Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARA
AS RACIONALIDADES SUBSTANTIVAS NO DEBATE SOCIOAMBIENTAL E NA
GESTÃO DAS ÁGUAS: INDAGAÇÕES EPISTEMOLÓGICAS.
CURITIBA
2005
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
ii
JOSÉ EDMILSON DE SOUZA LIMA
AS RACIONALIDADES SUBSTANTIVAS NO DEBATE SOCIOAMBIENTAL E NA
GESTÃO DAS ÁGUAS: INDAGAÇÕES EPISTEMOLÓGICAS.
Tese para obtenção de título de Doutor,
apresentada junto ao Programa de Doutorado em
Meio Ambiente e Desenvolvimento, Universidade
Federal do Paraná, sob orientação dos
Professores Doutores Dimas Floriani, Ademar
Heemann e José Robson da Silva.
CURITIBA
2005
ads:
iii
FOLHA DE APROVAÇÃO
iv
DEDICATÓRIA
Dedico a presente tese à memória de Jamil
José Maciel, um autêntico guerreiro espartano
da contemporaneidade que orientou sua intensa
e instigante existência pelas racionalidades
substantivas.
AGRADECIMENTOS
O primeiro bloco de agradecimentos é dirigido ao Comitê não apenas de
Orientação, mas sobretudo de Inspiração inter-multi-transdisciplinar da tese:
Professor Doutor Ademar Heemann, um blogo filosofante;
Professor Doutor Dimas Floriani, um sociólogo “biologizante”;
Professor Doutor José Robson da Silva, um jurista simpatizante da
Deep
Ecology
.
Sem um comitê com tais características, simplesmente a tese não seria
possível.
O segundo bloco de agradecimentos vai para o Programa de Doutorado em
Meio Ambiente e Desenvolvimento, simplesmente por se caracterizar como
possibilidade objetiva de ampliação de espaços para pesquisas orientadas por
novas racionalidades. Um agradecimento especial à Professora Doutora Maria do
Rosário Knechtel, pela inesgotável e inefável generosidade de quem orienta sua
existência a partir das racionalidades substantivas.
O terceiro bloco vai para meu grupo seleto e secreto de amigos
inesquecíveis e inseparáveis, o “Reino Encantado de Moceteque”. Sem eles e sua
silenciosa, mas efetiva solidariedade, essa tese não teria a seiva e o sangue que
tem.
O quarto bloco de agradecimentos é para a quinta turma do Programa de
Doutorado em Meio Ambiente, pelos momentos de intenso “resgate da
substantividade” vivenciados à margem dos compromissos acadêmicos, mas
fundamentais para os mesmos.
O quinto bloco de agradecimentos é nominal, os colegas da linha de
pesquisa “Epistemologia Ambiental”: Carlos, Icléia, Lílian e Wilma. Cada um deles,
com as singularidades de cada sistema de saber que representam, emerge na tese
como bafejos de racionalidades substantivas.
O sexto bloco é especial porque é dirigido a uma pessoa muito especial,
Sandra, pela paciência e pelo esmero com que leu, releu, criticou e elogiou cada
mensagem aqui contida. Sem ela, a tese também não seria possível.
vi
EPÍGRAFES
“As racionalidades substantivas são
flores que podem emergir a despeito das
pressões dos espinhos que as rodeiam” .
A água é essencial para a vida. A
civilização é, em parte, um diálogo entre o
homem e a água” (Indira Gandhi, ex-primeira
ministra da Índia).
vii
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 - RACIONALIDADES SUBSTANTIVAS E INSTRUMENTAIS........... 61
QUADRO 2 - ELEMENTOS CONSTITUINTES E CONSTITUTIVOS DAS
RACIONALIDADES ......................................................................... 63
QUADRO 3 - OBJETIVOS SOCIOAMBIENTAIS E SOCIOECONÔMICOS ......... 64
QUADRO 4 - RIQUEZA E POBREZA DAS NAÇÕES EM ÁGUA .......................... 64
QUADRO 5 - RIQUEZA E POBREZA DAS NAÇÕES EM ÁGUA (
COMPLEMENTO
) 65
QUADRO 6 OBRAS SELECIONADAS................................................................. 76
QUADRO 7 INDICADORES DAS RACIONALIDADES SUBSTANTIVAS NA
GESTÃO DAS ÁGUAS NA ALEMANHA ....................................... 170
QUADRO 8 INDICADORES DAS RACIONALIDADES SUBSTANTIVAS NA
GESTÃO DAS ÁGUAS NA FRANÇA ........................................... 178
QUADRO 9 SÍNTESE FINAL DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS E
CONSTITUINTES DAS RACIONALIDADES SUBSTANTIVAS NAS
EXPERIÊNCIAS ALEMÃ E FRANCESA DE GESTÃO DAS
ÁGUAS............................................................................................ 180
viii
RESUMO
A presente tese discute e tenta explicitar a presença das racionalidades
substantivas no debate socioambiental contemporâneo e nas experiências alemã e
francesa de gestão das águas. Para enfrentar tamanhos desafios, recorre a matrizes
epistemológicas e metodológicas centradas na complexidade dos sistemas vivos.
Aponta pistas conclusivas de que nas experiências de gestão das águas analisadas,
a presença de alguns elementos constitutivos e constituintes das racionalidades
substantivas emerge muito mais como alavancas que obstáculos ao progresso
socioambiental pleno das comunidades envolvidas. Deixa em aberto um repertório
de questões que possibilitará o aperfeiçoamento do “modelo” de análise das
experiências de gestão das águas sugerido.
ix
ABSTRACT
The current thesis is a civilizatory discussion about the substantive
rationalities and your impact over the contemporary socio-environmental discussion
and the experiences of management of water in two European nations: Germany and
French. The epistemological and methodological strategies were associated to the
complexity of the alive systems. It concludes that the absence of substantive
rationalities in some experiences of management of water is an obstacle to the socio-
environmental progress of the communities involved. Finally the thesis will introduce
new questions to improve the analysis “model “ of the experiences of management of
water showed here.
SUMÁRIO
LISTA DE QUADROS
................................................................................
VII
RESUMO
...................................................................................................
VIII
ABSTRACT
...............................................................................................
IX
INTRODUÇÃO
...........................................................................................
1
PARTE I
AVENTURAS EPISTEMOLÓGICAS E METODOLÓGICAS
CAPÍTULO 1 - PERSPECTIVAS EPISTEMOLÓGICAS E PISTAS
METODOLÓGICAS
..........................................................
8
1.1 PERGUNTA DE PARTIDA
..................................................................
8
1.2. RACIONALIDADES: GÊNESE E DESDOBRAMENTOS
............................
9
1.2.1. Racionalidades: Por que Substantivas?............................................
9
1.2.2. Comentários sobre as Racionalidades na Filosofia.........................
10
1.2.2.1 O mundo antigo e o início das disputas de racionalidades ...........
10
1.2.2.2. O mundo moderno e alguns espaços para racionalidades
marginais .
11
1.2.3. Comentários sobre as Racionalidades na Sociologia .....................
13
1.2.3.1. Weber e a “universalidade” das racionalidades instrumentais .....
13
1.2.4. Comentários sobre as Racionalidades nas Organizações ...............
13
1.2.4.1. Guerreiro Ramos e a Teoria da Delimitação dos Sistemas Sociais
..
14
1.2.4.2. Serva e a complementaridade entre racionalidades substantiva e
comunicativa ..........................................................................................
15
1.2.4.3. Novos estudos sobre as racionalidades substantivas ..................
16
1.2.5. Comentários sobre as Racionalidades na Antropologia Econômica
17
1.2.5.1. Godelier e a “singularidadedas racionalidades do mercado ......
17
1.2.6. Comentários sobre as Racionalidades na Economia .......................
17
1.2.6.1. Amartya Sen e o desenvolvimento como expressão da liberdade
substantiva ...............................................................................
19
1.2.6.2. Giannetti e a ética como alavanca para a riqueza das nações .....
24
1.2.7. Comentários sobre as Racionalidades nas Abordagens Inter-
transdisciplinares ............................................................................
26
1.2.7.1. Heemann e a abordagem da “Biologia Filosofante” ....................
26
1.2.7.2. Silva e a passagem do patrimônio privado ao ambiental ............
28
1.2.7.3. Leff e a “Racionalidade Ambiental” ..............................................
29
1.2.7.4. Capra e as “conexões ocultas” entre natureza e sociedade ........
31
1.2.7.5. Morin e o “reencantamentodas racionalidades ..........................
35
1.2.7.6. Floriani e a “epistemologia da transgressão” ...............................
38
1.2.8. Comentários sobre as insuficiências da Abordagem de Weber..
44
1.2.9. Comentários sobre as Insuficiências de Guerreiro Ramos e Serva
44
xi
1.3. RACIONALIDADES SUBSTANTIVAS E GESTÃO DE RECURSOS
NATURAIS
........................................................................................
45
1.4. RACIONALIDADES SUBSTANTIVAS E GESTÃO DAS ÁGUAS
....
46
1.4.1. Gestão das Águas no Brasil e no Mundo: escassez de água ou de
criatividade? ...................................................................................
46
1.4.2. Disputa de Racionalidades na Gestão das águas em Curitiba .......
55
1.5. CONTRIBUIÇÃO DA PRESENTE PESQUISA PARA O DEBATE
DAS RACIONALIDADES NA GESTÃO DAS ÁGUAS
..................
59
1.6. QUADRO ANALÍTICO: OPERACIONALIZAÇÃO DAS
RACIONALIDADES
.......................................................................
60
PARTE II
AS RACIONALIDADES NO PROGRAMA DE DOUTORADO EM MEIO
AMBIENTE DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
CAPÍTULO 2 -
ALGUMAS CONDIÇÕES DE FORMAÇÃO DO DOUTOR
EM MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO
67
2.1. LIMITES DA
DOCE
RAO
........................................................
68
2.2. A CONVERSÃO DO SOCIOAMBIENTALISMO
...........................
69
CAPÍTULO 3 DESAFIOS DA INTERDISCIPLINARIDADE
................
75
3.1. POR QUE COMPLEXIDADE?
.........................................................
77
3.2.COMPLEXIDADE AMBIENTAL CATEGORIAS E AUTORES
.......
78
3.2.1. Articulação da Abordagem de Héctor Ricardo Leis com a Noção de
Complexidade .....................................................................
78
3.2.2. Articulação da Abordagem de Fritjof Capra com a Noção de
Complexidade ..............................................................................
79
3.2.3. Articulação da Abordagem de Leff com a Noção de Complexidade
81
3.2.4. Articulação da Abordagem de Déleage com a Noção de
Complexidade................................................................................
82
3.2.5. Articulação da Abordagem de Heller/Féher com a Noção de
Complexidade................................................................................
82
CAPÍTULO 4 AS RACIONALIDADES NAS FORMULAÇÕES DE
GUERREIRO RAMOS E LEFF
.....................................
88
4.1. PISTAS ACERCA DAS ORIGENS DA RAZÃO E
DESDOBRAMENTOS MODERNOS
.............................................
88
4.2. A RAZÃO MODERNA
.....................................................................
91
4.3. A RACIONALIDADE SUBSTANTIVA
............................................
93
4.4. A RACIONALIDADE AMBIENTAL
95
xii
CAPÍTULO 5 ECOLOGIA “NÃO “ HUMANA OU SOCIOLOGIA “NÃO
ECOLÓGICA? O DIFÍCIL DIÁLOGO DOS SABERES
......
104
5.1. GÊNESE DA ECOLOGIA HUMANA
................................
104
5.2. ECÓLOGOS VERSUS ECOLOGISTAS
........................................
106
5.2.1. Delimitação dos sistemas do saber ou “reserva de mercado”? ....
107
5.2.2. Como captar os sentidos das ações de quem não consegue falar?....
109
5.3. A CAPACIDADE DE “ENSIMESMAR-SE” COMO ESPECIFICIDADE
HUMANA
.......................................................
111
5.3.1. A ecologia e a construção de suas verdades ..............................
113
CAPÍTULO 6 ECONOMIA AMBIENTAL, ECOLÓGICA E MARXISTA
VERSUS
RECURSOS NATURAIS
..............................
116
6.1. INDICADORES DA CRISE SOCIOAMBIENTAL
..........................
118
6.2. ECONOMIA AMBIENTAL E RECURSOS NATURAIS
...................
120
6.3. ECONOMIA ECOLÓGICA E RECURSOS NATURAIS
...................
123
6.4. ECONOMIA MARXISTA E RECURSOS NATURAIS
......................
125
CAPÍTULO 7 ÉTICA, NATUREZA E A INSISTENTE BUSCA DO
FUNDAMENTO ÚLTIMO
.........................
129
7.1. QUESTÕES DE PARTIDA
...............................................................
129
7.2. HEGEL E AS BASES FUNDADORAS DO DARWINISMO
............
129
7.3. WEBER E A REJEIÇÃO DO FUNDAMENTO ÚLTIMO
..................
134
CAPÍTULO 8 A SOCIOLOGIA E A EXCLUSÃO DA
NATUREZA
.....................................................................
139
8.1. O FRACASSO DO DETERMINISMO GEOGRÁFICO E BIOLÓGICO
139
8.2. A EMERSÃO DA CULTURA
...........................................................
141
8.3. A CAMINHO DE UMA SOCIOLOGIA AMBIENTAL DE 1970 A 1995
143
8.3.1. A Sociologia Ambiental e as Abordagens Teóricas ....................
143
8.4. A EXPLICAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA
.................................
144
8.5. O AUMENTO DA CONSCIÊNCIA E DOS MOVIMENTOS
AMBIENTAIS
145
8.6. TEORIA SOCIAL, DEGRADAÇÃO DO AMBIENTE E POLÍTICAS DE
AMBIENTE
......................................................................................
145
CAPÍTULO 9 CIÊNCIAS SOCIAIS E DIREITO AMBIENTAL: UM
ENCONTRO SUBSTANTIVO DE SABERE
149
9.1. O DIREITO E O DUALISMO
...........................................
150
xiii
9.2. A CIVILIZÃO DUALISTA E A EMERGÊNCIA DE UM DIREITO
SUBSTANTIVO
...............................................................................
151
9.3. O DIREITO SUBSTANTIVO E O VALOR ECONÔMICO DA ÁGUA
153
9.4. A COMPLEMENTARIDADE ENTRE BIOCENTRISMO E
ANTROPOCENTRISMO NO DIREITO .
........................................
153
9.5. AS NOÇÕES DE “MÍNIMO PATRIMONIALE LIBERDADE
SUBSTANTIVA
................................................................................
154
9.6 A FECUNDA NOÇÃO DE “SUPERAÇÃO”
.......................................
155
PARTE III
AS RACIONALIDADES SUBSTANTIVAS NA GESTÃO DAS ÁGUAS
CAPÍTULO 10 EXPERIÊNCIAS DE GESTÃO DAS ÁGUAS
........
159
10.1. ALEMANHA
......................................................................................
159
10.1.1 Gestão Participativa das Localidades ............................................
161
10.1.1.1. Os agentes públicos
versus
privados ...............................
163
10.1.1.2. Publicização
versus
privatização ............................................
164
10.1.1.3. Gestão das águas na República Democrática Alemã ...............
164
10.1.1.4. Vantagens de uma gestão integrada .......................................
165
10.1.2. O Autofinanciamento ..............................................................
166
10.1.3. Legislação Socioambiental ...........................................................
167
10.1.3.1. Associações de gestores e peritos..............................................
168
10.1.3.2. A planificação ..................................................................
169
10.1.3.3. Instrumentos econômicos ........................................................
169
10.1.4. Síntese analítica da experiência alemã ......................................
170
10.2. FRAA
..................................................................
171
10.2.1. Gestão Participativa das Localidades ................................
172
10.2.2. Autofinanciamento........................................
175
10.2.3. Legislação socioambiental ............................................................
177
10.2.4. Síntese Analítica da Experiência Francesa ..................................
178
10.3 SÍNTESE FINAL
.............................................................
179
CAPÍTULO 11 CONSIDERAÇÕES FINAIS
.............................
182
REFERÊNCIAS
......................................................................
184
INTRODUÇÃO
As racionalidades substantivas e a gestão das águas são os temas da
presente tese. A pretensão é rastrear formas de materialização das racionalidades
substantivas no debate socioambiental contemporâneo e em experiências de gestão
das águas. O roteiro a seguir expõe abreviadamente objetivos e estratégias
metodológicas.
Roteiro abreviado contendo objetivos e estratégias metodológicas
PERGUNTA DE PARTIDA
1. Tomando como referência a pergunta de partida, recorre-se a abordagens pouco
ortodoxas para construir os quadros 1, 2 e 3 contendo definições e elementos constitutivos e
constituintes das racionalidades substantivas; os quadros servirão de modelos heurísticos
para dialogar com as teorias socioambientais e algumas experiências de gestão das águas.
OBJETIVO 1
Qual o objetivo em relação ao debate socioambiental?
2. Verificar se a ampliação do debate socioambiental está associada à emergência
das racionalidades substantivas a partir das fronteiras das racionalidades hegemônicas.
OBJETIVO 2
Qual o objetivo em relação às experiências de gestão das águas?
3. Verificar se o sucesso das experiências de gestão analisadas está associado à
ampliação de espaços para as racionalidades substantivas.
ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS
4. Para tanto, no item 2 recorre-se aos quadros 1, 2 e 3 para identificar seus
elementos no interior do debate socioambiental; e, no item 3, são utilizados os quadros 1, 2
e 3 para identificar as presenças dos elementos que constituem as racionalidades
substantivas.
Como ponto de partida, as racionalidades substantivas são aqui entendidas
como outros sistemas de crenças e valores que podem emergir a partir dos limites e
das insuficiências das racionalidades consideradas hegemônicas. Nas fronteiras
dessas últimas podem emergir outras possibilidades não apenas de diálogo, mas de
intervenção no mundo da vida. Essas outras lógicas são apreendidas como
racionalidades substantivas.
Outro conceito que perpassa toda tese é o de “campo científico”, formulado
por Bourdieu (1994) e fundamental para a compreensão das disputas de sentidos
em torno do debate socioambiental e nos processos de gestão das águas. Em cada
um dos capítulos, o conceito de “campode disputas entre as racionalidades servirá
de referência ao processo de explicitação das referidas disputas.
2
O conceito de gestão, construído a partir das teorias da administração, é
insuficiente para a presente abordagem, em função de suas origens mecanicistas. A
abordagem de temas socioambientais - sistemas vivos, portanto - impõe a
necessidade de um conceito capaz de enfrentar outros níveis de complexidade.
Gerir sistemas vivos não é o mesmo que gerir máquinas, pois se essas últimas
podem ser controladas, os primeiros, no máximo, são perturbados.
Trata-se de um estudo sintonizado com pesquisas diversas espalhadas por
todo o mundo, mas principalmente com o programa, com pretensões
interdisciplinares, de Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento da
Universidade Federal do Paraná.
Alguns exemplos de sintonia do presente estudo podem ser buscados nas
contribuições de Leff, Argueta e Porto Gonçalves (2002) sobre as experiências de
gestão dos patrimônios biossociais no Sul do México e na Arica Central. Outros
exemplos são os estudos sobre gestão de recursos naturais de Vieira e Weber
(2002) no Brasil e no mundo ou os de Barraqué (1995), sobre as políticas de gestão
das águas no continente europeu.
Além disso, especificamente sobre gestão das águas são inúmeras as
pesquisas catalogadas nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa
Catarina, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Ceará (FELICIDADE, MARTINS e LEME,
2001).
Ainda sobre as águas, o estudo de Tundisi (2003) que faz uma
verdadeira viagem por todos os continentes mapeando e identificando problemas
associados às águas.
Com características idênticas ao estudo de Tundisi, porém com enfoque
específico para as águas no Brasil existe o livro organizado por Setti (2001).
Dentre os diversos estudos sobre as águas realizados na UNICAMP,
merecem destaque os trabalhos de Cavini (2002) sobre a utilização de instrumentos
econômicos na gestão das águas; e o estudo de Carmo (2002) que associa a
demografia aos limites das águas.
No programa de Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento várias
teses já foram produzidas nos últimos dez anos enfrentando a temática das águas.
Dentre elas, estão as pesquisas de Lima (2000) sobre as ocupações irregulares em
3
áreas de mananciais e a de Tânia Miranda (2001) que aborda a temática da
qualidade das águas.
No que se refere à presença das racionalidades substantivas em
experiências de gestão pública, é possível selecionar as coletâneas organizadas por
Boaventura de Sousa Santos (2002). Lá são repertoriadas diversas experiências de
gestão centradas o em racionalidades instrumentais e verticalizadas, mas em
racionalidades consideradas marginais. São as racionalidades que orientam práticas
de intervenção das populações locais e historicamente excluídas dos processos e
fóruns de decisão. Mesmo sem ir à escola, muitos grupos espalhados pelo mundo
começam a protestar, começam a se organizar para tentar conquistar seus espaços
de participão na vida política.
Beck, Giddens e Lash chamam tais movimentos de “subpolíticose
orientados por “sub-racionalidades” que não querem se sujeitar às estratégias
sofisticadas de
déspotisme éclairé.
Os autores citados perceberam que a velha
ciência social, por continuar centrando suas perguntas nas racionalidades
instrumentais, tornam-se insuficientes e cegas para captarem outras racionalidades
que se materializam nas franjas das racionalidades instrumentais.
A despeito de nenhuma das pesquisas e textos citados tratarem
especificamente das racionalidades substantivas no debate socioambiental e na
gestão das águas, todos eles são fundamentais à presente tese à medida que, direta
ou indiretamente, permitem identificar as disputas entre as racionalidades tanto nos
domínios do debate socioambiental quanto no âmbito da gestão das águas.
Nesse sentido, fica reforçada a idéia de que o debate em torno das
racionalidades é mais atual do que se possa imaginar, exatamente porque sempre
esteve presente nas reflexões humanas. Da Grécia antiga - de Heráclito, Protágoras,
Sócrates, Platão, Aristóteles e Epicuro - aos dias atuais as reflexões em torno delas
sempre marcaram presença de forma imperativa.
As principais fontes inspiradoras da presente tese: Guerreiro Ramos, Max
Weber, Serva, Morin e Floriani são reputados alguns dos mais importantes. Suas
contribuições permitiram e abriram espaços à odisséia epistemológica a qual se
propõe a presente pesquisa.
Inicialmente, Guerreiro Ramos (1989) inaugura o aprofundamento da noção
de “racionalidade substantiva” ao recorrer a Aristóteles. Para ele, só existe uma
4
razão, a Razão Humana, definida como “força ativa da psique humanae como
dimensão natural da espécie humana.
Em seu trajeto intelectual, Guerreiro Ramos aponta a importância da
sociologia de Weber, como crítica vigorosa da racionalidade instrumental, que
sustenta a sociedade capitalista moderna. Entretanto, também ressalta que a análise
weberiana foi insuficiente no que se refere à racionalidade substantiva. A partir daí,
Guerreiro Ramos dedica-se aos estudos das organizações produtivas em busca de
elementos constitutivos dessa racionalidade pouco investigada em função do
predomínio da racionalidade instrumental.
Um de seus continuadores é Serva (1996) que, desde a década de 1980,
vem se ocupando do aperfeiçoamento de teorias das organizações a partir de bases
substantivas. A tese de doutoramento de Serva é uma demonstração das
complementaridades existentes entre a racionalidade substantiva de Guerreiro
Ramos e a racionalidade comunicativa de Habermas.
Trata-se de um estudo guiado por perguntas centradas não nas
racionalidades instrumentais, mas em racionalidades marginais, tais como podem
ser entendidas as racionalidades substantiva e comunicativa. Serva avança
conclusões que possibilitam novas pistas epistemológicas e estratégias
metodológicas capazes de orientar estudos centrados não apenas em antagonismos
dualistas, mas em termos de complementaridade sem negação dos conflitos.
Se, por um lado, as citadas fontes inspiraram a abordagem da presente tese,
por outro, a noção de racionalidade substantiva de Guerreiro Ramos o é suficiente
para o enfrentamento das temáticas socioambientais. Trata-se de uma categoria
atribuída exclusivamente à espécie humana, além de suas análises estarem
centradas, apenas, no sistema sociocultural. Em outros termos, ao falar em
racionalidade substantiva ou em Rao, Guerreiro Ramos está fazendo alusão à
espécie humana tão somente. Com isso, ele fecha o conceito negando outros níveis
de complexidade.
Para abrir não apenas o conceito de racionalidade instrumental, mas
também o de racionalidade substantiva, ninguém melhor que Morin (2003) com sua
sugestão de “racionalidade aberta”. A abertura da racionalidade é o equivalente do
movimento de “reencantamento” da mesma.
5
O “reencantamentoda racionalidade será acentuado com a “epistemologia
da transgressão” de Floriani (2003). A partir dessa será possível avançar novas
perguntas centradas fundamentalmente em racionalidades que coexistem junto às
racionalidades instrumentais sem necessariamente se submeterem. A expressão
“epistemologia da transgressão” precisa ser entendida não como negação, mas
como incorporação do desconhecido, pois é um convite à incerteza e à
complexidade dos temas socioambientais.
Isso posto, é necessário apresentar as seções que compõem a tese. São
três partes. A parte I contém um capítulo explicitando as aventuras epistemológicas
e metodológicas, isto é, os alicerces epistemológicos e as principais pistas
metodológicas da tese. As metodologias são constituídas e constituintes da própria
pesquisa à medida que emergem dos capítulos como fontes de inspiração para
outras metodologias.
Objetivamente, o resultado da primeira parte da tese é um “modelode
análise a ser utilizado na apreciação das possíveis presenças das racionalidades
substantivas nas experiências de gestão das águas, contidas nas outras duas
partes. Trata-se de um “modelo” que permite rastrear e identificar alguns elementos
constitutivos e constituintes das racionalidades substantivas no debate
socioambiental contemporâneo e em experiências concretas de gestão das águas.
A parte II é composta pelos capítulos de 2 a 9, todos explicitando algumas
possíveis materializações de racionalidades substantivas no interior do próprio
programa de Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento da Universidade
Federal do Paraná.
No capítulo 2 são apresentadas algumas condições de produção de um
candidato a Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento. Os capítulos de 3 a 9
revelam os enfrentamentos havidos ao longo do processo de formação. Neles
aparecem temas como Interdisciplinaridade e seus desafios, racionalidades no
debate ambiental, ecologia humana, natureza e ética, sociedade e natureza, direito
ambiental e outros.
A parte III contém apenas um capítulo explicitando as experiências alemã e
francesa de gestão das águas a partir das matrizes explicativas apresentadas na
parte I da tese. A identificação das racionalidades substantivas na gestão das águas
possibilita julgar se as mesmas atuam, de forma predominante, como alavancas ou
6
obstáculos para presentes e futuras experiências associativas. Além do que, permite
tornar visíveis as disputas perenes entre as racionalidades envolvidas na gestão à
medida que pode promover o “reencantamento” da própria gestão.
A tese, em suas considerações finais, tende a comprovar o que Bachelard
alertava na primeira metade do século XX: não há soluções simples para temas
socioambientais, mas respostas simplificadoras à medida que insistem em continuar
centradas nas racionalidades instrumentais. A presença das racionalidades
substantivas nas experiências de gestão das águas, embora não determinantes, são
decisivas à compreensão do possível êxito socioambiental e socioeconômico das
localidades envolvidas.
7
PARTE I
AVENTURAS EPISTEMOLÓGICAS E METODOLÓGICAS
A primeira parte da tese explicita os principais pressupostos teóricos e
epistemológicos, todos centrados na inseparabilidade entre sociedade e natureza,
corpo e mente. Trata-se de pressupostos orientados por abordagens com
pretensões de enfrentamento de níveis diversos de complexidade.
Para tanto, recorre-se a autores e abordagens que, direta ou indiretamente,
ocuparam-se de temas associados às racionalidades.
Da explicitação dos pressupostos epistemológicos e teóricos serão inferidos
alguns dos elementos constitutivos e constituintes das racionalidades instrumentais
e substantivas que servirão de modelos heurísticos (quadros 1, 2 e 3) a serem
utilizados nas partes II e III da tese.
O quadro 1 define e diferencia as racionalidades instrumentais das
substantivas. O quadro 2 explicita os elementos constitutivos e constituintes das
racionalidades instrumentais e substantivas; e o quadro 3 explicita os indicadores de
fracasso ou sucesso das experiências de gestão das águas analisadas.
8
CAPÍTULO 1
PERSPECTIVAS EPISTEMOLÓGICAS E PISTAS METODOLÓGICAS
INTRODUÇÃO
No presente capítulo são explicitados os principais alicerces epistemológicos
que sustentam esse estudo, acompanhados de algumas pistas metodológicas. Além
disso, é exposta a problemática em que o esforço aqui desenvolvido se insere e a
delimitação da contribuição que se pretende fornecer à continuidade dos estudos
sobre as racionalidades substantivas no debate socioambiental e em experiências
de gestão das águas, por intermédio de um quadro analítico.
Para atingir os objetivos acima, alguns estágios são trilhados a partir do
seguinte roteiro:
Em primeiro lugar, são feitas considerações sobre as racionalidades substantivas em algumas
matrizes epistemológicas tanto das ciências naturais quanto das sociais e humanas inseridas nos
debates da complexidade, destacadamente nas obras de Amartya Sen, Ademar Heemann, Fritjof
Capra, José Robson da Silva, Eduardo Giannetti, Edgar Morin e Dimas Floriani.
Em segundo lugar, são apresentadas algumas sínteses sobre experiências de geso de recursos
naturais e gestão das águas, destacando-se possíveis materializações de racionalidades
substantivas.
Alcançadas as duas etapas anteriores, são apresentados alguns “modelos” de alise que
permitem identificar elementos constituintes e constitutivos das racionalidades substantivas no
debate socioambiental, bem como em experiências de geso das águas.
1.1 A PERGUNTA DE PARTIDA
A mensagem da renomada dupla de estudiosos das problemáticas
metodológicas, Quivy e Campenhoudt (1988), é que a “pergunta de partidaé o que
se pode chamar de “sagrado“ em uma pesquisa. A justificativa deles é que a
“pergunta de partidaé o eixo capaz de orientar as respostas possíveis e redefinir a
própria pergunta. Trata-se, portanto, de um processo retroativo, pois pergunta e
resposta passam a interagir uma sobre a outra em um processo connuo e recíproco
de reelaboração.
Seguindo a recomendação da dupla, a primeira “pergunta de partidaque
serviu de referência para a presente pesquisa foi a seguinte:
A presença das racionalidades substantivas caracteriza-se como obstáculo ou
alavanca para o debate socioambiental e para a gestão das águas?
9
Na perspectiva epistemológica, o ponto de partida é a noção apresentada
por alguns autores que se aventuram a produzir conhecimento no campo da
complexidade de que o “métodoé um dos estágios sublimes da pesquisa. Sublime
porque é um dos momentos em que as teorias, no sentido antropológico, atualizam-
se, tornam-se ato ou permitem o conhecimento. Trata-se de uma percepção
dinâmica do “método”.
Ao contrário do que se possa pensar, o “métodoé o momento da
criatividade, é o indicador de abertura ou de “reencantamento” de uma teoria. Assim,
o pode ser confundido com uma fórmula fechada, pois se caracteriza como
possibilidade objetiva de retroagir sobre a teoria à qual está intimamente vinculado.
Na perspectiva “emricada pesquisa, a idéia era investigar a gestão das
águas no Estado do Paraná, tomando como referência os comitês de bacia
hidrográfica, tendo em vista que eles são a arena de disputa permanente das
racionalidades. A mudança de rota foi ocasionada em fuão do estágio ainda
embrionário dos comitês de bacia do Paraná. Fica para pesquisas futuras.
A partir daí ficou definido que as referências “empíricas” para a pesquisa
seriam duas experiências de gestão das águas de países europeus: Alemanha e
França. A escolha dos países citados justifica-se à medida que são duas
experiências consideradas bem-sucedidas nas perspectivas socioambiental e
socioeconômica. Além do que são experncias que permitem a identificação de
algumas formas de emergência das racionalidades substantivas nas disputas com
as racionalidades hegemônicas.
Também são explicitados alguns “métodos” usados em estudos sobre as
racionalidades substantivas, gestão de recursos naturais e gestão das águas,
categorias centrais para a presente tese.
1.2. RACIONALIDADES: GÊNESE E DESDOBRAMENTOS
1.2.1. Racionalidades: Por que Substantivas?
A definição consagrada de racionalidade como sistema de crenças e valores
que orienta as ações dos seres humanos contém outra afirmação: a de que a
racionalidade pode ser entendida como um diálogo da “mente” com dimensões da
“realidade”.
10
Para a presente tese, a referida definição é complementada com a idéia de
que o diálogo intenso do ser humano com o “realo se reduz a um diálogo da
“mente” como entidade metafísica e separada de sua materialidade, o “corpo” inteiro.
Nessa perspectiva, racionalidades substantivas são diálogos dos “corpos
com os ambientes, são diálogos que tanto se materializam em forma de
antagonismos e disputas empedernidas, como também em estratégias cooperativas.
1.2.2. Comentários sobre as Racionalidades na Filosofia
1.2.2.1 O mundo antigo e o início das disputas de racionalidades
A disputa de racionalidades não é uma novidade contemporânea. É possível
buscar suas raízes na acirrada desqualificação de padrões de pensamentos e
sistemas de crenças centrados em “mitose deuses variados, iniciada por Sócrates
(1999) e todos os seus seguidores, dentre os quais um dos mais ilustres, Plao
(1999). A noção hegemônica de Razão única foi construída e consolidada à base de
um sistemático processo de aniquilação de outras possibilidades de entendimento
da vida associativa.
o conhecidas as influências dessa idéia de uma Razão única na
consolidação de uma outra idéia, também hegemônica, a idéia de um Deus único, o
Deus do cristianismo.
Ao se admitir o predomínio da unidimensionalização, outras formas
possíveis de entendimento e de diálogo da mente humana com o mundo vivido
tendem a ser desprezadas ou caracterizadas como “anedotas”.
Sendo assim, os 2.600 anos de descoberta da Razão única, a rigor, serão
considerados 2.600 anos de disputas, desde que se admita que a crença na Razão
única não é suficiente para eliminar outras racionalidades.
Se a Razão única emergiu como tentativa de “educão das vontades
(CHAUÍ, 1999), de correção dos “vícios”, dos sentimentos e das paixões do ser
humano com vistas a uma vida “boa”, terminou cumprindo outra missão: acentuou a
educação para o cálculo contaminando quase todas as formas de experiências
associativas.
11
À medida que o homem passa a acreditar no
Homo, homini lupus
, isto é, que
o homem é o “lobo para o próprio homem” (MAQUIAVEL, 1989; HOBBES, 1999),
começa a fazer muito mais sentido a disputa e o predomínio da Razão única sobre
outras expressões das vontades humanas.
O “novo” homem que surge dessa disputa de racionalidades é responsável
pela idealização de um mundo que fragmenta tudo para tentar garantir e legitimar
seu domínio sobre o ambiente e, principalmente, sobre os demais indivíduos da
mesma estirpe. Note-se que, em um cenário com tais características é
compreensível a consolidação de uma “éticageneralizada da desconfiança.
As mentes de muitos que constituem e dirigem as instituições orientam-se
por meio da crença de que a ação “calculistaé incompatível com outros padrões de
pensamento. Está fundada a idéia de predomínio das racionalidades instrumentais,
que se tornam hegemônicas, sobre outras racionalidades consideradas marginais.
1.2.2.2 O mundo moderno e alguns espaços para racionalidades marginais
No contexto renascentista surgem as primeiras noções de que o homem é
“livre” e, portanto, principal responsável por suas ações e possíveis conseqüências.
Merecem destaques, os nomes de Maquiavel, na passagem do século XV para o
século XVI, e Nietzsche, no século XIX.
No novo cenário, viver “bem” significa, para o homem, ter consciência de sua
capacidade de produzir valores, de intervir positivamente no mundo, o apenas de
adaptar-se de forma passiva ao mesmo.
Para Maquiavel, mas principalmente para Nietzsche (1983), a noção de
racionalidade está diretamente relacionada à possibilidade de intervenção no mundo
vivido. Em um de seus diálogos com Darwin, Nietzsche dá pistas de sua percepção
acerca da racionalidade ao fazer referências à “vontade de potência”. Para ele,
“vontade de potênciaé uma categoria chave para entender a dimensão criativa,
“auto-organizativa” de um indivíduo humano no interior de um sistema sociocultural
que tenta lhe impor determinados valores e regras de conduta.
No domínio biológico, para Darwin (1987), o maior trunfo de todo ser vivo é o
poder de “adaptar-se” às pressões advindas do ambiente. Esse parece ser o núcleo
duro da explicação acerca das mutações presentes nas diversas espécies que
12
antecipam a famosa lei da “seleção natural”. Tal explicação, a despeito de refutar a
crença no “fixismo” das espécies, pode remeter os seres vivos a determinismos,
além de retirar deles qualquer autonomia para criar e intervir no ambiente.
Trata-se, portanto, de uma racionalidade distinta da que fora descrita por
Nietzsche no domínio sociocultural. Trata-se de uma racionalidade da “adaptação
que, ao ser transposta do domínio biológico para o domínio sociocultural,
transforma-se em ferramenta ideológica muito útil para justificar determinados
estágios da sociedade, marcados pelas mais variadas formas de desigualdades.
Nietzsche, mesmo não sendo simpático às noções de “igualdade”,
“democracia”, “socialismoe não estar refletindo no campo da biologia, rejeita as
formas de apropriação do conceito de racionalidade da “adaptaçãode Darwin pelos
ideólogos do sistema sociedade. A rigor, pode-se afirmar que Nietzsche é o primeiro
a rejeitar o processo de “migraçãode um conceito
1
, de um domínio do
conhecimento para outro, sem os devidos ajustes. Para ele, o ser humano o
apenas se adapta, mas também, orientado por uma intrínseca “vontade de
potência”, pode transformar o ambiente.
Avançando o pensamento de Nietzsche, é possível ajustar, em termos de
complementaridade, a noção de “vontade de potência”, ppria do indivíduo humano,
à noção de “auto-organização”, própria de qualquer sistema vivo. Eis a gênese de
uma racionalidade convergente, a da “transformação adaptativa”, que possibilita
demonstrar que não são incompatíveis as formulações socioculturais de Maquiavel e
Nietzsche em relão às formulações “naturalistas” de Darwin.
Elas são complementares desde que se admita a inseparabilidade entre
natureza e sociedade. O indivíduo humano, bem como qualquer sistema vivo, ao
transformar o ambiente nele se adapta; e, ao adaptar-se ao ambiente, nele se
transforma. Note-se que, ao invés de relações mecânicas de causa e efeito, existe
uma recursividade entre indivíduo e ambiente.
Note-se igualmente que, a despeito da existência de racionalidades
hegemônicas, é possível identificar focos de resistência nas formulações
“convergentes” dos três autores citados.
1
O debate sobre a “migração” de conceitos ressurge mais adiante nos comentários sobre as
abordagens inter e transdisciplinares dos temas socioambientais.
13
1.2.3. Comentários sobre as Racionalidades na Sociologia
Depois da Filosofia, as ciências sociais são os espaços que possibilitam
emergências de estudos sobre as racionalidades. Dentre os diversos autores,
merece destaque o sociólogo alemão Max Weber, com seu intensivo rastreamento
dos processos de racionalização materializados no Ocidente.
1.2.3.1 Weber e a “universalidade” das racionalidades instrumentais
Max Weber (1967; 1968; 1970; 1980), no domínio da sociologia alemã, é um
dos autores que melhor percebe e diagnostica, com seu método hermenêutico, as
racionalidades instrumentais e substantivas, acompanhadas dos processos
extremados de racionalização da vida associativa no Ocidente. Mesmo admitindo
serem elas “complementares”, suas formulações tendem a privilegiar as
racionalidades instrumentais, por expressarem de forma mais nítida a principal
tendência da era moderna. Um dos pontos de partida de Weber é a metáfora do
“desencantamento do mundo”, que reflete nas diversas dimensões da vida
associativa moderna a progressiva negação de espaços para as racionalidades
substantivas.
Na perspectiva metodológica, ancorado nos conhecidos “tipos ideais”,
Weber tentou captar as racionalidades que orientam as tomadas de decisão dos
seres humanos. Em certo sentido, ele tentou identificar ou demonstrar como as
racionalidades materializam-se em forma de ações concretas.
Sua contribuição é fundamental porque, ao elaborar a crítica das
racionalidades hegemônicas, as instrumentais, ele reforça indiretamente a
necessidade de se pensar soluções para os problemas emergentes da civilização
moderna a partir de outras matrizes de pensamento. Com isso, Weber deixa suas
formulações abertas a estudos orientados para as racionalidades substantivas.
1.2.4. Comentários sobre as Racionalidades nas Organizações
As racionalidades “migram” para os estudos nas teorias da administração de
maneira fundamentalmente simplificada. As teorias da administração são as que
14
melhor reduzem as racionalidades a uma única racionalidade, a funcional ou
instrumental. Seguindo essa linha de raciocínio, da “administração científica”, de
Taylor (1979), à maioria de teóricos contemporâneos da administração, o nexo
comum entre eles é a reverência aos elementos constitutivos e constituintes das
racionalidades instrumentais. As noções de “eficiência”, “eficáciae “controle
emergiram de tais estudos como verdadeiros “bezerros dourados”.
Entretanto, há estudos rastreando outras expressões das racionalidades em
experiências de gestão nas organizações produtivas. Dentre eles está um dos
pioneiros, Guerreiro Ramos, seguido de Serva.
1.2.4.1 Guerreiro Ramos e a Teoria da Delimitação dos Sistemas Sociais
As contribuições de Weber serviram de inspiração para muitos autores.
Dentre eles, Guerreiro Ramos (1989) destaca-se por tentar ampliar o que ele
considerou insuficiente em Weber: o aprofundamento sobre as racionalidades
substantivas. Se Weber, de um lado, tentou demonstrar as formas de materialização
das racionalidades instrumentais, Guerreiro Ramos, de forma complementar,
propõe-se a demonstrar algumas formas de expressão materializada das
racionalidades substantivas no interior de organizações modernas.
A perspectiva analítica de Guerreiro Ramos evidencia insuficiências de
teorias que insistem em considerar o “mercado” como categoria central de análise.
Para ele, a racionalidade de mercado é importante, mas existem outras
racionalidades que, além de não derivarem do mercado, conseguem neutralizá-lo,
reduzindo suas dimensões colonizadoras.
Ao rejeitar a centralidade do mercado, tal como faz Leff (2001a; 2001b;
2003) na discussão das temáticas ambientais, Guerreiro Ramos dá novas pistas de
pesquisas centradas nas racionalidades substantivas. Em sua “teoria da delimitação
dos sistemas sociais”, Guerreiro Ramos demonstra que a civilização centrada no
mercado é apenas uma expressão das racionalidades humanas, não a única.
Indiretamente ele reduz a importância exagerada que as teorias sociais atribuem ao
mercado no afã de produzirem conhecimentos reputados “universais”. A suposta
propensão inata à troca é transformada em fundamento último, em regra universal e
orientadora de todas as experiências associativas humanas.
15
1.2.4.2 Serva e a complementaridade entre racionalidades substantiva e
comunicativa
Um dos continuadores do fértil diálogo entre Guerreiro Ramos e Habermas
2
é Serva. Para tornar visíveis as formas de operacionalização das racionalidades
substantivas em algumas organizações produtivas, ele recorre a uma estratégia
muito desenvolvida em estudos antropológicos, a observação participante. Uma das
principais contribuições de Serva foi a demonstração da complementaridade entre o
conceito de racionalidade substantiva, de Guerreiro Ramos, e a racionalidade
comunicativa, de Habermas (1989).
Para alcançar seus objetivos de pesquisa, Serva realizou um extenso e
intenso trabalho de coleta etnográfica em três organizações escolhidas. A coleta
consistiu no registro e na análise das decisões cotidianas dos membros. O próprio
autor caracterizou esse tipo de pesquisa como “auto-referencial” por estar inspirada
nos estudos de Maturana e Varela (1996), considerados fundadores da “escola
cognitivista” chilena, que se constitui centrada na noção de
autopoiese
.
A
autopoiese
é a fonte de inspiração para a metodologia “auto-referencial
de Serva, à medida que permite analisar o fenômeno por meio de um mergulho
penetrante e profundo em suas dimensões internas sem deixar de levar em
considerão os ruídos externos do ambiente. Trata-se de uma estratégia
metodológica que permite enfrentar a complexidade do fenômeno analisado à
medida que consegue captar sua autonomia a partir de sua dependência em relação
ao exterior.
Em termos concretos, trata-se de uma metodologia que permite captar
indicadores das racionalidades substantivas, como a “auto-realizaçãodos membros,
sem subestimar pressões externas, oriundas das racionalidades instrumentais.
Portanto, com alguns ajustes a metodologia “auto-referencialpode ser muito útil em
estudos com pretensões de rastrear e captar em experiências concretas de gestão
das águas, elementos constitutivos e constituintes das racionalidades substantivas,
com seus respectivos desdobramentos socioambientais.
2
Preocupado em desvendar os prejuízos da dimensão colonizadora das racionalidades instrumentais
que orientam o mercado, aparece Habermas com sua noção de “racionalidade comunicativa”. É
notável o empenho de Habermas de centrar seus estudos e reflexões não nas racionalidades
instrumentais, mas em outros domínios possíveis da existência humana.
16
1.2.4.3 Novos estudos sobre as racionalidades substantivas
Na esteira dos estudos de Guerreiro Ramos e Serva sobre as racionalidades
substantivas, merece destaque o artigo de Maciel-Lima, Hopfer e Souza-Lima
(2004), abordando relações de complementaridade entre as racionalidades na
construção das identidades de profissionais da saúde. Na pesquisa, em meio às
tentativas de determinação das racionalidades instrumentais, as racionalidades
substantivas emergem de forma espontânea, mas fundamentais para demonstrar
que essas expressões espontâneas materializam-se como estratégias, às vezes
inconscientes, de resistência.
O estudo possibilita demonstrar que, a despeito das pressões advindas das
racionalidades instrumentais, as racionalidades substantivas tendem a impedir ou
dificultar o “seqüestrodas identidades de alguns profissionais da saúde.
Foi possível identificar que, sem desconsiderar a capacidade colonizadora
das racionalidades instrumentais na imposição de rotinas, hierarquias e
fragmentação do conhecimento, são inegáveis os espaços conquistados pelas
racionalidades substantivas no processo de construção de identidades profissionais
auto-realizadas levando o sujeito a repensar sua ideologia no trabalho.
Os indicadores das racionalidades substantivas, extraídos dos depoimentos
foram: identidade/auto-realização/satisfação, busca pelo conhecimento,
responsabilidade e conhecimento multidimensional. São indicadores que corroboram
a hipótese da possibilidade sempre presente de resisncia, consciente ou não, dos
sistemas vivos.
Os médicos evidenciam a necessidade da satisfão no exercício da
profissão; do reconhecimento pelo trabalho realizado por parte do paciente, dos
familiares e seus pares; da responsabilidade na tomada de decisões baseadas,
muitas vezes, em observações subjetivas; e do conhecimento multidimensional que
é próprio das discussões intelectuais dentro do ambiente laboral.
O depoimento dos profissionais esclarece as afirmações apresentadas
acima: “[...] o que eu mais gosto na profissão é quando eu atendo um paciente e
vejo que eu consegui, resolvi aquela dificuldade que o paciente sofria!...Eu me sinto
muito feliz por isso! Isso que me gratifica ...; "... você não pode tratar o paciente
como uma mera mercadoria”; “... o médico tem que ser mais criado, mais treinado,
o só na parte profissional, como na parte ética e de filosofia".
17
Esses depoimentos são indicadores de racionalidades que não se resignam
às racionalidades instrumentais, uma vez que estão associadas à busca da auto-
realização e de valores que transcendem à mera lógica organizacional.
1.2.5. Comentários sobre as Racionalidades na Antropologia Econômica
1.2.5.1 Godelier e a “singularidade” das racionalidades do mercado
Na relativização do caráter “universal” da racionalidade de mercado,
Godelier (1981) já havia discutido os mesmos temas de Guerreiro Ramos. Para ele,
todos os mecanismos de uma economia centrada nas racionalidades mercantis
adquiriram significados especiais na civilização dita ocidental. Paulatinamente, eles
foram sendo adotados e supervalorizados como regras “universais” de conduta. Eles
se tornaram “normas”.
Nesse sentido, o sistema econômico novo passou a ser “vivido” como a
maior de todas as referências para analisar e julgar outras sociedades como
“atrasadas” ou “irracionais”. Está explicada a gênese da noção de uma racionalidade
que se pretende “universal” quando, na verdade, não passa de uma singularidade
que se impôs por meio dos mais variados tipos de prepotência sobre outras
racionalidades.
1.2.6. Comentários sobre as Racionalidades na Economia
Os comentários feitos na seção acerca das teorias da administração, sobre a
redução das racionalidades a uma única racionalidade instrumental, podem ser os
mesmos para as teorias econômicas. Aqui é o espaço no qual as racionalidades
instrumentais tendem a obter maior sucesso, pois atuam como explicação “científica
do “destino” único de todas as experiências associativas humanas, a
“racionalização” capitalista.
Entretanto, tal como ocorreu nas teorias administrativas, há outros espaços
de criatividade por aqui também. Alguns autores têm se ocupado do rastreamento de
outras racionalidades.
Um dos pioneiros, que também serviu de referência para Guerreiro Ramos,
foi Polanyi (1975) que, no campo da Economia, desenvolveu pesquisas centradas
18
nas racionalidades substantivas. Os cinco trechos recortados da obra de Polanyi a
partir de 1947 - revelam seu pioneirismo em estudos visando ao esclarecimento de
sentidos substantivos, e não apenas instrumentais, para o debate e para a ação
econômica. Para ele,
os sentidos substantivos têm suas origens na dependência do
homem com relação à natureza e aos seus semelhantes para
assegurar sua sobrevivência. Ele remete às transações entre o
homem e seus ambientes natural e social (POLANYI, 1975, p. 239).
Note-se que está presente na percepção de Polanyi a clara relação de
complementaridade entre ser humano e ambiente. Ao fazer referência à
dependência do ser humano em relação ao ambiente e aos seus pares, Polanyi
parece estar anunciando a noção de autonomia com significados muito próximos dos
elaborados por Morin (2003). Autonomia como expressão da dependência sem
submissão, o de isolamento.
No próximo trecho, Polanyi rejeita a noção de “escassez” como imperativo
categórico para as escolhas. Em seus termos,
os sentidos substantivos não subentendem nem escolha nem meios
insuficientes; a subsistência do homem pode ou não impor uma
escolha, e se escolha há, ela não é obrigatoriamente determinada
pela ‘escassezdos meios; de fato, algumas das condições físicas e
sociais mais importantes para viver, tais como o ar e a água ou o
amor de uma mãe à sua criança, não são, geralmente, tão limitados
(POLANYI, 1975, p. 239).
Se a mensagem do trecho for transposta para o debate contemporâneo em
torno das questões socioambientais, pode ser que Polanyi já estivesse insinuando
que não é a “escassez” de recursos que define a escolha prudente de um grupo ou
de um indivíduo. Não está devidamente demonstrada essa relação quase mecânica
entre “escassezde recursos e tomada de decisão. Se, de um lado, a idéia de
“escassez” serviu para legitimar racionalidades instrumentais, por outro, também
serve para tornar visíveis outras dimensões da existência humana, dessa vez,
centradas em outras racionalidades. Isso fica mais claro no próximo trecho, à
medida que o autor separa as duas racionalidades para melhor explicá-las.
A lógica imperativa contida num dos conceitos difere daquela contida
no outro conceito, como a força do silogismo difere da força da
gravitação. [...] As duas significações não poderiam estar mais
afastadas uma da outra; do ponto de vista semântico, elas são
diametralmente opostas (POLANYI, 1975, p. 239).
19
Aparentemente hermético, o trecho contém, entretanto, informações valiosas
acerca da disputa de racionalidades no interior do campo econômico. Para Polanyi,
a racionalidade que impera é a instrumental, mas isso não significa sujeição absoluta
das racionalidades substantivas. Na opinião dele,
somente os sentidos substantivos do ‘econômico’ são capazes de
produzir os conceitos que exigem as ciências sociais para analisar
todas as economias empíricas do passado e do presente (POLANYI,
1975, p. 239-240).
