desta dissertação.
RESUMO
Trabalho sobre a concretização dos direitos fundamentais pela jurisdição
constitucional, mostrando a importância da interpretação da Constituição para a
obtenção da eficácia de tais direitos. Desenvolve-se a pesquisa a partir da
explicação histórica sobre o constitucionalismo moderno, que implantou o Estado
Liberal de Direito e as constituições escritas, e no qual encontra a jurisdição
constitucional o seu embasamento cultural e a sua justificação histórica. Verifica-se
que a origem da jurisdição constitucional assenta-se no controle da
constitucionalidade das leis e atos normativos do poder público, fundado no princípio
da supremacia da Constituição. Destaca-se o realce dado pela teoria material da
Constituição à normatividade dos princípios constitucionais, tecendo considerações
em torno da classificação das normas constitucionais em regras e princípios.
Remarca o trabalho que o controle da constitucionalidade pode ser formal ou
material, apresentando esta última modalidade uma conotação acentuadamente
política, já que, por ele, a aferição da compatibilidade da norma infraconstitucional é
feita com o conteúdo material da Constituição. A função primacial da jurisdição
constitucional é tutelar os direitos fundamentais, especialmente os das minorias
sociais. Tal função sobreleva-se até mesmo contra textos legislativos produzidos por
maiorias eventuais, pois o princípio da supremacia da Constituição prevalece sobre
a regra da maioria vigente nos regimes democráticos. Comprova-se que a
concepção substancialista, adotada para definir os contornos funcionais da
jurisdição constitucional, propõe uma maior intervenção desta na apreciação dos
casos que lhe são submetidos. Salienta-se que, no Estado Democrático de Direito,
derivado da aglutinação do Estado Liberal com o Estado Social e acrescida de um
elemento novo voltado à transformação da realidade social, a jurisdição
constitucional passa a levar em conta, com mais atenção e destaque, os princípios
constitucionais e a sincronia do ordenamento constitucional com a sociedade por
ele ordenada. Realça tamm o estudo que a atuação da jurisdição constitucional,
segundo a ideologia democrática defendida pelo Estado Democrático de Direito,
tem logrado obter uma sociedade mais justa, e que a comprovação histórica é
francamente favorável ao seu ativismo judicial. Os direitos fundamentais dificilmente
se dissociam da democracia, que lhes garante a eficácia pela limitação e visibilidade
do exercício do poder, traços políticos que constituem a nota típica dos regimes
democráticos. Mesmo que os direitos fundamentais tenham tido um caráter pré-
estatal como preconizado pelo jusnaturalismo, são eles normas, e não valores, pois
tão logo sejam positivados pela Constituição eles se tornam direitos vigentes.
Assevera a pesquisa que os métodos concretistas de interpretação constitucional
mostram-se mais adequados à obtenção da eficácia da Constituição, pela
importância que os elementos objetivos, relacionados com o contexto material da
norma, assumem no seu processo de aplicação e interpretação. Conclui-se ser
essencial que os operadores e estudiosos do Direito se conscientizem de que a
interpretação constitucional deve assumir uma feição principiológica e concretista, de
modo a ser obtida a máxima eficácia possível das normas constitucionais,
especialmente as de direitos fundamentais, acentuando-se mais a necessidade de
um Tribunal Constitucional, cuja criação no Brasil constitui ainda tema polêmico
entre os doutrinadores.
ABSTRACT
Study through constitutional jurisdiction, showing the importance of concrete
methods of interpretation, based on the New Hermeneutic. The present investigation
demonstrates that the effectiveness of the Constitution depends on the degree to
which it relates to social reality. The question is developed from the principle of the
supremacy of the Constitution, from which the constitutionality of laws is derived,
and analyzed on a formal and content basis. The study records the highly political
aspect of controlling the interpretation of constitutionality, directed at verifying the
compatibility of the law with the content of the Constitution, which focuses on aspects
related to axiology and teleology. Since the onset of the constitutionalist movement,
which established the Constitutional State, the legitimacy of the exercise of political
power derives from the recognition of fundamental rights. The present study also
points out that the fundamental rights ensured by constitutional norms must be
understood, interpreted and applied as binding judicial norms. Therefore, their
protection must be delegated to constitutional jurisdiction, which will guarantee it by
controlling the constitutionality of the laws. The study reveals that constitutional
jurisdiction must perform the primary task of defending fundamental rights and other
material values guaranteed in the Constitution, even against legislation passed by
majorities, given that the principle of its supremacy prevails over the majority rule of
democratic regimes. It is also demonstrated that the substantialist concept of
constitutional jurisdiction defends a greater intervention in judging cases that come
before it, unlike the absentee role attributed to it by the individualist model of the
Liberal State. The study shows that the concept of fundamental rights, in addition to
its subjective dimension, exhibits an objective one, which, along with rendering
certain services to the state powers, characterizes these rights as the most important
values of the political community, turning them into essential bases of collective
judicial order. The present investigation demonstrates that fundamental rights spread
their effectiveness horizontally for private relations. It is also shown that constitutional
interpretation requires a new axiologic appraisal, according to that proclaimed by the
New Hermeneutic, and that the consolidation of fundamental rights, the primary aim
of any State with democratic and social rights, is achieved through constitutional
jurisdiction. There is also a need for a Constitutional Court, whose creation in Brazil
remains controversial among legal authors. It is concluded that it is essential for all
those involved in the Legal Sciences to be aware that constitutional interpretation
must become principiologic and concrete in nature, in order to obtain the maximum
effectiveness possible from constitutional norms, especially those of fundamental
rights.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................11
2 CONSTITUCIONALISMO.......................................................................................17
2.1 Explicação histórica.............................................................................................17
2.2 Constituição moderna e Constituição histórica....................................................24
2.3 As normas constitucionais: regras e princípios ...................................................27
2.4 A teoria formal e a teoria material da Constituição..............................................30
3 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL .........................................................................36
3.1 As origens da jurisdição constitucional................................................................36
3.2 O controle da constitucionalidade das leis ..........................................................38
3.3 Modalidades de controle da constitucionalidade.................................................46
3.3.1 O controle formal e o controle material da constitucionalidade ........................49
3.4 A função da jurisdição constitucional...................................................................55
3.5 A legitimidade da jurisdição constitucional ..........................................................64
4 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.....75
4.1 Considerações gerais..........................................................................................75
4.2 Democracia e Estado de Direito..........................................................................85
4.3 A jurisdição constitucional no Estado Democrático de Direito.............................94
5 DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO..........99
5.1 A evolução histórica dos direitos fundamentais...................................................99
5.2 A terminologia utilizada para designar os direitos fundamentais...................... 106
5.3 A natureza dos direitos fundamentais .............................................................. 109
5.4 A doutrina dos direitos fundamentais ............................................................... 112
5.4.1 Os direitos fundamentais de primeira, segunda, terceira e quarta
dimensão.......................................................................................................116
5.5 As dimensões subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais ......................... 121
5.6 A eficácia dos direitos fundamentais................................................................ 126
5.6.1 A eficácia irradiante e a eficácia horizontal dos direitos fundamentais...........128
5.7 As funções dos direitos fundamentais.............................................................. 139
6 A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.. 146
6.1 Considerações iniciais ...................................................................................... 146
6.2 A interpretação da Constituição e os princípios constitucionais....................... 150
6.2.1 A interpretação clássica e a interpretação moderna da Constituição...........164
6.3 A interpretação como fator de atualização da Constituição...............................175
7 A CONCRETIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO PELA JURISDIÇÃO
CONSTITUCIONAL .......................................................................................... 190
7.1 Concretização: considerações preliminares...................................................... 190
7.2 A concretização dos direitos fundamentais...................................................... 193
7.3 A importância do Tribunal Constitucional......................................................... 203
7.4 A necessidade de um Tribunal Constitucional no Brasil .................................. 206
8 CONCLUSÕES................................................................................................. 212
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................... 216
1. INTRODUÇÃO
A história do ser humano é marcada pela busca contínua da satisfação
dos seus crescentes e variados interesses, que o avanço tecnológico da pós-
modernidade tem traduzido em um leque de novas exigências.
O Direito, como elemento dinâmico de controle social e como técnica de
disciplina da vida coletiva, destina-se, fundamentalmente, a reger os
comportamentos humanos em função de valores cuja preservação é tida por
essencial ao convívio humano. Desempenha ainda o Direito a importante missão de
promover a justiça social e construir um sistema jurídico que assegure o integral
desenvolvimento dos indivíduos, bem como a harmoniosa satisfação dos interesses
públicos, coletivos e individuais, sempre visando à plena concretização das regras e
princípios que embasam o ordenamento jurídico da sociedade.
A partir do movimento constitucionalista que buscava a limitação do Poder
dos soberanos para a garantia dos direitos individuais, passou-se a valorizar o
indivíduo como ente digno da proteção estatal, visando ao seu pleno
desenvolvimento humano e social. Decorrência de tal ideologia foram as
declarações de direitos humanos buscando assegurar aos indivíduos o
reconhecimento de seus direitos fundamentais, a partir de uma concepção
jusnaturalista que depois veio a se cristalizar com o positivismo do direito codificado.
Assim os direitos fundamentais passaram a exercer uma função essencialmente
democrática de modo a impor o exercício do poder estatal mediante a participação
popular e a garantia da igualdade entre todos os cidadãos.
O reconhecimento dos direitos fundamentais criou limites intangíveis pelo
Poder Público, de modo que, inicialmente, buscava o ordenamento jurídico preservar
a liberdade do indivíduo, frente ao Estado. Posteriormente, constatada a gritante
desigualdade social, passou-se a atribuir ao mesmo Estado o dever de prestações
sócio-econômicas e culturais em benefício dos cidadãos, de modo a assegurar-lhes
o efetivo gozo de tais direitos fundamentais. Na atualidade, os direitos fundamentais
vêm sendo tutelados no Estado Democrático de Direito pela jurisdição constitucional,
de modo a garantir a unidade axiológica do ordenamento jurídico e a obtenção de
uma efetiva igualdade material entre os indivíduos, contribuindo para tal objetivo a
atuação dos juízes constitucionais por meio da hermêutica principiológica. E ainda
mais porque a interpretação deixa de ser reprodutora para ser criadora,
12
representando um momento da aplicação dos direitos fundamentais, visando à sua
plena concretização.
O mundo civilizado ocidental constrói-se, na atualidade, segundo o novo
paradigma do Estado Democrático de Direito, o qual já não se satisfaz com a
igualdade meramente formal, exigindo a realização da justiça material que se traduz
na igualdade substancial e efetiva entre todos os indivíduos, voltada para a
concretização dos direitos fundamentais, segundo os vetores dados pelo princípio
fundamental da dignidade humana, que, a partir do término da Segunda Guerra
Mundial teve a importante missão de destruir todos os mitos jurídicos criados, sob o
beneplácito do positivismo, pelos regimes totalitários implantados na Alemanha
nazista de Hitler e na Itália fascista de Mussolini. A vontade de todos, a vontade
geral, passa a embasar a noção de direitos humanos fundamentais porque essa
racionalidade do todo voltada para o todo reconhece a liberdade como autonomia e
representa a consciência jurídica dos direitos fundamentais: direito à vida, à
liberdade de expressão, à liberdade de ir e vir, à liberdade de organização, ao
trabalho, ao acesso à cultura, à educação, à distributividade dos bens materiais.
Passará a Constituição, em seu conceito material, a ser concebida como a
expressão da ordem normativa garantidora dos direitos humanos. A concretização
destes se fundamentará no princípio da supremacia da Constituição, que há de
prevalecer sempre, a despeito da vontade de eventuais maiorias.
Acima de tudo a concretização dos direitos fundamentais constitui missão
inafastável do Estado Democrático de Direito da atualidade, pois o bem comum diz
respeito concretamente a cada indivíduo e não pode contrapor-se aos direitos
inalienáveis de cada homem, já que não se pode conceber qualquer conceito de
bem comum além do conceito de direitos humanos, fim último do Estado
Democrático de Direito.
Por isso é que, contemporaneamente, a jurisdição constitucional e o
controle da constitucionalidade tornam-se instituições indispensáveis para a
concretização dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito, onde o
conceito material de Constituição possibilita um controle mais amplo da
constitucionalidade das leis e demais atos normativos. Em muitos casos a jurisdição
constitucional reveste feição típica de ativismo judicial, concretizando, de forma
criativa, os direitos fundamentais.
13
Por outro lado, a nova hermenêutica constitucional retirou os princípios,
até então denominados de princípios gerais do direito, da esfera mais acanhada dos
códigos para as dimensões mais amplas e arejadas das Constituições, onde
alcançaram eles uma densidade normativa que os torna hoje os senhores supremos
da juridicidade constitucional, constituindo mesmo a essência e a mola
impulsionadora da teoria material da Constituição. Por isso que a violação a um
princípio constitucional configura uma inconstitucionalidade material, quer dita
violação afronte direta ou indiretamente a Carta Suprema. Assim o controle da
constitucionalidade assume feição importante no Estado Democrático de Direito, na
medida em que vela pela efetiva concretização dos direitos fundamentais.
A partir destas considerações buscaremos demonstrar em nosso estudo a
importância da jurisdição constitucional, com o seu ativismo interpretativo, de base
principológica, buscando construir a eficácia jurídica dos direitos fundamentais. Sob
tal aspecto o nosso estudo procurará demonstrar que a interpretação concretista das
normas fundamentais e, em especial a dos direitos fundamentais, ao estabelecer
uma conexão viva entre o dever-ser normativo e o ser da realidade fática, parece ser
a mais adequada à obtenção da máxima eficácia possível de tais normas. Serão
feitas considerações sobre a metodologia da concretização dos direitos
fundamentais, buscando associar a eficácia destes à atuação construtivista da
jurisdição constitucional com o sentido de instituir uma cultura de respeito e
observância dos mesmos não só nas relações frente ao Estado, como nas relações
privadas dos indivíduos entre si.
Serão citados acórdãos de tribunais brasileiros, especialmente do
Supremo Tribunal Federal, e tamm de Cortes Constitucionais estrangeiras,
indicativos das diversas tendências jurisprudenciais sobre importantes questões
ligadas à concretização dos direitos fundamentais.
Demonstraremos ser necessária a conscientização dos juristas, dos
operadores do Direito e demais indivíduos sobre a importância dos direitos
fundamentais na sedimentação dos valores que lhes são subjacentes, o que
contribuirá certamente para o aumento da qualidade de vida dos cidadãos e da
maior participação de todos e de cada um na construção de uma sociedade mais
justa e igualitária.
Iniciaremos o nosso estudo, no Capitulo 2, com uma explicação histórica
do constitucionalismo moderno, movimento que concorreu decisivamente para o
14
surgimento da justiça constitucional, a par de acentuar a importância das
constituições escritas. Mencionam-se as duas matrizes formais de
constitucionalismo surgidas das correntes filosóficas do contratualismo, do
individualismo e do iluminismo: a matriz inglesa e a matriz franco-americana. A
matriz inglesa caracterizava-se pela idéia de tradição de suas instituições, sem o
formalismo de um documento escrito, enquanto a matriz franco-americana apoiou-se
no racionalismo iluminista que, rompendo com as tradições e formas antigas,
instituiu a Constituição dogmática. Esta, a par da sua forma escrita, extraía força
normativa da sua rigidez a mudanças e baseava-se em um esquema racionalizado
de separação de poderes e em um regime de direitos do homem. A partir do
reconhecimento dessa supremacia normativa, surgiu, primeiramente nos Estados
Unidos, e depois na Europa continental, o controle de constitucionalidade das leis
com a finalidade de garantir tal supremacia. Apesar de vigorar no constitucionalismo
inglês o sistema do common law, não se pode negar ter sido no direito público inglês
que germinaram princípios que floresceriam mais tarde no sistema norte-americano.
Partindo da distinção entre constituição moderna e histórica,
destacaremos a teoria formal e a material da constituição, bem como o realce dado
pela última à normatividade dos princípios constitucionais, que tanto revolucionou a
interpretação constitucional. A teoria material da Constituição propiciou a abertura
das normas constitucionais e uma importante viragem hermenêutica que passou a
levar em conta inúmeros valores e princípios materiais não positivados
expressamente na Constituição. A abertura das normas constitucionais será
demonstrada pela distinção destas em regras e princípios, destacando-se a posição
de Dworkin que situa no âmbito destes últimos as políticas públicas, ou seja, as
policies. Será destacada a grande importância assumida pela jurisdição
constitucional, que assoma no Estado Democrático de Direito como um dos seus
pilares básicos, especialmente no que se refere à tutela dos direitos fundamentais.
No Capítulo 3, nossa atenção será dirigida para as origens da jurisdição
constitucional, que se assenta na idéia de superioridade hierárquica ou supremacia
da Constituição. Mostraremos que a gênese da jurisdição constitucional está ligada
ao processo de controle da constitucionalidade das leis e encontra no
constitucionalismo moderno a sua justificação histórica. Desenvolveremos o tema a
partir da idéia moderna de Constituição (concebida como forma de organização
política com separação de poderes e garantia dos direitos fundamentais), do
15
advento das Constituições escritas e da adoção de sistemas federativos, fatores que
exigiram um sistema de fiscalização que garantisse a supremacia da Constituição
sobre as demais normas de hierarquia inferior, de modo a resolver as antinomias
existentes entre elas. A origem remota do controle da constitucionalidade situa-se na
Inglaterra, onde categorias de Direito Natural eram aplicadas a leis contrárias ao
common law. Destacaremos que o controle de constitucionalidade representa uma
garantia da Constituição rígida.
No Capítulo 4 será feita uma análise da jurisdição constitucional no
Estado Democrático de Direito, estabelecendo-se as correlações existentes entre
Democracia e Estado de Direito. Será reconhecido que, o Estado Democrático de
Direito, para fazer uma junção correta entre Estado e sociedade, deve assumir uma
feição substancialista, onde a jurisdição constitucional se exerça de forma mais
ampliada voltada para a concretização efetiva dos direitos fundamentais, que
encarnam aqueles valores básicos de convivência humana, como a igualdade, a
liberdade, a dignidade humana e o respeito aos próprios direitos fundamentais.
No Capítulo 5, o estudo dos direitos fundamentais abordará a sua
evolução e natureza histórica, a par da terminologia utilizada para designá-los.
Mostraremos que a doutrina dos direitos fundamentais nasceu da luta inicial e
incessante do homem pela realização de seus direitos básicos de vida, liberdade e
propriedade. A doutrina material sobre os direitos fundamentais, de acepção lata, e
que prevalece na atualidade, qualifica-os sob uma ótica de fundamentalidade,
enunciando como fundamentais os direitos que tiverem por objetivo criar e manter os
pressupostos básicos e elementares para uma vida digna haurida sob o pálio da
liberdade e da dignidade. Já a doutrina formal dos direitos fundamentais entende
serem fundamentais aqueles direitos qualificados como tais pelo ordenamento
jurídico vigente em cada nação. Enunciaremos as dimensões ou gerações dos
direitos fundamentais que bem retratam a sua evolução histórica. Esta processa-se
continuamente, cumulando-se as dimensões ou gerações anteriores de direitos
fundamentais às seguntes. Abordaremos a questão da eficácia dos direitos
fundamentais, bem como a projeção horizontal dos mesmos sobre as relações entre
particulares e as suas funções primordiais.
No Capítulo 6 faremos uma análise da velha e da nova hermenêutica
constitucional, avaliando ainda os diversos métodos propostos, incluindo os que
operam a atualização da Constituição, de modo a fixar a modalidade de
16
interpretação que garanta aos direitos fundamentais sua plena concretização sob a
ótica da máxima eficácia.
No capítulo 7 trataremos da concretização da Constituição pela jurisdição
constitucional, avaliando os diversos métodos de interpretação elaborados a partir
da nova hermenêutica constitucional, com remissões a julgamentos concretos.
Analisaremos ainda a importância do Tribunal Constitucional como órgão da Justiça
Constitucional incumbido do controle concentrado da constitucionalidade das leis.
Defenderemos também a criação do Tribunal Constitucional no Brasil para
complementar e aperfeiçoar o sistema de controle da constitucionalidade das leis e
atender às suas peculiaridades. Propugnaremos pela preservação do sistema difuso,
que vem sendo relegado a segundo plano em nosso ordenamento jurídico, a
despeito da sua tradição histórica no País e do debate constitucional, francamente
mais amplo, por ele suscitado.
No capítulo 8 enunciaremos as nossas conclusões, com base nas
prioridades levantadas pela pesquisa realizada.
17
2 CONSTITUCIONALISMO
2.1 Explicação histórica
O Constitucionalismo, como movimento político-ideológico que se difundiu
nos séculos XVII e XVIII, surgiu do desaparecimento do Estado Absolutista. Na
monarquia absolutista, o monarca concentrava todos os poderes políticos em suas
mãos, estabelecendo as regras que limitavam ditos poderes e se obrigando a
observá-las, enquanto ele próprio não as revogasse. O Constitucionalismo, em seu
nascedouro, objetivava instituir a Constituição escrita, como forma de impor um
mecanismo de dominação legal-racional aos governantes. Tal objetivo
consubstanciava modalidade de oposição à tradição medieval, onde predominava o
modo de dominação carismática, e ao poder absolutista do rei, típico da primeira
fase do Estado Moderno.
1
Numa acepção histórico-descritiva, fala-se em constitucionalismo
moderno para designar o movimento político, social e cultural que, sobretudo a partir
de meados do século XVIII, questiona no plano político, filosófico e jurídico os
esquemas tradicionais de domínio político, sugerindo, ao mesmo tempo, a invenção
de uma nova forma de ordenação e fundamentação do poder político.
Este constitucionalismo, como o próprio nome indica, pretende opor-se ao
chamado constitucionalismo antigo, isto é, o conjunto de princípios escritos ou
consuetudinários alicerçadores de direitos estamentais perante o monarca e
simultaneamente limitadores do seu poder. Estes princípios ter-se-iam sedimentados
num tempo longo – desde os fins da Idade Média até o século XVIII.
Miranda
2
refere que se costuma distinguir dois subperíodos na história do
absolutismo. Num primeiro momento, que se estende até princípios do século XVIII,
vigorava a monarquia absolutista, que se afirmava de direito divino, sustentando que
o Rei era escolhido por Deus, governava pela graça deste e exercia uma autoridade
que se revestia de fundamento ou sentido religioso.
Numa fase subseqüente vai procurar-se atribuir ao poder uma
fundamentação racionalista dentro do ambiente de iluminismo (movimento cultural-
1
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica:. uma nova crítica do Direito. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. p. 97
2
MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituão. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 43.
18
filosófico cujos primeiros contornos apareceram na Europa em fins do século XVII e
se desenvolveu no decorrer do século XVIII, que ficou conhecido como o Século das
Luzes) dominante, em que se falava em um despotismo esclarecido ou, em outra
perspectiva, em um Estado de polícia típico dessa monarquia absolutista, concebido
como uma associação voltada para a consecução do interesse público, devendo o
príncipe, seu órgão ou seu primeiro funcionário, ter plena liberdade quanto aos
meios para alcançar tal desiderato.
A monarquia absoluta distinguia-se sutilmente da tirania, posto que nesta
o monarca se afirmava, efetivamente, como o princípio, a cabeça e o fim do
Parlamento, concentrando em suas mãos todos os poderes políticos, dos quais
dispunha de forma irrestrita e incondicional, exercendo-os livremente sem
reconhecer a existência de qualquer regra escrita ou quaisquer outros limites a
serem respeitados.
O Estado Absolutista, que gerou a monarquia absoluta, constituiu o marco
do surgimento do Estado Moderno, ainda que em um primeiro estágio inicial em que
havia uma máxima concentração do poder no rei. Controlava este em suas mãos
todos os poderes do Estado, mas, por outro lado, obrigava-se as respeitar as leis
limitativas de tais poderes, por ele mesmo estabelecidas, pelo menos enquanto ele
próprio não as modificasse ou revogasse.
Tomando-se como exemplo a monarquia absolutista inglesa, cita Del
Negri
3
que o apogeu do absolutismo inglês deu-se nos reinados de James I (1603-
1625) e de seu filho Charles I (1625-1649), nos quais foi exacerbado o absolutismo
monárquico. Os conflitos entre o rei e o parlamento eram constantes e o seu
desfecho era a dissolução do último, o que resultava sempre no triunfo do
absolutismo e fortalecimento do poder incondicionado dos monarcas. Segundo
Carvalho Neto (1992 apud DEL NEGRI)
4
, Charles I chegou a nomear um líder de um
grupo de teólogos tradicionalistas anticalvinistas, para que ensinasse nas escolas a
teoria do direito divino dos reis.
Posteriormente, com o aparecimento do Estado Monárquico
Constitucional, modalidade do Estado Constitucional, o poder do monarca passa a
ser limitado por regras das quais não mais poderia ele dispor, como fazia então na
3
DEL NEGRI, André. Controle de constitucionalidade no processo legislativo. Belo Horizonte: Fórum, 2003.
p. 20.
4
DEL NEGRI, loc. cit.
19
monarquia absoluta. Com a denominada Revolução Gloriosa de 1688, o trono inglês
foi ocupado por William d’Orange, nascendo a monarquia constitucional, fato
histórico que inaugurou a impossibilidade de invocação da doutrina do direito divino
do soberano pelo poder real.
Na monarquia constitucional era reconhecida ao monarca parcela do
Poder Legislativo. O rei, contudo, não poderia fazer as leis por si só, suspender-lhes
a eficácia nem tampouco dispensar alguém de cumpri-las e observá-las. Em razão
de tal concepção, o soberano passou a ser visto como uma pessoa pública que,
embora investida do poder de legislar, deveria atuar de acordo com a vontade da
sociedade, vontade que a lei passa a exprimir.
Dá-se, então, a dissociação entre Estado, representando o governo, e
Sociedade, representando o povo, passando esta a ser credora daquele no tocante
ao exercício regular do poder do monarca, despojado então de qualquer resquício
do absolutismo tirano. A Constituição passa, a partir de então, a plasmar um
determinado sistema de valores da vida pública, dos quais é indissociável. Um
conjunto de princípios filosóficos-jurídicos e filsófico-políticos passa a ser a sua base
fundamental, justificando-a.
O movimento constitucional gerador da constituição em sentido moderno
tem raízes diversas localizadas em momentos distintos e em espaços históricos
geográficos e culturais diferenciados. Refere-se Canotilho
5
, não a um só, mas a
vários constitucionalismos (o constitucionalismo inglês, o constitucionalismo
americano, o constitucionalismo francês), entendendo ser mais correto falar-se de
vários movimentos constitucionais com corações nacionais, que se aproximam em
determinados momentos, revelando a diversidade das suas origens histórico-
culturais.
O constitucionalismo surge das correntes filosóficas do contratualismo, do
individualismo e do iluminismo, cujos expoentes são Locke (Segundo Tratado sobre
o Governo), Montesquieu (Espírito das Leis), Rousseau (Contrato Social) e Kant
(Paz Perpétua, dentre outras obras filosóficas fundamentais), e de outros
importantes movimentos econômicos, sociais e políticos. O movimento
constitucionalista do período iluminista deflagrou a concepção, hoje consolidada nas
5
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 6ª. ed. Coimbra: Livraria
Almedina, 2002. p. 52
20
democracias atuais, de que a legitimidade do exercício do Poder decorre do
reconhecimento dos direitos fundamentais.
Kant (1784, apud MIRANDA)
6
concebe o iluminismo como a saída do
homem da sua menoridade, de que ele próprio é culpado, pela falta de decisão e
coragem para servir-se de si mesmo sem a orientação de outrem. Os mais
significativos textos de constituição elaborados sob a concepção iluminista são
americanos (a Declaração de Direitos de Virgínia e a Declaração de Independência
dos Estados Unidos, ambas de 1776) e francês (a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 1789): aqueles dois mais próximos do pensamento cristão
e este último do racionalismo laico.
Miranda
7
aponta como marcos importantes nessa viragem política: a
Revolução Francesa (1789-1799); a Inglaterra, berço da Revolução Industrial, onde
o avanço político se desencadera um século antes; e ainda os Estados Unidos, em
cujas colônias (das quais se formou) foram elaboradas as primeiras Constituições
escritas em sentido moderno.
Em sua feição básica, o constitucionalismo consubstancia uma teoria ou
ideologia que adota o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos
direitos fundamentais que estruturam a organização político-social de uma
comunidade. Pode-se considerar o constitucionalismo moderno uma técnica
específica de limitação do poder com fins garantísticos, sendo, no fundo, uma teoria
normativa da política.
Nobre Júnior
8
realça que o conceito jurídico de constituição, que a define
como norma, encontrou no constitucionalismo o instante propício para a sua
formulação precisamente por não se ater tal movimento ideológico apenas à simples
moldagem da estrutura legal do Estado, mas por trazer ínsita a nota de limitação do
poder. Tal conceito, por fortes razões políticas, fora difundido mediante duas
versões: uma européia ou inglesa e outra norte-americana.
Na Europa não foi reconhecida, de imediato, a idéia de que a Constituição
escrita constituía uma norma jurídica que se impunha à observância do Estado. A
matriz inglesa de constitucionalismo caracterizava-se pela idéia de tradição de suas
instituições, nas quais já se incluíam os direitos fundamentais dos ingleses. A
6
MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. p.45.
7
Ibid., p. 44.
8
NOBRE JÚNIOR, Elson Pereira. Direitos fundamentais e argüição de descumprimento de preceito
fundamental. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004. p. 65.
21
evolução política inglesa deu-se através da adaptação da velha ordem ao novo
cenário econômico, mediante a acomodação das estruturas políticas, estratos e
poderes sociais existentes. Não cabia, nessa ótica, o artificialismo de uma
Constituição escrita e rígida, nem a declaração de direitos de um homem abstrato e
sem fronteiras.
Contudo, o sistema inglês da comom law trazia tamm a marca de um
sentido unitário de direito, comandado pela idéia de eqüidade e justiça, e de
razoabilidade. Os tribunais organizados pelo poder monárquico inglês no século XIV
se chamaram de Courts of Equity precisamente por terem essa função de abrandar
aplicações desarrazoadas dos casos precedentes.
Sampaio
9
cita diversas obras publicadas no século XVIII revelando a
tradição do emprego da razoabilidade pelos britânicos. Remonta o seu uso à Idade
Média e a primeira utilização formal da expressão à Carta Magna de 1215, como
elemento norteador da organização e da ação política.
Já na vertente norte-americana, ao contrário, o constitucionalismo
cristalizou-se no entendimento de que a Constituição representava uma norma
jurídica dotada de atributos que obrigavam os poderes públicos e que o conteúdo da
Constituição representava o direito supremo do país. Tal percepção implicou, desde
o início, no reconhecimento pelo direito norte-americano da competência judicial
para o controle da constitucionalidade das leis. A matriz franco-americana apoiou-se
no racionalismo que triunfara com o peso iluminista de revoluções, exigindo o
rompimento com as tradições e formas antigas. A escritura passou a ser o símbolo
dessa ruptura no campo jurídico, projetando a lei escrita como fonte primeira do
direito e tornando a Constituição a lei primeira das leis.
Surgiu, assim, a Constituição dogmática, que se mostrava superior ao
modelo inglês exatamente pela sua forma escrita que se acrescia da força da sua
rigidez a mudanças e que se baseava em um esquema racionalizado de separação
dos poderes e em um regime de direitos do homem. E, assim, se todos nasciam
iguais e livres, a lei, inclusive a constitucional, em sendo geral e abstrata, deveria
garantir essa igualdade e liberdade.
9
SAMPAIO, Jo Adércio Leite. O retorno às tradições: a razoabilidade como parâmetro constitucional. In:
SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.) Jurisdição constitucional e direitos fundamentais.. Belo Horizonte:
Del Rey, 2003. p. 46.
22
A partir dessa concepção dogmática da Constituição, surgiu,
primeiramente nos Estados Unidos e depois na Europa continental, o controle de
constitucionalidade como forma de garantir-se a supremacia da Constituição.
As normas infraconstitucionais, diante do princípio da supremacia da
Constituição, devem guardar irrestrita compatibilidade com a norma constitucional,
sob pena de se tornarem irremediavelmente viciadas, por romperem com o seu
fundamento de validade. O confronto entre tais normas, a princípio, não parecia
problemático, já que os parâmetros de constitucionalidade se resumiam a poucos
enunciados expressos e nada mais.
Contudo, o trabalho judicial de fiscalização das leis encontrava sempre,
espraiados subrepticiamente nos textos das normas, certos valores que passaram a
exigir respeito e impunham-se como princípios que começaram a ganhar corpo e
visibilidade.
Leciona Bonavides
10
que a tarefa da doutrina constitucional do nosso
tempo é reconstruir o conceito jurídico da Constituição, definindo-a como lei ou
conjunto de leis, de modo a reconhecer valor normativo a tudo o que está no texto
constitucional.
Rui Barbosa (apud BONAVIDES)
11
já afirmara que não há em uma
Constituição proposições ociosas, sem força cogente. Tal entendimento acarreta o
reconhecimento tanto da eficácia vinculante das normas programáticas quanto do
caráter jurídico das mesmas. Sem esse reconhecimento, haverá quebra da unidade
normativa da Constituição, que não poderá ter proclamada a sua natureza jurídica.O
reconhecimento de força normativa às normas programáticas contribuiu
consideravelmente para reconciliar os dois conceitos da histórica crise constitucional
de dois séculos: o conceito jurídico e o conceito político de Constituição. A
Constituição passa a ser encarada como paradigma e fundamento para o limite e
controle do Poder pelo Direito.
Contemporaneamente, prevalece o entendimento de que a Constituição
torna-se responsável pelo acoplamento estrutural entre o sistema político e o
jurídico, ao jurisdicizar as relações políticas, ao mesmo tempo em que promove a
influência do Direito na Política, condicionando e transformando estruturas de poder
em procedimentos de mutação constitucional previstos e controlados via sistemas
10
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 236.
11
BONAVIDES, loc. cit.
23
próprios. Assim, a supremacia da Constituição erige-se em princípio que não pode
ser violado, sob pena de descaracterização do próprio sistema constitucional.
Para Bonavides
12
o problema de limitar poderes e competência através do
texto constitucional não se resolve pela simples declaração de juridicidade do seu
conteúdo. Reconhece que haverá sempre uma instância invisível, um poder latente
ao lado da Constituição formal, decidindo, modificando e renovando
comportamentos. Essa instância é política, e é trazida para dentro da Constituição
pela programaticidade, que, revestindo-se da mesma normatividade das demais
normas, apaga toda uma suposta incompatibilidade entre os seus fundamentos
políticos e jurídicos.
A característica essencial da moderna concepção de Estado de Direito é
precisamente a que opera a transmutação dos fenômenos de poder em Direito,
sobretudo, da atividade política, que, uma vez cristalizada em forma jurídica, fica
submetida ela mesmo ao Direito. Negam esta nota qualificativa todos os que,
explícita ou implicitamente, sustentam a crença de que o poder prima sobre o
Direito, e consideram, em conseqüência, que não cabe controle jurídico sobre a
atividade política.
Dalla-Rosa
13
, enunciando as características do poder político, afirma que:
Em face do atual desenvolvimento cultural e tecnológico alcançado pela
humanidade, acrescido das experiências históricas e da constante luta
social, o ideal democrático aparece como o regime a estabelecer os limites
de atuação do poder político, como o princípio norteador das decisões e
como controle do exercício legítimo das funções estatais, a par de se revelar
ainda mais como um verdadeiro estabilizador das relações e instrumento a
servo da sociedade, da dignidade humana e da equalização das ofertas
como causa necessária para a liberdade das ações.
Daí porque o controle da constitucionalidade assume também uma feição
política ao incumbir-se de aferir a legitimidade do exercício das funções estatais,
conforme enunciação da Constituição.
Dantas
14
remarca que o controle de constitucionalidade, do qual resultam
a declaração de constitucionalidade e a declaração de inconstitucionalidade,
representa um dos pilares fundamentais na defesa do valor da Constituição.
12
Ibid., p. 237.
13
DALLA-ROSA, Luiz Verlio. O Direito como garantia: pressupostos de uma teoria constitucional. Rio
de Janeiro: América Jurídica. 2003. p. 59.
14
DANTAS, Ivo. O valor da constituição: do controle de constitucionalidade como garantia da
supralegalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. p. 7.
24
2.2 Constituição moderna e constituição histórica
Levando em conta as constituições escritas, e sob um ponto de vista
estritamente formal, consideram-se normas constitucionais todas as disposições que
vierem a ser colocadas em seu texto. Trata-se de uma questão de positivação
constitucional do direito.
Sob o ponto de vista material, Constituição é o documento inaurgural do
Estado, que o cria, e o constitui, ou, mais realisticamente, o recria, nas bases que
estabelece, referentes à estrutura dos órgãos públicos, às regras básicas e neutras
do processo democrático, aos direitos individuais indispensábeis às liberdades
individuais e à participação política. Assim era nas primeiras constituições modernas
do século XVIII. Ao longo dos séculos XIX e XX os temas considerados
materialmente constitucionais não pararam de aumentar, principalmente em razão
da transmigração para o texto constitucional de antigos princípios e valores
constantes dos códigos, que se alçaram à condição de princípios constitucionais,
vinculantes e ordenadores de todo o arcabouço sócio-político do Estado.
De acordo com Canotilho
15
, o constitucionalismo moderno ensejou e
legitimou o surgimento da chamada constituição moderna, entendida esta como a
ordenação sistemática e racional da comunidade política através de um documento
escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos e se fixam os limites do poder
político. Tal conceito de constituição converteu-se num dos pressupostos básicos da
cultura jurídica ocidental, a ponto de ser conhecido como conceito ocidental de
constituição.
Contudo, tal modelo não passa de um modelo ideal, que não corresponde
a nenhum dos modelos históricos do constitucionalismo, já que cada povo transfere
para a sua constituição, consuetudinária ou escrita, os seus anseios decorrentes da
sua cultura e evolução sócio-política, criando peculiaridades que distinguem
nitidamente as suas respectivas Cartas Magnas.
A Constituição moderna provém do racionalismo do século XVIII. No
século XVII apareceram quatro textos bem diferentes entre si quanto à forma de
elaboração, valor jurídico e conteúdo, mas que se aproximam do conceito atual de
constituição. São eles: o May/Flower Pact, de 1620; as Fundamental Orders of
15
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2002. p.
52.
25
Connecticut, de 1636; o Agreement of People, de 1647; e o Instrument of
Government, de 1653
16
. Não objetivaram tais documentos a estruturação da vida
política do Estado, de forma ampla, representando produtos de força para
regulamentar interesses específicos e ainda repousavam em raízes de ordem
religiosa, pois ainda predominavam argumentos teocráticos para legitimar o poder
dos soberanos.
Embora não tenham constituído nenhum desses documentos uma
autêntica constituição liberal, podem eles ser tido como as mais antigas das
genuínas raízes do constitucionalismo moderno, que só desabrochou realmente no
século XVIII, na América do Norte, com a Declaration of Rights, de 1776.
Modernamente, a Constituição é concebida por sua propriedade finalística
de concretizar os direitos fundamentais e servir de instrumento para a realização do
Estado Democrático e Social de Direito, nele predominando como figura central o
indivíduo, a pessoa humana. Como escreve Barcellos
17
, as primeiras Constituições
ocidentais, das quais se destaca a norte-americana seguida pelas européias,
estavam fundamentadas em um substrato filosófico e ideológico bastante específico,
que era o humanismo. A idéia central nascida a partir do Renascimento e
apefeiçoada pelos iluministas era a de que o indivíduo, o homem é o centro e o fim
de todos as contruções humanas.
Merecem referência as Constituições dogmáticas que se impõem através
da vontade da autoridade, ainda que legítima, e decorre de um sistema de idéias
completo, derivado, por vezes, de uma ideologia, porém nascida de um programa
racional sem raízes na experiência social. É o caso das constituições elaboradas no
Estado Liberal sob a inspiração do positivismo jurídico.
Torna-se, porém, necessária a elaboração tamm de um conceito
histórico de Constituição, que é utilizado sobretudo por historiadores e serve para
nos pôr de sobreaviso no tocante a interpretações retroativas de organizações
políticas e sociais de outras épocas em que vigoravam instituições, regras, princípios
e categorias jurídico-políticas radicalmente diferentes dos conceitos e das categorias
da modernidade política. Dessa forma, a constituição histórica deve ser entendida
como o conjunto de regras, escritas ou consuetudinárias, e de estruturas
16
AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal: densificação da
jurisdição constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 1.
17
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade
da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 22.
26
institucionais conformadoras de uma dada ordem jurídico-política num determinado
sistema político-social. Essa concepção histórica da constituição serve também para
ajudar a compreender o próprio fenômeno da modernidade constitucional, posto
que, sem ela, seria difícil entender as perspectivas políticas, religiosas e jurídico-
filosóficas que se processaram entre o constitucionalismo antigo e o moderno.
Polletti
18
afirma que a Constituição histórica:
não surge de um momento em que se cristalizam idéias acabadas num
sistema revelado e concretizado numa formalização legal, mas emana de
vários momentos históricos imperceptíveis, fundada na tradição e no
costume do povo, conforme a sua realidade natural.
Historicamente, a Constituição foi o instrumento utilizado para sepultar o
absolutismo dos reis e, juridicamente, construir uma nova ordem sustentada pela
burguesia emergente, que se constituía na principal classe social. Estabeleceu ela
tamm a separação horizontal das funções estatais, impedindo a concentração de
poderes em um único órgão, além de colocar freio ao arbítrio estatal, com a proteção
jurídica dos direitos fundamentais.
A Constituição histórica é o fruto da lenta e contínua síntese da História e
tradições de determinado povo. De tal tipo constitui exemplo a Constituição inglesa,
que representa a sedimentação histórica dos direitos adquiridos pelos ingleses e a
consolidação, também histórica, de um governo balanceado e moderado.
Na Inglaterra, as categorias do Direito Natural foram aplicadas para
anular leis contrárias ao common law. Polletti
19
ensina que o Direito Natural serviu
para fundamentar a contestação feita por Thomas More ao direito de o Parlamento
transformar o Rei no Chefe Supremo da Igreja na Inglaterra. Dele tamm se utilizou
a figura do célebre jurista Sir Edward Coke (1552-1634), que teve grande destaque
ao adaptar os precedentes antigos, inclusive a Magna Carta de 1215, à Petition of
Rights, que limitou as prerrogativas reais. Sir Edward Coke julgava nulas as
determinações do Parlamento contrárias ao common law. A história constitucional da
Inglaterra, principalmente no século XVIII, está marcada de episódios em que os
tribunais protegeram dissidentes religiosos e políticos dos exageros legislativos do
Parlamento. Tais exemplos não deixam, contudo, de constituir uma exceção, pois no
regime inglês o Parlamento desfruta de poder ilimitado.
18
POLLETTI, Ronaldo. Controle da constitucionalidade das leis. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 239.
19
Ibid., p. 18.
27
Não se pode negar, todavia, ter sido no direito público inglês que
germinaram princípios que floresceriam no continente norte-americano, tais como a
limitação legal do Poder, a Constituição escrita, a hierarquia das normas, a
competência judicial para anulá-las.
2.3 As normas constitucionais: regras e princípios
Para Canotilho
20
a Constituição é um sistema normativo aberto de regras
e princípios. Mais adiante explicita a sua formulação, dizendo que é um sistema
aberto porque traduz um sistema dinâmico de normas, tendo uma estrutura dialógica
traduzida na disponibilidade e capacidade de aprendizagem das normas
constitucionais para captarem a mudança da realidade e estarem abertas às
concepções variáveis da verdade e da justiça. É um sistema normativo porque a
estruturação das expectativas referentes a valores, programa, funções e pessoas é
feita através de normas. É, enfim, um sistema de regras e de princípios, porque as
normas do sistema tanto podem revelar-se sob a forma de princípios como sob a
forma de regras.
21
Coube ao jurista alemão Alexy, referido em lição de Bonavides
22
, instituir
a distinção entre regras e princípios, conjugando as duas modalidades sob o
conceito de normas, a partir do estudo de uma teoria material dos direitos
fundamentais em bases normativas. Tanto as regras como os princípios tamm são
normas, porquanto ambos se formulam com a ajuda de expressões deôntica
fundamentais, como mandamentos, permissão e proibição. A teoria de Alexy é, na
essência, a mesma de Dworkin. O critério mais freqüente para distinguir as duas
referidas modalidades de norma é o da generalidade. Essa distinção, porém, pode
ser feita com mais nitidez com base na estrutura e forma de aplicação dos tipos de
norma referidos. Assim, regras expressam deveres definitivos e são aplicadas por
meio de subsunção, enquanto princípios expressam deveres prima facie, cujo
conteúdo definitivo somente é fixado após sopesamento com princípios colidentes.
Princípios são, portanto, normas que obrigam que algo seja realizado na maior
20
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2002. p.
1103.
21
Ibid., p. 1145.
22
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 277.
28
medida possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas. São, portanto,
mandamentos de otimização.
Essa distinção, na essência, se identifica com a de Dworkin
23
, para quem
os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm: a dimensão do peso
ou importância. Os princípios são normas dotadas de alto grau de generalidade
relativa, enquanto as regras, ao contrário, são normas de grau relativamente baixo
de generalidade. Entre princípios e regras impera não somente uma distinção de
grau, mas de qualidade também. Quando os princípios se entrecruzam, para a
solução do conflito deve-se levar em conta a força relativa de cada um.
Os princípios sao concebidos como mandamentos de otimização. São
normas, mas normas de otimização, cuja principal característica consiste em
poderem ser cumpridas em distinto grau e onde a medida de execução imposta
depende não apenas de possibilidades fáticas, mas tamm jurídicas. A esfera das
possibilidades jurídicas se determina por princípios e regras de direção contrária.
As regras são normas que podem sempre ser cumpridas ou não, e
quando uma regra vale, então se deve fazer exatamente o que ela exige ou
determina. Como as regras contêm estipulações no espaço fático e jurídico do
possível, isto significa dizer que existe entre regras e princípios distinção qualitativa
e não de grau, e que toda norma é regra ou princípio.
Dworkin
24
entende que:
A diferença entre princípios e normas é de natureza lógica. Os dois
conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da
obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto
à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira
do tudo ou nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é
válida, e neste caso a resposta que oferece deve ser aceita e seguida, ou
não é válida, e, neste caso, em nada contribui para a decisão.
Portanto, onde as regras e os princípios se distinguem com mais nitidez é
ao redor do conflito de regras e da colisão de princípios. Comum a tais conflitos e
colisões é o fato de que duas normas, cada qual aplicada de per si, conduzem a
soluções incompatíveis entre si, ou seja, a dois juízos concretos e contraditórios de
dever-ser jurídico. E daí passam a distinguir-se tamm regras e princípios no modo
de solução de seus conflitos.
23
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson Boeira. São Paulo: M. Fontes, 2002, p.
42.
24
Ibid., p. 39.
29
Juridicamente, para Alexy (1985 apud BONAVIDES)
25
, uma norma vale
ou não e, quando vale e é aplicável a um caso, isto significa que suas
conseqüências jurídicas tamm valem. Para ele os conflitos de regras se
desenvolvem na dimensão da validade. Na colisão de princípios tudo se passa de
modo diverso. Em determinadas circunstâncias, um princípio cede ao outro, ou, em
situações distintas, a questão de prevalência pode se resolver de forma contrária. Os
princípios têm pesos diferentes nos casos concretos e é o princípio de maior peso
que prepondera. Em se partindo da premissa de que somente princípios válidos
podem colidir, pode-se deduzir que a colisão de princípios transcorre fora da
dimensão da validade, ou seja, na dimensão do peso, isto é, do valor.
Diz Bonavides
26
que Alexy diverge de Dworkin pelo fato de este último
conceber de maneira restritiva os princípios, entendendo que eles têm a ver
unicamente com os direitos individuais, a par de considerar os bens coletivos meras
policies. Alexy, ao contrário, alarga o conceito de princípio, inserindo nele ditos bens
coletivos.
Há uma suposta contiidade da teoria dos princípios com a teoria dos
valores, já que aquela se acha subjacente a esta. Assim, enquanto as regras têm a
ver com a validade, os princípios têm muito que ver com os valores.
Para Dantas
27
os princípios representam valores. Afirma ele ainda mais
adiante
28
que, na Constituição Brasileira de 1988, os princípios, sendo superiores às
normas, hierarquizam-se entre si, descendo desde os Princípios Fundamentais até
os simples Princípios, entre os quais se encontram os Princípios Gerais ou Setoriais.
Entende que os Princípios Fundamentais, dependendo da técnica legislativa
utilizada pelo constituinte, poderão, ou não, coincidir com as cláusulas pétreas. De
qualquer forma ditos Princípios Fundamentais, na sistemática interna da
Constituição, ocupam uma posição de destaque ou hierarquia superior às demais
normas, mesmo aquelas constantes do texto constitucional. Admitida a
superioridade do princípio sobre a norma, identifica Dantas
29
os Princípios
Constitucionais Fundamentais, não por meio de um processo dedutivo, mas sim,
lançando mão de uma colocação a priori para apontar aqueles princípios
25
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 279.
26
Ibid., p. 278-279.
27
DANTAS, Ivo. Constituição e Processo. Introdução ao Direito Processual Constitucional. Vol. I Juruá:
Curitiba, 2003. p. 146.
28
BONAVIDES, ibid., p. 170.
29
DANTAS, ibid., p. 148-149.
30
consagrados expressamente nos texto constitucional. E, a partir dos Princípios
Fundamentais (que se irradiam por sobre toda a Constituição) e dos Princípios
Gerais ou Setoriais (voltados para determinado setor), estabelece o autor uma nova
hierarquia, em que os primeiros ocupam o ápice da pirâmide e os segundos uma
posição intermediária entre os Princípios Fundamentais e as normas a que chamaria
de setoriais.
Alexy (apud DANTAS)
30
assevera que entre princípios e valores existe uma
ampla coincidência estrutural; que toda colisão de princípios pode representar uma
colisão de valores e toda colisão de valores uma colisão de princípios.
Conclui Dantas
31
que na interpretação das normas constitucionais haverá
uma reação em cadeia, uma interpenetração irrenuncvel, na qual, partindo-se dos
Princípios Fundamentais, passa-se pelos Princípios Setoriais e se vai até a norma,
daí fazendo o caminho em sentido inverso para atingir-se, novamente, os Princípios
Fundamentais. Entende o autor que somente através dessa reação em cadeia é
que se pode alcançar a harmonia do processo de interpretação constitucional e da
verificação da própria constitucionalidade não só das normas complementares e
ordinárias, como também daquelas existentes no próprio texto da Constituição, de
forma a ser obtida a unidade axiológica do sistema como um todo.
2. 4 A teoria formal e a teoria material da Constituição
A Constituição deve ser compreendida como um sistema normativo
dinâmico, pois não se encontra ela distante da realidade social que busca regular,
recebendo influência direta dos elementos culturais, sociais e econômicos, com os
quais mantém constante interação.
Ensina Bonavides
32
, que os constitucionalistas modernos, ou sustentam,
com Laband, Jellinek e Kelsen, uma teoria formal da Constituição, abraçados ao
positivismo que culminou com a Escola de Viena, ou se repartem em posições
distintas, quais as de Schmitt, Smend, Hsü Dau-Lin, Heller, Schindler, Kägi e Haug.
Destes últimos resultou a teoria material da Constituição, conforme pensamento
30
Ibid., p. 150.
31
DANTAS, loc. cit.
32
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 170.
31
elaborado pela Escola de Zurique, que culminou com os entendimentos de
Schindler, Kägi e Haug, os quais contribuíram decisivamente para a elaboração da
referida teoria material da Constituição.
Quando a luta social começou a questionar os valores da sociedade
burguesa, a indagação de Lassalle sobre o que seria, afinal, uma Constituição,
tornou possível a elaboração de uma teoria material da Constituição, desdizendo os
positivistas que, a par de preservarem, acima de tudo, a juridicidade dos textos
constitucionais, tornaram-se, em sua última geração, formalistas rigorosos e
ferrenhos, apegados apenas ao conteúdo nominal da norma e indiferentes à própria
realidade circunjacente. A tradição dos positivistas remonta a Laband e Jellinek,
alcançando o ponto mais alto com o normativismo de Kelsen.
A teoria formal elaborada pelo positivismo jurídico-estatal reduz a
Constituição a um simples documento legalista, fixado no seu exame e emprego
como lei técnica de organização do poder e exteriorização formal de direito. O
positivismo jurídico-estatal, de feição formalista, esboçado por Laband, aperfeiçoado
por Jellinek e conduzido às últimas conseqüências por Kelsen, caracterizou-se por
abreviar as reflexões sobre a Constituição, reduzindo-a a uma classificação legalista.
Sob tal concepção surgiram as Constituições dogmáticas.
A Constituição do positivismo jurídico-estatal é formalista e fechada,
composta de preceitos que fazem coincidir por inteiro o sentido formal com o seu
sentido material. O positivista, como intérprete da Constituição, é conservador por
excelência. Quem muda a Constituição é somente o legislador, ou seja, o
constituinte e não o intérprete. O positivismo só admite a mudança formal da
Constituição, aquela operada através da alteração objetiva do texto constitucional.
Além disso, a aplicação do direito constitui operação lógica, ato de subsunção, e
não ato criador ou sequer aperfeiçoador. Criar o direito e aplicar o direito são duas
funções totalmente distintas para o positivista. Na teoria constitucional
contemporânea, o formalismo chega às suas últimas conseqüências com Kelsen e
os juristas da Escola de Viena,
A revisão constitucional para Kelsen
33
não conhece limites materiais,
podendo a ordem jurídica soberana receber qualquer conteúdo. O formalismo de
Kelsen, ao fazer válido todo o conteúdo constitucional, desde que devidamente
observado o procedimento legal, fez coincidir os conceitos de legalidade e
33
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: M. Fontes, 1995. p. 130.
32
legitimidade, tornando legítima toda espécie de ordenamento estatal ou jurídico. Tal
permissibilidade marcou o colapso do Estado de Direito clássico.
Observado pelo ângulo do positivismo formalista até o Estado nacional-
socialista de Hitler fora Estado de Direito. A norma se distanciava da realidade para
se conter por inteiro nas formalidades dos procedimentos legalistas estabelecidos
para a sua criação, sem qualquer consideração pelo seu conteúdo ideológico.
Começou, então, o positivismo a sofrer inúmeros ataques, tanto sob o prisma
metodológico, através do realismo jurídico, da tópica, da argumentação, da lógica do
razoável, como sob o ponto de vista material, por meio da teoria crítica e da
jurisprudência dos valores.
Bonavides
34
, considerando que a jurisprudência dos valores tem o mesmo
sentido da jurisprudência dos princípios, que se interpenetra com a jurisprudência
dos problemas, e domina o constitucionalismo contemporâneo, diz que:
A jurisprudência dos valores forma a espinha dorsal da Nova hermenêutica
na idade do pós-positivismo e da teoria material da Constituição. Fornece,
por isso mesmo, os critérios e meios interpretativos de que se necessita
para um mais amplo acesso à tríade normativa – regra, princípio e valor –
que tanta importância possui para penetrar e sondar o sentido e a direção
que o Direito Constitucional toma tocante à aplicabilidade imediata de seus
preceitos.
É conhecida, como relata Bonavides
35
, a polêmica travada entre Kelsen e
Schmitt nos anos de 1930 em Colônia e que se constituiu em um momento decisivo
resultante da reação que o formalismo provocou na Alemanha. Dela resultou um
divisor de águas na teoria do século XX e originou-se a corrente realista e
renovadora, de inspiração filosófica e sociológica que perdura até os nossos dias, e
que foi encampada pela Escola de Zurique, cujos constitucionalistas desenvolveram
a chamada teoria material da Constituição. A Constituição, do ponto de vista
material, é o conjunto de normas pertinentes à organização do poder, à distribuição
da competência, ao exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da
pessoa humana, tanto individuais como sociais. Enfim, tudo aquilo que disser
respeito ao conteúdo básico relativo à composição e ao funcionamento da ordem
34
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 284.
35
Ibid., p. 171.
33
política, ao exercício do poder politico, à organização política do grupo social ou da
sociedade exprime o aspecto material da Constituição.
Por isso, sob o aspecto material, todo Estado possui uma Constituição, ou
seja, não há Estado que não seja Constitucional, já que toda sociedade
politicamente organizada, por mais rudimentar que seja, possui essa estrutura
organizacional mínima.
Foi à feição material ou à essência da Constituição que Lassalle
36
se
referiu quando afirmou que uma Constituição real e verdadeira, em sentido material,
todos os países possuem ou possuíram, mas o que caracteriza a época moderna
não são as Constituições materiais mas as Constituições escritas, as folhas de
papel. Explica ainda que, onde a Constituição escrita não corresponder à real,
irrompe, inevitavelmente, um conflito que é impossível evitar e no qual, mais dias
menos dia, a constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá, necessariamente,
perante a constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país.
Bonavides
37
assevera que a Constituição, em seu aspecto material, diz
respeito ao conteúdo e substância das normas, mas tão-somente ao conteúdo das
determinações mais importantes, únicas merecedoras, segundo o entendimento
dominante, de serem designadas rigorosamente como matéria constitucional.
A Escola de Zurique tem, como frisa Bonavides
38
, importância capital para
a formação da chamada teoria material da Constituição, em oposição aos excessos
do positivismo jurídico formal. Os principais representantes dessa corrente são os
constitucionalistas Schindler, Kägi e Haug, para quem o Direito e o Estado são
limitados pelos valores e pela realidade do ser. Como valores ideais mais altos,
Haug coloca os direitos fundamentais do cidadão, e como realidade do ser os
postulados e exigências de Justiça, sendo ambos limitativos da reforma
constitucional, e estes últimos de conformidade com o caso concreto.
