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Alessandra Cristina Moreira de Magalhães
“Pórtico partido para o Impossível”: o outrora e o agora na
poesia de Álvaro de Campos
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo programa de Pós-
Graduação em Letras do Departamento de Letras do
Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora adiante
relacionada.
Orientadora: Profa. Dra. Cleonice Berardinelli
Rio de Janeiro
Março de 2006
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410423/CA
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Alessandra Cristina Moreira de Magalhães
“Pórtico partido para o Impossível”: o outrora e o agora na
poesia de Álvaro de Campos
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo programa de Pós-
Graduação em Letras do Departamento de Letras do
Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profa. Dra.Cleonice Beradinelli
Orientadora
Departamento de Letras – PUC-Rio
Profa. Dra. Izabel Margato
Departamento de Letras – PUC-Rio
Profa. Dra. Ida Ferreira Alves
Departamento de Letras – UFF
Profa. Dra. Eneida do Rêgo Monteiro Bomfim
Departamento de Letras – PUC-Rio
Prof. Dr. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro
de Teologia e Ciências Humanas
Rio de Janeiro, 28 de março de 2006.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410423/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e
da orientadora.
Alessandra Cristina Moreira de Magalhães
Graduou-se em Letras (Português-Literaturas – bacharelado e
licenciatura) na Universidade do Estado do Rio de Janeiro em
2002. Cursou Pós-Graduação Lato Sensu em Literatura
Portuguesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro em
2002. Participou de congressos na área de literatura.
Ficha catalográfica
CDD: 800
Magalhães, Alessandra Cristina Moreira de
Pórtico partido para o impossível: o
outrora e o agora
na poesia de Álvaro de Campos / Alessandra Cristina
Moreira de Magalhães ; orientadora: Cleonice Berardinelli.
– Rio de Janeiro : PUC, Departamento de Letras, 2006.
83 f. : il. ; 30 cm
Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Letras.
Inclui bibliografia.
1. Letras – Teses. 2. Pessoa, Fernando. 3. Campos,
Álvaro de. 4. Modernismo. 5. Modernidade. 6. Orpheu. 7.
Infância. 8. Melancolia. 9. Tédio I. Berardinelli,
Cleonice. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Letras. III. Título.
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A Cleonice Berardinelli por existir no sempre
Infinito.
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Agradecimentos
Aos meus Pais e à minha Mãe;
Às minhas famílias, tornadas uma só dentro do meu ser;
À orientadora e amiga, Cleonice Berardinelli: você não imagina como eu lhe
agradeço o facto de você existir”
1
;
À banca, pela presença relevante na etapa final desta trajetória;
À Capes, pela contribuição para a realização deste trabalho;
À Ana Lúcia de Vasconcellos Maciel, amiga a quem serei sempre devedora, por
acreditar na hercúlea travessia do sertão ao mar;
Às irmãs em pseudo, Denise e Patrícia, pela ininterrupta força motriz e
regeneradora paciência;
À turma Primeiras Estórias, por ser interlocutora voraz na prática intelectual e
sempre incansável na arte da amizade. Principalmente, Kellen, Bia, Mari, Ana,
Silvia, Paula, Thatty, Fábio e Pedro;
À Kellen Dias, Beatriz Sobral e Simone Estrellita, companheiras, sempre na
cadência do samba, pela viagem através das profundezas do pensar;
Às companheiras de viagem, pela poesia, pelo romance ou pela crônica, Maria
Cristina e Verônica;
À Sofia de Souza e Silva, pela fraternal acolhida no Estágio de Docência e,
mais ainda, pela magistral e generosa sugestão do texto de Bataille;
Aos amigos da DENGE, casa segunda, pelo acolhimento de sempre nas horas
difíceis;
Aos professores da UERJ, pela sólida formação e intensa paixão pela
Literatura;
A todos os professores e funcionários do Departamento de Letras da PUC-Rio,
pela ajuda inestimável e afetuosa;
A Nossa Senhora Desatadora dos Nós, Iemanjá e Iansã, mães primevas
sincretizadas no meu espírito;
A Fernando Pessoa, por Álvaro de Campos;
A Sérgio Nazar David, o princípio;
A todos que me apoiaram ao longo do caminho, agradeço afetuosamente.
Evoé!
1
Cf. dedicatória do poema “A passagem das horas” de Álvaro de Campos a José de Almada Negreiros.
(PESSOA, 1999, p. 92)
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Resumo
MAGALHÃES, Alessandra Cristina Moreira de; BERARDINELLI, Cleonice.
Pórtico partido para o Impossível”: o outrora e o agora na poesia de Álvaro
de Campos. Rio de Janeiro, 2006. 83 p. Dissertação de Mestrado – Departamento
de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Esta dissertação tem como objetivo proceder a uma análise da obra poética de
Álvaro de Campos. Discute a heteronímia pessoana como uma questão de linguagem,
pois são os textos que inscrevem os heterônimos no mundo. Analisa a poesia do
heterônimo do poeta português Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, a partir das
configurações do outrora e do agora. Apresenta a poesia do “engenheiro de monóculo e
casaco exageradamente cintado” em suas duas fases: a primeira, momento dos ismos e
das sensações; a segunda, em que o poeta é tomado pelo desânimo para enfrentar a vida.
Destaca o agora da modernidade na leitura de “Ode Triunfal. Entende o outrora da
infância como metáfora da criação poética e como momento no qual o sonho ainda é
permitido. Investiga o eu angustiado que se constrói nesta poesia, cujo caminho é
marcado pelo tédio, pela melancolia e pela frustração por aquilo que poderia ter sido e
não foi.
Palavras-chave
Fernando Pessoa; Álvaro de Campos; modernismo; modernidade; Orpheu;
infância; melancolia; tédio.
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Abstract
MAGALHÃES, Alessandra Cristina Moreira de; BERARDINELLI, Cleonice.
Pórtico partido para o Impossível”: the pastness and the nowness in the
poetry of Álvaro de Campos. Rio de Janeiro, 2006. 83 p. MSc. Dissertation
Literature Department, Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro.
This dissertation aims to analyze the poetic works of Álvaro de Campos. It
discusses the heteronomy of Fernando Pessoa as a matter of language, for it is the texts
that inscribe the heteronyms in the world. It analyzes the poetry of the heteronym of the
Portuguese poet Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, from the configurations of the
concepts of outrora (pastness) and agora (nowness). It presents the poetry of the
engineer with a monocle and an exaggeratedly belted coatin his two phases: the first,
moment of the isms and the sensations, and the second, in which the poet is taken by
the dejection of facing life. It highlights the nowness of modernity in the reading of the
Triumphal Ode. It understands the pastness of childhood as a metaphor of poetic
creation and as a moment in which the dream is still allowed. It investigates the
anguished self built in this poetry, whose path is marked by boredom, melancholy and
the frustration for that which could have been but has not been.
Key- words
Fernando Pessoa; Álvaro de Campos; modernism; modernity; Orpheu; childhood;
melancholy; boredom.
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Sumário
1. Introdução: a partida 10
2. Pessoa: apenas uma sigla absurda? 15
2.1“Sê plural como o universo!” 15
2.2“Novos estusiasmos de estatura do Momento!” 24
3. A imagem que surge de uma velha caixa de brinquedos 32
3.1 A concepção infantil do mundo e a poesia 32
3.2 “Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta” 41
3.3 Não há na travessa achada o número da porta que me deram” 50
3.4 Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!” 57
4. Antes da partida, é preciso arrumar a mala de ser 63
4.1 Falhei no que fui, falhei no que quis, falhei no que soube” 63
4.2 “O que quero é levar prà Morte / Uma alma a transbordar de Mar” 73
5. Conclusão: a chegada? 77
6. Referências Bibliográficas 81
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Pobre velha música!
Não sei por que agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te,
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.
Fernando Pessoa
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1
Introdução: a partida
Quando começamos com Pessoa, convencemo-nos depressa de que somos seus
prisioneiros para sempre, que é inútil ler outros livros, que tudo está ali.
Alain Badiou
(BADIOU, 2002, p.63)
O leitor esgueira-se, põe-se à beira do abismo para olhar além. Olhar por
detrás das suas palavras. E o que há? Aquilo que finge e revela, o sublime e o
estapafúrdio, o imensurável e o fascinante. O que nos aprisiona em suas teias
aracno-poéticas é também o que nos liberta em suas nuvens de pensamentos. De
que estamos a falar? Da palavra poética de Fernando Pessoa: arapuca para o
leitor-passarinho que pousa nos seus poemas. Arapuca não no sentido da
armadilha que engana e traz perigo para os que, incautamente, se aproximam dela,
mas no de engenhosidade, maneira artificiosa e sedutora de prender. Segundo
Carlinda Fragale Pate Nuñez (2003, p.9), “os gregos denominavam igualmente
mekhané à arapuca para aprisionar passarinhos e à estrutura dos Diálogos
platônicos, capazes de enredar os mais hábeis interlocutores”. Assim, os leitores
que são atraídos pela poesia de Pessoa descobrem que dela é inútil tentar
desprender-se.
Da perspectiva, incialmente, de leitora apaixonada e enredada pela makhané
pessoana, surgiu a vontade de realizar um trabalho crítico acerca da sua poesia.
No entanto, não é tarefa nada simples transformar a vontade em ação,
principalmente, quando isto diz respeito a uma investigação desta poesia
fascinante mas, ao mesmo tempo, corrosiva. Por isso, será necessário, além do
desejo em si, o apuro do olhar e o labutar constante.
Notamos, contudo, que, em alguns momentos deste incessante exercício, é
possível que a paixão cegue o espírito crítico e passemos a ser apenas os
comandados dela. Pedimos, antecipadamente, a nossa absolvição pelos momentos
de pura contemplação da poesia. Porém, ao invés de clamar pela nossa inocência,
talvez fosse melhor desafiar a todos: atire a primeira pedra aquele que nunca se
apaixonou pelo seu objeto de estudo. Sem dúvida, o que mais nos habilita a
desafiar, neste caso, é a inegável consagração de Fernando Pessoa, considerado
um dos maiores poetas da língua portuguesa, seja pela crítica ou pelo público.
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Para realizar o percurso, procuramos algumas companhias para o trajeto.
Boas companhias, por assim dizer, fisgadas da fortuna crítica de Fernando Pessoa.
Na nossa leitura, apoiamo-nos em diversos textos, alguns já consagrados e outros
mais recentes, que vêm ao encontro da nossa pesquisa. As reflexões sobre os
poemas serão realizadas em uma espécie de diálogo com outros comentadores.
Mas, não só de estudos pessoanos é composto o nosso apoio, textos teóricos como
os de Hugo Friedrich, de Charles Baudelaire, de Walter Benjamin e de George
Battaille também estão incluídos na composição desta paisagem. Além disso, o
próprio Fernando Pessoa nos propõe diversos caminhos investigativos em suas
cartas e textos em prosa. É importante observar que a prosa epistolar tem um
caráter provisório. Como afirma Marco Antonio de Moraes (1999), a
correspondência é uma “obra fragmentária, “inconclusa e lacunar por definição”,
impedindo “quase sempre ao estudioso da literatura a afirmação irredutível sobre
uma opinião emitida, “porque a epistolografia só pode garantir a integridade do
ato de escrita com suas intenções definidas e não a coerência do conjunto.”
Mesmo levando em consideração este aspecto marcante do gênero, acreditamos
que algumas considerações feitas por Pessoa em sua correspondência são
fundamentais para a construção do nosso entendimento da sua obra. Por isso,
cartas enviadas a Adolfo Casais Monteiro, Armando Côrtes-Rodrigues, Gaspar
Simões e Luis de Montalvor adquirem bastante relevância no nosso estudo.
A questão da heteronímia, abordada extensivamente por Pessoa em carta
enviada a Casais Monteiro, vem a ser um dos grandes fascínios da sua poesia. A
crítica tem se esforçado por tentar compreender este poeta que é capaz de criar de
maneiras tão diversas. Observemos o que ele próprio diz acerca destes poetas:
“pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo
Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em
Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida.”
(PESSOA, 2004, p. 94). Nesta mesma carta, conhecida como “a gênese dos
heterônimos, conta o nascimento da sua coterie inexistente” (2004, p. 96): diz
que primeiro escreveu “trinta e tantos poemas a fio” aos quais atribuiu o título de
“O Guardador de Rebanhos, era o aparecimento do mestre Alberto Caeiro a
quem tratou de descobrir discípulos, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, já que ele
mesmo declarou-se também discípulo de Caeiro. Ricardo Reis foi arrancado do
falso paganismo de Caeiro e em “derivação oposta” àquele surgiu
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“impetuosamente” Álvaro de Campos. Segundo alguns pesquisadores, o “dia
triunfal, como Pessoa mesmo define, não passou de mais uma ficção criada pelo
poeta, pois que se encontraram no Espólio os pedaços de folhas onde devem ter
sido escritos pela primeira vez. Só depois é que Pessoa deve tê-los copiado juntos
num mesmo manuscrito, em letra bastante legível, do qual a bela e correta
primeira edição, com facsímile, apresentação e texto crítico, foi dada nas
Publicações Quixote, em 1986, por Ivo Castro, coordenador da Equipa Pessoa.
Mesmo reconhecendo a burla de Pessoa, o que importa é saber que primeiro
surgiu o poema, depois o poeta. O que nos interessa saber para a dinâmica do
nosso trabalho é que foram os poemas que deram origem aos heterônimos e não o
contrário. Sendo assim, seguiremos os estudos de Cleonice Berardinelli e Eduardo
Lourenço no que diz respeito a esta questão.
A criação poética precedeu a criação das personagens: Caeiro, Reis e
Campos terão suas datas e locais de nascimento estabelecidas, assim como
biografias próprias. No entanto, é importante reforçar que “a sua corporificação
(se assim posso dizer) se faz nos versos que preexistem a eles como seres com
biografia. Esta é feita a posteriori, e com detalhes que satisfazem às tendências
lúdica e zombeteira de Pessoa.” (BERARDINELLI, 2004, p. 264).
Para nós, a paixão declarada pela poesia pessoana assume claramente uma
feição: Álvaro de Campos. O poeta do “estar-entre” e do ser “quase”(Cf. PAC, p.
202, v. 11-12)
1
, aquele que se diz “reles, “porco, “vil”, “ridículo” e “absurdo”
(Cf. PAC, p. 234, v. 3-7), o que tem “A vaga náusea, a doença incerta, de me
sentir, (PAC, p. 323, v. 15), nos arrebata a cada linha.
Segundo a descrição de Pessoa (2004, p. 97-98), Álvaro de Campos nasceu
em Tavira, a 15 de outubro de 1890, “teve uma educação vulgar de liceu; depois
foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois
naval. Seu tipo físico é “entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu
português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo”, alto,
“magro e um pouco tendente a curvar-se”.
No que diz respeito à publicação da poesia de Fernando Pessoa, em 1913,
Mário de Sá Carneiro já apontava para esta necessidade: “O que é preciso, meu
1
Para as citações das poesias de Álvaro de Campos utiliza-se a edição: PESSOA, Fernando.
Poemas de Álvaro de Campos. Fixação do texto, introdução e notas de Cleonice Berardinelli. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, abreviada pela sigla PAC.
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querido Fernando, é reunir, concluir os seus versos e publicá-los, não perdendo
energias em longos artigos de crítica nem tão pouco escrevendo fragmentos
admiráveis de obras admiráveis, mas nunca terminadas.” (SÁ-CARNEIRO, 1959,
p. 63), contudo, o único volume publicado em vida pelo poeta foi Mensagem.
Pessoa declara em carta ao amigo Côrtes-Rodrigues que intentava publicar
as poesias de Reis, Caeiro e Campos, porque na poesia deles havia “uma noção da
gravidade e do mistério da Vida” (PESSOA, 2004, p. 55). Contudo, esta promessa
não se cumpriu e, apenas postumamente, no início da década de quarenta do
século XX chegaram às livrarias as primeiras edições das poesias heterônima e
ortônima, dirigidas por João Gaspar Simões e Luís de Montalvor, e dois volumes
de uma antologia organizada e prefaciada por Adolfo Casais Monteiro. Segundo
Eduardo Lourenço, “a importância desta Antologia para a jovem geração dos
começos dos anos 40 foi capital. Foi nas suas páginas que ela descobriu Pessoa e
o seu interminável labirinto.” (1993, p. 25).
Porém, ainda havia muito a fazer e, ao longo de quase cinqüenta anos,
gastou-se muita tinta na tentativa de fixar e estabelecer o texto definitivo dos seus
poemas. Foi em 1988, não por coincidência o ano do centenário de Fernando
Pessoa, que a Secretaria de Estado da Cultura criou a Equipa Pessoa, coordenada
pelo professor Ivo Castro, “com a finalidade de preparar e editar a obra pessoana,
conservada, em sua quase totalidade, no Espólio III da Biblioteca Nacional.”
(BERARDINELLI, 2004, p. 218)
No ano de 1990, foi publicada a Edição Crítica da poesia de Álvaro de
Campos pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, cujo texto foi estabelecido por
Cleonice Berardinelli, a partir de pesquisa realizada no Espólio da Biblioteca
Nacional de Lisboa. A professora e pesquisadora, integrante da Equipa Pessoa,
enfrentou diversas dificuldades na fixação do texto, mas trouxe ao leitor já
acostumado com os poemas da “tradição” Aguilar muitos inéditos e outros com
modificações significativas, por exemplo, “Passagem das Horas. É importante
frisar que “os inéditos não revelavam um novo Álvaro de Campos, confirmavam-
no. Era como se algumas linhas meio esbatidas da poesia já lida por todos fossem
reforçadas, ganhassem cor e relevo maiores.” (BERARDINELLI, 2004, p. 230)
No mesmo ano, 1990, Teresa Rita Lopes publicou Álvaro de Campos:
Vida e Obras do engenheiro pela editora Estampa com “63 textos inéditos do
heterônimo, cinqüenta dos quais poéticos” (BERARDINELLI, 1999, p. XVIII) e
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três anos mais tarde, em 1993, saiu o seu Livro de versos com vários outros
poemas inéditos.
Cleonice Berardinelli lançou ainda um segundo olhar sobre os textos do
engenheiro, cujo resultado foi a edição brasileira dos poemas publicada pela
editora Nova Fronteira em 1999. Nas palavras da professora brasileira,
Estas diferenças de leitura não fazem senão comprovar a consabida dificuldade de
decifrar certos manuscritos do poeta, o que nos deve predispor a reconhecer as
nossas limitações e a acatar toda espécie de aprimoramento – alheio ou nosso – em
sucessivas retomadas do texto. (1999, p. XX)
Sendo assim, na nossa pesquisa, privilegiaremos essa edição, que goza de
uma acurada revisão, levando em conta, ainda, um trabalho comparativo com as
edições de Teresa Rita Lopes.
O objetivo do nosso trabalho é, justamente, ler na poesia de Álvaro de
Campos as marcas do outrora e do agora deixados na construção de um eu
angustiado, cujo caminho é marcado pelo tédio, pela melancolia e pela frustração
por aquilo que poderia ter sido e não foi. Para tanto, procedemos à análise de
poemas tanto da primeira fase da sua poesia, o momento dos ismos, das
sensações; quanto da segunda, em que o poeta é tomado pelo desânimo para
enfrentar a vida.
O que pretendemos na nossa dissertação é, a partir das configurações do
outrora e do agora na poesia deste heterônimo, reconstituir os estilhaços do
espelho no qual se olha um sujeito submetido às frustrações e angústias da
modernidade. Um sujeito partido entre o “real por fora, a vida prática e útil, o
adulto do presente, e o “real por dentro” (Cf. PAC, p.151, v. 22-24), a vida
sonhada da infância, o menino de outrora.
No sempre citado poema “Tabacaria, Álvaro de Campos declara: “Mas ao
menos fica da amargura do que nunca serei / A caligrafia rápida destes versos, /
Pórtico partido para o Impossível.” (PAC, p. 153, v. 80-82, grifo nosso). Se
sabemos que o poeta é gerado a partir da sua criação poética entendemos que
ambos, versos e poeta, são este pórtico estilhaçado, “partido para o Impossível”.
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2
Pessoa: apenas uma sigla absurda?
Em tempos, alguns admitiram que Pessoa tivesse sido apenas uma sigla absurda,
inscrita a fogo num mundo absurdo (o que já seria considerável), em suma, um
habitante do inferno a quem toda a esperança morreu. Talvez sem a poesia o
tivesse sido, na medida em que a experiência pura do desespero, essência da visão
infernal, é compatível com a nossa realidade enraizada na esperança por natureza.
Mas a poesia é processo autónomo de redenção e o próprio Nada que se invoca ou
respira, nela abdica do seu negro sortilégio.
Eduardo Lourenço
(LOURENÇO, 1983, p. 158)
2.1
“Sê plural como o universo!”
Assumir por sua conta o mito de Orfeu significava tomar a sério com todas as
conseqüências imprevisíveis o papel da poesia no destino humano. Transformar a
existência em existência poética, apoderar-se dos poderes que, sabiamente, talvez,
a mitologia confere apenas a um semideus e tentar dominar com eles as várias
faces de um destino adverso até converter toda a realidade em realidade poética
não era, não é, uma aventura vulgar.
Eduardo Lourenço
(LOURENÇO, 1974, p.57)
É sabido que, muitas vezes, são anunciadas de forma antecipadora na arte
certas inquietações e ansiedades do ser humano que só mais tarde serão
desenvolvidas no campo do pensamento e das ciências.