O quadro geral de referência que Polanyi tenta elaborar impõe necessidades
de se enfrentar os problemas em termos distantes das racionalidades instrumentais,
portanto, em bases substantivas. Ao estudar
os papéis da economia na sociedade humana, o antropólogo, o
sociólogo ou o historiador estão cada um confrontados a uma grande
variedade de instituições outras que não só os mercados e nas quais
estavam fixados os meios de subsistência do homem. […] A
economia é então um processo institucionalizado. […] A
institucionalização do processo econômico confere a este unidade e
estabilidade; ela cria uma estrutura tendo uma função determinada
na sociedade; ela modifica o lugar do processo na sociedade, dando
assim uma significação a sua história; ela concentra o interesse
sobre os valores, as motivações e a política. […] A economia
humana é então fixada e englobada nas instituições econômicas e
não econômicas. Importa dar conta do aspecto não econômico
(POLANYI, 1975, p. 240, 244).
Além de apontar as insuficiências das racionalidades instrumentais de dar
conta da complexidade da vida associativa, Polanyi não dissimula sua oão de se
dedicar aos aspectos não econômicos, mas fundamentais ao processo de abertura
do “campo” econômico a novas interpretações.
1.2.6.1 Amartya Sen e o desenvolvimento como expressão da liberdade substantiva
Ainda no campo da Economia, as racionalidades substantivas emergem das
pesquisas de Amartya Sen (2000), por intermédio de seu conceito de “liberdade
substantiva”.
O quadro de referências de Sen é uma convergência entre experncias
teóricas de sua trajetória intelectual e acadêmica e experiências vivenciadas ao
longo de sua caminhada pessoal e profissional. Mas, para os objetivos da presente
tese, o Adam Smith (1999), da “Teoria dos Sentimentos Morais”, ao trabalhar com a
idéia de complementaridade entre economia e ética, emerge como principal quadro
20
de referência para Sen. O conceito de ética de Smith está centrado não apenas na
capacidade calculativa da mente humana, mas nos sentimentos capazes de
estremecer o corpo inteiro.
Desse fértil e instigante encontro entre ética e economia, Sen constrói seu
arcabouço teórico para, de um lado, explicitar as insuficiências de outras abordagens
que insistem em excluir a ética das análises econômicas; e, de outro, explicar que a
ética entendida como um dos indicadores das liberdades substantivas é muito
mais uma alavanca do que um obstáculo para qualquer estratégia de
desenvolvimento que esteja centrada nas pessoas e na vida.
O autor parte do pressuposto de que desenvolvimento precisa ser pensado a
partir da ampliação da liberdade substantiva e da equivalente redução das privações
políticas, econômicas e culturais. Para ele, desenvolvimento e liberdade são
inseparáveis porque são domínios que podem “coevoluir” sem predomínio abusivo
de um sobre o outro. Nesse sentido, a ampliação da liberdade é o principal fim e o
principal meio do desenvolvimento, pois são conceitos complementares.
Nos termos do próprio autor,
se o ponto de partida da abordagem é identificar a liberdade como o
principal objetivo do desenvolvimento, o alcance da análise de
políticas depende de estabelecer os encadeamentos empíricos que
tornam coerente e convincente o ponto de vista da liberdade como a
perspectiva norteadora do processo de desenvolvimento (SEN, 2000,
p.10).
Conceitos centrais da abordagem de Sen:
Desenvolvimento: a principal diferenciação que o autor faz questão de
acentuar é que sua concepção de desenvolvimento está absolutamente distante de
todas as outras formulações que associam desenvolvimento a uma única dimensão
da vida associativa, o crescimento econômico. Portanto, para Sen, desenvolvimento
é um conceito mais amplo que engloba o crescimento, mas o define como
conseqüência de outras dimensões relacionadas ao desenvolvimento humano, em
última análise.
Liberdade Substantiva: quando o autor adjetiva a liberdade, parece que sua
intenção é tornar visível a disncia que separa os discursos bem intencionados
acerca da liberdade e a liberdade de fato, concreta, do corpo e das necessidades
mínimas de ser feliz. Ao enveredar por esse caminho da incerteza, Sen inclui a
21
complexidade da vida na análise econômica da mesma forma como fez Adam Smith
ao insistir que sucesso econômico e ética não são domínios antagônicos, mas
complementares. Mas afinal, o que é a liberdade substantiva?
Para responder, nada mais interessante que a recordação de infância do
próprio autor:
Eu tinha uns dez anos. Certa tarde, estava brincando no jardim de
minha casa na cidade de Dhaka, hoje capital de Bangladesh, quando
um homem entrou pelo portão gritando desesperadamente e
sangrando muito. Fora esfaqueado nas costas. Era a época em que
hindus e muçulmanos matavam-se nos conflitos grupais que
precederam a independência e a divisão de Índia e Paquistão. Kader
Mia, o homem esfaqueado, era um trabalhador diarista muçulmano
que viera fazer um serviço em uma casa vizinha por um pagamento
ínfimo e fora esfaqueado na rua por alguns desordeiros da
comunidade hindu majoritária naquela região. Enquanto eu lhe dava
água e ao mesmo tempo gritava pedindo ajuda aos adultos da casa
e momentos depois, enquanto meu pai o levava às pressas para o
hospital - Kader Mia não parava de nos contar que sua esposa lhe
dissera para não entrar em uma área hostil naquela época tão
conturbada. Mas Kader Mia precisava sair em busca de trabalho e
um pouco de dinheiro porque sua família não tinha o que comer. A
penalidade por essa privação de liberdade acabou sendo a morte,
que ocorreu mais tarde no hospital (SEN, 2000, p.23).
A experiência vivenciada foi devastadora para Sen porque demonstrou mais
tarde que a privação de um tipo de liberdade no caso, a econômica - pode expor
pessoas a riscos capazes de condená-las à morte prematura e evitável desde que
haja condições, deixando à deriva outras pessoas que delas dependem para
continuar sobrevivendo.
Daquela experiência é possível apreender o que o autor apresenta na obra
como liberdade substantiva. Para ele,
as liberdades substantivas incluem capacidades elementares como,
por exemplo, ter condições de evitar privações como a fome, a
subnutrição, a morbidez evitável e a morte prematura, bem como as
liberdades associadas a saber ler e fazer cálculos aritméticos, ter
participação política e liberdade de expressão (SEN, 2000, p.52).
Mercado: Ao contrário de muitas formulações reificadoras e deificadoras, ou
de outras que se pretendem críticas do mercado, o autor o define como possibilidade
objetiva de ampliar espaços para a auto-realização por meio das trocas substantivas
entre os seres humanos. De maneira singela, ele concebe o mercado como
ampliação da “liberdade de troca e transação sem impedimentos” (SEN, 2000, p.41).
22
Em última análise, ao defender o mercado o autor tem em mente a
necessidade de se ampliar as oportunidades para que as pessoas possam
comunicar-se sem obstáculos. Por exemplo, é ingênuo falar em mercado quando se
tem face a face, de um lado, atores políticos que se apropriam da biotecnologia e de
todas as leis que lhes beneficiam e, de outro, pessoas comuns que não dominam
nem seu próprio idioma nem as contas básicas da aritmética.
Do exemplo apresentado, é possível apreender que na visão de Sen,
mercado está associado à ampliação e não privação de necessidades básicas para
as pessoas. Se o mercado o proporciona a felicidade das pessoas, ele é sim um
enorme obstáculo para as liberdades substantivas e para seu equivalente, o
desenvolvimento.
Nas palavras de outro autor
3
citado por Sen, o que se conclui é que “a
liberdade tem mil encantos a mostrar, que os escravos, por mais satisfeitos, nunca
o de provar” (SEN, 2000, p.337). Significa que enquanto a noção predominante de
desenvolvimento continuar refém de uma racionalidade quantitativa e não
qualitativa, as liberdades substantivas estao igualmente sendo negadas. Se, na
perspectiva apresentada aqui, liberdade e desenvolvimento são faces de uma
mesma moeda, desenvolvimento sem liberdade é um desenvolvimento às avessas
porque acentua a exclusão de milhares de pessoas.
A matriz epistemológica que orienta a abordagem de Sen é a da
complementaridade. Ele não vê, por exemplo, necessariamente como antagônicos
os domínios político e econômico, nem a relão entre indivíduo e sociedade. Nesse
sentido, a forma como o autor produz e permite o acesso ao conhecimento do
desenvolvimento a partir da amplião dos espaços para a auto-realização humana,
tende a se afastar de tradições de pensamento que insistem em pensar e confundir
desenvolvimento com crescimento econômico. Com tal ruptura, o autor explicita os
pontos cegos” de outras tradições reducionistas de pensamento que ainda
predominam no Ocidente, abrindo espaços para a inclusão das liberdades
substantivas em análises do desenvolvimento.
Nesse particular, a noção de desenvolvimento sugerida por Sen não precisa
ser adjetivada com o prefixo “eco” (SACHS, 1994) nem com o “sustentável da
3
Willian Cowper.
23
tradição britânica. Mesmo sem os citados adjetivos, Sen incorpora a noção de
“sustentabilidadeà medida que constrói o conceito de desenvolvimento a partir da
idéia de liberdade substantiva. A medida do desenvolvimento está associada aos
níveis de liberdade substantiva das pessoas. Sen busca inspiração nas formulações
de Smith para superar conceitos insuficientes como “pobreza, “capital humano” etc.
A “pobreza” está associada não necessariamente à ausência de renda, mas
de liberdade. O recém-liberto pode sofrer na sua condição de ser humano livre, mas
dificilmente sentirá saudade da masmorra. No que diz respeito ao “capital humano”,
ele prefere a noção de “capacidade humana, por ser esse um conceito mais amplo.
A abordagem de Sen é uma demonstração de que a liberdade substantiva é
a principal alavanca do desenvolvimento que se pretende sustentável. Lembrando
Giddens (1999a; 1999b), desenvolvimento como liberdade implica crescimento
econômico, mas principalmente inclusão dos menos favorecidos no sistema social.
Em outros termos, desenvolvimento como liberdade é a forma diferenciada de Sen
explicitar seu conceito de desenvolvimento sustentável.
Do ponto de vista civilizatório, Amartya Sen revela que a opção por uma
civilização marcada pela desigualdade e pela negação de espaços para as
liberdades substantivas, não pode ser a única alternativa de pensamento e de
intervenção no mundo da vida. Não pode ser a única porque se trata de uma opção
absolutamente equivocada no que diz respeito à felicidade da maioria dos indivíduos
humanos.
Na perspectiva epistemológica, Sen faz avançar novas possibilidades de
produção e de acesso ao conhecimento ao sugerir uma abordagem convergente
entre desenvolvimento e liberdade. Ao avançar tais análises, ele dá pistas o
apenas aos economistas, mas a todos os pesquisadores que se ocupam desses
temas, a enfrentarem a complexidade da vida social como um desafio capaz de
emancipar saberes individualizados, fragmentados e fechados para domínios mais
amplos e mais integrados.
1.2.6.2 Giannetti e a ética como alavanca para a riqueza das nações
Outro autor que se propõe a aproximar a Economia da Ética, fazendo
emergir as racionalidades substantivas, é Eduardo Giannetti (1993; 2000). Tal como
Amartya Sen o centro do debate de Giannetti é, em primeiro lugar, o Adam Smith de
24
A Teoria dos Sentimentos Morais”, mas tamm outros clássicos das teorias
econômicas e sociais. Dentre eles, os fisiocratas, Malthus, Mandeville, Ricardo, Mill,
Marshall, Marx, Weber, Tocqueville, Hegel, Friedmann, Nietzsche, Darwin etc.
A pergunta implícita que Giannetti se propõe a responder é se um dos
fatores determinantes da riqueza ou da pobreza das nações pode ser rastreado na
qualidade (ética) de seus jogadores ou atores sociais? Em outros termos, ele está
tentando responder se a ética é ou não um decisivo “fator qualitativo e quantitativo
de produção”?
As respostas emergem como críticas à “ética” utilitarista ou ao “egoísmo
ético” que projeta os interesses desejados por determinado indivíduo como
substitutos de interesses desejáveis para o grupo. São críticas que, am de
explicitarem os “pontos cegos” das teorias econômicas centradas apenas nas
racionalidades instrumentais, ao mesmo tempo, ampliam espaços para outras
abordagens da economia orientadas por racionalidades substantivas.
Para tanto, em seu esforço de demonstrar que a ética caracteriza-se como
fator qualitativo e quantitativo da riqueza de uma nação, ele retorna a pressupostos
idênticos aos de Amartya Sen acerca do “mercado”. Mesmo admitindo ser o
“mercado” uma das mais sofisticadas invenções do ser humano, no que se refere ao
espaço de troca eficiente de mercadorias, serviços e informações, sem a ética ele se
torna predatório à medida que tende a favorecer os menos escrupulosos.
Ao admitir que o auto-interesse, por si só, não conduz mecanicamente ao
sucesso da coletividade, Giannetti está apoiado tanto em Smith quanto em Marx
(1980) ou Tocqueville (1961), que afirmam o mesmo com palavras e interesses
diversos. Os três acreditavam que, prevalecendo o auto-interesse não haveria
coletividade capaz de sobreviver.
Os três estão evidenciando a dimensão abusiva do auto-interesse sobre a
coletividade. O sucesso de qualquer coletividade está relacionado à auto-realização,
que se materializa por meio do equilíbrio entre auto-interesse e interesses comuns.
Quando Marx, por exemplo, percebeu que a sociedade capitalista tem como
fundamento último o auto-interesse, o hesitou em concluir que ali estava a
grandeza e a pequenez desse desastroso sistema mundial produtor de mercadorias.
Apoiado na dialética, apresentada antes por Hegel, Marx acreditou provar
um dos princípios hegelianos: novas instituições, novos valores podem surgir de
25
instituições apodrecidas. Ele quis dizer que a radicalização do auto-interesse
(reforço das racionalidades do cálculo) conduziria os seres humanos a outro
domínio, dessa sorte, marcado pela ampliação das racionalidades substantivas, a
sociedade comunista. Em sua percepção, na nova sociedade o auto-interesse
passaria a ser limitado pelo interesse comum.
Mas, além de Smith, que percebeu a ética como fator quantitativo de
produção, Giannetti tamm resgata as contribuições de Malthus, John Stuart Mill e
Alfred Marshall, que perceberam a ética como fator qualitativo de produção. Para
Malthus, por exemplo, a economia estava mais próxima da moral e da política do
que da matemática. Mill leva adiante a abordagem qualitativa de Malthus a ponto de
afirmar que “as qualidades morais dos trabalhadores são tão plenamente
importantes para a eficiência e o valor do seu trabalho quanto as intelectuais” (
citado
por
GIANNETTI, 1993, p.170).
A rigor, Mill está admitindo que as racionalidades substantivas são tão
importantes quanto as racionalidades calculativas no que tange à expansão das
organizações ou das experiências associativas. Em outras palavras, ao aceitar a
ética como fator qualitativo de produção, Mill está admitindo que o auto-interesse,
mesmo que dentro da lei, não é suficiente para garantir a riqueza de qualquer
organizão ou nação. Ele nega o egoísmo ético porque este superestima o “auto-
interesse”.
Outro autor clássico da economia citado por Giannetti é Marshall. Para
Giannetti, o núcleo duro das formulações econômicas de Marshall é a ética à medida
que o emérito professor de Cambridge admitia que no longo prazo, toda riqueza
nacional tende a ser governada mais pelo caráter da população do que pela
abundância de recursos naturais. E ainda concluiu que tanto na economia como na
vida, se a esperteza tende a sair na frente, dificilmente consegue ir muito longe.
No comentário de Marshall transcrito da resenha de Giannetti (2000) -
sobre a obra de Smith fica evidenciada sua busca pelas racionalidades substantivas.
Um ponto crucial e que revela a íntima ligação entre o Smith
esotérico da “Teoria dos Sentimentos Moraise o Smith da “Riqueza
das Nações- é que ele jamais subestimou a importância de um
arcabouço ético-jurídico bem constituído para que o sistema de
mercado pudesse funcionar a contento. Na ausência de “leis da
justiça” amplamente acatadas, canalizando o egoísmo privado para a
criação de valores publicamente reconhecidos, o mercado degenera
26
numa selva predatória de aproveitadores, piratas de renda e
trombadinhas. A esperteza das partes conduz, não à opulência, mas
à miséria e ao vexame do todo.
Em perspectiva similar à “teoria da delimitação dos sistemas sociais”, de
Guerreiro Ramos, ao aproximar a economia da ética, Giannetti parece propor uma
abordagem paraeconômica, uma vez que tenta explicar a economia além das
racionalidades instrumentais que servem de balizas para o mercado.
1.2.7. Comentários sobre as Racionalidades nas Abordagens Inter-
transdisciplinares
1.2.7.1 Heemann e a abordagem da “Biologia Filosofante
4
As racionalidades substantivas emergem nas reflexões de Heemann (1998;
2001; 2002) a partir de um de seus principais pressupostos, o de que o ser humano
é muito mais “emoçãodo que “razão”. A partir de tal premissa estão estabelecidas
as diversas pistas para se pensar os elementos constitutivos e constituintes das
racionalidades substantivas no debate socioambiental e em experiências de gestão
das águas.
A originalidade das formulações de Heemann é que ele constrói
conhecimentos usando estratégias similares às de Giannetti quando esse aproximou
a ética da economia. Heemann força a aproximação da ética em relação ao núcleo
duro das pesquisas biológicas. A diferença entre as duas abordagens é que, se
Giannetti circula, ainda, nas ciências socioculturais, Heemann vai além, ao tentar
abrir as fronteiras dos sistemas natureza e sociedade.
Nesse particular, na presente abordagem, a ética como indicador das
racionalidades substantivas - pode ser apreendida no momento sublime em que o
corpo do indivíduo humano se indigna diante de alguma injustiça ou agressão
socioambiental. A ética, portanto, pode ser entendida não como abstração
metafísica, mas como transformação efetiva e materializada, à medida que emerge
inicialmente como expressão da liberdade natural e espontânea do corpo.
4
A expressão é uma homenagem a Ademar Heemann, que pode ser classificado como um “biólogo
filosofante” em função da aproximação que suas formulações proporcionam entre Natureza e Ética.
27
A partir daí as racionalidades substantivas podem ser pensadas não
abstratamente, mas atreladas aos substratos materiais que possibilitam sua
existência.
Tomando como referência essa “migração” do conceito de ética, das
reflexões socioculturais para a Biologia, é possível construir uma ética ambiental
sem se incorrer na “falácia naturalista
5
”?
Em uma abordagem dualista, se o domínio do “ambiente” for considerado o
domínio da descrição minudente de suas relações auto-organizativas, o domínio
reservado à ética é o da prescrição, do “deve ser”. Nessa linha de pensamento, o
“ambiente” pode ser descrito, ao passo que a ética pode ser “prescrita”.
A aproximação descuidada dos dois domínios tende a conduzir à “falácia
naturalista”, pois transforma experiências singulares em “prescrões” com
pretensões “universalizantes”. Descrever as relações auto-produtivas do ambiente
o é o mesmo que sugerir que as referidas relações “devam” transformar-se em
regras “universaise “ordenadoras” das experiências associativas humanas.
Significa que, se a ética ambiental assume postura prescritiva tende a incorrer na
falácia naturalista, à medida que perde sua característica singular.
Na perspectiva de Heemann, é possível pensar uma “ética ambiental” como
diálogo do corpo consigo mesmo e com o ambiente, não como admissão da
existência de valores intrínsecos ao ambiente.
Daí emerge uma outra pergunta. E se a ética estiver centrada na emoção,
no sentimento, ao invés de na razão?
Mais uma vez é possível falar em uma “ética ambiental” desde que o
conceito de ética não esteja centrado apenas na capacidade calculativa, mas
também na capacidade instantânea e espontânea de se indignar do indivíduo
humano. O momento da indignação face a qualquer agressão socioambiental
poderá ser demonstrado e caracterizado como um tipo singular de “ética ambiental”,
sem que se incorra na “falácia naturalista”. O problema somente se acentua à
medida que se tenta “universalizar” experiências que, em última análise, são únicas
e singulares.
5
O termo
Naturalistic fallacy e
stá associado às reflexões de David Hume e será melhor desenvolvida
no capítulo 5. Em síntese, consiste na tentação de se recorrer à natureza para explicar fenômenos
mais fortemente determinados socialmente. Nas teorias socioculturais costuma-se afirmar que é um
erro “naturalizar” fenômenos sociais.
28
O salto que se tenta dar do domínio materializado da ética, que é singular,
para o domínio abstrato, que se pretende “universal”, é o salto da “falácia naturalista
porque a experiência singular demonstrável não autoriza qualquer generalização.
No bojo dessa discussão suscitada a partir das provocações de Heemann, é
possível qualificar tais formulações como formulações que tendem a privilegiar as
racionalidades substantivas, à medida que essas antecedem qualquer cálculo
instrumental. Por exemplo, a boa gestão das águas pode estar balizada pela
capacidade anterior de se indignar face ao mau uso, ao desperdício ou à poluição.
Finalmente, fica parcialmente demonstrado que a “migrão” de conceitos,
se realizada com criatividade e ousadia, é uma chave fundamental para abrir as
fronteiras dos sistemas produtores de sentidos. Em uma frase, é muito difícil
sustentar a idéia de “reserva de mercado” no domínio das ciências não-lineares.
1.2.7.2 Silva e a passagem do patrimônio privado ao ambiental
A abordagem de Silva (2002) pode ser apreendida como um esforço no
sentido de trazer para o mundo do Direito, os temas socioambientais, orientados por
racionalidades substantivas. A referência central de Silva o grande guarda-chuva
epistemológico - é o conjunto de princípios e ensinamentos derivado da
Deep
Ecology
. Dela são extraídos os pressupostos e artifícios metodológicos para
enfrentar a complexidade ambiental. O desafio se agiganta em função do Direito
constituir-se e consolidar-se como referência emancipatória para a sociedade, à
medida que consegue “positivar-se” em forma de Lei.
No diálogo entre as racionalidades, o estudo de Silva explicita e demonstra
alguns dos principais obstáculos enfrentados pelo Direito Ambiental, em transformar
em lei, necessidades construídas a partir das racionalidades substantivas.
Especificamente sobre as águas, é possível perceber que as normativas
simbolizam ou refletem as disputas entre as racionalidades desde o Código Civil de
1916 à Lei 9.433/97, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos,
passando antes pelo Código das Águas, de 1934; e pela Constituição Federal, de
1988.
O divisor de águas entre as quatro normativas citadas é que, se nas duas
primeiras predomina a noção de propriedade privada das águas, nas duas últimas,
29
ocorre a superação desse tipo de prerrogativa sobre bens ou recursos naturais. Se,
de um lado, isso representa um avao das racionalidades substantivas, pois são
abertos espaços para a materialização de interesses comunitários; de outro, o
pode ser celebrado como a derrota das racionalidades instrumentais, pois a
caracterização das águas como “bens econômicos” tende a reduzir a gestão à
cobrança pelo uso, indicador das racionalidades instrumentais.
A análise de Silva é fundamental à medida que consegue captar as
condições de coexistência das racionalidades na disputa pelo direito de gestão das
águas. Note-se que a disputa deixa de ser pela propriedade, passando a ser pelo
privilégio da gestão. Note-se igualmente que se trata de uma disputa permanente de
racionalidades, corroborando uma das teses de Morin, a de que no mundo real é
possível e necessária a convivência de lógicas contraditórias; isso é um dos
elementos constitutivos e constituintes da complexidade da vida.
1.2.7.3 Leff e a “Racionalidade Ambiental”
Classificado por alguns estudiosos como “eco-sócio-economista”, a
produção bibliográfica de Leff orienta-se no sentido da análise de processos de
articulação das ciências naturais e sociais, tendo em vista a elaboração dos
conceitos-chave de “saber ambientale de “racionalidade ambiental”.
As três perguntas de partida de Leff são:
O que é o ambiente?
Como conhecer e apreender o ambiente?
Em que princípios se funda um saber e uma racionalidade ambiental?
Para respondê-las, Leff parte de alguns pressupostos:
O ambiente não é a ecologia, mas a complexidade do mundo, incluindo
interesses e vaidades humanas; o ambiente deixa de ser uma externalidade, sem
estar à venda; a internalização do “ambientepelos saberes o é um obstáculo,
mas uma alavanca para o desenvolvimento, inclusive o material, da sociedade; Para
apreender o ambiente, nos termos aqui apresentados, é fundamental a categoria
“racionalidade ambiental” construída a partir de saberes outros, diferentes dos
colonizados pela racionalidade instrumental.
30
Nesse particular, o saber ambiental é um saber sobre as formas de
apropriação do mundo e da natureza por meio das relações de poder que se
inscreveram nas formas dominantes do conhecimento.
As formulações de Leff não dissimulam críticas aos pressupostos da Teoria
Geral dos Sistemas (TGS). O ponto de partida da crítica é que a TGS, além de
postular uma unificação dos saberes, é refém de uma epistemologia exclusiva das
ciências naturais, logo limitadas para explicar os fenômenos socioculturais.
Ainda nessa crítica ele acentua a necessidade do princípio da “precaução
face à “migração” de conceitos de um domínio para outro. Por exemplo, o conceito
de “evolução”, se usado de maneira descuidada e inadvertida tende a excluir a
complexidade específica do humano.
Leff admite a importação de conceitos desde que eles sejam reelaborados a
partir da especificidade do saber importador. Nas entrelinhas estão os conceitos de
dignidade e autonomia de cada saber. Leff é cauteloso por compreender que cada
conceito é efeito e causa de um campo do real.
No diálogo com Foucault, Leff ensaia os primeiros passos em direção à
elaboração do conceito de saber ambiental, visando à ampliação de espaços para
os saberes subjugados pelas racionalidades instrumentais. Toma como uma das
referências o conceito de “saber ambientalpara construir a categoria central de
análise, a “racionalidade ambiental”. Outras referências são o conceito de formação
econômico-social de Marx, e o conceito de racionalidade de Weber.
No diálogo de Leff com Morin (2003), a racionalidade ambiental não
emergirá espontaneamente como se fosse um processo inevitável conduzido por
alguma “lei natural”. Ao contrário, ela emergirá a partir do processo contínuo de
elaboração e de ampliação dos espaços para os novos saberes e para a percepção
das potencialidades do sistema natureza.
Ao admitir que as epistemologias centradas no mercado que produzem
saberes normais -o insuficientes para explicar o mundo da vida, Leff parece
admitir que suas intervenções apontam para a colonização do mesmo. Admite
igualmente que as possíveis soluções para a crise socioambiental precisam ser
buscadas na sociedade, uma vez que nela estão o núcleo da crise, os interesses e
os mais profundos conflitos humanos, não na natureza em si.
31
1. 2.7.4 Capra e as “conexões ocultas” entre natureza e sociedade
Para explicitar o conceito e a natureza dos sistemas vivos, Capra (2002)
recorre a dois quadros de referências distintos, porém complementares. O primeiro é
o da autopoiese, de Maturana e Varela, que ajuda a explicar a dimensão interna ou
autogeradora de um sistema vivo. É o domínio estrutural de qualquer sistema vivo.
O segundo é o das estruturas dissipativas, de Prigogine, que auxilia na
explicação do donio externo do mesmo sistema vivo. É o domínio aberto ou a
porta de entrada do sistema vivo para o exterior em busca de matéria, energia ou
informações que oportunizarão mudanças capazes de garantir a estabilidade do
sistema vivo.
Da complementaridade entre a dimensão fechada ou autopoiética
(autocriadora) do sistema vivo e a dimensão aberta, emergem as condições não de
equilíbrio, mas de estabilidade para o mesmo. Da complementaridade citada
emerge, espontaneamente, a vida como expressão máxima do metabolismo próprio
e autônomo de todo e qualquer sistema vivo.
Com esse mesmo conceito, Capra enfrenta a inseparabilidade entre
natureza e sociedade. O seu argumento está centrado no pressuposto de que
qualquer sistema vivo constitui-se, cria-se e recria-se em forma de rede. Se aceito
como verdadeiro o argumento, nesse aspecto específico associado à capacidade
auto-organizativa e autocriadora, o há diferença entre um sistema vivo natural e
outro sistema social, uma vez que ambos possuem metabolismos próprios e em
forma de rede.
Com esse quadro inicial de referências bem explicitado e estabelecido,
Capra tenta operacionalizá-lo em desafios concretos para o núcleo do sistema
capitalista. No repertório de questões desafiadoras estão presentes “a vida e a
liderança nas organizações humanas”; “as redes do capitalismo global”; “a
biotecnologia’; e algumas possibilidades de superação dos problemas
socioambientais.
No enfrentamento de todos esses desafios, Capra torna visíveis as
insuficiências das teorias convencionais de explicar a crise contemporânea por ser
essa uma expressão do aumento da percepção em torno da complexidade em todos
os domínios da vida associativa.
32
Após apontar as insuficiências dos saberes convencionais, Capra apresenta
sua maneira alternativa de produzir e acessar o conhecimento não mais de forma
dualista e excludente da complexidade, mas de forma integradora dos sistemas
natureza e sociedade. Essa nova “percepção”, no juízo do autor, poderá
proporcionar uma “virada do jogo”, por exemplo, ao dar à biotecnologia novos
direcionamentos capazes de produzir de fato menos exclusão e mais espaços
emancipatórios para a maioria dos seres viventes do Planeta.
Se o ponto de partida de Capra é o sistema natureza, por ele considerá-lo
esse exemplo cabal de sustentabilidade, seu ponto de chegada é o sistema
sociedade com todo seu poderio ameaçador sobre a preservação da vida no
Planeta. A prova de que o ponto de chegada é o sistema sociedade reside na
admissão de Capra de que se a crise é de “percepção”, a solução não pode ser
buscada nem no sistema natureza
per si
, nem no sistema técnico, mas no sistema
sociopolítico. É nesse último que estão postas as possibilidades de escolha, a ética,
portanto.
Se o “penso, logo existo”, de Descartes, é insuficiente porque acentua a
separação entre ser humano e seres não humanos, emerge com vigor o “sinto, logo
existo”, do teólogo da libertação Leonardo Boff (2003), e o “escolho, logo existo”, do
físico quântico indiano Amit Goswami (2002), que acentuam a noção de
“pertencimento” do ser humano junto aos sistemas o humanos.
Ao mesmo tempo em que enfrenta os conceitos complexos de “vida”,
“mentee “sociedade”, Capra expõe as bases epistemológicas de sua abordagem
unificada. Além do que, ao mesmo tempo em que enfrenta “os desafios do século
XXI”, apresenta exemplos de operacionalização prática de sua abordagem
unificada.
Emerge, então, a crítica de Capra à biotecnologia com suas garras
instrumentais. A crítica torna-se enfática e convincente à medida que parte da
própria ciência instrumental para evidenciar seus pontos cegos.
Também vale a pena ressaltar que no debate clássico entre crescimento e
desenvolvimento, a recomendação sugerida pelas pesquisas de Capra é bastante
clara: ao invés de crescimento zero, a questão fundamental é a emissão zero.
Ele parte de pressupostos que pagam tributos à teoria dos sistemas e à
ecologia profunda, que não fazem distinção entre seres humanos e não humanos,
33
uma vez que reconhecem o “valor intrínseco” de todos os sistemas vivos. Como
corolário, baseado na teoria da evolução dos sistemas vivos, o sistema social
também é um sistema vivo à medida que é autopoiético. Finalmente, nenhum
sistema vivo pode ser controlado, mas apenas perturbado. Decorre daí a idéia de
que não há limites para o desenvolvimento da criatividade humana.
As perguntas de partida de Capra são: “o que é vida?ou “quais as
características fundantes da vida?”; “é possível usar a mesma matriz epistemológica
inspirada nas ciências da natureza na análise dos sistemas sociais?”
Para enfrentar tais questões, ele parte de uma matriz epistemológica
monista, que orienta a produção e o acesso ao conhecimento das relações entre
sociedade e natureza de forma unificada. Nessa empreitada, ele se filia à tradição
teórica vinculada à teoria da complexidade, ao admitir que o núcleo analítico de toda
abordagem dos sistemas vivos é a rede.
As possíveis respostas às perguntas de partida são as seguintes: a vida
precisa ser entendida em forma de rede, pois o existe sistema vivo isolado; a
membrana é a primeira característica que define a vida celular; a segunda
característica é o metabolismo próprio, a autogeração; as redes vivas criam ou
recriam a si mesmas constantemente; mesmo sem ter um projeto
a priori
e sem ser
arbitrária, a vida é uma emergência espontânea, o que refuta o determinismo
biogenético. Ampliando a análise, qualquer sistema vivo sofre alterações estruturais
permanentes, mas preserva seu padrão de organização em rede.
A partir da explicitação da complexidade da vida, Capra conclui que a crise
da contemporaneidade continua sendo de percepção. Enquanto se insistir em tomar
decisões no plano sociopolítico orientados por percepções incompatíveis com a vida,
intensifica-se a crise socioambiental. Enquanto forem ignoradas as conexões ocultas
que sustentam e dão sentido à teia da vida, aumenta-se a maldade da espécie
humana sobre si mesma.
O capitalismo que emerge da revolução informacional é diverso do da
revolução industrial e do pós-guerra, pois está centrado em redes de conhecimento.
A economia empresarial, ao excluir os custos socioambientais da atividade
econômica, exclui a complexidade, transformando o meio ambiente em
externalidade.
34
A biotecnologia em geral e os transgênicos, em especial, agravam a fome
porque excluem a complexidade da vida em nome do lucro do capitalismo. Uma
nova biotecnologia só irá emergir após a mudança de percepção dos cientistas, dos
técnicos, dos líderes políticos e empresariais.
Capra considera concluída a inserção do social em sua análise sistêmica da
realidade social. Ao que parece, ele não submete o social a uma lógica absoluta da
ciência da natureza, mas apenas tenta demonstrar as conexões ocultas que ligam os
dois sistemas.
Há de se notar que, ao aproximar a “teoria da cognição”, de Maturana e
Varela, da “teoria das estruturas dissipativas”, de Prigogine, Capra institui um modo
de produção e de acesso ao conhecimento convergente à medida que acentua o
os antagonismos entre as distintas teorias, mas sua complementaridade. Assim,
Capra pode ser caracterizado como um epistemólogo da convergência, pois poderá
inspirar outras abordagens integradoras da natureza e da sociedade.
Ele respeita e admite a autonomia do social e afirma que esse domínio da
existência associativa só pode ser explicado a partir de si mesmo o de outro
sistema. Isso lembra um dos “heróis fundadores” da sociologia, Émile Durkheim
(1988), que usou apenas a metáfora da biologia para construir sua análise
sui
generis
do social.
A despeito da ênfase dada aos aspectos biológicos e naturais da existência
humana, a abordagem de Capra elimina ou reduz qualquer determinismo
biogenético sobre os sistemas vivos. Significa que não há “inclusão parcial isto é,
o ser humano não pode ser reduzido a um número específico de células - do ser
humano na perspectiva epistemológica de Capra. Fica mais do que evidenciado que
a abordagem aqui proposta tenta apreender o indivíduo a partir de sua
complexidade biogenética, mas também de sua complexidade psicossocial.
O fato de Capra construir sua análise tomando como referência uma matriz
unificadora dos domínios natural, social e psicológico, mas partindo dos
pressupostos das ciências naturais, é absolutamente justificável dada sua formação
básica de origem ter sido nas ciências “duras”. Como ele mesmo afirma na
apresentação do livro, nada impede que algum estudioso formado nas ciências
sociais faça o caminho inverso: parta das ciências sociais para as ciências da
natureza.
35
Nesse sentido, a abordagem de Capra é de muita utilidade para os
epistemólogos dualistas, tanto os reféns dos sistemas naturais quanto os dos
sistemas sociais, que já estiverem insatisfeitos com seus respectivos modos de
produção e acesso de saberes. Mas também é de grande valia para epistemólogos
monistas que necessitem de novas pistas analíticas para seus desafios de pesquisa.
Para o estudo das racionalidades substantivas no debate socioambiental e
na gestão das águas, a abordagem de Capra é fundamental à medida que reivindica
espaços para novos modos de produção de conhecimento, dessa vez orientados
para a complementaridade entre os sistemas natureza e sociedade.
1.2.7.5 Morin e o “reencantamento” das racionalidades
A contribuão de Edgar Morin (1991; 2003) é fundamental aos avanços de
estudos sobre o “reencantamento” das racionalidades. Uma das principais
estratégias metodológicas de Morin é abrir o conceito de racionalidade como
possibilidade de enfrentamento da complexidade.
Ao construir relações entre ciência contemporânea e racionalidade, Morin
apresenta o núcleo duro do seu pensamento acerca da abertura das racionalidades.
Para ele,
o novo curso científico, há um século, faz arrebentar o quadro de
uma racionalidade estreita. Observa-se a irrupção da desordem
(acaso, aleatoriedade) nas ciências físicas (termodinâmica,
microfísica, teoria do universo); a irrupção de aporias (ou antinomias
lógicas) no âmago do conhecimento microfísico e do conhecimento
antropossociológico (como pode o homem ser seu próprio objeto,
como encontrar um ponto de vista universal quando se faz parte de
uma sociedade particular?), e a irrupção correlativa da questão do
sujeito observador-concebedor nas ciências físicas e humanas
(MORIN, 2003, p.166).
Arrebentar as fronteiras de uma razão estreita significa abrir espaços para
outras racionalidades que ficaram à margem do predomínio das racionalidades
instrumentais. Note-se que as ciências físicas deram início aos processos de
implosão de seus limites explicativos centrados em perspectivas lineares.
Esse movimento de “reencantamentodas racionalidades ao mesmo tempo
em que afasta a influência do mecanicismo das ciências físicas, tende a forçar a
“migração” do conceito de racionalidade dos domínios abstratos e metafísicos do
36
saber para domínios próximos aos sistemas vivos biológicos. É nesse momento que
ele fala em razão não como abstração solta no espaço, mas como derivação, como
efeito e causa de estruturas biológicas. Assim, Morin consegue demonstrar como as
racionalidades deixam de ser abstrações mecânicas, rígidas e sem vida, para se
transformarem em sistemas vivos e biodegradáveis.
Nesse particular, Morin oferece muitas pistas para se pensar as
racionalidades substantivas, que estiveram fora de toda discussão fechada ou
instrumental das racionalidades. Em seus próprios termos,
tudo o que não está submetido ao estreito princípio de economia e
de eficácia (assim, a festa, o potlatch, o dom, a destruição suntuária),
é racionalizado como forma balbuciante e débil da economia, da
troca (MORIN, 2003, p.167).
Sendo assim, o que não estiver sob controle das racionalidades
instrumentais é apresentado como experiências “menores”, como “anedotas”. Note-
se que no outro lado do debate, as racionalidades “reencantadas” deixam de ser
rejeições para se transformarem em diálogo com o “irracional”. Em perspectiva
idêntica à de Bachelard, as racionalidades “reencantadas” tendem a reconhecer o
“sobrerracional”, tal como o amor e outras formas de sentimentos.
As racionalidades “reencantadas” poderão possibilitar a comunicação entre o
“racional”, o “a-racionale oirracional”, pois elas mesmas podem identificar em seu
interior áreas ou espaços irracionalizáveis e incertos. As racionalidades
“reencantadas” constroem complementaridades mas às vezes também
antagonismos entre inteligência e afetividade.
As formulações de Morin, am de se caracterizarem como abordagens
transdisciplinares, consolidam-se como estratégias fecundas para tornar visíveis as
racionalidades substantivas no debate socioambiental e nas experiências de gestão
das águas. Uma de suas mais importantes contribuições é o conceito de
autonomia”, um dos elementos constitutivos e constituintes das racionalidades
substantivas.
As racionalidades “desencantadas” propunham-se a captar apenas a ordem
na natureza, ao passo que as racionalidades “reencantadas” permitem conceber a
organizão e a existência e, em função disso, permitem ver os peixes, mas
também o mar. Tentam enxergar o que não pode ser pescado.
37
As racionalidades “desencantadas” permitiriam ver apenas a dimensão
instrumental da gestão das águas, ao passo que as racionalidades “reencantadas
permitem captar as dimensões substantivas.
Tal como na discussão das racionalidades, Morin consti o conceito de
autonomia não tomando como referências abstrações metafísicas, mas a partir dos
sistemas vivos.
De certa forma Morin se esforça em demonstrar que as ciências naturais
permitem dar sentido substantivo à idéia de autonomia. Para tanto, ele toma como
quadros de referências a Cibernética, de Norbert Wiener, e a Teoria dos Sistemas,
de Von Bertalanffy.
Da Cibernética Morin extrai a ruptura com a noção de linearidade, ao
recuperar o conceito de “retroação”. Esse último “rompe com a causalidade linear,
fazendo-nos conceber o paradoxo de um sistema causal cujo efeito repercute sobre
a causa e a modifica. Assim, vemos aparecer a causalidade em anel” (MORIN, 2003,
p.279).
No exemplo da homeotermia a causalidade retroativa produz uma
endocausalidade capaz de emancipar o organismo das causalidades externas, a
despeito de sofrer suas influências. Em suas palavras, o organismo homeotérmico
sofre os efeitos, mas, reagindo a eles, contraria-os ou anula-os. O
homeotérmico, longe de ser atingido e degradado pelo frio externo,
responde-lhe por meio de uma maior produção de calor interno e,
paradoxalmente, o frio (externo) provoca o calor (interno) (MORIN,
2003, p.280).
Do trecho acima é possível delimitar o conceito de autonomia de Morin a
partir de um sistema anelado capaz de criar sua própria causalidade e, como
corolário, sua própria autonomia. O exemplo da primeira célula é esclarecedor.
Mesmo só podendo ter surgido ao acaso, sob condições extremamente aleatórias,
uma vez constituída, a célula deixa de depender das condições externas de origem,
conquista sua autonomia. Fica evidenciado o conceito de “retroação” importado da
Cibernética.
Outra experiência de “migraçãoé a do conceito de “sistema aberto”. Na
reelaboração de Morin, um sistema aberto é um sistema capaz de alimentar sua
autonomia, pom mediante fortes relações de dependência face ao ambiente.
38
Em suma, Morin promove a “migração” de dois conceitos, o de “retroaçãoe
o de “sistema aberto” para fazer emergir o conceito de “auto-eco-organização”,
próprio dos sistemas vivos. Mas, a idéia a ser guardada é que autonomia e
dependência são faces de uma mesma moeda. Morin é insistente na tese de que o
aumento da autonomia está associado ao aumento da dependência do sistema vivo
em relação ao ambiente. A ressalva feita é que é fundamental o confundir
dependência com subordinação, pois Morin opera com lógicas complementares sem
deixar de levar em conta os antagonismos inevitáveis entre os sistemas vivos e o
ambiente. O corolário é que o sistema reputado mais complexo é autônomo sem ser
auto-suficiente.
A noção de “autonomiadesenvolvida por Morin é fundamental para a
presente tese. Trata-se de uma noção que foi sistematicamente excluída da Biologia
Clássica e nunca assimilada pelas teorias sociológicas clássicas, que emerge como
central à identificação dos elementos constitutivos e constituintes das racionalidades
substantivas.
1.2.7.6 Floriani e a “epistemologia da transgressão”
Em perspectiva similar à de Edgar Morin, é possível apresentar a
epistemologia da “transgressãode Floriani. Suas estratégias metodológicas, em
parceria com suas perguntas de partida, são policêntricas à medida que escapam
das camisas-de-força impostas pelas racionalidades instrumentais.
No diálogo de Floriani (2004) com autores tais como Maturana e Varela,
Bateson, Luhmann e Leff, são dadas muitas pistas para a elaboração de teorias e
metodologias orientadas pelo princípio da “unidade”, isto é, da complementaridade
entre organismo, mente e ambiente. Ressalte-se que é uma tradição de
pensamento, apesar de avançada, pouco conhecida nos programas de pesquisa
brasileiros, sobretudo nos das Ciências Sociais.
Os principais quadros de referências de Floriani são Edgar Morin, com seu
paradigma da complexidade e da racionalidade aberta; Maturana e Varela, com a
autopoiesis
; Enrique Leff, com seu diálogo de saberes e a racionalidade ambiental;
Luhmann, com seu sistemismo sem sujeito; Bateson, com a sua aposta em uma
possível ecologização da mente. Além desses e de outros, ainda há espaço para
39
Giddens, Beck, Castells, Touraine, Sheldrake, Hannigan, Heller, Bourdieu,
Feyerabend, Foucault, Harvey, Wallerstein, Sen, Rifkin.
Os eixos que sustentam e orientam as formulações de Floriani estão
diretamente associados a não separação entre natureza e sociedade. Emerge deles
um repertório de pistas para se produzir e acessar conhecimentos envolvendo os
domínios naturais e sociais.
Pode-se considerar que o “núcleo duroda odisséia epistemológica de
Floriani é sua tentativa inovadora de explicitar as possibilidades objetivas de
construção de matrizes epistemológicas convergentes ou integradoras dos sistemas
sociedade e natureza sem deslizes simplificadores. Um dos desdobramentos dessa
empreitada é a emergência de novas discussões para fortalecer a construção de
teorias sociológicas capazes de enfrentar a complexidade ambiental.
O autor demonstra que, para construir novas lógicas interpretativas das
emergências contemporâneas, a “migrão” de conceitos, com devidos ajustes,
torna-se imprescindível e inevitável. Um dos exemplos já consagrados é o de
“campo de forças”, transposto por Bourdieu, da física para as ciências sociais, para
estudar as “disputas simbólicas” ou de “sentidosno interior dos sistemas sociais,
sobretudo no que se refere aos temas ambientais.
A “migração” de conceitos representa a ruptura de fronteiras fortemente
delimitadas, além de serem indicadores de racionalidades abertas para os
imponderáveis, para as novas emergências não captadas pelos sistemas de saber
constituídos. Em suma, a “migração” de conceitos, se ainda não consegue destruir,
e em questão a tradicional “reserva de mercado”, que domina os sistemas
fechados e produtores exclusivistas de sentidos.
Nessa perspectiva, se os temas ambientais continuarem sendo apreendidos
como “externalidades”, os sistemas fechados continuarão incapazes de explicá-los.
Daí a necessidade de “aberturaou de “reencantamento” dos sistemas de saber
para que haja melhor enfrentamento das “externalidadese da complexidade dos
temas ambientais.
A abordagem de Floriani é pródiga em exemplos de “reencantamentodos
sistemas de saber. Um dos bons exemplos é o da globalização. Se entendida
apenas pela matriz hegemônica da economia, tende a sacrificar e a negar outros
40
níveis de complexidade, tais como “a recusa de movimentos sociais e de nações à
homogeneizão e à desterritorialização” (FLORIANI, 2004, p.10).
A globalização também pode ser compreendida a partir de movimentos
contra-hegemônicos e tal estratégia representa uma evidente ruptura epistemológica
porque há possibilidades de se produzir outros saberes que vão além dos saberes
reputados “inquestionáveis”, produzidos pelas matrizes fechadas da economia.
No bojo desse debate vale a pena destacar a crítica de Floriani à abordagem
cosmopolita, mas insuficiente que Giddens elabora sobre a globalização. Giddens
tende a desdenhar dos novos saberes espalhados pelo Planeta. Ele se cala
absolutamente diante de outras tradições ausentes, portanto, em seus textos. Trata-
se da tradição cultural e étnica dos povos autóctones ou indígenas, de seus saberes
milenares que tamm se renovam, daquilo que a ciência e os novos hábitos de
consumo alternativo resgatam, por exemplo, no domínio da fitoterapia e da gestão
dos recursos naturais (FLORIANI, 2004, p.70-1).
A dimensão “desencantada” da formulão de Giddens é insuficiente não
por estar errada, mas porque exclui outros atores e outras histórias o
contempladas nos sistemas enclausurados de saber aos quais continua filiado. Em
uma frase, a formulação de Giddens é insuficiente à medida que tende a classificar
como anedotas algumas expressões materializadas de racionalidades
marginalizadas.
Outros exemplos de “migração” de conceitos e categorias de análises
aparecem nos diálogos de Floriani com autores fundadores de epistemologias
integradoras. Tais diálogos são reputados, pelas vertentes “desencantadas” ou
ortodoxas das ciências sociais e naturais, como profanadores dos totens “sagrados
dos referidos sistemas de saber.
Para os menos tolerantes, trata-se de um diálogo impossível, uma vez que
o saberes caracterizados como absolutamente incompatíveis. Floriani demonstra
que tais padrões de pensamento são, em si mesmos, “pontos cegos”, espaços que
determinados sistemas de saber não conseguem visualizar. A não de “ponto
cego”, trazida da dupla cognitivista chilena, Maturana e Varela, é fundamental para
abrir as fronteiras das ciências sociais para a internalização do ambiente e, da
mesma forma, para abrir as fronteiras das ciências da natureza para os ruídos do
social.
41
A noção de “ponto cego”, portanto, simultaneamente, emerge como uma
autêntica fuga à tentação da certeza e um convite à incerteza. Trata-se de um
enfrentamento da complexidade, pois “de nada adiantaria aprender algo que já foi
aprendido” (FLORIANI, 2004, p. 82).
A noção de “ponto cego” também ajuda a romper com as fronteiras da
tradição dualista, que costuma acentuar a separação entre conhecer e agir. Ao
recorrer à dupla chilena, Floriani consegue explicitar que conhecer e agir o são
domínios antagônicos dos sistemas vivos, mas faces de um mesmo processo. São
complementares, pois se conhece agindo e age-se conhecendo.
Se é verdade que a conduta cultural é um caso particular da conduta natural,
torna-se inócua a distião ou separação entre sociedade e natureza. Como
assimilar tudo isso sem escorregar para os determinismos biológicos?
Fica mais do que claro que a dimensão
autopoiética
do sistema cultural o
se determina pelo sistema biológico. O que ele faz é retirar ou filtrar do sistema
biológico elementos para garantir sua perenidade. No esquema monista de
Maturana e Varela, explicitado por Floriani, não faz sentido a dicotomia entre natural
e cultural, desde que se considere a ambos como expressões materializadas do
processo evolucionário da vida no Planeta.
Mesmo adquirindo o
status
de realidade
sui generis
, o sistema cultural não
está isolado de sua base natural. Realidade
sui generis
significa
autopoiesis
ou
capacidade de auto-produzir-se sem, em hipótese alguma, desvincular-se da base
natural. É oportuno recordar que autonomia está associada não a isolamento, e sim
dependência sem submissão ao ambiente.
Incorporada a noção de “ponto cego”, torna-se mais acessível a
compreensão da “epistemologia como ramo da história natural”, esboçada por
Bateson. Da mesma forma que a dupla chilena, Bateson rejeita as teses
simplificadoras do dualismo e introduz os pressupostos de uma epistemologia do
“erro”.
Para Floriani, Bateson entende que o erro da epistemologia convencional
reside no fato de aceitar a idéia de que os objetos têm “propriedades”. Com a
epistemologia do “erro”, Bateson demonstra que as “propriedades” são as diferenças
existentes em cada contexto. Manteiga e mesa, por exemplo, apresentam-se de
forma diferente não porque possuam “propriedades” intrínsecas, e sim porque ao
42
tocá-las somos informados de maneira diferente. Perceba-se que a noção de
sistema para Bateson é unificadora, pois é “o homem-e-o-ambiente. Floriani
assevera que, nessa linha de raciocínio, o faz sentido falar em homem contra o
ambiente, mas um no outro.
Finalmente, Floriani torna visível que o projeto epistemológico de Bateson
está fundamentado em estratégias mistas que possibilitam espaços para as mais
diversas racionalidades: utilização de recursos de teorias, métodos e experiências
pessoais, contextuais e transculturais.
Do diálogo de Floriani com Luhmann, Morin e Leff é possível destacar como
ponto em comum a inseparabilidade entre natureza e sociedade. Como pontos
divergentes, é evidente a má vontade de Floriani junto a Morin e Leff de aceitar a
radicalização de um sistemismo sem sujeito. Floriani parece estar mais próximo dos
conceitos de racionalidade aberta, de Morin, e do de racionalidade ambiental de Leff,
porque ambos incorporam níveis de complexidade associados ao sujeito.