Relata Bonavides
39
, que a teoria material da Constituição consolidou-se
na Alemanha graças aos constitucionalistas da tópica. Reduzidos a meros topoi, a
norma e o sistema já não desfrutam, na hermenêutica da Constituição, daquele
primado que a metodologia clássica e interpretativa de Savigny lhes conferia. São
apenas pontos de vista com que o intérprete, argumentando, busca a solução do
36
LASSALLE, Ferdinand. A essência da constituição. Rio de Janeiro: Líber Juris, 1988. p. 49, 59-60.
37
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 81.
38
Ibid., p. 180-183.
39
Ibid., p. 182-183.
34
problema. Passa a prevalecer o decisionismo no caso concreto, analisado por todos
os ângulos possíveis, ao contrário do dedutivismo lógico dos normativistas.
A tópica no Direito Constitucional contemporâneo tem na Alemanha os
seus grandes mestres, entre os quais figuram Kriele, de Colônia, Konrad Hesse, de
Freiburg, Friedrich Muller, de Heideberg e Peter Häberle, de Augsburg. Kriele
classificou os topoi, Hesse desenvolveu uma teoria concretista, Müller produziu
novo método de interpretação da Constituição, que ele mesmo denominou
estrutural-funcionalista, e Häberle propôs o conceito inovador da “Constituição
aberta” no pluralismo das sociedades democráticas, o instrumento de interpretação
constitucional mais antiformalista que se conhece.
A Constituição, quando examinada sob o ponto de vista material ou
substancial, pode ser concebida como o conjunto de normas jurídicas fundamentais,
escritas ou não, que constituam a estrutura básica do Estado. É nesse sentido que a
Constituição se torna um elemento de acoplamento e mediação entre o sistema
político e o jurídico, buscando concretizar politicamente na sociedade a sua força
normativa oriunda do ordenamento jurídico. A materialidade constitucional foi
convertida em pedra angular do novo Direito Constitucional, expandindo-se à
sombra dos conceitos da Nova hermenêutica Constitucional e ensejando soluções
para as crises que ameaçam abalar os ordenamentos constitucionais concebidos à
luz da liberdade e do direito, inspirados nos cânones da justiça social.
Com a constitucionalidade material, o que se busca é a aproximação, a
conciliação da realidade com a Constituição, do ser com o dever-ser, da regra com o
princípio, do direito do cidadão com a autoridade do Estado. De tal maneira deve ser
buscada tal conciliação, que se venham a captar na ordem fática elementos de
juridicidade com que erguer a base normativa de concretização dos preceitos ou
comandos normativos, a partir da letra do texto constitucional, combinada a seguir
com os referidos elementos fáticos.
Para Pereira
40
, a teoria material da Constituição propiciou a abertura das
normas constitucionais e uma viragem hermenêutica que passou a exigir a
observância de inúmeros valores e princípios materiais não necessariamente
positivados. Tal circunstância implicou na valorização do instituto do devido processo
legal substantivo, aquele que não se prende apenas aos requisitos de forma, indo
40
PEREIRA, Ruitemberg Nunes. O princípio do devido processo legal substantivo. Rio de Janeiro: Renovar,
2005. p. 490-491.
35
fundo no exame axiológico, com o objetivo de proteger o conteúdo essencial dos
direitos fundamentais, bem como realizá-los e concretizá-los.
Com isso, verificou-se a substancialização do devido processo legal, que
caminhou paralelamente à substancialização ou materialização das normas
constitucionais que, a cada momento, liberavam-se de suas raízes puramente
formais, decorrentes do positivismo jurídico racionalista, para alcançarem a estatura
de uma constituição viva, a denominada living constitution, sempre aberta para a
realidade do entorno social.
A abertura das normas constitucionais se demonstra pela distinção destas
em regras e princípios, conforme proposta pela doutrina constitucionalista moderna.
PEREIRA
41
ressalta que o professor norte-americano Dworkin, criticando o
positivismo de Herbert Hart, desenvolve uma argumentação filosófica de maneira a
assentar a idéia do Direito em uma tríplice divisão elementar, integrada pelas regras,
pelos princípios jurídicos, e, no âmbito destes, pelas políticas, ou seja, pelas policies.
Assim, rules, principles e policies são as peças que compõem o Direito. Os
princípios correspondem a uma concepção material e objetiva dos valores morais,
consubstanciando-se em pautas de exigência da justiça, da razoabilidade ou de
outra dimensão da moralidade, aspecto rejeitado pelo positivismo legalista ou
normativista.
Tratando os princípios como direito, Dworkin
42
coloca a possibilidade de
que uma obrigação jurídica tanto possa ser imposta por uma constelação de
princípios como por uma regra estabelecida.
Dessa forma, constituição formal e a constituição material encontram-se
entrelaçadas, de modo que a realidade fática penetra na realidade normativa e vice-
versa, provocando mudanças recíprocas e formando um canal dinâmico de
permanente conformação entre a ordem fático-axiológica e a realidade normativa,
de cujo mecanismo se nutre a ordem jurídica para concretizar principiologicamente
os direitos fundamentais .
41
Ibid., p. 492-493.
42
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: M. Fontes, 2002, p. 71
36
3 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
3.1 Origens da Jurisdição Constitucional
A história da Jurisdição Constitucional nasceu com os primeiros
movimentos sociais que buscavam garantir aos indivíduos igualdade e liberdade.
Tem, portanto, seu embasamento cultural no movimento histórico denominado
constitucionalismo, que buscava limitar o poder político dos soberanos em prol dos
indivíduos, a fim de garantir o exercício dos direitos individuais.
A gênese da Jurisdição Constitucional está ligada ao processo de controle
de constitucionalidade das leis e atos normativos do poder público, fundado no
principio da supremacia da constituição, surgido historicamente nos Estados Unidos
sob a denominação de judicial review.
Como ensina Streck
43
, a instrumentalização dos valores constitucionais e
a aferição da conformidade ou não das leis ao texto constitucional se estabelecem
através do que se convencionou chamar de justiça constitucional, mediante o
mecanismo da Jurisdição Constitucional.
A Jurisdição Constitucional baseia-se na idéia de superioridade
hierárquica ou supremacia da Constituição, o que representa a mais eficaz garantia
da liberdade e da dignidade do indivíduo pela submissão, ao crivo constitucional, de
todos os atos jurídico-normativos. Os Tribunais Constitucionais exercem-na tendo
por escopo dar primazia ao estatuído nas normas constitucionais, velando pelo
respeito à Constituição e aos direitos fundamentais. Busca a Jurisdição
Constitucional fazer cumprirem-se as normas constitucionais, de modo a se obter o
melhor enquadramento possível dos sistemas políticos dentro do ordenamento
jurídico do Estado.
Em tendo a Constituição por objetivo racionalizar e limitar o Poder
Político, haverá sempre necessidade de se velar pela constitucionalidade do sistema
jurídico-político do Estado de Direito, de modo a preservar-se a Constituição, como
parâmetro da organização política traçada pelo Poder Constituinte do Estado.
43
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. 101.
37
O poder político vem a ser o poder relacionado à polis, à comunidade,
com o sentido de espaço público em que vigora unidade de objetivos voltados ao
bem comum. É o poder particular que se torna hegemônico e passa a se exercer
sobre a sociedade como um todo, ou, em manifestação mais evoluída, como poder
associativo. A partir do constitucionalismo moderno, o poder político tende a se
legitimar através do Direito.
Cunha
44
refere lição de Rawls, para quem, num regime constitucional, “a
característica especial da relação política é que o poder político é, em última
instância, o poder do público, o poder dos cidadãos livres e iguais na condição de
corpo coletivo”. Tal concepção deriva principalmente do sentido democrático do
exercício do poder político.
De maneira simplificada, diz Agra
45
que a Jurisdição Constitucional
compreende a função estatal que objetiva concretizar os mandamentos contidos na
Constituição, fazendo com que as estruturas normativas abstratas possam
normatizar a realidade fática.
A Jurisdição Constitucional engloba o controle da constitucionalidade e a
chamada Jurisdição Constitucional das liberdades. É ela regulada pelo Direito
Processual Constitucional, que é a reunião de princípios que regulam os
instrumentos jurídico-processuais que a Constituição institui para a preservação das
liberdades e garantias por ela estatuídas, como o habeas corpus, o mandado de
segurança, o mandado de injunção, o habeas data e a reclamação. O Estado,
concebido como um determinado grupo social, estabelecido em um certo território, é
regido por regras jurídicas que têm por escopo normatizar e assegurar a convivência
social pacífica de seus membros.
Dentre tais normas jurídicas destaca-se uma lei maior e fundamental, que
embasa as demais: a Constituição. Kelsen
46
definia Constituição em dois sentidos: o
material e o formal. Para ele, no sentido material, a Constituição consiste nas regras
que regulam a criação das normas jurídicas gerais, constituindo elemento essencial
a todas as ordens jurídicas. No sentido formal, a Constituição é certo documento
solene composto de um conjunto de normas jurídicas que somente podem ser
44
CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Fundamentos de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 30.
45
AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal: densificação da
Jurisdição Constitucional Brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2005 . p. 17, 19.
46
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. São Paulo: M. Fontes, 1992. p. 130.
38
modificadas com a observância de prescrições especiais, cujo propósito é tornar
mais difícil a modificação dessas normas.
Fala-se em Constituição em sentido formal quando se faz a distinção entre
as leis ordinárias e aquelas outras que exigem certos requisitos especiais para sua
criação e reforma. Decorre, pois, do referido sentido de Constituição a distinção
entre legislação ordinária e legislação constitucional. Porém, as regras jurídicas que
compõem o direito positivo de cada Estado, não se situam, de maneira linear, dentro
do sistema constitucional. Apresentam elas, entre si, diferentes graus de hierarquia
dentro do ordenamento jurídico total, de sorte a comporem uma estrutura piramidal,
em cujo ápice localiza-se a Constituição.
Essa teoria da hierarquia das normas jurídicas foi desenvolvida por
Kelsen
47
, que afirma que a ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas
ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma
construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas.
Para Bobbio
48
, que aceita essa teoria da construção escalonada do
ordenamento jurídico elaborada por Kelsen, sem a Constituição, que se erige em
norma fundamental do sistema jurídico, as normas que integram o ordenamento
jurídico constituiriam um simples amontoado, e nunca um ordenamento
sistematizado de regras jurídicas. Assim se pronuncia o renomado pensador italiano:
Em outras palavras, por mais numerosas que sejam as fontes do direito
num ordenamento complexo, tal ordenamento constitui uma unidade pelo
fato de que, direta ou indiretamente, com voltas mais ou menos tortuosas,
todas as fontes do direito podem ser remontadas a uma única norma.
3.2 O controle da constitucionalidade das leis
Dantas
49
afirma que o controle de constitucionalidade representa uma dos
pilares fundamentais na defesa do valor da Constituição e, em conseqüência, do
denominado Estado de Direito, constituindo-se em tema que integra o objeto
material da denominada Teoria da Constituição ou do Direito Constitucional Geral.
47
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: M. Fontes, 2000. p. 246.
48
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento judico. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1999. p. 49.
49
DANTAS, Ivo. O valor da constituição: do controle de constitucionalidade como garantia da
supralegalidde constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. p. 7.
39
Ignacio de Otto (apud DANTAS)
50
entende que Constituição em sentido
formal é a Constituição escrita, composta daqueles textos que se diferenciam das
demais leis pelo seu nome e pelo fato de sua aprovação e reforma estarem sujeitas
a especiais requisitos, enquanto a expressão Constituição em sentido material alude,
por seu turno, ao conjunto de normas cujo objeto é a organização do Estado, os
poderes de seus órgãos, as relações destes entre si e suas relações com os
cidadãos, ou seja, são as normas que regulam a criação de normas pelos órgãos
superiores do Estado. A partir desta diferenciação é possível reconhecer que
algumas normas constitucionais o são apenas formalmente, porque estão na
Constituição escrita, embora o objeto das mesmas não seja os órgãos superiores do
Estado, ou seja, a matéria constitucional. Há ainda as normas que são apenas
materialmente constitucionais, porque, embora tratem de matéria constitucional, não
estão incluídas na Constituição escrita.
Klaus Stern (apud DANTAS)
51
diz que a Constituição é o conjunto das
normas jurídicas de máxima hierarquia plasmadas, em geral, em documentos
constitucionais, que regulam o ordenamento do Estado, relativamente à sua
organização, forma e estruturas fundamentais, assim como a relação básica entre
seus cidadãos, fixando determinados conteúdos como conseqüência da sua
alterabilidade dificultada. Este é o conceito formal de Constituição, por referir-se à
sua recepção em um documento constitucional, em uma lei especial escrita, e
tamm material por estar orientado para uma determinada matéria, um especial
objeto de índole constitucional, que é aquela relacionada com a organização do
Estado.
A idéia moderna de Constituição, concebida como forma de organização
política com separação de poderes e garantia dos direitos fundamentais, o advento
das Constituições escritas e a adoção de sistemas federativos, provocando a
dualidade legislativa nos âmbitos federal e estaduais, tornou imprescindível um
sistema de controle que garantisse a supremacia da lex fundamentalis sobre as
demais normas de hierarquia inferior, resolvendo as antinomias existentes entre
elas. Convencionou-se chamar tal sistema de aferição da compatibilidade dessas
normas com a Constituição de controle de constitucionalidade das leis.
50
Ibid., p.19.
51
Dantas, loc. cit.
40
As constituições escritas surgidas com a Modernidade têm como
conseqüência a rigidez presumida e a hierarquia das leis e exigem um sistema
eficaz de controle de constitucionalidade de modo a garantir a supremacia das
normas constitucionais. Lobato
52
assegura que:
a supremacia constitucional exige o estabelecimento de mecanismos
jurídicos visando a impedir a promulgação e, sobretudo, a aplicação de
normas jurídicas que estejam em desacordo com os princípios da
Constituição. A este conjunto de mecanismos jurisdicionais e/ou políticos,
denominamos controle de jurisdicionalidade.
Poletti
53
afirma que a questão da constitucionalidade das leis remonta à
distinção entre Constituição escrita e não-escrita. Contudo, não existe um rigorismo
científico que possa distinguir nitidamente as constituições escritas das não-escritas.
Isto porque o sistema de direito escrito tamm absorve e leva em conta os
costumes, enquanto o direito constitucional fundado nos costumes possui, também,
leis escritas. Por isso que as Constituições escritas rígidas normalmente
desenvolvem, paralelamente e às vezes até contra elas, um Direito Constitucional
não-escrito, o que ocorre em alguns Estados, onde, junto a princípios constitucionais
puramente formais, existam outros de índole material.
Não é estranha a idéia de que o controle da constitucionalidade das leis
tenha seu fundamento histórico no direito de resistência aos governos injustos, de
origem medieval. São conhecidas referências à formulação de um direito natural
superior ao direito positivo na Idade Média. Derivadas do cristianismo e das idéias
estóicas, tal idéia tamm se mostra presente no jusnaturalismo dos séculos XVII e
XVIII.
Há referências na doutrina de que a origem remota do controle de
constituconalidade situa-se na Inglaterra, onde categorias do Direito Natural eram
aplicadas para anular leis contrárias ao common law
54
, sistema em que prevalece a
Constituição não-escrita, e de onde foi dito controle transplantado para o regime
norte-americano. Tal assertiva denota o paradoxo de ter dito controle nascido num
sistema de Constituição não-escrita, embora, em um segundo momento de sua
concreção e experiência, ele tenha se tornado a nota típica das Constituições
escritas.
52
LOBATO, Anderson Cavalcante. Para uma nova compreensão do sistema misto de controle da
constitucionalidade: a aceitação do controle preventivo. Revista de Informação Legislativa, Brasília, Ano 21, nº.
124, out. dez. 1994. p. 172.
53
POLETTI, Ronaldo. Controle da constitucionalidade das leis. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 1.
54
Ibid., p. 8-9, 18.
41
O controle da constitucionalidade representa uma garantia da
Constituição rígida. A rigidez, juntamente com a hierarquia das leis, constituem
conseqüências das Constituições escritas. As Constituições escritas não são
necessariamente dogmáticas, mas as constituições históricas sempre resistem à sua
forma codificada. Polletti
55
afirma que as constituições escritas podem apresentar
graus de historicidade e dogmaticidade. Os precedentes da Suprema Corte
Americana, a partir da célebre decisão de Marshall, bem como a sua evolução, estão
a demonstrar que o controle da constitucionalidade, apesar das resistências,
somente se torna eficaz, na medida da sua aceitação política pelos governantes e
governados. Daí decorre a conclusão de que o controle da constitucionalidade das
leis parece ser mais adequado a uma Constituição histórica do que em uma de
natureza dogmática.
E tal circunstância se confirma no sistema norte-americano, onde o
controle da constitucionalidade das leis se erige na mola mestra propulsora de todo
o ordenamento jurídico, encimado por uma Constituição histórica, construída
evolutivamente ao longo dos mais de duzentos anos de existência da nação
americana.
Para Jorge Miranda (apud DANTAS)
56
os grandes pressupostos da
fiscalização das leis e dos demais atos jurídico-políticos são a existência de uma
Constituição em sentido formal e a necessidade de garantia dos seus princípios e
preceitos reforçada pela vontade de instituir meios adequados à satisfação de tal
necessidade. Não é preciso, contudo, que haja Constituição formal para que se
produza inconstitucionalidade, e muito menos que a Constituição seja rígida. Basta
que haja Constituição em sentido material, e não apenas em sentido institucional.
Mas acresce que, em Constituição material e flexível, como a britânica, a
inconstitucionalidade não configura violação jurídica autônoma, não ensejando
portanto condições para a organização de um efetivo controle de
constitucionalidade.
O federalismo foi o berço do controle de constitucionalidade, tanto nos
Estados Unidos como no Brasil, predominando como tema na jurisprudência da
Suprema Corte Americana. O pluralismo de Estados congregados em aliança ou
55
POLETTI, Ronaldo. Controle da constitucionalidade das leis. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 240.
56
DANTAS, Ivo. O valor da constituição: do controle de constitucionalidade como garantia da
supralegalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1996. p. 20-21.
42
comunhão política, exigindo o respeito às relações mútuas dos entes associados,
constitui, em sua dimensão histórica, o ponto de partida de toda a judicialização do
controle de constitucionalidade.
A origem moderna do controle de constitucionalidade encontra-se,
portanto, na jurisprudência dos Estados Unidos da América, embora não tivesse sido
previsto expressamente na sua Constituição. A formação e o desenvolvimento, nos
EUA, do judicial review of legislation, ou seja, a revisão das leis pelos juízes, não
dependeu da sua consagração no texto da Constituição Federal de 1787, mas
resultou da criação jurisprudencial.
A Constituição escrita garantira no seu artigo II, combinado com o IV,
apenas a existência da Suprema Corte, com a supremacia da União sobre a
legislação e jurisprudência dos Estados-membros, mas não um sistema pleno de
Jurisdição Constitucional, onde prevalecesse um Tribunal Supremo com poder para
anular leis do Congresso. Esse poder foi-se consolidando como fruto do seu evolver
histórico, e não por força de sua declaração na Constituição Federal de 1787.
Na histórica decisão da Suprema Corte Americana, no caso Marbury x
Madison, em 1803, o Juiz Marshall sustentou que, em havendo contradição entre a
lei e a Constituição, deve o juiz, para a solução do caso concreto, aplicar esta em
lugar da norma legal. Surgia, dessa forma, o controle judicial difuso ou americano de
constitucionalidade, tamm conhecido como judicial review. Portanto, defluiu
atividade criativa da jurisprudência, e não do texto expresso da Constituição, o
sistema de controle de constitucionalidade das leis nos Estados Unidos. O princípio
nasceu de simples ilação interpretativa, sem que tenha sido mencionado
expressamente na Constituição.
No continente europeu, contudo, somente com a aprovação da
Constituição da Áustria, em primeiro de outubro de 1920, inspirada nas idéias do
jurista Hans Kelsen, é que efetivamente surgiu a justiça constitucional e a sua mais
relevante manifestação, que é o controle de constitucionalidade das leis, então sob
um novo modelo paradigmático: o abstrato. O Tribunal Constitucional foi então
criado com a atribuição principal de exercer tal controle da constitucionalidade.
Após a Segunda Guerra Mundial ficou cristalizada a necessidade de
tornar-se a Constituição um sistema normativo superior, garantida por uma
Jurisdição Constitucional, destinada a torná-la efetiva, tendo então sido adotado o
controle abstrato ou concentrado na Itália (1948), na Alemanha (1949), na França
43
(1958), no Chipre (1960), na Turquia (1961), na Iugoslávia (1963), em Portugal
(1976), na Espanha (1978), na Bélgica, na Hungria (1984), e na Polônia (1985). Com
o desaparecimento da União Soviética, foi criada em 1991 a Corte Constitucional da
Rússia, que somente começou a funcionar em 1992. Constitui ela referência para as
Constituições das novas repúblicas independentes que surgem.
57
A Declaração Universal dos Direitos Humanos pela ONU, de 1948,
reafirmou o ideal democrático e abandonou a concepção de simples manifesto
político, que era até então atribuída à Constituição, ganhando esta eficácia jurídica,
a partir de seu preâmbulo e do reconhecimento da normatividade dos princípios por
ela consagrados.
O controle de constitucionalidade consubstancia a forma de zelar pela
supremacia da Constituição. Ele pode ser: interno, quando exercido pelo mesmo
órgão que elaborou a lei em sentido lato, desempenhou a prática administrativa ou
praticou o ato administrativo; ou externo e jurisdicional, quando é exercido por órgão
do Poder Judiciário, distinto daquele que elaborou a lei ou praticou o procedimento
impugnado.
Este controle externo só é possível em um sistema de freios e
contrapesos (checks and balances), em que o poder é limitado pelo próprio poder,
à semelhança do criado pelos norte-americanos. O controle dos governantes pelos
governados consubstancia a manutenção da titularidade do Poder Político com os
governados, caracterizando o Estado Democrático de Direito para Costa
58
.
Na França o controle da constitucionalidade das leis é feito a priori, e
unicamente por um órgão político denominado Conselho Constitucional. A matriz
francesa é importante para o debate constitucional contemporâneo, pois se trata de
um tipo de controle único em seu gênero, que, em concurso com o controle
jurisdicional difuso dos EUA e o concentrado do Tribunal Austríaco, forma os três
modelos originais do sistema.
Sustenta Ferraz apud Costa
59
que a doutrina, de modo geral, não aceita o
controle exclusivamente político de constitucionalidade, em razão da sua pouca valia
e ineficácia para a defesa da Constituição e das liberdades e direitos fundamentais
57
SOUZA, Carlos Aureliano Motta de. O papel constitucional do STF: uma nova aproximação sobre o
efeito vinculante. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. p.42.
58
COSTA, Maria Isabel Pereira da. Jurisdição constitucional no estado democrático de direito. Porto Alegre:
Síntese, 2003. p. 97.
59
COSTA, loc. cit .
44
dos cidadãos. Isto porque, se ao Poder Legislativo fosse dada a função de verificar a
constitucionalidade das próprias leis que elaborou, dificilmente este controle
observaria os parâmetros jurídico-constitucionais e utilizaria critérios meramente
políticos, pois não seria capaz de se responsabilizar pelo desrespeito ao Texto
Magno. O mesmo ocorreria em relação ao controle de atos normativos do Poder
Executivo de que se encarregasse o Poder Legislativo. Por tais razões é que há uma
tendência maior dos sistemas constitucionais em adotarem o controle jurisdicional de
constitucionalidade.
A supremacia da Constituição deve preponderar sobre todos os poderes e
atos do Estado, sob pena de o dogma principal do constitucionalismo moderno,
voltado para a limitação do poder político dos governantes e a garantia da
concretização dos direitos fundamentais, restar sepultado e inoperante. Para garantir
tal supremacia é que existe o controle da constitucionalidade, que também se mostra
eficaz nos sistemas jurídicos de constituição não-escrita, nos quais prevalece a
fundamentalidade material
60
dos direitos constitucionais.
Como exemplo de constituição flexível e não-escrita, podemos citar a da
Inglaterra, onde, embora não vigore um controle formal de constitucionalidade,
registra-se a ocorrência informal de tal controle sob o aspecto material, baseado na
fundamentalidade dos direitos humanos e nos dois princípios basilares da sua
Constituição não-dogmática, quais sejam, os princípios da soberania do Parlamento
e da igualdade.
Contudo, não se pode negar que haja, no Reino Unido, leis de natureza
constitucional devidamente formalizadas por escrito, como, por exemplo, a Magna
Carta e as suas confirmações, a Petition of Rights, o Bill of Rights. Tais diplomas, no
entanto, não estão acima das leis ordinárias, às quais se igualam em tudo. Porém
deve ser ponderada a grande dificuldade em alterá-los por força de razões político-
culturais e não técnico-jurídicas. Como lembra Poletti
61
, a partir da Revolução
Puritana promovida por Cromwell contra a tirania da Coroa e o despotismo do
Parlamento, foram estabelecidos os limites legais à atividade de tais poderes na
Inglaterra, não só através daqueles referidos documentos históricos e outros, como
60
COSTA, Maria Isabel Pereira da. Jurisdição constitucional no estado democrático de direito. Porto Alegre:
Síntese, 2003. p. 46. Diz COSTA, apoiada em Canotilho, que a fundamentalidade material significa que o
conteúdo dos direitos fundamentais é constitutivo das estruturas básicas do Estado e da sociedade,
independentemente de sua fundamentalidade formal, derivada de constarem, expressa ou implicitamente, do
texto constitucional.
61
POLETTI, Ronaldo. Controle da Constitucionalidade das Leis. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 7
45
tamm através da common law e de princípios religiosos, morais e de direito
natural tão em voga nos séculos XVI e XVII, formando-se a convicção sobre a
existência de uma hierarquia de normas com a prevalência dos mandamentos
jusnaturalistas.
Acera do tema, Poletti
62
refere-se ao célebre jurista inglês Sir Edward
Coke (1552-1634), para quem o Estado britânico era composto por Tribunais, entre
os quais incluía-se o Parlamento, cujos atos deveriam submeter-se ao direito
costumeiro e, por conseqüência, o Rei não poderia julgar senão por intermédio dos
juízes. No julgamento do caso Bonham (1610), decidido pela Court of Common
Pleas assentou-se o princípio do controle judicial. Embora se acreditasse que a
vontade do Parlamento poderia mudar a Constituição, do mesmo modo como Deus
criou a luz, entendeu-se que tal onipotência teórica encontrava, na realidade,
fronteiras eficazes. Alguns juristas ingleses, já naquela época, consideravam
inválidos os atos parlamentares quando opostos à moral, ao direito das nações, aos
princípios fundamentais da Carta Magna. Lord Coke sustentava que o direito
consuetudinário limita os atos do Parlamento, e às vezes os priva de validade,
quando contrários à razão (common right and reason). Parece-nos, pois, que o
controle de constitucionalidade, ainda quando não adotado formalmente na
Constituição, estará sempre implicitamente entranhado na organização política do
Estado, como forma de preservar-se a fundamentalidade substancial dos direitos
fundamentais dos seus cidadãos.
Barroso
63
afirma que a decadência do positivismo é emblematicamente
associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Assim, ao fim
da Segunda Guerra Mundial, a idéia de um ordenamento jurídico indiferente a
valores éticos, e da lei como estrutura meramente formal, uma embalagem para
qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido. A
realidade do pós-guerra exigia um controle de constitucionalidade de natureza
substantiva, relacionada ao conteúdo axiológico da norma.
62
POLETTI, op. cit, p. 18-19.
63
BARROSO, Luís Roberto.(Org.). Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro:
s-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. In: A nova interpretação constitucional: ponderação,
direitos fundamentais e relações privadas. São Paulo: Renovar, 2003. p. 1-48.
46
3.3 Modalidades de controle de constitucionalidade
Quanto ao seu conteúdo o controle de constitucionalidade pode ser:
formal, que é o controle técnico ou jurídico da norma; ou material, que é o que incide
sobre o conteúdo da norma e que tende a assumir uma natureza substancialmente
política.
Quanto à natureza dos órgãos incumbidos de efetuar tal controle, ele
pode ser jurisdicional, quando exercido por órgãos integrantes do Poder Judiciário;
ou político, quando exercido por órgãos que não pertencem a dito Poder.
O controle jurisdicional, dependendo do modo como se efetiva, pode ser
difuso ou concentrado. O difuso, originado nos Estados Unidos, é o que se opera no
bojo de um caso concreto por via incidental, e que significa que todo juiz ordinário,
não importa o seu grau hierárquico, tem competência numa demanda para examinar
e julgar a constitucionalidade de uma lei. O controle difuso por via de exceção, típico
do sistema norte-americano, só se faz absoluto ou definitivo quando a decisão
judicial é prolatada pela Suprema Corte. Já o controle abstrato, concebido por
Kelsen, é o que se processa por via principal, mediante ação direta dos legitimados
a agirem.
O sistema kelseniano abstrato concentra a Jurisdição Constitucional do
controle de constitucionalidade das leis em um só tribunal, ao contrário do sistema
difuso norte-americano que atribui essa função a todos os tribunais, embora
ordenando essa pluralidade de decisões sob o comando do princípio do stare
decisis
64
e vinculando todos os tribunais à jurisprudência da Suprema Corte.
Consoante afirma a doutrina, a Constituição Americana é o que a Suprema Corte diz
que ela é, nos casos concretos que lhe são apresentados. Em matéria de
constitucionalidade, não há controle in abstrato ou difuso no sistema americano.
Muito embora se reconheça que uma das características dos Tribunais
Constitucionais é a de decidir sobre os conflitos políticos da sociedade, não se
podendo, por isso, negar a politização de tais decisões, não se deve, por outro lado,
olvidar que suas decisões utilizam-se de métodos e critérios jurídicos. Portanto, a
jurisdição exercida pelos Tribunais Constitucionais não está inteiramente desprovida
64
“cumprir ou aderir aos casos julgados”, é a política de direito anglo-americano de decidir uma causa do
mesmo modo como as causas anteriores semelhantes foram decididas. È a teoria da uniformização da
jurisprudência. MELLO, Maria Chaves de. Dicionário jurídico. Rio de Janeiro: Elfos, 1998.
47
das especificidades metódicas próprias da atividade jurisdicional desenvolvida por
outros tribunais.
No sistema concentrado de controle de constitucionalidade os Tribunais
Constitucionais atuam como intérpretes finais da Constituição e juízes últimos de sua
própria autoridade. Rui Barbosa, no julgamento do célebre pedido de habeas corpus
em favor dos perseguidos políticos de Floriano Peixoto, invocou a doutrina norte-
americana e afirmou que o Supremo Tribunal Federal é o intérprete final da
Constituição e, em conseqüência, o juiz da sua própria autoridade
65
.
Realçando a ampla aceitação dos tribunais constitucionais nas
sociedades democráticas, diz Coelho
66
que:
eles se transformaram em variantes do poder legislativo, legisladores
positivos ou mesmo, se preferirmos, descontado o exagero da expressão,
verdadeiros constituintes de plantão. Tal circunstância confirma, agora com
validade erga omnes, as palavras de Charles Hughes (então Governador
do Estado de Nova York e, depois, membro da Suprema Corte dos Estados
Unidos) quando afirmou que os americanos viviam sob uma constituição,
mas essa carta política era aquilo que os juízes diziam que ela o era.
Já Clève
67
sublinha que o núcleo do modelo americano de fiscalização de
constitucionalidade reside no fato de que, qualquer juiz chamado a decidir um caso
em que seja relevante uma norma legislativa ordinária que se oponha à norma
constitucional, deve aplicar, não a primeira, mas sim a segunda. A funcionalidade do
modelo, todavia, repousa no princípio do stare decisis, que implica na força
vinculante das decisões judiciais. Por força desse princípio, as decisões da Suprema
Corte sobre qualquer questão constitucional são vinculantes para todos os demais
órgãos judiciais.
No sistema americano a Jurisdição Constitucional é atribuída a todos os
órgãos jurisdicionais que apreciam o problema de inconstitucionalidade como um
incidente da controvérsia que lhes cabe dirimir. O constitucionalismo americano de
controle da constitucionalidade consagra, portanto, o sistema de jurisdição difusa,
diverso daquele de jurisdição concentrada, tamm conhecido como austríaco, em
uma referência à nacionalidade de Kelsen, seu instituidor.
65
COELHO, Inocêncio Mártires. Elementos de teoria da constituição e de interpretação constitucional. In:
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet Hermenêutica
constitucional e direitos fundamentais.. Brasilia: Brasília Jurídica, 2002. p. 58.
66
Ibid., p. 58.
67
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São
Paulo: RT, 2000. p.94.
48
No Brasil, com a adoção do regime republicano em 1891, foi reconhecida
ao Poder Judiciário competência para exercer o controle de constitucionalidade das
leis, a exemplo dos Estados Unidos da América do Norte. Contudo, não houve a
adoção do genuíno modelo americano de controle de constitucionalidade das leis, já
que não foi acolhido o princípio do stare decisis.
Desde a Constituição Republicana de 1891, é conferido ao Supremo
Tribunal Federal, criado em 1890, o controle de constitucionalidade, por meio do
sistema difuso, através do exercício da Jurisdição Constitucional, a par das outras
atribuições próprias da justiça ordinária As constituições brasileiras que se seguiram
à de 1891 mantiveram, praticamente invariável, a forma de controle difuso, ou seja, o
juiz ordinário tem poder para controlar a lei, mas não fica submetido à jurisprudência
do guardião da Constituição.
Inicialmente era o Supremo Tribunal Federal a instância maior do controle
difuso, passando, posteriormente, com a adoção tamm do sistema de controle
abstrato, inaugurado pela Emenda Constitucional n.º 16, de 26 de novembro de
1965, a ser o único órgão jurisdicional competente para o exercício dessa forma
abstrata de controle.
O legislador constituinte de 1988, sob a inspiração da Constituição
Portuguesa de 1976, cumulou ao controle difuso o controle concentrado, sem ter, no
entanto, criado uma corte especial, a exemplo das Cortes Constitucionais
européias.Tal omissão tem gerado perplexidades em face das repetidas
manifestações jurisdicionais sobre a mesma questão em sentidos contrários, o que
acarreta insegurança jurídica para os jurisdicionados e despretígio para o Poder
Juridiciário. O Supremo Tribunal Federal não tem atendido às peculiaridades do
controle abstrato, especialmente pela natureza vitalícia do mandato de seus
ministros.
Como lembra Ferrari
68
, presume-se constitucional toda norma jurídica,
enquanto não se prove o vício da inconstitucionalidade de forma explícita e
manifesta, aduzindo mais que isso é necessário para a manutenção da ordem
jurídica, já que seria estabelecido o caos social toda vez que os indivíduos
pudessem deixar de cumprir leis que, em sua opinião, estivessem em conflito com a
68
FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Controle da constitucionalidade das leis municipais.o Paulo:
Revista dos Tribunais, 1994. p. 19.
49
Constituição. Só o Poder Público pode, através de seus órgãos, demonstrar a
desconformidade entre uma lei e as normas constitucionais.
A atribuição do controle de constitucionalidade ao Poder Judiciário não
implica, como afirmam Hamilton, Madison e Jay
69
, em uma superioridade do
Judiciário sobre o Legislativo, mas apenas que o poder do povo é superior a ambos
e que, sempre que a vontade do Legislativo, traduzida em suas leis, se opuser à do
povo, declarada na Constituição, os juízes devem obedecer a esta e não àquela,
pautando suas decisões pela lei básica, não pelas leis ordinárias.
O controle da constitucionalidade é exercido, no Brasil, pelo Poder
Judiciário, sendo, portanto, de natureza jurisdicional, e tem por finalidade fiscalizar a
validade das leis ou atos normativos frente à Lei Maior, através de uma modalidade
de controle misto que combina os modelos americano e austríaco, temperando-os e
adequando-os à realidade brasileira. O Poder Judiciário faz o controle repressivo ou
a posteriori da constitucionalidade das leis lato sensu e o Executivo, através do
Presidente da República, o preventivo ou a priori, através do veto aos projetos de lei
inconstitucionais, nos termos do artigo 84, inciso V, combinado com o artigo 66, §
1º., da Constituição Brasileira.
O controle preventivo da constitucionalidade das leis tamm é feito pelo
próprio Poder Legislativo, por meio das Comissões Permanentes ou Temporárias de
cada Casa do Congresso Nacional, na forma do artigo 58, § 2º, inciso I, da
Constituição Federal brasileira, incidindo quando da discussão e votação de projetos
de lei que dispensem, na forma dos respectivos regimentos, a competência dos
seus Plenários para a apreciação da questão, a qual não será afastada em havendo
recurso de um décimo dos membros de cada uma delas.
3.3.1 O controle formal e o controle material da constitucionalidade
O controle de constitucionalidade ora se apresenta como controle formal
ora como controle material.
O controle formal é o controle estritamente jurídico. Por ele é conferida ao
órgão que o exerce competência para examinar se as leis foram elaboradas de
acordo com a Constituição, se houve correta observância das formas estatuídas, se
69
HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O federalista. Belo Horizonte: Líder, 2003, p. 460.
50
a regra normativa não descumpre uma competência deferida constitucionalmente a
um dos poderes. É ele de feição técnica, voltado para aspectos meramente formais,
não se atendo ao conteúdo ou substância da norma impugnada.
Verifica-se por ele se a obra do legislador ordinário não desobedece a
preceitos constitucionais relativos à organização dos poderes ou às relações
horizontais e verticais desses poderes, ou ainda aos ordenamentos estatais nos
sistemas de organização federativa.
É o controle que se exerce principalmente no interesses dos órgãos do
Estado para averiguar a observância da repartição regular das competências ou
para estabelecer, nos sistemas federativos, o equilíbrio constitucional dos poderes.
Entende Bonavides
70
ser necessário também o controle material de
constitucionaldade das leis, já que o controle formal mostra-se insuficiente para
atender aos objetivos do Estado nos paises de Constituição rígida, onde o que se
almeja é a instituição de um controle em proveito dos cidadãos, que consubstancie
uma técnica da liberdade em nome do Estado de Direito, de modo a fazer das
instituições e do regime político instrumentos democráticos de garantia e realização
dos direitos humanos. Não é o que ocorre nos países totalitários, onde o controle da
constitucionalidade restringe-se à sua feição normal e é utilizado como técnica que
reduz o homem a meio e não fim.
Ao referir-se ao controle material, Bonavides
71
afirma “que as
Constituições existem para o homem e não para o Estado; para a Sociedade e não
para o Poder.” O controle material da constitucionalidade apresenta contornos muito
delicados, haja vista o elevado teor de politicidade de que se reveste, já que incide
sobre o conteúdo da norma. Tem ele a ver com o devido processo substantivo
(substantive due process).
Através desse controle, a interpretação constitucional toma uma amplitude
desconhecida na hermenêutica clássica, pois se trata de controle criativo e
substancialmente político, que tem por objeto o conteúdo da lei ou do ato normativo,
o qual se funda em valores e princípios que ordenam e estruturam o organismo
político-social.
Há sistemas constitucionais que atribuem o controle da
constitucionalidade a um corpo político, normalmente distinto do Legislativo, do
70
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 298
71
BONAVIDES, loc. cit.
51
Executivo e do Judiciário. Deixam, pois, de conferi-lo aos tribunais. Entendem,
certamente, tais sistemas que o controle de constitucionalidade tem efeitos políticos
e confere ao órgão que o exerce uma posição de preeminência no Estado.
O órgão que exerce tal controle político da constitucionalidade tanto pode
ser uma assembléia como um conselho ou comitê constitucional. Foi na França onde
primeiro floresceu tal controle político da constitucionalidade, nascido da obra do
jurista Sieyès, um dos principais legisladores da Revolução Francesa
72
. Tal escolha
por um órgão político resultou da interpretação do sentimento nacional de
desconfiança contra os tribunais do antigo regime, que sempre foram submetidos ao
poder absoluto dos governantes. O projeto de Sieyès, criando um “Jurie
Constitutionnaire” , de natureza representativa e dotado de competência para anular
leis e julgar atos inconstitucionais, foi, porém, unanimemente, rejeitado pela
Convenção. A mesma idéia de Sieyès foi retomada por ele quando da preparação
da Constituição do Ano VIII (1799), a qual instituiu o Senado Conservador, com
poderes para decretar, espontaneamente, ou por iniciativa do Tribunato, a
inconstitucionalidade dos atos legislativos. A experiência, porém, malogrou, pois o
referido órgão teve existência servil e efêmera, dobrando-se sempre à vontade de
Napoleão, sem jamais conseguir desempenhar a função que lhe fora
constitucionalmente conferida.
O controle da constitucionalidade por meio de um órgão político, na
história das instituições francesas, conheceu outras tentativas igualmente
malogradas, que foram as do Senado do 2º. Império, previsto na Constituição de 14
de janeiro de 1852 e a do Comitê Constitucional da Constituição de 27 de outubro de
1946. Somente com a Constituição de 1958, foi estabelecido, na França, um
verdadeiro controle de constitucionalidade por via de um órgão de natureza política,
o atual Conseil Constitutionnel.
O artigo 62 da atual Constituição francesa dispõe que “as decisões do
Conselho Constitucional não são suscetíveis de recurso” e “se impõem a todos os
poderes públicos e a todas as autoridades administrativas e jurisdicionais”. O artigo
56 da mesma Constituição fixa a composição do Conselho, de que fazem parte nove
membros, com mandato de nove anos, não podendo ser reconduzidos. A
Constituição soviética de 1936, de inspiração stalinista, também adotou o controle
de constitucionalidade a cargo de um órgão político.
72
BONAVIDES, loc. cit.
52
Bonavides
73
, apoiado em Michel-Henri Fabre, diz que a meta do controle
político é assegurar a repartição constitucional das competências, relegando a
segundo plano a proteção direta das liberdades individuais. O seu principal efeito
consiste em tolher o nascimento jurídico de leis inconstitucionais. Distingue ainda na
doutrina corrente duas categorias de controle político: o controle prévio, que
antecede a votação, e o controle a posteriori, que ocorre após a votação da lei,
atribuindo a este último maior autenticidade.
Como adverte Bonavides
74
, o controle jurisdicional da constitucionalidade
da lei produz um grave problema teórico, por força de o juiz ou tribunal nele investido
assumir uma posição eminentemente política, suscitando na doutrina graves
objeções quanto à preservação de princípios básicos tais como o da separação e
igualdade de poderes. Contudo, não logram ditas objeções anular a extraordinária
importância de tal controle, já que enseja ele o denominado ativismo judicial que
corresponde a uma interpretação criadora do direito, configurando uma atividade
legítima que o juiz constitucional desempenha naturalmente no curso do processo
de aplicação e atualização do direito.
Há publicistas que, aferrados à tese da inteira neutralidade do
procedimento jurisdicional, sustentam que o controle jurisdicional da
constitucionalidade deve restringir-se a uma aferição estritamente jurídica dos atos
inconstitucionais, ou seja, ser meramente formal. Contudo, o controle jurisdicional de
constitucionalidade evoluiu para a sua feição material, constituindo, na atualidade, a
coluna de sustentação do Estado de Direito, onde ele se alicerça sobre o princípio
da supremacia das normas constitucionais.
O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis consagra duas
formas básicas: o controle por via de de exceção e o controle por via de ação.
O controle por via de exceção, tamm chamado de controle concreto
ocorre unicamente quando, no curso de um pleito judiciário, uma das partes levanta,
em seu benefício, a prejudicialidade de inconstitucionalidade da lei que irá decidir o
caso submetido à apreciação judicial.
No ordenamento jurídico brasileiro, a decisão que julga a controvérsia não
implica na anulação da lei, mas tão somente na sua não aplicação ao caso particular
objeto da demanda. Nesse caso, a lei reputada inconstitucional no referido caso
73
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 300.
74
Ibid., p.301.
53
concreto não desaparecerá da ordem jurídica, podendo ainda ter aplicação em
outros litígios, a menos que o poder competente a revogue. O julgamento da
questão, portanto, não ataca a lei em tese ou in abstracto, a qual poderá ser,
eventualmente, aplicada em outros processos, em casos análogos. Neste ponto, o
sistema brasileiro difere frontalmente do norte-americano, onde, quando a
declaração de inconstitucionalidade é feita pela Suprema Corte, ela tem eficácia
vinculante e erga omnes em relação a todos os juízes e tribunais, que não mais
poderão aplicar a lei inquinada de inconstitucinalidade. É o princípio do stare decisis
já mencionado anteriormente.
O controle de constitucionalidade por via de ação permite o controle da
norma in abstracto por meio de uma ação de inconstitucionalidade prevista
formalmente no texto constitucional, consubstanciando um controle direto. O controle
por via de ação, porém, não resguarda com muita eficiência os direitos individuais,
ficando esse controle reservado apenas a algumas autoridades públicas, o que,
segundo Bonavides
75
, tem tornado “bastante débil e ilusória a garantia dos
jurisdicionados perante as leis inconstitucionais”.
O controle por via de ação assume um sentido de controle formal da
constitucionalidade, voltado para a solução dos conflitos entre os poderes públicos,
embora tamm sirva de meio para se tutelar os direitos fundamentais e demais
princípios constitucionais.
A aplicação do controle de constitucionalidade das leis por via de ação
tanto pode caber a um tribunal ordinário, uma Suprema Corte, como a um órgão
jurisdicional especializado, um tribunal constitucional.
Exemplo da primeira hipótese, qual seja, a de um tribunal ordinário, é a
Corte Federal da Suíça, onde o sistema de controle de constitucionalidade das leis
por via de ação direta se aplica unicamente às leis inconstitucionais votadas pelas
assembléia cantonais, não alcançando a esfera legislativa federal. Mas, no tocante
às referidas leis cantonais, tanto as ordinárias como as constitucionais, o controle é
amplíssimo e o recurso de inconstitucionalidade é concedido a todo cidadão.
Como exemplo da segunda hipótese, de um órgão jurisdicional
especializado, o tribunal constitucional, podemos citar os tribunais constitucionais da
Áustria, da Alemanha, da Itália, da Espanha e de Portugal. O sistema de jurisdição
concentrada, elaborado por Kelsen, foi positivado na Constituição da Áustria de 1º.
75
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p.308.
54
de outubro de 1920. A antiga Corte de Justiça Constitucional da Áustria somente se
pronunciava sobre a constitucionalidade das leis federais, quando provocada pelo
Governo Federal, a quem cabia a iniciativa do processo por via de ação. Como
afirma Bonavides
76
, o sistema, interditando aos cidadãos tal iniciativa, não era dos
instrumentos mais adequados a uma defesa direta das liberdades e direitos
fundamentais individuais. Somente com a reforma constitucional de 1929, a
legitimação para suscitar a controvérsia sobre constitucionalidade, reservada até
então, com exclusividade, a órgãos políticos do Governo Federal, foi estendida
tamm a órgãos judiciários ordinários, como o Oberster Gerichtshof e o
Verwaltungsgerichtshof, que, contudo, somente podiam atuar pela via incidental
ou de execução.
Já o sistema alemão de jurisdição concentrada nasceu da Lei
Fundamental de Bonn (art. 92), que serve de Constituição à República Federal da
Alemanha. O controle de constitucionalidade no sistema alemão é exercido pelo
Tribunal Constitucional de Karlsruhe, composto de duas Câmaras. Cada câmara se
ompõe de 12 juízes, eleitos metade pelo Bundestag e metade pela Bundesrat. Uma
das Câmaras conhece dos recursos constitucionais que importam atentados aos
direitos fundamentais, ou seja, recursos impetrados por particulares, enquanto a
outra Câmara é especializada em questões de constitucionalidade pertinentes à
salvaguarda do sistema federativo. As decies dessa Corte, não tendo força de lei,
podem dar aos textos legais que não são anulados, uma interpretação eficaz
conforme à Constituição.
Destaca ainda Bonavides
77
que o sistema alemão, por força de todos os
juízes ordinários poderem submeter matéria de constitucionalidade ao Tribunal
Constitucional pela via incidental, em face de um caso concreto que lhes seja
submetido, acerca-se do modelo americano de controle. Acrescenta ainda que
alguns publicistas vão mais longe, vislumbrando nesse sistema uma forma de
hibridismo, já que, ao lado da via da ação principal, contempla tamm a via
incidental, de que se servem os juízes comuns quando decidem um caso concreto,
remetendo este, em primeiro lugar, ao Tribunal Constitucional para dirimir a questão
prévia sobre a inconstitucionalidade suscitada.
76
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 309.
77
Ibid., p. 310.
55
Tamm na Itália vigora o sistema concentrado de controle de
constitucionalidade. A Corte Constitucional da Itália instalou-se a 23 de abril de
1965, quando já passados dezoito anos da Constituição de 1947, que a previra. No
entanto, esse Tribunal não constitui órgão do Poder Judiciário, ao contrário da Corte
de Karlsruhe na Alemanha, que integra dito Poder, por força do que dispõe o artigo
92 da Lei Fundamental de Bonn.
No sistema constitucional italiano, a exemplo do que, em geral, se
observa nas formas de controle por via de ação direta, tamm é recusada
legitimidade aos cidadãos para acionarem diretamente a instância de controle da
constitucionalidade, somente a tendo os juízes ordinários ou administrativos nas
controvérsias constitucionais relativas a leis.
3.4 A função da jurisdição constitucional
O movimento constitucionalista, do período iluminista, que implantou o
Estado constitucional, deixou uma marca consolidada nas democracias atuais,
segundo a qual o reconhecimento dos direitos fundamentais sustenta a legitimidade
do exercício do Poder.
A positivação dos direitos fundamentais significa a incorporação, na
ordem jurídica positiva, dos direitos considerados naturais e inalienáveis do
indivíduo. Não basta, porém, qualquer positivação. Esta, para garantir-lhes a
dimensão de fundamental rights, deve operar-se nas normas constitucionais.
Segundo Canotilho
78
, sem tal positivação jurídica, os direitos do homem
são esperanças, aspirações, idéias, impulsos ou, até, por vezes, mera retórica
política, mas não direitos protegidos juridicamente Por outro lado, a positivação
constitucional dos direitos fundamentais não impede que continuem eles sendo os
elementos constitutivos da legitimidade constitucional, ou seja, os elementos
legimativo-fundamentantes da própria ordem jurídico-constitucional positiva.
A constitucionalização dos direitos fundamentais, constituindo a
incorporação dos direitos subjetivos do homem em normas formalmente
constitucionais, subtrai o seu reconhecimento e garantia à disponibilidade do
78
CANOTILHO, J. J. Gomes . Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Livraria Almedina,
2003. p. 377.
56
legislador ordinário. A conseqüência mais importante desta constitucionalização é
que a proteção dos direitos fundamentais passa a operar-se mediante o controle
jurisdicional da constitucionalidade dos atos normativos em geral que possam
afrontar tais direitos, através da Jurisdição Constitucional.
E é por isso que os direitos fundamentais devem ser compreendidos,
interpretados e aplicados como normas jurídicas vinculantes. Daí resulta a tendência
atual em muitos países europeus de institucionalização dos tribunais constitucionais,
cujas decisões passam a ser consideradas como um novo modo de se praticar o
direito constitucional. É através dos chamados leading cases resolvidos pelos
tribunais constitucionais que se passa a conhecer a constituição viva.
Os direitos fundamentais constituem o pilar de sustentação de qualquer
atividade humana, seja ela política, econômica, religiosa ou cultural. É inconcebível,
na atualidade, pensar-se no exercício de qualquer Poder, especialmente do Poder
Político, sem se ter por norte o respeito à construção de um regime de efetiva
observância e realização dos direitos fundamentais.
Garantir direitos individuais foi sempre a nota suprema ou a razão maior
do controle de constitucionalidade exercido pela Jurisdição Constitucional.
Os direitos fundamentais positivados em normas constitucionais criam laços
indestrutíveis com a Constituição, do que resulta a função maior da sua tutela a
cargo das Cortes Constitucionais.
Merece referência o contexto social brasileiro, que reflete um país de
marginalizados, onde os direitos fundamentais são, a todo momento,
desrespeitados, excluindo-se de qualquer perspectiva de cidadania pelo menos
metade da população. Tal circunstância erige-se em sério obstáculo à concretização
de um legítimo Estado Democrático de Direito
79
, já que a noção de Estado
Democrático de Direito está umbilicalmente ligada à concretização dos direitos
fundamentais. Por outro lado confere à Jurisdição Constitucional a importante tarefa
de resgatá-los das incontáveis violações sofridas
Por isso que o constitucionalismo do pós-guerra buscou não apenas
reconstruir o Estado de Direito, como também resgatar a força do Direito como
agente de transformações sociais, atribuindo ainda ao Poder Judiciário e, em
79
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Processo constitucional e a efetividade dos direitos fundamentais. In:
SAMPAIO, José Adércio Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (Coord.). Hermenêutica e Jurisdição
Constitucional. Belo Horizonte : Del Rey, 2001. p. 196.
57
especial, à Jurisdição Constitucional a tarefa primacial de tutelar os direitos
fundamentais e os valores materiais positivados na Constituição.
Para Streck
80
tal objetivo mostra-se mais necessário ainda no Brasil, onde
o processo constituinte de 1986 a 1988 assumiu uma postura voltada para a
incorporação dos compromissos éticos na Carta Magna. Essa indissolubilidade entre
Estado Democrático de Direito e direitos fundamentais constitui para o autor o que
denomina de plus normativo.
Duas correntes se formaram sobre a função do Direito e do Poder
Judiciário, especialmente da Jurisdição Constitucional, nesse novo panorama
estabelecido pelo constitucionalismo do pós-guerra: a corrente procedimentalista,
capitaneada por autores como Habermas, Garapon, dentre outros, e a corrente
substancialista defendida por autores como Cappelletti, Ackerman, Laurence H.
Tribe, M. J. Perry, H. H. Wellington, Dworkin, pelo menos na leitura que dele faz
Robert Alexy, como destaca Streck
81
.
No Brasil juristas como Paulo Bonavides, Celso Antonio Bandeira de
Mello, Eros Grau, Fábio Comparato, Lenio Luiz Streck, dentre outros, são adeptos
da corrente substancialista.
Adotando a corrente procedimentalista, Habermas
82
critica a invasão da
política pelo Direito, bem como o gigantismo ou a politização do Judiciário surgido no
pós-guerra. Defende o ponto de vista de que o Estado Democrático de Direito deve
adotar uma concepção procedimental da Constituição, devendo os Tribunais
Constitucionais ficarem limitados à tarefa de compreensão procedimental da
Constituição, isto é, limitarem-se a proteger um processo de criação democrática do
Direito, não se tornando guardiães de uma suposta ordem suprapositiva de valores
substanciais. Devem sim ditas Cortes Constitucionais zelar para que a cidadania
disponha de meios para estabelecer um entendimento sobre a natureza dos seus
problemas e a forma de solucioná-los. Sustenta que os sistemas jurídicos surgidos
no final do século XX nas democracias de massas dos Estados Sociais denotam
uma compreensão procedimentalista do Direito e que o controle abstrato de normas
é função indiscutível do legislador.
80
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Rio de Janeiro: Forense,
2004. p. 147
81
STRECK, loc. cit.
82
Ibid., p. 154-155.
58
Os procedimentalistas posicionam-se contra a concretização dos valores
materiais constitucionais, concluindo que, ao deixar-se conduzir pela idéia da
realização de valores materiais, dados preliminarmente pelo direito constitucional, os
tribunais constitucionais transformam-se em uma instância autoritária. Propõem as
teorias procedimentalista um modelo de democracia constitucional que não se
fundamente em valores compartilhados, nem em conteúdos substantivos, mas em
procedimentos que assegurem a formação democrática da opinião e da vontade e
que exija uma identidade política, ancorada não mais em uma nação de cultura, mas
em uma nação de cidadãos. Rejeitam, por isso, a denominada jurisprudência de
valores adotada pelas cortes européias, especialmente a alemã, justificando a sua
crítica com a afirmação de que uma interpretação constitucional orientada por
valores e que opta pelo sentido teleológico das normas e princípios constitucionais,
ignorando o caráter vinculante do sistema de direitos constitucionalmente
assegurados, desconhece, não apenas o pluralismo das democracias
contemporâneas, mas, fundamentalmente, a lógica do poder econômico e do poder
administrativo. Por isso, além de condenarem o ativismo da Justiça Constitucional,
relegam para segundo plano as normas que contemplam os valores constitucionais.
A corrente substancialista entende que a função da Jurisdição
Constitucional é concretizada quando o órgão que a exerce assegura, por meio da
decisão proferida, valores substanciais, especialmente aqueles agasalhados pelo
Texto Magno, tais como os direitos fundamentais.
Afirma Streck
83
que, para a corrente substancialista, o Poder Judiciário,
mais do que harmonizar os demais Poderes, deve assumir o papel de intérprete da
vontade geral implícita e emergente do direito positivo, especialmente dos textos
constitucionais e dos princípios selecionados como de valor permanente na sua
cultura de origem e na do Ocidente. O ponto forte e importante da concepção
substancialista deriva do fato de ser colocado em xeque o princípio da maioria em
favor da maioria fundante e constituinte da comunidade política.