Sendo assim, alguns poetas, entre os quais está Fernando Pessoa,
“expressaram o dilaceramento íntimo do homem contemporâneo, diante de um
mundo cujos valores, definições, limites e certezas ruíam, levando de roldão as
palavras que fixavam ou imobilizavam suas realidades” (COELHO, 2000, p.53).
Pertence ao domínio da sua poesia esta instabilidade do homem do início do
século, a deparar-se com as diversas transformações que põem a prova, a todo
momento, suas certezas e verdades. Plural, a sua criação poética indica um novo
caminho para a arte e a literatura portuguesas. No entender de Fátima Freitas
Morna (1982, p. 34), “para uma realidade assim oscilante, múltipla, sem a antiga
fixidez, torna-se necessário um sujeito cuja única salvação está em se aceitar
múltiplo, oscilante ele também, em devir, sensação acumulada e dinâmica”.
Foi, portanto, em poesia que Pessoa equacionou o problema da dispersão do
eu imposto por sua época. Para além de um eu, cada heterônimo é também um
“universo” poético. Ele mesmo é quem ordena: “Sê plural como o universo!”
(PESSOA, 2004, p. 81).
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16
É claro que a sua personalidade, dada à ficção desde criança, contribuiu para
este processo de criação. Em um rascunho de carta escrita a Adolfo Casais
Monteiro, em 1935, Pessoa comenta sobre sua “necessidade de aumentar o
mundo, por isso, já o acompanhavam algumas figuras como um capitão
Thibeaut, um Chevalier de Pas e outros ainda dos quais já se esquecera. Estes não
eram “simplesmente aquela imaginação infantil que se entretém com a atribuição
de vida a bonecos e ou bonecas”, eram “realidades exatamente humanas, “eram
gente. (PESSOA, 2004, p. 92) Na carta efetivamente enviada ao “prezado
camarada, escreve o seguinte:
Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar
mentalmente, em figura, movimentos, caráter e história, várias figuras irreais que
eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos,
porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me
lembro de ser eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de
música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.
(PESSOA, 2004, p. 95)
É o próprio Fernando Pessoa quem diz na mesma carta que, a despeito da
origem psiquiátrica dos seus heterônimos, “tudo acaba em silêncio e poesia”
(PESSOA, 2004, p.95). Na escritura da sua poesia, fundam-se os alicerces da
construção de um eu incomodado pela modernidade.
A linguagem é a matéria-prima com que se distingue o homem dos outros
seres. Contudo, não é a linguagem cotidiana que dá conta desta transmutação do
eu em vários, mas a linguagem poética, onde nada é absurdo ou contraditório. Ao
poeta, descendente de Orfeu e Anfíon, cujas liras eram capazes de modificar a
natureza e transformar a realidade, é delegado o poder de criar novos mundos ou
outros eus.
Se nos é permitida uma digressão, lembremos que o mito de Orfeu é
recorrentemente citado como modelo de poeta, enquanto o de Anfion ficou
escondido, sendo poucas vezes resgatado. Como exemplo deste resgate, podemos
citar João Cabral de Melo Neto que escreveu a “Fábula de Anfion”.
Construindo o poema como um objeto, Cabral escolhe como metáfora do
poeta não Orfeu, mas Anfion; ambos são desde sempre representados a dedilhar a
lira, que Cabral substitui pela flauta, mas são diversos os efeitos de sua música: a
de Orfeu enleva os seres, acalmando as feras, fazendo parar as águas e baixando as
montanhas; a de Anfion, bem menos célebre, faz moverem-se as pedras com que
constrói as muralhas de Tebas. É, pois, o construtor, o engenheiro.
(BERARDINELLI, 2004, p. 164)
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Nas redondilhas camoninas de “Sobre os Rios, também o instrumento é
trocado. O poder da lira de Orfeu, em Camões, tranforma-se no poder da “frauta”
do poeta (cf. BERARDINELLI, 2000, p. 203-217). Para João Cabral, a flauta é
“cavalo solto e louco” (MELO NETO, 1979, p. 327) difícil de dominar, prever as
suas modulações e traçar as suas ondas antecipadamente. Alguns outros também
retomaram o mito de Anfion, cuja forma dicionarizada é Anfião: Cláudio Manuel
da Costa, em Soneto I, Mário de Andrade, em “Prefácio Interessantíssimo, e
Cassiano Ricardo, em “Coral Mural. Eucanaã Ferraz chama atenção para o fato
de que também Paul Valéry, um dos autores que mais marcaram João Cabral,
utilizou o mesmo motivo em Histoire d'Amphion(FERRAZ, 2003, p. 81).
Este poder de criação e de transformação retomado pelo poeta moderno é
uma maneira de olhar o mundo e a si mesmo através de palavras cuja semântica,
já estabelecida, muitas vezes, torna-se insuficiente para dizer aquilo que se deseja.
Por isso, novos arranjos e combinaçãoes são necessários para que se chegue ao
limite possível dos sentidos, num tempo de aceleradas modificações. A
possibilidade de leituras outras da realidade que não a comum conferem à poesia
uma pluralidade tal qual a do universo.
Em trabalho recente, Rosalba Lopes Gama (2004, p. 12) defendeu que
a poesia como expressão da arte em Pessoa retoma o significado original do étimo
grego: poiçsis, cria um mundo, anseia por criar um mundo e não por descrevê-lo,
adquirindo liberdade em relação a toda ordem estabelecida do real, e,
transformando-o, evidencia o poder que o poeta tem de dispor as palavras, dando-
lhes um novo significado.
O mundo criado na poesia pessoana é “o ponto de reunião de uma pequena
humanidade” (PESSOA, 2004, p. 92). A questão da heteronímia é bastante
complexa e para nos auxiliar no seu entendimento, propomos um diálogo entre
dois importantes estudiosos da obra deste autor, Eduardo Lourenço e Cleonice
Berardinelli, que, seguindo por caminhos diversos, chegaram ao mesmo ponto.
Como diz a sabedoria popular, por vários caminhos chega-se a Roma.
Eduardo Lourenço publica em 1973 o seu livro Pessoa Revisitado, no qual
afirma que “o poeta é aquele que escolheu ter um ser através da sua linguagem.”
(LOURENÇO, 2003, p.23).
Cleonice Berardinelli numa conferência feita na Associação de
Psicanalistas, afirma que “se a Poesia é linguagem e pensamento originários,
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poder-se-ia dizer, com vantagem, que a Poesia é a casa do Ser, e, segundo penso,
casa inaugural, onde o Ser tem origem.” (BERARDINELLI, 2004, p. 263). O
ensaio “Poesia, casa do ser” foi publicado pela primeira vez no livro Fernando
Pessoa e Martin Heidegger: o poetar pensante (HÜHNE, L. M. (org.). Rio de
Janeiro: Uapê, 1994) e dez anos mais tarde republicado em Fernando Pessoa:
outra vez te revejo...
No “esclarecimento do mecanismo textual e imaginário” de Pessoa, Eduardo
Lourenço caminha pela psicanálise, mas faz uma ressalva no prefácio à segunda
edição do seu livro: “se de psicanálise se trata é de psicanálise do texto e não do
sujeito criador” (LOURENÇO, 2003, p. 16-7). O crítico credita o centro de
origem da poesia heterônima à relação “‘perversa’ do autor da ‘Ode Triunfal’ com
Walt Whitman” (LOURENÇO, 2003, p. 17). Enquanto isto, Cleonice Berardinelli
caminha através da filosofia de Heidegger e sua célebre frase “a linguagem é a
casa do ser”.
Apesar de fazerem percursos distintos, ambos concluem que cada
heterônimo é “gerado” no ventre “poético” de Fernando Pessoa, explicando
melhor, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos são poetas-textos.
Agora, inverterei a ordem, citando primeiro Cleonice Berardinelli:
No caso pessoano, embora haja a figura central do homem/poeta Pessoa, que a tudo
dá origem, que são, na verdade, os heterônimos pessoanos, senão “seres de papel”,
como os personagens da ficção, mas que, antes de falar um texto, são por ele
falados? (BERARDINELLI, 2004, p. 263)
A “questão proposta” pela ensaísta, apesar de a sabermos um jogo retórico,
terá resposta nas palavras de Eduardo Lourenço, a mostrar a sua concordância
com a colega:
Como autores reais seriam dotados de uma personalidade e de uma vocação cuja
coerência se devia exprimir nos poemas que cada qual subscreve. Daí nasceu um
teatro em segundo grau (personalizando na pura arbitrariedade um “drama em
gente” assim deslocado para sempre do seu centro próprio) convertendo os autores
fictícios em criadores de poemas quando só poemas são os criadores dos autores
fictícios. Na exegese universal de Pessoa os poemas-Caeiro, Reis, Campos são
sombra de seus fictícios pais quando só o inverso é evidente. Alberto Caeiro, Reis,
Campos, mas igualmente Fernando Pessoa “ele mesmo” são só (e que outra coisa
poderiam ser?) os seus poemas. (LOURENÇO, 2003, p. 29)
Ainda em par com Eduardo Lourenço (2003, p. 28), dizemos que a “solução
que Pessoa encontrou para as suas dificuldades pessoais, espirituais e literárias – a
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famosa proliferação em poetas – só nos interessa na medida em que é, princípio e
fim, criação poética.” Por isso, não nos interessa tanto estabelecer a “gênese dos
heterônimos, já tão estudada pelos críticos e explicada pelo próprio poeta, mas
determinar uma possibilidade hermenêutica para o “drama em gente” encenado
por Pessoa. Portanto, a poesia se apresenta como possibilidade para compreendê-
lo, sendo o meio pelo qual Pessoa deixa de ser apenas uma “sigla absurda”.
No entender de Pessoa, que alguns apontam como o melhor comentador da
sua própria obra, basta ao crítico entender que ele é um “poeta dramático
escrevendo em poesia lírica” (PESSOA, 2004, p. 87), que estará munido da chave
que abrirá todas as fechaduras da sua expressão poética (PESSOA, 2004, p. 66).
Vejamos como ele explica essa expressão:
Há autores que escrevem dramas e novelas; e nesses dramas e nessas novelas
atribuem sentimentos e idéias às figuras, que as povoam, que muitas vezes se
indignam que sejam tomados por sentimentos seus, ou idéias suas. Aqui [na poesia
pessoana] a substância é a mesma, embora a forma seja diversa. (PESSOA, 2004,
p. 82)
Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos possuem sua própria
biografia, aspectos físicos detalhados, estilos literários diferenciados, sendo,
portanto, personagens com suas individualidades completas. Pessoa declara
diversas vezes que os poetas criados por ele sentiam de maneira diferente da sua.
Por qualquer motivo temperamental que me não proponho analisar, nem
importa que analise, construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e
de mim, personagens estas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos
meus sentimentos e idéias, os escreveria. Assim, têm estes poemas de Caeiro, os de
Ricardo Reis e os de Álvaro de Campos que ser considerados. Não há que buscar
em quaisquer deles idéias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há
simplesmente que os ler como estão, que é aliás como se deve ler. (PESSOA, 2004,
p. 87)
Os poemas “como estão” é que devem ser lidos e não o homem por detrás
deles. O que ele valoriza, portanto, é a poesia dos seus heterônimos, ou seja, o que
foi escrito “na pessoa” deles. Os textos que inscrevem os heterônimos no mundo
da poesia diferem não só das suas idéias e sentimentos, como também da sua
técnica de composição e do seu estilo.
A heteronímia inviabiliza, portanto, a leitura da poesia como verdade
daquele que a escreveu, pois impede a associação entre o eu empírico e o eu
poético. Segundo Hugo Friedrich (1978, p. 14), a poesia moderna, “prescinde da
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humanidade no sentido tradicional, da ‘experiência vivida’, do sentimento e,
muitas vezes, até mesmo do eu pessoal do artista. O alemão dirá, mais adiante,
quando analisa a despersonalização em Baudelaire, que “a palavra lírica já não
nasce da unidade de poesia e pessoa empírica, como haviam pretendido os
românticos” (FRIEDRICH, 1978, p. 36). Nem por isso, deixa de ser sincero o que
foi escrito na pessoa do outro, “como é sincero o que diz o Rei Lear, que não é
Shakespeare, mas uma criação dele” (PESSOA, 2004, p. 55). Foi no poema
Autopsicografia” que Pessoa nos deu a melhor definição do “problema da
sinceridade” na poesia, quando escreveu que
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Neste poema, estabelece-se uma conexão entre a dor sentida e fingida pelo
poeta e a dor sentida e ressentida pelo leitor. Quando cotejamos com trecho de
uma carta, de 19 de janeiro de 1915, enviada a Côrtes-Rodrigues, em que diz ser a
literatura de Reis, Caeiro e Campos, “sincera, porque é sentida, e que constitui
uma corrente com influência possível, benéfica incontestavelmente, nas almas dos
outros” (PESSOA, 2004, p.55), observamos que ele já apontava aí para esta
ligação entre escrita-leitura. Na interpretação de Adolfo Casais Monteiro (1958, p.
124), com a qual concordamos, “‘fingir a dor que deveras sente’, não quer dizer
mentir.”
Outro poema, também bastante conhecido, pode ser evocado aqui para que
falemos sobre a questão da sinceridade na obra de Fernando Pessoa. No poema
Isto, há uma conexão entre escrita e sentimento. Leiamos atentamente o poema:
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não
Eu simplesmente sinto
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Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
O poeta reafirma que não mente ou finge, no sentido de não estar sendo
sincero, aquilo que escreve. Ele sente, sim, mas com a imaginação e não com o
coração como os poetas românticos fingiam sentir. Ele coloca ao leitor a
“responsabilidade” de sentir, quando lê o poema. A sua “lição” está pautada no
entendimento de que “o conhecimento da poesia é, na sua raiz, uma relação
pessoal entre ela e cada um de nós” (MONTEIRO, 1958, p. 115), leitores.
Àqueles que desejam fazer da poesia um lugar para o sentir do poeta, Pessoa
responde que a poesia é palavra sentida mais pelo leitor do que pelo poeta. Não ter
vivido a dor posta em versos não quer dizer que o poeta é um mentiroso. No
ensaio “O insincero verídico, Adolfo Casais Monteiro critica aqueles que
desejam encontar na biografia do poeta a explicação para a sua poesia. Para ele, a
verdade procurada na existência do poeta não conduz senão a portas ilusórias. Ou
seja, não interessa procurar essa verdade na existência do poeta, ela, se é que há,
está contida na sua obra. Nas suas palavras, “condições externas não dizem senão
essas coisas evidentemente úteis, mas exteriores, que, todavia, tanto sucedem aos
poetas como a qualquer outra pessoa.” (MONTEIRO, 1958, p. 109) Só que apenas
os poetas transfiguram as experiências vividas ou imaginadas em palavra poética.
Ainda tendo como base as palavras de Casais Monteiro, pode-se dizer que a
sinceridade do poeta é aquela que o permite “não autobiografar-se, mas
reconhecer-se, para lá de quaisquer incidentes, fatos, acontecimentos.”
(MONTEIRO, 1958, p. 123) O que importa não é ter vivido a experiência para
que se possa falar dela, mas “ter dentro de si o lugar, digamos assim, onde todas
as experiências podiam caber – mas que o poeta não precisa de realizar para elas
serem verídicas nos seus poemas.” (MONTEIRO, 1958, p. 125)
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Neste “drama em gente” encenado por Pessoa, interessa-nos a poesia do
engenheiro “de monóculo e casaco exageradamente cintado” (PAC, p. 67, v. 25),
Álvaro de Campos. Segundo Cleonice Berardinelli (1999, p. xxii-xxxii), na poesia
deste, assim como na de Fernando Pessoa, há duas fases nitidamente delimitadas:
na primeira, o poeta está em busca de novos caminhos, é o momento dos -ismos,
da poesia das sensações. Temos, por exemplo, “Ode Triunfal, “Ode Marítima”,
“Saudação a Walt Whitman, “Ode Marcial, “A passagem das Horas”; na
segunda, vêm à tona o cansaço, o sono, o tédio, a melancolia, a incapacidade de
enfrentar a vida sempre adiada por conta da sua “personalidade” abúlica e
nauseada, como por exemplo em “Adiamento, “Tabacaria”, “Lisbon Revisited”,
“Poema em linha reta. Além disso, na sua pesquisa realizada no espólio do poeta,
ela encontrou inúmeros poemas da segunda fase que tratam do tema da infância
como espaço de carinho e aconchego familiar, trazendo a lembrança emocionada
de um passado perdido, como já se tinha encontrado em “Aniversário”.
Poemas da primeira fase de Álvaro de Campos integraram os dois números
da revista Orpheu. No primeiro, foram publicados “Opiário” e “Ode Triunfal”; no
segundo, “Ode Marítima. Estava programada para a terceira edição da revista,
que não chegou a sair, a “Saudação a Walt Whitman”.
Pessoa comenta em carta a Adolfo Casais Monteiro, em 13 de janeiro de
1935, que escrevera “Opiário, um “poema antigo” de Campos, para completar o
número de páginas de Orpheu com “um poema de como o Álvaro de Campos
seria antes de ter conhecido o Caeiro e ter caído sob a sua influência” (PESSOA,
2004, p. 97). De fato, esse poema não traz a liberdade formal e o reinado das
sensações como posteriormente veremos acontecer nas odes. Os cento e setenta e
dois versos decassílabos são divididos em quarenta e três quadras. O poema,
dedicado a Mário de Sá Carneiro, exigiu do poeta “um duplo poder de
despersonalização”, mas em compensação deu o “Álvaro em botão...” (PESSOA,
2004, p. 97). Isto porque os poemas escritos já sob a influência do mestre Caeiro
não são formalmente rígidos e possuem uma larga exploração sensorial.
A “insólita modernidade de Orpheu(GALHOZ, 1984, p. xviii) assustou o
acabrunhado meio cultural português. Dispôs-se a imprensa a lançar mísseis, tais
como, “literatura de manicómio, cujos alvos principais eram as “Odes”, de
Álvaro de Campos, e os poemas de Mário de Sá-Carneiro, “16” e Manucure”.
Este último, com a “Ode Marítima”, saídos no segundo número da revista,
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chegaram a ser classificados pela crítica como pornográficos. Fernando Pessoa
excita-se com o alvoroço causado pela iniciativa e escreve ao amigo Côrtes-
Rodrigues dizendo que “foi um triunfo absoluto” e que são “o assunto do dia em
Lisboa”, sendo até mesmo “apontados na rua. (PESSOA, 2004, p. 414)
No entender do poeta, a revista trimestral de cerca de oitenta páginas, que
vinha ao mundo, teria de firmar, “porque ela é a ponte por onde a nossa Alma
passa para o futuro” (PESSOA, 2004, p. 412-3). Esta afirmação de Pessoa é
reveladora da sua consciência de que seria apenas mais tarde e não naquele
momento imediato que a “nova poesia portuguesa” seria reconhecida pela crítica.
Não havia ainda sido criado o meio para tão provocativa arte, mas a geração de
Orpheu “terçara armas contra o imobilismo e o atraso cultural do país” com uma
“assumida consciência da necessidade de uma revolução cultural” (GOMES,
1994, p. 111). Fernando Pessoa é o continuador de um processo iniciado com os
românticos, Almeida Garrett e Alexandre Herculano, e que passa pela Geração de
Setenta, Antero de Quental, Eça de Queirós e Oliveira Martins, cujo horizonte é
“uma pátria a ser feita e não apenas já feita” (LOURENÇO, 1988, p. 82).
Segundo afirma Eduardo Lourenço no seu já conhecido ensaio “Da literatura
como interpretação de Portugal” (1988, p. 79),
Entre outras coisas, o Modernismo português – e em particular o
representado por Fernando Pessoa – desejou ser não apenas invenção e recriação de
uma nova sensibilidade e visão da realidade (aquela que o chamado mundo
moderno estava pedindo), mas igualmente uma metamorfose total da imagem, ser e
destino de Portugal.
Com a intenção de criar uma “arte-todas-as-artes(PESSOA, 2004, p. 408)
reúnem-se poetas e pintores cujo mínimo múltiplo comum era, justamente, a Arte.
Dizemos isto, a despeito da heterogeneidade da produção publicada em Orpheu.
Muito mais tarde, veremos refletir Almada Negreiros: “Era a arte que nos juntava?
Era. Arte era a solução. A nossa solução comum. Era o neutro entre nós.” (1997,
p. 1080). Na ansiedade da sua existência, vê-se nascer um “texto preocupado”,
como dirá, na introdução do primeiro número Luís de Montalvor. A preocupação
era dar a ver se se produzia em Portugal uma arte capaz de chocar o “lepidóptero”
com a sua circunstancialidade e, mesmo assim, ficar. Anos mais tarde profetiza
Pessoa nas páginas do segundo número da revista SW: Orpheu acabou. Orpheu
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continua” (PESSOA, 2004, p. 407). Acreditamos, seguindo a lição de Nelly
Novaes Coelho, que esta permanência deve-se ao fato de que
Por diversos que fossem os gêneros adotados por cada um ou a natureza de suas
obras, identificava-os uma mesma paixão: a da Arte em face de um espaço cultural
vazio ou agressivo, onde lhes “faltava território” para viverem em plenitude. Esse
“território”, só a Arte e a Literatura podiam oferecer. Daí a importância vital da
forma a ser conquistada como expressão do novo, então apenas intuído em meio ao
“caos de sensações” oferecidas por um mundo de valores em naufrágio e valores
em gestação; daí também o fragmentarismo como processo de composição e acima
de tudo o esforço de libertação de uma identidade pessoal/social limitadora e a
busca da despersonalização. (COELHO, 2000, p. 69)
Logo, a arte e a poesia são os espaços, os territórios tomados por quem não
deseja ser “apenas uma sigla absurda, inscrita a fogo num mundo absurdo”
(LOURENÇO, 1983, p. 158), mas a expressão do novo, da modernidade, do
Momento!