O fato é que Floriani inspira-se nos autores citados para levar adiante sua
“epistemologia da transgressão”, pois demonstra ser possível produzir
conhecimentos socioambientais a partir de novas matrizes e de novas
racionalidades. Tal tarefa ele realiza ao tratar dos novos desafios da sociologia
ambiental.
A partir da inseparabilidade entre natureza e sociedade, o autor combina
metodologias e racionalidades diversas que captam complementaridades e
antagonismos entre abordagens que se esforçam em aproximar natureza e
sociedade sem hierarquia de uma sobre a outra.
Como ele faz isso?
Convida todos os autores referenciados para um diálogo capaz de tornar
visíveis, de um lado, algumas insuficiências dos saberes “desencantados” e, de
outro, as potencialidades dos saberes “reencantadosou orientados para o
enfrentamento da complexidade.
Pode-se afirmar que a abordagem de Floriani é um declarado manifesto
contra as tentações da certeza que perseguem os modos de produzir conhecimentos
da era moderna. Pode-se afirmar, ainda, que a presente formulação, com seus
infinitos convites à incerteza, é uma materialização do “reencantamento” das
43
ciências da sociedade e do ambiente, isto é, da “abertura” dos dois citados sistemas
de saber para questões consideradas “externalidades”.
Se muitos autores vêm falando e insistindo na necessidade de “reencantar
os modos modernos de produção de conhecimentos, Floriani consegue não apenas
supor, mas demonstrar como tal empreitada é possível. “Reencantar” significa,
fundamentalmente, ter ousadia para importar conceitos produzidos em outros
domínios, conferindo-lhes novos significados e novas possibilidades interpretativas.
Fica demonstrado que é possível e necessário estudar a sociedade e a
natureza não como domínios em si mesmos, mas como domínios complementares.
Nesse particular, as presentes formulações sugerem o “reencantamento” das
ciências da “sociedade”, mas também das ciências da “natureza”.
Em suma, o “reencantamento” proposto por Floriani pode ser traduzido como
um chamamento a outras formas de indagar, pois diante das emergências
socioambientais, as novidades estarão nas novas perguntas não nas respostas
insuficientes e ultrapassadas das ciências “desencantadas”.
Note-se que o autor se orienta por racionalidades da transgressão, pois ao
demonstrar as insuficiências dos saberes “desencantados”, demonstra igualmente o
que há de mofado nos mesmos.
Trata-se de uma quebra paradigmática desde que se considere que a
maioria dos cientistas da sociedade ainda resiste em se ocupar de temas
“reservados” às ciências da natureza. A abertura das ciências sociais para os temas
ambientais é um indicador do processo de “reencantamentodo mundo, revela as
insuficiências dos saberes isolados e, além disso, a necessidade de se caminhar em
direção à incerteza ou à complexidade da vida. Floriani, ao enfrentar a complexidade
tende a estimular a recursividade dos mais variados sistemas produtores de sentidos
e símbolos.
Em função de tudo isso, sua abordagem é, de um lado, de extrema utilidade
aos epistemólogos lineares que já começaram a perceber as insuficiências de seu
modo de produção e acesso ao conhecimento. De outro, contribui para que os
epistemólogos não-lineares se convençam acerca do valor afirmativo da
marginalidade e das racionalidades da transgressão.
44
É na segunda perspectiva que se enquadra a presente tese sobre as
racionalidades substantivas no debate socioambiental e nas experiências de gestão
das águas.
1.2.8. Comentários sobre as Insuficiências da Abordagem de Weber
Tomando como referências as abordagens de Guerreiro Ramos, Godelier,
Habermas e Morin, a principal insuficiência das formulações de Weber foi ter
centrado suas análises nas racionalidades instrumentais. Em fuão de tal opção
epistemológica, ele terminou por apreender as experiências “singulares” de
expansão da Europa Ocidental como tendências “universaise “inexoráveis”. Ao
privilegiar as racionalidades instrumentais, Weber, embora admita outras
possibilidades, joga para planos secundários as racionalidades substantivas.
É oportuno destacar que na análise crítica que Guerreiro Ramos elabora,
Weber se resigna face à racionalidade instrumental, aceitando-a como realidade
inexorável e intransponível. Ao admitir hierarquia entre as racionalidades, Weber
parece aceitar possíveis redões de espaços para a auto-realização, para a
substantividade, enfim, para os valores mais íntimos do indivíduo humano. Além do
que, também parece admitir que as racionalidades substantivas caracterizam-se
mais como obstáculos que alavancas para o êxito das experiências associativas.
1.2.9. Comentários sobre as Insuficiências de Guerreiro Ramos e Serva
Tomando como referências as abordagens de Capra, Morin e Floriani, a
primeira insuficiência de Guerreiro Ramos e Serva parece ser que os dois autores
o superam o dualismo, a separação entre natureza e sociedade, uma vez que
dedicam todos os seus esforços de pesquisa e reflexão apenas ao sistema
sociedade, deixando em planos secundários o sistema natureza.
A segunda insuficiência está associada ao fato dos dois autores admitirem,
talvez indiretamente, as racionalidades como atributo natural, porém exclusivo da
espécie humana. Trata-se de uma insuficiência porque, ao que parece, está
demonstrado que os sistemas vivos o humanos orientam sua existência por meio
45
da “auto-organização” que é uma expressão materializada das “racionalidades
próprias” ao sistema vivo em questão.
Esse diálogo permanente entre sistemas vivos e ambiente é aqui
apresentado como expressões de racionalidades substantivas e trata-se de um
diálogo fundamental para o entendimento de experiências de gestão dos recursos
naturais e das águas.
1.3 RACIONALIDADES SUBSTANTIVAS E GESTÃO DE RECURSOS NATURAIS
Entre os diversos estudos sobre gestão de recursos naturais merecem
destaque as contribuições da equipe de Leff na América Central e, em particular, no
sul do México. São estudos que utilizam estratégias metodológicas centradas em
racionalidades fundamentalmente substantivas, pois partem do pressuposto de que
gerenciar recursos naturais implica levar em conta as diferenças de temporalidades
entre bio e sociodiversidade. A necessidade de incorporar os saberes de grupos
nativos às políticas de gestão ambiental deixam claro que a noção de
desenvolvimento sustentável passa necessariamente pelo respeito aos saberes e
práticas locais.
Outro conjunto de pesquisas que dá importantes pistas que vão além das
racionalidades instrumentais é a coletânea organizada pela dupla Vieira e Weber
(2002). A coletânea faz uma varredura pelo mundo em busca de experiências
concretas de gestão de recursos naturais. Merece destaque o fato de ficarem
demonstradas as potencialidades das novas metodologias sintonizadas com as
racionalidades substantivas.
Na denúncia bombástica de Vandana Shiva (2001) aos processos
sofisticados de sociobiopirataria estão contidas algumas pistas tanto de pesquisas
quanto de gestão de recursos naturais centradas nas racionalidades substantivas.
Na perspectiva de Shiva, o combate à sociobiopirataria exige intervenções capazes
de valorizar os saberes e práticas existenciais locais, uma vez que neles estão
algumas possibilidades objetivas de resistência contra as dimensões colonizadoras
das racionalidades instrumentais.
Há de se notar que são abordagens que cumprem duas funções: a de
acentuar as críticas e os limites das racionalidades instrumentais e, ao mesmo
46
tempo, indicar que nas fronteiras das referidas racionalidades instrumentais
emergem outras racionalidades para participar na disputa pela gestão.
1.4. RACIONALIDADES SUBSTANTIVAS E GESTÃO DAS ÁGUAS
1.4.1 Gestão das Águas no Brasil e no Mundo: Escassez de Água ou de
Criatividade?
Especificamente sobre as águas, o número de estudos, debates e pesquisas
vem aumentando desde o momento em que o fantasma da “escassez” espalhou-se
pelo mundo. A “escassez” tornou-se palavra-chave do debate em torno da gestão
das águas. Algumas análises projetam-se a partir da “escassez” pela “escassez”.
Nessa perspectiva centrada na “escassez”, uma das principais referências é
a coletânea sobre as políticas de gestão das águas na Europa, organizada por
Barraqué (1995). Nela, estão contidas diversas pistas metodológicas em termos
quantitativos e qualitativos usadas nas análises das experiências de gestão de
quinze países europeus. Trata-se de um mapeamento que possibilita aproximações
e comparações entre as práticas de gestão de cada um dos países.
A coletânea organizada por Setti faz um mapeamento da gestão das águas
especificamente no Brasil e é um dos autores que se arrisca a conceituar a geso
das águas. Para ele, “a gestão dos recursos hídricos é decio política, motivada
pela escassez relativa de tais recursos e pela necessidade de preservão para as
futuras gerações” (SETTI, 2001, p.61). No núcleo do conceito emerge, junto à
preocupação com as gerações futuras, a noção de escassez como obstáculo à
gestão.
De fato, a diferença de temporalidade entre sistema sociedade e sistema
natureza não fica esclarecida. A velocidade com a qual o primeiro sistema apropria-
se e degrada as águas é muito superior à velocidade de autolimpeza (autogeração)
das águas. Para Setti,
o ciclo hidrológico é responsável pelo movimento de enormes
quantidades de água ao redor do mundo. Parte desse movimento é
rápido, pois, em média, uma gota de água permanece
aproximadamente 16 dias em um rio e cerca de 8 dias na atmosfera.
Entretanto, esse tempo pode estender-se por milhares de anos para
a água que atravessa lentamente um aqüífero profundo. Assim, as
47
gotas de água reciclam-se continuamente (OMN/UNESCO, 1997
citado por SETTI, 2001, p.65).
O trecho recortado revela que a questão fundamental passa a ser não a
determinação da quantidade de água disponível na Terra, muito menos a tentativa
de limitação do consumo com discursos e exortações. O ponto central passa a ser a
modificação do modo de gestão e de acesso às águas. É nessa direção que
algumas matrizes interpretativas tendem a afirmar que, enquanto o modo de gestão
e de acesso estiver amparado na negação de espaços para as racionalidades
substantivas, dificilmente o consumo abusivo será combatido, nem as
temporalidades do sistema natureza serão respeitadas.
A despeito de Setti trabalhar com a matriz da finitude dos recursos hídricos,
ele próprio estimou
[...] que a demanda total de água no mundo no ano 2000 [seria] de
3.900 km³, o que representa[ria] menos de 10% do volume total
disponível. Portanto, em nível global, não há escassez hídrica,
porém, a má distribuição espacial e temporal dos recursos hídricos
faz com que algumas áreas sofram permanentemente por falta
d’água. Outro fator importante para a determinação de zonas em que
a água é um recurso escasso é a distribuição populacional na Terra
(SETTI, 2001, p.68).
Note-se que mais uma vez o autor centrou sua análise em argumentos
biofísicos e populacionais, deixando em planos secundários o problema da má
gestão. Antes de discutir o problema da má gestão, é imperativo resgatar outras
pesquisas que contestam ou no mínimo põem em dúvida as teses da finitude das
águas na Terra. Trata-se do estudo de Tundisi, no qual o autor argumenta que
até o final da década de 1980, acreditava-se que o ciclo hidrológico
no Planeta era fechado, ou seja, que a quantidade total de água
permanecera sempre a mesma desde o início da Terra. Nenhuma
água entraria no planeta Terra a partir do espaço exterior, nenhuma
água o deixaria. Descobertas recentes, entretanto, sugerem que
bolas de nevede 20 a 40 toneladas, denominadas pelos cientistas
de ‘pequenos cometas’, provenientes de outras regiões do sistema
solar podem atingir a atmosfera da Terra. As chuvas de ‘bolas de
neve’ vaporizam-se quando se aproximam da atmosfera terrestre e
podem ter acrescentado 3 trilhões de toneladas de água a cada
10.000 anos (FRANK, 1990; PIELOU, 1998 citados por TUNDISI,
2003, p.6).
Sendo assim, embora essas águas “espaciais” sejam importantes, é
fundamental perceber que o maior desafio para muitos países em particular e para a
48
humanidade não é a escassez, mas a capacidade de gestão de muitas ou poucas
águas
6
, de preferência com o máximo de participação da sociedade.
Emergem as indagações inevitáveis. É possível falar em participação social
na gestão das águas? Será que algumas experiências de participação da sociedade
podem se caracterizar como participações efetivas ou às avessas?
Um exemplo de gestão às avessas é o caso das águas no Norte da China,
onde o nível das águas subterrâneas está reduzido, em média, cerca de 1,5 m/ano e
os poços da região estão secando e obrigando os agricultores irrigantes a
aprofundar seus poços de captação, ou então abandonar a agricultura irrigada.
Tais como as experiências de gestão das águas às avessas, em outras
partes do mundo, Índia, Estados Unidos etc, tamm há registros pouco dignos de
aplausos em função do predomínio das racionalidades instrumentais sobre outras
racionalidades.
O estudo de Tundisi (2003), um dos maiores pesquisadores na área de
recursos hídricos, o se limita à gestão no Brasil, pois faz uma análise quantitativa
e qualitativa de várias experiências de gestão em todo o mundo.
É importante destacar que Tundisi parte do pressuposto da escassez, uma
vez que considera que a temporalidade do sistema sociedade o ciclo hidrossocial -
supera a temporalidade da água o ciclo hidrológico. Esse descompasso entre os
dois sistemas provoca o consenso de que se caminha para a escassez e a
percepção do descompasso ime a necessidade de outras formas de gestão.
Apesar da contribuição de Tundisi ser valiosa, sobretudo ao indicar
necessidades de outras formas de gestão, sua abordagem oferece argumentos para
setores da economia orientados pelas racionalidades instrumentais. O pressuposto
da economia adquire importância no debate sobre o gerenciamento das águas: se
elas são limitadas asseveram eles - e as necessidades humanas são ilimitadas, só
resta “uma solão”, reconhecer seu valor econômico.
A referida perspectiva econômica parece ser um dos principais locais, no
qual a problemática da gestão das águas está “resolvida”. Isso ocorre a partir do
momento em que se determinam preços para as águas. Resta saber se, de fato, tal
6
O exemplo do Mar de Aral é significativo e fundamental ao entendimento daquilo que pode ser
caracterizado como uma má gestão, orientada por megaprojetos sem qualquer planejamento
integrado.
49
iniciativa enfrenta a questão da escassez de forma eficiente não apenas do ponto de
vista econômico, mas socioambiental. Eficiência aqui entendida como possibilidade
de acesso para todos, uma vez que eficiência na gestão das águas está associada à
ampliação e não negação de espaços para auto-realização humana.
Mas, voltando a Tundisi, se aceita como verdadeira sua idéia de que a água
é fundamental para todos os sistemas vivos, aceita-se igualmente a idéia de que
todos terão direito à água. Caso contrário, admite-se a sobrevivência apenas de
alguns.
Se ela é vital para todos os sistemas vivos e, em especial, para a vida
humana, mais do que qualquer outro ecossistema, a água adquire, na lógica de
mercado, o
status
de “sagrada”. É importante ressaltar que a água torna-se sagrada
o porque é essencial à vida, mas por servir de alavanca para a produção de lucro
como qualquer outra mercadoria. E nesse particular, a “sacralização” econômica das
águas tende a intensificar as disputas no interior de uma civilização que aprendeu a
se constituir a partir menos da cooperação do que da competição.
Nessa perspectiva, tamm a gestão das águas pode ser apreendida como
gestão das racionalidades envolvidas e estas, por sua vez, expressam os mais
variados interesses, desde os autodenominados emancipatórios
7
até os mais
pragmáticos e orientados pela lógica instrumental do mercado
8
.
Uma das insuficiências de Tundisi é admitir a “crise” da água a partir dela
mesma. Parece que a análise, mesmo aceitável, está deslocada, pois é a crise
permanente da humanidade que ameaça as águas e a biosfera, não o contrário.
No estudo de Felicidade, Vargas e Cristina Miranda (2001) são
apresentados resultados recentes de pesquisas sobre uso e gestão das águas no
Brasil. O estudo trata especificamente do processo de interiorização do
desenvolvimento no estado de São Paulo e suas implicações ao acesso e uso da
água pelo cidadão.
Trata-se de um bom estudo que, a despeito de sua preocupação central ser
ainda a denúncia das racionalidades instrumentais, é pródigo em pistas reveladoras
das necessidades de novas racionalidades.
7
A Campanha da fraternidade de 2004 associa água e fraternidade como possibilidade
emancipatória.
8
Empresas transnacionais que reinventam antigos processos de “colonização” de mananciais em
países ricos em recursos hídricos. Trata-se de uma forma de colonização: a colonização pelas águas.
50
O argumento central dos autores é que a indústria continua sendo um dos
principais fatores de risco, sobretudo para regiões consideradas “atrasadas”. A
atividade industrial continua sendo uma das mais significativas expressões das
racionalidades instrumentais à medida que atuam como “rolos compressores” sobre
os sistemas biofísicos e social.
Como emergem as outras formas de diálogo com tais contradições
socioambientais?
Pelas portas dos fundos da “modernização”, isto é, por intermédio das
doenças. São inúmeros “casos de hepatite, disenteria, leishimaniose,
envenenamento por produtos químicos, entre outros” (FELICIDADE, VARGAS e
MIRANDA, C. 2001, p.225).
Tal como ocorreu com algumas metrópoles brasileiras, as cidades do interior
paulista atraíram indústrias para tentar resolver a problemática social, caracterizada
como “atrasada”: escassez de emprego foi uma das significativas.
Para atr-las foi necessário disponibilizar vantagens econômicas, mas
também naturais como as águas. Seguem alguns indicadores extraídos da pesquisa
citada:
Piracicaba consumidores de energia elétrica: de 67.194, em 1990, para
86.729, em 1997 (29,07% de crescimento).
o Carlos (bacia do Tietê- Jacaré): de 37.620, em 1990, para 52.042, em
1997 (38,33% de crescimento).
Os dados revelam e ajudam a compreender que a expansão das atividades
econômicas não dotou os municípios de condições para gerar políticas de incluo
social. Além do que, as estratégias adotadas no interior parecem ser as que estão
ultrapassadas no cenário mundial, a saber: a combinação de “progresso” com
degradação socioambiental.
As desigualdades materializam-se nas ocupações irregulares das regiões de
mananciais. A participão social de tais grupos excluídos ocorre às avessas
9
, uma
vez que são os grupos mais expostos aos riscos. Por outro lado, são eles os
mesmos grupos que põem em risco todo o sistema sociedade. Se esse último é
9
Em outro contexto, discutindo alguns desdobramentos provocados pelos processos de globalização,
Castells (1998) denomina essa participação às avessas de “integração perversa”.
51
ameaçador para os excluídos, esses, na busca pela sobrevivência, tornam-se
verdadeiras ameaças para todos. Eis um dos dramas centrais da sociedade de risco.
A vulnerabilidade do tecido social é denunciada de forma bombástica pelos
autores:
Essas fixações precárias [as ocupações irregulares] se constituem no
território de grupos sociais mais expostos aos riscos de convivência
com um ambiente de vetores de parasitas, de alta probabilidade de
desabamentos e inundações, e os que menos estão preparados são
reconhecidos como os que merecem ocupar os espaços decisórios
de planejamento do uso sustentável (FELICIDADE, VARGAS e
MIRANDA, C. 2001, p.231).
Note-se que, embora os autores não chamem a atenção para as outras
racionalidades que potencialmente podem emergir, a participação de tais grupos de
“atores sociais” no processo de gestão das águas materializa-se em forma de
ameaça para os sistemas natureza e sociedade, impondo, no mínimo, outras
orientações para a gestão.
Tais experiências de disputa de racionalidades parecem revelar que
políticas públicas orientadas por racionalidades instrumentais tenderam a se
transformar em iniciativas anti-públicas, se se considerar que as mesmas, ao invés
de incluir, excluem contingentes cada vez maiores de grupos, das possibilidades de
acesso ao sistema sociedade.
Será que muitos dos problemas socioambientais não são efeitos reversos
das próprias políticas “públicas” orientadas por racionalidades instrumentais?
E a gestão das águas? Quais a apostas dos autores?
Eles apostam na cobrança pelo uso das águas, mas não deixam de criticar
alguns aspectos. Há uma mudança mundial no eixo das políticas públicas: da gestão
da oferta para a gestão da demanda, a partir da década de 1960. Para eles,
parte das resistências que a cobrança pelo uso da água como
instrumento estratégico da política suscita decorre de ela igualar os
desiguais, mascarar muitos aspectos sociais que evidenciam a
exclusão social, dentre os quais, o de que populações inteiras ainda
não têm o acesso e o uso da água, garantidos dentro das condições
adequadas à manutenção de sua integridade física; e de que
populações inteiras estão sendo jogadas para as áreas de
mananciais pela incapacidade de participarem, como consumidores,
do mercado de terra urbano dos municípios/regiões que prosperam
(FELICIDADE, VARGAS e MIRANDA, C. 2001, p.234).
52
O trecho revela que se por acaso os instrumentos privilegiados, como a
cobrança, não forem suficientes para combater situações desse tipo como
propósito e efetividade, municiado pela relação dialógica com as comunidades,
o cumprirão um dos principais fundamentos sociais pelo qual a Política
Nacional dos Recursos Hídricos tem razão de existir no Brasil. Aqui fica
demonstrada a insuficiência de políticas ou intervenções que se pretendem
públicas, mas que negam espaços para outras racionalidades. Estas, por suas
vez, em formas de ameaças ao binômio sociedade-natureza, começam a se
tornar cada vez mais visíveis.
A dissertação de mestrado de Cavini (2002) é uma ilustração de pesquisa
que deixa clara a insuficiência de intervenções políticas no campo da gestão das
águas centradas nas racionalidades instrumentais. A pesquisa demonstra que a
incitação econômica, tal como vem ocorrendo na França, não é generalizável. No
caso alemão, por exemplo, as taxas concebidas não têm como objetivos maiores a
arrecadação pela arrecadação, mas forçar a redução dos níveis de poluição
(CAVINI, 2002). A prova disso é que os recursos originários da cobrança não são
significativos em termos de quantidade.
De um modo geral, na Europa, a participação dos usuários é mais efetiva, o
que influi bastante na determinação dos valores a serem cobrados e no
planejamento dos usos das receitas.
o é o que ocorre no México, pois, com pouca tradição de participação
social, a cobrança pelo uso da água estremece face à resistência política dos
agricultores e pecuaristas.
De acordo a Cavini, em 1992 emergiu mais uma tentativa de modernização
da gestão das águas orientada pela tradição do
déspotisme éclairé,
de cima para
baixo, visando contemplar interesses de grupos franceses. Criou-se a Lei Nacional
de Água (LNA). É possível afirmar que na referida lei aparece um dos primeiros
elementos constituintes das racionalidade substantiva, a primeira garantia formal de
participação social nos processo de gestão das águas. Nos termos da autora,
os usuários passaram a receber um título emitido pela Comissão
Nacional de Águas (CNA) que estabelece os direitos de extração,
exploração e utilização da água para cada tipo de atividades sociais
e econômicas (CAVINI, 2002, p.54).
53
A grande dificuldade é a materialização da participação efetiva da sociedade
nos processos de gestão. A cobrança foi rapidamente instituída com objetivos de
forçar práticas o abusivas, mas a participação social, mesmo positivada em lei
continua presente em forma de promessa não cumprida.
A influência francesa torna-se visível no México nas modificações que visam
à implementação da gestão por bacia hidrográfica, pois difundiu-se a crença de que
com tal estratégia, haverá maior participação dos usuários. A crença divulgada é que
a gestão por meio de bacias estimulará, espontaneamente, a participação social.
Entretanto, embora não seja esse o objeto de análise de Cavini, sua pesquisa
permite identificar que tudo não passa de um repertório de inteões, à medida que
o fica demonstrada a efetiva ampliação de espaços para a participação social. Eis
um bom exemplo de racionalidades instrumentais atuando como obsculos às
emergências de racionalidades substantivas.
Mas a pesquisa de Cavini, após visitar experiências internacionais de gestão
das águas, retorna a São Paulo com possibilidades de tornar visíveis um dos mais
importantes elementos constituintes das racionalidades substantivas: a participação
social em São Paulo.
A mobilização em torno da gestão proporcionou, em 1989, a fundação do
Consórcio Intermunicipal das Bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí,
iniciativa pioneira que criou uma entidade pública de direito privado
cujo objetivo era buscar uma ação coordenada entre os municípios
para dirimir os problemas ambientais e hídricos das bacias. Um
aspecto importante é o caráter voluntário da participação dos
municípios, que atualmente reúne 10 municipalidades, além de
empresas privadas. Existem hoje no Estado de São Paulo mais de
10 consórcios municipais com a finalidade de gerenciar bacias
hidrográficas (CAVINI, 2002, p.69).
A partir de tais experiências, idêntica à experiência francesa, a bacia
hidrográfica tornou-se referência para a gestão de águas.
A autora é otimista, uma vez que julgou a experiência do Consórcio “bem
sucedidaà medida que consegue englobar empresas privadas que, junto aos
municípios, pagam “uma contribuição espontânea chamada de Contribuição de
Investimento para financiar obras e serviços considerados fundamentais para a
melhoria e conservação dos recursos hídricos na região” (CAVINI, 2002, p.69-70).
54
A autora ainda demonstra que as experiências de São Paulo foram pivôs
para as legislações federais referentes à gestão das águas. O exemplo é a Lei
paulista de 1991 (7.663) que instituiu a Política e o Sistema Integrado de
Gerenciamento de Recursos Hídricos. Nela estão contemplados itens fortemente
defendidos em outros países como: a água como bem econômico, gestão por bacia
e gestão participativa. Os referidos itens estarão presentes na Lei Nacional 9433/97.
Em 1994, a Lei estadual 9.034 dividiu o Estado de São Paulo em 22
unidades de gerenciamento de recursos hídricos. De lá para cá, a cobrança
projetou-se como centro de toda a polêmica.
As mesmas disputas de racionalidades presentes em experiências
internacionais emergem em território brasileiro, mesmo que transformadas
culturalmente. As racionalidades mais próximas das instrumentais insistem em
defender a cobraa como estratégia de arrecadação pela arrecadação, tal como
ocorre na França; outras racionalidades defendem a cobrança não como um meio
em si mesmo, mas como instrumento fundamental de gestão, tal como ocorre na
Alemanha.
Na disputa de interesses fica evidenciado que o primeiro grupo põe o lucro
como fim em si mesmo, ao passo que o segundo como meio. Fica igualmente
evidenciado que as racionalidades, em ambientes que se vêem forçados a ser
democráticos, também se vêem coagidas a coexistir. Talvez esteja aqui um exemplo
de materialização da noção de complexidade, proposta por Edgar Morin (2003).
Outra pesquisa que possibilita avanços no debate em torno das formas de
emergências das racionalidades é a tese de doutorado de Silva (1998). Também
classifica-se como um excelente repertório de pistas para novas pesquisas
interessadas em integrar variáveis tais como racionalidades e gestão das águas ou
sociedade e natureza. Com um quadro de referências próximo ao de Morin, Silva
propõe-se a mostrar as formas como diferentes civilizações relacionam-se com as
águas.
Para tanto, ele recorre à história transformando sua pesquisa em um
verdadeiro curso de rio, pois percorre desde as mais antigas civilizações às formas
contemporâneas de gestão para demonstrar os processos de dessacralização das
águas. Ao explicitar os processos de dessacralização, o autor aponta e denuncia as
características colonizadoras das racionalidades instrumentais e a necessidade de
55
emergência das racionalidades substantivas como estratégias de equilíbrio para
novas experiências de gestão.
Outro quadro de referência usado por Silva para identificar os processos de
dessacralização das águas é Gaston Bachelard (1997) com seu brilhante e criativo
estudo articulando a água e os sonhos. Bachelard, que é também uma das
referências de Morin, explicita de forma incomum a intnseca relação entre
processos de sacralização das águas e racionalidades substantivas. Silva conseguiu
o apenas apropriar-se da imaginação criativa de Bachelard, mas ir além ao
reinterpretá-la para levar adiante sua pesquisa.
1.4.2 Disputa de Racionalidades na Gestão das águas em Curitiba
No Programa de Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento, algumas
pesquisas já foram realizadas sobre as águas no Estado do Paraná. Dentre elas,
destacam-se a de Lima (2000) e a de Tânia Miranda (2001).
A tese de Tânia Miranda se propôs a fazer uma análise da situação da
qualidade das águas na Bacia do Alto Iguaçu por meio do levantamento dos
principais problemas existentes, am de propor medidas capazes de impedir um
maior comprometimento dos recursos hídricos.
A análise permite uma visão do processo hisrico de apropriação da Região
Metropolitana de Curitiba, sob o ponto de vista da degradação da qualidade das
águas e como estará essa situação até o ano de 2010, se mantidos os atuais
padrões de tratamento.
Além do que, a pesquisa também permitiu verificar que, a despeito dos
esforços e projetos existentes, a qualidade das águas já comprometidas o
melhorou ao longo das três últimas décadas do século XX e que houve um
agravamento da degradação relativa em decorrência do crescimento populacional.
Os tratamentos propostos não possibilitaram a reversão total do quadro delineado.
Se, de um lado, o estudo de Tânia Miranda permite definir o estabelecimento
de densidades populacionais adequadas para cada sub-bacia, em função de suas
características de ocupação atual e tendências futuras; de outro, torna visível que a
qualidade das águas da principal cidade “ecológica” está no mesmo patamar dos
demais pólos metropolitanos brasileiros.
56
A explicitação de tais dificuldades presentes em Curitiba é a explicitação
indireta das disputas de racionalidades com predomínio das racionalidades
instrumentais sobre outras racionalidades, pois a má qualidade das águas pode ser
um indicador de uma gestão orientada por princípios que negam espaços para os
elementos constitutivos e constituintes das racionalidades substantivas.
Ao que parece, a planificação com efetiva participação das localidades é
uma das ausências que emerge no cenário atual do Paraná e do Brasil como um
dos principais obstáculos ao êxito da gestão das águas. Se a planificação de baixo
para cima é prática comum em países como a Holanda, por exemplo, no Brasil
planificação pressupõe alguma modalidade de
déspotisme éclairé
ou alguma
abertura para garantia de interesses de grupos privados.
Isso é demonstrável no modelo paranaense de gestão das águas. Nele, a
ênfase na necessidade de participação dos usuários na formulação e gestão das
águas é um fato. Entretanto, a ênfase na participação social emerge como armadilha
à medida que muitos dos futuros participantes representam interesses de grupos
que perderam direitos sobre as águas, mas conquistaram direitos de controle sobre
a gestão.
A ênfase na participação social, materializada em instrumento jurídico, tende
a garantir acesso aos atores políticos mais organizados ou mais fortes; os menos
fortes a maioria da população continuam à deriva do processo. Ao que parece,
o há nada que se assemelhe à democracia direta nessa intensa disputa de
sentidos; há, sim, uma reposição da democracia representativa com todos os seus
defeitos e obstáculos à efetiva participação dos representados. Há igualmente a
reposição de que a participação dos excluídos continua sendo pelas vias o
convencionais, uma vez que eles só são convidados a participar à medida que
ameaçam o binômio sociedade-natureza com suas inevitáveis “ocupações
irregulares”. São convidados a participar da gestão das águas não como sujeitos,
mas como objetos manipuláveis.
É importante registrar que as “ocupações irregulares” têm tudo a ver com a
gestão das águas em Curitiba, pois muitas delas estão localizadas em Áreas de
Proteção Ambiental (APAs). No próprio Programa de Doutorado foram realizadas
pesquisas sobre as referidas áreas e dentre elas a da Vila Pantanal a Sudeste de
Curitiba merece destaque. A Vila Pantanal é uma “ocupação irregular” localizada
57
nas cavas da APA do Rio Iguaçu. Os moradores vivem sob ameaças contínuas do
sistema natureza por meio das inundações freqüentes de suas precárias moradias.
Uma das principais conclusões daquele estudo exploratório (SOUZA-LIMA et
al., 2002) foi que muitos dos entrevistados, ao serem indagados sobre quem eles
consideravam mais ameaçadores, se o sistema natureza ou o sistema sociedade,
eles não tiveram dúvida. Responderam sem titubear que a maior ameaça para eles
o era o sistema natureza com suas inundações recorrentes, mas o sistema
sociedade com suas sofisticadas e agressivas estratégias de exclusão
socioambiental.
No momento da pesquisa, aos olhos dos representantes do governo, a
discussão central girava em torno da remoção ou não dos assentados como
possibilidade de proteção das áreas de mananciais. Para os assentados, tudo isso
soava como ameaça, pois a maioria deles não tem para onde ir a não ser para
outras áreas de risco, perpetuando o problema e revelando que o núcleo duro do
mesmo não foi enfrentado em sua real complexidade.
Essa modalidade de participação às avessas das comunidades de risco é
um enorme obstáculo para qualquer estratégia de gestão das águas, sobretudo a
que insistir em se orientar apenas por racionalidades incapazes de escutar e tentar
compreender a complexidade do “outro”. A compreensão da complexidade do “outro
significa insistir na tese de que não havendo solução “simplespara os problemas
repertoriados, é fundamental insistir em soluções negociadas que garantam a todos
os participantes uma entrada pelas portas da frente, o pelas portas dos fundos.
Retornando à tese de Tânia Miranda, uma de suas insuficiências é que a
gestão das águas a partir de modelos matemáticos e técnicos emerge como
obstáculo à participação efetiva dos usuários, uma vez que reserva a gestão aos
“iniciados” na linguagem técnica. Trata-se de uma materialização do
déspotisme
éclairé
, pois apenas os “iluminadosou “familiarizados” com o modelo poderão
decidir. Os demais, os mortais comuns, permanecerão entregues à própria sorte.
A tese de Lima (2000) enfrenta diretamente o problema das ocupações
irregulares em áreas de mananciais na Região Metropolitana de Curitiba e os
obstáculos que tais processos representam para a gestão das águas. A análise de
Lima permite identificar as ocupações irregulares como efeitos de uma gestão
desequilibrada dos problemas socioambientais da Região Metropolitana de Curitiba.
58
Se o Plano de Desenvolvimento Integrado elaborado em 1978 desaconselhava
ocupações a partir dos setores a leste de Curitiba, outras variáveis determinaram o
contrário. Nos termos da própria autora,
as porções de terra em áreas rurais caracterizavam-se pelo baixo
valor de mercado e a sua comercialização apenas seria possível
antes da aprovação do Plano Diretor do Município e da entrada em
vigor da Lei Federal n.º 6.766/79. Deu-se uma junção de interesses:
por um lado, os proprietários passariam a contar com novas
possibilidades de lucro, com as vendas de lotes com investimento
pequeno e, por outro lado, o baixo custo encaixava-se no perfil da
clientela, constituída em sua maioria por migrantes de poucos
recursos financeiros, originários das atividades do setor primário
(LIMA, 2000, p.102).
O que interessa aqui é explicitar que essas novas variáveis são
materializações das racionalidades instrumentais, uma vez que estão todas
centradas no lucro rápido proporcionado pelas oportunidades de negócio imobiliário.
Esses atores sociais precisam responder em termos éticos sobre as “ocupações
irregulares” ocorridas durante e
a posteriori
o acentuado crescimento urbano da
Região metropolitana de Curitiba. A urbanizão no Paraná foi tão acelerada ao
longo da década de 1970, a ponto de passar de um perfil rural para urbano, de 36
para 73%, em duas décadas.
Na década de 1990, o estudo demonstra que o quadro metropolitano de
Curitiba apresenta suas faces cruéis em termos de pobreza, exclusão e, sobretudo,
degradação socioambiental. Em mais um chamamento crítico da autora, “a
ocupação de mananciais no vetor leste da Região Metropolitana de Curitiba, como
desvirtuamento consentido do plano urbanístico de Curitiba em favor do mercado
imobiliário e em prejuízo da população” (LIMA, 2000, p.405) emerge como
expressão forte do predomínio das racionalidades instrumentais sobre outras
racionalidades no processo de gestão das águas em Curitiba.
Nessa perspectiva analítica, é possível inferir da pesquisa de Lima que a
suposta gestão das águas em Curitiba, nas últimas décadas do século XX,
colaborou com um sofisticado processo de exclusão de grupos menos ricos das
áreas centrais de Curitiba, para áreas de mananciais que põem em risco até mesmo
os “arquitetos” do plano de exclusão.
59
Ocorre aqui o que Morin (2003), apoiado na Cibernética de Norbert Wiener,
chama de processo incerto de “retroação
10
, cuja principal característica é o “efeito
de determinado fenômeno transformar-se em “causa” acentuando sua
complexidade. As “ocupações irregularesda década de 1990 em Curitiba são
derivações de decisões tomadas na década de 1970 que retroalimentam os
obstáculos para a gestão integrada das águas.
Em síntese, embora as duas teses o tratem diretamente das
racionalidades substantivas, emergem como fontes fundamentais à identificação da
presença/ausência das mesmas nas experiências de gestão das águas em Curitiba.
1.5. CONTRIBUIÇÃO DA PRESENTE PESQUISA PARA O DEBATE DAS
RACIONALIDADES NA GESTÃO DAS ÁGUAS
Guerreiro Ramos e Serva, ao apontarem as insuficiências da abordagem de
Weber sobre os processo de racionalização no Ocidente, abrem espaços para
estudos sobre as racionalidades substantivas. A despeito desse avanço em termos
epistemológicos, os dois autores citados limitam-se ao estudo das organizações
produtivas, isto é, limitam-se ao estudo do sistema sociedade.
Outros autores, dentre eles Morin, Capra, Leff e Floriani, dão um passo
adiante. Com preocupações integradoras entre os sistemas natureza e sociedade,
eles forçam o processo de “reencantamento” das racionalidades e, com isso, abrem
novas possibilidades de prodão de conhecimento sobre a gestão de recursos
naturais e gestão das águas.
A partir desse novo ponto de partida epistemológico, que não separa
natureza de sociedade, é possível elaborar um quadro analítico que possibilite
captar em experiências concretas de gestão, alguns elementos constitutivos e
constituintes das racionalidades substantivas.
10
Conceito desenvolvido no debate inter-transdisciplinar dos temas socioambientais.
60
1.6. QUADRO ANALÍTICO: OPERACIONALIZAÇÃO DAS RACIONALIDADES
Embora não haja uma metodologia predominante, mas um diálogo
permanente entre várias matrizes metodológicas, a leitura do livro de Bardin (1979)
sobre análises de conteúdo foi de extrema valia como fonte de inspiração para a
elaboração dos quadros contendo os elementos constitutivos e constituintes das
racionalidades substantivas.
Seguindo essa linha de raciocínio, cumpre ressaltar que a operacionalização
das racionalidades substantivas o é uma tarefa das mais fáceis, porque sempre
que se fala em operacionalização a primeira idéia que emerge é aquela que foi
duramente combatida por Bachelard, Morin, Floriani e outros, a idéia de
simplificação. No início do século XX Bachelard já desconfiava das explicações
consideradas “simples”. Para ele, jamais existiu fenômeno “simples”, mas
explicações “simplificadoras”.
A despeito desses cuidados, as pistas de Serva são interessantes no que diz
respeito à elaboração de um quadro de análise, tomando como referências alguns
elementos constitutivos e constituintes das racionalidades substantivas.
Seguindo as pistas abertas por essa tradição de pensamento, para a
presente pesquisa, são definidos, em forma de quadro, os conceitos de
racionalidades substantivas e racionalidades instrumentais; após, são explicitados os
seus respectivos elementos constitutivos e constituintes.
As “hipóteses” testadas são aquelas que eso associadas à idéia de que o
“sucesso/fracasso” das experiências de gestão está vinculado à predominância das
racionalidades substantivas/instrumentais. Em outras palavras, retomando a
pergunta de partida é se as racionalidades substantivas emergem como obstáculos
ou alavancas para o debate socioambiental contemporâneo, bem como às
experiências de gestão das águas?
Para tanto, são seguidos os passos:
a) No domínio da complexidade e como reflexo dos debates
interdisciplinares realizados no programa de Doutorado em Meio Ambiente e
Desenvolvimento, foram definidas as racionalidades substantivas e instrumentais e
seus respectivos elementos constitutivos e constituintes, em conformidade ao
Quadro 1
;
61
QUADRO 1 - RACIONALIDADES SUBSTANTIVAS E INSTRUMENTAIS: CONCEITUAÇÃO
RACIONALIDADES
INSTRUMENTAIS
RACIONALIDADES SUBSTANTIVAS
1. Da abordagem sociocultural de Serva, as
racionalidades instrumentais emergem de
ões baseadas “[...] no cálculo, orientadas
para o alcance de metas técnicas ou de
finalidades ligadas a interesses econômicos
ou de poder social, atras da maximização
dos recursos disponíveis” (SERVA, 1997,
p.122-3).
2. De abordagens socioambientais
complementares, as racionalidades
instrumentais estão associadas a:
a) Menor preocupação com a complexidade;
b) Ênfase no cálculo abstrato;
c) Ênfase no “universal”;
d) Pouca preocupação com a incorporação do
outro;
e) Ênfase no antagonismo;
f) Muita atenção ao dualismo que separa a
sociedade da natureza;
g) Ênfase no global.
1. Da abordagem sociocultural de Serva, as
racionalidades substantivas emergem de
ões orientadas “[...] para duas dimensões;
na dimensão individual, referem-se à auto-
realização, compreendida como concretização
de potencialidades e satisfação; na dimensão
grupal, referem-se ao entendimento, nas
direções da responsabilidade e da satisfação
socioambiental” (SERVA, 1997, p.122-3).
2. De abordagens socioambientais
complementares, as racionalidades
substantivas estão associadas a:
a) Maior preocupação com a complexidade;
b) Ênfase no cálculo concreto;
c) Ênfase nas singularidades;
d) Maior preocupação com a incorporação do
“outro”;
e) Ênfase na complementaridade;
f) Pouca atenção ao dualismo que separa a
sociedade da natureza;
g) Ênfase no local.
b) Descrição de algumas experiências de gestão;
c) Identificação dos elementos constitutivos/constituintes das racionalidades
substantivas e instrumentais, em conformidade ao
Quadro 2
;
d) Verificação: Verificar se as experiências de gestão das águas
consideradas “bem-sucedidas” contemplam objetivos socioambientais e
socioeconômicos, em conformidade ao
Quadro 3
, que é uma síntese dos
Quadros
1
e
2
;
Como foi demonstrado, a discussão em torno das racionalidades orienta-se
a partir das mais variadas matrizes epistemológicas. A presente conceituação,
sintetizada preliminarmente no
Quadro 1
, filia-se, inicialmente, à sugestão de
“racionalidade aberta”, de Edgar Morin (2003), mas principalmente aos convites
ousados de Floriani (2004) para a materialização de uma epistemologia da
“transgressão”. Entenda-se “transgressão”, não como desqualificação, mas como
incorporação do “outro”, pois a noção de “complementaridade presente em
formulações que se ocupam com a complexidade - emerge com muito mais
fecundidade do que a noção consagrada de “antagonismo”.
62
Trata-se de um quadro que emerge do arcabouço teórico analisado
anteriormente, mas que, no entanto, tem potencialidades para retroagir e redefinir o
referido arcabouço que condicionou sua emergência.
Morin e Floriani permitem a compreensão não apenas de uma
“racionalidade” enclausurada em si mesma, mas de uma racionalidade
“reencantada”, aberta para a complexidade dos fenômenos socioambientais.
É importante ressaltar que a separação entre as racionalidades
substantivas e instrumentais expressa no
Quadro 1
obedece a objetivos didáticos,
pois, a rigor, na perspectiva da epistemologia da transgressão, o faz o menor
sentido qualquer separação entre elas. Falar de racionalidades substantivas significa
falar igualmente de racionalidades instrumentais, pois, em termos concretos, elas
o expressões do diálogo permanente do corpo que podem, ou não, materializar-se
no mundo da vida. São, portanto, inseparáveis.
63
QUADRO 2 - ELEMENTOS CONSTITUINTES E CONSTITUTIVOS DAS RACIONALIDADES
ELEMENTOS CONSTITUINTES E
CONSTITUTIVOS DAS RACIONALIDADES
INSTRUMENTAIS
ELEMENTOS CONSTITUINTES E
CONSTITUTIVOS DAS RACIONALIDADES
SUBSTANTIVAS
1.
Cálculo
Cobrança visando lucro sem
preocupações com os demais sistemas vivos;
prioridade a aspectos econômicos.
1.
A
uto-realização
- ampliação de espaços para o
desenvolvimento das potencialidades próprias aos
sistemas vivos; Direito à vida para todos os seres.
2.
Fins
- Para os fins não é necessário
julgamento ético; o núcleo duro da atividade de
gestão é o mercado, o crescimento econômico e
a otimização do mercado.
2.
Entendimento
- ações pelas quais
estabelecem-se consensos, coordenando
atividades comuns sob a égide da
responsabilidade e da satisfação socioambientais;
cooperação entre as racionalidades envolvidas
sem negação dos conflitos;
3.
Maximização de recursos
- busca da
eficácia e da eficiência máximas na gestão dos
recursos naturais e sociais disponíveis sem
preocupações com suas temporalidades;
3.
Julgamento ético dos meios e fins
-
deliberação baseada na emergência da
capacidade de se indignar face a possíveis abusos
socioambientais; embora o mercado seja
importante, o núcleo duro da atividade de geso
o se restringe a ele;
4.
Utilidade
- considerada na base das
interações como valor generalizado e
generalizável;
4.
Valores emancipatórios
- aperfeiçoamento
contínuo do bem-estar coletivo, a partir de novas
relações entre sociedade e natureza;
5.
Rentabilidade
- medida de retorno
econômico dos êxitos e resultados alcançados;
5.
Autonomia
- condição plena dos sistemas vivos
coexistirem respeitando-se suas temporalidades; o
autofinanciamento emerge como elemento
fundamental para se compreender e analisar as
experiências de geso das águas.
6.
Estratégia interpessoal
- entendida como
influência planejada sobre outrem, a partir da
antecipação das reações prováveis desse
outrem a determinados estímulos e ações,
visando atingir seus pontos fracos. Estimula a
dissimulação e ao invés de felicidade, pode
gerar frustração e alienação.
6.
Cobrança
- visando ao bem-estar social;
prioridade a aspectos socioambientais com
impactos positivos sobre o sistema econômico;
7.
Centralização
Negação deliberada ou
velada de espaços para participação dos grupos
sociais.
7.
Descentralização
Ampliação de espaços
para a participação efetiva dos diversos grupos da
sociedade; publicização da gestão; na legislação
socioambiental aparece a partir do conceito de
“subsidiariedade”.
8.
Heteronomia
A disputa excessiva entre as
racionalidades proporciona a emergência de
obstáculos à coexistência dos sistemas vivos;
8.
Escolha
Sempre que ocorre não é
determinada pela “escassez” dos recursos, e sim
pelas necessidades dos sistemas vivos
envolvidos;
9.
Escolha
Sempre que ocorre é determinada
pela “escassez” dos recursos, não pelas
necessidades dos sistemas vivos envolvidos.
9.
Valores Simlicos
orientados para a
purificação espiritual e para a felicidade;
purificação interior.
Inspirado e adaptado a partir de SERVA, 1996,
p.337-8; LEFF, 2001a; LEFF, 2001b; LEFF, 2003;
MORIN, 2003; FLORIANI, 2004.
64
Os elementos constitutivos e constituintes das racionalidades, contidos no
quadro 2
,
permitem identificar as racionalidades substantivas a partir dos limites ou
nas fronteiras das racionalidades instrumentais. Tal como o
quadro 1
, ao mesmo
tempo em que pode ser apreendido como resultado das circunstâncias que o
produziram, pode igualmente revisitar e redefinir as circunstâncias. Trata-se de um
quadro que poderá tornar visíveis as disputas de racionalidades no interior do
debate socioambiental e na gestão das águas.
QUADRO 3 OBJETIVOS SOCIOAMBIENTAIS E SOCIOECONÔMICOS
OBJETIVOS SOCIOAMBIENTAIS
OBJETIVO
SOCIOECONÔMICO
1.Legislação Socioambiental;
2.Gestão Participativa das Localidades
1. Autofinanciamento
QUADRO 4 - RIQUEZA E POBREZA DAS NAÇÕES EM ÁGUA
11
A abundância
> 20.000 m³/hab/ano
Finlândia
Suécia
22.600
21.800
Países muito
Ricos
> 10.000 m³/hab/ano
Irlanda
Luxemburgo
Áustria
14.000
12.500
12.000
Países
Ricos
> 5.000 m³/hab/ano
Holanda e
Portugal
Grécia
6.100
5.900
Países
Médios
> 2.500 m³/hab/ano
França
Itália
Espanha
3.600
3.300
2.900
Dinamarca
2.500
Países
Pobres
< 2.500 m³/hab/ano
Reino Unido
Alemanha
Bélgica
2.200
2.000
1.900
Situação
Crítica
< 1.500 m³/hab/ano
Fonte: BARRAQUÉ, 1995.
As explicações apresentadas para os
quadros 1
e
2
o as mesmas para o
quadro 3
, acrescidas de algumas especificidades. O
quadro 3
é potencialmente
mais útil nas análises das experiências de gestão das águas. As três variáveis
11
O cálculo obedece à seguinte equação: (Chuva Evaporação + Entrada pelos rios) em metros
cúbicos por habitante e por ano. Além do que, 100 litros diários (36,5 m³/hab.ano) são considerados o
mínimo necessário para satisfazer necessidades domésticas e manutenção de um nível adequado de
saúde.
65
contidas no mesmo são derivações dos quadros 1 e 2 que podem estar associadas
mais às racionalidades substantivas do que às racionalidades instrumentais. Se, de
um lado, uma legislação socioambiental vigorosa e uma participação efetiva das
localidades tendem a garantir o autofinanciamento de uma gestão, esse último
também permite a materializão das duas primeiras. Essa combinação permite
identificar, talvez, os limites e as potencialidades presentes nas disputas entre as
racionalidades.
Os
quadros 4 e 5
o ilustrativos e cumprem objetivos de mapeamento
acerca da disponibilidade de águas em quinze países europeus. A partir dos
mesmos é possível apreender melhor os processos de materialização das
racionalidades substantivas nas experiências de gestão das águas tanto em países
pobres quanto nos ricos em águas.
QUADRO 5 - RIQUEZA E POBREZA DAS NAÇÕES EM ÁGUA (COMPLEMENTO)
Portugal sem a água que vem da Espanha
3.600
Ex-Alemanha Ocidental
2.600
Itália (águas subterrâneas)
1.900 (?)
Inglaterra e País de Gales
1.400
Espanha: disponibilidades, exceto cheias
1.200
Holanda sem Reno nem Mosa
700
Fonte: BARRAQUÉ, 1995.
66
PARTE II
AS RACIONALIDADES NO PROGRAMA DE DOUTORADO EM MEIO AMBIENTE
DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
Aqui são apresentados alguns resultados de leituras, reflexões e debates
havidos ao longo do período de formão no Programa Interdisciplinar de Doutorado
em meio Ambiente e desenvolvimento da Universidade Federal do Paraná.
o experiências que, a partir dos
quadros 1, 2
e
3
, tornam visíveis as
possibilidades objetivas de se produzir conhecimento a partir da aproximação de
sistemas diferentes de saber que ainda não intensificaram os diálogos.
Os capítulos demonstram que as tentativas interdisciplinares podem ser
apreendidas não como negação das potencialidades disciplinares, mas como
manifestos contra a crença ainda predominante no “desencantamento”, no
“fechamentodos sistemas produtores de sentidos e de saberes. A “reserva de
mercado”, que tende a transformar determinados “objetos” de pesquisa em
propriedade privada, torna-se insuficiente para enfrentar a complexidade de temas
fronteiriços, tais como os temas socioambientais.
Cada capítulo evidencia a instigante coexistência entre as racionalidades no
interior do debate socioambiental, cada uma visando à construção de “melhores
significados. As racionalidades substantivas, definidas aqui como diálogos do corpo
com dimensões do “real”, emergem nesses cenários de coexistência como flores
que vingam no meio de espinhos.
Talvez sejam essas as mensagens dos capítulos que compõem a parte II da
tese.
67
CAPÍTULO 2
ALGUMAS CONDIÇÕES DE FORMAÇÃO DO DOUTOR EM MEIO AMBIENTE E
DESENVOLVIMENTO
RESUMO
O objetivo do presente capítulo é demonstrar que as condições de produção
de conhecimento do Programa de Doutorado em Meio ambiente e Desenvolvimento,
centradas em pretensões interdisciplinares, proporcionam a busca de outras
racionalidades teórico-explicativas para os fenômenos e temas socioambientais.