Streck
84
ainda censura a concepção procedimentalista da Jurisdição
Constitucional por ela pretender ultrapassar a oposição entre os paradigmas do
direito liberal (O Estado de Direito Liberal, formal e burguês) e o do direito do Estado
83
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito.Rio de Janeiro:
Forense, 2004. p. 162-163.
84
Ibid., p. 155.
59
Social (o Estado do Bem-Estar Social ou Welfare State), dizendo que ambos estão
superados, ao mesmo tempo em que deixa de reconhecer a existência de um
terceiro paradigma, o Estado Democrático de Direito, que aglutina e transcende os
referidos paradigmas anteriores do Estado Liberal e do Estado Social de Direito .
Os substancialistas defendem que o Poder Judiciário não pode assumir
uma postura passiva diante da sociedade, e a Justiça Constitucional deve ser
detentora de funções que transcendam as de simples checks and balances. Os
valores constitucionais devem ter precedência mesmo contra textos legislativos
produzidos por maiorias eventuais.
Já os adeptos da corrente procedimentalista entendem que o Tribunal
Constitucional deve apenas limitar-se à função de compreensão procedimental da
Constituição, restrigindo-se a proteger um processo de criação democrática do
Direito, mas sem se preocupar em zelar por uma suposta ordem suprapositiva de
valores substanciais.
Streck
85
afirma que Ferrajoli fala de uma democracia constitucional, fruto
de uma mudança revolucionária de paradigma no Direito, pela qual alteram-se, em
primeiro lugar, as condições de validade das leis que passam a depender do
respeito não somente às normas processuais (no tocante à sua formação), mas
tamm ao conteúdo das normas substantivas, ou seja, à sua coerência com os
princípios de justiça estabelecidos pela Constituição. Em segundo lugar, altera-se a
natureza da função jurisdicional e a relação entre juiz e a lei, que já não é como no
paradigma juspositivista, sujeição à letra da lei, qualquer que seja o significado
desta, mas sim, e sobremodo, à Constituição, que impõe ao juiz a crítica das leis
inválidas através de sua reinterpretação em sentido constitucional e sua declaração
de inconstitucionalidade. E, em terceiro lugar, altera-se o papel da ciência jurídica
que, devido ao câmbio paradigmático, resulta investida, a par da sua função tão-
somente descritiva, como no velho paradigma juspositivista, de novas atribuições de
natureza crítica e construtiva em relação ao seu objeto: crítica em relação às
antinomias e lacunas da legislação vigente em confronto com os imperativos
constitucionais; construtiva relativamente à introdução de técnicas de garantia que
se exigem para superá-las.
85
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito.Rio de Janeiro:
Forense, 2004. p. 181.
60
Apoiando-se no garantismo de Ferrajoli (1999 apud STRECK)
86
,
reconhece Streck
87
que a constitucionalização rígida dos direitos fundamentais,
impondo obrigações e proibições aos poderes públicos, tem produzido,
efetivamente, na democracia, uma dimensão substancial, que se acrescenta à
tradicional dimensão política, meramente formal ou procedimental. Assim, as normas
formais da Constituição, aquelas que disciplinam a organização dos poderes
públicos, garantem a dimensão formal da democracia política. As normas
substantivas, as que estabelecem os direitos fundamentais, a par dos princípios e
valores que estruturam o organismo social, garantem a dimensão material da
democracia substancial, que se refere ao conteúdo que não pode ser alterado e
sobre o qual não pode haver decio, bem como ao conteúdo que deve ser
decidido por qualquer maioria, obrigando a legislação, sob pena de invalidade, a
respeitar os direitos fundamentais e os demais princípios axiológicos por ela
estabelecidos.
Adverte Streck
88
para a alteração ocorrida na relação entre a política e o
Direito, pois este já não está mais subordinado à política como se dela fosse
instrumento. Ao contrário, é a política que se converte em instrumento de atuação do
Direito, subordinada aos vínculos a ela impostos pelos princípios constitucionais:
vínculos negativos, como os gerados pelos direitos às liberdades, que não podem
ser violados; vínculos positivos, como os gerados pelos direitos sociais, que devem
ser satisfeitos. O Direito tornou-se, pois, agente de transformações sociais, já que
busca implementar na sociedade a igualdade substancial e a justiça material.
A tese substancialista parte da premissa de que a justiça constitucional
deve assumir uma função intervencionista, longe da postura absenteísta que
imperava sob o modelo liberal individualista e que ainda permeia a dogmática
jurídica brasileira. A função intervencionista do Poder Judiciário não implica uma
simplista judicialização da política e das relações sociais, nem a morte da política. O
intervencionismo substancialista exige o cumprimento dos preceitos e princípios
ínsitos aos direitos fundamentais sociais e ao núcleo político do Estado Social
previsto na Constituição de 1988.
86
STRECK, loc. cit.
87
STRECK, loc. cit.
88
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito.Rio de Janeiro:
Forense, 2004. p. 182.
61
Segundo a visão de Krell
89
, torna-se cada vez mais necessária a revisão
do vetusto dogma da separação dos poderes em relação ao controle dos gastos
públicos e da prestação dos serviços básicos relativos aos direitos fundamentais
sociais no Brasil, onde os Poderes Legislativo e Executivo sempre se mostraram
incapazes de garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos
constitucionais. Ele defende mesmo a intervenção do Poder Judiciário em esfera
reservada a outro Poder para substituí-lo por juízos de conveniência e oportunidade,
sempre que ocorrer uma violação evidente e arbitrária de uma incumbência
constitucional.
Em sentido contrário ao que ocorreu no Brasil, onde os direitos sociais
foram positivados pelo legislador constituinte de 1988, a Constituição alemã de 1949
não os previu expressamente em seu texto. A Corte Constitucional Alemã, porém,
extraiu o direito a um “mínimo de existência” do princípio da dignidade da pessoa
humana
90
e do direito à vida e à integridade física, mediante interpretação
sistemática do princípio do Estado Social, contido no artigo 20, I, da Lei
Fundamental. Com tal interpretação evolutiva, a Corte determinou um aumento
expressivo do valor da ajuda social, que constitui aquele valor mínimo que o Estado
está obrigado a pagar a cidadãos carentes, firmando jurisprudência no sentido da
existência de um verdadeiro direito fundamental a um mínimo vital.
91
Portanto, vemos que todas essas concepções doutrinárias fundam-se na
corrente substancialista que atribui à Jurisdição Constitucional a função de velar pela
observância do conteúdo material da Constituição. No entanto, como destaca
Streck
92
, no Brasil, não sufragamos a tese substancialista: de um lado, porque o
Poder Judiciário, afeito a lidar com conflitos interindividuais, próprios do modelo
liberal-individualista, não está preparado para o enfrentamento dos problemas
decorrentes da transindividualidade, própria do novo modelo advindo do Estado
Democrático de Direito previsto na Constituição de 1988; por outro lado, porque
vivemos uma democracia no interior da qual o Legislativo é atropelado pelo
decretismo do Poder Executivo, e na qual tamm não temos a garantia do acesso à
89
KRELL, Andréas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um
direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: S. A. Fabris, 2002. p. 22.
90
“A dignidade do homem é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo poder estatal.” (art. 1, I, Lei
Fundamental da República Federal da Alemanha, de 1949)
91
KRELL, Andréas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um
direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 61-62.
92
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito.Rio de Janeiro:
Forense, 2004. p. 190.
62
produção democrática das leis e dos procedimentos que apontam para o exercício
dos direitos previstos na Carta Magna.
Os direitos fundamentais constituíram fator determinante para o
desenvolvimento da Jurisdição Constitucional após a 2ª. Guerra Mundial, tornando-
se o núcleo das Constituições então promulgadas, de modo que a proteção deles é
a principal razão da existência do Estado.
Em conseqüência, tem-se por incontroversa, na atualidade, o
reconhecimento da profunda interação entre os direitos fundamentais e uma
constituição verdadeiramente democrática. Há até autores como Cruz
93
que
sustentam que “‘onde o exercício e a efetividade dos direitos fundamentais não se
consolidaram, de fato, não há Constituição”.
Contudo, Cruz
94
sugere a inversão da fórmula, entendendo que, onde o
exercício e a efetividade dos direitos fundamentais não se consolidaram, de fato,
não há Constituição. Haverá tão somente um substrato normativo sem alma, sem
qualquer sopro de vida.
Não é sem fundamento, pois, que o artigo 16 da Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão já dispunha em 1789 que:
Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não esteja assegurada nem
determinada a separação de poderes, verdadeiramente não tem
Constituição.
Portanto, não é correto falar-se, na atualidade, em exercício de qualquer
poder, especialmente do Poder Político, sem se cogitar dos direitos fundamentais,
com o objetivo de respeitá-los e de construir um regime que propicie, não só a sua
tutela, mas principalmente a efetiva realização dos mesmos. Isto porque os direitos
fundamentais constituem elementos vitais e indissociáveis de qualquer Constituição
democrática.
A Jurisdição Constitucional, por meio do controle da constitucionalidade
das leis e atos do poder público, mostra-se fator de grande importância na garantia e
concretização efetiva dos direitos fundamentais. Por isso, ela é, crescentemente,
93
CRUZ, Villalon. Formación e Evolución de los derechos fundamentales. Revista Espanhola de Direito
Constitucional, 1989, p.25. Apud CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza.. Processo Constitucional e a efetiviade dos
direitos fundamentais.In: SAMPAIO, Jo Adércio Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza (Coord.).
Hermenêutica e Jurisdição Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 196.
94
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Processo constitucional e a efetiviade dos direitos fundamentais.In:
SAMPAIO, José Adércio Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Hermenêutica e Jurisdição Constitucional.
Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 196.
63
considerada elemento indispensável à própria definição do Estado Democrático de
Direito.
Cita-se como exemplo a França, país que sempre se mostrou
tradicionalmente avesso ao controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, e
onde o Conselho Constitucional, originariamente criado para impedir o parlamento
de invadir a esfera de poder reconhecido ao governo, parece evoluir seguramente
no sentido de se transformar num verdadeiro tribunal constitucional. Além disso,
surgem propostas doutrinárias propugnando pelo alargamento aos tribunais comuns
desse controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, como nos informa
Streck
95
.
Apoiado em Cappelletti
96
, que admite a natureza jurisdicional da função
exercida pelos Tribunais Constitucionais, reconhece Coelho
97
aos juízes
constitucionais, no âmbito da Jurisdição Constitucional, criatividade que não
conhece limites, não só porque as cortes constitucionais estão situadas fora e acima
da tradicional tripartição dos poderes estatais, mas tamm porque a sua atividade
interpretativa se desenvolve quase que exclusivamente em torno de enunciados
abertos, indeterminados e polissêmicos, como o são as normas que integram a parte
dogmática das constituições.
Já em relação às acusações de não deterem os juízes constitucionais
legitimidade para o seu ativismo judicial de produzir normas jurídicas, e reforçando o
seu entendimento com a tese de Lúcio Bitttencourt de que a interpretação é parte
integrante do processo legislativo (tanto quanto a aplicação da lei também é parte
da sua interpretação), afirma também Coelho
98
que eles adquirem-na com a
aprovação social do seu comportamento.
Sobre o tema, diz Cappelletti
99
que a produção judiciária do direito, não é
em absoluto, antidemocrática por si mesma, tornando-se, ao contrário, justamente
democrática, desde que o sistema de seleção de juízes seja aberto a todos os
95
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito.Rio de
Janeiro: Forense, 2004. p. 103-104.
96
CAPPELLETTI, Mauro. O controle de constitucionalidade das leis no sistema das funções estatais. Revista de
Direito Processual Civil. São Paulo, Ano 2, v. 3, p. 37-73, jan./jun. 1961.
97
COELHO, Inocêncio Mártires. Elementos de Teoria da Constituição e de Interpretação Constitucional. In:
COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet Hermenêutica
constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002. p. 58.
98
COELHO, loc. cit.
99
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução:Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre:
Fabris, 1993. p. 105-106.
64
extratos da população e que todas as pessoas tenham iguais oportunidades de
acesso aos tribunais e à educação. Concluindo, assevera que:
A noção de democracia não pode ser reduzida a uma simples idéia
majoritária. Democracia, como vimos, significa também participação,
tolerância e liberdade. Um judiciário razoavelmente independente dos
caprichos, talvez momentâneos, da maioria, pode dar uma grande
contribuição à democracia; e para isso muito pode colaborar um judiciário
suficientemente ativo, dinâmico e criativo, tanto que seja capaz de
assegurar a preservação do sistema de cheks and balances, em face do
crescimento dos poderes políticos, e também controles adequados perante
os outros centros de poder (não-governativos ou quase-governativos), tão
picos das nossas sociedades contemporâneas.
Há, indiscutivelmente, uma tendência atual dos doutrinadores em atribuir
à Jurisdição Constitucional uma feição substancialista, com um campo de atuação
mais amplo, de modo a assegurar o integral respeito às normas constitucionais no
seu sentido substancial ou material, como tamm a plena concretização dos
direitos fundamentais.
3.5 A legitimidade da Jurisdição Constitucional
O conceito de legitimidade pode ser tido como uma justificação para a
utilização do poder. Beethan ( apud AGRA)
100
diz que o poder indica a prerrogativa
que tem o cidadão para produzir os efeitos por ele desejados no meio que o cerca e
no lugar previsto para sua realização.
Agra
101
enuncia que uma das formas de legitimidade baseia-se na
linguagem, utilizada na argumentação e fundamentação jurídicas, e que passa a
exercer um papel imprescindível na teoria da legitimação, na medida em que é
indiferente a qualquer tipo de teoria universal de verdade, estruturando-se de acordo
com as circunstâncias sócio-político-econômicas que lhe são inerentes. As normas
jurídicas não obtêm legitimidade somente pelo seu conteúdo, apartadas das
circunstâncias externas relacionadas sócio-políticas e econômicas, apesar da
legitimidade auferida pelos direitos fundamentais. Por isso que o conteúdo das
normas jurídicas deve manter sincronia com os anseios coletivos, de modo a
reforçar a legalidade democrática. O sentido deontológico dos mandamentos
100
AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal: densificação
da jurisdição constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 149.
101
AGRA, loc. cit.
65
constitucionais abriga determinados valores que refletem uma determinada
concepção ideológica e estruturam as relações sociais segundo suas respectivas
diretrizes.
Vários substratos de fundamentação da legitimidade política existiram ao
longo da história, podendo-se citar inicialmente o teocrático. O uso da força também
não se mostrou adequado a longo prazo, pois, ao menor sinal de debilidade de seu
uso, a eficácia do sistema decai, tendendo a desaparecer e a fomentar o caos social
e político.
Para Faria (1985 apud AGRA)
102
, até a Revolução Industrial o poder era
considerado legítimo à medida que estivesse em conformidade com a tradição ou o
jusnaturalismo raconalista. Após a Revolução Industrial, porém, a legitimação do
poder passa a depender de critérios externos aos legisladores e aos governantes,
passando a depender de explícita aprovão popular, obtida por procedimentos
formais, que se convertem em processo de interação entre governante e
governados.
Para o positivismo a legitimidade jurídica decorre do escalonamento
normativo, cujo dispositivo superior garante a validade do inferior e assim
sucessivamente. A desvantagem dessa concepção é que inexiste contato com os
fatores sociais, propiciando o surgimento de uma auto-justificação ausente de
conteúdos substanciais, amparada em argumentos meramente teóricos apenas para
favorecer a situação, o status quo dominante. Agra
103
transcreve lição do Professor
João Maurício de Adeodato, segundo a qual:
“Com o monopólio da produção de normas jurídicas, a ascensão da lei e a
positivação do direito, a legitimidade faz-se legitimação, o que significa
transferir a questão de fundamento para uma ação legitimadora por parte do
Estado e do ordenamento em geral; a legitimidade deixa de reportar-se a
conteúdos externos e o poder jurídico-político, embora de forma mais ou
menos velada por uma retórica tradicional e aparentemente conteudista,
pode ter pretensões a uma auto-legitimação. Esse esvaziamento de
conteúdo oferece o perigo de propiciar a constituição da estrutura-cebola,
na analogia de Hannah Arendt, a estrutura característica do totalitarismo.
ADEODATO, João Maurício. O problema da legitimidade. No rastro do
pensamento de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989,
p. 55.
A legitimação propugnada pelo positivismo é uma legitimação auto-
referente, que é aquela obtida por intermédio de uma justificação racional, centrada
102
AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal: densificação
da jurisdição constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2005,. p. 151.
103
AGRA, loc. cit.
66
em estruturas argumentativas, mas alheias a elementos fáticos, em que cada
decisão judicial deve ser motivada em argumentos contidos nos mandamentos
normativos, sendo que a referência a esses comandos legais é o que garante a
legitimação das decisões.
Agra
104
diz que Weber, Luhmann e Habermas, apesar da diferença de
suas teorias sobre a fundamentação da legitimidade, coincidem no ponto em que a
baseiam na dominação legal propiciada pelo Direito, apoiada em procedimentos
racionais, previamente estabelecidos, e nos quais a seqüência de atos judiciais
prescinde de qualquer contéudo. Torna-se tal legitimação auto-referente, pois o
consentimento é obtido pelo cumprimento das etapas previstas pelas normas
jurídicas. É uma conseqüência da feição procedimentalista que tais doutrinadores
atribuem à função do Direito e da Jurisdição Constitucional.
Os adeptos da corrente substancialista mostram-se favoráveis à
legitimidade ampla da Jurisdição Constitucional, sustentando que a função da
Jurisdição Constitucional é fazer prevalecer a Constituição tamm no seu sentido
material e até mesmo contra as maiorias eventuais. O valor das teorias substantivas
reside no destaque dado à necessidade de adaptação do direito por meio da
interpretação constitucional voltada para a realização dos valores materiais e dos
vetores axiológicos acolhidos na Carta Magna.
A concepção substancialista fundamenta a legitimidade da Jurisdição
Constitucional no conteúdo material da Constituição, acarretando a superação da
tradicional legitimidade do poder público com base na soberania popular, pois as
decisões judiciais passam a poder revogar normas elaboradas pelo Poder
Legislativo. Abrem-se, assim, novas oportunidades para a efetiva realização dos
direitos fundamentais.
Assim explica Agra
105
, o pensamento dos adeptos da corrente
substancialista:
As teorias substancialistas partem do pressuposto da existência de um
conteúdo material, contido principalmente na Constituição, na acepção de
que ele representa aqueles valores que formam as invariáveis axiológicas,
gozando de alta carga de legitimidade nos mais variados extratos sociais.
Configurando-se a essência da Jurisdição Constitucional, nada mais lógico
do que a função primordial da tutela da Lei Maior seja a sua realização.
Essa forma de legitimação permite que se estabeleça um referencial com o
princípio da soberania popular, pois a Constituição é a norma jurídica que
104
Ibid., p. 155.
105
AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal: densificação
da jurisdição constitucional brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 2005,. p. 234.
67
maior consenso obtém na sociedade – obviamente quando é promulgada e
o processo constituinte permite a participação efetiva de todos os setores
sociais - , haurindo essa jurisdição significativa fundamentação para o
desempenho de suas funções. A definição do conteúdo substancial que
deve ser concretizado pela Jurisdição Constitucional é realizado pelo texto
da Constituição, abrangendo os princípios constitucionais, tanto os
explícitos como os implícitos, que têm a função de densificar os explícitos. A
própria Carta Magna serve como referência para a atuação da corte
constitucional ou tribunal que fa as suas vezes, evitando exacerbação de
seu poder e, de igual maneira, a mitigação do Poder Legislativo. O que não
impede que alguns autores substancialistas, como Ronald Dworkin,
defendam que o conteúdo substancial também reside na “comunidade
moral de princípios”, de taxionomia moral, não-integralmente contida na
Constituição.
Bonavides
106
distingue a legitimidade da Jurisdição Constitucional da
legitimidade no exercício dessa jurisdição. A primeira é, para ele, pacífica,
consubstanciando matéria institucional, de natureza estática, encarregada de cuidar
da adequação e defesa da ordem constitucional. A segunda é controversa,
axiológica e dinâmica, oscilando entre o direito e a política.
Para a corrente que sustenta o ativismo judicial da Jurisdição
Constitucional, baseado na jurisprudência dos valores alemã, a legitimidade da
Jurisdição Constitucional encontrar-se-ia na eticidade da atividade judiciária.
Cruz
107
refere-se à teoria dos direitos fundamentais de Alexy, afirmando
que ela possui forte aceitação pelos Tribunais Constitucionais alemão e espanhol, e
que insere o elemento ético-moral como fator de legitimação do direito: ética e moral
devem ser sopesadas pelo juiz no seu trabalho de operador do direito. A
legitimidade do direito se subordina unicamente a uma apreciação ética da
demanda, observando o novo ideal de justiça, isto é, o da justiça social distributiva.
Contudo, não perfilha tal entendimento, adotando uma postura procedimentalista da
Constituição, que permite a extração de princípios processuais de cunho
constitucional indispensáveis à realização dos direitos fundamentais e sustentando
que a interpretação a ser dada pelo juiz deve levar em consideração não só a
substância e conteúdo das decisões tomadas por autoridades anteriores, mas
tamm o modo como essas decisões foram tomadas por quais autoridades e em
que circunstâncias.
106
BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. São Paulo: Malheiros, 2001, p.
318.
107
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Processo Constitucional e a efetividade dos direitos fundamentais. In:
SAMPAIO, José Adércio Leite. CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Hermenêutica e Jurisdição Constitucional.
Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 214-215, 227, 235, 237.
68
Inicialmente, deve ser lembrado que os críticos da Jurisdição
Constitucional argumentam que é supostamente necessário resguardar a soberania
popular exercida pelos representantes eleitos do povo contra a interferência
excessiva de juízes que não foram escolhidos nem podem ser destituídos por meio
de voto. Essa crítica é dirigida diretamente à legitimidade do seu exercício.
Moro
108
sustenta que tal objeção perde a sua força quando a atividade da
Jurisdição Constitucional é justificada em vista do mau funcionamento da
democracia, e orientada para eliminar obstáculos à sua correta atuação. Apesar de
tal afirmação não refutar inteiramente as críticas feitas, não se pode negar que ela
se aplica como uma luva, nos casos de corrupção política, que tantos escândalos
têm causado, fazendo com que a vontade soberana do povo deixe de ser respeitada
pelos seus representantes eleitos, desfigurando-se o sentido da representação
popular. Como exemplo de mau uso da democracia corrigido pela Jurisdição
Constitucional, cita o caso Brown v. Board of Education de 1954, no qual foi
reputada inconstitucional a segregação racial então predominante no Sul dos
Estados Unidos. Esta decisão foi a mais importante da Suprema Corte norte-
americana durante a presidência do Justice Warren, que se estendeu de 1953 a
1969, e que representou o período de produção mais criativa de toda a sua história.
Se Marbury é a decisão mais célebre da Suprema Corte Americana no século XIX, a
decisão Brown vs. Board of Education é a mais importante do século XX,
inaugurando novo modelo de decisão judicial. Em se tratando de hipótese de caso
difícil (hard case), de política de deferência ou de autocontenção judicial, a
conseqüência seria a remessa da questão ao Legislativo. Cumpriria, então, ao
Congresso norte-americano ou às legislaturas estaduais regular a matéria segundo o
seu discernimento.
Contudo, naquela época, especialmente em relação às legislaturas
estaduais, o sistema político dos estados do Sul tendia para a exclusão sistemática
dos negros na formulação das políticas públicas. A política de deferência apenas
perpetuaria tal status quo, legitimando as restrições impostas à minoria negra.
Mesmo em relação ao Legislativo Federal, a minoria parlamentar sulista vinha
conseguindo obstaculizar a aprovação de leis que modificassem tal estado de
coisas. As últimas leis relativas à expansão dos direitos civis haviam sido aprovadas
108
MORO, Fernando. Jurisdição constitucional com democracia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
p.36.
69
no logínquo ano de 1866, por força das atividades de obstrução de seus
componentes sulistas.
As deficiências do processo político democrático colocavam as
autoridades judiciais em melhor posição do que as eleitas para decidir o caso de
forma imparcial, não sendo recomendável, nessas circunstâncias, a postura de
deferência da Suprema Corte norte-americana. A decio proferida pela Suprema
Corte norte-americana no caso Brown v. Board of Education pode ser qualificada
como democrática, porque compatível com a visão substantiva de democracia,
independentemente de ter emanado de órgão composto por juízes não eleitos.
A partir da decisão tomada no caso Brown, com base no ativismo judicial
da Suprema Corte norte-americana, a segregação racial existente em boa parte dos
Estados Unidos foi sendo, progressivamente, modificada, contribuindo
decisivamente para a prevalência do movimento dos direitos civis norte-americano.
Decisões da própria Corte culminaram por concluir pela inconstitucionalidade da
segregação em estabelecimentos públicos ou abertos ao público, bem como de leis
estaduais racistas, a exemplo da que proibia o casamento inter-racial.
Predominou, assim, por interferência direta do ativismo da Jurisdição
Constitucional o cumprimento de um objetivo estatal legítimo que era a proibição da
discriminação racial, que a décima quarta emenda teve por objetivo eliminar,
consagrando, por essa forma, o princípio da igualdade substancial, importante direito
fundamental do homem.
A Corte Warren, por suas decisões e influência na jurisprudência e na
doutrina norte-americana, e mesmo mundial, teve um lugar destacado no panteão
das grandes cortes judiciais. O seu grande mérito foi ter tido a ousadia necessária
para enfrentar os grandes problemas norte-americanos da sua época,
especialmente o referente à tutela do direito fundamental à igualdade. O legado da
Corte Warren não foi esquecido e nas cortes seguintes, notadamente na Corte
Burger, são encontradas inúmeras decisões que poderiam ter sido proferidas pela
primeira, sendo as mais rumorosas aquelas referentes ao direito à interrupção
voluntária da gravidez.
Quanto mais intensa a atividade da Jurisdição Constitucional,
maiores serão os questionamentos acerca da legitimidade da interferência judicial
em regimes democráticos. Contudo, é certo que o juiz constitucional não pode
desconhecer os seus limites, sendo viável a defesa da Jurisdição Constitucional com
base em argumentos que apelem para o próprio regime democrático. A acima
70
referida decisão da Corte Warren prova que o seu ativismo judicial foi benéfico,
conribuindo para o fortalecimento da Jurisdição Constitucional e da democracia.
Moro
109
aduz que a Jurisdição Constitucional não é instituição essencial e
imprescindível à democracia. Tanto que alguns países qualificados de democráticos,
como a Inglaterra, não adotam o controle judicial de constitucionalidade.
Canotilho
110
desenvolve a questão, afirmando que a ausência de justiça
constitucional não constitui elemento indispensável à configuração arquitetônica do
Estado de direito, ainda que tenha havido um grande incremento na instituição de
Tribunais Constitucionais nos últimos tempos. Por isso assevera que:
muitos estados nunca tiveram nem têm justiça constitucional - desde a
Inglaterra à Suécia, passando pela Holanda – e nem por isso eles deixam
de merecer a qualificação de Estados de Direito. Mas se a justiça
constitucional exercida através dos tribunais constitucionais não é
estritamente indispensável à arquitectónica do Estado de direito, será
legítimo colocar a questão de saber porque é que se assistiu ao
alargamento generalizado de Tribunais constitucionais (três vagas: 1º.
Depois da 2ª Guerra Mundial; 2º. em conseqüência do derrube dos regimes
autoritários; 3º. como resultado do colapso dos regimes comunistas). A
jusitificação dos tribunais constitucionais poderá residir não tanto nas
exigências de aperfeiçoamento do Estado de direito mas na necessidade de
estabelecer canais comunicativos-discursivos entre a política e o direito,
evitando a sobrecarga jurisdicional da política e, ao mesmo tempo, a
instrumentalização política do direito.
Deve-se tamm lembrar que os dois dogmas em que tradicionalmente se
baseava a contestação à legitimidade da justiça constitucional – a soberania do
parlamento e a separação dos Poderes – perderam sua força de correspondência
com a realidade político-constitucional contemporânea. A soberania do parlamento
cedeu lugar à supremacia da Constituição. O respeito pela separação dos Poderes e
pela submissão dos juízes à lei foi suplantado pela prevalência dos direitos dos
cidadãos diante do Estado. Assim, a idéia geral é a de que a vontade política de
cada momento da maioria governante não pode prevalecer contra a vontade da
maioria constituinte incorporada na Lei Fundamental. O poder constituído é, por
natureza, derivado e deve respeitar o poder constituinte, de onde derivou e que, por
definição, é originário.
Alguns defensores da Jurisdição Constitucional, realçam a ampla
acessibilidade ao juiz constitucional como um dos seus aspectos democráticos. Isto
109
MORO, Fernando. Jurisdição constitucional com democracia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
p.114.
110
CANOTILHO, J. J. Gomes. Jurisdição constitucional e intranqüilidade discursiva. In: Miranda, Jorge (Org.).
Perspesctivas constitucionais: nos 20 anos da constituição de 1976. Coimbra: Coimbra, 1996. V. 1, p. 877.
71
porque grupos minoritários ou mesmo cidadãos isolados normalmente têm mais
fácil acesso ao juiz constitucional do que ao legislador. E assim, embora o juiz
constitucional não seja guindado ao seu posto por eleição, sua atividade pode, com
toda certeza, ser caracterizada como democrática. Considerada sob uma visão
substantiva, a democracia depende do fato de serem os cidadãos tratados como
livres e iguais pelo governo. E, sob essa concepção, o foro judicial pode servir
melhor a essa avaliação do que o parlamento, no qual o princípio majoritário
estimula compromissos que se sobrepõem a essas questões principiológicas.
Tal argumento estimula modificações que ampliem o acesso à Justiça e à
Jurisdição Constitucional, inclusive liberando-o a outras pessoas que não sejam
partes, ainda mais pela importância assumida pelas questões constitucionais. Nos
Estados Unidos, sobressai a figura do amicus curiae, que, mesmo não sendo parte
no processo, pode contribuir com pareceres ou manifestações no processo judicial
constitucional favoráveis a uma das partes da relação processual.
Tal figura foi introduzida no Direito brasileiro recentemente, pelo art. 7º, §
2º, da Lei 9.868, de 10 de novembro de 1999, mas ainda de forma tímida, restrita
apenas aos processos atinentes ao controle abstrato de constitucionalidade.
Portanto, é necessária a compatibilização do Legislativo, que representa o
princípio democrático da maioria, com a Justiça Constitucional, que representa a
garantia do Estado de Direito e a tutela dos direitos da minoria. E ai destaca-se a
importância do Tribunal Constitucional, a cuja proteção poderão recorrer as minorias
contra eventuais violações a seus direitos.
A legitimidade da jurisdição consitucional deriva ainda da presença
obrigatória de três requisitos básicos na sua composição política, quais sejam: o
pluralismo, que representa a composição global do sistema, de modo a proteger os
grupos minoritários que não tenham acesso aos ciclos políticos; a
representatividade, que deve refletir as várias tendências e segmentos da
sociedade, incluindo as diversas minorias; e, finalmente, a complementariedade,
que implica na necessidade da multiplicidade e variedade de experiências
profissionais anteriores dos juízes constitucionais, de modo a afastar a Justiça
Constitucional tanto do tecnicismo exacerbado quanto da política exagerada.
Portanto, a investidura diversificada da Jurisdição Constitucional, em relação à
jurisdição ordinária, justifica-se em virtude da sua natureza dúplice (jurídica e
72
política) e tamm porque suas decisões envolvem o principio da supremacia
constitucional.
Embora reconheçamos que as teorias procedimentalistas ofereçam
valiosas perspectivas para a Jurisdição Constitucional, entendemos que as teorias
substancialistas mostram-se mais aptas a permitir que o controle da
constitucionalidade e a salvaguarda dos direitos fundamentais se concretizem em
dimensões mais amplas, atendendo à essência dos valores constitucionais e à
realidade fática subjacente.
Mas é sob a visão garantista do Direito, cunhada por Ferrajoli
111
, que os
direitos fundamentais, servindo não só de instrumento de autotutela dos indivíduos,
como de controle dos poderes públicos, constituem o núcleo principal para a
legitimação da Jurisdição Constitucional, tornando-a apta a enfrentar as demandas
da sociedade.
Ferrajoli
112
sustenta a redefinição do conceito de democracia, chamando
de democracia substancial ou social o Estado de Direito dotado de efetivas
garantias, sejam liberais ou sociais, e de democracia formal ou política o Estado
político representativo, baseado no princípio da maioria como fonte de legalidade.
No Estado representativo a soberania resida no povo e o exercício dos seus
Poderes será legítimo enquanto represente a vontade da maioria. O Estado de
Direito requer que as instituições políticas e jurídicas, para se tornarem legítimas,
sejam instrumentos voltados à tutela e concretização dos interesses primários de
seus cidadãos, o que, em última análise, representa a busca da realização dos
direitos fundamentais.
Portanto, na democracia substancial os direitos fundamentais devem ser
garantidos incondicionalmente a todos e a cada um, até mesmo contra a maioria,
constituindo (bem mais do que o velho dogma positivista da sujeição à lei, de
natureza formal) o fundamento da legitimidade e independência dos Poderes. Por
isso que, em um sentido substancial e social de democracia, o Estado de Direito
deve refletir, além da vontade da maioria, os interesses e necessidades vitais de
todos.
111
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
p. 693.
112
FERRAJOLI, loc. cit.
73
O garantismo dos direitos fundamentais, a par de ser técnica de limitação
e disciplina dos poderes públicos, voltado a determinar o que estes devem e o que
não devem decidir, é concebido como a conotação estrutural e substancial da
democracia. Juntamente com a participação política nas atividades de governo sobre
as questões reservadas à maioria, desenvolve-se uma não menos importante e
generalizada participação judiciária das minorias à tutela e à satisfação dos seus
direitos, seja como instrumento de autodefesa seja como instrumento de controle
das atividades do poder público.
Firma-se, pois, a importância da Jurisdição Constitucional como
instrumento legítimo de garantia dos direitos fundamentais no Estado Democrático
de Direito. O progresso da democracia mensura-se pela expansão dos direitos
fundamentais e da sua dedução em Juízo. A legitimação da Jurisdição
Constitucional no Estado Democrático de Direito provém da função judiciária e da
sua capacidade de tutelar ou garantir os direitos fundamentais do cidadão, como
sustenta Ferrajoli
113
.
Não podemos, tamm, desconsiderar a importante tarefa de
interpretação e atualização da Constituição atribuída à Jurisdição Constitucional, e
que melhor se efetiva através da concretização substancial dos seus valores
normativos e dos direitos fundamentais.
Como exemplo, citamos o acórdão de 04 de março de 2004, do Supremo
Tribunal Federal, proferido no Habeas Corpus 84.025-6, originário do Rio de Janeiro,
em que foi relator o Min. Joaquim Barbosa, onde (embora julgada prejudicada a
ação de Habeas Corpus pelo fato superveniente do nascimento da criança, que
viveu apenas 7 minutos) foi delineado, com precisão e apuro, o direito fundamental
da liberdade, com assento no princípio da dignidade humana, confrontando-o com o
direito à vida, em caso de malformação fetal que levava à impossibilidade de vida
extra-uterina. Reconheceram ao julgadores a prevalência da autonomia privada da
mulher (como um dos componentes primordiais da sua liberdade individual) de
interromper a gestação que não terá possibilidade de converter a vida potencial do
feto em um novo ser humano. Face à colisão dos direitos fundamentais à vida do
feto e à liberdade individual da gestante prevaleceu o último. Assim afirma o Relator
em seu voto:
113
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal.o Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2002. p. 693.
74
...em casos de malformação fetal que leve à impossibilidade de vida extra-
uterina, uma interpretação que tipifique a conduta como aborto (art. 124 do
Código Penal) estará sendo flagrantemente desproporcional em
comparação com a tutela legal da autonomia privada da mulher,
consubstanciada na possibilidade de escolha de manter ou interromper a
gravidez, nos casos previstos no Código Penal.
A Jurisdição Constitucional ganha, por isso, uma importância ímpar,
legitimando-se, por força do princípio da supremacia da Constituição, a implementar
uma aferição permanente dos atos normativos lato sensu e das questões
constitucionais pelo parâmetro-reserva do justo constitucional que busca
implementar a justiça social e que tem inegável dimensão substancialista.
Entendemos, portanto, que a legitimidade dos juízes constitucionais no
Estado Democrático de Direito pode ser tida por originária, uma vez que exercem
eles uma das funções-poder do Estado, prevista na Constituição Federal e relativa
ao controle de constitucionalidade das leis em geral e à tutela dos direitos
fundamentais, de amplo espectro democrático e decorrente do princípio da
supremacia da Constituição.
75
4. JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
4.1. Considerações gerais
Necessário se torna neste ponto um estudo comparativo entre os três
paradigmas constitucionais do Estado de Direito, implantados a partir do
constitucionalismo moderno, quais sejam: o Estado Liberal, o Estado Social e o
Estado Democrático de Direito, já que o funcionamento da Jurisdição Constitucional
dependerá da estrutura política do Estado.
O Estado Constitucional, representativo ou de Direito surge como Estado
liberal, fundando-se na idéia de liberdade e objetivando limitar o poder político, tanto
internamente, pela sua divisão, como externamente, pela redução ao mínimo ds
suas funções perante a sociedade, como nos relata Miranda
114
.
O constitucionalismo clássico do Estado liberal reduziu a Constituição a
um simples instrumento jurídico, através do qual distribuía-se horizontalmente a
competência estatal pelos três órgãos fundamentais daquele: o Executivo, o
Legislativo e o Judiciário, ao mesmo tempo em que se declaravam os direitos e as
garantias individuais. Estabelecia, assim, a separação entre Estado e Sociedade,
exprimindo apenas o lado jurídico do compromisso do poder com a liberdade, ou
seja, do Estado com o indivíduo. A Constituição do Estado liberal cuidava de garantir
tão somente a mera igualdade formal, tendo, portanto, um cunho garantista de
direitos frente ao Estado.
115
A característica principal do Estado liberal era a liberdade, especialmente
a liberdade econômica, conhecida por liberalismo econônmico, que se caracterizava
pela não intervenção do Estado na economia. Essa liberdade econômica permitiu
que o Estado Liberal entrasse em crise decorrente da exploração do proletariado
pelos grandes empresários capitalistas, o que gerou a pobreza e o crescente
descontentamento com o aumento da desigualdade, fazendo as greves alastrarem-
se por toda parte. De tal estado das coisas resultaram as misérias sociais e os
graves desajustamentos não refreados pelo liberalismo, que, ao contrário, deixou-os
114
MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 47.
115
BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 30-31.
76
alastrarem-se em proporções incontroláveis. Ditas circunstâncias foram ainda mais
agravadas pela Revolução Industrial que exacerbou a desigualdade social.
O Estado liberal deveria limitar-se à defesa da ordem e da segurança
pública. Surgiu ele com o ciclo inglês, que abriu caminho para as Constituições
abstencionistas do século XVII e para o distanciamento econômico face à
sociedade. Ficou conhecido como Estado de Polícia ou Estado Gendarme.
No Estado Liberal, o Direito tinha função ordenadora e fixadora das bases
da legislação para se contrapor ao antigo regime absolutista e a tudo o que ele
representava
116
.
O Estado liberal surge inicialmente na Inglaterra, com John Locke, que foi
o seu principal teórico. Proclamava-se a separação de poderes no Estado como
princípio de limitação do poder entre o monarca e a representação popular. A
doutrina elaborada por Locke, porém, era ainda muito utópica, pois sustentava que
o poder seria limitado pelo consentimento, pelo direito natural e pela virtude dos
governantes, não fazendo uma avaliação correta sobre a natureza negativa do poder
estatal. Mas, de qualquer forma, já representava um avanço em relação ao
absolutismo, embora ainda distante do que seria defendido no século seguinte por
Montesquieu.
Locke, na Inglaterra, Rousseau e Montesquieu na França, e Kant na
Alemanha, formam os principais expoentes intelectuais do Estado Liberal,
influenciando de forma decisiva as revoluções antiabsolutistas inglesa e francesa, e
tamm a independência norte-americana. A doutrina de Locke influenciou a
Revolução Gloriosa inglesa de 1688, que pôs fim ao Estado absolutista, permitindo o
surgimento, na Inglaterra, de um Estado Liberal de Direito, sob a forma de
monarquia parlamentarista. Essa revolução nasceu do confronto histórico entre o rei
e o parlamento, remontando à Magna Carta de 1215 e culminando com o Bill of
Rights de 1689, que, embora não acabando com a monarquia, concentrou os
poderes estatais no parlamento, limitando bastante os poderes reais.
117
Este último documento instituiu na Inglaterra um maior respeito pelos
direitos individuais por parte dos poderes públicos. Com base no princípio da
legalidade proibia o rei de suspender as leis ou dispensar o seu cumprimento e
116
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. p. 111.
117
BARBOSA, Erivaldo Moreira. Direito constitucional: uma abordagem histórico-crítica. São Paulo:
Madras, 2003. p. 22-25.
77
impunha o respeito à integridade física do ser humano, estabelecendo a proibição de
aplicação de castigos cruéis e desumanos.
Contudo, enquanto no Estado inglês os direitos individuais prevaleciam,
nas suas colônias ainda predominava o autoritarismo. A resistência dos colonos às
leis e disposições normativas que violavam os princípios do próprio direito público
insculpidos nos diversos documentos ingleses, desde a Magna Carta de 1215 até o
Bill of Rights de 1689, fez surgir o desejo de independência.
Libertaram-se, então, os norte-americanos da colônia inglesa em 1776,
declarando-se um Estado liberal independente com a Declaração de Virgínia e onze
anos depois, em 1787, com a primeira Constituição codificada do mundo.
Immanuel Kant, de nacionalidade alemã, foi o único pensador político
contemporâneo das revoluções liberais do século XVIII, embora não tenham elas
ocorrido no seu país. Com as suas concepções sobre o imperativo categórico e a
paz perpétua alargou a dimensão espacial dos direitos fundamentais para além das
fronteiras estatais, ao dar-lhes uma perspectiva de cidadania mundial e concebê-los
a partir de considerações sobre a liberdade e a dignidade humana. Entende Kant a
dignidade como um atributo essencial e transcendente do ser humano,
independentemente de sexo, raça, cor, religião, idade etc, e a cidadania mundial
como algo inerente ao homem.
Em 1788, através da Crítica da Razão Prática, Kant assentou a
moralidade em bases diferentes das pensadas até então, e que podem ser
resumidas, em última instância, no que ele denominou de imperativo categórico.
Para Kant, o dever não se apresentava através de conteúdos fixos, nem tampouco
em forma de uma lista ou catálogo de virtudes, mas sim através de uma forma que
deve valer universalmente e incondicionalmente, ou seja, categoricamente para toda
e qualquer ação moral.
Kant (apud MORAES)
118
enuncia o seu imperativo categórico nos
seguintes termos: “Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre
valer simultaneamente como um princípio para uma legislação geral.” Esta
formulação, por sua vez, desdobra-se em três máximas morais, que são as
seguintes:
118
MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana; substrato axiológico e conteúdo
normativo. In: SARLET, Ingo Wolfang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 113.
78
1ª) age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade
em lei universal da natureza”, o que corresponde à universalidade da
conduta ética, válida em todo tempo e lugar ;
2ª) age de tal maneira que sempre trates a humanidade, tanto na tua
pessoa como na pessoa de outrem, como um fim e nunca como um meio”,
o que representa o cerne do imperativo, pois afirma a dignidade dos seres
humanos como pessoas;
3ª) age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para
todos os seres racionais”, o que exprime a separação entre o reino natural
das causas e o reino humano dos fins, atribuindo à vontade humana uma
vontade legisladora geral.
O imperativo categórico é composto pela exigência de que o ser humano
jamais seja visto, ou usado, como um meio para atingir outras finalidades, mas
sempre seja considerado como um fim em si mesmo. Por isso todas as normas
criadas pelo legislador precisam ter por finalidade a tutela do homem, da espécie
humana enquanto tal. O imperativo categórico orienta-se pelo valor básico, absoluto,
universal e incondicional da dignidade humana. É esta dignidade que inspira a regra
ética maior: o respeito pelo outro.
Sobre a expressão imperativo, Abbagnano (apud CHAUÍ)
119
diz que s sua
criação, possivelmente por analogia ao vocábulo bíblico mandamento, não passa de
um outro nome para a palavra dever.
No mundo social, porém, existem duas categorias de valores: o preço
(preis) e a dignidade (würden). Enquanto o preço representa um valor exterior (de
mercado) e manifesta interesses particulares, a dignidade representa um valor
interior (moral) e é de interesse geral. As coisas têm preço; as pessoas dignidade. O
valor moral encontra-se infinitamente acima do valor de mercadoria, porque, ao
contrário deste, não admite seja substituído por equivalente. E daí conclui-se a
exigência de jamais transformar-se o homem em meio para alcançar quaisquer fins.
A legislação elaborada pela razão prática para vigorar no mundo social deve levar
em conta, como sua finalidade máxima, a realização do valor intrínseco da dignidade
humana. É por isso que as ordens jurídicas democráticas contemporâneas,
baseadas na formulação de ordem moral elaborada por Kant no passado, apóiam-
se no princípio da dignidade humana.
O Estado Liberal, contudo, naquela época, voltava-se precipuamente
para garantir a proteção da propriedade privada, dos direitos individuais e,
119
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2002. p. 345-346.
79
sobretudo, das liberdades. Os movimentos revolucionários liberais erigiram como
direitos fundamentais liberais apenas os direitos individuais, ficando de fora os
direitos sociais, coletivos e difusos. Isto porque a ideologia liberal era
essencialmente individualista, defendendo um Estado não-intervencionista,
principalmente em matéria econômica e social. Ao liberalismo econômico de então
correspondia o individualismo jurídico, que valorizava o interesse individual.
O Estado Liberal era o Estado Formal de Direito, baseado em uma
igualdade formal, e não substancial, entre os indivíduos. Sustentava a doutrina
liberal que o próprio mercado se encarregaria, com a sua suposta “mão invisível” ,
de promover a ascensão das classes menos abastadas a uma melhor condição de
vida. Mas tal não ocorreu e o Estado mantinha-se apegado à iia de que não
detinha nenhuma incumbência de promover o bem-estar social.
Foi quando os teóricos passaram a perceber a insuficiência dos direitos
fundamentais individuais, bem como a necessidade de o Estado, não apenas
garantir ditos direitos fundamentais, como tamm intervir no âmbito econômico para
garantir os direitos fundamentais de alcance social e coletivo.
Nessa época o Direito era tratado como ciência pura, auto-suficiente, que
deveria empregar uma metodologia asséptica, com o objetivo de evitar a sua
contaminação pela moral, pela política ou pela sociologia. Para esta concepção, o
ordenamento jurídico era coerente, o que impedia a existência de antinomias reais
entre as suas normas.
Assim, seria sempre possível, sob esta ótica, estabelecer, com base no
raciocínio lógico-formal, a norma aplicável a cada caso concreto. Partia-se, para
isso, dos fatos definidos e, por um raciocínio lógico-formal, chegava-se à norma
aplicável a cada caso concreto, por meio de processo silogístico. A fase áurea das
Constituições corresponde ao período do Estado liberal em que a racionalidade e a
ideologia parecem coincidir, numa simultaneidade harmonizadora tanto da forma
como do conteúdo da lei. O conceito jurídico de lei, então imperante, se apresenta
debaixo de dois aspectos: um formal e outro material. Sob o aspecto formal, lei é
toda regra que emana de uma autoridade competente. Sob o aspecto material, lei é
todo preceito dotado de generalidade e abstração. Durante a fase áurea das
constituições liberais, enquanto os positivistas se satisfaziam com o preenchimento
de requisitos ou pressupostos formais de elaboração da lei, os jusnaturalistas
insistiam no aspecto material ou do conteúdo da lei, medido por critérios subjetivos
80
ou axiológicos, não importando se a via elaborativa da lei tivesse sido a parlamentar
ou a consuetudinária.
Esta imagem do Direito, que teve o seu apogeu na fase das grandes
codificações do século XIX, entrou em crise com o crepúsculo do Estado Liberal,
deixando a descoberto as grandes aporias do sistema jurídico. A crise de
juridicidade da lei constitucional iniciou-se com a decadência do Estado liberal,
quando o conceito positivista concorreu para reduzir a majestade da lei, já que se
buscava, tão somente, o seu correto processo elaborativo, o que a fez perder a
rigidez material para receber licitamente todo conteúdo que o legislador
considerasse proveitoso ao interesse do Estado.
As novas demandas sociais surgidas no mundo contemporâneo exigiam
uma concepção substantiva de justiça, que a compreensão formalista do fenômeno
jurídico não acolhia.A evolução dos estudos jurídicos tem mostrado que a solução
dos conflitos sociais não passa exclusivamente pelo crivo da lógica formal, tornando-
se necessário o recurso a outras áreas do conhecimento humano, bem como a uma
certa criatividade de todos os que operam com o fenômeno jurídico. Tanto mais
quanto o Direito é uma disciplina destinada a reger a vida humana em sociedade,
não podendo, por isso, ser tratado como uma ciência exata.
Assim, aquela neutralidade plena do aplicador do Direito, sustentada pela
hermenêutica tradicional vigorante no Estado Liberal, passou a ser um mito
ultrapassado, dando ensejo ao surgimento da concepção do Estado Social.
O maior dos críticos do Estado liberal, quanto à sua insuficiência para
resolver as questões sociais, foi o pensador e filósofo alemão Karl Marx, cujas
concepções influenciaram diretamente o advento do Estado de Direito Social.
Auxiliado e influenciado diretamente por Friedrich Engels, suas idéias
desenvolveram-se a partir da reflexão crítica sobre as condições escravizantes às
quais o homem estava submetido. Marx pretendeu completar os direitos individuais
conquistados com a Revolução Francesa, distinguindo as liberdades formais,
políticas e pessoais, usufruídas apenas pelos burgueses, das liberdades reais que,
por razões socioeconômicas não podiam ser usufruídas pela maioria dos indivíduos.
As concepções de Marx, refutando o liberalismo em bases científicas,
resultaram, no início do século XX, na ascensão dos primeiros Estados sociais. A
partir da Revolução Bolchevique de 1917, surgiu o Estado Socialista da União
81
Soviética e, em uma vertente mais moderada, surgiram o Estado Social Mexicano,
tamm em 1917, e a República de Weimar, na Alemanha, em 1919.
O Estado Social surge no século XX, operando profundas transformações
no campo dos direitos fundamentais. No Estado Liberal, que o antecedeu e que
predominou no século XVIII, o Poder Público era tido por adversário dos direitos
humanos, o que exigia a rígida limitação daquele. Ao Estado cabia, unicamente,
proteger o homem, salvaguardando o espaço inexpugnável da sua autonomia
individual. Esta concepção, contudo, revelou-se historicamente equivocada.
Sem embargo do reconhecimento das conquistas trazidas pelo
constitucionalismo liberal, o que se evidencia é que, sob o manto da igualdade
formal e da legalidade burguesa por ele instauradas, vicejaram a miséria, a exclusão
social e a opressão do mais fraco pelo mais forte. O Estado Liberal do século XVIII
foi vitorioso por meio da Revolução, enquanto o Estado Social pelas vias do
compromisso
120
.
Por força da extensão do direito de sufrágio a parcelas da população
tradicionalmente excluídas do processo político, aliada às pressões exercidas pelos
movimentos contestatórios e reivindicatórios das classes populares, houve um
redimensionamento das funções do Estado, levando-o a assumir novas tarefas e
encargos visando à melhoria das condições materiais básicas para a população e à
promoção da igualdade material e da distribuição da justiça social.
Nesse novo contexto social, novos direitos fundamentais de caráter
prestacional são reconhecidos aos indivíduos, criando novas tarefas e encargos
para o Estado, tais como a de cuidar da saúde e da educação da população carente,
disciplinar mercados, proteger os trabalhadores da franca exploração dos seus
patrões e proporcionar assistência aos idosos e desamparados. Nascem, assim, os
direitos sociais, econômicos e culturais, denominados pela doutrina de direitos
fundamentais de segunda dimensão ou geração.
Ainda hoje enfrenta o Estado Social profunda crise, decorrente de
múltiplos fatores, tais como a escassez de recursos gerada pela explosão de
demandas reprimidas, o enfraquecimento dos Poderes Públicos em razão da
globalização econômica, a ineficiência, associada ao gigantismo, da máquina
burocrática, dentre outros. Tamm já não se confia tanto no Estado como
instrumento de emancipação social das classes desfavorecidas, e, depois da queda
120
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 230.
82
do Muro de Berlim, perdeu prestígio a doutrina que propugnava pelo Estado
ximo.
Contudo, toda essa realidade não deve significar o abandono dos ideais
humanitários de igualdade substantiva, liberdade material e solidariedade que
nutriam o Welfare State. Exige, ao contrário, que se articulem novas estratégias e
abordagens para o enfrentamento dos mesmos problemas de justiça social que o
capitalismo liberal não equacionou e que o contemporâneo Estado Democrátido de
Direito procura resgatar por meio da valorização do jurídico e da reavaliação do
papel destinado ao Poder Judiciário, especialmente o da Justiça Constitucional.
Com o advento do Estado Social, a Jurisdição Constitucional ganhou
novos contornos, alterando a sua configuração tradicional fundada no direito
positivo, com a distinção entre produção normativa e aplicação judicial. As novas
demandas sociais de um Estado cada vez mais complexo exigem um direito
basicamente principiológico, que passa a levar em conta princípios que mantêm a
sincronia do ordenamento com a sociedade. Há um maior espaço para a elaboração
das decisões judiciais, e os juízes são levados, muitas vezes, a suprir as lacunas
jurídicas para manter a eficácia da Constituição e a completude do ordenamento
jurídico. Passa-se a atribuir ao Poder Judiciário a atividade denominada de ativismo
judicial.
O Estado Democrático de Direito procura assegurar a igualdade material
entre todos os homens, e não apenas a mera igualdade formal destituída de
qualquer juízo de valor acerca de seu conteúdo, tal qual se dava no puro Estado
Formal de Direito, o Estado Liberal, em que a busca da igualdade se contentava
com a generalidade e impessoalidade da norma, garantindo a todos um tratamento
igualitário, ainda que a sociedade se mostrasse totalmente injusta e desigual.
Busca-se no Estado Democrático de Direito a realização da justiça em
seu aspecto substancial, já que a democracia se destaca como regime político de
cunho popular, fundando-se no princípio da igualdade. O Estado Democrático de
Direito caracteriza-se, portanto, basicamente, pela substancialidade das normas
constitucionais, buscando a concretização material dos direitos fundamentais como
forma de implementação do princípio constitucional da dignidade humana.
83
De acordo com Streck
121
a noção de Estado Democrático de Direito está
indissociavelmente ligada à realização dos direitos fundamentais. Desse liame
indissociável, exsurge o que denomina de plus normativo do Estado Democrático de
Direito e que, mais do que uma classificação de Estado ou uma variante de sua
evolução histórica, é a síntese das fases estatais precedentes que agrega a
construção das condições de possibilidade para suprir as lacunas das referidas
etapas anteriores, representadas pela necessidade do resgate das promessas da
modernidade, tais como igualdade, justiça social e a garantia dos direitos humanos
fundamentais.
A essa noção de Estado se acopla o conteúdo material das
Constituições, através dos valores que apontam para uma mudança do status quo
da sociedade. Por isso, no Estado Democrático de Direito, a Constituição, como lei
suprema, passa a ser uma forma privilegiada de instrumentalização da ação do
Estado na busca dos objetivos apontados pelo texto constitucional, no seu sentido
dirigente, compromissário, valorativo e principiológico.
Transcreve Streck
122
primorosa lição de Pinto
123
, que afirma:
E a quem disser que a Constituição assim cai na utopia sempre se poderá
replicar com P. Lucas Verdú que ‘todas as realidades de hoje foram utopias
de ontem’. A Constituição justa pode ser utópica, mas como muito bem
observa Muguerza, quando uma utopia admite uma remota possibilidade de
realização, o seu defeito não é ser uma utopia, mas precisamente o facto de
não deixar de o ser. Por nosso lado, não hesitaremos em subscrever a
‘profecia’ de Macpherson: ‘Só sobreviverão as sociedades que melhor
possam satisfazer as exigências do próprio povo no que concerne à
igualdade de direitos humanos e à possiblidade de todos os seus membros
lograrem uma vida plenamente humana”.
O Estado Democrático de Direito objetiva, para Streck
124
, a justiça social
e a busca da realização da igualdade material ou substancial na sociedade
moderna, assentando-se em dois pilares sólidos: a democracia e a realização dos
direitos fundamentais. Estes dois fatores políticos se implicam reciprocamente, pois
não há democracia sem o respeito e a realização dos direitos fundamentais,
especialmente os sociais; e não há direitos fundamentais sem democracia.
121
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. p. 147.
122
Ibid., p. 108.
123
PINTO, Luzia Marques da Silva Cabral. Os limites do poder constituinte e a legitimidade material da
constituição. Coimbra: Coimbra, 1994. p.218-219.
124
STRECK, op. cit., p. 110.
84
Para Bobbio
125
, o reconhecimento e a proteção dos direitos do homem
estão na base das Constituições democráticas modernas, sendo a paz, por sua vez,
o pessuposto necessário para o reconhecimento e a efetiva proteção dos direitos do
homem em cada Estado e no sistema internacional. A democracia é a sociedade dos
cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns
direitos fundamentais. Sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há
democracia e, sem democracia não existem condições mínimas para a solução
pacífica dos conflitos. Haverá paz estável, significando uma paz que não tenha a
guerra como alternativa, somente quando existirem cidadãos, não mais apenas
deste ou daquele Estado, mas do mundo.