2.2
“Novos estusiasmos de estatura do Momento!”
Abram-me todas as portas!
Por força que hei-de passar!
Minha senha? Walt Whitman!
Mas não dou senha nenhuma...
Passo sem explicações...
Se for preciso meto dentro as portas...
Sim – eu franzino e civilizado, meto dentro as portas,
Porque neste momento não sou franzino nem civilizado,
Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar,
E que há-de passar por força, porque quando quero passar sou Deus!
Álvaro de Campos. “Saudação a Walt Whitman”
(PAC, p. 69, v. 65-74)
Publicado no primeiro número da revista Orpheu, a “Ode Triunfal” abre
caminho para a inquientante poesia de Álvaro de Campos. O poema é
freqüentemente lido “como expressão do mundo contemporâneo, isto é, o mundo
construído pela Civilização da Técnica e da Máquina, em que as sensações
humanas parecem explodir, tal o grau em que são provocadas” (COELHO, 2000,
p. 63). Alguns autores, como Jacinto do Prado Coelho, em Diversidade e
Unidade em Fernado Pessoa e Eduardo Lourenço, em Pessoa Revisitado,
porém, apontam para uma relação ambivalente, na poesia de Campos, com a
civilização e a máquina. Haveria, ao mesmo tempo, um entusiasmo febril, mas
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também doloroso. Na nossa opinião, a sua ode ao “novo” é carregada de
consciência das vantagens e dos problemas que as conseqüências vindas à reboque
da modernidade podem significar para as pessoas.
A sociedade moderna industrializou-se, percorrendo um século, em tempo
recorde. Foi o suficiente para que a máquina quase ganhasse vida e o homem
quase virasse máquina. O trabalho tornou-se mecanizado e automatizado. As
mudanças incessantes e velozes aconteciam mais rapidamente do que antes.
É Charles Baudelaire quem toma para si a tarefa de dar forma à
modernidade. Ao falar sobre o trabalho do desenhista, aquarelista e gravador
Constantin Guys, o poeta teoriza sobre a oposição entre clássico e moderno,
delineando, então, o traçado da arte que é representação do presente, ou seja, a
arte moderna, conforme podemos observar nas suas próprias palavras: “o prazer
que obtemos com a representação do presente deve-se não apenas à beleza de que
ele pode estar revestido, mas também à sua qualidade essencial de presente”
(BAUDELAIRE, 1996, p.8).
A modernidade baudelairiana assenta sobre a questão do artista que
representa a sua época e os assuntos pertinentes a esta. Contudo, a modernidade
calcada no presente, no agora, traz uma dupla inscrição: transitoriedade e
eternidade. Segundo ele, apesar de representar o presente ao pintar a moda da sua
época, Guys busca um objetivo diverso do prazer efêmero da circunstância. “Ele
busca esse algo, ao qual se permitirá chamar de Modernidade [...]. Trata-se, para
ele, de tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico, de extrair o
eterno do transitório” (BAUDELAIRE, 1996, p. 24). E, a seguir, Baudelaire
(1996, p. 25) define o que entende por Modernidade: “o transitório, o efêmero, o
contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável.”
Segundo Nicolau Sevcenko (1992, p. 227-232), no início do século XX, o
adjetivo moderno era uma palavra-fetiche, todos os produtos associados a ele
eram facilmente vendidos porque traduziam o espírito da época: profundas e
rápidas mudanças, inovações que influenciavam diretamente a vida das pessoas e
o seu cotidiano. Antoine Compagnon (2003, p. 17) nos informa que esta palavra
vem do latim vulgar modernus, que no fim do século V designava não o que é
novo, mas o que é presente, atual, contemporâneo daquele que fala. No seu longo
percurso até o século XXI, vários sentidos lhe foram agregados, mas permaneceu
a idéia de “presentificação” do presente.
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Segundo Baudelaire, Constantin Guys era um artista em estado de
convalescença e, por isso, um artista-criança, porque convalescer é como voltar à
infância. O convalescente, como a criança, interessa-se intensamente pelas coisas,
mesmo as aparentemente mais triviais, vendo tudo como novidade. “É à
curiosidade profunda e alegre que se deve atribuir o olhar fixo e animalmente
estático das crianças diante do novo, seja o que for, rosto ou paisagem, luz,
brilhos, cores, tecidos cintilantes, fascínio da beleza realçada pelo traje.”
(BAUDELAIRE, 1996, p. 18-19). Assim também é o poeta que, com os olhos de
criança, se encanta curiosamente com tudo como se fosse uma novidade.
O poeta, assim como o pintor, também busca no cotidiano as imagens para a
sua poesia. Contudo, é importante entender que na modernidade “a poesia não
quer mais ser medida em base ao que comumente se chama realidade, mesmo se –
como ponto de partida para a sua liberdade – absorveu-a com alguns resíduos”
(FRIEDRICH, 1978, p. 16). Ela, enquanto visão de sua contemporaneidade,
constrói uma imagem do aqui e agora, focalizando o seu presente a partir de
circunstâncias imediatas. Sendo assim, Álvaro de Campos poderia ser considerado
metaforicamente um “pintor da vida moderna” porque pinta as suas palavras na
folha em branco, assim como o pintor escreve seus traços na tela. Como afirmou
Horácio, ut pictura poesis erit, a poesia se compõe como a pintura. Na sua poesia
cria-se a imagem de uma modernidade industrial e urbana ainda embrionária no
Portugal, essencialmente rural, do início do século. Sendo assim, é possível falar
na sua poesia como fundadora de um agora, de uma modernidade no campo da
arte e da cultura em Portugal, o que não quer dizer uma absorção do real, mas a
sua transformação. Hugo Friedrich (1978, p. 17) afirma que das três maneiras
possíveis de comportamento da composição lírica – sentir, observar e transformar
– é este último o que domina na poesia moderna.
O projeto da geração de Orpheu, da qual Álvaro de Campos fazia parte, ia
além de uma “reformulação dos estereótipos líricos e épicos. Intentou uma
reforma que implicava toda a cultura portuguesa, no sentido de que procurou
redimensionar uma mentalidade, ou um estilo de pensamento”,
como afirma
Massaud Moisés (1985, p. 101). O que quer Orpheu, no entender de Pessoa, é
“criar uma arte cosmopolita no tempo e no espaço(PESSOA, 1994, p. 407).
No poema “Ode Triunfal, observamos uma sucessão de flashes, como no
jogo de espelhos do caleidoscópio que produz um número infinito de
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combinações de imagens de cores variegadas, além de uma sucessão rápida e
cambiante de impressões e sensações.
A explosividade do poema é conseguida através da utilização de imagens
que, alinhavadas da maneira como se encontram neste poema, desembocam numa
teia de excessos, o que poderia ser creditado na conta do futurismo, que tem como
uma de suas marcas, justamente, o excesso. Contudo, é preciso lembrar que não
há cópia “exemplar” das vanguardas, ou seja, não se seguem “exatamente” os
princípios divulgados por Marinetti, porque o objetivo era criar um modernismo
português.
Como bem lembra Nelly Novaes Coelho (2000, p. 66),
Mais do que a euforia futurista de Marinetti (a primeira a tentar encontrar o
ritmo e a atmosfera próprios à civilização da máquina); mais do que a adesão à
“vitalidade transbordante, ao “belo feroz” ou à “força sensual” do universo
poético de Walt Whitman, os poemas sensacionistas de Álvaro de Campos
expressam um mundo que ultrapassou sua capacidade normal de apreensão, um
mundo “totalmente desconhecido dos antigos, mas resultante irredutível destes
últimos.
O engenheiro e poeta sensasionista escreveu ao Diretor do Diário de
Notícias em 4 de junho de 1915 e declarou que a sua ode é a única manifestação
do primeiro número de Orpheu que se aproxima do futurismo. “Mas aproxima-se
pelo assunto que [a] inspirou, não pela realização – e em arte a forma de realizar é
que caracteriza e distingue as correntes e escolas” (PESSOA, 2004, p. 154).
Alguns traços desse “excesso futurista” podem ser lidos, por exemplo, na
simbiose homem-máquina que enxerga “os motores como a uma Natureza
tropical” que são “grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força” (PAC, p. 19,
v. 16). As árvores enormes e de diversos matizes exuberantes da natureza tropical
servem de imagem para o exagero das fábricas, “desta floresta estupenda, negra,
artificial e insaciável(PAC, p.20, v. 32). E, ainda, “frutos de ferro e útil da
árvore-fábrica cosmopolita!” (PAC, p.26, v. 226), chegando a confundirem-se o
natural e o artificial: “Um orçamento é tão natural como uma árvore / E um
parlamento tão belo como uma borboleta(PAC, p.23, v.124-125). O belo na
modernidade é totalmente diferente daquele perseguido nos clássicos, como
teorizou nos “Apontamentos para uma estética não aristotélica” e poetizou nos
versos seguintes: “O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo. / O
que há é pouca gente para dar por isso” (PAC, p. 250).
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Em “Apontamentos para uma estética não aristotélica, texto publicado em
1924, na revista Athena, Álvaro de Campos afirma que as suas “Ode Triunfal” e
“Ode Marítima, bem como os “assombrosos poemas” de Walt Whitman e de
Alberto Caeiro são as três únicas verdadeiras manifestações de arte não
aristotélica. Segundo ele, a estética aristotélica é aquela para a qual o fim da arte é
a beleza, ou seja, “a produção nos outros da mesma impressão que a que nasce da
contemplação ou sensação das coisas belas” (PESSOA, 2004, p. 240). A sua
teoria estética, em vez disso, é baseada na força, “tomando é claro, a palavra força
no seu sentido abstrato e científico” (PESSOA, 2004, p. 240), ou seja,
entendendo-a como dispositivo da sensibilidade. O que se deve entender é que não
há a negação da beleza, mas uma mudança na maneira de compreender e sentir.
“Quando a ‘idéia’ da beleza, seja uma ‘idéia’ da sensibilidade, uma emoção e não
uma idéia, uma disposição sensível do temperamento, essa ‘idéia’ de beleza é uma
força. Só quando é uma simples idéia intelectual de beleza é que não é uma força”
(PESSOA, 2004, p. 245).
Sendo assim, apenas os poemas apontados seriam verdadeiras manifestações
desta nova estética, porque há neles força. Na “Ode Triunfal, como já dissemos,
a beleza está nas máquinas, que funcionam como uma alegoria dos chaplinianos
tempos modernos e industrializados. Não é mais possível desvincular-se do
movimento executado nas linhas de produção de uma fábrica até mesmo quando
se está fora dela. Os caixeiros viajantes, por exemplo, são os “cavaleiros-andantes
da Indústria / Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios”
(PAC, p. 22, v. 95-96).
A ligação com a máquina é intensamente explorada no poema, encenando
uma relação “carnal” entre humano e tecnológico, conformando um novo ser:
humano demasiadamente máquina. O poeta escreve estando em febre,
aproximando-se do estado de máquina, que esquenta quando está ligada. Estão os
lábios secos e a cabeça arde de querer cantar o excesso contemporâneo das
máquinas. Deseja penetrar-se fisicamente disto tudo, abrir-se completamente, ser
parte-agente “Do giro lúbrico e lento dos guindastes, / Do tumulto disciplinado
das fábricas(PAC, p. 20, v. 38-39). Sadismo e masoquismo misturam-no a
maquinismos “com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída”
(PAC, p. 23, v. 135). A vida de seres tão diferentes torna-se tão comum que o
poeta afirma: “Eia! sou o calor mecânico e a eletricidade!” (PAC, p. 27, v. 233).
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O espaço no qual se dá o êxtase que mencionamos é a cidade. Com suas
múltipla faces, a cidade hipnotiza o poeta: “Nos Longchamps e nos Derbies e nos
Ascots, / E Piccadillies e Avenues de l’Opéra que entram / Pela minh’alma
dentro!” (PAC, p. 21, v. 56).
As ruas, praças, vitrines, cafés por onde passam comerciantes, vadios,
escrocs, cocotes, burguesinhas são saudadas pelo poeta ao grito Hé-la. E ele
desejaria ser o souteneur de tudo isso. O seu amor carnívoro estende-se aos
manequins, últimos figurinos, artigos inúteis, grandes armazéns, anúncios
elétricos. A Civilização cotidiana excita todos os sentidos, levando-o ao cio.
O poeta possui os símbolos da modernidade como a uma “mulher bela que
não se ama, que se encontra casualmente e se acha interessantíssima” (PAC, p.
23, v. 118). A casualidade se dá no meio da multidão, la foule, “rio multicolor”
(PAC, p. 24, v. 155) onde se pode ser anônimo e banhar-se como quiser. Cada um
pode ser o que bem entender e já não se consegue conhecer e nem saber o que há
por dentro das pessoas “nas ruas cheias de encontrões. (PAC, p. 24, v. 165)
O passeio pela cidade continua, as cocotes e burguesinhas “dividem” a
multidão com a “gente suja e ordinária, que parece sempre a mesma” e que é
“maravilhosa gente humana que vive como os cães.” Nota-se, a todo momento,
uma modernidade que traz a percepção extremamente crítica da realidade,
carregada de consciência histórica.
Há interesse extremo pelo cotidiano como matéria poética:
Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
Até à noite ponte misteriosa entre os astros
E o mar antigo e solene, lavando as costas
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Platão era realmente Platão
Na sua presença real e sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele. (PAC, p. 23, v. 127-
133)
No canto do poeta há a certeza de um outrora que está presente no agora,
sendo parte integrante deste. Cada momento possui a sua estética, a sua “beleza”,
o poeta canta aquela que é sua contemporânea, escreve “rangendo os dentes, fera
para a beleza disto, / Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.”
(PAC, p. 19, v. 3-4) Mas, o próprio poeta não desconsidera os antigos, porque
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[...] há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços de Alexandre Magno do século talvez cinqüenta,
Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes
[volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma. (PAC, p.19-
20, v.19-25)
O poeta canta o presente, mas também o passado e o futuro, “porque o
presente é todo o passado todo o futuro.” (PAC, p. 19, v. 18) E louva: “Eia todo
o passado dentro do presente! / Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!” (PAC, p.
26, v. 223-224) O agora e o outrora confundem-se num tempo contínuo. Os
clássicos estão dentro do que há de mais moderno, as máquinas e as luzes
elétricas. O próprio título do poema, como lembra Rosalba Lopes Gama (2004, p.
39), “se mostra como um dispositivo que resgata uma forma poética característica
da antigüidade, sinalizando uma disposição acolhedora em relação ao passado”.
Depois do êxtase orgástico, o poema entra num tom menor com uma
cantiga de ninar “melancólica”, trazendo a lembrança da infância e, em
contrapartida, a consciência da morte. A modernidade não é só estardalhaço.
(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda,
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo.
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje...) (PAC, p.25, v.182-190)
A memória da infância invade a profusão de imagens que haviam de
caracterizar a “fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!” (PAC, p. 25, v. 181).
O que se é agora, diferente daquilo que se era outrora. Este processo de irrupção
da memória ocorrerá ainda em outros poemas de Campos, por exemplo, na “Ode
Marítima”.
A “raiva mecânica constante” (PAC, p. 25, v. 191) retorna, mas já o poema
está levemente contaminado pelas sombras. As notícias trazidas pelo telégrafo,
desastres, desabamentos, naufrágios, revoluções, guerras, tratados, invasões,
injustiças, violências, “a grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa. / E
outro sol no novo Horizonte.” (PAC, p. 16, v. 205-206), já não importam diante
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do “ruído cruel e delicioso da civilização de hoje. (PAC, p. 26, v. 209) É o
Momento (PAC, p. 26, v. 210-214) que importa e isso é esplêndidamente cantado
por Álvaro de Campos: as “horas européias” de afazeres úteis, as “cidades paradas
nos cafés”, as “rodas dentadas, tudo representa os “Novos entusiasmos de
estatura do Momento!” (PAC, p. 20-21, v. 41-49).
A modernidade, tal qual Oroborus, enrosca-se engolindo o próprio rabo,
substituindo um novo por outro novo. Porque “a renovação incessante implica a
obsolência súbita. A passagem do novo para o velho é, a partir daí, instantânea”
(COMPAGNON, 2003, p. 28). Na “Ode Triunfal” a modernidade é o agora
presentificado, eternizado como uma fotografia do momento, mas o novo é um
dado do presente, que é todo o passado e todo o futuro. Voltando a rastrear o
pensamento de Baudelaire (1996, p. 13), podemos afirmar que o poeta é “pintor
do circunstancial e de tudo o que este sugere de eterno”.
O poema encerra-se com um suspiro lamentoso do poeta que deseja ser
TUDO: “Ah não ser eu toda a gente e toda a parte” (PAC, p. 27, v. 240). A
modernidade com seus maquinismos e multidões cosmopolitas desemboca no eu.
A subjetividade não desaparece no canto à modernidade, ao contrário,
retorna continuamente ao palco deste drama encenado pela poesia. É o que o
distingue do futurismo, cuja “atitude principal [...] é a Objetividade Absoluta, a
eliminação, da arte, de tudo quanto é alma, quanto é sentimento, emoção, lirismo,
subjetividade em suma.” (PESSOA, 2004, p. 153).
Seja na primeira ou na segunda fase, a poesia de Álvaro de Campos
apresenta como marca a tensão entre o outrora e o agora, entre os sonhos da
infância e a vida útil e prática. É importante ficar claro que a tensão entre outrora
e agora não significa a existência de dimensões distintas, pois mesmo quando
entre ambos é aberta uma fenda, mantém-se unidos por uma origem comum: o eu.
O tempo assume, portanto, um caráter subjetivo na poesia de Álvaro de Campos.
Assim, cabe-nos, daqui em diante, investigar este eu que se constrói nos
poemas do engenheiro. Um eu forjado pela modernidade e cujo preceito deve ser
“sê plural como o universo!, mas que encontrará pelo caminho a angústia, o
tédio, a abulia, o cansaço, a melancolia e a saudade daquilo que poderia ter sido e
não foi.
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3
A imagem que surge de uma velha caixa de brinquedos
Quando a flauta soou
um tempo se desdobrou
do tempo, como uma caixa
de dentro de outra caixa.
“Fábula de Anfion”. João Cabral de Melo Neto
(MELO NETO, 1979, p. 325)
3.1
A concepção infantil do mundo e a escrita da poesia
A criança é inocência, esquecimento, novo começar, jogo, roda que gira sobre si
mesma, movimento que começa, um sagrado 'Sim'. Para a brincadeira que é a
criação, meus irmãos, é necessário um 'Sim' sagrado: o espírito agora quer sua
própria vontade, e aquele que foi perdido para o mundo conquista agora o seu
próprio mundo.
Friedrich Nietzsche
(NIETZSCHE, 1994)
Um poeta contemporâneo disse que para cada homem existe uma imagem que faz
o mundo inteiro desaparecer; para quantas pessoas essa imagem não surge de uma
velha caixa de brinquedos?
Walter Benjamin
(BENJAMIN, 1985, p. 253)
O movimento do mar, o passeio pela cidade revisitada, o chá na casa das tias
velhas sacodem os sentidos e despertam no leitor da poesia de Álvaro de Campos
a capacidade de perceber tanto os contornos do objeto real quanto os da
imaginação. As palavras vão construindo uma nova moldura para o quadro que se
apresenta.
Neste sentido, compreender a configuração do outrora e do agora é
fundamental para o conhecimento das formas dessa moldura e de novas maneiras
do ver, do enxergar, do observar, do perceber esse quadro que está sendo pintado,
pois acreditamos que é o eu instaurado pela poesia quem decreta as mudanças nos
vários relógios, ampulhetas, clepsidras que medem os tempos, adiantando-os,
atrasando-os, talvez, até mesmo, barrando-os. Aquele que está parado no cais,
observando a entrada do paquete, o que dirige um automóvel pela estrada de
Sintra ou o que observa o homem da tabacaria são o mesmo e outro, são, enfim, o
poeta que deseja “sentir tudo de todas as maneiras”.
Se Anfíon, ao tocar sua flauta, faz o tempo desdobrar-se do tempo como
uma caixa de dentro de outra caixa, o poeta, ao colorir o papel com seus versos,
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faz o eu desdobrar-se em vários. Os versos escritos vão deixando entrever esse eu
desdobrado pela passagem do tempo, mas que só existe porque outro eu o
precedeu, como múltiplas caixas que se abrem pouco a pouco, isto é, uma só passa
a existir no momento exato em que a outra é aberta.
Na poesia do engenheiro, de dentro da caixa do agora, diversas vezes,
vimos desdobrar-se a caixa do outrora representado pela infância. Diante de
tantas possibilidades interpretativas que se nos apresentam nos estudos críticos e
teóricos da obra pessoana, enxergamos dois vieses para o entendimento do
outrora da infância na poesia de Campos: no primeiro a infância pode ser vista
como metáfora da criação poética; no segundo, como momento no qual o sonho
ainda é permitido.
Neste sentido, podemos dizer que são já a palavra e a imaginação, ou seja, a
capacidade transformadora, a matéria da poesia moderna. A poesia de Campos
não tem um caráter simplesmente imitativo e confessional, apesar do seu
subjetivismo latente. No artigo “O ensino da literatura portuguesa na Universidade
brasileira, Cleonice Berardinelli defende que as linhas mestras da literatura
portuguesa seriam o subjetivismo, o nacionalismo – tanto o laudatório quanto o
crítico –, o messianismo e o saudosismo. O subjetivismo funcionaria como núcleo
do qual decorrem as outras linhas mestras, pois “seria o próprio cerne da
mentalidade portuguesa, sempre presente na sua literatura – mais ou menos
presente conforme a época ou o gênero literário, mas com intensidade e
freqüência notáveis.” (BERARDINELLI, 1975, p. 61). Nosso pensamento vai ao
encontro do de Luísa Trias Folch que diz o seguinte:
O fim do Romantismo centra-se justamente em que a morada da poesia já
não é o poeta, mas sim o reino das palavras e aí terá o poeta de criar, de construir,
sabendo que o seu poema é uma criação, um acto intencional, e não uma confissão.
A distância que separa os sentimentos experimentados e os autênticos elementos
poemáticos, constitui o “fingimento poético, que não se identifica com a mentira
ou falsificação, pois representa um carácter fundamental da literatura: ser criação
imaginativa. (1985, p. 161)
Por isso, ouvimos Pessoa responder à crítica de João Gaspar Simões, em
1931: “nunca senti saudades da infância, em verdade, nunca senti saudades de
nada.” (PESSOA, 2004, p.65). Porque a infância tão proclamada na sua poesia
não foi a que ele viveu ou experimentou, mas aquela que permitiu o fingir, sem
que a poesia se tornasse falsa ou artificial.
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A infância como metáfora da criação poética põe em suspenso o real,
colocando em confronto a validade da experiência realmente vivida e a da fingida,
já que à criança não é estranho o fato de fingir ser qualquer coisa. O estatuto do
fingir libera a criança de ser ela mesma, dando-lhe a possibilidade de ser pessoa
ou coisa diferente do que realmente é. O poeta mergulha no outrora da infância
em busca desta reconfiguração da palavra poética, aspirando à total liberdade na
sua seleção e combinação. Sendo assim, o poeta, como a criança, pode tornar-se
mais tarde ou mais cedo, aquilo com que simpatiza: uma pedra, uma ânsia, uma
flor, uma idéia abstrata, uma multidão ou um modo de compreender Deus (Cf.
PAC, p. 92, v. 6-13)
Pessoa, comentador prodigioso não só da sua obra como da literatura em
geral, escreve uma carta, provavelmente em 1914, a Luís de Montalvor -
pseudônimo de Luís Felipe de Saldanha da Gama da Silva Ramos, tecendo uma
apreciação crítica sobre um livro de poemas deste. Segundo Pessoa (2004, p. 271),
o livro era um dos mais belos que tinha lido recentemente, todavia existiam
imperfeições e inacabamentos nos versos, pois ainda dava para ver as pegadas do
poeta entre as flores, os ramos quebrados e os caules partidos, ou seja, para ele o
poeta deveria passar pela sua própria poesia sem ser percebido.
O que mais nos interessa nesta epístola, entretanto, não são os seus
conselhos ao poeta, mas as suas considerações acerca da realidade e da
imaginação na poesia. Partindo da representação de um encontro, no qual se
recordavam dos brinquedos que lhes haviam sido tirados, Pessoa coloca essa
questão em termos de um pensamento da criança, ou seja, é como se houvesse um
pensamento e uma lógica infantis dos quais a poesia se pudesse apropriar.
Como é um texto não tão conhecido e para que fique claro o que foi dito
aqui, faz-se mister a longa citação a seguir:
A sua sensibilidade dói-me. Por certo que outrora nos encontramos e entre
sombras de alamedas dissemos um ao outro em segredo o nosso comum horror à
Realidade. Lembra-se? Tinham-nos tirado os brinquedos, porque nós teimávamos
que os soldados de chumbo e os barcos de latão tinham uma realidade mais
preciosa e esplêndida que os soldados-gente e os barcos reais. Nós andamos longas
horas pela quinta. Como nos tinham tirado as cousas onde púnhamos os nossos
sonhos, pusemo-nos a falar delas para as ficarmos tendo outra vez. E assim
tornaram a nós, em sua plena e esplêndida realidade – que paga de seda para os
nossos sacrifícios! – os soldados de chumbo e os barcos de latão; e através das
nossas almas continuaram sendo, para que nós brincássemos com eles. A hora (não
se recorda?) essa era demasiado certa e humana. As flores tinham a sua cor e o seu
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perfume de soslaio para a nossa atenção. O espaço todo estava levemente
inclinado, como se Deus, por uma astúcia de brincadeira, o tivesse levantado do
lado das almas; e nós sofríamos a instabilidade do jogo divino como crianças que
apreciam as partidas que lhes fazem, porque são mostras de afeição. Foram belas
essas horas que vivemos juntos. Nunca tornaremos a ter essas horas, nem esse
jardim, nem os nossos soldados e os nossos barcos. Ficou tudo embrulhado no
papel de seda da nossa recordação de tudo aquilo. Os soldados, pobres deles, furam
quase o papel com as espingardas eternamente ao ombro. As proas dos barcos estão
sempre para romper o invólucro. E sem dúvida que todo o sentido do nosso exílio é
este – o terem embrulhado os brinquedos de antes da Vida, terem-nos posto na
prateleira que está exatamente fora do nosso gesto e do nosso jeito. Haverá uma
justiça para as crianças que nós somos? Ser-nos-ão restituídos por mãos que
cheguem aonde não chegamos os nossos companheiros de sonho, os soldados e os
barcos? Sim, e mesmo nós próprios porque nós não éramos isto que somos...
Éramos duma artificialidade divina...
Escrevo e divago, e tudo isto parece-me que foi uma realidade. Tenho a
sensibilidade tão à flor da imaginação que quase choro com isto, e sou outra vez a
criança feliz que nunca fui, e as alamedas e os brinquedos, e apenas, no fim de
tudo, a supérflua realidade da Vida...
Perdoe-me que lhe escreva assim... A Vida, afinal, vale a pena que se lhe
diga isto. Deus escuta-me talvez, mas de si ouve, como todos que escutam. A
tragédia foi esta, mas não houve dramaturgo que a escrevesse... (PESSOA, 2004, p.
272)
Estas palavras nos confirmam aquilo que vínhamos dizendo, não
exatamente por serem de Fernando Pessoa, mas porque são as de crítico e também
de poeta.
Pessoa e Montalvor têm um “comum horror à Realidade” e, contrapondo-se
a ela, acreditavam, como crianças, que “os soldados de chumbo e os barcos de
latão tinham uma realidade mais preciosa e esplêndida que os soldados-gente e os
barcos reais.” Entretanto, os brinquedos, coisas nas quais eles punham os seus
sonhos, lhes foram retirados e só restou falar sobre eles para que ficassem sendo
seus novamente. A sua poesia, portanto, combate “os soldados-gente e os barcos
reais” em favor dos “soldados de chumbo e [d]os barcos de latão” para que de
tudo não se fique a dizer apenas a “supérflua realidade.”
O que vimos tentando dizer até agora é que na poesia moderna não há uma
negação da realidade, mas uma outra apropriação desta. A referencialidade existe,
mas é como se o poeta saltasse da plataforma do real e se jogasse com as asas
abertas para a imaginação, sem contudo perder de vista o ponto de retorno.
1
1
Diante disso, não pudemos deixar de especular, a partir da data possível do manuscrito, 1914,
que os soldadinhos e os barcos poderiam vir a ser também uma referência à Primeira Guerra
Mundial. Em carta escrita a Cortes Rodrigues, em 2 de setembro de 1914, Fernando Pessoa
demonstra a influência da guerra no seu pensamento e no seu espírito. O poeta escreve o seguinte:
“Mau grado a alguma depressão constante desde que lá fora é guerra, tenho passado com razoável
calma pela ilusão sucessiva dos dias.” (PESSOA, 2004, p. 45) Podemos citar, ainda, um poema
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Para que à imaginação seja garantido o seu espaço, nada melhor do que a
representação da infância, momento em que para o eu criança é possível brincar,
jogar e fingir sem maiores conflitos, situando-se, portanto, na fronteira do sonho e
do devaneio. O teórico alemão Walter Benjamin (1985, p. 235-253) resenhou dois
importantes livros que tratam da infância tendo em vista a perspectiva dos livros e
dos brinquedos, o primeiro do escritor Karl Hobrecker, Livros infantis antigos e
esquecidos (Alte Vergessene Kinderbücher. Berlim: Mauritius Verlag, 1924), e
o segundo de Karl Gröber, Brinquedos infantis dos velhos tempos. Uma
história do brinquedo (Kinderspielzeug aus alter Zeit. Eine Geshichte des
Spielzeugs. Berlim: Deutscher Kunstverlag, 1928), publicados em 1924 e 1928,
respectivamente.
Karl Hobrecker, que mantinha uma grande coleção de livros infantis
alemães, resolveu contar a história desses mesmos livros. História que, segundo o
escritor e colecionador, se inicia com o Iluminismo e “em suas primeiras décadas
é edificante e moralista, e constitui uma simples variante deísta do catecismo e da
exegese.” (BENJAMIN, 1985, p. 236), o que ele critica severamente. Na origem
do livro infantil estão presentes também a enciclopédia e o dicionário ilustrados.
A narrativa dos contos de fada, as fábulas, as canções e os livros populares
constituíam fonte para os textos dos livros infantis. Merece destaque nesta
literatura a ilustração, que muitas vezes escapou do tendenciosismo de algumas
destas obras.
Sobre o livro de Karl Gröeber, Walter Benjamin escreve duas resenhas
“História cultural do brinquedo” e “Brinquedo e brincadeira: observações sobre
uma obra monumental. No seu livro, Karl Gröeber deixa de lado as
considerações sobre a brincadeira infantil para dedicar-se inteiramente à história
do brinquedo, concentrando-se no espaço cultural europeu, cujo centro geográfico
e espiritual seria a Alemanha. É uma obra que desenha “a árvore genealógica dos
cavalinhos de balanço e dos soldados de chumbo” e escreve “a arqueologia das
lojas de brinquedos e dos quartos de bonecas.” (BENJAMIN, 1985, p. 249).
atribuído a Campos e datado de 2-8-1914, cujo título é composto por sinais astrológicos que
indicam a quadratura de Marte com Saturno, numa combinação planetária mais desfavorável do
ponto de vista da astrologia (Cf. PAC, p. 259). Seria leviano se omitíssemos esta possibilidade
interpretativa sugerida pelo momento em que foi escrito o texto. Nós, porém, o privilegiaremos
como exemplo de metáfora da criação poética.
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A produção de brinquedos apenas será objeto de uma indústria específica a
partir do século XIX. Antes, os brinquedos eram subprodutos de outras atividades
produtivas: oficinas de entalhadores de madeira, de fundições de estanho, entre
outras. A partir da segunda metade do século XIX, revela-se uma mudança na
forma dos brinquedos que deixam de ser miniaturas.
Muito mais do que resenhar estes livros, Walter Benjamin escreveu sobre a
maneira como as crianças olham o mundo e lidam com os objetos que lhes são
destinados. É claro que à sua escrita vem sempre agregada uma visão social e
coletiva, assim não poderia deixar de ser também em relação à experiência da
infância. Para ele, a criança não constitui um ser isolado numa ilha, mas faz parte
do povo e da classe a que pertence, sendo o brinquedo um diálogo mudo, baseado
em signos, entre a criança e o povo. O que pretendemos não é tanto firmar este
caráter relacional entre a história do livro infantil e do brinquedo e a vida social,
mas nos apoiarmos na sua reflexão para confrontarmos a concepção de mundo
infantil com a escrita da poesia.
Segundo Walter Benjamin, para a criança não é necessário que se produzam
objetos supostamente apropriados a elas se quisermos distraí-las, pois o seu prazer
maior é lidar com coisas comuns. À criança nada é mais comum do que combinar
as substâncias mais heterogêneas para criar suas fantasias e brincadeiras.
Elas se sentem atraídas irresistivelmente pelos detritos. Nesses detritos, elas
reconhecem o rosto que o mundo das coisas assume para elas, e só para elas. Com
tais detritos, não imitam o mundo dos adultos, mas colocam os restos e resíduos em
uma relação nova e original. Assim, as próprias crianças constroem seu mundo de
coisas, um microcosmo no macrocosmos. (BENJAMIN, 1985, 237-8)
Walter Benjamin chama atenção também para o duplo sentido, em língua
alemã, da palavra spielen, que significa brincar e representar, o mesmo ocorre no
inglês e francês. “A criança quer puxar alguma coisa e se transforma em cavalo,
quer brincar com areia e se transforma em pedreiro, quer se esconder e se
transforma em bandido ou policial.” (BENJAMIN, 1985, p. 247). Não é o
brinquedo quem determina a brincadeira, mas sim o contrário. Até mesmo aquilo
que antes fora imposto à criança como objeto de culto – bolas, arcos, rodas de
penas, papagaios – transformou-se através da sua imaginação em brinquedo. Para
a criança, “um simples fragmento de madeira, uma pinha ou uma pedra reúnem na
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solidez e na simplicidade de sua matéria toda uma plenitude das figuras mais
diversas.” (BENJAMIN, 1985, p. 236)
Da mesma maneira, a criança, ao observar no livro infantil uma imagem,
que a princípio exigiria dela meramente uma descrição, não se contenta e vai mais
além, escrevendo nela. “A criança redige dentro da imagem. Por isso, ela não se
limita a descrever as imagens: ela as escreve, no sentido mais literal. Ela as
rabisca.” (BENJAMIN, 1985, p. 242)
Podemos dizer, portanto, que a infância, neste sentido, faz par com a criação
poética moderna. O poeta recolhe aquilo que lhe interessa e, a partir de então,
constrói o seu mundo de palavras, buscando estabelecer relações novas e
originais. Logo, a poesia assumirá um rosto particularmente seu e que não
necessariamente será imitação. O poeta é aquele que vai escrever a realidade,
rabiscá-la, redigir dentro dela e não apenas descrevê-la.
O pensador francês Georges Bataille, ao escrever um instigante trabalho
sobre o livro Wuthering Heights (O morro dos ventos uivantes), de Emily
Brontë, “põe acerca da paixão a questão do Mal” (1989, p. 14), recorrendo à
infância, tempo de amor entre os personagens Catherine e Heathcliff, para
representar o quadro do Bem e do Mal.
O sentimento de Catherine Earnshaw e Heathcliff, órfão trazido para casa
pelo pai dela depois de uma viagem, surge na infância. As crianças passam o
tempo no abandono de uma vida quase selvagem, correndo pela charneca, sem
sofrer qualquer coerção, sem se limitar a nenhuma convenção. A liberdade da
infância é posta em confronto com as leis da sociabilidade e da polidez
convencional.
O que a sociedade opõe ao livre jogo da ingenuidade é a razão fundada no cálculo
do interesse. A sociedade se organiza de maneira a tornar possível a sua duração. A
sociedade não poderia viver se se impusesse a soberania desses movimentos
impulsivos da infância, que uniram as crianças num sentimento de cumplicidade. A
coerção social teria exigido que os jovens selvagens abandonassem sua soberania
ingênua, ela teria exigido que eles se submetessem às convenções racionais dos
adultos: racionais, calculadas de tal maneira que delas resultasse o proveito da
coletividade. (BATAILLE, 1989, p. 14-5)
Apesar de terem vivido plenamente este tempo da infância, é para o mundo
adulto que as crianças estão prometidas, um mundo de interesses e convenções
racionais que impede os movimentos impulsivos da infância e exige um abandono
da liberdade. Com o afastamento de Heathcliff, Catherine deixa-se seduzir por
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uma vida cômoda, casando-se com o jovem, rico e sensível Edgar Linton, o que
representa uma renúncia ao “reino absolutamente soberano da infância” em favor
do “mundo assentado da razão”.
Após o seu retorno como um homem rico para Wuthering Heights,
Heathcliff deseja vingar-se desta traição e impõe a Catherine um grande
sofrimento, pois ao perceber que a irmã de Edgar Linton está apaixonada por ele,
rapta-a e casa-se com ela para lhe infligir o maior mal possível, causando assim
desespero e dor a todos.
Segundo Georges Bataille (1989, p. 17), Heathcliff encarna “uma verdade
primeira, a da criança revoltada contra o mundo do Bem, contra o mundo dos
adultos, e, por sua revolta sem reservas, devotada ao partido do Mal.” Diante desta
revolta, o que lhe resta para que possa reencontrar o reino da infância onde o amor
era possível é a transgressão da lei estabelecida pelo mundo racional dos cálculos.
Sendo assim, é a lei da razão, representada pelo mundo adulto e harmonizada com
as convenções sociais, que é violada por Heathcliff e Catherine, que continua
amando-o mesmo contra a sua própria vontade. É apenas a morte que vai levá-la a
reencontrar a pureza do amor vivido na infância. “O caminho do reino da infância
– cujos movimentos procedem da ingenuidade e da inocência – é reencontrado
desta maneira, no horror da expiação.” (BATAILLE, 1989, p. 21)
É possível, então, aproximarmos de certa maneira o que foi dito sobre o
livro de Emily Brontë, de um embate, um confronto entre o reino da infância, a
vida “sonhada, e o mundo adulto, a vida “prática” e “útil”, “aquela em que
acabam por nos meter num caixão. (Cf. PAC, p. 199, v. 17-22). É lógico que na
narrativa existem outros desdobramentos dos quais não trataremos aqui, mas fica
principalmente a idéia de que para reencontrar os movimentos impulsivos da
infância é necessário transgredir as leis da razão.
No livro Diferença e negação na poesia de Fernando Pessoa, o filósofo
José Gil interrogou-se sobre a convergência de pensamento entre Gilles Deleuze e
Fernando Pessoa. Segundo José Gil (2000, p. 14), Deleuze, na filosofia, e Pessoa,
na literatura, levaram ao seu extremo limite o projeto da modernidade. Pessoa foi
um representante radical, sistemático e rigoroso do que o modernismo realizou em
arte e literatura, pois não apenas escreveu, mas teorizou constantemente a sua
experiência. Para ele, na poesia pessoana, “o movimento da escrita analisa-se ao
mesmo tempo em que se desenvolve” (GIL, 2000, p. 52).
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O que mais nos chamou a atenção neste estudo sério e profundo que coloca
a poesia em face da filosofia foi a sua tese de que a infância é determinante no
dispositivo da heteronímia literária. É Alberto Caeiro quem inaugura a linhagem
de poetas heterônimos, dele derivam os outros, pois existe uma relação íntima
entre este poeta e a infância. Na sua opinião, a passagem pela infância constitui
uma condição necessária ao “devir-outro, ou seja, à criação de um heterônimo.
Isto porque “o processo de outrar-se implica um arrancamento do tempo presente
atual” (GIL, 2000, p. 85).
A infância comparece como uma marca no tempo, mas também no espaço.
Ao falar sobre o Livro do Desassossego, José Gil (2000, p. 90) conclui que a
infância é um dispositivo de tranformação do tempo em espaço, ou seja, uma
maneira de espacializar o tempo. “A infância constitui um mapa onde coisas e
espaços se dispõem segundo uma topologia própria que permite sonhar.” (GIL,
2000, p. 92)
Acreditamos que esta reflexão é válida também para a poesia de Álvaro de
Campos, pois, como afirma o próprio Pessoa (2004, p. 85), “há notáveis
semelhanças [...] entre Bernardo Soares e Álvaro de Campos.”
No que diz respeito à condição da infância como fundamental no processo
de outrar-se, um dos exemplos decisivos citados por José Gil, ao lado de “Chuva
Oblíqua, é a “Ode Marítima. No início deste poema, constrói-se um plano de
coexistência de todas as sensações, um novo tempo do sentir, a partir da infância e
da memória, misturando-se o agora e o outrora da infância. Antes “do ‘delírio das
coisas marítimas’, os barcos são identificados com brinquedos da infância.” (GIL,
2000, p. 85) e mesmo as cenas de pirataria podem ser encaradas “como um longo
e complexo processo de devir-infância” (GIL, 2000, p. 86). É a escrita quem
determina este novo tempo do sentir, pois
a escrita não descreve ou designa ou mesmo exprime, o sentir, mas o seu
movimento é o movimento do sentir; as sensações não têm em si mesmas, outro
ritmo que o das palavras, e não dizem outro sentido que o do movimento da escrita
poética. (GIL, 2000, p. 131)
As vozes às quais recorremos para traçar um paralelo entre a concepção de
mundo infantil e a escrita da poesia permitem que realizemos um estudo da poesia
de Álvaro de Campos tendo como perspectiva a configuração de um outrora
privilegiado, a infância, que aponta na direção da construção de uma poesia que é
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41
fingimento mas não artificialidade ou falsidade e mais do que isso, na
reivindicação da invenção de um tempo no qual ao eu ainda é permitido sonhar.
Sendo assim, tomamos alguns poemas como fundamentais nesta análise e,
aproveitando o que nos legou José Gil, começamos com a “Ode Marítima.”
3.2
“Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta”
O mundo que há é esse que o poema faz existir ou inexistir. A impossível viagem
aos confins do nosso mar tenebroso e resplandescente é na “Ode Marítima” que a
navegamos.
Eduardo Lourenço
(LOURENÇO, 1974, p. 167)
O que é o desejo de fazer arte senão o ser adulto pra brinquedo?
Álvaro de Campos
(PAC, p. 83, v. 2)
Não é à toa que o mar e a viagem regem o poema do “poder sentir isto
doutra maneira(PAC, p. 36, v. 116). É a partir deles, temas recorrentes na
literatura portuguesa, que o poeta da “Ode Marítima” anuncia uma nova
sensibilidade e uma nova visão da realidade.
Não podemos deixar de lembrar que a “Ode Marítima” foi publicada no
segundo número de Orpheu, revista representante de um movimento que,
segundo Eduardo Lourenço (1974, p. 170), significa uma “revolução poética. O
poema aparece como “objecto-resumo de uma compreensão insólita do Espaço e
do Tempo cósmicos e humanos.” (LOURENÇO, 1974, p. 172)
No ensaio “‘Presença’ ou a contra-revolução no modernismo português?”,
Eduardo Lourenço (1974, p. 172) afirma que “Ode Marítima” é um “objecto
novo” mais pelo conteúdo do que pela forma e que
Neste poema passeamos do outro lado do espelho de Alice mas o grande prodígio é
o de nos sentirmos lá no nosso verdadeiro mundo e o de poder considerar o que
deixamos para cá do espelho como um falso e ininteressante mundo. Esta
dimensão não existia no mundo da poesia portuguesa. É um outro mundo o que o
poema desenha e não o mesmo mundo de sempre, tornado outro pela magia
tradicional do poetar ou por uma dialéctica do imaginário [...]. (LOURENÇO,
1974, p. 173)
O que diz Lourenço remete-nos aos clássicos da literatura escritos por Lewis
Carrol, Alice no país das maravilhas e Alice no espelho, nos quais a infância é
representada a partir da protagonista Alice não de maneira ingênua ou inocente,
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42
mas sim bastante especulativa. É nesta direção que podemos dizer que este poema
realiza a sua criação no sentido da concepção infantil do mundo, retomando e
reunindo coisas, resíduos, detritos para criar um outro mundo como se fosse o
verdadeiro.
O poema tem início no plano da realidade quando um eu sozinho, “numa
manhã de verão(PAC, p. 32, v. 1), observa do cais a entrada de um paquete.
Este paquete que se aproxima está “com a Distância, com a Manhã, / Com o
sentido marítimo desta Hora” (PAC, p. 33, v. 14-15), ou seja, ele traz o espaço e o
tempo de agora, mas nos paquetes que entram todas as manhãs na barra estão
representados todos que chegam e partem noutros cais e noutros momentos.
É do plano de observação exterior de realidade que o mesmo eu passará a
um plano interior de subjetividade, quando declara “Mas a minh’alma está com o
que vejo menos” (PAC, p. 33, v. 12). São estes movimentos de ir e vir, de partida
e chegada, de exterior e interior, de ausência e presença, de outrora e agora, que
ora se assemelham a marolas, ora a maremotos, determinantes do poema.
Será o giro do volante, que tem como uma de suas definições dicionarizadas
peça que regula o movimento de um maquinismo, quem comandará as mudanças
nesses movimentos do poema e também no movimento do sentir. O volante
começa a girar lentamente e vai acelerando-se pouco a pouco, até acentuar de tal
maneira a velocidade que, não suportando o ritmo alucinante, decresce, abranda e
pára.
Segundo Vilma Arêas (1985, p. 48), o poema traz um tema obsessivo na
poesia de Fernando Pessoa, “a relação duvidosa entre a linguagem e o real, uma
vez rompido o conceito de universo como um tecido de relações e equivalências.”
O real é colocado sob suspeita, pois no mundo exterior abre-se uma porta e
mesmo “sem que nada se altere, / Tudo se revela diverso.” (PAC, p. 34, v. 63-4).
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei por quê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
Ah, quem sabe, quem sabe,
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43
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?
Quem sabe se não deixei, antes de a hora
Do mundo exterior como eu o vejo
Raiar-se para mim,
Um grande cais cheio de pouca gente,
Duma grande cidade meio-desperta,
Duma enorme cidade comercial, crescida, apoplética,
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?
(PAC, p. 33-4, v.32-51, grifo nosso)
É quando “um volante começa a girar, lentamente” (PAC, p. 33, v. 19) que
as perturbações surgem, o espaço que se abre entre o cais e o navio que parte é
como o espaço do real que se abre para um eu angustiado e triste, confrontado
com a recordação daquilo que fora, possivelmente, outrora. As perguntas e
inquietações afloram: de que cais partira antes o eu individual transformado em
coletivo com seus “Navios-Nações” (PAC, p. 34, v. 65), que viagens fizera, quais
oceanos deseja apertar ao peito?
São as “cousas navais” que como “velhos brinquedos de sonho” compõem
de fora a vida interior. O brinquedo vai fazer o mundo inteiro desaparecer e gerar
um mundo inteiramente novo para a criança. Os brinquedos são o confronto do
mundo adulto com o da criança que dispõe da imaginação para transformar aquilo
que deseja, qualquer coisa, em objeto de brincadeira.
E vós, ó cousas navais, meus velhos brinquedos de sonho!
Componde fora de mim a minha vida interior!
Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens,
Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas,
Galdropes, escotilhas, caldeiras, colectores, válvulas,
Caí por mim dentro em montão, em monte,
Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão!
Sede vós o tesouro da minha avareza febril,
Sede vós os frutos da árvore da minha imaginação,
Tema de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência,
Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética,
Fornecei-me metáforas, imagens, literatura,
Porque em real verdade, a sério, literalmente,
Minhas sensações são um barco de quilha pro ar,
Minha imaginação uma âncora meio submersa,
Minha ânsia um remo partido,
E a tessitura dos meus nervos uma rede a secar na praia!
(PAC, p. 38, v. 165-181)
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44
Aquele que antes estava parado sozinho, no cais, observando o paquete é
agora a própria embarcação, porque se pode fingir ser aquilo que desejar, se se
seguir o movimento das sensações determinado pela escrita de si mesmo. O
volante acelera-se cada vez mais e esta aceleração sacode-o nitidamente ao ponto
de começarem “a pegar bem as correias-de-transmissão” (PAC, p. 39, v. 215) da
sua alma.
O chamamento das águas, dos mares, das épocas marítimas todas do
passado e o grito do marinheiro Jim Barns transportam-no para um mundo de
sonho, pouco a pouco, o “delírio das cousas marítimas” (PAC, p. 39, v. 211) toma
conta do eu poético. Os homens do mar, atual e passado, piratas do tempo de
Roma, navegadores da Grécia, fenícios, cartagineses, portugueses de Sagres que
se atiraram para a aventura do mar são saudados por tudo aquilo que viram,
viveram e sentiram. O desejo de partir com eles, “Ah, seja como for, seja para
onde for, partir!(PAC, p. 41, v. 256), revela o romper de um “cio sombrio e
sádico da estrídula vida marítima(PAC, p. 41, v. 274) proporcionado pela
aceleração mais intensa do volante.
Quero ir convosco, quero ir convosco,
Ao mesmo tempo com vós todos
Pra toda a parte pr'onde fostes!
Quero encontrar vossos perigos frente a frente,
Sentir na minha cara os ventos que engelharam as vossas,
Cuspir dos lábios o sal dos mares que beijaram os vossos,
Ter braços na vossa faina, partilhar das vossas tormentas,
Chegar como vós, enfim, a extraordinários portos!
Fugir convosco à civilização!
Perder convosco a noção da moral!
Sentir mudar-se no longe a minha humanidade!
Beber convosco em mares do sul
Novas selvagerias, novas balbúrdias da alma,
Novos fogos centrais no meu vulcânico espírito!
Ir convosco, despir de mim – ah! põe-te daqui pra fora! –
O meu traje de civilizado, a minha brandura de acções,
Meu medo inato das cadeias,
Minha pacífica vida,
A minha vida sentada, estática, regrada e revista!
(PAC, p. 43, v. 330-348)
A vontade de partir para um mundo longe da noção de moral, fugir à
civilização, perder o traje de civilizado, trocar a vida regrada e útil pela aventura é
revelada. É como a criança que recusa o “mundo assentado da razão” e precisa
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transgredir para conseguir vencer a “vida sentada, estática, regrada e revista!”,
reencontrando o reino dos impulsos da infância.
Logo, parte-se o mundo em vermelho, sangue, fogo; estoura a canção do
pirata: todos os crimes cometidos e os sofrimentos por ele impostos violam a
harmonia das convenções sociais, retornando ao grito primeiro do velho marujo:
Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó----yyyy...
Schooner ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó----yyyy...
(PAC, p. 47, v. 442-3)
A insatisfação com a vida que não é sonho, delírio, devaneio, sensação é
nitidamente representada pelo embate entre a selvageria e a civilização. Segundo
La Salette Loureiro,
a ‘civilização’, com a sua douceur des moeurs’, a sua moral, os seus deveres,
funciona como um grande entrave à realização dos desejos mais íntimos do poeta,
nem sempre condizentes com as normas consideradas corretas. Ela inibe qualquer
manifestação de violência ou crueldade, ou qualquer acto que atente contra a
moral. (LOUREIRO, 1996, p. 105)
Não há como comparar a vida do engenheiro civilizado com a do pirata que
saboreia as experiências novas e mais diversas em cada cais onde desembarca.
Ah! a selvageria desta selvageria! Merda
Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto!
Eu pr'àqui engenheiro, prático à força, sensível a tudo,
Pr'àqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando;
Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil;
Estático, quebrado, dissidente cobarde da vossa Glória,
Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta!
Arre! por não poder agir d'acordo com o meu delírio!
Arre! por andar sempre agarrado às saias da civilização!
Por andar com a douceur des moeurs às costas, como um fardo de rendas!
Moços de esquina – todos nós o somos – do humanitarismo moderno!
Estupores de tísicos, de neurasténicos, de linfáticos,
Sem coragem para ser gente com violência e audácia,
Com a alma como uma galinha presa por uma perna!
(PAC, p. 50-51, v. 542- 555)
A grande vida é a deles, piratas, a sua é uma vida estreita, “sem coragem
para ser gente com violência e audácia, por isso, não há motivo para ficar em
terra firme, mesmo a sensação de ser “arrastado à cauda de cavalos chicoteados
por vós [piratas]” (PAC, p. 52, v. 599) deve ser sentida no mar.
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Poderíamos dizer, sem dúvida, que no poema “Ode Marítima” se realiza de
maneira completa e extrema o que também se estabelece em “A passagem das
horas, instaurando, pois, uma nova ordem no discurso da poesia.
Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma cousa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.
(PAC, p. 92, v. 1-5)
Isto porque o eu que observa a embarcação do cais se transformará na
própria embarcação, no próprio cais, nos marinheiros que viajam nessas
embarcações e partem/chegam nesses cais, no pirata algoz e nas suas vítimas.
Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge,
E a vítima-síntese, mas de carne e osso, de todos os piratas do mundo!
Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas plos piratas!
Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles!
E sentir tudo isso – todas estas cousas duma só vez – pela espinha!
(PAC, p. 48, v. 481-486)
O movimento do sentir leva-o a perder-se de si mesmo e ser outro: “Perco-
me todo de mim, já não vos pertenço, sou vós,” (PAC, p. 49, v. 503). Contudo,
todo o jogo de sensações vivido nesta vida marítima esgota-se, chegando ao
extremo limite possível do suportar.
Parte-se em mim qualquer cousa. O vermelho anoiteceu.
Senti de mais para poder continuar a sentir.
Esgotou-se-me a alma, ficou só um eco dentro de mim.
(PAC, p. 53, v. 620-623)
A velocidade do volante decresce e já não é o sonho que domina as suas
sensações. No grito antiquíssimo, agora não mais barulho, mas ternura, a memória
da infância irrompe irreprimível no horizonte.
E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima, em mim.
O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo
Fosse um aroma, uma voz, o eco duma canção
Que fosse chamar ao meu passado
Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter.
Era na velha casa sossegada, ao pé do rio...
(As janelas do meu quarto, e as da casa de jantar também,
Davam, por sobre umas casas baixas, para o rio próximo,
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Para o Tejo, este mesmo Tejo, mas noutro ponto, mais abaixo...
Se eu agora chegasse às mesmas janelas não chegava às mesmas janelas.
Aquele tempo passou como o fumo dum vapor no mar alto...)
(PAC, p. 54, v. 642-652)
Segundo Ecléa Bosi, a etimologia do verbo lembrar-se, em francês (se
souvenir), significa um movimento de vir de baixo, deixando subir à tona o que
estava submerso.
Esse afloramento do passado combina-se com o processo corporal e presente da
percepção. [...] Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes,
misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, “desloca”
estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como
força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e
invasora. (BOSI, 2003, p.46-47)
Neste poema, assim como em outros que analisaremos mais adiante, o que
haveria é uma representação da memória da infância, mas que segue o processo
descrito por Ecléa Bosi na esteira do pensamento de Bergson. Essa memória
evocada pelo grito marítimo invadirá de tal maneira o eu que o delírio anterior
será arrancado, deixando a boiar os sonhos desfeitos. O afloramento deste passado
de ternura carrega em si a culpa já do adulto, relembrando os momentos de
selvageria permitidos pela infância. O que o domina é o sentimento de
Um remorso comovido e lacrimoso,
Por todas aquelas vítimas – principalmente as crianças –
Que sonhei fazendo ao sonhar-me pirata antigo,
Emoção comovida, porque elas foram minhas vítimas;
Terna e suave, porque não o foram realmente;
Uma ternura confusa, como um vidro embaciado, azulada,
Canta velhas canções na minha pobre alma dolorida.
Ah, como pude eu pensar, sonhar aquelas cousas?
Que longe estou do que fui há uns momentos!
Histeria das sensações – ora estas, ora as opostas!
(PAC, p. 54, v. 653-663)
A lembrança do amor da tia velha, que cantava a “Nau Catrineta” ou a “Bela
Infanta”, do aconchego da infância, da felicidade ali posta à qual já não é mais
possível retornar, porque tudo isto foi o Passado, lanterna a uma esquina de rua
velha(PAC, p. 56, v. 704) provoca um “turbilhão lento de sensações
desencontradas(PAC, p. 56, v.707), do qual deseja sair e para tanto evoca a
canção do Grande Pirata.
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48
Mas a canção é uma linha recta mal traçada dentro de mim...
Esforço-me e consigo chamar outra vez ante os meus olhos na alma,
Outra vez, mas através duma imaginação quase literária,
A fúria da pirataria, da chacina, o apetite, quase do paladar, do saque,
Da chacina inútil de mulheres e de crianças,
Da tortura fútil, e só para nos distrairmos, dos passageiros pobres,
E a sensualidade de escangalhar e partir as cousas mais queridas dos outros,
Mas sonho isto tudo com um medo de qualquer cousa a respirar-me sobre a nuca.
(PAC, p. 57, v. 718-726)
Depois de passar pela recordação da infância, não é mais possível pensar em
enforcar o filho sem sentir-se, mesmo não o querendo, a sua própria mãe, a
imaginação recusa-se a acompanhá-lo, porque, como já dissemos, as crianças
estão inevitavelmente destinadas ao mundo adulto de racionalidade, o que impede,
portanto, um abandono da moral. É para este mundo adulto que, talvez
contraditoriamente, a lembrança da infância acorda este sujeito. O pirata já não
retorna ao movimento do sentir quando a voz do marinheiro Jim Barns recorda as
“pequenas cousas de regaço da mãe e da fita de cabelo da irmã” (PAC, p. 58, v.
747). A concepção de mundo infantil não determina mais a criação poética, a
memória que o adulto tem da infância prepara-o para o retorno à realidade. Partiu-
se a máscara de criança que o poeta usava.
E abro de repente os olhos, que não tinha fechado.
Ah, que alegria a de sair dos sonhos de vez!
Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nervos!
Ei-lo a esta hora matutina em que entram os paquetes que chegam cedo.
(PAC, p. 58, v. 761-764)
O mundo de sonho ficou vetado pela realidade e resta apenas o “mundo
assentado da razão. O verso “Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os
nervos!” será pura ironia ou exaustão do limite de sensações vividas? Não nos
conseguimos decidir com absoluta certeza. Segundo Cleonice Berardinelli (2004,
p. 74), a busca voluntária do delírio é frustrada e o poeta retorna à lucidez
corrosiva. A “vida sentada, estática, regrada e revista” (PAC, p. 44, v. 348), o dia
“perfeitamente já de horas de trabalho(PAC, p. 60, v. 808), os “sentimentos
humanos, tão conviventes e burgueses” (PAC, p. 62, v. 854) também fazem parte
deste eu moderno que representa o somatório do delírio e da lucidez.
Após o retorno à realidade e o esgotamento das sensações, a sua imaginação
tornou-se “higiénica, forte, prática” (PAC, p. 59, v. 767) e
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Preocupa-se agora apenas com as cousas modernas e úteis,
Com os navios de carga, com os paquetes e os passageiros,
Com as fortes cousas imediatas, modernas, comerciais, verdadeiras.
(PAC, p. 59, v. 768-770)
Mais uma vez, assim como já foi apontado na “Ode Triunfal, a poesia de
Campos revela o traço ambivalente da relação com a máquina e a civilização.
Depois de exaltar a vida selvagem do pirata, louva a “maravilhosa vida marítima
moderna, / Toda limpeza, máquinas e saúde!” (PAC, p. 59, v. 772-773).
Continuamos afirmando que isto pode ser conseqüência da exaustão das
sensações ou a sua ironia triste. O fato é que, apesar do “turbilhão lento de
sensações desencontradas” (PAC, p. 56, v. 707), no retorno à realidade,
Nada perdeu a poesia. E agora há a mais as máquinas
Com a sua poesia também, e todo o novo género de vida
Comercial, mundana, intelectual, sentimental,
Que a era das máquinas veio trazer para as almas.
(PAC, p. 59, v. 780-783)
Há poesia nas coisas mais comuns da vida moderna, nas faturas, nas cartas
comerciais de escritórios levadas pelos navios, dentro delas há a “complexidade
da vida, pois “são feitas por gente” (PAC, p. 61, v. 823). E a poesia moderna é
espaço para onde converge tudo, o delírio das sensações e a lucidez da
modernidade, sem haver qualquer contradição, posto que há o desejo de apreender
a globalidade.
Há quem olhe para uma factura e não sinta isto.
Com certeza que tu, Cesário Verde, o sentias.
Eu é até às lágrimas que o sinto humanissimamente.
Venham dizer-me que não há poesia no comércio, nos escritórios!
Ora, ela entra por todos os poros... Neste ar marítimo respiro-a,
Porque tudo isto vem a propósito dos vapores, da navegação moderna,
Porque as facturas e as cartas comerciais são o princípio da história
E os navios que levam as mercadorias pelo mar eterno são o fim.
(PAC, p. 61, v. 826-833)
A lucidez retornada não livra o sujeito da sua angústia e o pedido é para que
a embarcação siga o seu destino. A partida do barco não restitui a ordem dentro da
sua alma, deixando um rastro inúmeras interrogações.
Eu quem sou para que chore e interrogue?
Eu quem sou para que te fale e te ame?
Eu quem sou para que me perturbe ver-te?
(PAC, p. 63, v. 888-890)
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O paquete que provocou o primeiro giro do volante, ou seja, aquele que o
arrancou do espaço da realidade e abriu caminho para o mergulho nas profundezas
do ser, é agora “ponto cada vez mais vago no horizonte.... (PAC, p. 63, v. 898),
no entanto, nada restou a não ser sua tristeza e o “silêncio comovido” (PAC, p.
63, v. 904) da sua alma.
Segundo Cleonice Berardinelli (2004, p. 73), o poema tem um caráter
cíclico, pois “em qualquer tempo haverá um navio que sai ou que entra no cais e
provoca no poeta a angústia de existir” e a imagem final resgatada pelo poema, do
guindaste que traça um semi-círculo, acentuará plasticamente esta idéia. Assim,
esta espera no cais por aquela “criatura que nunca chega em nenhum barco”
(PAC, p. 37, v. 133-134), se repetirá incessantemente, porque, no nosso
entendimento, o que ele deseja é encontrar a si mesmo e isto, como ficou
demonstrado na nossa análise, não ocorre.
Não será apenas nos poemas da sua primeira fase que a busca de si mesmo
domina os versos, também na sua fase mais soturna e melancólica este traço será
marcante. Vejamos de que maneira isto ocorre.
3.3
“Não há na travessa achada o número da porta que me deram”
Agora, à luz ampla e alta, a paisagem da cidade é como de um campo de casas – é
natural, é extensa, é combinada. Mas, ainda no ver d’isto tudo, poderei eu esquecer
que existo? A minha consciência da cidade é, por dento, a minha consciência de
mim.
Bernardo Soares. Livro do Desassossego.
(PESSOA, 1982. p. 119)
No livro A cavalo no diabo, José Cardoso Pires revisita Lisboa em duas
crônicas, “O viajante anunciado” (199, p. 15-24) e “A cidade inventada” (p. 25-
32), ambas reunidas sob o título sugestivo de Lisbon Revisited. Em “A cidade
inventada, Cardoso Pires conta uma viagem à cidade de Colombo, no Sri Lanka,
ou o “Abençoado Ceilão, na qual, como os antigos navegadores, só que pelo
avesso, “descobriu” uma nova Lisboa. Ele precisou atravessar os mares para
encontrar uma Lisboa imaginada por um doutor cingalês de origem lusitana:
“Ouvindo aquele doutor na sua linguagem de fábula, perguntava a mim mesmo
que cidade estava ele agora a contar para si.” (1999, p. 31). No encontro com o tal
doutor, o avançar da noite e dos cálices de vinho do Porto faziam com que o
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51
escritor português pensasse “na mitologia das cidades inventadas sobre a
geografia do real” (1999, p. 32). Daquela Lisboa restava-lhe “uma recordação
maior porque me foi descrita numa linguagem inventada. Assim, ouvida em
mistério, talvez alguém pudesse inventar dela ainda uma outra Lisboa.” (1999, p.
32).
É um pouco disso, desta reinvenção de Lisboa, que ele próprio realiza em
“O viajante anunciado”. Mas não apenas a cidade é reinventada, como também os
personagens que nela habitam ou por ela transitam. O viajante anunciado que
desembarca no aeroporto de Lisboa é ninguém menos que o poeta Álvaro de
Campos. Aquele que andou por Lisboa, “fez-se engenheiro naval em Glasgow,
viajou (‘perdeu países’, confessou ele ou alguém por ele) e, etcétera, etecétera,
acabou por se fixar em Durban como director dos estaleiros do porto ou outro
cargo semelhante.” É justamente deste “exílio” em Durban que o poeta se põe “a
reviver em versos de poeta secreto a Lisboa que tinha deixado há tanto tempo”,
porque “com seu olhar lúcido e a impiedade de si próprio, era na verdade fora do
espaço imediato que Campos sentia a pátria mais dentro de si.” (PIRES, 1999, p.
16) Quando um dia deparou-se com os seus versos estampados sob o título de
Obras Completas de Fernando Pessoa “a alma caiu-lhe aos pés, decidiu, então,
regressar “a Lisboa para confirmar ao real os versos com que ambos [Pessoa e
Campos] tinham vivido.” (PIRES, 1999, p. 17).
Não era um personagem à procura do autor porque esse aparecia-lhe por toda a
parte, nas montras das livrarias nas estátuas de bronze, nos painéis do
metropolitano, no mundanismo cultural. Era, sim, um personagem à procura doutro
personagem numa cidade revisitada. Daisy, neste caso. (PIRES, 1999, p. 20).
Nesta busca, Campos é guiado por Fernando Pessoa à porta de uma
“boutique elegante de noivas e enxovais na Lisboa nova, cujo nome Daisy estava
talhado “em pedaço de granito no empedrado do passeio. (PIRES, 1999, p. 21)
Dentro da loja, o poeta descobriu a própria Daisy, em pessoa. Durante muitas
tardes passearam juntos pela cidade, “eram dois velhos elegantes, dois solitários
ligados pela memória dum poeta que afinal nenhum deles conhecera senão pela
escrita” (PIRES, 1999, p. 22). Resolveram, então, um dia, tirar uma fotografia
com a estátua de Pessoa ao fundo e, quando os negativos foram postos à luz,
apenas a figura do poeta, sob o disfarce de uma estátua, aparecia. “O Pessoa, só e
único, entre duas cadeiras vazias porque ele [Álvaro de Campos] e Daisy se
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tinham esvaído como uma miragem, um poema indecifrável” (PIRES, 1999, p.
24). Campos enviou a fotografia para Daisy que, curiosa por entender aquela
mensagem muda, procurou-o em seu hotel, ligando vezes sem conta. A resposta
era sempre a mesma: “Engenheiro Álvaro de Campos? Por esse nome não consta,
minha senhora. Não. Nunca constou dos ficheiros deste hotel.” (PIRES, 1999, p.
24).
Campos é o visitante anunciado que revisita Lisboa, buscando encontrar
vestígios de si mesmo, por isso, procura Daisy. Contudo, o que se revela no final é
que apenas os seus versos ficaram. O texto de Cardoso Pires abre-nos as portas
para importantes poemas de Álvaro de Campos, Lisbon Revisited (1923)e
Lisbon Revisited (1926), bem como, “Soneto já antigo, publicado na revista
Contemporânea, 6, em 1922. Dos três, no momento, os que nos interessam são
os dois primeiros, cujo título é idêntico.
A cidade revisitada pelo Álvaro de Campos inventado por Cardoso Pires
tem seu significado na busca do poeta pelo próprio eu. Assim também acontece
nos poemas de Álvaro de Campos, “poeta-texto”, heterônimo de Fernando Pessoa.
Nos dois poemas Lisbon Revisited, o espaço relaciona-se com o itinerário interior.
O olhar que avista a cidade é filtrado pela subjetividade de um eu que, apesar de
revisitá-la, não se encontra mais nela. Mais uma vez, nos dois poemas, a infância
aparecerá como um outrora privilegiado, fissura do eu que tem no agora a
solidão, o cansaço e o tédio como determinantes.
Os dois poemas, sem dúvida, estabelecem um diálogo de tensão e ruptura,
pois, no primeiro, apesar da solidão buscada, ainda existe uma resistência, um
desafio, já no segundo, o cansaço toma conta.
No poema Lisbon Revisited (1923), publicado na revista Contemporânea,
8, há um discurso de repúdio contra toda ordem social estabelecida. A recusa em
pertencer à organização social é carregada de rebeldia contra tudo aquilo que vem
de fora, contra tudo que é imposto pelos outros. É um discurso voltado para fora
por ser apontado a outro ou outros que pretendem fazer do eu poético aquilo que
ele não é e nem deseja ser. Por isso, as negativas iniciais são imperativas,
carregadas de ênfase, cuja marca textual é o ponto de exclamação.
Não me venham com conclusões!
[...]
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Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
(PAC, p. 136, v. 3-10)
As conquistas da civilização moderna mais uma vez são colocadas sob
suspeita – caminho que já havia sido indicado na “Ode Marítima, pois, ao mesmo
tempo que trazem as vantagens tecnológicas, como a máquina, acarretam um
deslocamento do eu, antes certo do seu lugar. Há, ainda, um total descaso e uma
zombaria explícita em relação às ciências “(das ciências, Deus meu, das
ciências!), que na época, ainda representavam um discurso de autoridade,
trazendo as explicações possíveis diante de uma sociedade constantemente
assolada por mudanças.
2
Apela-se para a loucura como única saída possível contra o que diz a
estética, a moral, a metafísica, as ciências, as artes, a civilização, a técnica. Isto é,
tudo aquilo que poderia vir a representar uma verdade ou uma prisão social, como
o casamento, o cotidiano, os impostos, é violentamente rejeitado.
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer cousa?
(PAC, p. 136, v. 13-8)
As negativas, aos poucos, tornam-se mais agressivas e passam a ser
reivindicações do direito a desejar nada. Portanto, o descontentamento em relação
a quererem que ele “seja de companhia!” é expresso quando declara “tenham
paciência!, “vão para o diabo, “não me peguem no braço!, “que maçada”
(PAC, p. 136-7, v. 20-7) e no fim “Deixem-me em paz!” (PAC, p. 137, v. 34). E,
2
É possível, no entanto, fazermos uma distinção entre o discurso tradicional da ciência e as teorias
de Einstein, visto que a teoria da relatividade não apregoava “sistemas completos”. Conforme a
sua teoria defendida em 1905, quando enviou aos Annalen der Physik quatro artigos que
transformam o mundo, “tudo é relativo”. A relatividade acabou com as noções de tempo e espaço
absolutos, propondo uma explicação totalmente nova do universo. Mesmo assim, foi só muitos
anos mais tarde que o físico teve as suas idéias tão revolucionárias e contrárias ao senso comum
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num procedimento já conhecido, mais uma vez, a memória da infância interrompe
o curso do poema e, assim, revisita-se Lisboa.
Ó céu azul – o mesmo da minha infância –,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
(PAC, p. 137, v. 28- 33)
O céu azul e o macio Tejo recordam a infância na tentativa de reencontrar
neste outrora uma tranqüilidade. Contudo, esta Lisboa de outrora já não existe
mais, há somente a “Lisboa de outrora de hoje!, lugar da mágoa revisitada. O
poeta rasura, rabisca aquelas imagens antigas do céu e do rio com a sua mágoa de
agora. Portanto, como já dissemos, a infância é uma marca no tempo, mas
também no espaço.
A cidade, no entanto, não traz de volta aquilo que ele desejava, “Nada me
dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.”, pois aquele eu de outrora e
aquela cidade de outrora já não estão mais ali, já não pertencem mais àquele
espaço. E, já que “a única conclusão é morrer(PAC, p. 136, v. 4), “enquanto
tarda o Abismo e o Silêncio, ele pelo menos quer “estar sozinho!” (PAC, p. 137,
v. 35).
Os trinta e cinco versos de 1923 são retomados em Lisbon Revisted
(1926), quando se estabelece um diálogo entre os dois poemas. O poeta, como
um arqueólogo, volta a escavar a cidade em busca de si mesmo, encontrando
apenas os restos estilhaçados do sido e do vivido. Não é mais possível no agora
sonhar com a inteireza que havia outrora. Contudo, apesar da continuidade
aparente, segundo Maria Luísa Malato Borralho (1985, p. 45), “adivinha-se um
conflito” entre os poemas, pois as declarações violentas e revoltadas são
substituídas por uma maior passividade. A atitude discursiva do eu já não é a
mesma, a rebeldia deu lugar ao tédio. A certeza anterior de não querer nada agora
foi substituída pela ânsia de algo que não se sabe bem o que é. Um eu angustiado
e desiludido constata que:
levadas a sério, já que não é fácil aceitar o fim de tantos conceitos e teorias estabelecidos. (Cf.
STRATHERN, 1998). O que a poesia já havia há muito enunciado, a ciência, agora, teorizava.
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Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.
Correram cortinas por dentro de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
Não há na travessa achada o número de porta que me deram.
Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta – até essa vida...
(PAC, p. 174, v. 8-14)
Se compararmos o verso “Quando no mundo-exterior como que se abre uma
porta, de “Ode Marítima, com o seguinte de “Lisbon Revisited (1926), “Não há
na travessa achada o número de porta que me deram., veremos que a porta é uma
metáfora da tensão entre o real e o sonho, o limite entre a “vida desejada” e aquela
que o faria um sujeito “casado, fútil, quotidiano e tributável” (PAC, p. 136, v. 17).
Mas, não é apenas isto: a chave que abria as portas necessárias ficou perdida no
outrora. Como já dissemos, há também, à medida em que se escreve, uma
reflexão acerca do próprio ato da escrita. Sendo assim, percebemos que houve
uma queda daquela criação poética que tinha na concepção infantil um modelo
para a sua realização. Agora, não escreve mais a partir da concepção de mundo
infantil, agora é somente o adulto nostálgico dos sonhos de criança, mas preso na
teia das convenções sociais. Os exércitos sonhados não chegaram nem a realizar-
se e mesmo assim estão derrotados e foram as “coortes por existir, esfaceladas em
Deus.(PAC, p. 148, v. 30) Ainda assim, insiste no retorno à infância como
dispositivo de transformação do espaço, uma procura pelo “segredo da sua
identidade” (BORRALHO, 1985, p. 46). Neste sentido, consideramos
fundamental repetir aqui o que já se disse, que “a infância constitui um mapa onde
coisas e espaços se dispõem segundo uma topologia própria que permite sonhar.”
(GIL, 2000, p. 92)
A cidade de Lisboa outra vez revista parece ser a garantia de que estariam
reunidos os restos, os resíduos daquilo que fora na “infância pavorosamente
perdida...” (PAC, p. 148, v. 31-2) Contudo, o que se esperava não se realiza, pois
já não se é o mesmo que ali vivera e a cidade também já se modificou. Segundo
Alexandre Montaury (2002, p. 363), revisita-se o espaço “na tentativa de
reencontrar aquela Lisboa perdida para restaurar e recuperar os estilhaços de um
tempo bom, perdido na infância”.
Escavar, na cidade, as camadas de tempo que o passado soterrou para
descobrir o que era seria então única possibilidade para tentar religar “todos os Eu
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que aqui estiveram, / Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória, Uma
série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?” (PAC, p. 148, v. 37-39) Se
assim for, ficamos sabendo que se esgotaram as possibilidades. A unidade, antes
presente na infância e na cidade de outrora, já não é mais possível. O sonho de
uma restauração estava desfeito, perdia-se, “definitivamente, a utopia do
centramento e da inteireza do eu” (MONTAURY, 2002, p. 369). Segundo Ana
Nascimento Piedade (1992, p. 49), “a cidade real funciona assim sobretudo como
mediador através do qual Álvaro de Campos expõe uma outra realidade – a sua
própria interioridade precária, instável e dividida [...]”.
Outra vez revista a cidade, mas já se sente nela como um “traseunte inútil”,
um “estrangeiro aqui como em toda parte, um “casual na vida como na alma”,
um “fantasma a errar em salas de recordações” (PAC, p. 148, v. 43-6). Se antes
exigia que o deixassem em paz, pois esperava sozinho o Abismo e o Silêncio,
desta vez, não mais uma imposição, mas um lamento, vai encerrar o poema:
“Outra vez te revejo, / Mas, ai, a mim não me revejo!. Um lamento que reflete a
angústia de não se poder rever na cidade revisitada. A fratura do eu não pode ser
reconstituída porque
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim –
Um bocado de ti e de mim!...
(PAC, p. 149, v. 56-58)
É só este eu aos bocados que é possível ser diante de uma modernidade que
desloca os tempos e os espaços. A infância vem a ser, portanto, o lugar tranqüilo
no qual se vai buscar a unidade perdida. Só que este mergulho no outrora não
significa que este projeto se concretizará, pois se vive um agora que já não mais
permite esta unidade.
Aproveitamos a sugestão de Alexandre Montaury e também citamos alguns
versos de “Apontamento, poema publicado na revista Presença, 20, em abril-
maio de 1929.
A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
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Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
(PAC, p. 168, v. 1-7)
Há, portanto, uma perfeita comparação entre o vaso partido e este eu ao qual
não é possível reintegrar-se, porque os deuses olham com tolerância para a criada
involuntária que deixou cair o vaso. É a modernidade avassaladora que parte o
sujeito, deixando apenas que se aviste um “espalhamento de cacos. O final do
poema, no entanto, aponta para uma direção que não encara tanto o fragmento
como negatividade, pois
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem porque ficou ali.
(PAC, p. 169, v. 19-22)
Seguindo o que nos apresenta Eduardo Lourenço (1983, p. 164), estamos
permanentemente “condenados a ser outros por não poder ser os mesmos”,
contudo a poesia de Fernando Pessoa
não se resigna a essa ruptura constatada e sofrida, mesmo quando busca para ela o
remédio paradoxal de glorificar a pluralidade como forma suprema de se identificar
com o mundo. O seu “sê plural como o universo” é o resumo mítico da consciência
infeliz da Modernidade excluída do pensamento da unidade pela aventura de um
saber incapaz de unificar a ordem do conhecimento exacto e da acção justa. Assim
e contrariamente à inane acusação de niilismo de que reiteradamente foi objecto, o
que ressalta em Pessoa é o movimento para a sutura dessa falha intrínseca do
idealismo moderno como consciência infeliz. Daí a sua mitificação do espaço não
dividido da sua infância (de sonho, como todas) como forma de reinvenção da
infância imortal de todos os homens. (LOURENÇO, 1983, p. 164)
A ruptura e a falha constatadas, apesar de se saberem irreversíveis por
vezes requerem uma sutura. Portanto, o espaço não dividido da infância representa
uma tentativa de recomposição dos cacos. É por este motivo, então, que este
outrora significa tanto na poesia de Álvaro de Campos. Como veremos a seguir, é
este espaço uma representação da possibilidade de realização dos sonhos, em
contrapartida a um agora repleto de frustrações por aquilo que não se conseguiu
realizar.
3.4
“Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!”
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo –
A impressão de pão com manteiga e brinquedos
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De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas adultas de custar a engolir.
Álvaro de Campos
(PAC, p. 188, v. 22-27)
Na poesia de Álvaro de Campos, nota-se uma falta de algo que ficou
perdido na infância, pertencente ao outrora e que não faz parte do agora. No
poema “Dactilografia”, 1933, a lembrança do que fora, em contraste com o que se
é hoje - náusea, regularidade, sono (Cf. PAC, p. 198, v. 6-8)-, acomete o
engenheiro.
Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavalerias
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do sul, opulentos de verdes.
Outrora...
(PAC, p. 198, v. 9-14)
Outrora, havia sido outro, verdadeiro, no sonho, nas paisagens do livro da
infância com seus “castelos e cavalerias. À verdadeira vida sonhada na infância
contrapõe-se a vida vulgar.
Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.
Na outra não há caixões, nem mortes.
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer.
Neste momento, pela náusea, vivo só na outra...
(PAC, p. 198, v. 17-30)
No entender de Maria de Lourdes Gonçalves Alves (1995, p. 450), “entre a
infância e a maturidade, uma fissura, uma fratura irremediável teria
impossibilitado o Eu de adequar-se ao molde da personalidade adulta, ao padrão
de personalidade que esperavam dele – o ritual de passagem não se cumprira...”. É
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como se algo tivesse ficado perdido neste passado. Apontamos, portanto, para o
agora como momento da perda da possibilidade de sonhar, quando é permitido
apenas ser aquele que vive uma vida prática e útil, enquanto, outrora, na vida
verdadeira, naquela sonhada na infância, é possível ser o que se quiser.
O adulto não apaga totalmente a vida verdadeira, de alguma forma, ela
permanece “num substrato de névoa, contudo, é impossível realizá-la. Segundo
La Salette Loureiro (1996, p. 172), “o tempo/espaço da infância corresponde
ainda a um outro aspecto positivo, posteriormente destruído pela experiência e
reclamado pela saudade: é a esperança de um futuro à medida do sonho,
obviamente grande, inigualável pela realidade.”
Em “Dactilografia, vimos que a morte não tem espaço na vida sonhada,
“não há caixões, nem mortes. Assim também o é no poema “Aniversário”,
quando a alegria de fazer anos é celebrada no tempo em que ninguém estava
morto.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
(PAC, p. 172, v. 1-4)
Este tempo está muito distante e o que há, agora, é o “Desejo físico da alma
de se encontrar ali outra vez” (PAC, p. 174, v. 27) e a “raiva de não ter trazido o
passado roubado na algibeira(PAC, p. 174, v. 44), porque o que restou foi
apenas aquela vida “em que acabam por nos meter num caixão”.
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das
[minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
(PAC, p. 173, v. 19-24)
No ensaio “Casas na poesia de Fernando Pessoa, Cleonice Berardinelli
(2004, p. 390) afirma que “é esta aversão à vida presente que o impele a lembrar o
passado com ternura. No agora, resta apenas a recordação da infância perdida, o
seu pensamento hoje é de que outrora era feliz. A representação de uma memória
da infância é bastante explorada na poesia de Campos, como já dissemos, é um
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outrora no qual este eu, que hoje olha para o passado, acredita que não vivia a
vida vulgar de agora. É com revolta e mágoa que pergunta:
Quem fez lenha de todo o berço da minha infância?
Quem fez trapos de limpar o chão dos meus lençóis de menino?
Quem expôs por cima das cascas e do cotão das casas
Nos caixotes do lixo do mundo
As rendas daquela camisa que fizeram para me baptizarem?
Quem me vendeu ao Destino?
Quem me trocou por mim?
(PAC, p. 176, v. 15-21)
O seu berço, os seus lençóis de menino, a camisa que fizeram para o seu
batismo, tudo, enfim, foi destruído e a grande questão é quem foi o responsável
por este aniquilamento daquilo que era e a substituição pelo que é hoje. O que
sobrou para ele foi apenas ouvir os sons das casas felizes, pois o jantar na casa das
tias velhas e o tempo em que festejavam o dia dos seus anos passou. Mais adiante
no mesmo poema, ele conclui o seu “regresso da conferência com peritos” (PAC,
p. 175, v. 4) dizendo: “- Paguei o bilhete. Cumpri o dever. Sou vulgar. / E tudo
isto são coisas que nem o suicídio cura...” (PAC, p. 177, v. 43-44).
Diante da angústia de sua existência, que nem o suicído pode curar,
exclama: “Que grande felicidade não ser eu!(PAC, p. 203, v. 14) ou “Minha
mágoa externa de ser eu!(PAC, p. 176, v. 14).
O presente é opressivo e infeliz enquanto a infância é um lugar de
aconchego, com a lembrança do lar, das tias velhas e do relógio que
“tictaqueava, quando o tempo andava mais devagar. No presente, ele está só e
ninguém mais se lembra dele.
Na ampla sala de jantar das tias velhas
O relógio tictaqueava o tempo mais devagar.
Ah o horror da felicidade que não se conheceu
Por se ter conhecido sem se conhecer,
O horror do que foi porque o que está está aqui.
Chá com torradas na província de outrora
Em quantas cidades me tens sido memória e choro!
Eternamente criança,
Eternamente abandonado,
Desde que o chá e as torradas me faltaram no coração.
Aquece, meu coração!
Aquece ao passado,
Que o presente é só uma rua onde passa quem me esqueceu...
(PAC, p. 232)
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O seu desejo é retornar àquela infância, ser agora apenas o menino que fora
outrora: “Quem me dera nunca ter sido senão o menino que fui...” (PAC, p. 178,
v. 8) Como se fosse a madeleine de Proust, muitas vezes, as cantigas das tias
velhas - “Nau Catrineta” e“Bela Infanta”-, ou outra que não se sabe quem canta,
trazem esse menino que ficou perdido.
Que noite serena!
Que lindo luar!
Que linda barquinha
Bailando no mar!
Suave, todo o passado – o que foi aqui de Lisboa – me surge...
O terceiro andar das tias, o sossego de outrora,
Sossego de várias espécies,
A infância sem futuro pensado,
O ruído aparentemente contínuo da máquina de costura delas,
E tudo bom e a horas,
De um bem e de um a-horas próprio, hoje morto.
Meu Deus, que fiz eu da vida?
Que noite serena!
Que lindo luar!
Que linda barquinha
Bailando no mar!
Quem é que cantava isso?
Isso estava lá.
Lembro-me mas esqueço.
E dói, dói, dói...
Por amor de Deus, parem com isso dentro da minha cabeça.
(PAC, p. 345)
Na canção, revive-se o sossego da infância, contrastando com o
desassossego interior de agora. Naquele tempo, ainda não havia o futuro de
desilusão e insatisfação que o agora revelou. Estava “tudo bom e a horas”,
enquanto hoje, quando tudo isto já está morto, interroga-se o que foi feito da
própria vida e a canção recordada torna-se apenas motivo de dor.
Na poesia de Álvaro de Campos, portanto, a infância é tanto um campo de
reflexão para a criação artística quanto uma maneira de compreender o mundo.
Por trás da máscara do adulto, da normalidade e da convenção, a criança
permanece. É preciso, então, saber tirar a máscara e reconhecer o menino que está
por detrás escondido, revelando um mundo cuja “impressão de pão com manteiga
e brinquedos” perdura. É isto que vimos nos versos seguintes:
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Depus a máscara e vi-me ao espelho...
Era a criança de há quantos anos...
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que fica,
A criança.
Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor.
Assim sou a máscara.
E volto à normalidade como a um terminus de linha.
(PAC, p. 209-10)
Neste poema, vimos conjugar-se a infância como máscara, ou seja, como
metáfora da criação poética, mas também como aquilo que nos faz escapar um
pouco da vida prática e útil que se vive no “mundo assentado da razão, quando se
é possível ter liberdade para sonhar e deixar de lado as leis da sociabilidade e da
polidez convencional. Além disso, na infância, não há este eu cuja existência
falhada será revelada no presente. O passado, portanto, é revisitado na tentativa de
recuperar os estilhaços de um tempo bom. A representação da memória da
infância significa a invenção de um tempo no qual é permitido sonhar. Contudo, a
possibilidade de tirar a máscara não satisfaz completamente e o melhor mesmo é
tornar a pô-la, assim fica melhor, a máscara é aquilo que realmente se é. Não há
como fugir totalmente para este mundo da infância e mesmo a criança está
destinada ao mundo adulto, depois da experiência de ser “a criança de há quantos
anos” volta-se “à normalidade como a um terminus de linha”.
O ponto final da viagem pela infância na poesia de Álvaro de Campos, “o
terminus de linha” da nossa análise, nos deixou entrever uma tensão entre o tempo
de outrora e o de agora, fazendo com que seja possível observar este eu
desdobrado pela passagem do tempo e que é já outro e não o mesmo de outrora.
Portanto, a este eu de agora, crivado de dúvidas, marcado pela derrota e
pela frustração e que falhou no seu projeto de integralidade, só restam a
melancolia, a angústia, o tédio, a náusea, a abulia e o cansaço.
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4
Antes da partida, é preciso arrumar a mala de ser
[...] o rememorar a infância; o carinho pelo passado perdido, em que era o menino
querido e mimado; o duro julgamento do adulto que agora é, cansado, adiando a
vida; a aspiração de algo ideal, inalcançável; o momento angustiante da partida
da gare ou do apeadeiro, do cais, da vida, quando o embarque é definitivo e a
Morte é vista com lente escura, ou clara e límpida, acolhendo-o, materna, em seus
braços – são caminhos tomados e retomados pelo poeta em suas andanças.
Cleonice Berardinelli
(BERARDINELLI, 1999, p. XLIX)
4.1
“Falhei no que fui, falhei no que quis, falhei no que soube”
Ulisses reencontrará, pois, sua Ítaca lá mesmo onde a havia deixado; mas o Ulisses
de outrora, aquele que deixou sua ilha, ele não encontrará mais. Ulisses é agora um
outro Ulisses, que reencontra outra Penélope. E Ítaca é também uma outra ilha, no
mesmo lugar, mas não na mesma data. A viagem no espaço é uma viagem no
tempo, e o ponto de chegada, o ponto fixo ansiado não existe, deixando-nos à
deriva.
Olgária Matos
(MATOS, 1987, p. 155)
Tal qual Ulisses, retornado a Ítaca para reencontrar aquilo que é seu, o eu
construído pela poesia de Álvaro de Campos busca na infância uma possibilidade,
uma alternativa à “interioridade precária, instável e dividida” do seu presente.
Porém, agora, já não se reencontrará mais aquele eu de outrora. Segundo Jacinto
do Prado Coelho (1973, p. 96), no caso da poesia pessoana, “recordar não é
reviver, é apenas verificar com dor que fomos outra coisa cuja realidade essencial
nos não é permitido recuperar.” Por isso, “a infância que lembramos não é,
portanto, a infância que tivemos, mas uma representação actual da infância; nem é
preciso ter vivido uma infância feliz para que a infância seja para nós uma idade
feliz.” (COELHO, 1973, p. 99)
No ensaio “O tempo na poesia de Álvaro de Campos, Maria Luísa Guerra
(s.d., p. 43) defende que “de facto é por nós e para nós que esse passado existe
mas já enquanto confundido e misturado no presente.” Os estilhaços do passado
estão confundidos e misturados com os do presente, interditando, assim, uma
restauração completa e perfeita daquilo que tinha sido. Dos versos do poeta
sabemos que, se se encontrasse a si no mesmo lugar por que passara há vinte anos,
já não se reconheceria: “O outro que aqui passava então, / Se existisse hoje, talvez
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se lembrasse... / Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro
/ Do que esse eu-mesmo que há vinte anos passava aqui!(PAC, p. 191, v. 14-17)
O eu está fissurado, pois falhou naquilo que foi, quis e soube (Cf. PAC, p.
164, v. 5). Como diz o próprio poeta nos seguintes versos: “Hoje, recordando o
passado, / Não encontro nele senão quem não fui...”(PAC, p. 182, v. 5-6).
Conforme escreveu Olgária Matos no texto “A melancolia de Ulisses: a dialética
do Iluminismo e o canto das sereias”,
A viagem ao passado é uma viagem “em sentido inverso ao da morte, é a busca da
promessa de felicidade vislumbrada, por assim dizer, na infância, aquela reserva de
energia que os anos por vir comprometerão irremediavelmente ou resgatarão. O
adulto quando se torna melancólico é chamado a precisar e desocultar a própria
infância durante toda a sua vida. (MATOS, 1987, p. 155)
A promessa de felicidade, portanto, está longe do alcance deste eu, na
infância ou dentro das casas que ele só vislumbra de fora, pois não pode entrar
senão ela não estará mais lá. É preciso levar em conta que na poesia do
engenheiro a casa toma dois sentidos, um real e outro metafórico, ou seja, a casa
representa tanto o lar como a si mesmo, por isso, a felicidade mora sempre na casa
dos outros.
Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,
Que felicidade há sempre!
Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes, porque não são eu.
As crianças, que brincam às sacadas altas,
Vivem entre vasos de flores,
Sem dúvida, eternamente.
As vozes, que sobem do interior do doméstico,
Cantam sempre, sem dúvida.
Sim, devem cantar.
Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.
Assim tem que ser onde tudo se ajusta –
O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.
Que grande felicidade não ser eu!
(PAC, p. 203, v. 1-14)
A felicidade é possível apenas para os outros, porque ser “eu” impede a
possibilidade deste sentimento. Segundo Cleonice Berardinelli (2004, p. 176), “a
impossibilidade de ser feliz agrava-se pela consciência de que os outros podem sê-
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lo.” A poesia de Álvaro de Campos mergulha numa viagem subjetiva, construindo
um eu descortinado pelos tempos modernos, cujas certezas desapareceram,
levando consigo qualquer tranqüilidade acerca daquilo que se é.
Nesta profunda viagem ao interior de si mesmo, em nenhuma parte há lugar
para repouso, aquilo que se perdeu, no percurso do outrora ao agora, instaura um
sentimento de melancolia. Para Eduardo Lourenço, que escreveu “Tempo e
Melancolia em Fernando Pessoa, a melancolia inscreve-se “numa constelação de
afecções da alma que vão da tristeza à angústia, sem esquecer o tédio.”
(LOURENÇO, 1999, p. 16)
Portanto, este eu é crivado pela sensação de perda daquilo que poderia ter
sido e não foi. Conforme escreve Sigmund Freud (1974, p. 277-8), no artigo
“Luto e Melancolia” - em alemão, Trauer und Melancolie -, assim como o luto, a
melancolia também pode constituir a perda de um objeto amado, com a diferença
de que não se pode conscientemente perceber o que se perdeu. E, mesmo que se
esteja ciente da perda que originou a melancolia, ou seja, mesmo que se saiba
quem ou o que foi perdido, não se consegue identificar o que se perdeu nesse
alguém. No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio, na melancolia, o vazio é
de si mesmo.
Na opinião de Eduardo Lourenço, há na melancolia um jogo interior da
memória, “memória de coisas vivas, mais vivas que a vida presente, e no entanto
impalpáveis, inacessíveis, a não ser pela viagem através da eternidade perdida de
nós próprios de que se tece justamente a melancolia.” (LOURENÇO, 2003, p. 18)
Segundo o nosso entendimento, na poesia de Campos, a melancolia é efeito de
uma perda que ocorre no próprio eu.
Portanto, para este eu de agora sobrou o vazio inquieto, restaram os
sentimentos de melancolia, tédio, angústia e náusea diante de tudo. Joel Serrão
(1965, p. 154), no estudo “Notas sobre a experiência do tédio na vida e na poesia
de Fernando Pessoa”, afirma que o tédio é inseparável de certa consciência de um
tempo esvaziado de conteúdo, tornando-se, então, a “antecâmara” da angústia.
Quando o tédio habita o sujeito, ao invés de viver o tempo, ele sente-se vivido
pelo tempo [...] que escorre viscosamente” (SERRÃO, 1965, p. 157). Para
Eduardo Lourenço (2003, p. 16), a angústia é “mais nítida, “menos indistina”,
“mais não é, aliás, que a vida subtraída ao futuro, asfixiada por um presente sem
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dimensões.” Junta-se a estes sentimentos a náusea. Segundo Joel Serrão (1965, p.
161),
A náusea, transformada em tema literário por Jean-Paul Sartre, é estado
intermediário entre o tédio e a angústia: com efeito, o tédio prolongado e
exacerbado conduz à vertigem da náusea, preliminar da angústia, reacção de índole
sentimental ao pressentimento de que a vida não tem sentido, a qual alcança as
zonas mais profundas do ser psíquico. Em suma, o tédio, sinal de uma vida em
crise, abre o caminho à consciência de tal crise. Ora, quando alguém se apercebe
de que o sofrimento tedioso é conseqüência de a sua vida estar a processar-se sem a
meta valiosa a alcançar, e que é, portanto, desprovida de sentido, pode surgir então
a náusea, paredes meias com a angústia, que virá a seguir.
O vazio interior toma conta deste eu de agora, tornando a sua vida oca, sem
sentido. A passagem do tempo é vivida com mal-estar, pois os instantes passam
deixando uma marca bem forte. Observemos: “Oco dentro de mim, sem depois
nem antes. / Parece que passam sem ver-me os instantes, / Mas passam sem que o
seu passo seja leve.(PAC, p. 362-363, v. 6-8). O tempo esvaziado provoca a
angústia, que já não cabe mais diante da consciência de um futuro “subtraído” e
um presente “asfixiado”, transbordando da vasilha.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar-entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.
(PAC, p. 66, v.7-14)
Não consegue viver a existência de maneira completa e inteira. O mal-estar
provoca um “estar-entre”, um “quase”, um “poder ser que, até, gradualmente,
tornar-se algo de onde não emerge mais, “isto”. Tem a sensação de que falhou em
tudo - “Sou quem falhei ser. / Somos todos quem nos supusemos. / A nossa
realidade é o que não conseguimos nunca.(PAC, p. 197, v. 6-8) -, e agora,
firma-se a náusea e a ânsia: “Não sou senão náusea, não sou senão cisma, não sou
senão ânsia,” (PAC, p. 164, v. 7) Segundo Cleonice Berardinelli (2004, p. 272),
“a palavra náusea não é rara neste heterônimo e reproduz invariavelmente a
sensação de mal-estar diante das abstrações que o obsidiam: a vida, o sentimento
da vida, o mesmo sonho.... Tudo isto fá-lo ter vontade de vomitar a si mesmo.
“Tenho vontade de vomitar, e de me vomitar a mim... / Tenho uma náusea que, se
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pudesse comer o universo para o despejar na pia, comia-o.(PAC, p. 326, v. 22-
23)
A consciência de um tempo esvaziado de sentido, dominado pelo cansaço e
pela abulia, provoca um constante adiamento da vida, um ficar sempre “na mesma
coisa que antes de ontem(Cf. PAC, p. 170, v. 6). O “antes de ontem que é
sempre” (Cf. PAC, p. 170, v. 6) tornará a repetir-se “depois de amanhã” (Cf.
PAC, p. 159, v. 1). Todas as promessas são adiadas para o porvir : “Depois de
amanhã, sim, só depois de amanhã...” (PAC, p. 159, v. 1), hoje é um tempo de
abulia e cansaço:
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço anticipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
(PAC, p. 159, v. 4-8)
Chegado o dia de fazer planos – “Amanhã sentar-me-ei à secretária para
conquistar o mundo;(PAC, p. 159, v. 15) - ou da ação definitiva – ‘Mas só
conquistarei o mundo depois de amanhã” (PAC, p. 159, v. 16) -, novamente tudo
será adiado, porque não é possível viver o hoje. Daí, o resgate da infância de
maneira terna e saudosa: “não nos surpreende encontrar a profunda emoção que
emerge do confronto entre passado e presente, este sempre marcado pela falta,
pela carência, pela saudade.” (BERARDINELLI, 2004, p. 397). O que falta hoje a
ele é “o circo de domingo” da infância: “Quando era criança o circo de domingo
divertia-me toda a semana. / Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a
semana da minha infância...(PAC, p. 159-160, v. 21-22); “Por hoje, qual o
espetáculo que me repetiria a infância?(PAC, p. 160, v. 29). O circo de outrora
é uma representação atual da sua infância, recordada pelos olhos do adulto de hoje
como espaço / tempo de felicidade.
Depois de amanhã triunfará sobre a sua vida “falhada” em tudo, será outro,
suas qualidades serão convocadas, será finalmente o que hoje não pode nunca ser.
(Cf. PAC, p. 160, v. 23-34). Mas, tudo isso só se dará depois de amanhã, porque
hoje nada pode fazer, já que o sono o domina. Fica, então a promessa: “O
porvir.../ Sim, o porvir...(PAC, p. 160, v. 40-41)
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Contudo, à força da necessidade, diversas vezes, o agora se impõe como o
momento de arrumar a vida e organizar os sonhos malbaratados. Só que, de novo
o adiamento e o cansaço vencem a vontade.
Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção...
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!
Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem – um antes de
[ontem que é sempre...
(PAC, p. 170, v. 1-6)
Na poesia de Campos, mais de uma vez as abstrações surgem concretizadas
em imagens. Nada melhor do que a organização das prateleiras para representar a
arrumação que deverá ser feita na sua própria vida. Também a concretização da
ação de fazer as malas, organizar a si mesmo e também aos seus versos – “fazer as
malas para o Definitivo” – poderia representar a preparação para uma partida
importante, a publicação da sua poesia, pois sabemos que o poeta é somente os
seus versos.
Aos poucos, vamo-nos dando conta de que esta iniciativa vai ter o mesmo
destino de outras tantas: ficar na mesma coisa que antes de ontem – um antes de
ontem que é sempre.... Apesar da vontade interna, nada realiza. Uma pista para a
interpretação do poema é o seu título “Quase”. Segundo Cleonice Berardinelli
(1999, p. 170), “num dos testemunhos este poema tem o título ‘Reticências’, o
que não o alteraria por demais, pois as reticências, como sinal gráfico, podem
significar a continuação de um estado já apresentado. O que a modificação do
título nos pode dizer a mais é a tentativa de mudança deste estado permanente de
abulia que não lhe permitiu chegar , ficou no quase.
A atitude de sarcasmo e dolorosa zombaria, não rara nos poemas deste
heterônimo, que ri dos outros mas, sobretudo, de si mesmo, fica evidente nos
versos a seguir: “Sorrio do conhecimento anticipado da coisa-nenhuma que serei...
/ Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir.(PAC, p. 170, v. 7-8). O rir de
si mesmo retrata uma ironia corrosiva, pois Campos não sorri de algo engraçado
que tenha acontecido na sua vida e possa ser recordado com alegria, mas daquilo
que poderá vir a ser, “coisa-nenhuma. Por que arrumar as prateleiras da vida se o
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que o destino lhe reserva é ser “coisa-nenhuma”? Mesmo assim, ele sorri, porque
o sorrir já significa alguma reação.
E, em mais um movimento característico da poesia de Campos, a realidade
invade e o cotidiano aparece como motivo de reflexão: a vendeira que canta o seu
pregão traz na sua voz uma “chamada a parte nenhuma, como o silêncio da
vida...” (Cf. PAC, p. 171, v. 21) Por fim, o cansaço reaparece como mais uma
daquelas imagens concretas para fechar o poema: “E o meu cansaço é um barco
velho que apodrece na praia deserta,(PAC, p. 171, v. 27). E, afinal, não se
arrumou nem a mala, nem a vida.
Na poesia de Campos, observamos que há espaço para a reflexão
metapoética, também contaminada pela tensão entre outrora e agora. Agora, já
perdeu a “virtude do desenvolvimento rítmico” e não é mais “capaz de escrever
um poema extenso” (Cf. PAC, p. 208-209, v. 1-4), como outrora. O que resta
agora é a vida que, simplesmente, acontece, o tempo que corre, independente da
sua vontade ou da sua força para agir sobre algo. Os seus versos são, pois, a única
maneira de intervir no status quo.
O sol que está sem que eu o chamasse...
O dia que me não custou esforço...
Uma brisa, com a festa de uma brisa,
Que me dá uma consciência do ar...
E o egoísmo doméstico de não querer mais nada.
(PAC, p. 209, v. 11-15)
Não há maneira de impedir o sol de iluminar ou de ignorar a brisa que traz
em si a consciência de um dia passado com custoso esforço. O sofrimento tedioso
de estar a vida a processar-se, sem que se alcance mais uma vez a possibilidade de
uma meta desejada, torna-a desprovida de sentido e provoca a saudade das suas
odes.
Mas, ah!, minha Ode Triunfal,
O teu movimento rectilíneo!
Ah, minha Ode Marítima,
A tua estrutura geral em estrofe, antístrofe e epodo!
E os meus planos, então, os meus planos –
Esses é que eram as grandes odes!
E aquela, a última, a suprema, a impossível!
(PAC, p. 209, v. 16-22)
A saudade do que se realizou não impede, contudo, que se admita que eram
os planos o que verdadeiramente o movia. Porém, os planos de outrora não se
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realizaram e ficou apenas um agora “de não querer mais nada, um cansaço
absoluto. Nas suas próprias palavras: “Estou cansado, é claro, / Porque, a certa
altura, a gente tem que estar cansado.(PAC, p. 215, v. 1-2). E mais: “O que há
em mim é sobretudo cansaço - ” (PAC, p. 212, v. 1); “Um supremíssimo cansaço,
/ Íssimo, íssimo, íssimo, / Cansaço... (PAC, p. 212, v. 28-30). O cansaço
superlativo que paraliza, porque há apenas um eu “cheio de todos os cansaços /
Quantos o mundo pode dar...(PAC, p. 212, v. 2-3).
Tomar uma atitude diante da vida representa uma partida metafórica, ou
seja, “tomar uma decisão qualquer é também partir(cf. COELHO, 1973, p. 125),
arrumar a mala significa partir para ser algo diferente do que se é, organizar-se,
saber-se um ser em si, e não um “estar-entre” ou um “quase”.
Na véspera de não partir nunca
Ao menos não há que arrumar malas
Nem que fazer planos em papel,
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,
Para a parte ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca
(PAC, p. 211, v. 1-7)
Há uma certa dificuldade em tomar uma decisão, por isso, o alívio diante da
partida que nunca acontecerá, pois só assim não será preciso arrumar malas ou
fazer planos em papel.
No poema “Grandes são os desertos, e tudo é deserto, mais uma vez é
necessário fazer a arrumação adiada. Porém, o movimento de arrumar a mala é
alternado com o do adiamento de todas as viagens. Partindo de uma profunda
reflexão acerca da aridez interior – “Grandes são os desertos e as almas desertas e
grandes - / Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas, / Grandes
porque de ali se vê tudo, e tudo morreu(PAC, p. 184, v. 1)-, e do
descontentamento de si – “Não tirei bilhete para a vida, / Errei a porta do
sentimento, / Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.” (PAC, p. 184,
v. 9-11), chega-se à conclusão de que se tem por força que arrumar a mala. O
gesto cotidiano de acender o cigarro é mais do que um simples gesto, representa o
desejo de adiamento, seja da vida, seja do universo inteiro. O presente absoluto
que assola a vida também deve ser adiado. O julgamento do adulto, de agora, é
implacável consigo mesmo: o sentir-se derrotado pela vida o comprometeu de
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modo irremediável, deixando muito distante o menino, de outrora, que ainda
podia sonhar: “Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,” (PAC, p.
184, v. 27)
Mesmo com a constatação de que arruma melhor a mala “com os olhos de
pensar em arrumar” (Cf. PAC, p. 184, v. 19), sabe que não se pode “levar as
camisas na hipótese e a mala na razão” (Cf. PAC, p. 184, v. 33). Não é apenas no
pensamento que a sua vida deverá ser arrumada, mas também na ação. A repetição
da expressão “ter que arrumar” torna obrigatória a tentativa de realizar a ação:
“Mas tenho que arrumar a mala, / Tenho por força que arrumar a mala, / A mala”
(PAC, p. 185, v. 30-32).
A alternância entre pensamento e ação é o que marca o poema, a
necessidade de arrumar a mala alterna com a reflexão de que tudo é deserto.
Acreditamos que, indiretamente, está sendo colocada uma questão, talvez no nível
da leitura apenas, e arriscamo-nos a indagar: por que “arrumar a mala de ser” se
tudo é deserto? Esta dúvida não aparece de maneira clara, é apenas um modo de
interpretar este poema que consideramos bastante sinuoso e para o qual não
encontramos leituras satisfatórias.
É sabido que por toda a vida teve e tem de arrumar a mala, mas também que
tem ficado sentado, “a ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.”,
porque o seu destino neste deserto não é ser um boi sagrado e venerado como
Ápis, animal sagrado no Egito antigo.
Contudo, o impulso para arrumar a mala parece vencer a atitude estática e
ruminante. Quando se levanta em definitivo, com força e coragem para arrumar a
mala constata: “Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!(PAC,
p. 186, v. 51). Mais uma vez volta a questão da felicidade que mora sempre na
casa dos outros ou em qualquer lugar em que não se esteja: “É-se feliz na
Austrália, desde que lá se não vá.(PAC, p. 293, v. 17). Segundo Cleonice
Berardinelli (2004, p. 403), “sempre do lado de lá é que pode estar a felicidade a
que o poeta não teve acesso senão transitório, porque os outros é que eram
felizes.” Ele tem pena de si mesmo, porque sabe que o deserto que se formou, sem
possibilidade de disfarçar o solo com pedras e tijolo, está no seu interior, pois
pode até ser que nem tudo seja deserto, pode haver oásis, mas não para ele. Então,
afinal de contas, decide que “Mais vale arrumar a mala.(PAC, p. 186, v. 186).
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A repetição insistente da mala na poesia de Campos não é aleatória. No seu
“primeiro” poema, segundo a ficção criada por Pessoa, “Opiário, o poeta está a
bordo de um navio, no canal de Suez. Noutro poema, ficamos sabendo que
“Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.” (PAC, p. 223, v. 1), sem falar na
“Ode Marítima, já aqui, analisada. Além disso, em tantos outros, vimos o tema
da viagem ser retomado. Porque é um viajante, torna-se extremamente necessário
que a mala esteja arrumada. A mala, porém, como tantos outros objetos – como a
porta e a casa, das quais já falamos –, não significa apenas em sua materialidade
objetal, representa um pouco mais, também porque a viagem na poesia de Campos
é mais do que o movimento de partida de e retorno a algum lugar. Lembremos
com Cleonice Berardinelli (2004, p. 352) que na poesia de Campos o significado
simbólico da viagem é acentuado, “a viagem é quase sempre a passagem para o
outro lado, de navio ou de comboio, para o Definitivo, para o Desconhecido, para
o Novo. Na nossa opinião, a grande viagem empreendida neste poema é ao
interior de si mesmo e, para tanto, é necessário “arrumar a mala de ser.” Segundo
Octávio Ianni (2003, p. 31), “no curso da viagem há sempre alguma
transfiguração, de tal modo que aquele que parte não é nunca o mesmo que
regressa.”
A partida para algum lugar, por vezes, pode significar a tentativa de
encontrar-se, como no poema “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra”.
Partir de Lisboa para Sintra, guiando sozinho e devagar, não representa apenas o
deslocamento de um lugar a outro, mas a viagem por “outra estrada, por outro
sonho, por outro mundo, / Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir
ter,” (PAC, p. 160, v. 4-5). Porém, lugar nenhum terá aquilo que procura, porque
a sua insatisfação e a sua incomodidade não estão do lado de fora, mas dentro de
si mesmo.
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...
(PAC, p. 161, v. 8-13)
Seja em Lisboa, em Sintra, na estrada real ou metonímica, a angústia
domina o agora deste eu sempre em busca. O automóvel emprestado, em
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princípio apenas um símbolo, é mais um objeto que, de repente, toma corpo e
inclui o sujeito, passando a representar tudo aquilo que lhe foi emprestado e que
ele toma como seu, chegando, ele mesmo, a ser o resultado disso: “Quantas coisas
que me emprestaram guio como minhas! / Quanto que me emprestaram, ai de
mim!, eu próprio sou!(PAC, p. 161, v. 18-19). Alternam-se sujeito e objeto na
posição de agente: “Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?
Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel empretado que eu guio?”
(PAC, p. 162, v. 35-36)
A viagem em busca da promessa de uma felicidade que elimine a angústia,
uma vez mais revela algo que já pontuamos anteriormente, “a consciência de que
os outros podem [ser felizes]” (BERARDINELLI, 2004, p. 176) mas ele, não.
Segundo Cleonice Berardinelli (2004, p. 176),
É essa consciência que o faz transferir seu ponto de vista para os outros, para quem
a felicidade também está fora do alcance da mão; do “volante do Chevrolet pela
estrada de Sintra” [Cf. PAC, p. 160, v. 1] vê um casebre à margem da estrada e
pensa: “A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha” [PAC, p. 161, v. 27],
acrescentando: “Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é
feliz.[PAC, p. 161, v. 28]
A aproximação do ponto de chegada, contudo, não alivia o seu coração
insatisfeito, que permaneceu à porta do casebre. Fica-se, portanto, à deriva de si
mesmo: “Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra, / Na estrada de
Sintra, cada vez menos perto de mim...(PAC, p. 162, v. 49-50). O paralelismo
dos versos finais e a substituição de dois vocábulos – de mais, pelo seu oposto
menos e de Sintra por de mim – indicam de maneira clara o que dissemos. O que
deseja alcançar nesta viagem pela estrada, guiando o Chevrolet, não é tanto Sintra
mas ele mesmo.
4.2
“O que quero é levar prà Morte / Uma alma a transbordar de Mar”
Ô Mort, vieux capitaine, il est temps! levons l’ancre!
Charles Baudelaire
(1972, p. 128)
Se, como diz Cleonice Berardinelli (2004, p. 344), “a vida é uma viagem, ou
esta é a metáfora que o poeta encontra para definí-la, acrescentamos que, sem
dúvida, a viagem também serve de metáfora para o instante limite da vida, isto é,
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74
a morte. Como afirmamos antes, a viagem na poesia de Campos é sobretudo
metafórica, representando mais um percurso existencial do que um deslocamento
espacial, por isso, não poderíamos deixar de abordar a “longa viagem” (Cf. PAC,
p. 126, v. 25) para o “outro lado do Mundo.” (Cf. PAC, p. 128, v. 11). Alguns
poemas do heterônimo prestar-se-iam a esta análise, mas nos decidimos pelos três
cujo título comum é “A Partida”.
Na esperança de realizar o projeto de Álvaro de Campos de um livro
chamado Arco de Triumpho, a professora Cleonice Berardinelli pesquisou o
espólio do poeta. A maior parte dos textos citados no projeto do livro já era
conhecida do público, através da edição da Ática; outros, contudo, permaneciam
inéditos. Eram eles: “Carnaval, “A Partida” e “Arco de Triunfo. No momento,
interessamo-nos em saber como foi a “descoberta” de “A Partida”:
Cheia de esperança, prossegui meu caminho ao longo dessa fascinante estrada 71
[era o número da cota de uma pasta o Espólio na Biblioteca Nacional de Lisboa]
onde, a cada paragem – cada nova folha – eu passava da surpresa à admiração.
Assim, cheguei ao número 16, manuscrito: seu título era – e eu não acreditava em
meus olhos – “A Partida. Alguns passos adiante e o título se repete; outros passos
ainda, e eis um terceiro poema do mesmo nome. (BERARDINELLI, 2004, p. 363)
Assim, ficamos sabendo, ainda, que “nestes três novos poemas, a viagem
tem a Morte por destino.(BERARDINELLI, 2004, p. 363), ou seja, é cantada
aquela partida de onde não é mais possível regressar. Segundo Maria Luísa Guerra
(s.d., p. 44), “somos apenas o que fomos e assim atingimos no tempo um absoluto
ter-sido. Este “absoluto ter-sido, como veremos adiante é o resultado de tudo
aquilo que fomos e do que deixamos de ser. Podemos dizer, portanto, que, no
instante limite da morte, outrora e agora “encontram-se, chegando a um ponto
comum.
Num dos poemas – o que vem por último na ordem de publicação escolhida
por Cleonice Berardinelli – os versos descrevem o momento anterior à partida e a
reflexão que assoma ao sujeito neste momento.
Agora que os dedos da Morte à roda da minha garganta
Sensivelmente começam a pressão definitiva...
E que tomo consciência exorbitando os meus olhos,
Olho pra trás de mim, reparo p'lo passado fora,
Vejo quem fui, e sobretudo quem não fui,
Considero lucidamente o meu passado misto
E acho que houve um erro
Ou em eu viver ou em eu viver assim.
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Será sempre que quando a Morte nos entra no quarto
E fecha a porta a chave por dentro,
E a cousa é definitiva, inabalável,
Sem Cour de Cassation para o seu destino findo,
Será sempre que, quando a meia-noite soa na vida,
Uma exasperação de calma, uma lucidez indizida
Acorda como uma cousa anterior à infância no seu partir?
(PAC, p. 129-130, v. 1-15)
O que viera à sua cabeça, quando a Morte já entrara no quarto, fechara a
porta, pusera os dedos à roda da sua garganta e ele percebera que não havia mais
recurso, fora justamente o seu passado. Neste passado, interessa o que foi, mas
sobretudo o que não foi. Citemos, uma vez mais, as palavras de Maria Luísa
Guerra (s.d., p. 62-63),
De facto, o poeta não se limita a evocar um passado univalente e monótono,
passado realmente “acontecido” e por isso ainda determinante do presente. Ao lado
dessa dimensão insinua uma rede incalculável de múltiplas possibilidades
frustradas, possibilidades que descrevem a área enigmática do que poderíamos ter
sido e não fomos. Essa área, apesar de meramente hipotética, nem por isso deixa de
nos determinar também porque, como bem acentua, se o homem foi o que é nem
por isso deixa de ser o que não foi. Resultamos do que fizemos e do que não
fizemos, embora evidentemente por diversos caminhos.
A sua vida significou apenas a morte da possibilidade de realização dos seus
sonhos: “Olho com uma espécie de alegria da lucidez completa / Para a falência
instintiva que jazeu na minha vida.(PAC, p. 130, v. 23-24). “Os projectos
continuamente adiados escrevem portanto uma raiz falhada, e não obstante
fecunda, do nosso próprio ser.” (GUERRA, s.d., p. 47). O momento de lucidez
proporcionado pelo instante em que “a meia-noite soa na vida” serve de motivo
para uma interpelação ao Mestre, Alberto Caeiro, aquele que conheceu, mas diz
ter abandonado. Na representação do limite extremo da vida, reconhece este o erro
e chora, talvez, se tivesse continuado a seguir os passos do Mestre, talvez sua vida
não tivesse sido “falência sem fim” (Cf. PAC, p. 131, v. 36). Por fim, desfaz a
ficção daquele momento, erguendo-se “das almofadas quase cómodas” e voltando
ao seu “remorso sadio.” (Cf. PAC, p. 131, v. 38-39).
A morte não propicia apenas a lucidez do gesto de voltar o olhar ao passado,
é também revelação do novo: “Salve, ó novas cousas, a acontecer-me quando eu
morrer, / Nova mobilidade do universo a despontar no meu horizonte” (PAC, p.
126, v. 22-23). Este poema inicia-se com uma extensa enumeração que lembra
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certas odes – “Saudação a Walt Whitman” e “A Passagem das Horas”- marcadas
pelo sensacionismo. “Ao fim de todos os sujeitos enumerados (ou antes, da
multiplicação de um mesmo sujeito através de numerosos apostos), vem o verbo
principal: ‘Eu morrerei assim? [...]’” (BERARDINELLI, 2004, p. 365-366) A
pergunta é respondida com uma negativa – “Não: o universo é grande” (Cf. PAC,
p. 126, v. 17) – e com a promessa de que “a morte revelará cousas absolutamente
inauditas...(PAC, p. 126, v. 20)
A excitação sensacionista também marca o terceiro – primeiro na ordem de
publicação - dos poemas de “A Partida”: “Ave atque vale, ó assombroso universo!
/ Ave atque vale, de que diversa maneira / É que eu te verei, e será
definitivamente(PAC, p. 128, v. 1-3). É “com o coração confrangido, a alma
ansiosa, o olhar vago” que se dará a partida definitiva: “Partirei para aquele teu
aspecto que a Morte deve revelar-me” (PAC, p. 128, v. 11). Será na morte que
uma face do universo se revelará de outra forma, porque a morte é a libertação da
forma - “como uma capa que me prenda” (PAC, p. 128, v. 24). A morte é buscada
como um abrigo, ergue os braços para ela “como uma criança/ Do colo da ama
para o aparecimento da mãe...(PAC, p. 129, v. 36-37).
Segundo Cleonice Berardinelli (2004, p. 364), “aqui, também, é a partida
definitiva para a Morte que, ela só, dará acesso a esse lado do Universo que o
poeta ainda não conhece.” Mais adiante, acrescenta:+
Por ela, abandona sem pena todo o transitório, porque nela encontra toda a
segurança do definitivo. Nenhum receio em face do mistério (a palavra, tão
freqüente neste heterônimo, nem é pronunciada), nenhuma angústia metafísica,
nenhuma nostalgia dilaceradora; em seu lugar, o alor confiante na viagem, sem
pena do que deixa atrás de si. (BERARDINELLI, 2004, p. 365)
Esta visão do “assombroso universo, do “Universo espontâneo!, portanto,
só poderá ser vislumbrada depois da morte, quando não há presente a viver,
passado a recordar ou futuro a esperar.
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Conclusão: a chegada?
[...] e nós estamos-lhe gratos por ter pintado portas falsas no seu muro
intransponível, pois só em sonhos saímos do espaço inumano que nos cerca.
Eduardo Lourenço
(LOURENÇO, 1983, p.158)
O caráter de minha mente é tal que odeio os começos e os fins das coisas, porque
são pontos definidos.
Fernando Pessoa
(PESSOA, 2004, p.39)
Fernando Pessoa é sem dúvida um poeta que podemos chamar de genial.
Seu raciocínio é misterioso, intrincado, provisório, inacabado, lacunar e fingido
no sentido etimológico deste verbo. A etimologia do verbo fingir está no latim
fingere, que entre tantas definições pode significar modelar em barro; formar com
qualquer substância plástica; formar; representar; esculpir. O poeta esculpe com
palavras a sua literatura e a sua personalidade. É a palavra poética quem dá vida
aos heterônimos Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e ao próprio
poeta ortônimo. Ao semi-heterônimo Bernardo Soares, é a prosa-poética do Livro
do Desassossego quem traz à luz. Pois, são os textos que inscrevem os
heterônimos no mundo.
Situar em seu tempo, esse conturbado início do século passado, a obra deste
genial poeta, mas também prosador e grande pensador da cultura, significa dizer
que o meio literário português contou com a criação de uma revista, Orpheu, que
divulgou, em seus dois números, essa moderna poesia, cujo objetivo era
transformar a cena cultural. Contudo, mais do que texto impresso, Orpheu
representou uma “revolução poética” (Cf. LOURENÇO, 1974, p. 170), sendo uma
das razões que o credenciara a maneira pessoana de escrever poesia, a sua famosa
“proliferação em poetas” (LOURENÇO, 2003, p. 28). Apesar de não se resignar
com a ruptura sofrida pelo sujeito, conforme defende Eduardo Lourenço (1983, p.
164), Pessoa entende que a saída possível é construir na poesia os diversos eus e
levar a cabo a sua própria frase: “Sê plural como o universo!”.
Sendo Fernando Pessoa um “poeta dramático escrevendo em poesia lírica”
(PESSOA, 2004, p. 87), deduz-se que a leitura da poesia como verdade daquele
que a escreveu é aqui vedada, pois a criação heteronímica impede uma associação
entre o eu empírico e o eu poético. Como já dissemos, a poesia moderna, segundo
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Hugo Friedrich (1978, p. 14), guarda a singularidade de prescindir da experiência
realmente vivida pelo artista. Sendo assim, tomamos o eu da poesia pessoana
como uma construção. Ou seja, na escritura da sua poesia, constrói-se um eu
incomodado pelas incertezas da modernidade.
Seria bastante arriscado tentar mapear esta construção no conjunto da poesia
de Fernando Pessoa; por isso, escolhemos como objeto de estudo – ou por ele
fomos escolhidos – os poemas de Álvaro de Campos, o que coube ser aquele que
deseja sentir tudo de todas as maneiras, ser aquele em que Pessoa diz, em carta a
Casais Monteiro, ter posto toda a emoção que não dava nem a si e nem à vida.
Partindo da convicção de que Álvaro de Campos é um “poeta-texto” (Cf.
BERARDINELLI, 2004, p. 262-278 & LOURENÇO, 2003), buscamos analisar a
sua produção na perspectiva da construção do eu marcado pela tensão entre o
outrora e o agora.
A poesia de Álvaro de Campos, segundo Cleonice Berardinelli, pode ser
dividida em duas fases: a primeira, que é o momento dos ismos e das sensações;
a segunda, mais durável na sua produção poética, cujos versos mostram um eu
afligido pelos sentimentos de melancolia, angústia, tédio e náusea, demonstrando
um estado de abulia, cansaço e desânimo da vida.
Resolvemos tomar outrora e agora, vocábulos que habitam insistentemente
a poesia de Campos, como representação desta falha que se processou entre o eu
da infância e o da maturidade. Sendo assim, acreditamos que a nossa investigação
objetivou partir sempre da leitura da poesia para descobrir até onde chegávamos.
Logo, não podemos entender outrora e agora como simples palavras que
substituem passado e presente, pois não é assim que se processa a nossa análise.
Dois momentos do nosso trabalho explicam bem o que estamos dizendo: o agora,
como metáfora da modernidade, na “Ode Triunfal, e o outrora como metáfora da
criação poética, ou seja, do poeta que anseia por vestir a máscara da criança e
poder fingir ser o que desejar.
O estudo dos poemas de Álvaro Campos levou-nos também ao encontro dos
traços do outrora e do agora na construção deste eu crivado pela modernidade,
que tem duas vidas, a sonhada na infância e a prática e útil do mundo do adulto. O
tédio, o cansaço, a melancolia, a angústia são sentimentos que vêm acometer o eu
do presente, do agora. Em contrapartida, a infância, o outrora, é um lugar de
aconchego, é o lar das tias velhas, é o tempo em que se comemorava o dia dos
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seus anos, em que ele era feliz e ainda ninguém havia morrido. No agora, a
felicidade está apenas fora dele, está dentro das casas que ele só vislumbra pela
janela, mas onde não pode entrar, pois, se entrar, ela já não estará mais lá.
Retomando a nossa epígrafe, podemos dizer que os versos do heterônimo vão ao
encontro dos ortônimos de Pessoa: “Com que ânsia tão raiva / Quero aquele
outrora! / E eu era feliz? Não sei: / Fui-o outrora agora.” No agora, acredita-se
que outrora era feliz, por isso, a busca incessante do eu do passado, que ainda não
havia sido derrotado e não vivia a frustração por saber que falhara na vida.
Esta viagem ao interior de si mesmo, que se realiza na poesia de Campos,
ou seja, o seu marcante subjetivismo, leva-nos a fazer uma correlação com a
fragmentação do sujeito na modernidade do início do século XX, sabendo, é claro,
das distorções da imagem da realidade no espelho da poesia. Isto porque, não é
mais possível no agora sonhar com a inteireza que havia outrora. O retorno à
infância parece ser a garantia de que estariam reunidos os restos, os resíduos
daquilo que fora, contudo, isto não se confirmou, desfazendo o sonho de uma
retauração e perdendo a utopia do centramento.
A tensão existente entre outrora e agora, no entanto, não quer dizer uma
ruptura total entre o que fora e o que é, já que, por vezes, a criança que ficou
guardada dentro de si retorna. Neste sentido, é valido citarmos novamente o
poema “Depus a máscara e vi-me ao espelho, pois nele recupera-se o passado,
que permanece no seu íntimo.
Depus a máscara e vi-me ao espelho...
Era a criança de há quantos anos...
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que fica,
A criança.
Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor.
Assim sou a máscara.
E volto à normalidade como a um terminus de linha.
(PAC, p. 209-10)
Há vantagens em saber tirar a máscara: a criança reaparece, trazendo um
passado que passou, mas continua presente, ou seja, “fica”. Sabemos, então, que
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tornar a pôr a máscara não elimina o passado, que permanece, apenas encoberto,
mas a atitude possível ao adulto é retornar sempre “à normalidade como a um
terminus de linha., assumindo a máscara que apenas encobre a criança, sem
destruí-la.
Depois de tudo o que dissemos, acreditamos que o melhor fecho para nossa
dissertação será este verso que carrega a genialidade de toda a poesia pessoana:
“Assim sou a máscara.”
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