Para tanto, recorre-se às experiências vivenciadas ao longo dos créditos. Conclui
parcialmente que a garantia de coexistência das racionalidades ou dos sistemas
distintos de saber tende a favorecer novas emergências inspiradoras para o
enfrentamento dos níveis de complexidade que envolvem a problemática
socioambiental.
INTRODUÇÃO
Nos primeiros dias de março de 2002, a quinta turma do Programa de
Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento estava a postos para assistir à
primeira aula do curso. Em particular, dentre as diversas expectativas que me
levaram a iniciar o curso, uma questão aparecia de forma determinante:
o que é ser
doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento?
Essa indagação me perseguiu, tal
como um fantasma, durante todo o período de formação.
As respostas que me vinham eram as mais variadas. Por exemplo, dentre
outras respostas intuitivas, ser doutor significava “resolver” os problemas
socioambientais do Planeta. Ou, em outros termos, seria tratar das “doençasque
afligem os ecossistemas, mas que têm como núcleos fundadores a sociedade.
Passei o período de créditos e oficinas divertindo-me com aquelas
respostas, até o momento em que me dei conta de que ali estava não para “resolver”
os problemas socioambientais, mas para aprender a apreen-los em sua
complexidade. Tornava-se visível que o pretenso candidato a doutor em Meio
Ambiente e Desenvolvimento precisa estar totalmente aberto às teorias
68
socioambientais, ou, em outros termos, que se esforce para produzir explicações a
partir da dinâmica sociedade/natureza.
2.1 LIMITES DA
DOCE RAZÃO
Nas entrelinhas desse argumento está presente a conhecida idéia de Marx
(1979) de que é preciso, antes de qualquer decisão transformadora, conhecer
profundamente aquilo que se pretende transformar. Ser radical, para Marx, nunca foi
ser sectário ou intolerante, mas ser capaz de ir às possíveis raízes dos problemas.
Ora, mas só é possível ir às raízes de qualquer problema à medida que se aproxima
do problema.
Essa passagem de Marx ensina que é preciso e possível se colocar diante
das teorias socioambientais sem o
olhar
severo e preconceituoso daquele juiz que
condena sem conhecer o delito do réu, mas que também é necessário evitar o
olhar
ingênuo de um passista carnavalesco que tem sempre às mãos confetes e
serpentinas para jogar em tudo que aparece em sua frente.
Voltando aos ensinamentos de Marx, é possível vislumbrar uma forma de
fugir às duas armadilhas citadas anteriormente. É preciso se
abrir
para o
conhecimento em todas as suas possíveis dimensões e complexidade. Muitos se
deram conta de que a
racionalidade científica
o consegue explicar tudo como
queriam ou querem determinadas matrizes teórico-explicativas.
O desenvolvimento da intuição - que na banda oriental do Planeta faz parte
do próprio
ethos
cultural - começa a ser visto no Ocidente como efetiva possibilidade
de mostrar que o ser humano não se reduz à razão científica e unidimensional. Muito
mais que
doce razão
, ele necessita ser visto e apreendido como condição de
possibilidades, como uma das mais autênticas entre todas as obras de arte.
Mesmo refletindo em perspectivas diferentes, no século XIX, dois autores,
Nietzsche (1983) e Marx (1979), reivindicavam as outras dimensões do homem
moderno. Enquanto Nietzsche, de forma genial, debocha da
racionalidade científica
chamando-a de
gaia ciência
, Marx, com seu olhar severo, exige e sugere à ciência
uma nova forma de entender o homem. Se a ironia de Nietzsche revela que o
homem não é só
razão
, Marx dirá até mais que isso: o homem é um animal que se
69
realiza como tal a partir e por intermédio do
trabalho
. O homem, portanto, para Marx,
constrói sua humanidade pelo trabalho, não apenas pela
doce
razão
.
Se Descartes (1987) for chamado para o presente debate, perceber-se-á
que o seu princípio do
cogito
- penso, logo existo - deixa de fazer sentido tanto para
Marx quanto para Nietzsche. Aliás, vale a pena registrar que no pensamento de
Marx o
cogito
cartesiano tende a se inverter. O que condiciona o
pensar
é o
existir
,
nunca o contrário. É preciso existir - e a existência é determinada pelo processo de
trabalho - para poder pensar.
Muitas dessas questões, sobretudo as que foram apresentadas por
Nietzsche, sequer foram ouvidas pelos contemporâneos dos dois pensadores. Esse
fato autoriza a concluir que os interlocutores tanto de Marx quanto de Nietzsche
somos s no presente e as gerações futuras. O mergulho que eles deram em suas
épocas foi tão profundo que terminaram saindo delas. Eles absorveram de forma tão
consistente níveis de complexidade de suas referidas épocas que terminaram por
superá-las.
2.2 A CONVERSÃO AO SOCIOAMBIENTALISMO
O que foi escrito acerca de Marx e Nietzsche pode ser reescrito, e com todas
as letras, a respeito de Durkheim (1988). Mais do que qualquer outro pensador da
sua época, ele compreendeu que apenas por meio da observação sistemática e
rigorosa dos fatos é possível apreendê-los. E foi isso que ele fez durante toda sua
vida.
Durkheim pôs em prática as conclusões de Weber (1968) sobre o
cientista
vocacionado
mesmo sem ter conhecido os trabalhos do sociólogo alemão. Ele
realmente se entregou de forma apaixonada ao ofício de sociólogo e, dessa forma,
conseguiu enxergar - isso aparece nos escritos sobre
educação e sociedade
(1965) -
que, se o homem, para “entrar” para o mundo, precisa se socializar, essa
socialização possibilita ao mesmo homem a “saída” do mundo.
O que significa isso? Que o ser humano só consegue interpretar sua própria
época quando consegue absorver alguns de seus elementos essenciais que a
definem por intermédio da
socialização
. Em outros termos, é a própria
socialização
que condiciona o aparecimento do indiduo; é a
socialização
, que em geral tende a
70
homogeneizar, que possibilita ao indivíduo distinguir-se dos demais, isto é, tornar-se
diferente.
Sendo assim, dentre outros, Marx, Nietzsche, Weber e Durkheim
distinguem-se da maioria dos seus contemporâneos à medida que conseguem se
socializar
melhor. Eles conseguem, cada um a seu modo, absorver os elementos
determinantes ou estruturantes da época em que vivem.
Se até aqui a intenção foi dar substância ao primeiro pilar da resposta a ser
construída, é possível esboçar o segundo pilar. Quanto mais se lê e se compreende
Weber - poderia ser Marx, Durkheim, Nietzsche ou Capra (1991) - mais
compreender-se-á a complexidade do
real
. Quanto mais profunda a
socialização
,
insistiria Durkheim, elevadas ficam as possibilidades de se enxergar o próprio
mundo.
Essas indagações servem de suporte para rechear com conteúdos
socioambientais a questão, o que é ser doutor em Meio Ambiente e
Desenvolvimento?
É pertinente lembrar que o recheio socioambiental da questão tem como um
dos referenciais teóricos o pensamento de Durkheim (1965) sobre a educação.
Os escritos de Durkheim que tratam da educação podem ser sintetizados na
frase: a educação é um processo socializador. A forma apropriada de interpretar
essa síntese do pensamento de Durkheim foi encontrada a partir de outra metáfora:
educar é trazer para o mundo.
De saída, essa metáfora impõe a mudança da própria questão-problema. Ao
invés de ser o que é ser doutor? A pergunta transforma-se em como se forma um
doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento?
Essa nova questão remete à resposta de que entender a educação como um
trazer para o mundo significa entender como se forma um doutor em Meio ambiente
e Desenvolvimento.
Sendo assim, entender como que se forma um
doutor em Meio Ambiente e
Desenvolvimento
implica entender as formas como o estudante, a partir da aula
inaugural, é trazido para o mundo das teorias socioambientais. No arcabouço teórico
da Antropologia, por exemplo, entender como que se forma um
doutor em Meio
Ambiente e Desenvolvimento
significa entender esse
rito de passagem
, que é o
próprio curso de
Doutorado
.
71
Em momentos determinados do curso, o estudante se vê obrigado - na
verdade, ele se obriga - a falar, a escrever e agir tal como um
doutor em Meio
Ambiente e Desenvolvimento
. Seus comentários, até mesmo os mais informais,
trazem embutidos travessões, aspas, citações e referências bibliográficas, todos
associados aos temas socioambientais.
O futuro ou aprendiz de
doutor
não concebe a si mesmo falando ou dando
respostas no mesmo nível de elaboração do
senso comum
. Suas respostas são
sempre carregadas e balizadas por conteúdos socioambientais. E se assim o
fizer, estará sempre à margem do mundo dos
doutores
. Não é por acaso que
aparece de forma muito recorrente na ptica daqueles que representam os papéis
de professores, a exigência de que os estudantes recheiem seus comentários com
conteúdos socioambientais.
Essas observações são constatáveis no nível empírico, isto é, no cotidiano
da academia e de qualquer programa de pesquisa, em especial. Elas autorizam a
corroborar uma hipótese que subjaz à presente reflexão. O pensamento de
Durkheim sobre a
educação
continua insuperável no sentido aqui empregado, uma
vez que educar continua sendo um
trazer para o mundo
, um processo árduo de
conversão.
O que incomoda os críticos e detratores de Durkheim é o fato dele afirmar
que no processo educacional a geração madura impõe-se à geração imatura.
Quando Durkheim escreve sobre isso, sua maior preocupação é romper com todas
as correntes intelectuais da sua época que projetavam o indivíduo como foco central
de análise. Tanto a Filosofia como a Psicologia e a Economia viam o indivíduo como
força motriz da sociedade.
Rompendo com essa forma de pensar o mundo, Durkheim tentou mostrar
que a sociedade supera o indivíduo e tende a moldá-lo de acordo com as exigências
e necessidades vigentes.
Entretanto, alguns críticos de Durkheim o estão, de todo, equivocados,
uma vez que complementaram suas idéias. Mesmo que seja em perspectiva diversa,
o educando também educa. O processo de educação, entendido como um
trazer
para o mundo
, não é de modo algum unilateral. Educando e educador saem,
necessariamente, transformados após cada contato. Para ambos, é impossível sair
das aulas da mesma forma que entraram.
72
Se depois de cada aula assistida no doutorado, o tivesse sentido algum
tipo de transformação substantiva, isto é, do meu corpo, confesso que o teria
abandonado. Cada aula, cada leitura e cada discussão tendem a forçar no estudante
algum tipo de transformação. Essa última só pode ser interpretada como o
incessante esforço individual de entrar para o mundo das teorias socioambientais.
Esse último fato revela que o é suficiente o
Doutorado
querer formar
doutores em Meio Ambiente e Desenvolvimento
. Como já foi visto, a via não é de
o única. O que é necessário é que apareçam no curso pessoas realmente
dispostas a se
converterem
e se tornarem cúmplices dos educadores no que se
refere ao processo de aprendizagem.
No tocante à formação do
doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento
-
que é um sentido mais estrito da educação - a relão que se dá entre educador e
educando é de cumplicidade. Nesse sentido específico, só é possível educar quem
efetivamente deseja ser educado, uma vez que não se ensina a quem não deseja
aprender.
Quem são os verdadeiros mestres e os autênticos discípulos?
Atenção redobrada às palavras do filósofo alemão, Martin Heidegger.
"De fato. Ensinar é ainda mais difícil do que aprender. Isso é
certamente conhecido, mas raramente se pensa nisso. Por que o
ensinar é ainda mais difícil do que o aprender? Não porque o mestre
deve possuir o maior acervo de conhecimentos e o deve ter sempre
e a cada momento à disposição. Ensinar é mais difícil do que
aprender porque ensinar quer dizer: deixar aprender. Poder-se-ia até
dizer que o verdadeiro mestre deixa aprender tão só e unicamente: o
aprender. Por isso, o seu fazer desperta muitas vezes tamm a
impressão de que nada propriamente se aprende junto dele, se
entendermos por aprender somente a aquisição dos conhecimentos
utilizáveis. O mestre está à frente dos discípulos somente nisso: que
ele, ainda muito mais do que os discípulos, tem a aprender - a saber:
o deixar aprender. O mestre deve poder ser mais ensinável do que
os discípulos. O mestre é muito menos seguro de sua causa do que
os discípulos da sua. Daí que na relação mestre-discípulo, se o
relacionamento é verdadeiro, jamais entra em jogo a autoridade de
quem sabe muito e a influência autoritária do representante
magisterial“.
Ou seja, mestre e discípulos são aqueles que aprendem e se permitem aprender
reciprocamente. Se o mestre não ensina, mas aprende, o discípulo deve fazer o
mesmo. Engana-se, portanto, todo aquele que pensa poder ensinar a alguém que
o está disposto a aprender. A relação aprender-ensinar pressue uma absoluta
conivência entre mestre e discípulos.
73
Outro ponto digno de destaque é a percepção de que o indivíduo humano
para se movimentar em um mundo, que
a priori
lhe é externo e hostil, precisa no
mínimo de algumas
muletas
: uma delas é um corpo capaz de sobreviver e uma outra
é
a
educação
. É apoiado nelas que o indivíduo humano consegue dar os primeiros e
os últimos passos num mundo que tende a rejeitá-lo cada vez que se soltar das
muletas
.
As
muletas
, portanto, são os passaportes para o mundo, são as vias de
acesso. Sem elas, o indivíduo humano tende a se desmanchar no ar como se fosse
fumaça (BERMAN, 1986). Elas são o próprio co onde ele pisa, suas condições de
existência e de sobrevivência no mundo.
Retornando à questão de partida, as
muletas
o são apenas as teorias
socioambientais, mas todas as condições Weber diria, o
ethos
de produção de
outros sentidos do programa que modificarão ou o - os olhares e as práticas do
futuro
doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento
com possíveis promessas de
ampliação de espaços para a
auto-realização
, para outros níveis de
entendimento,
dois dos principais elementos constitutivos e constituintes das racionalidades
substantivas
.
COMENTÁRIOS FINAIS
A presea de outros níveis de
entendimento
emerge à medida que cada
sistema de saber depara-se com outros sistemas que o obrigam a, no mínimo,
repensar seus totens sagrados.
Os primeiros diálogos dos cientistas das humanidades com os cientistas da
natureza, por mais civilizados que aparentem ser, são diálogos marcados pela
incompreensão e pela desqualificação reproca. Para alguns humanistas, o
principal equívoco do outro grupo parece ser a excessiva crença nos níveis de
precisão e de certeza de seus métodos. Para alguns cientistas da natureza, o que
parece ser insuportável nos humanistas é a pretensão de querer explicar o
inexplicável, a condição humana.
É evidente que o Programa de Doutorado não se propõe a resolver os
problemas citados, mas viabilizar esse encontro com possibilidades de cerrar ou
abrir fronteiras dos sistemas de saber envolvidos.
74
A teoria social, por exemplo, que, antes da experiência do doutorado,
ajudou-me a apreender as racionalidades como diálogos apenas da mente com a
realidade, as os contatos com outros sistemas de saber, renova-se para redefini-
las como diálogos do corpo inteiro, pois a separação entre eles torna-se irrelevante.
Esse é apenas um dos indicadores dos potenciais de transformão de um
programa de pesquisa que caminha em direção à incerteza e, nessa trajetória,
obriga-se a encontrar outras racionalidades distintas das racionalidades que ainda
prevalecem em muitos programas de pós-graduação.
Em síntese, ao garantir a coexistência de racionalidades ou de sistemas
distintos de saber, o Programa de Doutorado em Meio Ambiente favorece novas
emergências capazes de inspirar indagações efetivamente originais para enfrentar
os níveis de complexidade que envolvem os fenômenos socioambientais da
contemporaneidade.
75
CAPÍTULO 3
DESAFIOS DA INTERDISCIPLINARIDADE
RESUMO
O presente capítulo faz um relato descritivo das principais estratégias
metodológicas, com pretensões interdisciplinares, utilizadas ao longo do processo de
formação. O resultado final é um quadro contendo a categoria central de análise, a
complexidade, com algumas pistas para as teses individuais.
INTRODUÇÃO
No mês de Setembro de 2002 iniciou-se a Oficina
12
I da Linha de Pesquisa
Epistemologia Ambiental, com o objetivo principal de fornecer subsídios para a
elaboração individual do projeto de tese e colaborar com o programa geral de
pesquisa do doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento. Para esse intento, a
interdisciplinaridade expressou-se como uma tentativa e um modo de construção
tanto de um referencial teórico comum, do qual cada doutorando poderia apropriar-
se ao longo de sua pesquisa, como de um ambiente de diálogo, de catarse, de
antecipação das angústias, de conflitos e iniciativas solidárias, mas também de
reafirmação de algumas fronteiras dos saberes disciplinares e suas interfaces.
Primeiramente, foram identificados os interesses individuais e coletivos, por
meio de reuniões e da circulação de um texto contendo as intenções iniciais de
pesquisa de cada um. As esse expediente, foi possível fazer uma listagem de
temas individuais e do grupo com palavras-chaves, indicação de questões e
autores de interesse para identificar as convergências transversais.
12
O Programa de Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento da Universidade Federal do
Paraná estrutura-se a partir de duas fases. A primeira é o conjunto de créditos obrigatórios e
opcionais, na qual todos os alunos participam. A segunda fase se subdivide em oficinas, nas quais
participam os integrantes de cada uma das quatro linhas do Programa com objetivos de discutir e
construir problemáticas comuns que sirvam de referências às teses individuais.
76
A partir dessa listagem, foi feito um levantamento das fontes primárias e
secundárias sobre as questões de estudo já definidas, ficando estabelecida a
abordagem de um tema central e de um autor principal sob responsabilidade de
cada doutorando, na forma de seminários aprofundados.
Dentre os temas escolhidos destacaram-se:
Sustentabilidade aplicada;
Racionalidades;
As ecologias;
Necessidades;
Inovações tecnológicas.
Cada doutorando ficou responsável por um dos temas e, em função disso,
foram selecionadas as seguintes obras, de acordo ao
Quadro 6
.
QUADRO 6 - OBRAS SELECIONADAS
DOUTORANDO
FORMAÇÃO
AUTOR
OBRA
Carlos Alberto Simioni
Sociologia
Agnes Heller e Ferenc
Fehér
A Condição Política Pós-
Moderna.
Icléia Albuquerque de
Vargas
Geografia
Héctor Ricardo Leis
A Modernidade
(In)sustentável
José Edmilson de Souza
Lima
Sociología
Enrique Leff
Epistemología Ambiental
Lílian Medeiros de Mello
Biologia
Jean-Paul Déléage
História da Ecologia: uma
ciência do homem e da
natureza.
Wilma Aparecida Pinto de
Assis
Economia
Fritjof Capra
As Conexões Ocultas:
ciências para uma vida
sustentável
Durante a apresentação dos seminários, o grupo apontou os principais
conceitos e categorias de análise de cada autor, o que contribuiu, posteriormente,
para a construção de um quadro de referência (ver item 2).
Terminadas as apresentações, o que ocorreu no mês de maio de 2003, cada
doutorando elaborou um texto sobre o conteúdo da obra trabalhada, incluindo as
reflexões e questionamentos discutidos ao longo dos seminários. Os textos foram
circulados entre professores e estudantes da Linha, servindo para a definição de um
eixo central de análise: o conceito de complexidade.
77
3.1. POR QUE COMPLEXIDADE?
A problemática socioambiental se impôs como um dos maiores desafios
teóricos e, sobretudo, práticos no cenário mundial a partir do momento em que o
desenvolvimento das tecnologias nucleares deixou a humanidade ciente de sua
capacidade de auto-extermínio (VIOLA, 1987; CAPRA, 1995). Dali em diante, as
análises dos problemas socioambientais são aquelas que propõem compreensão e
explicação críticas com possibilidades concretas de interveão, visando ao rígido
controle do poder auto-destrutivo, recém dominado pelo homem.
o estudos prospectivos, de acordo com os quais “sem teoria não
prática de pesquisa; e sem prática de pesquisa [propostas de intervenção] a teoria
o faz sentido” (FLORIANI, 1996, p.15), que levam muitos autores a concluir que
de nada adiantará repensarmos os pressupostos culturais e ético-
políticos da civilização industrial-predatória se não traduzirmos os
questionamentos correspondentes em estratégias substantivas de
modificação de comportamentos cotidianos e estilos de vida
(REDCLIFT, 1992 citado por VIEIRA, 1995, p.89).
É perceptível que a natureza complexa dos fenômenos socioambientais
tenda a exigir dos homens novas formas de conhecimento orientadas para
intervenção. Novos estudos não apenas identificam e analisam, mas se propõem a
interagir e tentar influenciar as “percepções” dos atores sociais, a propósito das
questões relacionadas a Ambiente e Desenvolvimento, redirecionando-as para
posições menos abusivas face aos ecossistemas biofísicos e socioculturais.
No bojo desse debate em torno dos problemas socioambientais que
ultrapassam os limites das ciências e da Universidade, esta se vê obrigada a
apresentar sua contribuição teórico-prática a essas novas questões. Nesse sentido,
sem negligenciar o fato dos problemas socioambientais serem, simultaneamente,
locais e globais (GIDDENS, 1991; MOREIRA, 1997; CAPRA, 1995; FLORIANI,
1999), é necessário, por conta da perspectiva planetária desses fenômenos (MORIN
e KERN, 1995), delimitar o campo de análise, sem deixar de enfrentar a
complexidade.
Nesse particular, por se localizarem em regiões de fronteiras entre o sistema
Natureza e o sistema Sociedade, os temas das cinco teses da Linha caracterizam-se
como temas socioambientais por excelência, o que impõe a necessidade imperativa
78
de serem abordados a partir de estratégias teóricas e metodológicas sintonizadas
com a complexidade.
A seguir, foram destacados os passos para a constrão de um quadro de
referência.
3.2. COMPLEXIDADE AMBIENTAL - CATEGORIAS E AUTORES
A “complexidade” tem sido trabalhada por autores diversos, mas é possível
que Edgar Morin (2003) seja uma das principais referências no trato sistemático e
cuidadoso da referida categoria analítica. Nas palavras do próprio Morin, muitos
ocuparam-se de categorias próximas, tais como “racionalidade” (WEBER, 1970;
MARCUSE, 1978; HABERMAS, 1996; POPPER, 1972 e 1978), mas poucos
perceberam com clareza a necessidade de se pensar em termos de
complementaridade sem ceder às armadilhas do consenso forçado entre
abordagens e racionalidades absolutamente antagônicas. Morin, se não inicia, leva
adiante tal tradição de pensamento fundamental aos estudos socioambientais.
Alinhado à mesma tradição de Morin, que na verdade remonta ao mobilismo
heraclitiano
13
, emerge Michel Serres com sua fantástica “lenda dos anjos” (SERRES,
1999). Nela Serres define “anjo” como “mensageiroou “aquele que porta uma
mensagem”; e dessa verdadeira “alegoria contemporânea da caverna”, o grupo
percebeu que cada um dos autores trouxe mensagens fecundas para inspirar
abordagens complexas acerca do binômio natureza-sociedade. Cada um deles
contribuiu para o processo de explicitão do dualismo que insiste em separar
natureza de sociedade - predominante nas mais variadas formas modernas de
pensamento e das possibilidades de superação do mesmo.
3.2.1. Articulação da Abordagem de Héctor Ricardo Leis com a Noção de
Complexidade
Ao eleger o ambientalismo como possível proposta de sustentabilidade e
como abertura para análises complexas da problemática socioambiental, Leis (1999)
torna pública a tese construída a partir da premissa de que não há saída para a
13
O mobilismo heraclitiano parte de uma premissa complexa, a de que ningm consegue banhar-se
duas vezes no mesmo rio.
79
problemática socioambiental no interior da modernidade. Os espaços para a
auto-
realização
, para outras plataformas de
entendimento
, de
escolha
e
valores
emancipatórios
parecem desaparecer no âmbito da modernidade.
Talvez sua principal suspeita deriva do fato da modernidade ser
representada como experiência de fuga à incerteza, sendo, em função disso,
insuficiente para estimular abordagens que se caracterizem como convites à
incerteza. Tal trajetória intelectual quiçá explique a insistência de Leis em rastrear
possíveis soluções fora das racionalidades hegemônicas que sustentam a
modernidade. Em seus próprios termos,
o
ethos
do ambientalismo iguala e hierarquiza os diversos aspectos
da realidade ao mesmo tempo, por isso é amoroso. A ordem
igualitária da modernidade está obrigada a organizar a diversidade a
partir de um critério universal, por isso não pode amar (nem
governar, em última instância) (LEIS, 1999, p.228).
Note-se que, simultaneamente, ficam esboçadas algumas das principais
insuficiências da modernidade ao lado de racionalidades consideradas marginais, no
caso, políticas do amor. Merece destaque aqui a percepção de Leis acerca da
necessidade de uma desconstrução capaz de permitir outras possibilidades
epistemológicas para enfrentar os desafios socioambientais contemporâneos.
3.2.2. Articulação da Abordagem de Fritjof Capra com a Noção de Complexidade
Um dos pontos de partida de Capra (2002) é a discussão do conceito de
Vida, que se auto-organiza em forma de rede, como suporte para se pensar a
sustentabilidade.
Trata-se de um dos autores mais convictos da possibilidade de uma visão
“unificada” acerca das conexões que fundam a vida. Embora sua abordagem tenha
como ponto de partida as ciências da natureza, ele admite que a mesma estratégia
pode ser usada pelas ciências sociais. A inseparabilidade entre os dois domínios de
saber é justificada pelo fato de tanto o sistema natureza quanto o sistema sociedade
funcionarem em forma de rede. São sistemas vivos, autopoiéticos, capazes de se
auto-organizarem exatamente porque possuem metabolismo próprio ou o “sopro
vital”. Se todo sistema vivo precisa de um corpo para materializar-se, o sistema
80
sociedade, como sistema vivo, corporifica-se por meio da cultura, com seus
significados diversos.
Na interpretação de Capra fica explicitada a noção de que não há
determinismo do sistema natureza sobre o sistema sociedade. Seria uma
simplificação abusiva qualquer proposição que sugerisse explicar o sistema
sociedade como resultante do sistema natureza. A rigor, numa perspectiva
“reencantada” da vida, como contraponto ao “desencantamento do mundo
denunciado por Max Weber, sociedade e natureza parecem emergir como domínios
inseparáveis. Fazer referência a uma, implica fazer referência à outra.
É interessante perceber que Capra não faz insinuação teleológica acerca da
natureza. Em seu pensamento, embora não exista “fundamento último” no sistema
natureza, existe sempre a possibilidade do mesmo servir de referência para o
sistema sociedade escolher ou não os caminhos da sustentabilidade. Por outro lado,
também o existe “fundamento último” no sistema sociedade, mas nele está posto
o espaço para a escolha pela manutenção ou degradação da vida nas perspectivas
material e existencial.
Para Capra, é no sistema sociedade que está contida a percepção de que
existência e escolha são faces de uma mesma moeda. A “escolha, no sistema
natureza, o é igual à escolha no sistema sociedade, uma vez que no sistema
natureza ela tende a ser orientada fundamentalmente para a sustentabilidade das
condições de existência. Mesmo sem conter qualquer intencionalidade ou
planejamento prévio, no sistema natureza a “escolha” tende a preservar as
condições de existência. É a luta pela vida. No sistema sociedade, paradoxalmente,
as escolhas podem até negar as condições de existência. A materialização da
sociedade por meio de suas escolhas pode, assim, comprometer a própria
materialidade.
Capra toma como referência o sistema natureza para explicitar de forma não
dualista a necessidade de preservação da vida. Nesse sentido, ele explicita o
sistema sociedade como dimensão inseparável do sistema natureza, am de incluir
espaços para a
auto-realização
e para outros níveis de
entendimento
.
81
3.2.3. Articulação da Abordagem de Leff com a Noção de Complexidade
Ao contrário de Capra, Leff (2001a; 2001b; 2003) não aceita a noção de uma
visão “unificada” da vida. Também não aceita a idéia de uma “ecologização” da
sociedade.
Entretanto, a despeito da implicância de Leff face à possível “naturalização
da sociedade, ao acentuar a necessidade de se apreender a dimensão afirmativa da
natureza, ele rompe com o dualismo e vai ao encontro da incorporação de outros
níveis de complexidade em sua abordagem, distintos dos advogados por Morin
(2003). A diferença fundamental entre Leff e Morin é que o primeiro não aceita a
noção de uma complexidade como derivação dos sistemas naturais. Para Leff, a
complexidade ambiental o emana da matéria, mas
emerge como uma nova racionalidade e um novo pensamento sobre
produção do mundo com base no conhecimento, na ciência e na
tecnologia; é o espaço onde se articulam a natureza, a técnica e a
cultura (LEFF, 2003, p.7-8).
Se o trecho recortado permite identificar o que Leff define como
complexidade ambiental, mais adiante ele acentua a ênfase no sistema sociocultural,
mantendo distância em relação à posição de Morin. Para ele, a complexidade
ambiental
é o campo no qual se gestam novos atores sociais que se mobilizam
para a apropriação da natureza; é uma nova cultura na qual se
constroem novas visões e surgem novas estratégias de produção
sustentável e democracia participativa (LEFF, 2003, p.8).
Nesse particular, Leff propõe um tipo de parceria entre sistema sociedade e
sistema natureza, à medida que concebe uma racionalidade que sugere o mais a
apropriação abusiva do sistema natureza, mas relações de coexistência com o
mesmo. Embora parta do sistema sociedade, o conceito de complexidade ambiental
incorpora níveis de complexidade tanto do sistema natureza quanto do sistema
sociedade. A idéia de ampliação de espaços para a democracia participativa é um
indicador da presença das racionalidades substantivas, pois simboliza abertura a
outros níveis de
entendimento
e de
escolha
.
Na esteira do seu argumento, Leff parece superar o dualismo ao apresentar
a racionalidade ambiental como racionalidade produtiva e não produtivista, como é a
lógica predominante que sustenta a sociedade capitalista. Nesses termos, uma
82
racionalidade produtiva pressue complementaridade e não antagonismo entre os
sistemas natureza e sociedade.
3.2.4. Articulação da Abordagem de Deléage com a Noção de Complexidade
O centro do debate proposto por Deléage girou em torno da arqueologia da
ciência ecológica. A despeito de sua fidelidade à idéia de que a ecologia é uma
ciência especificamente “natural”, em momentos variados ele explicita a tônica o
dualista de sua abordagem; explicita a dimensão substantiva de seu saber
ecológico. Sua afirmação de que a ecologia é a mais social das ciências naturais
traz embutida outra afirmação: a da inseparabilidade entre natureza e sociedade. Eis
o convite de Deléage: reconstruir a história da ecologia tomando como referência a
metáfora do “reencantamento”, isto é, acentuando a complementaridade entre
natureza e sociedade.
Aproxima-se de outras bases de
entendimento
entre diferentes
racionalidades ao perceber que
a origem última do recente aparecimento de novos movimentos
sociais que, para além das fronteiras, invocam a ciência ecológica
como o fundamento racional duma nova relação das sociedades com
a natureza, na medida em que convém lutar em todas as frentes, não
apenas pela natureza, mas tamm pelo homem (DELÉAGE, 1993,
p.242).
3.2.5. Articulação da Abordagem de Heller/Fehér com a Noção de Complexidade
A articulação da abordagem da dupla Heller/Fehér pode ser feita a partir de
alguns de seus conceitos fundamentais. Note-se o conceito de “vida”. Para eles, vida
está associada tanto ao domínio material quanto existencial das experiências
humanas. Trata-se de um conceito que pressupõe a não separação entre corpo e
mente. Do conceito de vida é possível fazer emergir os demais conceitos, todos
orientados pela mesma premissa constituinte da noção de vida.
A necessidade dos seres humanos, por exemplo, não pode ser apreendida
apenas na perspectiva do sistema natureza ou do sistema sociedade isoladamente.
Toda necessidade humana é natural quando exigida de forma imperativa pelo corpo,
mas é também social ao estar condicionada a um processo de
escolha
.
83
A partir da oportunidade de
escolha
é possível pensar em termos de
satisfação de necessidades biofísicas e sociais. Antes, porém, é fundamental ter
claro que, para os autores, não se pode pensar em
escolha
espaço da ética sem
a liberdade em termos substantivos. Escolha e liberdade são faces de um mesmo
processo indissociável, tal como são os sistemas natureza e sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Primeiro nível de considerações
Talvez as estratégias de algumas das futuras teses da Linha de
Epistemologia Ambiental sejam inversas às apresentadas por Capra. Poder-se-á
partir do sistema sociedade, domínio da “escolha” (HELLER e FEHÉR, 1998) o
necessariamente sustentável, para o sistema natureza. Por que? Porque no sistema
sociedade estão contidas as racionalidades que orientam as práticas de intervenção
e disputas invariavelmente predatórias.
Se não for relevante a separação entre natureza e sociedade, admite-se que
o há hierarquia entre os referidos domínios. Eles coevoluem. Se a assertiva
estiver correta, é possível tomar como referência qualquer um dos domínios. A
escolha estará condicionada aos totens teóricos considerados sagrados por cada
pesquisador. Em função disso não há muita diferença entre as conclusões
“unificadoras” de Capra (2002) e as “pluridiversificadoras” de Leff (2001a; 2001b;
2003). Ambas iluminam a discussão da sustentabilidade como derivação do respeito
e da necessidade de preservação da vida.
Entretanto, há uma peculiaridade no sistema sociedade que escapa ao
sistema natureza: os significados. Esse é um lado da questão, pois nenhum
significado existe por si mesmo. Ele carece de um corpo para materializar-se. Aí se
esconde a dificuldade de separar corpo de mente, natureza de sociedade. Se se
parte do
logos
, inevitavelmente há de se trazer junto sua dimensão corpórea, pois o
logos
o existe de
per si.
Daí emergiu a percepção de que cada tese individual seria um esforço para
tornar visíveis as insuficncias das abordagens simplificadoras do binômio
sociedade/natureza.
84
Segundo Nível de considerações
Ao que parece, da mesma forma que Deléage propõe o “reencantamento
da ecologia, é possível sugerir uma sociologia também “reencantada”, que possa ser
pensada junto à sua dimensão corpórea, a natureza. Uma sociologia “ambiental
dificilmente estará solta no ar como se fosse fuma. Sua dimensão substantiva es
vinculada à sua materialização e esta última está, igualmente, associada ao seu
novo diálogo com outros níveis de complexidade. A sociologia em si mesma, a
sociologia “desencantada, é tão instrumental quanto a ecologia, também
“desencantada”, encerrada em seus pressupostos “naturalistase insensíveis aos
impactos oriundos do sistema sociedade. Uma sociologia “reencantada” não mais
separa a sociedade da natureza.
Ao que parece, a sociologia “desencantada” tornou-se estéril porque o
conseguiu escapar às armadilhas impostas pela lógica de mercado. Tais armadilhas
estão relacionadas à sua dificuldade de escapar à centralidade do mercado como
fator regulador e definidor das regras do jogo. Ela rendeu-se a uma lógica
competitiva de mercado e é por isso que Guerreiro Ramos (1989) aponta essa
colonização das ciências sociais pelo mercado como um dos fatores de sua
insuficiência teórico-explicativa.
Ao render-se ao mercado, a sociologia passa a reforçar o dualismo
excludente e sagrado à lógica mercantil. O “desencantamento” da sociologia revela
sua submissão ao mercado e sua alienação face à sociedade e à natureza. Nesse
particular, “desencantamentoe racionalidades instrumentais projetam-se como
faces de um único projeto: o da separação entre sociedade e natureza ou o da
negação da complexidade.
Terceiro nível de considerações
A complexidade não pode ser entendida na perspectiva dualista, não pode
pressupor descontinuidades entre natureza e sociedade.
Quando Leis se recusa a ter que escolher entre biocentrismo e
logocentrismo, está rejeitando o dualismo. Tal posicionamento parece estar
associado à necessidade de se pensar em termos de complementaridade entre os
dois domínios. Significa que uma abordagem complexa pressupõe acentuar
complementaridade e não antagonismo entre biocentrismo e logocentrismo. Uma
85
abordagem biocêntrica pode apenas deslocar a dimensão instrumental das
racionalidades de um campo para outro, sem necessariamente superá-la.
Quando Piaget (1977; 1983) escreveu que sujeito e objeto não existem
a
priori
, mas constituem-se, coevoluem, simultaneamente, parece estar rejeitando, tal
como Leis, o dualismo clássico. Assim, no momento em que Piaget explica o
sistema sociedade, está explicando tamm o sistema natureza. Tudo porque sujeito
e objeto não existem separados, são faces de um mesmo processo sociogenético.
Essas são as premissas não dualistas da epistemologia construtivista.
À luz desse debate, torna-se mais clara e fecunda a crítica de Heller/Fehér
(1998) à escolha de Max Weber (1968). Para eles, Weber ressuscita o dualismo de
forma vigorosa, ao separar a “ética da convicçãoda “ética da responsabilidade”. Um
dos esforços de Heller/Fehér está associado à necessidade de demonstrar a
impossibilidade de separar as duas éticas, de separar o mundo dos valores íntimos
dos valores externos; dos valores associados ao cálculo em relação aos valores que
transcendem o cálculo.
Uma abordagem complexa, inspirada na crítica que Heller/Fehér, dirigida a
Weber, não comporta qualquer dualismo excludente entre as éticas. A escolha por
determinadas políticas ou práticas de intervenção articula as duas dimensões mais
conhecidas da mente e do corpo humanos: a calculativa e a dos valores distintos do
cálculo. Não existe escolha “racionalque não contenha em sua base conteúdos
“emocionais”; e, por outro lado, não existem escolhas “emocionaisque o
contenham conteúdos “calculativos”.
Enfim, Heller/Fehér conseguem juntar o que Weber havia percebido como
dimensão fundante da modernidade: a separação entre os domínios instrumental e
substantivo da existência humana. Claramente, eles rejeitam a metáfora do
“desencantamento”, que sustenta as várias formas de dualismos, e incorporam a
metáfora do “reencantamento”, expressão afirmativa das racionalidades.
A vantagem de se optar pelo “reencantamento” está ligada à necessidade de
se negar ou rejeitar o dualismo. Além do que, trata-se de um convite à incerteza,
pressuposto sagrado das teorias da complexidade.
Quarto nível de considerões
No presente nível de considerações foi realizado um balanço da trajetória do
grupo, ressaltando-se as principais dificuldades e obstáculos. Ganharam destaque
86
as diferenças de temporalidade na apreensão dos conceitos e categorias analíticas.
Os partícipes do grupo com formação considerada mais “empírica” carecem de
tempo maior para se familiarizarem com as teorias. O ajuste nunca é perfeito, mas
pode ser construído e gerenciado de maneira satisfatória para todos.
Quinto nível de considerações
O grupo concluiu que, a despeito das peculiaridades e caprichos inerentes a
cada uma das abordagens apresentadas, as noções de “complexidade”, de “não
linearidade”, de “convite à incerteza”, caracterizaram-se como pontos de
convergências deveras fecundos para novas teorias e metodologias que queiram
aventurar-se nas veredas da complexidade da vida. Apoiado em tais inferências que
o grupo concluiu que a insuficiência dos saberes disciplinares isolados, para tratar
da complexidade ambiental, projeta-se como maior desafio para as práticas de
pesquisa contemporâneas. O reconhecimento da insuficiência dos saberes isolados
pode ter sido o primeiro passo em direção à complexidade. Portanto, caminhar na
direção da incerteza, talvez tenha sido essa singela, mas corajosa aposta do grupo.
Sexto Nível de Considerações
No último estágio o grupo elaborou um quadro-síntese para servir de baliza
para as teses individuais e aprofundamentos futuros.
87
PONTO
DE
CONVER-
GÊNCIA
CATEGORIA
PRINCIPAL
INDICADORES
CONCEITOS
COMPLEMENTARES
AUTORES
COMPLEMENTARES
CAPRA
VIDA
Ao admitir que
qualquer sistema
VIVO consti sua
existência em
forma de rede, ele
inclui a
complexidade.
Natureza, ecologia,
vida, experiência de
primeira ordem,
tecnologia alternativa,
coevolução,
percepção, rede, auto-
organização,
autopoiese,
conhecimento
Morin, Heller,
Heidegger, Marcuse,
Habermas, Tuan,
Castels, Lévi-Strauss,
Heemann, Lorenz,
Wilson, Bateson,
Luhmann, Maturana e
Varela, Leff,
Bertalanffy, Rickleffs,
LEFF
RACIONALIDADE
Coexistência entre
natureza e
sociedade.
Conceito de
racionalidade
produtiva, não
produtivista. Aqui
ele inclui a
complexidade
Saberes formais x
saberes populares,
sustentabilidade,
coevolução,
homogeneização,
colonização.
Morin, Leff, Marcuse,
Habermas, Marx,
Weber, Foucault,
Giddens, Cavalcanti
LEIS
AMBIENTALISMO
o se trata de
escolher entre
biocentrismo e
logocentrismo, mas
de construir
políticas do amor.
Aqui ele inclui a
complexidade.
Políticas do Amor,
sustentabilidade
Morin, Foladori
HELLER
NECESSIDADE
o há separação
entre as duas
éticas (convicção/
responsabilidade).
São inseparáveis.
Aqui o casal inclui a
complexidade.
justiça, políticas
redentoras,
esperança, ética,
valoração
Morin, Hannigan,
Arendt, Jonas, Beck,
Sen, Heemann,
Georgescu, Allier
DÉLÉAGE
C O M P L E X I D A D E
ECOLOGIA
Ecologia = a mais
social das ciências
naturais. Aqui ele
inclui a
complexidade.
Natureza/Sociedade,
coevolução
Morin, Guattari, Ferry,
Lana, Heemann,
lorenz, Wilson, Odum,
Bertalanffy, Rickleffs
88
CAPÍTULO 4
AS RACIONALIDADES NAS FORMULAÇÕES DE GUERREIRO RAMOS E LEFF
RESUMO
O presente capítulo ensaia respostas para as seguintes indagações: o que é
a razão? É possível pensar uma racionalidade ambiental não centrada no mercado?
Ou, que não sirva de legitimação ideológica da sociedade centrada no mercado?
Além do que, propõe-se a verificar alguns dos elementos constitutivos e constituintes
das racionalidades substantivas nas abordagens de Guerreiro Ramos e Leff. Para
tanto, na primeira parte são reconstituídas algumas pistas acerca das origens do
conceito de razão; na segunda, é explicitado o processo de formação e consolidação
da racionalidade instrumental moderna e da marginalização da racionalidade
substantiva; na terceira, é reconstituÍda a racionalidade substantiva como
possibilidade objetiva de amplião dos espaços para a auto-realização humana; na
quarta, são explicitadas algumas conexões entre substantividade humana e
racionalidade ambiental; e, finalmente, conclui-se parcialmente que racionalidade
ambiental, entendida como racionalidade alternativa de produção, o pode estar
centrada no mercado.
4.1. PISTAS ACERCA DAS ORIGENS DA RAZÃO E DESDOBRAMENTOS
MODERNOS
o existem duas ou mais “razões”, mas apenas a Razão humana. Ao que
parece, assim pensavam os primeiros homens na Grécia antiga que se ocuparam do
tema. Não havia distinção, por exemplo, entre a capacidade de calcular e a de ser
prudente. Aristóteles, em sua
Ética a Nicômaco
(VI/XIII, p.10), insistia com a idéia de
que a ação prudente pressupõe o cálculo e todo cálculo pressupõe a prudência. Não
se pode ser prudente sem ser bom, assim como não se pode ser bom sem ser
prudente.
O “certoou ajusta medida” para Aristóteles é o procedimento mais
adequado, sem excessos ou extremismos, de acordo com as circunstâncias. A ação
89
adequada é adquirida a partir do exercício e do hábito; não se age corretamente
porque se é virtuoso, mas, ao contrário, tem-se virtude porque se age
adequadamente. Nas entrelinhas dessa noção de razão está a idéia de que as
paixões não se caracterizam como defeitos ou virtudes em si mesmas, mas como
possibilidades objetivas desde que “bem” conduzidas ou educadas de
auto-
realização
humana. A rao emergia como possibilidade de freio para as paixões.
Note-se que a compreensão clássica acerca da razão tende a associar
domínios das paixões aqui definidos como espaços para outras racionalidades -
com calculabilidade admitindo hierarquia ou predomínio do segundo sobre o
primeiro. Outro ponto digno de destaque é que a razão clássica está associada
diretamente ao indivíduo, nunca fora dele.
Na formulão de Guerreiro Ramos, os gregos antigos
[...] nunca imaginaram a socialidade
14
como uma condição peculiar
ao homem, mas sim uma condição que ele partilhava com outros
animais. Os pensadores clássicos estavam preocupados com aquela
característica do homem que faz dele uma criatura
sui generis
, que
além de não se incluir completamente no reino natural, reconheciam
que essa característica é a percepção que o homem tem da atividade
da razão em sua psique. Pelo exercício da razão, e vivendo de
acordo com os imperativos éticos dessa razão, o homem transcende
a condição de um ser puramente natural e socialmente determinado,
e se transforma num ator político (GUERREIRO RAMOS, 1989,
p.28).
Ao afirmar que a espécie humana compartilha a capacidade da “socialidade
com os demais animais, Guerreiro Ramos parece apontar que a diferença
fundamental da espécie humana emerge não da “socialidade”, mas da ruptura em
relação a ela, por intermédio da razão. Nessa linha de raciocínio, admite-se que
viver em “bandoé uma característica de alguns animais, dentre os quais os seres
humanos, mas romper com a referida “animalidadeé privilégio exclusivo da espécie
humana.
O trecho tamm pode ser apreendido como um preparativo para a crítica
de Guerreiro Ramos à teoria social moderna que, ao acreditar ter rompido com os
imperativos naturais, tende a reificar a sociedade, transformando-a em uma
instituição mecânica, com capacidade de gerar padrões definidores da existência
humana em todas as dimensões. Nesse trajeto, o homem moderno graças a
14
Instinto social.
90
Hobbes (1999) é reduzido a um ser que simplesmente calcula, que é interesseiro e
arrivista.
Para Guerreiro Ramos, é inaceivel a premissa que sustenta a teoria social
moderna: a de que a razão está não mais na natureza, nem no indivíduo, mas na
sociedade. Essa última é transformada em
habitat
natural da razão capaz de definir
os destinos dos seres humanos.
Ele cita
The Fable of the bees
, de Bernard Mandeville (1714), que compara a
sociedade a uma colméia e que a partir da obra de Mandeville, os autores modernos
passaram a conceber leis racionais para governar a sociedade e a natureza, a
despeito de concordarem que as paixões, e não a razão, é que conduziam o ser
humano à ação. A nocão de
o invisível
, atribuída a Smith, é resultado desse
cenário intelectual marcado pela transferência da razão do domínio do indivíduo
para a sociedade.
Tanto Smith (1986) quanto Hume (1999) não admitem muitos
questionamentos em torno do fato da “socialidade” ser o substituto da razão à
medida que ime ao ser humano regras de como se deve ou não viver. O caso de
Hume é emblemático, pois considerava o ser humano como um ente absolutamente
incluído no sistema sociedade. Nasce, então, o homem como “ser sociale tende a
desaparecer espaços para outras racionalidades.
Guerreiro Ramos chama a atenção para o fato de que tanto no modelo
liberal quanto no socialista, a teoria social formal concebe a vida humana como se
fosse ordenada pelo interesse, admitindo-se a ‘sociedade’ como padrão normativo
essencial da existência humana.
o é por acaso que Durkheim (1988) constrói sua teoria sociológica
apoiado na imagem de uma sociedade detentora de todo poder de coerção sobre os
indivíduos. Ao afirmar que a sociedade define o “ser social”, Durkheim admite que a
razão está na sociedade, não no indivíduo. Com tais conclusões, Durkheim fortalece
o dualismo próprio e definidor da era moderna, o instrumental e o substantivo, porém
com predomínio do primeiro sobre o último.
Ao aceitar como verdade a noção de que a razão está fora do indiduo
humano, Durkheim reduz os espaços para a
auto-realização
, um dos elementos
constitutivos e constituintes das racionalidades substantivas. É como se ele
91
aceitasse a definição de que o ser humano pode ser reduzido às circunstâncias
objetivas que o circunscreve.
Na interpretão de Guerreiro Ramos, um dos problemas da teoria social
moderna é aceitar a racionalidade como atributo intrínseco aos processos históricos
e sociais. Tal posicionamento é um dos primeiros passos para a distinção própria da
modernidade entre racionalidades instrumental e substantiva.
Razão, na modernidade, associa-se aos movimentos de “fuga à incerteza”,
aos movimentos de exclusão dos espaços de criação ou renovação da
substantividade.
A razão moderna é desencantada à medida que acentua outros processos
de exclusão de mitos, paixões, emoções, sentimentos e fantasmas ameaçadores de
sua hegemonia sobre as mentes e corpos dos seres humanos. Se a razão única dos
antigos excluiu os mitos e as divindades para se consolidar como razão hegemônica,
a razão única moderna mantém as formas de exclusão da antiga, porém acrescenta
outra especificidade, a ênfase no auto-interesse. A razão única moderna materializa-
se como expressão direta da mente e do corpo do ser humano moderno, pautada e
condicionada pelo auto-interesse.
4.2. A RAZÃO MODERNA
É deveras complicado elaborar respostas provisórias para indagações sobre
a racionalidade moderna sem enfrentar seriamente o conceito de Razão. Guerreiro
Ramos, preocupado em apontar as insuficiências da modernidade, tenta salvar o
conceito de razão dos antigos. Em sua percepção, “[...] o que se chama de razão, na
sociedade centrada no mercado [...], é uma corruptela do termo tal como ele mesmo
e seus equivalentes sempre foram universalmente entendidos até o limiar dos
tempos modernos” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p.19). O mundo dominado pelo
cálculo utilitário tende a negar racionalidades que não se submetam a ele.
Para complementar sua análise crítica da racionalidade moderna, Guerreiro
Ramos recorre ao ilustre sobrinho de Durkheim, Marcel Mauss, que afirma serem as
sociedades ocidentais as principais responsáveis pela transformação do ser humano
em animal econômico.
92
O animal que se distingue dos outros não por andar e se organizar em
bando, mas por saber controlar e educar, conscientemente, suas vontades e
paixões, por meio do uso da razão, na modernidade é transformado em um animal
que se reduz a uma única capacidade de realizar cálculos unidimensionais. Eis a
trágica transformação da razão única dos antigos em razão instrumental dos
modernos.
As organizações formais da era moderna, como reflexos do predomínio das
racionalidades instrumentais, passam a incluir apenas “parcialmente” (KATZ e
KAHN, 1987) os seres humanos em seus quadros operacionais, admitindo
explicitamente serem eles máquinas “comportamentais”. No novo “paraíso” chamado
mercado as almas das pessoas passam a ser compradas e vendidas como se fosse
um processo espontâneo de troca.
A teoria do valor, presente nas formulações clássicas da economia política,
emerge a partir de Hobbes e Locke, de reformadores religiosos tais como Lutero e
Calvino, e de moralistas como Bentham, todos responsáveis pela elaboração de um
ethos
utilitário, fundante de uma ética do trabalho. Trata-se de uma teoria que deixa
de ser uma particularidade da ideologia que legitima a sociedade centrada no
mercado para se transformar em dimensão “universalda natureza humana. A ética
do trabalho apóia-se na premissa de que o trabalho é o critério mais sublime de
valor, pois é capaz de exercer donio quase que absoluto sobre a existência social
e individual.
Nesse particular, diante da nova ética do trabalho, a antiga separação entre
trabalho e ocupação torna-se ameaçadora para o mercado; precisa ser desfeita
radicalmente. Os conflitos e as tensões substantivas, ambos próprios da psique
humana tornariam inviável o sistema de mercado. Sem a crença disseminada e
universalizada em “[...] um tipo específico de socialização, através do qual o
indivíduo internaliza profundamente o cater
ethos
do mercado, e age como se
tal caráter fosse o supremo padrão normativo de todo o espectro de suas relações
interpessoais” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p.142), o sistema de mercado não teria
o êxito que teve ao longo dos últimos 300 anos.