Por isso, o constitucionalismo contemporâneo busca essa necessária e
indispensável convivência entre o regime democrático e a realização dos direitos
fundamentais previstos, formal ou materialmente, nas Constituições. Evidente que
tais objetivos refletiram-se na concepção do Direito como disciplina não só
reguladora, como também, sob uma concepção mais moderna, transformadora da
vida em sociedade. O constitucionalismo contemporâneo, na sua versão instituidora
do Estado Democrático de Direito, não é somente uma conquista e um legado do
passado; é, certamente, o legado mais importante do século XX tanto quanto o será
tamm no século XXI, como afirma Streck
126
.
O constitucionalismo instituído pelo Estado Democrático e Social de
Direito acarretou a superação do positivismo, com todas as suas implicações
formalistas. Esse novo modelo de constitucionalismo, que pode ser denominado de
neoconstitucionalismo, aparece no segundo pós-guerra, contrapondo-se ao papel
desempenhado pelo constitucionalismo tradicional.
Fundamentalmente, o neoconstitucionalismo rompe com a dicotomia
público-privada, estando caracterizado pela presença de uma Constituição rígida
que incorpora os direitos fundamentais sociais; pela atuação de uma Jurisdição
Constitucional com conteúdo fortemente interventivo, que assegura a força
vinculativa da Constituição, e que abarca uma materialidade principiológica; pela
auto-aplicabilidade dos dispositivos constitucionais; pela submissão das relações
privadas ao primado do público e, finalmente, pela emergência de um novo modelo
125
BOBBIO, Norberto.A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 1.
126
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. p. 101.
85
de interpretar as leis e a Constituição, a partir de uma ampla filtragem hermenêutico-
constitucional, baseada na primazia do âmbito da validade sobre o âmbito da
vigência dos seus textos infraconstitucionais. O confronto da legislação
infraconstitucional e demais atos normativos será com o conteúdo material das
normas constitucionais, e não mais apenas com as meras formalidades
procedimentais relacionadas ao due process of law adjetivo ou processual.
127
O neoconstitucionalismo proporciona o surgimento de ordenamentos
jurídicos constitucionalizados, embasados em uma acentuada tesssitura
principiológica, onde a Constituição mostra-se extremamente capaz de condicionar
tanto a legislação como a jurisprudência, o estilo doutrinário e a ação dos agentes
públicos, a par de influenciar diretamente as relações sociais.
4.2 Democracia e Estado de Direito
Geralmente o termo democracia é empregado para designar um dos
modos pelos quais pode ser exercido o poder político, significando, especificamente,
a forma de governo na qual o poder político é exercido pelo povo, segundo a
vontade soberana deste.
Silva
128
diz que o conceito de democracia é histórico. Isto porque não
constitui tal regime político um fim em si mesmo, mas apenas um meio de realização
dos valores tidos por essenciais à convivência humana, os quais se traduzem, em
última análise, na exigência de observância dos direitos fundamentais. Assim,
porque têm ditos direitos uma natureza histórica, dependente das concepções
vividas ao longo do tempo pelas diversas gerações, circunstância que os enriquece
gradativamente a cada etapa do evolver social, projetam eles tal natureza no regime
político em que estão inseridos, revelando o princípio básico de que o poder repousa
na vontade do povo. A democracia não é uma concepção estática, mas um processo
dinâmico de conquista gradual de cidadania pelo povo, que vai se materializando
com o passar do tempo.
127
STRECK, Lenio Luiz. Ontem, os códigos: hoje, as constituições: o papel da hermenêutica na superação do
positivismo pelo neocolonialismo. In: ROCHA, Fernando Luz Ximenes; MORAES, Filomeno (Coord.). Direito
constitucional contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 526.
128
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo.o Paulo: Malheiros, 2003. p. 125.
86
Um governo ou sociedade democrática é, para Leal
129
, aquele que conta
e define, a partir das relações de poder estendidas a todos os indivíduos, com um
espaço político permanente de interlocução, demarcado por regras e procedimentos
claros, que efetivamente assegurem o atendimento às demandas públicas da maior
parte da população, eleitas pela própria sociedade, através de suas formas de
participação, direta ou representativa.
O problema central que a teoria política, ao menos a contemporânea, tem
de enfrentar é como conciliar o conceito de Estado com uma estrutura de poder
impessoal e legalmente circunscrita por um novo e complexo leque de direitos,
obrigações e deveres dos indivíduos, ou seja, como o Estado soberano deverá se
relacionar com o povo soberano que é, reconhecidamente, a fonte legítima dos
poderes do Estado.
130
Kelsen
131
, partindo dessas relações entre governantes e governados, em
conceito que se tornou clássico, divide os governos em democráticos ou
autocráticos, afirmando que tal distinção baseia-se na idéia de liberdade política. Diz
que a democracia significa que a vontade representada na ordem jurídica do Estado
é idêntica à vontade dos sujeitos, sendo o seu oposto a escravidão da aristocracia.
Assevera ainda que a democracia e a autocracia não consubstanciam descrições de
constituições historicamente conhecidas, representando simples tipos ideais.
Apoiando-se na iia de liberdade política, afirma que livre é todo indivíduo que está
sujeito a uma ordem jurídica de cuja criação participa. Fundado no contrato social de
Rousseau, através do qual o estado natural é substituído por um estado de ordem
social, diz que a democracia é a resposta à questão de saber-se como seja possível
estar o indivíduo sujeito a uma ordem social e permanecer livre. Defende, porém,
que o Estado é uma ordem jurídica
132
e que as duas formas básicas de governo, a
democracia e a autocracia, são modos diferentes de criar a ordem jurídica. Assim
um Estado será chamado de democrático se o princípio democrático, baseado na
regra da maioria, prevalecer na sua organização.
Vê-se, porém, que, para Kelsen, o princípio democrático deve ser
observado tão somente em relação aos procedimentos de instituição do Estado,
129
LEAL, Rogério Gesta. Teoria do estado: cidadania e poder político na modernidade. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2001. p. 198.
130
Ibid., p. 195.
131
KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e doestado. São Paulo: M. Fontes, 1995. p. 278-279.
132
Ibid., p. 298.
87
despreocupando-se com a questão da preservação e da evolução do regime
democrático, que diz respeito ao conteúdo das normas e aos valores encampados
pela Constituição.Além disso, incidiu Kelsen no equívoco de confundir Estado e
ordem jurídica, entendendo, assim, que todo Estado é Estado de Direito, o que não
é verdade. Com isso concebeu um Estado de Direito meramente formal, pois o
Direito é para ele só o direito positivo, a norma pura, sem qualquer vinculação com o
seu conteúdo. Essa concepção serviu para justificar os interesss ditatoriais,
deformando a noção essencial de Estado de Direito, que é, por esse modo,
confundida com o mero Estado Legal. Há, por força de tal entendimento kelseniano,
uma superposição da legalidade à legitimidade estatal, igualando-se a legitimidade à
mera legalidade.
Adverte Silva Júnior
133
que os cientistas políticos, na qualificação de um
Estado democrático, dão mais atenção à tradição da prática democrático-cultural de
um determinado povo do que propriamente ao modo de organização do seu Estado,
muito embora não se possa deixar de reconhecer que a forma de organização
política (Estado) do povo constitui um forte indicativo da qualidade do regime político
adotado. Além disso, a declaração de que o regime politico é democrático serve de
bússola para o maior respeito à soberania popular.
Sob os pontos de vista histórico e descritivo, para os antigos a
democracia era direta, não se resumindo ao processo eleitoral, ainda que não o
excluísse. A democracia dos antigos tinha como regra a participação direta do povo,
temperada, porém, pela eleição de algumas magistraturas. Já para os modernos a
democracia é representativa, restringindo-se ao direito de voto, não para decidir,
mas sim para eleger representantes, a quem caberá decidir. A democracia de hoje é
uma democracia representativa, às vezes complementada por formas de
participação popular direta.
Atualmente, vem a doutrina propugnando pela democracia participativa
nos paises periféricos, como o Brasil, com o que se daria uma maior aproximação do
juiz constitucinal com o povo e, em conseqüência, elevaria o seu grau de
legitimidade
133
SILVA JÚNIOR, Walter Nunes. Poder judiciário democrático-constitucional: uma apreciação política
de sua estrutura. Dissertação (Mestrado Interinstitucional em Direito) - Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, 1999. p. 41-42.
88
Leal
134
afirma que, mesmo com a existência dos direitos humanos e
fundamentais, que consubstanciam mecanismos (que entende serem
predominantemente de natureza procedimental) de reflexão e debate público das
questões sociais vinculadas à gestão dos interesses públicos, percebe-se
inexoravelmente uma crise da representação política. Destaca que, a par da
fragilidade dos referidos mecanismos, tamm a complexidade da sociedade
industrial tem contribuído para o estabelecimento de um outro modelo de
democracia no cenário do século XX, que é o de uma democracia mais participativa.
Defende Bonavides
135
que a grande vantagem, senão a própria
superioridade da democracia participativa sobre quaisquer outros sistemas de
organização governativa, é que, onde mais se precisa (como no caso dos países em
desenvolvimento), ela não mantém, como ocorre nos regimes representativos
tradicionais, o soberano, ou seja, o poder constituinte originário, adormecido,
distante, mas, ao contrário, o conserva sempre acordado, desperto, vigilante,
presente: nunca distante do cidadão, mas invariavelmente a seu lado. E tal
circunstância reflete-se também na legitimidade da justiça constitucional, que
repousa também, em grande parte, na acuidade do juiz em orientar-se nas suas
sentenças e nos seus procedimentos hermenêuticos pela adesão do corpo político
aos valores representados e incorporados na Constituição.
Bobbio
136
define democracia como o poder em público, reconhecendo que
essa definição capta.um aspecto que representa uma antítese de todas as formas
autocráticas de poder, que tendem a ocultarem-se, conseqüência do desprezo que,
de modo geral, nutrem pelo povo e do entendimento de que este é incapaz de
reconhecer os supremos interesses do Estado e de manter os segredos que são
necessários à melhor condução da política. Concebe idealmente a democracia como
aquela forma de governo na qual tamm as últimas fortificações do poder invisível
foram vencidas e o poder, tal como a natureza, não tem mais segredos para o
homem.
134
LEAL, Rogério Gesta. Teoria do estado: cidadania e poder político na modernidade. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2001,. p. 199.
135
BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional
de luta e resistência; por uma nova hermenêutica; por uma repolitização da legitimidade.o Paulo:
Malheiros, 2003. p. 326.
136
BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro:
Campus, 2000. p. 386-389.
89
Assim na contemporaneidade, observa-se que a democracia
representativa não impediu o retorno à democracia direta, ainda que sob formas
secundárias. A Constituição brasileira de 1988 traz exemplo de tal situação.
137
Deve-se ainda estabelecer uma diferença entre a democracia formal e a
material. A democracia formal é aquela que se relaciona tão somente com a forma
do governo e os procedimentos que garantam a sua escolha democrática. A
democracia substancial é aquela que diz respeito ao conteúdo desta forma de
regime político do Estado e dos procedimentos por ela instaurados. A democracia
substancial se caracteriza pelos fins e valores em direção aos quais um determinado
grupo político atua. O princípio destes fins ou valores adotado para distinguir (não
mais apenas formalmente, mas especialmente no tocante ao seu conteúdo) um
regime democrático de um autocrático é a igualdade. Não apenas a igualdade
jurídica, introduzida formalmente nas constituições liberais, mesmo quando estas
não eram formalmente democráticas, mas a igualdade social e econômica, de
natureza substancial.
Canotilho
138
enumera algumas teorias que tentam justificar a democracia,
citando inicialmente a teoria democrático-pluralista, oriunda dos Estados Unidos,
segundo a qual o processo de formação da vontade democrática assenta-se em
grupos definidos através da freqüência das interações sociais. A teoria pluralista da
democracia é ao mesmo tempo uma teoria empírica e normativa, pois, como teoria
empírica pretende captar a realidade social e política das democracias ocidentais,
nas quais todas as decisões políticas tomadas se reconduziriam a interesses
veiculados pelos vários grupos sociais, e como teoria normativa pressupõe uma
sistema político aberto com ordens de interesses e valores diferenciados, o que
permitiria a todos os grupos a oportunidade de influência efetiva nas decisões
políticas.
A teoria elitista da democracia, partindo do conceito de democracia como
método de obter o apoio do povo pela concorrência, desenvolvido por Schumpeter,
aceita que a democracia é uma forma de domínio, onde se verifica uma concorrência
para o exercício do poder: os governados, de tempos em tempos, decidiriam,
através do voto, qual a elite concorrente que deveria exercer o poder.
137
Art. 1º § único.
138
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2002. p.
1393-1403.
90
Canotilho
139
rebate tal posição, asseverando que, mesmo que a teoria
elitista da democracia correspondesse à realidade de alguns países, ela não
corresponde ao sentido do princípio democrático insculpido na Constituição
Portuguesa de 1976, que se inspira na idéia de que a vitalidade democrática
fundamenta-se numa participação permanente, aberta e variada do povo na
resolução dos problemas nacionais, pois o princípio democrático não se harmoniza
com a idéia de desconfiança em relação ao povo e de justificativas para a proteção
das elites perante as massas. A afirmação de Canotilho calha também em relação à
Constituição Brasileira, que também se mostra aberta à franca e plena participação
das massas populares nas decisões políticas da nação.
A teoria da democracia do “ordo-liberalismo” entende que a democracia é
um método que não se assenta fundamentalmente na soberania do povo mas sim
na economia livre de mercado. Levada aos extremos, na sua dimensão econômica,
a teoria democrática do ordo-liberalismo pressupõe a discussão não só dos dois
sistemas econômicos, o capitalismo e o socialismo, como de políticas econômicas,
tais como a da social-democracia e a do liberalismo econômico. A liberdade
econômica baseada na propriedade privada dos meios de produção se converte em
dogma e na essência da democracia e da liberdade.
Enuncia ainda Canotilho
140
as denominadas teorias normativistas,
afirmando que elas não estabelecem uma completa ruptura em relações às teorias
anteriormente referidas, retratando apenas um fenômeno repetidamente assinalado
no desenvolvimento constitucional que é o da continuidade e mudança. Existe
continuidade sobre a discussão das qualidades essenciais da democracia, quais
sejam, a representação para Stuart Mill; a participação para Rousseau; o sistema de
freios e contrapesos para Madison; a concorrência das elites para Schumpeter; a
descentralização para Tocqueville; a igualdade para Marx; a liberdade para Hayek, a
discussão para Habermas e a justiça para Rawls.
Contudo, as discussões sobre democracia nas décadas de oitenta e
noventa, revelam outras preocupações, estando muitas dessas teorias relacionadas
com questões sobre estado de direito, constituição e constitucionalismo. Por isso
são consideradas teorias normativas da democracia as que, de um modo geral,
139
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituão. Coimbra: Almedina, 2002. p.
1396.
140
Ibid, p. 1398.
91
articulam-se com as concepções da política e do processo democrático no estado de
direito constitucional sob as perspectivas liberal, comunitária e deliberativa. A seguir
enunciam-se ditas teorias.
A teoria liberal entende que a política é um meio para a obtenção de
certos fins, que se situam numa esfera de liberdade social preexistente à própria
política e que o processo democrático serve para colocar o Estado a serviço da
sociedade, reduzindo o Estado a um aparelho administrativo especializado na
consecução de fins coletivos, e estruturando a sociedade como um sistema
econômico baseado no comércio entre pessoas privadas.
A teoria republicana entende que a política é uma dimensão constitutiva
da formação da vontade democrática e que, por isso, assume a forma de um
compromisso ético-político referente a uma identidade coletiva no seio da
comunidade. Sustenta ainda não existir espaço social fora do espaço político,
traduzindo-se a política em uma forma de reflexão do bem comum e afirma que a
democracia é a auto-organização política da comunidade no seu conjunto.
A teoria da democracia deliberativa que está ligada à escola do
republicanismo liberal, assentada no ideal republicano do self government, que se
traduz no fato de as pessoas governarem-se a si próprias através da ação política e
das leis que elas próprias dão a si mesmas. A democracia deliberativa pressupõe
uma política deliberativa assentada na idéia de virtude cívica (civic virtue), a
igualdade dos participantes no processo político, a possibilidade de consentimento
universal nas disputas normativas através da razão prática, a garantia de direitos de
participação dos cidadãos na vida pública e o controle dos representantes.
Próxima à teoria da democracia deliberativa situa-se a democracia
discursiva, que, em relação ao republicanismo liberal norte-americano, diferencia-se
pelo fato de a democracia discursiva não fundar-se em direitos universais do homem
(ou em direitos preexistente, sob a perspectiva liberal), nem na moral social de uma
determinada sociedade, como sustenta a visão republicana, mas em regras de
discussão, por meio de formas de argumentar e de institucionalizar processos, cujo
fim é proporcionar uma solução nacional e universal a questões problemáticas,
morais e éticas da sociedade. A democracia é entendida como um proceso de auto-
organização política da sociedade.
A teoria da democracia corporativista pretende estabelecer um modelo
pluralista-cooperativo ou negociador. O modelo democrático liberal fundado na
92
centralidade partidária cede o protagonismo representativo e de controle às
associações corporativistas e aos grupos de pressão. A democracia corporativista
tenderá ao debate parlamentar conjugado ao com a negociação corporativista.
A negociação corporativista devolverá a centralidade política aos cidadãos e à
sociedade civil, ficando para o Estado o papel mediador ou de árbitro entre grupos
econômicos.
Parece-nos que dentre todas estas teorias, a que mais se ajusta aos
princípios diretores do Estado Democrático de Direito, fundado na concretização dos
direitos fundamentais, é a teoria da democracia deliberativa, que pressupõe uma
concepção dialógica da política e a consideração desta como um processo racional
de discussão dos problemas, de forma a obterem-se soluções justas, boas, ou pelo
menos razoáveis, de ordenação da vida comunitária
A doutrina porém, diante das nuances políticas de que podem revestir-se
os regimes democráticos, tem procurado estabelecer um conjunto de regras,
requisitos e instituições que constituam o que se costuma chamar de estado
democrático, sociedade democrática ou sistema constitucional democrático ou ainda
de democracia mínima, no sentido de um paradigma democrático. Segundo tal
paradigma, a democracia distingue-se de todas as formas de governo autocrático
porque se caracteriza por um sistema de regras primárias e fundamentais, que
estabelecem quem está autorizado a tomar decisões coletivas e quais são os
processos a observarem-se para essa tomada de decisões. Normalmente a
denominada democracia mínima implica na participação de ummero tão elevado
de cidadãos quanto possível; na aplicação da regra da maioria para a tomada de
decisões coletivas e vinculantes; na existência de alternativas reais e sérias que
permitam aos cidadãos opções de escolher governantes e programas políticos; na
garantia de direitos de liberdade e participação política. Estes requisitos mínimos são
exigidos para que se possa falar em um estado democrático de direito.
Na sua origem, o Estado de Direito, ou Estado Constitucional, como já
vimos anteriormente, era um conceito tipicamente liberal, por isso falava-se em
Estado Liberal de Direito. As suas notas típicas foram: o primado da lei, sendo esta
considerada como todo ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto
de representantes do povo, mas do povo-cidadão; a divisão dos Poderes Legislativo,
Executivo e Judiciário, como técnica que garante a produção de leis pelo primeiro; e
a independência e imparcialidade do último em face dos demais e das pressões dos
93
particulares poderosos. Essas garantias trazidas pelo Estado Liberal de Direito
constituem, sem dúvida, um avanco da civilização jurídica ocidental, e continuam a
ser postulados básicos de todo Estado de Direito. Contudo, caracterizada a
insuficiência do Estado Liberal de Direito, especialmente pela separação que havia
entre Estado e Sociedade, surgiu a questão da sintonia entre o Estado de Direito e a
sociedade democrática, que gerou o Estado Social de Direito, o qual, conforme
revela a História, nem sempre teve um conteúdo democrático. Sua evolução natural
faz gerar o Estado Democrático de Direito.
O Estado Democrático de Direito não deriva simplesmente da união
formal dos conceitos de Estado Liberal de Direito e do Estado Social de Direito. Na
realidade, supera a simples aglutinação dos conceitos de cada um, incorporando um
componente novo que tem por finalidade a transformação da situação sócio-
econômica vigente, do status quo. Por isso não se deve ter por mera promessa o
dispositivo constitucional que qualifica o Estado brasileiro como um Estado
Democrático de Direito. A Constituição Brasileira
141
define o Estado Democrático de
Direito como a nota essencial do regime político brasileiro, tanto quanto o são o
conceito de Estado de Direito Democrático da Constituição da República Potuguesa
de 1976
142
e o de Estado Social e Democrático de Direito da Constituição Espanhola
de 1978
143
. Diferentemente da Constituição Portuguesa, que instaurou o Estado de
Direito Democrático, qualificando de democrático, em vez do Estado, o Direito, a
Constituição Brasileira de 1988 emprega expressão mais adequada, em que o termo
democrático qualifica o Estado.
Daí resulta que a irradiação dos valores constitucinais democráticos, na
sociedade brasileira, dá-se sobre todos os elementos constitutivos do Estado e, por
isso, também sobre a ordem jurídica, numa projeção de muito maior amplitude que
impõe ao Direito, influenciado por tais valores, aproximar-se mais da realidade social
e do sentir popular, bem como ajustar-se ao interesse coletivo.
O Estado Democrático de Direito, para fazer uma junção correta entre
Estado e sociedade deve assumir uma feição substancialista voltada para a
realização dos direitos fundamentais que encarnam aqueles valores básicos de
convivência humana, como a igualdade, a liberdade, a dignidade humana e o
141
artigo. da Constituição Brasileira.
142
art. 2º. da Constituição da República Portuguesa
143
art. 10 da Constituição Espanhola.
94
respeito dos direitos fundamentais. Assim, a realização dos direitos fundamentais,
que é uma tarefa básica do Estado Democrático de Direito, deve ser a mais ampla
possível. A própria legitimidade do Estado Democrático de Direito depende do seu
compromisso e empenho para proceder a essa realização. Possui, por isso, o
Estado Democrático de Direito uma abrangência maior que a do Estado de Direito,
que surgiu, a partir do constitucionalismo moderno, como expressão da democracia
liberal, e objetivando a elaboração das constituições escritas, sem maiores
preocupações com o conteúdo e a substância das mesmas.
Vale ainda destacar que houve um processo natural de alargamento da
democracia na sociedade contemporânea, o qual não se restringe apenas à junção
da democracia representativa com a democracia direta, mas também, como mostra
Bobbio
144
, através da democratização de corpos diferentes daqueles propriamente
políticos. Entenda-se democratização aí no sentido da instituição e exercício de
procedimentos que permitem a participação dos interessados nas deliberações de
um corpo coletivo, como por exemplo, a eleição dos dirigentes nas universidadade
públicas. A influência dos valores democráticos na vida social tem se traduzido
tamm pela assimilão cultural de práticas democráticas nos procedimentos
regulares da convivência humana, sujeitando as decisões dos interessados à regra
da maioria, que constitui uma técnica de aplicação do princípio da soberania
popular.
A concepção de democracia distende-se, enfim, da sociedade política
para a sociedade civil, aglutinando uma e outra sob a concepção do Estado
Democrático de Direito, que passa a buscar, acima de tudo, a concretização dos
valores maiores da convivência sócio-política, traduzidos pelos direitos
fundamentais.
4.3 A Jurisdição Constitucional no Estado Democrático de Direito
A Constituição, enquanto conquista, programa e fator de garantia
substancial dos direitos individuais e sociais, depende de mecanismos que
144
BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2003. p.155.
95
assegurem as condições de possibilidade para a implementação e concretização
das suas normas.
A experiência de inúmeras nações tem comprovado o fato de que o
Estado Democrático de Direito não pode funcionar sem uma justiça constitucional, já
que ela configura condição de possibilidade daquele, principalmente a partir do
entendimento de que as normas constitucionais são normas dotadas de eficácia, e
com o abandono do conceito meramente formal ou programático da Constituição.
No constitucionalismo contemporâneo, consolidado pela tradição jurídica,
a Constituição é concebida como estatuidora de limitações explícitas ao governo
nacional e aos estados individualmente. Por meio dela institucionaliza-se a
separação dos poderes de tal forma que um controle o outro, à maneira do sistema
americano checks and balances. O Poder Judiciário aparece como elemento de
salvaguarda para eventuais rupturas através do judicial review. A partir de tais
características, o constitucionalismo e a teorização normativa que, posteriormente,
lhe serviu de suporte ideológico, ofereceram os dispositivos constitucionais formais
que consolidaram a idéia de Estado Democrático de Direito como um dos conceitos
políticos fundamentais do mundo moderno.
Concebe-se o Estado Democrático de Direito como aquele que resulta da
observância de um determinado padrão histórico de relacionamento entre o sistema
político e a sociedade civil, institucionalizado por meio de um ordenamento jurídico-
constitucional desenvolvido e consolidado em torno de um conceito de poder público
em que se diferenciam a esfera pública e o setor privado, os atos de império e os
atos de gestão, o sistema político-institucional e o sistema econômico, o plano
político-partidário e o plano político-administrativo, os interesse individuais e o
interesse coletivo.
Tal concepção deriva, na contemporaneidade, da conscientização política
e constitucional, cada vez mais forte, do problema do controle da atividade do
legislador, que se revela como o fato mais importante do Direito Público no século
XX. O abuso do poder pelo Legislativo deu espaço à nova concepção de
Constituição, que passa a ser entendida como norma imperante no mundo
ocidental.
145
145
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Rio de Janeiro:
Forense, 2004. p. 96-97.
96
No paradigma criado pelo Estado Democrático de Direito houve uma
alteração substancial no papel a ser desempenhado pela Constituição, já que todas
as normas constitucionais, sejam elas regras ou princípios, passam a ter plena
eficácia normativa, ou, seja, passam a ser dotadas de força normativa.
Streck
146
lembra frase seguidamente repetida por Eros Roberto Grau,
para quem, no Estado Democrático de Direito, e tomando em conta o conteúdo da
Constituição Brasileira de 1988, é proibido falar-se em normas programáticas.
Devemos lembrarmo-nos de que o paradigma do Estado Democrático de
Direito liga-se, fundamentalmente, à função transformadora que o Direito assume, e
que o leva muito além da concepção de Constituição como simples instrumento de
aferição formal das leis em geral. Tal concepção implicou em uma nova formulação
acerca da Jurisdição Constitucional, representada pela instituição de tribunais
constitucionais, que passam a ter uma atuação voltada para a instrumentalização da
materialidade dos textos constitucionais.
No Estado Democrático de Direito a força normativa da Constituição e o
seu papel dirigente e compromissário têm uma relação direta com a atuação da
justiça constitucional na implementação dos valores substanciais previstos na Lei
Maior. Tal assertiva é constatada pelo exame da jurisprudência dos tribunais
constitucionais, especialmente nos seus primeiros anos, de países como Alemanha,
Espanha e Portugal, sem desconsiderar o já referido ativismo judicial da Suprema
Corte dos Estados Unidos.
As Constituições democráticas do século XX trazem à baila um aspecto
novo e fundamental, que é o destaque dado à Constituição como norma diretiva
fundamental, que estabelece diretrizes aos poderes públicos, ao mesmo tempo em
que condiciona os particulares de modo a assegurar a realização dos valores
constitucionais consubstanciados nos direitos fundamentais, individuais e sociais.
Esta nova concepção de Constituição como norma fundamental de
garantia dos direitos individuais e, ao mesmo tempo, como norma diretiva
fundamental, foi trazida pelo constitucionalismo contemporâneo. A par do seu
caráter inovador, tem ela influído poderosamente sobre determinados aspectos
implícitos na constitucionalização do Direito, ao qual foi atribuída uma forte carga
146
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 103.
97
axiológica. A partir daí assume, como já vimos, fundamental importância a
materialidade da Constituição.
Essa constitucionalização do ordenamento jurídico tem vinculado o Direito
à Moral tanto quanto o raciocínio jurídico ao raciocínio moral, em razão do substrato
axiológico-teleológico da norma constitucional. Decorre de tal circunstância a
acentuada transferência de poder político do Legislativo para a Justiça
Constitucional, o que tem suscitado, para muitos estudiosos do assunto, uma grave
lesão ao princípio democrático. A crítica mais freqüente refere-se ao fato de juízes
não eleitos pelo voto popular controlarem e anularem leis elaboradas por um poder
eleito para tal e aplicadas por um Poder Executivo também eleito. Critica-se ainda a
afirmativa de que o princípio da maioria, próprio às democracias, possa ser
suplantado pelo da supremacia da Constituição.
Embora a resposta a essas indagações tenha provocado aprofundados
debates, o que importa ressaltar é que a experiência de inúmeras nações tem
mostrado que o Estado de Direito não pode funcionar sem uma justiça
constitucional. Ou seja, a justiça constitucional é condição de possibilidade do
Estado Democrático de Direito. Isto se dá desde o momento em que se passa a
aceitar que as normas constitucionais o dotadas de eficácia, abandonando-se, por
conseguinte, o conceito meramente formal e programático de Constituição.
Ver
147
, apoiando-se na idéia de que o Estado de Direito é a ordem na
qual um povo politicamente maduro reconhece a sua limitação, e aplicando dita
afirmação à Justiça Constitucional, assevera ser esta a expressão máxima de um
Estado de Direito. A importância dessa afirmação reside em revelar que a atuação
da Justiça Constitucional tem logrado obter uma sociedade mais justa, segundo os
valores constitucionais defendidos pela ideologia do Estado Social e Democrático de
Direito. E a comprovação histórica é francamente favorável a tal ativismo judicial da
Jurisdição Constitucional.
A abertura constitucional peculiar à contemporaneidade tornam as cartas
políticas da atualidade suscetíveis a toda proposta de melhoria da vida individual e
coletiva, buscando sempre uma constante humanização da existência.
Desponta, pois, o Direito, no Estado Democrático, como instrumento
valioso para a implementação das transformações sociais necessárias ao resgate de
147
VER, Pablo Lucas. Estado de derecho y justicia constitucional: aspectos históricos, ideológicos y
normativos-institucionales de su interrelación. Revista de Estúdios Políticos, v. 33, p. 7, mayo/jun. 1983.
98
promessas e direitos ainda não realizados, constituindo a Jurisdição Constitucional
instrumento civilizado para atuar legitimamente em prol da efetividade dos direitos
fundamentais, especialmente por meio da hermenêutica constitucional.
Moro
148
partindo da constatação de que nem todo Estado de Direito
possui Jurisdição Constitucional, como é o caso da Inglaterra, Suíça e Holanda,
sustenta, ao contrário de Streck, que a Jurisdição Constitucional não é uma
instituição imprescindível ao Estado Democrático de Direito, embora reconheça que,
dependendo de sua forma de atuação, poderá ela mostrar-se compatível ou não
com o regime democrático. Há, no entanto, uma incompatibilidade insuperável
quanto à atuação da Jurisdição Constitucional em regimes ditatoriais, mesmo de
maneira meramente formal ou procedimentalista. De qualquer forma entendemos
que a concepção substancialista é a que melhor atende aos objetivos de
implementação efetiva dos direitos fundamentais e do controle de
constitucionalidade.
A experiência de inúmeras nações tem demonstrado que a Jurisdição
Constitucional passou a ser crescentemente considerada como elemento necessário
à própria definição do Estado de Direito Democrático, sobretudo se confiada a um
tribunal específico (ad hoc)
149
. Portanto, guardadas as especificidades dos vários
países, a Justiça Constitucional é sim condição de possibilidade do Estado
Democrático de Direito, especialmente quando se abandona o conceito de
Constituição no seu sentido meramente formal e programático, e adota-se a feição
substancialista para a referida instituição.
Urge, pois, no Brasil, criar-se o Tribunal Constitucional como forma de
garantir-se a prevalência material da nossa Constituição e implementar a
concretização efetiva dos direitos fundamentais dos indivíduos. Estar-se-á, assim, a
instrumentalizar-se a sociedade brasileira com uma instituição moderna e
comprovadamente eficaz na tutela de tais direitos.
148
MORO, Fernando. Jurisdição constitucional como democracia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
p. 18.
149
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. p. 103
99
5. DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
5.1 A evolução histórica dos direitos fundamentais
A história dos direitos fundamentais, em seu curso natural, desemboca no
surgimento do moderno Estado constitucional, cuja essência e razão de ser residem
no reconhecimento e na proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos
fundamentais do homem.
Por isso, têm razão os que ponderam, como Sarlet
150
, que a história dos
direitos fundamentais, de certa forma, é, também, a história da limitação do poder. A
construção da teoria dos direitos fundamentais sempre esteve ligada, direta ou
indiretamente, à idéia de imposição de limitações ao poder do Estado, que jamais
poderia ter poderes ilimitados sobre os seus cidadãos. Aí então surgem os direitos
fundamentais como limites principais à atuação do Estado.
Por outro lado, os direitos fundamentais dificilmente se dissociam da
democracia, enquanto regime político de cunho popular, o qual, a par da limitação
do poder, garante, pela exigência de visibilidade do exercício deste mesmo poder, a
eficácia daqueles.
Bobbio
151
diz que:
um dos lugares comuns de todos os velhos e novos discursos sobre a
democracia consiste em afirmar que ela é o governo do ‘poder visível’. Que
pertença à ‘natureza da democracia’ o fato de que ‘nada pode permanecer
confinado no espaço do mistério’ é uma frase que nos ocorre ler, com
poucas variantes, todos os dias. Com um aparente jogo de palavras pode-
se definir o governo da democracia como o governo do poder público em
público.
E assim, embora prepondere o aspecto jurídico dos direitos fundamentais,
devem eles também ser avaliados sob o aspecto político, haja vista a indissociável
conexão entre direito e política. O direito, como forma de controle social, nasce da
política, que é a arte do convívio humano em sociedade. Assim, torna-se impossível
e vã qualquer tentativa de despolitizar o direito.
150
SARLET, Ingo Wolfang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
p. 39.
151
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 98.
100
Assevera Dantas
152
que a natureza filosófica dos direitos fundamentais é
de direito natural, já que pertencem eles à essência do homem, não representando
uma dádiva ou benesse de qualquer Organização Política ou ordenamento jurídico-
positivo, que apenas os reconhece ou não.
Existem para Dantas
153
variadas interpretações sobre o conteúdo do
direito natural, especialmente as críticas contundentes feitas pelos positivistas e
pelos historicistas na segunda metade do século XX. Os positivistas combatiam a
concepção de direito natural por ser ela expressão de uma concepção jusnaturalista
que eles rechaçavam, pois não admitiam qualquer valoração jurídica. Já os
historicistas não aceitavam princípios racionais de validez universal e necessária.
Contudo deve distinguir-se a essência do Direito, independente de qualquer
ordenamento jurídico-positivo (como por exemplo, o direito à vida, direito à liberdade
de consciência) da regulamentação do exercício deste direito, que é feita através da
Lei, mas nem sempre de acordo com a essência do Direito e, muitas vezes, apenas
como reflexo de um momento histórico determinado, ou de uma ideologia política.
Assevera mais Dantas
154
que o embasamento filosófico dos direitos fundamentais
deriva de um sentimento básico e permanente de justiça, inerente ao homem, e que
se intitula direito natural.
Contudo o reconhecimento desse sentimento de justiça evoluiu
gradativamente ao longo da História até o seu efetivo acolhimento pelos primeiros
textos jurídicos.
Stern (apud SARLET)
155
, conhecido mestre de Colônia, mostra o devir
histórico dos direitos fundamentais até o seu reconhecimento nas primeiras
constituições escritas, destacando três etapas, que são as seguintes: a) uma pré-
história, que se estende até o século XVI; b) uma fase intermediária, que
corresponde ao período da elaboração da doutrina jusnaturalista e da afirmação dos
direitos naturais do homem; c) a fase de constitucionalização, iniciada em 1776, com
as sucessivas declarações de direitos dos novos Estados americanos.
Pode-se situar a origem dos direitos fundamentais no mundo antigo, no
Código de Hamurábi da Babilônia, que é tido por muitos historiadores como a
152
DANTAS, Ivo. Constituição e Processo. Introdução do Direito Processual Constitucional. Curitiba:
Juruá, 2003. p. 51.
153
Ibid., p. 39.
154
DANTAS, loc. cit.
155
SARLET, op. cit., p. 40.
101
primeira codificação a consagrar um catálogo de direitos fundamentais do homem,
que já naquela época buscavam se impor como forma de limitação do poder
governamental.
No Oriente Médio, os hebreus se destacaram dos demais povos antigos
quanto à temática dos direitos fundamentais. Eles possuíam uma religião monoteísta
e não divinizavam os seus governantes, os quais, embora considerados
representantes de Deus, deviam cumprir a lei mosaica e os Dez Mandamentos do
mesmo modo que o homem comum. O humanismo já era bem acentuado no
judaísmo, servindo, juntamente com a religião, de fundamento para a resolução,
pelos governantes, de problemas concretos, no campo dos direitos fundamentais.
Foi na Grécia Antiga, contudo, que mais se desenvolveu o humanismo
racional, embora o humanismo na Grécia fosse voltado unicamente para os seus
cidadãos, excluídos que eram os estrangeiros, as mulheres e os escravos, como
ensina Galindo
156
.
Lembra Dantas
157
que na Grécia, com a sua Organização Política
Transpersonalista, não se indagava a respeito de direitos do homem, como tal ,
frente ao Poder, já que, lá, a violação da personalidade do cidadão acarretava a
reprovação da polis por força de um julgamento ético e político, que, porém não era
juridicamente institucionalizado. Tal ordem de coisas derivava da concepção de
Estado reinante entre os gregos, que não admitia ao indivíduo direitos frente ao
Poder Público, já que o Estado era concebido como a cidade individual auto-
suficiente.
Contudo, apesar dessa circunstância, foi grande o avanço dos gregos no
pensamento político e filosófico acerca dos direitos fundamentais, principalmente a
respeito da liberdade e da igualdade do homem. A Grécia se notabilizou pela
previsão da participação política dos cidadão, que se concretizou na famosa
democracia direta de Péricles, ainda que com exclusões significativas do corpo
político. Aristóteles, no âmbito da ciência política, tratou da democracia e dos direitos
fundamentais de forma mais objetiva. Sófocles defendeu a existência de um direito
natural superior às leis escritas.
156
GALINDO, BRUNO. Direitos Fundamentais. Análise de sua concretização Constitucional.Curitiba:
Juruá, 2004. p 34.
157
DANTAS, Ivo. Constituição e Processo. Introdução do Direito Processual Constitucional. Curitiba:
Juruá, 2003. p. 43.
102
Os gregos preocuparam-se com a racionalização do poder político, tendo
em vista a sua limitação, para tornar eficaz a proteção dos direitos fundamentais dos
cidadãos atenienses. Atenas é considerada o berço do pensamento racional na
Antigüidade, tendo ainda influenciado a cultura e as instituições romanas.
Roma possuía complexos mecanismos jurídicos e políticos para garantir
os direitos fundamentais face ao arbítrio do Estado. Em Roma os direitos
fundamentais foram conquistados à base de forte pressão popular, mas, à
semelhança do que ocorria na Grécia, eram restritos aos cidadãos romanos,
embora houvesse um certo nivelamento entre a plebe e o patriciado, como se dava
na Lei das Doze Tábuas.
No final da Antiguidade e por toda a Idade Média, com o advento do
Cristianismo, a noção de direitos fundamentais foi reforçada no plano filosófico e
espiritual, mas ainda submetida à religião cristã, passando o homem, como destaca
Dantas
158
, a ser olhado como imagem e semelhança de Deus.
Foi ainda no período medieval que surgiu o embrião da democracia
moderna, embasada na concepção de direitos fundamentais do homem, com a
promulgação da Magna Charta Libertatum de 1215. Constituiu-se tal documento no
marco medieval da limitação do poder político através do respeito a alguns direitos
fundamentais, ainda que restritos aos senhores feudais.
Como lembra Dantas
159
, a Inglaterra deu um passo importante no sentido
da limitação ao exercício do poder com a Magna Carta imposta pelos barões ao Rei
João Sem-Terra, mesmo observando-se que as liberdades ali ventiladas eram muito
mais privilégios em favor de uma camada social, o baronato, do que mesmo
expressão de liberdade, como concebida no mundo moderno. Nos séculos XVII e
XVIII vários documentos ingleses vieram completar a Magna Carta, podendo-se citar
a Petition od Rights, o Habeas Corpus Act e o Bill of Rights. Outros importantes
documentos de proteção dos direitos fundamentais foram a Constituição de Rhode
Island, de 1663, onde era consagrada a liberdade de religião, que nem a própria
Inglaterra possuía, e a Constituição dos Estados Unidos da América de 1787, aos
quais, em 1789, juntou-se a Declaração de Direitos e Garantias Individuais. Nesse
158
DANTAS, Ivo. Constituão e processo: introdução do direito processual constitucional. Curitiba: Juruá,
2003. p.44.
159
DANTAS, op. cit., p. 44-45.
103
mesmo último ano, a Assembléia Constituinte da França aprovou, no auge da
Revolução, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
160
A proteção dos direitos fundamentais foi uma das principais bandeiras do
Estado Liberal, que nasceu das idéias formuladas no período absolutista, a partir
das teorias formuladas pelos pensadores iluministas que se opunham ao estado
absolutista. Locke na Inglaterra, Rousseau e Montesquieu na França, e Kant na
Alemanha foram os idealizadores intelectuais desse novo Estado, influenciando as
revoluções liberalistas inglesa e francesa e tamm a independência norte-
americana.
Como realça Dantas
161
, na Idade Contemporânea, no âmbito ainda dos
clássicos e tradicionais direitos e garantias individuais, o constitucionalismo acolhe
os chamados direitos sociais (nos quais se incluem os direitos do trabalhador), de
conteúdo econômico, que foram introduzidos na Constituição Mexicana de 1917, na
Constituição Weimariana de 1919, e nas Constituições da Polônia e da Iugoslávia de
1921. Contudo, lembra ainda o autor
162
que a Constituição Francesa de 1848 já
consagrara alguns princípios de caráter social, enfatizando que esta elevação dos
elementos social e econômico ao nível constitucional é produto de um fato histórico,
qual seja, a passagem da Democracia Política para a Democracia Social, que deu
origem a uma nova ideologia constitucional. Os precedentes desta nova ideologia
podem ser encontrados no Evangelho, em Marx e na Doutrina Social da Igreja, estes
últimos principalmente por meio das mais recentes encíclicas papais.
Somente em meados do século XIX, com a transformação da ordem
liberal, foi que realmente surgiu a preocupação com os direitos sociais na concepção
de exigências mínimas perante o Estado.
José Alfredo de Oliveira Baracho (apud Dantas)
163
resume assim a
importante mudança social:
No constitucionalismo de entreguerras ocorre a confluência de tendências
socialistas, liberais, cristãs, com influências nas Constituições. Onde já
comam as técnicas planificadoras. Na descrição dessas modificões,
Pablo Lucas Verdu ressalta a configuração do Estado de Direito, como
Estado social de direito. Sente-se a necessidade de constitucionalização
das realidades econômico-sociais. Com as constituições da Primeira Guerra
Mundial e após a Segunda Guerra, as Constituições européias, antecedidas
160
DANTAS, Ivo. Constituão e processo: introdução do direito processual constitucional. Curitiba: Juruá,
2003. p. 45.
161
Ibid., p. 45-46.
162
Ibid., p. 46.
163
DANTAS, loc. cit.
104
pela Constituição do México, de 1917, consagram os direitos econômicos e
sociais (trabalho, seguro social, função social da propriedade,
nacionalização, empresa pública).
Portanto, como reconhece Dantas
164
, não se pode negar que foi com a
Constituição Mexicana de 1917, com as Constituições da Rússia (1918-1923 e 1925-
1936), com a Constituição de Weimar (Alemanha, 1919), com a Constituição da
Espanha (1931), com a Constituição da Itália (1947) e com as Constituições
Francesas de 1946 e 1958, dentre outras, que se deu maior destaque à matéria
social. No Brasil, a Constituição de 1824 e a Reforma de 1926 ao Texto Magno de
1891 tamm assinalam precedentes, embora singelos, no trato dos direitos sociais,
que foram incorporados à Constituição a partir de 1934.
Segundo Dantas
165
“os direitos sociais fizeram nascer a consciência de
que, tão importante quanto salvaguardar o indivíduo, era proteger a instituição”.
O brutal desrespeito aos direitos humanos praticado durante a Segunda
Guerra Mundial pelo regime nazista e pelos demais regimes totalitários da época
levou a uma maior conscientização em torno dos direitos inerentes à pessoa
humana. Por isso foi elaborada em 1948 a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, considerada a Carta Mundial dos direitos humanos, com o objetivo de
torná-los fundamentais nas esferas internacional e constitucional dos Estados.
Através de tal declaração, foram os Estados pressionados, ainda que
apenas moral e eticamente, a respeitar e garantir, no âmbito de suas respectivas
ordens constitucionais, tais direitos fundamentais. A referida Carta da ONU contém
direitos de caráter individual, social, econômico, coletivo e difuso e traduz uma
inspiração jusfilosófica kantiana, quase um século e meio depois da morte do filósofo
de Königsberg.
Ainda hoje a diversidade cultural da humanidade implica na dificuldade de
se obter um consenso sobre os direitos humanos, impedindo a uniformidade no seu
reconhecimento universal e até mesmo a sua observância básica por determinadas
nações.
Recentemente o Jornal El Pais, da Espanha, em sua edição de oito (08)
de abril de 2005, trazendo a notícia de que Kofi Annan, o Secretário-Geral da
Organização das Nações Unidas (ONU), em discurso proferido na quinta-feira
164
Ibid., p. 49.
165
DANTAS, loc. cit.
105
anterior, 07 de abril (décimo primeiro aniversário do genocídio de Ruanda), diante
do plenário da Comissão de Direitos Humanos, reunida em Genebra, pediu a seus
membros “uma clara reforma da maquinaria das Nações Unidas em relação aos
direitos humanos” afirmando que: “Chegamos a um ponto em que a credibilidade
decrescente da comissão representa uma sombra para a reputação da organização
como um todo.”
Reconhecendo o fracasso da ONU na defesa dos direitos humanos,
lembrou o Secretário Geral da ONU, em seu pronunciamento, o fracasso coletivo na
proteção de centenas de milhares de pessoas indefesas e pediu uma resolução
decisiva para que uma tal negação da humanidade nunca possa voltar a acontecer.
Mencionou ainda a atual catástrofe de Darfur, no Sudão, onde mais de dois milhões
de pessoas se encontram deslocadas e outras dezenas de milhares morreram entre
atrozes sofrimentos. Para as vítimas de Ruanda ou Darfur, a resposta das Nações
Unidas chegou tarde demais. Defendeu mais Kofi Annan que o Conselho de Direitos
Humanos fique em pé de igualdade com o Conselho de Segurança ou o Conselho
Econômico e Social, declarando que a era das declarações passou, e agora é o
momento da implementação de medidas concretas.
Esta notícia nos mostra como, em pleno século XXI, a par de toda a gama
de teorias elaboradas sobre os direitos humanos, ainda são eles objeto de violações
graves, que suscitam pronunciamentos da envergadura do feito pelo Secretário
Geral da ONU, mostrando a necessidade urgente da tomada de posicionamentos
mais contundentes a favor deles, especialmente a favor do ser humano,
abandonado aos efeitos nefastos das políticas econômicas globalizantes e
neoliberais das nações poderosas.
Mikhail Gorbachev
166
, último líder da União Soviética, hoje à frente da
ONG Green Cross, denuncia que a reversão da pobreza extrema em que vivem as
populações de vários países da África encontra um sério obstáculo na prática
desenvolvida pelas nações mais ricas do mundo, que gastam centenas de bilhões
de dólares para travar uma guerra sem reservar sequer 10 bilhões de dólares para
combater a pobreza. Lembrou ainda o ex-líder soviético, que na ECO-92, que
representou o encontro de Chefes de Estado ocorrido no Rio de Janeiro em 1992, as
nações do mundo reafirmaram seu compromisso de investirem uma porcentagem do
PIB para combater a pobreza no mundo, mas apenas só três ou quatro o fizeram.
166
Revista Veja, ano 38, . 35, página 65, ago. 2005. (Seção de auto-retrato).
106
Lembra ainda que, há cinco anos, na ONU, formulou-se um acordo para combater a
pobreza, promover a preservação do meio ambiente e beneficiar a educação nos
países carentes, sendo que até agora muito pouco foi feito para reverter o quadro
mundial. O certo é que a luta contra a pobreza exige uma pressão incessante da
opinião pública, das instituições e da sociedade civil. Tal afirmativa demonstra a
natureza de generatividade dos direitos humanos fundamentais que precisam ser
reconquistados e renovados a todo momento, reafirmados e preservados como
forma de centralizar-se no ser humano a essência dos dogmas econômico-sociais
das políticas públicas dos Estados, visando ao desenvolvimento das nações que
possa ser sustentado por uma doutrina que demonstre plena efetividade na proteção
dos indivíduos e na implementação da justiça social.
Como diz Bobbio
167
, a efetivação de uma maior proteção dos direitos do
homem está ligada ao desenvolvimento global da civilização humana. Não se pode
falar em concretização dos direitos humanos sem mencionar os dois grandes
problemas do nosso tempo, que são as guerras e a miséria, nem abstrairmo-nos do
absurdo contraste entre o excesso de potência que criou condições para uma guerra
exterminadora e o excesso de impotência que condena grandes massas humanas à
fome. Seguindo a lição do famoso pensador italiano, apenas nesse contexto de
realismo podemos nos aproximar do problema dos direitos humanos, que devem ser
avaliados segundo uma posição ponderada que nem nos torne pessimistas a ponto
de nos abandonarmos ao desespero, nem tão otimistas a ponto de parecermos
presunçosos. Concluindo, assevera que:
A quem pretenda fazer um exame despreconceituoso do desenvolvimento
dos direitos humanos depois da Segunda Guerra Mundial, aconselharia
este salutar exercício: ler a Declaração Universal e depois olhar em torno
de si. Será obrigado a reconhecer que, apesar das antecipações
iluminadas dos filósofos, das corajosas formulações dos juristas, dos
esforços dos políticos de boa vontade, o caminho a percorrer é ainda
longo. E ele terá a impressão de que a história humana, embora velha de
milênios, quando comparada às enormes tarefas que estão diante de nós,
talvez tenha apenas comado.
5.2 A terminologia utilizada para designar os direitos fundamentais
Há uma certa confusão quanto à nomenclatura utilizada para designar os
direitos da pessoa humana e do cidadão. Utilizam-se, indistintamente, as expressões
167
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 45-46.
107
direitos humanos, direitos fundamentais, direitos humanos fundamentais, direitos
fundamentais da pessoa humana, direitos do homem, como se todas elas tivessem
um mesmo significado. Na doutrina varia o entendimento dos autores.
Canotilho
168
afirma que as expressões direitos do homem e direitos
fundamentais são freqüentemente utilizadas como sinônimas. Distingue cada uma
delas, entendendo que direitos do homemo direitos válidos para todos os povos e
em todos os tempos, que assumem uma dimensão jusnaturalista e universal. Já os
direitos fundamentais são os direitos do homem garantidos juridicamente e limitados
no espaço e no tempo. Os direitos do homem decorrem da própria natureza
humana e por isso assumem um caráter inviolável, intemporal e universal. Os
direitos fundamentais são aqueles objetivamente vigentes numa dada ordem
jurídica. No âmbito dos direitos fundamentais há aqueles que são consagrados na
constituição e só pelo fato de terem obtido uma positivação constitucional merecem
a classificação de direitos constitucionais fundamentais, mas cujo conteúdo não
pode ser considerado materialmente fundamental. Outros, contudo, além de
revestirem a forma constitucional, são também materialmente fundamentais quanto à
sua natureza intrínseca, sendo, pois, direitos material e formalmente constitucionais
Sarlet
169
distingue, de forma didática, direitos do homem, direitos
humanos e direitos fundamentais. Por direitos do homem entende aqueles direitos
naturais não, ou ainda não positivados, de conotação marcadamente jusnaturalista.
A utilização da expressão direitos do homem prende-se ao fato de se tornar
necessária a demarcação precisa entre a fase que precedeu o reconhecimento
destes pelo direito positivo interno e internacional e que, por isso, pode ser
designada como uma pré-história dos direitos fundamentais.
Diferencia tamm os direitos humanos dos direitos fundamentais,
embora comumente sejam utilizados como sinônimos. Explica que a expressão
direitos humanos guardaria relação com os documentos de direito internacional,
por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como
tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e
que, portanto, aspiram à validade universal para todos os povos e em todos os
tempos, revelando, por isso, um caráter supranacional, ou seja, internacional. Os
168
CANOTIHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituão.Coimbra: Almedina, 2002. p. 393.
169
SARLET. Ingo Wolfang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
p. 34.
108
direitos humanosm contornos mais amplos e imprecisos, considerando como
tais aqueles direitos do homem positivados na esfera do direito internacional.
Entende não ser acolhível a equiparação entre direitos naturais e direitos humanos,
pois a positivação em normas de direito internacional já revelou a dimensão histórica
e relativa dos direitos humanos, que assim se desprenderam da idéia de um direito
natural. Por fim, entende que o termo direitos fundamentais aplica-se àqueles
direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional
positivo de determinado Estado.
Os direitos fundamentais possuem sentido mais preciso e restrito, na
medida em que constituem o conjunto de direitos e liberdades institucionalmente
reconhecidos e garantidos pelo direito positivo de determinado Estado. Consistem os
direitos fundamentais, portanto, em direitos delimitados espacial e temporalmente,
devendo-se a sua denominação ao seu caráter básico e fundamentador do sistema
jurídico do Estado de Direito.
Para Bobbio
170
, os direitos humanos são o produto, não da natureza, mas
da civilização humana e, enquanto direitos históricos, eles são mutáveis e
suscetíveis de transformação e ampliação.
Na esteira de Villalon, diz Sarlet
171
que os direitos fundamentais nascem e
acabam com as Constituições, resultando da confluência entre os direitos naturais
do homem, tais como reconhecidos e elaborados pela doutrina jusnaturalista dos
séculos XVII e XVIII com a própria idéia de Constituição.
Galindo
172
assevera que as expressões direitos do homem e direitos
humanosm o mesmo significado de direitos inerentes a todo e qualquer ser
humano, pois quando se fala em direitos do homem quer-se referir ao homem no
sentido de pessoa humana, aí abrangendo homem e mulher. Entende, porém, que
são direitos fundamentais tanto os direitos positivados na esfera estatal como na
esfera internacional. Os primeiros abrangem apenas os cidadãos de um
determinando Estado enquanto os últimos alcançam a Comunidade Internacional,
podendo ser, então, considerados, por isso, respectivamente, direitos
fundamentais estatais e direitos fundamentais internacionais. E assim os
170
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 32, 42.
171
SARLET, Ingo Wolfang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre,: Livraria do Advogado, 2003.
p. 35.
172
GALINDO, Bruno. Direitos Fundamentais. Análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Jur
Editora, p. 49.
109
direitos inerentes ao ser humano, positivados ou não, são direitos do homem ou
direitos humanos, indistintamente.
Preferimos, pela sua precisão e simplicidade terminológica, o
entendimento adotado por Sarlet para as expressões direitos do homem ou direitos
humanos e direitos fundamentais.
5.3. A natureza dos direitos fundamentais
Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos
históricos como qualquer direito, ou seja, nascidos em certas circunstâncias,
caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e
nascidos de maneira gradual, e não todos de uma vez (generatividade), nem de uma
única vez por todas (garantismo), já que os direitos fundamentais surgem e evoluem
segundo o grau de socialização do ser humano, como aduz. Bobbio
173
.
Tal afirmação é confirmada pelas seguidas batalhas da humanidade em
busca da afirmação dos direitos fundamentais do homem, contrariando o ingênuo
pensamento, segundo o qual ditos direitos fundamentais seriam direitos naturais, ou
seja, decorrentes da natureza humana.
São eles, ao contrário, fruto de uma longa história de lutas sangrentas
que ainda continuam nos dias de hoje, bastando lembrar-nos das comunidades em
que se travam perseguições religiosas e irracionais morticínios de populações
inteiras, até mesmo em países ditos democráticos, como a Índia.
Os direitos fundamentais nascem, modificam-se e desaparecem. Eles
apareceram com a revolução burguesa e evoluíram e ampliaram-se com o correr
dos tempos. Sua historicidade rechaça toda fundamentação baseada no direito
natural, na essência do homem ou na natureza das coisas, tamm na lição de
Silva
174
.
A partir da modernidade os direitos fundamentais passaram a ser
positivados nos textos constitucionais, retratando formidável marco da história da
humanidade: o reconhecimento racional de aspectos básicos universalmente
173
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 5
174
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 181.
110
considerados necessários à realização do ser humano, dos quais sobressai a
dignidade humana
175
.
Pela primeira vez, a lógica das necessidades coletivas cede lugar às
prioridades individuais. A relação entre Estado e indivíduo inverte sua polaridade,
passando este a ser servido pelo primeiro com o fito de atender às suas
necessidades básicas decorrentes da sua dignidade e essência humana.
Segundo Bobbio
176
, no plano histórico, a afirmação dos direitos do
homem deriva de uma radical inversão de perspectiva, característica da formação do
Estado Moderno, na representação da relação política, aquela que envolve o Estado
e o cidadão ou o soberano e o súdito. Tal relação é encarada cada vez mais do
ponto de vista dos direitos do cidadão, não mais do súdito, e também não mais do
ponto de vista dos direitos do soberano, mas de acordo com a visão individualista da
sociedade democrática.
