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perfume de soslaio para a nossa atenção. O espaço todo estava levemente
inclinado, como se Deus, por uma astúcia de brincadeira, o tivesse levantado do
lado das almas; e nós sofríamos a instabilidade do jogo divino como crianças que
apreciam as partidas que lhes fazem, porque são mostras de afeição. Foram belas
essas horas que vivemos juntos. Nunca tornaremos a ter essas horas, nem esse
jardim, nem os nossos soldados e os nossos barcos. Ficou tudo embrulhado no
papel de seda da nossa recordação de tudo aquilo. Os soldados, pobres deles, furam
quase o papel com as espingardas eternamente ao ombro. As proas dos barcos estão
sempre para romper o invólucro. E sem dúvida que todo o sentido do nosso exílio é
este – o terem embrulhado os brinquedos de antes da Vida, terem-nos posto na
prateleira que está exatamente fora do nosso gesto e do nosso jeito. Haverá uma
justiça para as crianças que nós somos? Ser-nos-ão restituídos por mãos que
cheguem aonde não chegamos os nossos companheiros de sonho, os soldados e os
barcos? Sim, e mesmo nós próprios porque nós não éramos isto que somos...
Éramos duma artificialidade divina...
Escrevo e divago, e tudo isto parece-me que foi uma realidade. Tenho a
sensibilidade tão à flor da imaginação que quase choro com isto, e sou outra vez a
criança feliz que nunca fui, e as alamedas e os brinquedos, e apenas, no fim de
tudo, a supérflua realidade da Vida...
Perdoe-me que lhe escreva assim... A Vida, afinal, vale a pena que se lhe
diga isto. Deus escuta-me talvez, mas de si ouve, como todos que escutam. A
tragédia foi esta, mas não houve dramaturgo que a escrevesse... (PESSOA, 2004, p.
272)
Estas palavras nos confirmam aquilo que vínhamos dizendo, não
exatamente por serem de Fernando Pessoa, mas porque são as de crítico e também
de poeta.
Pessoa e Montalvor têm um “comum horror à Realidade” e, contrapondo-se
a ela, acreditavam, como crianças, que “os soldados de chumbo e os barcos de
latão tinham uma realidade mais preciosa e esplêndida que os soldados-gente e os
barcos reais.” Entretanto, os brinquedos, coisas nas quais eles punham os seus
sonhos, lhes foram retirados e só restou falar sobre eles para que ficassem sendo
seus novamente. A sua poesia, portanto, combate “os soldados-gente e os barcos
reais” em favor dos “soldados de chumbo e [d]os barcos de latão” para que de
tudo não se fique a dizer apenas a “supérflua realidade.”
O que vimos tentando dizer até agora é que na poesia moderna não há uma
negação da realidade, mas uma outra apropriação desta. A referencialidade existe,
mas é como se o poeta saltasse da plataforma do real e se jogasse com as asas
abertas para a imaginação, sem contudo perder de vista o ponto de retorno.
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Diante disso, não pudemos deixar de especular, a partir da data possível do manuscrito, 1914,
que os soldadinhos e os barcos poderiam vir a ser também uma referência à Primeira Guerra
Mundial. Em carta escrita a Cortes Rodrigues, em 2 de setembro de 1914, Fernando Pessoa
demonstra a influência da guerra no seu pensamento e no seu espírito. O poeta escreve o seguinte:
“Mau grado a alguma depressão constante desde que lá fora é guerra, tenho passado com razoável
calma pela ilusão sucessiva dos dias.” (PESSOA, 2004, p. 45) Podemos citar, ainda, um poema
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