Em síntese, numa sociedade centrada no mercado, logo
unidimensionalizada, ocorre a perversão programada da emocionalidade humana, à
medida que o indivíduo é educado para expressar mal ou precariamente seus
93
sentimentos e emoções. Cumpre notar que a citada perversão da emocionalidade
torna-se fato o porque o mercado é “mau” em si mesmo, mas porque a
substantividade aparece como ameaça perene à lógica excludente e de acumulão
que sustenta o sistema capitalista em seu conjunto.
Estão descritos e explicitados alguns dos principais exemplos das
racionalidades instrumentais como obstáculos à
auto-realização
do ser humano. Mas
nem tudo está perdido.
4.3 A RACIONALIDADE SUBSTANTIVA
Nem tudo está perdido porque a racionalidade substantiva possibilita a
preservação de aspectos fundamentais e permanentes da existência humana que a
sociedade centrada no mercado ainda não conseguiu colonizar, deformar ou
destruir. A racionalidade substantiva am de se configurar como alternativa teórica,
trata-se também de um manifesto contra teorias sociais fundamentadas na
racionalidade instrumental.
Na perspectiva de Guerreiro Ramos, o ponto de partida para a construção
de uma racionalidade substantiva é a mente humana. Para ele, “[...] a racionalidade
substantiva sustenta que o lugar adequado à razão é a psique humana. Nessa
conformidade, a psique humana deve ser considerada o ponto de referência para a
ordenação da vida social [...]” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p.23). Diferente de
muitas abordagens presentes nas ciências sociais, que aceitam a racionalidade
como dimensão inerente aos processos históricos, Guerreiro Ramos fundamenta
sua abordagem na
psique
humana.
Em seu diálogo com Weber, Guerreiro Ramos afirma que o sociólogo
alemão não desenvolveu sua análise da vida social a partir da racionalidade
substantiva. Para Guerreiro Ramos, embora admita a importância da substantividade
humana, embora fa a distinção esclarecedora entre
Zweckrationalität
(racionalidade instrumental) e
Wertrationalität
(racionalidade substantiva), Weber
constrói sua teoria social a partir da racionalidade instrumental, deixando em plano
secundário a racionalidade substantiva. Significa que uma abordagem teórica
substantiva poderia ser formulada a partir do que Weber não escreveu.
94
Nesse sentido, é possível inferir que Guerreiro Ramos e Leff (1994 e 2000)
tentam avançá-la, ao proporem abordagens da “racionalidade substantivae da
“racionalidade ambiental”, respectivamente.
Seguindo a tradição de pensamento inaugurada por Platão (1999) e
Aristóteles (1999), Guerreiro Ramos sustenta que
[...] a racionalidade, no sentido substantivo, nunca poderá ser um
atributo definitivo da sociedade, pois é diretamente apreendida pela
consciência humana, não pela mediação social. Ela impele o
indivíduo na direção de um esforço connuo, responsável e penoso
para dominar suas paixões e suas inclinações inferiores
(GUERREIRO RAMOS, 1989, p.16).
É a mesma linha de raciocínio seguida por Voegelin, ao afirmar que “[...] a
esperança de um esgio social definitivo, perfeito e harmonioso, é vã” (VOEGELIN
citado por GUERREIRO RAMOS, 1989, p.17). Para Guerreiro Ramos, que segue a
mesma trilha com ênfase no indivíduo de Voegelin, é possível pensar em
auto-
realização
humana, desde que haja uma transformação no âmago das pessoas. A
partir daí poderão emergir outros critérios perceptivos e capazes de redefinir
necessidades, desejos e paixões.
Percebe-se que, tal como Beck (1997), Gorz (1988), Touraine (1994),
Guerreiro Ramos já identificava que as ciências sociais clássicas o mais
conseguiam explicar o momento contemporâneo a partir da década de 1960. Daí
sua insistência na idéia de que “[...] não é a [...] história que nos permite sermos
inteligíveis e inteligentes. Antes, é a razão
15
, em sentido substantivo, que capacita os
seres humanos a compreenderem as variedades históricas da condição humana
(GUERREIRO RAMOS, 1989, p.46). Ao optar por tal perspectiva, Guerreiro Ramos
rejeita toda e qualquer explicação ou visão que seja determinista tanto do ponto de
vista da natureza quanto da sociedade.
Tentando escapar dos determinismos, na abordagem substantiva da
racionalidade há uma mudança de eixo, à medida que
auto-realização
humana
aparece como dimensão considerada não necessariamente incompatível face à
conduta racional calculista. Em fuão disso, é oportuno recordar que antes da
experiência moderna, falar de sociedade racional pressupunha fidelidade a padrões
15
O sentido substantivo da razão para Guerreiro Ramos está associado à dimensão exclusivamente
individual da mente humana dialogar com o ambiente e com seus próprios fantasmas.
95
objetivos de valores colocados acima dos imperativos econômicos. Essa orientação
da vida associativa a partir de valores que transcendem ou diferenciam-se dos
imperativos econômicos é uma das tentativas de delimitar os sistemas sociais,
sobretudo quando Guerreiro Ramos afirma que é muito difícil e raro promover
integrações entre
auto-realização
e maximização da utilidade, na perspectiva
estritamente econômica. Ele fala “raramenteporque reconhece o poder
“colonizador”, intrínseco à racionalidade instrumental.
Em síntese, a abordagem de Guerreiro Ramos conduz o leitor à elaboração
de um modelo paraeconômico, no qual os recursos sempre serão infinitos o
havendo, portanto, nenhuma razão para temores face aos propalados limites do
crescimento. Em sentido oposto das conclusões neomalthusianas do famoso
“relatório Meadows”, nos termos paraeconômicos, não faz sentido falar em “limites
de crescimento”, muito menos em “crescimento zero” (MEADOWS, 1978), pois “[...]
abundância de recursos e substancial capacidade produtiva que permanecem
ociosas graças à falta de adequado esquema teórico para organização dessas
potencialidades” (GUERREIRO RAMOS, 1989, p.181).
Em uma frase, Guerreiro Ramos insiste na mesma questão: a razão humana
é a base tanto dos problemas quanto das possíveis soluções para as infinitas
tensões e ambigüidades presentes nas mais diversas experiências associativas. A
crise não pode ser buscada na racionalidade substantiva, mas na racionalidade
instrumental.
4.4 A RACIONALIDADE AMBIENTAL
Se a racionalidade substantiva, na perspectiva de Guerreiro Ramos, está
centrada fundamentalmente na psique humana, na interpretação de Leff (1994), a
racionalidade ambiental emerge como um processo de produção de outras teorias,
de outras tecnologias e institucionalidades com potenciais transformadores da
realidade socioambiental.
Para construir seu arcabouço teórico, Leff parte de três aportes consagrados
na ciência social: o conceito de formação socioeconômica, de Marx; o conceito de
racionalidade, de Weber; e o conceito de saber, de Foucault.
96
“El concepto de formación socioeconómica en Marx, el concepto de
racionalidad en Weber y el concepto de saber en Foucault” (LEFF, 1994, p.18).
Em seu afã de apreender e reelaborar as explicações envolvendo processos
sociais e problemática ambiental, Leff o hesita em acentuar tal como Beck,
Gorz, Touraine e Guerreiro Ramos - as evidentes descontinuidades entre a questão
ambiental, social por excelência, e as ciências sociais, incapazes ou resistentes
parcelas majoritárias das ciências sociais - às necessárias modificações que
precisam ser feitas nos seus conceitos explicativos. Ele está admitindo que os
métodos e teorias das ciências sociais atingiram seus limites, tornando-se
insuficientes para explicar as emergências socioambientais.
Ao que parece, a crítica de Leff às ciências sociais formais é idêntica à de
Guerreiro Ramos no que diz respeito à submissão delas aos ditames do mercado.
Em seus próprios termos,
[...] la conexión entre lo social y lo natural se ha limitado al propósito
de internalizar normas ecológicas y tecnológicas a las teorías y las
políticas económicas, dejando al margen el análisis del conflicto
social y el terreno estratégico de lo político que atraviesan el campo
de lo ambiental (LEFF, 1994, p.19).
Mais adiante, discutindo em termos similares ao debate de Guerreiro Ramos
sobre a necessidade de delimitação dos sistemas sociais, mas avançando na
direção de novas matrizes epistemológicas, Leff afirma que
[...] la construction de una racionalidad ambiental es un proceso
político y social que pasa por la confrontación y concertación de
intereses opuestos, por la reorientación de tendencias (dinámica
poblacional, racionalidad del crecimiento económico, patrones
tecnológicos, práticas de consumo); por la ruptura de obstáculos
epistemológicos y barreras institucionales; por la creación de nuevas
formas de organización productiva, la innovación de nuevos métodos
de investigación, y la producción de nuevos conceptos y
conocimientos (LEFF, 1994, p.20).
Fica evidenciado que a racionalidade ambiental não emerge por decreto.
Trata-se de uma construção lenta, mas progressiva e persistente a ser conduzida
por setores dispostos e conscientes da necessidade imperativa de delimitar ou frear
a dimensão colonizadora das racionalidades instrumentais. Ao ser caracterizada
como processo político e social, a racionalidade ambiental emerge como
possibilidade objetiva de ampliação dos espaços reservados à
auto-realização
97
humana em parceria com os ritmos próprios do sistema natureza, negados
historicamente pela excessiva instrumentalidade da lógica de mercado.
No estágio que estão as ciências sociais, Leff as apresenta como
obstáculos, dadas suas limitações, ao avanço da racionalidade e do saber
ambiental. Para ele,
[...] la rigidez y el apriorismo de la ciencia social, impiden captar la
causalidad sociológica de los problemas ambientales y los procesos
de cambio social que están en germen en la ética y en los objectivos
del movimiento ambientalista, obstaculizando una praxeología que
oriente al movimiento ambiental hacia la construcción de una nueva
racionalidad social (LEFF, 1994, p.22-3).
O trecho revela que a despeito de seus discursos supostamente
emancipatórios, as ciências sociais permanecem “desencantadas” em um
isolamento perverso que as condenam a discursar para si mesmas como se nada
estivesse acontecendo em seu entorno. A continuar no isolamento, as ciências
sociais correm o risco de tornarem-se ventríloquas.
Mas, a despeito de suas reservas face aos limites, Leff está atento às
potencialidades latentes das ciências sociais. Ele reconhece que nenhuma teoria
produz por si mesma o conhecimento. A teoria, seja ela qual for, apenas ajuda a
iluminar a mente de quem a utiliza em busca, aí sim, da construção do
conhecimento. Tais esclarecimentos ajudam a entender porque Leff recorre a Marx,
Weber e Foucault para montar seu arcabouço teórico.
De Marx ele resgata o conceito de formação socioeconômica:
[...] la teoría marxista se abre [...] a una percepción de las conexiones
entre sociedad y naturaleza a partir de la centralidad (de la
determinación en última instancia) de la producción material y de los
procesos económicos (LEFF, 1994, p.24).
A ênfase no processo produtivo e econômico é apreendida por Leff como
possibilidade de construção de uma teoria crítica da sociedade. Para ele, o
desenvolvimento das forças produtivas, orientadas por valores que transcendam à
lógica de mercado, possibilitam aberturas de espaços para a
auto-realizão
humana, sem desrespeito às temporalidades dos sistemas naturais.
Algumas dificuldades aparecem na formulação de Leff. O conceito de
formação socioeconômica de Marx, por ter como núcleo o processo material de
produção, tem dificuldades para explicar sistemas culturais não centrados no
98
mercado. Para resolver tais problemas, Leff acrescenta variáveis culturais, o
hesitando em utilizar contribuições da antropologia. Ou seja, ele tamm está atento
ao fato de que em sociedades “primitivaso centro não é o mercado, mas as
relações de parentesco, religião etc.
Sendo assim, a racionalidade ambiental de Leff constitui-se a partir do
princípio da articulão entre os sistemas. De acordo a ele, ela deve assegurar
[...] condiciones de sustentabilidad ecológica, sino que genere un
potencial ambiental de desarrollo a partir de los principios materiales
de una productividad ecotecnológica, fundada en la articulación de
los niveles de productividad cultural, ecológica y tecnológica que
genera una formación socioambiental (LEFF, 1994, p.30).
De Weber, Leff se apropria do conceito de racionalidade. Para ele,
[...] el concepto de racionalidad en Weber abre a importantes
perspectivas al análisis de la problemática ambiental [...] porque
permite pensar de manera integrada los diferentes procesos sociales
que dan coherencia y eficacia a los principios materiales y a los
valores culturales que organizan a una formación social
ambientalmente sustentable (LEFF, 1994, p.32).
Em sua análise da ação humana, Weber (1970) destaca a noção da
significação vivenciada pelo indivíduo, acentuando a idéia de sentido subjetivo. Com
tal estratégia, na formulação de Leff, o sociólogo alemão incorpora aos estudos da
racionalidade social um repertório de motivações e foas sociais de mudanças
capazes de explicar a complexidade de uma sociedade centrada em valores
socioambientais.
Ao contrário de Guerreiro Ramos, que afirma não categoricamente, mas
admite ser Weber um adepto da racionalidade instrumental, Leff assevera que a
teoria de Weber é fértil para pensar e inovar a racionalidade substantiva. Nesse
sentido, para Leff,
[...] con el concepto de racionalidad sustantiva, Weber rechaza la
validez de una jerarquia universal de fines, contraponiendo la
diversidad de valores y estableciendo la inconmensurabilidad de
fines y medios entre diferentes racionalidades (LEFF, 1994, p.33).
A posição favorável de Weber ao pluralismo cultural é o ponto de partida
para Leff compor alguns dos princípios de pluralidade política e diversidade
sociocultural do ambientalismo.
Daí emerge a formulação de Leff:
99
[...] el concepto de racionalidad, como un sistema de valores,
normas, acciones y relaciones de medios y fines, permite analizar la
coherencia de un conjunto de procesos sociales que se abren a la
construcción de una teoría de la producción y la organización social,
fundada en los principios del ecodesarrollo, de la gestión ambiental y
el desarrollo sustentable (LEFF, 1994, p.33).
Ao contrapor substantividade e instrumentalidade, Leff, de forma indireta
chega à noção de que é necessário e fundamental delimitar os sistemas sociais,
sobretudo o sistema econômico, por meio de uma racionalidade ambiental, que se
apóia em valores e avanços no interior da sociedade civil. A racionalidade ambiental
seria o freio para a dimensão colonizadora da lógica de mercado. Em suas próprias
palavras,
[...] la constitución de una racionalidad social fundada en los
principios de la gestión ambiental y del desarrollo sostenible, pasa
por procesos de transformación de la racionalidad económica
dominante, así como de las instituciones y los aparatos ideológicos
que la sustentan y legitiman (LEFF, 1994, p.34).
Ao que parece, ele pensa em um sistema de mercado funcionando, mas
controlado, isto é, delimitado por outra racionalidade, diversa da racionalidade
instrumental.
Seguindo a lógica do raciocínio, a racionalidade ambiental tem pretensões
de se caracterizar como “racionalidade produtiva alternativa”, mas capaz de
privilegiar espaços para a auto-realização humana e dos sistemas naturais. Para ele,
[...] la racionalidad ambiental no es la expresión de una lógica (del
mercado, de la naturaleza) o de una ley (del valor, del equilibrio
ecológico); es la resultante de un conjunto de normas, intereses,
valores, significaciones y acciones que no se dan fuera de las leyes
de la naturaleza y de la sociedad, pero que no las imitan
simplemente. Se trata de una racionalidad conformada por procesos
sociales que desbordan a sus actuales estructuras (LEFF, 1994,
p.37).
O trecho revela que o centro do conceito de racionalidade ambiental de Leff
o é a natureza nem o mercado, muito menos o indiduo, como insistia Guerreiro
Ramos. É um construto que emerge das negociações estabelecidas entre as
racionalidades. A temporalidade da racionalidade ambiental, por exemplo, não pode
ser incompatível com as temporalidades dos sistemas naturais, uma vez que tais
incompatibilidades tendem a se materializar em forma de desequilíbrios.
100
Torna-se claro para Leff que nenhum ecossistema natural ou social
sobrevive a uma lógica única. Isso fica evidente ao admitir que a racionalidade
ambiental não pode ser definida a partir de um único centro ou núcleo. Ela é, por
definição, multicêntrica.
Ao se referir à dimensão multicêntrica da racionalidade ambiental, Leff
aproxima-se da mesma perspectiva de Guerreiro Ramos ao esboçar seu conceito de
racionalidade substantiva. Para ele,
[...] os conhecimentos e os saberes jogam um papel instrumental ao
potencializar a apropriação econômica da natureza; mas tamm
jogam como saberes que forjam sentidos e que mobilizam a ação
com valores não mercantis e para fins não materiais nem utilitários
(LEFF, 2000, p.31).
Percebe-se claramente que a racionalidade ambiental deriva de um saber
ambiental. Como este último está à margem do mercado, a racionalidade ambiental
também não pode ser escrava da instrumentalidade do mercado. Nesse particular,
Leff é um rastreador das racionalidades substantivas, ao admitir que as
racionalidades instrumentais do mercado, além de submeterem a natureza aos seus
desígnios dominadores, exterminam ou tentam aniquilar a complexidade e subjugar
os “saberes o científicos”, não ajustáveis à lógica dominante.
Ao avançar na crítica das racionalidades instrumentais, Leff afirma que “[...]
as causas profundas da crise ambiental e suas manifestações nas diferentes
‘problemáticas ambientais remetem a um questionamento da racionalidade que as
gera e à construção de uma nova racionalidade (LEFF, 2000, p.36).
Ao que parece, sempre que ele faz menções a uma nova racionalidade, está
admitindo que as possíveis soluções para a crise ambiental precisam ser buscadas
em racionalidades distintas das racionalidades instrumentais. Em seus próprios
termos,
[...] a construção de uma ‘racionalidade ambientaldemanda também
a interdisciplinaridade, mas não só como um método integrador do
existente, senão como uma perspectiva transformadora dos
paradigmas atuais do conhecimento, da abertura à hibridação das
ciências, das tecnologias e dos saberes populares. Nesse sentido, a
racionalidade ambiental estabelece bases materiais e princípios
conceituais para a construção de uma nova economia fundada no
potencial ambiental que produz a sinergia dos processos ecológicos,
tecnológicos e culturais (LEFF, 2000, p.36).
101
Com a mente voltada para o processo de “reencantamento” das ciências
sociais, Leff rejeita qualquer empreitada que conduza a possíveis “reservas de
mercadono que tange às soluções dos problemas ambientais. Para ele,
[...] os processos de transformação dos ecossistemas não dependem
tão-somente das leis biológicas da evolução, senão que são afetados
e sobredeterminados pela apropriação cultural e econômica dos
recursos naturais. A racionalidade econômica não pode integrar-se
no objeto da ecologia (LEFF, 2000, p.40).
Além de admitir que não cabe exclusivamente à biologia resolver os
problemas ambientais, admite também a incompatibilidade entre racionalidade
instrumental e racionalidade ambiental. A incompatibilidade está associada às
diferenças de temporalidades no que diz respeito à apropriação dos recursos
naturais e a renovação dos mesmos recursos. Sob a égide das racionalidades
instrumentais, a velocidade de apropriação ultrapassa, e muito, o tempo de
renovação dos recursos, desencadeando e aprofundando as crises socioambientais.
A percepção da crise exige um diálogo entre saberes, evidenciando mais
uma vez os limites das ciências clássicas. Fica demonstrado que a crise ambiental
dificilmente será resolvida à luz de uma “geso científicada natureza, pois as
intervenções e apropriações dos recursos naturais estão vinculadas a estratégias de
poder.
O “saber ambiental” é um saber híbrido, uma vez que articula conhecimentos
científico-tecnológicos com saberes práticos ‘tradicionais’. É a tese do
“reencantamentodo mundo, da abertura epistemológica dos saberes. Trata-se de
um chamamento de tudo que foi expulso da ciência formal, como folclores, mitos,
lendas etc.
Finalmente, a racionalidade ambiental põe frente a frente a racionalidade
instrumental da modernidade e o projeto de interdisciplinaridade teórica e técnica
que busca recompor essa lógica fundacional da civilização moderna. A racionalidade
ambiental propõe-se a identificar e construir outros saberes fundados em
diversidades culturais.
Em outros termos, a racionalidade ambiental o pode ser expressão direta
da racionalidade econômica do mercado. A dimeno colonizadora e monológica da
racionalidade instrumental é incompatível com a dimensão emancipatória e dialógica
da racionalidade ambiental. Essa última possibilita a delimitação do sistema
102
econômico, atuando como freio aos possíveis abusos das racionalidades
instrumentais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em primeiro lugar, vale a pena destacar e ressaltar a fecundidade da
abordagem de Guerreiro Ramos, ao reconstituir o conceito de Razão como atributo
natural e específico da espécie humana. Assim, ao fazer referência à “racionalidade
substantiva”, ele está chamando a atenção para essa dimensão natural e singular
dos humanos.
Se aceita como verdadeira a formulação de Guerreiro Ramos, não faz muito
sentido falar em outras racionalidades que vão am da espécie humana. Significa
que Guerreiro Ramos, ao centrar sua análise da Razão, apenas na espécie humana,
tende a separar o homem da natureza e, com isso, não consegue transpor as
barreiras do dualismo.
Em segundo lugar, a era moderna degradou a Razão, no que diz respeito
aos seus sentidos substantivos, reduzindo-a a dimensões calculativas da mente
humana. Significa que a noção de racionalidade predominante nos últimos 300 anos,
diante do processo de “desencantamento” do mundo, descolou-se de sua dimensão
substantiva, deixando-a à deriva. Note-se que a substantividade, face a uma
civilização orientada pelo produtivismo torna-se uma ameaça constante ao
status
quo
.
Em terceiro lugar, por mais que se tente, é impossível eliminar por completo
as racionalidades substantivas, pois seu aniquilamento implica erradicação total do
ser humano. O que é impossível. Em função disso, as racionalidades substantivas,
embora marginalizadas ao longo da era moderna, aparecem como rotas de fuga
para muitos excldos, mas tamm como limites éticos para os abusos inevitáveis
proporcionados pelas racionalidades instrumentais. As racionalidades substantivas,
portanto, pressupõem a delimitação dos sistemas sociais, sobretudo do econômico,
como possibilidade objetiva de garantir e ampliar espaços para a
auto-realização
humana.
Por último, o conceito de racionalidade ambiental, ao se apoiar no saber
ambiental, supõe também a delimitação dos sistemas sociais. Para tanto, mesmo
103
o se descolando da perspectiva produtivista, pois a racionalidade ambiental
apresenta-se como mais uma estratégia alternativa de produção, emerge com a
novidade de incorporar fatores culturais, imaginários e outros, antes desprezados ou
desconsiderados nas formulações clássicas no interior, inclusive, do próprio
marxismo.
Leff tem claro que seria pouco sustentável a idéia de fazer derivar uma
racionalidade ambiental, emancipatória por excelência, de um processo evolutivo de
um modo de produção estribado em racionalidades instrumentais. Da mesma forma
que Guerreiro Ramos, Leff critica todas as formulações dentro dos estudos
ambientais que se subordinam a uma “[...] racionalidade científica que tem
‘externalizadoo ambiente e que desconhece o saber ambiental” (LEFF, 2000, p.28).
Ele considera a homogeneização dos saberes um grande equívoco, pois não é
possível desconsiderar a especificidade conceitual de cada um deles.
Ao que parece, a questão central, a ser aprofundada adiante, é identificar
nos sistemas socioculturais racionalidades alternativas que, embora admitam a
importância das racionalidades instrumentais, não sejam centradas nem
subservientes a elas. Salta aos olhos que tanto os sistemas socioculturais centrados
no mercado, quanto as teorias que se propõem a explicá-los, amparadas em
categorias também centradas no mercado, esbarram em limites quase
intransponíveis. Portanto, a busca de alternativas não pode ser banalizada, pois
trata-se de uma necessidade não apenas teórica ou pragmática, mas civilizatória.
As pistas que o presente capítulo, por intermédio de Guerreiro Ramos, Leff e
outros, deram servio de alavancas para futuros aprofundamentos em torno da
discussão das racionalidades no debate socioambiental.
De acordo aos quadros 1 e 2, são visíveis alguns dos elementos
constituintes e constitutivos das racionalidades substantivas, tais como auto-
realização, entendimento, julgamento ético e valores emancipatórios. São elementos
que estão nas bases dos processos de “reencantamento” dos sistemas sociais de
saber aos temas ambientais.
104
CAPÍTULO 5
ECOLOGIA "NÃO" HUMANA OU SOCIOLOGIA "NÃO" ECOLÓGICA?
O DIFÍCIL DIÁLOGO DOS SABERES
RESUMO
O presente capítulo, am de tentar rastrear as racionalidades substantivas
no debate envolvendo Sociologia e Ecologia, discute as possibilidades de uma
ecologia humana ou uma sociologia ecológica. Para tanto tenta identificar algumas
conexões entre conceitos ecológicos e as ciências sociais; aponta alguns limites dos
conceitos ecológicos nas ciências do homem; demonstra por que a reserva de
mercado em termos conceituais termina por ser inevitável; e, por último, assinala
alguns pontos que dificultam o diálogo entre saberes.
5.1 GÊNESE DA ECOLOGIA HUMANA
Preliminarmente o surgimento da ecologia humana está associado à
antropogeografia alemã do século XIX, conduzida por Karl Ritter, Alexandre de
Humboldt e, sobretudo Ratzel. Uma das preocupações da antropogeografia era
fazer a descrição geográfica dos povos da época pelo globo. Para os autores
citados, guardadas algumas diferenças sutis, a Natureza subordina o Homem, pois
esse é apreendido estritamente como animal biológico e absolutamente dominado
pela Natureza.
Na perspectiva histórica, esboçada por Acot (1990), o verdadeiro nascimento
da ecologia humana ocorre em 1921 com o artigo "Relações ecológicas dos
esquimós polares", de W. E. Ekblaw. É a primeira vez que se materializa um estudo
aprofundado sobre determinada população e suas complexas relações com o
ambiente.
O problema destacado por Acot é que Ekblaw, mesmo levando tudo em
conta, termina concluindo de forma determinista que, em última análise, a
aculturação e a sobrevivência da população de esquimós precisam ser explicadas
em bases ecológicas. Com essa inferência, ele está tornando visível uma visão de
105
homem não muito distante da visão dos antropogeógrafos alemães: o homem como
organismo vivo, mas resultante e determinado pelo ambiente externo.
Mais adiante, Forbes com o artigo "The Humanizing of Ecology", de 1922,
proporciona avanços na teoria ecológica ao apresentar o Homem como "objeto"
específico de estudos ecológicos. Para Forbes, portanto, "as relações do próprio
Homem com seu meio ambiente formam uma parte indissociável da ecologia; pois
ele é também um organismo e porque os organismos constituem uma parte do seu
meio ambiente" (FORBES citado por ACOT, 1990, p. 119).
Mas o esforço de Forbes o foi suficiente para reduzir a distância entre
ecologia e sociologia, entre natureza e sociedade. Isso apenas ocorreu a partir da
escola de Chicago, nos Estados Unidos. O nome mais expressivo aqui é o de
Roderick D. Mckenzie, com o artigo "A abordagem ecológica no estudo do homem".
Os teóricos da escola de Chicago propuseram-se a “importar” conceitos da
ecologia para a sociologia urbana. De acordo com Acot, o maior deslize deles foi
classificar as cidades como meios externos naturais sem deixar de reconhecer suas
dimensões artificiais, pois as cidades são produtos da Natureza e, em especial, da
natureza humana. A transposição dos conceitos ecológicos para a sociologia exigiu
uma "mecanização" da cidade ou uma "artificialização" da natureza.
A ecologia humana dos teóricos da escola de Chicago pressupõe a
"mecanizão" da cidade, bem como a "mecanização" do homem. Na disputa entre
as racionalidades teórico-explicativas das experiências associativas, constrói-se uma
hierarquia. O ser humano passa a ser apreendido mais como unidade biológica que
unidade sociocultural e política. A abordagem fica empobrecida à medida que exclui
um dos aspectos fundamentais da totalidade humana, a cultura.
Fica evidenciado que o maior desafio da ecologia humana é aproximar, sem
abusos, as diversidades presentes nas condições ecológicas das práticas culturais.
As primeiras tentativas ocorrem a partir de 1940 nos trabalhos de André Haudricourt
e Louis Hédin, "L´homme et les plantes cultivées". Para eles, as diferenças
observadas nas estratégias de conquista dos alimentos tem como fator
determinístico a diversidade dos ambientes externos naturais. Por exemplo, "[...] a
de multiplicação fácil e vantajosa" (HAUDRICOURT e HÉDIN citados por ACOT,
1990, p. 124).
106
A despeito do esforço dos autores em apresentar solução integradora para o
conflito entre sociedade e natureza, o conseguem porque continuam pressupondo
a determinação do ambiente natural sobre a predisposição sociocultural do indivíduo
humano. Em última análise, eles também demonstram que a ecologia humana só é
possível se o ser humano for incluído parcialmente - isto é, despido de sua cultura -
na nova construção teórica.
5.2 ECÓLOGOS
VERSUS
ECOLOGISTAS
A ecologia é uma ciência que se apóia no empirismo herdado da tradição
britânica, iniciada e conduzida por Bacon, Galileu, Hume e outros. Um dos
pressupostos da empiria é a rejeição explícita no que se refere à existência de
projetos ou valores intrínsecos aos sistemas biológicos. Esse ponto é de
fundamental importância à medida que auxilia na separação entre ecólogos e
ecologistas militantes.
Se, por um lado, os primeiros estão preocupados com a descrição dos
ecossistemas, por outro, os últimos, por acreditarem em valores intrínsecos à
natureza, tendem a mitificá-la ou sacralizá-la, centralizando suas energias em
manifestações que tratam os ecossistemas não como são, mas como eles
"gostariam" que fossem.
Transformam a ecologia em discurso ideológico e capaz, até, de introjetar o
medo na sociedade. A necessidade de "preservar" a qualquer preço é transformada
em pretexto para inserir o medo nas pessoas. Se, em certa medida, isso atua como
verdadeiro limite ético, uma vez que educa as vontades dos atores sociais; pouco ou
nada esclarece acerca das dinâmicas próprias dos ecossistemas.
Nossos ancestrais gregos costumavam repetir que "a ignorância é irmã
gêmea da maldade" (PRÉ-SOCRÁTICOS, 1999). De fato, sob domínio dos
ideólogos da ecologia, o desconhecimento da população é usado contra ela própria.
Em nome da preservão de algum ecossistema, o diálogo é excluído de forma
abusiva.
Do lado dos cientistas ecólogos, a abordagem é diferente. Não há
sacralização vulgar dos ecossistemas porque não está presente a crença em valores
intrínsecos. Aqui, a extinção ou qualquer perturbação é, em alguns casos,
107
apreendida como benéfica aos ecossistemas desde que não ultrapasse sua
capacidade de readaptação ou resiliência. O cientista ecólogo estuda o ecossistema
como ele é, limitando-se, portanto, ao domínio da descrição. Ele não avança para o
domínio normativo ou axiológico, balizado pelo "deve ser". Nesse sentido, o cientista
ecólogo dificilmente incorre na famosa "falácia naturalista" (HUME, 1999) porque
tem clareza acerca dos limites do seu arcabouço teórico-explicativo.
A "falácia naturalista" consiste na tendência de se recorrer à "natureza" para
explicar e legitimar fatos que estão atrelados ao mundo dos valores e das idéias. Na
interpretação de Hume, cada vez que tal descontinuidade tornar-se evidente, ocorre
um "deslize lógico", pois a natureza não se constitui como base explicativa dos
valores. Nessa linha de raciocínio parece não existir espaços para defesa de valores
intrínsecos à natureza; parece não existir o famigerado e sedutor "fundamento
último" presente em muitas seitas ambientalistas.
5.2.1 Delimitação dos sistemas de saber ou "reserva de mercado"?
Tal postura explica e até justifica a percepção que defende a necessidade de
delimitação dos sistemas de saber. Por exemplo, a afirmão de que a ecologia é
uma "ciência natural e não social" (LANA, 2002) traz embutida outra informação: a
da necessidade de "reserva de mercado".
Em outros termos, admite-se que só o cientista da natureza poderia ocupar-
se da ecologia, inviabilizando projetos que apontassem para a construção de uma
ecologia humana. Admite-se também que estaria vetada ao cientista social qualquer
incursão nos ecossistemas, uma vez que esses seriam ambientes exclusivos e
reservados aos cientistas da natureza.
Mas as dificuldades de se fundar uma sociologia ecológica estão postas não
apenas para os cientistas da natureza, mas também para os cientistas da sociedade.
Uma das primeiras resistências surge na etnologia de Malinowski, um dos mais
convictos defensores da "reserva de mercado" conceitual no que se refere ao estudo
das culturas. Para ele, cada sistema de saber deve evitar tanto contaminar quanto
contaminar-se com categorias de análise, externas ao seu próprio referencial teórico.
Em seus próprios termos,
108
[...] num campo de pesquisa novo como o da cultura, é coisa
infinitamente perigosa tomar seus métodos das disciplinas melhor
assentadas e mais antigas. Utilizar comparações orgânicas e
metáforas mecânicas, acreditar que a numeração e a medida bastam
para desempatar a ciência e o discurso inútil, essas artimanhas,
exatamente como o empréstimo e a referência às outras disciplinas,
fizeram mais mal do que bem [...] (MALINOWSKI, 1968 citado por
ACOT, 1990, p. 146).
Ao fazer tal alerta, Malinowski está admitindo que o estudo da cultura
precisa ser realizado pelo cientista da sociedade e que este precisa estar atento
para não tentar justificar e legitimar suas explicações por meio de recorrências a
metáforas estranhas - leia-se, organicistas - ao domínio das teorias culturais.
O alerta tem uma direção definida, o organicismo social de Spencer que, ao
conduzir sua reflexão sobre os sistemas sociais por meio do evolucionismo
biológico, admite a existência de uma "analogia real entre o organismo individual e
organismo social" (SPENCER citado por ACOT, 1990, p. 147).
Em outras palavras, Spencer recorre à metáfora organicista para conferir
"cientificidade" à análise social. Na leitura de Acot (1990, p. 147),
esse ponto de vista permite pensar a unidade material do mundo
sem se atolar nas problemáticas dualistas das filosofias anteriores ou
no espiritualismo ascendente na época e, no campo político, permite
pensar a ordem social pela ordem biológica.
Ao admitir que o "social" - campo dos valores, das idéias e das
representações - pode ser explicado a partir da "natureza", Spencer incorre na
falácia naturalista à medida que admite ser o "social" uma derivação direta do
"natural". Embora esteja tentando explicar o "social", a referência empírica de
Spencer é o organicismo biológico.
Logo, não há diálogo entre sistemas de saber, pois a base de análise bem
delimitada é a biologia. Nesse sentido, Spencer está muito mais próximo dos
cientistas da natureza que dos cientistas da cultura, como é o caso de Malinowski.
A rigor, o pensamento dos cientistas da natureza exposto antes é defensável
se, em primeiro lugar, for aceito o conceito de ecologia como ciência natural e, em
segundo, a partir das resistências dos cientistas da cultura, for negada a
humanidade do homem. A existência de uma ecologia humana será possível desde
que se admita o ser humano em seu "estado de natureza" (HOBBES, 1999;
109
ROUSSEAU, 1999), despido de tudo que o caracteriza como homem: sua
capacidade de decidir e valorar (NIETZSCHE, 1983).
Isento da condição de animal que valora, que pensa e julga, o indivíduo
humano fica reduzido a um amontoado de células. A conclusão preliminar é que, nos
termos aqui tratados, é possível pensar apenas em uma ecologia "não humana" ou
em uma "sociologia o ecológica". Isso porque uma "ecologia humana", construída
a partir de Spencer, por exemplo, pressupõe a "mecanização" absoluta do ser
humano. Ao que parece, da mesma forma que Spencer, para construir sua
explicação, incorre na falácia naturalista ao "mecanizar" o social, a "ecologia
humana" faz o mesmo ao "mecanizar" o ser humano.
Avançando no debate, se, por um lado, a "reserva de mercado" conceitual
protege ou impede a "falácia naturalista", por outro, dificulta o diálogo entre os
sistemas de saber. Ao que parece, se aceita como verdadeira, a “reserva de
mercado” tende a impedir que o cientista social estude os ecossistemas ou qualquer
sistema natural porque esbarra no pressuposto básico das ciências sociais: a
dificuldade de escutar quem o tem voz, quem o tem condições de atribuir
sentido às suas decisões, quem o está apto a valorar.
5.2.2 Como captar os sentidos das ações de quem não consegue falar?
A ecologia humana pressupõe o homem sem vontades próprias e sem
valores, o que é impossível. O “objeto” de estudo da ecologia humana seria o
homem a-ético, entregue e obediente aos desígnios absolutos das leis da natureza.
Na formulação de Heemann (2001), seria o homem subserviente apenas ao cérebro
reptiliano ou instintivo. Seria o homem refém das necessidades vitais. Ou seja, o
não-homem, pois a hominização consolida-se a partir do desprendimento face às
necessidades vitais. Na formulação de Ortega y Gasset, por exemplo, fica
evidenciada a visão de homem a partir da negação dos instintos e da afirmação da
capacidade de valorar:
[...] é notório que no homem os instintos estão quase apagados, pois
o homem não vive, definitivamente, por seus instintos, mas se
governa mediante outras faculdades, como a reflexão e a vontade,
que operam acima dos instintos (ORTEGA y GASSET, 1991, p.6).
110
Dentre outros desdobramentos e inferências possíveis, o trecho demonstra a
vitória da calculabilidade, que age como um freio, como possível educação para os
impulsos provocados pela agressividade natural do cérebro reptiliano. É a vitória do
cérebro racional sobre o cérebro reptiliano. É a vitória da capacidade de dissimular
sobre a espontaneidade da conduta.
Freud (1997) é quem afirma que a educão abusiva dos impulsos é a
principal causa das ansiedades, das frustrações, das depressões, enfim, de todo
mal-estar da civilização contemporânea. Tanto Ortega y Gasset quanto Freud
reconhecem e admitem que a educação dos impulsos representa um passo
significativo ao processo de unidimensionalização do ser humano à medida que
tende a condicioná-lo para a produção.
A unidimensionalização da mente tende a transformar o indivíduo humano
em máquina produtora de bens e serviços ou, simplesmente, em “apertadores de
parafusos”, conforme a crítica bem-humorada de “Tempos Modernos”, de Charles
Chaplin. É daí que emergem o "autômato”, de Fromm (1986), o “ro-alegre”, de
Mills (1972), o homem “alienado”, de Marx (1980); enfim, todos temidos pelos
autores citados porque simbolizam a negação do ser humano no que diz respeito à
sua multidimensionalidade.
Há de se notar que, para algumas matrizes epistemológicas, o que distancia
o indivíduo humano dos demais indivíduos não humanos é a intelectualidade. É por
intermédio e por causa dela que o ser humano consegue se libertar das
necessidades vitais alimento, moradia, vestuário e segurança impostas pelas
circunstâncias.
Nos presentes termos, quando o sistema sociedade não permite que quem
quer que seja se emancipe de suas urgências vitais, condena-o à condição de não
humano, uma vez que o obriga a usar toda sua intelectualidade na satisfação das
necessidades básicas. O processo de marginalização, em qualquer sistema
sociedade, tem como substrato a capacidade de submeter pessoas ao domínio
absoluto dos instintos, isto é, à busca de alimento, moradia e segurança para
continuar “levando a vida”, conforme a fala de Geralda moradora do assentamento
“Moradias Pantanal”- na Região Metropolitana de Curitiba (SOUZA-LIMA, 2002).
Adaptada e resignada à situação de marginalidade, Geralda não consegue
perceber a banalização de seu próprio sofrimento (DEJOURS, 2000). Para ela, a
111
despeito da água ter invadido sua casa, ainda “dava para andar”, pois a água “o
passou do joelho”.
A banalização da injustiça social torna visível a sofisticão da crueldade,
própria ao sistema sociedade, que é tão espetacular a ponto de banalizar a
marginalização. O sistema sociedade constrói discursos que explicam, justificam e
até legitimam a marginalização, caracterizando-a como inexorável, como parte de
um jogo que não tem lugar para todos. Invariavelmente, o sistema sociedade até se
utiliza do sistema natureza, com sua potencialidade ameaçadora, ou mesmo dos
recursos técnicos travestidos em planos de urbanização, para negar com mais vigor,
espaços para a
auto-realização
daqueles que não conseguem se inserir com
dignidade na bolha social.
5.3 A CAPACIDADE DE “ENSIMESMAR-SE” COMO ESPECIFICIDADE
HUMANA
Outra dimensão da existência ou especificidade humana, destacada por
Ortega y Gasset é a capacidade de “ensimesmar-se”. Para ele, “ensimesmar-seé a
habilidade que o ser humano tem de desvincular-se das imposições externas, das
circunstâncias. O “ensimesmar-seé o instante da sublimação, da criatividade, da
percepção clara de que cada indivíduo é diferente do “outro”. Em suma, é o
momento em que palavras podem transformar-se em corpo; é o momento da ética
o como figura retórica ou alegoria, mas como vivência.
Ortega y Gasset parte do pressuposto que o ser humano o coincide nem
se reduz ao ambiente; pois consegue desligar-se das pressões exteriores do
ambiente. Só o ser humano é capaz de libertar-se das necessidades primárias e
ocupar-se de si mesmo; e dedicar-se à arte, à literatura e à poesia. Sempre que
essa singular capacidade humana é negada, condena-se o ser humano à
marginalidade, pois sua substantividade está tentando ser seqüestrada. Sempre que
o ser humano sentir-se obrigado a viver correndo atrás do prestígio, dinheiro ou
comida, as possibilidades dele ensimesmar-se estão sendo negadas. Além do que,
pode ser que ele esteja quase aceitando ser tratado como máquina.
Assim, o “marginalizadoé aquele que é induzido pelo sistema sociedade,
compulsoriamente, a esquecer de si mesmo, a viver tal como vive qualquer lagarto,
112
isto é, sob controle do cérebro reptiliano, preso às necessidades vitais. Seu tempo
livre não se transforma, como quer Domenico De Masi (2000), em “ócio criativo” ou
“emancipador”, mas em “ócio destrutivoe ameaçador.
Sob controle do cérebro reptiliano, o corpo pensante pode embriagar-se não
por prazer, mas para tentar fugir de uma situação insuportável, da incerteza. Há
quem afirme que o processo civilizatório da humanidade teve e tem como principal
combustível a fuga à incerteza. “Sem Deus profetiza Dostoievski (1995) o
haveria civilização”. A existência humana seria menos tolerável se não fosse
possível a fuga à incerteza.
Daí a necessidade, para muitos, da existência de fundamentos últimos.
Cumpre destacar que a fuga à incerteza possibilita tanto a crença em um confortável
e externo ente metafísico, como em outro ente, dessa vez, interior e solitário: o
próprio corpo pensante. Se a busca de um ente metafísico aponta para um estado
de resignação face ao ambiente, o encontro consigo mesmo sinaliza para a
transformação ou transgressão das normas impostas pelas circunstâncias geradas
pelo ambiente.
Nesse sentido, o que importa mesmo guardar da reflexão de Ortega y
Gasset é que o ser humano, a despeito das pressões, o coincide com o ambiente.
Tal afirmação traz embutida outra: a de que não existe fundamento último; o corpo
pensante é dono do seu próprio projeto de existência. Ao alterar o ambiente para
atender necessidades diversas, o corpo pensante inicia o processo de hominização.
Em sua leitura afirmativa da “cultura- que Ortega y Gasset chama de
“técnica o autor a caracteriza como a capacidade que o ser humano tem de
transformar dificuldades impostas pelo ambiente em oportunidades concretas de
sobrevivência ou simplesmente em conforto. Por meio dela, o ser humano adequa o
ambiente aos seus interesses.
A cultura, portanto, sinaliza as tentativas de distanciamento do ser humano
das inegáveis determinações biológicas. Em seus próprios termos, “um homem sem
[cultura], sem reação contra o meio, o é um homem” (ORTEGA y GASSET, 1991,
p. 14). A negação da cultura significa a negação do momento mágico, do instante
em que o corpo pensante está preparado para a descoberta do fogo, para a
construção de um edifício, para o cultivo de um jardim e, finalmente, para a
113
concepção e produção de um automóvel. No "ensimesmar-se” mente e corpo
integram-se de maneira plena e singular.
Portanto, o “ensimesmar-se” de Ortega y Gasset é o momento mágico da
existência humana; é o momento efetivo da criação de uma outra racionalidade, que
o pode ser, sob qualquer hipótese, desprezada quando se pretende entender a
complexidade do indivíduo humano.
De posse dessas análises acerca do indivíduo humano, o diálogo entre
ecologia e ciências sociais será possível se as ciências sociais fizerem uma das
mais difíceis concessões: admitir a redução do homem à espécie biológica do
Homo
sapiens
. Se isso ocorre, o diálogo que se estabelece é um pseudo-diálogo, uma vez
que o homem como unidade biológica não se caracteriza como “objeto” de análise
das ciências sociais.
Na outra perspectiva, as ciências sociais, ao invadirem os ecossistemas,
tendem a despir a ecologia daquilo que lhe confere força e especificidade: sua base
natural. Ao proceder de tal forma, as ciências sociais reduzem a ecologia a discursos
inúteis até mesmo para as próprias ciências sociais. Ou seja, o diálogo entre
saberes não é tão fácil como se possa imaginar porque toca nas “vaidades
específicas de cada um dos dois domínios do saber.
5.3.1 A ecologia e a constrão de suas verdades
A base empírica é o ponto de partida e o método indutivo é o mais utilizado,
por ser apreendido como o mais apropriado. Para Lana (2002),
o principal objetivo da investigação científica é observar e juntar
dados, desenvolver explicações para os padrões observados e testá-
los experimentalmente, de forma a conseguirmos generalizações
empíricas.
Até à coleta dos dados e explicação a partir de supostos padrões
observados, a ecologia está absolvida. O problema são as “generalizações”. Como
chegar às mesmas sem incorrer em deslizes, em descompassos entre o mundo não
lógico da vida material e orgânica e o mundo da precisão e da lógica?
Ao que parece, a generalizão é a armadilha da ecologia, pois quanto mais
elevada sua pretensão, maior o abismo entre base “empíricae base “virtual”. Se for
114
admitido que as generalizações são verdadeiras porque derivam da empiria, talvez
se esteja incorrendo na falácia naturalista. Mas a ecologia não incorre porque se
limita a descrever o fenômeno natural por meio da indução e das generalizações; ela
pára no domínio do “é”, não avança para o “deve ser”. Logo, está absolvida de
qualquer acusação em torno da
naturalistic fallacy
.
Por outro lado, se os métodos investigativos da Ecologia esquivam-se da
“guilhotina de Hume”, têm dificuldades maiores diante da laica e arrasadora
“inquisição de Popper” (1972).
Para Popper, qualquer generalização é falaciosa. Não há garantia alguma
a não ser a crença cega de que a explicação construída a partir de “casos” ou
“experimentações” empíricas passadas, sirva para explicar casos futuros. Em sua
formulação, “nenhuma teoria científica pode ser deduzida de afirmões derivadas
da observação, ou descrita como função da verdade nelas contida” (POPPER, 1972,
p.70). Se muitos pesquisadores, ao confrontarem ciência e Filosofia, tentam
ressuscitar o processo de indução como critério definidor da cientificidade de teorias,
Popper anula essa perspectiva ao insistir com o critério da refutabilidade.
Para Popper, nenhuma teoria avança a partir da observação, se aceito o fato
dessa servir apenas de referência de teste das teorias. Significa que as teorias são
invenções anteriores que devem ser testadas diante dos fatos. A observação serve
para corroborar ou refutar teorias e não de suporte para construção teórica. A
ciência não avança da observação para a teoria. Sendo assim, Kant tinha razão ao
afirmar que “nosso intelecto não deriva suas leis da natureza, mas impõe suas leis à
natureza” (POPPER, 1972, p.78).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se no início das leituras havia uma expectativa afirmativa a respeito da
ecologia humana, o é possível concluir parcialmente o presente capítulo com a
mesma visão. De acordo com as abordagens específicas e “desencantadas” das
ciências da Natureza e da Sociedade aqui expostas, qualquer otimismo em relação à
construção ou consolidação de uma ecologia humana é apressado.
Tornou-se visível que as dificuldades de transpor conceitos de domínios
específicos de saber para outros traz mais confusão do que esclarecimentos. Além
115
do que, tende a empobrecer o próprio conceito submetido a migrações forçadas.
Deslocado de seu contexto de formação e de origem, o conceito tende a se tornar
um conjunto vazio.
Outro ponto digno de destaque é que uma ecologia humana fundada no
conceito de Homem não apenas biológico, mas sobretudo sociocultural, está longe
de se construir. Portanto, o que se denominam vulgarmente como “ecologia
humanae “sociologia ecológicao passam de ecologia “não” humana e
sociologia “não” ecológica, pois o Homem é incluído nesses arcabouços teóricos
apenas parcialmente, nunca em sua totalidade.
Note-se que as dificuldades de diálogo aqui explicitadas entre ciências
sociais e ecologia estão diretamente atreladas ao predomínio do
“desencantamento”, do hermetismo epistemológico, da insistente separação entre
sociedade e natureza, enfim, das racionalidades instrumentais sobre as
racionalidades substantivas. Outras abordagens tanto da Ecologia quanto das novas
ciências sociais podem estar centradas não mais no “desencantamento”, mas no
“reencantamento”, na não separação entre sistemas sociedade e natureza.
De acordo aos quadros 1 e 2, na coexistência entre as racionalidades
predominam as racionalidades instrumentais, pois há mais competição do que
cooperação entre os sistemas de saber envolvidos. Predomina mais o isolamento
que a autonomia. Significa que, ao se projetarem como obstáculos à emergência de
outras racionalidades, as racionalidades instrumentais dificultam avanços teóricos e
epistemológicos nos domínios da ecologia humana e da sociologia ecológica.
116
CAPÍTULO 6
ECONOMIA AMBIENTAL, ECOLÓGICA E MARXISTA
VERSUS
RECURSOS
NATURAIS
RESUMO
O presente capítulo toma como referências os recursos naturais e as
racionalidades para promover um diálogo epistemológico e exploratório envolvendo
três abordagens da economia: a ambiental, a ecológica e a marxista. Para tanto,
recorre a alguns fundamentos das teorias econômicas tentando reconstituir as
diferentes formas como essas teorias enfrentam os processos de apropriação dos
recursos naturais. No final, demonstra que as abordagens ambiental e ecológica da
economia, por fazerem concessões às racionalidades instrumentais, não conseguem
questionar as causas centrais da crise socioambiental, as contradições internas à
forma social capitalista de produção. Demonstra, ainda, que a abordagem marxista
consegue avançar na explicação da crise socioambiental à medida que enfrenta as
referidas contradições a partir do sistema sociedade.
INTRODUÇÃO
As racionalidades que orientam as políticas de gestão dos recursos naturais
o as mesmas das economias ambiental, ecológica e marxista?
Essa foi a pergunta básica que motivou o presente capítulo com seus
respectivos desdobramentos epistemológicos. Cumpre destacar que o
desenvolvimento da presente pesquisa ultrapassa a questão de partida, mas
preserva sua preocupação eminentemente epistemológica. Entenda-se por
epistemologia, em primeiro lugar, o “modo como se produz o conhecimento” e, em
segundo, “o modo como se acessa o conhecimento” (FLORIANI e KNECHTEL,
2003).
O conceito de racionalidade está sendo empregado aqui na mesma
perspectiva de Floriani (1998), como conjunto de valores e crenças que orientam as
decisões humanas. Já o conceito de “racionalidade instrumentalé adaptado da
reflexão de Marcuse (1996), ao explicitar o processo de unidimensionalização
117
técnica da razão iluminista no lado ocidental do Planeta. Em outros termos, Marcuse
assinala que a razão emancipatória que emerge no Iluminismo do século XVII, ao
longo dos dois últimos séculos, tende a se reduzir aos seus aspectos técnicos e
instrumentais; daí o conceito de “racionalidade instrumental”.
O conceito de economia ambiental tem como pontos norteadores os
fundamentos da economia neoclássica nas versões de Pigou e seu principal
discípulo, Keynes (CHANG, 2001). Toda explicação produzida aqui apreende a
economia como estratégia alocadora de recursos escassos e o principal mecanismo
alocador é a famosa “mão invisível” do mercado.