Cruz
177
tamm reconhece a importância da mudança de concepção
sobre a inserção do homem na sociedade operada pelo humanismo renascentista e
pelo iluminismo francês, que adotavam uma postura antropocêntrica, fazendo com
que o respeito aos direitos humanos tomasse o lugar dos imperativos de
sobrevivência predominantes na pré-história e dos direitos divinizatórios dos
monarcas prevalecentes na antigüidade como substrato do poder político. O homem
passa a monopolizar a atenção e a atividade estatal com o propósito de concreção
dos seus direitos fundamentais.
Segundo esta concepção, para compreender a sociedade é preciso partir
de baixo, ou seja, dos indivíduos que a compõem, em oposição à concepção
orgânica tradicional, para a qual a sociedade, como um todo, vem antes do
indivíduo. A alteração desta perspectiva, que a partir de então se tornou irreversível,
foi provocada no início da era moderna, principalmente pelas guerras de religião,
através das quais se foi afirmando o direito de resistência à opressão, o qual
pressupunha um direito ainda mais substancial e originário, o direito do indivíduo a
não ser oprimido, ou seja, a gozar de algumas liberdades fundamentais:
fundamentais porque naturais e naturais porque cabem ao homem enquanto tal e
175
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Processo constitucional e a efetividade dos direitos fundamentais. In: SAMPAIO, José
Adércio Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Hermenêutica e Jurisdição Constitucional. Belo Horizone: Del Rey,
2001, p. 203.
176
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1994. p. 4.
177
CRUZ, , op. cit, p. 204.
111
não dependem do beneplácito do soberano. Exatamente por isso, a primeira
geração de direitos fundamentais se baseia na primeira palavra de tal ideário:
liberdade.
Em torno do estudo da natureza dos direitos fundamentais surge o debate
em torno das suas múltiplas dimensões. Essa multiplicidade constitui uma
característica do próprio modelo epistemológico mais adequado para estudá-los.
Esse modelo é chamado de tridimensional, sendo considerado uma tentativa de
conciliação entre as três correntes do pensamento jurídico: o positivismo
normativista, o positivismo sociológico ou realismo, e o jusnaturalismo.
178
Como afirma Guerra Filho
179
, a primeira dimensão em que se devem
realizar os estudos jurídicos é chamada analítica, que é aquela onde se burila o
conceito a ser empregado na investigação, distinguindo as diversas figuras e
institutos jurídicos situados em nosso campo de estudo. A segunda dimensão é
chamada empírica e tem por objeto de estudo certas manifestações jurídicas
concretas do direito, tal como surgem não apenas nas normas, mas tamm, e
especialmente, na jurisprudência. A terceira dimensão é a normativa, assim
considerada aquela em que o estudo dos direitos fundamentais assume o papel
prático e deontológico que lhe está reservado no campo do direito, tornando-se o
que, com mais propriedade, se chamaria de doutrina, por ser uma manifestação de
poder, apoiada em um saber com o compromisso de complementar e ampliar, de
modo compatível com seus matizes ideológicos, a ordem jurídica estudada.
Estudam-se também os direitos fundamentais segundo uma outra ótica
que os agrupa e designa como sendo de primeira, segunda e terceira dimensões,
havendo ainda os novos e mais recentes direitos fundamentais de quarta geração.
Essa classificação se baseia na observância das mudanças históricas efetuadas no
entendimento desses direitos. Na concepção de Bonavides
180
, o vocábulo dimensão
substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo geração. Explica que este
último induz a ocorrência apenas de uma sucessão cronológica e uma suposta
caducidade dos direitos das gerações anteriores, o que não é verdade. Acrescenta
que os direitos da primeira geração, direitos individuais, os da segunda, direitos
sociais, e os da terceira, direitos ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz e à
178
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá,
2004. p. 55.
179
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da constituição. São Paulo: C. Bastos, 2002. p. 98.
180
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 571-572.
112
fraternidade permanecem eficazes, são infra-estruturais, formando a pirâmide cujo
ápice é o direito à democracia, que consubstancia o coroamento daquela
globalização política para a qual parece caminhar a humanidade.
Constata-se que os direitos humanos nascem quando o aumento do
poder do homem sobre o homem (que acompanha inevitavelmente o progresso
técnico e que se traduz no progresso da capacidade do homem de dominar a
natureza e os outros homens) ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo ou
permite novos remédios para as suas novas necessidades e indigências. As
ameaças são enfrentadas através de demandas de limitações de poder e os novos
remédios são providenciados de modo que o mesmo poder intervenha de modo
protetor. Às ameaças correspondem os direitos de liberdade, ou uma abstenção do
Estado, enquanto aos novs remédios demandados correspondem os direitos sociais
que exigem uma ação positiva do Estado. Essa é, pois, a dinâmica dos direitos
fundamentais que se alicerça, como se vê, na natureza histórica dos mesmos.
5.4 A doutrina dos direitos fundamentais
Foi a busca inicial e incessante do homem pela realização de seus
direitos básicos de vida, liberdade e propriedade que proporcionou a elaboração de
uma doutrina dos direitos fundamentais. Cristalizaram-se eles, na atualidade, em
elementos de importância vital na constituição de todo Estado Democrático de
Direito. Os direitos fundamentais constituem, assim, os elos jurídicos e
indispensáveis para tornar a Constituição uma força viva, real, dinâmica, e rente com
a realidade a controlar e os valores a concretizar. Atuam eles frente às forças
sociais e econômicas indomáveis que formam, no contexto das Constituições
formalmente rígidas, aquela corrente subterrânea e invisível cujas águas o
formalismo torna-se impotente para represar.
Os direitos fundamentais têm por objetivo criar e manter os pressupostos
elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana, como leciona Hesse
apud Bonavides
181
. Ao lado dessa acepção lata que qualifica os direitos
fundamentais, sob o aspecto material, e que prevalece na atualidade, há uma outra
acepção, sob o aspecto formal, mais restrita, específica e normativa, a qual entende
serem os direitos fundamentais aqueles que o direito vigente qualifica como tais.
181
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 560.
113
Por sua vez, Schmitt (1954 apud BONAVIDES)
182
estabeleceu dois
critérios formais de caracterização dos direitos fundamentais: pelo primeiro,
designam-se como direitos fundamentais todos os direitos ou garantias nomeados e
especificados no instrumento constitucional; pelo segundo são direitos fundamentais
todos aqueles direitos que receberam da Constituição um grau mais elevado de
garantia ou de segurança, tornando-se imutáveis ou, pelo menos, tendo a sua
alteração dificultada, como, por exemplo, os direitos alteráveis unicamente mediante
lei de emenda à Constituição.
Do ponto de vista material, os direitos fundamentais, variam conforme a
ideologia, a modalidade de Estado, a espécie de valores e princípios que a
Constituição consagra. Em suma, cada Estado teria os seus direitos fundamentais
específicos. Foi tal concepção que legitimou o nazismo e todas as atrocidades
cometidas em seu nome na Alemanha, em plena vigência da Carta Magna do
Welfare State de 1919.
Bonavides
183
, contudo, diz que, ao vincular os direitos fundamentais
propriamente ditos, ou seja, os direitos materiais, a uma concepção do Estado de
Direito Liberal, sem levar em conta a possibilidade de fazer-se, como se fez, desses
direitos, primeiro uma abstração e, a seguir, uma concretização, independentemente
da modalidade de Estado e ideologia, de modo a torná-los compatíveis com o
sentido de sua universalidade, retratou Schmitt, com inteira precisão, o caráter de
tais direitos tão somente enquanto direitos de primeira geração.
O sentido de universalidade dos direitos fundamentais à liberdade e à
dignidade humana, enquanto valores históricos e filosóficos, revela o significado de
universalidade inerente a esses direitos como ideal da pessoa humana. Tal
universalidade manifestou-se pela primeira vez, descoberta pelo racionalismo
francês da Revolução, por ensejo da célebre Declaração dos Direitos do Homem de
1789. As declarações de direitos inglesas, norte-americanas e francesas tiveram
uma importância muito grande na consagração dos direitos humanos como
fundamentais. Até então eles existiam apenas como valores históricos e filosóficos.
Das três, a célebre Declaração dos Direitos do Homem de 1789 destaca-se, pelo
seu conteúdo universalista, como tendo fundamental importância na afirmação dos
direitos fundamentais.
182
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 564.
183
BONAVIDES, op. cit., p. 561.
114
A polêmica entre Boutmy e Jellinek, no início do século XX, demonstrou
que as declarações anteriores dos ingleses e norte-americanos ganhavam em
concretude, mas perdiam em abrangência, pois, ora se dirigiam a uma camada
privilegiada da sociedade (no caso do ingleses, a Magna Charta Libertatum, de
1215, privilegiava apenas os barões feudais), ora a um povo ou sociedade libertados
politicamente (caso dos Estados Unidos da América), enquanto a Declaração
francesa de 1789 destinava-se ao gênero humano. A universalidade dos direitos
fundamentais enunciados na Declaração de 1789 recebeu a seguinte justificativa
lapidar de Boutmy: “Foi para ensinar o mundo que os franceses escreveram; foi para
o proveito e comodidade de seus concidadãos que os americanos redigiram suas
Declarações.
184
Estabelecidos os postulados da generalidade e universalidade, restava
agora inserir na ordem jurídica de cada ordenamento político os direitos e conteúdos
materiais referentes a ditos postulados. Os direitos fundamentais passaram, na
ordem institucional, a manifestar-se em três gerações sucessivas, que se traduzem
num processo cumulativo e qualitativo, o qual, segundo tudo faz prever, tem por
bússola uma nova universalidade: a universalidade material e concreta, em
substituição à universalidade abstrata e, de certo modo metafísica, da concepção
dos mesmos contida no jusnaturalismo do século XVIII.
O lema revolucionário francês (Liberdade, Igualdade e Fraternidade) foi
profético e revelou, em três princípios cardeais, todo o conteúdo possível dos direitos
fundamentais, profetizando até mesmo a seqüência histórica de sua gradativa
institucionalização: liberdade, igualdade e fraternidade, que representam,
respectivamente, os direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira
gerações
185
.
Delgado
186
, fazendo um estudo acerca das teorias modernas sobre
direitos fundamentais, enuncia as seguintes: teoria liberal, teoria da ordem de
valores, teoria social, teoria institucional, teoria democrática funcional e teoria
socialista dos direitos fundamentais. A teoria liberal, funda-se na concepção de
Estado Liberal, concebendo os direitos fundamentais como direitos do particular
184
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 562.
185
BONAVIDES, loc. cit.
186
DELGADO. José Augusto. Os novos direitos de terceira geração (direitos humanos e ambientais). In:
MARTINS, Ives Gandra da Silva; CAMPOS, Diogo Leite de (Coord.). O Direito contemporâneo em Portugal
e no Brasil.. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 477.
115
perante o Estado, consubstanciando, essencialmente, direitos de autonomia e de
defesa.
Já a teoria da ordem dos valores considera os direitos fundamentais como
sendo valores de caráter objetivo e não como direitos ou pretensões subjetivas.
A teoria institucional apresenta linha aproximada da teoria da ordem dos
valores, já que também nega aos direitos fundamentais uma dimensão
exclusivamente subjetiva. Contudo, dita teoria, ao contrário das teorias
essencialistas do valor, não procura uma ordem objetiva e jusnaturalística espírito-
cultural ou fenomenologicamente captada, mas sim o quadro (no sentido de
instituição) definidor e ordenador do sentido, conteúdo e condições de exercício dos
direitos fundamentais. Por força dessa teoria, os direitos fundamentais assumem
uma dimensão funcional na medida em que aos seus titulares cabe o dever de
participar para a realização dessa idéia. Como menciona Canotilho
187
a teoria da
instituição tem o mérito de ter salientado a dimensão objetiva institucional dos
direitos fundamentais, embora o critério de ponderação de bens utilizado por ela
conduza a uma perigosa relativização dos direitos fundamentais, a par de não
oferecer clareza e segurança no caso de conflitos de bens constitucionais.
A teoria social visualiza os direitos fundamentais em três dimensões: a
dimensão individual, a dimensão institucional e a dimensão processual,
considerando que a liberdade, a par da sua dimensão subjetiva, apresente tamm
uma dimensão social.
A teoria democrático-funcional acentua particularmente o momento
teleológico-funcional dos direitos fundamentais no processo político-democrático. Ela
determina uma despersonalização-funcionalização dos direitos para se tentar
salvaguardar a própria ordem que os reconhece, conduzindo a soluções censuráveis
como a perda ou suspensão de tais direitos, quando de sua utilização abusiva, tal
como consagra o art. 18 da Constituição de Bonn (ex: uso não conforme ao
pretenso princípio democrático).
A teoria socialista pretende adotar uma concepção originária dos direitos
fundamentais que implicaria em uma ruptura com as concepções liberais, já que, a
criação das condições materiais possibilitadoras do livre desabrochar dos direitos
fundamentais exige ou pressupõe a apropriação coletiva dos meios de produção e a
187
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2003. p.
1382.
116
gestão coletiva da economia. A teoria socialista, oposta à chamada concepção
liberal burguesa, tem de ser analisada segundo uma pré-compreensão antropológica
marxista. Para Canotilho
188
o corte antropológico que a teoria socialista operou em
relação à teoria tradicional dos direitos do homem conduziu às suas deficiências
principais consubstanciadas na funcionalização extrema dos direitos fundamentais,
na minimização da irredutível dimensão subjetiva e na sujeição dos direitos à
existência de condições materiais, econômicas e sociais, com manifesto desprezo
pelas garantias jurídicas.
Os direitos fundamentais, contudo, não podem ser considerados
unicamente sob a dimensão subjetiva nem com a única função de proteger a esfera
livre e individual do cidadão. Deve-se reconhecer aos direitos fundamentais uma
multifuncionalidade, acentuando, assim, todas e cada uma das funções que as
teorias dos direitos fundamentais destacam.
5.4.1 Os direitos fundamentais de primeira, segunda, terceira e quarta
dimensão
Os direitos da primeira geração são os direitos da liberdade, os primeiros
a constarem dos instrumentos normativos constitucionais, quais sejam, os direitos
civis e políticos, que, em grande parte, correspondem, por um prisma histórico,
àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente.
Os direitos de primeira geração ou direitos da liberdade, direitos civis e
políticos, já se consolidaram em sua projeção de universalidade formal, não havendo
Constituição digna desse nome que não os consagre e reconheça em toda a sua
extensão. Eles têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se
como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu
traço mais característico. São, enfim, direitos de resistência ou de oposição perante
o Estado. São direitos que valorizam primeiro o homem-singular, o homem das
liberdades abstratas, o homem da sociedade mecanicista que compõe a chamada
sociedade civil, como nos diz Bonavides
189
.
188
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2002. p.
1386.
189
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13. ed. o Paulo: Malheiros, 2003, p. 564
117
No Estado Liberal, em que se consagraram os direitos de primeira
dimensão, em sendo a igualdade meramente formal, eram encobertas as
desigualdades de fato, terminando a apregoada liberdade individual, como
observado por Bismarck apud Bonavides
190
, numa real liberdade de oprimir os
fracos, restando a estes afinal de contas tão somente a liberdade de morrer de fome.
O livre mercado não solucionou os problemas econômicos e sociais das classes
menos favorecidas, antes os agravou com a industrialização.
Os direitos de segunda geração dominam o século XX, do mesmo modo
como os direitos da primeira geração dominaram o século XIX. São os direitos
sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos coletivos ou de coletividades,
introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado Social, depois que
surgiram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal do século XX.
Cita Moraes
191
que o dominicano francês Lacordaire bem sintetizou as
condições sócio-econômicas vigentes no Estado Liberal, decorrentes da liberdade
de contratar, um dos dogmas da Revolução Francesa, asseverando que:
Entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, entre o senhor e o servidor , é
a liberdade que opirme, e é a lei que liberta.
Para corrigir tais distorções o Estado Social veio com uma proposta de
realização dos direitos fundamentais econômicos e sociais de segunda dimensão. O
Estado não mais seria abstencionista, mas interviria no plano socioeconômico para
garantir aos desprivilegiados o direito de participar do bem-estar social, de usufruir
de melhores condições de vida e dos mencionados direitos de segunda dimensão,
que seriam o direito de crédito do indivíduo em relação à coletividade, ou, em outros
termos, direitos ao acesso e utilização de prestações estatais. Os direitos de
segunda dimensão são os direitos ao trabalho, à educação, à saúde, à moradia, ao
lazer, à assistência e previdência social, direitos que deveriam ser implementados
pelo Estado Social, como forma de igualar substancialmente a grande desigualdade
social vigente no Estado Liberal. A realização de tais direitos implica uma
responsabilidade ativa por parte do Estado na implementação de políticas públicas
que visem a alcançar dita realização. A responsabilidade do Estado, contudo,
segundo alguns doutrinadores, ficaria condicionada à existência de meios e recursos
190
Id. Do estado liberal ao estado social. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 61.
191
MORAES FILHO, Evaristo de. Introdução ao direito do trabalho. São Paulo: LTR, 1978. p. 33.
118
existentes no orçamento do Estado para realizar ditos direitos sociais e econômicos,
salvo algumas exceções (liberdade sindical e profissional, por exemplo). Isto porque
entendia-se que ditos direitos, não são auto-executáveis (self-executing),
dependendo da ação do Estado, razão pela qual apresentam um acentuado ficit
de exeqüibilidade e justiciabilidade, como afirma Galindo
192
.
Em razão de tais circunstâncias, os direitos fundamentais de segunda
dimensão teriam uma força normativa duvidosa, já que passaram eles a ser
estabelecidos em normas programáticas, destituídas de eficácia imediata, e
representando, antes, um compromisso do Estado com a possível realização dos
programas socioeconômicos destinados a realizar tais direitos.
Contudo, para corrigir esse caráter meramente programático dos direitos
fundamentais sociais e econômicos, a maioria das constituições modernas, como a
Constituição Brasileira de 1988, consagra o preceito da aplicabilidade imediata dos
direitos fundamentais, inclusive os sociais de segunda geração.
Os direitos fundamentais de segunda geração são os que mais sofrem da
falta de eficácia social, em razão não só da dificuldade de concretização no plano
formal, por força do modelo de produção do direito inadequado às soluções de
disputas interindividuais, como tamm da dificuldade operacional da obtenção de
aplicação adequada de meios e recursos necessários à plena efetividade dos
mesmos. Os direitos fundamentais sociais, ou de segunda dimensão, apresentam
uma eficácia social, ou efetividade, reduzida.
O neoliberalismo econômico, contudo, contrário à concretização dos
direitos fundamentais, cogita cada vez mais da exclusão de grande maioria dos
direitos fundamentais sociais tachando-os de irrealizáveis. O problema não decorre
da falta de leis ordinárias, pois a grande maioria das normas para o exercício dos
ditos direitos sociais já existe. O problema maior é a não-prestação real dos serviços
sociais básicos pelo Poder Público. A questão envolve certamente a formulação,
implementação e manutenção das suas respectivas políticas públicas e a
composição dos gastos nos orçamentos da União, dos estados e dos municípios.
Para Krell
193
são poucos os meios jurídicos eficientes para combater a má
aplicação dos recursos públicos.
192
BRUNO, Galindo. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá,
2004. p. 63.
193
Krell, Andréas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um
direito constitucional “comparado”.Porto Alegre: A. Fabris, 2002. p. 31-32.
119
A nota distintiva dos direitos fundamentais de segunda geração é a sua
dimensão positiva, uma vez que não se cuida mais de evitar que o Estado
intervenha na esfera da liberdade individual, mas, sim de propiciar ao indivíduo o
direito de participar do bem-estar social. Trata-se agora de liberdade por intermédio
do Estado, na lição de Sarlet
194
.
Ditos direitos fundamentais de segunda dimensão já constavam, de forma
embrionária e isolada, da Constituições Francesas de 1793 e 1848, da Constituição
Brasileira de 1824 e da Constituição Alemã de 1849, sendo que esta não chegou a
entrar efetivamente em vigor.
Os direitos fundamentais de terceira geração, tidos como direitos de
solidariedade ou fraternidade, têm primeiro por destinatário o gênero humano.
Surgiram eles da compreensão de que os direitos fundamentais não seriam apenas
os direitos dos indivíduos ou dos grupos e sociedades específicas, mas
compreenderiam também uma categoria de direitos fundamentais que se
estenderiam ao próprio gênero humano.
Representam, assim, os direitos fundamentais de terceira geração um
novo pólo jurídico de autonomia, que se acresce aos da liberdade e igualdade já
reconhecidos aos indivíduos. São eles dotados de um altíssimo grau de humanismo
e universalidade, constituindo uma classe voltada, especificamente, não à proteção
dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado, mas
sim do próprio gênero humano. Simbolizam eles, como ensina Bonavides
195
, o
coroamento de trezentos anos de evolução na esteira da concretização dos direitos
fundamentais. Derivaram eles da reflexão sobre temas ligados ao desenvolvimento,
à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade.
No entendimento de Galindo
196
, os direitos de terceira dimensão têm por
destinatário último o próprio indivíduo que irá usufruir deles, mas não é menos
verdade que, diversamente dos direitos fundamentais de primeira e segunda
dimensões, ditos direitos de solidariedade têm uma titularidade indefinida e
indeterminada.
194
SARLET, Ingo Wolfang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
p. 52.
195
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 569.
196
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá,
2004. p. 67.
120
Enquanto os direitos fundamentais de primeira dimensão podem ser
reivindicados pelo próprio indivíduo que singularmente os possui, e os direitos de
segunda dimensão têm a sua titularidade atribuída às diversas coletividades
existentes que podem, de forma organizada, pleitear tais direitos ao Estado, os
direitos de solidariedade são direitos de alcance difuso, pois não é possível, de
forma objetiva, estabelecer quem são os seus titulares. Somente de forma abstrata,
é possível considerá-los como direitos pertencentes ao gênero humano. No entanto,
o gozo dos direitos individuais, sociais e econômicos depende, em grande parte, dos
direitos de terceira dimensão.
Quanto aos direitos de quarta geração não apenas culminam a
objetividade das duas gerações antecedentes como absorvem, sem todavia removê-
la, a subjetividade dos direitos individuais, a saber os direitos da primeira geração.
Tais direitos não apenas sobrevivem, como ficam opulentados em sua dimensão
principial, objetiva e axiológica.
Bobbio
197
afirma que os direitos de quarta geração são aqueles
relacionados com os efeitos, cada vez mais traumáticos, da pesquisa biológica, a
qual permitirá a manipulações do patrrimônio genético de cada indivíduo.
Para Bonavides
198
os direitos fundamentais de quarta geração são, por
excelência, o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo.
Desses direitos depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua
dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no
plano de todas as relações de convivência. Tais direitos fundamentais são
introduzidos na esfera da normatividade jurídica em decorrência da sua
globalização, o que corresponderia universalizá-los no campo institucional. A
democracia, como direito de quarta geração, há de ser, uma democracia direta. Os
direitos da quarta geração sinalizam o futuro da cidadania e o porvir da liberdade de
todos os povos, pois somente com eles será legítima a globalização política radicada
nos direitos fundamentais, e sobre a qual pouco se tem ouvido falar. Diferentemente
daqueloutra globalização política patrocinada pelo neoliberalismo, a verdadeira
globalização política é a que promove a globalização do humanismo e da
solidariedade e a única que, verdadeiramente, interessa aos povos da periferia.
197
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 6.
198
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 571.
121
Galindo
199
, contudo, entende que tais direitos fundamentais chamados de
quarta geração são, na verdade, novos direitos de terceira dimensão, já que os
direitos fundamentais de solidariedade não são taxativos nem exaustivos, podendo
ser alargados os seus espectros, que é o que deve ocorrer com os direitos à
democracia, à informação e ao pluralismo.
Não de pode deixar de reconhecer a existência dos direitos fundamentais
de quarta geração e de aderir ao entendimento de Bonavides
200
sustentando a
ocorrência, na atualidade, de uma globalização política radicada na teoria dos
direitos fundamentais, bem diversa daqueloutra globalização política neoliberal que
não se atém a qualquer referência de valores. Globalizar direitos fundamentais
significa universalizá-los no campo institucional, ratificando a natureza histórica dos
mesmos.
Têm os direitos fundamentais, portanto, a destacada e importante missão
histórica de humanizar e legitimar a globalização política e econômica, colocando o
ser humano no cimo de todas as políticas públicas, nacionais e internacionais, e
criando laços fecundos de solidariedade na humanidade.
5.5 As dimensões subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais
Assumem os direitos fundamentais uma dupla dimensão porque, a par de
constituírem fonte de direitos subjetivos que podem ser reclamados em juízo, são
tamm as bases axiológicas fundamentais da ordem jurídica, que se expandem
para todo o direito objetivo. O reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos
fundamentais não significa desprezo à sua dimensão subjetiva, mas apenas um
reforço a ela. A dimensão objetiva complementa a subjetiva e agrega-lhe uma “mais
valia”
201
, conferindo uma proteção reforçada a tais direitos, por meio de esquemas
que transcendem a estrutura relacional típica dos direitos subjetivos.
199
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba, Juruá,
2004. p. 70.
200
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 571.
201
A expressão “mais valia” é de José Carlos Vieira Andrade (1998 apud Sarmento, Daniel. A dimensão objetiva dos
direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e
direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 256.
122
Canotilho
202
assinala que não se pode hoje atribuir aos direitos
fundamentais apenas uma dimensão subjetiva nem a única função de proteção da
esfera livre e individual do cidadão. Deve-se atribuir aos direitos fundamentais uma
multifuncionalidade para acentuar todas e cada uma das funções que as teorias
elaboradas sobre os mesmos indicam unilateralmente.
A dimensão subjetiva dos direitos fundamentais corresponde à
possibilidade de tais direitos ensejarem uma pretensão, por parte do seu titular, a um
dado comportamento ou a um poder de vontade de produzir efeitos sobre
determinadas situações jurídicas. Sob tal concepção, os direitos fundamentais
importam na exigência de uma ação negativa ou positiva de outrem, ou ainda de
comandos que impliquem não mais em um comportamento ativo ou omissivo de
outrem, mas do poder de modificar-lhe a posição jurídica.
Geralmente, os direitos fundamentais são tratados sob a ótica subjetiva,
que é a que mais se afeiçoa às suas origens históricas de limitar o poder político
estatal e mais atende às suas finalidades mais próximas de promover a dignidade
humana dos indivíduos.
Já a dimensão objetiva dos direitos fundamentais liga-se ao
reconhecimento de que tais direitos, além de imporem certas prestações aos
poderes estatais, consagram também os mais importantes valores em uma
comunidade política, constituindo as bases da ordem jurídica da coletividade.
Como aduz Branco
203
, tal dimensão objetiva resulta do significado dos
direitos fundamentais como princípios básicos da ordem constitucional. Os direitos
fundamentais formam a essência do Estado Democrático de Direito, operando, ao
mesmo tempo, como limites do poder e como diretrizes para a sua atuação. As
constitiuições democráticas assumem um sistema de valores que os direitos
fundamentais revelam e positivam. Os direitos fundamentais transcendem a
perspectiva da garantia de posições individuais, para alcançar a estatura de normas
que filtram os valores básicos da sociedade política e os expandem para todo o
direito positivo. Formam, assim, a base do ordenamento jurídico de um Estado
Democrático de Direito.
202
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2002.
p.1386.
203
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Aspectos de teoria geral dos direitos fundamentais. In: MENDES, Gilmar Ferreira ;
COELHO, Inocêncio Mártires ; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais.
Brasília: Brasília Jurídica, 2002. p. 153.
123
A dimensão objetiva dos direitos fundamentais implica, na atualidade, na
concepção normativa dos mesmos (que não está ligada ao positivismo jurídico em
sua versão normativista) e visa a afirmar a força normativa deles. As normas sobre
direitos fundamentais, como as normas jurídicas em geral, têm, a par do caráter
normativo, um conteúdo axiológico. As teorias normativas contemporâneas dos
direitos fundamentais são, como frisa Galindo
204
, teorias pós-positivistas.
Sobre a questão de serem os direitos fundamentais valores ou normas,
assim se manifesta Müller (apud GALINDO)
205
:
Os direitos humanos não são ‘valores’, mas normas. Atrás deles estão
representações de valores da dignidade, da liberdade e igualdade de todos
os seres dotados de semblante humano. Mas tão logo a constituição os
positiviza, eles são direitos vigentes. A partir de então nós juristas temos o
dever de interpretá-los como normas. Quem pretende estampar as normas
dos direitos humanos em ‘valores’ procede justamente por essa razão à sua
desvalorização.
Mesmo que os direitos humanos tenham tido um caráter pré-estatal na
tradição do jusnaturalismo, eles se revestem, a partir da sua positivação, de um
caráter estatal normativo. Levar os direitos fundamentais a sério significa respeitá-
los, aperfeiçoá-los e implementá-los, enquanto direito positivo. Galindo
206
reconhece
ser acertada a tese de Müller, entendendo que não se cuida de uma modalidade
nova de positivismo, mas de uma forma de buscar a eficácia dos direitos
fundamentais como normas constitucionais de eficácia imediata, o que torna
garantida a sua efetividade prática.
Assim, como diz Andrade (apud SARMENTO)
207
, quando se afirma a
existência da dimensão objetiva dos direitos fundamentais pretende-se
“fazer ver que os direitos fundamentais não podem ser pensados apenas do
ponto de vista dos indivíduos, enquanto faculdades ou poderes de que
estes são titulares, antes valem juridicamente também do ponto de vista da
comunidade, como valores ou fins que esta se propõe a perseguir.
Mesmo os direitos fundamentais de matriz liberal deixam de ser apenas
limites subjetivos para o Estado, convertendo-se ainda em diretrizes objetivas para a
204
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá,
2004. p. 76-77.
205
Ibid., p. 78.
206
GALINDO, loc. cit.
207
SARMENTO, Daniel. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. In: LEITE,
José Adércio (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p.
253.
124
atuação deste. Luño (1995 apud Sarmento)
208
assinala que, com a passagem do
modelo do Estado Liberal para o do Estado Social,
os direitos fundamentais deixaram de ser meros limites ao exercio
do poder político, ou seja, garantias negativas dos interesses
individuais, para tornarem-se um conjunto de valores ou fins
diretivos da ação positiva dos poderes públicos. (tradução nossa)
209
A doutrina objetiva dos direitos fundamentais deita raízes na teoria dos
direitos públicos subjetivos elaborada por George Jellinek no final do século XIX, em
obra clássica intitulada Sistema dos Direitos Públicos Subjetivos, na qual o autor
emite sua adesão aos postulados do individualismo e do positivismo.
210
As primeiras
fissuras nesta concepção individualista dos direitos fundamentais remontam ao
constitucionalismo de Weimar, em especial à teoria das garantias institucionais
elaborada por Carl Schmitt, e à teoria da Constituição como integração, de Rudolf
Smend.
Schmitt (1931 apud BONAVIDES)
211
diz que, ao lado dos direitos
fundamentais, de matriz individual, as Constituições protegem tamm certas
instituições de direito público ou determinados institutos de direito privado, visando a
impedir a sua supressão ou a ofensa ao seu conteúdo essencial por parte do
Estado, sobretudo do legislador.Todos os princípios que obrigam o legislador são
garantias institucionais. O conceito de garantia institucional, que foi tão afirmativo
para escorar e legitimar a segunda geração de direitos fundamentais, enfrenta,
desde há muito, a sua crise, com perda de substância e densidade, como se já fora
um conceito em aparente estado de dissolução, consoante afirmação de
Bonavides
212
,
A teoria da Constituição como integração, elaborada por Smend
213
,
representa o antecedente mais próximo da concepção axiológica dos direitos
fundamentais e que, por sua vez, subjaz à idéia da dimensão objetiva desses
direitos. A função essencial da Constituição é promover a integração na
208
SARMENTO, Daniel. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. In: LEITE,
José Adércio (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p.
254.
209
los derechos fundamentales han dejado de ser meros límites al ejercicio del poder político, o sea, garantias
negativas de los intereses individuales, para devenir um conjunto de valores o fines directivos de la acción
positiva de los poderes públicos.
210
SARMENTO, op. cit., p. 293.
211
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 567.
212
BONAVIDES, loc. cit.
213
SARMENTO, op. cit., p. 260-261.
125
comunidade, o que só é possível a partir da tutela de valores que sejam vividos e
socialmente compartilhados. O mais essencial numa Constituição são os valores em
que ela se apóia, sendo que a principal fonte desses valores encontra-se nos
direitos fundamentais.
A consagração explícita da dimensão objetiva dos direitos fundamentais
ocorreu sob a égide da Lei Fundamental de Bonn, no julgamento, pela Corte
Constitucional germânica em 1958, do caso Lüth. Tratava-se de discussão relativa à
legitimidade de um boicote contra um filme dirigido pela cineasta Veit Harlan, de
passado nazista, organizado pelo presidente do Clube de Imprensa de Hamburgo,
Erich Lüth, em 1950. A produtora e a distribuidora do filme insurgiram-se contra o
boicote e obtiveram decisão da Justiça Estadual de Hamburgo, determinando a sua
cessação, com base no artigo 826 do Código Civil alemão, segundo o qual, quem
causar danos intencionais a outrem, e de maneira ofensiva aos bons costumes, fica
obrigado a compensar o dano. Irresignado com o julgamento, Lüth interpôs queixa
constitucional (Verfassungsbeschwerde) para o Tribunal Constitucional. Este
acolheu o recurso, fundamentando-se no entendimento de que cláusulas gerais do
direito privado, como os ‘bons costumes” referidos no art. 826 do BGB, têm de ser
interpretadas ao lume da ordem de valores sobre a qual se assenta a Constituição e
levando em consideração os direitos fundamentais, o que não fora feito pela Corte
de Hamburgo. A partir de então a questão da dimensão objetiva dos direitos
fundamentais tornou-se uma das mais debatidas na dogmática e jurisprudência
alemã, que, com base nessa idéia, desenvolveu dois conceitos extremamente
importantes: o da chamada eficácia irradiante dos direitos fundamentais e o da teoria
dos deveres de proteção.
214
Uma importante conseqüência da dimensão objetiva dos direitos
fundamentais está em ensejar um dever de proteção deles pelo Estado contra
agressões não só dos próprios poderes públicos, como tamm de particulares ou
de outros Estados.
Além do dever de proteção dos direitos fundamentais, a sua dimensão
objetiva desvenda, ainda, um sentido qualificativo das normas que os prevêem. Os
enunciados normativos que proíbam ou dificultam a ação descrita na norma de
214
SARMENTO, Daniel. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. In:
SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais.Belo Horizonte:
Del Rey, 2003. p. 261.
126
direito fundamental são qualificados como inválidos, independentemente de
chegarem a produzir, em concreto, constrangimento sobre algum indivíduo.
A dimensão objetiva dos direitos fundamentais decorre do
reconhecimento de que consagram eles os mais importantes valores partilhados em
uma comunidade política. Essa nova dimensão, contudo, não ignora a dimensão
subjetiva anterior, nem pretende subrepor-se a ela. Busca apenas agregar novos
valores àqueles já consagrados pelos direitos humanos fundamentais na busca
contínua de sua concretização constitucional.
5.6 A eficácia dos direitos fundamentais
Alexy (1986 apud GALINDO)
215
distingue normas de direitos fundamentais
e direitos fundamentais propriamente ditos, embora reconheça a estreita conexão
estabelecida entre ambos os conceitos. A grande maioria dos autores não faz
qualquer diferenciação terminológica entre as referidas noções, tratando ambas as
expressões como sinônimas. Contudo, faz-se necessário distinguir umas e outros.
Direito fundamental, na sua dimensão subjetiva, é, como já vimos (item 5.5, p. 120),
o direito individual de alguém conferido por uma norma constitucional e
caracterizado como fundamental. Por sua vez, a norma que confere tal direito é que
se denomina de norma de direito fundamental.
Considerando tal distinção, Galindo
216
reserva a expressão eficácia para a
norma de direito fundamental, do dever-ser, utilizando para os direitos fundamentais
o termo efetividade, que corresponde à eficácia dos mesmos no plano social, do ser.
A efetividade, ou eficácia social, fica restrita à realização prática do postulado
normativo no âmbito fático, sendo objeto de avaliação da sociologia jurídica, alheia
ao presente estudo. Assim é jurídico o âmbito de atuação da eficácia, enquanto
sociológico o da efetividade ou eficácia social.
Neves (apud GALINDO)
217
não distingue a eficácia da efetividade para
associar a primeira à eficácia jurídica e a segunda à eficácia social, pois entende que
a eficácia é a realização da própria norma na esfera social, enquanto a efetividade
215
GALINDO, Bruno. Direitos Fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá, 2004.
p. 83.
216
Ibid., p. 83-84.
217
Ibid., p.162.
127
seria a realização teleológica da norma, relacionada com os seus fins últimos
voltados ao programa finalístico que teria norteado a atividade legislativa. Assim,
segundo essa concepção, tanto a eficácia como a efetividade seriam objeto de
estudo da sociologia jurídica, sendo que a efetividade corresponderia a um plus em
relação à eficácia.
Sarlet
218
distingue entre eficácia jurídica e eficácia social, entendendo que
a primeira constitui pressuposto da segunda, que também é denominada de
efetividade. Explica que uma vez tornado efetivo o Direito pela sua aplicação ao
caso concreto, tal não implicará necessariamente na sua efetividade social que
dependerá da execução da norma concreta de decisão pelos seus destinatários,
atingindo-se, ou não, então, a finalidade da referida norma. A efetividade tem a ver
com a finalidade prevista na norma. Entende o autor ainda que o problema da
eficácia do Direito engloba tanto a eficia jurídica quanto a social. Ambas
constituem aspectos diversos do mesmo fenômeno. Embora situadas em planos
diferentes (o do dever-ser e o do ser), mantêm-se a eficácia jurídica e a eficácia
social ligadas entre si, na medida em que ambas servem e são indispensáveis à
realização integral do Direito.
Em nosso estudo, iremos nos restringir tão somente à eficácia jurídica,
que constitui ponto importante para a concretização dos direitos fundamentais,
juntamente com as noções de validade e vigência das normas. Adotamos o
entendimento simplificado de Galindo
219
para considerar a validade como a
exigibilidade, mediata ou imediata, da norma existente no sistema, sendo gênero do
qual são espécies a vigência, a eficácia e a efetividade, que, por sua vez,
representam graus diferenciados daquela. A vigência é definida como a
exigibilidade, imediata ou mediata, das normas regularmente promulgadas e
publicadas, de acordo com os procedimentos técnico-legislativos, estabelecidos em
determinado tempo e espaço; a eficácia como a aptidão e potencialidade das
normas de direitos fundamentais de produzirem seus efeitos práticos, o que significa
a possibilidade concreta, real e imediata da norma ser realizada. E a efetividade é a
a realização do postulado normativo no âmbito fático, correspondendo então à
noção de eficácia social.
218
SARLET, Ingo Wolfang. A eficácia dos direitos fundamentais.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
p. 223.
219
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá,
2004. p.165.
128
Portanto, a eficácia social da Constituição diz respeito à questão da
efetividade das normas constitucionais no plano da realidade material em que estas
se destinam a operar. Reflete ela, também, no plano sociológico, as tensões entre
Direito e sociedade, mostrando o grau de interação daquele, como instrumento de
organização e controle social desta última.
A busca da eficácia dos direitos fundamentais pressupõe o
reconhecimento dos mesmos como normas constitucionais, reconhecendo-lhes o
importante papel que desempenham nos sistemas jurídicos contemporâneos. A
questão da eficácia das normas constitucionais de direitos fundamentais parte do
pressuposto de que a interpretação jurídica e a concretização normativa em um
Estado Democrático de direito objetivam a realização daqueles direitos.
220
A eficácia dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição
depende do tipo de justiça constitucional praticado em cada país, bem como do
redimensionamento do papel dos operadores do Direito. Isto porque a função do
Direito no modelo instituído pelo Estado Democrático de Direito não é mais aquela
típica do Estado Liberal Abstencionista, em que a interpretação jurídica limitava-se a
reproduzir o Direito, sendo os juízes a boca da lei. O Estado Democrático de Direito
representa um plus normativo em relação ao Estado Liberal e ao Estado Social, pois
nele a interpretação jurídica das normas constitucionais assume a feição criadora de
Direito.
5.6.1 A eficácia irradiante e a eficácia horizontal dos direitos fundamentais
O aspecto objetivo dos direitos fundamentais acarreta tanto a sua eficácia
irradiante, que serve de diretriz para a interpretação e aplicação das normas dos
demais ramos do direito, quanto a sua eficácia horizontal, que corresponde à força
impositiva desses mesmos direitos no âmbito das relações entre particulares.
Assim, as duas mais importantes conseqüências da dimensão objetiva
dos direitos fundamentais são: tanto o reconhecimento da sua eficácia irradiante,
que significa que os valores que dão lastro aos direitos fundamentais penetram por
todo o ordenamento jurídico, condicionando a interpretação das normas legais e
220
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá,
2004. p.164-165.
129
atuando como impulsos e diretrizes para os Poderes Legislativo, Executivo e
Judiciário, quanto o entendimento de que os princípios que informam os direitos
fundamentais não poderiam deixar de ter aplicação em toda a ordem jurídica,
inclusive no setor do direito privado, para impor o dever de proteção deles pelo
Estado contra agressões não só dos poderes públicos como tamm de particulares
ou de outros Estados.
Assim, a par da teoria da eficácia irradiante dos direitos fundamentais,
surgiu, a partir dos anos cinqüenta, a teoria da eficácia horizontal ou do efeito
externo dos direitos fundamentais (a drittwirkung do direito alemão), que, por sua
vez, ensejou duas variantes: a teoria da eficácia direta ou imediata dos direitos
fundamentais e a teoria da eficácia indireta ou mediata desses direitos
221
, que
estudaremos mais adiante.
A eficácia irradiante enseja a humanização da ordem jurídica, ao exigir
que todas as suas normas sejam, no momento de aplicação, reexaminadas pelo
operador do direito com novas lentes, que terão as cores da dignidade humana, da
igualdade substantiva e da justiça social, e de tantos outros princípios e valores
impressos no tecido constitucional. Da eficácia irradiante dos direitos fundamentais
deriva o método de interpretação conforme a Constituição, o qual desempenha,
concomitantemente, os papéis de princípio hermenêutico e de mecanismo de
controle de constitucionalidade.
Como princípio hermenêutico, a interpretação conforme a Constituição
impõe ao operador do direito que, diante da plurisignificatividade de determinada
norma, opte ele pela exegese que torne esta norma compatível com a Constituição,
ainda que não se trate da interpretação mais evidente do texto normativo. E, como
instrumento de controle de constitucionalidade, hoje expressamente previsto no
ordenamento brasileiro, por força do artigo 28, parágrafo único, da Lei nº. 9.868/99,
dita interpretação permite que a Suprema Corte de Justiça, na fiscalização abstrata
dos atos normativos, elimine, por contrariedade à Lei Maior, possibilidades
exegéticas de determinada norma, sem alteração formal do texto legal que a
consagra. Portanto, não se atinge nem a vigência, nem a validade nem a eficácia da
norma, que apenas recebe uma interpretação mais adequada à sua concretização.
221
COELHO, Inocêncio Mártires. Elementos de Teoria da Constituição e de Interpretração Constitucional. In:
MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica
constitucional e direitos fundamentais.. Brasília: Brasília Jurídica, 2002. p. 172.
130
A interpretação conforme a Constituição configura um meio valioso para permitir a
penetração da axiologia constitucional na legislação ordinária.
Assim dispõe, o mencionado artigo 28 da Lei 9.868, de 10 de novembro
de 1999:
Art. 28. Dentro do prazo de dez dias após o trânsito em julgado da decisão,
o Supremo Tribunal Federal fará publicar em seção especial do Diário da
Justiça e do Diário Oficial da União a parte dispositiva do acórdão.
Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de
inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a
declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm
eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder
Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.
Contudo, ao contrário da interpretação conforme a Constituição, a eficácia
irradiante dos direitos fundamentais atua de modo contínuo, e não apenas em
momentos de convulsão da ordem jurídica, quando se dá o exercício do controle de
constitucionalidade, em abstrato ou em concreto. Ela atua no dia-a-dia do direito,
nas suas aplicações mais banais e corriqueiras, e não apenas nos momentos de
crise do ordenamento.
222
Com isso, o ordenamento jurídico ganha, na contemporaneidade, um
centro unificador na Constituição, que adquire, a par da sua superioridade formal,
uma superioridade material, em razão de condensar, através da enunciação dos
direitos fundamentais, os princípios e valores básicos da comunidade política. A
eficácia irradiante dos direitos fundamentais manifesta-se, sobretudo, no tocante à
interpretação e aplicação das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados
constantes da legislação infraconstitucional.
Sarmento
223
relaciona inúmeros casos de eficia irradiante dos direitos
humanos no âmbito das relações privadas. Na Alemanha, discutia-se a licitude de
um boicote organizado pelo jornal Springer, de orientação política conservadora,
contra o semanário comunista de pequena circulação Blinkfüer. A editora do
Springer estava ameaçando interromper a entrega dos periódicos aos jornaleiros
que aceitassem vender o Blinkfüer, que, então ajuíza uma ação objetivando impedir
222
SARMENTO, Daniel. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. In:
SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte:
Del Rey, 2003. p. 280.
223
Ibid., p. 284-286.
131
tal boicote, não logrando êxito, porém, na Justiça Comum. O Tribunal Constitucional
alemão, contudo, julga procedente o recurso constitucional interposto pelo Blinkfüer
contra a decisão da justiça civil, sob o fundamento de que os juízes têm a obrigação
de proteger os direitos fundamentais nas relações privadas por intermédio de uma
interpretação das cláusulas gerais do Direito Civil fundada nos valores
constitucionais.
Em outra decisão, proferida no caso da Princesa Soraya, discutia-se a
possibilidade de indenização por dano moral não prevista nem no Código Civil
alemão nem na sua Constituição. A princesa, uma socialite, ex-esposa de um Xá do
Irã, ajuizara demanda contra o jornal alemão Die Welt, que publicara uma fictícia
entrevista com ela, revelando detalhes da sua intimidade. A Corte Constitucional
entendeu que, no caso, a proteção outorgada pela Lei Fundamental ao direito geral
de personalidade exigia que a disciplina legal da responsabilidade civil no direito
privado alemão fosse reinterpretada para abranger danos em casos de lesões
extrapatrimoniais.
Na França, embora não se tenha dogmaticamente desenvolvido a idéia
de dimensão objetiva dos direitos fundamentais, registra-se o caso de lançamento
de anões, julgado pelo Conselho de Estado, que, interpretando um conceito jurídico
indeterminado, como o de ordem pública, promoveu a consagração dos direitos
fundamentais e do princípio da dignidade humana. O fato ocorreu na cidade
francesa de Morsang-sur-Orge, na Riviera Francesa, onde uma boate organizava um
concurso de lançamento de anões, no qual sagrava-se vencedor da prova o cliente
que conseguisse arremessar o anão mais longe, a partir do palco da discoteca. O
espetáculo foi interditado pelo prefeito, que exercitou o seu poder de polícia,
fundamentando-se na tutela da ordem pública, já que o ser humano jamais pode
ser usado como meio, sendo, ao contrário, o fim primacial de toda a atividade
humana. Inconformados, a boate e o anão (este revoltado porque perdera o
emprego) impugnaram o ato administrativo em questão, mas o Conselho de Estado,
em solução definitiva da causa, manteve a decisão, criando o precedente no sentido
de que o princípio da dignidade da pessoa humana condiciona a interpretação do
conceito jurídico indeterminado de ordem pública.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal, ao somente admitir recurso
extraordinário em casos de violação direta à Constituição, exclui os casos de ofensa
reflexa ao texto magno, assumindo uma posição formalista e abandonando o seu
132
papel de guardião da Constituição. Descura-se, com isso, de uma das principais
funções da Lei Maior, que é a de pautar a interpretação de todo o ordenamento
jurídico positivo.
Perde, assim, a nossa Corte Constitucional, a oportunidade ímpar de
reafirmar a plena eficácia dos direitos fundamentais em temas de relevantes
questões infraconstitucionais suscitadas perante os tribunais ordinários, na sua
tarefa de interpretar e aplicar a legislação à luz da Lei Maior. Tal circunstância
reforça a necessidade da criação do Tribunal Constitucional no Brasil, de modo a ser
assegurada uma maior eficácia aos direitos fundamentais, tanto sob dimensão
subjetiva quanto sob a objetiva .
O referido entendimento do STF mostra-se tamm contrário à plena
incidência dos direitos fundamentais, já que implica em afastar do crivo do Pretório
Excelso as mais relevantes hipóteses de aplicação da teoria da eficácia irradiante
dos mesmos, e que se ligam à necessidade de interpretação das cláusulas gerais do
direito infraconstitucional à luz dos valores recepcionados na Constituição. Essa
postura da nossa Corte Suprema fragiliza e enfraquece a nossa Justiça
Constitucional
No tocante à dimensão objetiva dos direitos fundamentais, travou-se,
inicialmente no direito alemão, e posteriormente em outros Estados europeus,
debate sobre o caráter direto ou indireto da incidência daqueles em relação a
particulares.
Nobre Júnior
224
assevera que, na Alemanha, não se reconheceu uma
força vinculante direta aos direitos fundamentais frente aos particulares, em razão de
haver um único dispositivo constitucional explícito a esse respeito constante do
artigo 9º., nº 3, da Lei Fundamental, que se refere à liberdade sindical.
Hesse (apud NOBRE JÚNIOR)
225
tamm posicionou-se, asseverando
que:
os direitos fundamentais podem ser determinantes para a configuração de
relações jurídicas privadas, porém não fundamentam direito subjetivo algum
em qualquer dessas relões, endereçado a exigir uma conduta da outra
parte que lhes seja conforme.
224
NOBRE JÚNIOR, Edílson Pereira. Direitos fundamentais e argüição de descumprimento de preceito
fundamental. Porto Alegre: S. Fabris, 2004. p. 34-35.
225
Ibid., p. 34.
133
Para a teoria da eficácia direta ou imediata, os direitos fundamentais
podem ser diretamente invocados nas relações privadas, independentemente de
qualquer mediação concretizadora por parte do legislador ordinário. Para os adeptos
dessa teoria, o fato de a Constituição alemã referir-se apenas à vinculação dos
poderes públicos aos direitos fundamentais não seria relevante, pois, diante do
postulado constitucional do Estado Social, e considerando as características da
sociedade contemporânea, a vinculação dos particulares a esses direitos se
revelaria compulsória e não poderia ser confiada exclusivamente ao arbítrio e aos
humores do legislador infraconstitucional. Seria sempre papel do juiz, no caso
concreto, tutelar o direito fundamental violado ou ameaçado pela conduta de
particulares, independentemente da consagração do direito em questão no âmbito
da legislação do Direito Privado.
Contudo, a tese da eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais
suscitou fortes oposições na Alemanha, onde acabou prevalecendo a teoria da
eficácia indireta ou mediata dos direitos fundamentais, inclusive na jurisprudência da
Corte Constitucional. Os adeptos dessa teoria sustentam que a aplicação direta ou
imediata dos direitos fundamentais no âmbito das relações privadas seria liberticida,
e acabaria por asfixiar a autonomia privada a um ponto insuportável
226
.
A solução proposta pela teoria da eficácia indireta é a de reconhecer que
os direitos fundamentais penetram nas relações jurídico-privadas por meio de duas
formas distintas: em primeiro lugar, por obra do legislador, que teria a obrigação de,
ao disciplinar as relações privadas, orientar-se para o objetivo de proteger e
promover estes direitos; e, em segundo lugar, por meio da interpretação das
cláusulas gerais constantes na legislação privada, que configurariam as verdadeiras
portas de entrada para os direitos fundamentais, através das quais estes teriam
como se espraiar para campos em que o Estado não se faz presente.
Assim, por exemplo, os juízes teriam de interpretar cláusulas como as de
boa fé, abuso de direito, e tantas outras mais, inspirando-se nos direitos
fundamentais e na ordem de valores subjacentes aos mesmos.
Transplantando a discussão para o cenário brasileiro, deve-se, em
primeiro lugar, destacar que ela se torna desnecessária em relação aos direitos
226
SARMENTO, Daniel. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmento de uma teoria. In:
SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte:
Del Rey, 2003. p. 291.
134
fundamentais que estão dirigidos explicitamente no texto constitucional contra
entidades privadas, tais como os direitos trabalhistas
227
e o direito à reparação de
danos materiais e morais decorrentes do exercício abusivo da liberdade de
expressão
228
. Em relação a estes a própria Constituição já determina a incidência
direta ou imediata.
Há ainda aqueles direitos fundamentais que, pela sua natureza, só podem
valer contra o Estado, tais como o que se configura na proibição de extradição por
crime político ou de opinião
229
. Contudo, outras situações existem em que
remanesce o problema da extensão dos direitos fundamentais às relações privadas,
no tocante à sua forma e intensidade.
A Constituição Federal brasileira de 1988, no entanto, já soluciona a
questão ao estabelecer uma vinculação direta dos particulares aos direitos
fundamentais, especialmente quando se tratar de entidade que exerça posições de
poder, mando ou autoridade na sociedade, como por exemplo o empregador ou o
fornecedor na relação de consumo.
230
Assim tamm entende Gediel
231
, que se pronuncia a respeito do tema
nos seguintes termos:
“A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, por sua vez,
tamm é exigência do projeto político e da normatividade constitucional
assumidos pela sociedade brasileira em 1988. Essa vinculação se
manifesta, de modo especial, nas relações contratuais de trabalho para
exigir dos cidadãos comportamentos que, concomitantemente sejam a
expressão de sua liberdade econômica e de respeito aos seus concidadãos,
fazendo eco, mais uma vez, às palavras do texto constitucional italiano, que
em seu artigo 41 dispõe: “A iniciativa privada é livre. Não pode desenvolver-
se em oposição à utilidade social ou de modo que cause dano à segurança,
à liberdade e à dignidade humana. A lei determina os programas e os
controles oportunos para que a atividade econômica pública ou privada
possa ser orientada e coordenada aos fins sociais.”
227
Art. 7º. da Constituição Federal.
228
Art. 5º, inciso V, da Constituição Federal.
229
Artigo 5º, inciso LII, da Constituição Federal.
230
SARMENTO, Daniel. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmento de uma teoria. In:
SAMPAIO, José Adércio Leite. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey,
2003. p. 291.
231
GEDIEL, Jo Antonio Peres. A irrenunciabilidade a direitos da personalidade pelo trabalhador. In: SARLET,
Ingo Wolfang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2003. p. 149-163.
135
A concepção de direitos fundamentais deve conformar-se com o perfil
axiológico da Constituição, e a nossa é uma Constituição social, que não agasalha
de forma absoluta a autonomia privada e a livre iniciativa, preocupando-se, antes,
com o combate à exploração do homem pelo homem, baseando-se no princípio
fundamental da dignidade da pessoa humana, incrustado no artigo 1º, inciso III, da
nossa Magna Carta.
Tanto mais porque, em uma sociedade injusta e desigual como a
brasileira, torna-se necessário o refoo de todos os instrumentos que permitam a
proteção dos hipossuficiente, caso em que a teoria da eficácia direta dos direitos
fundamentais mostra-se superior à da eficácia indireta ou mediata dos mesmos.
Tal entendimento vem sendo sufragado pela jurisprudência pátria, que já
admite a eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais no contexto das
relações privadas Como exemplo de tal posicionamento pode citar-se a decisão do
Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 160.222 (publicação no DJ de
01.09.1995), em que foi relator o Min. Sepúlveda Pertence. O recurso em questão
versava sobre a questão de saber se cometia crime de constrangimento ilegal o
gerente que exigia das empregadas de certa indústria de manufatura de peças de
lingerie o cumprimento de cláusula por elas aceita no contrato de trabalho. A
cláusula previa a submissão das empregadas a revistas íntimas, sob pena de
dispensa. O relator destacou que o problema referia-se à garantia do direito
fundamental à intimidade e a sua repercussão no âmbito das relações privadas,
envolvendo a qualificação da renúncia aposta no contrato de trabalho (a qual foi
aceita como válida pelo tribunal a quo). A hipótese, porém, não pode ser discutida,
porque já se operara a prescrição.
No RE 158.215-4/RS, em que foi relator o Min. Marco Aurélio (publicação
no Diário da Justiça de 07/06/1996) foi reconhecido o direito da ampla defesa e do
contraditório a um indivíduo expulso de uma cooperativa, tendo, por essa razão, o
STF anulado dita expulsão do cooperativado por não ter sido observado aquele
direito antes do seu desligamento da cooperativa. O relator Min. Marco Aurélio
afirmou que:
Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos
estatutos, impõe-se a observância ao devido processo legal, viabilizado o
exercio amplo da defesa.
136
Igualmente no RE 161.243, Rel. Min. Carlos Velloso, Diário da Justiça de
19/12/1997, decidiu-se, com base no princípio da isonomia, que o estatuto dos
empregados de uma empresa francesa não poderia conceder aos trabalhadores
franceses vantagens superiores às conferidas aos empregados brasileiros. Não
aceitou a Suprema Corte brasileira a invocação do princípio da autonomia individual
para legitimar discriminação por conta da nacionalidade do trabalhador, no tocante à
distribuição de benefícios criados pelo estatuto de pessoal de certa empresa. Assim
se pronunciou o relator sobre o tema:
Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa
francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto Pessoal da Empresa, que
concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao
empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade:
C.F. , 1967, art. 153, § 1º; C.F. , 1988, art. 5º, caput.