Se a economia ambiental constrói seus argumentos a partir de “leis
econômicas”, a economia ecológica recorre às “leis físicas” da termodinâmica para
dar suporte a seu arcabouço teórico-explicativo da realidade socioeconômica e
ambiental.
A economia ecológica tenta apresentar-se como contraponto à economia
neoclássica-keynesiana ambiental após aproximar os ecossistemas naturais do
sistema econômico. O ponto de partida é a primeira escola econômica, a fisiocracia
de Quesnay, cujo pressuposto básico, como fonte geradora de valor, é a terra
(FOLADORI, 2001a).
A abordagem econômica inspirada em Marx parte do princípio de que a
relação do ser humano com a natureza externa é sempre mediada por relações
sociais. Significa que enquanto os recursos naturais forem propriedades privadas de
uns poucos, as causas profundas da crise socioambiental não terão sido
enfrentadas de forma crítica. Trata-se, portanto, de uma abordagem que apreende a
crise socioambiental como reflexo das contradições de classes inerentes ao sistema
capitalista.
Isso posto, é perceptível que tanto a economia ambiental quanto a ecológica
deixam de levar em conta o fato de que as relações sociais são mediadoras da
relação do ser humano com a natureza. Logo, a apropriação dos recursos naturais é
definida a partir de interesses que contemplam as preferências de alguns grupos
o de toda sociedade, conforme os discursos vigentes nas duas abordagens
econômicas.
118
6.1. INDICADORES DA CRISE SOCIOAMBIENTAL
Ao que parece, a crise socioambiental mundial não está separada da forma
social de produção capitalista e, em conseqüência das racionalidades instrumentais
que lhe sustentam.
É importante reconhecer que a crítica aqui presente não abona os abusos
ambientais presentes nas experiências socialistas. A crítica estende-se àquelas
experiências porque se trata de uma crítica às racionalidades instrumentais que,
historicamente, foram as mesmas que serviram de sustentáculos aos regimes
socialistas.
Robert Kurz (1992), em “O colapso da modernização”, é um dos primeiros
analistas a se ocupar e tentar demonstrar que não há nenhuma diferença entre o
modo de produção capitalista e o modo de produção socialista. Ambos estão ou são,
predominantemente, orientados pelas mesmas racionalidades, as racionalidades
instrumentais e, em função disso, são abusivos em relação ao ambiente.
Por outro lado, há de se esclarecer que o presente capítulo, por privilegiar
aspectos epistemológicos desse debate, limita-se a identificar como são produzidas
algumas explicações teóricas na economia, que enfrentam os temas associados à
crise socioambiental
16
.
A busca de lucro, acompanhada da redução de custos, significa declarão
deliberada de guerra a todos os sistemas vivos que compõem a biosfera. Prova
disso são os dados mundiais sobre as florestas. De acordo com o
Worldwatch
Institute
, as florestas do mundo já perderam quase a metade de sua dimensão
original, que era de 62 milhões de Km². Atualmente elas cobrem 33,3 milhões de
Km² (Ver Tabela 1).
16
Para maiores aprofundamentos acerca da destruição do ambiente pelos regimes socialistas,
convém consultar, além de Kurz (1992), Ponting (1991) e Foster (1994). Todos eles explicitam que os
países socialistas, orientados pela racionalidade instrumental, estavam integrados à economia
capitalista via comércio exterior. Ressalte-se, ainda, que o planejamento centralizado, ao excluir a
ampla participação social, tende a ser abusiva em termos socioambientais em sistemas socialistas,
capitalistas, teocêntricos etc.
119
TABELA 1 - DESMATAMENTO NO MUNDO
ÁREA DESMATADA
ÁREA DE FLORESTA
América do Sul
2,9 milhões de km
2
(30%)
6,8 milhões de km
2
(70%)
América do Norte e Central
3,2 milhões de km
2
(25%)
9,4 milhões de km
2
(75%)
Europa
6,8 milhões de km
2
(41,5%)
9,6 milhões de km
2
(58,5%)
Ásia
10,6 milhões de km
2
(71%)
4,3 milhões de km
2
(29%)
África
4,5 milhões de km
2
(66%)
2,3 milhões de km
2
(34%)
Oceania
0,502 mil km
2
(35%)
0,929 mil km
2
(65%)
Total
28,5 milhões de km
2
(46%)
33,3 milhões de km
2
(54%)
FONTE:
World Resources Institute, 1998
.
No que diz respeito às terras cultiváveis, a situação não é diferente (
Figura
1
).
FIGURA 1 POPULAÇÃO MUNDIAL E TERRAS CULTIVÁVEIS
Fonte: Meadows, 1978.
É desproporcional a velocidade em que as terras cultiváveis vão sendo
utilizadas e degradadas, quando comparada ao aumento da população mundial. Se
em 1650 existiam 3,2 bilhões de hectares de terras cultiváveis para uma população
de 0,5 bilhão de pessoas; no ano 2000, elas foram reduzidas à metade (1,7 bilo
de hectares), com a diferença que a população mundial saltou para mais de 6
bilhões de pessoas. Dependendo da análise dos dados, pode-se chegar à seguinte
População Mundial(Biles) e Terras
Cultiváveis(Bilhões ha) - 1650/2000
3,2
3,2
3,0
1,7
0,5
1,7
2,5
6,0
1650
1900
1950
2000
Terras Cultiváveis
População Mundial
120
conclusão: as necessidades sociais estão longe de serem consideradas ou postas
como prioritárias.
No caso da desertificação, mais uma vez as necessidades sociais são
colocadas em planos secundários. Perto de um quarto da superfície da Terra,
habitado por aproximadamente um bilo de pessoas, vive sob a ameaça crescente
da desertificação. Por ano, 11 milhões de hectares de florestas têm desaparecido e
6 milhões de hectares de terras produtivas transformam-se em desertos. Na Europa,
por exemplo, mais de 20 milhões de hectares já se encontram degradados, em
conseqüência da poluição industrial e da chuva ácida.
Portanto, nota-se que não é casual o fato dos três principais sistemas
biológicos que ajudam a sustentar economicamente a sociedade mundial florestas,
campos e terras cultiváveis estarem em progressivo estágio de decadência e
degradação. Onde há florestas, campos e terras cultiváveis há recursos naturais
o apenas como necessidade social, mas principalmente como necessidade
econômica no sentido mais reduzido e instrumental que se possa conferir ao
conceito de econômico.
As três seções a seguir tentam explicitar como as racionalidades no interior
do campo econômico disputam possibilidades de “melhor” explicar os sentidos,
causas e efeitos da crise socioambiental.
6.2. ECONOMIA AMBIENTAL E RECURSOS NATURAIS
Ao que parece, a relação da economia ambiental com os recursos naturais
está centrada no princípio da escassez, que classifica como “bem ecomico” o
recurso que estiver em situação de escassez, desconsiderando o que for abundante.
Além dos princípios expostos, a noção de “internalização das externalidadesé outro
pilar fundamental da economia ambiental.
Na base desse conceito predomina a noção de que os recursos naturais
precisam ser reduzidos à lógica de mercado, precisam ter preços. Propõe, então, a
desestatização dos bens públicos como possibilidade objetiva e única de protegê-
los. É importante ressaltar que esse tipo de aporte teórico tende a favorecer aos
atores sociais envolvidos a transferência de seus vícios privados para os espaços
121
públicos, permitindo a legitimão da desetatização do público em favor de
interesses estritamente privados.
Se aceitos como verdadeiros os pressupostos da economia ambiental, a
única forma de gerenciar
adequadamente os recursos naturais seria privatizando-os.
Isso só é possível se houver uma drástica, porém planejada redução dos bens
públicos. A idéia central é internalizar as externalidades, é estabelecer ou fixar
preços nos bens ambientais em conformidade à lógica de mercado.
Na formulação de Foladori, “fijar cuotas de contaminación, por ejemplo, es
una forma de privatizar un cierto grado de contaminación” (FOLADORI, 2001b,
p.198). Perceba-se que o raciocínio tende a reduzir as múltiplas dimensões dos
recursos naturais a uma única dimensão, a do mercado. Além do que, tende ainda a
abonar a culpa do poluidor privado uma vez que ele paga sempre que contamina
e transferir para o espaço público camada de ozônio, mares, atmosfera etc todos
os problemas ambientais.
Sendo assim, a economia ambiental termina propiciando vantagem
econômica para os poluidores que tiverem condições de pagar pelos seus estragos,
legitimando a apropriação e uso de recursos ou espaços públicos para contemplar
interesses privados.
A rigor, a “internalização das externalidades” pressupõe que determinado
custo privado não corresponde aos custos sociais. Implica que algum evento
imponderável que esteja à margem do mercado, mas que o influencia de alguma
forma, precisa ser mercantilizado. Se não ocorrer a referida mercantilização, o
imponderável pode possibilitar conflitos, decisões e impactos nocivos ao próprio
sistema econômico ameaçando interesses dos grupos que querem preservá-lo.
Nesses termos, a “internalizaçãodas “externalidades” pressupõe que uma
das únicas formas de evitar conflitos econômicos com desdobramentos nos sistemas
político e social, é não permitir que existam recursos no ambiente sem proprietários
privados. Esse raciocínio conduz à afirmação de que a “internalização” das
“externalidades” atua como freio aos possíveis abusos de determinadas pessoas ou
grupos sobre outras; atua como possibilidade objetiva de educação dos desejos, das
paixões e das vontades íntimas. Em uma frase, a “internalização das externalidades
tem a pretensão “universalistade impor no indivíduo ou grupo a percepção de que
122
o pode fazer o que bem entender por uma única e simples razão: tudo que está
em volta tem dono e, sobretudo, preço.
Seguindo a ordem do raciocínio exposto acima, a “internalização das
externalidades”, como base para políticas pretensamente emancipatórias, evitaria
invasões de terras e de áreas consideradas impróprias à ocupação humana. Isso
porque os teóricos da economia ambiental acreditam que as ocupações indevidas
ocorrem, em última análise, porque são terras de ninguém. Se não são de ninguém,
o de qualquer um que tiver coragem de ocupá-las. Uma vez ocupadas, as
dificuldades de reverter a situação aumentam consideravelmente em função do
conflito estar definitivamente instaurado.
Se áreas de preservão ou de mananciais, por exemplo, são apropriadas à
força por ocupantes irregulares, trazendo prejzos para toda coletividade, por que
o desestatizar antes da ocupação irregular e abusiva? Essa é a pergunta clássica
que já contém a resposta de classe - dos arautos da economia ambiental.
No que diz respeito à apropriação de recursos naturais, a despeito dos
indicadores de crise, a economia ambiental apóia-se no outro princípio da economia
neoclássica, o da escassez. Ao classificar determinados recursos naturais como
escassos, a única forma de preservá-los é caracterizando-os como “bens
ecomicos”. As implicações advindas desse tipo de decisão são apresentadas
como protetoras tanto dos interesses individuais quanto coletivos.
A transformação dos recursos naturais em “bens econômicos” apaga a
imagem de que os mesmos são abundantes, de que não existem donos e que, em
função disso, podem ser desperdiçados. Mais uma vez, esse tratamento que a
economia ambiental confere aos recursos naturais tende a pleitear ao menos na
aparência - a dimensão civilizatória de qualquer política pública voltada aos temas
socioambientais. A saber: educar as vontades dos usuários para que os mesmos
conscientizem-se de que suas ações lesivas ao ambiente serão penalizadas.
Os argumentos dos economistas ambientais podem ser discutíveis em
vários pontos, mas são coerentes à medida que refletem claramente interesses de
grupos alinhados com uma “racionalidade instrumental” (MARCUSE, 1978 e 1996)
que prioriza, em última instância, não as necessidades socioambientais, mas o lucro.
No fundo, são propostas estribadas em princípios que, em momento algum,
questionam as relações sociais ou de interesses de classes que sustentam a
123
sociedade capitalista. Seus argumentos, por mais coerentes que sejam, o
permitem qualquer ação política além do capital. O limite é o mercado, depois a
emancipão das pessoas.
A rigor, quando os economistas ambientais falam em educação das
vontades, é preciso entender que, embora estejam impondo limites, esses o
ultrapassam a lógica mercantil. Os recursos naturais tornam-se “bens econômicos
o necessariamente porque houve um arroubo de generosidade ou de altruísmo da
parte das políticas orientadas pelos prinpios da economia ambiental. Essa é a
causa aparente, pois nas entrelinhas está a principal motivão, o lucro. Eles
começam a perceber, para ficar com apenas um exemplo, que terras cultiváveis
contaminadas ou geridas de maneiras inadequadas, além de não proporcionar
vantagens imediatas, a longo prazo, poderão comprometer o sistema econômico.
Uma população contaminada tende a comprometer a produtividade do
sistema econômico. Por conta disso, os recursos naturais não podem continuar
sendo uma externalidade, uma ameaça à reprodução do sistema capitalista.
6.3. ECONOMIA ECOLÓGICA E RECURSOS NATURAIS
Contemporaneamente, ao recorrer à natureza para legitimar seus discursos,
setores diversos, descontentes com as agressões socioambientais, transferem
valores intrínsecos para os recursos naturais, conferindo-lhes uma subjetividade
própria, muito similar à subjetividade humana.
Essa talvez seja a base dos manifestos não apenas de alguns economistas,
mas também de todos os ecologistas radicais contra Descartes. Para eles,
Descartes foi o principal responsável não pelo “seqüestro”, mas pela não admissão
de que a natureza externa ao ser humano os outros sistemas vivos - também tem
direito à subjetividade e a não ser dominada da forma como vem sendo dominada
(CAPRA, 1991; 1995 e 1996; MORIN, s/d; SERRES, 1991).
Para Serres, por exemplo, a questão ambiental contemporânea é,
fundamentalmente, uma questão de direito. Daí sua sugestão de um outro contrato,
dessa vez diferente do “contrato social” de Rousseau (1999), mas um “contrato
natural” como figura jurídica capaz de outorgar a todos os sistemas vivos o
apenas aos seres humanos o direito à vida.
124
A gênese da economia ecológica precisa ser buscada ao longo do século
XIX, período em que foi explicitada a “Lei da Termodinâmicapor Sadi Carnot (1796-
1832). A referida lei física tem como ponto de partida a noção de “fluxos energéticos
liberados pelos sistemas econômicos em forma de calor.
Apesar da referida descoberta ter sido muito festejada no âmbito dos
cientistas vinculados às pesquisas na Física, na economia ela continuou
marginalizada até a década de 1970, contexto em que readquire força política junto
aos movimentos de questionamento da sociedade predatória industrial. As análises
do economista romeno Georgescu-Roegen (1971) são consideradas clássicas para
essa discussão da economia que tem como base de referência os fluxos de energia
ou os princípios da entropia
17
.
A partir da fundação da “subjetividadepara os recursos naturais, iniciado
por filósofos, ambientalistas e outros ativistas simpáticos à
Deep Ecology
18
, a
economia ecológica aproveita para elaborar suas críticas à economia ambiental e
projetar-se como “alternativa” teórica para a crise daquele contexto histórico. Sua
crítica à economia ambiental apóia-se no fato dessa construir suas explicações a
partir de imagens da física newtoniana, como se o sistema econômico fosse uma
redoma de vidro fechada.
Para os economistas ecológicos, são insustentáveis as explicações dos
economistas ambientais e ainda servem de justificativas para as relações abusivas
da indústria com os demais sistemas vivos. A partir dessa crítica, os economistas
ecológicos sugerem que a economia seja apreendida não em si mesma, mas envolta
em um sistema mais amplo, o planeta Terra. Para eles, o sistema econômico pode
até ser fechado em termos materiais, mas é aberto ao universo no que tange à
captação de energia.
Eles partem de tais pressupostos para tentar demonstrar os limites físicos do
Planeta e consideram que tais pressupostos são suficientes para questionar as teses
17
A energia flui em uma só direção e tende a se dissipar em calor de baixa temperatura que não
pode ser utilizado. Chama-se de entropia essa soma de energia não aproveitável (FOLADORI,
2001c).
18
À
Deep Ecology
ou “Ecologia Profunda” estão associados nomes conhecidos tais como Fritjof
Capra e Michel Serres. Um de seus pressupostos é que o ser humano não é o centro da “Teia da
Vida” (CAPRA, 1996), mas apenas parte dela.
125
do crescimento ilimitado. Note-se que se trata de uma crítica à forma social de
produção capitalista com ênfase em seus aspectos físicos, não nos aspectos sociais.
Para a economia ecológica, leis físicas explicam os limites do sistema
econômico. Não foi por acaso que o famoso relatório “Meadows início da década
de 1970 - tomou como pontos de partida variáveis físicas para formalizar suas
críticas ao crescimento desenfreado em termos econômicos.
Trata-se de uma abordagem que ao apontar as insuficiências das
racionalidades instrumentais abre alguns espaços para as racionalidades
substantivas. Nesse ponto, a despeito de sua preocupação menor com o sistema
sociedade, avança na direção de outras racionalidades.
6.4. ECONOMIA MARXISTA E RECURSOS NATURAIS
A abordagem econômica inspirada em Marx parte do princípio de que a
relação do ser humano com a natureza externa é sempre mediada por relações
sociais. Essa afirmação, por si mesma, condena a economia política marxista à
medida que a torna incompatível com o mercado. Esse último exclui ou elimina tudo
que se apresentar como amea a seus totens sagrados, a “livre iniciativae a
“propriedade privada” dos meios de produção.
No mercado não há espaço para qualquer instituição que tente educar as
vontades “insaciáveisdos atores econômicos em suas buscas de satisfação
individual com esforços mínimos. Assim, no âmbito do mercado não há espo para
a ética se essa for apreendida como possibilidade de educação das vontades e dos
desejos íntimos dos seres humanos.
O mercado, com sua lógica intrínseca baseada no princípio da destruição
produtiva e permanente, tem dificuldades para tolerar qualquer obstáculo que se
apresente em sua trajetória. O que se quer reiterar é que enquanto os pressupostos
da economia política marxista não forem considerados funcionais talvez não sejam
nunca - ao mercado, ela continuará sendo uma ameaça em potencial, justificando-se
sua marginalização. A economia política marxista é um obstáculo à economia de
mercado porque ao invés de priorizar ou ter o lucro como fim em si mesmo, projeta
as necessidades sociais como objetivos fundamentais.
126
Os impactos de uma população inviabilizada para a produção, por exemplo,
implica, direta e necessariamente, problema para o sistema econômico. A partir daí,
os recursos naturais tornam-se importantes não porque atendem necessidades
sociais, mas porque, quando contaminados, põem em risco o êxito econômico.
Quando o mau uso dos recursos naturais afeta o sistema econômico, eles tornam-se
fundamentais.
Nessa ordem de raciocínio, acerca das políticas econômicas marxistas,
pode-se afirmar que elas geram desconforto porque assumem deliberadamente que
as relações capitalistas de produção estão sempre na base, são causas centrais da
degradação socioambiental contemporânea.
Isso porque, na presente formulão, a relação do ser humano com o
ambiente físico é sempre mediada por relões entre grupos, que são determinados
e balizados historicamente por interesses de classe. Interesses que nem sempre ou
nunca são harmônicos ou universais. Não há relação do ser humano com a natureza
externa que possa ser caracterizada como neutra.
Toda e qualquer apropriação dos recursos naturais está sempre orientada
por interesses particulares e, invariavelmente, abusivos aos interesses do público.
Na perspectiva da lógica capitalista, os recursos produtivos, naturais ou artificiais,
precisam ser utilizados ostensiva e intensivamente. Desconsideram-se, sob tais
critérios de uma racionalidade estribada na contabilidade de preços, “las diferencias
entre recursos renovables y no renovables, o los ritmos biológicos del resto de los
seres vivos y la biodiversidad” (FOLADORI, 2001b, p.209).
Trata-se, portanto, de uma abordagem que, além de apontar as
insuficiências das racionalidades instrumentais, ao incluir ou considerar aspectos
sociais, tende a ampliar espaços para as racionalidades substantivas. Nesse ponto,
portanto, avança em relação à abordagem da economia ecológica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A economia ambiental, ao sobrevalorizar a “internalização das
externalidades”, tende a eliminar da natureza qualquer “valor intrínseco” que essa
possa ter. Além do que, serve de justificativa para toda e qualquer apropriação dos
127
recursos naturais, à medida que transforma tudo em mercadoria. A lógica de
mercado emerge como solução inevitável para a crise ambiental.
A economia ecológica, ao tentar explicar o sistema econômico a partir de leis
físicas as leis da termodinâmica tende a admitir que as possíveis soluções para a
crise ambiental são fundamentalmente técnicas. Com isso, a presente abordagem
exclui as relações sociais, todas orientadas pelos mais distintos interesses de
grupos. Em outros termos, preservar os recursos naturais sem questionar a forma
social de produção capitalista permite a reprodução de indivíduos apenas
resignados para servir ao mercado. Mas avança em relação à primeira abordagem
ao assinalar as insuficiências das racionalidades instrumentais.
Nesse particular, as duas abordagens, em suas relações com os recursos
naturais, tendem a não levar em conta as relações sociais como mediadoras da
relação do ser humano com a natureza (FOLADORI, 2001b).
Tal como a economia ambiental, a economia ecológica, a despeito de sua
crítica incisiva ao “crescimento ilimitado”, o se constitui como perspectiva que
aponte para além do sistema de mercado porque não enfrenta o núcleo duro da
forma social de produção capitalista, as contradições internas ao sistema.
Das abordagens teóricas apresentadas, a matriz marxista vislumbra saídas
que se propõem a ir além da forma social de produção capitalista. A economia
ambiental é insuficiente porque se limita a incorporar externalidades que estão fora
do sistema econômico por meio de soluções técnicas. A economia ecológica é
igualmente insuficiente por querer que regras externas a termodinâmica regulem
o sistema econômico, negligenciando o fato desse último ser regulado por relões
sociais internas ao próprio sistema econômico.
A abordagem marxista parte do pressuposto de que os problemas
ambientais derivam do sistema social, logo as possíveis soluções precisam ser
buscadas nele, o no sistema técnico ou físico-energético.
É preciso, portanto, mergulhar no sistema social para explicitar e demonstrar
as causas profundas que acentuam a crise ambiental contemporânea. Enquanto as
contradições intrínsecas à forma social de produção capitalista não forem
enfrentadas, as explicações permanecerão em níveis consideráveis de
superficialidade.
128
Por um lado
,
a abordagem marxista, ao eleger as necessidades sociais
como eixos civilizatórios para suas ações políticas, torna-se uma visível ameaça
para um cenário global dominado pela instrumentalidade das políticas subservientes
ao mercado. Por outro, a crítica, por si mesma, atua como freio para os possíveis
abusos do mercado e como possibilidade de aperfeiçoamento do próprio sistema
capitalista à medida que reivindicam outras racionalidades como suportes para
políticas públicas socioambientais.
Em certa medida, essa é uma das conclusões de um dos principais
defensores do sistema capitalista, Lester Thurow (1997), em seu famoso e polêmico
livro, O Futuro do Capitalismo”. Para ele, o que sofisticou e consolidou o sistema
capitalista como modo de produção hegemônico, sobretudo, ao longo do século XX
foram os seus inimigos viscerais com destaque para o comunismo.
Com a derrocada do comunismo, que atuou como verdadeiro limite ético,
elevaram-se a níveis incontroláveis os desmandos do capital. A ameaça comunista
obrigava o capitalismo a tomar decisões priorizando algumas das necessidades
sociais consideradas mais emergentes.
Isento dos perigos iminentes, o capital volta ao seu estado de “natureza”: só
considera as necessidades socioambientais importantes se elas ameaçarem o
sistema econômico.
Do ponto de vista teórico, fica demonstrado que a presença predominante
das racionalidades instrumentais nas abordagens econômicas dos temas
socioambientais com destaque para a economia ambiental e a ecológica tendem
a se projetar como obstáculos às racionalidades substantivas. Isso dá provas de que
as ciências econômicas, mais que as ciências sociais tradicionais, são muito mais
reticentes à assimilação de outras racionalidades distintas das racionalidades
instrumentais.
129
CAPÍTULO 7
ÉTICA, NATUREZA E A INSISTENTE BUSCA
DO FUNDAMENTO ÚLTIMO
RESUMO
O presente capítulo identifica conexões entre alguns autores filósofos,
sociólogos, biólogos e pensadores em geral que se ocuparam ou se ocupam de
temas envolvendo o binômio natureza e ética. Trata-se de um estudo que contém
pretensões de avançar no debate em torno das racionalidades e na demonstração
de que a busca de fundamento último tende a ser obstáculo à emergência de outras
racionalidades. No primeiro bloco, explicita as possíveis bases para a consolidação
do pensamento de Darwin. No segundo bloco torna visível a rejeição de Weber face
à ética da convião e a qualquer idéia que remeta a fundamentos últimos,
acompanhada de sua adesão à ética da responsabilidade.
7.1 QUESTÕES DE PARTIDA
A inquietação que motivou o presente capítulo foi tentar explicar por que
parece insuportável para muitas pessoas conviver com a incerteza. De um lado, a
preocupação em explicar por que a incerteza gera tanta angústia, tanto sofrimento?
De outro, por que a certeza serve de consolo sem necessariamente resolver as
grandes tensões e dilemas humanos?
Respostas para as questões acima parecem ser fundamentais para
aprofundar o debate em torno dos fundamentos últimos que servem de base para
muitos teóricos e estudiosos ocupados com temas ambientais.
7.2 HEGEL E AS BASES FUNDADORAS DO DARWINISMO
Tudo se inicia com Nietzsche. Na “Gaia Ciência”, aforismo 357, ele faz uma
afirmação muito interessante envolvendo Hegel e Darwin. Para Nietzsche, Hegel
remanejou todos os hábitos e comodidades lógicas predominantes em sua época
130
[...] ao ousar ensinar que os conceitos de espécie se desenvolvem
um do outro proposição pela qual os espíritos na Europa foram pré-
formados para o último grande movimento científico, o darwinismo
pois sem Hegel não há Darwin (NIETZSCHE, 1983, p.218).
O trecho destaca que a citada inovação hegeliana foi pioneira na introdução
do conceito de “desenvolvimentoque servirá de suporte para a tese de Darwin
acerca da “variabilidade ou mutabilidade dos sistemas vivos”. Em outros termos,
Hegel prepara o mundo europeu para as suspeitas desconfortáveis e bombásticas
de Darwin de que o indivíduo humano não está em patamares tão distantes das
outras espécies.
Se cada sistema vivo contemporâneo derivou ou desenvolveu-se a partir de
sistemas ancestrais, por que razão o “desenvolvimento” da espécie humana seria
diferente?
A noção de “desenvolvimento”, se não desmonta, ao menos põe em dúvida
um dos padrões dominantes de pensamento, a crença no “sopro divinoe criador de
todas as espécies de forma estática. É a gênese da noção de que a natureza está
em permanente movimento.
A crença afirmativa e inabalável no “vir-a-ser” ou na dialética, de Hegel,
guardadas as devidas proporções, equivale à crença de Darwin (1987) na idéia de
que “[...] todas as formas de vida tendem [...] ao aperfeiçoamento”, uma vez que está
implícito na formulão de Hegel que o “vir-a-ser” seguinte é sempre “melhor” que o
anterior.
Cumpre destacar que quando Darwin faz referência ao “aperfeiçoamento
permanente das espécies, está pensando em termos funcionais, pois sua reflexão
está apoiada na dimensão empírica, no mundo prático que envolve todos os
organismos vivos. Hegel, por sua vez, ao aceitar a idéia de que o “vir-a-ser” é
sempre “melhor”, além da dimensão prática da vida associativa, também está
remetendo à metafísica, ao mundo das idéias. Em termos epistemológicos, Darwin
apropria-se da mefora idealista de Hegel, aperfeiçoando-a a partir de bases
empíricas das ciências naturais, para construir seu próprio padrão de pensamento.
O que Hegel formulou no campo das idéias, Darwin traz para o domínio das
ciências naturais. Nesse trajeto, Darwin não deixa de fazer justiça a seus
predecessores no domínio das ciências naturais. Um dos mais importantes é
131
Lamarck, que viveu antes dele e produziu sua obra entre final do século XVIII e
início do século XIX.
De acordo com Darwin, Lamarck “[...] defende nas suas obras a doutrina de
que todas as espécies, compreendendo o próprio homem, originam-se de outras
espécies. Foi ele o primeiro a prestar à ciência o grande servo de declarar que toda
alteração no mundo orgânico, bem como no mundo inorgânico, é o resultado de uma
lei, e não de uma intervenção miraculosa” (DARWIN, 1987, p.7).
De acordo com a revisão bibliográfica feita pelo próprio Darwin, seu mérito
foi apenas explicitar, por meio de evidências empíricas, uma lei da natureza a da
“seleção natural que já havia sido suposta em vários autores que o precederam.
Dentre os quais, está Lamarck e um elenco de pesquisadores menos conhecidos.
Cumpre ressaltar, ainda, que todas as referências de Darwin estão no campo da
Biologia.
Vejamos, por exemplo, os comentários de Darwin a propósito das
descobertas de Spencer em 1852, sete anos antes de publicar sua obra principal.
Para ele, Spencer
[...] estabeleceu com um talento e com uma habilidade
extraordinários, a comparação entre a teoria da criação e o
desenvolvimento dos seres orgânicos. Extrai os argumentos da
semelhança das produções domésticas, das transformações que
sofrem os embriões de muitas espécies, da dificuldade de distinguir
espécies e variedades, e o princípio de gradação geral; conclui que
as espécies sofreram modificações que atribui à mudança de
condições. O autor (1855) estudou tamm a psicologia partindo do
princípio da aquisição gradual de cada aptidão e de cada faculdade
mental (DARWIN, 1987, p.12).
Quando Spencer fala que as espécies se modificaram graças às mudanças
de condições está admitindo a presença forte do “ambiente”, isto é, da “seleção
natural”. Está admitindo que as condições externas não podem ser negligenciadas,
pois o decisivas para entender as espécies em sua dinâmica. Nas entrelinhas da
interpretação de Darwin está o reconhecimento de que Spencer, tal como os outros
autores, tamm já havia percebido os indicadores da seleção natural, só o a
explicitou.
Portanto, não é muito correto afirmar que Spencer apropriou-se das
formulações de Darwin. Houve influências mútuas, pois, como percebeu Nietzsche,
132
ambos são pensadores alertados pelas metáforas dialéticas de Hegel e pelo
vigoroso avanço das ciências naturais ao longo do século XIX.
Ocorre que, ao explicitar a “lei da seleção natural”, Darwin ofereceu a
Spencer mais subsídios para fundamentar sua teoria social diretamente associada
ao “darwinismo social”. No momento em que Spencer recorre à “seleção natural
para explicar o mundo social, força a migração de conceitos das ciências naturais
para as ciências humanas, transformando sua teoria em possibilidade objetiva não
mais de explicação, mas de legitimão da sociedade orientada pelo “salve-se quem
puder”. Ao tentar explicar o social a partir dos fundamentos últimos da natureza,
Spencer, talvez sem se dar conta, demonstra não ter resistido aos encantos da
naturalistic fallacy
, denunciada por Hume em 1740 (1999).
Nesse particular, o “darwinismo social” esboçado por Spencer pode ser
entendido mais como ideologia legitimadora da filosofia utilitarista vigente na Europa
e em especial na Inglaterra (BENTHAM; MILL), do que como teoria social. De
qualquer modo, se alguém tiver que tomar a “cicuta, esse algm não será Darwin,
mas Spencer, pois Darwin, embora influenciado por Hegel, Bentham, Malthus, Mill e
outros filósofos e economistas, construiu sua teoria no domínio das ciências
naturais. Foi cauteloso, não se preocupou em dar “saltos” para o mundo das idéias.
Marx (1977b), por sua vez, também não escapa e ele nunca negou isso
do poder de sedução provocado pelo “vir-a-ser” hegeliano. A despeito da vigorosa e
inegável originalidade de seu arcabouço teórico, paga tributos a Hegel ao afirmar
que a formação social capitalista superou a formação social feudal. A rigor, ele está
admitindo, tal como Darwin e Spencer, que uma época histórica presente engendra
sua própria superação, preservando sempre seus elementos fundamentais.
Nesses termos, o capitalismo surge do feudalismo e, em ato connuo, será
superado pela sociedade sem classes, a sociedade comunista. Há de se notar que
Darwin faz afirmações em relação à transformação - aperfeiçoamento em termos
funcionais - das espécies, tomando como referência a mesma lógica ou estrutura de
pensamento. A dialética inaugurada por Hegel, portanto, permite e legitima a noção
de que uma espécie contemporânea qualquer sistema vivo ou um sistema social
pode ter surgido de outra completamente diferente e engendrar outra, também,
absolutamente diversa.
133
Ao que parece, a diferença fundamental é que se Darwin entende o sistema
vivo como simples resultado do “ambiente”, Marx (1977a; 1977b), ao contrário, leva
em conta as circunstâncias históricas como determinações objetivas, mas assevera
que o ser humano (sistema vivo) altera constantemente as referidas circunstâncias,
mesmo sem ter consciência plena disso. Da mesma forma que Nietzsche, Marx
admite, sobretudo, para o indivíduo humano, uma “ética no sentido que Nietzsche
utiliza, isto é, como comportamento ou uso - da transgressão. A despeito das
imposições das circunstâncias, Marx e Nietzsche o aceitam a ênfase nos
mecanismos de adaptação de Darwin.
O sistema vivo humano não apenas se adapta, mas altera-se internamente
ao mesmo tempo em que modifica o ambiente; trata-se, portanto, das reões não
necessariamente de confronto ou de luta pela sobrevivência de um organismo vivo
diante de movimentos externos, mas de interação vivencial. Ao se falar em um
organismo vivo, que sente, que se transforma e, principalmente, tamm transforma
o ambiente, parece que, diferentemente de Darwin, Descartes (1999) e outros
adeptos do dualismo, há uma rejeição da separação dualista entre corpo/mente e
ambiente, admitindo reelaborações contínuas.
Nessa mesma perspectiva monista Bateson não hesita em acentuar que,
“[...] en realidad, la unidad de supervivencia es el organismo en un ambiente y no el
organismo contra el ambiente” (BATESON, 1993, p.231). Ao deslocar o eixo da
sobrevivência do organismo da luta contra para a relação permanente de troca com
o ambiente, Bateson está admitindo a tese de que o organismo vivo capaz de
pensar e sentir o ambiente não se define ou se constitui unilateralmente pela luta
com o ambiente, pois a distião entre organismo e ambiente torna-se fluida ou até
impossível de ser delimitada.
Para Darwin, existem leis intrínsecas à natureza e essas leis, se não houver
intervenções ou quaisquer imponderáveis, conduzem ao “bem”, ao aperfeiçoamento
funcional das espécies. Em seus próprios termos, “a natureza, se me permitem
personificar com este nome a conservação natural ou a persistência do mais apto,
o se ocupa [...] das aparências, a não ser que a aparência tenha [...] utilidade para
os seres vivos”. Em outros termos, a natureza “[...] escolhe para vantagem do
próprio ser”. Grosso modo, Darwin, em seu afã de caracterizar a natureza, em
134
termos funcionais, como um “bem” em si mesma, não hesita em recorrer às
formulações utilitaristas vigentes na época.
Nessa empreitada, tende a transferir sua crença afirmativa no utilitarismo
para os fenômenos naturais, conferindo-lhes vida e vontade próprias. O homem, por
sua vez, aparece como grande imponderável, como ameaça suprema para os outros
sistemas vivos porque “[...] tem apenas um objetivo: escolher para sua própria
[sobrevivência]” (DARWIN, 1987, p.70).
Se forem aceitos como verdadeiros os pressupostos de Darwin, admite-se
que se não houvesse a intervenção humana, não existiriam crises no ambiente
natural. Significa admitir que as possíveis e profundas causas das “crises
ambientais” têm como responsáveis as ações abusivas dos indivíduos humanos. Os
vetores desencadeadores das crises ambientais devem ser buscados no sistema
sociedade com suas infindáveis contradições. É o sistema sociedade, não o sistema
natureza, que “[...] não permite que os machos mais vigorosos lutem pela posse das
fêmeas. Não destrói os indivíduos inferiores; protege, pelo contrário, cada um deles
(DARWIN, 1987, p.71).
Esse princípio aparece em muitas abordagens preservacionistas que se
limitam a defender a natureza não necessariamente por ela conter valores
intrínsecos, mas pela desqualificação de um sistema sociedade estribado na
predação.
7.3 WEBER E A REJEIÇÃO DO FUNDAMENTO ÚLTIMO
Em “A Política como vocão”, Weber (1968) rejeita a ética da convicção
como possibilidade de orientação das decisões humanas mais importantes. Em seus
próprios termos,
toda a atividade orientada segundo a ética pode ser subordinada a
duas máximas inteiramente diversas e irredutivelmente opostas.
Pode orientar-se segundo a ética da responsabilidade ou segundo a
ética da convião. Isso não quer dizer que a ética da convião
equivalha a ausência de responsabilidade e a ética da
responsabilidade, a ausência de convião. Não se trata disso,
evidentemente. Não obstante, há oposição profunda entre a atitude
de quem se conforma às máximas da ética da convião diríamos
em linguagem religiosa, ‘O cristão cumpre seu dever e, quanto aos
135
resultados da ação, confia em Deus e a atitude de quem se orienta
pela ética da responsabilidade, que diz: ‘Devemos responder pelas
previsíveis conseqüências de nossos atos’ (WEBER, 1968, p.114).
O trecho evidencia que Weber rejeita a ética da convicção porque enxerga
na mesma uma insistente e abusiva tentativa de recorrer a um fundamento último, a
um poder metafísico, enfim, a um poder divino. Em última análise, Deus seria a base
estrutural para todo indivíduo que toma como referência a ética da convicção para
decidir o próprio destino. A partir da crea no fundamento último, o há
necessidade de legitimá-la em termos terrenos; não há espaço igualmente para
outras racionalidades que transcendam a noção fechada de fundamento último.
Nesses termos, Weber o aceita a rigidez, a incondicionalidade da ética da
convicção; não aceita sua pretensão de servir de “imperativo categórico” para toda a
humanidade. Para ele, o problema da ética da convicção é não estar,
necessariamente, associada a valores íntimos do indivíduo; agir sob a égide de tal
ética implica agir, em geral, contra a própria consciência. Na formulação de Weber,
isso parece ser inaceitável principalmente no que diz respeito aos líderes,
responsáveis pelo destino não apenas de si mesmos, mas de toda uma nação.
Agindo sob a ética da convicção, os espaços para a “transgressão a
mesma transgressão reivindicada por Nietzsche - ou para a ação fiel à consciência,
ficam reduzidos, pois todo ato simboliza a obediência cega a Deus, à lei ou à norma.
Sob tal domínio, a obediência está associada a algo que é externo, que comanda os
atos e decisões como se fossem ordens irrefutáveis. Os valores íntimos dos
indivíduos são sacrificados em nome do fundamento último.
É oportuno lembrar que, ao falar da ética da convicção, Weber está fazendo
referências críticas aos burocratas que sacrificam valores íntimos em favor da norma
e, pior ainda, em prejuízo da sociedade. A ética da convião, no sentido que Weber
critica, ao desobrigar a consciência, tende a retirar do indivíduo toda e qualquer
culpa sobre seus atos.
No domínio da ética da responsabilidade, não há legitimação externa ao
indivíduo, pois ele passa a ser o principal responsável por seus próprios atos e
decisões. Não existe justificativa metafísica. No raciocínio de Weber, orientado por
tal ética o ser humano tende a ser mais cauteloso antes de tomar qualquer decisão,
possibilitando relações mais claras e emancipatórias entre as pessoas. Na ética da
136
responsabilidade não há culpados externos ao homem, muito menos imperativos
categóricos. Não há projeto intrínseco nem
a priori
nem
a posteriori
na decisão
humana. O homem está entregue à própria sorte, logo, obrigado a ser cauteloso, a
analisar circunstâncias antes de bater o martelo.
Na ética da responsabilidade não existe finalismo porque só o próprio
indivíduo é capaz de conferir sentido às suas ações. Em outras palavras, Weber está
explicitando sua epistemologia, cujo pressuposto é que o existe sentido ou projeto
intrínseco aos fenômenos externos à mente humana. A partir dessa percepção,
Weber entrega ao ser humano o direito de definir seu próprio destino e assumir, sem
remorsos, as conseqüências advindas das decisões.
o é por acaso que alguns intérpretes do pensamento de Weber - Giddens
(1991), é um exemplo - tendem a caracterizá-lo como pessimista e sombrio face ao
futuro de uma humanidade conduzida por burocratas servis às normas e por
políticos oportunistas que não hesitam em sacrificar valores íntimos em prol de
interesses privados. Ao caracterizar Weber como pessimista Giddens está correto,
pois Weber o aceitava com tranqüilidade o fato dos governantes alemães terem
rompido com facilidade seus limites éticos, suas consciências em nome de prestígio.
Para Weber, os postos-chave de qualquer governo que tenha pretensões de
ser politicamente forte, devem ser ocupados não por burocratas, mas por
[...] políticos homens experimentados em pesar os efeitos de
declinações públicas, homens com o senso de responsabilidade do
político e não com o sentido de dever e de subordinação do
burocrata, que é adequado em seu lugar, mas pernicioso em política
(WEBER, 1980, p.61).
O trecho recortado deixa claro que o autêntico político, entre sacrificar o
cargo e seus valores íntimos, ele opta pela primeira alternativa; o negocia sua
consciência. Com isso, Weber aprofunda a distância que separa o burocrata do
político:
o funcionário público deve sacrificar suas conviões às exigências
da obediência; o político deve rejeitar publicamente a
responsabilidade por ações políticas que se chocam com suas
convicções e deve sacrificar seu cargo a essas convicções (WEBER,
1980, p.61)
Ao que parece, o burocrata orienta suas ações a partir da ética da convião
porque apenas obedece a algum imperativo que lhe é externo e p-estabelecido em
137
forma de regra. Ao agir dessa forma, sacrifica seus valores íntimos à medida que os
mesmos podem ou não estar relacionados à crença ou na positividade das regras. O
político, ao contrário, em hipótese alguma sacrifica sua consciência porque esta está
relacionada à sua crença em convicções íntimas e contrárias à suposta positividade
das regras.
Sendo assim, Weber admite a existência de espaço para a substantividade
humana a partir do momento que admite que o político, entre o cargo e suas
convicções, deve optar pelas últimas. Junto a essa afirmação, Weber está admitindo
a possibilidade objetiva de ruptura, de não adaptação do homem à camisa-de-força
da burocracia. O burocrata sacrifica sua intimidade mais profunda, submetendo-se à
regra; nesse movimento de submissão da substantividade humana à norma, além de
perpetuar e legitimar a dominação burocrática, permite o massacre, o seqüestro de
sua consciência. Eis a gênese do temor de Weber, de sua análise pautada em
cenários nebulosos.
O político, ao contrário, afirma suas conviões negando veementemente as
regras, pondo em dúvida a legitimidade da dominação burocrática. Ao desprezar a
norma em prol de sua intimidade, o político garante espaços para a própria auto-
realização.
O conhecido pessimismo de Weber está associado ao fracasso parlamentar
alemão e Weber atribui o fracasso ao predomínio da mentalidade burocrática. Sua
hipótese é que quanto maior o avanço da burocracia, maior a decadência do
parlamentarismo alemão. O desdobramento desse processo é que há uma
inexorável negação de espaços para a substantividade humana. Diante de tal
cenário, Weber enxerga a política como uma das possibilidades objetivas de
garantia ou criação de espaços para a substantividade humana.
Nesse particular, a ética preferida de Weber a da responsabilidade está
mais próxima da ética da transformação de Nietzsche, do que da ênfase nos
mecanismos de adaptação funcional dos organismos vivos ao ambiente, de Darwin.
138
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nietzsche estava certo ao revelar que sem a dialética de Hegel, nem Marx
nem Darwin seriam possíveis, pois os espíritos dos homens não estariam
relativamente prontos para recebê-los.
Em certa medida, as análises de Weber podem conduzir à conclusão de que
o homem, a despeito das circunstâncias, continua sendo a medida de todas as
coisas. Nas entrelinhas da rejeição da ética da convicção, Weber esconde seu
longïnqüo desejo de ver um mundo organizado e conduzido por indivíduos capazes
de se orientar pela ética da responsabilidade. É por meio dessa que Weber
vislumbra possibilidades objetivas de garantir espaços para a subjetividade humana
em seu significado lato.
Finalmente, a reflexão conduz a um ponto apresentado por Nietzsche e que
ainda continua defensável: o homem está condenado a decidir e valorar. Ele está
admitindo e Weber faz o mesmo a o existência de fundamentos últimos. A
noção de “valores intrínsecosà natureza torna-se frouxa face aos presentes
questionamentos.
De acordo aos quadros 1 e 2, a busca de fundamentos últimos tende a
negar espaços para as racionalidades substantivas, à medida que se trata de uma
posição com pretensões de encerrar drasticamente a continuidade do debate.
139
CAPÍTULO 8
A SOCIOLOGIA E A EXCLUSÃO DA NATUREZA
RESUMO
Em um primeiro momento, o presente capítulo demonstra que a
consolidação da Sociologia como teoria social “autônoma
19
” está associada a uma
instigante disputa entre racionalidades e, como conseqüência, à sistemática
exclusão da Natureza. Em um segundo momento, demonstra que a inclusão da
natureza equivale à abertura a racionalidades distintas das hegemônicas. Para
tanto, apresenta uma “arqueologiagenealógica da Sociologia. No final, faz um
rápido esboço da nova Sociologia, a Sociologia “reencantadaou Ambiental.
8.1 O FRACASSO DO DETERMINISMO GEOGRÁFICO E BIOLÓGICO
Para Montesquieu, Karl Ritter, Henry Thomas Buckle, dentre outros, o
ambiente físico era determinante para as ações humanas. A natureza definia a
sociedade, essa era a tese inquestionável e aceita como verdadeira. Não foi por
acaso que Rousseau (1999), contemporâneo de Montesquieu, tendeu a aceitar que
o homem é sempre resultado das circunstâncias.
Embora Rousseau estivesse fazendo referências à dimensão social, não
deixou de reservar espaço privilegiado para a dimensão biofísica das circunstâncias
como fator definidor da existência do homem. Significa que sua interpretação do ser
humano e da sociedade é derivada de uma determinação fundamentalmente física.
É oportuno recordar as imagens do “bom selvageme do “mau civilizado”,
tentando explicitar a maior proximidade do homem em relação às circunstâncias
naturais tornam-no “bom, tanto funcional quanto moralmente. O processo
civilizatório tende a reduzir essa determinação positiva do sistema natureza sobre o
sistema sociedade, à medida que transforma o homem em sujeito dominador da
natureza. A civilizão tende a eliminar a dependência do homem em relação ao
sistema natureza. Isso explica o pessimismo de Rousseau.
19
A teoria social ficou muito mais próxima de um isolamento do que de um processo de autonomia.
140
No século XIX a teoria geográfica e determinista de Buckle tornou-se
referência obrigatória para explicações do sistema sociedade.
Outro geógrafo determinista do século XIX é Ellsworth Huntington. Para ele,
tanto a ascensão quanto o declínio da Roma antiga teve como causas
determinantes, mudanças climáticas.
Percebe-se que o discurso naturalista aparece como colonizador do domínio
social. Recorre-se à natureza para legitimar temas e conflitos sociais. O filósofo
social inglês, Herbert Spencer, é o principal representante da explicação do social a
partir do natural. Se Darwin põe à prova a hipótese da “seleção natural” no sistema
natureza; Spencer tenta validar a mesma hipótese nos domínios do sistema
sociedade.
No fundo, ambos estão de acordo em um ponto: os mais aptos serão os
sobreviventes tanto no ambiente natural quanto social. O “bom”, em sua acepção
funcional ao sistema no qual está inserido, tanto para Darwin quanto para Spencer é
o que se perpetua como espécie.
Spencer aceita sem restrição o processo de colonização do discurso
naturalista sobre o sistema sociedade, tendendo a reduzir as possibilidades
objetivas de emero de um conhecimento do social a partir de si mesmo.
Em outros termos, Spencer é um obstáculo ao desenvolvimento da
Sociologia como ciência “autônoma”. Sua maior crença era que se a sociedade
fosse “[...] entregue a si própria, o progresso evoluiria de forma gradual
(HANNIGAN, 1995, p.17).
A afirmação revela dois pontos epistemológicos. O primeiro é sua
recorrência à natureza; e o segundo é sua crença na noção do livre mercado, no
laissez-faire,
na “mão invisível”, de Adam Smith. É oportuno destacar que as
posições epistemológicas de Spencer tamm revelam suas posições políticas
balizadas pelo conservadorismo.
Ao acreditar no progresso natural do sistema sociedade, Spencer está
rejeitando qualquer intervenção ou reforma, sejam quais forem seus motivos, porque
enxerga nisso um fator de desintegração. Para ele, o sistema sociedade, tal como o
sistema natureza, tem um curso próprio e intrínseco a seguir em busca do “bem
comum”. Note-se que o “bem comum” precisa ser apreendido na perspectiva
funcional, não ética, do sistema sociedade. Note-se igualmente que essa é a mesma
141
percepção de Darwin ao explicitar o funcionamento e a dinâmica do sistema
natureza.
8.2 A EMERSÃO DA CULTURA
Na virada do século XIX emerge outra variável, a cultura, que passa a ser
fundamental para a explicação do sistema sociedade. Com a chegada da cultura, os
determinismos biológico e geográfico perdem vigor e tal processo indica o início da
exclusão da natureza do âmbito específico das abordagens do sistema sociedade.
Nesse particular, o sistema sociedade deixa de ser colonizado pelo discurso
naturalista e passa a ser colonizado pelo discurso culturalista. É como se a “reserva
de mercado” mudasse de proprietário. No campo das disputas dos sentidos como
diria Bourdieu (1994) possíveis acerca do sistema sociedade, os novos “donos
vêem-se obrigados a desqualificar toda e qualquer associação determinista do
sistema natureza sobre o sistema sociedade.
A partir desse panorama marcado pela disputa das racionalidades, é
possível compreender a obsessão de Durkheim (1988) ao reivindicar um método e
um objeto próprios para a Sociologia e ao caracterizar essa como instrumental único
de análise do sistema sociedade. É sempre interessante lembrar que, na formulação
de Durkheim, embora a sociedade seja extensão da natureza, não pode ser
confundida com ela, desde que se considere sua configuração específica e
autônoma. A sociedade é uma realidade
sui generis
. Ao afirmar isso, Durkheim
exclui o sistema natureza do sistema sociedade, tornando-se um dos principais
responsáveis pela necessária emancipação civilizatória do sistema sociedade face à
dimensão colonizadora do discurso naturalista. Entretanto, ao excluir a natureza,
torna sociologia refém das racionalidades instrumentais, por meio do seu isolamento.
Ele rejeita possibilidades de coexistência entre as racionalidades.
Depois dele vêm outros estudiosos que, amparados na antropologia,
aprofundam análises sociais com ênfase explícita na separão entre cultura e
natureza. Dentre os mais conhecidos, destaca-se Lévi-Strauss (1952).
É deveras conhecida a idéia de Lévi-Strauss asseverando que se o espaço
natural é caracterizado pela ausência da ordem, o espaço da cultura tem como nexo
central o predomínio da regra. Ao qualificar o sistema natureza como espaço da não-
142
ordem, Lévi-Strauss delimita o sistema sociedade como espaço a ser estudado a
partir de categorias da cultura, não da natureza.
Tanto o funcionalismo de Durkheim e Malinowski (1986) quanto o
estruturalismo de Lévi-Strauss são indicações de que a Sociologia e a Antropologia
o conseguiram desvencilhar-se totalmente do discurso, das categorias ou das
metáforas naturalistas. Categorias como “solidariedade mecânicaou “solidariedade
orgânica; “organismo social”, todas herdadas de Durkheim, permaneceram em seus
continuadores ao longo do século XX, revelando a força do naturalismo sobre as
análises socioculturais.
Mas a libertação do sistema sociedade da influência do discurso naturalista
também está associada ao processo de alienação da Sociologia em relação aos
outros sistemas vivos que servem de entorno e garantem a sobrevivência material
do indivíduo humano. Tal postura tende a admitir o crescimento econômico como
movimento ilimitado, a despeito da paralela degradação do ambiente.
Como escreve Hannigan (1995), alguns sociólogos tornam-se “vendedores
ambulantesde progresso e crescimento econômico, sobretudo entre 1950 e 1970, à
medida que aceitam as premissas da teoria social clássica, centradas na idéia de
que a Modernidade emancipou o ser humano de suas dependências face à
natureza. É o período do ápice do
Welfare State
europeu, ao menos na
interpretação de Harvey (1993).
A rigor, o que ocorre com a Sociologia não é um processo de
autonomização, no sentido que Castoriadis (1985) ou Morin (2003) conferem ao
conceito, como possibilidade objetiva de um “sujeito” reelaborar seus interesses a
partir das determinações externas. O que ocorreu foi um isolamento. Se um “sujeito
autônomo, em hipótese alguma, rompe relações com o exterior, o “sujeito” isolado
tende a se orientar sob o princípio do “eu me basto”, do “voltar para si mesmo” como
se fosse um sistema absolutamente refratário e impenetrável aos fatores externos.
Ao optar pelo isolamento, a Sociologia ficou falando para si mesma, dando
margens a elaborações ou sistemas interpretativos das experiências associativas
sem a presença do “sujeito”. Em alguns casos Luhmann e Bertalanffy a
libertação do sistema sociedade face ao naturalismo implicou a eliminação radical do
“sujeito”.
143
O “desencantamentoda Sociologia está diretamente associado ao
“encantamento” da mesma em relação ao “progresso baseado no domínio quase
absoluto da natureza. Note-se que, de colonizadora, a Natureza migra para uma
posição de dominada, de objeto capaz de gerar riqueza e assimilar os rejeitos do
sistema sociedade.
8.3 A CAMINHO DE UMA SOCIOLOGIA AMBIENTAL: DE 1970 A 1995
A partir da década de 1970 há uma reaproximação dos sistemas sociedade
e natureza. Agora, o ser humano perde o
status
de criatura especial, ao mesmo
tempo em que os demais sistemas vivos adquirem o direito “natural” de ser
preservados. Como dizem Morin (1977), Morin e Kern (1995) e Serres (1991),
descontentes com Descartes, não é apenas o indivíduo humano que tem direito à
subjetividade, mas todas as escies.
É manifestando-se de maneira contundente contra Descartes, que a
Sociologia inicia sua caminhada de abertura em direção ao sistema Natureza. Sob
influência dos “verdes”, de novas abordagens “ecocêntricas pondo os seres
humanos como apenas uma dentre as diversas que habitam a Terra e das
transformações ocorridas no mundo, há um enfraquecimento das formulações
centradas exclusivamente no homem as antropocêntricas. Nessa perspectiva, na
teoria social “reencantada” surgem outros nomes importantes para fazer emergir o
que ficou conhecido como “Novo Paradigma Ecológico”.
8.3.1 A Sociologia Ambiental e as Abordagens Teóricas
Para Hannigan, a Sociologia Ambiental ocupou-se de duas áreas de estudo:
diagnóstico das possíveis causas da destruição ambiental e interpretação acerca da
emergência da consciência e dos movimentos ambientais.
No que tange às causas da destruição ambiental, a explicação ecológica
busca apoio na “ecologia humana” da Escola de Chicago, que se expande entre
1920 e 1960. É Park quem fala em “teia da vida” muito antes que Capra. É ele que
ressuscita Darwin, ao afirmar que “[...] no âmbito da teia da vida, o princípio ativo é a
‘luta pela existência’ em que os sobreviventes encontram os seus ‘nichos’ no âmbito
144
físico, e na divisão do trabalho entre as diferentes espécies” (citado por HANNIGAN,
1995, p.26).
Cumpre destacar que, ao confundir ecologia humana com ecologia biológica,
Park negligencia o fato de que a “sociedade humana é [...] organizada,
contrariamente da natureza, em dois níveis: o biótico e o cultural” (HANNIGAN,
1995, p.26).
Catton e Dunlap (citados por HANNIGAN, 1995) distanciam-se das
determinações naturais centrando sua explicação na capacidade inventiva e técnica
do homem. São mais otimistas em relação ao desenvolvimento tecnológico. Sendo
assim, se Park fala em uma ecologia “não” humana, Catton e Dunlap falam em uma
Sociologia “não” ecológica. Mais uma vez, a “ecologia cultural” tende a forçar os
“ecologistas humanos” mais tradicionais a levar em conta as variáveis socioculturais.
Catton e Dunlap tentam explicar a destruição ambiental a partir de três
funções ofertadas pelo ambiente aos homens:
1. Armazém de provisões;
2. Espaço para viver;
3. Depósito de resíduos.
Na vio de Hannigan, Catton e Dunlap não resistem à crítica de Beck, uma
vez que suas explicações ainda insistem na exclusão das pessoas. Para Beck, a
avaliação do risco ambiental “[...] corre o risco de atrofiar uma discussão da natureza
sem pessoas, sem questionar os assuntos de significado cultural e social” (BECK,
1992, p.24 citado por HANNIGAN, 1995, p.30).
8.4 EXPLICAÇÃO DA ECONOMIA POLÍTICA
Em termos de denúncia à dimensão predatória-industrial da civilização
ocidental moderna, a ctica mais contundente emerge da economia política em sua
versão marxista. Na perspectiva marxista Foladori (1999) é um exemplo
emblemático - a relação dos homens com o sistema Natureza é sempre mediada por
relações sociais marcadas pelo interesse de cada grupo.
Subjacente à afirmação de Foladori existe outra mais importante, a de que a
causa maior da degradação do sistema Natureza não pode ser buscada no próprio
145
sistema Natureza, mas no sistema sociedade. A crise ambiental deriva diretamente
das infinitas e inevitáveis contradições intrínsecas e presentes no sistema
sociedade. Não há contemporização na formulão crítica inspirada em Marx. A
responsável direta pela degradação socioambiental contemporânea é a lógica
abusiva e acelerada de apropriação dos recursos renováveis ou não do sistema
capitalista.
A contribuição da economia política marxista para a Sociologia Ambiental
reside no fato daquela não excluir o sistema natureza da análise socioambiental.
8.5 AUMENTO DA CONSCNCIA E DOS MOVIMENTOS AMBIENTAIS
O aumento da consciência ecológica em torno do mundo está associado à
percepção de que a civilização configura-se presentemente como civilizão do risco
na perspectiva de Beck, mas as motivações críticas face à sociedade predatória-
industrial apóiam-se mais nas evidências empíricas dos riscos que nos discursos
abstratos dos “verdes” (VIEIRA, 1998).
A análise de Beck tende a forjar a abertura da Sociologia aos temas
naturais, à medida que trata os riscos como conseqüências de ações originadas no
sistema sociedade que impactam, simultaneamente, no próprio sistema sociedade e
na natureza. Emerge, então, a noção de que o risco antes de ser ambiental é,
fundamentalmente, socioambiental.
8.6 TEORIA SOCIAL, DEGRADAÇÃO DO AMBIENTE E POLÍTICAS DE
AMBIENTE
Tal como Hannigan, Goldblatt considera que os economistas clássicos
privilegiaram a “[...] relação entre o ambiente natural e as perspectivas econômicas
do homem” (GOLDBLATT, 1996, p. 19). O caso de Malthus é emblemático ao
associar dificuldades na produção de alimentos (escassez) à elevação deliberada e
descontrolada da população.
Ricardo e John Stuart Mill, por sua vez, centraram suas análises nos
potenciais limites ao crescimento em economias em franca expansão. A conclusão
146
de ambos, embora por vias epistemológicas diversas, é convergente, à medida que
“[...] o crescimento explosivo do início do século XIX acabaria por atingir os limites
naturais e econômicos do esgotamento dos solos e da queda das taxas de
rendimento
20
” (GOLDBLATT, 1996, p.19).
Mas, no final das contas, a sociologia vai caminhando em direção à
autonomia epistemológica. Os argumentos de Durkheim e Weber repudiam
explicitamente toda e qualquer forma de determinismo natural sobre o sistema
sociedade, embora suas formulações contenham divergências muito bem
percebidas por Godblatt.
Para Goldblatt, “[...] a principal preocupação de Weber consiste em negar a
relevância das explicações psicológicas e fisiológicas no campo da sociologia
(GOLDBLATT, 1996, p.20). E Durkheim, “[...] ao considerar a densidade
populacional e a sua relação com os recursos materiais como a força impulsionadora
que move a estratificação evolutiva das sociedades humanas, transformou o mundo
natural num fator causal decisivo na hisria da humanidade” (GOLDBLATT, 1996,
p.21).
Isso explica porque o sistema natureza é fundamental na formulação de
Durkheim, sem ser determinante.
Para Goldblat, ao fazer referência a Marx, considerou que da mesma forma
que Durkheim, ele “colocou o ponto de contato econômico entre as sociedades
humanas e o mundo natural no centro das transformações históricas” (GOLDBLATT,
1996, p.20).
Quanto a Weber, esse afasta-se dos outros dois ao não conferir “[...] um
papel causal importante na história ao desenvolvimento demográfico, embora a sua
teoria da ação econômica discorde significativamente de Marx” (GOLDBLATT, 1996,
p.21). Para Weber, “a relação entre meios e fins era [...] mais importante do que a
relação ontológica entre sujeito humano e o objeto natural” (GOLDBLATT, 1996,
p.21).
20
Malthus estudo demográfico; Ricardo economia agrária.
147
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O confronto entre os três autores considerados pilares da teoria social
conduz à seguinte indagação: Por que as origens da degradação ambiental o
aparece na teoria social clássica?
Porque a teoria social clássica está preocupada não com a origem da
degradação, mas com a dependência das sociedades pré-modernas em relação ao
sistema natureza. A questão básica era demonstrar e explicar o processo de
emancipão da civilização moderna face às determinações do sistema natureza.
Nesse particular, há uma forte similaridade entre a história da civilização
moderna e a Sociologia. Ambas conquistam “autonomialiberando-se do sistema
natureza. A Sociologia constitui-se como teoria social ao libertar-se das influências
das ciências naturais. O “desencantamento” da modernidade significou a exclusão
ou redução da importância da magia, dos mitos e da tradição em prol do que Weber
chamou de “ação racional com relação a fim”.
Na Sociologia, o “desencantamento” significou basicamente isolamento em
relação às abordagens naturais. Não é por acaso que Durkheim acentua que
qualquer “fato social” só pode ser explicado quando comparado a outro “fato social”.
Em termos epistemológicos, está iniciada a “carta de alforriada Sociologia como
teoria social “autônoma”. Torna-se indefensável qualquer explicação do sistema
sociedade que recorra a categorias externas a ele.
A prova de que a preocupação dos fundadores da Sociologia não era com a
degradação pode ser buscada em Durkheim ao expressar seu otimismo frente à
divisão do trabalho social. Para ele, a desintegração do sistema sociedade estava
associada a defeitos na divisão do trabalho, não aos incalculáveis constrangimentos
e pressões estabelecidos sobre os recursos naturais.
Face a essa explícita justificação da ordem social, eso abonados os
possíveis abusos da sociedade industrial moderna sobre o sistema natureza. Assim
surge a Sociologia, como exemplo de teoria social capaz de legitimar a apropriação
abusiva do sistema natureza por parte do sistema sociedade.
Nas formulações de Marx, a despeito do viés crítico, o é evidente se a
capacidade econômica e destrutiva do capitalismo poderia emergir como agressiva
ao ambiente. Portanto, está ausente tanto no funcionalismo de Durkheim quanto no
148
marxismo qualquer indicação de compromisso com o ambiente. E, na tradição
interpretativa/compreensiva inaugurada por Weber, é um verdadeiro delírio falar em
ambiente físico.
De acordo aos quadros 1 e 2, o capítulo demonstra que a exclusão da
natureza da teoria social clássica equivale ao “desencantamentoda mesma com
predomínio das racionalidades instrumentais. Demonstra igualmente que a inclusão
da natureza em algumas abordagens contemporâneas da teoria social, equivale ao
“reencantamentoda mesma a outras racionalidades distintas das hegemônicas.
149
CAPÍTULO 9
CIÊNCIAS SOCIAIS e DIREITO AMBIENTAL: UM ENCONTRO
SUBSTANTIVO DE SABERES
RESUMO
O presente capítulo, am de explicitar algumas conexões ocultas entre
Ciências Sociais e Direito Ambiental, demonstra ser possível pensar as questões
socioambientais, em termos jurídicos, a partir de uma perspectiva de
complementaridade e não de antagonismo entre natureza e sociedade. Para tanto,
recorre a autores que trabalham a partir de matrizes epistemológicas com propósitos
de superar o dualismo entre natureza e sociedade. Conclui que, um encontro
substantivo de saberes é fundamental para tratar da complexidade dos temas
socioambientais e que no citado encontro emergem as racionalidades substantivas.
INTRODUÇÃO
A metáfora do “desencantamento do mundo”, lançada pelo filósofo alemão
Friedrich Schiller, mas tornada conhecida pelo famoso sociólogo, também alemão,
Max Weber, pode ser interpretada como uma das grandes denúncias contra o
dualismo. No fundo, Weber e todos os críticos da modernidade chamavam a atenção
de todos para o sistemático processo de negação da complexidade da vida por meio
de abordagens que separam natureza de sociedade como se fossem domínios
excludentes.
Felizmente, ainda no início do século XX, as insuficiências de tais
abordagens vão sendo paulatinamente explicitadas e, junto ao processo de
explicitação dos limites das epistemologias dualistas, emergiram os primeiros
convites à incerteza, tais como os questionamentos contidos nos “princípios da
incertezae na “teoria da relatividade”.
Contemporaneamente, face à percepção ctica da questão socioambiental,
o avanço em direção a epistemologias convergentes impõe a necessidade
150
imperativa de se forjar encontros entre saberes historicamente separados ao longo
da modernidade. É o caso das Ciências Sociais e do Direito Ambiental.
O presente capítulo alinha-se à tradição epistemológica que busca pontos de
convergência ou complementaridade entre os dois saberes na perspectiva de
superar o dualismo. Em outros termos, a premissa básica que perpassa o texto é a
noção de que não há separação entre natureza e sociedade, entre biocentrismo e
antropocentrismo.
O texto, em seu desenvolvimento, está estruturado em seis partes, todas
elas explicitando e demonstrando as insuficiências do dualismo e, simultaneamente,
apresentando alternativas para se buscar complementaridades entre Ciências
Sociais e Direito Ambiental.
9.1. O DIREITO E O DUALISMO
A noção de dualismo está associada ao paradigma das ciências modernas
que se constituíram a partir de um intensivo processo de “desencantamento
(WEBER, 1970) ou de isolamento entre os diversos saberes. O “desencantamento
do mundo - a metáfora weberiana usada para explicar o avanço do processo de
racionalização em todos os espaços da vida associativa moderna - pressupõe a
separação entre natureza e sociedade, entre antropocentrismo e biocentrismo.
Nessa perspectiva dualista, as teorias antropocêntricas, que emergem a
partir do Renascimento, reelegem
21
o ser humano como medida de todas as coisas,
separando-o de sua inevitável ligação com a natureza. As ciências sociais, por
exemplo, passam a querer explicar o “fato socialapenas a partir de outro “fato
social”. Para Durkheim (1971; 1977; 1988), herói fundador da Sociologia como
ciência “positiva
22
, a sociedade é uma realidade
sui generis
, logo não pode ser
estudada a partir da Biologia. Tal posicionamento acentua a separação entre
natureza e sociedade e torna vivel que a consolidação da Sociologia como ciência
“positiva” está intimamente relacionada a uma matriz dualista.
21
Reelegem porque ainda na Antigüidade o filósofo p-socrático, Progoras (PRÉ-SOCRÁTICOS,
1999), já insistia na idéia de que o “homem é a medida de todas as coisas”.
22
Todo saber na modernidade para alcançar o
status
de ciência positiva precisa ter seu objeto
especifico e bem delimitado e o método próprio. Durkheim foi o responsável pelas duas conquistas
para a Sociologia.
151
Ao que parece, muitas abordagens do Direito, a despeito de se
apresentarem como alternativas, tendem a repor o dualismo à medida que apenas
deslocam-se do logocentrismo para o biocentrismo sem se darem conta de que a
opção por um deles sem a inclusão do outro tamm não resolve. São abordagens
que permanecem centradas no dualismo, na separação entre natureza e sociedade,
dificultando a combinação de abordagens que levem em conta a complexidade do
ambiente, que remete à incerteza, com a necessidade de positivar costumes em
forma de lei.
9.2. A CIVILIZÃO DUALISTA E A EMERGÊNCIA DE UM DIREITO
SUBSTANTIVO
Apesar de parecer paradoxal, o fato é que a civilização orientada pelo
dualismo possibilita cada vez mais a emergência de outras formas de transformar
costumes em normas positivadas. Isso revela que apesar do dualismo caracterizar-
se historicamente como tentativas de “seqüestro” da “substantividade humana
23
,
felizmente tal projeto nunca se concretiza na íntegra.
Em outros termos, por mais que as organizações “racionalizadas”, como
dizia Weber, da modernidade tendam a negar os espaços para a auto-realização
dos seres humanos, o conseguem fazê-lo integralmente. Não conseguem por uma
razão singela, os seres humanos e demais sistemas vivos não são máquinas
programáveis e controláveis.
No bojo de tal debate, um Direito substantivo não contrapõe natureza e
sociedade como se fossem domínios excludentes. Ao contrário, preocupa-se em
enfrentar o desafio de construir um Direito substantivo com vistas a normatizar ou
positivar uma civilização orientada pelo dualismo.
O maior obstáculo a ser transposto associa-se à dificuldade de se tomar
distância da noção do Direito como expressão dos costumes cristalizados num
23
A discussão em torno da substantividade humana está presente desde Aristóteles (1999), na
Antigüidade grega, até autores modernos, tais como Weber (1970), e contemporâneos como
Guerreiro Ramos (1989), Sen (2001) e Serva (1997). Em todos os autores elencados, a
substantividade humana está associada a valores que transcendem à dimensão calculativa da mente
humana. Na presente tese, substantividade humana está associada a possibilidades originais de
diálogos do corpo com a realidade.
152
sistema sociedade orientado pelo dualismo. Em tais condições de pensamento, um
Direito substantivo aparece como uma ameaça perene à medida que se depara com
interesses cristalizados de grupos que se beneficiam da civilização dualista e
excludente.
Para ficar com um apenas um exemplo, em sua batalha permanente, ao
caracterizar a água como bem escasso não mais abundante o Direito interfere
simultaneamente nos dois sistemas (Natureza/Sociedade). Do ponto de vista prático,
ao impor limites contra o uso abusivo da água, preserva-a enquanto recurso natural.
Do ponto de vista epistemológico, ao assumir a proteção em forma de lei, do
potencial produtivo do ambiente, o Direito tende a superar o dualismo porque
apreende o binômio ser humano/meio ambiente como uma autêntica “unidade
sagrada” (BATESON, 1993 citado por FLORIANI, 2003).
No caso específico da água, ao caracterizá-la como bem escasso, o Direito
substantivo protege seu potencial produtivo porque lhe é conferida uma
subjetividade intnseca e fundamental à preservação o apenas do sistema
natureza, mas sobretudo do sistema sociedade, pois não há separação entre eles.
O reconhecimento da subjetividade intrínseca da água, se não pressupõe,
ao menos sugere uma relação não mais “desencantada
24
, mas “reencantada
25
entre sistema natureza e sistema sociedade, sem que seja necessário definir a
natureza como fundamento último. Por outro lado, tamm não se trata mais de
considerá-la na perspectiva utilitarista, como fonte de lucro e depósito de dejetos.
O reconhecimento da subjetividade da água está orientado por uma
racionalidade produtiva o produtivista que trata a água como um fim em si
mesma, não como meio para garantir interesses privados do sistema sociedade.
Nessa perspectiva, o reconhecimento da subjetividade do outro implica
novas relações de parceria entre corpo e mente, possibilitando a “ecologização” da
mente e do corpo como expressões indissociáveis da existência humana.
Reconhecer a subjetividade do outro implica coexistir junto a ele o
necessariamente de forma “harmônica, mas de maneira compartilhada.
24
Que tende a negar a “complexidade” da vida em termos substantivos.
25
Que pressupõe a abertura para a “complexidadeda vida.
153
Nesse exato sentido, quando Capra (2002) fala em “alfabetização ecológica
ou quando Leff (2001a; 2001b) fala em “racionalidade ambiental”, ao que parece,
ambos estão fazendo referências à necessidade de se reconhecer a subjetividade, a
temporalidade e o ritmo do outro em sua caminhada emancipatória. Reconhecer a
dignidade do outro implica permitir que ele se “auto-realize” (SERVA, 1997), que seja
ele mesmo.
Na nova formalização jurídica a água é considerada um recurso finito,
escasso e de valor econômico. Ela é projetada como central para o desenvolvimento
de uma região, ps ou sociedade. Admitir que a água é um recurso finito e escasso
implica admitir um freio contra os possíveis abusos em relação a ela. Trata-se de um
passo importante em direção à ruptura com o dualismo.
9.3. O DIREITO SUBSTANTIVO E O VALOR ECONÔMICO DA ÁGUA
A próxima dificuldade que se apresenta para o Direito Substantivo é o
embate direto com a expressão máxima da civilização dualista: o “preçopara a
água.
Numa civilização que elegeu o valor monetário como bezerro dourado, é
compreensível a recorrência a tal expediente como estratégia de ampliação dos
espaços para a “auto-realização” da água e demais sistemas vivos. Embora, numa
primeira análise, o estabelecimento de valor econômico para a água possa reduzir
sua complexidade, na seqüência pode caracterizar-se como freio ético contra
possíveis abusos. Mesmo que a civilizão dualista ainda não esteja
“suficientemente” educada para identificar o valor substantivo da água, sente-se
incomodada quando forçada a pagar pelo mau uso ou algum outro tipo de abuso.
9.4. COMPLEMENTARIDADES ENTRE BIOCENTRISMO E
ANTROPOCENTRISMO NO DIREITO
A abordagem de Silva (2002 e 2003) é extremamente útil às expectativas da
presente discussão à medida que, da mesma forma que autores de outras áreas, o
referido autor trabalha com a noção de complementaridade e não de antagonismo
entre antropocentrismo e biocentrismo.
154
Para ele, a Constituição Federal de 1988 incorporou o paradigma biocêntrico
ao conferir direitos às plantas e aos animais. Note-se que na base da abordagem
está a idéia de Serres (1991 e 1999), a de um contrato natural no qual o ser humano
reconcilia-se com a natureza e o Direito projeta-se como principal instrumento
viabilizador dessa reaproximação.
Nessa perspectiva, o Direito tem uma “racionalidade
26
” própria que define
sua autonomia: essa “racionalidade” própria “[...] interfere e altera a composição
daquilo que entra no sistema jurídico” (SILVA, 2002, p.12). A abordagem de Silva
está próxima da de Luhmann à medida que este não hesita em apresentar o Direito
como um sistema fechado exatamente por possuir uma membrana como diria
Capra que não o deixa transformar-se em puro reflexo dos “ruídos externos
(MORIN, s/d). Mas é tamm um sistema aberto porque se alimenta das
interferências externas e até as influencia.
A idéia de norma
27
, na perspectiva não linear de Silva, visa a objetivos
emancipatórios ao cumprir sua função social: não apenas manter a ordem, mas
sobretudo para ampliar espaços propícios à auto-realização humana. Se a
normatização ambiental cumpre tais objetivos, trata-se de um encontro substantivo
entre saberes, o social e o jurídico.
9.5. AS NOÇÕES DE “MÍNIMO PATRIMONIAL” E LIBERDADE SUBSTANTIVA
Trabalhando ou redefinindo o conceito de “mínimo patrimonial”, Silva
assevera que se alguém não o possui, também não se tem terra, não se tem local
para trabalhar, não se tem “liberdade substantiva” para escolher seus espaços para
a auto-realização, lembrando a mesma discussão de Amartya Sen (2001) e
Heller/Fehér (1998).
O outro lado da moeda não é menos perverso: quem tem patrimônio mínimo
o consegue sair de casa, em fuão do medo. Não desfruta dos parques, das
praças nem dos bosques; são tão marginalizados quanto os primeiros porque não
possuem igualmente a liberdade substantiva. O espaço público torna-se inútil.
26
A noção de “racionalidade” própria está muito próxima da defesa que Capra faz tanto da “teia da
vidaquanto das “conexões ocultas”, que, em última análise, está defendo o direito à vida no Planeta.
27
Ao fazer referências às normas, ele cita Giddens (1993) e toda sua análise acerca da
“transformação da intimidade” no cenário globalizado.
155
Em sintonia com a mesma discussão de Bobbio (1987), nos termos de Silva,
nos espaços público e privado “[...] o patrimônio em excesso ou a sua falta, agrega e
desagrega mentes e políticas públicas” (SILVA, 2002, p.29).
9.6. A FECUNDA NOÇÃO DE “SUPERAÇÃO”
Outro conceito fértil usado por Silva é o de “superar”, que não pode ser
entendido na perspectiva da destruição ou da negação, mas na perspectiva da
incorporação do outro em forma de complementaridade. Ao fazer referências à
possibilidade de superação do logocentrismo pelo biocentrismo, Silva está
acentuando a complementaridade entre os dois domínios, o os antagonismos
estéreis. Ao fazer isso, ele está apontado a insuficiência do Direito clássico, que “[...]
o dá conta dos problemas que as questões ambientais apresentam” (SILVA, 2002,
p.34).
Depreende-se que o Direito Ambiental, em bases antropocêntricas, propõe-
se a preservar o ambiente vinculando-se aos interesses e necessidades da pessoa
humana. Am do que, propõe-se a proteger o ambiente, mormente contra os
interesses perversos da espécie humana. A premissa é que o macro-ambiente a
Terra contém o sistema sociedade, o o contrário. Se sem sistema sociedade a
água segue seu destino, o raciocínio inverso não é procedente, uma vez que sem
água, não há como falar em sistema sociedade.
Para explicitar sua posão claramente adversa ao dualismo, Silva define o
sistema jurídico como um subsistema da sociedade que “[...] se insere como uma
criação humana na tarefa da preservação e promoção humana/ambiental. Direitos
o criados, limites são impostos” (SILVA, 2002, p.45).
O autor tem clareza acerca do fato de que a superação do antropocentrismo
pelo biocentrismo está além do Direito. No entanto, cabe ao Direito a prerrogativa de
estabelecer o processo de normatização dos possíveis equilíbrios entre
antropocentrismo e biocentrismo.
Percebe-se que nas entrelinhas da formulação de Silva, está presente a
crítica ao processo de colonização
28
do Direito pela “racionalidade instrumental”.
Nesse processo de colonização, o Direito transformou-se em objeto de “consumo
28
A expressão foi muito utilizada por Habermas (1996) em sua teoria da “ação comunicativa”. Para
ele, a racionalidade instrumental é, por excelência, colonizadora do
Lebenswelt.
156
capaz de legitimar interesses privados em detrimento de interesses socioambientais.
Ocorre, portanto, a banalização do Direito; sua “instrumentalização abusiva” faz com
que perca a capacidade intrínseca de solucionar conflitos para se tornar artifício de
aprofundamento da exclusão social.
A rigor, na abordagem do Direito Ambiental, em bases substantivas, fica
demonstrado que combater a miséria e ampliar espaços para a constituição de um
patrimônio mínimo caracterizam-se como elementos fulcrais da problemática
ambiental. A superação do antropocentrismo pressue o ambiente o
necessariamente como uma totalidade que possui valor intrínseco, valor em si, tal
como o fundamento último da
Deep Ecology
. Mas, ao se admitir que o ambiente é
possuidor de valores intrínsecos, admite-se igualmente o valor intrínseco do ser
humano, visto aqui o mais como “meio”, mas como “fim” em si mesmo.
A superação do antropocentrismo está, portanto, associada à reaproximação
do homem em relação à natureza. A esse movimento de convergência, reforçado
por um Direito biocêntrico, é possível perceber outro movimento, o de
“pertencimento” do ser humano em relão ao universo (CAPRA, 1991).
Na perspectiva antropocêntrica, os bens ambientais são reputados como
res
nullius
(coisas que nunca foram apropriadas ou as externalidades para todo
arcabouço teórico da economia clássica e neo-clássica). É imperativo se chamar a
atenção para o fato da referida apropriação clássica ocorrer mediante ocupação
(quem chega primeiro é proprietário) ou por meio da poluição.
Ambas são predatórias porque afetam a dignidade do ambiente, isto é, da
espécie humana. Em função disso que autores vinculados às formulações
substantivas do direito enxergam com simpatia a patrimonialização da natureza por
parte do Estado. “A patrimonialização pública da natureza ensina Silva pode ter
um sentido preservacionista quando através dela combatem-se a degradação e a
concentração patrimonial” (SILVA, 2002, p.61-2).
Fica evidenciada a rejeição explícita da citada linha de raciocínio a qualquer
dualismo capaz de ressuscitar o
cogito
cartesiano. Ao afastar-se desse reducionismo
dualista, os juristas ambientais alinham-se à tradição de pensamento
contemporânea, fundamental à presente discussão, que o mais enxerga a
superioridade “divina” da espécie humana como fator legitimador da dominação e da
apropriação da natureza.
157
O Direito clássico, orientado por racionalidades dicotômicas, consolida-se
como símbolo da regulação, o da emancipação dos sistemas vivos. Rompendo
com essa tradição dualista, a identificação da complementaridade passa a ser
conduzida por meio do princípio dialógico, que “[...] une dois princípios ou noções
antagônicas que aparentemente deveriam se repelir simultaneamente, mas são
indissociáveis e indispensáveis para a compreensão da realidade” (MORIN e
MOIGNE, 2000).
Significa que pensar os temas socioambientais em termos de
complementaridade implica admitir que “[...] o fenômeno do conhecimento é feito de
uma só peça” (FLORIANI, 2003, P.77), pois, em última análise, não há corpo
separado da mente e do ambiente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo que de forma preliminar, algumas conexões ocultas entre Ciências
Sociais e Direito foram aqui explicitadas, evidenciando-se a necessidade imperativa
de se insistir na busca de complementaridade entre os dois saberes. Ficou
igualmente demonstrado que o dualismo tem se apresentado como elemento
fundante da civilização moderna e que o mesmo é um dos principais responsáveis
pelos mais variados abusos dirigidos ao binômio natureza/sociedade.
Finalmente, para se pensar em superação do dualismo é fundamental mudar
a forma de indagar. Pois, dependendo da maneira que se indaga é absolutamente
possível perceber que um encontro substantivo de saberes é fundamental para tratar
mais adequadamente da complexidade dos temas socioambientais. Além do que, de
acordo aos quadros 1 e 2, fica demonstrado que no centro do citado encontro
substantivo de saberes emergem alguns elementos constitutivos e constituintes das
racionalidades substantivas.
Abordagens orientadas pelo dualismo são insuficientes para tratar dos temas
socioambientais porque tendem a negar a complexidade da vida. Talvez seja
essa a mensagem singela demonstrada a partir do presente capítulo.
158
PARTE III
AS RACIONALIDADES SUBSTANTIVAS NA GESTÃO DAS ÁGUAS
A parte II da tese tornou viveis os níveis diferenciados de coexistência das
racionalidades no debate socioambiental contemporâneo. Demonstrou igualmente
que a presença dos elementos constitutivos e constituintes das racionalidades
substantivas emerge como indicadores de ampliação do debate visando a outros
domínios da complexidade.
O esforço aqui é, a partir dos
quadros 1, 2
e
3
, apresentados na Parte I,
tomar como referências as experiências alemã e francesa de gestão das águas para
identificar possíveis elementos constituintes das racionalidades substantivas.
As duas experiências de gestão são apresentadas de forma privilegiada em
função de ser o velho continente uma das mais significativas referências para
estudos associados às racionalidades. É oportuno lembrar que é das experiências
expansionistas européias, orientadas por racionalidades predominantemente
instrumentais, que autores como Adam Smith, Ricardo, Malthus, Weber e Marx,
constroem seus arcabouços teóricos com pretensões “universalizantes”.
Da Europa emergiu a idéia de uma ordem unidimensional e “válidapara
todos os povos do Planeta. Ela projetou-se historicamente como centro irradiador de
valores para o restante do mundo. Das práticas ousadas dos colonizadores
europeus surgiram as possibilidades concretas para a Antropologia explicitar o fértil
conceito de “etnocentrismo”.
A análise aqui proposta é um esforço de retorno ao “velho” continente com o
fito de verificar os estágios de emergência das racionalidades substantivas nas
experiências de gestão das águas.
159
CAPÍTULO 10
EXPERIÊNCIAS DE GESTÃO DAS ÁGUAS
INTRODUÇÃO
O presente capítulo apresenta as experiências alemã e francesa de gestão
das águas com o objetivo de explicitar as diversas expressões das racionalidades
substantivas. Para tanto, recorre aos
quadros 1, 2
e
3
descritos na Parte I da tese.
As hipóteses testadas são aquelas que estiverem associadas à idéia de que
o “sucesso/fracasso das experiências de gestão está vinculado à predominância
das racionalidades substantivas/instrumentais. Em outras palavras, a questão de
partida é se as racionalidades substantivas emergem como obstáculos ou alavancas
às experiências de gestão das águas?
Para tanto, serão descritas algumas experiências e identificados os
elementos constituintes das racionalidades substantivas.
10.1 ALEMANHA
Em 1949 a Alemanha foi dividida entre República Federal Alemã (RFA) e
República Democrática Alemã (RDA) e unificada em outubro de 1990. É um país
com aproximadamente 84 milhões de habitantes espalhados por 357 mil km² e
considerado pobre em água, de acordo com a disponibilidade média de 2.000
m³/hab/ano.
A Alemanha é um ps com grandes possibilidades de apresentar problemas
graves associados às águas. O primeiro obstáculo é sua posição geográfica no
continente europeu. Por ser central, faz fronteira com outros nove países. Am do
que, as variações entre densidade populacional e industrialização são bastante
acentuadas. Ao mesmo tempo em que a Noroeste há intensas concentrações
humanas associadas ao Vale do Ruhr, um dos setores mais industrializados do
mundo, a Norte e a Sudeste, predominam paisagens rurais, com pequenos e médios
conglomerados populacionais. A referida situação torna-se mais problemática, uma
vez que dela emergem outros problemas que acentuam as principais dificuldades
para a gestão das águas na Alemanha, as disputas internacionais entre as
160
racionalidades envolvidas. A dimensão afirmativa é que as referidas disputas tendem
a pressionar os grupos locais a reforçarem suas seculares tradições de geso
comunitária.
A tradição de gestão comunitária na Alemanha tem uma história de mais de
500 anos, pois foi ainda na Idade Média que foram fundadas as bases da gestão
prevendo a limitação das interveões do Estado governos centrais à protão
dos interesses vitais das comunidades locais. Dali emergiam os alicerces para um
Estado forte centrado no poder das localidades. Nesse triângulo formado por três
atores sociais, Estado, Cidadãos e Municipalidades, essas últimas tinham e têm
como principal função proteger os cidadãos das possíveis arbitrariedades do Estado.
No último quartel do século XIX, contexto em que Bismarck coloca-se à
frente do processo de unificação, manteve ou se viu forçado a manter intactos os
princípios da gestão municipal centrada no
self-governement
.
Em ato connuo, as municipalidades criaram o
Querverbund
, que significa
“ligação transversal”, unificando os serviços de gás e de água. Na alise de
Barraqué, essa integração horizontal
da água e do gás colocou os fundamentos da posterior integração
com os serviços de distribuição da eletricidade e os transportes
públicos no seio de empresas municipais de direito privado, os
Stadtwerke
que, até o momento, são características da gestão das
redes de infra-estrutura nas cidades alemãs (BARRAQUÉ, 1995,
p.29).
O trecho demonstra que os fundamentos da gestão integrada das águas nas
cidades alemãs não surgem por decreto, nem por nenhuma variação de
déspotisme
éclairé
, mas em função de uma longa tradição de práticas participativas com vistas à
salvaguarda dos interesses locais. A transversalidade precisa ser apreendida como
um construto sociopolítico derivado não necessariamente de mentes virtuosas, mas
como uma síntese de racionalidades antagônicas e complementares.
Na comparação com o lado oriental da Alemanha as diferenças são
significativas em termos de gestão. No conjunto, os rios do lado Leste, no contexto
da reunificação, estavam muito poluídos, principalmente em suas seções localizadas
em regiões baixas. Tomem-se como exemplos os casos do
Schwartze Elster
, o
Mulde
, o
Saale
, em particular, que são afluentes do Elba. De 1991 em diante,
indicadores de que a situação dos rios do Leste alemão vem melhorando
161
significativamente em função da ampliação de espaços para a participação dos
grupos locais na gestão, tal como ocorre no lado Oeste.
No lado ocidental, a qualidade das águas de superfície melhorou
significativamente a partir da década de 1970, em função das fortes e contundentes
campanhas conduzidas pelo governo federal, aliadas aos grupos locais.
Note-se que há indícios de que a melhor qualidade das águas do Ocidente
alemão pode estar associada à histórica participação dos grupos locais nos
processos de gestão, à legislação centrada nos temas socioambientais e à
capacidade de autofinanciamento. O regime político do Leste, com seu viés
centralizador, tendeu a negar espaços a essas três variáveis presentes na Alemanha
Ocidental.
10.1.1 Gestão Participativa das Localidades
Na gestão dos serviços de água, a Alemanha apóia-se no federalismo
29
e no
princípio da subsidiariedade
30
, que são duas expressões materializadas na cultura
alemã com toda sua ênfase na descentralização da gestão das águas. O conceito de
subsidiariedade pode ser apreendido como um indicador de outras racionalidades
pressionando as racionalidades instrumentais predominantes no arcabouço jurídico,
uma vez que está associado a movimentos intensos de descentralizão,
desconcentração, franquias, concessões e, finalmente, propostas de “privatização
da gestão por grupos locais, o por empresas externas. Fica evidente que a
subsidiariedade está mais próxima de racionalidades marginalizadas do que das
racionalidades centradas nas lógicas mercantis.
A expressão
Kulturbau
que significa “
cultura habitante”
em geral é
empregada para caracterizar a gestão integrada do solo e da água, além de sua
proteção, do seu desenvolvimento e da sua melhoria de forma partilhada. O termo
Kulturbau evidencia a presença vigorosa da participação social na gestão das
águas. Há uma inegável colaboração entre condições biorregionais e culturais. A
29
Na história alemã, federalismo é sinônimo de autonomia à gestão integrada, mas local.
30
Conceito muito bem explicitado no artigo de Canali (2002) ao fazer uma avaliação de sua influência
no arcaboo jurídico brasileiro após a Lei 9433/97, a Lei das Águas. Em linhas gerais o conceito de
subsidiariedade está associado à idéia de valorização dos poderes locais e, por isso, emerge na
presente tese como elemento constitutivo e constituinte das racionalidades substantivas.
162
coexistência das racionalidades é um fato, mas o predomínio dos interesses dos
grupos locais é inevitável.
Nos casos raros em que o abastecimento é insuficiente, são ativadas as
redes de transferência inter-regionais conduzidas entre as municipalidades ou pelas
associações criadas pelo Estado.
Como a distribuição das águas é desigual, a experiência do Sudeste alemão
merece um comentário. Foram criadas duas organizações de grande escala com
objetivos de transferir água para distâncias mais elevadas. O primeiro é o sindicato
Intermunicipal do lago de Constanza; e o segundo é o Sindicato Intermunicipal do
Land
que se serve do rio Danúbio.
O exemplo citado demonstra que a força do Estado alemão está diretamente
vinculada à participão efetiva dos cidadãos nas questões locais, tradão que
remonta à Idade Média.
As relações sociopolíticas podem ser interpretadas em forma de um
triângulo, cujos vértices são o Estado, os cidadãos e as municipalidades, sendo as
últimas a proteção dos cidadãos contra as possíveis arbitrariedades do Estado.
Uma primeira implicação dessa tradição comunitária emerge na análise das
primeiras redes de distribuição de água potável. Todas foram criadas por capitais
privados estrangeiros, porém rapidamente foram absorvidas pelas empresas
municipais de direito privado, as municipalidades.
A segunda implicação é que o comunitarismo é lucrativo. A integrão
transversal dos serviços públicos, monopolizada pelos municípios, permite
rendimentos energéticos que ultrapassam os 80%. Isso permite que as
municipalidades não sejam reféns da centralização dos processos geradores de
energia. Além do que, há economia de organização (ateliers, viaturas e máquinas
usadas em comum); economia em material e pessoal; vantagens técnicas, à medida
que há exploração comum das redes de tubos, reparação, intervenção rápida;
vantagens de gestão, tais como compras e armazenamento comuns, envio de
faturas únicas para vários serviços; vantagens financeiras, tais como concentração
da capacidade financeira, investimentos repartidos conforme as necessidades dos
setores; vantagens tarifárias, tais como oferta de eletricidade, s e água como
serviços complementares e não concorrentes.
163
A terceira implicação é que, por serem empresas de direito privado, têm
acesso livre aos mercados financeiros para captar recursos para futuros
investimentos.
A quarta implicação é que as empresas municipais os
Stadtwerke
conseguem atrair e conservar gestores qualificados em termos de gestão técnica,
financeira e jurídica, para gerenciar com competência profissional e espírito público.
Como os lucros são destinados às coletividades locais, os espaços para exploração
com objetivos exclusivamente financeiros tendem a ser reduzidos.
10.1.1.1 Os agentes públicos v
ersus
privados
Na tradição alemã, a distinção entre as políticas nacional e local
31
-
percebida por Weber - é emblemática. A política local é deixada aos cidadãos e aos
municípios. Daí surgiram as
Wasserverbände
, associações de gestão privadas,
formadas por proprietários territoriais, empresas ou estabelecimentos públicos, que
se responsabilizam por todos os temas e problemas direta e indiretamente
associados à gestão das águas. Eles se obrigam a construir consensos a partir da
percepção de seus distintos interesses.
As
Wasserverbände
tomam como base o princípio da participação efetiva
dos usuários e da autonomia local, uma vez que os principais serviços de água
o da responsabilidade dos municípios ou dos sindicatos intermunicipais que
eles podem formar.
Contrariamente ao que ocorre na França, cumpre ressaltar que por meio do
princípio da subsidiariedade, as populações locais alemãs têm poderes suficientes
para materializarem o policiamento do ambiente no seu território. As cidades alemãs
controlam
32
todas as atividades industriais em seus domínios territoriais, sobretudo
no que se refere a descargas de efluentes nos cursos de águas. Face a essa
inegável autonomia local, a “privatização” por grupos externos tem muita dificuldade
de se materializar. O controle sociopolítico das cidades impõe freios aos impulsos
31
O texto clássico de Max Weber (1970) sobre os
Junkers
é esclarecedor dessa forte característica
da tradição alemã.
32
Aqui é oportuna a lembrança do caso da desativação de uma plataforma petrolífera da Shell,
ocorrido na década de 1990 na Alemanha e descrito por Giddens (1999) em A Terceira Via”.
164
das indústrias e, nas fronteiras dos citados freios emergem outras racionalidades
reputadas menos abusivas em termos socioambientais.
Outro indicador da autonomia municipal é que as cidades obrigam suas
empresas municipais a pagarem uma renda próxima de 10% de todo volume de
negócios, com vistas a sustentar o orçamento geral, pilar da sustentabilidade
econômica local ou, em outros termos, do autofinanciamento da gestão.
o há indicadores de que essas intensas experiências de cooperação
estejam associadas a lapsos de generosidade espontânea dos indivíduos alemães,
mas o fato é que a cooperação, mesmo que forjada por circunstâncias que
transcendem os cálculos individualistas, emerge como fator fundamental de
emancipão dos referidos indivíduos.
10.1.1.2 Publicização
versus
privatização
Na década de 1990, a “privatizaçãoda gestão das águas na Alemanha por
grupos externos foi amplamente discutida e o que ficou evidenciado é que essa
modalidade de “privatização” não corresponde, isto é, tem dificuldade de ser
assimilada pela arraigada tradição de autonomia municipal. Tal fato revela tamm
que as municipalidades libertaram-se dos serviços públicos, mas igualmente dos
grupos privados externos às comunidades. Caracterizando-se, assim, como
experiências de autogestão que se recusam a se sujeitar a déspotas públicos ou
privados.
Note-se que a recusa precisa ser entendida como uma estratégia de
dessujeão, como diriam Leff e seus companheiros Argueta e Porto Gonçalves
(2002), ao explicitarem algumas experiências de gestão no Sul do México e na
América Central. A rigor, as populações locais alemãs têm dificuldades de aceitar
versões supostamente atualizadas de
déspotisme éclairé.
No que se refere à água
potável, trata-se de uma gestão regionalizada e, de fato, exclusiva das coletividades
locais.
É variável o consumo por pessoa, mas houve uma estabilização nacada
de 1980 no lado ocidental: em torno de 143 litros/dia em 1990 e em 1992 chegou a
seu limite mínimo, 105 litros/dia. Na gestão da água potável, a despeito dos
municípios orientarem-se por estatutos privados, os capitais são municipais e
165
geridos, em parceria com os sindicatos municipais vocacionados para serviços
públicos, de forma autônoma.
10.1.1.3 Gestão das águas na República Democrática Alemã
Após a separão em 1949 prevaleceu a centralização da gestão com
exclusão das coletividades locais, que foram sendo desapossadas do processo de
gestão das águas. Com a exclusão da participação local, a situação da geso
agravou-se, em fuão das mudanças de prioridade e descaso com o ambiente.
Após a unificação em 1990 ficou evidenciada a distância entre uma gestão
centralizada da Alemanha do Leste e outra, historicamente orientada pelo
self-
government
.
O que se constata é que, em ambos os lados, prevalecem uma tendência
para a reconcentrão em unidades de gestão maiores, sem comprometimento ou
prejuízo do respeito aos controles municipais.
O tradicional federalismo alemão pressupõe um Estado forte apoiado na
participação social dos cidadãos nas questões locais. A força e a presença da
participação social tornou-se visível no debate em torno das tentativas de
privatização da gestão das águas por grupos externos. A despeito das primeiras
redes de água potável terem sido criadas por capitais privados, isso não foi
suficiente para impedir que os mesmos capitais fossem para as mãos dos
municípios, tal como ocorreu em outros países europeus. O resultado dessa disputa
de racionalidades é que tanto a produção quanto o abastecimento por grupos
privados externos jamais tiveram forças para se constituírem como regra geral e
predominante na gestão das águas alemãs. Sempre foram exceções.
10.1.1.4 Vantagens de uma gestão integrada
Seguindo a tradição da gestão integrada, tal como na Itália, a gestão das
águas na Alemanha é feita junto à gestão do gás. Ao ficar claramente definido que
dividendos e lucros distribuídos serão destinados a coletividades locais, neutraliza-
se a tentação calculativa e típica das racionalidades instrumentais de explorar
serviços com fins puramente financeiros. No interior das empresas municipais reina
166
uma cultura que consegue combinar competência profissional e serviço com elevado
espírito público.
Note-se que o ambiente cultural tende a projetar-se como obstáculo ao
predomínio das racionalidades instrumentais, pois o sucesso das empresas
municipais está associado diretamente a racionalidades que transcendem ao
cálculo, predominante nas racionalidades instrumentais. O cálculo emerge como
meio e não como fim último da atividade de gestão das águas.
Quando a gestão materializa-se sob lógicas substantivas as
vantagens materiais tendem a se multiplicar. As experiências alemãs
tendem a demonstrar que “a integração horizontal acarreta [...]
economias de organização (atelier, viaturas e máquinas utilizados em
comum, economias em material e em pessoal), vantagens técnicas
(exploração comum das redes de tubos, reparação, intervenção
rápida), vantagens de gestão (compras e armazenagens comuns,
envio de faturas únicas para vários serviços), vantagens financeiras
(concentração da capacidade financeira, investimentos repartidos
consoante as necessidades dos setores) e vantagens tarifárias
(oferta de eletricidade e do gás numa perspectiva de serviços
complementares, mais do que concorrentes, informação do público).
Com o crescimento das empresas que resulta da integração
horizontal, podem-se realizar igualmente economias de escala
(BARRAQUÉ, 1995, p.27).
As racionalidades substantivas, ao servirem de bases para o processo de
gestão, revelam sua fecundidade em termos de ganhos materiais para toda
coletividade. Nesse sentido, a noção de racionalidade aberta, advogada por Morin
(2003), emerge como categoria fundamental para explicar o referido êxito da gestão
horizontal das águas na Alemanha.
10.1.2 O Autofinanciamento
Quem define preços para as águas na Alemanha não é o Estado, mas, em
um primeiro estágio de negociação, são os distribuidores e os detentores do capital
investido. No estágio decisivo, os conselhos municipais, representantes diretos das
populações locais servidas, batem o martelo e impõem os termos de compromisso a
serem obedecidos por fornecedores e usuários.
O preço orienta-se a partir de cinco princípios:
Deve cobrir a totalidade dos custos de abastecimento;
167
Deve refletir os custos específicos relativos às diferentes classes de usuários
de água;
Deve traduzir a estrutura dos custos por tarifas binômicas;
Deve oferecer um retorno correto do capital investido;
Deve permitir manter o capital técnico em condições;
No que se refere aos dois últimos princípios, ambos são centrais para se
pensar a estabilidade de todas as empresas municipais alemãs. As leis municipais
requerem retornos dos investimentos, mas não permitem que isso comprometa sua
função imperativa e substantiva de serviço público. São elas que evitarão qualquer
dependência das subvenções e subsídios do Estado e de outras instituições
privadas. Note-se que não há predomínio de racionalidades colonizadoras de
mercado, pois no centro está a função pública da gestão.
Muitas cidades aglutinaram a distribuição de água, gás e eletricidade, bem
como dos transportes urbanos, em uma única empresa municipal. Essa
concentração na gestão dos serviços facilita o autofinanciamento, à medida que
prejuízos de determinado setor são compensados por vantagens de outros e vice-
versa. Am disso, permite a diluição dos investimentos pesados e necessários à
sofisticação das redes e reduz o pagamento de impostos. Com tais estratégias, os
gestores têm acesso ao mercado financeiro para, quando necessário, contrair
empréstimos com riscos reduzidos.
Fica explicitado o principal indicador da autonomia dos municípios alemães.
As cidades recebem da empresa municipal 10% do volume dos negócios, garantindo
os pilares do autofinanciamento local da gestão. Note-se que há pouco espaço para
o clássico dualismo “público/privado” na experiência de gestão alemã.
Além disso, todos os recursos originários do princípio do usuário-poluidor-
pagador são orientados para a melhoria da qualidade das águas, caracterizando os
referidos instrumentos muito mais como estratégias socioeconômicas capazes de
garantir o autofinanciamento da gestão.
10.1.3 Legislação Socioambiental
Por razões históricas, o arcabouço jurídico alemão sobre águas foi
fortemente influenciado pelo Código Civil do período de Napoleão Bonaparte, com
168
ênfase na distinção entre público e privado. A despeito da referida influência, que
acentua a dicotomia público/privado, não há espaço para apropriações da água,
prevalecendo o direito ao uso, desde que o haja abuso para os vizinhos. Uma das
explicações é que a legislação socioambiental alemã está centrada nos princípios do
“federalismoe da “subsidiariedade” que, juntos, garantem que as cidades exerçam
o poder de polícia sobre o ambiente em seus territórios.
Historicamente, a partir do século XIX, as águas, incluindo águas
subterrâneas, passaram a somente ser apropriáveis no limite de uso que não
expusesse os vizinhos ou os outros habitantes ribeirinhos a qualquer tipo de risco.
Na disputa entre práticas comunitárias e individualistas, a despeito das últimas o
serem desconsideradas, as primeiras tendem a prevalecer.
Em última análise, a lei tende a beneficiar os usuários que respeitam os
limites da licença de uso recebida, o que contribui para o processo de
autofinanciamento.
10.1.3.1 Associações de gestores e peritos
A lei incentiva o predomínio do “estado de espírito comunitário” sem
distinção entre operadores e reguladores.
Como eles estão divididos?
Grupo da gestão quantitativa em meio rural: é o grupo mais antigo. Associa-
se à infra-estrutura técnica; regulação dos fluxos do rio, defesa contra inundações,
saneamento, irrigação e navegação.