A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou
extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo
religioso etc., é inconstitucional. Precedente do STF: Ag 110.846 (AgRg)-
PR, Célio Borja, RTJ 119/465.
A jurisprudência brasileira vem, até mesmo, inovando na matéria e indo
além dos precedentes do direito comparado para reconhecer a eficácia horizontal
até mesmo dos direitos sociais e econômicos como, por exemplo, quando, sem
qualquer autorização da lei, logrou extrair de princípios constitucionais a proibição
de demissão imotivada de empregado soropositivo (Tribunal Superior do Trabalho,
2ª Turma, RR 20.539, Rel. Min. José Luciano de Castilho.Pereira, DJ 19/12/97).
232
Reconhece mesmo Branco
233
que a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal não se mostra totalmente arredia à possibilidade da incidência dos direitos
fundamentais nas relações privadas, considerando-se as peculiaridades de cada
caso.
Deve-se reconhecer que a admissão da eficácia direta dos direitos
fundamentais nas relações privadas não deve obscurecer a existência de diferenças
substanciais entre o modo de vinculação dos poderes públicos e dos particulares em
relação aos direitos humanos.
232
SARMENTO, Daniel. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. In:
SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte:
Del Rey, 2003. p. 293.
233
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Aspectos da teoria geral dos direitos Fundamentais. In: MENDES, Gilmar
Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet Hernêutica constitucional e direitos
fundamentais.. Brasília: Brasília Jurídica, 2002. p. 180.
137
Isto porque não se pode perder a perspectiva de que o Estado deve ser
limitado e instrumental, enquanto a pessoa humana, fim em si mesma, conforme a
máxima kantiana, é titular de um poder de autodeterminação, corolário inafastável da
sua intrínseca dignidade, que não pode ser minimizado ou eliminado num Estado
que se pretenda Democrático de Direito.
Assim, a questão da vinculação das entidades privadas aos direitos
fundamentais acaba implicando em um problema de ponderação, figurando, num
dos pratos da balança, o direito lesado ou ameaçado e, no outro, a autonomia
privada do particular, abrigada sob os princípios constitucionais da dignidade da
pessoa humana, da livre iniciativa e da cláusula geral de liberdade inscrita no caput
do art. 5º. da Constituição Federal.
Sarmento
234
não considera procedentes os óbices à teoria da eficácia
direta, entendendo representarem eles mais o produto de resistências ideológicas
apostas pelos saudosistas de um Ancién Régime do Direito Privado, no qual a
autonomia individual era o valor máximo, e imperava a cegueira e o egoísmo em
relação à opressão que vitimava os mais fracos nas relações privadas. Acrescenta
ainda que se o principal argumento dos opositores à vinculação direta dos
particulares aos direitos fundamentais é o da liberdade, cumpre não esquecer, na
linha de célebre discurso do Presidente Roosevelt, que liberdade não é só ausência
de coerção estatal, mas que ela é tamm, e antes de tudo, liberdade em relação às
necessidades materiais e ao medo (freedom from want e freedom from fear). Esta
liberdade ampliada só pode ser alcançada quando a pessoa humana for protegida
de toda a forma de opressão, e não apenas daquela que provém dos poderes
públicos.
A teoria da eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais sustenta
tamm que ditos direitos fundamentais devem ter pronta aplicação em face de
entidades privadas que desfrutam de considerável poder social, ou em face de
indivíduos que estejam, em relação a outros, numa situação de supremacia de fato
ou de direito.
Já a teoria da eficácia indireta ou mediata, recusa a incidência direta dos
direitos fundamentais na esfera privada, pretendendo, com isso, resguardar o
234
SARMENTO, Daniel. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. In:
Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Coordenador: Jo Adércio Leite Sampaio. Belo Horizonte:
Del Rey, 2003, p. 293.
138
princípio da autonomia da vontade e do livre desenvolvimento da personalidade.
Argumenta que admitir-se tal latitude dos direitos fundamentais implicaria num
incremento do poder do Estado, que, assim, ganharia espaço para uma crescente
ingerência na vida privada do indivíduo a fim de fiscalizar o cumprimento dos
deveres resultantes da incidência dos direitos fundamentais sobre as relações
particulares.
O efeito dos direitos fundamentais no âmbito privado é diverso e até
mesmo menos enérgico do que o que se verifica nas relações com o Poder Público.
Pode-se, portanto, concluir que o reconhecimento dos direitos humanos
não deve mais operar apenas verticalmente, na relação entre particulares e Estado,
no conflito entre a liberdade dos particulares frente à autoridade do Estado. Além
disso, a eficácia horizontal dos direitos humanos deve ainda mais ser ampliada para
o efeito não só de exigir-se dos particulares o respeito aos direitos fundamentais,
como também para cobrar-se deles concurso para a implementação material
desses direitos.
Recentemente, no julgamento do RE 201819-RJ, aos 11 de outubro de
2005, tendo sido designado relator para o acórdão o Ministro Gilmar Mendes
(Informativo STF nº. 405), admitiu o Supremo Tribunal Federal a aplicação direta
dos direitos fundamentais às relações privadas. Entendeu o Min. Gilmar Mendes que
cuidava-se de caso singular que transcendia a simples liberdade de o indivíduo
associar-se ou permanecer associado, já que a integração à entidade questionada
configura, para ummero elevado de pessoas, quase que um imperativo
decorrente do exercício de atividade profissional. Afigurou-se decisivo, no caso em
apreço, para os julgadores, a singular situação da entidade associativa, integrante
do sistema ECAD, que, como já visto na ADI nº. 2.054-DF, exerce uma atividade
essencial na cobrança de direitos autorais. Tal circunstância poderia até configurar
um serviço público por delegação legislativa, o que, por si só, legitimaria a aplicação
direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao
contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, da CF) no processo (de âmbito
privado) de exclusão de sócio da entidade.
Esta decisão do Supremo Tribunal Federal confirma a opinião de
Sarmento
235
, para quem, na ordem jurídica brasileira, deve ser direta a incidência
235
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumenris, 2004. p.
297.
139
dos direitos fundamentais nas relações entre particulares e que a jurisprudência já
vem aplicando diretamente os direitos fundamentais na resolução dos litígios
privados.
5.7 As funções dos direitos fundamentais
Para Canotilho
236
quatro são as funções dos direitos fundamentais: a
função de defesa ou de liberdade; a função de prestação social; a função de
proteção perante terceiros e a função de não discriminação.
A função de defesa da pessoa humana e da sua dignidade perante os
poderes do Estado e outros esquemas políticos coativos assume duas perspectivas:
uma no plano jurídico-objetivo, no qual constituem eles normas de competência
negativa para os poderes públicos, proibindo a ingerência destes na esfera jurídica
individual; e outra num plano jurídico-subjetivo, no qual implicam eles no poder de
exercer positivamente direitos fundamentais (liberdades positivas) e de exigir
omissões dos poderes públicos, a fim de evitar agressões lesivas por parte dos
mesmos (liberdade negativa).
Exemplifica o autor lusitano com o artigo 37º. da Constituição da
República Portuguesa que garante: a) subjetivamente o direito de exprimir e divulgar
livremente o pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o
que consubstancia uma liberdade positiva; e b) o direito de a liberdade de expressão
e informação ser feita sem impedimentos ou discriminações por parte dos poderes
públicos, o que constitui uma liberdade negativa. Além disso, por força do referido
dispositivo constitucional, impõe-se objetivamente aos poderes públicos a proibição
de qualquer tipo ou forma de censura, conforme o art. 37º/2 da mencionada
Constituição Portuguesa.
A função de prestação social significa o direito de o particular obter algo
através do Estado, como saúde, educação, segurança social. Diz ele que tal função
anda associada a três núcleos problemáticos dos direitos sociais, econômicos e
culturais. O primeiro deles consiste em saber se os particulares podem fazer derivar
diretamente das normas constitucionais pretensões prestacionais: por exemplo,
236
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituão. Coimbra: Almedina, 2002. p.
407-410.
140
exigir, com base na norma consagradora do direito à habitação, uma casa. O
segundo diz respeito ao direito de exigir uma atuação legislativa concretizadora das
normas constitucionais, sob pena de omissão inconstitucional e da configuração do
direito do particular de exigir e obter a participação igual nas prestações criadas pelo
legislador. Finalmente o terceiro núcleo diz respeito ao problema de saber se as
normas consagradoras de direitos fundamentais sociais têm uma dimensão objetiva
juridicamente vinculativa dos poderes públicos no sentido de obrigarem estes,
independentemente de direitos subjetivos do indivíduo, a políticas públicas ativas
conducentes à criação de instituições (ex: hospitais, escolas), serviços (ex: serviços
de segurança social) e fornecimento de prestações (ex: rendimento mínimo, subsídio
de desemprego, bolsas de estudo, habitações econômicas).
Em relação aos dois primeiros problemas entende Canotilho
237
ser
discutível a resposta. No entanto, em relação à última questão, sustenta, em relação
ao direito português, ser líquido que as normas consagradoras de direitos sociais,
econômicos e culturais da Constituição Portuguesa individualizam e impõem ao
Estado políticas públicas socialmente ativas.
Parece-nos que tal entendimento deve ser estendido tamm ao
ordenamento jurídico brasileiro, onde a implementação das políticas públicas
destinadas à concretização da grande maioria dos direitos sociais, tais como
habitação, saúde, educação etc., ainda se defrontam com grandes empecilhos e
dificuldades.
Em relação à função de prestação social dos direitos fundamentais,
tamm já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal quando do julgamento, aos 22
de novembro de 2005, do agravo regimental no recurso extraordinário nº 410.715-5
São Paulo, em que foi relator o Min. Celso de Mello, que, em seu voto, destaca o
caráter de fundamentalidade de que se acha impregnado o direito à educação,
autorizando a adoção pelo Judiciário de provimentos jurisdicionais que viabilizem a
concreção dessa prerrogativa constitucional, mediante a utilização, até mesmo,
quando for o caso, de medidas extraordinárias que se destinem a tornar efetivo o
atendimento dos direitos prestacionais que congregam os valores inerentes à
dignidade da pessoa humana, como é o caso do direito à educação fundamental.
Assim vem redigida a sua ementa:
237
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2002. p.
408.
141
EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO – CRIANÇA DE ATÉ SEIS
ANOS DE IDADE – ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA –
EDUCAÇÃO INFANTIL – DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO
TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV) – COMPREENSÃO
GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO – DEVER
JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO,
NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - RECURSO
IMPROVIDO.
- A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível,
que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu
desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação
básica, o atendimento em creche e acesso à pré-escola (CF, arg. 208, IV).
- Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por
efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a
obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de
maneira concreta, em favor das “crianças de zero a seis anos de idade”
(CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de
pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental,
apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo
Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da
Constituição Federal.
- A educão infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda
criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações
meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a
razões de puro pragmatismo governamental.
- Os Municípios – que atuarão prioritariamente, no ensino fundamental e
na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do
mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado
pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator
de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes
municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em
creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a
comprometer, com apoio em jzo de simples conveniência ou de mera
oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social.
- Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a
prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no
entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais,
especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria
Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais
inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos
encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório –
mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais
e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à
“reserva do possível.Doutrina.
Também a função de proteção dos titulares de direitos fundamentais
perante terceiros impõe ao Estado o dever de proteger, por exemplo, o direito à vida
perante eventuais agressões de outros indivíduos. Aqui, diferentemente do que
acontece com a função de prestação, a relação não se estabelece entre o titular do
direito fundamental e o Estado, mas entre o indivíduo e outros indivíduos.
142
Esta função de proteção perante terceiros obriga tamm o Estado a
concretizar as normas reguladoras das relões jurídico-civis de forma a assegurar
nestas relações a observância dos direitos fundamentais. Como exemplo cita ainda
Canotilho
238
a regulação do casamento de forma a assegurar a igualdade entre os
cônjuges.
Esta função de proteção perante terceiros também se destaca no
julgamento, em 01/09/2005, da medida cautelar em ação direta de
inconstitucionalidade nº. 3.540-1 – Distrito Federal, em que foi relator o Min. Celso
de Mello. Nessa ocasião, entendeu o Plenário do Supremo Tribunal Federal que a
atividade econômica não pode ser exercida em desarmonia com os princípios
destinados a tornar efetiva a proteção ao meio ambiente, reconhecendo o direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental de terceira
geração ou de novíssima dimensão que consagra o postulado da solidariedade.
Destaca o relator Min. Celso Mello, em seu voto, a função de proteção reservada ao
direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o qual tem o
sentido de preservação da integridade do meio ambiente em benefício das
presentes e futuras gerações. Assim enuncia a respectiva ementa:
EMENTA: ...
O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter
eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em
compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa
fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as
da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando
ocorrente situão de conflito entre valores constitucionais relevantes, a
uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o
conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o
direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da
generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e
futuras gerações.
Finalmente a função de não discriminação dos direitos fundamentais tem
sido muito acentuada pela doutrina, especialmente a norte-americana, que deduz
essa função primária e básica dos direitos fundamentais do princípio da igualdade e
dos direitos de igualdade específicos consagrados na Constituição, de modo a
assegurar que o Estado trate os seus cidadãos como cidadãos fundamentalmente
iguais. Esta função se aplica a todos os direitos. Abrange tanto os direitos,
liberdades e garantias pessoais (ex: não discriminação em virtude de religião), como
238
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2002. p.
409.
143
tamm os direitos de participação política (ex: direito de acesso aos cargos
públicos), os direitos dos trabalhadores (ex: direito ao emprego e à formação
profissional), estendendo-se aos direitos a prestações positivas (ex: prestações
relativas à educação, à saúde, à habitação). É com base nessa função não
discriminatória dos direitos fundamentais que se discute o problema das quotas (ex:
parlamento paritário de homens e mulheres) e o problema das afirmative actions
tendentes a compensar a desigualdade de oportunidades (ex: quotas de deficientes
e pardos e negros no Brasil).
Em relação à função de não discriminação dos direitos fundamentais, o
Supremo Tribunal Federal já decidiu que o preceito fundamental de liberdade de
expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito
individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede
com os delitos contra a honra. Reconheceu a Suprema Corte a prevalência dos
princípios da dignidade humana e da igualdade jurídica, conforme trecho da ementa
do acórdão relativo ao Habeas Corpus 82.424-2 Rio Grande do Sul, em que foi
relator originário o Min. Moreira Alves e relator do acórdão o Min. Maurício Corrêa,
tendo sido julgado aos 17 de setembro de 2003. Em seu voto, diz o Min. Maurício
Corrêa:
70. José Afonso da Silva aduz que o texto constitucional que “proíbe o
preconceito de origem, cor e ração e condena discriminações com base
nesses fatores, consubstancia-se, antes de tudo, um repúdio à barbárie do
tipo nazista que vitimara milhares de pessoas, e consagra a condenação do
apartheid. Finaliza dizendo que “o rascimo indica teorias e
comportamentos destinados a realizar a supremacia de uma ra. O
preconceito e a discriminação são conseqüências da teoria”.
71. Não se pode perder de vista, na busca da verdadeira acepção do
termo, segundo uma visualização harmônica da Carta da República, dois
dogmas fundamentais inerentes ao verdadeiro Estado de Direito
Democrático, que são exatamente a cidadania e a dignidade da pessoa
humana (CF, artigo 1º., II e III). Pretende-se, com eles, que todos os seres
humanos, sem distinção de qualquer natureza, tenham os mesmos direitos,
para que de fato se cumpra na sua inteireza o “direito de ter direitos”.
...
73. Parece-me evidente, por outra via, que o combate ao racismo tem
clara inspiração no princípio da igualdade, que por sua vez se confunde
com o reconhecimento mundial dos direitos do homem. A Constituição
Brasileira o reitera em várias passagens, não sem razão, deixando
consignada sua condição de preceito fundamental (CF, artigos 1º, II; 3º, IV;
4º, II e VIII; 5º, caput, I, XLI).
74. A efetiva aplicação desses postulados, e a conseqüente defesa dos
direitos humanos, deve ser buscada obstinada e intransigentemente, sob
pena de ruir-se a própria democracia, sendo o combate ao racismo, em seu
144
sentido amplo, fator decisivo para a consecução desse objetivo
fundamental.
Há, portanto, uma evidente superposição e correspondência entre as
dimensões objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais com as funções a eles
atribuídas, podendo estas ser consideradas um mero desdobramento daquelas ou
mesmo uma nova perspectiva da questão.
Para Costa
239
os direitos fundamentais têm ainda uma função
essencialmente democrática para o efeito de preservação e realização do princípio
democrático, impondo que o exercício do poder se dê de forma que garanta a
participação popular, no que se configura, mais uma vez, a importante função de
proteção exercida por ditos direitos.
Portanto, vê-se que os direitos fundamentais exercem, no Estado
Democrático de Direito, a importante função de impedir que o poder político possa
prevalecer sobre o Direito, a fim de que o valor maior da justiça se concretize
materialmente na sociedade. No constitucionalismo contemporâneo os direitos
fundamentais exercem a função primordial de embasarem axiologicamente a
interpretação constitucional. Por isso que o respeito aos direitos fundamentais
legitima o exercício das funções estatais, dentre as quais se destaca a jurisdição
constitucional.
No tocante ainda à função de proteção dos direitos fundamentais, cabe
fazer-se menção à argüição de descumprimento de preceito fundamental, referida
pelo parágrafo 1º. do artigo 102 da Constituição Federal e regulamentada pela Lei
nº. 9.882, de 3 de dezembro de 1999, e que foi idealizada pelo constituinte originário
como mecanismo de defesa dos direitos fundamentais.
Lembra Nobre Júnior
240
, contudo, que, fugindo inteiramente à concepção
aventada à época da promulgação da Constituição de 1988, a referida Lei 9.882/99
desviou–se do propósito de defesa dos direitos fundamentais, que deveria informar o
instituto em questão, para conferir-lhe a natureza de simples mecanismo de defesa
objetiva da Constituição, impedindo, por essa forma, que o Supremo Tribunal
Federal pudesse exercer, pela via direta, o controle de constitucionalidade daquilo
239
COSTA, Maria Isabel Pereira da. Jurisdição constitucional no estado democrático de direito. Porto Alegre:
Síntese, 2003. p. 114.
240
NOBRE JÚNIOR, Edílson Pereira. Direitos fundamentais e argüição de descumprimento de preceito
fundamental. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004. p. 96
145
que não poderia ser impugnado pela ação direta de inconstitucionalidade e pela
ação declaratória de constitucionalidade.
Para Nobre Júnior
241
a tutela dos direitos fundamentais constituiu,
irretorquivelmente, o objetivo do art. 102, §., da Lei Fundamental, à semelhança
do recurso de amparo espanhol e da Verfassungsbeschwerde germânica.
Reconhece ainda Nobre Júnior
242
não se poder negar que a atribuição ao Supremo
Tribunal Federal da competência originária para preservar ou remediar atentado a
direito fundamental dos indivíduos, decorrente de ação ou omissão estatal, implicaria
em uma sobrecarga de feitos. Aduz, contudo, que o acúmulo de processos que vem
sobrecarregando o Supremo Tribunal Federal não decorre do exercício de
atribuições inerentes à guarda da Constituição, mas sim da sua condições de órgão
de última instância na organização judiciária brasileira, já que são basicamente os
recursos extraordinários e os habeas corpus os processos que compõem a grande
massa dos feitos que assoberbam a Suprema Corte.
A solução estaria, segundo Nobre Júnior
243
, na transformação do Supremo
Tribunal Federal em corte constitucional, observado o modelo concentrado dos
países continentais europeus, com a transferência de grande parte da sua
competência para o Superior Tribunal de Justiça.
Com a adoção de tal modelo seria afastada a possibilidade de a argüição
de descumprimento de preceito fundamental implicar na inviabilidade funcional da
Corte Suprema brasileira, possibilitando ao legislador delinear a disciplina adequada
de tal ação à sua função precípua de defesa dos direitos fundamentais, ao invés da
utilização da mesma para a ampliação da fiscalização abstrata e concentrada da
constitucionalidade, que já constitui objeto das ações direta de inconstitucionalidade
e declaratória de constitucionalidade
241
Ibid., p. 97
242
Ibid., p. 100.
243
NOBRE JÚNIOR, loc. cit.
146
6. A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
6.1 Considerações iniciais
Muito embora haja na doutrina uma tendência a não distinguir os termos
hermenêutica e interpretação, para Maximiliano
244
“a hermenêutica é a teoria
científica da arte de interpretar”
A hermenêutica é a teoria ou ciência da interpretação, o conjunto de
preceitos e princípios teóricos acerca da interpretação. Esta, portanto, não é uma
ciência como a hermenêutica, mas um ato através do qual é firmado um significado
para algo. Este ato específico de dar significado a algo é chamado de interpretação.
Já a teoria que estuda a interpretação é chamada de hermenêutica. A origem da
hermenêutica é atribuída na doutrina ao termo grego hermeneia que significa dar a
conhecer algo oculto, trazer à tona algo escondido. Esta expressão estaria ligada
semanticamente ao Deus grego Hermes, aquele deus que dava publicidade às
mensagens dos deuses do Olimpo, transmitindo-as aos mortais. A expressão grega
hermeneia significa transmissão de mensagem.
A hermenêutica jurídica é, pois, a teoria da interpretação do direito. É um
domínio teórico, especulativo, cujo objeto é a formulação, o estudo e a
sistematização dos princípios e regras de interpretação do direito. A hermenêutica é
o conjunto de teorias norteadoras da interpretação.
Já a interpretação jurídica é a atividade prática de revelar o conteúdo, o
significado e o alcance de uma norma, tendo por finalidade fazê-la incidir em um
caso concreto, ou seja, visando à sua aplicação. A aplicação de uma norma jurídica
é o momento final do processo interpretativo, que implica na sua concretização pela
efetiva incidência do preceito sobre a realidade de fato. Esses três conceitos,
hermenêutica jurídica, interpretação e aplicação, constituem os marcos do itinerário
intelectivo que conduzem à realização do direito.
O significado das normas constitucionais dependerá do processo
hermenêutico, que desvendará o conteúdo do seu texto, a partir dos novos
paradigmas nascidos da prática dos tribunais encarregados da justiça constitucional.
A hermenêutica jurídica clássica valia-se dos elementos gramatical,
lógico, histórico e sistemático. Estes dois últimos compreendem uma das
244
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito.Rio de Janeiro: Forense, 1979. p.1-2.
147
contribuições de Savigny
245
para a teoria da interpretação do direito. Contribuiu este
autor tamm com o reconhecimento de que esses quatro elementos não
significavam métodos isolados de interpretação de livre escolha do intérprete, mas
diferentes atividades que têm de atuar em conjunto, a fim de que possa ser
concluída a interpetação. Em razão da ênfase dada ao elemento histórico por
Savigny, em todas as fases do seu pensamento, ele é considerado o principal
representante da Escola Histórica na hermenêutica jurídica.
Posteriormente o elemento sociológico veio a ser incluído entre os
elementos de interpretação pela Escola da Livre Investigação ou do Direito Livre, o
que propiciou novas perspectivas para a hermenêutica jurídica, tendo rompido com o
formalismo das Escolas hermenêuticas de então. O elemento sociológico condiciona
a aplicabilidade dos textos normativos de acordo com as necessidades da
sociedade, baseando-se no entendimento de que, para interpretar adequadamente o
texto da norma, o magistrado necessita de dados sociológicos obtidos a partir da
observação e da experiência.
Ainda outros dois elementos, o teleológico e o axiológico passaram a ser
considerados importantes para a hermenêutica contemporânea. Contudo, não houve
uma substituição daqueles elementos clássicos já referidos pelos modernos, mas a
consideração conjunta de todos eles no processo interpretativo.
O elemento teleológico foi concebido sob o entendimento de que não se
pode reduzir a interpretação da norma jurídica a uma simples subsunção silogísitica,
igualando o ato intepretativo a mera operação matemática, havendo de se buscar o
fim último da norma, que corresponde à finalidade para a qual esta foi editada. Tal
elemento foi introduzido na hermenêutica jurídica por Jhering
246
para buscar, além
da intelecção gramatical, lógica, histórica e sistemática, a finalidade social, visando a
alcançar os interesses individuais, coletivos e difusos beneficiados ou prejudicados
com determinada interpretação.
Outro elemento de grande valia na interpretação jurídica é o elemento
axiológico, intimamente ligado ao teleológico. Para se considerar a finalidade da
norma é necessário investigarmos o seu conteúdo axiológico, isto é, quais são os
valores que ela consagra a fim de ser feita uma interpretação .que atenda à sua
245
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá,
2004, p. 123.
246
Ibid., p. 124.
148
finalidade. Partindo desses elementos diversos autores elaboraram suas teorias
hermenêuticas em busca da adequada interpretação da norma jurídica.
Dentre eles, pode-se citar Habermas (1997 apud GALINDO)
247
que
propõe um modelo processual de interpretação que se inicia com uma pré-
compreensão valorativa que estabelece uma relação preliminar entre a norma a
interpretar e o estado de coisas que a circundam. O juiz formularia a sua pré-
compreensão sobre dita situação subjacente à norma por meio de pontos de vista
dentro de um conceito ético-tradicional.
Reale
248
concebeu o seu método hermenêutico estrutural levando em
consideração todos os elementos referidos anteriormente e formulando diretrizes
fundamentais que impedem que a interpretação jurídica seja tratada por critérios
livres ao sabor do intérprete. São as seguintes as diretrizes da sua interpretação
estrutural: unidade do processo hermenêutico; natureza axiológica do ato
intepretativo; natureza integrada do ato interpretativo; limites objetivos do processo
hermenêutico; natureza histórico-concreta do ato interpretativo; natureza racional do
ato interpretativo; problematicismo e razoabilidade do processo hermenêutico,
natureza econômica do processo hermenêutico, destinação ética do processo
interpretativo e globalidade de sentido do processo hermenêutico.
Quando se trata da interpretação constitucional, não deve o intérprete
rejeitar a contribuição da hermenêutica jurídica clássica, mesmo seguindo princípios
próprios do direito constitucional, nem abandonar os fundamentos básicos e
peculiares da interpretação da norma jurídica em geral. A interpretação
constitucional envolve alguns problemas específicos, tais como a repercussão da
interpretação constitucional sobre todo o ordenamento jurídico, implicando até
mesmo na declaração de inconstitucionalidade das normas inferiores, pela
incompatibilidade destas com as disposições constitucionais. Tamm o forte caráter
político-ideológico da constituição torna difícil, senão impossível, como adverte
Galindo
249
, estabelecer critérios seguros de interpretação. As normas constitucionais
são dotadas de uma grande plasticidade, que permite possam elas ajustar-se às
contínuas mutações sociais próprias da evolução natural da vida, sem que percam o
247
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais. análise de sua concretização constitucional. Curitiba : Juruá,
2004. p.126.
248
REALE, Miguel. Fontes e Modelos do Direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo:
Saraiva, 1994. p. 111-112.
249
GALINDO, op. cit., p. 128.
149
caráter de normas de orientação política do Estado. Assim, as ponderações e
avaliações políticas são importantes na interpretação constitucional, adequando-as
aos valores políticos insculpidos na Carta Magna.
A partir do Constitucionalismo, que se traduz em um movimento político
cujo objetivo básico foi a adoção da Constituição escrita, a interpretação desta não
pode deixar de considerar a questão política, o que leva a hermenêutica
constitucional a abandonar a neutralidade axiológica, incompatível com as normas
constitucionais que não são axiologicamente neutras.
Assim, por força desta necessidade de valoração axiológica da
interpretação constitucional (que mais se acentuou com o advento do Estado Social,
voltado para a promoção dos direitos fundamentais individuais ou sociais), surgiu a
chamada nova hermenêutica, que busca estabelecer uma interpretação moderna da
Constituição, contrapondo-se ao positivismo lógico-formal que preponderou na
hermenêutica constitucional do Estado liberal.
Como assevera Galindo
250
a nova hermenêutica trouxe muitas incertezas
e perplexidades, principalmente por afastar-se do formalismo exagerado, buscando
a construção de uma hermenêutica material da Constituição, vinculada a uma teoria
material desta. A Constituição perdeu assim aquela feição de uma vaga idéia geral e
abstrata, sem nenhuma força normativa, para transformar-se efetivamente em
direito, alcançando a densidade de uma norma jurídica.
De sorte que, da mesma forma como a Constituição, a partir da sua
densidade jurídico-normativa, passou a fazer o acoplamento entre a política e o
Direito, a hermenêutica constitucional, utilizada pela jurisdição constitucional,
assumiu, a partir da nova hermenêutica, a função de sintonizar o Estado Social e
Democrático de Direito e os direitos fundamentais assegurados pelas normas
constitucionais, garantindo a concretização efetiva destes. Vale frisar-se ainda que a
hermenêutica constitucional dos direitos fundamentais não deixa de levar em conta
as categorias da interpretação jurídica em geral, inclusive considerando os
elementos tradicionais gramatical, histórico, sistemático e teleológico, pois só assim
atenderá à multifuncionalidade ostentada por ditos direitos.
250
GALINDO, op. cit, p. 131.
150
6.2 A interpretação da Constituição e os princípios constitucionais
Os princípios são generalizações de normas, valores-sínteses, espécie de
balizas orientadoras da produção, e sobretudo da interpretação e aplicação do
Direito, dando coerência, unidade e consistência ao sistema normativo como um
todo. A interpretação da Constituição, sob um enfoque material, deve partir do
princípio geral de que “obedecer a lei não é homenagear-lhe a forma, mas
reverenciar-lhe o conteúdo”
251
, de modo a dar a maior efetividade possível à norma
constitucional, já que ela regula os pressupostos básicos da organização social.
Foi com o ingresso dos princípios gerais do Direito, com força positiva
incontrastável, nas Constituições, na segunda metade do século XX, que se operou
uma revolução de juridicidade sem precedentes nos anais do constitucionalismo. Os
então princípios gerais do direito transformaram-se em princípios constitucionais,
ensejando a abertura do direito à moral, à política, à filosofia e a tudo o que, até
então, ficava relegado ao campo proibido do extrajurídico.
A nova hermenêutica constitucional retirou os princípios, antes
designados simplesmente por princípios gerais de Direito, da esfera menor dos
Códigos, para as instâncias mais arejadas e abertas das Constituições, cujo espaço
foram ocupando sem maiores cerimônias até alcançarem aquela densidade
normativa que os tornou senhores supremos da juridicidade constitucional.
Tornaram-se, pois, os princípios nas vértebras de todo o sistema
constitucional. Sem eles a Constituição navegaria à deriva. Não lograria qualquer
consistência. Não seria lei, nem direito, mas unicamente aquela folha de papel
referida por Lassalle que, para Bonavides
252
, seria não apenas o insigne precursor,
senão o fundador da teoria material da Constituição.
São os princípios a mola-mestra da teoria material da Constituição, a
manivela do poder legítimo, a idéia-força que ampara todo o sistema de organização
social. Violá-los configura uma inconstitucionalidade material, quer dita violação
afronte direta ou indiretamente a Carta Suprema.
253
251
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. São Paulo: Malheiros,
1993. p. 82.
252
BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2001.
p.123-124.
253
BONAVIDES, loc. cit.
151
Fazendo-se uma assimilação intercalar das normas programáticas aos
princípios, vale a pena mencionar-se que alguns autores não reconheciam a ambas
as espécies qualquer normatividade jurídica. Sob o influxo da concepção dos direitos
sociais, culturais e econômicos de segunda geração, não se revestiam ditas normas
programáticas de eficácia normativa e juridicidade. Hoje em dia, seguindo a melhor
doutrina da Nova hermenêutica, as normas programáticas já não devem ser
consideradas ineficazes ou providas apenas de um valor meramente diretivo e de
orientação ao intérprete.
Também Verdú
254
adota tal entendimento, afirmando que a doutrina
espanhola, inspirada em vários juristas italianos, especialmente em Vezio Crisafulli,
insiste no valor jurídico de todas as normas contidas no instrumento constitucional,
de modo que tal alcance jurídico deve estender-se aos princípios retores da política
social e econômica, inseridos no Capítulo II, Título I, arts. 39-52 da Constituição
Espanhola de 1978, e que eram denominados, convencionalmente, simples normas
programáticas.
Os princípios assumiram importância ímpar no Estado Democrático de
Direito e se constituem na própria condição de possibilidade da Constituição, porque
ordenam e conformam o núcleo político desta, constituindo o que o
constitucionalismo contemporâneo denomina de relação de pertinência entre as
normas.
Segundo a doutrina moderna do pós-positivismo, os princípios exprimem
a mais alta normatividade de todo o sistema constitucional, não havendo distinção
entre princípios e normas, já que os princípios são normas tamm, dotados de
ampla normatividade. As normas compreendem as regras e os princípios, e a
distinção mais relevante entre ambas as categorias não é mais, como nos primórdios
da doutrina, entre princípios e normas, mas entre regras e princípios, sendo as
normas o gênero, e as regras e os princípios as espécies.
Em sendo a Constituição um repositório de valores que se traduzem por
princípios constitucionais, assumem estes uma importância ímpar no processo de
interpretação constitucional, especialmente a partir da concepção das normas
constitucionais como regras e princípios.
254
VERDÚ, Pablo Lucas. O Sentimento constitucional. Rio de Janeiro: Forens, 2004. p. 123.
152
A tese que se mostra mais exata na referida distinção é a que defende
existir entre regras e princípios uma diferença qualitativa relevante. Dworkin
255
acolhe esse entendimento, que é denominado na doutrina de tese da separação
forte, sustentando que as regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada (all-or-
nothing fashion) e que os princípios têm uma dimensão que as regras não têm: a
dimensão do peso ou importância (dimension of weight). Quando dois princípios
colidem, o princípio de peso relativamente maior decide a questão, sem que o
princípio de peso relativamente menor se torne inválido.
Como afirma Heck
256
, somente aquelas normas que podem ser
mencionadas como fundamentos para direitos individuais são consideradas
princípios por Dworkin. As normas que se referem a bens coletivos, são por ele
denominadas policies (significando determinações de objetivos). Todas as normas
suscetíveis de serem participantes em colisões, na forma acima referida, devem ser
denominadas de princípios. A diferença entre direitos individuais e bens coletivos é
levada em conta no quadro de uma distinção interior no quadro dos princípios.
Para Alexy (apud
HECK)
257
, o ponto decisivo para a distinção entre regras
e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado em
uma medida tão alta quanto possível relativamente às condições fáticas e jurídicas,
configurando os conhecidos mandamentos de otimização. As regras, ao contrário,
são normas que sempre, ou somente, podem ser cumpridas ou não cumpridas. Se
uma regra vale, então é ordenado fazer exatamente aquilo que ela solicita: nem
mais nem menos. Regras contêm determinações no espaço do fática e juridicamente
possível, não sendo importante se o modo de atuação, ao qual a regra se refere,
pode ser realizado ou não em graus diferentes. Se é exigida uma medida tão alta
quanto possível de cuidados relativamente às possibilidades jurídicas e fáticas, trata-
se de um princípio. Se é exigida somente uma determinada medida de cuidado,
trata-se de uma regra. As regras contêm determinações com vista às exigências dos
princípios em sentido contrário. Já os princípios se definem pelo fato de não
conterem determinações dessa natureza.
255
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: M. Fontes, 2002. p. 39 e 42.
256
HECK, Luís Afonso. Regras, princípios jurídicos e sua estrutura no pensamento de Robert Alexy. In:
LEITE, George Salomão. Dos Princípios Constitucionais: considerações em torno das normas principiológicas
da constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 63.
257
Ibid., p. 64.
153
As regras têm um caráter prima-facie essencialmente mais forte que
princípios, formando, por isso, o que se denomina a parte dura do ordenamento
jurídico. Entende Alexy
258
que a norma que concede o direito fundamental deve ser
compreendida como princípio, cujo recuo em determinado caso somente é
admissível quando um princípio em sentido contrário o jusitifica. A existência de
princípios no ordenamento jurídico constitucional significa que o sistema jurídico
constitucional é um sistema aberto diante da moral. Por isso que o sistema jurídico
constitucional é composto por um plano de princípios em correspondência a um
plano das regras, de caráter francamente deontológico, acrescido de um plano que,
atrás de sua forma deontológica, tem um caráter axiológico.
259
O sistema jurídico
constitucional compreende tanto elementos deontológicos quanto axiológicos.
Os princípios passam, pois, a a ser tratados como Direito pela nova
hermenêutica, assumindo inegável superioridade e hegemonia na pirâmide
normativa. Dita superioridade não é unicamente formal, mas sobretudo material, e
apenas possível na medida em que os princípios são compreendidos, equiparados e
muitas vezes confundidos com os valores.
Configuram, portanto, os princípios a mais alta normatividade que
fundamenta a organização do poder, representando os valores fundamentais que
governam a Constituição, o regime político e a ordem jurídica. Não são apenas a lei,
mas o Direito em toda a sua extensão, substancialidade, plenitude e abrangência.
Enfim, consoante a bem conhecida expressão de Bonavides
260
, “as regras vigem e
os princípios valem.
Tamm se mostrou importante para o reconhecimento precoce da
positividade ou normatividade dos princípios em grau constitucional ou
juspublicístico, e não meramente civilista, a função renovadora precocemente
desempenhada pelas Cortes Internacionais de Justiça, no tocante aos princípios
gerais de Direito, em época em que o velho positivismo ortodoxo ou legalista ainda
dominava incólume na doutrina. Destaca-se o conceito de princípio elaborado pela
Corte Constitucional italiana, em uma de suas primeiras sentenças, em 1956,
considerando como princípios do ordenamento jurídico aquelas orientações e
258
Heck, Luís Afonso. Regras, princípios jurídicos e sua estrutura no pensamento de Robert Alexy. In:
LEITE, George Salomão. Dos prinpios constitucionais: consdierações em torno das normas principiológicas da
constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 67.
259
Heck, loc. cit.
260
BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2001. p.
288.
154
aquelas diretivas de caráter geral e fundamental que se possam deduzir da conexão
sistemática, da coordenação e da íntima racionalidade das normas que concorrem
para formar assim, num dado momento histórico, o tecido do ordenamento jurídico.
O pós-positivismo corresponde aos grandes momentos constituintes das últimas
décadas do século XX. As novas Constituições promulgadas acentuam a hegemonia
axiológica dos princípios, “convertidos em pedestal normativo sobre o qual se
assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais”
261
.
A juridicidade dos princípios passa por três fases distintas: a
jusnaturalista, a positivista e a pós-positivista. Na fase jusnaturalista os princípios
são desprovidos de normatividade e permanecem numa esfera inteiramente
abstrata, possuindo uma dimensão ético-valorativa de idéia que inspira os
postulados de justiça. A corrente jusnaturalista concebe os princípios gerais de
Direito como forma de axiomas jurídicos ou normas estabelecidas pela reta razão,
que assumiriam a feição de normas universais de bem obrar. São, em síntese, os
princípios de justiça, constitutivos de um Direito ideal. O ideal de justiça, no
entendimento dos autores jusnaturalistas, impregna a essência dos princípios gerais
de Direito. Esta fase jusnaturalista dominou a dogmática dos princípios por um longo
período até o advento da Escola Histórica do Direito. A esta fase jusnaturalista
seguiu-se a do positivismo.
O advento da Escola Histórica do Direito e a elaboração dos Códigos
precipitaram a decadência do Direito Natural clássico, fomentando, ao mesmo
tempo, desde o século XIX até a primeira metade do século XX, a expansão
doutrinária do positivismo jurídico. A diferença mais destacada, na doutrina dos
princípios, entre a tendência naturalista e a histórica ou positivista é que a primeira
proclama a insuficiência dos princípios extraídos do próprio ordenamento jurídico
positivo para preencher as lacunas da lei, surgindo, em conseqüência, a
necessidade de recorrer aos do Direito Natural. A corrente positivista entende que se
pode manter dentro do ordenamento jurídico estatal com os princípios que deste
sejam obtidos por analogia.
A segunda fase da teorização dos princípios vem a ser, portanto, a
juspositivista, com os princípios alojando-se nos Códigos como fonte normativa
subsidiária. Sustenta tal concepção positivista ou histórica que os princípios gerais
261
BONAVIDES, ibid. p. 264.
155
de Diretio equivalem aos princípios que informam o Direito Positivo e lhe servem de
fundamento. Assim, para esta corrente, os princípios já estão dentro do Direito
Positivo e, por ser este um sistema coerente, podem ser inferidos do mesmo. O valor
dos princípios para os positivistas decorre de derivarem eles das próprias leis, não
sendo ditados pela razão ou por constituírem um Direito Natural ou ideal. Mas o
positivismo, fazendo dos princípios, na ordem constitucional, meras pautas
programáticas supralegais, negou-lhes normatividade, atribuindo-lhes, em
conseqüência, a mais completa irrelevância jurídica.
A terceira fase da teorização dos princípios é, enfim, a do pós-positivismo,
que corresponde aos grandes momentos constituintes das últimas décadas do
século XX. As novas Constituições então promulgadas acentuam a hegemonia
axiológica dos princípios.
Friedrich Müller, na Alemanha, e Dworkin, nos Estados Unidos,
posicionam-se, já na corrente histórica do pós-positivismo, como juristas que
contribuíram decisivamente para a virada na doutrina jurídica que passou a
reconhecer aos princípios força normativa. Passaram estes a ser tidos,
definitivamente, por normas-valores com positividade maior nas Constituições do
que nos Códigos, daí decorrendo serem eles considerados normas de eficácia
suprema.
Era a virada para o juspublicismo que dava o salto decisivo, de natureza
qualitativa, para o judicialismo de um novo Estado de Direito, tendência
contemporânea com a qual tem afinidade a teoria material da Constituição. Era,
enfim, o estabelecimento de um discurso metodológico através do qual a norma era
conceitualmente elevada à categoria de gênero, do qual as espécies são o princípio
e a regra.
A teoria dos princípios, depois de acalmados os debates acerca da
normatividade que lhes é inerente, se converteu no coração da Constituições. E a
partir daí, podemos concluir que abriu caminho para a elaboração da teoria material
da Constituição que ensejou o salto de qualidade em direção ao Estado Democrático
de Direito contemporâneo.
Cabe hoje aos direitos fundamentais, como pilares legitimantes do
ordenamento jurídico fundado no Estado Democrático de Direito, utilizar a
programaticidade principiológica das normas constitucionais para valorizar a força
cogente do ordenamento jurídico constitucional, de modo que a Constituição possa
156
tornar-se uma instituição viva, impregnada dos valores essenciais à vida de relação
e rente com a realidade do contexto social.
O grande desafio do Direito contemporâneo não é o de oferecer previsão
normativa para todas as possíveis demandas sociais, mas sim o de oferecer uma
das diversas soluções encontráveis no sistema, particularmente nas Constituições,
como sendo a mais adequada. Tal procedimento envolve problemas de
racionalização e ponderação dos princípios existentes tanto quanto o da justificação
da escolha realizada, que se dá por meio da argumentação jurídica, que se podem
considerar técnicas modernas e eficazes a serem utilizadas pela jurisdição
constitucional no seu exercício constante de atualização das normas constitucionais,
de molde a adequá-las à realidade social, preservando a normatividade e efetividade
das mesmas.
Os princípios constitucionais, especialmente os implícitos, que se acham
latentes no ordenamento jurídico, são de vital importância na tutela dos direitos
fundamentais, desempenhando um papel hermenêutico essencial por meio da
atuação da Jurisdição Constitucional, que se incumbe de garantir-lhes a plena
eficácia.
Configuram eles genuínos vetores exegéticos para a interpretação,
compreensão e aplicação das demais normas constitucionais, especialmente as de
direitos fundamentais. Consubstanciam, pois, ditos princípios o fio condutor da
hermenêutica jurídica, encaminhando o trabalho do intérprete consoante os valores
e interesses que abrigam.
Maior importância adquirem os princípios constitucionais quando se tem a
Constituição como um sistema aberto, onde devem se refletir os valores
fundamentais partilhados pela sociedade. Dentre tais princípios, particularmente no
tocante à eficácia dos direitos fundamentais, destaca-se o princípio da razoabilidade
ou proporcionalidade, como recurso destinado a resolver equilibradamente conflitos
típicos das sociedades pluralistas contemporâneas, palco constante de entrechoque
de valores, de modo a se alcançar a aquiescência da comunidade envolvida.
Há uma rica polêmica sobre as relações entre o princípio da razoabilidade
e o da proporcionalidade. Há os que vêem a razoabilidade como parte da
proporcionalidade, outros consideram a proporcionalidade como elemento do
razoável.
157
Sampaio
262
sustenta, com respaldo no estudo crítico da jurisprudência
constitucional comparada e no trabalho doutrinário e filosófico, que a
proporcionalidade constitui um aspecto da razoabilidade. Para ele o regramento
proporcional, tanto em sentido vulgar, quanto em sentido técnico, é elemento
indispensável de todo legislador razoável. Para ele as distinções só valem pela sua
utilidade e à medida que aperfeiçoam o sistema dogmático.
A jurisprudência constitucional tem sido um elemento decisivo na
construção do sentido do princípio da razoabilidade e vem utilizando-o com grande
freqüência, ainda que muitas vezes sob a denominação de proporcionalidade, e em
outras com os sentidos de um e de outro se entrecruzando. De qualquer maneira,
há uma tendência em se utilizar, de forma mais constante, a expressão
razoabilidade.
Há tamm os sistemas que não utilizam nenhum dos termos referidos,
embora o sentido de ambos esteja presente nas motivações judiciais. Por exemplo,
na Europa a Corte de Justiça tem feito uso freqüente do princípio da
proporcionalidade, previsto no art. 5º do Tratado da Comunidade Européia, que
restringe a ação da Comunidade a situações necessárias à realização dos objetivos
comunitários, o que vem influenciando os países membros a adotarem uma
linguagem própria ao respectivo uso, embora a terminologia e o sentido nem sempre
sejam unívocos e haja predominância da expressão razoabilidade.
A Corte de Arbitragem da Bélgica utiliza o princípio da proporcionalidade
como elemento autorizador da exceção da norma da igualdade, desde que se
mostrem presentes determinados fundamentos objetivos e haja uma relação
razoável entre os meios empregados e os fins perseguidos. Na Holanda, o princípio
da proporcionalidade já era positivado desde 1929 no regramento da Administração
Pública, tendo sido, posteriormente, codificado na Lei Geral sobre o Procedimento
Administrativo (art. 3.4 da Lei de 1º/11/1994). De qualquer forma, lá também tem
sido empregado o princípio da razoabilidade, entendido como exigência de meios
apropriados, finalidade legítima e justificação objetiva. Por influência germânica, na
Áustria, como em Portugal (onde foi positivado constitucionalmente nos artigos 19.4
e 266.2), tem sido preferido o emprego da proporcionalidade como um aspecto
262
SAMPAIO, Jo Adércio Leite. O retorno às tradições: a razoabilidade como parâmetro constitucional. In:
SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte:
Del Rey, 2003. p. 63.
158
parcial da igualdade, servindo de mandado de justificação objetiva de discriminação.
Contudo, parte da doutrina tamm associa a proporcionalidade a uma
manifestação concreta do Estado de Direito e do princípio da legalidade.
263
Embora divergindo da concepção piramidal de Kelsen (onde o processo
de legitimação das normas constitucionais tende ao infinito), Guerra Filho
264
propõe
um corte epistemológico para o estudo do topo da pirâmide, na qual centraliza-se a
concepção do ordenamento jurídico como uma ordem escalonada de normas. O
referido corte no cume da pirâmide, no qual situam-se os princípios constitucionais,
revela o princípio que representa a decisão política fundamental.
Exemplificando com o nosso ordenamento jurídico, verificamos que a
nossa Constituição de 1988 anuncia dita decisão política fundamental já no seu
preâmbulo, ao enunciar o princípio do Estado Democrático. Deste princípio fundante
decorrem os princípios fundamentais que, por sua vez, subdividindem-se em
princípios fundamentais estruturantes e princípios fundamentais gerais.
Como princípios fundamentais estruturantes aponta Guerra Filho
265
o
princípio do Estado de Direito e o princípio democrático, referindo que a estes
Canotilho
266
acrescenta mais o princípio republicano.
Dentre os princípios fundamentais gerais enunciados no artigo 1º da
nossa Carta Magna de 1988 destaca-se o princípio da dignidade humana, que
mereceu formulação clássica na ética kantiana, precisamente na máxima que
determina aos homens, em suas relões interpessoais, jamais agirem de molde a
que o outro seja tratado como objeto, e não igualmente como um sujeito.
Dito princípio constitui o que a doutrina constitucional alemã,
considerando o estatuído pelo art. 19, II, da Lei Fundamental, denomina de ‘núcleo
essencial intangível’ dos direitos fundamentais. Entre nós, antes mesmo da entrada
em vigor da atual Constituição Federal, a melhor doutrina já enfatizava que o “núcleo
essencial dos direitos humanos reside na vida e na dignidade da pessoa“
267
.
263
SAMPAIO, Jo Adércio Leite. O retorno às tradições: a razoabilidade como parâmetro constitucional. In:
SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte:
Del Rey, 2003. p. 65-66.
264
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da constituição. São Paulo: C. Bastos Editor, 2002.
p.160-161.
265
Ibid., p.162.
266
CANOTILHO, J. J Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2003. p.
1159.
267
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da constituição.São Paulo: C. Bastos Editor, 2002.
p.163.
159
Já os direitos fundamentais estariam consagrados, objetivamente, em
princípios constitucionais especiais, que seriam a densificação ou concretização
(ainda que em nível extremamente abstrato) daquele princípio fundamental geral de
respeito à dignidade da pessoa humana, do qual, por sua vez, se deduz o princípio
da proporcionalidade, como uma necessidade lógica, e até política, de se evitarem,
no plano da concretização material, as colisões entre eles. Valendo-se do princípio
da proporcionalidade, se privilegiaria, circunstancialmente, alguns dos direitos
fundamentais em conflito, mas sem, com isso, chegar a se atingir outros dos direitos
fundamentais conflitantes, no seu núcleo essencial.
Em se cuidando de colisão de princípios, a ponderação destes não
representa uma técnica puramente procedimental para a sua solução, mas sim
método que incorpora uma irredutível dimensão substantiva utilizada com freqüência
habitual pela jurisdição constitucional como forma de promover os valores
humanísticos superiores que subjazem à ordem constitucional, assegurando a
eficácia aos direitos fundamentais e a atualização das demais normas
constitucionais. Estes valores estão sintetizados no princípio da dignidade da pessoa
humana, que confere unidade teleológica a todos os demais princípios e regras que
compõem o ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional.
268
A interpretação constitucional exige a especificação de um outro conceito
relevante que é o de construção, e que significa tirar conclusões a respeito de
matérias que estão além e fora das expressões contidas no texto constitucional e
dos fatores nele considerados. Tal exigência decorre do fato de conter a
Constituição, predominantemente, normas que possuem grande caráter de
abstração. Enquanto a interpretação limita-se à exploração do texto, a construção
significa tirar conclusões a respeito de matérias que estão fora e além das
expressões contidas no texto e dos fatores nele considerados. Essas conclusões
são colhidas no espírito, e não na letra da norma. A construção vai além do texto da
norma, chegando mesmo a recorrer a considerações extrínsecas.
Muito embora a interpretação constitucional sirva-se de alguns princípios
próprios e apresente especificidades e complexidades que lhe são inerentes, não
deve ela ser excluída do âmbito da interpretação geral do direito, já que partilha das
mesmas características e natureza desta e ainda em razão do princípio da unidade
268
SARMENTO, Daniel. A ponderão de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2003. p. 57
160
da ordem jurídica e do conseqüente caráter único da sua interpretação. Assim, toda
norma jurídica e, ipso facto, toda norma constitucional precisa ser interpretada.
Contudo, ditas normas constitucionais destacam-se por determinadas
singularidades, quais sejam, a superioridade hierárquica, a natureza da linguagem,
o conteúdo específico, e o caráter político.
A superioridade, a superlegalidade ou a supremacia da Constituição é a
nota mais essencial do processo de interpretação constitucional. É a superioridade
da Constituição que confere a esta o efeito subordinante de todo o ordenamento
jurídico. Em razão disso, nenhum ato jurídico pode subsistir validamente no âmbito
do Estado, se contravier qualquer norma constitucional. Essa supremacia se afirma
através dos diferentes mecanismos de controle de constitucionalidade.
A linguagem constitucional é aquela própria à veiculação de normas
principiológicas e normas esquemáticas ou regras, posto que já sabemos dividirem-
se as normas constitucionais em princípios e regras, estas seguindo um esquema
mais objetivo de incidência. Assim a natureza das normas constitucionais faz com
que a linguagem destas apresentem maior abertura, maior grau de abstração e,
conseqüentemente, menor densidade jurídica.
Assim, conceitos como os de igualdade, moralidade, função social da
propriedade, justiça social, bem comum, dignidade da pessoa humana, dentre
outros, conferem ao intérprete um significativo espaço de discricionariedade, uma
liberdade de conformação na interpretação judicial. O problema dessa liberdade de
conformação na interpretação judicial se mostra mais agudo nos países de
Constituição sintética, onde a plasticidade de certas cláusulas genéricas admite
variações entre extremos. Contudo, mesmo em Estados que adotam uma carta
analítica, ou casuística, como o caso brasileiro, a questão também se apresenta
com freqüência, dada a extensa indeterminação de tais clásulas de conceitos
indeterminados.
O texto para ser compreendido adequadamente deve ser compreendido
em cada situação concreta, pois compreender é um caso especial da aplicação de
algo geral a uma situação concreta e particular. O conhecimento do sentido de um
texto jurídico e sua aplicação a um caso concreto não são atos separados, mas um
processo unitário. A tarefa de interpretar consiste, assim, em concretizar a lei em
cada caso, ou seja, na sua aplicação.
161
No tocante ao conteúdo específico, as Constituições abrigam: a) as
normas de conduta, que são aquelas que prescrevem comportamentos,
disciplinando-os em função de valores cuja preservação é tida por adequada e
conveniente, e que geram direitos e obrigações para os indivíduos e coletividades;
b) as normas de organizações, que não se destinam a disciplinar condutas de
indivíduos ou grupos, mas têm um caráter instrumental, pois, além de estruturarem
organicamente o Estado, disciplinam a própria criação e aplicação das normas de
conduta.
As normas de organização, precedem, naturalmente, as normas de
conduta ou normas de estrutura, não se apresentando como juízos hipotéticos, pois
não contêm a previsão abstrata de um fato, cuja ocorrência efetiva deflagra efeitos
jurídicos. Elas possuem um efeito constitutivo imediato das situações que enunciam.
Como, em princípio, não geram direitos subjetivos, elas não são interpretadas e
aplicadas em igualdade de condições com as normas de conduta. Por fim, deve-se
lembrar que as normas constitucionais são políticas quanto à sua origem, ao seu
objeto e aos resultados da sua aplicação. De fato, a Constituição resulta do poder
constituinte originário, tido como poder político fundamental. Seabra Fagundes
269
inicia sua obra clássica, afirmando que o Poder Constituinte é a manifestação mais
alta da vontade coletiva que cria o Estado, ou o reconstrói, por meio da Constituição.
A despeito do seu caráter político, a Constituição materializa a tentativa
de conversão do poder político em poder jurídico. Seu objeto é um esforço de
juridicização do fenômeno político. Daí porque a Jurisdição Constitucional,
encarregada de realizar a interpretação da Constituição, por mais técnica e apegada
ao direito que possa e deva ser, jamais se libertará de uma certa dimensão política,
circunstância que sempre se refletirá na interpretação das suas normas.
270
Cappelletti (1984 apud BARROSO)
271
reconhece tal circunstância,
afirmando que o controle judicial de constitucionalidade das leis sempre é
destinado, por sua própria natureza, a ter tamm uma coloração política mais ou
menos evidente, mais ou menos acentuada, o que implica em dizer que deve ser
269
FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. São Paulo:
Saraiva, 1984. p. 1.
270
BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 111-
112.
271
BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 111.
162
admitida uma ativa e criativa intervenção das Cortes investidas da função de
controle, na dialética das forças políticas do Estado.
Destaca ainda Barroso
272
o voto do Ministro Themístocles Brandão
Cavalcanti proferido no Supremo Tribunal Federal sobre a natureza política da
Constituição, entendendo que:
Na interpretação da Constituição não se deve levar em conta somente a
intenção do legislador, o sentido e a significação das palavras, o raciocínio
lógico no processo de interpretação, mas principalmente o sentido político
da interpretação, considerando-se a Constituição como um diploma político”.
(Supremo Tribunal Federal, Representações por inconstitucionalidade:
dispositivos de Constituições estaduais, 1976, v. 1, p. 153).
Sobre o referido voto assevera Barroso
273
, que, se é certo que se deve
levar em conta o sentido político na interpretação constitucional, o uso do advérbio
principalmente parece ser uma demasia. Não é possível neutralizar inteiramente a
interferência de fatores políticos na interpretação constitucional, rememorando que a
racionalidade total não é atingível no direito constitucional. No entanto, não se deve
renunciar totalmente a ela, mas sim buscar a racionalidade possível, pois a
interpretação constitucional, a despeito do caráter político do objeto e dos agentes
que a levam a efeito, é uma tarefa jurídica, e não política. Por isso que a
interpretação constitucional submete-se às regras de racionalidade, objetividade e
motivação exigíveis das decisões proferidas pelo Poder Judiciário. As Cortes
Constitucionais não devem ser cegas ou indiferentes às conseqüências políticas de
suas decisões, inclusive para impedir resultados injustos ou danosos ao bem
comum, não deixando, porém de sempre observar os limites e as possibilidades
abertas pelo ordenamento. O juiz não pode, jamais, decidir contra o direito. Em caso
de conflito deste com a política, deverá vincular-se ao direito.
Merece enunciação o julgamento, por unanimidade, aos 08 de maio de
2003, da ADIn nº. 2.327-6 - São Paulo, em que foi relator o Min. Gilmar Mendes, no
qual ficou assentado que norma estadual não pode legislar sobre assuntos de
interesse local, disciplinando a distribuição de farmácias e drogarias nas cidades do
Estado de São Paulo com mais de 30.000 (trinta mil) habitantes, com o objetivo de
evitar a concentração delas em determinada área. Trata-se, no caso, de medida
relacionada com assuntos de interesse dos municípios, que foge à competência dos
Estados, tornando induvidosa a inconstitucionalidade formal da referida Lei nº.
272
Ibid., p. 111-112.
273
Ibid., p. 112.
163
10.307, de 06 de maio de 1999, do Estado de São Paulo. O Min. Relator, fazendo
uma análise do tema, à luz do princípio da proporcionalidade, entendeu haver
tamm inconstitucionalidade material posto encerrar a norma impugnada restrição
incompatível com o direito fundamental à liberdade de exercício profissional (art. 5º,
XIII, da C.F.). Assim enuncia a ementa do respectivo acórdão:
EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Governador do Estado
de São Paulo. 3. Lei Estadual nº. 10.307, de 06 de maio de 1999. Fixação
de distâncianima para a instalão de novas farmácias e drogarias. 4.
Inconstitucionalidade formal. Norma de interesse local editada pelo Estado-
membro. 5. Inconstitucionalidade material. Descumprimento do princípio
constitucional da livre concorrência. Precedentes. 6. Ação direta
procedente.
Tamm no julgamento do Habeas Corpus nº. 82.969-4 – Paraná, aos 30
de setembro de 2003, o mesmo Relator, Min. Gilmar Mendes, afirma que, na sua
acepção originária, o princípio da proporcionalidade proíbe a utilização ou
transformação do ser humano em objeto de degradação dos processos e ações
estatais e reconhece que, no caso em exame, ficou configurado o excesso na
atividade de persecução criminal, evidenciando-se típica hipótese de violação ao
princípio da proporcionalidade, também denominado princípio do devido processo
legal em sentido substantivo, ou ainda princípio da proibição do excesso. Tal
princípio constitui uma exigência positiva e material, relacionada com o conteúdo de
atos restritivos de direitos fundamentais, estabelecendo um “limite do limite” ou uma
“proibição de excesso” na restrição de tais direitos. Lembra ainda a lição valiosa de
Alexy, para quem a máxima da proporcionalidade coincide com o chamado núcleo
essencial dos direitos fundamentais, concebido sempre de modo relativo. Assevera
ainda o Min. Gilmar Mendes, em seu voto, que o princípio ou máxima da
proporcionalidade determina o limite último da possibilidade de restrição legítimade
determinado direito fundamental. Assim dispõe a respectiva ementa:
EMENTA: Habeas corpus ajuizado em favor de gerente de agência do
Banco do Brasil S.A., em face de decisão proferida pelo Superior Tribunal
de Justiça. 2. Crime de desobediência. 3. Mandado de penhora que, a par
de indicar expressamente o valor total da dívida, continha comando
adicional para penhora de cinqüenta por cento de numerário vinculado a
conta bancária. 4. Recusa do paciente em disponibilizar quantia
correspondente a cinqüenta por cento do numerário vinculado a conta
bancária, haja vista que tal parcela era superior ao valor total da dívida,
indicado expressamente no mandado. 5. Cumprimento do mandado de
penhora, tendo em vista a quitação o valor total da dívida. 6. A mera
instaurão de inquérito, quando evidente a atipicidade da conduta,
constitui meio hábil a impor violão aos direitos fundamentais, em especial
164
ao princípio da dignidade humana. 7. Ausência de proporcionalidade. 8.
Ausência de tipicidade. 9. Ausência de dolo. 10. Ausência de justa causa.
11. Sentença nula. 12. Ordem deferida.
6.2.1 A interpretação clássica e a interpretação moderna da Constituição
A teoria constitucional percorreu duas vias: a filosófico-jurídica, que é a
da Filosofia do Direito, encampada pela Filosofia do Direito, pela Nova hermenêutica
e pelo Direito Constitucional, e a jurídica propriamente dita, que é a da Ciência do
Direito, do positivismo tradicional e da Velha Hermenêutica.
Pela via filosófica-jurídica, os pensadores do Direito deduzem de
aforismos filosóficos e ideológicos suas noções jusconstitucionais, buscando a
relevância dos conteúdos e seu predomínio, relativo ou absoluto, sobre os
elementos formais. Partem, assim, para a dogmática da Constituição aberta, cujas
cláusulas adquirem inteira juridicidade mediante o ato de concretização.
Pela via jurídica, observa-se que repugnava aos juristas do positivismo
tradicional suscitar questões valorativas acerca do que se legislou, restringindo-se,
tão somente, a aplicar o direito e seguir os caminhos da subsunção e do dedutivismo
lógico. A hermenêutica esposada pelas teorias tradicionais sempre esteve voltada
para a busca da vontade contida na norma jurídica. Dividido entre a busca da
vontade da norma e a busca da vontade subjetiva do legislador, o constitucionalismo
clássico inclinou-se em favor da escola objetivista, pela qual entendia-se que a
vontade da lei, a par de exprimir um produto da razão humana, uma vez constituída,
tinha legítima existência objetiva, independente da vontade subjetiva do
legislador
274
.
A Constituição era considerada lei ou tomada em sua acepção jurídica,
predispondo os juristas a interpretá-la como qualquer outra lei. Não sondava o
intérprete o campo das forças extrancontratuais, porque esse campo não existia no
sentido que tomou na sociedade industrial, a sociedade de massas.
O positivismo lógico-formal, em razão de conhecer tão somente a norma,
e não a norma no seu contexto social, ignorava, na melhor tradição liberal, a tensão
entre a Constituição e a realidade constitucional. O liberalismo constitucional
274
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 464.
165
consagrava o culto da legalidade da Constituição, vedando ao intérprete buscar o
direito constitucional fora da norma positiva constitucional. Lembra Bonavides
275
que
“interpretar a Constituição se constituía em tarefa eminentemente jurídica,
feita com a Ciência do Direito e não com a Sociologia Jurídica; com uma
disciplina técnica, como a Hermenêutica Jurídica, e não com um
instrumento polêmico como a Ciência Política ”.
O método interpretativo clássico de inspiração positivista, ocupando-se da
Constituição como objeto, exprimia uma perfeita adequação ao Estado de Direito de
concepção liberal, o qual excluía toda presunção de conflito ou desacordo entre a
Constituição, representativa do Estado, e a Sociedade, representativa do povo.
O constitucionalista da Velha Hermenêutica, assumia um papel neutro,
permanecendo indiferente ao mérito dos preceitos incorporados à Constituição e
conduzindo-se como executor fiel e rigoroso de tudo quanto ali ficou estatuído e se
tornou formalmente suscetível de aplicação. Diante da materialidade jurídica, houve-
se o positivismo com tamanho rigor formalista, que acabou esterilizando os preceitos
constitucionais vazados em cláusulas gerais. Trasladados, em seguida, pelos
aplicadores para as esferas programáticas, estas os tornaram juridicamente
inaplicáveis.
276
Já a moderna interpretação da Constituição, encampada pela Nova
hermenêutica, deriva de um estado de inconformismo de alguns juristas com o
positivismo lógico-formal que vigorava na época do Estado liberal. Os métodos
modernos de interpretação constitucional procuram afastar-se do formalismo
positivista, imperante no Estado de Direito Liberal, para edificar uma hermenêutica
material da Constituição.
No sistema axiológico-teleológico, oriundo da teoria material da
Constituição, em rigor não se interpreta a norma, mas o seu conteúdo. Para a teoria
material a norma é aparentemente secundária, sendo fundamental o objeto da
Constituição, que a faz inteligível no âmbito do sistema e que abrange toda a
matéria de que se ocupa o ordenamento constitucional. A interpretação moderna
não pode, por isso, prescindir do critério evolutivo, através do qual se explicam as
transformações ocorrentes no sistema, bem como as variações de sentido que tanto
se aplicam ao texto normativo como à realidade que o circunda.
275
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. p. 465-466.
276
Ibid., p. 115.
166
Pela Nova hermenêutica Constitucional, os substratos materiais e
valorativos da Constituição não se interpretam, mas se concretizam. E é a
concretização que soluciona os problemas para os quais são impotentes ou se
mostram refratários os métodos clássicos da Velha Hermenêutica
277
.
Todos os juristas adeptos da teoria material do Direito partem de
conclusões acerca da insuficiência do positivismo no que tange a uma
fundamentação do Direito em sintonia com os conteúdos normativos. Durante as
décadas de 40 e 50, pelo menos na Alemanha, houve uma ressurreição
jusnaturalista, procurando reavivar o direito natural, por força do pessimismo que
invadira o ânimo de juristas perplexos com a tragédia da Segunda Guerra Mundial, e
que buscavam reconsiderar e reavaliar os valores pertinentes à ordem jurídica
legítima.
Gustavo Radbruck foi um dos que assumiram a nova postura, e cuja
cátedra positivista converteu-se ao direito natural. Mas a restauração jusnaturalista
foi um relâmpago que logo se apagou. Não sendo possível o retorno do positivismo,
a década de 1950 viu abrir-se nova crise no pensamento filosófico do Direito.
Muitos autores cuidaram da problemática da hermenêutica constituconal,
destacando-se os juristas germânicos Rudolf Smend, Theodor Viehweg, Peter
Häberle e os chamados defensores dos métodos da concretização constitucional
Konrad Hesse e Friedrich Müller.
Coube a Smend
278
desenvolver no século XX um novo método
interpretativo da Constituição, partindo do entendimento de que na Constituição
temos uma ordenação jurídica do Estado, um ordenamento em cujo seio se
desenvolve a realidade vivencial do Estado, ou seja, o seu processo de integração.
Por esse novo método de interpretação, a Constituição vai se amoldando às
realidades sociais mais vivas. Não se menosprezam mais, em conseqüência, os
chamados fatores extraconstitucionais, que a intepretação formalista clássica
costumava ignorar por considerá-los metajurídicos, os quais passam a deter
importante lugar na interpretação integrativa da Constituição.
Os textos constitucionais adquirem uma maior plasticidade, bem como
uma consideração mais larga e expressiva daquilo que passou a ser chamado de o
277
BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2003. p.
113.
278
Id. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 479.
167
espírito da Constituição. Essa nova concepção é, na lição de Bonavides
279
precursoramente sistêmica e espiritualista, e vê na Constituição um conjunto distinto
de fatores integrativos com diferentes graus de legitimidade. Por ela a Constituição
consubstancia todos os momentos de integração, todos os valores primários e
superiores do ordenamento estatal (tais como direitos humanos, preâmbulo, território
do Estado, forma de Estado, pavilhão nacional), enfim a totalidade espiritual de que
tudo mais deriva, especialmente a sua força integrativa.
A reação de Smend
280
ao positivismo inicia-se já com a sua concepção de
Estado e de Constituição. Para ele o Estado representa um processo de integração,
sendo a Constituição a sua ordem jurídica., encarregada de proceder à normação de
aspectos particulares desse processo. Concebe a Constituição, não como uma
estrutura normativa de sentido ideal, mas, como direito positivo e realidade, e não
apenas norma.
Canotilho
281
afirma que o método científico-espiritual de Smend não é
desenvolvido em termos muito variados e o seu fundamento filosófico-jurídico
tamm não é claro. De qualquer forma, a contribuição de Smend para a
sedimentação da Nova hermenêutica foi muito importante, já que praticamente ele a
inaugurou, como lembra Galindo.
282
Foi Nicolai Hartmann o pensador que, no campo filosófico, contrapôs,
modernamente, duas modalidades fundamentais de pensamento: o sistemático e o
problemático ou aporético
283
, abrindo caminho para a restauração da tópica, com
mais vigor, na esfera da ciência jurídica, a partir da década de cinqüenta.
É que a exaustão do positivismo racionalista, a par da descrença
generalizada em suas soluções, fez inevitável a ressurreição da tópica como
método. Tal ocorreu na esfera do Direito, graças a Theodor Viehweg, em razão da
insuficiência do método científico dos naturalistas e tamm do malogro das
correntes idealistas que procuraram, por outras vias, resolver, com exclusividade, o
problema do método, afastando-se dos esquemas clássicos de inspiração objetiva.
279
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 478.
280
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá,
2004. p. 131.
281
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2003. p.
1199.
282
GALINDO, op. cit., p. 133.
283
Ibid., p. 135.
168
Os métodos clássicos de interpretação, quais os formulou Savigny,
sempre tiveram livre curso na jurisprudência dos séculos XIX e XX. Em nenhum
ramo do direito sua influência se fez mais patente do que no Direito Constitucional.
De origem civilista, os métodos clássicos de interpretação tinham, já naquela época,
dificuldades em acomodar-se ao seu objeto, a Constituição, que, a par da sua
dimensão jurídica, possui indiscutível dimensão política envolta por valores,
tornando realmente precário o emprego da hermenêutica tradicional.
As dificuldades, contudo, só foram removidas a partir da publicação, em
1953, da obra de Theodor Viehweg, denominada Tópica e Jurisprudência. A tópica
representa o tronco de onde partem, na Alemanha, as correntes mais empenhadas
em renovar a metodologia contemporânea de interpretação das regras
constitucionais.
284
Ela inaugurou para a hermenêutica contemporânea uma direção
indubitavelmente renovadora. Coube, sem dúvidas, a Theodor Viehweg a retomada
desse caminho cognitivo no campo jurídico.
Afirma Viehweg (1979 apud BONAVIDES)
285
que todo problema concreto
e objetivo provoca um jogo de suscitações que é chamado de tópica e se constitui
de toda questão que admita mais de uma resposta, requerendo necessariamente um
entendimento prévio, levando a sério os aspectos relevantes da questão e buscando
uma resposta como sua solução. A tópica busca fornecer soluções para como se
comportar em situações problemáticas, sendo, pois, uma técnica do pensamento
problemático.
A tópica foi, de certo modo, o coroamento de preocupações que já eram
vislumbradas desde a velha jurisprudência dos interesses. Pensar o problema
constitui o âmago da tópica em suas considerações acerca do método. Constituindo
novo estilo de argumentação e acesso à coisa, a tópica não é uma revolta contra a
lógica. Busca demonstrar que o argumento dedutivo não constitui o único veículo de
controle da certeza racional, pelo menos o único que não engana.
O pensamento tópico já fora familiar a Aristóteles que o considerava como
meio de obter o consenso ou a evidência da verdade, ou seja, aquilo que a todos, ou
à grande maioria, ou aos doutos, se lhes afigurava verdadeiro. A Constituição
representa, portanto, o campo ideal de intervenção ou aplicação do método tópico,
284
BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2003. p.
495.
285
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá,
2004. p. 135.
169
em virtude de constituir na sociedade dinâmica da atualidade uma estrutura aberta e
revelar, pelos seus valores pluralistas, um certo teor de indeterminação. Dificilmente
uma Constituição preenche aquela função de ordem e unidade, que faz possível o
sistema se revelar compatível com o dedutivismo metodológico. Diante de tais
obstáculos, só a tópica, como hermenêutica específica, estaria adequada
metodologicamente a resolver dificuldades inerentes à Constituição, nos seus
fundamentos.
Como as Constituições modernas nas sociedades heterogêneas e
pluralistas, repartidas em classes e grupos, não podem apresentar-se senão sob a
forma de compromisso ou pacto, sendo sua estabilidade quase sempre
problemática, é de convir que a metodologia clássica tinha que ser substituída ou
modificada por regras interpretativas correspondentes a concepções mais dinâmicas
do método de perquirição da realidade constitucional. Com a tópica, a norma e o
sistema perdem o primado, tornando-se meros pontos de vista ou simples topoi,
cedendo lugar à hegemonia do problema, eixo fundamental da operação
interpretativa.
286
Contudo, a Constituição não proporciona todos os topoi. Isto porque tais
pontos de vista, os topoi, só em parte se extraem da norma. Mas vinculam-se,
necessariamente, ao problema que os limita, pois, se não fosse assim, reinaria na
consideração tópica o arbítrio do intérprete, lançando por terra as bases jurídicas da
hermenêutica constitucional.
Todos os métodos clássicos são igualmente rebaixados à condição de
pontos de vista ou topoi, tornando-se instrumentos auxiliares que o intérprete, em
presença do problema, poderá empregar ou deixar de fazê-lo, dependendo da valia
ocasional que vierem a, eventualmente, oferecer para lograr a solução precisa da
questão.
Sendo a Constituição aberta, sua interpretação tamm o é. Valem para
dita interpretação todas as considerações e pontos de vista que concorram ao
esclarecimento do caso concreto, não havendo graus de hierarquia entre os
diferentes pontos de vista ministrados pela tópica. A Constituição, com a
metodologia tópica, perde um pouco aquele caráter reverencial que o formalismo
286
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá,
2004. p. 135.
170
clássico lhe conferia. A tópica abre tantas janelas para a realidade circunjacente que
o aspecto material da Constituição, tornando-se o elemento predominante, acaba
por absorver, por inteiro, o aspecto formal.
Todos os meios interpretativos, segundo a nova Escola, podem ser
utilizados desde que convenham ao esclarecimento e solução do problema. A
abertura metodológica é completa e a argumentação persuasiva terá por base
essencial o consenso e por ponto de partida a compreensão prévia, tanto do
problema como da Constituição. O consenso e a compreensão prévia formam as
bases de estabilidade e legitimidade da nova metodologia que, abalando a estrutura
jurídica formal, desconsidera os cânones clássicos da interpretação e dissolve o
formalismo da Constituição na camada de elementos materiais e concretos, em cujo
âmbito o problema é posto.
As críticas que mais são feitas à tópica pela hermenêutica constitucional
são dirigidas ao caráter excessivamente aberto da intepretação constitucional,
supervalorizando os problemas concretos e fragilizando a normatividade da
Constituição, especialmente dos princípios constitucionais, do que decorreria uma
Constituição minimamente juridicizada, mas politizada em excesso.
Falta, portanto, ao método tópico de interpretação constitucional uma
organização racional dos critérios interpretativos. A possibilidade do casuísmo
ilimitado parece ser o grande problema da teoria tópica de Viehweg. Não é possível,
como assevera Galindo
287
, solucionar lides judiciais de maneira aleatória e
casuística, sem nenhum ponto referencial pré-estabelecido, como propõe a tópica de
Viehweg.
Contudo, é inegável que a tópica de Viehweg abriu novos horizontes para
a Nova hermenêutica da Constituição. A partir dos assentamentos teóricos da tópica,
surgiram juristas comprometidos com a teoria material da Constituição e
preocupados em lançar alicerces mais seguros desta, através dos quais pudesse ser
elaborado um conceito mais flexível e dinâmico do Direito Constitucional, amoldado
às exigências de nossa época e à crescente fluidez da realidade social subjacente.
A partir da tópica, e a despeito das críticas contra ela dirigidas,
elaboraram-se os chamados métodos concretistas de interpretação constitucional,
que sustentam ser a interpretação da constituição um processo complexo que deve
287
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Jur,
2004. p. 138.
171
levar em consideração o conteúdo material da constituição, a substância
constitucional. Segundo os seus formuladores, a interpretação adequada da
Constituição depende de uma série de requisitos e acarreta a concretização da
Constituição no plano da eficácia. Diferencia-se o método concretista da tópica por
buscar aquele garantir a normatividade constitucional, o que a segunda não logrou
conseguir.
Um dos métodos de interpretação das Constituições que a tópica mais de
perto influenciou nos dias atuais foi a teoria da Constituição aberta, elaborado na
Alemanha pelo professor Peter Häberle, que foi o criador do Sociologimo Jurídico e
é considerado por muitos doutrinadores um jurista concretista. Ele levou a tópica às
últimas conseqüências, mediante uma série de fundamentações e legitimações que
se aplicam excelentemente ao campo dos estudos constitucionais. Todas essas
conseqüências resultaram em um processo interpretativo, que já não se cinge ao
corpo clássico dos intérpretes do quadro da hermenêutica tradicional, mas se
estende a todos os cidadãos.
Esse alargamento extremo que faz de todos, no pluralismo democrático
da sociedade aberta, ao mesmo tempo objeto e sujeito da ordem constitucional, se,
de uma parte, representa a verticalidade da reflexão que vai atingir camadas mais
profundas não alcançadas pela metodologia clássica, por outro lado pode conduzir,
pela sua radicalização, a um considerável afrouxamento da normatividade e
juridicidade das Constituições, como tem sido observado e criticado com respeito a
todos os métodos tópicos e concretistas.
Diz Häberle
288
que a interpretação constitucional não deve ser uma coisa
de uma sociedade fechada, mas sim mais um elemento da sociedade aberta, já que
no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos
os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos sociais,
não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus
clausus de intérpretes da Constituição.
A interpretação constitucional não é um evento exclusivamente estatal,
devendo a esse processo terem acesso todas as forças da sociedade política. O
cidadão que interpõe um recurso constitucional é intérprete da norma constitucional
288
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição:
contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Tradução: Gilmar Ferreira
Mendes. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1997, p. 13.
172
tanto quanto um partido político contra o qual se instaura processo de proibição de
funcionamento. A inclusão dos grupos e indivíduos como intérpretes da Constituição
tem o propósito de considerar a realidade da Constituição como parte da
interpretação da mesma.
Para Galindo
289
a teoria de Häberle é uma análise semiótica, uma teoria
interpretativa voltada para a pragmática. Diz respeito à relação pragmática da
linguagem constitucional com diversos espectadores, implicando em um discurso
conflituoso e ideológico, sendo a sua base ideológica a democracia, já que baseado
no pluralismo social.
As críticas feitas à teoria da constituição aberta inicialmente partem do
fato de que para a interpretação aberta proposta por Häberle seria necessário haver
um sólido consenso democrático, estabilidade social, instituições políticas
desenvolvidas, fatores difíceis de se encontrar nos países subdesenvolvidos,
modernamente chamados de periféricos. Por outro lado, até mesmo nas
constituições dos países desenvolvidos torna-se questinonável a utilidade da
interpretação aberta, pelo potencial de risco que acarreta para as instituições
políticas.
Entendemos corretas as críticas formuladas à teoria de Häberle,
perfilhando o entendimento de Galindo
290
que admite possa ela vir a revelar-se
excelente nos sistemas realmente democráticos para manter a condição sistêmica
por ela propalada, ou seja, um status quo no Estado efetivamente democrático.
Parece ser a teoria da Constituição aberta apropriada para Estados de democracia
desenvolvida e avançada, dificilmente adequada aos países subdesenvolvidos,
ainda carentes dos avanços constitucionais já ocorridos em países como o do autor,
ou seja, a Alemanha.
De qualquer maneira, o bom êxito da moderna metodologia ficará sempre
a depender de um não-afrouxamento da normatividade pelos órgãos constitucionais
judicantes, na medida em que estes fizerem uso dos novos instrumentos
hermenêuticos, nascidos da necessidade de maior adequação da Constituição com
a realidade e com o dinamismo normativo do Estado Social Democrático de Direito,
o Estado que mais se harmoniza com uma sociedade democrática.
289
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá,
2004. p. 141.
290
Ibid., p. 142.
173
Hesse
291
fundamentou a sua teoria da concretização em cinco princípios:
o da unidade constitucional, que impõe não seja a norma constitucional interpretada
isoladamente, mas sempre em conexão com as demais; o da concordância prática,
tamm denominado de princípio da harmonização, que se preocupa com a
otimização da concretização constitucional, de modo que a realização dos bens
protegidos jurídico-constitucionalmene não implique no sacrifico dos demais; o
princípio da exatidão funcional, que guarda relação com o clássico princípio da
separação de poderes, determinando ao intérprete que se mantenha no quadro das
suas atribuições de competência, não devendo, através da interpretação, alterá-las;
o princípio do efeito integrador, que diz que se deve dar preferência aos pontos de
vista que produzam efeito criador e conservador da unidade; e por último o princípio
da força normativa, que impõe ao intérprete o dever de dar à norma constitucional a
interpretação atualizadora do seu conteúdo normativo, mantendo a sua eficácia
através do tempo.
O princípio da força normativa da constituição vincula-se de forma estreita
com um outro princípio não suscitado por Hesse, mas por Willis Guerra Filho
292
e
tamm por Canotilho
293
, que é o princípio da máxima efetividade, segundo o qual
deve-se dar à norma constitucional o sentido que lhe dê maior eficácia.
294
Diz Galindo
295
que o processo de concretização constitucional proposto
por Hesse tem um grau elevado de generalidade e abstração, suscitando inúmeras
dúvidas, principalmente no que diz respeito à estruturação adequada.
Como representantes dos métodos da concretização constitucional cita
Galindo
296
Konrad Hesse e Friedrich Müller, que contribuíram de forma diferenciada
para a denominada Nova hermenêutica.
Consoante a teoria de Müller (apud GALINDO)
297
, a interpretação
produtiva e criativa não é arbitrária, mas deve seguir um padrão de racionalidade,
ainda que se reconheça ao julgador uma margem de liberdade não existente nos
291
HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1991. p. 21-22.
292
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Da interpetação especificamente constitucional. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, nº. 128, p. 257, 1995.
293
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2003. p.
1212
294
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá,
2004. p. 147.
295
Ibid., p. 147-149.
296
Ibid., p. 143.
297
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá,
2004. p. 149.
174
padrões racionalistas do positivismo lógico-formal, de base cartesiana. Buscou ele
superar, com base na filosofia de Heidegger e Gadamer, o elevado grau de
generalidade e abstração da teoria da Constituição aberta de Häberle, de modo a
fixar padrões novos de racionalidade jurídica e criar nova concepção tanto da
hermenêutica quanto da norma jurídica, de modo a evitar o casuísmo interpretativo.
Entende Müller
298
que a interpretação é forma de produção do Direito e considera o
texto da norma, não a norma em si, mas o seu enunciado lingüístico, a disposição
sintática sob a qual se exprime o que denomina programa da norma, o qual seria o
texto da norma mais o resultado da sua interpretação. A norma não se esgota no
teor literal do texto, mas vai além. Concretizar significa interpretar com acréscimo, o
que culmina na atividade criadora do intérprete, por isso que o texto da norma é o
ponto de partida para a concretização normativa constitucional.
Müller (apud GALINDO)
299
, assim como Hesse, vê a interpretação
constitucional como concretização e entende que não se pode confundir o
enunciado ou texto da norma com a própria norma, já que esta somente se
estabelece mediante uma complexa construção jurídica que inclui a interpretação,
mas não se limita a ela, tendo tamm outras implicações.
Mas reconhece um certo
espaço de liberdade para o julgador trabalhar os conceitos jurídicos a partir da
relação entre texto normativo e realidade normativa, sem descambar para o
casuísmo. Com tal objetivo elabora uma metodologia estruturadora da interpretação
jurídica que possa ser seguida sem grande dificuldade pelo julgador.
A principal diferença da concepção de Müller em relação à tópica é que,
apesar de a sua teoria da metódica estruturante não desconsiderar o problema e tê-
lo como algo de fundamental importância na concretização constitucional, é
expressiva a vinculação da concretização com o texto da norma. Destaca Galindo
300
que Müller busca na hermenêutica gadameriana as bases filosóficas de sua original
concepção de hermenêutica jurídica, denominada de metódica estruturante. A
tentativa de Müller é um rompimento com o conceito tradicional de norma e de
Constituição que os equivale ao texto. Para ele, do texto da norma não advém
nenhuma normatividade, pois esta não é qualidade estática do texto, mas um
processo estruturado, fundamentado no trabalho jurídico comprometido com o
298
Ibid., p. 150.
299
Ibid., p. 149.
300
GALINDO, loc. cit .
175
Estado de Direito e a democracia. O método concretista de Müller (1986 apud
GALINDO)
301
tenta correlacionar estreitamente texto e realidade constitucional como
condição necessária para o processo de concretização constitucional, o qual
designa não a referência de uma dada norma geral ao caso, mas o produzir de uma
norma jurídica geral no quadro da resolução de um determinado caso. .
O processo de concretização da norma se completa com a edição da
norma-decisão, que é o elemento da estrutura concretista que, embora não seja a
norma propriamente dita, completa a estruturação desta, sendo ela que dota o
preceito normativo da normatividade construída através do método estruturante. A
normatividade não é uma qualidade da norma, mas o efeito da metódica estruturante
na concretização da norma. Müller (apud GALINDO)
302
defende que a metódica
estruturante aplica-se com eficácia à hermenêutica dos direitos fundamentais,
reforçando a positividade, a materialidade e a racionalidade dos mesmos.
As críticas direcionadas à teoria de Müller destacam a degradação
semântica do processo de concretização nos chamados países periféricos,
portadores de constituições nominalistas, cujos textos são concretizados de forma
completamente inversa àquela concretização que visa a tornar o texto da
constituição dotado de normatividade e eficácia. Müller procura justificar tal
circunstância argumentando com a existência de normas adequada e
inadequadamente concretizadas.
303
Não há dúvida de que os métodos concretistas de interpretação
constitucional têm contribuído para uma aproximação da Constituição com a
realidade social, à luz dos elementos axiológicos e teleológicos e dos direitos
fundamentais que ordenam os regimes democráticos.
6.3 A interpretação como fator de atualização da Constituição
A interpretação é uma atividade que busca extrair o alcance e o sentido
de uma determinada norma jurídica para que esta possa ser aplicada ao caso
concreto. Portanto, para que se possa aplicar a lei é necessário que primeiro seja
301
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá,
2004. p. 152.
302
Ibid., p. 154.
303
Ibid., p. 155.
176
realizada a sua interpretação, pois é a partir dela que a norma jurídica abstrata
passa a incidir nas situações fáticas. A interpretação jurídica é entendida pela Nova
hermenêutica, como já vimos, como uma atividade criadora de direito. Envolve
tamm um determinado conhecimento, ou seja, uma pré-compreensão da norma
jurídica, o que destaca o fato de a atividade interpretativa ser imbuída de elementos
subjetivos, que dizem respeito à formação cultural e política do intérprete.
Contudo, depara-se o intérprete com um problema fundamental que é,
não a distância cronológica entre a elaboração da norma e a sua aplicação, mas a
distância material existente entre a generalidade do seu enunciado e a singularidade
do caso a decidir. É então nesse sentido que a tarefa do intérprete apresenta-se
como uma tentativa de mediação e superão da distância real do abismo que
separa o geral do particular, o abstrato do concreto, atualizando e desenvolvendo o
o texto constitucional.
As constantes alterações no prisma histórico-social da aplicação do
direito, a insuprimível distância entre a generalidade e abstração da norma e a
especificidade e concretude das situações da vida, suscitam problemas de justiça
material, pertinentes à máxima dar a cada um o que é seu. A constante e
necessária adequação das normas aos fatos apresenta-se como requisito
indispensável, ou condição sine qua non, da própria efetividade do direito, o qual só
funciona à medida em que se mantém sintonizado com a realidade social, da qual
emerge e sobre a qual atua com a pretensão de conformar juridicamente a
sociedade segundo pautas axiológicas estabelecidas na Constituição.
304
Sob essa ótica, as transformações sociais deixam de ser vistas como as
corrosivas revoltas dos fatos contra os códigos para se converterem, de forma
positiva e autêntica, em fatores de atualização daqueles enunciados e de
regeneração da sua força normativa. Tais circunstâncias são confirmadas, nos
domínios da experiência jurídico-constitucional, pela afirmativa de Lassalle
305
para
quem a vida das constituições depende da sua submissão aos fatores reais de
poder imperantes na sociedade, pois
onde a constituição escrita não corresponder à real, irrompe inevitavelmente
um conflito que é impossível evitar e no qual, mais dia menos dia a
304
COELHO, Inoncio Mártires. Elementos de teoria da constituição e de interpretação constitucional. In:
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica
Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002. p. 55.
305
LASSALLE, Ferdinand. A essência da constituição. Rio de Janeiro: Líber Júris, 1988. p. 59-60.
177
constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá necessariamente, perante a
constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país.
Hesse
306
igualmente assevera serem as possibilidades e os limites da
força normativa da Constituição resultado da correlação entre ser (sein) e dever
ser(sollen), já que a sua pretensão de eficácia está condicionada pelas condições
históricas da sua realização. A norma constitucional não tem existência autônoma,
em face da realidade. Ela não pode ser separada da realidade histórica concreta de
seu tempo.
Portanto, é pela aplicação e interpretação da norma que os direitos
fundamentais se concretizam e se realiza a atualização da norma frente às
mudanças da realidade social subjacente. Os juízes e tribunais, quando no exercício
da jurisdição constitucional, emprestam sentidos novos a um mesmo enunciado
normativo, ao mesmo tempo em que estão a produzir enunciados novos, a partir da
manutenção inalterável do texto.
São as chamadas novas leituras, das quais decorrem as viragens de
jurisprudência que regeneram os sistemas jurídicos e lhes preservam a força
normativa, sem que haja quaisquer revisões formais que desgatam o prestígio das
Constituições. As situações da vida são constitutivas do significado das regras de
direito, porque é somente no momento da sua aplicação aos casos ocorrentes que
se revelam, em toda a sua amplitude, o sentido e o alcance dos enunciados
normativos.
307
Tais ocorrências, em sede de interpretação constitucional, denominam-se
de mutações constitucionais. Para Ferraz (1986 apud COELHO)
308
a referida
expressão deve ser utilizada para designar tão somente aqueles processos informais
que, sem contrariar a Constituição, alterem ou modifiquem o sentido, o significado ou
o alcance de suas normas, rotulando como inconstitucionais os que ultrapassem os
limites da interpretação e produzam resultados hermenêuticos incompatíveis com os
princípios estruturais da lei fundamental.
306
HESSE, Konrad. A força normativa da constituão. Tradão de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: S.
A. Fabris, 1991. p. 14-15, 25.
307
COELHO, Inoncio Mártires. Elementos de teoria da constituição e de interpretação constitucional. In:
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica
constitucional e direitos fundamentais. Brasil.ia: Brasília Jurídica, 2002. p.63
308
COELHO, Inoncio Mártires. Elementos de teoria da constituição e de interpretação constitucional. In:
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica
constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p.60-61.
178
Neste mesmo sentido se manifesta Canotilho
309
, aceitando as mutações
constitucionais que são válidas desde que consubstanciem alterações do âmbito ou
da esfera da norma que ainda podem ser abrangidas pelo programa normativo
310
.
Rejeita, contudo, aquelas mudanças constitucionais que traduzam alterações
manifestamente inacolhíveis pelo programa da norma constitucional.
Luño (apud COELHO)
311
assinala que a norma jurídica não é o
pressuposto, mas o resultado da interpretação, precisamente porque é pela
interpretação que é feita essa adaptação da norma aos fatos, sempre em contínua
ebulição. Tamm Reale
312
ensina que as normas de direito não são meras
categorias lógicas, dotadas de validade formal indiferente ao conteúdo fornecido
pelo complexo da experiência humana, de modo que, sob certo ponto de vista, uma
norma é a sua interpretação. Direito, pois, é norma e situação normada, e a norma é
a sua interpretação.
Tal afirmativa é comprovada pelo fato, não contestado sequer pelos
críticos da criatividade hermenêutica, de que o direito, em sua existência concreta é
aquele declarado pelos juízes e tribunais na apreciação dos casos que lhe são
trazidos a apreciação e que, sem o problema suscitado pelo intérprete, as normas
permanecem genéricas e estáticas, sem a dinâmica com que as alterações histórico-
sociais da realidade as impregnam. Assim, as criticadas mutações constitucionais
deverão ser assimiladas como procedimentos heterônomos e abreviados de criação
do direito, os quais têm a virtude de, mediante interpretações atualizadoras feitas
pelos tribunais constitucionais, regenerar o texto constitucional sem fazer apelo às
revisões formais, que desgastam o prestígio da constituição.
313
Enfim, para a doutrina, a atividade interpretativa constitui fator de
desenvolvimento e atualização das normas constitucionais, já que o ordenamento é
um sistema dinâmico que interage com a realidade fática que se propõe a regular.
As mudanças e as transformações ocorridas no seio da sociedade interferem
diretamente no ordenamento jurídico, que deve, por sua vez, acompanhar essas
309
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2003. p.
1215.
310
Ibid., p. 1202. Entende o autor que programa normativo é o resultado de um processo parcial de
concretização, inserido, por sua vez num processo global de concretização, e que se assenta fundamentalmente
na interpretação do texto normativo.
311
COELHO, op. cit., p. 62.
312
REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 597.
313
COELHO, op. cit., p. 62.
179
alterações. Por isso não é recomendável que as normas jurídicas, principalmente as
constitucionais, se apresentem afastadas e defasadas da realidade fática.
Torna-se, portanto, necessário que o sistema constitucional possua
mecanismos capazes de acompanhar essas evoluções decorrentes das
transformações naturais ocorridas na sociedade, tais como mudanças de ideologias,
alterações de valores e avanços tecnológicos.
Basicamente, a constituição pode ser alterada pela edição de uma
emenda à constituição ou por meio da atividade interpretativa. Pela primeira forma
há uma alteração formal do texto constitucional através do acréscimo, alteração ou
supressão de um determinado dispositivo. Já a interpretação revela-se como um
meio eficaz e moderno de alteração constitucional, sem que, para isso, seja
necessário levar-se a efeito qualquer espécie de alteração no texto da norma
jurídica. Por isso a interpretação dá vida à letra morta da norma jurídica, conferindo
dinamismo ao sistema normativo.
314
Hesse
315
destaca que:
a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação
da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está
submetida ao princípio da ótima concretização da norma (Gebot optimaler
Verwirklicung der Norm). Evidentemente, esse princípio não pode ser
aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela
construção conceitual. Se o direito e, sobretudo, a Constituição, têm a sua
eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível
que a interpretação faça deles tábula rasa. ... A dinâmica existente na
interpretação construtiva constitui condição fundamental da força normativa
da Constituição e, por conseguinte, de sua estabilidade. Caso ela venha a
faltar, tornar-se-á inevitável, cedo ou tarde, a ruptura da situação jurídica
vigente
Lembra Perez Tremps
316
que, embora a justiça constitucional tenha
surgido com a finalidade de garantia dos princípios e valores constitucionais e dos
direitos fundamentais, ante situações de crises ou de debilidades constitucionais,
precisamente para frear os ataques e violações à Constituição, superadas ditas
crises políticas e afastado o risco dos retrocessos democráticos, assume ela um
outro papel muito importante, que é o de defender a supremacia da Constituição
314
BASTOS, Celso Ribeiro; MEYER-PFLUG, Samantha. A interpretação como fator de atualização e
desenvolvimento das normas constitucionais. In: SILVA, Virgílio Afonso da. (Org.) Interpretação
constitucional.. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p.146.
315
HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: S.
A. Fabris, 1991. p. 22.
316
PEREZ TREMPS, Pablo. La Justicia Constitucional em la actualidad: especial referencia a América Latina.
Revista Brasileira de Direito Constitucional, São Paulo, v.. 1, p.-31-32, jun. 2003.
180
através da interpretação e atualização do conteúdo constitucional, de modo a
adequá-los à própria evolução da sociedade.
Dita função torna-se sumamente valiosa para manter o vigor democrático
e dar plena eficácia aos direitos fundamentais. Portanto, a jurisdição constitucional,
por meio da sua função de interpretação e concretização das normas
constitucionais, opera também a atualização destas, de modo a torná-las rentes com
a realidade fática que lhes é subjacente.
Por meio de procedimentos interpretativos das normas, o sentido destas é
atualizado pelos magistrados, de modo a torná-las compatíveis com as mudanças
ocorridas na sociedade.
317
Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tão
mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade. Dado o caráter político da
Constituição e de suas normas, já que é fato inconteste que procura ela disciplinar
juridicamente o fenômeno poltico, não é viável interpretá-la sem tamm apelar para
o seu conteúdo político.
Essa necessidade de se recorrer ao discurso político foi apontada por
Dworkin
318
como a necessidade de uma leitura moral das normas constitucionais.
Portanto, a discussão acerca da interpretação da Constituição tem por pano de
fundo a concorrência entre o legislador e o juiz constitucional nessa tarefa
interpretativa, já que tanto a lei quanto a sentença desenvolvem a Constituição.
Grande mudança sofeu a história e filosofia do direito no século XX,
quando o direito, no segundo pós-guerra, propiciou a incorporação dos direitos
sociais de segunda geração e dos direitos fundamentais de terceira dimensão ao rol
dos direitos individuais de primeira dimensão. O direito agregou à função
ordenadora, própria do Estado Liberal de Direito, e à função promovedora do bem-
estar do Estado Social de Direito, mais uma, a função transformadora do Estado
Democrático de Direito, que se constitui em um plus normativo agregado às
anteriores. O direito passa a ser transformador da realidade social, uma vez que os
textos constitucionais passam a conter no seu interior as possibilidades de resgate
das promessas descumpridas da modernidade. Esta questão assume relevância em
países de modernidade tardia, como o Brasil, onde o Estado do Bem-Estar Social, o
Welfare State jamais se concretizou. Por sua vez, a invasão da filosofia pela
317
MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A tópica e o Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
p. 289.
318
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: M. Fontes, 2002. p. 534, 535.
181
linguagem implicou em uma verdadeira revolução no campo da hermenêutica. A
linguagem, entendida historicamente como uma terceira coisa posta entre um sujeito
e um objeto, recebe o status de condição de possibilidade de todo o processo
compreensivo. O sentido passa a dar-se na e pela linguagem. Não mais se cogitou
da cisão entre vigência e validade e entre texto e norma, distinções típicas do
positivismo, surgindo daí um novo paradigma hermenêutico-interpretativo, sob os
auspícios do denominado giro lingüístico ontológico, tamm conhecido como
linguistic turn.
Não mais interpretamos para compreender e, sim, compreendemos para
interpretar. Esse giro lingüístico proporciona um novo olhar sobre a interpretação e
as condições sob as quais ocorre o processo compreensivo.
319
Por isso, em sendo a Constituição um sistema aberto e dinâmico de
regras e princípios, está ela sempre recebendo os influxos diretos das mudanças e
transformações sociais ocorridas no contexto da realidade que a circunda. D
decorre a necessidade de haver mecanismos eficazes para carrear para a realidade
normativa as alterações sofridas pela realidade fática do mundo social.
Como um desses mecanismos, podemos citar um método engendrado
tamm pela nova hermenêutica, que é o da interpretação conforme à Constituição,
e que, na lição de Bonavides
320
, floresceu basicamente à sombra da Corte
Constitucional da Alemanha. Na sua origem, derivou de princípio estabelecido pelo
Tribunal Constitucional da Áustria, segundo o qual, em caso de dúvida, nunca se
deve dar a uma lei uma interpretação que a faça parecer inconstitucional.
De um modo geral, pouco há o que se falar sobre o método de
interpretação conforme a Constituição, pois sob tal denominação está-se a falar, não
de interpretação constitucional, já que não é a Constituição que deve ser
interpretada em conformidade com ela mesma, mas sim as leis infraconstitucionais.
Estas, sim, é que devem ser interpretadas de acordo com a Constituição.
321
O princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constituição
é fundamentalmente um princípio de controle e tem como função assegurar a
319
STRECK, Lenio Luiz. Jurisidção constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Rio de
Janeiro: Editora Forense, 2005. p. 521.
320
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 519.
321
SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In: SILVA, Virgílio
Afonso da. (Org.) Interpretação Constitucional . São Paulo: Malheiros, 2005. p. 132.
182
constitucionalidade da interpretação.
322
o consiste em apenas verificar
formalmente se a lei está de acordo com a regra suprema, mas em determinar
tamm a sua compatibilidade material com a norma constitucional: um conteúdo
equívoco ou incerto da lei será aferido em conformidade com o conteúdo da norma
constitucional. A unidade da ordem jurídica e o sistema de valores de que o
ordenamento jurídico está impregnado são elementos decisivos para aferir–se
materialmente a constitucionalidade dos atos normativos mediante este método de
interpretação, que também atua como forma de fixar uma interpretação
constitucional que mais atenda as peculiaridades da evolução social operada no
mundo fático.
O problema maior suscitado pelo método de interpretação conforme a
Constituição consiste em se determinar quem, em primeiro lugar, é chamado a
concretizar a Constituição: o juiz constitucional ou o legislador. Dita preeminência
parece ter sido conferida ao legislativo, pelo menos de acordo com a maneira pela
qual vem entendendo a Corte Constitucional alemã de Karlsruhe.
323
O Tribunal Constitucional de Karlsruhe esboçou, com referência às
limitações ao método de interpretação conforme a Constituição, por meio da decisão
proferida aos 11 de junho de 1958, dois limites importantes: o sentido claro do texto
e o fim contemplado pelo legislador. Tais restrições se fundamentam no item 3º do
artigo 20 da Lei Fundamental de Bonn, que estatui que o legislativo se acha
vinculado à ordem constitucional e o executivo e o judiciário à lei e ao direito.
324
.
O método da interpretação conforme a Constituição é relevante para o
controle da constitucionalidade das leis. O seu emprego representa, dentro de limites
razoáveis, e em face dos demais instrumentos interpretativos, uma das mais seguras
alternativas de que pode dispor o aparelho judicial para evitar desarrazoadas
declarações de nulidade das leis.
Adotando-se dito princípio da interpretação conforme a Constituição, sem
excessos, o ato interpretativo não desprestigia a função legislativa nem enfraquece
o exercício dos poderes da magistratura de conhecer e interpretar a lei pelo ângulo
da sua constitucionalidade.
322
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2003. p.
1212.
323
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 523.
324
Ibid., p. 522.
183
No Brasil, Streck
325
assevera que a Lei 9.868, de 10 de novembro de
1999, constitui um avanço representado pela institucionalização dos mecanismos de
interpretação conforme a Constituição e da nulidade parcial sem redução de texto
como autênticas formas de controle de constitucionalidade. Entende que o Poder
Legislativo brasileiro, ao aprovar a referida Lei 9.868 de 1999, admite explicitamente
que o Poder Judiciário pode exercer uma atividade de adaptação e adição de
sentido aos textos legislativos, reconhecendo ademais que a função do Poder
Judiciário, no plano do controle de constitucionalidade, não mais se reduz à clássica
concepção de legislador negativo. Tal afirmativa, contudo, não implicará, com
certeza, no entendimento de que o Poder Judiciário transformar-se-á em legislador
positivo, pois o instituto da interpretação conforme a Constituição, bem como os
demais mecanismos hermenêuticos, não têm o condão de transformar o Poder
Judiciário em um órgão que está acima da Constituição.
Outro método de atualização da Constituição pela interpretação, derivado
da nova hermenêutica, é o da interpretação evolutiva cujo fundamento reside no
entendimento de que o mais relevante não é a occasio legis, a conjuntura em que foi
editada a lei, mas a ratio legis, ou seja, o fundamento racional que a acompanha ao
longo de toda a sua vigência em combinação com a evolução social do mundo fático
circundante..
Para Reale
326
, as normas valem em razão da realidade de que participam,
adquirindo novos sentidos ou significados, mesmo quando mantidas inalteradas as
suas estruturas formais. Para tal harmonização entre a realidade e a norma utiliza-se
a interpretação evolutiva, que é um processo informal de reforma do texto da
Constituição. Consiste ela na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional,
sem modificação do seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de fatores
políticos ou sociais que não estavam presentes na mente dos constituintes, quando
da elaboração da norma.
Essa interpretação evolutiva se concretiza, na maioria das vezes, em
relação às normas constitucionais que se utilizam de cláusulas gerais, conceitos
elásticos ou indeterminados, como os de ordem pública, autonomia, função social
325
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. p. 865.
326
REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 1999. p.597.
184
da propriedade, redução das desigualdades, os quais vão assumindo diferentes e
variados significados ao longo do tempo.
A interpretação evolutiva é muito freqüente no direito constitucional norte-
americano, onde desempenha papel da maior importância, tanto no campo do
devido processo legal, como no da criação de novos direitos não previstos
expressamente, como por exemplo o da privacidade e o da igualdade perante a lei,
notadamente aqueles direitos de cunho racial.
Vale lembrar que a versão original da Carta americana de 1787 permitia,
na Seção 2 do artigo 1º, o regime da escravidão. Em 1857, ao julgar o caso Dred
Scott vs. Sandford, a Suprema Corte chegou a negar a condição de cidadão a um
escravo. Contudo, após 78 anos e uma guerra civil no meio, a 13ª. emenda, de
1865, aboliu a escravatura. Mesmo assim, investidos de cidadania, os negros ainda
eram largamente discriminados, sob a chancela dos poderes estatais. Porém, trinta
e um anos após, em 1896, ao decidir o caso Plessy vs. Ferguson, a Suprema Corte
temperou tal entendimento, ao endossar a doutrina do equal but separate, ou seja,
iguais mas separados, fórmula que dissimulava a discriminação racial praticada em
diversos Estados.
Somente em 1954, ao julgar o caso Brown vs. Board of Education, a
Suprema Corte norte-americana considerou inconstitucional a segregação de
estudantes negros nas escolas públicas, em decisão que se tornou um marco na
política de integração racial. Verifica-se, assim, que na vigência de uma mesma
Constituição, o tratamento dado aos negros evoluiu da discriminação total para a
discriminação atenuada e, depois, para a abolição total de qualquer discriminação,
por força do referido método.
Já no Brasil, e também na América Latina, a interpretação constitucional
evolutiva através do Poder Judiciário mantém-se em limites extremamente contidos,
por conta de uma longa tradição autoritária. Em todo o continente sul-americano, a
história das diversas nações é marcada pela hipertrofia do Executivo, pelo
sistemático desrespeito aos direitos fundamentais, pela quebra das garantias da
magistratura, por reformas constitucionais casuísticas e pela instabilidade política
constante, derivada certamente da falta de representatividade dos partidos políticos.
185
No Brasil, registram-se, como lembra Barroso
327
, alguns precedentes
interessantes de aplicação evolutiva da Lei Fundamental, pela intervenção criativa
dos tribunais, especialmente da Justiça Constitucional, através de construções
jurisprudenciais.
Dentre eles destaca-se a denominada doutrina brasileira do habeas
corpus, consubstanciada na extensão gradativa do instituto a outras situações de
ilegalidade e abuso de poder que não aquelas relativas à liberdade de locomoção.
Foi tamm através da construção pretoriana que foram criadas regras
de proteção à mulher, especialmente da que vivia maritalmente com um homem,
sem ser casada. Citam-se, como exemplos, as Súmulas 35, 380 e 447 do Supremo
Tribunal Federal, que assim dispõem:
Súmula 35 – Em caso de acidente do trabalho ou de transporte, a
concubina tem direito de ser indenizada pela morte do amásio, se entre ele
não havia impedimento para o matrimônio.
Súmula 380 – Comprovada a existência de sociedade de fato entre os
concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio
adquirido pelo esforço comum.
Súmula 447 – É válida a disposição testamentária em favor do filho
adulterino do testador com sua concubina.
A Constituição de 1988 acolheu, expressamente, esta construção
pretoriana
328
.Merece destaque tamm, como exemplo recente de interpretação
evolutiva e concretizadora da lei, a decisão prolatada pelo Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul, que assim conclui:
À sociedade civil é reconhecida a prerrogativa de descriminalização do tipo
penal configurado pelo legislador. A eficácia da norma penal nos casos de
casa de prostituição mostra-se prejudicada em razão do anacronismo
histórico, ou seja, a manutenção da penalização em nada contribui para o
fortalecimento do Estado Democrático de Direito, e somente resulta num
tratamento hipócrita diante da prostituição institucionalizada com rótulos
como ’acompanhantes’, ‘massagistas’, motéis etc., que, ainda que
extremamente publicizada, não sofre qualquer reprimenda do poder estatal,
haja vista que tal conduta, já há muito tolerada, com grande sofisticação, é
divulgada diariamente pelos meios de comunicação, não é crime, bem
assim não serão os de origem mais modesta e mais deficiente
economicamente. (ADV, 20:313, Ap. Cr. 70.000.586.263, TJRS, 16 fev.
2000, rel. Des. Aramis Nassif.)
327
BARROSO, Luiz Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. São Paulo: Saraiva, 2003. p.147.
328
Art. 226, § 3º.
186
Contudo, a par dos inegáveis benefícios trazidos pela interpretação
evolutiva, sem reforma da Constituição, à vida social dos indivíduos, é evidente que
ela há de sofrer limites. O primeiro deles é decorrente do próprio texto constitucional,
pois a abertura da linguagem constitucional e a polissemia dos seus termos não são
absolutas, devendo estancar diante de significados normativos mínimos. Por outro
lado, tamm os princípios fundamentais do sistema são intangíveis, assim como
ditas alterações informais não poderão contravir os programas constitucionais.
329
No tocante à interpretação dos direitos fundamentais, sustenta Piovesan
330
que a hierarquia constitucional dos direitos humanos enunciados em tratados
internacionais decorre da natureza materialmente constitucional dos mencionados
direitos, entendendo que a Constituição brasileira assume expressamente o
conteúdo constitucional dos direitos constantes dos tratados internacionais dos
quais o Brasil é parte, nos precisos termos do seu artigo 5º. § 2º. E explicita:
Ainda que esses direitos não sejam enunciados sob a forma de normas
constitucionais, mas sob a forma de tratados internacionais, a Carta lhes
confere o valor jurídico de norma constitucional, já que preenchem e
complementam o catálogo de direitos fundamentais previstos pelo Texto
Constitucional.
Afirma mais Piovesan
331
que a Constituição brasileira de 1988
recepcionou os direitos fundamentais enunciados em tratados internacionais de que
o Brasil é parte, conferindo-lhes natureza de norma constitucional, ou seja, os
direitos enunciados em tratados internacionais integram e complementam o
catálogo de direitos constitucionalmente previsto, sustentando dever ser estendido a
esses direitos o regime constitucional conferido aos demais direitos e garantias
fundamentais. Tal posicionamento está de acordo com os princípios da força
normativa da Constituição e da ótima concretização ou máxima efetividade das
normas constitucionais. Segundo estes princípios, deve ser atribuído à norma
constitucional o sentido que maior eficácia lhe dê, especialmente quando se tratar de
norma instituidora de direitos e garantias fundamentais.
329
BARROSO, Luís Roberto. Interpetação e aplicação da constituição. São Paulo: Saraiva, 2003. p.148-149.
330
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito internacional. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 54-55
331
Ibid., p. 58-59.
187
Para Piovesan
332
, enquanto os demais tratados internacionais têm força
hierárquica infraconstitucional, os direitos enunciados em tratados internacionais de
proteção dos direitos humanos apresentam valor de norma constitucional.
A hierarquia infranconstitucional dos demais tratados internacionais
decorre do art. 102, inciso III, b da Constituição Federal de 1988, que confere ao
Supremo Tribunal Federal competência para julgar, mediante recurso extraordinário,
“as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida
declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”.
Contudo, desde 1977 o Supremo Tribunal Federal, com base nesse
entendimento, vem decidindo de forma a equiparar juridicamente todo tratado
internaciona, mesmo aqueles sobre direitos humanso,l à lei federal. Tal foi o
posicionamento acolhido no julgamento do Recurso Extraordinário nº. 80.004, no
qual foi firmado o entendimento de que os tratados internacionais estão em paridade
com a lei federal, apresentando a mesma hierarquia desta, e, em conseqüência,
submetem-se ao princípio que afirma ser a norma anterior revogada pela posterior.
Lembra ainda Piovesan
333
que, anteriormemte a 1977, há diversos
acórdãos consagrando o primado do Direito Internacional, como no caso, entre a
União e a Cia. Rádio Internacional do Brasil, da Apelação Cível nº. 9.587, julgada em
1951, em que o Supremo Tribunal Federal decidiu unanimemente que um tratado
revogava as leis anteriores. Menciona também acórdão de 1914 do STF proferido
no julgamento do Pedido de Extadição nº. 07 de 1913 que reconheceu estar em
vigor, sendo, portanto, aplicável, um tratado, apesar de haver lei posterior contrária a
ele. Igualmente na apelação cível nº. 7.872n de 1943, com base em voto do Ministro
Philadelpho de Azevedo, tamm se afirma que a lei não revoga o tratado. Aliás
neste sentido está a Lei. Nº. 5.171, de 25 de outubro de 1966 que diz o seguinte:
“Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação
tributária interna e serão observados pela que lhe sobrevenha”.
Contudo, o acervo jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal registra
precedentes em que se reconhece a natureza de lei ordinária geral do Pacto de São
José da Costa Rica e a legitimidade da prisão do depositário infiel admitida pela
Constituição, pelo seu artigo 5º., LXVII. Podem-se citar, acolhendo tal entendimento,
as decisões proferidas nos seguintes processos: HC nº. 72.131, julgado aos
332
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito internacional. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 59.
333
Ibid., p. 62.
188
23/11/1995; RE 206.086, publicada no Diário da Justiça de 07.02.1997; HC 75.925-
1/SP, publicado no DJ de 12.12.1997; e no HC nº. 77.387-7/SP, publicado no DJ de
23.10.1998, em que foi relator o Ministro Moreira Alves, e de cujo julgamento
transcreve-se o seguinte trecho:
Esta Corte, por seu Plenário (HC 72.131), firmou o entendimento de que, em
face da Carta Magna de 1988, persiste a constitucionalidade da prisão civil do
depositário infiel, em se tratando de alienação fiduciária, bem como de que o
Pacto de São José da Costa Rica, além de não poder contrapor-se à
permissão do artigo 5º., LXVII, da mesma Constituição, não derrogou, por ser
norma infraconstitucional geral, as normas infraconstitucionais especiais
sobre prisão civil do depositário infiel.
No Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº. 79.785-7, julgado aos 29 de
março de 2000 e originário do Rio de Janeiro, prevaleceu o voto do relator Min.
Sepúlveda Pertence que reconheceu a hegemonia da Constituição no Direito
brasileiro sobre quaisquer convenções internacionais, incluídas as de proteção aos
direitos humanos, para impedir, no caso, a aplicação da norma do Pacto de São
José, que erige em garantia constitucional o duplo grau de jurisdição. Assim está
redigida parte da ementa do respectivo acórdão:
...
III- Competência originária dos Tribunais e duplo grau de jurisdição.
1. Toda vez que a Constituição prescreveu para determinada causa a
competência originária de um Tribunal, de duas uma: ou também previu
recurso ordinário de sua decisão (CF, arts. 102, II, a; 105, II, a e b: 121 § 4º,
III, IV e V) ou, não o tendo estabelecido, é que o proibiu.
2. Em tais hipóteses, o recurso ordinário contra decisões do Tribunal, que
ela mesma não criou, a Constituição não admite que o institua o direito
infraconstitucional, seja lei ordinária seja convenção internacional: é que,
afora os casos da Justiça do Trabalho – que não estão em causa – e da
Justiça Militar – na qual o STM não se superpõe a outros Tribunais -, assim
como as do Supremo Tribunal, com relação a todos os demais Tribunais e
Juízos do País, também as competências recursais dos outros Tribunais
Superiores – o STJ e o TSE – estão enumeradas taxativamente na
Constituição, e só a emenda constitucional poderia ampliar.
3. À falta de órgãos jurisdicionais ad quem, no sistema constitucional,
indispensáveis a viabilizar a aplicação do princípio do duplo grau de
jurisdição aos processos de competência originária dos Tribunais, segue-se
a incompatibilidade com a Constituição da aplicação da norma internacional
de outorga da garantia invocada.
Posteriormente, no julgamento, aos 19 de setembro de 2003, da ADIn nº.
1.675-1, do Distrito Federal, em que tamm foi Relator o Min. Sepúlveda Pertence,
189
tratou a Suprema Corte brasileira do mesmo tema relacionado com a hierarquia dos
tratados sobre direitos fundamentais. Assim diz a ementa do acórdão:
...
A Convenção nº. 126 da OIT reforça a argüição de inconstitucionalidade:
ainda quando não se queira comprometer o Tribunal com a tese da
hierarquia constitucional dos tratados sobre direitos fundamentais
ratificados antes da Constituição, o mínimo a conferir-lhes é o valor de
poderoso reforço à interpretação do texto constitucional que sirva melhor à
sua efetividade: não é de presumir, em Constituição tão ciosa da protão
dos direitos fundamentais quanto a nossa, a ruptura com as convenções
internacionais que se inspiram na mesma preocupação.
A recente alteração feita no artigo 5º. da Constituição brasileira pela
Emenda Constitucional nº. 45 de 2004, para nele incluir mais um parágrafo, o 3º.,
equipara, finalmente, os tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos às emendas constitucionais. Assim dispõe o referido § 3º :
Art. 5º
.....
§ 3º. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que
forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos,
por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais.”
Sobre tal alteração já se manifestara Branco
334
, afirmando que a
promulgação da Emenda Constitucional nº. 45, de 2004, apenas confirmaria a idéia
de que, até então, os direitos individuais previstos em tratados e convenções
internacionais não gozavam de hierarquia constitucional.
334
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Aspectos de Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. In: MENDES,
Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica
constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica. 2002. p. 163.
190
7. A CONCRETIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO PELA JURISDIÇÃO
CONSTITUCIONAL
7.1. Concretização: considerações preliminares
A jurisdição constitucional, objetivando a observância do princípio da
supremacia da Constituição, tem a importante missão de concretizar os direitos
fundamentais. Podemos assimilar a concretização dos direitos fundamentais, na
lição de Dworkin
335
, a levá-los a sério, significando tratar cada homem de modo
compatível com a sua dignidade humana.
Afirma Dworkin
336
que, para os direitos serem levados a sério, deve ser
considerada a idéia da dignidade humana. Para tal concepção (usualmente
associada à Kant, mas tamm defendida por filósofos de diferentes escolas)
existem maneiras de tratar um homem que são incompatíveis com o seu
reconhecimento como membro pleno da comunidade humana. Por isso é que se
pode dizer que os direitos fundamentais visam à proteção da dignidade humana dos
cidadãos. E a violação de tais direitos constituirá sempre questão muito séria, pois
significará tratar “um homem como menos que um homem ou como se fosse
menos digno de consideração que outros homens”.
337
Assim, a par de poder ser tida como forma de levar-se os direitos
fundamentais a sério, a concretização constitucional consiste em uma metodologia
desenvolvida, doutrinária e cientificamente, com a finalidade de garantir a eficácia
das normas constitucionais através de um processo estruturado normatizador da
Constituição. É através da concretização, como método de interpretação e ato de
aplicação das normas constitucionais, que a jurisdição constitucional, valendo-se da
criatividade do intérprete, torna possível a aplicação dos enunciados normativos da
Constituição, necessariamente abstratos e gerais, a situações de vida naturalmente
particulares e concretas.
Merece diferenciar-se a concretização constitucional da realização
constitucional. A concretização constitucional consiste em um método procedimental
de garantia da eficácia da Constituição, a partir da utilização dos procedimentos
335
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 304- 305.
336
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.305.
337
DWORKIN, loc. cit.
191
previstos na esfera metodológica pertinente. O termo eficácia é empregado
significando a exigibilidade imediata da norma constitucional, que corresponde à
aptidão e potencialidade para a norma produzir, imediatamente, os seus efeitos
jurídicos práticos. Associa-se a concretização da norma constitucional à sua eficácia
jurídica, entendida como “a aptidão para a produção de efeitos, para a irradiação das
conseqüências que lhe são próprias”
338
.
A concretização da Constituição consubstancia pressuposto para a
realização da mesma. Se o efeito jurídico pretendido pela norma for irrealizável, não
há efetividade possível. Concebe-se a realização da norma como a sua aplicação
prática que corresponde à concretização fática, real ou empírica do seu conteúdo.
Normalmente relaciona-se a realização da Constituição com a sua efetividade ou
eficácia social da norma, que é, precisamente, “a realização do direito, o
desempenho concreto de sua função social. Ela (a efetividade ou eficácia social)
representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a
aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da
realidade social
339
”. A efetividade ou eficácia social é mais estudada pela Sociologia
Jurídica, enquanto a eficácia jurídica é objeto de análise aprofundada pelo Direito,
por dizer respeito de perto às conseqüências jurídicas da norma.
Normalmente as normas constitucionais são observadas e cumpridas
espontaneamente. A efetividade ou eficácia social das normas constitucionais
resulta comumente do seu cumprimento espontâneo, até mesmo pelo alto teor de
significação que elas ostentam no meio social, nada obstante ainda se registrem
casos de insubmissão numericamente expressivos.
Tais conceitos são importantes para o entendimento de que processo de
concretização das normas constitucionais, já que toda a metodologia da
concretização constitucional é orientada para a resolução em torno dos problemas
surgidos em torno do âmbito da norma constitucional, sem descurar-se,
naturalmente, da normatividade do enunciado lingüístico da Constituição.
A realidade é, sem dúvida, um dos aspectos fundamentais a serem
considerados no processo de concretização constitucional, através da consideração
do problema concreto a ser resolvido em face das normas constitucionais. A própria
338
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. limites e
possibilidades da Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 83.
339
Ibid., p. 85.
192
idéia de concretização constitucional desenvolvida pelos juristas alemães tem uma
forte inspiração na tópica de Theodor Viehweg, que dá acentuada ênfase ao
problema a ser resolvido pelo jurista aplicador do direito, muito mais do que ao
sistema em que inserida a norma.
A diferença entre os métodos tópicos e os chamados métodos
concretistas é que estes desenvolveram um processo hermenêutico a partir do texto
da norma, partindo deste para o problema, construindo uma espécie de
normativismo pós-positivista. Já o raciocínio tópico baseia-se primordialmente em
uma argumentação aporética, em que se considera antes de tudo o problema a
resolver, de onde se parte para o enunciado normativo, tomado como mero ponto de
vista, simples topoi, como normalmente se diz. O método concretista utiliza-se da
realidade, dos fatos e dos problemas concretos como elementos integrante do
processo de concretização constitucional. A concretização constitucional e a eficácia
são etapas do processo mais amplo que é o processo de realização da Constituição.
A realização constitucional, assim, depende do processo de concretização para
chegar à eficácia da norma constitucional, que será o primeiro passo em direção à
efetividade. Isto porque antes de se tornar efetiva a norma precisa ser eficaz: sem
alcançar a sua eficácia jurídica, a norma não atinge a sua efetividade ou eficácia
social. O que importa salientar é que o processo de concretização constitucional
depende da conexão entre Constituição e concretização, de modo a alcançar-se a
eficácia daquela.
O que importa salientar é que a concretização é um método de
interpretação da Constituição e ao mesmo tempo um processo de aplicação da
mesma.
Assim a expressão concretização tanto significa método como processo, e
assim, como método, pode-se conceber a concretização constitucional como
metodologia científica racionalmente elaborada para ser aplicada na interpretação
dos enunciados normativos constitucionais com o objetivo de garantir a eficácia das
respectivas normas. Como processo a concretização é a própria aplicação prática
desse método em relação à norma constitucional, ou em outras palavras, é a praxis
jurídico-constitucional dos métodos concretistas.
193
Canotilho
340
ensina que o método hermenêutico-concretizador parte da
idéia de que a leitura de um texto normativo inicia-se pela pré-compreensão do seu
sentido pelo intérprete, não fugindo a Constituição a esse esquema. A interpretação
constitucional é uma compreensão de sentido em que o intérprete efetua uma
atividade prático-normativa, concretizando a norma para e a partir de uma situação
histórica concreta.
O método hermenêutico concretizante é uma via hermenêutica que se
orienta para um pensamento problematicamente orientado, não para um
pensamento axiomático. No pensamento axiomático parte-se de um premissa já
fixada, enquanto no pensamento problemático tudo está por ser criado através do
método concretista, observados, naturalmente, os limites postos pela norma a ser
interpretada. O método concretista de interpretação da Constituição, porém, afasta-
se do método tópico-problemático, porque enquanto neste último prevalece o
primado do problema perante a norma, naquele verifica-se o primado da norma face
ao problema.
Enfim, as ponderações da teoria tópica de Viehweg, apesar das críticas,
inspiraram a criação dos chamados métodos concretistas de interpretação
constitucional, que vêem na interpretação da constituição um processo complexo
que deve considerar o conteúdo material da constituição. Diferenciam-se eles da
teoria tópica por almejarem garantir a normatividade constitucional, algo que a tópica
não conseguiu, partindo do entendimento de que as normas constitucionais não são,
na concretização constitucional, meros topoi ou lugares comuns, mas, ao contrário, o
ponto de partida para a interpretação concretizante da Constituição. Seus
representantes mais destacados são Konrad Hesse e Friedrich Müller.
7.2 A concretização dos direitos fundamentais
A concretização constitucional consubstancia-se em um método de
interpretação que se exprime através de um conjunto de procedimentos estruturados
visando a garantir a eficácia da Constituição.
340
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2003. p.
1198.
194
O método concretista realça os vários pressupostos da tarefa
interpretativa, quais sejam, os pressupostos subjetivos, pois o intérprete
desempenha um papel criador, relacionado com a pré-compreensão, na tarefa de
obtenção do sentido do texto constitucional; os pressupostos objetivos, isto é, o
contexto, pois o intérprete faz as vezes de mediador entre o texto e a situação em
que se aplica; e a relação entre o texto e o contexto com a mediação criadora do
intérprete, transformando a interpretação em movimento de ir e vir, o que configura o
denominado círculo hermenêutico.
Como adverte Galindo
341
a concretização constitucional é, ao mesmo
tempo um método e um processo. Método porque estabelece diversos parâmteros
hermenêuticos para a interpretação da constituição e processo quando estabelece a
utilização prática do método proposto.
Hesse
342
, da Universidade de Freiburg, formulou uma teoria da
concretização constitucional partindo do pressuposto de que a Constituição não é
somente um pedaço de papel, como afirma Lassalle, mas uma Constituição jurídica
possuidora de efetiva força normativa, que é a aquela “força própria, motivadora e
ordenadora da vida do Estado”. Explica que o teor da norma só se completa no ato
interpretativo, pois a concretização da norma pressupõe uma compreensão do
conteúdo que se interpreta, sendo relevante na operação interpretativa o vínculo que
prende a compreensão prévia do intérprete ao problema cuja solução se busca. O
método concretista de interpretação gravita ao redor da norma que se vai
concretizar, da compreensão prévia do intérprete e do problema concreto a resolver.
Essa compreensão prévia deve ser fundamentada e conscientizada, de
sorte que o intérprete possa objetivamente dirigir-se à coisa mesma, resguardado,
porém, do arbítrio de impressões ocasionais ou hábitos mentais crônicos e
arraigados. Os intérpretes concretistas têm da Constituição normativa uma
concepção diferente daquela perfilhada pelos adeptos de outros métodos, porquanto
não consideram a Constituição um sistema hierárquico-axiológico, como os
partidários da interpretação integrativa ou científico-espiritual, nem como um sistema
lógico-axiológico, como os positivistas mais modernos. Rejeitam, ao contrário, o
emprego da idéia de sistema e unidade normativa da Constituição, aplicando um
341
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá,
2004. p. 143.
342
HESSE, Konrad. A força normativa da constituão. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1991. p. 9-11.
195
procedimento tópico de interpretação, que busca orientações, pontos de vista ou
critérios-chaves, adotados consoante a norma e o problema a ser objeto de
concretização.
Outro adepto do método concretista de interpretação da Constituição é o
Professor Friedrich Müller, decano da Faculdade de Direito da Universidade de
Heidelberg, que desenvolveu um método racionalista de interpretação constitucional,
buscando deixar bem estruturada uma hermenêutica que permitisse explicar a
Constituição, sem perda da sua eficácia e como ela realmente se apresenta, com
vínculos materiais indissolúveis, fora da antinomia tradicional entre a Constituição
formal e a Constituição material.
343
A nova hermenêutica constitucional, fundada em valores e princípios e,
ao mesmo tempo, na reelaboração doutrinária e científica da norma jurídica, acha-
se contida, por inteiro, na obra do filósofo alemão Friedrich Muller, da Universidade
de Heidelberg, um dos arquitetos dessa reconstrução com a sua obra Teoria
Estruturante do Direito. Pertence ele ao quadro dos juristas alemães que intentaram
fundamentar uma teoria material do Direito, de molde a afastar-se das correntes
formalistas, originadas do formalismo kelseniano.
344
Dita obra inaugura um novo caminho para o conhecimento do Direito
pelas vias argumentativas. O cerne da questão era pensar e repensar o problema,
vinculando as soluções normativas à práxis e à realidade. Sobre os alicerces da
tópica buscou Müller reconstruir o edifício da Filosofia do Direito. A originalidade da
contribuição de Müller consiste em estruturar cientificamente a realidade jurídica,
com abrangência tanto dos conteúdos da norma, como das propriedades formais do
Direito, estabelecendo uma interconexão que leva em consideração todos os
aspectos relevantes eventualmente omitidos na dissociação entre a forma e a
substância.
345
A estrutura material do Direito não é concebida por Müller unicamente em
bases estáticas, mas segundo um modelo dinâmico de concretização. Depois do
lançamento da Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, e da Tópica e
Jurisprudência, de Viehweg, o livro de Direito mais importante impresso na
Alemanha é a Teoria Estruturante do Direito, de Friedrich Müller, o qual veio
343
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 498.
344
Ibid., p. 206.
345
Ibid., p. 207.
196
desvendar, nesta fase do pós-positivismo, com a combinação metodológica da
realidade fática, do programa da norma e do círculo normativo, o sentido estrutural e
integrativo do Direito, conciliando, fora do mero sincretismo e das convergências
aparentes, os aspectos usualmente desmembrados da norma, do fato e do valor.
346
Assevera Galindo
347
que a contribuição de Müller para o tema da
concretização constitucional é uma das principais, senão a maior delas. Procurando
estabelecer uma teoria estruturante do processo interpretativo constitucional,
constrói Müller uma singular proposta hermenêutica, visando à construção de uma
hermenêutica constitucional pós-positivista, estruturada metodicamente para a
concretização da constituição no plano da eficácia.
Portanto, o método de Müller é concretista, qualificando-se a
interpretação da Constituição que ele propõe como concretização, do mesmo modo
como a concretização se qualifica como interpretação. A norma jurídica configura-se
como algo mais que o texto de uma regra normativa. Assim, para Müller, a
interpretação ou concretização de uma norma transcende a interpretação do texto,
ao contrário do que se dá com os processos hermenêuticos tradicionais no campo
jurídico. Müller, com a sua exaustiva perquirição, além de buscar o confronto da
realidade (ser) com a norma jurídica (dever ser), tem por objetivo evitar o hiato, a
separação, a antinomia das duas Constituições, a formal e a material.
Bonavides
348
diz que, a partir da dimensão principial, objetiva e axiológica
dos direitos fundamentais, pode-se afirmar que os direitos da segunda, terceira e
quarta gerações não se interpretam, mas concretizam-se. E acresce que é na
esteira dessa concretização que reside o futuro da globalização política, o seu
princípio de legitimidade, a força incorporadora de seus valores de libertação.
A concretização das normas constitucionais levada a efeito pela Justiça
Constitucional diz respeito à aplicabilidade prática daquelas normas, especialmente
entre os juristas concretizadores que buscam, apoiando-se no conceito de
otimização de Alexy (apud GALINDO)
349
, a chamada eficácia ótima da norma,
346
BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2003. p.
208-209.
347
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá,
2004. p. 148.
348
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. p. 572.
349
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Jur,
2004. p. 194.
197
entendida esta como a potencialidade de aplicação da norma na maior medida
possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes.
Assevera ainda Galindo
350
que toda e qualquer restrição à eficácia das
normas de direito fundamental, sejam elas princípios ou regras, só se justifica na
medida em que sirva para resguardar outros direitos da mesma natureza, e desde
que estes direitos possam colidir entre si. Exemplifica com a colisão entre o direito à
liberdade face ao direito à segurança pública; o direito à propriedade face ao direito
ao meio ambiente; o direito à liberdade de manifestação do pensamento face ao
direito à intimidade; o direito de greve do servidor público face ao direito da
população aos serviços públicos.
Streck
351
destaca que, na grande maioria dos casos, o Poder Judiciário
resolve o conflito jurídico, mas não o social, ou seja, muito embora a norma
constitucional aplicada tenha se tornado eficaz juridicamente, não logra ela a sua
efetividade, ou seja, a sua eficácia social no plano fático, relacionada com os seus
fins últimos. Cita, exemplificativamente, algumas decisões, frisando que, embora o
Superior Tribunal de Justiça tenha sedimentado a tese da não auto-aplicabilidade do
art. 196 da Constituição Federal (REsp nº. 57.614-7-RS), o Pleno do TJRGS tem
concedido, em alguns casos, os remédios e assistência médica. Lembra ainda um
caso ocorrido no Rio Grande do Sul, em que uma criança com Aids, precisando de
remédio, interpôs mandado de segurança, que o juiz de primeiro grau deferiu. O
Estado, contudo, interpôs recurso para impedir a entrega do remédio, alegando
periculum in mora a favor dele mesmo. O relator da matéria no segundo grau de
jurisdição deferiu o pedido do Estado, sustando o fornecimento do remédio, sob a
alegação de que, em mencionando o art. 196 da Constituição Federal que a saúde é
um dever do Estado, não se pode entender tal dever como obrigação. Porém, em se
partindo do entendimento de que a norma é o resultado ou produto do texto, ou seja,
da sua interpretação, e que dela decorrem vários sentidos possíveis, a própria
situação fática exige que se acolha como um dos possíveis sentidos do art. 196 da
Carta Magna, o adotado no agravo de instrumento nº. 96.012721-6, sendo relator o
Des. Xavier Vieira do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao decidir que:
350
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá
2004. p. 195.
351
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção
do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 227.
198
sendo a saúde direito e dever do Estado (art. 196 da Constituição Federal e
art. 153 da Constituição Estadual), torna-se o cidadão credor desse
benefício, ainda que não haja serviço oficial ou particular no país para o
tratamento reclamado. A existência de previsão orçamentária própria é
irrelevante, não servindo tal pretexto como escusa, uma vez que o
Executivo pode socorrer-se de créditos adicionais. A vida, dom maior, direito
natural, não tem preço, mesmo para uma sociedade que perdeu o sentido
de solidariedade, num mundo marcado pelo egoísmo, hedonismo e
insensível. Contudo, o reconhecimento do direito à sua manutenção
prioridade, tratando-se da saúde de uma criança – não tem balizamento
caritativo, posto que carrega em si mesmo o selo da legitimidade
constitucional e está ancorado em legislação obediente àquele comando.
O problema trazido à apreciação judicial encontrou sua solução no
método concretista de interpretação, através da adequação das regras e normas da
Constituição com a realidade subjacente, fundamentando-se no conteúdo material
da Carta Magna. Através da ponderação dos bens protegidos, a decisão prestigiou o
direito fundamental à vida para considerar irrelevantes quaisquer outras
considerações que impedissem a concretização e realização do direito à saúde do
jurisdicionado.
Outro exemplo de concretização dos direitos fundamenais encontramos
no processo objetivo de ação direta de inconstitucionalidade que tomou o nº 3.324-7,
Distrito Federal. Nele foi Relator o Min. Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, tendo
o Supremo Tribunal Federal, aos 16 de dezembro de 2004, julgado, por
unanimidade, procedente, em parte, a referida ação para, sem redução do texto do
artigo 1º da Lei nº. 9.536, de 11 de dezembro de 1997, assentar a
inconstitucionalidade no que se lhe empreste o alcance de permitir a mudança, nele
disciplinada, de instituição particular para pública, encerrando a cláusula “entre
instituições vinculadas a qualquer sistema de ensino” a observância da natureza
privada ou pública daquela de origem, viabilizada a matrícula na congênere. Em
síntese, dar-se-á a matrícula, segundo o artigo 1º da Lei 9.536/97, em instituição
privada se assim o for a de origem e em pública, se o servidor ou dependente, for
egresso de instituição pública. Assim dispõe a ementa (publicada no DJ de
05/08/2005) do acórdão do mencionado julgamento:
Ação direta de inconstitucionalidade - Interpretação conforme a Constituição
- Possibilidade Jurídica. É possível, juridicamente, formular-se, em inicial de
ação direta de inconstitucionalidade, pedido de interpretação conforme, ante
enfoque diverso que se mostre conflitante com a Carta Federal.
Envolvimento, no caso, de reconhecimento de inconstitucionalidade.
UNIVERSIDADE. TRANSFERÊNCIA OBRIGATÓRIA DE ALUNO - Lei nº.
9.536/97. A constitucionalidade do artigo 1º. da Lei nº. 9.536/97, viabilizador
da transferência de alunos, pressupõe a observância da natureza jurídica do
estabelecimento educacinal de origem, a congeneridade das instituições
199
envolvidas – de privada para privada, de pública para pública -, mostrando-
se inconstitucional interpretação que resulte na mesclagem – de privada
para pública.
Ficou assentado no referido julgamento que o princípio da isonomia não
encerra identidade absoluta, deixando de prevalecer se razoável o fator de
discriminação. Do voto do Min. Eros Grau colhe-se que o direito deve distinguir
pessoas e situações distintas entre si, a fim de conferir tratamentos normativos
diversos a pessoas e a situações que não sejam iguais. Mas há de haver uma razão,
uma razoabilidade. Citou ainda o Min. Eros Grau que o Tribunal Constitucional
alemão toma como fio condutor a idéia de que a máxima da igualdade é violada
quando, para a diferenciação legal ou para o tratamento legal igual, não seja
possível encontrar uma razão razoável que surja da natureza das coisas.
Reconhecida ficou, também a natureza de direito fundamental de cunho social da
educação, justificando a solução do problema pela concretização do direito segundo
a realidade fática subjacente.
O Min. Joaquim Barbosa ponderou que, para que se legitimem medidas
de caráter manifestamente derrogatório de um sistema de acesso, tais como as
previstas na norma impugnada, devem ser feitos testes rigorosos de
constitucionalidade, tendentes a verificar, de um lado, se a norma que confere a
respectiva vantagem tem como escopo o atingimento de um objetivo constitucional
legítimo e, de outro, se o meio utilizado serve, efetivamente, à obtenção dos fins
almejados. Lembrou ainda que este pensamento deriva do chamado strict scrutiny
que norteia, por exemplo, toda a prática de Jurisdição Constitucional da Corte
Suprema dos Estados Unidos em matéria de igualdade, especialmente no campo da
educação. Para ele a norma impugnada não resiste ao teste da proporcionalidade,
seja porque só mediatamente nela se vislumbra a busca de um objetivo
constitucionalmente legítimo, seja porque o atendimento do grupo beneficiário da
norma pode se efetuar de forma menos gravosa e restritiva dos direitos de outros,
seja ainda porque os benefícios que, supostamente, seriam obtidos com a
implementação dessa norma não são susceptíveis de compensar os sacrifícios que
ela engendra.
Reforçando o fundamento da decisão, o Min. Gilmar Mendes afirma em
seu voto que:
200
Peter Häberle talvez seja o mais expressivo defensor de uma nova forma de
compreender o direito constitucional nos tempos hodiernos, valendo-se da
idéia do pensamento jurídico do possível, que se mostra como pressuposto,
expressão, conseqüência e limite para uma interpretação constitucional
aberta.
352
A importância de tal decisão plenária deve-se, principalmente, a par da
riqueza da argumentação jurídica expendida, ao fato de o acórdão mencionado
representar uma valiosa referência decisória para inúmeros casos análogos
apreciados posteriormente, tornando-se um valioso paradigma jurisprudencial
tamm no que se refere à incidência do princípio constitucional da
proporcionalidade. Vê-se que o lado criativo da atuação dos juízes deriva, em boa
parte, da necessidade de oferecer soluções para novos problemas. E aí o método
concretista de interpretação vem bem a calhar.
Igualmente configura-se caso de interpretação concretista em que se
verifica a aplicação do princípio da razoabilidade a decisão que julgou improcedente
a ADI nº. 1040, julgada aos 11 de novembro de 2004, em razão de não ter ocorrido a
alegada violação aos artigos 5, I, XIII e 37, I, da Constituição Federal pelo artigo 187
da Lei Complementar nº. 75/93 (Lei Orgância do Ministério Público Federal).
Entendeu a Suprema Corte de Justiça que a exigência temporal de dois anos de
bacharelado em Direito como requisito para inscrição em concurso público para
ingresso na carreira do Ministério Público da União, prevista no referido dispositivo
legal, não representa ofensa ao princípio da razoabilidade, pois, ao contrário de se
afastar dos parâmetros da maturidade pessoal e profissional a que objetivam a
norma, adota critério objetivo que a ambos atende. Entendeu a maioria do Plenário
que a lei pode impor condições para inscrição em concurso público, desde que não
sejam desarrazoadas, e que o requisito objetivo adotado pela norma impugnada,
considerando a presunção da aquisição de maturidade pessoal e de experiência
profissional do concursando nesses dois anos, atenderia aos princípios da
razoabilidade, da isonomia, do livre exercício das profissões e do livre acesso aos
cargos públicos.
352
Cf. HABERLE, P. Demokratische verfassungstheorie im lichte des möglichkeitsdenken, In: ___ Die
verfassung des pluralismus.nigstein, TS: [ s.n.] .,1980. p. 9
.
201
Mendonça
353
procurou demonstrar a pertinência dos raciocínios tópicos
no direito, a partir da análise da atuação dos tribunais superiores. Busca dar uma
contribuição ao debate contemporâneo sobre a metodologia do direito, buscando na
retomada de certas premissas pré-modernas, ligadas a uma prática jurídica fundada
no exame das características do caso concreto, a base para o estudo do caráter
normativo da jurisprudência dos tribunais superiores, especialmente do Supremo
Tribunal Federal. Conclui, afirmando que a atividade judicial nada mais representa
do que um conjunto de práticas de natureza tópica aplicadas ao direito, pois os
juízes examinam as características particulares de cada situação e atribuem
soluções para a controvérsia, com base nas normas jurídicas em vigor. E para isso,
lançam mão de vários tipos de argumentos, fundados na realidade, no senso
comum, em valores etc, que, ao final, irão funcionar como diretrizes para a resolução
de casos semelhantes no futuro. Realça ainda que a proposta tópica de
interpretação não implica em desconsiderar a existência de um sistema jurídico
orientado por certos imperativos de segurança e coerência, mas também em
reconhecer que a cultura jurídica do Ocidente é resultado de uma consolidação
histórica de instituições de direito, construídas a partir de procedimentos
argumentativos.
Streck
354
registra que o Supremo Tribunal Federal há décadas aplica
princípios como o da proporcionalidade e o da razoabilidade, mormente em sede de
controle concentrado, mencionando que, talvez, a primeira decisão de que se tenha
noticia seja a proferida no Recurso Extraordinário nº. 18.331, que teve como Relator
o Min. Orosimbo Nonato, e que, tratando da majoração do imposto de licença sobre
cabines de banho na cidade de Santos, concluiu que:
O poder de taxar não pode chegar à desmedida do poder de destruir,
uma vez que aquele somente pode ser exercido dentro dos limites
que o tornem compatível com a liberdade de trabalho, de comércio e
indústria e com o direito de propriedade. É um poder, em suma, cujo
exercio não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo
aplicável, ainda aqui, a doutrina fecunda do détournement de
pouvoir. Não há que estranhar a invocação dessa doutrina ao
propósito da inconstitucionalidade, quando os julgados têm
proclamado que o conflito entre a norma comum e o preceito da Lei
Maior pode-se acender não somente considerando a letra, o texto,
como também, e principalmente, o espírito e o dispositivo invocado.
353
MENDONÇA, Paulo Roberto Soares. A tópica e o Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Renovar,
2003. p. 279.
354
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. p. 515.
202
Tal decisão tamm demonstra uma evidente utilização do método
concretista de interpretação constitucional, o qual é reforçado pela aplicação do
princípio da razoabilidade ou da proibição de excesso. Pode-se afirmar que, muito
embora não tenham os mesmos fundamentos e origens, no direito brasileiro têm-se
utilizado como sinônimos os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade,
questão que, porém, não traz maiores problemas no plano da interpretação da
Constituição e das leis.
De um modo geral, quando se indaga se foi observada a devida
proporcionalidade entre os fins e os meios da lei, também se está a perquirir sobre a
razoabilidade dessa mesma lei. Verifica-se ainda que, algumas vezes, confundem-
se com ditos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, o da igualdade.
Do exame das decisões referidas, conclui-se a importância da utilização
da principiologia constitucional no controle da constitucionalidade, o que configura
fator de grande relevância para a concretização dos direitos fundamentais.
A teoria da concretização parece ser a que melhor realiza a interpretação
adequada das normas de direitos fundamentais, embora reconheça-se a
impossibilidade de se adotar um único método ou critério para a interpretação das
normas de direitos fundamentais. A vantagem que a concretização das normas
fundamentais oferece é que ela tenta estabelecer um meio termo entre os excessos
das teorias hermenêuticas clássicas e as demais teorias da Nova hermenêutica.
Supera-se a relação meramente subsuntiva entre norma e caso concreto
e inclui-se, de forma racional e controlada, todos os aspectos normativos e fáticos
no âmbito do processo de concretização constitucional, não descurando tamm de
considerar ditos aspectos de forma racional e controlada, haja vista a necessidade
de segurança jurídica. Por isso os dados fáticos passam a ser fundamentais na
interpretação-concretização, o que contribui para o estabelecimento de uma
adequada conexão entre fatos e normas.
No entanto, a maior dificuldade na interpretação-concretização dos
direitos fundamentais, assim como na hermenêutica constitucional como um todo, é
a definição do que seja uma concretização adequada dos direitos fundamentais.
Seguindo a posição de Galindo
355
, parece que a interpretação constitucional
355
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá,
2004. p. 231.
203
adequada é aquela que promova a denominada eficácia ótima da norma
constitucional, tendo em vista a força normativa da constituição.
Para a obtenção de tal objetivo, porém, torna-se necessário que os
juristas encarregados da tarefa interpretativo-concretizadora da constituição e das
normas de direitos fundamentais observem, além dos conhecimentos técnico-
jurídicos, uma postura ética e ainda alarguem os seus horizontes reflexivos por meio
de uma maior amplitude de reflexões e ponderações jurídicas e de ordem
extrajurídica buscada esta última na política, na sociologia e na filosofia e demais
ciências que demonstrem uma relação de interdisciplinariedade com fatos, valores e
normas envolvidas no processo de concretização da Constituição..
Assim, em uma Nova hermenêutica constitucional que se proponha a
alcançar não só a eficácia, como a efetividade das normas de direitos fundamentais,
não há mais lugar para o jurista exclusivamente técnico, o qual deverá tamm
valer-se dos demais ramos do saber, especialmente daqueles denominados de
ciências humanas, quais sejam, a ciência política, a sociologia, a filosofia, assim
como o próprio direito.
7.3 A importância do Tribunal Constitucional
A partir das novas demandas sociais implementadas com as sociedades
pluralistas de hoje, a Constituição passou a concentrar as mais díspares correntes
ideológicas, criando, com isso, pontos de atrito que precisam ser harmonizados de
forma dialógica e sistemática, a fim de criar condições que ofereçam segurança,
qualidade e estabilidade ao convívio social.
Toda essa demanda nova exige um novo tipo de concepção acerca da
jurisdição constitucional, consubstanciada na instituição de tribunais constitucionais,
tamm conhecidos como tribunais ad hoc, aptos a instrumentalizar a materialidade
dos textos constitucionais e a efetuar a adequada interpretação das normas
constitucionais, especialmente as de direitos fundamentais, de modo a alcançar uma
ótima eficácia que possa garantir-lhes máxima efetividade.
204
Canotilho
356
, como já referido em capítulo anterior, realça que, embora
haja corrente doutrinária sustentando que a justiça constitucional, exercida através
dos tribunais constitucionais não seja estritamente indispensável à construção do
Estado de Direito, observa-se o franco e generalizado alargamento dos referidos
tribunais, especialmente depois da 2ª Guerra Mundial, após a derrubada dos
regimes autoritários e ainda como resultado do colapso dos regimes comunistas.
Perez Tremps
357
tamm constata que houve uma grande expansão dos
mecanismos que operacionalizam a Justiça Constitucional em todo o mundo nos
últimos tempos, especialmente na América Latina. O dado significativo a este
respeito é que a maior parte das abundantes reformas constitucionais levadas a
cabo nas décadas de 1980 e 1990 na América Latina incorporaram ou reforçaram
instituições de justiça constitucional. O México, com um sistema jurisdicional
assentado há mais ou menos um século e meio, transformou a Corte Suprema de
Justiça da nação em um autêntico tribunal constitucional nas suas reformas de 1994-
1995.
Houve uma ruptura com os modelos tradicionais de justiça constitucional,
havendo a superação da dicotomia entre controle difuso e controle concentrado,
sendo que, na atualidade, ambos os tipos se mesclam de forma harmônica a fim de
garantir-se a supremacia da Constituição. Essa ruptura registrou-se mais
significativamente na América Latina, onde, pode ser citado o caso do Paraguai, cujo
órgão especializado na jurisdição constitucional, a Câmara Constitucional, acha-se
integrado na Corte Suprema de Justiça. Na atualidade não se pode mais identificar a
justiça constitucional por meio de elementos meramente formais ou institucionais,
mas por um conceito material e substantivo que corresponda a um conjunto de
técnicas tendentes a concretizar Constituição mediante processos e métodos
estruturados sob uma concepção material que valoriza tanto a norma como a
realidade que a circunda.
A justiça constitucional representa um valioso elemento de legitimação do
sistema democrático. Contudo, torna-se necessário precaver-se contra a
exacerbação de sua importância, impedindo-se que a sua legitimidade seja
356
CANOTILHO, J. J. Gomes. Jurisdição constitucional e intranqüilidade discursiva. In: MIRANDA, Jorge
(Org.). Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra, 1996. v.1, p.
877.
357
PEREZ TREMPS, Pablo. La justicia constitucional en la actualidad: especial referencia a América Latina.
Revista Brasileira de Direito Constitucional. São Paulo, v. 1, , p. 31-32, jan. jun. 2003.
205
indevidamente estendida aos vazios deixados por outras instituições do Estado,
decorrentes, por exemplo, das crises dos partidos políticos, dos abusos sistemáticos
de poder, dos elementos estruturais econômicos.
A Corte Constitucional da Colômbia serve de exemplo de instituição de
reconhecido prestígio nacional e internacional, derivado, porém, da débil
legitimidade dos poderes tradicionais do Estado, em razão de farsas políticas que
têm maculado e comprometido a soberania popular.
Por todas essas razões, e ainda pelo elevado teor de importância e
legitimidade que detêm os Tribunais Constitucionais, é que têm eles servido de
instrumentos de consolidação dos direitos fundamentais, funcionando como
anteparo aos desvios e deformações decorrentes de manifestações políticas
ditatoriais e autoritárias.
A expansão das Cortes Constitucionais e da jurisdição constitucional tem
sido considerada como um dos temas mais importantes dos séculos XX e XXI.
Marcou (apud BARACHO)
358
afirma que “o século passado era
considerado a época dos Tribunais Constitucionais”. Realmente, a partir dessa
época, houve uma irrupção maciça do direito e da justiça na política, buscando-se a
elaboração de uma autêntica e completa Teoria do Estado Democrático de Direito na
sociedade contemporânea.
As mudanças ocorridas na Europa nos últimos anos revelam e consagram
a importância do chamado direito constitucional jurisprudencial resultante da atuação
das Cortes Constitucionais de Justiça, que passam a ser chamadas a apreciar as
grandes políticas e reformas conduzidas por intermédio do Legislativo. Com a crise
dos Parlamentos, cresce de importância a justiça constitucional. O
constitucionalismo contemporâneo tem revelado esta tendência universal de carrear
para os tribunais constitucionais todos os grandes temas constitucionais, o que tem
contribuído para a consolidação dos regimes democráticos e da normatividade cada
vez mais ampliada dos direitos fundamentais. Sobre a questão afirma Baracho
359
que a valorização atual da justiça constitucional pode estar contribuindo para o
358
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. As especificidades e os desafios democráticos do processo
constitucional. In: SAMPAIO, Jo Adércio Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. (Coord.) Hermenêutica e
jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p.93 -158.
359
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. As especificidades e os desafios democráticos do processo
constitucional. In: SAMPAIO, Jo Adércio Leite; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. (Coord.) Hermenêutica e
jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 93 -158.
206
declínio da política, que vem ainda mais se desprestigiando ante os crescentes e
escandalosos casos de corrupção partidária e governamental .
A jurisdição constitucional tem trazido uma influência positiva do direito e
da justiça sobre a política e encontrado caminhos para a consolidação da
democracia e a superação dos regimes autoritários. Isto porque a jurisdição
constitucional assenta-se tamm na idéia de eqüidade, que se baseia no valor
justiça, sendo inúmeros os resultados favoráveis por ela trazidos às crises de
representação política, e das quais tem saído como um verdadeiro contra-poder
judicial legítimo.
Assim, através da jurisdição constitucional, o reconhecimento e a garantia
dos direitos fundamentais supera a fase em que eram reclamados por meio de
movimentos sociais e revolucionários. A grande conexão entre a jurisdição
constitucional e os direitos fundamentais nasceu da necessidade premente de se
garantir o cumprimento efetivo das normas constitucionais, o que implica, até
mesmo, em uma questão de segurança jurídica. Assim, o respeito aos direitos
fundamentais constitui relevante fator de legitimação da jurisdição constitucional,
tornando os tribunais constitucionais instituições inafastáveis de todo Estado
Democrático de Direito.
7.4 A necessidade de um Tribunal Constitucional no Brasil
A doutrina tem proclamado que os órgãos jurisdicionais ordinários,
particularmente os Tribunais Supremos, têm se revelado inidôneos para interpretar
não só a própria Constituição, como tamm o ordenamento jurídico em
conformidade com os valores fundamentais por ela acolhidos. Destaca-se que os
magistrados integrantes dos Tribunais Supremos estão mais habituados a interpretar
o Direito Privado que o Direito Público, utilizando critérios interpretativos que
destoam das exigências requeridas pela adequada interpretação das normas
constitucionais, a par da histórica falta de sensibilidade constitucional que
reiteradamente exibem
360
.
360
SEGADO, Francisco Fernández. El recurso de amparo em Espana como vía de generación conflictual entre el
Tribunal Supremo y el Tribunal Constitucional. In: Rocha, Fernando Luiz Ximenes Rocha; Moraes, Filomeno
(Coord.). Direito Constitucional Contemporâneo: estudos em homenagem ao Professor Paulo Bonavides.
Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 215.
207
No Brasil, os principais componentes do Estado Democrático de Direito,
nascidos do processo constituinte de 1986-1988, ainda aguardam sua
implementação. Velhos paradigmas de Direito provocam desvios na compreensão
do sentido da Constituição e do papel da jurisdição constitucional. Antigas teorias
acerca da Constituição e da legislação ainda dominam o pensamento dos juristas, a
partir da divisão entre jurisdição constitucional e jurisdição ordinária, entre
constitucionalidade e legalidade, como se fossem mundos diferentes e separáveis
metafisicamente.
361
Por isso, o modelo de jurisdição constitucional que se pratica no Brasil é
frágil, fragilizando também o conceito de Constituição. Este fenômeno é facilmente
constatado pela ainda baixa efetividade dos direitos fundamentais em nosso país. A
todo momento somos defrontados com violações graves aos direitos fundamentais
dos indivíduos, partindo principamente dos nossos governantes e agentes políticos
do Governo.
Para alguns doutrinadores a fragilidade da jurisdição constitucional no
Brasil decorre da inexistência de um Tribunal Constitucional exclusivo para o
controle de constitucionalidade das leis. Os adeptos da criação de uma Corte
Constitucional no Brasil, nos moldes das Cortes européias, sustentam que o
Supremo Tribunal Federal tem exercido de maneira muito tímida a missão
constitucional que lhe é confiada de guardião da Constituição, especialmente no que
se refere à tutela dos direitos fundamentais, onde a jurisprudência da Suprema Corte
tem se apresentado por demais escassa.
A verdade é que o Supremo Tribunal Federal, guardião da nossa Carta
Magna, ainda assume uma postura débil e sem muito consistência no tocante à
concretização dos direitos fundamentais, não tendo assumido ainda, na sua
plenitude, a função de implementar a eficácia daqueles, por meio de uma
interpretação concretizadora, que atenda a grande massa da população brasileira,
espoliada a cada dia nos seus mais essenciais direitos. Tal omissão da nossa
Suprema Corte pode ser decorrente da grande instabilidade histórica do seu
funcionamento ao longo de mais de um século da sua existência, exacerbada pela
tendência da sociedade brasileira aos regimes ditatoriais, que perpetram as mais
361
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. p. 14.
208
absurdas agressões aos direitos fundamentais, fruto da falta de tradição democrática
do país.
Nesse sentido a função dos direitos fundamentais passa a ser essencial
para demarcar o espaço político da sociedade civil, onde possa o regime
democrático garantir à população brasileira o exercício dos direitos fundamentais,
com liberdade e justiça para todos, mediante a atuação do Tribunal Constitucional.
Realmente torna-se urgente a criação de um Tribunal Constitucional no
Brasil plenamente imbuído da determinação de dar integral cumprimento aos valores
fundamentais acolhidos pela Constituição Brasileira, de molde a concretizar
efetivamente os direitos fundamentais. A consolidação de uma jurisprudência voltada
para a efetivação dos direitos fundamentais requer estabilidade constitucional e anos
de contínuo e regular funcionamento democrático. É importante e essencial
assegurar a plenitude dos direitos fundamentais, ainda que, em determinadas
circunstâncias, seja necessário barrar políticas públicas, mediante a aplicação do
método concretista de interpretação e com o auxílio inestimável dos princípios
constitucionais. Não devemos esquecer que, nos modelos de freios e contrapesos,
é por meio dos confitos que os poderes se afirmam, como ensina Baracho Júnior
362
.
A criação de um Tribunal Constituciona no Brasill torna-se imperiosa para
complementar e aprimorar o sistema concentrado de controle da constitucionalidade
já instituído no país. Até mesmo para criar perspectivas novas na sociedade civil
quanto à concretização dos direitos fundamentais dos cidadãos, renovando
esperanças de uma tutela mais firme e rigorosa no tocante a eles.
O objetivo essencial da jurisdição constitucional é o de concretizar os
direitos fundamentais, e não mais apenas garanti-los de maneira formal. Este
propósito deve nortear toda a atividade pública por meio de seus órgãos e poderes.
Devido à importância e preeminência dos direitos fundamentais em
qualquer regime político, especialmente no democrático, lembra Agra
363
que:
Devido à proeminência dos direitos fundamentais, até mesmo países que
adotam o sistema concentrado de controle de constitucionalidade, como a
Alemanha e a Espanha, admitem recursos constitucionais individuais como
o verfassungsbeschwerde e o recurso de amparo, para defender esses
direitos
.
362
BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. A interpretação dos direitos fundamentais na Suprema Corte
dos EUA e no Supremo Tribunal Federal. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição
constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 344.
363
AGRA, Walber de Moura. A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro:
Forense, 2005. p.243.
209
No Brasil ainda mais se acentua a necessidade de tal criação pela
inegável crise de representatividade da democracia, agravada pela corrupção do
Poder Legislativo, o que implica no desprestígio e decadência da lei. A tais
circunstâncias acresce a expansão normativa desenfreada do Poder Executivo, por
meio das infindáveis e exageradas medidas provisórias, que atropelam a
competência constitucional do Legislativo, ameaçando-o com o esmagamento das
suas funções.
Por isso, como sustenta Bonavides
364
, o Tribunal Constitucional se
apresenta como a instância adequada, por excelência, para reprimir a
inconstitucionalidade daquela expansão desenfreada, atribuída à inoperância da
máquina legislativa que tem se mostrado rígida, retardatária, letárgica e inadequada
às necessidades sociais, e que estão a exigir prontas respostas da justiça
constitucional que assoma como o Poder mais legitimado para coibir esses
constantes agravos ao princípio maior da supremacia da Constituição.
Sustentamos que deva ser criado no Brasil um autêntico Tribunal
Constitucional, integrando o Poder Judiciário para melhor desempenhar sua função
de guardião da nossa Constitução Federal e desfrutando das mesmas vantagens
garantidas aos demais magistrados.
De qualquer forma, deve ser preservado o controle de constitucionalidade
difuso e concreto, por via de exceção, de molde a garantir-se um atendimento mais
amplificado a todas as camadas da população, especialmente levando-se em cota
as dimensões continentais do Brasil que poderiam inviabilizar o acesso à jurisdição
constitucional dos moradores de regiões mais longínquas. Nesse caso, preservariam
os indivíduos a sua legitimidade para questionar, como questões prévias, as
eventuais inconstitucionalidades referentes ao caso sob apreciação judicial.
Necessita ainda o ordenamento constitucional brasileiro da instituição do
recurso constitucional individual para a específica defesa dos direitos fundamentais,
à semelhança do que ocorre na Alemanha (verfassungsbeschwerde) e na Espanha
(recurso de amparo). Até porque é inegável que, quanto mais o controle de
constitucionalidade se concentra na cúpula do Judiciário, como está acontecendo no
364
BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional
de luta e resistência: por uma nova hermenêutica: por uma repolitização da legitimidade. São Paulo:
Malheiros, 2003. p. 328.
210
Brasil atualmente, menos democrática e menos ligada à cidadania se mostrará a
jurisdição constitucional, ficando esta mais vulnerável às pressões e interferências
políticas do Poder Executivo.
Streck
365
tamm considera imprescindível a discussão em torno da
implantação de um Tribunal Constitucional no Brasil, porém fora do âmbito do Poder
Judiciário, com a elaboração de uma Lei Orgânica que discipline a jurisdição
constitucional. Sugere que sejam buscados subsídios no sistema jurídico de
Portugal, onde, a par da existência de um Tribunal Constitucional, preservou-se o
controle difuso stricto sensu de constitucionalidade. Sustenta que, de modo algum,
pode-se abrir mão, em nosso País, da tradição do controle difuso, que vigora entre
nós desde a instauração da República. Por outro lado afirma que seria dado um
salto qualitativo, pela implementação de uma maior legitimidade dos membros do
Tribunal Constitucional do Brasil, resgatando-se, por essa forma, o papel da vontade
geral traduzida na representação popular, a partir da sua indicação pelo parlamento,
como ocorre, por exemplo,na Alemanha, ou com um sistema misto de acesso como
o previsto para os Tribunais Constitucionais da Espanha e de Portugal.
Bonavides
366
também considera altamente democrático o controle difuso
de constitucionalidade, em razão de originar-se nas bases do sistema, de onde se
irradia com tal amplitude a todas as instâncias, que todo juiz do ordenamento
nacional é, na via incidental, juiz constitucional. Além disso é de índole jurídica ou
judicial, com limites bem definidos quanto à possibilidade do afastamento da
aplicação da norma constitucional.
No tocante à composição do Tribunal Constitucional, entendemos que
seus membros, emmero de 12, devam ter mandatos temporários de nove anos,
vedada a reeleição, e renovando-se de quatro em quatro anos um terço dos seus
membros, os quais deverão ser escolhidos dentre lista composta por representantes
dos mais variados segmentos da sociedade, especialmente do Poder Judiciário e
dos meios acadêmicos, mediante eleição do Congresso Nacional, exigida maioria
qualificada de dois terços dos congressistas presentes, desde que superior à maioria
absoluta da Casa.
365
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. p. 867.
366
BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo: Malheiros, 2003. p.
329.
211
A questão, portanto, está posta e precisa ser debatida em profundidade
por todos os juristas brasileiros de modo que se encontre a solução mais adequada
às peculiaridades do Brasil e às necessidades urgentes do seu povo quanto à
concretização dos seus direitos fundamentais.
212
8. CONCLUSÕES:
Os dados levantados na presente pesquisa permitem, como síntese do
estudo, as conclusões a seguir enunciadas:
1) O Constitucionalismo, que surgiu das correntes filosóficas do
contratualismo, do individualismo e do iluminismo, objetivava, em seu nascedouro,
instituir a Constituição escrita, como forma de limitação do poder político dos
soberanos e de garantia dos direitos fundamentais.
2) O movimento constitucionalista do período iluminista deflagrou a
concepção consolidada nas democracias contemporâneas de que a legitimidade do
exercício do Poder decorre do reconhecimento dos direitos fundamentais.
3) A teoria material da Constituição, elaborada pela Escola de Zurique,
em oposição aos excessos do positivismo jurídico formal, concebe a Constituição
segundo o seu conteúdo material calcado nos valores e princípios substanciais por
ela incorporados e referenciados ao seu contexto social. Por ela o Direito e o Estado
são limitados pelos valores e pela realidade do ser, entendendo como valores ideais
mais altos os direitos fundamentais do cidadão e como realidade do ser os
postulados e exigências de Justiça.
4) Contemporaneamente a Constituição, como um sistema normativo
aberto de regras e princípios, é concebida por sua propriedade finalística de
concretizar os direitos fundamentais e servir de instrumento para a realização do
Estado Democrático de Direito, não devendo, por isso, distanciar-se da realidade
social que busca ordenar.
5) A jurisdição constitucional tem origem no constitucionalismo moderno e
tem por função exercer o controle da constitucionalidade das leis com o objetivo de
fazer observar-se o princípio da supremacia da Constituição pela legislação
infraconstitucional. O respeito à Constituição configura valor preponderante
irrecusável.
213
6) Compete à justiça constitucional velar pela máxima efetividade das
normas que consagram direitos fundamentais, bem como recusar aplicação às leis,
regulamentos ou atos concretos que invistam contra eles.
7) A concepção substancialista da jurisdição constitucional acarreta a
superação da tradicional legitimidade do poder público baseada na soberania
popular pelo princípio da supremacia da Constituição que obriga ao implemento dos
direitos fundamentais. A corrente substancialista atribui à jurisdição constitucional a
missão de velar pelo conteúdo material da Constituição.
8) A experiência de inúmeras nações tem demonstrado que a jurisdição
constitucional passou a ser crescentemente considerada como elemento necessário
à própria definição do Estado Democrático de Direito. A comprovação histórica é
francamente favorável ao ativismo judicial da jurisdição constitucional, especialmente
quando confiada a um tribunal exclusivo, nos moldes dos tribunais constitucionais
europeus.
9) Consideram-se direitos fundamentais aqueles vigentes objetivamente
em uma dada ordem jurídica, reconhecendo-se a eles, no Estado Democrático de
Direito, a importante função de impedir a hegemonia do poder político sobre o
ordenamento jurídico, a fim de que o valor maior da justiça se concretize
materialmente na sociedade.
10) No constitucionalismo contemporâneo servem ainda os direitos
fundamentais para embasar axiologicamente a interpretação constitucional. Por isso
que o respeito aos direitos fundamentais legitima o exercício das funções estatais,
dentre as quais se destaca a jurisdição constitucional.
11) Os direitos fundamentais possuem tanto uma eficácia irradiante sobre
todo o ordenamento jurídico, a qual serve de diretriz para a interpretação e aplicação
das normas dos demais ramos do direito, quanto uma eficácia horizontal que
corresponde à força vinculante desses mesmos direitos no âmbito das relações
privadas.
214
12) A ponderação dos princípios constitucionais não representa uma
técnica puramente procedimental para a solução dos seus conflitos, mas sim método
que incorpora uma irredutível dimensão substantiva que assegure a atualização
evolutiva da Constituição e a plena eficácia aos direitos fundamentais.
13) Os direitos fundamentais devem ser interpretados segundo os
princípios da proporcionalidade ou razoabilidade, de modo a bem ser delimitada a
sua dimensão substancialista.
14) É pela concretização constitucional, concebida como método e como
ato de aplicação das normas constitucionais, que a jurisdição constitucional,
valendo-se da criatividade do intérprete conhecida como ativismo judicial, torna
possível a aplicação dos enunciados normativos da Constituição, necessariamente
abstratos e gerais, a situações de vida naturalmente particulares e concretas.
15) Concretizar é aplicar e, portanto, interpretar a Constituição,
complementando o conteúdo das suas disposições normativas com a ajuda de
dados empíricos e valorativos, especialmente no que se refere à realidade de cuja
ordenação se trata.
16) A teoria da concretização parece ser a que melhor realiza a
interpretação adequada dos direitos fundamentais, embora torne-se impossível a
adoção de um único método ou critério para tal interpretação, que será tanto mais
razoável e adequada quanto mais se valer da indispensável leitura moral das
normas constitucionais.
17) A concretização e a conseqüente realização dos direitos fundamentais
proporcionadas pela jurisdição constitucional depende da conscientização dos
operadores de Direito quanto à normatividade dos princípios constitucionais e à
imperiosa feição principiológica que a interpretação constitucional deve assumir.
18) A apreciação jurisdicional das questões constitucionais produzirá o
efeito multiplicador de conscientizar a sociedade sobre a necessidade de garantir-se
215
aos indivíduos uma efetiva igualdade material que possa consubstancializar-se na
tão almejada justiça social como nota típica do Estado Democrático de Direito.
19) Apesar dos avanços registrados na tutela dos direitos fundamentais,
ainda constituem eles o ponto vulnerável das sociedades contemporâneas, as quais,
na atualidade, têm conferido legitimidade à jurisdição constitucional para a
importante tarefa de concretizá-los.
20) Para o aperfeiçoamento do processo de concretização dos direitos
fundamentais torna-se necessária a criação, no Brasil, do Tribunal Constitucional
para desincumbir-se do controle concentrado da constitucionalidade das leis. Deverá
preservar-se o controle difuso pela via da ação concreta, com o que será mantida a
tradição brasileira, e instituir-se ainda o recurso constitucional individual para a
específica defesa dos referidos direitos fundamentais, à semelhança do que ocorre
na Alemanha (verfassungsbeschwerde) e na Espanha (recurso de amparo) .
21) A legislação em vigor já vem sinalizando na direção da implantação
gradativa em nosso sistema constitucional da referida Corte Constitucional, que
somente virá complementar e aprimorar o sistema concentrado de controle da
constitucionalidade já em vigor no País.
22) A criação do Tribunal Constitucional trará, certamente, perspectivas
novas na sociedade brasileira quanto à concretização dos direitos fundamentais,
renovando esperanças de uma tutela mais firme e vigorosa no tocante a eles.
216
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VIEIRA, Yacyr de Aguilar. O controle da constitucionalidade das leis: os diferentes
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VILAS-BÔAS, Renata Malta. Ações afirmativas e o princípio da igualdade. Rio de
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