Grupo da gestão do abastecimento em água potável, em comum com o do
s (mais tarde a eletricidade, as redes de calor e de transportes públicos de tração
elétrica).
Grupo da gestão para o saneamento e a luta contra a poluição. Grupo
separado dos outros dois. Interessante notar que seus membros cultivam o respeito
dos métodos e das técnicas nas suas diferentes regionais, o que lhes permite
manter a coerência sem tentar impor padrões nacionais.
Prevalece o princípio de que todos os usos das águas necessitam de
licença (
Erlaubnis
) ou de aquisição de direitos permanentes (
Bewilligung
), que se
tornaram instrumentos mais importantes para a gestão das águas. A qualidade das
169
águas, por exemplo, é projetada como objetivo substantivo para garantir a satisfação
e a felicidade das comunidades. Tal fato, por si mesmo, pode ser apresentado como
justificativa para se recusar algum pedido de licea de direito de uso das águas,
evidenciando-se o predomínio das racionalidades substantivas. Em termos jurídicos,
o principal exemplo é o do artigo 6 da Lei de 1957. Nele fica indicado que a
autorização deve ser recusada se se previr que a utilização
pretendida possa levar a um ataque ao bem da coletividade, em
particular a um risco para o abastecimento de água que não poderia
ser evitado nem compensado por limitações impostas ao utilizador ou
por medidas tomadas pela administração ou pelos sindicatos das
águas (BARRAQUÉ, 1995, p.43).
10.1.3.2 A planificação
A planificação visa, de forma mais acentuada, à protão da qualidade das
águas do que à gestão quantitativa. Note-se que o julgamento ético de meios e fins
está presente na referida experiência associativa à medida que quantidade e
qualidade das águas emergem como faces de um mesmo projeto: garantir a
felicidade das comunidades.
10.1.3.3 Instrumentos econômicos
O princípio do usuário-poluidor-pagador foi positivado na Lei federal de
1976. O dispositivo criou uma taxa para descargas de poluentes nas águas. De
acordo a pesquisa de Cavini (2002), tal como ocorre na França, a referida taxa
emerge como estímulo a ações visando novos investimentos e controle das
poluições, principalmente as difusas originárias da agricultura. Na perspectiva das
racionalidades, as taxas se propõem a educar as vontades dos usuários no sentido
da redução da poluição, deixando em planos secundários a arrecadação pela
arrecadação. A prova cabal disso é que os recursos originários da cobrança não são
significativos.
Trata-se de uma lei que se propõe a complementar o sistema de
licenciamento e ajuda a financiar o processo de gestão. Além do que, intensificou a
interação da administrão com usuários, incentivando percepções comuns acerca
das fragilidades das águas.
170
Finalmente, conseguiu pôr em relevo o debate sobre a necessidade de
águas preservadas com vistas à redução da poluição no centro das políticas
públicas e, em especial, das políticas econômicas. Para muitos alemães, o sucesso
dessas políticas públicas e econômicas está associado ao planejamento prévio e
sempre monitorado pela efetiva participação social.
10.1.4 Síntese analítica da experiência alemã
QUADRO 7 - INDICADORES DAS RACIONALIDADES SUBSTANTIVAS NA GESTÃO DAS
ÁGUAS NA ALEMANHA
Comunitarismo;
Melhora da qualidade das águas desde 1970;
Elevação da participação social na gestão;
Subsidiariedade (descentralização);
Privatização da gestão por grupos locais, não grupos externos;
Autonomia;
Gestão integrada;
Cooperação;
Poder de polícia das comunidades locais como freios éticos contra abusos;
Negação de espaços para modalidades de despotismo esclarecido;
Self-Government
como complemento a um Estado forte;
Julgamento ético dos meios e fins para conter a tentação calculativa das racionalidades
instrumentais;
Auto-financiamento a cobrança via sistema usuário-poluidor-pagador como um meio para atingir fins
socioambientais;
Espírito público;
Uso comum dos recursos materiais das empresas envolvidas na gestão;
Auto-realização;
Na legislão não há propriedade privada das águas, e sim direito de uso;
Valores preservacionistas complementando-se aos estratégicos;
Exemplo de êxito na gestão graças à presença forte das racionalidades substantivas.
Alguns desafios para a gestão alemã estão diretamente associados à
presença também forte das racionalidades instrumentais. Dentre elas, destacam-se:
Crescimento da poluição das águas por origens difusas ainda é sinal de
fraqueza dos sistemas de decio pública; é uma fraqueza porque ainda não
conseguiu integrar setores das políticas públicas, tais como os da agricultura; os
setores de saneamento continuam ameadores à potabilidade das águas porque,
além de não integrados, orientam-se por racionalidades instrumentais; a política
industrial tamm ainda é uma ameaça por estar desintegrada dos serviços urbanos
e de obras públicas.
171
Sem subestimar os desafios elencados acima, a principal consideração a ser
feita é que o
Quadro 7
permite demonstrar que na base da tendência ao êxito da
experiência de gestão alemã, estão presentes as racionalidades substantivas.
Os dados apresentados permitem concluir que a experiência de gestão
alemã tende ao êxito à medida que contempla objetivos socioambientais,
socioeconômicos e jurídicos. Os socioambientais são todos associados à gestão
participativa; os socioeconômicos são os que garantem o autofinanciamento da
gestão; e, finalmente, os jurídicos, todos aqueles vinculados ao respeito às
singularidades locais de cada municipalidade.
É possível destacar que tanto a eficácia quanto a estabilidade da
descentralização dos processos decisórios, estão diretamente vinculados à tradição
do
self-government
e da capacidade de auto-financiamento.
Essa conjunção de fatores explica a excelente qualidade das águas, tanto no
estado natural como nas torneiras alemãs.
Emerge como maior desafio a luta contra a poluição difusa oriunda da
agricultura. Apesar disso, uma crise geral da gestão das águas na Alemanha é
pouco provável porque as fraquezas são regionais, o globais.
10.2 FRANÇA
A população francesa ultrapassa os 57 milhões de habitantes sobre um
território de 550 mil km². Trata-se de um país bem servido de águas e independente
no essencial dos seus recursos. Seu variado patrimônio natural poderia ter sido
comprometido após o intenso e rápido desenvolvimento industrial e agrícola, do pós-
guerra em diante. Entretanto, para superar ou enfrentar as citadas dificuldades
emergiram as agências das águas como limitadores das poluições e facilitadores
das captações. Para tanto, as novas instituições recorreram a políticas de gestão
centradas fundamentalmente na incitação econômica: o princípio do “usuário-
poluidor-pagador”.
A disponibilidade de 3.600 m³/hab/ano faz da França um ps razoavelmente
rico em águas, mas não isento de conflitos envolvendo racionalidades
internacionais. Um desses conflitos envolve, além da França, Alemanha, Suíça e
Holanda, todos usuários e beneficiários das águas do rio Reno. Os principais
172
poluidores do rio Reno são Alemanha e Suíça, entretanto, as minas de potássio da
Alsácia (França) acentuam incômodos históricos para a Holanda, que se debate com
águas salobras e poluídas pelos usos dos demais países.
Nos domínios internos, a região central de Paris tem necessidades
crescentes e, além disso, é responsável por descargas que superam as capacidades
de assimilação natural do pequeno e frágil rio Sena. Para enfrentar de forma efetiva
o problema, as políticas públicas francesas, com sua ênfase no local, construíram
barragens-reservatórios e buscaram águas em regiões abaixo de Paris e acima do
rio Eure. As iniciativas foram orientadas por racionalidades substantivas em primeira
instância, sem perda de vista dos horizontes econômicos.
Nas experiências francesas de gestão não apenas das águas, mas tamm
dos conflitos internos e externos, são notáveis as relações de complementaridade
entre interesses socioambientais e econômicos.
10.2.1 Gestão Participativa das Localidades
No tocante às águas de superfície houve melhoras significativas nas duas
últimas décadas do século XX, com uma inequívoca redução de manchas escuras
derivadas de descargas pontuais de poluentes.
Tal como ocorre em outros países europeus, a grande poluidora ainda é a
agricultura com suas substâncias tóxicas e nutrientes (fosfatos e nitratos),
responsável pela conhecida poluição difusa. As águas subterrâneas, por exemplo,
m se submetido a níveis crescentes de contaminação oriundos dos nitratos desde
a década de 1980.
Nas regiões de Bretanha, os teores são moderados, em função do uso de
fertilizantes ter sido tardio. Aqui fica demonstrado que em locais onde prevalecem
ações orientadas por racionalidades substantivas, a contaminação é menor, mais
moderada ou mais sujeita a controle.
Na França, destacam-se poderosos grupos privados que respondem pela
gestão das águas por delegação das autoridades. De maneira similar às
experiências de gestão comunitária da Alemanha e da Europa do Norte, na França,
os responsáveis pela gestão das águas os citados grupos privados o as
coletividades locais. O que distancia a França da Alemanha e dos países da Europa
173
do Norte é o fato das coletividades locais impedirem os cidadãos de se auto-
organizarem para resolver seus problemas de abastecimento.
A presença das coletividades locais nas experiências de gestão tende a
inibir outras iniciativas que o queiram se submeter às exigências consideradas
legais pelas autoridades socioambientais. Isso revela que a descentralizão
francesa, a despeito de sua eficiência, é limitada, uma vez que confere reservas de
“mercadopara algumas coletividades locais.
A configuração geográfica da França, com seus 36.400 municípios, favorece
estratégias de gestão baseadas na descentralização positivada nas leis de 1982.
Embora a descentralização tenha estimulado as capacidades de gestão, ocorre que
muitos municípios são limitados em termos econômicos para caminharem sozinhos.
Diferentemente das comunidades autônomas de países vizinhos como Alemanha,
Holanda e Suíça, muitos municípios franceses precisam do braço forte do governo
central para iniciarem suas experiências de gestão descentralizada.
Nesse particular, a privatização não pode ser entendida como predomínio
das racionalidades instrumentais sobre as racionalidades substantivas. Numa
classificação complexa dos serviços públicos é possível, em determinados casos,
sistematizar e organizar transferências de níveis de delegação dos mesmos a atores
sociais privados ou quase públicos, com a inegociável condição de que o controle
seja fundamentalmente público.
Cumpre ressaltar que não se trata mais de “demonizar” as racionalidades
instrumentais que orientam a maioria das ações centradas no mercado, mas de
perceber que elas também podem ser controladas por racionalidades que vão além
do mercado. A prova disso foi a expansão dos sindicatos intermunicipais visando
assegurar a gestão eficaz das redes de distribuição centradas na potabilidade das
águas para todos.
Na base da fundação dos sindicatos intermunicipais está a cooperação,
elemento constituinte e constitutivo das racionalidades substantivas. Os diversos
agrupamentos privados formaram parcerias capazes de conquistar apoio financeiro
e político das autoridades organizadoras de estações depuradoras e de redes de
saneamento.
No final das experiências de “descentralizão/centralização” sobraram
apenas quatro distribuidores com destaque para a
Générale
des Eaux
, que
174
monopoliza mais da metade do setor privado ou mais de 40% da totalidade dos
assinantes. O sucesso da
Générale des Eaux
é tamanho que seu volume de
negócios ultrapassa os 165 bilhões de francos e é o primeiro grupo do tipo no
mundo.
A
Lyonnaise
des Eaux
é o segundo grupo francês, com 25% do mercado
interno. Em 1994, o volume de negócios era de 98 bilhões de francos e está mais
presente no exterior que a
Générale
, em especial na água: na Espanha, Estados
Unidos, Inglaterra, Alemanha e Itália.
A SAUR é o terceiro grupo distribuidor, que se destaca nos domínios rurais
da França.
O quarto grupo é a CISE filial do grupo
Saint-Gobain-Pont-à-Mousson
.
O fato é que, para conter possíveis abusos dessas racionalidades
instrumentais, o Estado e os setores da sociedade civil, o contaminados,
aparecem como atores indispensáveis.
As agências das águas propõem-se a levar o essencial da ajuda financeira
às coletividades e aos outros usuários desejosos de melhorar as suas redes e as
suas fábricas, quer para uma melhor qualidade de serviço aos usuários quer para
um melhor ambiente.
Cerca de 99% dos franceses estão ligados aos 15.500 serviços de
distribuição de água existentes. Tais serviços são em escala municipal e superam os
de Itália e Alemanha. Apesar do elevado número de serviços disponíveis, pouco
mais de 13.500 municípios continuam isolados, incentivando a fundação de mais de
2.000 sindicatos intermunicipais para enfrentar o problema de distribuição.
Nesses locais isolados a qualidade da água distribuída é, no conjunto,
classificada como muito boa no plano sanitário, mesmo que por vezes o seja menos
do ponto de vista orgânico.
A fragmentação dos serviços de águas é um indicador da regressão da
gestão pública na França, mas a contrapartida é que não há registros de que haja
perda da qualidade dos serviços. Se no início da década de 1980 a responsabilidade
pública respondia diretamente por 49% da gestão, na década de 1990 regrediu para
43%. A gestão pública só responde diretamente por pequenas redes ou as grandes
que, por serem bem geridas, não necessitam dos préstimos privados.
Nesse particular, é possível falar em privatização? Por que?
175
Evidente que sim. Entretanto, é fundamental perceber que a privatização da
gestão das águas na França não está se materializando por força de uma ideologia
liberal. O principal fator motivador tem sido a necessidade de investimentos. Essa
necessidade explica o fato da cidade de Paris ter delegado responsabilidades de
gestão das redes de distribuição à
Générale des Eaux
margem direita do rio Sena
e à
Lyonnaise des Eaux
a margem esquerda.
Há de se notar que a experiência francesa é diferente da inglesa. O
diferencial é o controle dos preços dos serviços pela coletividade. Se o risco é por
conta do investidor privado que queira aventurar-se, os preços são controlados pela
coletividade.
A experiência francesa demonstra que na disputa entre as racionalidades
privatistas e públicas o controle social exercido pela coletividade é fundamental para
fazer valer o predomínio, mesmo que instável - das racionalidades substantivas
sobre as racionalidades instrumentais. Trata-se de um predomínio que, por qualquer
descuido, pode degradar-se.
10.2.2 Autofinanciamento
No debate em torno do financiamento das políticas de águas, o pressuposto
é o de que os usuários se responsabilizem pelo financiamento. Trata-se de um
princípio da auto-sustentabilidade.
Embora o preço médio das águas na França seja inferior ao da Alemanha,
um de seus problemas é que no sistema baseado na “verdade dos preços”, não há
explicitação de qualquer mecanismo ou recurso financeiro capaz de neutralizar tanto
as poluições difusas quanto as descargas urbanas derivadas das chuvas.
Se na Alemanha as cidades têm autonomia para criar impostos locais para
financiar a questão específica das chuvas, na França a não existência dessa
possibilidade emerge como um obstáculo para a gestão.
Até 1975, o Estado subvencionou 50% da gestão. Após a data citada, tudo
ficou sob responsabilidade dos usuários. Cabe às agências das águas reverter às
coletividades e usuários os benefícios derivados das coletas financeiras. Tal como
caixas de poupança, as agências garantem o autofinanciamento da gestão e as
coletividades controlam os preços das águas. Nesse contexto, o princípio do
176
usuário-poluidor-pagador tem sido fundamental ao autofinanciamento como
estratégia de internalização das externalidades.
Sobre o princípio do usuário-poluidor-pagador
33
, as políticas de gestão das
águas francesas estão centradas na incitação econômica, materializada na forma do
usuário-poluidor-pagador. A idéia é elevar as taxas de cobraa para forçar o
agressor em potencial a reduzir ou parar sua poluão.
Nas agências francesas e européias, o poluidor pára de pagar no momento
em que o dinheiro arrecadado é o bastante para garantir níveis adequados de
qualidade das águas para os usos múltiplos. Note-se que não se reduz a uma fonte
inesgotável de captação de recursos, mas trata-se de uma estratégia orientada por
valores que transcendem à racionalidade unidimensional do mercado.
As agências das águas francesas emergem em 1964 como agências
financeiras de bacia, são classificadas como o “executivodos comitês de bacia e, a
despeito de seu funcionamento estar centrado em impostos, orientam-se pela
incitação, o pela coerção econômica. O pessoal das agências (mais de 800
pessoas para toda a França) organiza-se em forma de grelha (geográfica/funcional)
que se aproxima de uma gestão integrada, conforme o esquema a seguir.
Esquema envolvendo usuários, agências e financiadores
As agências ficam entre os usuários e financiadores, tendo a taxa como
núcleo para o seu funcionamento. Elas devem gastar as taxas no domínio em que
foi cobrado.
Da experiência francesa emerge uma mensagem que serve para todas as
experiências de gestão do mundo. Qualquer política que se queira séria de geso
das águas demanda muito investimento, seja na França ou nos demais países. O
33
Na matriz neomarginalista da economia
USUÁRIOS
AGÊNCIAS
FINANCIADORES
177
desafio é como conseguir investimentos sem comprometimento ou perda da
autonomia.
10.2.3 Legislação Socioambiental
A despeito da noção de “propriedade” estar presente no debate em torno da
gestão, a Lei de 1988 classifica as águas como bens “inapropriáveis”, definindo que
o uso pode ser objeto de divisão. Nesse contexto, em se tratando das águas, torna-
se sem sentido a dicotomia “público/privado, tal como ocorreu nos arcabouços
jurídicos dos demais países.
No conflito de racionalidades o que se percebe é que houve uma mudança
de eixo no arcabouço jurídico das águas. A oposição entre apropriação pública e
apropriação privada é substituída pelo princípio do uso e esse, por sua vez, acentua
as tensões entre os interesses das comunidades locais e o Estado, que é o legítimo
guardião das águas. Para tentar solucionar tais tensões, emergem as licenças de
uso, cujas autorizações estão associadas ao poder de pressão do grupo solicitante.
O que importa aqui é destacar que a legislação das águas francesa
caminhou na direção do ecocentrismo à medida que privilegiou a proteção dos
ecossistemas naturais, deixando em planos secundários os interesses econômicos e
até mesmo de um planejamento integrado da gestão do ambiente. Mais uma vez a
crescente participação social foi decisiva para materializar interesses que
transcendem às racionalidades instrumentais.
Os obstáculos à consolidação de experiências de gestão integrada na
França podem estar associados à relativa abundância de águas. Ao contrário do que
ocorre na Inglaterra e na Holanda, países considerados pobres em águas, a
abundância na França tende a tornar pouco necessária a gestão integrada. O
segundo obstáculo pode ser a, ainda, frágil tradição de gestão comunitária na
França, também distante da forte tradição comunitária existente na Alemanha.
178
10.2.4 Síntese analítica da experiência francesa
QUADRO 8 - INDICADORES DAS RACIONALIDADES SUBSTANTIVAS NA GESTÃO DAS
ÁGUAS NA FRANÇA
1. Incitação econômica via princípio do usuário-poluidor-pagador como estratégia de
autofinanciamento da geso;
2. Gestão centrada nos interesses locais e conduzida por grupos privados locais;
3. Equilíbrio entre interesses econômicos e socioambientais;
4. Ótima qualidade das águas, sobretudo a partir da década de 1980;
5. Descentralização acentuada, mas coordenada pela presença forte do Estado;
6. Cooperação entre sindicatos intermunicipais;
7. Freio ético para os maiores grupos privados;
8. Diferente da privatização inglesa, o controle dos preços dos serviços é feito pelas coletividades;
9. Auto-financiamento com apoio do Estado, mas feito pelos usuários;
10. A legislação classifica as águas como bens “inapropriáveis”, desaparecendo o dualismo
“público/privado”;
11. A legislação caminha na direção do ecocentrismo; os interesses econômicos tornaram-se meios
para se alcançar fins socioambientais.
Apesar das contestações do monopólio dos setores e grupos de gestão, as
comunidades locais, no geral, têm dado prefencia mais aos grupos privados do
que aos grupos públicos ligados diretamente à gestão das águas. Um dos fatores
explicativos dessa preferência é a taxa de lucro dos grupos privados, que é menos
elevada que a britânica.
As agências particulares foram necessárias desde que se leve em conta o
fato da regulamentação contra a poluição ser precária e insuficiente. Além do que, a
vocação “desenvolvimentista” do Estado o isentou de preocupações mais rígidas
contra possíveis abusos sobre o ambiente. Nesse contexto de transformação dos
serviços de águas em bens de caráter industrial e comercial, é possível
compreender porque as políticas de gestão das águas na França estão centradas na
incitação econômica. É possível também que isso explique o sucesso da adoção do
princípio do “usuário-poluidor-pagador” nas experiências francesas de gestão das
águas.
Na comparação da experiência francesa com outros três países europeus, a
gestão na Holanda centra-se na planificão, na Alemanha a ênfase é na polícia das
águas e na França o pilar da gestão é a incitação econômica.
Um dos indicadores da força das racionalidades substantivas é que as
agências de bacia, por força de lei, o podem obter lucros, o que ime a
necessidade imperativa de beneficiar os usuários.
179
A participão social emerge nas experiências de gestão francesas como
variável fundamental nos domínios locais. O sucesso francês está diretamente
associado à participação social, pois os grupos locais atuam como freios éticos para
possíveis abusos dos gestores públicos ou privados. Fica evidenciado que uma
gestão exitosa dos serviços passa necessariamente pela intromissão organizada dos
cidadãos.
Significa admitir que dada a importância da gestão das águas, não pode ficar
restrita aos técnicos ou engenheiros, mas a todos os segmentos da sociedade.
De acordo ao
Quadro 8
, trata-se de uma experiência forte nos ts
domínios, no da gestão participativa das localidades, no da legislação
socioambiental e no do autofinanciamento.
10.3 SÍNTESE FINAL
O
Quadro 9
é uma síntese dos
Quadros 1, 2
e
3
, alimentada com
informações dos
Quadros
7
e
8
. Está composto por três indicadores das
racionalidades substantivas:
Legislão Socioambiental;
Gestão Participativa das localidades;
Autofinanciamento.
o indicadores que tendem a se afastar das racionalidades instrumentais à
medida que foram construídos a partir de outras racionalidades.
A legislação orientada de forma predominante por racionalidades
instrumentais está centrada em um antropocentrismo que nega espaços às
diferentes temporalidades dos ecossistemas naturais.
A participação efetiva das populações locais nos processos de gestão tem
sido uma conquista paulatina nas diversas partes do Planeta. Em experiências de
gestão orientadas por racionalidades instrumentais a tendência à centralização ou,
no máximo, a algumas versões de “despotismo esclarecido”, é muito acentuada,
negando-se espaços à inserção de outras racionalidades.
O autofinanciamento talvez seja o aspecto mais visível de uma experiência
de gestão, uma vez que comprova o êxito da mesma em termos de autonomia.
180
Autofinanciamento está associado à autonomia da gestão no mesmo sentido que
Morin (2003) confere ao conceito de autonomia. Uma gestão autofinanciada é,
simultaneamente, uma gestão fechada e aberta. Ela é aberta porque assimila
influências e pressões externas de toda ordem, tais como as oriundas das diretivas
da União Européia. E é fechada quando é capaz de redefinir tais influências
externas a partir dos interesses específicos dos grupos locais.
Note-se que a noção de autofinanciamento transcende à dimensão
estritamente econômica e isso explica o fato do autofinanciamento estar associado à
dependência externa sem subordinação.
A partir do tripé legislação socioambiental, gestão participativa das
localidades e autofinanciamento - que representa as racionalidades substantivas é
possível compreender a negação dos espaços aos grupos privados externos na
maioria das experiências de gestão aqui analisadas.
À medida que as experiências de gestão tendem a superar o dualismo
clássico “público/privado, a legislação tamm se atualiza ao positivar normativas
que vão além do citado dualismo.
QUADRO 9 - SÍNTESE FINAL DOS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS E CONSTITUINTES DAS
RACIONALIDADES SUBSTANTIVAS NAS EXPERIÊNCIAS ALEMÃ E
FRANCESA DE GESTÃO DAS ÁGUAS
Legislação Socioambiental
Gestão Participativa das
localidades
Autofinanciamento ou
autonomia
França
Forte
Forte
Forte
Alemanha
Forte
Forte
Forte
Nas duas experiências descritas, as racionalidades substantivas estão
presentes, coexistindo junto a outras racionalidades.
Os
Quadros
7
e
8
permitem identificar os elementos constitutivos e
constituintes das racionalidades substantivas nas experiências de gestão das águas
na Europa.
O
Quadro 9
permite demonstrar se cada experiência pode ou não ser
classificada como bem sucedida em termos socioambientais e socioeconômicos.
Para os objetivos da presente tese, seo reputadas bem sucedidas as
experiências que já conseguiram consolidar arcabouços jurídicos orientados pelas
racionalidades substantivas que, por sua vez, legitimam práticas de gestão
181
participativa dos grupos locais e, finalmente, estão caminhando na direção do
autofinanciamento.
Nesse particular, as experiências que tiverem os três indicadores
assinalados como “forte” podem ser classificadas como experiências com tendências
ao êxito.
As duas experiências descritas e analisadas podem ser classificadas como
bem sucedidas.
De acordo ao
Quadro 9
, a despeito de alguns núcleos comuns, as
racionalidades substantivas encontram formas diversas de se materializar.
Comprova isso as formas diferentes como os elementos constitutivos e constituintes
das racionalidades substantivas emergem nas duas experiências em questão, na
Alemanha, com sua ênfase no comunitarismo, e na França, com suas modalidades
de
déspotisme éclairé
.
Nesse sentido, centralização e descentralização apresentam-se como faces
de um mesmo projeto bem sucedido de gestão das águas. A força dos governos
centrais alemão e francês, por exemplo, está diretamente vinculada à força das
localidades; e o contrário também é verdadeiro.
O mesmo ocorre com a publicização
versus
privatização da gestão.
Relações de complementaridade entre ambas podem materializar-se muito mais
como alavancas do que obstáculos ao êxito. Os exemplos francês e aleo, mais
uma vez, corroboram tal assertiva. A despeito das diferenças, as “privatizações
alemã e francesa podem ser apreendidas como materializões das racionalidades
substantivas à medida que são complementares aos interesses públicos.
Há uma vigilância ética recíproca entre interesses públicos e privados. Seria
de pouca valia, em termos socioambientais e socioeconômicos, uma gestão
autodenominada pública, mas incapaz de atender às reais necessidades das
pessoas.
O fato é que o principal freio ético a possíveis abusos da gestão, seja pública
ou privada, é a combinação sem hierarquizações entre participação das localidades,
legislão e capacidade de autofinanciamento. Quanto mais fortes essas variáveis,
mais reduzidas as possibilidades de abuso e maiores as chances de êxito da gestão.
Qualquer uma das variáveis citadas, isoladamente, tende a perpetuar desequilíbrios
e obstáculos para a gestão.
182
CAPÍTULO 11
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retornando às pretensões da pesquisa.
No domínio da complexidade e como reflexo dos debates interdisciplinares
realizados no programa de Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento, foram
definidas as racionalidades substantivas e instrumentais com seus respectivos
elementos constitutivos e constituintes.
Ficou demonstrado que a ausência dos elementos constitutivos/constituintes
das racionalidades substantivas produzem impactos que podem emergir como
obstáculos difíceis de serem contornados pelas experiências de gestão.
Ficou igualmente demonstrado que a presença das racionalidades
substantivas, nos casos alemão e francês, emergem como principais alavancas para
o êxito da gestão.
Finalmente, as experiências de geso das águas com tendência ao êxito
contemplam objetivos socioambientais e socioeconômicos, tal como tem ocorrido
nas experiências alemã e francesa.
Contribuições gerais da tese:
Tecer comentários “finais” após uma pesquisa não é tarefa das mais
simples, pois se no início os níveis de incerteza são razoavelmente pequenos, no
final tendem a aumentar de forma significativa. Aqui não foi diferente.
A pergunta de partida - as racionalidades substantivas são obsculos ou
alavancas para o debate socioambiental e para a gestão das águas? no final da
pesquisa metamorfoseou-se em diversas outras perguntas que ficarão abertas a
novas investigações.
O que se pode inferir da presente tese é que as racionalidades substantivas
tendem a forjar processos de “reencantamento” tanto das teorias socioambientais
quanto das estratégias de gestão das águas, à medida que se materializam como
alternativas concretas de intervenção nos sistemas sociedade e natureza.
Nesse particular, a tese pode se caracterizar como um repertório de
indagações epistemológicas à medida que se filia à tradição de pensamento
centrada no princípio da “recursividade” dos conceitos, representada por Heráclito de
183
Éfeso, Bachelard, Morin e Floriani. Nessa tradição, numa paráfrase a Heráclito, é
impossível ler o mesmo livro duas vezes.
Contribuições pontuais da tese:
A primeira é a complementação do conceito de racionalidade substantiva de
Guerreiro Ramos e Serva. Nas formulações dos dois autores, por trabalharem com
as organizações formais, o conceito está restrito aos domínios socioculturais de
análise. A abordagem aqui apresentada propõe a “migração” do conceito de
racionalidades substantivas com o propósito de facilitar o enfrentamento da
complexidade socioambiental. Se os dois autores citados operam o conceito no
domínio apenas do sistema sociedade, a abordagem sugerida, centrada na
“migração, “reencantao conceito para operar nos sistemas sociedade e natureza.
A segunda é que duas experiências consideradas “bem sucedidasde
gestão das águas na Europa, precisam ser apreendidas como singularidades, o
como novos paradigmas “universalizantes” de gestão. Trata-se de uma simplificação
ingênua acreditar que a implementação mecânica de um “modelo” alemão ou
francês de gestão, com todos os seus chavões e chamamentos ideológicos,
resolverá problemas em outros sistemas socioculturais.
A terceira é que os elementos constituintes das racionalidades substantivas
que emergem nas experiências européias tendem a demonstrar que as possíveis
soluções para as recorrentes crises envolvendo as águas não estão nas
racionalidades instrumentais. O caso alemão país pobre em águas é mais
emblemático que o francês. Na disputa entre as racionalidades, em diversos
momentos, ficam evidenciadas as ações orientadas pelas racionalidades
substantivas com propósitos de neutralizar avanços das racionalidades
instrumentais.
A quarta e última contribuição pontual da tese é que não há mocinhos nem
bandidos, mas uma intensa e inevitável coexistência de racionalidades tanto no
debate socioambiental quanto na gestão das águas. Tal consideração aproxima-se
da formulação de Morin de que a complexidade da vida admite a convivência de
racionalidades ora antagônicas, ora complementares. A tentativa de negação disso
aponta para a simplificação ou para um melancólico retorno à “tentação” da certeza.
184
REFERÊNCIAS
ACOT, Pascal.
História da ecologia.
Rio de Janeiro: Campus, 1990.
ARISTÓTELES.
Os pensadores.
o Paulo: Nova Cultural, 1999.
BACHELARD, Gaston.
A Água e os sonhos
: Ensaio sobre a imaginação da
matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BARDIN, Laurence.
Análise de conteúdo
. Lisboa: Edições 70, 1979.
BARRAQUÉ, Bernard.
As políticas da água na Europa.
Lisboa: Instituto Piaget,
1995.
BATESON, Gregory.
Una Unidad Sagrada
: passos ulteriores hacia una ecología de
la mente. Barcelona: Gedisa Editorial, 1993.
BECK, Ulrich. “A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização
reflexiva”. In: BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott (Orgs.).
Modernização
reflexiva
: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora
da Universidade Estadual Paulista, 1997, p. 11-71.
BERMAN, Marshall.
Tudo que é sólido desmancha no ar
. São Paulo: Cia. das
Letras, 1986.
BOBBIO, Norberto.
Estado, Governo, Sociedade
: para uma teoria geral da
política. 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1987. 173p.
BOFF, Leonardo. Ética e formação de valores.
Jornal de Ciência e Fé,
ano 4, n.53,
junho 2003.
BOURDIEU, Pierre.
Grandes Cientistas Sociais
. 2.ed. São Paulo: Editora Ática,
1994.
CANALI, Gilberto Valente. “Descentralização e subsidiariedade na gestão de
recursos hídricos: uma avaliação da sua recente evolução em face da Lei 9433/97”,
in: FREITAS, Vladimir Passos de (Coord.).
Direito Ambiental em Evolução
.
Curitiba: Juruá, 2002.
CAPRA, Fritjof.
A Teia da vida
: uma nova compreensão científica dos sistemas
vivos. São Paulo: Cultrix, 1996.
CAPRA, Fritjof.
As conexões ocultas:
ciências para uma vida sustentável. São
Paulo: Cultrix, 2002.
CAPRA, Fritjof.
O ponto de mutação
: a ciência, a sociedade e a cultura emergente.
o Paulo: Cultrix, 1995.
CAPRA, Fritjof.
Pertencendo ao universo
: exploração nas fronteiras da ciência e da
espiritualidade. São Paulo: Cultrix, 1991.
CARMO, Roberto Luiz do.
A água é o limite?
Redistribuição espacial da população
e recursos hídricos no Estado de São Paulo. Campinas: Núcleo de Estudos de
População/UNICAMP, 2002.
CASTELLS, Manuel.
The information age, III
: End of Millenium. Oxford:
Blackwell,1998.
185
CASTORIADIS, Cornélius.
A experiência do movimento operário
. o Paulo:
Brasiliense, 1985. 258p.
CAVINI, Regina Amélia.
Instrumentos econômicos e gestão de águas
:
estudo
para recuperação do reservatório Billings. Dissertação de mestrado, Campinas,
Faculdade de Engenharia Mecânica UNICAMP, 2002.
CHANG, M. Y. La economía ambiental, FOLADORI, Guillermo. La economía
ecológica, in: PIERRI, Naína e FOLADORI, Guillermo (Editores).
¿Sustentabilidad?
Desacuerdos sobre el desarrollo sustentable. Montevideo: Imprensa y Editorial
Baltgráfica, 2001, p.165-178.
CHAUÍ, Marilena.
Entrevista ao Programa Roda Viva
. TV Cultura, 2001.
DARWIN, Charles.
A Origem das espécies
. Rio de Janeiro: Ediouro, 1987.
De MASI, Domenico.
O ócio criativo.
Rio de Janeiro: Sextante, 2000. 328p.
DEJOURS, C.
A banalização da injustiça social.
3.ed. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 2000.
DELÉAGE, Jean-Paul.
História da ecologia
: uma ciência do homem e da natureza.
Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993.
DESCARTES, Re.
Os pensadores
. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
DESCARTES.
Os Pensadores.
o Paulo: Nova Cultural, 1999.
DOSTOIEVSKI, Fiódor.
Os irmãos Karamazóvi.
São Paulo: Editora Nova Cultural,
1995.
DURKHEIM, Émile. Aula inaugural. Bordeaux
,
in: CASTRO, Anna Maria & DIAS,
Edmundo F.
Introdução ao pensamento sociológico
. 5. ed. Rio de Janeiro:
Eldorado Tijuca, 1977
DURKHEIM, Émile.
As regras do método sociológico
. 6. ed. São Paulo: Cia.
Editora Nacional, 1971. 128p.
DURKHEIM, Émile.
Coleção Grandes Cientistas Sociais
. 4.ed. São Paulo : Ática,
1988.
DURKHEIM, Émile.
Educação e sociologia
. 6. ed. São Paulo: Melhoramentos,
1965.
FELICIDADE, N.; VARGAS, M. C.; MIRANDA, C. O. “O processo de interiorização
do desenvolvimento e suas implicações ao acesso e uso da água pelo cidadão:
desafios econômicos, sociais e político-institucionais do caso paulista”, in:
FELICIDADE, N.; MARTINS, R. C.; LEME, A. A.
Uso e geso dos recursos
hídricos no Brasil.
São Carlos, RiMa, 2001, p.223-236.
FLORIANI, Dimas e KNECHTEL, Maria do Rosário.
Educação ambiental,
epistemologia e Mmtodologias.
Curitiba: Vicentina, 2003.
FLORIANI, Dimas. Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento (MAD/UFPR):
avaliação e expectativas para a interdisciplinaridade. Curitiba: Editora da UFPR.
Cadernos de Desenvolvimento e Meio ambiente
, n.3, 1996, p.9-22.
FLORIANI, Dimas. Interdisciplinariedad: teoria y practica en la investigación y en la
enseñanza. In:
Formación ambiental
, v.10, n.23, jul-dic.1998.
186
FLORIANI, Dimas.
Meio ambiente e desenvolvimento na perspectiva das
ciências sociais:
a interdisciplinaridade ante a reflexividade e as práticas sociais.
Curitiba : Projeto de Pós-Doutorado, 1999.
FLORIANI, Dimas. Conhecimento, meio ambiente e globalização. Curitiba: Jur,
2004.
FOLADORI, Guillermo. La economía ecológica, in: PIERRI, Naína e FOLADORI,
Guillermo (Editores).
¿Sustentabilidad?
Desacuerdos sobre el desarrollo
sustentable. Montevideo : Imprensa y Editorial Baltgráfica, 2001a, p.189-195.
FOLADORI, Guillermo. La economía politica marxista y medio ambiente, in: PIERRI,
Naína e FOLADORI, Guillermo (Editores).
¿Sustentabilidad?
Desacuerdos sobre el
desarrollo sustentable. Montevideo : Imprensa y Editorial Baltgráfica, 2001b, p.197-
230.
FOLADORI, Guillermo.
Limites do desenvolvimento sustentável.
Campinas:
Editora da UNICAMP; São Paulo: Imprensa Oficial, 2001c.
FOLADORI, Guillermo.
Los limites del desarrollo sustentable.
Montevideo:
Ediciones de la Banda Oriental, 1999.
FOSTER, J. B.
The vulnerable planet:
a short economic history of the environment.
Nova York: Monthly Review Press, 1994.
FREUD, Sigmund.
O mal-estar da civilização.
Rio de Janeiro: Imago Ed., 1997.
FROMM, Eric.
Análise do homem
. 13ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
GEORGESCU-ROEGEN, N.
The Entropy Law and the Economic Process.
Cambridge: Harvard University Press, 1971.
GIANNETTI, Eduardo. “Adam Smith e a Felicidade do ser humano”, in:
Folha de
o Paulo
(Mais), 09/10/2000, p.20-1.
GIANNETTI, Eduardo.
Vícios privados, benefícios públicos?
: a ética da riqueza
das Nões. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
GIDDENS, Anthony.
As conseqüências da modernidade
. São Paulo: Editora da
UNESP, 1991.
GIDDENS, Anthony.
A terceira via
: reflexões sobre o impasse político atual e o
futuro da social-democracia. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999b.
GIDDENS, Anthony.
A transformação da intimidade:
sexualidade, amor e erotismo
nas sociedades modernas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista,
1993.
GIDDENS, Anthony.
Entrevista ao Programa Roda Viva.
TV Cultura, 1999a.
GODELIER, Maurice.
Grandes Cientistas Sociais.
o Paulo: Ática, 1981.
GOLDBLATT, David.
Teoria social e ambiente
. Lisboa: Piaget Editora, 1996.
GORZ, André.
Métamorphoses du Travail quête du Sens:
critique de la raison
économique. Galilée, 1988.
GOSWAMI, Amit.
Entrevista
. Programa Roda Viva, TV Cultura, 2002.
187
GUERREIRO RAMOS, Alberto.
A nova ciência das organizações
: uma
reconstrução da riqueza das nações. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1989.
HABERMAS, Jürgen. “Lifeworld and system: a critique of functionalist reason”. In:
HABERMAS, Jürgen.
The theory of communicative action
. Boston: Beacon Press,
1996.
HABERMAS, Jürgen.
Teoría de la acción comunicativa:
complementos y estudios
previos. Madri: Cátedra, 1989.
HANNIGAN, John A.
Sociologia ambiental
: a formação de uma perspectiva social.
Lisboa : Piaget Editora, 1995.
HARVEY, David.
Condição pós-moderna
. São Paulo: Loyola, 1993.
HEEMANN, Ademar.
Ética e natureza.
Curitiba. Curso de Doutorado em Meio
Ambiente e Desenvolvimento, 19 a 30 ago 2002. (Anotações de aula).
HEEMANN, Ademar.
Natureza e ética
. 2. ed. Curitiba: Ed. da UFPR, 1998. 224p.
HEEMANN, Ademar.
O corpo que pensa
: ensaio sobre o nascimento e a
legitimação dos valores. Joinville: Editora UNIVILLE, 2001.
HEIDDEGGER, Martin.
Trechos escolhidos.
1992.
HELLER, Agnes e FEHÉR, Ferenc.
A Condição política pós-moderna
. Rio de
Janeiro: Civilizão Brasileira, 1998.
HOBBES, Thomas.
Os pensadores.
o Paulo: Nova Cultural, 1999.
http://cartel.oieau.fr/guide/. Acesso em 09/05/2005.
HUME, David.
Os Pensadores.
o Paulo: Nova Cultural, 1999.
KATZ, Daniel & KAHN, Robert L.
Psicologia das organizações
. 3. ed. São Paulo:
Atlas, 1987.
KURZ, Robert.
O colapso da modernização
: da derrocada do socialismo de
caserna à crise da economia mundial. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
LANA, Paulo da Cunha.
Teoria ecológica.
Curitiba. Curso de Doutorado em Meio
Ambiente e Desenvolvimento, 17 a 21 jun 2002; 02 e 03 set 2002. (Anotações de
aula).
LEFF, E..; ARGUETA, A.; Boege, E.; PORTO GONÇALVES, C. W. Más allá del
desarollo sostenible: la construcción de una racionalidad ambiental para
sustentabilidad - una visión desde Arica Latina. In: LEFF, E.; EZCURRA,
E.; PISANTY, I.; LANKANO, P. R. (Coord.)
La transición hacia el desarollo
sustentable
: perspectivas de América Latina y el Caribe. México: 2002.
p.479-578.
LEFF, Enrique. “Pensar a complexidade ambiental”. In: LEFF, Enrique
(Coordenador).
A complexidade ambiental.
São Paulo: Cortez, 2003, p.15-64.
LEFF, Enrique. “Complexidade, interdisciplinaridade e saber ambiental”, in: PHILIPPI
Jr., Arlindo; TUCCI, Carlos Morelli; HOGAN, Joseph e NAVEGANTES, Raul
(Editores).
Interdisciplinaridade em ciências ambientais,
o Paulo, Signus
Editora, 2000.
188
LEFF, Enrique. “Sociogía y ambiente: formación socioeconómica, racionalidad
ambiental y transformaciones del conocimiento”, in:
Ciencias Sociales y Formación
Ambiental
, Gedisa Editorial, Barcelona, 1994.
LEFF, Enrique.
Epistemologia ambiental.
São Paulo: Cortez, 2001a.
LEFF, Enrique.
Saber ambiental
: sustentabilidade, racionalidade, complexidade,
poder. Petrópolis: Vozes, 2001b.
LEIS, Héctor Ricardo.
A modernidade insustentável
. Petrópolis: Vozes, 1999.
LÉVI-STRAUSS, Claude.
Raça e história.
2a. ed. Lisboa: Presença, 1952.
LIMA, Cristina de Araújo.
A ocupação de áreas de Mananciais na Região
Metrpolitana de Curitiba:
do planejamento à gestão ambiental urbana-
metropolitana. Curitiba: Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento (UFPR),
tese de doutoramento, 2000.
MACIEL-LIMA, Sandra Mara; HOPFER, Kátia Regina; SOUZA-LIMA, José Edmilson.
Complementaridade entre racionalidades na construção da identidade profissional.
RAE
Eletrônica,
v. 3, n. 2, jul/dez, 2004. www.rae.com.br/eletrônica
MALINOWSKI, B.
Grandes Cientistas Sociais.
o Paulo: Ática, 1986.
MAQUIAVEL, Nicolau.
O Príncipe
. 13.ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil,
1989.
MARCUSE, Herbert. “Algumas implicações sociais da tecnologia moderna”. In:
PRAGA
: Revista de Estudos Marxistas, n.1, set/dez., 1996.
MARCUSE, Herbert.
Razão e revolução
. São Paulo: Paz & Terra, 1978. p.295-300
e p.309-325.
MARX, Karl.
O capital.
6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. Volume I
do Livro Primeiro.
MARX, Karl.
O 18 Brumário de Luís Bonaparte
. Rio de Janeiro: Paz & Terra,
1977a.
MARX, Karl.
O manifesto comunista de 1848.
São Paulo: Grijalbo, 1977b.
MARX, Karl.
Sociologia
. São Paulo: Ática, 1979. (Grandes Cientistas Sociais, 10).
MATURANA, Humberto R. e VARELA, Francisco G.
El Árbol del Conocimiento
: las
bases biológicas del entendimiento humano. Santiago: Editorial Universitaria, 1996.
MEADOWS, Dennis L.
Limites do crescimento
. 2.ed. São Paulo: Perspectiva,
1978.
MILLS, C. Wright.
A imaginação sociológica.
Rio de Janeiro: Zahar, 1972.
MIRANDA, Cristina Olga. “O papel político-institucional dos Comitês de Bacia
Hidrográfica no Estado de São Paulo: um estudo de caso. In: FELICIDADE, N.;
MARTINS, R.C.; LEME, A. A.
Uso e Gestão dos Recursos Hídricos no Brasil
. São
Carlos, RiMa, 2001, p.135-148.
MIRANDA, Tânia Lúcia Graf de. Avaliação da qualidade da água na Bacia do Alto
Iguaçu através de modelagem matemática para planejamento e geso de recursos
hídricos. Curitba: Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento (UFPR), tese de
doutoramento, 2001.
189
MOREIRA, Maria Manuela Martins Alves. “A política nacional de recursos hídricos:
avanços recentes e novos desafios”, in: FELICIDADE, N.; MARTINS, R.C.; LEME, A.
A.
Uso e Gestão dos Recursos Hídricos no Brasil.
São Carlos, RiMa, 2001, p.69-
76.
MOREIRA, Ruy. “Da Região à rede e ao Lugar: a nova realidade e o novo olhar
geográfico sobre o mundo”, In:
Ciência Geográfica
, n.6, abr.1997, p.1-11.
MORIN, Edgar & KERN, Anne Brigitte.
Terra Pátria
. Porto Alegre: Editora Sulina,
1995. 192p.
MORIN, Edgar e MOIGNE, J. L.
A inteligência da complexidade.
o Paulo:
Peirópolis, 2000.
MORIN, Edgar.
Ciência com Consciência.
7.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2003.
MORIN, Edgar.
O método
: 1. A natureza do método. Paris: Publicações Europa-
América, 1977.
MORIN, Edgar.
O método:
a natureza da natureza. Portugal: Publ. Europa América,
1991.
MORIN, Edgar.
O problema epistemogico da complexidade
. Publicação
europa-América, s/d.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm.
Os pensadores.
3ed. São Paulo: Abril Cultural,
1983.
ORTEGA y GASSET, José.
Meditação sobre a técnica.
Rio de Janeiro: Instituto
Liberal, 1991. 78p.
PIAGET, Jean.
Os Pensadores
. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
PIAGET, Jean.
The origin of intelligence in the child.
Penguin: Penguin Education,
1977.
PLATÃO.
Os Pensadores
. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
POLANYI, Karl. “L’économie en tant que procès institutionnalisé, in: Polanyi, K. &
Arensberg, C. (orgs.)
Les systèmes économiques dans l’histoire et dans la
théorie
. Paris, Librairie Larousse, 1975.
PONTING, C.
Historia Verde Del Mundo
. Barcelona: Piados, 1992.
POPPER, Karl Raymund.
Conjecturas e refutações
: o progresso do conhecimento
científico. 4.ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1972. (Coleção
Pensamento Científico, 1).
POPPER, Karl Raymund
. Lógica das ciências sociais
. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1978.
PRÉ-SOCRÁTICOS.
Os Pensadores
. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
QUIVY, Raymond & CAMPENHOUDT, Luc Van.
Manual de investigação em
ciências sociais
. Paris: Bordas, 1988.
ROUSSEAU.
Os pensadores.
o Paulo: Nova Cultural, 1999.
ROUSSEAU, J. J.
Os Pensadores.
4ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
190
SACHS, Ignacy. “Estratégias de transição para o século XXI”, Curitiba: Editora da
UFPR.
Cadernos de Desenvolvimento e Meio ambiente
, n.2, 1994, p.47-62.
SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.).
Democratizar a Democracia
: os caminhos
da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
SEN, Amartya.
Desenvolvimento como Liberdade
. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
SEN, Amartya.
Desigualdade Reexaminada
. Rio de Janeiro: Record, 2001.
SERRES, Michel.
Entrevista
. Programa Roda Viva, TV Cultura, 1999.
SERRES, Michel.
O Contrato Natural
. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
SERVA, Maurício Roque.
Racionalidade e Organizações:
O fenômeno das
organizações substantivas. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas (Tese de
doutoramento), 1996.
SERVA, Maurício. Abordagem substantiva e ação comunicativa: uma
complementaridade proveitosa para a teoria das organizações.
Revista de
Administração Pública.
Rio de Janeiro: v. 31, n.2, p. 108-134, mar/abr, 1997.
SETTI, Arnaldo Augusto
et al.
Introdução ao Gerenciamento de Recursos
Hídricos.
2ed. Brasília: Agência Nacional de Energia Elétrica; Agência Nacional de
Águas, 2001.
SHIVA, Vandana.
Biopirataria
: a pilhagem da natureza e do conhecimento.
Petrópolis: Vozes, 2001
SILVA, Elmo Rodrigues da.
O Curso da Água na História:
Simbologia, Moralidade
e a Gestão de Recursos Hídricos. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz Tese
de Doutoramento, 1998.
SILVA, José Robson da.
Direito Ambiental
. Curitiba, UFPR - Doutorado em Meio
Ambiente e Desenvolvimento, de 14 a 29/abril de 2003.
SILVA, José Robson da.
Paradigma Biocêntrico
: do patrimônio privado ao
patrimônio ambiental. Rio de janeiro: Renovar, 2002.
SMITH, Adam.
Teoria dos Sentimentos Morais.
São Paulo: Martins Fontes, 1999.
SMITH, Adam. Uma Investigação sobre a Natureza e Causas da Riqueza das
Nações. São Paulo: Editora tecnoprint, 1986.
CRATES.
Os pensadores.
São Paulo: Nova Cultural, 1999.
SOUZA-LIMA, José Edmilson de
et al
. Relação sociedade/natureza na Vila
Pantanal:
conflitos e percepções. Curitiba. Curso de Doutorado em Meio ambiente e
Desenvolvimento, 2002. (texto).
TAYLOR, Frederick.
Princípios de administração científica
. 7.ed. SP: Atlas, 1979.
THUROW, Lester C.
O Futuro do Capitalismo
: como as forças econômicas de hoje
moldam o mundo de amanhã. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
TOCQUEVILLE, Alexis.
Democracy in America
. New York: Schocken Books, 1961.
TOURAINE, Alain.
Crítica da Modernidade
. Petrópolis: Vozes, 1994.
191
TUNDISI, José Galizia.
Água no Século XXI
: enfrentando a escassez. São Carlos:
RiMa, IIE, 2003.
VIEIRA, Paulo Freire e WEBER, Jacques (Organizadores).
Gestão de Recursos
Naturais Renováveis e Desenvolvimento:
novos desafios para a pesquisa
ambiental. 3.ed. São Paulo: Cortes, 2002.
VIEIRA, Paulo Freire. Meio ambiente, desenvolvimento e planejamento. In:
Meio
Ambiente, Desenvolvimento & Cidadania
: desafios para as ciências sociais, São
paulo, Cortez/Florianópolis; Universidade Federal de Santa Catarina, 1995, (Vários
Autores).
VIEIRA, Paulo Freire.
Social Sciences and Environment in Brazil
: a State-of-the-
art report. In: Working papers, n.24, 1998, UNESCO.
VIOLA, Eduardo. “O movimento ecológico no Brasil (1974-1986): do ambientalismo à
ecopolítica”, in: DUA, José Augusto de (org.).
Ecologia e Política no Brasil
. Rio
de Janeiro : Espaço e Tempo/IUPERJ, 1987, p.63-110.
WEBER, Max.
A ética protestante e o espírito do capitalismo
. São Paulo:
Pioneira, 1967. 233p.
WEBER, Max.
Ciência e Política
: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1968.
WEBER, Max.
Ensaios de Sociologia
. 4.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
WEBER.
Os Pensadores.
2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
www.sivoa.fr. Acesso em 09/05/2005.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo