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Juvenal Batella de Oliveira
ESTE LADO PARA DENTRO
FICÇÃO, CONFISSÃO E DISFARCE
EM JOÃO UBALDO RIBEIRO
TESE DE DOUTORADO
DEPARTAMENTO DE LETRAS
Programa de Pós-graduação em Estudos da Literatura
Rio de Janeiro
Março de 2006
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA
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Juvenal Batella de Oliveira
ESTE LADO PARA DENTRO
FICÇÃO, CONFISSÃO E DISFARCE
EM JOÃO UBALDO RIBEIRO
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Letras do Departamento de Letras da PUC-Rio
como parte dos requisitos parciais para a obtenção
do título de Doutor em Letras.
Orientador: Karl Erik Schollhammer
Vol. I
Rio de Janeiro
Março de 2006
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA
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Juvenal Batella de Oliveira
Este lado para dentro — ficção, confissão e
disfarce em João Ubaldo Ribeiro
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-
Graduação em Letras do Departamento de Letras do
Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-
Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo
assinada.
_________________________________________
Prof. Karl Erik Schollhammer
Orientador
Departamento de Letras - PUC-Rio
__________________________________________
Profa. Marília Rothier Cardoso
Departamento de Letras - PUC-Rio
__________________________________________
Prof. Júlio Cesar Valladão Diniz
Departamento de Letras - PUC-Rio
__________________________________________
Profa. Zilá Bernd
Instituto de Letras - UFRGS
__________________________________________
Profa. Eneida Maria de Souza
Faculdade de Letras – UFMG
__________________________________________
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 17 de março de 2006
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização da
universidade, do autor e do orientador.
Juvenal Batella de Oliveira
Graduou-se em 17 de março de 2006
Ficha Catalográfica
CDD: 800
Oliveira, Juvenal Batella de
Este lado para dentro : ficção, confissão e
disfarce em João Ubaldo Ribeiro / Juvenal
Batella de Oliveira ; orientador: Karl Erik
Schollhammer. – Rio de Janeiro : PUC,
Departamento de Letras, 2006.
v. ; 30 cm
Tese (doutorado) Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de
Letras.
Inclui referências bibliográficas.
1. Letras Teses. 2. João Ubaldo Ribeiro.
3. Narratologia. 4. Discurso indireto livre. 5.
Focalização interna. 6. Biografia. 7. Mercado
editorial. I. Schollhammer, Karl Erik. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Letras. III. Título.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA
_______________
RESUMO
Juvenal Batella de Oliveira; Este lado para dentro — ficção, confissão e disfarce
em João Ubaldo Ribeiro. Rio de Janeiro, 2006. 533 p. Tese de Doutorado.
Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro –
PUC-Rio.
O primeiro objetivo desta tese é a descrição, a análise e a interpretação dos
procedimentos narrativos utilizados por João Ubaldo Ribeiro em seus nove
romances até agora publicados. Isto significa identificar, na sua maneira de contar
as histórias, uma específica relação que o narrador estabelece com os seus
personagens, ao levar às últimas conseqüências a prática do discurso indireto
livre. A representação ficcional desse narrador — aqui nominado o narrador sem
cabeça — é um personagem-chave do escritor: a almazinha cuja história é
relatada logo às primeiras páginas do romance Viva o povo brasileiro, de 1984.
Comportam-se ambos, um de cada lado, como seres errantes, figuras sem feitio e
em constante processo de incorporação de linguagens alheias.
O segundo objetivo é demonstrar que esse mesmo narrador, tão íntimo de
seus personagens, se revela no entanto ainda mais apegado ao próprio escritor,
com ele partilhando crenças, idéias e experiências. Para tanto, com base numa
pesquisa de imprensa que remonta ao início da carreira de João Ubaldo Ribeiro
como escritor e avança até o ano de 2005, a tese articula o seu universo ficcional à
sua biografia ainda não escrita — o que contribui para uma compreensão mais
ampla da sua obra.
PALAVRAS-CHAVE:
João Ubaldo Ribeiro; narratologia; discurso indireto livre; focalização
interna; biografia; mercado editorial.
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_______________
ABSTRACT
Juvenal Batella de Oliveira; This side in — fiction, confession and disguise in
João Ubaldo Ribeiro. Rio de Janeiro, 2006. 533 p. Doctor’s Degree. Literature
Department of the Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-
Rio.
The first purpose of the thesis is the description, the analysis and the
interpretation of the narrative procedures used by the Brazilian writer João Ubaldo
Ribeiro throughout his nine novels published up to now. That means to identify,
in his way of telling stories, a specific relation established by the narrator with his
characters, stretching to the limit the usage of the so-called free indirect discourse
(the FID). This narrator’s fictional representation — herein called the headless
narrator — may be found in a Ribeiro’s key character: the little soul whose
lifestory is told right on the first pages of the novel Viva o povo brasileiro (An
invincible memory), published in 1984. They both behave – the little soul and the
narrator, side by side, in and out the story – as errant beings, shapeless figures in
an on-going process of incorporating someone else’s speaches.
The second purpose is to demonstrate that this same narrator, though very
close to his characters, appears, nevertheless, even more attached to the writer
himself, sharing with him believes, ideas and experiences. In order to demonstrate
such relation between the author and the narrator, the thesis links the fictional
universe of the novels and the author’s nonwritten biography. Such relation is
established on the basis of a printing-press research that covers the period beginning
in the 1960’s until the 2005’s, thus allowing a more comprehensive understanding
of the author’s work.
KEY-WORDS:
João Ubaldo Ribeiro; narratology; free indirect discourse (FID); internal
focalization; biography; publishing market.
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Para Berenice, esta primeira vez.
Para Teresa, como se fosse sempre a primeira vez.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço à Valéria dos Santos, da editora Nova Fronteira, ao Carlos
Carvalho, da Objetiva, e à Cecília Andrade, diretora literária da editora portuguesa
Dom Quixote, que ouviram os meus pedidos e atenderam a todos eles, deixando-
me feliz imediatamente.
À Otília Peixoto, do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, de Portugal,
pelos gestos rápidos e pela seriedade, e tudo isso sempre a sorrir, fazendo com que
me sentisse em casa com os seus sorrisos.
Ao José Carlos de Vasconcelos, diretor do JL, pelo à-vontade em que me
deixou e pelas boas conversas que travamos acerca de seu “grande amigo
Ubaldo”.
Aos bravos defensores da Biblioteca Juracy Magalhães Jr.: Isa Maria Silva
Cardoso, Robertina Maria dos Santos, Moisés Alcântara Araújo, Bartolomeu
Oliveira Barros e à sua incansável diretora, Dalva Tavares Lima, pela simpatia,
pelo apoio, pela confiança. Sem eles, não teria conseguido ter acesso ao material
de imprensa tão bem guardado e tão valoroso — biscoito fino para qualquer
pesquisador que tenha boa estrela.
Ao António Maria de Carvalho da Costa Pereira, à Eva Gaspar, ao
Fernando Bastos, ao Fernando Viana, ao Filipe Manuel Nogueira Ferreira, à
Isabel Lopes da Silva, ao Joaquim Trigo de Negreiros, ao Jorge Manoel Teixeira,
ao José Carlos de Vasconcelos (mais uma vez), ao Manoel de Castro Vilas Boas, à
Maria do Carmo Guerreiro, à Maria Gomes de Oliveira Xavier, à Maria Rita Brito
Monteiro, ao Mário Negreiros e à Sandra Campos por terem respondido, com um
sorriso e uma seriedade, a todas as minhas perguntas.
Ao professor Carlos Reis, pela imediata atenção que me concedeu e pelo
sincero interesse com que ouviu todas as minhas idéias.
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À professora Maria Lúcia Lepecki, pelo acolhimento que me deu em
Portugal, pela co-orientação carinhosa, pelos cafés, pelas dicas lisboetas mais
preciosas.
À professora Zilá Bernd agradeço pela confiança que depositou em mim
desde o início do caminho.
Ao bravo, incansável e inadmoestável orientador, Karl Erik
Schollhammer, conhecido como aquele que tem a última palavra, a mais sábia
entre todas.
Agradeço ainda ao escritor João Ubaldo Ribeiro, aqui também chamado
“objeto de estudo”, que paciente, resignada e generosamente se submeteu aos
meus questionários e aos meus pedidos, posando mais ou menos imóvel enquanto
eu, lápis à mão, esboçava o seu retrato de letras. A ele também cumprimento por
ter escrito tanto e por continuar a escrever tanto.
À Berenice, pela maneira com que me ouve, com que me fala e com que
me percebe, dos pequenos aos grandes temas.
Ao Joaquim e à Fernanda, que fazem do meu quotidiano uma eterna
celebração, e isso a tal ponto que me sinto, a cada almoço, a cada jantar, a cada
encontro, afagado e compreendido.
Ao meu pai, Juvenal, e à minha mãe, Telma, pela força e pelo carinho que
me dão, e parece que adivinham os momentos em que preciso dessa força e desse
carinho.
À pequena Alice, que me ensina muitas coisas, entre elas a possibilidade, e
a necessidade, de um olhar novo sobre (quase) tudo.
À Teresa, o amor da minha vida, por renovar, a cada dia, a proposta para
um desafio: o mais importante do mundo...
Ao meu interlocutor, esteja onde estiver.
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Errar é humano,
sussurram as almas, também elas errantes.
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“... tenho lido na folha que V.
a
S.
a
dirige umas correspondências subscritas por um sr. João
Ubaldo Ribeiro e, ao que parece, enviadas da República dos Brasis. O dito senhor intitula-se
romancista, e, por coincidência de nome ou apropriação soez, insinua ser o mesmo João
Ubaldo que deu a lume o Sargento Getúlio, Vila Real, Livro de histórias e outras obras que
todos nós admiramos. ¶ Terrível abuso!!! (...) Desprezível e clamoroso travesti literário
(...)!!!! Pois não teve ao menos V.
a
S.
a
o cuidado de verificar a identidade do dito antes de lhe
dar publicação, como se do escritor se tratasse? (...) ¶ Eu bem sei que andou por cá um
brasileiro guedelhudo e de camisa de seda a apresentar-se como romancista João Ubaldo
Ribeiro e que, por isso, foi recebido com a alegria e a admiração que esse autêntico escritor
justifica. O dr. José Carlos de Vasconcelos propôs-lhe contratos (...), o dr. Mário Soares
recebeu-o em provençal, José Nuno Martins pagou-lhe umas prédicas sambistas à boca do
microfone, a menina da livraria abandonou o lar e as encomendas. Mas V.
a
S.
a
foi mais longe:
publicou-o. ¶ Verdade que eu, pobre de mim, também acedi sentar-me uma vez à mesa com
ele, mas ao terceiro bagaço percebi o embuste: o sujeito tinha sotaque galileu e caía em
contradições sucessivas sobre a paisagem da Baía [sic] e dos territórios do verdadeiro João
Ubaldo (...). (...) ¶ Termino, sr. director, informando que, deslocando-me este mês ao Brasil,
não desperdiçarei a oportunidade de procurar o ultrajado romancista, da minha predilecção,
que de há muito desejo conhecer pessoalmente. (...) ¶ Quanto ao Outro, deixo-o para sempre
nos mundos subterrâneos onde escrevinha impunemente as cartas subversivas que V.
a
S.
a
publica. A bem da moral”
José Cardoso Pires,
“Cartas de José Cardoso Pires ao autor de ‘Cartas ao Zé’”,
O Se7e, Portugal, texto sem data.
“... Então um senhor que se assina com o nome José Cardoso Pires, que, como se sabe, é
um dos meus pseudônimos literários portugueses (os outros, já que chegou a hora das grandes
revelações, eu digo logo: são Lobo Antunes, José Manuel Mendes, Augusto Abelaira (...) e
Fernão Mendes Pinto, além de muitos que contratos e maquinações ainda vigentes me
impedem de apontar). Quem escreveu os livros dele fui eu. Coisas da nossa organização, que
não posso sair por aí contando. Esse senhor (...) de facto apresenta-se como José Cardoso
Pires. (...) Complementarmente, o referido senhor tem gosto apurado pelo trajar (...), além de
possuir, é claro, uma excelente cara de escritor — atributo que, como sabemos o Namora e eu
(...), é indispensável para a obtenção da estima crítica e do respeito da colectividade (...).
Muito bem (...): ele não pode ser o José Cardoso Pires porque não sabe nem ler nem escrever.
(quem redigiu a carta por ele foi o Fernando Assis Pacheco [...]). (...) O verdadeiro nome dele
é Tomé Carrascal e, antes de ser recrutado pela Organização, era pescador na Caparica (...).
Esse homem, por artes da organização, foi guindado aos píncaros de literatura de expressão
portuguesa. Quando eu escrevi O Delfim, nem imaginava que tudo fosse dar tão (...) certo.
Pois muito bem, pois esse homem recebe as homenagens, a reverência, as honrarias e,
principalmente, os prêmios. É bem verdade que, quando lhe entreguei os originais de Balada,
lhe assegurei que o que ganhasse seria dele. (...) Não me arrependo, ele que fique com os rios
de dinheiro que embolsa todos os dias, mas (...) bem podia ter-me mandado umas chamuças,
um tintozinho, um da Serra cremoso, uns mimos assim simples. Era o mínimo que se poderia
esperar. Mas não. O que recebo é um golpe traiçoeiro e solerte. Como não sou o João Ubaldo?
Claro que sou o João Ubaldo. Isto quando não estou disfarçado de José Carlos de Vasconcelos
(...). E quanto ao Tomé, diga-lhe que, se não parar com as gracinhas, transfiro o próximo livro
dele para a Augustina Bessa-Luís. Não sou homem de brincadeiras. Revoltadamente seu”
João Ubaldo Ribeiro,
“Cartas ao Zé — Esclarecendo equívocos”,
O Se7e, Portugal, 5 out. 1983
.
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SUMÁRIO
Pág.
1. INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS. “Bom dia, vamos
conversar?” “Conto-lhe uma história.” A necessidade de uma tese para o
andamento do mundo? Um escritor tem uma obra, e o que é uma obra? A
marca, o padrão, a obsessão. O centro nervoso de João Ubaldo Ribeiro. A
progressiva e nítida abertura. O caminho de aprendizados de uma almazinha.
Narrador: ser constituinte e fundante do universo romanesco. O perfil do
narrador sem cabeça. Do nada de um “poleiro d’almas” aos universos de cada
personagem: o narrador incorpora. As ligeiras biografias de um pequeno eu.
“Um (suposto) vínculo de excelência entre autor e obra.” O espírito totalizante
e o espírito randômico. A biografia de uma vida intelectual pública. O
biografema ubáldico. As “pontes metafóricas entre o fato e a ficção”. O puzzle
Ubaldo caminha em direção ao narrador sem cabeça. Se o homem está para a
vida, assim como o autor está para obra, o escritor está para ambas. Começa a
conversa: mais café. _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
16
1.1.
IDÉIAS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
17
1.2.
UM BOM PUNHADO DE PALAVRAS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
18
1.3.
A IDÉIA DO FACHO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
22
1.4.
A MEMÓRIA INDIVIDUAL _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
29
1.5.
O NARRADOR SEM CABEÇA _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
30
1.6.
O PEQUENO EU _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
34
1.7.
GUARDAR TUDO, JOGAR NADA FORA”: O MAL DE ARQUIVO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
37
1.8.
A LITERATURA, BARTHES E O VATAPÁ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
41
2. A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO A CABEÇA DO
NARRADOR SEM MUNDO
. O primeiro que é o segundo. Ubaldo e a “galinha de
um ovo só”. O início da consagração. Getúlio e a imprensa norte-americana. O
biografismo explicativo. Coutinho põe Ubaldo na teia: entre escritores, estilos
e temas de nossa história literária. Antônio Conselheiro, Corisco e Getúlio: os
machos desta terra. O Grande Sertão e as veredas de Getúlio: a obstinada
primeira pessoa. Aracaju, 1950: o menino João com nove anos. Sob a
“sombra” de Graciliano, sob a “sombra” de Rosa. O “não” às influências. O
“não” às pesquisas: “... escrevi daquele jeito porque só acertava a escrever
daquele jeito”. Getúlio: a gota serena. Antígona vem de longe. Getúlio: onde
ficam o narrador, o personagem e a fronteira entre ambos? Meursault fala
pouco. Atrás de Getúlio, a ideologia e o silêncio do mundo. Autobiografia ou
auto-retrato? Faço, logo existo. Morrer frouxo ou morrer macho? Eis a
questão: levar ou ou não levar? Getúlio pensa, Getúlio fala. Itaparica: 1941. A
clássica vida entre livros. O pai, Homero, os sermões de António Vieira e o
que a erudição do narrador de Ubaldo deve à sua formação. As lembranças de
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infância do “sargento que não morria”. O “verdadeiro” Getúlio pintava as
unhas. E lá no fundo: o menino Ubaldo. O pai de Ubaldo, o chefe de Getúlio?
A literatura e o poder nas grandes famílias brasileiras. A visão do(s) menino(s)
sobre o “Dragão Manjaléu”. Javier Marías e as três caras do fantasma
autobiográfico. Os três sargentos-Sherazade: Getúlio, Tasso e Cavalcanti. De
“alguém que poderia ter sido eu” a “alguém que não pode ser outro senão eu”.
“Getúlio Ubaldo Ribeiro”. O filme “documentário-literário” de Hermano
Penna. Getúlio: “... quando estou pensando, estou falando”. A contra-ordem:
“... ele mesmo, o chefe, não prendeu ninguém...”. Câmera subjetiva: o olhar da
vítima, a degola do tenente. “Tirando bicho de pé, seu Getúlio?” E
começamos, como os norte-americanos, a gostar do sargento. “Eu sou Getúlio
Santos Bezerra e meu nome é um verso.” O teatro aberto, Getúlio em cena: o
monólogo. “Eu era ele, agora eu sou eu.” Lima Duarte a Othon Bastos: “...
tomara que você fique doente”. Barra dos Coqueiros: o local de morte: “... e eu
nunca vou morrer, Amaro!”. _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
46
2.1.
SARGENTO GETÚLIO E CIA. _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
48
2.2.
DA INESCAPÁVEL CABEÇA DE GETÚLIO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
60
2.3.
SARGENTO GETÚLIO SOU EU”, DIZ UBALDO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
77
2.4.
DO LIVRO AO FILME E A VOLTA E MEIA _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
95
3. SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL A CABEÇA DO NARRADOR CONTRA O
MUNDO
. A juventude radical. O contexto de Setembro não tem sentido. O
paralelismo entre Setembro... e Diário...: os 21 e os 60 anos, o ano de 1964.
Tristão, Orlando e o padre: a falta de sentido. O início da carreira: João
Ubaldino Ribeiro ou João Paulo Oliveira? A amizade com Glauber Rocha. Os
fantasmas e o espelho. “Está pronto para publicar.” O “sim” às influências:
Joyce e outros escritores modernos. “Acho ruim, mas não é tão ruim, não.” A
autobiografia ou o umbigo de Ubaldo: “... os jovens intelectuais baianos à
porta da livraria Civilização Brasileira”. O comportamento agressivo e original
do narrador. A ilha, a ilha, a ilha. O romance enclausurado. O elogio e a crítica
de Jorge Amado. Tanto niilismo, tanta amargura e tanto pessimismo “atrás do
riso alegre de Ubaldo Ribeiro...”. “Esta é a Semana da Pátria, e eu não estou
me sentindo nada bem...” Orlando e os seus pequenos fatos importantíssimos.
O feitio camaleônico do narrador. Os erros de Diário do farol: a atuação do
escritor não-profissional. Os “Ubaldos”: repórter, redator, copidesque, chefe de
reportagem, colunista, editorialista, editor-chefe. A imagem de “povo”. A
política em Setembro... e no Diário.... A des-pompa pela via do humor e pela
do rancor. “Tudo já foi escrito”, dizem Ubaldo e o seu padre. O quão pouco
moderno é Setembro não tem sentido? A frágil extradiegese do narrador, cuja
alma trafega entre os vivos. Tristão: a focalização interna levada às últimas
conseqüências. A multivocalidade desde o início. Joyce e Ubaldo: “... era uma
vez e uma vez muito boa mesmo uma vaquinha-mu” e “... tun-tun (...) iam ao
fundo do quintal para olhar as coisas um do outro”. Sherazade e os modos de
narrar. O narrador transformante e transformado. O Ubaldo de Reunião: “...
salutar insatisfação formalística...”. A consciência de Orlando caminha para a
dissolução e se espatifa. O “bovarismo” ubáldico. Orlando e o padre: a
liberdade de não querer nada; a prisão no presente e no discurso; “O outro?
Não conheço...”; e a verdade, por favor. “Eu estou aqui e agora dizendo isto.”
“Escrever não tem sentido”, diz aquele que escreve: o “paradoxo do fênix”. O
pai, o filho e a santa biblioteca... de Setembro..., do Diário... e dA casa dos
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Budas... Montaigne e os seiscentos volumes. O pai de Orlando e do padre e as
“cartas do pai”, nO sorriso do lagarto. “Não aceito o magistério da Igreja”,
dizem Ubaldo e CLB. “O bigode”, de João Ubaldo Ribeiro. “Não vou dizer
que psicografei... mas vivi o personagem...” O homem perigoso. A ditadora do
mundo. _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
115
3.1.
A REDAÇÃO DO NARRADOR DA REDAÇÃO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
125
3.2.
A TERCEIRA PESSOA: O TERCEIRO EXCLUÍDO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
141
3.3.
É SETEMBRO NO DIÁRIO DE ÁGUA SANTA... EM SERGIPE E NA BAHIA _ _ _ _ _ _ _ _
161
3.4.
A ESCRITA DA ESCRITA DA ESCRITA... _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
172
3.5.
EM NOME DO PAI, DO PAI E DO PAI _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
178
4. O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA O MUNDO DA
CABEÇA DO NARRADOR
. A literariedade da literatura, a artisticidade da
literatura. As tarefas de um chefe: exercer o comando, dar proteção, ministrar
ensinamentos e distribuir boas palavras. Um chefe natural e incapaz de o ser. A
história de Argemiro: a história do transcurso de uma incumbência. O discurso
clássico de poder e a mediação cultural. A eloqüência do narrador e os
silêncios de Argemiro. A frase de Silviano Santiago. Geertz e o carisma. Vila
Real e a necessidade de um líder. O carismático e o centro das coisas. O centro
das coisas é a guerra. O espatifamento da transcendência. O pé no topo da
pedra e a grande questão. A sociedade da ausência: “O Filho de Lourival”. A
Inglaterra, a terra de Java e o Marrocos. O poder como “coisa em si”. A coisa
possuída e o condão de possuir. O baraka. Faltam palavras onde falta tudo. A
cabeça de Argemiro e a figura do narrador. O “espúrio legítimo”, ou o que
deleita, comove e ensina. A literatura anfíbia. O que há de errado com as
palavras de Argemiro? Maria da Fé, o espelho distante de Ernesta. As névoas e
os caroços. A prática política e a prática da vida. O narrador: o duplo de
Argemiro. A cabeça de Argemiro como a fala do narrador; a fala do narrador
como uma conversa íntima. A querela por e com as palavras. O narrador
ensaísta. Vila Real: o único livro de versos. Há aqui pelos menos três boas
batalhas. A subjetividade coletiva. Argemiro, o herói épico. As “extremidades
da diegética”. A maturidade do escritor. A “questão” da identidade brasileira.
A busca pelo verbo brasileiro. Os “happy few”. “Vila Real é meu romance
órfão.” É hermético? A materialidade áspera da palavra. Os sertões e a sua
“deficiência estrutural”. Argemiro Meia-Lua e o Urutu-Branco. A
responsabilidade do artista e o bisturi literário. A bola preta e a obstinação de
Vila Real. _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
196
4.1.
O REI ESTÁ SEMPRE NU _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
200
4.2.
VILA REAL, MARROCOS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
206
4.3.
O ESPÚRIO LEGÍTIMO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
210
4.4.
O NARRADOR-ENSAÍSTA _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
215
4.5.
A EPOPÉIA SERTANEJA _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
222
4.6.
O NARRADOR-BRASILEIRO: A BOA E VELHA QUESTÃO DA IDENTIDADE _ _ _ _ _
232
4.7.
UBALDO, ARGEMIRO E O NARRADOR _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
243
5. O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO O MUNDO DO NARRADOR SEM CABEÇA. A
cara do narrador sem cabeça. O narrador-cavalo do personagem. O título-
verruga: origens e razões. O trabalho crítico como leitura da própria vida. O
narrador de Viva o povo... e dO feitiço da ilha do Pavão: técnicas e técnicos.
Pequenas focalizações internas: a dança dos pontos de vista. Os “bem falantes”
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donos do poder versus as encarnações da pobre almazinha, e o narrador no
meio. O exercício da personalidade textual. A presença vocal nos oprimidos.
O direto e o indireto bastante livres. O canibalismo em três tempos, 1922, 1984
e hoje: uma dívida de Ubaldo ou uma gozação? O des-aprofundamento. A
boca do índio, a cabeça do branco. Antropofagia e canibalismo: o filé à
Oswaldo Aranha. Bakhtin fala, Dadinha morre. O narrador sai à francesa e
olha à volta. Novamente o escritor. Hibridismos ubáldicos. Amleto, o
pragmático, fala mas não diz. Caio Prado cai no erro. Philip Roth e Ubaldo
reinventam o passado. Amleto apanha e Virgílio socorre. O RG de Ubaldo.
Ubaldo da Fé: “Sou mulher e sou bandida”. As teses sociais ou o romancista-
ideólogo. As noventa cabeças: o saber popular do narrador. O leitor conhece
Leléu? Arte: metáfora do conhecimento. “A literatura...”, diz Antonio
Candido. O tatu, o baiacu e a epistemologia. Saber ou não saber, eis o
problema narratológico. O agá minúsculo pouco falado. Ubaldo “psicografa”.
Os dois Leléus. As gracinhas de um romance (anti-)histórico. O discurso
heróico e o outro, o das bicheiras e do medo. Um cego conta Viva o povo....:
Ensaio sobre a vidência... A “meta-história”. O Arraial de Santo Inácio: meio
de caminho entre ficção e história. O flanco LaCapra. A ilha do Pavão e o
lugar “fora” do Brasil. A condição mítica da ilha: a toca do tempo e o desfile
dos possíveis futuros. A Guerra do Paraguai e a Guerra de Tróia: a “Ilíada
Negra” e a opção pelo épico. Os deuses e os “orixás façanhudos e faiscantes”:
Zeus, ajuntador de nuvens, e Oxalá, pai dos homens, Aquiles, de pés rápidos, e
Ogum, cujo nome é a própria guerra. O tema, os pontos dramáticos e a forma.
Homero e Ubaldo: a transformação da releitura e o sangue derramado. _ _ _ _ _
251
5.1.
PEQUENAS INCORPORAÇÕES: O NARRADOR A CAVALO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
259
5.2.
ANTROPOFAGIA(S) DE ONTEM E HOJE: O CABOCO COME _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
274
5.3.
JOÃO UBALDO FAZ CEM ANOS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
286
5.4.
A LÍNGUA-MULETA DO MULATO AMLETO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
300
5.5.
JOÃO UBALDO, A CAVALO, É MARIA DA FÉ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
313
5.6.
O NARRADOR DE NOVENTA CABEÇAS: LITERATURA E CONHECIMENTO _ _ _ _ _ _
321
5.7.
A ONISCIÊNCIA RELATIVA _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
334
5.8.
AS HISTÓRIAS DE UM ROMANCE HISTÓRICO QUE SE QUER ESTÓRIA _ _ _ _ _ _ _ _
348
5.9.
CANTA, Ó, MUSA!”: UMA DESCRIÇÃO INTERPRETATIVA _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
378
6. UBALDO AMADO A CABEÇA DO NARRADOR NO MUNDO. Uma biografia de
ponta-cabeça. O escritor entre a crítica e o público. O início da carreira:
melhores momentos? Romance: gênero capenga? A narrativa brasileira
contemporânea: painel histórico ou miniatura fragmentada? O (falso) debate
best seller versus obra de arte. Um livro bem sucedido é um best seller? Um
best seller é um livro ruim? A frustração das expectativas críticas. Romancista
tradicional, intérprete de seu povo e do seu tempo? O sorriso do lagarto: o fim
do regionalismo ubáldico. Jorge Amado: a opressiva “persona” literária? O
“problema da linguagem” e a “questão do discurso”. O escritor-escrivão: o que
vive da pena. A justa matéria dos romances, a justa matéria da vida. O leitor
médio e o conteúdo das histórias. Está precisando de dinheiro? Escreva um
livro. O escritor-escrivão: retrato falado. O barroquismo, o perfeccionismo, o
eruditismo, o biologismo, o alcoolismo, o romantismo, o nervosismo e o
profissionalismo da escrita. Os budas lusitanos e os hipermercados censores. A
carta de um leitor português. As resenhas dos jornais portugueses. O que dizem
os comerciantes lusos: “... livros, bolachas e chocolates...”, o que diz o editor
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da Dom Quixote: “... censura!”, o que diz o autor? João Ubaldo “Rodrigues” e
Portugal. Como se faz um best seller? Por acaso? Os fatores em jogo no motor
do DCL — discurso crítico literário. Escritor best seller ou escritor
profissional? Top de venda ou best seller? A crítica e o livro: o que fazer então
com tudo o que não é o livro, embora seja? Benedita: a miséria e a grandeza de
mais um livro de Ubaldo, ou nada mais que o primeiro e-book? Uma “nova e
mais que merecida chance”: o papel. O leitor é o único juiz, diz Ubaldo. As
literaturas: oral, erudita e massiva, e o literário a circular... Ubaldo Amado: a
discussão apenas começa._ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
396
6.1.
O LUGAR DO ESCRITOR NO MUNDO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
397
6.2.
A FORTUNA CRÍTICA _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
404
6.3.
O TRABALHO DO ESCRITOR-ESCRIVÃO (PARTE I) _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
418
6.4.
O TRABALHO DO ESCRITOR-ESCRIVÃO (PARTE II: RETRATO FALADO) _ _ _ _ _ _ _
428
6.5.
O CASO DA CASA DITOSA: MISÉRIA E GRANDEZA _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
437
7. CONCLUSÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS. A minha (nossa tese).
Escreve-se a conclusão ao início e a introdução ao final. Errar de maneira
certa. O autobiografismo fantasmagórico restou superestimado? E o autor,
numa tarde do século XVIII, subiu no telhado... E novamente os perigosos e
alagadiços terrenos biográficos. O que é a obra senão aquilo que é feito por um
autor? O “escritor”: aquele que escreve e aquele que reflete sobre a escrita. O
funcionamento do “nome do autor”. Ser ou não ser um “escritor-escrivão”?
“Eu faria tudo diferente”, disse ele. O percurso temático no lugar do percurso
biográfico. O mosaico ubáldico se esfarela, “porque o passado...”, disse ele, e
calou-se. Prousting: a tese autofágica. _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
468
7.1.
A MORTE DO AUTOR”; O LUGAR DO ESCRITOR _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
469
7.2.
O SCRIPTOR MODERNO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
475
7.3.
É PRECISO REDIVIDIR TODA A TESE”, DISSE ELE _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
480
7.4.
EXIT: LETS PROUST... _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
486
8. BIBLIOGRAFIA DE JOÃO UBALDO RIBEIRO E BIBLIOGRAFIA GERAL
(ilustradas com notas de rodapé)
8.1.
DE JOÃO UBALDO RIBEIRO
8.1.1.
ROMANCES _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
487
8.1.2.
OUTROS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
487
8.1.3.
VERSÕES PARA O INGLÊS (DO PRÓPRIO AUTOR) _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
489
8.1.4.
LIVROS TRADUZIDOS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
490
8.1.5.
ADAPTAÇÕES, ROTEIROS EM CINEMA TELEVISÃO E TEATRO _ _ _ _ _ _ _ _ _
494
8.2.
GERAL
8.2.1.
BIBLIOGRAFIA CITADA SOBRE JOÃO UBALDO RIBEIRO _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
495
8.2.2.
BIBLIOGRAFIA CITADA DE IMPRENSA _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
496
8.2.3.
ESTUDOS CITADOS SOBRE O NARRADOR _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
515
8.2.4.
DEMAIS LIVROS E TEXTOS CITADOS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
516
8.2.5.
FONTES ELETRÔNICAS CITADAS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
520
8.2.6.
OUTROS _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
522
9. APÊNDICE: QUESTIONÁRIO PROUST COM JOÃO UBALDO RIBEIRO _ _ _ _ _ _ _ _
523
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1
_____________________________________
INTRODUÇÃO:
MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
Iniciado o caminho,
consumada está a viagem.
(em Lukács)
— Bom dia. Esta sala está ocupada?
— Bom dia. Sim, está ocupada. Por mim.
— Posso dividi-la com você?
— Claro. Fique à vontade.
— Obrigado. Não vou perturbá-lo.
— Imagine... Estou apenas pensando... Pensando sobre a minha tese...
— E você consegue pensar assim, sozinho?
— Na verdade, não muito...
— Gostaria de pensar acompanhado?
— Pensar a dois? Conversando?
— Sim, conversando, divergindo, concordando. Fale-me sobre ela.
— Ela, quem?
— A tese... Qual a idéia?
— Ah, são muitas. Mas você tem tempo? Como devo chamá-lo?
— O que tenho é tempo, e nada mais tenho além de tempo. E não me
chame de nada; serei apenas “o interlocutor”.
— Conto-lhe então uma história — e comecei assim esta minha conversa
com o meu “interlocutor”, os dois no centro da grande sala de uma biblioteca que
queríamos infinita. — Ouça. — E eu lhe disse: — No dia 10 de junho de 1822,
uma almazinha ainda assustada se despega do corpo de um alferes de nome José
Francisco Brandão Galvão. O jovem, atingido pelas balas de algumas
embarcações portuguesas, cai morto no cais da Ponta das Baleias, na Baía de
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
17
Todos os Santos, com um olho furado e o crânio em pedaços. Parece que, afora os
elementos naturais, gaivotas, mares e nuvens, não houve testemunhas para as
palavras de amor à pátria proferidas pelo jovem José pouco antes do passamento.
Ninguém ouviu coisa alguma, mas isso não quer dizer muito, pois que todos bem
puderam avaliar o peso das tais palavras para o engrandecimento do espírito
humano e para o fortalecimento da liberdade em sua dura batalha contra a tirania.
José Francisco, alferes menos por nomeação de patente e mais por assim o
chamarem, tornou-se, de uma noite para um dia, herói, e seu discurso às gaivotas,
peça caudalosamente homenageada, repetida e parodiada em versos e quadrinhas.
— Você fala muito bem... — disse ele.
— Obrigado, mas isso, além de ser praticamente uma paráfrase, já está
quase que grudado à minha cabeça... No segundo seguinte à morte daquele corpo
que habitou por não mais que dezoito anos, a almazinha do alferes, boiando no ar,
começou então a subir, mas não muito depressa nem muito alto; o suficiente para
que pudesse assistir ao que se passou: um enterro simples para o alferes José
Francisco Brandão Galvão e, em seguida, aos poucos, a construção, linha a linha,
dia a dia, de uma grande fama de herói, exemplo de valentia e eloqüência. A
almazinha passou a assistir de longe às homenagens que lhe faziam, ou que
faziam ao alferes, aos discursos emocionados em que lhe louvavam a coragem, a
sua coragem e a do alferes, e às declamações fervorosas de versos inspirados
justamente em seu famoso e nunca realmente ouvido discurso às gaivotas, aos
mares e às nuvens. A almazinha assistia a tudo isso emocionada, admirada e
orgulhosa de si própria, ou, por outra, do alferes cujo corpo por dezoito anos
habitou, habitando também as suas idéias.
1.1. IDÉIAS
— E quais são as suas idéias? As suas... — interrompeu-me o interlocutor.
— São muitas. As que deram origem a esta tese que ainda não existe
partiram de um mistério. O que normalmente se faz em seguida é transformar esse
mistério num problema, o que significa, de certo modo, expressá-lo. Uma vez
expresso, torna-se mais problemático que misterioso.
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
18
— O que você quer dizer com isso? Que, se não houvesse um mistério, ou
um problema, não haveria a necessidade de uma tese?
— Sim. Não se escreve uma tese se tudo corre às muitas maravilhas. Se
tudo vai bem, qual a razão de uma tese? Uma tese só existe porque algo não vai
bem, porque algo restou mal explicado, porque algo poderia estar mais bem
encaixado num algo maior, a que se poderia dar o nome de sistema, dentro do qual
a tese cumpriria a função, grosso modo, de uma errata.
— Não creio... — disse ele com delicadeza. E propôs-me iniciarmos uma
rodada de café. — Não, não. Acho que você está tenso com essa história de ter de
fazer uma tese e não está raciocinando direito — ele falou, já sem nenhuma
delicadeza. Eu comecei a gostar daquilo. Gostaria que ele me dissesse agora que
eu estava delirando. — Você está, desculpe a franqueza, delirando.
— Deixe-me continuar. A tese, contudo, não seria uma errata como outra
qualquer, mas uma errata desconhecedora de seu pleno poder reparador; uma
errata problemática, conflituosa, incerta acerca de si mesma, consciente do
problema que tem nas mãos e, no entanto, incapaz de assegurar o sucesso final, às
páginas finais da conclusão; uma errata em crise, uma errata errante.
— Desculpa lá, mas você está dando um sentido quase messiânico à sua
tese, ou a qualquer tese. Espera-se de você que escreva uma tese. Crie, portanto,
um mistério ou um problema, dê lá o nome que você quiser dar aos seus
estímulos... — disse ele, animando-se para a discussão e fazendo exatamente o
que eu gostaria que ele fizesse: colocar-me contra a parede. — Crie, como se diz
hoje, uma questão. Você vai escrever uma tese? Então invente um problema e
discuta esse problema. A sua tese, ao final, não vai reparar nada, não vai consertar
nada, não vai resolver nada. Como se sente agora?
— Mais leve...
— Então continue — e ele, fazendo um sinal com a mão e se sentando,
pediu-me palavras, muitas palavras.
1.2.
UM BOM PUNHADO DE PALAVRAS
— Vamos esquentar — comecei. — Pergunto-lhe: o que liga um autor à
sua obra, além da assinatura? — Ele em silêncio, e eu continuei: — Há autores
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
19
que produzem com regularidade e ao longo de muitos anos; autores que, ao cabo
de algum tempo, podem considerar-se responsáveis por uma “obra”.
— “Um escritor”, disse Jorge Amado a João Ubaldo Ribeiro, “tem de ter
uma ‘obra’, e não um ou dois livros”
1
— citou o meu interlocutor, estendendo-me
uma xícara de café novinho em folha, e eu quase pulei da cadeira.
— Obrigado. Curioso você falar em João Ubaldo Ribeiro... — interrompi-
o, e peguei a xícara. — Tudo isso tem a ver com João Ubaldo... Eu ainda não lhe
disse, mas minha tese é sobre João Ubaldo, a sua obra romanesca, e aquela
história da almazinha é a paráfrase do início do romance Viva o povo brasileiro.
2
— Coincidências... — disse ele, sem dar muita importância à coisa.
— Obra e autor — e eu continuei, tentando me reconcentrar —, no
entanto, mudam muito, transformando-se a tal ponto que não podemos falar em
obra como uma pilha de escritos que se vão somando uns aos outros, em
crescimento vertical sobre a mesa e os anos. Uma obra é tudo menos um ponto
pacífico. O que dá, então, unidade a uma obra?
O que pode haver de uniforme
numa obra composta de vários livros escritos ao longo de muitas décadas?
— Não sei... — e ele coçou a cabeça. — A manutenção de um estilo
inconfundível? A perseverança nas mesmas preocupações, para não dizer nas
mesmas obsessões?...
— Sim, características que podem, com isso que você disse, ser
reconhecidas à meia-luz, através da leitura de qualquer parágrafo pescado em
qualquer página. E fica a pergunta — continuei, porque eu ainda não estava
satisfeito —: num autor de regular e duradoura produção, se não há um estilo
formal ou temático muito explícito, característico, inconfundível e revelador a
1
Cremilda MEDINA, “No caminho das almas do recôncavo baiano”, Diário de Notícias, 14 dez.
1984. E decidi que as referências de imprensa serão apresentadas aqui apenas com as
informações essenciais (autor, título, veículo e data). Para mais detalhes, consultar bibliografia
final, item 8.2.2.: “Bibliografia citada de imprensa”, p. 496 a 515. E não ficarão sujeitas, ainda,
por serem muitas e de difícil memorização, à referência do tipo op. cit.
2
— Sobre esse início, aliás, disse João Ubaldo Ribeiro numa entrevista — e abro com a mão uma
nota de rodapé imaginária —: “Ao mesmo tempo que eu uso uma linguagem satírica, eu conto
aquilo com compaixão, com uma certa empatia, não só pela maneira de narrar, como pela
própria bobagem em si, porque a toda hora eu estou dizendo que o alferes não falou às gaivotas
coisa nenhuma. Ele não disse nada, mas isso virou uma lenda” (José Reinaldo C
ARVALHO,
“João Ubaldo indaga sobre a alma humana”, A Classe Operária, 12 a 25 jan. 1989
).
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
20
permear seus romances, há então o quê, a atravessá-los e agrupá-los? O quê, à
exceção da autoria reconhecida, permanece relativamente imutável?
— A noção de autoria já é, por si, uma graúda questão... — disse ele.
— O que dizer então da noção de obra? O que pode justificar e dar
coerência ao termo “obra”? Um problema.
— E no caso de seu autor, o Ubaldo?
— João Ubaldo Ribeiro escreveu nove romances ao longo de 34 anos, de
Setembro não tem sentido, o primeiro, de 1968, a Diário do farol, por enquanto
seu último livro, publicado em 2002.
3
Agora pegue-se um trecho aberto ao léu de
Sargento Getúlio e compare-se a outro tirado de qualquer página de Viva o povo
brasileiro. Interrompa-se a leitura dO sorriso do lagarto num ponto e confronte-se
o que se leu com algum trecho de Vila Real e em seguida com os caudalosos e
condimentados trechos dA casa dos Budas ditosos. Coloquem-se agora, lado a
lado, os romances Diário do farol e o burlesco O feitiço da ilha do Pavão.
Confronte-se tudo isso com Miséria e grandeza do amor de Benedita. O que há de
permanente nesse grupo de narrativas? Existe uma marca, um padrão, uma
obsessão ou um estilo “João Ubaldo Ribeiro”? Perguntou-lhe o jornalista
Bernardo Carvalho, da Folha de S. Paulo: “Que relação você vê entre esse livro e
3
— O livro Vencecavalo e o outro povo, por não se tratar de um romance, fica infelizmente
excluído desse grupo — esclareci, abrindo um parêntese. — Vencecavalo... é um livro de
contos, e cada conto recebe o nome de um personagem, todos eles filhos (!!) do... sargento
Getúlio: Vencecavalo Santos Bezerra, Tombatudo Santos Bezerra, Rombaquirica Santos
Bezerra, Sangrador Santos Bezerra e Abusado Santos Bezerra. “Eu me diverti muito fazendo o
Vencecavalo...; morria de dar risada”, disse João Ubaldo. “Não sei bem o que eu queria fazer,
queria gozar todo o mundo, inclusive eu mesmo, mas principalmente o governo e a burrice”
(“João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985
). O tipo de humor
fantástico e debochado que encharca as páginas de Vencecavalo... é semelhante ao romance O
púcaro búlgaro, escrito em 1964, do escritor mineiro Campos de Carvalho (1916-1998), sobre
o qual eu fiz uma dissertação de mestrado que depois publiquei — eu disse, e peguei das
estantes a dissertação e o livro. — Ambos caracterizam-se por um ataque frontal à seriedade e
à solenidade que normalmente se espera das esferas literárias intelectualizadas. É de se notar,
também, que O púcaro búlgaro pode ser lido como uma resposta de Campos de Carvalho, uma
resposta enviesada, à expectativa que se criou sobre o seu trabalho, principalmente depois de
seus dois livros anteriores: Vaca de nariz sutil e A chuva imóvel, romances densos,
melancólicos, típicos representantes de uma linhagem existencialista; romances, à sua maneira,
sérios. Vencecavalo... também pode ser uma resposta de João Ubaldo à solenidade que se
estabeleceu ao seu redor após o sucesso, restrito, frise-se, à crítica e aos meios literários..., de
Sargento Getúlio — e peguei outra matéria de jornal. — “Com Sargento Getúlio, (...) deu-se
um fenômeno estranho, que fez com que o autor sentisse até repulsa pelo livro; estabeleceu-se
(...) um endeusamento snob nos meios literários. Então, decidiu escrever O filho do Sargento
Getúlio (...). Mas o editor mudou outra vez o título — saiu Vencecavalo e o outro povo
(Cremilda M
EDINA, “No caminho das almas...”, Diário de Notícias, 14 dez. 1984).
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
21
os precedentes?”, referindo-se ao então recém lançado O feitiço da ilha do Pavão.
E disse-lhe João Ubaldo Ribeiro: “A única vinculação que eu realmente faço é o
fato de eu ter escrito todos eles”.
4
— Não seria absurdo se respondêssemos simplesmente, e assim
facilitássemos a guerra — disse ele —, que a marca, o padrão, a obsessão ou o
estilo constitui justamente a ausência de um padrão, uma obsessão ou um estilo
identificável e recorrente? Ou, por outra, seguindo-se a opinião do próprio
escritor, que a marca comum a todos os livros nada mais é que a marca da autoria?
— Não, não seria absurdo. Seria uma boa saída, e uma hábil resposta, mas
não a melhor... — provoquei-o. — Dispor-se a escrever uma tese acerca do grupo
de romances de um autor significa antes de tudo partir do pressuposto de que
acerca desse conjunto seja possível afirmar um padrão, uma identidade, um
problema que possa ser relacionado a cada um dos romances em particular e a
todos eles em conjunto.
— Isso me parece questionável... Mas continue.
— O próprio João Ubaldo Ribeiro, numa outra declaração em que se
detém um pouco mais sobre o assunto, dá uma pista, admitindo algo mais que o
próprio nome como elemento de constância: “Tenho interesses variegados sobre a
vida em geral, o que leva muitos a dizer que meus livros são completamente
diferentes entre si. Entretanto, (...) as preocupações básicas são as mesmas.
Religiosas, humanísticas (...), preocupações com (...) a injustiça, com a
discriminação”.
5
Sua obra romanesca, de todo modo — continuei —, é
tematicamente sortida, o que tem dado ensejo a múltiplas abordagens, com
variados resultados. Grande parte dos trabalhos acadêmicos acerca do autor está
baseada em recortes, como é o caso de dissertações e teses a explorar um único
romance de João Ubaldo Ribeiro, ou, estreitando-se o enfoque, um aspecto
específico dentro de um mesmo romance, ou ainda qualquer outra característica
de sua produção, incluídos os contos, as crônicas e as histórias para crianças.
6
4
“Ubaldo, finalmente, solta novo romance”, 22 nov. 1997.
5
Wilson MARTINS, “Crônica (picaresca) da vida brasileira”, Bravo!, out. 1997.
6
— Como é o caso — e fiz uma lista com o que eu tinha à mão — das dissertações de mestrado de
Luiza Nelma FILLUS, Sargento Getúlio, uma análise mítica (Depart. de Letras da Universidade
Católica do Paraná, Curitiba, 1983, sob a orientação de Vicente Ataíde); de Stella Costa de
M
ATTOS, Sargento Getúlio — uma história de aretê (Instituto de Letras e Artes, Pós-graduação
(cont.)
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
22
— Você corre o risco de cair num certo reducionismo ao tentar formatar
coerentemente uma obra tão variada...
— Mas eu preciso partir em busca disso: do fio comum, do problema, do
nó, do centro nervoso a enlaçar Setembro não tem sentido, de 1968; Sargento
Getúlio, de 1971; Vila Real, de 1979; Viva o povo brasileiro, de 1984; O sorriso
do lagarto, de 1989; O feitiço da ilha do Pavão, de 1997; A casa dos Budas
ditosos, de 1999; Miséria e grandeza do amor de Benedita, de 2000; e Diário do
farol, de 2002. Onde está, na cartografia dos romances de João Ubaldo Ribeiro, e
para onde vai esse centro nervoso? Qual a sua natureza, o seu comportamento e a
sua tarefa no emaranhado de sua ficção? Não, não me interrompa. Vou fazer agora
o rascunho de um mapa e, sobre ele, o facho de uma idéia. Você me animou — e
bebi o café que ele me estendia.
1.3. A IDÉIA DO FACHO
— Acompanhe-me: de Setembro não tem sentido, de 1968, a Diário do
farol, publicado 34 anos mais tarde, pode haver um caminho, linear no tempo e de
progressiva e nítida abertura; um caminho que parta do personagem ensimesmado
e avance em direção a uma nova condição. Esta nova condição — eu disse —
em Lingüística e Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
dez. 1985, sob a orientação de Regina Zilberman); de João Luís C. T. C
ECCANTINI, Vida e
paixão de Pandonar, o Cruel, de João Ubaldo Ribeiro: um estudo de produção e recepção
(área de concentração: Literaturas de Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras de
Assis — UNESP —, Assis, SP, 1993, sob a orientação de Carlos E. Fantinati); de Marília Clara
Tavares N
OGUEIRA, A função expressiva do coloquialismo na crônicas jornalísticas de João
Ubaldo Ribeiro: uma abordagem lingüística pluridimensional (Centro de Educação e
Humanidades, Instituto de Letras, Depart. de Língua Portuguesa da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, UERJ, out. 1998, sob a orientação de André Crim Valente); de Magda
Medeiros F
URTADO, A memória invencível: literatura e história em Viva o povo brasileiro
(mestrado em Literatura Brasileira, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1992); de João
Vianney Cavalcanti N
UTO, Grotesco e paródia em Viva o Povo Brasileiro (UNB —
Universidade de Brasília); e das teses de Eneida Leal CUNHA, Estampas do imaginário —
literatura, cultura, história e identidade (Depart. de Letras da Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, PUC-Rio, Rio de Janeiro, abr. 1993, sob a orientação de Affonso Romano
de Sant’Anna); de Regina V
ASCONCELOS, As representações da belgitude e da brasilidade nos
imaginários de Pierre Mertens e João Ubaldo Ribeiro (dirigida à área de Língua e Literatura
Francesa do Depart. de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999, sob a orientação de Maria Cecília Queiroz de
Moraes Pinto); e ainda dos seguintes trabalhos publicados: de Tieko Yamaguchi M
IYAZAKI,
Um tema em três tempos: João Ubaldo Ribeiro, João Guimarães Rosa, José Lins do Rego, São
Paulo, Fundação Editora da Universidade Estadual Paulista — UNESP, 1996; de Osmar
(cont.)
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
23
inclui os relacionamentos desse personagem com os grupos sociais que direta ou
indiretamente o envolvem, cada vez maiores e cada vez mais complexos, e com
novas experiências e concepções de mundo.
— Você vai traçar aqui uma linha de desenvolvimento?
— Sim, veja: o romance Setembro não tem sentido concentra-se nas
figuras de Tristão e Orlando, ocupados tão só com as particularidades de sua
situação insular. É este o primeiro ponto de nosso mapa. O narrador aqui alterna
entre a terceira e a primeira pessoa, que constitui o próprio Orlando, fechado em
seu quarto e em si mesmo e demonstrando angústia e falta de perspectiva. O facho
da narrativa começa lentamente a abrir-se para o mundo no romance seguinte,
Sargento Getúlio, de 1971. O narrador apresenta-se em primeira pessoa, o próprio
sargento, e por todo o livro o que faz é falar, não apenas de si, mas do que faz na
vida: ser sargento, ser um empregado de seu chefe e ser portador de uma missão,
uma missão socialmente importante: levar um preso tido por comunista de um
lugar do mundo para outro. Observamos aqui, neste segundo ponto do nosso
mapa, um narrador não apenas preocupado com o lugar que ocupa dentro de si
mesmo, mas também com aquilo que ele próprio espera de si em conformidade
com a sua situação perante “o chefe”. Trata-se de Getúlio diante de sua missão e
Getúlio diante de si mesmo. Não há à sua volta nenhum grupo social a que
pertença; há apenas ele, Getúlio, o desgarrado.
— O bárbaro, o trágico, o anti-herói... Você acredita que o recurso formal
à primeira pessoa narrativa é essencial à manutenção desse clima de fechamento?
— Sim, o que faz dele muito mais que um recurso formal... Deixe-me
continuar — pedi. — Oito anos mais tarde chega ao público o romance Vila Real,
“um conto militar”, segundo a epígrafe do autor. O personagem-protagonista,
Argemiro, torna-se ao longo da história um líder natural para o seu povo, um
homem pouco preocupado consigo mesmo e dolorosamente comprometido com
os valores e os problemas da sua comunidade. Toda a narrativa se mantém
encaixada na terceira pessoa, usando e abusando, no entanto, do discurso indireto
livre, para dar conta do universo subjetivo de Argemiro, contraposto às agruras
objetivas do povo de Argemiro, uma comunidade rural situada na região da
MOREIRA, Folhas venenosas do discurso: um diálogo entre Oswald de Andrade e João
Ubaldo, Salvador, Bahia, Universidade do Estado da Bahia — UNEB/Quarteto, 2002.
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
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Jurupema, ameaçada de todos os lados por outros povos inimigos e por uma
empresa estrangeira de mineração que se diz dona da terra. Não há aqui uma
perspectiva nacional; não há perspectiva outra senão a da comunidade. Não se fala
de Brasil; fala-se da região da Jurupema e do vale de nome Aratanha. O diâmetro
do facho narrativo não ultrapassa as cercanias de vila Real e de seus habitantes.
Nosso facho, no entanto, abriu-se um pouco mais. Já se pode ver que a área
iluminada pelas considerações do narrador ultrapassa em muito os interesses
particulares dos personagens-protagonistas, não mais fechados em seus quartos ou
preocupados apenas em cumprir uma ordem e se manter em paz consigo próprios.
— Mas Sargento Getúlio é um retrato do sertão de Sergipe e da Bahia e,
de certo modo, um retrato da política nordestina pelos idos de 1950, não?
— Não é um retrato; é um pano de fundo, e isso não me parece o
essencial. A narrativa e o leitor estão encarcerados na mente de Getúlio. Você
pode dizer, no máximo, que o livro também assunta a política nordestina do modo
como a via Getúlio, para quem a política “está mudando, (...) está ficando uma
política maricona”.
7
Mas não creio que a gente possa falar, aqui, de realismo e
nem de uma preocupação primordial de João Ubaldo de compor o retrato de uma
época e suas práticas... Com o romance Viva o povo brasileiro, de 1984, João
Ubaldo, a começar pelo título, que não fala de um homem, Getúlio, nem de uma
vila, a Real, mas sim de um povo, o brasileiro, dá mostras de pretender avançar e
ampliar sensivelmente o facho de interesses e o universo temático de seu narrador.
O grupo social de que se fala agora é outro, ou são vários: o povo brasileiro como
um todo e cada uma das suas partes constituintes: pretos e brancos, e dentro dos
brancos os portugueses, holandeses, alemães e ingleses, e dentro dos pretos os de
vários tipos e origens, e entre eles todos os pardos, mulatos, cafuzos e mamelucos,
e todos os índios e índias, incluídos os cruzamentos mais inventivos... E me
lembrei de uma palestra de Ubaldo em que ele dizia: “... o vocabulário popular
baiano ainda hoje inclui palavras para designar tipos raciais incomuns em outras
terras: cabo-verde, o negro de cabelo liso; sarará, o negro ou mulato de cabelos
7
Sargento Getúlio, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982, p. 56. A partir de agora — decidi —, as
referências aos romances de João Ubaldo Ribeiro permanecerão no corpo do texto e serão
compostas apenas do título e do número da página. Para mais detalhes, consultar bibliografia
final, item 8.1.: “De João Ubaldo Ribeiro”, item 8.1.1.: “Romances”.
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
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louros; gazo, o negro e mulato de olhos claros e assim por diante”.
8
E você veja
aqui esse léxico específico acerca de tipos de “negritude” sendo aplicado pelo
narrador de Viva o povo..., num momento em que ele está justamente em
focalização interna com um escravo negro de nome Budião, que tentava
classificar, e assim “conhecer”, um outro negro misterioso, de nome Júlio Dandão.
... Caladão, os olhos pregueados, a boca crispada, os dentes grandes estufados
(...), o riso difícil, talvez fosse negro jeje, negro mina dos brabos que não faz fé
em pessoa nenhuma (...). Podia ser achanti, quem sabe, podia ser até hauçá papa-
arroz, negro fon, negro bariba ou somba, dos confins benins do Daomé com o
Sudão... (Viva o povo brasileiro, p. 177)
— Observe — disse ele — que o pensamento desse Budião está a refletir
uma postura de preconceito racial típica dos personagens brancos do romance, que
inferem uma característica da personalidade do outro através de uma característica
física desse outro. A diferença é que o preconceito está aqui sendo exercido por
um negro em relação a outro negro...
— Sim. E João Ubaldo Ribeiro vai voltar a isso, aos casos clássicos de
negros que comercializam negros, no romance O feitiço da Ilha do Pavão...
9
Mas
eu vou falar disso mais tarde, senão me perco...
— O Alberto da Costa e Silva publicou um livro com muitas informações
históricas acerca de negros senhores de escravos... Os primeiros senhores de
escravos de que se tem notícia...
— Sim, o Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na
África.
10
Publicou-o em 2003, seis anos depois do romance de João Ubaldo
Ribeiro... De todo modo, foi boa a sua observação... — E retomei, positivamente
impressionado com o meu interlocutor: — Tudo isso está concentrado e
representado pela gente de um mesmo lugar, que é o seu universo por excelência:
o Recôncavo Baiano. Os rudimentos de uma idéia de pátria acabam por envolver
8
João Ubaldo RIBEIRO, palestra realizada na Alemanha, sem data.
9
— “... uma ilha que inventei no meio da Baía de Todos os Santos, que se existisse talvez
ocupasse uma área superior à própria baía. É uma ilha misteriosa, de difícil acesso e sobre a
qual ninguém fala (...). Fiz uma espécie de fantasia. Descrevo uma sociedade no Brasil do
século XVIII. Um Brasil completamente isolado do resto da colônia, embora partilhe da
herança ibérica que todos nós recebemos. É a história de uma ilha que se desenvolve
autonomamente. Não sei em que vai dar” (IstoÉ, 19 mar. 1997
).
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
26
todos os personagens-protagonistas e relativizar seus projetos particulares em
nome de uma causa maior, de âmbito nacional.
— Foi a partir de Viva o povo... que se começou a falar, acerca da obra de
Ubaldo, da necessidade cultural, espelhada na literatura, de se contornar com mais
nitidez o que poderia ser chamado, na falta de expressão melhor — e ele se tomou
de um ar grave —, a “questão da identidade nacional”, quatro palavras que, de
tanto andarem juntas, já se colaram umas às outras, sem haver quem as descole.
— Sim. Ouça essa conversa, onde se observa a tentativa, por parte de João
Ubaldo, de desmontar a chamada “questão da identidade nacional”, como você
disse, e des-solenizar a sua visão do Brasil. — E li:
— O Brasil é um país que vive uma crise crônica de identidade. Escrever
livros como Viva o povo brasileiro é uma maneira de exorcizar essa crise?
— Você já coloca uma premissa sobre a crise de identidade. Acontece que não
acho que o Brasil viva uma crise de identidade permanente. (...) Não escrevi
pensando na identidade nacional nem em coisa nenhuma. Eu escrevi,
simplesmente. E o que resultou? Uma outra coisa. (...) Não é uma tentativa de
entender o Brasil. (...) Eu poderia mentir a você (...) sobre o que resultou a partir
do que os outros escreveram e pensaram. Mas é só um romance.
11
— Vamos voltar a isso mais tarde, não? — quis saber o meu interlocutor.
— Sim. Passo ao romance seguinte: O sorriso do lagarto, de 1989,
inaugura um novo feitio no grupo de temas e estilos de João Ubaldo Ribeiro.
Mesmo passando-se em Itaparica, o livro não tem como preocupação central
contar a história da ilha ou de seu povo, nem explorar as possibilidades da
linguagem na descrição do falar local. O tema dO sorriso do lagarto significa uma
ampliação considerável do facho temático. O narrador ilumina seus personagens
com um assunto de responsabilidade internacional e alça-os à condição não mais
de representantes de um povo habitante do Recôncavo Baiano ou do Brasil, mas
de representantes de uma idéia de humanidade. Embora a narrativa mantenha
muitas das características da prosa de João Ubaldo Ribeiro, a loquacidade, a
exuberância vocabular e o estilo, que poderia ser aqui denominado de neo-
barroco, o foco do livro é antes o seu tema que a sua forma ou sua ambientação,
10
Rio de Janeiro, Nova Fronteira e Editora da UFRJ, 2003.
11
Geneton de MORAES NETO, “A odisséia do lobo da ilha”, Jornal do Brasil, 28 nov. 1987.
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
27
razão pela qual a história poderia passar-se, grosso modo, em qualquer lugar de
razoável urbanidade. O alvo dO sorriso do lagarto são a ciência, as conseqüência
sociais do mau uso da tecnologia e a suposta presença de uma idéia universalista
do mal nas condutas humanas.
— Já percebi — disse ele —, mas e agora? Você chegou, com O sorriso
do lagarto, na amplitude máxima do círculo social, o gênero humano. E agora?
— Bom, no romance seguinte, O feitiço da ilha do Pavão, de 1997, esse
facho narrativo, que começou com o indivíduo e chegou à humanidade, realiza
agora a sua abertura mais radical: através do tempo histórico, para afirmar uma
dilatação não apenas do seu ambiente ficcional, mas do raio de ação de uma
liberdade humana, agora sem precedentes. O facho dilata-se para dentro do tempo,
não como em Viva o povo..., que atravessa três séculos da história brasileira,
comendo-a pelas bordas e numa aparente, apenas aparente, falta de linearidade,
mas como a exploração radical de uma espécie de leque de possibilidades. Para
tanto, parte do seguinte ponto, banal e simples: a História está todo o tempo a ser
alterada em seu futuro pelos atos cometidos no presente. O feitiço..., no entanto,
não pára aí; utiliza-se da metáfora da viagem no tempo para dar conta da idéia de
que a História também pode ser alterada retrospectivamente.
— Um outro modo de se dizer que o passado pode ser reinventado, sim, a
depender do caminho interpretativo que se percorra?
— Sim — disse eu. — O facho abre-se então para o passado e o futuro, tal
qual um leque de possibilidades se abriria, e manipula, na vida dos personagens e
na vida do país, as suas, podemos dizer..., alternativas perdidas.
12
12
— E... — disse eu, abrindo uma notinha — a provável razão para chamar-se a ilha “do Pavão”
pode dever-se à própria imagem do pavão em efetivo pavoneamento, ou seja, erguido e com a
sua cauda cheia de olhos aberta em leque, infindáveis olhos vigilantes diante do leque aberto e
prenhe de acontecimentos e possibilidades de história. Remonta ao universo arcaico grego a
associação que se faz entre a cauda do Pavão e a idéia da onisciência, e especificamente às
peripécias da deusa Hera, a orgulhosa, briguenta e vingativa mulher de Zeus. Diz o mito que
Hera, ou Juno, enciumada do licencioso marido, encarcera a bela Io, deixando-a sob a guarda
infalível de Argo, o ser dos cem olhos, o que tudo vê. Zeus, no entanto, que não nasceu ontem
mas muito antes, encarregou o espertíssimo Hermes da tarefa de libertar Io daquela vigilância
aparentemente imbatível. Bateram-se, e morre Argo com uma pedrada. Hera, consternada —
continuei, animado —, rende-lhe a homenagem final, retirando-lhe um a um os cem olhos e
recolocando-os espalhados ao longo da cauda aberta de um pavão, que se torna a partir daí a
ave consagrada a Hera e às suas saudades de Argo. Dizer ilha do Pavão é dizer ilha da ave dos
cem olhos, a ave da onisciência e da clarividência, através da qual se vê tudo, até mesmo, e
principalmente, o futuro, ou seja, o passado.
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
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— Belo parêntese mitológico esse... E volto a perguntar: e agora? Pelo que
você expôs, o facho narrativo de Ubaldo se foi abrindo lentamente, de 1968 a
1997. Inicia-se no quarto fechado de Setembro não tem sentido. Ilumina, em
Sargento Getúlio, o personagem-protagonista envolvido numa missão
supostamente comunitária. Amplia-se em Vila Real para Argemiro e sua gente,
que se torna então objeto de consideração e, de certa forma, a personagem-
protagonista de seus próprios dramas. Alarga-se em Viva o povo brasileiro para
uma dimensão nacional, rascunhando uma imagem do Brasil e de seu específico
percurso de formação identitária. Chega à sua amplitude social máxima nO
sorriso do lagarto e seu grande drama: os destinos da grande comunidade humana
ameaçados pelo mau uso da ciência. Rompe ficcionalmente convenções de tempo
e espaço para discutir história e interpretação, alargando-se de forma radical nO
feitiço da ilha do Pavão, e pára. E agora? — insistiu ele. — Onde ficam os
romances Miséria e grandeza do amor de Benedita e A casa dos Budas ditosos?
— Eles não se encaixam na idéia do facho — respondi, um pouco
contrariado, é verdade. — Eles enveredam por um desvio em relação à linearidade
observada nesses seis livros. São romances que foram escritos em grande parte
devido ao fato de constituírem explícitas encomendas: A casa dos Budas ditosos,
da editora Objetiva, para a série “Plenos Pecados”, item “Luxúria”; e Miséria e
grandeza do amor de Benedita, da própria Nova Fronteira, em parceria com o site
Submarino, envolvidos ambos na criação do primeiro e-book brasileiro. Pretendo
tratar disso mais tarde...
— Certo — e ele suspirou. — Eu fico bastante aliviado com o fato de você
admitir isso, porque a sua idéia do facho é realmente uma leitura muito produtiva
tendo em conta os seis livros comentados agora, e muito pouco produtiva diante
dos demais romances, que não devem ser encaixados à força num esquema pré-
determinado... Você deve desenvolver uma outra reflexão para Miséria e
grandeza do amor de Benedita e A casa dos Budas ditosos... Ou não...
— Você falou em seis livros... São sete os objetos sob a mira da minha
idéia do facho. Você não vai me perguntar onde está, neste traçado, o romance
Diário do farol, publicado em 2002? Pois eu lhe digo: no ponto de partida, no
quarto fechado, onde se estreita o facho novamente para os limites do indivíduo
ensimesmado, não o mesmo de Setembro não tem sentido, Orlando, o que não tem
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
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controle sobre a própria vida e não se considera fonte fidedigna da narrativa. O
personagem-protagonista do Diário... é, dentro do texto, a autoridade máxima, e
do seu quarto, talvez o quarto de uma instituição psiquiátrica, ou do alto de seu
farol, Lúcifer, se dispõe a forjar a sua biografia, com paciência e detalhes.
— Hum... E acrescento isso: a sua idéia do facho é produtiva
principalmente quando se quer traçar uma espécie de resumo lógico da obra de
Ubaldo, um resumo dotado de direção e sentido..., mas, para se montar uma tese,
deve haver mais — e ele sorriu de modo esquisito. — No caso de Diário do farol,
para onde se abre desta vez o seu facho? Para dentro da memória individual?
1.4. A MEMÓRIA INDIVIDUAL
— Você começou a nossa conversa contando o último pedaço da curta
história de vida do alferes José Francisco Brandão Galvão, relatada logo às
primeiras páginas de Viva o povo brasileiro — disse ele. — Onde é que entra isso
na história da sua tese?
— Eu ia voltar a esse ponto agora... Nós vimos o quanto a almazinha que
habitou o corpo do alferes por quase dezoito anos se envolveu com as
homenagens póstumas que lhe eram dirigidas em razão de seu heroísmo tardio.
Vimos o quanto, orgulhosa do alferes, também acabou por se sentir orgulhosa de
si mesma, uma vez que ele não era nada mais que ela mesma, que por sua vez nele
encarnou, tendo sido ele pelos, deixe-me ver..., pelos seis mil dias que duraram
aqueles quase dezoito anos. A almazinha, como escreve o narrador, freqüentou
“os locais onde o alferes recebia homenagens” e vibrou satisfeita “quando
pormenores de sua fala às gaivotas eram lembrados ao povo pelos declamadores”.
A almazinha admirou-se “mais e mais de si mesma, ouviu tantos relatos de
prodígios obrados por homens tais como aquele que fora, que não pensava em
mais nada” (Viva o povo..., p. 20).
— Você estava citando trechos, não é? Trechos que inauguram e celebram,
em Viva o povo brasileiro, a condição ambígua e problemática dessa almazinha,
que é ela e é também um outro; uma almazinha que observa de longe o outro que
ela um dia foi e sente por esse outro grande orgulho, não deixando ela mesma de
orgulhar-se em igual medida de si própria. Isso é bonito.
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
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— Sim. E, como disse o escritor, seu livro...
— ... usa como fio narrativo a história de uma almazinha (...). Eu conto como
se formam as almazinhas no cosmos (...). ... apareceu por aqui por volta do ano
1400 e começou a encarnar em bichos... até que começou a encarnar em
brasileiros, sempre encarnando mal, em preta escrava, índia. Depois, a almazinha
(...) Encarnou numa indiazinha com dez anos de idade, que depois mataram, e
ela, a almazinha, saiu desabotinada. A almazinha não pode ver um ovo, um útero,
porque se estiver por perto ela entra. A história narra a existência de um poleiro
das alminhas, (...) onde elas ficam morrendo (risos) de frio e de medo. Ela fica ali
também, com medo de encarnar, mas tem que encarnar porque só consegue
aprender alguma coisa encarnando. Um dia ela passa por aqui, (...) e encarna na
barriga de uma tupinambá, que fica grávida de um preto. E aí saiu (risos) o
Caboclo Capiroba, que danou a comer holandês.
13
— E essa almazinha, então, é José Francisco Brandão Galvão — continuei
—; é a índia fêmea de sua provável estréia como alma encarnante, à época da
“chegada dos primeiros brancos”, estuprada “e morta por oito deles antes dos doze
anos” (Viva o povo..., p. 19); é também o segundo índio em que veio a encarnar, e
o terceiro e quarto e mais tantos de uma longa série de nativas encarnações; e não
é nenhum desses personagens, sendo essa almazinha apenas ela mesma, igual
apenas a si mesma, de algum modo única e sozinha.
— E o que mais? E para nós o que é essa almazinha? — provocou-me.
— Essa almazinha é também uma parte da resposta à pergunta que lhe fiz
no início de nossa conversa. Ser uma parte da resposta significa ser essa
almazinha encarnante uma representação ficcional, portanto interna à obra, de
uma outra coisa, esta, sim, constituinte e fundante do universo romanesco.
— A única coisa que eu imagino possa ser constituinte e fundante do
universo romanesco, para citar tão pomposas palavras, é o narrador — disse ele.
1.5. O NARRADOR SEM CABEÇA
— O professor Carlos Reis, da Universidade de Coimbra, em seu
conhecido estudo acerca do estatuto e das perspectivas do narrador na obra de Eça
de Queirós, diz, vou citar, que “a problemática inerente às condições de existência
13
“João Ubaldo: ‘Eu me achava um gênio e que era uma obrigação publicar os meus livros’”,
Jornal da Telebahia, jun. 1984
.
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e de execução da narrativa literária pode perfeitamente ser estudada num conjunto
de obras que (...) oferecem seguras garantias de riqueza e variedade de questões,
desprovidas, por agora, de respostas convincentes”.
14
— É o que eu lhe disse: nas obras de Ubaldo que oferecem seguras
garantias de riqueza e variedade de questões, para esta sua idéia do facho —
cortou ele —, não estão Miséria e grandeza... nem A casa dos Budas ditosos.
— A idéia do facho é uma maneira de organizar o percurso da amplitude
temática de João Ubaldo Ribeiro, de achar uma tendência, um resumo lógico,
como você definiu minha digressão, e esta tendência eu já achei, mesmo se
considerarmos esses dois desvios. Trata-se de uma maneira de olhar a obra; trata-
se de um mapa, e não do centro de minha tese.
— O centro de sua tese é o narrador — e ele me ofereceu mais café.
— Sim. Carlos Reis debruçou-se sobre o narrador de Eça de Queirós. Nós o
faremos com o narrador de João Ubaldo Ribeiro. Será o narrador — disse eu —, esse
narrador intrometido e profundamente moderno, que podemos chamar o narrador
sem cabeça, o fio comum, o problema, o nó, o centro nervoso que enlaça os nove
livros indicados, de Setembro não tem sentido a Diário do farol, e lhes dá um eixo.
Pode ser ele, e não a constância de um autor e a autoridade de sua assinatura, que dá
sentido e coerência à idéia de obra, reunindo em si um conjunto de estratégias de
narrar comuns a todos os livros. A mesma posição de proeminência ocupam os
andamentos do narrador na obra de Eça de Queirós, a tal ponto, cito, que “a evolução
que assinala a sua criação literária não se concretiza sem que se verifiquem, ao nível
da técnica narrativa, importantes reflexos”,
15
escreve Carlos Reis.
— Em Ubaldo, então, por mais dessemelhantes que possam ser seus
romances, por mais distintas que possam parecer suas nove vozes narrativas,
atuando em primeira ou terceira pessoa, incluídas todas as possíveis variantes para
o ponto de vista e através de sucessivos discursos em indireto livre, o seu narrador
é um só, na medida em que é um só o seu conjunto de estratégias narrativas?
— Sim, muito bem dito. Vou tentar me lembrar do modo como você
formulou essa pergunta. Vou, aliás, anotar... O texto ficou bom, e pretendo usá-lo
14
“Introdução” (p. 11-14), in Estatuto e perspectivas do narrador na ficção de Eça de Queirós,
Coimbra, Almedina, 1975, p. 13-14.
15
Id., p. 14.
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na tese. Posso? Obrigado. Deixe-me falar então desse centro nervoso que é o
narrador. Perguntei bem lá atrás onde está, na cartografia dos seus romances, e
para onde vai esse centro nervoso. O livro Viva o povo brasileiro, por se
apresentar como aquele em que nasce esse personagem-chave que é a almazinha,
será o romance a iluminar e contaminar, com esse original recurso, as análises dos
demais, anteriores e posteriores a 1984. O que vale dizer: a almazinha pode ser
uma representação ficcional desse narrador sem cabeça, que está presente nos
modos de narrar dos outros romances, sejam eles estruturados em primeira ou
terceira pessoa. A atravessar todos, a idéia de um narrador sem cabeça.
— Você também perguntou qual a natureza desse narrador...
— A mesma natureza da almazinha — e fiz um gesto com a mão —:
errática e ambígua quanto à sua identidade.
— E o seu comportamento? — perguntou o meu obstinado interlocutor.
— O comportamento de um narrador diante de dois problemas: deve agir
como um narrador, já que tem uma história para contar, e ao mesmo tempo não
consegue mover-se e falar senão como se move e fala aquele personagem cuja
cabeça está “vestindo”, ou “portando”, no momento da narração. Este é o seu
primeiro problema. O segundo é de igual gravidade: ele não conhece toda a
história que deveria contar; conhece-a por uns momentos, e depois a esquece.
Conhece-a integralmente apenas quando não está com a cabeça de nenhum
personagem. Quando “incorpora” o personagem, para usarmos o vocabulário do
espiritismo, que aqui até funciona bem..., esquece-a.
— E qual a sua tarefa no emaranhado de sua ficção?
— Isto parece uma sabatina...
— São perguntas que você mesmo me fez... — defendeu-se.
— Sua tarefa é aprender. Do mesmo modo como “a alma não aprende
nada enquanto alma, necessita da encarnação para aprender” (Viva o povo..., p.
16), o narrador sem cabeça não aprende nada enquanto instância onisciente: saber
toda a história é saber tudo sobre nada; é não se envolver com nenhum universo, é
não se comprometer sequer com uma única história de vida, é manter-se acima e
além. O ponto cego da onisciência narrativa pode ser representado ficcionalmente
pelo “Poleiro das Almas”: “lugar” de onde tudo se vê, mas onde não se aprende
nada, sítio de acumulação de nadas, “... nada por todos os lados, uma infinitude de
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
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nada inimaginável em toda a sua inextensão. Nada e mais nada e mais nada e mais
nada ali se vai aglomerando” (p. 18). E o narrador, quando abandona o poleiro,
esse ponto cego da onisciência, e “incorpora” um personagem, “... porque é
insuportável não poder aprender absolutamente nada” (p. 16), intromete-se;
quando se intromete, conta uma história que é também a sua história naquele
instante narrativo, ou instante de vida, como foi da almazinha, durante os dezoito
anos de sua encarnação, a vida do alferes José Francisco. Nosso narrador sem
cabeça constitui, ao mesmo tempo, o nosso nó e aquilo que nos escapa.
— Agora relacione a sua idéia do facho, aquele mapa traçado, com a
história das sucessivas “incorporações” desse narrador sem cabeça. — E, depois
de uma pequena pausa: — E tome mais café...
— Esta nossa conversa está sendo muito produtiva para mim. Obrigado.
Então ouça — e eu espremi a testa —: assim como a alma, que precisa encarnar
para aprender, o trabalho do narrador vai desenrolar-se ao longo de um
determinado percurso: o percurso dos romances, de Setembro não tem sentido a
Diário do farol, que constituem as extremidades de um caminho de experiências.
A gradual abertura em direção a universos mais amplos e complexos há de obrigar
o narrador a intrometer-se em mais vidas e em problemas cada vez menos
particulares, comprometendo-se, assim, cada vez mais, com um projeto. Debaixo
do facho, que é sempre outro e maior, já não são um ou dois, mas uma pequena
comunidade de personagens, novas “cabeças” para o narrador, novos problemas,
todos misturados em linguagem. Diz Carlos Reis que “em qualquer narrativa,
sempre o narrador manifestará, esporádica ou continuamente, voluntária ou
involuntariamente, os sinais de sua presença como sujeito enunciador na instância
produtiva do discurso”.
16
Pois bem: identificar, entender e encontrar um rumo
para esse narrador é o nosso objetivo.
— E o seu risco...
— Eu não acabei: eu disse há pouco que o Carlos Reis se debruçou sobre o
narrador de Eça de Queirós e que o mesmo farei eu com o narrador de João
Ubaldo Ribeiro... Isto não é assim tão esquemático. Minha análise acerca do
narrador em João Ubaldo poderá incluir mais um elemento, impensável na análise
16
“Subjetividade e narração” (p. 24-36), id., p. 25.
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que o professor Carlos Reis empreendeu sobre o Eça. Refiro-me ao próprio
escritor João Ubaldo Ribeiro, que será muitas vezes colocado diante e também ao
lado de seu narrador, numa espécie de nova biografia...
— Hum... — e ele fez uma careta.
— ... uma biografia pouco ortodoxa. Por quê? Porque não se pretenderá
linear, nem integral, nem factual, nem mesmo uma biografia pessoal...
— Será então o quê? Sobrou algo?
— Sim. Tentarei uma biografia de idéias, uma biografia conectada aos
labirintos da ficção.
— Hum... — disse ele de novo, com um ar preocupado. — Precisamos
conversar mais...
1.6. O PEQUENO EU
— Não, não, deixe-me seguir. Li recentemente dois textos importantes —
insisti, observando-o a preparar mais café —: um da professora Marília Rothier
Cardoso, chamado “Retorno à biografia”,
17
e a ligeira biografia de João Ubaldo
Ribeiro,
18
escrita por Wilson Coutinho para a série “Perfis do Rio”, da Editora
Relume-Dumará
19
, da qual me interessam dois aspectos, e nada mais.
— O que é exatamente uma “ligeira biografia”? — perguntou, com um ar
de mofa.
— A biografia em questão é dita ligeira dado o próprio perfil da série: um
relato pouco fiel às características geralmente encontradas numa biografia; um
relato organizado de modo não diacrônico e pouco comprometido com a intenção
de se alcançar qualquer totalidade acerca da figura de seus biografados. A escrita
corre informal e sortida na seleção de seus capítulos-tema. A peculiaridade da
série “Perfis do Rio”, no entanto, independentemente da ligeireza de seu
17
P. 112-140, in Heidrun Krieger OLINTO & Karl Erik SCHOLLHAMER (orgs.), Literatura e Mídia,
Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio, São Paulo, Loyola, 2002.
18
— Utilizarei, de forma complementar, uma entrevista do escritor para os Cadernos de Literatura
Brasileira, intitulada “Leblon, 4 de fevereiro de 1999: Entrevista” (p. 27-49), in VÁRIOS
AUTORES
, João Ubaldo Ribeiro, Cadernos de Literatura Brasileira, n
o
7, Instituto Moreira
Salles, mar. 1999
.
19
João Ubaldo Ribeiro: um estilo da sedução, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, Prefeitura
Municipal do Rio de Janeiro, Rioarte, 1998.
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
35
biografismo, consiste antes de tudo da descrição de variados aspectos da vida e da
obra de alguma personalidade que tenha com a cidade do Rio de Janeiro um
relacionamento íntimo. A série tem como objetos de estudo e curiosidade
justamente eles: os importantes porque famosos, os famosos porque importantes,
ilustres moradores da cidade.
— Essa ligeirice não me parece confiável... Você mencionou também um
texto da professora Marília Rothier Cardoso... Fale-me dele.
— Esse texto, “Retorno à biografia” — falei —, dá conta do percurso da
biografia como “a configuração narrativa do sujeito individual moderno”,
20
aquele
que tem algo a dizer à sua comunidade. Quem se dispõe a contar uma vida, ou que
a contem outros, é porque tem uma vida a ser contada, ou seja, uma obra, ou,
melhor ainda, uma vida de obras.
— Um momento... Contar uma vida, ou que a contem outros... Você está
falando aqui de duas coisas: biografar e autobiografar-se... Quando estiver a
escrever a tese, não deixe de fazer uma distinção... — ponderou o meu
interlocutor, ainda rabugento. — A banca...
— Calma... A distinção entre biografia e autobiografia, neste nosso caso,
não ganha a relevância que ganharia em outras situações orientadas para outros
estudos. Estou por dentro. Jürgen Schlaeger, em seu texto “Biography: Cult as
Culture”, apresenta o que nos parece a distinção primordial entre ambas:
Biography and autobiography share a number of fundamental conditions and
strategies but they also differ in some very interesting aspects. Both are about
individuals, both assert the priority of individualism. But whereas autobiography
is about the self, biography is about the other.
21
— E interessa a você, aqui, o que as assemelha, não é? Ambas alimentam-
se da mesma vontade, a vontade de que uma vida seja contada...
— Sim. Contá-la ou permitir que a contem são atitudes cujo fundo é o
mesmo: a consideração do sujeito como um valor por si — eu disse.
20
Op. cit., p. 113.
21
— E traduzo: “Biografia e autobiografia compartilham algumas condições e estratégias
fundamentais, mas ambas diferem em alguns interessantes aspectos. Ambas são sobre
indivíduos, ambas assentam sua prioridade no individualismo. No entanto, enquanto a
autobiografia se interessa pelo mesmo, a biografia interessa-se pelo outro” (p. 57-71, in The Art
of Literary Biography, edited by John Batchelor, Oxford, Clarendon Press, 1995, p. 59).
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
36
— Conheço um texto que trata disso: de Luiz Costa Lima, “Júbilos e
misérias do pequeno eu”.
22
— Sim, também conheço. E volto: o trabalho da biografia apresenta-se
então, diz Marília Rothier Cardoso, como a ratificação de “um (suposto) vínculo
de excelência entre autor e obra”.
23
O relato de uma vida entendido assim como o
de uma vida edificante teria então uma nobre função pedagógica, uma função que
o romance, “divulgado, em grande escala, para entretenimento do público de
massa, mas inútil como conselho prático ou elo comunitário”,
24
não toma para si.
O fortalecimento desse “(suposto) vínculo de excelência entre autor e obra”
corresponde ao resultado mais visível do trabalho empreendido pela narrativa
biográfica ou autobiográfica junto à comunidade. Ela é, nesse sentido,
legitimadora, observa Marília Rothier, em referência a Jean-François Lyotard.
25
— Eu lhe falei do texto do Costa Lima. Pois há nele uma boa frase: “A
autobiografia de um homem cujo ofício é pensar deve ser a história de seu
pensamento”, escreve R. G. Collingwood,
26
e esta frase exibe, sob outra forma —
disse ele —, o mesmo vínculo de excelência, dessa vez não suposto, mas tomado
como ponto de partida, certo e pacífico. Use-a como epígrafe. Eu deixo... — e riu
pela primeira vez depois de muito tempo.
— Sim, mas há, no entanto, um revés — disse eu, pensando se ele não iria
me oferecer mais café —: essa força legitimadora da biografia moderna, quando
levada ao paroxismo, aciona um mecanismo de descrédito que encontra campo
fértil em condições, digamos, para simplificar, pós-modernas. Sua missão
transforma-se em sua fraqueza. No momento em que a biografia elege como razão
de ser a sua dupla função: legitimar a obra do biografado e fortalecer o vínculo
autoral, ela perde sua força justamente nestas duas frentes que abre, “seja, em
perspectiva crítica, para atribuir valor estético à obra do biografado, seja, em
22
P. 243-309, in Sociedade e discurso ficcional, Rio de Janeiro, Guanabara, 1986.
23
“Retorno à biografia”, op. cit., p. 113.
24
Id., p. 112-113.
25
O pós-moderno, Rio de Janeiro, J. Olympio, 1986, citado por Marília Rothier CARDOSO,
“Retorno à biografia”, op. cit., p. 113.
26
Citado por Luiz COSTA LIMA, “Júbilos e misérias do pequeno eu”, op. cit., p. 243.
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
37
perspectiva teórica, para atestar a plenitude e confiabilidade do vínculo autoral”.
27
Ela perde força e é absorvida pela variedade que caracteriza a indústria cultural.
— E então acontecem lançamentos editoriais como esse: da série “Perfis
do Rio”... — e ele não conseguiu conter uma sonora gargalhada.
— Não é este o caso — e fiquei sério. — Uma biografia que não questione
as razões para estar aquele ser ali sendo biografado surge como uma biografia
meramente legitimante, a correspondência de uma expectativa, uma biografia, no
sentido alienante da palavra, massificada. Não é este o caso da série “Perfis do
Rio”. “Na condição ‘pós-moderna’ de descrédito das grandes narrativas”, escreve
Marília Rothier Cardoso, “a biografia perde seu lugar no plano da alta cultura,
para galgar o posto de best seller no circuito mercadológico”.
28
De nada nos
adiantará, no entanto — e olhei para ele —, apontar com o dedo um trabalho
biográfico e dizer: aqui está um exemplo de típica banalização dos “processos de
ascensão e queda de artistas e personalidades”.
29
— E por que não?
— Porque a inconsistência da distinção entre alta-cultura-intelectualizada-
e-acadêmica e cultura-de-massa-alienada exige que, no mínimo, não sejamos
apressados.
1.7. GUARDAR TUDO, JOGAR NADA FORA”: O MAL DE ARQUIVO
— Para o seu estudo de narratologia você tem aqui, sobre a mesa, farto
material — recomeçou o meu interlocutor. — Livros teóricos e os romances... E
quanto às suas incursões biográficas? Não me diga que você vai basear-se
exclusivamente na série “Perfis do Rio”? Isso me parece insuficiente... A banca...
— Você só fala da banca... A série “Perfis do Rio” é um ponto de partida,
meu caro. Faço-lhe uma pergunta: que tipo de relação você crê que deve manter o
pesquisador contemporâneo com os arquivos de escritores que porventura esteja
estudando? Que relação é essa?
27
Marília Rothier CARDOSO, “Retorno à biografia”, op. cit., p. 113, referindo-se a Jean-François
LYOTARD, O pós-moderno, op. cit.
28
Id., p. 113.
29
Id., ibid.
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
38
— Uma relação que seja, no mínimo, obsedante... E que pretenda nada
menos que o abarcamento de um mundo, o mundo do artista a ser estudado... — e
ele abriu os braços.
— Não; uma relação antes de tudo permeada pelo espírito randômico.
— Isto são modernidades...
— O espírito randômico ou aleatório convive com naturalidade com o
imprevisto e o faltoso, características muito mais encontráveis em arquivos
pessoais do que as que lhe são opostas: a ordem, o padrão, a completude. Mesmo
os mais organizados escritores, aqueles genuinamente “guardadores de coisas”,
sabiam, ou deveriam ter sabido, que não se pode guardar tudo, que sequer “tudo”
existe, e que a relação que mantemos com o passado somente acontece se
mediatizada pelo presente.
— Você conhece o valoroso conselho de Drummond a Pedro Nava:
“Guardar tudo, jogar nada fora”? — perguntou, animado, o meu interlocutor.
30
— Conheço, e era exatamente isso que eu dizer agora... Mas sabemos que
o tudo que se guarda não é a mesma coisa que o passado que se quer guardar,
porque o passado não se guarda, mas apenas uma imagem dele na superfície
fugidia do presente. Não se pode falar de passado, mas apenas do passado
presentificado. — E continuei: — O chamado “mal de arquivo”, uma expressão
de Jacques Derrida, constitui, grosso modo, a angústia de não se poder ter tudo ali
à mão, de não se poder simplesmente recuperar o passado, ou seja, integralizar o
passado no presente. “Ser possuído do ‘mal de arquivo’”, escreve Eneida Maria de
Souza, “é ter a paixão e a nostalgia da origem”.
31
Esse mal de arquivo, embora se
esteja dele bastante ciente, acaba por acometer, sim, a qualquer pesquisador diante
de uma caixa abarrotada de correspondência, tendo na mão apenas um bloco, um
lápis e, disponíveis, quinze minutos. O que são quinze minutos diante de trinta
anos de constância epistolar? O pesquisador poderia ter à sua disposição os
mesmos trinta anos para a sua pesquisa. O fantasma a ser despertado é o mesmo.
30
— Isto foi citado — disse ele — por Marília Rothier CARDOSO, “Reciclando o lixo literário: os
arquivos de escritores” (p. 68-75), in V
ÁRIOS AUTORES, Palavra nº 7, Revista do Depart. de
Letras, Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC-Rio, 2001, p.
70.
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
39
— Qual a sua experiência?
— Você me pergunta se o “mal de arquivo” já me acometeu? — e ri. —
Acomete o tempo todo. E respondo agora à sua outra pergunta: não vou me basear
exclusivamente na série “Perfis do Rio” para empreender um passeio biográfico
em torno de João Ubaldo. O meu grande arsenal biográfico são os romances de
João Ubaldo... E também uma boa parte do material de imprensa que recolhi
quando viajei à ilha de Itaparica e entrei na Biblioteca Juracy Magalhães Jr., onde
o escritor manteve um escritório por alguns anos e onde, se não me engano,
terminou Viva o povo brasileiro e também a versão para o inglês de Viva o povo...
e ainda o romance O sorriso do lagarto. A Biblioteca guardou tudo em grande
caixas. Isto sem falar no que consegui encontrar quando estive em Portugal, a
pesquisar a recepção do romance A casa dos Budas ditosos.
— E o que é que fizeste tu lá, ó, pá?
— Fiz uma pesquisa de imprensa na Biblioteca Nacional de Lisboa e nos
arquivos específicos de jornais portugueses e ainda uma entrevista de oito
perguntas a quinze pessoas acerca da suposta, ou não, censura ao referido
romance dos Budas ditosos. Acabei encontrando ainda algum material mais antigo
sobre o período em que João Ubaldo morou em Portugal, na década de oitenta,
quando esteve com Glauber Rocha, já às vésperas da morte; período em que o
escritor ficou a estudar e a escrever para jornais portugueses.
— Pois... — fez ele. — E, na Bahia, você “habitou” as grandes caixas da
Biblioteca Juracy Magalhães Jr. por quanto tempo?
— Muito tempo, e por todo o tempo fui acometido do “mal de arquivo”...
Fui a vítima quase fatal do “mal de arquivo”.
— Descreva-a, a essa vítima — e ele começou a se divertir com a minha
explanação.
— Um biógrafo que se dispõe a registrar tudo, que acredita no próprio
registro como um ato de captação integral de uma essência: a essência do
biografado, seus piores momentos, seus melhores momentos, seus modos à mesa,
seus ditos espirituosos e amargos e, principalmente, suas conversas mais íntimas e
31
“Males do arquivo” (p. 81-88), in Reinaldo MARQUES & Gilda Neves BITTENCOURT (orgs.),
Limiares críticos — Ensaios de literatura comparada, Belo Horizonte, Instituto de Letras
UFRGS, Autêntica, 1998, p. 81.
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
40
impublicáveis; um biógrafo que tem por alvo justamente a “abrangência que hoje
os leitores ávidos por biografias tomam por suposta”.
32
— Mas você não pretende, para a sua tese, fazer o papel desse biógrafo...
Ou, antes, você será, antes de tudo, o biógrafo do seu narrador sem cabeça, e não
do homem João Ubaldo Ribeiro. Ou, no máximo, o biógrafo da vida intelectual
pública do escritor João Ubaldo? O que você encontrou nas grande caixas?
— Reportagens, entrevistas, resenhas críticas, algumas bastante antigas...
— Ou seja, material de caráter mais que público... Isso me alivia... —
disse ele. — Não gosto de biografias e muito menos de autobiografias...
— Há, como exemplo para o seu desgosto, um caso típico: a famosa Life
of Johnson, de James Boswell, considerado um marco do início da moderna
biografia. Seu objetivo, segundo alguns, plenamente alcançado, foi capturar a
essência e toda a exuberância de uma pessoa, Johnson, que, nas mãos de Boswell,
acabou por tornar-se um personagem muito mais interessante do que de fato ele
era, sabendo-se, é claro, que a expressão “do que de fato ele era” não passa de
uma abstração, uma abstração só não experimentada por aqueles que de fato
conheceram Johnson, e mesmo assim... Tudo o mais que nos é legado surge como
construção. “Tudo o que se relaciona com esse grande homem é digno de
observação”, diz Boswell.
33
Esse foi o seu ponto de partida: registrar tudo. Seu
comportamento obsedante em relação a Johnson deixou-lhe uma reputação não
propriamente das mais desejáveis.
— Conte, conte — e ele pareceu por demais curioso para alguém que não
gosta dos mexericos biográficos.
— Você está por demais curioso para alguém que não gosta dos mexericos
biográficos... — e ofereci-lhe eu um café. — Conta-nos Borges numa deliciosa
aula ministrada no dia 7 de novembro de 1966
34
que Boswell era tido como
ridículo e pouco inteligente, e que essa impressão era facilmente depreendida das
páginas de sua Life of Johnson. Deve-se notar, no entanto, que a narração da quase
32
John MULLAN, “A biografia moderna foi inventada em 1791”, The Guardian, 14 jan. 2001,
publicada por O Estado de S. Paulo, em: <http://www.estado.com.br/editorias/
2001/01/14/cad428.html>, acesso em 16 fev. 2004
.
33
Id.
34
“Boswell — A arte da biografia”, Folha de S. Paulo, 24 dez. 2000 (série Borges Professor),
em: <http://www.uol.com.br/fsp/mais/fs2412200004.htm>, acesso em 6 out. 2005
.
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
41
maioria dos fatos em que Boswell surge como insensato, inconsistente, vaidoso e
pouco inteligente se deve ao próprio Boswell, como bem observa o professor
Borges. Estamos amarrados ao seu ponto de vista, do mesmo modo como estamos
amarrados ao ponto de vista de Dom Casmurro. Pode-se sair de tudo e de tudo
libertar-se, menos do ponto de vista quando é a partir do ponto de vista que vemos
e lemos. Vamos ver isso a fundo no caso de Sargento Getúlio...
— Imagino que Boswell seja não apenas o biógrafo de Johnson mas
também o autobiógrafo de uma parte de sua própria vida ao lado de Johnson, no
papel de biógrafo de Johnson... — observou ele.
— É verdade. E Borges conta-nos que Bernard Shaw tem outra visão do
relacionamento Boswell-Johnson. Segundo Shaw, Boswell não teria feito o papel
do insensato idiota justamente para que toda a grandeza de Johnson se visse
realçada por contraste. Não. Para Shaw, a escrita da biografia acabou por criar,
através das mãos de Boswell, um personagem chamado Johnson. Borges descreve
Johnson da seguinte forma: “Johnson era, além disso, uma pessoa extremamente
desastrada: vestia-se de qualquer maneira, seus modos eram intoleráveis, comia
com glutonaria. Quando comia, as veias de sua testa inchavam, emitia todo tipo de
grunhido, não respondia às perguntas que lhe faziam”,
35
entre outras descrições
minuciosas. Como Borges sabe disso?
— Mexericos criados por Boswell...
1.8.
A LITERATURA, BARTHES E O VATAPÁ
— Imagino que a biografia de João Ubaldo Ribeiro para a série “Perfis do
Rio” não padeça do “mal de arquivo” — disse o meu interlocutor —, embora deva
padecer de outros males...
— Melhor faríamos se disséssemos o biografema de João Ubaldo Ribeiro,
para referirmos o conceito de Roland Barthes, utilizado por ele para envolver sob
um único nome “certos traços biográficos que, na vida de um escritor, me
encantam”. Sua referência à fotografia, que “tem com a História a mesma relação
35
Id.
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
42
que o biografema com a biografia”,
36
ajuda-nos a captar o que poderia ser a
essência estilhaçada de um sujeito que não se totaliza. “... não se acredita mais”,
escreve Eneida Maria de Souza, “no estereótipo da totalidade e nem no relato de
vida como registro de fidelidade e auto-controle”.
37
— Aonde é que você pretende chegar? Ou, por outra, o que há nessa
biografia de Ubaldo por Wilson Coutinho que o instiga tanto?
— Digo-lhe — e lhe disse. — Coutinho parte de um personagem já criado,
um personagem chamado João Ubaldo Ribeiro, e o esfarela em múltiplos
registros: como um cidadão do Leblon, como um “filho” de Itaparica, como
exímio cozinheiro, como um homem de esquerda e como “irmão” de Glauber
Rocha, compadre de Jorge Amado, amigo de Tarso de Castro e Geraldinho
Carneiro, entre outros tantos nomes do cenário cultural brasileiro, esfarelando
igualmente a base sobre a qual assenta a sua biografia: a biografia do escritor? A
biografia do cidadão itaparicano-leblonense? A biografia contendo a análise
crítica de alguns de seus livros?
— A biografia de um menino que cresceu entre os livros e pressionado
pela imagem autoritária do pai?... — arriscou ele.
— Sim. Coutinho, por outro lado, acaba por ratificar todas as idéias fixas
acerca do escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, fortalecendo as características já
amplamente desenvolvidas pelo próprio escritor na criação do personagem de si
mesmo. Ao mesmo tempo em que ratifica, Coutinho registra as críticas do próprio
João Ubaldo Ribeiro à estereotipagem a que a imprensa o foi submetendo: o
baiano preguiçoso, o ilhéu excêntrico. — E continuei: — Ao mesmo tempo em
que registra que o escritor baiano não se encaixa no padrão da baianice, Coutinho
reafirma a existência do padrão e chega a expor as suas características. De todo
modo, ele tenta encaixar o escritor nalgum outro padrão, mesmo que o do baiano
atípico, quase um sergipano. Ouça:
36
Roland BARTHES, “Informar” (p. 49-51), in A câmara clara — Notas sobre a fotografia, Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 51.
37
“Notas sobre a crítica biográfica” (p. 43-51), in Maria Antonieta PEREIRA & Eliana Lourenço de
L. REIS (orgs.), Literatura e Estudos Culturais, Belo Horizonte, Faculdade de Letras de
UFMG, 2000, p. 45.
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
43
(i) ... João Ubaldo Ribeiro costuma se achar um baiano um pouco atípico,
marcado por um não-sei-quê de Sergipe (...). Diante do que se chama de baiano
tradicional com o seu jeitão, a malemolência, uma certa moleza, o romancista
parece até um estóico. Diz que não entende de macumba e outras disciplinas afins
da religião afro-brasileira, o que é raro para o cultivo da baianice, esse estado de
ser, quase impenetrável, para quem não é de lá. “João Ubaldo não suporta que
façam folclore dele”, afirma o seu editor, Sebastião Lacerda.
38
(ii) — Eu fui para lá com um mês de idade, fui batizado lá, criado como
sergipano e até hoje nunca consegui virar baiano totalmente.
39
Fiquei meio
esquizofrênico, meio baiano, meio sergipano.
40
— Eneida Maria de Souza diz que a crítica biográfica engloba a complexa
relação entre obra e autor, possibilitando, vou ler, “a interpretação da literatura
além de seus limites intrínsecos e exclusivos, por meio da construção de pontes
metafóricas entre o fato e a ficção”.
41
Wilson Coutinho movimenta-se nos dois
planos, colocando entre aspas as demarcações reservadas à alta literatura e à
cultura de massa, optando pela tentativa de construção de uma biografia
alternativa que lide com “o processo de formação identitária no contexto da
multiplicidade de padrões culturais”, como escreveu Marília Rothier Cardoso.
42
— Dê-me um exemplo dessa falta de fronteiras entre alta literatura e
cultura de massas... — pediu ele, quase cético.
— Um exemplo eloqüente da mútua contaminação entre as esferas está na
epígrafe escolhida por Coutinho para abrir o capítulo de nome “Cântico ao Arroz-
38
Wilson COUTINHO, “Infância 2: livros” (p. 33-40), in João Ubaldo Ribeiro: um estilo da
sedução, op. cit., p. 33, enfatizei com itálicos.
39
— A própria idéia de um “baiano total” não faz muito sentido para ele — disse eu, disposto a
abrir uma nota. E li o trecho de uma declaração: — “... nós somos um povo meio esquisito. (...)
... todos somos culturalmente mestiços. (...) Isso significa que os pretos da Bahia, violentados
como escravos, durante trezentos anos mantiveram a sua identidade cultural, preservaram a sua
língua e domaram o colonizador, obrigaram à sua crença, instilaram nele parte de sua própria
humanidade, e hoje o colonizador não se livra mais dessas coisas. (...) Os pretos baianos
tiveram de certa forma que esquecer isso de ser preto humilhado, escondido da polícia até para
cultuar seus orixás, seus santos, sua religião. E até hoje os baianos não se decidiram, vivem
nessa (...) ... mais que hesitação: esquizofrenia. É o que sobretudo confere à Bahia a sua
especificidade. A Bahia não é um estado simples. (...) ... não se pode esquecer que Canudos
aconteceu na Bahia. Eu acho que a Bahia é o coração esquizofrênico do Nordeste brasileiro.
Está no meio do caminho: para baixo, já começa a ser Sul...” (Fernando Assis P
ACHECO, “João
Ubaldo Ribeiro: histórias de riso, lágrimas e fantasia”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias,
Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983
).
40
“João Ubaldo Ribeiro: tão nordestino, que só escreve em nordestês”, Diário do Nordeste, 21
jul. 1982.
41
“Notas sobre a crítica biográfica”, op. cit., p. 43.
42
“Retorno à biografia”, op. cit., p. 117.
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44
de-hauçá”, dedicado à culinária, na página 47. Vemos ali uma epígrafe em total
desacordo com o seu conteúdo. — E, diante da cara de bobo de meu interlocutor,
perguntei: — Ora, o que se espera de uma epígrafe?
— Tudo menos o ordinário, tudo menos o prosaico, tudo, enfim, que
justifique a sua condição de figurar como epígrafe. Espera-se tamm de uma
epígrafe uma idéia que seja única, que guarde uma singularidade. Uma epígrafe é
uma sistematização, a posteriori, de uma frase que alguém disse uma única vez, e
que provavelmente ninguém mais dirá, senão como uma citação.
— Muito bem — eu disse, um pouco surpreendido. — E a epígrafe está lá
no livro de Coutinho em toda a sua forma típica, alinhada à esquerda, com a
marca sagrada da autoria em baixo, em itálico. Vamos a ela. Ouça isso: “Minha
mulher diz que a minha comida é mais sergipana. Vatapá eu não gosto de fazer
porque dá muito trabalho, só ficar mexendo, aquela merda, aquela aporrinhação
toda”.
43
E o que vemos? Uma frase prosaica e nada memorável. — E prossegui:
— Quando mistura capítulos dedicados a elucubrações futebolísticas a outros
abundantemente dedicados à culinária, intercalando-os com capítulos estritamente
dedicados à análise crítica das obras, como é o caso da parte reservada a uma
leitura filosófica acerca de Sargento Getúlio, Wilson Coutinho não está fazendo
nada mais do que optando pelo estabelecimento de uma continuidade entre vida e
obra, uma continuidade não ortodoxa, é verdade... Qual o lugar do cidadão João
Ubaldo Ribeiro, nascido em 23 de janeiro de 1941, na ilha de Itaparica, filho de
Manoel Ribeiro e Maria Felipa Osório Pimentel, na análise crítica de um romance
chamado Sargento Getúlio, além daquele natural lugar da autoria?
— Creio que não há outro lugar para ele...
— Se seguirmos a enumeração de Eneida Maria de Souza das tendências
da crítica biográfica atual — continuei, fingindo que não ouvi —, veremos o que
Coutinho faz e o que não faz. O que não faz: ele não explicita e nem questiona o
processo de construção canônica do escritor João Ubaldo Ribeiro; o que faz:
reconstitui seu ambiente literário e sua vida intelectual, mas somente através de
fotogramas dispersos do passado, estruturando assim a biografia como biografema
e trabalhando com aspectos que, reunidos, aparentemente não formam qualquer
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1 - INTRODUÇÃO: MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
45
totalidade, mas um mosaico de suplementos; como o puzzle de uma paisagem
incompleta, e aqui Eneida cita um belo trecho de Pedro Nava; o puzzle de uma
paisagem em que se percebem “buracos nos céus, hiatos nas águas, sombras nos
sorrisos, furos nas silhuetas interrompidas e nos peitos que se abrem no vácuo —
como vitrais fraturados”.
44
— E cada reportagem que você tem, cada entrevista, cada aspecto público
da vida intelectual de Ubaldo pode ser considerado um pedaço desse puzzle, a
formar, ou melhor, perdão..., a quase formar, a jamais formar de modo integral, o
biografema que vai ajudá-lo a compreender melhor o narrador sem cabeça que
vive em seus romances?... — disse ele, com certa pompa, é verdade, porém já
bem mais simpático à minha idéia.
— Sim, sim, acho que sim. Estamos pensando juntos... Ouça: “A figura do
escritor substituiu a do autor”, escreve Eneida Maria de Souza. O autor só é autor
no exato momento em que está sentado escrevendo, ao passo que o escritor está
metido numa “região de sombra que se instala nos intervalos e interstícios da vida
e da obra”.
45
Se o homem está para a vida, assim como o autor está para obra, o
escritor está para ambas. Gide comendo delicadamente uma maça e lendo um
livro em Paris; João Ubaldo Ribeiro tomando um uísque, ou um guaraná, e
falando alto num bar do Leblon ou de Itaparica, sem camisas, de chinelos e
bermudas. Coutinho em nenhum momento esconde que seu trabalho tem por
objeto um escritor em pleno processo de canonização. Há, no entanto, a vida...
— Precisamos conversar mais... — disse ele, e me ofereceu afinal um café.
* * *
43
“Culinária — Cântico ao arroz-de-hauçá” (p. 47-52), in João Ubaldo Ribeiro: um estilo da
sedução, op. cit., p. 47.
44
“Males do arquivo”, op. cit., p. 82, citando Pedro Nava, Baú de ossos, Memórias 1, Rio de
Janeiro, José Olympio, 1974, p. 41.
45
“Notas sobre a crítica biográfica”, op. cit., p. 47.
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2
________________________________
A INFÂNCIA BARROCA E
A LINHA RETA DE GETÚLIO
A CABEÇA DO NARRADOR SEM MUNDO
A autobiografia de um homem cujo
ofício é pensar deve ser a história de
seu pensamento.
R. G. Collingwood
46
A verdade fica na infância.
João Ubaldo Ribeiro
47
— Aqui estão os romances de João Ubaldo Ribeiro — eu disse, olhando para
a grande mesa à nossa frente. — O primeiro a ser escrito foi Setembro não tem
sentido, mas prefiro começar pelo início, ou seja, pelo segundo — e sorri, diante do
olhar confuso de meu interlocutor. — Quero dizer que gostaria de seguir uma trilha
diferente: não a trilha literária, mas a biográfica. Sargento Getúlio é um romance que
remonta muito mais à sua infância do que Setembro... Eu começo pela infância. E tem
mais: Sargento Getúlio constitui o início da consagração de João Ubaldo Ribeiro, o
livro que confirmou as promessas que haviam sido feitas quando do lançamento de
Setembro... Foi um livro importante, formalmente diverso de tudo o que havia à volta,
corajosamente traduzido pelo próprio autor para o inglês
48
e bastante festejado nos
Estados Unidos.
49
Ouça o que escreveu, lá em 1971, Jorge Amado:
46
— Citado pelo meu interlocutor, citando Luiz COSTA LIMA, “Júbilos e misérias do pequeno eu”,
op. cit., p. 243, que por sua vez cita R. G. Collingwood, An autobiography, Claredon Press,
Oxford, 1982.
47
“Tradição vascaína” (p. 245-250), in Sempre aos domingos, Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1988, p. 250.
48
— Você verá — eu disse ao meu interlocutor —, lá na minha Bibliografia de referência, um
comentário do próprio Ubaldo acerca da tradução de Sargento Getúlio; uma tradução tão
elogiada quanto criticada. Veja isto: “The translation, done by the author, is excellent although
at times far too literal. The vitality of the Brazilian idiom is unfortunatly not sufficiently
captured in the English version” (Luis L
ARIOS, “Sergeant Getúlio, by João Ubaldo Ribeiro”,
World Literature Today, 1979). E traduzo: “A tradução, feita pelo autor, é excelente, embora
(cont.)
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2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO
47
... esse mesmo João Ubaldo Ribeiro estreou em livro com um romance de
geração inquieta, (...) romance revelador de reais qualidades de ficcionista e de
um talento pouco comum. Mas — valha-nos Deus! — aquele primeiro livro,
comparado a esse Sargento Getúlio, passa a caderno de aprendiz de romancista.
Agora temos à nossa frente um romance que exige os grandes adjetivos: um
senhor romance. (...) Essa pequena viagem do sargento Getúlio com seu
prisioneiro é uma das mais belas e poderosas sagas de nosso romance.
50
— Tenho um amigo escritor que diz que o difícil não é escrever o primeiro
livro. O primeiro livro é sempre uma festa. O segundo, este sim — disse ele —, é
a missão. E para ele o primeiro livro é na verdade o livro de número zero. O
segundo é que funciona na verdade como o primeiro.
— João Ubaldo Ribeiro também passou por essa angústia do primeiro livro.
Para ele, o primeiro grande mérito de Sargento Getúlio foi ter, ao início, a nobre
função de motivá-lo a perseverar nesse que seria o seu segundo livro. Ouça — e li.
— ... O Sargento... começou porque eu queria saber se era romancista mesmo.
Eu tinha ficado muito impressionado quando fui convidado por Nelson de Araújo
para publicar em livro um conto que tinha saído num suplemento e ele disse para
mim: “Até agora só li isso de você, Ubaldo, mas você não é galinha de um ovo
só, é?”. E eu, mais do que depressa: “Não, claro que não. Estou escrevendo umas
coisas novas aí”; ele acreditou e me incluiu no livro Panorama do conto baiano
[1959]. (...) Quando publiquei Setembro não tem sentido, pensei: “E agora? Será
que eu sou romancista de um romance só?”.
51
— Mas você sabe dos perigos de querer correlacionar o universo do
romance Sargento Getúlio com a infância do escritor João Ubaldo Ribeiro... —
às vezes por demais literal. A vitalidade do idioma brasileiro, infelizmente, não é percebida o
suficiente na versão em inglês”.
49
— A tiragem inicial, segundo Irineu GARCIA, foi de 70 mil exemplares — eu disse, fazendo um
parêntese (“João Ubaldo Ribeiro: aboio alucinante”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, 21
jun. a 4 jul. 1983). — Ouça ainda — e permaneci no parêntese — o que escreveu um jornalista
americano, comparando-o a Shakespeare...: “Novels that explode beyond natural boundaries
are rare, for such an explosion means they transcend the usual bonds of culture, class and
attitude, and speak to universal values in the human race. Sergeant Getúlio is such a novel (...).
(...) All this is told in only 146 pages, in prose that rivals Shakespeare in power, poetry and
emotion” (Otto J. S
COTT, “Rufian speaks his mind”, The San Diego Union Books, California,
19 mar. 1978
). E agora traduzo: “Romances que explodem fronteiras naturais são raros, e
graças a tais explosões eles transcendem os usuais vínculos entre cultura, classe e atitude e
falam para valores universais da espécie humana. Sargento Getúlio é este tipo de romance (…).
(…) Tudo isso é contado em apenas 146 páginas, numa prosa que rivaliza com Shakespeare em
força, poesia e emoção”.
50
“Romancista maior”, Letras e Artes, Portugal, 11 e 12 dez. 1971.
51
João Ubaldo RIBEIRO, “Leblon, 4 de fevereiro de 1999”, op. cit., p. 36.
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2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO
48
disse ele, retomando o que havia falado antes e, todo franzido, fazendo ares de
quem iria começar uma aula. — São os perigos do recurso fácil ao biografismo
como válvula de explicação do universo romanesco; são os perigos de se
escorregar no reducionismo e no instrumentalismo das análises projetivas acerca
de um texto: preocupadas em restabelecer o fio de comunicação entre autor e obra
ou meio social e obra. Quando você me disse, no início de nossa conversa, que
pretendia realizar uma operação de aproximação entre o universo da ficção
propriamente dito e o biográfico, eu não falei nada, ou falei pouco, porque ainda
não tínhamos ainda, se é que já temos..., essa, digamos..., intimidade intelectual,
mas agora digo, e digo mais — continuou, retirando um livro de nossa infinita
biblioteca. — Todorov, em seu texto “Como ler?”, fala dos vários tipos de escrita
acerca de textos literários. Uma delas, ouça, é a projeção, que se define por uma...
... concepção do texto literário como transposição feita a partir de uma série
original. O autor contribui para uma primeira passagem do original à obra,
compete agora ao crítico fazer-nos percorrer o caminho inverso, fechar o anel,
voltando à origem. (...) Se se pensa que é a vida do autor, obter-se-á uma projeção
biográfica ou psicanalítica (...). Se se postula que a origem é a realidade social
contemporânea ao aparecimento do livro, ou dos acontecimentos representados,
encontrar-se-á a crítica (a projeção) sociológica.
52
— Sim, sim. O recurso ao biografismo, ou a uma análise projetiva, será
fácil ou difícil, acertado ou não, perigoso ou não, explicativista ou não, tudo
dependendo da natureza biográfica do escritor e do universo do romance em
questão. O nosso universo agora é o do personagem sargento Getúlio, e é também
o do menino João Ubaldo Ribeiro. Estão os dois em Sergipe. A época? Anos
quarenta e início dos anos cinqüenta. Vamos tomar um café? — e me levantei.
2.1. SARGENTO GETÚLIO E CIA.
— O trabalho de Wilson Coutinho acerca de João Ubaldo Ribeiro, ponto de
partida desta minha reflexão — continuei —, é segmentado por capítulos que
abordam temas caros ao biografado, como culinária, futebol e política, e capítulos
de assunto mais específico, como as análises de romances e os depoimentos de
52
P. 249-261, in Poética da prosa, Lisboa, Edições 70, 1979, p. 249-250.
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2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO
49
amigos. Há também páginas onde são compilados trechos de João Ubaldo cotejados
com trechos de outros escritores brasileiros e capítulos retrospectivos, cujo centro é
a infância do escritor. Interessam-me aqui apenas os dois últimos aspectos: as
páginas reservadas aos trechos compilados, um modo original de se radiografar a
obra, e os dois capítulos relacionados à infância do escritor, um modo convencional
de se falar da vida: partindo-se do início. A presença dos tais trechos compilados foi
a maneira encontrada pelo biógrafo para realizar comparações; comparações através
das quais João Ubaldo Ribeiro e sua obra são inseridos num jogo de forças entre
escritores, estilos e temas de nossa história literária.
— Quais são elas? Isso me interessa mais que as partes biográficas...
— Você vai perceber, meu caro interlocutor, que, ao final, estaremos
tratando dos mesmos cruzamentos... São seis os momentos comparativos. O
primeiro trará uma fala de Antônio Conselheiro, em trecho dOs sertões; um
diálogo envolvendo o personagem de Corisco num momento do filme de Glauber
Rocha, Deus e o Diabo na terra do sol; e por fim a fala derradeira do sargento
Getúlio. Nos três casos, o que temos são personagens arquetípicos de nossa
cultura literária de ambiente sertanejo: a visão literária de Euclides da Cunha de
um personagem histórico como Antônio Conselheiro, a de Glauber Rocha de
outro anti-herói do sertão e a criação de João Ubaldo de outra trágica figura,
Getúlio Santos Bezerra, encaixada a partir dessa escolha numa linhagem de...
— De grandes machos de nossa terra... — e ele se animou. — E não
ficamos apenas no Nordeste brasileiro, não; vamos ao Oeste americano. Poderia
haver aqui, se o livro se propusesse a isso, uma fala de John Wayne e...
— Curiosa a sua nota. Vou tratá-la como uma nota: há algumas críticas
escritas nos Estados Unidos que observaram tratar-se de um universo comum,
presente tanto no Nordeste brasileiro quanto no oeste americano. Vou fazer uma
nota de rodapé com alguns trechos acerca disso.
53
— E retomei: — Coutinho, ao
53
— Leia estes dois trechos: (i) “Sargeant Getúlio is a Brazilian novel that American readers
should have no trouble understanding. True, the locale may at first time seem remote, and the
characters exotically named, but as the action unfolds, everything becomes reassuringly
familiar. Americans are, after all, raised from childhood on the myths and heroes of the Wild
West, and João Ubaldo Ribeiro’s deftly constructed ‘tale of virtue’ reads like a Western — and
a brilliant though frightfully gory one at that” (Larry R
OHTER, “A tale that reads like a western
and entertains like a classic comedy”, The Washington Post, Washington D.C., 9 mar. 1978
);
e este: (ii) “Americans will recognize the frontier qualities of Getúlio, the tall-tale telling and
the macho virtues of rugged individualism and self-sustaining force” (Sam C
OALE, “Story of a
hired Brazilian gunman”, Providence Sunday Journal, San Gabriel, 26 mar. 1978
). E traduzo:
(cont.)
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50
encaixar Getúlio, encaixa também João Ubaldo Ribeiro no grupo dos escritores
que tematizam a terra hostil e todos os seus filhos, a cisão irreversível entre a
cidade e o sertão e as diversas formas em que se apresenta a religiosidade do povo
brasileiro frente à adversidade social. A escolha dos trechos também é eloqüente
de modo mais específico ainda. Temos três momentos decisivos: os heróis, cada
um à sua maneira, acuados diante do poder estabelecido. Conselheiro diante da
mudança que experimentará aquela região que escolheu para a sua pequena
sociedade, “Então o certão [sic] virará praia e a praia virará certão...”;
54
Corisco
negando-se a se entregar à autoridade; e Getúlio segundos antes de ser alvejado
pelas forças do governo, hostis agora a ele e não mais ao preso que tinha de
conduzir quando a sua situação e a situação política eram outras.
— Toda a tragicidade de Getúlio reside justamente em sua incapacidade
para adaptar-se a uma nova ordem... — arriscou o meu interlocutor.
— Exatamente. E você veja que a pequena biografia de João Ubaldo
Ribeiro se abre então com uma reflexão literária. É a partir da obra que se começa
a falar da vida do escritor baiano.
— E as outras cinco comparações?
— Revelam-se igualmente significativas como indicadores de uma
interpretação de Coutinho quanto ao lugar ocupado pelo escritor em nossa história
literária. Ubaldo é colocado em confronto com José de Alencar no quesito
referente à idealização do personagem do índio em nossos enredos: o trecho de
Alencar produzindo a clássica descrição de Iracema e um trecho do romance O
mistério da Ilha do Pavão, em que um dos personagens, o índio Balduíno, não se
comporta como índio e nem deseja comportar-se.
55
Veja sobre isso o que escreveu
o Wilson Martins, citando o discurso de Jorge Amado na ABL — e li.
(i)Sargento Getúlio é um romance brasileiro que os leitores americanos não terão problemas
para entender. É verdade que a localidade pode à primeira vista parecer remota e os
personagens exoticamente nomeados, contudo, mal a ação se desdobra, tudo se torna
tranqüilamente familiar. Os americanos são, afinal, criados desde a infância nos mitos e nos
heróis do Oeste selvagem, e a habilmente construída ‘história de aretê’ de João Ubaldo Ribeiro
pode ser lida como um faroeste — e brilhante, embora assustadoramente ensanguentado”; e (ii)
“Os americanos vão reconhecer as qualidades limítrofes de Getúlio, o narrador intenso e as
virtudes do macho, do áspero individualismo e da força independente”.
54
Citados por Wilson COUTINHO, “Estilos”, in João Ubaldo Ribeiro: um estilo da sedução, op.
cit., p. 7.
55
Id., p. 23.
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51
... ambos [João Ubaldo Ribeiro e Jorge Amado] pertencem à mesma família
espiritual que tem em José de Alencar o seu grande antepassado. É preciso reler, a
esse propósito, as belas páginas em que, tomando posse na Academia Brasileira
de Letras, Jorge Amado identificava em José de Alencar e Machado de Assis as
duas matrizes originárias do romance brasileiro (...), tudo isso estabelecendo
perspectivas e tradições que seria errôneo ignorar e cujo sentido o acadêmico de
1961 pôs em evidência numa das visões críticas mais argutas jamais
propostas sobre a sua própria obra, em primeiro lugar, e, derivadamente,
sobre a presença da “matéria brasileira” em nossa ficção. São os dois
caminhos de nosso romance, dizia ele, “nascendo um de Alencar, nascendo outro
de Machado, indo um na direção do romance popular e social, com uma
problemática ligada ao país, aos seus problemas, às causas do povo, marchando o
outro para o romance dito psicológico, com uma problemática ligada à vida
interior, aos sentimentos e problemas individuais, à angústia e à solidão do
homem, sem, no entanto, perder seu caráter brasileiro”.
56
— Em outra comparação — retomei —, a fascinação de dois personagens
pela Inglaterra é mostrada de duas maneiras bem distintas: a história de
aprendizados do jovem Irineu, futuro Barão de Mauá, no livro de Jorge Caldeira,
57
a beber de fontes inglesas relacionadas à administração dos negócios, e a
desgostosa figura de Amleto Ferreira, personagem de Viva o povo brasileiro, a
elogiar o espírito, a culinária e a vida dos ingleses.
— Onde está a diferença, se os personagens são ambos colonizados?
— A diferença é de ordem narratológica, e é o tom do narrador que dá as
cartas. A impressão de estar sendo conduzido por uma narrativa acrítica quanto
aos efeitos danosos da colonização reside justamente em seu tom clássico, neutro
e objetivo; o segundo narrador, feito inteiro em ironias e sarcasmos, incorpora a
crítica e a sublevação. Coutinho também ladeia João Ubaldo Ribeiro e José
Américo de Almeida.
58
Trechos dA bagaceira, de 1928, e dO feitiço da ilha do
Pavão, de 1997, tratam do mesmo tema: não apenas da escravidão, mas das
relações que mantinham os negros entre si, notadamente os feitores, também eles
negros, e “seus” escravos, a praticarem todos o preconceito dentro do próprio
preconceito, a escravidão dentro da escravidão, onde se vêem negros açoitando
negros e, assim, reproduzindo o esquema da dominação entre pares.
56
“A matéria brasileira (I)”, Jornal do Brasil, 4 mai. 1985, realcei.
57
Mauá — empresário do Império, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, citado por Wilson
COUTINHO, “Estilos”, op. cit., p. 81.
58
Wilson COUTINHO, “Estilos”, op. cit., p. 102-103.
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52
— Este é um dos aspectos abordados no livro Um rio chamado Atlântico,
de Alberto da Costa e Silva — disse ele, que já me tinha falado do livro e agora
me citava finalmente uns trechos.
(i) Para as estruturas de poder africanas, a venda de escravos era essencial à
obtenção de armas de fogo, de munição e de uma vasta gama de objetos que
davam status e prestígio aos seus possuidores. O sistema de troca de seres
humanos (geralmente prisioneiros de guerra e presos comuns ou políticos) por
armas de fogo e outros bens consolidara-se ao longo dos séculos (...), e não podia
ser facilmente substituído pelo comércio normal. Há quem pense que o interesse
de alguns africanos na manutenção do tráfico era ainda maior do que o dos
armadores dos barcos negreiros ou o dos senhores de engenhos e de plantações
no continente americano.
59
(ii) O sentimento nacionalista expande-se e se adensa na África do século
XIX. (...) Afirma-se em novos reinos, que tomaram forma e força sob o estímulo
do tráfico de escravos. (...) Como o Daomé, comerciante de escravos desde o
início.
60
(iii) Mais uma vez, Alencastro lamenta que os portugueses, ao relatar suas
vitórias, não destaquem o papel dos aliados africanos. (...) Apesar da queixa, o
africano, quer escravo na América, quer homem livre na África, não aparece (...)
como o co-construtor, que foi, do mundo Atlântico.
61
(iv) O rei Adandozan (1797-1818) também usou a escravatura nas Américas
como um meio de banir seus inimigos políticos. Ele vendeu Nã Agontimé, a mãe
do futuro rei Guezo (1818-1858), (...). (...) O rei Guezo teria também vendido
gente do palácio à Bahia.
62
— Mas é a penúltima comparação que me interessa realmente — e peguei
mais um café. — Quer? Pois bem, estamos aqui diante da comparação inevitável:
Guimarães Rosa e João Ubaldo Ribeiro, em trechos do Grande Sertão: veredas,
de 1956, e de Sargento Getúlio, de 1971. “É o escritor brasileiro mais importante,
desde que o dr. Guimarães Rosa finou-se”, disse Jorge Amado.
63
Grande Sertão...
apresenta-se inteiro como uma verdadeira aventura da linguagem.
59
— “Como R. J. Hammond, Portugal and Africa (1815-1910): a study on Uneconomic
Imperialism, Stanford: Stanford University Press, 1966, p. 42”, citado por Alberto da COSTA E
SILVA, “As relações entre o Brasil e a África Negra, de 1822 à Primeira Guerra Mundial” (p.
11-52), in Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África, op. cit., p. 18 e
nota da p. 46.
60
“O Brasil, a África e o Atlântico no século XIX” (p. 53-74), id., p. 58.
61
“O Brasil e a África, nos séculos do tráfico de escravos” (p. 75-90), id., p. 89.
62
“Um chefe africano em Porto Alegre” (p. 167-176), id., p. 168-169.
63
Renato SÉRGIO, “João Ubaldo Ribeiro”, Ele Ela, texto sem referência.
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53
— Sim, é verdade, e eu li. Para escrevê-lo, Guimarães Rosa refez todo o
caminho que se faz quando se decide aprender uma língua: ouviu, tomou notas,
observou, pesquisou, rascunhou, errou o tom, voltou a ouvir e anotar, viajou,
conheceu os falantes da língua que queria aprender, misturou conhecimentos e
tentou mais, até que enfim foi aos poucos “falando” e ao mesmo tempo
inventando a sua nova língua. É quando se começa a escrever...
— Isso mesmo. E você, que diz que não gosta de biografias, me fez agora
uma espécie de resumo de um processo de escrita, que não deixa de ser um
resumo biográfico de crítica genética... — e dei um sorrisinho. — No romance
Sargento Getúlio, também a linguagem é protagonista, a linguagem é antagonista,
a linguagem é coadjuvante. A linguagem utiliza-se da personagem-título para falar
de si e para si, para narrar-se a si mesma. Sobre isso, aliás, escreveu a professora
Cleonice Mourão: “... toda a ação da personagem é fala. Getúlio é uma
personagem falada, considerando-se, nesse último termo”, diz ela, “não só a
qualidade daquele que fala, mas também o passivo do verbo falar”.
64
João Ubaldo
Ribeiro refere-se a essa linguagem como sendo uma espécie de “sergipês”, uma
língua que seguramente envolveu o seu cotidiano dos poucos meses de vida até os
onze anos de idade, período em que morou em Aracaju por conta das necessidades
profissionais do pai, Manoel Ribeiro, em sua nova “carreira de político, professor,
comprador voraz de livros e disciplinador implacável”.
65
Os modos de falar de seu
sargento Getúlio assemelham-se aos modos da gente humilde de Aracaju pelos
idos de 1950, quando João Ubaldo Ribeiro contava então nove anos. Percebe a
inexistência de uma pura zona de ficção e de uma pura zona biográfica?
— Continue.
— Sargento Getúlio, assim como Grande Sertão..., destaca-se também
pela potente eloqüência de seu narrador personagem, o próprio Getúlio, que,
semelhante a Riobaldo, se movimenta na primeira pessoa e fala sem parar,
dirigindo-se do mesmo modo a um interlocutor. Em Grande Sertão..., o
interlocutor é suposto e tem lá suas características: é doutor, é senhor, é sabido, é
de fora. Getúlio comunica-se com seus acompanhantes: seu ajudante Amaro e o
64
Cleonice MOURÃO, “O silêncio da ideologia em Sargento Getúlio”, Suplemento Literário,
Belo Horizonte, 16 set. 1978.
65
Wilson COUTINHO, “Infância 2: livros”, op. cit., p. 33.
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54
preso que ambos devem levar de Paulo Afonso, norte da Bahia, a Barra dos
Coqueiros, em Sergipe.
— E quanto aos trechos escolhidos por Coutinho? Quais são eles? De que
modo se relacionam, além da linguagem arrojada de que se valem?
— Os trechos são muito longos. Ambos tratam da morte, da angústia de se
predestinar uma morte e da diferença entre aqueles que matam com facilidade,
Hermógenes e Getúlio, e aqueles que ainda não sabem matar, Riobaldo. Getúlio
fala com naturalidade de um tenente que o chamou de corno e cuja cabeça então
teve de cortar fora.
— Getúlio perde a cabeça, o tenente perde a cabeça... — disse ele, rindo.
— Riobaldo teme as mortes que ainda terá pela frente — prossegui, sem
rir da fraca piada —, sob o comando de Hermógenes: “Eu tinha de obedecer a ele,
fazer o que mandasse. Mandava matar”, diz Riobaldo. “Fiz a minha obrigação,
não é por ser tenente que me chama de corno, demais era ele ou eu”, diz Getúlio.
66
— E continuei: — A comparação da prosa de João Ubaldo Ribeiro em Sargento
Getúlio com a de Guimarães Rosa, no entanto, não confere com depoimentos do
próprio escritor. Em entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira, ele nega a
afirmação do jornalista de que Sargento Getúlio representaria uma experiência
literária próxima à narrativa de tons regionais. “Noutras palavras”, continua a
pergunta, “o sr. redigiu Sargento Getúlio sob a sombra de Graciliano Ramos e,
principalmente, Guimarães Rosa?” “Não”, diz ele. E só volta ao assunto um pouco
mais à frente, novamente refutando uma suposta aproximação com Rosa no que
diz respeito ao uso de neologismos que reforcem o aspecto oralizado da narrativa:
“Na verdade, eu invento poucas palavras; eu deturpo muito, isso sim. Existem
palavras no livro (...) que eu nem sabia que conhecia — elas emergiram na hora
em que eu estava escrevendo o romance. Eu às vezes até me assustava”,
67
diz.
— ... provavelmente pensando na influência que teve o “sergipês”
naqueles primeiros onze anos de sua vida em Aracaju, e que bem mais tarde viria
a “emergir”, para usar a palavra que você realçou, e não à toa.
— Sim, realcei essa palavra porque com Guimarães Rosa veremos que
acontece o oposto. Ele era, como eu ia dizer mais à frente, um anotador
66
Citados por Wilson COUTINHO, “Estilos”, op. cit., p. 113-114.
67
“Leblon, 4 de fevereiro de 1999”, op. cit., p. 36, realcei.
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55
meticuloso. Pode-se dizer que Rosa criou uma nova língua no Grande Sertão...,
ao passo que João Ubaldo o que fez foi desestabilizar totalmente a língua que ele
conhecia. Quem analisou isso foi o escritor Rodrigo Lacerda — lembrei —, que
aponta dois movimentos opostos entre o narrador de Grande Sertão... e o de
Getúlio, que assim esquematizo: (i) Natureza: o narrador em Guimarães caminha
em direção à natureza, encantando-se pela fauna e pela flora. O convívio com a
natureza produz poesia, que se esparrama para o estilo. Getúlio vê a natureza
como o sertão horroroso, a miséria. Diz o sargento: “... sertão do brabo: favelas e
cansançãos, tudo ardiloso, quipás por baixo, um inferno” (Sargento Getúlio, p. 9).
A natureza quer destruí-lo. Quanto ao estilo (ii), observa Lacerda que Grande
Sertão..., a partir de um ponto, começa aos poucos a se organizar, como
linguagem, na cabeça do leitor; uma linguagem que vai sendo montada
lentamente, desfazendo-se a estranheza inicial, que dá lugar, então, a uma
harmonia de sons e significados. Lacerda fala de uma “elegância inesperada”, a
produzir “um amálgama genial entre a cultura popular e a erudita”. E citei:
Já na composição formal de Sargento Getúlio (...), a impressão final é bem
outra. Não se forma essa elegância, essa coerência equilibrada. O discurso (...) é
frenético, avança rápido e centrífugo. E, para que esse efeito fosse atingido, João
Ubaldo, utilizando-se em alguma dose da “receita” estilística de Guimarães, na
verdade extrapolou-a. (...) Ele produz uma cacofonia estilística que está
absolutamente ausente de qualquer coisa que Guimarães já escreveu na vida. Há,
no romance de João Ubaldo, mil efeitos impensáveis em Grande sertão.
68
— De todo modo — continuei —, quando se está a falar de João Ubaldo
Ribeiro e sua história de aretê, é sempre a figura de Guimarães Rosa que surge,
numa clara tentativa de tentarmos entender o fenômeno Sargento Getúlio através
do recurso da influência. E a associação é inevitável.
— Nem sempre. Há quem aponte outras influências — disse ele, com
alguns recortes americanos na mão. E leu, realçando um trecho.
(i) Despite some fantastical writing near the end à la Garcia Marquez, and
some logointoxication à la Joyce, Ribeiro stays astringent pretty much
68
Rodrigo LACERDA, “Enfrento. Logo, existo. Uma leitura de Sargento Getúlio” (p. 51-73), in Zilá
BERND (org.) & OUTROS, João Ubaldo Ribeiro — Obra seleta, Rio de Janeiro, Nova Aguilar,
2005, p. 71.
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constantly.
69
(ii) Indeed Macunaíma, and the pioneering work of other Brazilian
modernists, prepared the terrain for the growth of an autonomous Brazilian
literature, without which the work of Antônio Torres and João Ubaldo Ribeiro
would perhaps not have been possible.
70
— Sim, e creio que o assunto das influências desgoste tanto a João Ubaldo
justamente por causa desse tipo de ideologia, que você bem identificou no trecho
salientado: aquela segundo a qual a influência é tida como condição sine qua non
para a produção dos escritores subseqüentes... Se a literatura, como defende João
Ubaldo Ribeiro, é, em seus melhores momentos, universalista, na medida em que
trata dos mesmos temas, e esses temas são comuns a todos os homens etc. etc., um
escritor, de qualquer época, poderia prescindir de seus companheiros de ofício do
passado para chegar a resultados estético-filosóficos semelhantes...
— Em outras palavras, mesmo se nunca tivesse havido um Grande Sertão:
veredas ou um Macunaíma, Sargento Getúlio sairia exatamente do modo como
saiu? O mesmo não se pode afirmar com relação a Shakespeare... — disse ele,
com um sorriso. — Não fosse Hamlet, e Sargento Getúlio não apresentaria aquele
belo trecho, que no filme, aliás, é...
— Esta conclusão é inverificável — interrompi-o. — Temos de partir do
que está escrito, e o que está escrito nos aponta para as convergências. Como
escreveu Eliana Yunes, as narrativas de Getúlio e Riobaldo constituem, ambas,
um grande monólogo sem interlocutores.
71
Veja aqui:
(i) O regionalismo absorveu (...), e à medida que se diluíam os ciclos
econômicos, a preocupação para com a linguagem — não a linguagem captada e
reproduzida, mas a linguagem que sai de uma oficina semântica. É o caso de João
69
E traduziu livremente e com alguma dificuldade: — “A despeito da escrita um pouco fantástica, à
la Garcia Marques, e algum excesso palavroso, à la Joyce, Ribeiro mantém-se contido com
razoável constância” (“Sergeant Getúlio, by João Ubaldo Ribeiro”, The Reviews, 15 nov. 1977
).
70
— “De fato, Macunaíma, e também o trabalho pioneiro de outros modernistas brasileiros,
preparou o terreno para o crescimento de uma literatura brasileira autônoma, sem a qual as
obras de Antônio Torres e João Ubaldo Ribeiro talvez não tivessem sido possíveis” —
traduziu ele (Vivian S
CHELLING, “Sergeant Getúlio”, TWQ, Londres, jan. 1988, realces do
meu interlocutor).
71
“O poder da fala em Sargento Getúlio” (p. 37-45, nov. 1978), in VÁRIOS AUTORES,
Linguagens/PUC-RJ, Literatura/Estudos, vol. 1, nº 2, Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro — PUC-Rio, s/d., p. 41.
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Guimarães Rosa e de alguns seguidores, entre eles o baiano João Ubaldo Ribeiro,
autor do Sargento Getúlio.
72
(ii) José Hildebrando Dacanal afirma que Sargento Getúlio apareceu com um
lugar já definido dentro da literatura brasileira. “Integra”, diz ele, “sem qualquer
dúvida, o ciclo da nova narrativa épica, lado a lado com Grande sertão: veredas,
O coronel e o lobisomen, A pedra do reino e, com um pouco menos de vigor, O
chapadão do Bugre”.
73
— Esse assunto, influências, é mesmo, seguramente, o de que João Ubaldo
Ribeiro menos gosta... — repeti, e me lembrei de uma crônica sua em que narra
algumas desventuras quotidianas em Lisboa, e justo num dia em que chegam à sua
casa Glauber Rocha e depois o escritor Márcio Sousa e uns amigos seus, também
escritores. Diz o trecho: “O amigo de Márcio me pergunta o que é que eu acho de
Guimarães Rosa, mantenho a calma, milagrosamente”.
74
E saí de meus devaneios
para voltar à conversa: — Ouça esses trechos que vou ler, o primeiro, de uma
entrevista de 1968, já tendo lançado Setembro não tem sentido, mas ainda antes de
começar, ou terminar, Sargento Getúlio. É provavelmente a história de Getúlio
que ele menciona como o livro em andamento... O segundo, uma entrevista de
1985, a tratar de um escritor já completamente canonizado e consagrado...
(i) Pergunta — Você costuma gozar as entrevistas sérias, em que são feitas
perguntas sobre influências literárias, preferências etc. Isso é uma defesa?
João Ubaldo Ribeiro — É possível. Comparado com outros escritores, sou
um irremediável ignorante em matéria de ficção. É verdade que já li o (...)
fundamental.
75
Mas não acompanho muito de perto o movimento literário
contemporâneo. Por outro lado, acho esses papos intelectuais (...) muito
contraídos.
João Ubaldo Ribeiro — Tinha um romance quase pronto, chamado Lucas,
mas joguei tudo fora, quando descobri que detestava o que havia escrito.
Comecei outro, que ainda não acabei, e que está saindo penosamente [Sargento
Getúlio?].
76
Desse estou gostando.
72
Hélio PÓLVORA, “Grande romance: caminhos e veredas”, Jornal do Brasil, 22 out. 1973.
73
“O que há para ler”, Jornal do Brasil, 21 jun. 1975.
74
“Não carregue o autoclisma” (p. 133-138), in Sempre aos domingos, op. cit., p. 138.
75
— Acerca das prováveis fontes literárias de João Ubaldo presentes no romance A casa dos
Budas ditosos — disse eu, em nota —, ver a crítica de Helena Vasconcelos, publicada em
Portugal, a identificar, no texto do escritor, a presença de Choderlos de Laclos, Ovídio, Sade e
Casanova (Capítulo 6: “Ubaldo Amado”, p. 455, nota 876).
76
— Esta entrevista é de 1968 — eu disse, também em nota. — Dois anos mais tarde, numa carta
a Glauber Rocha, datada de 8 de novembro de 1970, diz ele, referindo-se a Sargento Getúlio:
“Fico sentindo falta de que você esteja aqui para ler os originais, porque você sempre me
elogia pomposamente, grandiloqüentemente, e ninguém aqui me elogia assim. Não deu um
livro grande, deu um livro pequeno, mas muito denso. (...) Jorge Amado pegou o livro e o
(cont.)
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Pergunta — Mesmo que você deteste a pergunta: que influência literária
julga mais marcante em seu trabalho?
João Ubaldo Ribeiro Juro que não sei. Talvez Joyce e Graciliano Ramos,
um par meio estranho, como você há de convir. Talvez Jorge de Lima e João
Cabral e Rabelais e Cervantes e Machado de Assis. Sei lá.
77
(...) Bernard Shaw,
talvez. Por que perguntar sobre influências?
78
(ii) Jornal da Bahia — Certos críticos identificam, no Sargento Getúlio, uma
influência de Guimarães Rosa.
João Ubaldo Ribeiro Acho uma besteira, inclusive porque (...) não tinha
lido Guimarães Rosa quando escrevi o Sargento... Acho que há uma confusão
entre linguagem e estilo, nesse negócio. A linguagem pode ser parecida, porque é
do sertão, digamos. O estilo, eu não acho, acho que não tem nada a ver.
79
— Outra pergunta dos Cadernos de Literatura Brasileira volta a tentar
aproximá-lo de Guimarães Rosa — disse eu —, mas desta vez no que diz respeito
aos métodos de trabalho e pesquisa: “O sr. nunca fez anotações dessas linguagens
típicas das regiões que aparecem em seus livros?”.
80
Sabe-se que João Guimarães
Rosa era um anotador meticuloso e obstinado, o que nos permitia evidenciar,
utilizando as palavras da professora Marília Rothier Cardoso, “a relativa
exigüidade da margem de invenção, diante do enorme trabalho de pesquisa, que
fundamenta a elaboração dos textos. E esse trabalho”, continua Marília, “realizou-
se nos espaços conservadores, mas opostos, da parcela erudita da tradição escrita e
da sabedoria oral dos sertanejos”.
81
João Ubaldo Ribeiro não se deu a esse
trabalho enquanto compunha Sargento Getúlio. Ouça essas duas declarações:
levou para o Rio, para dar a Ênio [Silveira], mas aí Ênio foi preso. (...) Ênio deu os originais a
um cara para ler, e o cara deve ter achado uma bosta, como acharam o outro, que é que se vai
fazer...” (carta apresentada por João Carlos Teixeira G
OMES, “João Ubaldo e a saga do talento
triunfante” (p. 75-103), in Zilá BERND (org.) & OUTROS, João Ubaldo Ribeiro — Obra seleta,
op. cit., p. 79).
77
— “Nas suas conversas com os amigos”, diz João Carlos Teixeira Gomes, amigo pessoal de
João Ubaldo, “ele não parecìa dar valor especial à nossa tradição literária tal como aparece nas
histórias da literatura, isto é, não havia entre as suas preocupações a de se apresentar como um
continuador de qualquer tendência do nosso romance, mas sim a de exprimir as suas próprias
experiências vitais, diante da realidade contemplada em Sergipe e Bahia” (id., p. 81).
78
“João Ubaldo diz por que Setembro não tem sentido”, A Tarde, 14 e 15 set. 1968.
79
“João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, Salvador, 17 e 18 fev. 1985. — Há ainda
uma outra afirmação de Ubaldo acerca de seu Getúlio — continuei —, esta de 2002. Ouça: “...
eu escrevi sem pensar em nada e me surpreendi quando a crítica descobriu um estilo parecido
com o de Guimarães Rosa nele. Eu não havia lido ainda Rosa e só então me animei a fazê-lo”.
E ele reafirma: “Mas não tem nada a ver com o que eu escrevo” (Luís Antônio G
IRON, “Ubaldo
enfrenta o diabo”, Cult, mai. 2002
).
80
João Ubaldo Ribeiro, “Leblon, 4 de fevereiro de 1999”, op. cit., p. 36.
81
“Reciclando o lixo literário...”, op. cit., p. 73. — As palavras de Marília Rothier Cardoso
permitem-nos uma observação acerca de Rosa e Ubaldo no que diz respeito à condição de seus
(cont.)
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(i) — Eu acho o Sargento... bom. Mas não houve nenhum ambicioso projeto
de linguagem. Eu escrevi daquele jeito porque na ocasião só acertava a escrever
daquele jeito.
82
(ii) — ... o máximo que eu fazia era perguntar para minha mãe. Coisas do tipo:
“O que é que a gente comia em Sergipe?”. Vocês sabem, a história se passa em
Sergipe, onde eu vivi, e tem a ver com um episódio acontecido com meu pai.
Minha mãe às vezes se aborrecia com as perguntas: “Pra que é que você quer
saber isso agora, meu Deus?”. Mas são coisas que tomam um tempo imenso do
escritor. Como é aquela palavrinha? E alguém pode esclarecer na hora.
83
— Guimarães Rosa, a despeito de todas as viagens que fazia pelo sertão, a
despeito da variedade aparentemente sem limites de suas fontes de pesquisa,
também recorria, e muito, assim como Ubaldo, às fontes domésticas e, em
especial, às paternas — começou o meu interlocutor, que parecia entender
bastante de Rosa. — As cartas de Florduardo Rosa a seu filho são exemplos de
textos espontâneos, íntimos e descompromissados que, no entanto, surgem agora,
na releitura desse seu olhar, e também do meu, como uma espécie de “literatura
para a literatura”, literários como nunca antes o foram, talvez nem mesmo para o
seu próprio filho, que via nelas um bom material, sim, mas apenas como material
a ser aproveitado: textos-meio, e não textos-fim. Ouça o trecho de uma carta de
agradecimento de Rosa a seu pai Florduardo — disse ele, abrindo um livro
retirado de cima de nossa grande mesa —: “Há uma semana, escrevi ao Sr. uma
carta, e tive a alegria de receber a sua, acompanhada das ‘notas’, que muito
agradeço. Todas são ótimas, principalmente a sobre os ‘ciganos’ e a do ‘entrudo’
em Caeté. Vão ser muito bem aproveitadas!”.
84
— De todo modo — disse eu —, não cabe a João Ubaldo Ribeiro
estabelecer as conexões de sua literatura com outras.
— Cabe a nós, ou melhor, a você... — disse ele, rindo de si mesmo. —
Ainda está faltando a última comparação de Coutinho.
pais, Florduardo Rosa e Manoel Ribeiro — eu disse. — O primeiro muito mais próximo da
sabedoria oral do sertanejo do que da parcela erudita da tradição escrita — esta o natural
ambiente de circulação do pai de Ubaldo, o erudito professor dr. Manoel Ribeiro.
82
“João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985.
83
“Leblon, 4 de fevereiro de 1999”, op. cit., p. 36.
84
João Guimarães ROSA, citado por Vilma Guimarães ROSA, Relembramentos, Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 1983, p. 174 — referido por Marília Rothier CARDOSO em seu texto
“Reciclando o lixo literário...”, op. cit., p. 73, realces do meu interlocutor.
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— Da última comparação muito pouco se pode falar. Um trecho de Mário
Faustino diz o seguinte: “Juventude — a jusante maré estraga tudo”. O trecho
inicial de Sargento Getúlio atesta: “A gota serena é assim, não é fixe”.
85
São
ambos, antes de tudo, preceitos, afirmações de força, momentos em que o
narrador se mostra através de uma convicção qualquer, momentos de estilo. São
essas duas frases que podem representar o resultado de uma série de aprendizados,
condensados através de uma fórmula de sabedoria: “Juventude — a jusante maré
estraga tudo”. E quem haverá de negar? A frase é muito mais poética do que
informativa, e representa a vida se indo embora com o refluxo das águas. “A gota
serena é assim, não é fixe”. Ninguém há de contestar o próprio Getúlio nessa
idéia: uma gota que é diferente das outras gotas normais de chuva. A gota serena
permanece gota e pode ser transportada, como gota, de um lugar ao outro. Trata-
se de uma gota que não se fixa em lugar algum, assim como o próprio Getúlio, ser
errante, sem pouso, perdido no mundo, como a gota serena, que “é assim, não é
fixe”. Há aqui uma sabedoria, que é do personagem, do narrador, do escritor e do
autor. “... moro no mundo”, diz Getúlio, “Melhor morar andando” (p. 39).
2.2. DA INESCAPÁVEL CABEÇA DE GETÚLIO
— Como escreveu um jornalista do Washington Post, “Sargeant Getúlio is
told as a monologue, and there is no way to move out of the sargeant’s mind and
in to the world through Getúlio’s eyes and understand it as he does: as a parched
and cruel place, full of stunted beings”.
86
— De todo modo, estudar o comportamento de um narrador, como você
diz, sem cabeça; um narrador que tem por estratégia de trabalho incorporar os
personagens do momento, adquirindo-lhes os seus modos de pensamento e
expressão, traduzidos e percebidos através de suas linguagens... Fazer isso... — e
ele fez uma pausa. — Fazer isso com um narrador em primeira pessoa, e do porte
de Getúlio Santos Bezerra, parece-me uma tarefa difícil... Getúlio é narrador e
85
Wilson COUTINHO, “Estilos”, op. cit., p. 124.
86
— “Sargento Getúlio é narrado como um monólogo, e não há maneira de sair da mente do
sargento e entrar no mundo através dos olhos de Getúlio e entendê-lo como ele o entende:
como um lugar seco e cruel, de existências mirradas” — traduzi (Larry R
OHTER, “A tale that
(cont.)
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personagem, mas onde acaba Getúlio e começa o narrador? Onde acaba o narrador
e começa Getúlio? Do mesmo modo como um crítico escreveu que “todo o
significado do livro está contido em qualquer sentença que se escolha”
87
— disse
ele, mexendo nos papéis sobre a mesa —, podemos dizer que tanto Getúlio quanto
o seu narrador estão encaixados, ambos, em qualquer instante dessa fala
ensandecida que constitui todo o livro. Não faça essa cara. Você merece um café...
— Obrigado.
88
Enquanto tomo esse café situo você em relação a esse
livro, que, pelos vistos, você não leu...
— Não li o livro mas...
— O romance começa com uma esclarecedora epígrafe: “Nesta história, o
Sargento Getúlio leva um preso de Paulo Afonso a Barra dos Coqueiros. É uma
história de aretê”. Uma história de aretê é uma história em que honra e virtude,
juntas, contribuem decisivamente para a consecução de uma tarefa. Segundo
Maria Lúcia Aragão, citada por Zilá Bernd em seu artigo “Um certo Sargento
Getúlio”,
89
aretê traz a marca do herói, aquele que tem consciência de seu valor e
do valor da missão a ser cumprida. O herói carrega às costas a responsabilidade de
perpetuar os valores da comunidade que representa e que lhe atribuiu a marca e o
papel de herói. “Sua missão maior”, escreve Maria Lúcia, “é lutar pela honra de
sua raça e defender com a própria vida os seus princípios éticos.”
90
Muito bem. —
E prossegui: — Getúlio, “an ignorant, quarrelsome, foul-mouthed frontiersman...
a hit man... a torturer... intelligent, amusing, pitiable, and ultimately a true epic
hero”,
91
citando uma resenha norte-americana sobre o romance, Getúlio não
reads like a western and entertains like a classic comedy”, The Washington Post, Washington
D.C., 9 mar. 1978
).
87
— No original: “All the book’s meaning is contained in any random sentence” (John ATKINSON,
“Sergeant Getúlio, by João Ubaldo Ribeiro”, Daily Cougar, 21 abr. 1978).
88
E eu citei em nota e traduzi o que disse uma jornalista do New York Times: “The secret narrator
is the Brazilian backlands” / “O narrador secreto é o interior do Brasil” (Barbara Probst
S
OLOMON, “Dupes of Authority”, The New York Times, Nova Iorque, 9 abr. 1978).
89
P. 13-24, in Zilá BERND & Francis UTÉZA, O caminho do meio — uma leitura da obra de João
Ubaldo Ribeiro, Porto Alegre, Ed. da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS,
2001, p. 13.
90
Maria Lúcia ARAGÃO, “Sargento Getúlio: uma história de Aretê” (p. 104-110), in VÁRIOS
AUTORES
, Caleidoscópio, São Gonçalo, Fac. Integrada São Gonçalo, nº 8, 1988, p. 104, citado
por Zilá B
ERND, “Um certo Sargento Getúlio”, op. cit., p. 13.
91
— “... um ignorante, brigão, desbocado, habitante da fronteira... um homem de impacto, um
torturador, inteligente, divertido, desprezível, e finalmente um verdadeiro herói épico” —
traduzi (“Sergeant Getúlio, by João Ubaldo Ribeiro”, Atlantic Monthly, texto sem data).
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apenas cumpre seu papel, como morre por o ter cumprido. E que papel é esse? Sua
missão: levar um preso, daqui para lá, de Paulo Afonso, norte da Bahia, a Barra
dos Coqueiros, em Sergipe. Emana a ordem de levar o preso de um chefete local,
um tal Acrísio Antunes, representação cristalina do coronelismo que tanto marcou
e ainda marca a região. Segundo um resumo do próprio autor, o livro conta a...
— ... história de um sargento da PM sergipana que, a serviço do chefe político
(...), vai (...) buscar um preso, nunca identificado, e que não se sabe também se é
um preso comum ou um preso político, para levá-lo para Aracaju e termina
levando-o para a ilha Barra dos Coqueiros.
92
— Acrísio, aliás... — e fiz um parêntese com a mão —, embora não
apresente voz própria em todo o romance, teve sua etimologia rastreada por Zilá
Bernd, que assim esclarece: “Acrísio, cujo nome significa, etimologicamente, ‘o
que não sabe julgar ou discernir’”.
93
— O nome Acrísio, levando-se em conta este sentido, cairia melhor na
pele do próprio Getúlio, perdido em si mesmo, cego para o que sucede à sua volta
e para as mudanças do mundo — disse ele.
— É verdade. Acompanham Getúlio seu motorista Amaro, amigo de longa
data, e o próprio preso, o “cachorro bexiguento”, “cão da pustema apustemado”,
“pirobo semvergonho, pirobão sacano xibungo bexiguento chuparino do cão da
gota do estupor balaio” (p. 27), assim chamado porque Getúlio não lhe dá nome, o
que equivale a dizer que o preso, de fato, não carrega nome algum. O sargento,
além dos xingamentos, ainda se refere ao seu “pirobo semvergonho” como o
“filho de uma mãe com vinte pais” (p. 68). Viajam os três num carro antigo,
baleado, enferrujado e lento.
— Getúlio, pelos vistos, já soube do nome do preso... Deixe-me ler aqui
um trecho — pediu ele, que folheava o livro ao acaso. — “Ninguém se lembra
mais do nome dele, ninguém se lembra mais nem do nome da gente, quer dizer, eu
me lembro do meu nome e me lembro do nome de Amaro e se quisesse me
lembrava do nome do peste, mas não quero e esqueci” (p. 103). — E o meu
interlocutor ainda disse, com satisfação na voz: — Como eu disse, não li o livro
92
Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro — sucesso de crítica nos Estados Unidos, mas pouco
conhecido no Brasil”, Jornal do Brasil, 3 jun. 1978.
93
Zilá BERND, “Um certo Sargento Getúlio”, op. cit., p. 20.
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mas vi o filme... Conheço a história. No filme, o velho hudso é um velho dodge.
Faz tempo... — E ele olhou para cima. — Mas tenho o filme inteiro na cabeça...
— Eu não vi o filme... — confessei. — No meio do caminho, Getúlio
recebe uma contra-ordem: reconduzir o preso a Paulo Afonso e abortar a missão.
A contra-ordem recebe-a não pessoalmente, de seu chefe Acrísio, origem da
ordem inicial, mas de mensageiros que lhe vão surgindo pelo caminho. O
sargento, não obstante os recados vindos indiretamente do chefe, recusa-se a
incorporar a nova ordem, e desse modo incorporar-se à nova ordem. Ouça — e li
—: “... só devo satisfação a uma pessoa, graças a Deus, e dessa pessoa nada ouvi
até agora, a não ser o que ficam me dizendo, só que eu não emprenho pelos
ouvidos” (p. 93). Dada a sua obstinação, a sua ignorância, a sua fidelidade à
palavra viva de Acrísio, Getúlio vai contra a contra-ordem e decide enfrentar as
conseqüências. É este o argumento que temos à frente.
— Um argumento que remete diretamente ao mito de Antígona... — disse
ele, visivelmente satisfeito com a sua associação.
— Sim, sim — e sorri de contentamento. — Esta associação já a fez a Zilá
Bernd no artigo “Um certo Sargento Getúlio”, que já vimos... Ela justamente
propõe uma alternativa às leituras baseadas em dicotomias, leituras que eu
pessoalmente acato e de que gosto,
94
mas que ela considera desgastadas. Ouça:
... o mito de Antígona está na base das complexas relações de poder que se
encenam no âmbito do romance e que a obstinação do sargento em não acatar a
ordem do chefe corresponde de algum modo à rebeldia de Antígona e sua
obstinada determinação em não acatar as determinações do soberano quando
94
— Zilá aponta o esquema binário das leituras de Malcolm Silvermann e José H. Dacanal —
disse eu, em nota. — E diz que a leitura de Silvermann, “embora contribua para a compreensão
da obra, limita seu alcance a uma formulação maniqueísta que não deixa de ser redutora”, diz
ela (op. cit., p. 14). Mas Silvermann, numa citação pescada pela própria Zilá, diz que “Num
plano muito geral, Sargento Getúlio é uma luta entre o velho e o novo, entre permanência e
mudança” etc. etc. (citando o capítulo de Silvermann, “As distintas facetas de João Ubaldo
Ribeiro” (p. 89-109), in Moderna ficção brasileira, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
Brasília, INL, 1981, p. 105). Observe — continuei, em nota — que ele começa a sua
observação com a expressão “Num plano muito geral”, que realcei. Acredito que Silvermann
estava apenas começando a raciocinar, e deixou bem claro que iria tratar desse plano geral, até
porque ele está abordando, nesse capítulo, vários textos de Ubaldo, e não apenas Sargento
Getúlio. O próprio João Ubaldo — acrescentei — aborda o binarismo novo/velho ao olhar para
o seu Getúlio. E não que a fala de Ubaldo seja mais autorizada por ser a do autor; ela é apenas
mais uma voz. Ouça: “Talvez o drama do meu personagem seja uma crise de identidade. Uma
violenta crise de identidade. Ele é uma pessoa do passado, obrigado a enfrentar a modernidade,
e fica numa situação dilacerante” (“João Ubaldo Ribeiro: tão nordestino...”, Diário do
Nordeste, 21 jul. 1982
).
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64
estas vêm de encontro aos ditames de sua consciência.
95
— É difícil resistir a esse binarismo — interrompeu-me. — A oposição
entre velha e nova ordens é pulsante e eu diria estrutural no livro. Afirmativas do
tipo: “... the story presents the conflit between an older, violent kind of integrity
and, to Sargeant Getúlio, and incomprehensible, modern kind of corruption”
96
estão por todo o lado, na fortuna crítica nacional e internacional... — disse ele,
com um recorte na mão. E, anunciando que o meu café havia acabado, retomou:
— E eu volto às minhas perguntas, das quais você parece fugir... Onde acaba
Getúlio e começa o narrador? Onde acaba o narrador e começa Getúlio?
— Temos, nesse caso — comecei, ainda inseguro —, o que se chama de
narrador em primeira pessoa, intradiegético e autodiegético, segundo a
terminologia de Gerard Genette, ou seja, o narrador está dentro da diegese,
intradiegético, conta uma história no foco narrativo da primeira pessoa e é dessa
história o protagonista, autodiegético. É também chamado “narrador-
protagonista”. É o que Norman Friedman chama de o “eu como protagonista”.
Outro teórico, Bertil Romberg, diz que nesse tipo de narrativa o autor desaparece,
em proveito do narrador-personagem... E ainda F. K. Stanzel chama este nosso
caso de Die Ich Erzählsituation, first-person novel, ou romance de primeira
pessoa, onde o narrador é ao mesmo tempo um personagem...
97
Continuo?
— Não, não... — e ele fez um sinal com a mão. — Mas, como você viu,
estabelecer fronteiras entre Getúlio e um narrador, seja ele quem for, é tarefa
destinada ao fracasso. Esse narrador é um fantasma...
— Ainda não estou convencido... Deixe-me dar um exemplo do que se
poderia chamar aqui de uma divisão de tarefas... O momento da minha ênfase é o
momento em que Getúlio toma o lugar do narrador, e passamos de uma descrição
95
Zilá BERND, “Um certo Sargento Getúlio”, op. cit., p. 15.
96
— “A história apresenta o conflito entre uma antiga e violenta espécie de integridade” —
traduziu ele — “e, para o sargento Getúlio, uma incompreensível e moderna espécie de
corrupção” (Francis S
TUART, Francis Stuart on Recent Fiction, “South of the Border”, texto
sem referência, 21 fev. 1980
).
97
F. K. STANZEL, Die typichen Erzählsituationen in Roman, dargestellt an Tom Jones, Moby Dick,
The Ambassadors, Ulysses, Viena, Estugarda, Beitrage zur Englischen Philologie, nº 63, 1955,
p. 10, citado por Françoise R
OSSUM-GUYON, “Domínio alemão” (p. 35-42), in Françoise Van
ROSSUM-GUYON; Phillipe HAMON & Danièlle SALLENAVE, Categorias da narrativa, Lisboa,
Coleção Vega Universidade, s/d., p. 41.
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razoavelmente objetiva, para a manifestação de uma impressão, a impressão de
tudo aquilo sobre o personagem. Ouça:
... É aquela atalaia de cana que só vendo, tudo tudo envergado pela viração.
Isso de cima dum morrinho, porque de baixo, pela estrada (...), parece umas
vassouras desinvertidas, umas vassourinhas, e fica aquilo louro, louro. De manhã
é o melhor, o mato ainda está quieto, sem as bicharias e as caças rebuliçando.
Tenho uma irmã que ficou no barricão, e hoje vive na janela com as outras
vitalinas lá em Vila Nova, que gostava de ver cana na floração. Foi ela que
me ensinou, porque antes eu não via, passava desprecatado. Assim agora eu
gosto e quando é tempo e eu tenho tempo, espio muitíssimo. (p. 21)
— Desculpa lá, mas é desde o início que a descrição funciona como a
descrição de uma impressão sobre o personagem — disse ele. — É o olho de
Getúlio que vê e narra o que vê. Você estabeleceu o limite somente porque há lá
um verbo conjugado na primeira pessoa. Não me convenço de que estamos diante
de um mesmo enunciado proferido por dois enunciadores. Há apenas um
enunciador: Getúlio. Não entre por essa trilha na sua tese, que você se perde...
— Hum... — e eu cocei a cabeça. — Talvez não se trate aqui, no caso
deste romance, de procurar o narrador, mas percorrer a complexidade do
personagem. Porque o narrador, diz Oscar Tacca — e retirei mais um livro de
nossa infinita biblioteca —, “... não tem uma personalidade, mas uma missão,
talvez nada mais do que uma função: contar. Cumpre-a bem na medida em que
não se afasta dela”.
98
É Getúlio quem tem muitas personalidades, e seu discurso
comporta vários níveis, porque ele não é apenas aquele que fala para o outro, para
Amaro, o preso, ou o padre; é também aquele que fala sozinho, aquele que pensa,
aquele que rememora e aquele que delira. — E continuei com Tacca: — “Maior
esforço exige distinguir — quando coincidem — narrador e personagem. Ambas
as figuras se sobrepõem, embora não se confundam”.
99
— Confundem-se, sim. Ele é o narrador de si, sim, e não há outro
narrador. A principal razão para isso está na força da linguagem do sargento, que
está longe de ser neutra. Não há espaço para um outro narrador — disse ele, e
mostrou-me o trecho de uma resenha estrangeira, provavelmente norte-americana:
98
“O narrador” (p. 61-103), in As vozes do romance, Portugal, Livraria Almedina, 1983, p. 65.
99
Id., ibid.
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... Because we stay inside his mind throughout the book, we come to
understand his character, his tenacity, his morality even, which from the outside
would probably appear as stupidity, or brutality, or both. Is is a strange sensation
reading this, because Sergeant Getúlio is not a pleasant person, but we need to
understand this type. It is always with us.
100
— Você disse há pouco que havia apenas um enunciador, Getúlio. Ouça
aqui a distinção de Jakobson, retomada por Todorov, tudo isso citado pelo Oscar
Tacca, sobre a idéia de que a identidade do narrador está situada não no plano do
enunciado, mas no da enunciação. “O enunciado é exclusivamente verbal,
enquanto que a enunciação coloca o enunciado numa situação que apresenta
elementos não verbais: o emissor (...); o receptor (...); e o contexto em que essa
articulação tem lugar”.
101
— Tudo muito bonito... Mas você saberia identificar esses elementos não
verbais no discurso de Getúlio? — e ele, largando o jornal, ao qual eu talvez não
tenha dado tanta importância, fez uma expressão de desafio.
— “Falar de si mesmo significa não mais ser o mesmo si-mesmo”
102
— li,
rindo da estupefação de meu interlocutor. — E voltei ao sério: — Quando você
diz, por exemplo, “Fulano sai”, que é o exemplo do Oscar Tacca, quem diz isso é
um, e quem sai é outro.
— Isso é óbvio, mas e o outro caso? O caso de “Eu saio”...
— Respondo citando: “... o sujeito que diz ‘eu’ é inteiramente distinto do
sujeito que sai. Não é só a diferença que vai de dormir a dizer ‘eu durmo’: o
importante não é a tomada de consciência do dormir, mas do dizer (ou, mais
espetacularmente, do escrever) ‘eu durmo’”.
103
— Meu caro... O caso de Sargento Getúlio é especial... Primeiro, porque
não se trata de escrever, mas de dizer. Getúlio está falando e no tempo presente.
100
— “E porque permanecemos dentro da sua cabeça por todo o livro, passamos a entender sua
personalidade, sua tenacidade, até mesmo sua moralidade” — traduziu ele —, “que, vista de
fora, talvez apareça como estupidez, ou brutalidade, ou ambas. É uma estranha sensação ler
isto, porque o sargento Getúlio não é uma pessoa agradável, mas nós precisamos entender esse
tipo. Ele está sempre conosco” (Rob S
WIGART, “A farago of recomended fiction”, texto sem
referência).
101
TODOROV, “Poétique”, Qu’est-ce que le structuralisme, Seuil, Paris, 1968, p. 108, citado por
Oscar T
ACCA, “O narrador”, op. cit., p. 66.
102
— Tradução livre de: “Parler de soi-même signifie ne plus être le même soi-même” (TODOROV,
“Poétique”, Qu’est-ce que le structuralisme, Seuil, Paris, 1968, p. 121, citado por Oscar
T
ACCA, id., ibid.).
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Em segundo lugar — disse ele —, agora que entendi a diferença entre enunciado e
enunciação, menciono aqui o enunciado impossível, o eu morri; enunciado que
não acontece e, portanto, não dá lugar a uma enunciação, que também não
acontece, porque, quando Getúlio morre, ou seja, quando morre o enunciado,
morre também a enunciação, ou seja, morre o seu narrador, que forma, com
Getúlio, o mesmo corpo. Você se lembra do final? Eu não li o livro mas conhe...
— Sim... — respondi.
104
— Embora não seja a morte de Getúlio um ponto pacífico... — disse ele,
franzindo o beiço —, uma vez que ela não está narrada... Veja o que disse o
diretor do filme, o Hermano Penna: “Sempre pensei que eu fosse o único a não
saber se o sargento Getúlio morria ou não, mas descobri que o João Ubaldo
também não sabe. O livro é traduzido sem ponto final para qualquer língua,
exigência do escritor”.
105
E outra coisa — e ele pegou o livro do Tacca de minha
mão. — Ouça isto: Tacca pergunta: “Quem é o narrador em O estrangeiro?”, e ele
responde: “... seria difícil responder Meursault”... Entendo a dúvida de Tacca
quanto ao caso do livro de Camus, já que, como ele mesmo, Tacca, diz aqui nesta
nota de pé de página, Meursault às vezes dá a impressão de que sabe menos do que
o narrador, já que a narrativa sugere haver mais, muito mais, e Meursault, afinal,
para piorar ainda mais as coisas, fala tão pouco... Mas, por outro lado, é porque fala
tão pouco que também temos a impressão de que o personagem sabe mais do que
diz e não quer dizer tudo o que sabe...
106
Aplique agora essa pergunta ao caso de
Getúlio... É fácil responder que o narrador de Sargento Getúlio não é Getúlio Santos
Bezerra? E volto à minha pergunta, da qual você parece que fugiu... Você saberia
identificar esses elementos não verbais no discurso de Getúlio?
— Os elementos não verbais que nos interessam apontam para o fundo
ideológico da fala do sargento. Eliana Yunes escreveu que a linguagem de Getúlio
103
Oscar TACCA, “O narrador”, op. cit., p. 87.
104
E repassei, mentalmente, aquele final sem ponto final: “... sou eu e vou e quem foi ai mi
nhalaran jeiramur chaai ei eu vou e cumpro e faço e” (p. 157).
105
Segundo a matéria de Susana SCHILD, “Sargento Getúlio, repressão e poder”, Jornal do Brasil,
29 mai. 1983.
106
Oscar TACCA, “O narrador”, op. cit., p. 87, nota 39.
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não é por ele controlada e não provém dele, mas de uma ideologia político-
machista
107
— eu disse, com a revista Linguagens na mão.
— Concordo com essa idéia, sim, mas num âmbito reduzido, porque eu
não sei se o fundo ideológico da fala do sargento constitui um elemento não
verbal... A linguagem de Getúlio transcende a esfera da ideologia político-
machista. A ideologia político-machista pode ser detectada em cada centímetro
daquele chão sergipano, mas ninguém articula a própria fala como Getúlio o faz.
Nesse sentido, a sua linguagem é, sim, bastante sua, o que equivale a dizer que
personagem e linguagem estão casados.
108
— Não concordo com você — disse eu, e convicto. — Você está falando
de duas linguagens diferentes: a linguagem de Getúlio como manifestação da sua
subjetividade e a linguagem como maneira de expressar uma ideologia...
— Sim, vamos lá — e ele retomou a palavra. — A linguagem como
maneira que temos de vislumbrar uma ideologia subjacente, a ideologia político-
machista, está presente em todo o texto, sim, e claramente. Mas estes sinais
aparecem aqui e ali; o que impera é a maneira getúlica de olhar o mundo, ou seja,
a sua linguagem como manifestação de sua subjetividade.
— Olhe que eu até concordo com você... — eu disse, estranhamente feliz
com o que ele disse. — E é aqui que eu ganho a discussão... Eu não, mas a
Cleonice Mourão e a Eliana Yunes, que já lhe cito as duas... Tanto a linguagem de
Getúlio não é sua e não lhe pertence, nem mesmo como veículo de manifestação
de sua subjetividade... Tanto isso realmente procede, que, quando o mundo muda
e vem a contra-ordem e Getúlio não entende mais nada de nada, essa linguagem
explode e de desconecta do real... Ele a perde. E por quê? Porque a sua
subjetividade e a ideologia que perpassa todas aquelas páginas acabam por
revelar-se uma coisa só. Logo, a sua linguagem, mesmo como expressão de sua
subjetividade, não existe. Ouça. Cleonice Mourão, num artigo de setembro de
107
Eliana YUNES, “O poder da fala em Sargento Getúlio” op. cit., p. 41.
108
E ele citou, abrindo uma nota e em seguida traduzindo, o que escreveu um jornalista no Los
Angeles Time: “Some novels enthrall us with their characters, others with the power of their
language. Rarely do we find a contemporary piece of fiction that does both” / “Alguns
romances atraem-nos com os seus personagens; outros com a força de sua linguagem.
Raramente encontramos uma peça de ficção contemporânea que consiga fazer as duas coisas”
(Alan C
HEUSE, “Repulsion / attraction from Brazil”, Los Angeles Time, texto sem data).
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1978,
109
distingue duas facetas do monólogo: a primeira como um discurso
circular gerado pelo eu e absorvido pelo eu, um discurso em que o conhecimento
tem uma direção pré-estabelecida, onde não há dialética e onde não há, mesmo
que sob um manto de aparente reflexividade, qualquer produtividade do
pensamento, já que se está preso a um único ponto de vista...
— E a segunda faceta?
— A segunda faceta — continuei — é a do monólogo como expressão de
desejos e crenças. Uma faceta está ligada à outra. É a visão única, a circularidade
do ponto de vista da primeira faceta que produz o mar de subjetividade do qual o
falante não pode escapar, que é a segunda faceta. Getúlio afoga-se na duas facetas
e no mesmo mar, justamente nas duas fases do romance. Ouça agora as próprias
palavras da professora Cleonice Mourão, e depois ouça o que escreveu Eliana
Yunes, no mesmo ano, dois meses depois...
(i) ... na primeira parte da narrativa, ele [o monólogo] é a expressão direta e
espelhada de estímulos exteriores; na segunda parte, é a expressão da crise ou
conflito, quando esse espelho se quebra e a personagem não entende mais a
linguagem do mundo.
Essa linguagem do mundo é aquela que, no romance, se manifesta pelo
silêncio. Uma vez que a fala da personagem invade todo o espaço romanesco, só
no silêncio, ou na ausência, podemos detectar a fala do mundo. (...)
(...) Não escutar esse silêncio (...) é acreditar que a linguagem de Getúlio é
natural, ou seja, que ela elabora e organiza o seu mundo e o mundo exterior por
um processo consciente (...), por uma representação do mundo a partir de um
raciocínio seu, ainda que rudimentar.
São os artifícios formais do romance que levam o leitor desavisado a escutar
apenas a voz de Getúlio, enquanto, por trás do ruído de explosão dessa linguagem
que se quebra, se estraçalha (...), vive e morre, a voz da ideologia repousa
tranqüila e inocente.
110
(ii) ... no primeiro momento do texto sua fala procura narrar, espelhar o que vê
e entende, conforme a ordem do mundo; depois, já incapaz de entender o mundo
(...), ele subverte a cadeia lógica através da linguagem como forma de escapar à
realidade que o esmaga (...). O confronto entre essas duas faces (a máscara) do
monólogo decorre do fato de que a linguagem de Getúlio não é sua — o peso da
subjetividade, presente no possível solilóquio inicial, se defronta com a produção
do discurso na terra macha e que em verdade só lhe pertence por delegação do
chefe (...). (...) O que ressoa no aparente painel de silêncio da narrativa e [n]a voz
de Getúlio é simples eco — é a ideologia, incontestável pela ignorância,
alheamento e miséria permanentes.
111
109
“O silêncio da ideologia em Sargento Getúlio”, op. cit.
110
Id.
111
“O poder da fala em Sargento Getúlio” op. cit., p. 41-42.
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— É verdade que não vou empreender com esse romance o mesmo estudo
que pretendo com Viva o povo brasileiro, que elejo como o centro ativo do
comportamento incorporante do narrador, o ápice de sua condição de narrador
sem cabeça. — E continuei: — Além do mais, o discurso de Getúlio está a léguas
de distância de uma tentativa de contar histórias de vida ou da própria vida, tarefa
bem mais ao feitio de um narrador. Se assim fosse, teríamos algo muito mais
homogêneo e próximo de uma narrativa de si, uma narrativa autobiográfica e,
indo além, uma escrita autobiográfica...
— ... o que, em se tratando do personagem Getúlio Santos Bezerra, é um
contra-senso... — disse ele. E seguiu: — A sua tentativa, lá atrás, de encontrar a
voz do narrador ao lado da voz de Getúlio configura uma tentativa de estabelecer
a cisão entre o eu como sujeito do enunciado e o eu como o objeto desse
enunciado... Mas em Getúlio não há essa cisão... Os eus getúlicos, se me permite...
— e ele riu —, estão superpostos e misturados no presente da enunciação...
— Cito novamente o Tacca: “A distinção entre narrador e personagem,
quando estes coincidem, quando é o personagem quem narra, torna-se mais
árdua, por ser mais artificial, mas é proveitoso mantê-la”
112
— e fechei o livro.
— Dê-me aqui este livro — disse ele. — Tacca diz que a distinção é
artificial; vamos atrás dessa idéia — e ele folheou o livro, até que sorriu. — Ouça:
... em razão de uma crescente identificação entre o saber do narrador e o do
personagem, desaparece, progressivamente, todo o indício daquele ((...) como
“concertador” de histórias) e deste como personagem (no seu sentido dramático,
(...), como agonista), para se tornar em pura consciência que flui: é a técnica do
monólogo interior.
113
— Lembro aqui o que disse a professora Cleonice Mourão acerca da faceta
circular do monólogo. — E citei: — “Se o monólogo apresenta perguntas, é só
aparentemente que ele questiona o universo, porque as respostas passam pelo
crivo da mesma consciência que gerou as perguntas, e o círculo se fecha”.
114
E é
por isso que se costuma aproximar o discurso de Getúlio de uma tentativa de auto-
112
“O narrador”, op. cit., p. 80.
113
Id., p. 81.
114
“O silêncio da ideologia em Sargento Getúlio”, op. cit.
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retrato, muito mais do que de autobiografia — disse eu, com outro artigo na mão,
o da professora Fátima Cristina Dias Rocha, em que compara o personagem Paulo
Honório, de Graciliano Ramos, empenhado na escrita de sua vida, e o nosso
sargento, a debater-se com aquilo que lhe vem à mente a todo instante. — Ouça o
que diz ela, pensando nas considerações de Jean Starobinski: “... é porque o eu
evocado é diverso do eu atual que este pode afirmar-se em todas as suas
prerrogativas, contando não apenas o que lhe aconteceu em outro tempo, mas
sobretudo como um outro que ele era tornou-se ele mesmo”.
115
É o caso de Paulo
Honório, que escreve e, escrevendo, muda...
— E não é o caso de Getúlio — completou ele —, para quem são os
tempos que mudam; Getúlio permanece ele mesmo sempre, e esse é o centro
nervoso de sua condição trágica...
— “A política está mudando, (...) está ficando uma política maricona” (p.
56) — li, citando o sombrio diagnóstico de Getúlio, e completei a idéia, agora
com as palavras do padre, indeciso quanto ao próprio posicionamento diante da
truculência de Getúlio e da mudança do mundo.
... vosmecês da duas uma: ou dá um fim direto nesse cristão, louvado seja
nosso Senhor Jesus Cristo (...), ou então solta ele, diz o padre, porque não sei
mais se é possível levar ele para a capital (...). Inda mais (...) que temos aqui
trocidades, dentes arrancados, violências, e os tempos estão mudando e vosmecê
cortou a cabeça dum tenente e não sei como é que isso vai ser, inda se fosse um
cabo (...), mas como é que se vai cortar a cabeça dum superior mesmo no aceso
(...). Que desse umas porradas, ainda vá, ou arrancasse um olho na disputa (...).
Agora, a cabeça não; a cabeça se vai lá, se olha o pescoço e se resolve cortar, é
uma coisa quase parada (...).
(...)
— O tenente me chamou de corno, seu padre. Era ele ou eu.
— É isso mesmo — diz o padre. — Devia de ter cortado mesmo.
E se benzeu e disse que não precisava dizer aquilo. (...) Essa terra, diz ele,
depois de muito tempo, já foi uma terra boa, porque havia mais homens e quem
era homem não tinha de que temer. Hoje essa terra não vale mais nada, está uma
frouxidão e um homem não sabe de quem depende... (p. 82-83)
— Escreve ainda a professora Fátima Cristina Dias Rocha, citando o
Wander Melo Miranda — retomei, voltando ao auto-retrato —: “‘... o auto-retrato
115
— O texto de Jean STAROBINSKI, presente na bibliografia de Fátima Cristina Dias Rocha, é:
“Le style de l’autobiographie”, in V
ÁRIOS AUTORES, Poétique, Revue de théorie et d’analyse
littéraires, Paris, Éditions du Seuil, 1970 (Fátima Cristina Dias R
OCHA, “São Bernardo e
Sargento Getúlio: vozes e gestos em contraponto” (p. 41-55), in Carlinda Fragale Pate N
UÑEZ
(org.), Armadilhas ficcionais: modos de desarmar, Rio de Janeiro, 7Letras, 2003, p. 45.
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não conta o que fez, mas tenta dizer quem é, embora sua busca não conduza à
certeza do eu’”,
116
e continua, agora ela mesma: “Constituindo-se segundo um
sistema de recorrências, retomadas e superposições de elementos homólogos, a
principal aparência do auto-retrato é a da descontinuidade”.
117
E...
— Mas Getúlio — interrompe-me com alguma brusquidão o meu
interlocutor — está todo o tempo a dizer, não o que é ou não é, mas o que fez e o
que não fez, o que deve fazer e o que não deve...
— Sim, e isso porque o que ele é só se define por aquilo que ele faz. Uma
espécie de faço; logo, sou... A demonstração dessa idéia está luminosamente
presente na adaptação de João Ubaldo Ribeiro para o dilema hamletiano. A
decisão de levar o preso até o seu destino, concluindo assim a missão de que lhe
incumbiu o chefe, não foi das mais fáceis. O duelo na fazenda de Nestor, a
permanência na igreja e as conversas com o padre afrouxaram a convicção de
Getúlio de que tinha de ir até o fim. Por outro lado, não se suportaria a si mesmo
se não desse cabo da missão. — E li: — “... o que é que eu vou ficar pensando
depois, se já tenho pouco para pensar e o pouco que eu tenho vai inchando na
minha cabeça e vai tomando conta do oco que tem lá dentro?” (p. 101). João
Ubaldo Ribeiro substitui o dilema hamletiano por um outro, o dilema, digamos,
getuliano, ou getúlico: levar ou não levar, e o ser ou não ser transforma-se no levo
ou não levo, ou seja, no faço ou não faço aquilo que o chefe, ele mesmo,
pessoalmente, me mandou fazer... Trata-se do mesmo dilema, já que Getúlio,
diante do impasse em que se encontra, abandona por um único instante toda a sua
arrogância para, pela primeira vez, confessar-se dividido entre viver e não viver,
ou seja, ser e não ser. A correlação entre os dois está bastante clara na consciência
do sargento: não levar o preso significa ser, e ser significa desistir, fraquejar,
“morrer velho e frouxo”; por outro lado, levar o “pirobo semvergonho” significa
“morrer (...) macho” (p. 100), ou seja, não ser. Getúlio morre macho — disse eu.
— Vamos cotejar os dois solilóquios? O flerte de Getúlio com Hamlet e o de João
Ubaldo Ribeiro com Shakespeare...
116
Wander Melo MIRANDA, Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago, São Paulo,
Editora da Universidade de São Paulo, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1992, p. 36, citado por
Fátima Cristina Dias R
OCHA, “São Bernardo e Sargento Getúlio...”, op. cit., p. 51.
117
Id., ibid.
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— E também o flerte do diretor Hermano Penna com Shakespeare... —
disse ele. — Na cena de abertura há urubus voando por todo lado.
118
Isto não está
no livro, mas no Macbeth; “... as aves de mau agouro anunciando o que o diretor
sintetiza como ‘antologia do inconsciente do homem nordestino’”, escreve Susana
Schild.
119
Agora, deixe-me fazer uma ponderação, citando aqui o que escreveu um
jornalista americano — e o meu interlocutor retirou uma matéria de jornal de
nossa grande mesa. — Ouça:
A curious flaw in Ribeiro’s Getúlio is his theft of the Hamlet soliloquy, taken
bodily but transmuted into Getúlio’s personal idiom. (...) But Getúlio is no
Hamlet — there’s the rub. Hamlet is depressive, Getúlio manic; where Hamlet is
indecisive, Getúlio is deliberate and impulsive; he ponders neither the justice nor
the injustice of his mission.
120
— Leiamos, em português, Hamlet e Getúlio — e li, com gravidade.
(i) Ser ou não ser — eis a questão.
Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra o mar de angústias —
E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir;
Só isso. E com o sono — dizem — extinguir
Dores do coração e as mil mazelas naturais
A que a carne é sujeita; eis uma consumação
Ardentemente desejável. Morrer — dormir —
Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo.
121
(ii) ... Levo ou não levo, é isso. Talvez seja melhor sofrer a sorte da gente de
qualquer jeito, porque deve estar escrito. Ou é melhor brigar com tudo e acabar
com tudo. Morrer é como que dormir e dormindo é quando a gente termina as
consumições (...). Só que dormir pode dar sonhos (...). Por isso é que é melhor
118
Segundo a matéria: “Sargento Getúlio: o cenário nordestino de um drama universal”, Luta
Democrática, 15 abr. 1983.
119
“Sargento Getúlio, repressão e poder”, Jornal do Brasil, 29 mai. 1983.
120
— “Uma curiosa falha no Getúlio de João Ubaldo Ribeiro é o roubo que faz do solilóquio de
Hamlet, corporificado e transformado no idioma particular de Getúlio. (...) Mas Getúlio não é
Hamlet — aí está o problema. Hamlet é depressivo; Getúlio, maníaco; onde Hamlet é indeciso,
Getúlio é deliberado e impulsivo; ele não pondera sobre a justiça ou a injustiça de sua missão”
— traduziu ele (Dave W
ALSTEN, “A memorable month in the hinterland”, Chicago Tribune,
29 jan. 1978).
121
William SHAKESPEARE, Hamlet, trad. Millôr Fernandes, ato III, cena 1, Porto Alegre, L&PM
Pocket, 1998, p. 88.
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morrer (...), quando a gente solta a alma e tudo finda. Porque a vida é comprida
demais e tem desastres. (Sargento..., p. 99)
122
— Você citou aqui uma crítica à conveniência de se colocar na boca de
Getúlio o dilema hamletiano... Getúlio não é Hamlet, e João Ubaldo Ribeiro não é
Shakespeare, mas pegar um cânone como Hamlet e transformá-lo a esse ponto é
realizar o movimento de des-solenização que a literatura de João Ubaldo Ribeiro
o tempo todo faz, e ele também, e consigo mesmo. Trato disso mais tarde.
123
De
todo modo, Getúlio não é Hamlet... Sim, você me lembrou agora um artigo
daquele escritor, o Rodrigo Lacerda, acerca de Sargento Getúlio — continuei,
pegando o livro. — Lacerda diz que ambos se assemelham porque ambos estão
perplexos e sabem que o mundo exige deles uma definição. Nesse sentido, as
perguntas de Hamlet cabem, sim, na boca de Getúlio, mas...
... suas estratégias para as reconstruções existenciais que devem empreender,
suas respostas ao vazio existencial são, no fundo, opostas. Hamlet reconhece que
sua concepção de vida e de si mesmo antes dos acontecimentos da peça era por
demais ingênua, lidava com valores absolutos (...), e graças a essa autocrítica
consegue relativizá-los, optando por reconstruir-se constantemente. (...)
E Getúlio, como responde à pergunta “Levo ou não levo”, que equivale ao
“Ser ou não ser”, de Hamlet? (...)
(...) Tal decisão [de levar o preso afinal] é, em parte, evidentemente, a
instauração de sua individualidade, antes sufocada pela ligação umbilical com o
chefe. (...) Mas ela é, também, uma reafirmação, uma afirmação do mesmo
universo de valores, uma recusa em mudar de acordo com os tempos. (...)
(...) Para Hamlet, o mundo está em constante mutação, cabendo a ele adaptar-
se (...); para o sargento, o mundo está em degradação, da qual ele se recusa a
fazer parte. Apenas enfrentando-a ele pode existir.
124
— Há uma reafirmação do mesmo universo de valores, mas, depois do
dilema getuliano, Getúlio muda, pois ele passa a ser ele, ou seja, não ser um outro
122
— Cito aqui, em nota, o comentário de Manuel ROLLEMBERG, de 1976, para quem João Ubaldo
Ribeiro, “como Shakespeare, tem o raro dom de por na boca de seus personagens a fala correta
com a dose correta de dramaticidade. No Sargento Getúlio, como no Hamlet, há um solilóquio
— intencional — que nada fica a dever aos melhores momentos da literatura mundial. (...)
Ambos com o mesmo problema, embora com super-problemas diferentes” (“Hamlet — o tema
eterno”, Jornal da Tarde, 31 jan. 1976
).
123
— Embora queira citar, de cara — disse eu, em nota —, o que escreveu um jornalista
português: “João Ubaldo Ribeiro tem aquele encanto dos talentos que não se levam a sério —
um truque. De facto, trabalham, insistem, estudam e suam para dar a sensação de estarem nas
tintas. Ele é o gênero do intelectual que se expõe com fingido cinismo, diletante, explanador de
assuntos não sérios” (Ferreira F
ERNANDES, “Ubaldo das bundas ditosas”, Focus, Portugal, 17
jan. 2000).
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— eu disse. — Leio agora um trecho da professora Zilá Bernd acerca dessa
intertextualidade entre Getúlio e o jovem príncipe da Dinamarca. Ouça: “Trata-se
de uma escritura do entre-dois, da hibridação, da renúncia a ter que escolher entre
duas filiações, aceitando ambas e propondo uma terceira via, a de uma literatura
que faz da impureza e da contaminação a pedra angular de sua arquitetura
romanesca”.
125
Cito agora uma matéria, também a defender essa espécie de
ventriloquismo. Ouça — e li.
... And even when Getúlio echoes Proust or Hamlet (“I take him back or I
don’t take him back, that’s the question. Maybe it’s better to suffer one’s luck no
matter what it is, for it must have been written so”), the words fit the character.
Such allusions reinforce the overtones of tragedy in the novel. They serve too as
reminders of Getúlio’s humanity, a humanity that even his most excessive acts of
violence never entirely efface.
126
— Então concordamos com a definição de Wander Melo Miranda para o
auto-retrato, bastando que a gente trabalhe com esta arrumação: Getúlio foi aquilo
que fez, é aquilo que faz e será aquilo que fará?
— Sim — eu disse —, e tudo isso dentro de um discurso heterogêneo; às
vezes um solilóquio em voz alta e dirigido a Amaro ou ao preso, às vezes o mesmo
solilóquio, também em voz alta mas dirigido a si mesmo, às vezes um pensamento, às
vezes um monólogo já invadido pelo inconsciente, às vezes, e cada vez mais, um
delírio... E, já que você falou agora no filme, como se resolve isso na tela?
— Bom — disse ele —, o sargento pensa ou fala sem parar, alternando sua
fala com o seu pensamento. Imagino que não haja no livro uma distinção clara
entre o que o sargento fala e o que pensa. Essa distinção que você fez é arbitrária.
Você está tentando colocar uma grade de entendimento em algo que é único e
inteiriço, a fala, o texto de Getúlio... E o leitor tem acesso a tudo, porque é tudo
um texto. Está lá. Torná-lo silencioso ou ruidoso é, no livro, tarefa exclusiva do
leitor. O mesmo não acontece no filme.
124
“Enfrento. Logo, existo...”, op. cit., p. 67-69.
125
“Um certo Sargento Getúlio”, op. cit., p. 22.
126
— “E mesmo quando Getúlio ecoa Proust ou Hamlet (‘Levo ou não levo, é isso. Talvez seja
melhor sofrer a sorte da gente de qualquer jeito, porque deve estar escrito’ [Sargento..., p. 99]),
as palavras se encaixam no personagem. Tais alusões reforçam a tragédia implícita na novela.
Elas servem também para nos lembrarmos da humanidade de Getúlio, uma humanidade que os
(cont.)
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— E nem poderia... Mas... — e me ocorreu algo — ... não concordo que
no livro caiba exclusivamente ao leitor a tarefa de estabelecer o nível discursivo
de Getúlio. O Getúlio que fala é sempre muito macho, muito convicto e muito
objetivo. O Getúlio que fala a Amaro já é menos defendido e recorre, muitas
vezes, ao amigo e chofer para a tomada de alguma decisão, o Getúlio que pensa já
contém boas porções de dúvida e ponderação. E tudo se pode inferir através da
qualidade, ou melhor, do tom, da linguagem do sargento...
— Vamos ao texto? — pediu ele.
— Dou-lhe aqui um exemplo de mudança de registro: fala um Getúlio
destemido; pensa um Getúlio surpreso com o próprio destemor. O trecho é longo;
lerei algumas partes. Ouça, e veja se esquece essa idéia da fala de Getúlio como
uma fala só dele, e ainda una e inteiriça...
... — O senhor tem a minha palavra de honra.
Pode ficar com a sua palavra [diz Getúlio], eu só tenho o que é meu e é pouco.
Faço o seguinte: o seguinte é o seguinte: eu resolvo isso hoje. Vosmecês vão, eu
fico e converso com o padre e depois solto o homem. Mas aqui, com vosmecês
aqui, não solto, preciso de garantia. (...) Vosmecês me contaram que o chefe não
quer mais saber disso, creio, creio. Assim sendo, eu posso soltar o homem, mas
com vosmecês aqui não solto, de formas que espero vosmecês ir saindo na
mesma paz que entraram e depois (...) eu solto o homem e vou embora.
Não sei direito como é que eu falei assim [pensa Getúlio], mas de repente eu
estava me sentindo muito bom e o que é mais que pode me acontecer. O que pode
me acontecer é eu morrer, daí para baixo não pode mais nada... (p. 98-99)
— A adaptação para o filme — disse ele — optou por trabalhar
alternadamente os pensamentos e as falas de Getúlio. Muitas vezes o pensamento
é um estopim para a fala. Getúlio pensa e, estimulado, expressa em alto e bom
som o que pensou. Dê-me um exemplo conveniente do livro — pediu ele.
— Veja então este trecho — e li para ele. — “Quando estou pensando,
estou falando, quando estou falando, estou pensando”, diz, ou pensa, o nosso
herói, à página 26. Em outro momento do livro, Getúlio pensa, ou fala: “Mais de
vinte nas costas, veja vosmecê, é como mulher, não se consegue lembrar de todas.
A primeira é mais difícil, mas depois a gente aprende a não olhar a cara para não
empatar a obra” (p. 14-15).
seus mais excessivos atos de violência nunca conseguem apagar inteiramente” — traduzi (Stu
C
OHEN, “A tale of virtue from Brazil”, The Boston Phoenix, Boston, 6 jun. 1978).
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— Bem, o filme mostra Getúlio em silêncio e sua voz em off vagando em
torno dessa idéia. Em seguida, como se a completar o que estivera pensando, ou
como se alguém, acerca desse assunto, lhe fizesse uma pergunta, o sargento fala.
Inaugura-se, desse modo, uma distância significativa entre o espectador e os
demais personagens, estes últimos sabedores de apenas uma parte da história; a
outra parte acessível ou audível apenas por nós. A onisciência, mesmo que uma
onisciência relativa — disse ele —, não está, aqui, com o narrador, mas com o
espectador e o leitor.
— Eu gostaria muito que você me falasse do filme — pedi —, mas antes
vamos falar da infância de João Ubaldo Ribeiro, o que não deixa de ser uma
maneira de falar do universo do nosso sargento Getúlio, “... livro que é assim uma
coisa reconstituída de minha infância”, disse o escritor.
127
2.3. SARGENTO GETÚLIO SOU EU”, DIZ UBALDO
— E o meio do mundo é Sergipe... — disse ele.
— Sim. Lá chegaremos... Há, no livro de Coutinho, dois capítulos
responsáveis pela infância de João Ubaldo Ribeiro: “Infância 1: vamos chamar o
tempo” e “Infância 2: livros”, dedicados respectivamente ao registro do mundo
antes e depois de seu nascimento. Coutinho pega pedaços de História e pedaços da
infância do escritor e os relaciona. No momento em que os relaciona, tenta,
principalmente no capítulo “Infância 2: livros”, justificar uns pedaços pelos
outros, estabelecendo conexões. “Vamos chamar o tempo”, por sua vez, é
exatamente isso: um chamamento. Coutinho lança-se numa espécie de ensaio de
ambientação, com vistas a dar conta do que teria sido o cenário bucólico da ilha
de Itaparica no verão de 1941. Para tanto, descreve crianças brincando na areia, a
montante e a jusante das marés, o sol e os turistas. A descrição daquele tempo e
daquele lugar dá-se ao luxo de ser detalhista ao ponto de dedicar treze linhas ao
assunto óculos escuros: sua origem em 1885, a moda entre as estrelas de
Hollywood na década de trinta, sua variante em formato ray-ban e sua imagem de
adereço para playboys. Ao mesmo tempo, como contraponto ao detalhismo, a
127
Fernando Assis PACHECO, “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras,
Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983
.
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78
descrição daquele verão apresenta-se como hipótese, explicitando assim a idéia de
que aquela descrição não poderia ser histórica.
— Dê-me exemplos dessa explícita imprecisão na “reconstrução histórica”
— pediu ele, fazendo cara de pouco caso.
— Coutinho utiliza recursos como “Podiam [os homens] estar vestidos de
terno de panamá branco” ou “As mulheres ricas poderiam estar vestidas muito
mais descontraídas” ou ainda “Não custa nada colocar no horizonte as velas
estufadas de jangadas”
128
e outras claras indicações de que se está ali a compor
um quadro cujos elementos são escolhidos por proximidade, semelhança e
verossimilhança; por plausibilidade, enfim, e não por verificabilidade histórica.
Coutinho chega a brincar de cineasta com o leitor, pedindo-lhe que realize, aqui e
ali, alguns bons cortes: “Volte ao movimentado Hotel. Feche o plano. Vá até o
teto. (...) Desça até um par de sapatos (...). Depois, para umas calças de linho (...).
As mãos, o jornal”.
129
E então, através desse travelling, Coutinho situa no tempo a
sua descrição do espaço, mencionando a guerra, a invasão do leste da Europa pela
Alemanha nazista, as manobras da Inglaterra, a mobilização americana e tantos
outros biografemas da História em plena década de quarenta.
— E qual o objetivo desse jogo?
— Chamar o tempo, ou, mudando-se o enfoque, fazer com que nós
cheguemos até o tempo. Para chegarmos ao tempo, temos de mudar; para
mudarmos, rumo ao passado, temos de desfazer o que o futuro terá feito. Se
estamos em 1941, temos de olhar para o mundo como se estivéssemos lá. Isto pode
ser um jogo bem divertido, e Coutinho realiza apenas algumas das possíveis
jogadas. Veja-se esta desmontagem: “... em 1938 (...) já era famoso o ‘traje de
balneário’, que uma beldade da época, uma jovem francesa, pretendente à escritora,
uma tal Simone de Beauvoir, andara vestindo numa cidadezinha elegante à beira-
mar”.
130
Coutinho menciona o nome de Beauvoir como se aquele nome ainda não
significasse o que hoje significa. O problema, e aqui mora a graça do jogo, é que ele
só está mencionando o nome de Beauvoir, como se ele nada significasse...
128
“Infância 1: vamos chamar o tempo” (p. 24-28), in João Ubaldo Ribeiro: um estilo da sedução,
op. cit., p. 25-26.
129
Id., p. 27.
130
Id., p. 25.
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79
— ... justamente porque ele tudo significa...
— Isso. Como escreveu Dominique Maingueneau, “só se escreve a vida
dos grandes escritores sabendo-se que são grandes escritores”.
131
— E continuei:
— Coutinho narra um dia qualquer de 1941, no caso o dia 23 de janeiro, data de
nascimento de João Ubaldo Ribeiro. Esse dia, no entanto, é narrado não do modo
como sucedeu, mas do modo como poderia ter sucedido. Onde está a
historicidade dessa reconstrução? Coutinho chama o tempo, não os fatos. O único
fato, sem o qual toda a descrição perderia o sentido, é o fato de que na casa dos
Ribeiro nasceu um menino.
— E o capítulo referente à infância? Pelo que você disse, há aqui muitas
origens para a literatura de Ubaldo...
— Sim — e respirei fundo. — O que acontece no capítulo “Infância 2:
livros” não é a descrição de uma infância, mas uma descrição construída para ser
uma espécie de justificativa para a sua formação literária. Coutinho realiza um
levantamento de algumas das experiências do menino João Ubaldo Ribeiro,
crescido até os onze anos em Sergipe, para tentar entender até que ponto tais
experiências moldaram o escritor de hoje, pondo em ação uma típica
“interpretação da literatura além de seus limites intrínsecos e exclusivos, por meio
da construção de pontes metafóricas entre o fato e a ficção”, como já escreveu, e
novamente citamos, Eneida Maria de Souza.
132
A invenção dos aviões a jato, por
exemplo, um acontecimento que de certo não foi ignorado pelo pai do escritor, o
curioso dr. Manoel Ribeiro, deu-se, segundo o biógrafo, na tenra infância do
escritor, e isso quem sabe influiu “no seu modo de ser — e até de escrever”.
133
Outro exemplo do capítulo refere-se ao fato de João Ubaldo Ribeiro ter nascido
depois de 1941, o “que deve ter imposto à sua personalidade e ao seu dom de
escrever um humanismo radical. Além da natural angústia”.
134
— Não creio — disse ele — que...
131
Dominique MAINGUENEAU, “Obra, escritor e campo literário — A vida e a obra” (p. 45-62), in
O contexto da obra literária — Enunciação, escritor e sociedade, São Paulo, Martins Fontes,
2001, p. 52.
132
“Notas sobre a crítica biográfica”, op. cit., p. 43.
133
Wilson COUTINHO, “Infância 2: livros”, op. cit., p. 35.
134
Id., ibid.
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80
— Mas são os livros, no entanto, o centro desse capítulo — interrompi-o.
— Representam os livros o fragmento biográfico, o biografema literário escolhido
por Coutinho para dar conta de uma identidade. São poucas as entrevistas em que
João Ubaldo Ribeiro não menciona o pai e a casa de Sergipe abarrotada de livros.
São poucos os textos acerca do escritor que não tentam formar o seu perfil
literário através de sua história, ainda menino, com os livros. Ora, se um escritor
carrega em si o que se pode chamar um “perfil literário”, é bastante natural que se
pense ter sido este perfil literário formado pelos livros que se leram a partir da
infância e pela vida afora.
— O caso de Ubaldo tornou-se folclórico...
— Sim, sim. Sua história com os livros significa muito mais do que um
dos elementos formadores de um perfil literário. Vamos detectar referências
recorrentes à biblioteca de seu pai em muitos de seus romances. Os livros que leu,
e que segue relendo, pelo que diz, são peças constituintes de sua identidade
literária. “Sei que parece mentira”, diz ele, “e não me aborreço com quem não
acreditar (quem conheceu meu pai acredita), mas a verdade é que, aos doze anos,
eu já tinha lido, com efeitos às vezes surpreendentes, a maior parte da obra
traduzida de Shakespeare”,
135
e ele prossegue, citando a sua lista: Erasmo, Tito
Lívio, Cervantes, Goethe, Dante, Homero, Montaigne, Herculano, Alencar,
Machado de Assis, Dickens, Dostoievski, Suetônio, Santo Inácio de Loyola,
Vieira e tantos outros... Depois, diz ele em outra entrevista: “Li Shakespeare com
dez anos de idade e não entendi nada; quer dizer, entendi que as coisas
terminavam mal...”.
136
E agora veja aqui, para não perdermos a relação, a
personagem-protagonista dA casa dos Budas ditosos a incorporar o escritor João
Ubaldo Ribeiro: “Eu gosto de Shakespeare, leio desde menina, mesmo no tempo
em que não compreendia patavina. (...) Ninguém compreende nada, seja da
vida, seja de Shakespeare, que morreu mais de dez anos mais moço do que eu,
sem saber que era Shakespeare” (A casa dos Budas..., p. 25, realcei).
— Todos os escritores citados são canônicos — disse ele —;
absolutamente canônicos, incontestavelmente clássicos, irrefutáveis, sagrados...
135
Trecho retirado da crônica “Memória de livros” (p. 137-153), in Um brasileiro em Berlim, Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 1995, p. 152, realcei.
136
Lilian FONTES, “Do jeito que o povo gosta”, Rio Artes, 1994, realcei. Esta declaração voltará a
ser citada no Capítulo 6: “Ubaldo Amado”, p. 430.
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81
— ... e necessários, no entender do escritor, a uma boa e sólida formação
literária. “... a maioria dos quais faz parte íntima de minha vida”, disse João
Ubaldo Ribeiro.
137
Vamos, agora — e eu peguei mais café —, para os nossos
primeiros passos, pôr os pés na ponte biográfica que quero percorrer e explorar, a
ponte entre a infância e Sargento Getúlio. Ouça — e li, traduzindo em nota.
(i) Ribeiro uses his childhood experiences and observations to describe the
turbulence surrounding the Brazilian government.
138
(ii) No plano emocional (...), Getúlio-Ubaldo são mabaças, nasceram juntos,
no mesmo parto.
139
(iii) João Ubaldo diz que Sargento Getúlio é um somatório de personagens
diversas que habitaram o seu mundo infantil, constituindo-se no reprocessamento
de todo um universo vivido em Sergipe.
140
— Pelo que já percebi, a idéia de que no romance Sargento Getúlio
podemos encontrar, infiltrada, a biografia de infância de Ubaldo está mais do que
declarada, confessada e admitida pelo próprio autor, e em inúmeras declarações à
imprensa... É este o final do seu raciocínio? — perguntou ele, mordaz.
— Isto não é uma idéia — reagi —, ou um final de raciocínio... Isto é uma
premissa, ou seja, um ponto de partida. O que me instiga é: o que fazer com essa
premissa mais do que admitida e como olhar para o romance, sob essa luz?
Imagine que João Ubaldo Ribeiro nunca tenha pisado em Sergipe e nunca tenha
vivido, como um jovem observador protegido, mas atento, nada do que conta...
Sargento Getúlio seria possível? A resenha que Jorge Amado escreveu, em 1971,
é taxativa quanto a isso — e li.
.... Certamente tal livro só pôde ser escrito e tão bem realizado por ter sido
fruto de experiência vivida: menino ainda, o romancista viu-se levado a Sergipe,
onde familiares seus ocuparam cargos políticos. Ali, numa intimidade de copa e
cozinha, conheceu sargentos e soldados, jagunços, políticos, assassinos e
137
Wilson COUTINHO, “Infância 2: livros”, op. cit., p. 39-40.
138
— “Ribeiro usa suas experiências e observações de infância para descrever a turbulência à volta
do governo brasileiro” (Reginald THOMAS, “Sergeant Getúlio fine”, State News, Michigan
State University, 5 abr. 1978).
139
Lena FRIAS, “João Ubaldo Ribeiro — autor de Sargento Getúlio escreve para não ficar louco”,
Jornal do Brasil, 31 jul. 1978.
140
“Prêmio de Literatura José Lins do Rego”, BNB Notícias, 19 jul. 1982, e também: “Concursos
analisaram o reconhecimento individual”, O Povo, 20 jul. 1982
.
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82
mandantes. Carregou dentro de si histórias e figuras, (...) a miséria e a solidão, e
agora descarregou tudo isso em cima da gente.
141
— Ou imagine, por outra — continuei —, que João Ubaldo Ribeiro não
goste de falar de sua vida de criança e de adolescente e que nunca tenha se
manifestado acerca de sua inspiração para escrever o romance...
— Não teríamos as informações acerca das motivações biográficas e
olharíamos para o livro de modo diferente...
— Um modo muito mais circunscrito, limitado ao texto, tendo por única
opção o texto... Uma leitura mais empobrecida...
— Não, uma leitura apenas diferente — disse ele. — Quase que totalmente
estruturalista à moda antiga...
— Talvez a própria forma do texto, um monólogo, tenha relação com essa
vontade ou necessidade de ser e falar como esse Getúlio. Ele não sabe explicar
como começou a escrever o livro. — E li uma declaração: — “Estava em casa e,
de estalo, saiu o livro, tudo na primeira pessoa, numa espécie de monólogo”.
142
Talvez possamos indagar: o sucesso da criação de um personagem tão complexo e
tão contraditório, um personagem que consegue repelir e atrair simpatias com
tanta intensidade, não se deve ao fato de que ele existiu concretamente, fora da
cabeça de João Ubaldo Ribeiro, antes de se mesclar a outros e se transformar no
Getúlio do romance? Ouça esse somatório de afirmações acerca do magnetismo e
da complexidade do personagem — e eu peguei algumas matérias de jornal que
havia separado e traduzido por minha própria conta e risco.
(i) Getúlio is just that, a thug whose struggle against the odds gradually wins
over the readers sympathy. (...) Getúlio comes out of it with loyalty, dignity and
self respect.
143
(ii) It is a measure of Ribeiro’s achievement that Getúlio, for all his brutality,
wins the readers respect and affection.
144
141
Jorge Amado, “Romancista maior”, Letras e Artes, Portugal, 11 e 12 dez. 1971.
142
Sargento Getúlio (...) — sucesso de crítica...”, Jornal do Brasil, 3 jun. 1978.
143
— “Getúlio é isso, um bandido cuja guerra contra a desigualdade vai ganhando gradualmente a
simpatia do leitor. (...) Getúlio surge então com lealdade, dignidade e amor-próprio” (Blake
M
ORRISON, “Love among fossils”, The Observer, 16 mar. 1980).
144
— “É a medida da façanha de Ribeiro que Getúlio, com toda a sua brutalidade, ganhe o respeito e a
afeição do leitor” (Sidney O
FFIT, “Latin Tour de Force”, N.Y. Trib., Nova Iorque, 9 mar. 1978).
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83
(iii) This murdering, betrayed thug on a vicious mission becomes before our
eyes a free man whom we must love and honor.
145
(iv) It is hard to confess sympathy for Getúlio Santos Bezerra, but the author
creates it. And that is what makes this work so disquieting.
146
(v) Yet, he has pulled the reader into Getúlio’s psyche so that it seems
impossible not to emphathize with him, and not to want him to win free of an
impossible situation.
147
(vi) It is impossible to like this character, but Ribeiro’s style is so gripping and
brutally poetic, you come to admire and respect the tenacity of will transformed
through language into a celebration of survival and the self.
148
(vii) Sudenly, the gunman becomes a hero. The reader sees in Getúlio a force,
a spirit that deserves to endure, needs to survive. (...) João Ribeiro’s ability to
shift our allegiances so subtlely is remarkable. His ability to makes us forget,
forgive or ignore Getúlio’s savage excesses is nothing short of incredible.
149
— E lhe faço a pergunta: quem é Getúlio? Ele é “... a loner, a coarse and
violent man whose excesses will offend the sensitivities of most civilized readers.
He is an anachronism, a throwback, a living fossil. He is the last of a species, the
end of the line for man”
150
— li de uma reportagem norte-americana. — Mas não
só isso. Se colocarmos, ao lado da visão de Getúlio que se depreende através do
romance, outras visões do sargento, visões diversas da visão que ele tinha acerca
de si mesmo, obteremos um Getúlio muito mais completo. Ouça isso:
145
— “Este bandido assassino e traído, em sua missão mórbida, torna-se, diante de nossos olhos,
um homem livre a quem devemos amar e honrar” (Jose YGLESIAS, “Sergeant Getúlio, by João
Ubaldo Ribeiro”, texto sem referência).
146
— “É custoso confessar simpatia por Getúlio Santos Bezerra, mas o autor cria isso. E isso é o
que torna este trabalho tão inquietante” (Stu COHEN, “A tale of virtue from Brazil”, The
Boston Phoenix, Boston, 6 jun. 1978
).
147
— “Contudo, ele inseriu o leitor dentro da psique de Getúlio de tal modo que parece impossível
não ter uma empatia com ele e não querer” — e traduzi aproximadamente — “que ele saia ileso
de uma situação difícil” (Jeff F
RANE, “A portrait of a brutal man”, Seattle Times, 9 abr. 1978).
148
— “É impossível gostar desse personagem, mas o estilo de Ribeiro é tão absorvente e
brutalmente poético, que você passa a admirar e respeitar a força de vontade transformada,
através da linguagem, na celebração da sobrevivência e do self” (Sam C
OALE, “Story of a hired
Brazilian gunman”, Providence Sunday Journal, San Gabriel, 26 mar. 1978
).
149
— “E, de repente, o pistoleiro se transforma no herói. O leitor vê em Getúlio a potência, o
espírito que merece resistir e precisa sobreviver. (...) A habilidade de João Ribeiro de deslocar
tão sutilmente as nossas regras é notável. Sua habilidade de nos fazer esquecer, perdoar ou
ignorar os excessos de selvageria de Getúlio é nada menos que inacreditável” (Paul M
ERKOSKI,
“Beware hired killer: you’re on his side”, Atlantic City Press, Atlantic City, 2 abr. 1978
).
150
— “... um solitário, um homem grosseiro e violento cujos excessos ofendem a sensibilidade da
maioria dos leitores civilizados. Ele é um anacronismo, um primitivo, um fóssil vivo. Ele é o
último da espécie, o fim da linha para o homem” (idem).
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(i) — ... o sargento Getúlio que existiu, cujo nome eu tirei não sei por quê para
pôr no título, (...) é mais uma figura compósita, (...) minha mãe tinha medo dele,
porque Getúlio era um homem de bigodinho assim fininho, de costeletas, pintava
as unhas!, quer dizer, pintava com esmalte transparente (...). Naquela época era
preciso ser muito macho em Sergipe para fazer isso sem ser chamado de (...)
maricona (...), era todo cuidadoso assim, maneiroso...
151
(ii) ... um baixinho bigodudo freqüentava a casa da família Ribeiro em
Sergipe. “Uma fera de manias delicadas da qual minha mãe tinha medo”.
152
— Talvez obtenhamos ao final o mesmo Getúlio, porque essa visão extra-
literária só faz corroborar a imagem do personagem e fortalecer toda a circularidade
que a gente observa em seu pensamento, que não sai do lugar e está preso dentro de
suas próprias premissas... — disse ele, tentando chegar a algum lugar.
— Você me deu uma idéia... — e me animei. — Há um ponto no livro que
me parece constituir o centro nervoso da memória de João Ubaldo Ribeiro. Nesse
trecho, podemos — e frisei —, num movimento que é sempre arriscado, mas
sempre necessário, detectar o local provável do ponto de vista original de todo
esse memorialismo mesclado que é característico do livro... É como se
encontrássemos, depois de todas aquelas camadas ficcionais misturadas com
recortes biográficos, próximo ao final da história, o menino João Ubaldo Ribeiro,
enfim, com menos de dez anos, lá colocado pelo próprio escritor, a observar o
universo sergipano de todos aqueles homens bravos... Getúlio, já na ilha Barra dos
Coqueiros, acompanhado somente do preso e às vésperas de levar tiros, relembra
a sua conversa com o chefe, na casa do chefe, num tempo anterior ao tempo em
que se inicia o romance.
153
Vou ler a ficção e depois o depoimento do escritor.
(i) ... Apois estou lhe dizendo que o homem que o senhor mandou em Paulo
Afonso, numa noite aqui nessa sala mesmo, tomando um vermute, aquele homem
151
Fernando Assis PACHECO, “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras,
Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983.
152
Nahima MACIEL, “João Ubaldo Ribeiro: a arte de escrever”, Correio Braziliense, 14 set. 1997.
153
— E aponto, numa nota, o que escreveu a professora Stella Costa de MATTOS acerca do recorte
temporal em Sargento Getúlio, cuja “narrativa começa in media res, segundo a convenção
própria da épica clássica. Mais que uma fidelidade ao modelo, o uso do recurso pode dever-se a
dois fatores: o desejo de manter na penumbra a ação perpetrada em Paulo Afonso (Bahia) e que
dá início à intriga; o desejo de celebrar a terra natal do narrador (Sergipe). Ou a ambos” (“Um
espaço mítico” (p. 54-62), in Sargento Getúlio — uma história de aretê, Pós-graduação em
Lingüística e Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, dez.
1985, p. 54).
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que deixou o quepe pendurado nas costas de uma cadeira e pediu permissão
para desabotoar a túnica e o senhor deixou e seu filho ficou olhando as duas
cartucheiras e eu pedi um copo dágua e ele chamou a empregada e eu tomei a
água e até na hora a barriga me coçou de lado e eu fiquei coçando e escutando,
depois que bebi a água. Aquele homem... (Sargento..., p. 152)
(ii) — ... e então Getúlio às vezes aparecia lá em casa, (...), minha mãe se
benzia, “ai, meu Deus, Getúlio!”, mas eu adorava porque ele, Getúlio, tirava a
túnica, a túnica da Polícia Militar de Sergipe tinha não sei quantos mil
botões (...), ele pedia licença para tirar, para desabotoar tudo, porque era um
calor brutal, e aí, quando ele abria aquele negócio, tinha uma cartucheira
atravessada assim, outra cartucheira atravessada assim, tinha punhal, e tinha
sovaqueira, que é o nome que se dá àquele coldre debaixo do braço, duas
sovaqueiras!, rapaz, era um arsenal do exército de Canudos (...) ... E eu achava
aquilo uma maravilha, eu adorava, era um fascínio para mim ver Getúlio...
154
— Ubaldo coloca-se então no lugar do filho do chefe de Getúlio — disse
ele. — E o pai de Ubaldo no lugar do chefe de Getúlio... São posições que podem
ser sugeridas, não a partir de informações biográficas, imagino, mas a partir da
relação que mantêm os personagens e não-personagens com o poder... O que fazia
realmente o pai de Ubaldo naquela época?
— Cito declaração do próprio escritor: “Meu pai era pêssêdista [sic] (...),
era mesmo o líder do PSD na Assembléia Legislativa, chegou a ser presidente, foi
secretário de segurança, exerceu, inclusive, como se diz no Nordeste, a
‘governança’ do Estado, algum tempo, provisoriamente”.
155
Mas João Ubaldo
Ribeiro — frisei —, apesar de deixar clara a relação do romance com a infância
em Sergipe, não quis, de modo algum, escrever a história daquele período da vida
de seu pai, chefe de polícia à época: “Seu pai, explica, era um intelectual incapaz
das atitudes de Getúlio”.
156
Esse orgulho pela própria família, ao mesmo tempo
poderosa e rodeada de sargentos e ao mesmo tempo um reduto da elite intelectual
da época, a gente pode encontrar nA casa dos Budas ditosos, que eu mais uma vez
cito por se tratar, claramente, de um romance de idéias onde a própria
intelectualidade do escritor é a personagem-protagonista: João Ubaldo Ribeiro, ou
melhor, a personagem de nome CLB, refere, nesse romance, os livros existentes
154
Fernando Assis PACHECO, “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras,
Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983.
155
Id.
156
Cremilda MEDINA, “No caminho das almas...”, Diário de Notícias, 14 dez. 1984.
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“na biblioteca de meu pai e na do de Norminha — mais um ponto para minha
família, nossas famílias, aliás” (A casa dos Budas..., p. 40).
— Você disse que Ubaldo não quis de modo algum escrever a história
daquele período, mas acabou por traçar um eloqüente painel do que era a
distribuição do poder, ou melhor, a concentração do poder, naquelas paragens e
naqueles tempos... Ubaldo descreveu, de fora, é verdade, através do ponto de vista
de um jagunço, os movimentos da classe política da qual o seu pai era um dos
representantes... — e ele leu um trecho do Vale quanto pesa, do Silviano
Santiago, que se refere a um outro período, mas que pode muito bem ser aplicado
ao “tempo” da infância de Ubaldo.
Nos nossos melhores romancistas do Modernismo, o texto da lembrança
alimenta o texto da ficção, a memória afetiva da infância e da adolescência
sustenta o fingimento literário, indicando a importância que a narrativa da vida do
escritor, de seus familiares e concidadãos, tem no processo de compreensão das
transformações sofridas pela classe dominante no Brasil (...). Tal importância
advém do fato de que é ele — o escritor, ou o intelectual, no sentido amplo —
parte constitutiva desse poder, na medida em que seu ser está enraizado em uma
das “grandes famílias” brasileiras.
157
— E ele ainda diz, em outra entrevista, dois anos e alguns meses mais
tarde: “Sargento Getúlio é um romance engajado — persegui esta espécie de
autobiografia fantasmagórica, mas com maior distância”.
158
— Em que é que muda a sua visão do personagem Getúlio, e mesmo de
todo o livro, depois de ter acesso a esse depoimento de Ubaldo acerca de si
mesmo, menino, a admirar, fascinado, as cartucheiras do verdadeiro sargento
Getúlio? — perguntou ele.
— Consigo perceber uma circularidade maior do que eu percebia antes;
maior porque ela engloba mais instâncias: a visão de Getúlio sobre si mesmo,
lembremos do que disse a Cleonice Mourão acerca do monólogo, “... um discurso
circular gerado pelo eu e absorvido pelo eu (...) e onde não há (...) qualquer
produtividade do pensamento, já que se está preso a um único ponto de vista”.
159
157
“Vale quanto pesa (a ficção brasileira modernista)” (p. 25-40), in Vale quanto pesa, Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 31.
158
“Entrevista”, La Quinzaine Littéraire, Paris, abr. 1987 (citado por Zilá BERND, “Um certo
Sargento Getúlio”, op. cit., p. 21).
159
“O silêncio da ideologia em Sargento Getúlio”, op. cit.
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Essa visão de Getúlio acerca de si mesmo inclui outras: ele, como um menino,
vendo-se a si mesmo, um mocinho que também é bandido, que vai revelar-se a
mesma visão que tem o menino filho do chefe Acrísio Antunes, que vai revelar-se
como sendo a mesma visão do menino João Ubaldo Ribeiro acerca dos homens
que habitavam a casa de seu pai, Manoel Ribeiro, na década de quarenta, em
Sergipe. Como Getúlio vê a si mesmo? — perguntei. — Como um menino o
veria... Como potência total, ser imortal, Dragão Manjaléu... Diz ele a Luzinete,
depois da morte de Amaro e já no começo de seu delírio:
... Posso dizer uma coisa que pensei quando eu estava lá no padre, mas escute
calada, porque, se der risada, eu lhe dou uma porrada: eu sou Getúlio Santos
Bezerra e meu pai era brabo e meu avô era brabo e no sertão daqui não tem
ninguém mais brabo do que eu. Eu dou um murro na testa do carneiro que
aparecer e o carneiro morre. (...) Eu sou eu. Meu nome é um verso: Getúlio
Santos Bezerra, e de vez em quando eu penso que, não tendo ninguém melhor do
que eu, tudo que pode me acontecer é melhor do que os outros. (...) Seu nome é
um verso, disse Luzinete, e você nunca que vai morrer. (p. 136)
— Você tem razão — disse ele, oferecendo-me um café. — Já olho para o
sargento Getúlio como se o conhecesse mais... De todo modo, quero abrir aqui um
caminho. Você disse há pouco que Ubaldo perseguiu uma espécie de
“autobiografia fantasmagórica, mas com maior distância”, palavras dele, realces
meus. — E continuou, retirando mais um livro de nossas incomensuráveis
estantes: — Lembrei-me deste livro do Javier Marías, Literatura e fantasma, que
li há tempos. No capítulo de nome “Autobiografia e ficção” ele aponta três modos
de relacionamento para os universos da ficção e do material biográfico verídico.
— E você me disse que não gostava deste tema...
— Eu tenho o espírito aberto... Ouça. No primeiro modo o autor quer falar
de si, de seu mundo e de sua geração e, ao mesmo tempo, por razões estéticas e
éticas, não os quer, senão ficcionalizados, talvez porque acredite que,
ficcionalizado, esse mundo se tornará mais eloqüente, mais universal — e ele leu.
... o resultado desse tipo de operação dependerá (...) sobretudo do talento
literário do escritor em questão; mas (...) dependerá em boa medida de sua
capacidade de elaboração desse material “verdadeiro”, (...) da sua capacidade
para dissimular, disfarçar (...), ou afastar-se desse material. (...) ... que é
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precisamente a intenção contrária ao que em princípio o tinha motivado, a
vontade de dar testemunho.
160
— O segundo modo é o do memorialista, e este não nos interessa aqui —
disse ele —, e o terceiro modo de se lidar com as porções biográficas em literatura
será através da postura do deixar estar... Não, a expressão não é dele; é minha
mesmo. O deixar estar... é assim, e agora cito o Javier Marías:
... o autor apresenta a sua obra como obra de ficção, ou pelo menos não indica
que não o seja; quer dizer, em nenhum momento se diz ou se previne que se trata
de um texto autobiográfico ou baseado em fatos “verídicos” (...). No entanto, a
obra em causa tem todo o aspecto de uma confissão e além disso o narrador
lembra claramente o autor, sobre o qual costumamos ter alguma informação (...).
O resultado deste malabarismo é de uma ambigüidade tão assombrosa que as
suspeitas do leitor oscilam continuamente entre dois pólos (...).
161
— Imagino que o caráter “fantasmagórico” da autobiografia que Ubaldo
diz estar perseguindo com Sargento Getúlio tenha sua razão de ser justamente
nessa capacidade de transformar o material verídico, ficcionalizando-o,
dissimulando-o e afastando-o da autobiografia “real”, o que aproximaria o livro
do primeiro modo. O que acha? — e ele sorriu.
— Não apenas acho muito apropriada a sua citação, como digo que o
terceiro modo exposto por Marías pode ser aplicado aos romances Setembro não
tem sentido, o primeiro, e Diário do farol, por enquanto o último romance de João
Ubaldo, e ainda ao romance A casa dos Budas ditosos, que eu estou chamando
aqui, como eu já disse, de romance de idéias. Mas disto tratarei mais à frente...
Quero agora penetrar na fantasmagoria da ficção e da memória em Sargento
Getúlio — e me debrucei sobre as reportagens em cima da mesa. — Estamos
vendo, e o escritor deixa isso claro..., que o romance é inspirado em sua infância...
“... um retorno (...) ao universo de Sergipe, com sua brutalidade, seu primitivismo,
ao qual dei uma dimensão mais ampla — ética e política”,
162
diz ele. Mas de que
maneira? Quais histórias inspiram quais histórias? João Ubaldo Ribeiro diz que
Sargento Getúlio não configura a história de um único caso, mas um conjunto de
160
P. 63-70, in Literatura e fantasma, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 1998, p. 67.
161
Id., p. 69-70.
162
“Entrevista”, La Quinzaine Littéraire, Paris, abr. 1987, p. 23 (citado por Zilá BERND, “Um certo
Sargento Getúlio”, op. cit., p. 21).
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fatos resumidos numa história. “Tudo o que viu, ouviu ou soube procurou
sintetizar no livro”,
163
diz a matéria.
164
E a linguagem? A própria figura do tal
sargento Getúlio? O tema? Uma jornalista escreveu que o sargento Getúlio é “uma
figura compósita, amálgama de uma porção de sargentos que João Ubaldo
conheceu até aos dez anos”.
165
E eu cito os três: o sargento Getúlio, o sargento
Tasso e o sargento Cavalcante.
— Encantado, é um prazer conhecê-los... E qual a função de cada um deles
no desenvolvimento do romance? O verdadeiro Getúlio propriamente dito nós já
conhecemos... E os outros? — o meu interlocutor estava curioso.
— ... Meu pai tinha vários sargentos (...). Esses sargentos na verdade eram
uma forma burocratizada de jagunços (...), que eram necessários para a proteção
da casa. (...) O sargento Tasso, alagoano como meu pai, era um sargento bem
dentro de casa, fiel, que ficava com a submetralhadora no colo (...), era o que
podia conviver com a família, com as crianças da família, era o homem de
confiança, um sargento enorme, foi o homem que me contou a maior parte
dessas histórias aí no Sargento Getúlio, enorme, simpático, uma pessoa boa,
rude mas boa, ao mesmo tempo um facínora!
166
Eu me lembro das mãos dele,
duas mãos como duas tábuas...
167
— O sargento Tasso foi a Sherazade de Ubaldo. Quando se esgota o
arsenal de suas histórias, o escritor o mata ao final do livro...
— Sim, uma boa relação... Mas o que me interessa mesmo é o tema da
travessia — disse eu, animado. — A idéia de João Ubaldo Ribeiro de estruturar
163
Sargento Getúlio (...) — sucesso de crítica...”, Jornal do Brasil, 3 jun. 1978.
164
— E disse João Ubaldo acerca dessas imagens de infância: “Minha infância em Aracaju foi ótima,
tenho grandes lembranças. E, como não se pode voltar para casa, hoje não gosto mais de ir a
Aracaju, porque nunca volto a Aracaju. Estive lá com Berenice, fui mostrar a ela a infância, não
achei mais nada” (“João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985
).
165
Cremilda MEDINA, “No caminho das almas...”, Diário de Notícias, 14 dez. 1984.
166
“When I interviewed him in Brazil a few years ago”, disse uma jornalista, “Ribeiro
explained that the real northeast macho types like Getúlio can be small, frail-looking creatures
who suddenly turns into beasts”. E ela descreve João Ubaldo a transformar-se em personagem:
“His voice quickly changed to a whine, à la Getúlio: ‘I don’t really kill people. God kills them.
I just make the holes’” (Judy S
TONE, “Multicolored Brazilian History”, Review, 30 abr. 1989).
E traduzo: “Quando eu o entrevistei há alguns anos, Ribeiro explicou-me que o típico macho
nordestino, como Getúlio, pode ser pequeno, uma criatura de aparência frágil que de repente se
torna uma besta fera”; “Sua voz rapidamente mudou para um gemido, a la Getúlio: ‘Eu mesmo
não mato as pessoas. Deus as mata. Eu apenas faço os buracos’”.
167
Fernando Assis PACHECO, “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras,
Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983
.
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todo o livro sobre uma travessia tambémo é gratuita, mas inspirada numa outra
travessia, cujas detalhes entreouviu de uma conversa de seus pais:
... um tal coronel Cavalcante,
168
amigo de seu pai, por motivo passional ou
político, tinha levado dezessete tiros em Paulo Afonso e continuava vivo. O pai
de João Ubaldo, de Aracaju, conseguiu uma ambulância — coisa rara no local —
e mandou buscar o amigo ferido, pelas estradas de terra. Isto há quase quarenta
anos. Cavalcante chegou vivo, e só veio a morrer mais tarde, “assassinado por
outro motivo”.
169
— E Getúlio Santos Bezerra realiza também a sua travessia, não numa
ambulância e à beira da morte, como Cavalcante, mas num “velho hudso” e
caminhando, sem saber e depois já sabendo, para o fim. As dezessete balas do
sargento da infância de João Ubaldo Ribeiro transformam-se nas catorze balas que
Getúlio diz ter encravadas no corpo e que consigo carrega (p. 85). Figuram ambas
as travessias como verdadeiros atos de heroísmo e ambas as travessias como
resultado de uma ordem dos chefes, chefes diversos e ao mesmo tempo
semelhantes, Acrísio Antunes ou Manoel Ribeiro. — E continuei: — Aplicando
aqui as idéias de Javier Marías, que você tão bem apresentou, podemos observar
com nitidez o funcionamento da dissimulação e do falseamento do material
biográfico verídico, ou, nas palavras de João Ubaldo, a “autobiografia
fantasmagórica”...
170
Javier Marías — e peguei o livro — diz que o escritor
confia, para o tratamento desse material de vida, num gênero literário
determinado, neste caso o romance, ou a novela, sempre acreditando que é graças
ao mecanismo do falseamento aplicado às vantagens do gênero que a sua história
ganhará valor, um valor que a história, por si mesma, não teria, caso viesse ao
mundo literário tal como veio ao mundo da memória individual...
171
168
— Há matérias que falam no “sargento Cavalcanti” — fiz um parêntese. — É o texto do
Luciano T
RIGO, numa matéria para O Globo, “O sargento jagunço e assassino que iniciou João
Ubaldo na literatura”, sem data.
169
Maria Sílvia CAMARGO, “Um herói tirado da infância”, Jornal do Brasil, 9 abr. 1983.
170
— Uma resenha, aliás, não assinada — eu disse, em nota —, menciona isso, referindo-se a
Setembro não tem sentido: a “tentativa de uma catártica autobiografia espiritual” (“Uma
Semana da Pátria na vida da Província”, Fatos & Fotos, 12 out. 1968
).
171
“Autobiografia e ficção”, op. cit., p. 67.
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— O seu trabalho, então — disse ele —, é duplo: ele deve lembrar-se de
tudo e depois transformar a lembrança quase ao ponto de torná-la uma outra coisa,
bastante diversa de sua origem...
— Sim, e você me lembrou agora o pedaço de uma matéria sobre ele:
João Ubaldo conta que teve dificuldade para sair do primeiro capítulo,
reescrito umas dez vezes. Quando pensava desistir, apesar das cobranças do
amigo jornalista, um dia bebeu um pouco mais (processo de criação que, diz, não
recomenda a ninguém) e “desentalou” o segundo capítulo:
— Daí por diante, todas as lembranças da minha infância, quando morava no
interior de Sergipe e meu pai era deputado federal pelo PSD, começaram a se
processar.
A primeira (...) foi uma história que, menino, entreouviu durante conversa dos
pais...
172
— Trata-se, como vimos, da lembrança do caso do sargento Cavalcante, a
principal — disse eu —, a que deu origem ao tema da travessia... “Edgard, para
onde o sargento Getúlio vai agora?”, pergunta o escritor ao amigo jornalista
Edgard Catoira, que acompanhava a gestação do novo livro, enquanto abria em
casa, à noite, o mapa do Estado de Sergipe, onde foi criado.
173
“Quantas vezes eu
perguntei a ele o que ia acontecer no livro e ele dizia: ‘Ah! o sargento agora
dança...’. Se chamava Edgar, era uma menina ótima. Boneca paulista. Me deu
muita sugestão para o livro.”
174
— E continuei: — Observe que nós cercamos o
romance por alguns lados: conseguimos encontrar um ponto originário de
observação, o menino João Ubaldo Ribeiro na sala da casa de seu pai, em Sergipe,
na década de quarenta, a assistir ao entra-e-sai de sargentos-jagunços, e, rumando
então para o livro, o personagem, coadjuvante, mas essencial, do menino que é
filho do chefe Acrísio, alter ego imediato do menino João, a observar, fascinado, a
conversa entre Getúlio e o chefe. Com esses dois “jovens” observadores tivemos
acesso às histórias principais do romance e aos pedaços biográficos verídicos que
deram origem a um bom pedaço do Getúlio ficcional, o Santos Bezerra, cujo
nome é um verso...
— Bom resumo o seu... Mas o nosso Santos Bezerra não está completo...
172
Maria Sílvia CAMARGO, “Um herói tirado da infância”, Jornal do Brasil, 9 abr. 1983.
173
Id.
174
Renato PINHEIRO & OUTROS, “O sorriso do lagarto — João Ubaldo: um livro sobre o mal”,
Jornal da Pituba, texto sem referência.
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— E nem nunca vai estar, mas podemos ainda apontar para mais dois
outros pontos de vista sobre Getúlio: um deles, o ponto de vista do narrador, que
vai fundir todas as histórias a uma específica linguagem, o “sergipês”, e atribuir
isso a uma fala, a fala de um personagem que fala de si num tempo presente,
sim, mas, ao mesmo tempo, recuperando um painel de informações, de
memórias e de linguagens muito maior do que esse tempo presente do
enunciado, um painel que não pertence a ele, pobre Getúlio, mas pertence a uma
voz um cadinho anterior. Aí reside o narrador... Não, não faça esta cara... — E,
pegando o livro do Tacca, li: — “Há um nítido contraste entre o tempo
(brevíssimo) do personagem e o tempo (dilatado) do narrador”.
175
— E
continuei: — “... o caráter desse desajuste entre personagem e narrador”, diz ele,
refere-se, “mais amplamente, a todo um modo de pensar, a uma ideologia, a
certas convenções culturais, isto é, a uma cultura fundamentalmente literária”.
176
Não foi Getúlio quem recuperou e revificou aquele monólogo hamletiano.
Getúlio teve-o à boca... Ouça o que também escreveu o jornalista e poeta João
Carlos Teixeira Gomes, para quem Sargento Getúlio...
... foi construído sobre o suporte de uma poderosa linguagem, recriando, com
alta competência literária, todo um universo mítico que marcou, com a sua saga
de violência, a infância do autor.
(...) O sargento departamentaliza o mundo, incapaz de compreendê-lo na sua
abrangência e totalidade (...).
(...) Na medida em que Getúlio vai-se exprimindo, é ele mesmo quem está
sendo construído no discurso em progressão (...).
177
— Você está se referindo então ao escritor João Ubaldo Ribeiro?...
— De certo modo, sim — disse eu. — A superposição que você pretendeu,
entre Getúlio e o narrador, fundindo-os, tento-a eu, mas entre o narrador e o
escritor João Ubaldo Ribeiro, estes últimos muito mais próximos entre si do que
os dois primeiros... Como escreveu o Javier Marías, num exercício de auto-
observação, dê-me o livro: “O Narrador, que defini antes como alguém que
175
“O narrador”, op. cit., p. 83.
176
Id., p. 84.
177
João Carlos Teixeira GOMES, “Sargento Getúlio”, Jornal da Bahia, 30 nov. 1980, realcei.
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93
‘poderia ter sido eu’, começava, por assim dizer, a não poder ser outro senão
eu”.
178
Esta é a minha penúltima ponte.
— Este “poderia ter sido eu” significa que o narrador de Marías tinha
muita autonomia, ou seja, poderia ser qualquer um, inclusive ele, Javier Marías.
Mas esse mesmo narrador começou a compartilhar com ele, Marías, tantos
elementos biográficos que se tornou um narrador que não poderia ser ninguém
mais, a não ser ele, Javier Marías... O processo é de afunilamento. Ouça — e ele
pegou o livro. — “Assim, num dado momento, precisei (sempre pensando mais
no ponto de vista do leitor do que do autor) de uma prova convincente, algo que
permitisse que o Narrador pudesse ser pelo menos Outro-além-de-eu” [sic].
179
E o
que faz ele, que não é casado e não tem filhos?
— Casa-se e arranja uma ruma de filhos... O caso de João Ubaldo Ribeiro,
aqui, é diverso, e por duas razões. A primeira: Marías não está fazendo uma
distinção entre o narrador em primeira pessoa e o personagem que diz “eu” em
sua narrativa de si. Não nesse texto, pelos vistos. A segunda, que é decorrente da
primeira — disse eu —, é a seguinte: Marías olha para esse narrador, portanto,
muito mais como um personagem, na medida em que se baseia, tanto para dele se
aproximar quanto para dele se afastar, em aspectos biográficos concretos desse
personagem, que é antes personagem que narrador. Eu olho para o narrador em
Sargento Getúlio não apenas como alguém que tem uma biografia concreta,
porque a biografia concreta está toda com o personagem Getúlio, é a história de
Getúlio... Eu olho para o narrador, como uma voz que só é capaz de dizer o que
diz porque conviveu com sargentos semelhantes a Getúlio, porque teve contato
com histórias tais como a história de Getúlio, porque viveu em Sergipe, porque
ouviu e falou o chamado “sergipês” e ao mesmo tempo leu muito, e, asseguro-lhe,
não em “sergipês”, mas em inglês e português castiço.
180
Ou seja, não há o perigo
178
Javier MARÍAS, “Quem escreve” (p. 84-92), in Literatura e fantasma, op. cit., p. 89.
179
Id., p. 91.
180
— Que João Ubaldo Ribeiro não trata como línguas, ou maneiras de falar, excludentes — disse
eu em nota, acrescentando um detalhe a esse aspecto do “sergipês” e também do português
castiço e do inglês. — Ouça: “... se eu começasse a falar inglês, o pessoal todo da mesa ia
entender, mas, se eu começasse a falar sergipês, o pessoal ia boiar. (...) se essas pessoas
tivessem sido levadas aos clássicos da língua (...), se não manipulassem um vocabulário pop,
cheio de psicanalês, sociologuês e adjetivos antes dos substantivos, compreenderiam tudo
perfeitamente, pois um sergipano ignorante apenas estropia as palavras que pertencem ao nosso
patrimônio histórico, que são nossas, que refletem nossa maneira de pensar e ver o mundo e
(cont.)
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94
de o leitor achar que João Ubaldo Ribeiro é o sargento Getúlio no sentido de que
está contando a sua vida de sargento no Sergipe... Isso é óbvio. Agora... — e
prossegui —, quando se faz a associação entre Getúlio e o escritor, como nesse
caso: “Sargento Getúlio, diz João Ubaldo, fala sergipês. Da mesma forma que o
romancista, que mantém forte sotaque (...). O personagem, diz ele, traduz a aguda
consciência política e o lado fatalista do autor”,
181
e num outro, já citado, em que
a jornalista diz que eles, Getúlio-Ubaldo, no plano emocional, “são mabaças,
nasceram juntos, no mesmo parto”...
182
Quando se faz essa associação, pensa-se
na força que aqueles onze primeiros anos de vida em Sergipe tiveram sobre o
menino João e na força que poderiam ter tido, caso ele permanecesse lá. E chego
agora ao último ponto de vista sobre Getúlio, que é o ponto de vista de João
Ubaldo Ribeiro sobre si mesmo, a minha última ponte. Ouça isso — e li.
— Em meados da década de 40, em Sergipe, eu vivia aquela coisa de
nordestino e atrasado. A coisa era séria. Eu podia até matar alguém que
falasse por brincadeira que eu era corno. (...) Minha família já tinha voltado
para a Bahia. Eu tinha uns 12 ou 13 anos quando entrei para um colégio grã-fino.
Minha família alimentava ilusões quanto ao meu futuro e me colocou lá para eu
receber algum verniz na minha selvageria. Daí, um rapaz, o Sérgio (Cabral), que
depois ficou meu amigo, me deu uma palmada. Me passou a mão na bunda. Eu
estava acabado. Passei mais de um mês tentando matar aquele cara que tinha me
desonrado. (...) Depois aprendi a conciliar o que eu achava certo com o que sentia
que era certo. Aprendi a lidar com as contradições.
183
— E quanto às contradições — disse eu —, está cá uma delas: esse mesmo
menino que precisava de um verniz naquela selvageria de nordestino atrasado que
era capaz de matar alguém que o chamasse de corno, esse menino já tinha lido da
biblioteca de seu pai, aos doze anos, “com efeitos às vezes surpreendentes, a
maior parte da obra traduzida de Shakespeare”, conforme já vimos.
184
que, por isso mesmo, o colonizador transforma em língua estrangeira” (João Ubaldo R
IBEIRO,
“O analfabetismo erudito”, Enfim, texto sem referência).
181
Maria Sílvia CAMARGO, “Um herói tirado da infância”, Jornal do Brasil, 9 abr. 1983.
182
Lena FRIAS, “João Ubaldo (...) escreve para não ficar louco”, Jornal do Brasil, 31 jul. 1978.
183
Beatriz CARDOSO, “O que sei é que começo pelo título”, Tribuna da Imprensa, 11 ago. 1986,
realcei.
184
Wilson COUTINHO, “Infância 2: livros”, op. cit., p. 39.
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— Parece que estamos a ler um depoimento de alguém que Ubaldo
poderia ter sido, um Getúlio Santos Bezerra, por exemplo, mas que acabou não
sendo... — disse ele.
— Sim. Quando eu afirmo que um dos pontos de vista acerca de Getúlio é
justamente o ponto de vista de João Ubaldo Ribeiro sobre si mesmo, estou de certo
modo olhando para o escritor como se ele fosse um personagem de si mesmo, sim,
mas um personagem que ele acabou não sendo, porque o que ele acabou sendo foi o
narrador que com tanta precisão compôs o universo lingüístico, ético e literário que
rodeia Getúlio, Dragão Manjaléu, cujo nome é um verso...
— Getúlio diz, mais próximo do final do livro: “Agora eu sei quem eu sou”
(p. 154), “... agora eu sou eu...” (p. 152), “Eu sou Getúlio Santos Bezerra...” (p. 136).
— Agora — interrompi-o — ouça isso: “Para ser bem pernóstico e imitar
Flaubert”, disse João Ubaldo Ribeiro, “pode escrever aí: Sargento Getúlio sou eu.
Uma voz do inconsciente miserável”.
185
— E repeti: “Sargento Getúlio sou eu”,
diz João Ubaldo Ribeiro. E lhe pergunto: “eu” quem?
— O narrador — e ele sorriu.
— Fale-me do filme... — pedi, mudando levemente de assunto.
2.4. DO LIVRO AO FILME
186
E A VOLTA E MEIA
— Bom, o filme, com roteiro de Hermano Penna e Flávio Porto, e diálogos
adicionais do próprio Ubaldo, é de 1978.
187
185
Maria Sílvia CAMARGO, “Um herói tirado da infância”, Jornal do Brasil, 9 abr. 1983.
186
— Hermano Penna definiu o seu filme — disse o meu interlocutor —, como “uma epopéia
musical” e “a história de uma obsessão” (Antônio G
ONÇALVES FILHO, “Lima Duarte e a
obsessão de um personagem”, Folha de S. Paulo, 22 mai. 1983
).
187
— O filme de Hermano Penna — disse ele, acrescentando que eu deveria colocar essas
informações numa nota de rodapé —, com o papel título na pele de Lima Duarte, ganhou em
1983 muitos prêmios: no Festival de Gramado, de Melhor Filme, Melhor Ator Principal,
Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Som. E há um detalhe curioso... — continuou. — Além do
Lima Duarte, há no filme, segundo Susana Schild, apenas dois outros atores profissionais:
Flávio Porto, como o padre, e Fernando Bezerra, como o preso. “Orlando Vieira, como o
motorista que acompanha Getúlio e escolhido melhor coadjuvante, era na época da filmagem
funcionário do DNER da cidade”, diz ela (“Sargento Getúlio, repressão e poder”, Jornal do
Brasil, 29 mai. 1983
). — E ele continuou a elencar os festivais: — No Festival de Havana,
prêmio Especial do Júri e de Melhor Ator; no Festival de Locarno, prêmio de Melhor Direção;
no Festival de Nantes, Sargento Getúlio ganhou os prêmios de Clubes Unesco e da Crítica.
Ganhou ainda o prêmio Air France, de Melhor Ator; o Prêmio APCA, de Melhor Filme,
Melhor Ator, Melhor Direção; e o Prêmio Gov. do Estado, de Melhor Filme e Melhor Ator.
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96
— A propósito dos diálogos adicionais — interrompi-o —, observe aqui a
des-solenização de João Ubaldo Ribeiro mais uma vez em ação. — E li uma
matéria: “... eles [Hermano Penna e Flávio Porto] pediram palpites no roteiro: ‘O
que eu faço com essa porta, João?’. Eu dizia: ‘Ah, fecha ela, que eu acho que fica
bom’. Colaborei, no máximo, com umas quinze linhas, que, na tela, constam
como ‘diálogos adicionais por João Ubaldo Ribeiro’”.
188
E, segundo o texto, ele
ainda imposta a voz...
189
— Livro e filme — disse ele —, a despeito de serem intrinsecamente
diversos do ponto de vista da linguagem de que se valem para a expressão de seus
sentidos, livro e filme caminham, neste feliz caso de adaptação, bastante
próximos. Pode-se dizer do filme que é, tal como o livro, bastante literário;
literário em seus diálogos, em suas descrições, em sua maneira de estruturar-se
dentro do tempo narrativo.
— O que é que você quer dizer com isso?
— Que a utilização de convenções narrativas e dramáticas não é exclusiva
do cinema ou da literatura, e isso quem explica é Ismail Xavier — disse ele, todo
professoral e retirando mais um livro de nossas compridas estantes.
190
Mesmo se
assim não fosse, mesmo que não encontrássemos nesse filme modalidades
narrativas semelhantes às do livro, ainda assim perceberíamos a presença, entre
livro e filme, de um cabo firme e pulsante a torná-los, ao livro e ao filme,
perfeitamente comunicantes.
191
Segundo o próprio diretor, Hermano Penna, “...
188
Maria Sílvia CAMARGO, “Um herói tirado da infância”, Jornal do Brasil, 9 abr. 1983.
189
— Ouça ainda isso — disse ao meu interlocutor, em forma de nota de rodapé. — João Ubaldo
numa entrevista: “Lá no filme tem que eu fiz os diálogos adicionais. Nada, só fiz cinco linhas,
porque precisaram de uma porra lá e pediram para eu escrever. Eles são loucos” (Renato
P
INHEIRO & OUTROS, “O sorriso do lagarto — João Ubaldo: um livro sobre o mal”, Jornal da
Pituba, texto sem referência).
190
Ismail XAVIER, “A decupagem clássica” (p. 19-30), in O discurso cinematográfico: a opacidade e
a transparência, 2ª ed. revisada, Rio de Janeiro, Paz e Terra — Cinema, 1984, p. 24.
191
— Interrompo-o para citar, em nota: “No texto de João Ubaldo (...), existe uma certa vontade de
ser imagem. Vontade de falar de tudo ao mesmo tempo, de revelar de uma só vez a figura em
primeiro plano, a paisagem no fundo e as coisas secundárias que se percebem com o canto dos
olhos. Na imagem de Hermano Penna (...), existe uma certa vontade de ser texto” (José Carlos
A
VELLAR, “Livro depois do filme, filme depois do livro”. Jornal do Brasil, 9 abr. 1983).
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97
nossa preocupação foi a completa fidelidade ao livro.
192
Não escondo que o filme
é um documentário sobre o livro”, diz ele.
193
E amplio este meu comentário...
— A fidelidade do diretor e do roteirista, desculpe interrompê-lo mais uma
vez, foi, na visão de João Ubaldo Ribeiro, quase acrítica, pelo menos se levarmos
em conta o roteiro geográfico percorrido pelos personagens... — disse eu.
194
Ouça agora o escritor a revelar o processo randômico da construção do trajeto...
— Eu disse a eles que escrevi o livro jogando feijão no mapa, com a
assessoria do Edgar, e eles seguiram o roteiro inteiro. Eu abria um mapão do
Sergipe que tinha lá em casa, a geografia humana do estado do Sergipe, e jogava
os feijões. Aí caía: Jaboatão. E eu botava na história: Jaboatão...
195
— Isto é Ubaldo, mais uma vez, a desmistificar o seu processo de escrita,
numa clara alusão à mistificação que ele deve observar nos textos acadêmicos...
— disse ele, e voltou à frase que eu havia interrompido. — E amplio este meu
comentário anterior — repetiu — com um comentário de Orlando Fassoni, que,
por sua vez, também amplia sobremaneira o alcance do filme, tratando como
muito mais que um documentário sobre o livro:
... Getúlio é um dos personagens mais comoventes surgidos no cinema
brasileiro desde A hora e vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos. (...) Temos
com ele, no filme, um painel rigoroso do universo mental do homem nordestino,
uma espécie de enciclopédia do pensamento inconsciente do homem dos sertões,
de suas contradições existenciais, de sua obstinação e da visão trágica de um ser
humano que marcha, inexoravelmente, para a destruição.
196
— Parece-me que a preocupação, no romance, de descrever um ambiente,
um personagem, uma ação, a preocupação de explicitar uma série causal de
192
— Segundo a crítica e jornalista Susana Schild, essa fidelidade é um dos orgulhos de Hermano
Penna — disse ele, indicando que o comentário deveria vir em forma de nota (“Sargento
Getúlio, repressão e poder”, Jornal do Brasil, 29 mai. 1983
).
193
Maribel PORTINARI, “Sargento Getúlio: a epopéia sergipana do capanga e seu prisioneiro
estréia hoje no Rio”, O Globo, 30 mai. 1983.
194
— Sim, sim — disse-me o meu interlocutor naquilo que será uma nota —, e o mesmo roteiro
percorreu o próprio Hermano Penna, que, “durante um mês”, diz a Susana Schild, “refez o
percurso de 200 km, no qual se revela o nordestino desterrado” (“Sargento Getúlio, repressão e
poder”, Jornal do Brasil, 29 mai. 1983
).
195
Renato PINHEIRO & OUTROS, “O sorriso do lagarto — João Ubaldo: um livro sobre o mal”,
Jornal da Pituba, texto sem referência.
196
Orlando FASSONI, “Sargento Getúlio”, Embrafilme, Os anos Embrafilme, p. 141-142.
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98
acontecimentos, a preocupação, em suma, de contar uma história, se revela
secundária. Você diria o mesmo do filme?
— Sob certo sentido, sim; sob outro sentido, não, dadas as características
da própria linguagem cinematográfica, que, afinal, produz e manipula imagens. O
filme, mesmo assim, manteve-se literário e conseguiu manter a linguagem de
Getúlio, e a imagem aqui revela-se bastante apropriada — disse ele —, em
primeiríssimo plano, soberana e estruturadora. E, como bem observou Susana
Schild, não se pode falar em “adaptação para o cinema, mas em documentação de
um livro. E, como no livro, o filme não tem ‘ponto final’”, diz ela.
197
— Escolha as melhores seqüências do filme e desenvolva — pedi,
interessado em realizar, na tese, essa leitura comparativa.
— Por que não fazer o caminho inverso? Por que não partimos do livro e
só então nos debruçamos sobre o filme, com o intuito de ver como este funciona
em relação ao livro?
— Porque já falei muito do livro, porque o livro deu origem ao filme, o
livro se revela a base a partir da qual se sustenta o filme, que, por sua vez,
constitui um a posteriori em relação ao livro. O filme, sob todos estes aspectos —
disse eu —, é uma conseqüência do livro, no sentido de que nele se inspira,
aproveitando para si determinados momentos, aspectos e soluções encontradas no
livro, e descartando outros tantos. — E eu sorri: — Você disse lá atrás que tem o
filme todo na cabeça...
— Bom, tenho mesmo... — e ele suspirou. — O filme causou lá o seu
reboliço...
198
Bom, há então a primeira seqüência, os primeiros dez minutos do
filme — começou ele —, que podem ser representados por essa fala de Getúlio:
“Quando estou pensando, estou falando, quando estou falando, estou pensando”.
Imagino que o filme e o livro comecem praticamente no mesmo ponto, e esta
primeira seqüência deve ter lugar, então, no capítulo primeiro. O filme, em
197
“Sargento Getúlio, repressão e poder”, Jornal do Brasil, 29 mai. 1983.
198
— “A grande surpresa do festival (...) [XI Festival de Cinema de Gramado] foi Sargento
Getúlio, de Hermano Penna” — e ele leu. — “Está todo centrado no desempenho de Lima
Duarte, que faz o papel principal. No consenso da imprensa que cobre o festival, é o único
filme que merece o primeiro prêmio. Os aplausos após a apresentação (...) comprovaram que
Sargento Getúlio desponta como o grande favorito, não só como melhor filme, mas para o
prêmio de melhor ator, que certamente será arrebatado por Lima Duarte” (Juarez P
ORTO, “XI
Festival de Cinema de Gramado — A Mostra chega ao fim com o público decepcionado”,
Jornal do Brasil, 26 mar. 1983
).
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99
seguida à música de abertura, abre-se à visão de um carro a viajar à noite, no
escuro, e em seguida ao interior do carro, o velho dodge. Sentados no bando de
trás, Getúlio e o preso; à frente, Amaro, silencioso, ao volante. Alterna-se esta
cena com imagens do espaço do lado de fora, a mostrar aquilo que o farol do carro
ilumina: casas pobres, com suas portas e janelas cerradas. Getúlio vai
mentalmente enumerando os vilarejos por onde já passaram e ainda vão passar,
dando a entender que a viagem será longa e cansativa. Esta seqüência do carro à
noite, em movimento — prosseguiu o meu interlocutor —, ainda cumprirá a
função de apresentar bem o nosso homem e deixar clara a situação de terror que se
abate sobre o preso. O revólver de Getúlio está empunhado, de modo a que já se
tenha uma idéia de que tipo de situação se está a viver naquele carro. A luz que se
projeta sobre a cena é quase nenhuma, o sertão está que é uma escuridão só, e as
poucas zonas de luz incidem de modo aleatório sobre os rostos suados e cansados
do sargento e do preso, mantendo-os a ambos, na maior parte do tempo, na treva.
— Não se vê o sertão, mas é como se lhe sentíssemos os cheiros... — E
citei o Ismail Xavier: — O espaço cinemático compreende dois tipos de espaço,
explica Noel Burch, “aquele inscrito no interior do enquadramento e aquele
exterior ao enquadramento”.
199
— Sim. O que há fora do enquadramento são o sertão e sua negrura básica.
E por que fica o sertão tão presente, embora dele não se veja nada? — E ele,
tirando-me o livro das mãos, respondeu a si mesmo: — “... o espaço diretamente
visado pela câmera poderia fornecer uma definição do espaço não diretamente
visado, desde que algum elemento visível estabelecesse alguma relação com
aquilo que supostamente estaria além dos limites do quadro”, responde Ismail
Xavier.
200
O elemento visível a estabelecer uma relação é justamente o breu, o
fator a invisibilizar todos os demais elementos. Pode-se ainda observar nessas
cenas — continuou ele — o fenômeno conhecido, ainda segundo Ismail Xavier,
como câmera subjetiva: “A câmera é dita subjetiva quando ela assume o ponto de
vista de uma das personagens, observando os acontecimentos de sua posição e,
199
Práxis do cinema (tradução portuguesa do Práxis du Cinéma, Paris, Gallimard, 1969), citado
por Ismail XAVIER, “A janela do cinema e a identificação” (p. 11-18), in O discurso
cinematográfico..., op. cit., p. 13.
200
“A janela do cinema e a identificação”, op. cit., p. 13.
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100
digamos, com os seus olhos”.
201
Neste caso uma câmera subjetiva de efeito
atenuado. Em muitos casos, a operação da câmera subjetiva não é percebida
conscientemente pelo espectador, explica Xavier. “É neste momento que o
mecanismo de identificação se torna mais eficiente (...). Nosso olhar, em princípio
identificado com o da câmera, confunde-se com o da personagem; a partilha do
olhar pode saltar para a partilha de um estado psicológico
202
— disse ele,
realçando a última frase. — Os primeiros planos do sargento e do preso estão
supostamente revelando os olhares de ambos um sobre o outro, e esses olhares se
confundem com o nosso. A intensificar esse efeito temos, dadas as péssimas
condições da estrada, o sacolejo do carro. A imagem vista está às sacudidelas
porque quem a vê também sacoleja, já que a câmera sacoleja e tudo sacoleja, e
pela estrada afora sacolejamos todos, porque, como observou José Carlos Avellar,
“o cinegrafista vai ali dentro, meio repórter, meio olheiro, meio espião, que vê a
cena sem ser visto, que se coloca dentro da ação, mas entre parênteses”.
203
O
efeito é imediato: somos transportados para dentro do velho dodge e passamos a
compartilhar o destino daqueles três homens. Getúlio olha para o “pirobo
semvergonho” e o xinga, demonstrando assim todo o seu desprezo por suas
condições, digamos, sócio-intelectuais. Diz o sargento, no filme, fazendo uma
careta de desdém: “Tem ginásio!... Tem ginásio!... Nunca vi ginásio dar caráter a
ninguém!”. Quando olha para o preso, Getúlio está quase a olhar para a câmera,
com um pequeníssimo desvio.
204
— Trata-se de um movimento de inserção gradual do espectador na
própria interlocução... Estamos na pele dos dois, alternadamente.
— Sim. Em seguida à muita falação, Getúlio e Amaro interrompem a
viagem, amarram o preso a um pedaço de pau iluminado pelos faróis do carro,
acampam no mato, fazem um fogo e conversam. A segunda seqüência que
201
“A decupagem clássica”, op. cit., p. 26.
202
Id., ibid.
203
“Livro depois do filme, filme depois do livro”, Jornal do Brasil, 9 abr. 1983.
204
— Uma pequena informação — interrompi-o, para abrir uma nota. — O olhar de um ator para
outro foi, aos poucos, com o passar do tempo, se deslocando em direção à câmera. Ouça o que
escreve Jean-Claude Carrière: “Nos anos 60, o ator olhava para um rosto encostado à câmera.
Nos anos 70, ele olhava para a própria borda do aparelho. Hoje em dia, olha para um pedaço de
fita presa ao lado da lente” (“Algumas palavras sobre uma linguagem” (p. 13-49), in A
linguagem secreta do cinema, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995, p. 31).
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101
escolho, deixe-me ver... — e ele fechou os olhos. — Podemos dizer que pode ser
representada pela fala de outro personagem, o Elevaldo, que diz: “Acontece que
tem de deixar o homem uns tempos na fazenda do Nestor Franco”.
— Isto se localiza no capítulo terceiro do livro, um capítulo
essencialmente acontecimental — esclareci —, bastante diferente do segundo,
mais estático de ações e somente dedicado às reminiscências do sargento, o que
equivale a dizer, talvez, algumas boas reminiscências de João Ubaldo Ribeiro.
— Bom, essa cena mostra um resto de fogueira no chão e o carro parado
no meio de lugar nenhum. O ponto de vista da cena é o do preso, amarrado em
frente ao fogo da véspera. Getúlio amanhece seu primeiro dia com o início do que
será a reviravolta em sua viagem. É comunicado pelo Elevaldo, surgido do meio
do mato, que o trio deve fazer uma parada estratégica na fazenda de Nestor
Franco. “Os jornais estão fazendo um barulho danado, vai chegar força federal em
Aracaju”, avisa Elevaldo, limpando suor da nuca com um lenço. E ele arremata:
“O Chefe disse na rádio que não prendeu ninguém”. A câmera alterna entre
Getúlio e Elevaldo, num plano americano.
— E com a resposta de Getúlio podemos perceber toda a ingenuidade de
sua alma — arrisquei —, completamente ausente, excluído e ignorante do tipo de
poder que o cerca por todos os lados. Imagino que no filme ele também diga: “Ele
mesmo não prendeu, quem prendeu foi eu” (p. 46), não é?
— Sim, e o preso, diante de tal disparate, de tal falta de noção acerca da
geografia do mando e do desmando naquelas paragens, arrebenta numa
gargalhada. Através das palavras de Getúlio, “ele mesmo não prendeu”, podemos
perceber a importância que terá, em toda essa história, a presença física do chefe,
ou melhor, a ausência de sua presença, uma ausência que será determinante para
que Getúlio se mantenha convicto da necessidade de terminar sua missão, uma
vez que o chefe, ele mesmo, ainda não lhe disse nada, e nem lhe dirá... — E ele
continuou: — Encorajado pela ingenuidade de Getúlio, pelo olhar simplista e
infantil de seu algoz, o preso...
— ... o “fidumaégua, fidumavaca, fidumajega” (p. 27) — citei.
— ... abre a boca pela primeira vez, cheio de si e coragem, com uma
segurança até então inédita para nós, ainda rememorados de sua expressão de
grande medo na seqüência anterior, no carro, à noite, e faz então uma proposta ao
sargento: esquecer tudo, cada um indo para um lado, e ficando tudo na “santa
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paz”. Assim que ouve a “gaitada” e, em seguida, a proposta do “pirobo
semvergonho”, Getúlio reage com visível irritação à proposta do “fidumaégua”;
uma irritação tão grande que chega ao ponto de enumerar os tipos de morte que
pretende aplicar ao seu preso...
— Isto ocupa toda a página 49...
— A câmera desce e mostra o sargento a partir de baixo. Somos nós a
olhar para Getúlio, sim — continuou o meu interlocutor —, mas não através dos
olhos do preso, porque a câmera não está exatamente sob o seu ponto de vista
físico, mas sob o seu ponto de vista psicológico. A câmera posiciona-se um pouco
à direita do preso, que permanece amarrado a um pau, indefeso, e filma Getúlio de
baixo, tornando-se o sargento grande e ameaçador, com sua expressão de
insanidade nos olhos.
— O fato de o livro se apresentar como um monólogo de Getúlio e dele
não conseguirmos escapar por um só instante, somente, talvez, no instante final,
em que o sargento cala a boca, mas aí o livro acaba... — E concluí: — Isto nos
priva de experimentar esse jogo de pontos de vista que o filme aciona. Se o filme
levasse a cabo, de modo radical, a proposta de focalização do livro, jamais
veríamos a figura de Getúlio, a não ser no espelho, de vez que nós seríamos
Getúlio e enxergaríamos o mundo pelos olhos dele. Uma câmera autodiegética...
— Sim, através do filme, somos várias personagens; através do livro,
somos apenas um. Veremos o mundo, em outras tomadas, sob a ótica do
oprimido, o que podemos chamar o olhar da vítima, instrumentalizado no recurso
da câmera subjetiva. Há momentos exemplares — disse ele —: um pouco depois
do aparecimento de Elevaldo, com o nosso trio a chegar à fazenda de Nestor. O
preso não viaja dentro do carro, mas fora, puxado como se levassem, à traseira,
um jegue. Amarrado a uma corda, tenta acompanhar o veículo e segue tropeçando.
A câmera refaz o movimento e a trepidação que seriam característicos do andar do
preso, como se de fato estivesse a pisar em pedras e a meter o pé em buracos. A
câmera não está propriamente no seu ponto de vista, mas o movimento trepidante
que a acompanha, sim. Outro momento? A punição aplicada à filha de Nestor,
flagrada a esfregar-se ao “fidumaégua”. Grita o pai, entre uma e outra chicotada:
“Mulher que viu homem nessas condições é rapariga! Ou vai ser!”. A câmara
treme e mostra-nos o pai de frente, a olhar para a menina, quer dizer, para nós, em
meio a uma imagem enevoada, tremida e bastante aproximada.
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— Sentimos nós a força do manguá...
— Ô... Mais um momento? O da quebra dos dentes... — E o meu
interlocutor prosseguiu: — Do mesmo modo que a menina, o preso também é
castigado. Getúlio aproxima-se, e podemos enxergar “o pirobo semvergonho”
sentado no chão, amarrado, através das pernas abertas de Getúlio, na imagem
invertida de um “V”. Não estamos dentro dos olhos do preso, mas sim à mesma
altura em que ele se encontra, como se estivéssemos nós também sentados no
chão, de frente para o prisioneiro, e o sargento surgisse por cima de nossas
cabeças, e avançasse. Um pouco antes, estão os homens na varanda, a deliberar
que tipo de punitivo seria aplicado. Nesta cena, a câmera adota posicionamento
diverso: sobe e mostra os homens por cima, a debater crueldades. Sob este ângulo,
tornam-se, aos nossos olhos, pequenos, mesquinhos e ridículos no exercício de
seu poder covarde. O momento mais radical, no entanto, configura o da degola do
tenente. Getúlio é chamado de corno e, em meio a um tiroteio, consegue isolar-se
num duelo à faca com o oficial.
— No livro, não há faca; há uma pedra. — E li: — “... uma pedra como
que uma pedra de calçamento e agarro essa pedra e com uma raiva que nem sei
(...), olho bem assim para a cara dele e solto a pedra na cara dele com toda a força
que eu tenho” (p. 75).
— A cena é tensa, ilustrada com uma música rápida e ritmada, enquanto a
câmera inicia uma série de movimentos circulares à volta dos duelistas. Getúlio
derruba o sargento, espeta-lhe várias vezes o tórax com o facão e o encara,
encarando a nós, quase num primeiríssimo plano. Um segundo depois, lança mão
do facão e começa a degola. A música, até então intensa, diminui de som e
velocidade, até extinguir-se por completo, juntamente com o descolamento da
cabeça, numa evidente referência à hipótese, por óbvias razões nunca
comprovada, de que num caso de decapitação o sentido do olhar é o último que se
vai. A cena torna-se inteiramente silenciosa e o que se vê é a expressão insana de
Getúlio, a mirar sua vítima. O infeliz espectador, portanto, na radicalíssima e
desconfortável posição do degolado, perde e audição, mas não a visão. Em
seguida, Getúlio pega a cabeça pelos cabelos e a atira para o alto.
— Corta! — pedi. E disse: — No fundo, no entanto, é Getúlio, e sabemos
disso pelo livro, quem sente medo de sua presa, um medo tal que o fez lembrar-se
de ninguém menos que o diabo.
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— Pois. No filme, esse medo de Getúlio e essa associação do preso com os
estranhos e impalpáveis elementos do mundo e do submundo ficam claros
quando, já à mesa de Nestor, o nosso sargento diz, referindo-se ao cabra, lá,
amarrado: “Isso não é coisa boa. Isso não é peça que preste. Para mim, é bicho,
seu Nestor. Para mim, isso daí vira lobisomem”. Passo agora à terceira seqüência
que considero relevante — disse ele —, que pode ser representada pela seguinte
conversa: “Tirando bicho de pé, seu Getúlio?”, “... não sei mais o que eu podia
estar fazendo com uma agulha na mão e o pé para cima”. Nesta seqüência, Getúlio
já chegou à fazenda de Nestor, já almoçou e está parado, “Isso aqui me dá uma
agonia...”, a pensar sem destino, a pensar em vacas, em bois e em jias, enquanto
tenta retirar um bicho de pé do dedão.
— Vejo então que o filme torna linear o que no livro está
cronologicamente fora da ordem. No livro, o descanso na varanda de Nestor, a
tirar o bicho de pé, permite a Getúlio que se sente, pense e empreenda toda a
rememoração que formou a seqüência anterior, uma rememoração que começa na
página 45, com Elevando chegando e o preso gargalhando e fazendo a proposta ao
sargento, e termina na página 49, desse modo: “... e assim foi, até que se chegou
na casa e se instalamos e eu estou aqui com essa me olhando e querendo saber se
eu estou tirando bicho do pé. Um fastio aqui”.
— Sim. No filme, o descanso na varanda cumpre a função de ambientar
Getúlio em sua nova parada e expor mais algumas características de sua
personalidade e da de Amaro, quais sejam, a indisposição do sargento para ficar
parado, sem nada o que fazer, pensando em como desgosta de bois e vacas. — E
ele leu: — “... eu não me dou com vaca, é um bicho burro, e anda de cara
baixa...”; e, por outro lado, a tranqüilidade de seu compadre, “cortando tiririca,
mordendo tiririca, lascando o dedo na tiririca”. A cena na varanda de Nestor
parece-me paradigmática do tipo de solução discursiva desenvolvida no filme:
pensamento em modo de elaboração, ou seja, voz em off; e pensamento em modo
de expressão, ou seja, fala. Quer mais café? — perguntou ele. — Faz tempo que
não tomamos café... — E seguiu: — Num determinado momento do não-fazer-
nada-de-Getúlio, ali, ao lado de Amaro, surge por trás a filha de seu anfitrião,
Nestor, e lhe pergunta, dengosa: “Tirando bicho de pé, seu Getúlio?”.
— No livro, em seguida ao travessão que caracteriza a pergunta da menina
— acrescentei —, Getúlio reinicia seu monólogo, dizendo, ou melhor, pensando:
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“Estou tirando bicho do pé, não sei mais o que eu podia estar fazendo com uma
agulha na mão e o pé para cima, só se quisesse costurar os pés. Não gosto do jeito
dela” (p. 43). O filme então opta por mostrar essa resposta de Getúlio sob a forma
de um pensamento, não é? Essa opção configura a essência da potente
literariedade observada na adaptação.
— Sim — disse ele. — O sargento, com cara de poucos amigos, encara a
menina, encarando a nós, e apenas mantém longamente o olhar. Enquanto isso,
ouvimos seu pensamento através da voz em off. Para Getúlio, pensar ou falar não
constituem atos assim tão diferentes, tanto é assim que ele muitas vezes completa,
falando, um pensamento. Quem está fora de sua cabeça, ou seja, todos, menos
nós, espectadores e leitores, não entende nada, justamente porque pegou o
pensamento no meio do caminho. Um outro exemplo — continuou ele, feliz por
estar falando do filme e, especificamente, dos pontos de vista desenvolvidos ao
longo do filme —: ainda sentado na varanda de Nestor, ao lado de Amaro, Getúlio
pensa, referindo-se ao preso: “Ainda mais o peste na sala fazendo
cumprimentos...”. Em seguida diz em alto e bom som, a imitar a voz do
“fidumaégua”: “Boas tardes para todos!...”, para em seguida voltar a pensar, lá
consigo, ensimesmado: “É uma finura...”. Amaro, que só ouviu o “Boas tardes
para todos!...”, não entendeu nada...
— Estou impressionado com a sua memória... — eu disse, pensando na
minha sorte em ter encontrado, por acaso, um interlocutor tão apropriado...
— Esse filme me marcou. — E ele, ansioso para prosseguir, prosseguiu:
— O efeito desse tipo de recurso sobre o espectador é imediato: gera intimidade.
De certo modo, e guardadas as proporções e os feitios de cada uma das duas
linguagens, a mesma intimidade criada pelo monólogo literário, imagino...
— Concordo. O efeito da intimidade produz uma conseqüência decisiva
para toda a compreensão do livro, ou do que podemos chamar “o complexo
Getúlio”. A partir do momento em que começamos a nos sentir íntimos de nosso
herói, somos, afinal, capazes de ler e ouvir seu pensamento, já que habitamos o
vazio de sua cabeça... A partir desse momento, todo o nosso julgamento moral
acerca dos seus atos de violência se torna subitamente dificultado, e a questão do
romance deixa de ser simplesmente uma questão dicotômica dividida entre o
preso, a vítima; e Getúlio, o carrasco. Getúlio torna-se, então, complexo, e
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2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO
106
começamos a gostar dele, não é?
205
As resenhas norte-americanas, de modo geral,
focalizaram esses dois aspectos do livro: a dificuldade de se estabelecer um juízo
acerca do personagem e a dificuldade de se criar um personagem que seja fiel a
um conjunto de valores e não seja, ao mesmo tempo, uma caricatura obsessiva.
Encontrei outros exemplos que abordam isso, especialmente o último. Ouça — e
li, traduzindo em nota.
(i) ... when Getúlio defies the new orders in an attempt to rightously pursue
his goal, that he begins to turn from a ghastly, violent figure into a sort of moral
hero.
206
(ii) Getúlio is clearly a monster and hero at the same time, and Ribeiro’s large
achievment is to keep us wondering how exactly this can be. How ideology can
suddenly seem like biology — and Getúlio (and this book) like a strong, strange
mutant.
207
(iii) ... he makes us bleed for this barbarian, even respect him. (...) “Created”
is the key word here. Ribeiro has created not only a remarkable man, but a
distinct sensibility in which violence and a sensuous appreciation of the physical
world seem effortlessly blended.
208
(iv) Vicious though the Sergeant often is, he is not without warmth of feeling.
The impressive juxtaposition of monstrous threats and a fever of lyricism, as
Getúlio records his responses to the misty mornings by the mountains, lends him
the same disturbing ambivalence that we find in Camus’s Meursault.
209
205
E me lembrei de uma crítica de jornal: “Ubaldo Ribeiro is remarkably adept at presenting the
repellent world of the sergeant in an often poetic fashion: the fantasies and reflections of the
sadistic protagonist acquire at times power and originality” (“Sergeant Getúlio, by João
Ubaldo Ribeiro”, Brary Journal, 15 jan. 1978
). E traduzo: “Ubaldo Ribeiro é um notável
perito em apresentar, de uma forma freqüentemente poética, o mundo repelente do sargento: as
fantasias e reflexões do protagonista sádico adquirem por vezes força e originalidade”.
206
— “Quando Getúlio desafia a nova ordem numa tentativa de perseguir com justeza seu
objetivo, ele começa então a transformar-se: de uma horrível e violenta figura a uma espécie de
herói moral” (“Sergeant Getúlio, by João Ubaldo Ribeiro”, Chicago, 15 fev. 1978
).
207
— “Getúlio é claramente um monstro e um herói ao mesmo tempo, e a grande façanha de
Ribeiro é nos manter perguntando como exatamente isso pode se dar. Como a ideologia pode
de repente nos dar a impressão de ser como a biologia — e Getúlio (e o seu livro) como um
poderoso e estranho mutante” (“Sergeant Getúlio, by João Ubaldo Ribeiro”, The Reviews, 15
nov. 1977).
208
— “Ele nos faz sangrar pelo seu bárbaro, até mesmo respeitá-lo. (...) ‘Criado’ é a palavra chave
aqui. Ribeiro criou não apenas um homem notável, mas uma bem definida sensibilidade na
qual violência e uma sensual valorização do mundo físico parecem empenhadamente
misturadas” (Peter S. P
RESCOTT, “A Good Barbarian”, Newsweek, 30 jan. 1978).
209
— “Se o Sargento é frequentemente maldoso, ele não o é sem o calor de um sentimento. A
impressionante justaposição de uma monstruosa ameaça e uma febre de lirismo, como Getúlio
a registrar suas respostas às manhãs enevoadas nas montanhas, empresta a ele a mesma
ambivalência incômoda que podemos encontrar no Meursault, de Camus” (Adam F
EINSTEIN,
“No nobody he”, The Times, Londres, 13 jun. 1980
.
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2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO
107
(v) ... how can we find a personal code that will enable us to live with honor
and self-respect? That question has always bedeviled American writers.
210
— Bem e mal redistribuem-se — continuei —, tornando-se tanto Getúlio
quanto o preso vítimas de suas circunstâncias. A discussão sobre o poder em
Sargento Getúlio adquire, então, novos contornos. Getúlio passa a ser não apenas
o símbolo de um espírito autoritário presente em alguns momentos de nossa
história política: o período do Estado Novo, de 1937 a 1945, e o regime militar
pós-1964, como também a representação microscópica de uma violência ainda
maior, o que nos permitiria demarcar aqui uma pequena geografia do poder a
envolver os personagens: o “poder dos donos da política” e ainda alguns outros
poderes espalhados entre todos: o poder de Getúlio sobre Amaro; o poder de
Amaro sobre Getúlio; de Getúlio sobre o preso; do preso sobre Getúlio; o poder
da terra hostil sobre todos os homens... — E eu pedi: — Dê-me mais seqüências.
— “Por que vosmecê não some?” — recitou o meu interlocutor. — “Eu
sumir, eu sumir? Como é que posso sumir, se primeiro eu sou eu e fico aí me
vendo sempre, não posso sumir de mim e eu estando aí sempre estou, nunca que
eu posso sumir. Quem some é os outros, a gente nunca”.
— Essa impossibilidade de entender o sumiço como um evento que só pode
se dar em relação aos outros — interrompi-o —, que não se pode simplesmente
sumir, mas somente sumir das vistas de alguém, pode ser aqui eleita como a
representação perfeita do absurdo inerente à condição do narrador intradiegético
autodiegético. Getúlio olha para si mesmo como se visse a si mesmo de fora, e por
isso não consegue conceber que ele próprio desapareça, porque desaparecer vai
significar desaparecer ele mesmo das próprias vistas, e isso só pode acontecer com
os outros... Ele não pode nunca deixar de ver a si mesmo... — eu disse.
— ... e de narrar a si mesmo... — completou. — Outra maneira de dizer
que Getúlio está preso à linguagem, ao pé da letra da linguagem... “Por que
vosmecê não some?” é, de fato, uma pergunta absurda, se levada à risca...
— Isso me lembra o comentário de um jornalista americano — e li. — “A
sympathetic, shotgun-toting priest urges Getúlio to abandom his mission and
210
— “... como podemos encontrar um código pessoal que nos permita viver com honra e auto-
respeito? Essa questão sempre atormentou os escritores americanos” (Scott Sanders, “Three
new novels hunt for a code of morals”, texto sem referência, 4 mai. 1978
).
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disappear. But Getúlio replies with a logic that Gertrude Stein would have
envied: ‘How can I disappear if first I am myself and see myself all the time?’”.
211
Esta quarta seqüência — retornei, ainda rindo de Getúlio — vem do capítulo
quatro, capítulo dedicado à chegada de Getúlio à igreja e à rememoração da
batalha à entrada da fazenda de Nestor, ao fim da qual Getúlio degola um tenente.
— Sim, e como o filme não se utiliza do recurso do flashback, senão uma
única vez, ao contrário do livro, que está todo o tempo a avançar e recuar, não é?,
esta quarta seqüência incorpora apenas um aspecto do capítulo quarto, qual seja, o
tempo dentro da igreja, o que corresponde a uma boa parte do filme — disse ele.
— O campo, protagonizado por seus coronéis, ligados à rede política, e agora a
igreja, sob o comando de um padre armado até os dentes, e, como você mostrou
com um trecho, um padre ambíguo, a meio caminho entre as leis de Deus, as leis
do homem e as leis da selva, representam os dois pólos clássicos do mandonismo
local. Igreja e Estado, Deus e o Chefe dão-se enfim as mãos. A seqüência que nos
interessa aqui é o resultado da tensão havida durante a conversa entre o sargento e
o padre. Todas as cenas desta seqüência passam-se durante o dia, num dos
aposentos pouco iluminados da igreja, com a presença de Getúlio, do padre e do
preso, cuja participação se limita a um olhar de terror dirigido ao sargento e de
esperança depositado no padre. — E continuou: — O padre lhe diz que talvez o
chefe não possa sustentar a ele, Getúlio, terminando toda a história com o preso
solto e ele, o sargento, preso, senão morto. “Ah, isso não!”, protesta Getúlio, “Se
Antunes não pode me sustentar, quem é que pode me sustentar?...” O sargento
está sentado de costas para uma parede branca e imunda, sem sua farda mas
envolto num pequeno cobertor de lã, como uma túnica marrom, o que lhe acaba
dando uma aparência um tanto de santo, um tanto de profeta, um tanto de louco.
Na parede às suas costas, uma cruz dependurada, o que nos permitiria dizer...
— ... que Getúlio toma a sua decisão e dá as costas à cruz, dando então as
costas a Deus e a seus ensinamentos, ali mediatizados pela figura do padre...
211
— “Um padre compreensivo, portando uma espingarda (shotgun-toting), impele Getúlio a
abandonar sua missão e desaparecer. Mas Getúlio responde com uma lógica que daria inveja a
Gertrude Stein: ‘Como é que posso sumir, se primeiro eu sou eu e fico aí me vendo sempre?’
[Sargento..., p. 84]” (Dave W
ALSTEN, “A memorable month in the hinterland”, Chicago
Tribune, 29 jan. 1978
).
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2 - A INFÂNCIA BARROCA E A LINHA RETA DE GETÚLIO
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— Hum... Sim... A câmera está posicionada à altura dos olhos de Getúlio,
em plano médio, um pouco aproximado. Não se vê o padre, situado à direita da
tela. Do preso se vê apenas um pedaço de sua silhueta no canto esquerdo do
retângulo. Vê-se, no entanto, que ele olha para o sargento, absorto e um pouco
hipnotizado com o monólogo que então se inicia, com Getúlio a mirar ora um, ora
outro. Toda a razão de ser dessa cena é exibir a fala de nosso protagonista num
momento de auto-afirmação. Getúlio levanta-se, e sua sombra cresce, encobrindo
a cruz e eliminando-a totalmente da cena. Ele então aponta para o preso e fala,
repetindo seu nome completo, Getúlio, com a boca cheia, cheia de si mesmo...
— Deixe-me ler. — E li, sentindo-me eu mesmo um pouco Getúlio: — “...
eu sou Getúlio Santos Bezerra e igual a mim ainda não nasceu. Eu sou Getúlio
Santos Bezerra e meu nome é um verso (...). Pode vim. Getúlio Santos Bezerra eu
me chamo (...). O senhor já ouviu falar de meu nome, Getúlio Santos Bezerra, sou
eu mesmo”. O livro dedica a esse momento as páginas 84, 85 e 86.
— E o filme utiliza alguns trechos, os mais contundentes em sua
afirmatividade. Trata-se de uma das mais belas seqüências de todo o trabalho.
Mas não a de que mais gosto... Vamos à quinta seqüência, que eu vou chamar
assim: “Faço o seguinte, eu levo, sim. Nunca fui homem de falhar no meio, eu
levo, sim”. Este constitui provavelmente o momento da mais funda e densa
introspecção de nosso sargento, já que se trata de uma deliberação acerca de sua
própria vida, como você já disse. — E ele seguiu: — A seqüência inicia no
instante em que uma delegação enviada por Acrísio vai à igreja com vistas a
convencer o sargento a entregar o “homem” e depois sumir. Getúlio, que já se
tinha defrontado com essa “questão” da impossibilidade do auto-sumiço, responde
de forma automática e segura. Trata-se agora, para ele, de uma questão resolvida,
um ponto pacífico, e Lima Duarte
212
interpreta a cena respondendo aos homens
com segurança: “Não posso sumir. Quem pode sumir é os outros, como é que eu
posso sumir, se eu sou eu?”, e assim fecha definitivamente a questão. Getúlio, em
seguida, despacha a pequena delegação e dá início à representação do dilema
getuliano. — E o meu interlocutor se levantou: — As cenas desenrolam-se no
pátio interno da igreja, durante o dia, sob forte sol, o que dá à imagem um tom
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desbotado. Os jardins do pátio estão abandonados, todas as folhagens estão caídas,
todas as plantas estão mortas. Estamos diante de um ambiente decadente e de
morte. O fato de haver uma parte descoberta, sob o sol, e outra coberta, sustentada
por pilastras, qual fosse uma arena, dá ao cenário um feitio de teatro aberto, como
eram representadas as peças shakespeareanas. Getúlio é o único ator em cena. Ele
caminha pelo espaço e é acompanhado pela câmera. O sargento anda de um lado
para o outro, sugerindo a confusão mental em que está imerso, e chega mesmo a
retirar a faca da bainha, antecipando o gesto proibido e sacrílego do auto-
sacrifício, que afinal não acontece. O sargento devolve a faca à bainha, senta-se à
mesa do pátio e abaixa a cabeça, os punhos fechados, os braços estendidos sobre o
tampo, a decisão enfim tomada...
— Leio eu: “Faço o seguinte, eu levo, sim. Nunca fui homem de falhar no
meio, eu levo, sim” (p. 100).
— E ele se despede do padre: “... pela mesma porta que eu entrei; pela
mesma porta, eu saio, e esteja o senhor bem...”, e segue viagem. Getúlio, de certo
modo, acaba optando pela morte, morte matada. Assim termina uma importante
seqüência do filme — e ele se sentou.
— Assim termina o capítulo quinto — e eu aplaudi baixinho.
— A última seqüência que eu tenho na cabeça tem esse nome: “... aquele
homem que o senhor mandou não é mais aquele. Eu era ele, agora eu sou eu”, que
deve ser o capítulo oitavo... — e ele pegou mais café. — Ora, depois que deixa a
igreja e segue caminho, Getúlio pousa na casa de sua amante Luzinete e lá
enfrenta mais forças do governo, perdendo, na batalha que se segue, a mulher e
Amaro, o que lhe faz muito mal, minando-lhe as forças e acabando por
intensificar o seu descolamento com o mundo real que o cerca. E o sargento segue
viagem, sozinho e a pé, completamente transtornado e com o preso às costas.
— O delírio getuliano já tem início. — E fiz uma citação: — “A
desintegração com o real se acelera”, escreve Eliana Yunes, “e a perda dos dados
212
— ... cujo verdadeiro nome..., coloque isso numa nota de rodapé — disse-me o meu
interlocutor —, ... é: Aricles Venâncio Martins (Antônio GONÇALVES FILHO, “Lima Duarte e a
obsessão...”, Folha de S. Paulo, 22 mai. 1983
).
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111
instiga sua recuperação pelo imaginário”.
213
Durante o caminho ele vê imagens de
santos, delira e inventa palavras. — E abri o livro:
... Perde a força os nomes quando eu lhe xingo e por isso vou inventar uma
porção de nomes para lhe xingar e de hoje em diante todo mundo vai xingar esses
nomes. Crazento da pustema, violado do inferno, disfricumbado firigufico do
azeite. E invento mais. (...) Carniculado da isburriguela, retrelequento do
estrulambique. Não se ouse de responder, porque lhe tiro sua vida da pior
maneira... (p. 138)
— A interpretação de Lima Duarte chegou ao coração desta idéia de
Getúlio: inventar palavras. Do mesmo modo como o personagem inventa os seus
próprios nomes feios, o ator também faz sua parte, inventando ele mesmo seus
xingamentos, outros xingamentos, outras palavras...
— Bem menos inteligíveis que as presentes no texto?
— Creio que sim — disse ele. — Não consigo imaginar aquilo escrito... O
caráter literário do filme salta aqui aos olhos: Lima Duarte, nesta específica cena,
foi tanto mais literário quanto menos preocupado em ser literal. Bem verdade que
o ator já tinha, muito antes de ser cotado para o papel, uma relação visceral com o
texto de Ubaldo, sabendo ser somente ele o possível protagonista da história... “O
grande ator não só já conhecia o livro como era apaixonado pelo personagem, e
mais — sabia falas e falas de cor”, diz Susana Schild.
214
“... me preparei a vida
inteira para esse papel...”, diz o próprio Lima Duarte,
215
e acrescenta: “... a vida
inteira me preparou esse papel...”. E diz ainda a matéria: “Para conseguir o papel,
impressionado que estava com a figura do sargento, Lima Duarte chegou até a
rogar praga. ‘Tomara que você fique doente’, disse a Othon Bastos,
216
quando
Glauber Rocha anunciou sua intenção de filmar com o ator o livro de João
213
“O poder da fala em Sargento Getúlioop. cit., p. 40. — Eliana Yunes, nesta frase, faz em nota
uma referência a Lacan, Écrits, Paris, Du Seuil, 1966.
214
“Sargento Getúlio, repressão e poder”, Jornal do Brasil, 29 mai. 1983.
215
— E, como contraponto, disse Ubaldo nesta entrevista — e o meu interlocutor sacou de outra
matéria —: “Não gosto de caracterizar meus personagens através de um ator. Lembro quando o
Lima Duarte fez o Sargento Getúlio, que eu brinquei com ele dizendo que ele havia estragado
meu personagem porque deu uma identidade ao sargento que eu não havia dado antes. E agora,
só consigo ver o sargento com a cara do Lima. Ele é um excelente ator!” (Viviane R
OSALEM,
“’Escrevo por dinheiro’”, IstoÉ, 22 nov. 1999, acessível em: <http://www.terra. com.br/
istoegente/16/reportagens/ent_ubaldo.htm>, acesso em 18 out. 2005
).
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112
Ubaldo”.
217
Quer café? Bom — continuou ele —, Getúlio chega enfim à Barra dos
Coqueiros, supostamente a sua parada final, encosta o preso no tronco de um
coqueiro e se ajoelha ao lado. Aqui começa a nossa seqüência. A cena é aberta,
vêem-se o mar, a terra e o céu, e o tronco do coqueiro bem no centro do retângulo,
dividindo-o em duas partes. Estão os dois bastante estropiados, sujos, cansados,
famintos e, cada um à sua maneira, perdidos em seus próprios mundos. O figurino
do preso é o pior possível. Suas roupas formam tiras, apenas tiras, de pano
avermelhado de sangue e empretecido com lama. Em sua boca um calombo cujo
inchaço lembra o focinho de um cavalo, na expressão de seu olhar a falta de
expressão típica dos moribundos de qualquer tempo. Getúlio, por sua vez, talvez
por pressentir-se a si mesmo à beira da morte, está crispado de uma ansiedade que
o aproxima da loucura, o que se percebe por sua eloqüência desmedida e por seu
olhar obcecado sobre o “pirobo semvergonho”. Seu rosto está coberto de cinzas e
sobre seus ombros há uma nova túnica, desta vez vermelha. Novamente o figurino
lhe dá uns ares extraordinários, de santo, profeta e louco. Quando percebe mais
forças do governo vindo em sua direção...
— Deixe-me ler — e eu acompanhava tudo pelo livro. — “Aquela força
que vem, coisa, aquela força que vem pelo rio atravessando, pode se ver os fuzios
apontando para cima e está se vendo que ninguém pensa que vai me pegar fácil,
porque senão não vinha tanta gente” (p. 154).
— Obrigado. Quando se dá conta de que está encurralado, o sargento, no
filme, inicia o sugestivo movimento de atar o preso ao coqueiro e enredá-lo com
uma corda. Para tanto, começa a andar em círculos e a falar também em círculos,
enquanto vai amarrando o “pirobo semvergonho” e acreditando que desse modo o
prende, embora esteja a prender a si mesmo e eternamente àquela Barra dos
Coqueiros, seu local de morte. No enquadramento só há o sargento, o preso e o
coqueiro. Sobre os três, o sol de Sergipe. O que acontece então é curioso: Getúlio
inicia uma conversação, dirigindo-se ao preso como se este fosse o chefe Acrísio,
fundindo a figura do chefe na do preso; preso e chefe tornando-se o mesmo; ao
216
— Isto pode ser uma nota — disse ele. — O papel principal, antes, chegou a ser do Armando
Bogus. “É ele quem vai conduzir o prisioneiro através do sertão, sem piedade” (Flaminio
A
RARIPE, “Sargento Getúlio”, Folha de S. Paulo, 9 abr. 1978).
217
Antônio GONÇALVES FILHO, “Lima Duarte e a obsessão...”, Folha de S. Paulo, 22 mai. 1983.
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passo que ele se desdobra a si próprio num outro Getúlio, o de antes desdobrado
no de agora, transformando-se Getúlio, para si mesmo, num outro. Leia.
— Obedeço. “... quem o senhor mandou em Paulo Afonso, que eu me
lembro (...), numa noite, aqui nessa sala mesmo (...), tomando um vermute
vermelho (...), não foi nem eu. (...) aquele homem que o senhor mandou não é
mais aquele. Eu era ele, agora eu sou eu” (p. 151-152).
— A cena com o preso amarrado ao coqueiro, diante do qual Getúlio
convoca uma espécie de reunião imaginária, chamando a todos para o seu
depoimento, o preso lá está, Acrísio lá está, a força do governo vem chegando, e
lá estão também os dois Getúlios, o de antes e o de agora...
— Esta cena — interrompi-o — celebra o monólogo, justifica todo o
monólogo, banha de luz todo o monólogo que vinha sendo desenvolvido no livro
e, através do procedimento da voz em off, no filme. Getúlio, o tempo todo a falar
consigo, funcionando os demais personagens, no fundo, como pretexto para a sua
fala, afinal desdobra o si mesmo num outro, e finalmente o encontra. Deixe-me
citar Eliana Yunes: “Zé Antunes, Amaro, seu Nestor, Luzinete e o cabra sem
nome, no entanto, estão ‘falando’ através da langue do sistema”.
218
Quando
encontra esse outro, ele já está aos pedaços. “Agora eu sei quem eu sou” (p. 154),
revela Getúlio, quatro páginas antes de morrer.
— É este Getúlio aos pedaços que se afasta do coqueiro onde está
amarrado o preso — retoma o meu interlocutor —, vai para o centro da tela,
ocupando-a quase toda, numa espécie de plano americano aumentado, e, filmado
a partir de uma câmera baixa, olha para a frente, para um ponto localizado acima
de nossas cabeças e que provavelmente repousa na embarcação que se aproxima,
com as forças do governo encarregadas de matá-lo. O sargento inicia então uma
fala desarticulada, em que invoca Amaro, xinga os homens, inventa mais palavras,
fala de imortalidade: “Eu nunca vou morrer, Amaro!...”.
— O livro termina bruscamente, no meio de uma frase: “... eu vou e
cumpro e faço e” (p. 157).
— No filme, em meio a um dos gritos, a imagem congela-se — disse ele.
— Se o filme representasse a morte do sargento, acabaria por trair toda a delicada
fidelidade que manteve ao ponto de vista de Getúlio. O sargento, do mesmo modo
218
“O poder da fala em Sargento Getúlio”, op. cit., p. 41.
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que não pode sumir, já que “quem some são os outros, a gente nunca”, também
não poderia morrer, já que quem morre são os outros, a gente nunca — disse ele.
— Sim. A brusca interrupção da fala do sargento, no livro, indica a
chegada da morte e, como resultado, a morte da linguagem. Getúlio não poderia,
obviamente, narrar a própria morte, por isso o discurso cessa sem aviso prévio.
— Do mesmo modo faz o filme — disse ele —, que jamais poderia
colocar na tela o corpo morto de Getúlio a cair, baleado, diante de nossos olhos.
Aquela imagem final, congelada como ficou, representa Getúlio no seu último
segundo de vida. A partir daquele ponto, nada mais se pode afirmar, já que
terminam todos os registros. A partir dali, provavelmente, a morte.
— Um pouquinho antes disso — completei —, o último desejo do
sargento, à página 153: “... quando eu morrer se alembrem de mim assim: morreu
o Dragão”.
— Por que você não escreve uma tese somente sobre o Sargento Getúlio,
livro e filme? — perguntou ele, mas eu fingi que não ouvi.
* * *
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3
__________________________________________
SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL
A CABEÇA DO NARRADOR CONTRA O MUNDO
— Pertenci, no Central, a um grupo que só deu gente que ficou
famosa: Glauber Rocha, David Salles, Fernando Perez e outros
importantes. Entrei para a Escola de Direito e fui um dos
poucos desse grupo que concluiu o curso. Pertenci à chamada
“Geração Mapa”, porque na época fundamos, no Central, uma
revista com esse nome — Mapa. Depois, na Escola de Direito,
pertenci à revista do diretório Ângulos — onde publiquei meus
primeiros contos e ocupei o cargo de redator-chefe.
João Ubaldo Ribeiro, em 1968, com 27 anos
219
— Eu já pensei em ser faroleiro. Cheguei a pegar os papéis na
Marinha e sei que eu passava tranqüilo no concurso, que só
exigia segundo grau. Mas eu suspeitei que iam me mandar para
o Farol da Barra e desisti. Meu sonho era ser faroleiro do Atol
das Rocas ou de Abrolhos. Uma ilha deserta e bem longe, em
que eu ficasse sozinho com três cachorrinhas rottweiler, Lalá,
Lelé e Lili, e a lancha só aparecesse de quarenta em quarenta
dias para levar os suprimentos.
João Ubaldo Ribeiro, em 1988, com 47 anos:
14 anos antes de publicar seu romance Diário do farol
220
— Por que o subtítulo “A cabeça do narrador contra o mundo” para falar
de Setembro não tem sentido e do Diário do farol? — perguntou ele.
— Pensei nesse subtítulo partindo dessa idéia: o primeiro romance é um
espelho onde o autor procurou representar a si mesmo e a sua juventude —
respondo, para começarmos a longa conversa. — E o segundo, também um
espelho, embora bem mais distorcido e bem menos autobiográfico, mas, de todo
modo um espelho, sim, e onde estão representados o ceticismo e uma boa dose de
angústia. Há aqui um paralelismo: o caso de Setembro...: João Ubaldo Ribeiro
escreveu o livro aos 21 anos e seus protagonistas são ainda jovens, embora um
deles, Orlando, o principal, tenha o espírito de um velho: “Devia preocupar-me
219
“João Ubaldo lança hoje na livraria Civilização Setembro não tem sentido”, Jornal da Bahia,
20 set. 1968.
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3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL
116
com coisas sérias. 36 anos. Seria a mesma coisa, se tivesse 60” (Setembro..., p.
54). O caso do Diário do farol se aproxima ao de Setembro..., que foi publicado
em 1968, mas se aproxima pela via de seus opostos: Diário... saiu em 2002, João
Ubaldo Ribeiro com sessenta anos, o protagonista também em torno dos sessenta
anos, dois universos etariamente diferentes, o escritor em momentos também
diferentes, a mocidade e o anonimato de Setembro... e, por outro lado, a
maturidade e a consagração do Diário..., os personagens Tristão e Orlando de um
lado, e, do outro, o padre, também acompanhando a idade do escritor e chegando
todos os protagonistas, nos dois livros, ao mesmo diagnóstico: a falta de sentido, a
falta de sentido... — e fiz uma pausa dramática. — Setembro não tem sentido
chegou a chamar-se A semana da Pátria.
221
— Chegaram a referir-se ao livro, eu estou vendo aqui nesta nota de 1968,
como Setembro não tem preço...
222
— disse ele, fuçando meus papéis e rindo.
— E a ele como João Ubaldino Ribeiro — completei, mostrando-lhe uma
resenha de Assis Brasil, de 1968.
223
Situações típicas de um escritor em início de
carreira... Embora João Ubaldo Ribeiro goste ainda hoje de fazer o papel do
escritor que não é uma unanimidade e cujo nome trocam. Veja esta declaração:
“Quando estou me achando muito famoso, logo recebo uma ducha de água fria. Se
eu ligo para a casa de alguém e digo que é João Ubaldo Ribeiro, na mesma hora
perguntam: é João Paulo Oliveira?”.
224
Ou ainda o trecho desta crônica:
... uma sobrinha minha (...) me puxou pela mão e me apresentou como “um
grande escritor”. O rapaz que detinha a palavra no momento perguntou o meu
nome, eu disse e ele fez “oh”. Perguntei a ele em que trabalhava, e ele me disse
que era professor de literatura brasileira. “Oh”, fiz eu. Aí ele ficou um pouco
embaraçado porque achou que eu fiquei embaraçado porque ele nunca tinha
ouvido falar em mim e então, de vez em quando, interrompia a palestra, sorria
para o meu lado e me chamava de “o nosso João Osvaldo Vieira”. Houve até uma
vez em que, generosamente, disse que “o nosso João Osvaldo Teixeira sabe isso
220
“João Ubaldo faz hora extra na Ilha”, Tribuna da Bahia, 6 nov. 1988.
221
— Diz João Ubaldo numa publicação portuguesa que tenho aqui, mas cuja referência está
ilegível: “Como estávamos em plena ditadura, o meu editor achou que poderia parecer uma
provocação. Então, numa roda de pôquer com uns amigos, encontrei o título definitivo” (“João
Ubaldo Ribeiro, Setembro não tem sentido”, texto sem referência).
222
JULIETA, “Sociedade”, A Tarde, set. 1968.
223
Assis BRASIL, “A liberdade na ficção moderna”, Correio da Manhã, 8 set. 1968.
224
Cristiane COSTA, “Não vejo parentesco dos meus livros com os de Jorge Amado”, Jornal do
Brasil, 6 abr. 2002
.
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melhor do que eu”. Fiquei grato mas não tive condições de permanecer, inclusive
porque papo estava descambando para o processo criativo e não entendo nada de
processo criativo...
225
— Eu espero sinceramente que você desenvolva na sua tese uma idéia que
seja um pouco menos simplista do que essa do espelho, com todo o respeito... —
disse o meu interlocutor, cheio de si —, e não se limite a me dizer que Ubaldo era
jornalista, Tristão era jornalista e Orlando era jornalista... Um espelho mostra a
mesma coisa, só que invertida, e eu imagino que não seja essa a relação que você
quer explicitar aqui entre os dois livros e entre Setembro não tem sentido e a
juventude do escritor...
— Um espelho mostra muitas coisas, meu caro... E, o que me parece mais
importante, não mostra outras tantas, e talvez valha mais pelo que não mostra...,
como é o caso dos fantasmas, cuja existência se torna evidente justamente quando
se torna evidente, no espelho, a sua ausência. Ou, como bem viu Joaquim Trigo de
Negreiros, em seu estudo sobre a imagem que fazem os jornalistas de si mesmos:
“... a ausência de reflexo no espelho desmascara-os [aos fantasmas], destruindo
irremediavelmente o disfarce”.
226
Cito somente o exemplo dos fantasmas, que não
se vêem ao espelho, para falar dos escritores que estejam envolvidos com uma
escrita de si, embora fantasmagórica, e que muitas vezes também não se vêem ao
espelho, embora lá estejam... Estou apenas começando a raciocinar. Ouça esses
depoimentos do João Ubaldo Ribeiro da década de oitenta sobre o João Ubaldo
Ribeiro da década de sessenta. Ajude-me.
(i) Quando terminei (...), entreguei-o altaneiramente a Glauber, sem nem
cogitar que ele teria de batalhar a publicação do livro, como de fato batalhou (eu
só entendi depois, você veja que cretino eu era), junto com outro amigo meu, (...)
Flávio Moreira da Costa.
227
(ii) — Eu disse: “Está pronto para publicar”. Como se isso fosse a coisa mais
225
João Ubaldo RIBEIRO, “Mas não no sul” (p. 43-48), in Sempre aos domingos, op. cit., p. 45-47.
226
— E avanço, porque o estudo é interessante: “A relação dos jornalistas com o espelho explica-
se da mesma forma, mas com os dados invertidos. O que os jornalistas temem é que alguém
note a presença do seu reflexo no espelho, incómoda revelação de uma densidade corpórea, de
uma materialidade social incompatível com o mito da exterioridade neutral tantas vezes
associado à profissão” (Joaquim Trigo de N
EGREIROS, “Introdução” (p. 17-19), in Fantasmas
ao espelho — Modos de auto-representação dos jornalistas, Jornalismo, Coimbra,
MinervaCoimbra, 2004, p. 18).
227
“João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985.
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fácil do mundo.
228
(iii) — Nunca me ocorreu que era difícil publicar, eu achava que era uma
conseqüência lógica de escrever.
229
(iv) — Glauber ainda foi a Bahia levar o primeiro exemplar, ainda sem capa
(...). Aí um dia ele entra alegre: “Consegui ô, tá aqui!”. E eu (gargalhando):
“Entra aí, vamos tomar alguma coisa”. Até antes de morrer ele me falava disso:
“Você é um..., eu me viro para publicar seu livro e quando chego lá, você diz:
‘Tudo bem, entra aí’”.
230
(v) — Rogério Duarte fez a capa, Glauber fez prefácio, Roberto Santana fez
promoção, Emanuel Araújo fez cartaz (...) e eu, na flauta, achando que era tudo
normal.
231
Observe que há aqui um certo descaso do próprio escritor para com
toda a engrenagem da publicação. Eu diria mais: João Ubaldo, mesmo na
condição de um jovem escritor em começo de carreira, não parecia, ou pelo menos
ele assim não demonstrava, importar-se muito com os ritos da publicação. Um
pouco mais tarde, com relação ao romance seguinte, a mesma situação. Ouça.
— Quando acabei o Sargento..., também não me preocupei. Primeiro, escrevi
uma carta a João Ruy Medeiros, que era o dono da José Álvaro Editora, e ele
respondeu que não se interessava. Jorge Amado deu um jeito de Rubem Braga, na
então Editora do Autor, ver os originais, ele disse que era bom mas não ia vender
nada (...). Eu escrevi uma carta enorme a Ênio Silveira, mandei os originais, acho
que foram os que Agnaldo Siri, em célebre viagem, levou para o Rio de Janeiro
debaixo do braço, e ele pediu co-edição ao Instituto Nacional do Livro, que
negou (Jorge ficou retado quando eles negaram). Mas ele resolveu fazer o livro,
assim mesmo.
232
— A mesma atitude nada solene com a literatura a gente vai encontrar no
personagem Orlando, de Setembro..., e no padre, do Diário... — e peguei o livro.
— Ouça: “Nunca escrevi nada além de eventuais cartas, bilhetes ou sermões”, diz
o padre em seu texto, “e o que escrevo neste instante não vem da ambição tola de
fazer um livro, mas de um impulso vital à minha completa existência” (Diário...,
p. 9). Mas guardemos essa idéia, que quero desenvolver mais à frente... — E
228
“João Ubaldo Ribeiro, história e ótica popular”, O Estado de S. Paulo, 12 abr. 1985.
229
“João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985.
230
“João Ubaldo: ‘Eu me achava um gênio...’”, Jornal da Telebahia, jun. 1984.
231
“João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985.
232
Id.
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retomei a apresentação de Setembro não tem sentido: — O livro estrutura-se sobre
cinco capítulos, os cinco dias de uma semana, do dia 3 ao dia 7, e tem como pano
de fundo, segundo o autor, uma festa cívica na Bahia, “um pouco antes de
1964”.
233
— E observei: — O centro da ação de ambos os livros se localiza mais
ou menos na mesma época, tendo os protagonistas, em torno de 1964, a mesma
idade, vinte e poucos anos: a narrativa do Diário do farol é retrospectiva e se
refere, nos momentos mais dramáticos da história, à década difícil do militarismo,
justamente de 64 a 74, ano esse em que começa o governo Geisel, que, bem ou
mal, inicia a abertura... “Não sei se estava querendo, com este novo livro, reviver
os tempos da ditadura”, diz o escritor, acerca do Diário do farol.
234
Ouça ainda o
que ele diz acerca de Setembro...
— ... é um típico primeiro livro aliás, onde você quer mostrar que leu todo o
mundo, conhece Joyce, revela as influências, sabe tudo, manipula... E é um livro
urbano porque conta a minha experiência em Salvador nessa turma de Glauber, a
turma da porta da livraria. A livraria por acaso teve um fogo e não existe mais.
Mas nos congregava todo dia, vivíamos lá na porta, era uma espécie de “fórum”
dos intelectuais da praça, ali na Rua Chile. Das cinco às sete, sete e meia, você
podia passar por lá que nos encontrava: os intelectuais salvando o Brasil,
aclarando as trilhas estéticas para a humanidade...
235
Setembro não tem sentido, como disse o próprio escritor, é o palco
onde esse jovem literato vai exibir suas prendas literárias. Por todo o livro se
vêem, por exemplo, momentos de inspiração surrealista, como é o caso deste
rompante de nosso narrador, que, incorporando Tristão, põe para fora alguns de
seus pensamentos imediatos e formata a sua narração no tom de um típico
exercício de escrita automática.
Olhou para os pés espichados na grama e lembrou-se rapidamente de uma
porção de coisas — os sapatos custam caro, deitado eternamente em berço
esplêndido fulguras, como se escreve anquilostomose, está fazendo frio, como
será a cabeça daquele soldado tão escondida pelo capacete, não vou ser nada na
vida. (...) Mmglunft! O gato amarelo engolindo uma espinha de peixe
concentradamente. (p. 18)
233
Daniela NAME, “As ilhas de Ubaldo”, O Globo, 3 ago. 1997.
234
Cristiane COSTA, “Não vejo parentesco dos meus livros...”, Jornal do Brasil, 6 abr. 2002.
235
Fernando Assis PACHECO, “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras,
Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983
, realcei.
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— Apesar de considerá-lo um romance juvenil, mesmo assim ele não
impediu que fosse republicado?... — perguntou o meu interlocutor, quase mordaz.
— Não. A primeira edição de Setembro... saiu pela José Álvaro Editor em
1968; a segunda edição, pela Nova Fronteira, que adquiriu os direitos e fez uma
edição em 1987. João Ubaldo Ribeiro diz que acha ruim, sim, mas que não o
renega. “Às vezes eu olho assim, acho ruim, mas não é tão ruim não; (...) mas às
vezes eu fico um pouco...”
236
E diz ainda que Glauber Rocha adorava...
237
Disse
isso em 1997. Ouça agora o que diz ele em 1968 e em seguida em 1989, numa
entrevista com Jaguar e outros jornalistas... — e li.
(i) — Não acredito que nada do que tenho escrito me satisfaça plenamente, e
agora me lembro — com algum horror — de certos contos que andei perpetrando
por aí, há alguns anos. Mas acho que Setembro não tem sentido não dá para
envergonhar. É um livro escrito com sinceridade e fervor, por um sujeito que se
julga com alguma vocação literária. Minha preocupação, atualmente, é com as
opiniões dos leitores.
238
(ii) André Luiz Oliveira — Já tinha escrito Setembro não tem sentido?
Continua achando o livro uma merda?
João Ubaldo Ribeiro — Já. Acho uma coisa horrorosa.
239
— Glauber, aliás, cujo nome na época já tinha peso na imprensa, foi uma
importante referência para o livro — eu disse. — Ouça aqui estas duas notinhas de
1968, a segunda publicada no Jornal do Brasil:
(i) ... Prefácio de Glauber Rocha. Livro de estréia no romance, pressagiando
autor de muito sucesso.
240
(ii) Glauber Rocha assume a responsabilidade pelos méritos de seu
conterrâneo João Ubaldo Ribeiro, de quem José Álvaro Editor acaba de lançar o
romance Setembro não tem sentido. (...) Ubaldo vive na Bahia e, segundo
Glauber, está vinculado filosoficamente ao movimento tropicalista dos seus
conterrâneos Gilberto Gil e Caetano Veloso. No seu número de setembro, o
Suplemento do Livro publicará um trabalho de Jorge Amado sobre João Ubaldo
236
“João Ubaldo Ribeiro: tão nordestino...”, Diário do Nordeste, 21 jul. 1982.
237
Daniela NAME, “As ilhas de Ubaldo”, O Globo, 3 ago. 1997.
238
“João Ubaldo diz por que Setembro não tem sentido”, A Tarde, 14 e 15 set. 1968.
239
JAGUAR, Fernando VITA, Fernando de BARROS, Haroldo CARDOSO, André Luiz OLIVEIRA,
“Pasquim vai à Itaparica entrevistar João Ubaldo. Muito riso e pouca literatura”, Pasquim, 23
nov. 1989.
240
José Alípio GOULART, “Setembro não tem sentido”, texto sem referência, 7 set. 1968.
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Ribeiro.
241
— Você tem muita coisa da época... Você tem aí esta resenha de Jorge
Amado? — perguntou ele.
— Sim. Fiz uma grande pesquisa de imprensa... — E continuei a
apresentação do romance: — O livro não dispõe de um enredo linear e não há
propriamente uma intriga a caminhar para o seu desfecho. João Ubaldo Ribeiro,
em Setembro não tem sentido, fez desfilarem as suas impressões da juventude que
era a dele, da cidade que era a dele e do grupo de pessoas que o rodeava.
— Pelo que percebi, esse “típico primeiro livro” parte do próprio umbigo
de Ubaldo — disse o meu interlocutor. — O que quero saber é, em palavras mais
acadêmicas: o romance atinge, não vou dizer alguma tipo de universalidade, mas,
no mínimo, algum imaginário comum?
— Respondo-lhe citando Bella Josef:
... Sua técnica é testemunhal: a reflexão sobre a realidade parte de um
determinado momento histórico e um contexto especial para a proposta de uma
indagação nacional. Não queremos dizer que haja um compromisso formal com
os fatos, apenas a necessidade de alinhar dados, elementos que voltarão em obras
posteriores.
242
— Salvador e aquele tempo configuram o quarto fechado onde se
espelham mutuamente o jovem escritor e os seus personagens — continuei. — O
romance passa-se inteiro dentro do próprio universo que ele mesmo tematiza e
critica. O livro é “uma crônica sobre ‘os chamados jovens intelectuais baianos que
tinham o hábito de se reunir na porta da livraria Civilização Brasileira’”,
243
disse
João Ubaldo Ribeiro em 1978, e quatro anos mais tarde: “Eu já era metido a
intelectual nessa época.
244
(...) Não é pretensão, mas a minha geração era uma
241
“Um na Bahia”, Jornal do Brasil, set. 1968.
242
“Dialética irônica”, O Globo, 7 jun. 1987.
243
Sargento Getúlio (...) — sucesso de crítica...”, Jornal do Brasil, 3 jun. 1978.
244
— E abro aqui uma notinha para citar João Ubaldo a digressar sobre si mesmo, usando como
pretexto a sua admiração por George Orwell: “Mais tarde, bem mais tarde, estudante de direito
e metido a marxista, altamente patrulheiro e, no geral, de insuportável convivência, devo ter
dito mais que um par de besteiras sobre esse homem estranho e singular, escritor de rara
elegância, que morreu quase na idade que tenho hoje. (...). É que o patrulhismo primário, no
caso esquerdóide, recomendava condenar Orwell por suspeitar-se em seus livros ataques
solertes ao socialismo. Era só isso, em tempo no qual, aos 20 anos, achávamos que sabíamos
(cont.)
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gente que talvez não se tenha repetido porque era uma turma realmente da pesada.
(...) ... a esquerda agrupava todo mundo, desde os porralouca-comunista-
anarquista, até os caras socialistas, os mais liberais”.
245
— Você disse que Setembro não tem sentido é o romance que inicia a
trajetória de aprendizados daquela almazinha que Ubaldo vai criar em Viva o povo
brasileiro, aquela que encarna nos personagens e, à medida que vai encarnando,
vai aprendendo mais sobre a vida... Aquela almazinha que poderá ser a
representação ficcional para o seu narrador sem cabeça... — disse ele, titubeando.
— Um narrador que começa a sua vida literária com todo esse idealismo que
Ubaldo está detectando em seus inícios como escritor...
— Sim, sim. Ouça, a esse propósito: “Foi um livro juvenil, um típico
romance de estréia, em que eu acreditava que minha prosa podia mudar o mundo e
queria mostrar todos os meus conhecimentos de literatura brasileira e
universal”.
246
Mas nisso eu entrarei mais tarde, quando falarmos do personagem
Orlando. De todo modo, estamos nos aproximando do livro. Creio poder
demonstrar as razões pelas quais podemos chamá-lo um romance enclausurado —
eu disse a ele. — O narrador, incluídos os personagens que ele primordialmente
incorpora, Tristão e Orlando, situa-se numa posição muito próxima àquela
ocupada pelo próprio escritor João Ubaldo Ribeiro, então com 21 anos à época da
confecção do livro.
247
Como bem observou uma jornalista do jornal Diário de
Notícias: João Ubaldo Ribeiro era “então um ‘intelectual’ de Salvador que à
semelhança dos outros escreveu mais ou menos a sua autobiografia”.
248
Como
você vê, mais uma vez a idéia da autobiografia, desta vez não tão
“fantasmagórica” quanto Sargento Getúlio... Observe que o próprio João Ubaldo
tudo — e fomos vendo Stalin, a Hungria, a Tchecoslováquia, o Vietnã e tantas outras coisas
assustadoras e confusas, que nos ajudaram a deixar de colocar a realidade em escaninhos pré-
fabricados, a respeitar muito mais fundamente o conhecimento, difuso mas certeiro, que nos
vem pela arte” (“Ele chegou mesmo” (p. 169-175), in Sempre aos domingos, op. cit., p. 173).
245
“João Ubaldo Ribeiro: tão nordestino...”, Diário do Nordeste, 21 jul. 1982.
246
Daniela NAME, “As ilhas de Ubaldo”, O Globo, 3 ago. 1997.
247
“Sua experiência jornalística fora primeiro desenvolvida no Jornal da Bahia, fundado em 1958,
onde chefiou a reportagem e ajudou a renovar, com outros companheiros da ‘Geração Mapa’, o
jornalismo baiano” (João Carlos Teixeira G
OMES, “João Ubaldo e a saga do talento triunfante”,
op. cit., p. 84).
248
Cremilda MEDINA, “No caminho das almas...”, Diário de Notícias, 14 dez. 1984.
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se refere ao Getúlio e, por dedução, ao padre-faroleiro como pertencentes, ambos,
à esfera de sua própria vida. Escute a pergunta que lhe fazem e ouça a resposta:
Ao contrário dos personagens, digamos, “coletivos” que você explorou nos
seus livros anteriores, o personagem principal de Diário do farol é cinicamente
individualista. Quais as dificuldades de se compor um personagem nesses
termos?
— Eu já tinha um solitário na minha biografia que era o sargento Getúlio.
249
— Há romances e estudos, meu caro — continuei, ante a expressão de
desconfiança de meu interlocutor —, que não podem prescindir dessa relação. Em
se tratando de Setembro não tem sentido, seria quase imprudente, além de um
grande desperdício, não mencionar a associação que pode haver entre o mundo e a
personalidade dos personagens-protagonistas Tristão e Orlando, jornalistas em
Salvador, e o mundo do jovem jornalista João Ubaldo Ribeiro pelos idos de 1963,
ano em que pôs o ponto final na história.
— O mundo do jovem escritor iniciante de 21 anos em Salvador não nos
interessa, pelo menos não a mim..., e é, além do mais, inacessível. E a sua tese não
estará orientada para configurar uma biografia. Pelo menos não sob este formato.
Ou estará? — insistiu ele, tocando no mesmo ponto, mais uma vez.
— Interessa-me a idéia de que esse é o mundo representado em Setembro
não tem sentido. Já tivemos essa discussão quando conversamos sobre o caso
Getúlio, e você me pareceu menos convicto. Agora parece que retrocedeu..., e
justamente nesse caso, em que os aspectos biográficos são muito mais evidentes...
Continuo: não apenas o fato de o escritor ter feito de sua mocidade em Salvador
os panos de fundo e de frente de seu romance, mas também o modo como o fez
nos vai servir de ponto de partida para demonstrar o quanto o livro permanece
fechado em si mesmo, refletindo nada mais que a si mesmo, como um espelho
diante de outro espelho, se comparado aos romances seguintes, todos eles
exibindo mais compreensão e curiosidade, por parte do narrador, dos problemas
que o rodeiam: sociais e existenciais. E veja que não incluo aqui nessa abertura o
Diário do farol — eu disse —, que vai significar, para mim, o retorno ao mesmo
quarto fechado de Setembro não tem sentido.
— No caso do Diário do farol, uma ilha...
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124
— Uma ilha, somente segundo o que nos conta o narrador-personagem...
Há um texto da professora Rita Olivieri-Godet justamente sobre a insularidade em
Viva o povo brasileiro.
250
Acerca disso há ainda a pergunta de um jornalista:
— ... a imagem da ilha reaparece (...). É alguma obsessão por Itaparica?
— Ilhas comparecem aos meus livros, mas dessa vez é uma ilha misteriosa.
Volto sempre para Itaparica, onde ando pelo areal perto da casa da minha mãe e
saio para pegar caranguejo. Minha ilha natal aparece em muitas passagens. Mas
há ilhas inexistentes, como a do Pavão, do meu romance O feitiço da ilha do
Pavão. Se existisse, ficaria no lugar da Baía de Todos os Santos. A do Diário do
farol é mais simbólica, há um farol e só percebi que o tema ilha voltou no meio
do livro.
251
— Estamos, mais uma vez — e retomei —, não propriamente dentro da
cabeça do personagem, como aconteceu com Getúlio, mas, no caso do Diário do
farol, dentro da escrita do personagem, o que é bastante diferente, embora o
aprisionamento no ponto de vista narrativo seja o mesmo. Sabemos somente o que
nos conta o padre. Ele nos diz que é faroleiro e que está numa ilha, de nome Água
Santa, mas nada nos garante que ele não esteja trancafiado numa instituição
psiquiátrica... Veja o que disse João Ubaldo Ribeiro, reiteradamente: “Meu
personagem é um psicopata”;
252
e ainda: “A idéia inicial do Diário (...) era
escrever um livro sobre um maluco, um psicopata”.
253
Neste sentido é que digo
que Diário do farol é um retorno ao mesmo quarto fechado em que se meteu, ou
em que o meteram, há 34 anos ou mais, o personagem Orlando, de Setembro...
Ouça: “Eu posso, sim, não passar de um maluco mitômano, contando meus delírios
(...), num hospício qualquer, que inventei ser um farol” (Diário..., p. 301-302). Vê?
— Sim, mas, retornando: você está querendo dizer que os demais
romances, com exceção do Diário..., iniciam um movimento de crescente abertura
a universos cada vez mais diversificados e estranhos ao do próprio escritor?
249
Felipe ARAÚJO, “O diário da maldade”, Diário do Nordeste, 28 mai. 2002, realcei.
250
“La métaphore de l'île et les enjeux de l'espace dans Viva o povo brasileiro”, in Rita OLIVIERI-
GODET, João Ubaldo Ribeiro: littérature brésilienne et constructions identitaires, Rennes:
PUR (Presses Universitaires de Rennes), Programa de Pós-Graduação em Literatura e
Diversidade Cultural, Université d'Etat de Feira de Santana, Bahia, 2005. Saiu uma nota no
Jornal do Brasil acerca do lançamento deste livro — disse eu, e passei a referência. — “O
Brasil de Ubaldo em francês”, Jornal do Brasil, 4 set. 2005
.
251
Luís Antônio GIRON, “Ubaldo enfrenta o diabo”, Cult, mai. 2002.
252
Id., ibid.
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125
— Eu não diria “estranhos ao do próprio escritor”... Não diria isso,
justamente porque uma de nossas tarefas... minhas tarefas... será justamente
observar o funcionamento de uma mútua irrigação entre universos ficcionais e
universos biográficos públicos, atenção: públicos. E não me venha mais uma vez
falar dos perigos do “recurso fácil ao biografismo como válvula de explicação do
universo romanesco”; memorizei suas palavras. Não se trata, absolutamente, de
uma facilitação; muito pelo contrário. Mas, como diziam os estruturalistas, e Jack,
the ripper, era, a seu modo, um estruturalista: vamos por partes.
3.1. A REDAÇÃO DO NARRADOR DA REDAÇÃO
Setembro não tem sentido é um romance enclausurado — prossegui. —
O primeiro contato com o livro produz a sensação inicial de um grande
desconcerto, onde muito pouco se diz e muito pouco acontece. São páginas e
páginas de diálogos longos e ao final infrutíferos, são detalhes descritivos que
parecem não levar a nada, são variados malabarismos narrativos, são ironias e
chacotas por todo o texto. Está aqui um trecho que é ilustração e metáfora:
“Jeremias subiu a escada penosamente. (...). Desgraçada, a escada era um nunca
acabar e não levava a nada, afinal de contas” (p. 25).
— Resta concluirmos se esta ênfase minimalista é sintoma de um universo
ficcional reduzido ou se é estratégia crítica... — disse ele. — Estou aqui folheando
esses seus recortes e encontrei uma crítica anônima que ilustra bem o que você
está dizendo. Ouça:
... Se há um defeito grave nesse romance de estréia é sua pretensão freqüente
de conferir um significado universal mais profundo a experiências bastante
insignificantes, limitadas ao mundo estreito de jovens de classe média de uma
província. (...) Quais os motivos para esse defeito? O próprio provincianismo do
autor? Sua extrema juventude — pois tinha apenas 21 anos quando o escreveu,
como esclarece Glauber Rocha em seu prefácio?
254
253
“João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002.
254
“Uma Semana da Pátria na vida da Província”, Fatos & Fotos, 12 out. 1968.
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126
— Você não terminou de ler a crítica até o fim. Leia até o fim — pedi —,
e você vai ver que o defeito é a qualidade, e vice-versa. — E o meu interlocutor
prosseguiu, resmungando:
... a esse defeito grave liga-se também a virtude maior do livro: seu mergulho
decidido nos recessos obscuros da vida provinciana, sua crítica sensível às
doenças que eles alimentam e sua sincera busca de uma solução existencial.
255
— Obrigado — e pensei o quanto pode uma citação ser manipulada pelo
inimigo. E depois me lembrei da resenha de Jorge Amado sobre Setembro...,
escrita em 1968, e da pequena crítica que ele faz, em meio a inúmeros elogios. E
pensei ainda se leria ou não esse trecho... — Você conhece a resenha de Jorge
Amado sobre o livro? É uma resenha bastante elogiosa, mas há uma pequena
crítica que vai ao encontro do que você disse acerca do universo ficcional
reduzido. Ouça: “Gosto mais da narrativa densa, econômica e ao mesmo tempo
largada em sua linguagem antiacadêmica”, disse Jorge Amado, “do que mesmo da
construção novelística, ainda por vezes vacilante”.
256
— E voltei à minha linha de
exposição: — Um contato mais detido com o livro vai apontar uma razão de ser
em todo esse desconcerto; vai levar-nos à sensação, que supomos presente no
jovem escritor, de uma descrença, representada pela zombaria, na possibilidade de
se discutir qualquer assunto de interesse coletivo que leve a algum lugar que
resulte num bem comum. As pessoas próximas ao jovem João Ubaldo Ribeiro
tinham do livro essa impressão e estranhavam tanto niilismo em tão pouca idade.
“Meu pai leu meu livro”, escreveu ele em 1963, numa carta a Glauber Rocha,
muito antes de o livro ser publicado, “e disse que era bom, apesar de ser um livro
niilista, amargo etc. etc.”
257
— E me levantei para pegar um café. — É a
impossibilidade de comunicação o seu argumento, e cada página de Setembro não
tem sentido é a demonstração dessa impossibilidade. O narrador do Diário do
farol parte do mesmo princípio, e põe isso na própria epígrafe de seu relato: “Não
se deve confiar em ninguém”.
255
Id.
256
“Um verdadeiro romancista”, Jornal do Brasil, 21 set. 1968.
257
Ivana BENTES (org.), “Carta de João Ubaldo Ribeiro a Glauber Rocha: Salvador, 11 de
novembro de 1963” (p. 227-229), in Glauber Rocha — Cartas ao mundo, São Paulo,
Companhia das Letras, 1997, p. 228.
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— Hum... — fez ele, não muito convicto. — No caso de Setembro..., esse
fechamento começaria já pelo título?
— Penso que sim, embora o próprio autor, à época, pensasse que não, ou
que tanto fazia este quanto qualquer outro título... O título Setembro não tem
sentido é, por si, autofágico. — E perguntei: — Se setembro não tem sentido, o
que resta, então, para setembro? Por que setembro não tem sentido?
— Porque não tem sentido aquilo a que se refere setembro: o feriado da
semana da pátria e todos os seus símbolos nacionais... E por que você mencionou
Ubaldo? O que diz ele?
— Disse isso, e no dia 15 de setembro de 1968...
258
Ouça.
— ... Setembro não tem sentido, porque a ação do livro, desenrolada nesse
mês, envolve os personagens numa certa perplexidade, numa constante sensação
de falta de propósito nas coisas, cujas causas eles não conseguem precisar com
clareza. De qualquer forma, o título tem importância secundário, eu creio.
259
— Ouça ainda. — E li para ele dois exemplos do texto: — “Sabe que
estamos na Semana da Pátria? — perguntou Jeremias despropositadamente”;
“— Sabe, estamos na Semana da Pátria — disse novamente, como quem está
sofrendo alguma coisa” (p. 26 e 28, realcei). — E prossegui: — A maneira
encontrada pelo escritor de montar a sua visão crítica sobre a performance da
política brasileira à época segue os caminhos do ceticismo e da desmotivação.
Ouça este diálogo entre Aspargo e Tristão:
— E a campanha?
— Que campanha?
A campanha política.
Ah, sim, colaboro, mas com o dedo no nariz. Isso não adianta nada.
Cambada de porcos. (p. 31)
258
— Coloco aqui numa nota o que escreveu um jornalista acerca do título de Ubaldo e da
importância literária que alcançou o romance naquele ano de 1968. — E li: — “Para o pintor
Solon Barreto, o livro veio a contrariar o seu autor: provou que ele próprio foi o sentido deste
setembro, ‘porque, a não ser o do último livro de Jorge Amado, nunca vi tanta gente em um
lançamento nesta livraria’. (...) Ao lançamento se encontravam as mais destacadas
personalidades de nossos letras, do jornalismo, do teatro e das artes plásticas” (“Lançamento
do livro de João Ubaldo leva grande público a ‘Civilização’”, Diário de Notícias, 21 set. 1968
,
realcei).
259
“João Ubaldo diz por que Setembro não tem sentido”, A Tarde, 14 e 15 set. 1968.
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— Quando um dos personagens secundários faz uma tentativa no sentido
de politizar o rumo dos diálogos — continuei, engrenado —, Tristão esvazia a
seriedade com pitadas de humor, grosseria e alguma vulgaridade. Por exemplo:
(i) — Diga-me, Tristão, qual é a posição lá do jornal?
— De quatro pés. O que mais? (p. 36)
(ii) — Meu bom amigo, por que haveríamos nós de precisar colaborar na
campanha?
— É o candidato da esquerda, rapaz!
— Por mim, podia ser até o candidato da sua mãe. (p. 37)
— Vê? — e ofereci café ao meu interlocutor, que permanecia calado. — A
desmotivação política infiltra-se nas ruas e no espírito do narrador, para quem os
eventos coletivos não passam de uma marcha às cegas, observada por ele a uma
segura distância: ideológica e afetiva. Durante a descrição de um ensaio para um
desfile estudantil de Sete de Setembro, levada a cabo sob a perspectiva de Tristão,
o narrador não faz mais do que salientar o artificialismo de todo o conjunto. Ouça:
“Eram todas meninas muito impessoais, agitando bastões como braços postiços”
(p. 32). E a descrição termina no pólo oposto: o narrador abandona a panorâmica
da coletividade, cujo artificialismo, automatismo e alienação já haviam sido
apontados criticamente, e orienta o olhar, ainda sob a focalização de Tristão, para
a solidão de uma menina. — E li: — “Os tambores inexoráveis. No fundo, Tristão
podia notar agora, estava uma menina desamparadamente só. Batia os pratos,
obstinada” (p. 32). Esta menina a bater os pratos, só e obstinada, resume a visão
de Tristão e, por extensão, a do narrador sobre cada personagem de algum modo
engajado num “projeto de política”. O povo reunido não passará de um conjunto
de indivíduos isolados, batendo obstinados os seus pratos, em nome da pátria.
Por que você fez o sinal de pôr aspas na expressão “projeto de política”?
— Porque ela deve ser lida aqui com uma subcategoria degradada de
“projeto político”, cujo uso não seria aqui nada apropriado, dado o seu caráter
generalíssimo. Tristão e o narrador conhecem de perto a prática política de que
são servidores e propagandistas indiretos. Toda manifestação cívica em Setembro
não tem sentido será descrita pelo narrador de modo crítico, irônico e até mesmo
melancólico. Ouça esse trecho: “Dramática, a parada se aproximou, enquanto
aumentava o ruído dos tambores e as cornetas gemiam em uníssono. As meninas
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punham o pé direito para a frente, com força. ¶ — Continuarão marchando pela
Eternidade — sentenciou Tristão soturnamente” (p. 33).
— Eu li Setembro não tem sentido há muito tempo — disse ele —, e não
me lembrava dessa mordacidade no narrador...
— Então você não o leu nada bem... — e fui eu o mordaz. — E há
também, para amenizar o que eu acabei de dizer, o fato de que não se costuma
absorver muito bem um narrador mordaz, cruel e irônico criado a partir da pena de
um escritor conhecido por sua simpatia e seu jeito bonacheirão. E João Ubaldo
Ribeiro, a julgar pelo que lemos por aqui, sempre foi assim... Ouça o que diz a
coluna do jornalista Adgemar Gomes, acerca de Setembro...: “É assim como que
um mergulho no caos, vidas angustiadas que se cruzam e conflitam, ódios,
desalentos (...). Não desconfiávamos de que atrás do riso alegre de Ubaldo Ribeiro
houvesse tanta amargura e fosse tão mordaz”.
260
E agora ouça o que diz Orlando,
num momento de seus solilóquios: “... posso ver, escrito nas primeiras páginas
dos jornais (...), que o Exército prepara as comemorações da Semana da Pátria.
Algum dia, todas as semanas serão da Pátria” (p. 140). Uma das mais eficazes
maneiras de esvaziar de sentido os acontecimentos — continuo, sem me deixar
interromper e passando agora a outro ponto — é justamente a subversão daquela
hierarquia baseada no senso comum. O personagem Orlando, sozinho em seu
quarto e obstinado por sua própria liberdade radical, não faz outra coisa senão
treinar este olhar chapado, não graduado, não valorativo sobre as coisas e o seres e
os eventos. Tudo merece o seu olhar, ou então nada merece o seu olhar. E Orlando
olha para “os pequenos fatos importantíssimos” de sua vista do quarto: uma
mosca mexendo a cabeça no parapeito da janela, um homem a gemer de dor de
dentes no prédio em frente, um poeta a explicar Castro Alves para o povo à porta
de uma venda (p. 93-94). “A realidade”, diz o padre-narrador do Diário do farol,
“qualquer que seja ela, da percebida à insuspeitada, da meramente física à social,
não se subordina a ordem alguma” (Diário..., p. 18). Os acontecimentos não se
abrem para as suas conseqüências; estão fechados em si mesmos e sua
importância restringe-se à sua duração...
— ... à sua duração e, quando muito, à sua mera enunciação... — disse ele.
260
Diário de Notícias, set. 1969.
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— À duração de sua enunciação... Ouça aqui, na fala de Tristão, a
coexistência galhofeira das duas tarefas previstas para a noite. Não há hierarquia a
graduar as atividades. Ouça:
— Escute aqui você, doutor — disse Tristão [ao sujeito que fazia a campanha
para o candidato da esquerda] (...). — (...) Aspargo está promovendo hoje um
pequeno sarau elegante de confraternização, no qual nós (...) entabularemos
conversações sobre os momentosos problemas nacionais, internacionais e por
que não dizer municipais, e também encetaremos tentativas no sentido de
perverter algumas das melhores jovens de nossa sociedade (...). E (...) a sua
presença, nesta época em que o Estado se prepara para o grande pleito cívico, nos
é sobremaneira desagradável, visto tentar o nobre doutor tornar-nos mercenários
da candidatura de um brasileiro embromador... (Setembro..., p. 37-38, realcei)
— O romance, através de momentos na sua aparência bastante gratuitos —
continuei —, vai apontando com o dedo o fechamento de que participam todos os
personagens: um fechamento para as perspectivas, para o passado e para as
possibilidades de comunicação. Os diálogos não conseguem avançar e às vezes
mal começam e já são tragados pelo vácuo de entendimento entre os
interlocutores. O narrador, quando está centrado na perspectiva de Tristão, conduz
a narrativa de acordo com os valores e as opiniões do personagem, que faz as suas
piadas para si mesmo, e para si mesmo dirige as suas próprias brincadeiras,
regozijando-se todo o tempo consigo próprio.
— Então, se há um diálogo, este é travado, pode-se dizer, entre o narrador
e Tristão. Os demais personagens, aqueles que não participam do seletíssimo
grupo dos jornalistas intelectuais, não percebem nada. É esta a maneira de se
representarem uma exclusão e um descrédito. — E ele leu, realçando trechos.
(i) — Ouviram do Ipiranga as margens plácidas! (...) — cantou Tristão. —
Salve, salve, oh salve-salve!
Duas mocinhas (...), esperando qualquer coisa da sorveteria, pararam de
conversar e olharam para ele.
— Boa noite, irmãs — disse ele. — Gerai, gerai.
O quê? — perguntou uma das mocinhas, que tinha o rosto bondosamente
estúpido.
(...)
— Deus meu, são barregãs! — gritou Tristão (...). — São barregãs, heim? Que
se pode esperar delas? Adeus, irmãs, não vos excedeis.
O quê? — perguntou a mocinha de rosto abobalhado.
(...)
Um camarada de blusão vermelho (...) olhou para Tristão interrogativamente.
“Mr. Livingstone, I presume?” indagou Tristão, gentil.
Hein? — disse o camarada (...). (Setembro..., p. 19-20)
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(ii) — Como é o seu nome?
— Hércules Pereira — disse o magro solenemente.
— Pai gozador, hein? — perguntou Tristão.
Como? (p. 24)
— E ainda... — prosseguiu ele — ... podemos facilmente ler as marcações
de diálogo, como o caso da mocinha “que tinha o rosto bondosamente estúpido”,
como esclarecimentos do narrador ao próprio Tristão.
— Sim, você tem toda a razão. Não há, em nenhum sentido, vestígios do
que se convencionou chamar plano pictórico, ou seja, não há ação retrospectiva ou
prospectiva e não há grandes quadros narrativos, prevalecendo sobre o texto
microplanos dramáticos, permeados quase todo o tempo por diálogos que não
conduzem a quase nada de relevante para a história. O romance fecha-se sobre a
meia dúzia ou mais de personagens que por alguns poucos ambientes fechados
circulam, a falar (mal) dos outros e de si mesmos; personagens que não têm o que
fazer e, muitas vezes, não têm o que dizer, embora saibam disso muito bem,
fazendo dessa consciência o seu principal instrumento crítico.
— Não sabemos se suficientemente crítico... — disse ele, com um sorriso.
— Suficientemente crítico, sim, e pese-se a palavra suficientemente. Ouça
aqui um trecho desta crítica do Assis Brasil, de 1968, sobre o então recém lançado
livro de João Ubaldo Ribeiro: “No romance (...) Setembro não tem sentido, vamos
encontrar a mesma despreocupação pelas situações ‘romanescas’ e pelos enredos
‘empolgantes’. Ele situa muito bem, em linguagem plana, a ação cotidiana de
alguns jovens, e com ironia joga na cara da sociedade as suas mazelas”.
261
— Um anti-romance... — disse ele, e aquilo me interessou.
— Guarde essa sua idéia do anti-romance. Você com isso me chamou a
atenção para um outro aspecto do livro. Espero que você não tenha dito isso,
“anti-romance”, à toa. Bom, continuo aqui o meu raciocínio. Tristão, Orlando,
Jeremias, Sebastião, Hércules, Aspargo, o Gordo, Gó, Arquibaldo, Leonardo e
outros formam todos um grupo relativamente cúmplice. Entendem-se dentro do
possível e fazem questão de não entender mais ninguém. “Não sei porque fiz
aquilo”, disse Tristão, depois de extorquir com violência retórica cinqüenta
cruzeiros de um menino, alegando tê-lo flagrado tirando meleca do nariz e
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passando nos livros. “— Não sei porque fiz aquilo — disse Tristão. ¶ — Falta
absoluta de ter o que fazer — disse Jeremias, agitando a velha nota de cinqüenta
cruzeiros no ar” (p. 43-44). — E, pegando fôlego, prossegui: — Toda a primeira
parte do segundo capítulo de Setembro..., intitulado “Dia 4”, dedica-se a formar
um quadro o mais fiel possível de uma redação de jornal, “onde a única atmosfera
sensível é o vapor de chumbo, subindo pela escada da oficina, insidiosamente” (p.
89). O narrador incorpora e põe em prática vários tipos de discurso, dos orais:
discussões entre jornalistas e entre jornalistas e visitantes à redação, aos escritos:
as várias versões de uma matéria e os discursos políticos a serem publicados.
— E faço aqui uma observação baseada numa de suas idéias quanto ao
perfil do narrador na obra de Ubaldo — disse ele. — Pode-se apontar aqui o
início, a desenvolver-se e sofisticar-se nos demais romances do escritor, de uma
das principais características desse narrador sem cabeça: o seu feitio
camaleônico, ou seja, a sua capacidade de metamorfosear a linguagem,
incorporando a linguagem do outro e assim transformando-se nesse outro.
— Sim. Você pegou. E, quando observamos de perto o comportamento
verbal tanto de Orlando, em Setembro..., quanto do padre, no Diário...,
observamos o quanto se aproximam e o quanto se afastam: ambos narram em
primeira pessoa, mas Orlando fala, ou pensa, tal como Getúlio, ao passo que o
padre do Diário... escreve. Quando se trata de um personagem a falar ou pensar, a
marca da presença desse personagem sobre o discurso acaba sendo bem mais
notável, dada a força da oralidade como conquistadora de espaços na narrativa.
Quando estamos diante um personagem dedicado à escrita de sua história,
estamos diante, antes de tudo, de um narrador, dado ser a escrita muito mais
passível de controle do que a fala. Ora, João Ubaldo Ribeiro teve o cuidado, na
narrativa de seu Diário do farol, em furar esse quadro e subverter essa hierarquia,
fortalecendo assim a nossa idéia, ou melhor, a minha idéia, do narrador sem
cabeça, ou seja, a idéia da extrema permeabilidade do narrador diante da
contundência de seus personagens. Como escreveu Ubiratan Brasil, a “escrita de
Diário do farol exigiu que João Ubaldo Ribeiro modificasse seu estilo peculiar
261
“A liberdade na ficção moderna”, Correio da Manhã, 8 set. 1968.
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para dar verossimilhança ao relato de um clérigo”.
262
Quem escreve? Um escritor
profissional? Não — disse eu —, um padre que não escreve mal, é verdade...
“Não sei se os leitores vão notar, mas muitos trechos não se parecem com a minha
forma de escrever”, diz ele. E continua:
Apesar de não conseguir evitar meu próprio estilo, eu tentei dar um ar
amadorístico ao romance para emprestar mais verossimilhança à idéia de que se
trata do diário de alguém que não é escritor. Tanto que ele mesmo diz que não é
um autor e, aproveitando para esculhambar também os escritores, nem encontra
dificuldades para escrever. (...) De qualquer forma, meu estilo é notado, por
exemplo, nos períodos longos.
263
— ... um padre que não escreve mal, mas que está longe de ser um artífice
da palavra... “... de vez em quando deixava certas coisas de forma tal que
indicasse esse amadorismo”, revelou Ubaldo.
264
E eu estou lendo aqui duas
matérias que apontam estas “certas coisas” — disse ele, debruçado sobre a mesa.
— O que o crítico Daniel Piza escreveu: “O texto é escrito com pulso solto,
sofrendo do excesso de vírgulas e até redundâncias”,
265
e também este outro:
Para passar melhor a idéia de que o livro não é obra de um escritor
profissional, João Ubaldo força uma narrativa cheia de deslizes estilísticos. Há
repetições de palavras, redundâncias de argumentos e, requinte dos requintes, um
uso exagerado de advérbios de modo, que, como se sabe, costumam ser
normalmente dispensáveis.
Não se imagine, porém, que o ficcionista baiano esteja ausente do romance.
No plano do estilo, é possível detectá-lo, por exemplo, em algumas frases mais
elaboradas. No âmbito do conteúdo, além de Shakespeare — cujo Hamlet João
Ubaldo Ribeiro gosta de declamar para os amigos em seu inglês irrepreensível, a
empostação perfeita, os olhos marejados —, Diário do farol remete, claro, a
Montaigne (que dizia: “O Bem e o Mal só o são pela idéia que deles temos”),
Kierkegaard, Albert Camus.
266
— E, se calhar, o personagem ainda comete lá os seus erros... Erros de
verdade... — disse ele, sorrindo, com o livro aberto. — E lhe dou aqui três
exemplos de deslizes cometidos pelo seu padre, distrações de um faroleiro que só
262
“Ubaldo revela detalhes da crueldade religiosa em Diário do Farol”, O Estado de S. Paulo, 16
mar. 2002.
263
Id.
264
Roberto NICOLATO, “A personificação do mal”, Gazeta do Povo, 8 abr. 2002.
265
“O faroleiro e as trevas”, Bravo!, mai. 2002.
266
Rinaldo GAMA, “O impulso vital”, Carta Capital, 27 mar. 2002.
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aparentemente domina a língua, sendo capaz de pequenos deslizes, sutilmente
encaixados e escondidos em meio a um texto escorreito, numa manobra que
Ubaldo explorou pouco:
267
“Não foi uma preocupação permanente”, diz ele aqui
nesta entrevista, “mas acidental, que aconteceu aqui e ali durante a feitura do
livro...”.
268
É a escrita do personagem a se sobrepor à escrita do narrador, um
personagem que está escrevendo aquilo que supostamente ouviu do espectro de
sua mãe numa noite tempestuosa. Observe que não é a mãe que está a falar
diretamente — continuou ele, abrindo o Diário do farol —, mas o padre, seu
filho, a registrar para o leitor, anos depois, aquilo que ele supostamente ouviu da
mãe. Observe também que no último exemplo o problema é a frase que não se
completa, e isso graças a um “e”. — E ele leu, realçando com prazer os erros:
(i) Agora sei que, se não podes ver meu vulto em meio a esta tarde negra e
tempestuosa onde flutua meu espírito sem paz, pelo menos podes entender o que
sussurro (...). Meu filho, creia que te acompanho e me lembro com saudades de
tua figurinha ao meu colo (...). (Diário..., p. 52)
(ii) Ouve tua mãe, ouve somente tua mãe e sê o que deve seres para cumprires
o que peço. (Diário..., p. 55)
(iii) Pensei em sentar-me, mas não ousei, porque sentar-me diante dele sem
autorização partida exclusivamente dele, já que um pedido meu era geralmente
qualificado de insolência, e tinha conseqüências imprevisíveis. (Diário..., p. 36-
37)
— E há ainda — retomei a palavra e o momento anterior da conversa,
remetendo-me agora a Setembro não tem sentido —, somando-se a isso, o abandono
da ortodoxia na marcação dos diálogos e as falas sem emissor e remetente claramente
identificados, que misturam todas as vozes e todos os discursos no grande burburinho
das redações. O narrador é o porta-voz da torre de Babel. Ouça:
... Ontem foi a terceira vez que você faltou esse mês, disse o Secretário, e
Tristão respondeu, como se este mês mal começou? Sei lá, disse o Secretário,
267
— Manobra pouco explorada — interrompi, em nota — mas suficiente para que desse ensejo a
uma espécie de crítica que não levou em conta a porção de voluntarismo na imperfeição da
narrativa. “Há críticas (...) que o consideram malconstruído, seja pela linguagem ou pelo
caráter inverossímil da narrativa. Até que ponto prevalece o tom amadorístico e intencional do
romance?” (Roberto N
ICOLATO, “A personificação do mal”, Gazeta do Povo, 8 abr. 2002).
268
— E ele continua: “Eu nunca gosto de falar muito sobre o meu trabalho porque esta armadilha é
muito difícil de evitar. Você começa a explicar coisas que não pensou na hora em que estava
fazendo. E aí racionaliza, presta atenção em aspectos de que não dava conta no momento...” (Id.).
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mas faltou três vezes de qualquer maneira, não adianta, assim ou assado você
faltou três vezes e está acabado. (...) O que é que há, disse Tristão a Castro, que
escrevia um comentário econômico. Esta é uma redação porca, imunda, viscosa e
pegajosa e babosa e remelosa e sebosa, disse Tristão. Castro piscou os olhos
morosamente. Sim, porquíssima, sebosíssima. Você está ficando gordo e careca.
É a idade. Não, não, dir-se-ia que é algo mais profundo (...). Talvez, talvez. (...)
Descomunais bocejos e o barulho das máquinas. Que porre, escrever e
reescrever. (p. 69)
— Assim como aconteceu com a referida Torre, onde as pessoas não mais
se entendiam, a redação do DS, Diário de Salvador, um equivalente ficcional do
Jornal da Bahia e da Tribuna da Bahia, onde João Ubaldo foi de tudo um
pouco...
269
Ou, segundo suas próprias lembranças:
... Fui copidesque, fui chefe de reportagem (nunca mais, Deus me proteja), fui
editor de suplemento literário (no tempo em que eles eram gordões), colunista de
reclamações, astrólogo de plantão (redigindo os horóscopos quando não havia de
onde recortar um velho), colunista de “atividades rotáricas”, articulista, piadista,
cronista, editorialista, crítico literário, redator-chefe — e mais coisas ainda,
muitas das quais esqueci, pois mesmo a enumeração que fiz me parece hoje louca
e fantasiosa, embora seja a pura verdade.
Houve tempo em que eu morava no jornal e só aparecia em casa para tomar
banho e mudar de roupa.
270
— A redação do DS, dizia eu, apresenta-se como um aglomerado de
discursos individuais que não encontram ressonância no outro. Ninguém de fora
entra no universo do jornal e do jornal ninguém sai. “... para que serve um
jornal?”, pergunta Orlando em seus devaneios, e ele mesmo responde: “Todos,
sem exceção, responderiam vulgaridades. Banalidades tais como informar ao
público, orientar a opinião popular, batalhar pelas boas causas” (p. 59).
— O “povo”, para o narrador, é um mistério... — disse ele.
— Sim, e o universo dos jovens jornalistas, inspirado no universo do
jovem jornalista João Ubaldo Ribeiro e de seus amigos, não se casa com o
universo do lado de fora daquela “porca, imunda, viscosa e pegajosa e babosa e
269
Segundo o site da Academia Brasileira de Letras (ABL): <http://www.academia.org.br
/cads/34/joao.htm>, acesso em 30 nov. 2004, e da matéria “João Ubaldo Ribeiro: tão nordestino...”,
Diário do Nordeste, 21 jul. 1982
.
270
— Crônica intitulada: “Este, na verdade, não é o título que eu queria dar” (O Globo, 24 fev.
1985, reunida no livro Arte e ciência de roubar galinha, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998,
p. 79-83, p. 81).
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remelosa e sebosa” (p. 69) redação. Ouça aqui de que maneira uma “pessoa do
povo” é descrita pelo narrador, sob a focalização interna de Tristão:
— Como vai, seu Tristão? — disse o homenzinho, que tinha mau hálito e que
falava pegando nos botões e no colarinho de quem o estivesse escutando.
— Não se lembra de mim, não? — falou novamente, usando um ar
deliberadamente humilde, como um instrumento. — Eu vim aqui para ver se o
senhor podia colocar uma notinha para mim. (...)
Uma dilapidada e flácida estrutura, diante da mesa. Podia fazer-se uma
cavalice com ele, sim, mas não adiantaria nada, nada podia afetar o repulsivo ar
humilde e infeliz, talvez até ele chegasse mais perto com seu bafo fedorento (...).
(...)
Uma bajulação servil pelo corpo todo. Que estaria realmente pensando?
Não havia jeito de saber. (p. 82, realcei)
— Perceba que estou aos poucos colocando você mais familiarizado com
uma das minhas propostas nessa tese que vou escrever... — insisti. — Costurar,
como você sabe, relações biográficas; nesse caso, entre os universos jornalísticos
do romance Setembro não tem sentido e os do próprio escritor, e ainda entre os
personagens Orlando e o padre, e entre o padre e o próprio personagem João
Ubaldo Ribeiro, personagem de si mesmo... E isso tudo a despeito do que você me
falou acerca dos perigos...
— ... do recurso fácil ao biografismo como válvula de explicação do
universo romanesco.
— Isso. Quero costurar aqui os universos intradiegético e extradiegético...
— Aproxime-os — disse ele. — É o bastante... E já estou começando a
mudar minhas idéias... Ou seja, não há um universo, para usar os seus termos,
extradiegético e outro intradiegético.
— Você está começando a digerir a minha idéia...
— Não é isto o principal — disse ele. — O principal é estarmos aqui a
conversar e, de um certo modo bastante evidente, estarmos sendo modificados por
essa nossa conversa. O nome disso é dialogismo... O Bakhtin escreveu que...
— Por favor, deixe-me continuar — interrompi-o com brusquidão. — O
outro, inalcançável, inacessível e incompreensível — e retomei o meu exemplo
sobre a imagem do “povo” perante os jovens “intelectuais” —, não se resume ao
“povo popular” daqui, mas também ao “povo estrangeiro de lá”. João Ubaldo
Ribeiro critica não apenas a imagem que as elites intelectuais guardam do “povo
brasileiro”, como também a que têm do “povo estrangeiro”, admirado justamente
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por sua suposta civilidade “congênita”. Note-se que a crítica é tanto mais
eloqüente quanto menos didaticamente desenvolvida ela se apresenta. Os
personagens, e os seus discursos ideologicamente sedimentados, são flagrados, e
ridicularizados, em atos de pensamento que falam por si. Deixemo-los, então,
falarem por si, e vamos ao seguinte exemplo, em que o narrador “transcreve” o
trecho de uma das matérias escritas para a edição do dia seguinte:
... Regressou de viagens de estudos à Europa (...) o Bel. Francisco Belmiro
Coutinho, que, em declarações ao DS, afirmou estar plenamente satisfeito com o
que viu, acrescentando que, infelizmente, “o Brasil ainda tem muito que
progredir”.
O Bel. Francisco Coutinho impressionou-se vivamente com sua visita à
Inglaterra, onde se demorou por duas semanas, afirmando que, apesar de não
compreender bem a língua inglesa, pôde observar a “extraordinária cultura do
povo britânico, bem como sua perfeita organização dos serviços públicos, que se
deve, indubitavelmente, ao grande senso de responsabilidade, que todos lá trazem
inato”. (Setembro..., p. 84-85)
— A mesma estratégia discursiva João Ubaldo Ribeiro vai utilizar mais
adiante, em Viva o povo brasileiro, e com bastante intensidade, colocando os
personagens, e não o narrador, para externar a opinião que têm sobre o povo
brasileiro e o povo dos países da Europa. Lembro-me especialmente dos discursos
inflamados do Cônego Visitador D. Francisco Manoel de Araújo Marques, acerca
do perigo das máquinas a vapor. Ouça. Vale a pena — e peguei o outro romance.
... E em verdade digo-vos, senhor Barão, mesmo nessas civilizações
avançadas, onde o espírito do homem não é pervertido por uma natureza
luxuriosa e corrutora, onde a mestiçagem não estiola o sangue e o temperamento,
onde, enfim, é possível existir o que aqui jamais será, ou seja, uma cultura e vida
dignas de homens superiores, mesmo nessas nações essas máquinas não deixam
de oferecer perigo. (Viva o povo..., p. 61)
— O tratamento “menor” dado aos assuntos relacionados à política
nacional ou local — continuei — é apenas um exemplo da direção que tomam, em
Setembro não tem sentido, os conteúdos manipulados pelos personagens: partem
de uma perspectiva ampla e elevada, e essa perspectiva ampla e elevada revela-se
promissora, e então caem. Tristão ou Orlando, ou o próprio narrador, frustram a
promessa e fecham o facho que se ia abrindo. No Diário do farol essa
desconsideração referente aos assuntos políticos é menos estilizada e mais franca.
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Ouça: “A política (...) nunca me atraiu, nem atrai, torna-se abstrata e genérica
demais, assim que se afasta de minhas preocupações pessoais” (p. 194).
— Os assuntos começam grandes, solenes e filosóficos — disse ele — e
terminam prosaicos, fechados e satirizados. Penso no que Joyce fez no Ulisses...
— Sim. Veja-se aqui este trecho, em que estão os personagens
conversando sobre a miséria nacional e a risível distribuição de renda no país. É
este o tema da conversa, embora não seja esta a maneira de tratarem do tema. A
maneira é sempre irônica: os personagens conversam sobre os valores protéicos
do lixo vasculhado e comido pelos miseráveis... E Tristão inicia então uma
reviravolta na conversa, elevando o tom através de uma longa citação em latim,
que inclui as célebres primeiras palavras da Criação: “Primodie, fecit lucem. Deus
finxit corpus hominis e limo terrae”. E, em seguida, a pergunta que desmonta a
infalível e asséptica estrutura, fechando, desmotivando todo o conjunto e fazendo-
o retornar à sua origem chã: “Mas será que fez do lixo?” (Setembro..., p. 17).
— Aqui restam, reduzidos a muito pouco, não apenas Deus e a sua Luz,
mas também o homem e o seu latim... — disse ele.
— Narrador e personagens trabalham juntos no processo quase constante
de esvaziamento e ordinarização de termos — continuei. — Pela lógica de
funcionamento do romance Setembro não tem sentido, o universo de significados
e valores dos personagens está sujeito a constantes perdas de importância.
Setembro... realiza a des-pompa através do humor, ao passo que o Diário do farol
se utiliza do rancor... Quando o narrador diz que Tristão assoviava com energia o
Hino Nacional e em seguida o próprio narrador comenta, num bloco de texto
graficamente disposto como sendo voz narrativa, e não marcação de diálogo, que
o Hino é “Minha canção preferida. Parece um tango argentino”, não faz outra
coisa senão, com ironia, partir de uma singularidade em maiúsculas (o Hino
Nacional), para em seguida a equiparar, desqualificando-a, a algo sem nem
mesmo um nome: um tango argentino.
— Em todo o romance parece ser bastante recorrente a mistura de vozes
narrativas no interior de um mesmo bloco de texto...
— Em Setembro...? Sim, a fala do narrador e a fala do personagem se
misturam porque de fato misturadas estão — e me levantei, atrás de um café. —
No Diário... também há a mistura, embora às vezes possamos detectar momentos
em que se entrevê uma espécie de opinião que transcende a consciência do
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personagem e mesmo a do narrador. E se destacam então, acima das vozes
dramáticas e narrativas, a fala e as opiniões do escritor João Ubaldo Ribeiro. Veja
este exemplo: dizem o personagem, o narrador e principalmente João Ubaldo
Ribeiro o seguinte, em referência ao comportamento da polícia brasileira:
(i) ... O método de investigação do delegado, como até hoje, na maior parte do
Brasil, era tomar uma meia garrafa de cachaça e comandar surras e palmatoriadas
nos presos, até que eles confessassem” (Diário..., p. 99).
(ii) — Eu vivi no interior, onde a polícia agia, como até hoje age, até nos
grandes centros, usando como técnica de investigação a porrada e a tortura de
prisioneiros. O padre planejou o envenenamento dos irmãos e conseguiu
atestados psiquiátricos falsos, tudo isso por falta de uma polícia bem
estruturada.
271
— E também estas opiniões, sobre o grau mais ou menos reincidente das
artes. Observe a presença do próprio João Ubaldo dentro das opiniões do padre:
272
Se eu fosse escritor profissional [escreve o padre], teria possivelmente cuidado
dela com mais eficácia, mas não sou escritor profissional e tenho até uma certa
satisfação em deixar isto bem patente, porque mostra que qualquer um pode
escrever um livro, contanto que possua a tenacidade necessária. Não há nada
especial em ser escritor de ofício; é a mesma coisa que ser carpinteiro, por
exemplo — e me dá gosto murchar egos como quem esvazia balões, embora
reconheça que os verdadeiros artistas, no fundo de suas almas coquetes, saibam
que não passam de embusteiros a copiar disfarçadamente o que já se fez antes
deles, pois toda a pintura do mundo já estava feita depois que a primeira
tomou forma, o mesmo se passando com todas as outras artes. Se fossem
realmente novidades, não encontrariam quem as apreciasse, porque não se
apreciam novidades reais, só as que já têm antecedentes, por mais embuçados que
estejam. (Diário..., p. 21-22, realcei)
— Talvez a literatura de hoje seja mais parodística, talvez ela tenha chegado a
um ponto em que só se pode fazer paródia, porque tudo já foi escrito. Mas, por
outro lado, tudo já foi escrito mesmo, desde o início da humanidade. O que
fazemos é só revestir os grande temas de sempre com roupas novas. A traição, o
amor, sobretudo o amor frustrado, as tragédias da vida, o destino humano, tudo
isso constitui a matéria-prima última de todos os romances. Não se pode falar em
plágio, mas sim de reciclagem.
273
271
“João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002.
272
— “João Ubaldo acredita que algumas opiniões expressas pelo personagem podem conter
pensamentos autobiográficos”, escreveu um jornalista — ilustrei, em nota. — E o autor
responde: “É possível que sim, mas não me recordo agora de um trecho específico do livro que
reflita a minha opinião” (Paulo S
ALES, “Inventário da maldade”, Correio Folha da Bahia, 14
abr. 2002). Há muitos — disse eu, como se respondesse ao escritor.
273
“João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002, realcei.
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140
— Como você lembrou lá atrás, está em Setembro não tem sentido o início
das atividades do narrador sem cabeça; no Diário do farol a sua permanência.
— Há algum momento em que a narrativa se abra para descrições mais
panorâmicas — perguntou o meu interlocutor —, como se o narrador de
Setembro... decidisse olhar para cima, por sobre os ombros de seus personagens, a
tentar vislumbrar o mundo para além daquelas específicas consciências?
— Sim. A descrição ganha então um tom mais ortodoxo: trata-se do
narrador a tentar dar conta da realidade, como um típico narrador extradiegético a
olhar em torno de si e esquecido de si. Mas o momento dura pouco, os personagens
falam mais alto e reclamam a presença do narrador, e a narrativa, a cada abertura,
reinicia o seu enclausuramento, o seu retorno ao quarto fechado. Ouça, vou ler:
Através da rua, por cima do telhado grande da igreja, o vento soprava, uma
brisa constante e quase clara. O mar, apesar de não haver lua, estava quase
inteiramente visível sobre a amurada. Tristão pôs a mão sobre o ombro de Joanita
e levou-a para dentro. (...)
Jeremias começou a vomitar em grande golfadas.
No quarto, assim, assim. (...) enterro a cara no travesseiro e durmo. Só que
não respiro. E morro. (Setembro..., p. 28, realcei)
— Em outro momento de Setembro..., o narrador também inicia uma
descrição “disfarçado”, sob uma capa extradiegética, e logo em seguida a
abandona, como se não conseguisse permanecer nessa posição de controle,
neutralidade e onisciência. Ouça — e li —: “Passam barcos pelo mar todas as
noites e os marinheiros puxam as velas e dão apitos. (...) Mulheres de todas as
espécies dormem e outras velam, como os cachorros também e os telegrafistas,
por exemplo. Mas porém... mas porém, o que porém?” (p. 22, realcei). A pergunta
que ele mesmo se faz deixa nua a evidência de que a sua descrição caminhava
para a esterilidade e o automatismo das descrições que não são nada mais que
“meramente literárias”.
— E ainda acrescento isto — observou ele —: a inclusão de
“telegrafistas”, além de despoetizar toda a descrição, até então calcada em
lugares-comuns, como prostitutas, viúvas ou simplesmente damas insones a velar
a noite ao lado de cães vira-latas etc. etc., sendo a imagem por demais conhecida,
ainda explicita um movimento restritivo na enumeração, que passa de termos
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gerais, como “mulheres de todas as espécies” e “cachorros”, cabíveis em várias
alternativas de descrição, para a especificidade insólita de “telegrafistas”.
— Sim, você observou bem — concordei, um pouco contrariado por não
ter sido eu a observar aquilo.
— Não se apoquente — adivinhou o meu interlocutor. — Quando estiver
escrevendo a sua tese, use a minha observação como se sua fosse. E faço mais:
estendo essa permissão a tudo o que eu disser aqui, desde que...
— Obrigado. Usarei essa e muitas outras observações suas, e depois
escrevo um agradecimento apropriado. — E, um pouco sem graça, recuperei a
palavra antes que fosse tarde: — A cada elevação de tom, o narrador, com a sua
irreverência diante de qualquer solenidade descritiva, propõe rebaixamentos e
fechamentos para níveis mais prosaicos. Num outro trecho, também a narrativa de
uma cena exterior, Tristão ganhando as ruas após a noite com Joanita, podemos
apontar todas as referências negativas encontradas pelo narrador para descrever a
caminhada matutina do personagem, que, mal chega à porta, já enxerga a
procissão dos transeuntes “subindo penosamente a ladeira, com as costas
curvadas” e cheios de calor. Tristão, “com um cigarro na boca para disfarçar o
mau hálito”, sentia que as pedras da ladeira “cheiravam mal” e que havia um
“monte de lixo em cima e outro monte embaixo. (...) ... sempre há lixo”, pensa ele,
que entra num “botequim sujo” e pede uma coalhada, “Coisa porca, coalhada”, e
foi então se deu conta de que tinha “que mijar” (Setembro..., p. 29).
— Mundo cão... — disse o meu interlocutor. E suspirou.
— Não suspire, há mais café.
3.2.
A TERCEIRA PESSOA: O TERCEIRO EXCLUÍDO
— Já que estamos a falar do narrador, eu gostaria de uma descrição mais
técnica
274
para o caso de Setembro não tem sentido — pediu ele, quase rabugento.
— Abro mão de mais considerações de cunho narratológico acerca do Diário do
farol por razões óbvias: a sua narrativa é bem mais homogênea e estável...
274
— A bibliografia técnica sobre narratologia deve ser vasta — disse ele —, e você deveria
discriminá-la ao final do trabalho, sob a rubrica “Estudos citados sobre o narrador”. —
Concordei imediatamente.
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142
— Sim, o que nos interessa em Diário do farol é mais o líquido biográfico
que escorre pela história... Mas lhe digo também que essa sua pergunta, diante de
livros como Setembro..., não faz muito sentido.
— Faz todo o sentido — disse ele, meio ofendido.
— Quero dizer que não faz sentido tentarmos chegar ao estabelecimento
de um status narratológico preciso...
— Eu não pedi isso! — e ele se levantou em busca do café. — Eu pedi
uma explanação, um passeio pelo assunto. Mostre-me o narrador de Setembro não
tem sentido em funcionamento... Você precisa fazer isso na sua tese...
— Desculpa lá... Entendi mal. — E comecei a pensar. — Setembro não
tem sentido apresenta inumeráveis modos de narrar articulados pelo escritor, o que
dificulta qualquer possibilidade de identificação do leitor com a condução da
narrativa. São muitos narradores diferentes, e cada um com um estilo... Não há
aqui um narrador que produza familiaridade no leitor. Há sempre surpresas.
— Essa é uma observação de cunho formal? Quero dizer, Ubaldo, em
Setembro..., não reproduz um modo de narrar clássico; antes, pelo contrário,
propõe inovações a todo o tempo? Inovações formais... Eu estou perguntando isso
porque o livro, ao contrário do que você vem dizendo, não foi considerado, à
época, tão moderno assim... — E ele se explicou: — Estou me valendo justamente
da sua pesquisa em jornais. Eu estava aqui bisbilhotando e achei outros trechos
daquela crítica do Assis Brasil e também daquela da Bella Josef; trechos que você
ainda não tinha lido para mim... — e leu, cheio de si.
(i) João Ubaldo Ribeiro é um seguro narrador, e a restrição que podemos fazer
a este seu Setembro não tem sentido é que “ousou” pouco, ficou numa visão meio
simplista não só do romance como da vida. Não queríamos um “grande”
romance, mas um romance (e sem dúvida alguma ele poderá nos dar) em que o
corte técnico fosse mais transversal e o corte humano mais contundente.
275
(ii) A narrativa na primeira pessoa não maneja muitas técnicas experimentais:
fragmentação de cenas, tentativa de emprego do monólogo interior. (...) A
linguagem é o grande trunfo do romance, nas mãos de um narrador que
despontava, assumindo a forma paródica, contra certas frases pré-fabricadas e
realizando o pastiche de vários clichês.
276
275
Assis BRASIL, “A liberdade na ficção moderna”, Correio da Manhã, 8 set. 1968.
276
Bella JOSEF, “Dialética irônica”, O Globo, 7 jun. 1987.
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143
— Sim, e ainda há um comentário do jornalista Adgemar Gomes, de 1969,
que diz assim: “Setembro não tem sentido é assim: temática densa, leitura
fácil”.
277
De todo modo — segui —, a crítica de Assis Brasil refere-se menos à
falta de inovações formais do que ao enclausuramento do romance, marcado pela
exigüidade do espaço, do tempo narrativo e das perspectivas existenciais dos
personagens. E, para que se mantenha uma certa coerência entre o status do
narrador e o espírito geral do romance, não há aqui lugar para a abertura oferecida
pelo narrador em terceira pessoa de cunho clássico: onisciente, onipresente e
onipotente. É por isso que a terceira pessoa narrativa de Setembro... não passa de
uma abstração. O narrador não consegue permanecer longe da focalização interna
e está todo o tempo a misturar as vozes, adotando para si o eu do personagem,
contando a história com as palavras do personagem focalizado e dando a entender
que sente o mesmo que o seu personagem. Voltemo-nos para essa pouco convicta
terceira pessoa — e pedi mais café. — A terceira pessoa sem cabeça...
— Acabei de fazer um fresquinho...
— Na primeira parte do capítulo inicial, chamado “Dia 3”, o narrador,
operando na terceira pessoa, começa seus trabalhos dando conta de uma conversa
entre três personagens. Tudo leva a crer que estamos diante de um narrador
onisciente, exterior à história e também à ficção; um típico narrador, utilizando-se a
terminologia de Gerard Genette, participante de um nível extradiegético, ou ainda,
na divisão proposta por Todorov, um narrador maior, porque sabe mais, que os
personagens envolvidos. O seu feitio extradiegético, no entanto, revela-se frágil mal
começa a história. As duas primeiras frases, informativas e neutras, sugerem a
onisciência e a visão panorâmica dos narradores clássicos, contando o que sabem
“por detrás” dos personagens, segundo o termo de Jean Pouillon.
278
Leia, por favor.
— “Eram duas horas da madrugada e estavam sentados na grama do
jardim defronte do Palácio do Governador” (Setembro..., p. 15).
277
Diário de Notícias, set. 1969.
278
— Jean Pouillon trabalha com uma tríade cinematográfica, cujas partes são a sua “visão por
detrás”, a caracterizar um narrador onisciente neutro; a sua “visão com”, que implica um
narrador onisciente seletivo; e a famosa “visão de fora”, esta chamada de “narrador-câmera”,
um narrador oposto ao onisciente, já que sabe menos, muito menos, que o personagem em foco
(ver, a esse respeito, os verbetes focalização [p. 165] e perspectiva narrativa [p. 326], do
Dicionário de narratologia, de Carlos R
EIS e Ana Cristina M. LOPES, Coimbra, Almedina, 2002).
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— Obrigado. Esta condição não resiste à terceira frase: “... exceto Luiz,
que se abaixava e catava malmequeres distraidamente” (p. 15), que retira a
solenidade da informação objetiva, tornando prosaico todo o período.
— Retirar do período a solenidade não retira do narrador a sua condição de
narrador em terceira pessoa... — disse ele, querendo tornar as coisas difíceis.
— Não, mas retira a sua neutralidade e o seu distanciamento em relação
aos personagens tomados como um grupo... A suposta precisão descritiva do
início se desfaz diante do primeiro indício de um discurso valorativo por parte do
narrador: “‘Sua Excelência está adormecida’, disse Tristão, com o ridículo nariz
empinado para a frente” (p. 15, realcei).
— Parece-me que não se trata de uma intrusão do narrador. Trata-se do
ponto de vista do próprio Tristão acerca de si mesmo, que, aqui neste trecho já
mostra a que vem, com sua irreverência implacável, uma irreverência que não
poupa nem a si mesmo. Não?
— Não. Você disse mal — retruquei. — É uma intrusão do narrador, sim,
porque é ele quem está conduzindo a retranca. Você pode dizer, no máximo, que o
narrador pegou emprestada do personagem a sua irreverência implacável. Deste
ponto em diante, o narrador, enturmando-se com aqueles cujos diálogos reproduz,
não apenas passa a fazer parte do grupo, como entra nas brincadeiras propostas
por Tristão, Jeremias e Luiz, entrando, tamm, na ficção e na história de um
modo bastante peculiar: fica a rondar os personagens, a sobrevoar-lhes as cabeças,
como uma alma, e a querer participar de sua linguagem, incorporando as
características de seus personagens, principalmente a tal irreverência, e
conduzindo toda a narrativa sob este tom. Ouça: Tristão diz a Luiz em discurso
direto que este parece uma “noivinha” com as flores na mão. O narrador pega a
palavra no ar e, por algumas páginas, passa a utilizá-la na marcação dos diálogos
toda a vez em que tem de se referir a Luiz. Sua insistência em utilizar o termo
“noivinha” demonstra a sua insistência em participar daquela intimidade.
— Sua condição, então, de narrador presente num nível extradiegético é
apenas mantida em termos formais, ou seja, o narrador não tem um nome e não é
visto pelos demais personagens, estando, portanto, formalmente...
— ... fora da história e fora da ficção... — completei.
— Qual a diferença?
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— Explico depois. Mas antes faço uma ressalva: no meu modo de olhar
para a narrativa de João Ubaldo Ribeiro, o narrador nunca se encontra “fora” da
ficção, sendo ele também um personagem fictício de natureza diferente, sim, mas
fictício, podemos dizer que o narrador, não sendo percebido pelos demais
personagens, “mora” num nível diegético imediatamente superior à diegese da
qual participam os três personagens referidos. O seu tom, no entanto, revela a sua
presença participativa, já que toma para si as palavras de seus personagens,
reproduzindo também as suas atitudes, como se lá estivesse, a troçar de tudo. O
narrador pode não estar narrativamente dentro da história, mas é dentro da história
que ele se sente e é assim que se comporta.
— Como uma almazinha mesmo..., condenada a permanecer entre os
vivos... — e ele presenteou a nossa discussão com um trecho de Viva o povo...:
... Em Amoreiras, por exemplo, afirma-se que a conjunção especial dos pontos
cardeais, dos equinócios, das linhas magnéticas, dos meridianos mentais, das
alfridárias mais potentes, dos pólos esotéricos, das correntes alquímico-filosofais,
das atrações da lua e dos astros fixos e errantes e de mais centenas de forças
arcanas — tudo isso faz com que, por lá, as almas dos mortos se recusem a sair,
continuando a trafegar livremente entre os vivos, interferindo na vida de todo
dia e às vezes fazendo um sem-número de exigências. (Viva o povo..., p. 15,
realçou)
— Sim, você ilustrou muito bem o nosso ponto: o narrador como uma alma
que se recusa a migrar para um nível diegético superior e por isso fica condenada a
permanecer entre os seus personagens. E agora leio eu este trecho de Setembro...:
— Luiz — gritou Tristão — você está parecendo uma noivinha. (...) “Prestaste
atenção ao sermão do padre?” Prestei, sim, disse a noivinha, agitando os
malmequeres (...). (...) Oh, disse a noivinha, a pobreza não me assusta (...).
(...) — Sua tia é dona Tristolda? — perguntou a noivinha, com terno
interesse e gentil sorriso.
(...) — Mas as damas de caridade estão fazendo uma campanha de âmbito
nacional — disse a noivinha, levantando entusiasticamente o buquê.
(...) — Que organização! — disse Tristão, dando graciosamente o braço à
noivinha. (p. 15-17, realcei)
— A brincadeira pára quando Luiz se despega da mão de Tristão, se senta
no chão e larga os malmequeres. O narrador, atendendo ao movimento do
personagem, também abandona a brincadeira e volta a referir-se a Luiz pelo
nome, acompanhando, assim, solidário, o seu estado de espírito: livre de Tristão,
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“sentou-se de novo no banco, como se nada tivesse acontecido, os malmequeres
em suas mãos agora já meio murchos” (p. 17).
— É o personagem, não o narrador, quem começa e termina a brincadeira
da noivinha — disse o meu interlocutor.
— Mas o narrador o acompanha, pois ele não consegue manter-se
indiferente ao que sugerem os seus personagens, sendo, muito pelo contrário,
afetado por eles e por suas linguagens.
— Hum... — fez ele, lendo demoradamente as primeiras páginas. — Em
muitos trechos, o narrador, mesmo solidariamente participante das brincadeiras de
seus três personagens iniciais, vá lá, consegue manter-se à relativa distância de
cada um deles, marcando com alguma ortodoxia o diálogo e não explicitando
qualquer preferência por esse ou aquele personagem...
— Sim, você tem razão, mas esta situação não se sustenta por muito
tempo. Em outros momentos, como, por exemplo, logo em seguida à dispersão do
grupo, ali nos jardins do governador, no início do livro — continuei —, o quadro
narrativo transforma-se completamente, ganhando uma outra dinâmica: o narrador
decide-se por fim acerca de qual personagem ele vai incorporar. E incorpora.
Tristão.
— Sim. É Tristão, como se verá, o personagem a participar
predominantemente da afetividade do narrador e, por extensão, do leitor.
279
Mas
podemos descobrir aqui e ali momentos em que o narrador tamm alterna,
mesmo que por poucos instantes e dentro de uma mesma seqüência dramática,
para outros personagens, que ele vai incorporando. Há uma visível preferência
pelos pobres e pretos e oprimidos, por aqueles que passam maus bocados...
Veremos isso mais adiante, quando nos depararmos com as considerações da
professora Eneida Leal Cunha acerca das encarnações da almazinha em Viva o
povo brasileiro... Mas isso é mais tarde — avisei. — Você mencionou “em nota”
a matéria que aponta a ternura de Tristão... Não é isso. Tristão está todo o tempo,
como uma criança, a experimentar a linguagem, com resultados variados, e a idéia
de que a sua linguagem é “a linguagem simples de homem do povo” não passa de
279
— Há aqui — interrompeu-me ele, abrindo um parêntese — o trecho de uma matéria que
explicita isso: “Tristão tem o seu encanto de pessoa enternecida e simples, sempre solidária.
(...) a personagem se desenvolve, em sua linguagem simples de homem do povo” (Fernando
Batinga de M
ENDONÇA (org.), “Personagens humanos”, Jornal da Bahia, 15 jun. 1969).
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uma ironia de João Ubaldo Ribeiro, que mostra Tristão operando com idéias
clicherizadas acerca do povo: ser preto, ser feio, ter muitos filhos e passar fome.
Ouça este trecho em que Tristão inicia uma série interminável de pequenas
grosserias e galhofas com uma negra. Faço dois realces, sublinhado e negrito: a
exploração, por parte de Tristão, do universo clicherizado do “povo” e a
marcação do ponto de vista da negra.
A pretinha espichava o cabelo com cuidado para trás (...). Cumprimentou
Tristão com os olhos bem abertos. Timidamente.
— Diga-me — falou Tristão, pondo as mãos sobre a mesa dela, — como vão
as crianças?
Um riso acanhado, com a mão na boca, ela não podia com ele. Que crianças?
— Ora, qualquer criança.
(...)
— Diga-me — Tristão começou a falar como se não tivesse ao menos aberto a
boca antes, — você passa fome?
— O senhor quer brincar, não é? — disse a pretinha.
Ensaiou um riso curto. Queria brincar não era? Indivíduo cabeludo,
narigudo. Maluco.
(...)
— Diga-me — voltou Tristão, — por que é que você é preta? E feia?
(...)
Uma hesitação entre os risos e as caras ensaiadas para disfarçar o não saber o
que fazer ou dizer. Frases enérgicas talvez.
— O senhor quer ter a bondade de me deixar sossegada trabalhando? Eu não
tenho tempo para ficar aqui ouvindo besteira.
— Eis um belo discurso — disse Tristão. — Diga-me, você acredita na
reforma agrária?
O desprezo mudo, eis a solução. A pretinha virou o rosto para o outro lado e
pôs para fora o lábio inferior. (Setembro..., p. 38-40)
— Observe que o narrador, ao mesmo tempo em que percebe Tristão pelos
olhos da negra, não deixa de lado a perspectiva do próprio Tristão. Os dois
últimos períodos do trecho citado demonstram a convivência das duas
focalizações, alternando o narrador de uma para outra, como a tentar dar conta de
uma situação, não com a aparente objetividade de um narrador extradiegético
clássico, a residir num nível narrativo superior, mas com a objetividade que
resulta do embate entre duas subjetividades. Isso é importante.
— Sim — disse ele, e pareceu animar-se. — Gostei dessa idéia final. É
como se o comportamento do narrador fosse o de uma almazinha planadora que,
indecisa quanto a que tipo de mundo pertencer, o mundo da história...
— ... diegético, ou aquele outro, o indefinido lugar do agente narrativo...
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— Sim, sim... — disse ele, sem entender muito bem —, e acaba não
permanecendo em mundo nenhum, e flutua a meio caminho entre os dois...
— O seu alvo, no entanto, mesmo na terceira pessoa, é Tristão. O narrador
vai lançar mão, durante quase todo o tempo, do processo da focalização interna,
viabilizado graças, principalmente, ao recurso do discurso indireto livre.
— Pode-se dizer que, durante todos os trechos do livro em que a narrativa
se mantém na terceira pessoa, em contraste com a primeira pessoa narrativa de
Orlando, o narrador incorpora Tristão? — disse ele.
— Sim. Tristão, entre os demais personagens, é o único que tem o seu
narrador portátil, vamos dizer..., próximo a ele, em total intimidade com ele. — E
prossegui: — A marcação dos diálogos, através do discurso indireto, acontece
durante quase todo o tempo sob a marca de um discurso valorativo, ou seja, os
outros personagens sendo observados pela ótica de Tristão, e a ótica de Tristão
manifesta-se sempre de modo irreverente: “— Saaaaalta uma pizza — disse a voz
do bigodinho lá dentro”; ou: “Eu não tenho problemas — disse o doutor (...).
Tinha um enorme bigode, pendurado tristemente por cima da boca de lábios
grossos” (p. 36, realcei). Vou ler um trecho que mostra Tristão e seus amigos
olhando para os classificados do jornal onde trabalham. Logo em seguida à
transcrição de um dos anúncios, um novo parágrafo se abre, sem travessão e sob a
voz do narrador, inteiramente transformada e opinativa, sendo as opiniões não
dele, narrador, mas de Tristão, ou, por outra, sendo as opiniões do narrador as
mesmas de Tristão.
— Onde acaba o narrador e começa o personagem?
— Era esta a minha pergunta seguinte... Ouça.
GALÃ DO NORTEAlô, baby! Moreno simpático, 28 anos, boa situação na
vida, idealista e compreensivo (veja foto), deseja corresponder-se (...).
A foto. Horrenda, inclinada para o lado e o cabelo todo espichado com
brilhantina lustrosa, dois ou três cachos na testa, o sorriso, olhar meloso para o
canto, leve zarolhice, ah Galã do Norte, ei-lo.
(...)
— Fala, Galã do Norte! — gritou Tristão (Setembro..., p. 34).
— A focalização interna funciona com mais eficiência, como já se disse,
através do discurso indireto livre. Ouça.
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Tristão, sentando-se no chão com as mãos nos joelhos, ficou assoviando com
energia (...). Assoviava o Hino Nacional.
Minha canção preferida. (...)
(...)
(...) Saiu trocando as pernas de propósito e atravessou a pequena rua,
aplicando vigorosamente as solas dos pés no chão. Para sentir, sentir. É uma
desnecessidade atravessar uma rua tão feia, pensou. Os pés no chão: eu deveria
estar bêbedo agora. (p. 17 e 18, realcei)
— O narrador está de tal modo encarnado em Tristão que já não mais
consegue manter separadas a voz narrativa em primeira pessoa da sua própria voz
em terceira. Perde-se toda a distância, e o narrador, já inteiramente em Tristão,
passa a dizer “eu”, como se fosse Tristão. Trata-se de uma focalização interna
levada às últimas conseqüências, e as últimas conseqüências significam o
deslocamento do narrador: do nível extradiegético do início do trecho para o nível
intradiegético em posição heterodiegética, e agora, por fim, desta última para a
posição autodiegética, estou sendo muito técnico?, quando o narrador, ao referir-
se ao pênis adormecido de Tristão, chega ao cúmulo da intimidade e da fusão.
Tristão pôs a mão sobre o ombro de Joanita e levou-a para dentro. Vamos
fazer um amorzinho.
(...)
No quarto, assim assim. Estava enjoado e o Velho Inocêncio não subia.
Desinteresse. A cama muito velha e o travesseiro com cheiro de capim, veja você,
enterro a cara no travesseiro e durmo. Só que não respiro. E morro. Que acontece
ao Velho Inocêncio, tão desamparado? Tire as mãos de cima dele, prostituta. (...)
Estou indiscutivelmente bêbedo. Quem me vê? (...) você já ouviu falar em
revolução? Loção de nada, mulher burra, revolução. Inocêncio sobe airoso. Que
coisa, enche-se de sangue. Meu corpo funciona. (p. 28)
— Outro exemplo da força do narrador, que não consegue mais lançar mão
de um vocabulário razoavelmente neutro: somente as palavras de seu personagem
vêm à sua boca narrativa. Veja-se a descrição de uma prostituta que se aproxima
de Tristão. Observe-se o ponto de vista do narrador: de que outro lugar poderia
estar ele falando senão de dentro do corpo do admirado Tristão? — E observei: —
Repare que uma das perguntas quem a faz em primeiro lugar, como hipótese, é o
narrador, que em seguida motiva o personagem. A pergunta final acerca de calar-
se e ir para casa pode ser lida como um exercício de monólogo interior, ou diálogo
interior entre Tristão e o seu narrador.
Alô — disse Tristão opacamente. — Você é Joanita?
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— Han-han. — O cabelo era enorme, por cima, pelos lados, por trás, o decote
baixo mostrando o começo dos peitos e um sinalzinho em cima deles. Tristão pôs
o dedo no sinal. Tinha um medo horrível de dizer bobagens, assim como você é
uma belezoca, meu bem vamos fazer um amorzinho, ou então como é que você
entrou para essa vida.
— Como é que você entrou para essa vida? — perguntou Tristão (...) oh por
que não podia ficar calado e ir para a casa (...). (p. 22-23, realcei)
— Pode-se vez por outra, como a estabelecer um contraste necessário,
observar uma relativa autonomia do narrador em relação ao seu personagem: ele
está incorporando mas consegue ter dos acontecimentos uma percepção
independente: “Hércules ficou comovido. Só então Tristão notou que ele não
tinha os dentes da frente” (p. 25, realcei). O termo realçado indica que o narrador
já havia percebido o que somente mais tarde Tristão notaria. — E continuei: —
Em outra passagem, esta mais complexa, podemos ver que o narrador ainda
consegue manter-se relativamente autônomo do personagem que incorpora...
— Como a almazinha que, mesmo encarnada no alferes Brandão Galvão,
ainda conseguia saber-se de algum modo almazinha, e não somente alferes...
— Sim, sim... Você gostou mesmo da almazinha, não? No trecho que vou
ler há uma longa passagem em que Tristão e o narrador permanecem juntos em
discurso indireto livre, a tentar ambos dar conta do que passa pela cabeça do jovem
depois que saiu da boate e, já com o dia amanhecido, ganhou as ruas de Salvador. O
narrador vem acompanhando os volteios da cabeça de Tristão, até o momento em
que percebe que este se irrita com seus próprios pensamentos: o narrador então se
afasta do personagem e faz, de fora, uma referência ao fato. Trata-se de um caso de
focalização interna, mas ainda em terceira pessoa, ou seja, o narrador não chegou a
adotar a primeira pessoa, não mudando para uma posição autodiegética.
Jogou com um gesto curvilíneo sua última nota de quinhentos em cima da
cama, abriu a porta de leve e desceu as compridas escadas de degrau em degrau.
Pela porta, via tudo iluminado pelo sol e as pessoas subindo penosamente a
ladeira (...). Estava quente. Tristão desceu a soleira com um cigarro na boca (...).
As pedras lisas da ladeira cheiravam mal. Havia um monte de lixo em cima e
outro monte embaixo. Para baixo ou para cima, sempre há lixo. De novo irritado
com os próprios pensamentos. Resolveu descer. Ridículo, descer uma ladeira
(...). (Setembro..., p. 29, realcei)
— Em situações de diálogo entre dois ou mais personagens, o narrador,
mesmo que em focalização interna com um personagem escolhido, consegue
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exercitar um olhar para o mundo exterior. São esses os momentos em que
descreve o que acontece à volta. A descrição, no entanto, por mais detalhista e
concreta que se apresente — continuei —, é levada a cabo sempre a partir do
ponto de vista valorativo do personagem focalizado, no caso, Tristão.
(i) Pôs o paletó no ombro e continuou a andar pela calçada alta. Padaria Bom
Jesus. Sorveteria Estrela. Dois degraus. Casa Beethoven, ora já se viu. Edifício
Parnaso. Bonito. Mais dois degraus. (...) Aspargo estava encostado numa das
colunas do edifício, aparando as unhas. (...) Aspargo não fazia movimentos
inúteis. Às vezes ficava somente vendo as pessoas passarem, mas com toda a
utilidade. (Setembro..., p. 30)
(ii) Os tambores inexoráveis. No fundo, Tristão podia notar agora, estava uma
menina desamparadamente só. Batia os pratos, obstinada.
— Treino para o Sete de Setembro — explicou Aspargo (...). (p. 32-33)
(iii) — Continuarão marchando pela Eternidade — sentenciou Tristão
soturnamente. (p. 33, todos realces meus)
— Toda a parte da narrativa em terceira pessoa de Setembro não tem
sentido constitui um palco de performances onde o único atuante é o narrador,
sendo os personagens que incorpora meros pretextos para as suas façanhas
estilísticas. O romance forma um coro nada coeso de vozes. Se há ali uma
permanência, esta é a do narrador a transmutar-se constantemente, mudando a cor
de sua fala a cada incorporação realizada ou, quando não chega a tanto, a cada
pequeno passeio, a sobrevoar, curioso, a alteridade que o provoca e o estimula a
ser, a cada vez, um outro.
— Essa característica vai radicalizar-se em Viva o povo brasileiro...
— Sim. — E prossegui, não querendo perder o fio: — A primeira parte do
segundo capítulo, nomeado “Dia 4”, apresenta o narrador em diversos disfarces
textuais. Ele consegue transformar-se, sob a forma de um grande bloco de
parágrafo contendo nele toda a alternância dos diálogos, no burburinho do jornal
onde trabalham Tristão, Orlando e seus amigos. O narrador, pelo ritmo das frases,
pelo formato dos parágrafos e pela pontuação, realiza, como num travelling sobre
a redação, uma amostragem do dia-a-dia de um jornal soteropolitano. A
multivocalidade narrativa, que vai tornar-se uma marca em João Ubaldo Ribeiro,
começa a manifestar-se já em seu primeiro romance. O narrador avança pela
intimidade da redação do jornal e faz dali um painel, percorrendo toda a sorte de
situações e personagens, das conversas mais íntimas e das histórias mais sórdidas
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às várias versões para uma mesma matéria, simulando o discurso jornalístico e ao
mesmo tempo revelando a farsa de sua própria composição; faz ainda, pelo
discurso, as vezes do secretário de redação, do chefe da reportagem, do chefe da
página de polícia, dos vários jornalistas que ali trabalham e também dos diversos
tipos de discurso político ali produzidos, para cada personagem ou para cada tipo
de discurso ideológico há um estilo, um vocabulário, um tom. Ouça.
(i) O Chefe da Página de Polícia pulou para a frente e disse isso é uma
esculhambação, isso vai para a primeira página. Não vai nem nada, disse o Chefe
da Reportagem, onde já se viu jornal desancar anunciante. (...)
Você quer que eu faça a matéria assim: ontem, um pobre bujão, depois de
injustamente provocado por duas perversas meninas, uma de três anos e outra de
quatro, foi obrigado a explodir, ficando muito danificado, coitado. (...)
Não seja gaiato, disse o Chefe da Reportagem. (Setembro..., p. 73)
(ii) Ontem, por volta das 13 horas (...), um bujão de gás explodiu, devido à
negligência da doméstica Maria de Tal. O acidente vitimou, além da doméstica,
as duas filhas do casal (...), que foram hospitalizadas, (...) sem gravidade. (p. 74)
(iii) O jornal está ruim (...). É preciso fazer uma reestruturação. Sim, doutor,
sim, doutor. Assim como está não pode ficar. Pois não, doutor. Osvaldo
melhorou? Então é preciso botar pra fora. Bota pra fora! Bota pra fora! (p. 75)
O narrador sem cabeça acompanha as reminiscências de Tristão
quando este se põe a pensar na menininha Raquel, “Tun-tun, (...) que ainda falava
a língua das crianças novas”, e muda, assim, o tom de sua enunciação,
aproximando-o ao máximo da singeleza vocabular própria da infância:
280
“... iam
ao fundo do quintal para olhar as coisas um do outro. A coisa dela era engraçada,
lisa, (...). Ele tinha mais para mostrar, (...) para fora, como um prego” (p. 20-21).
— Pode-se observar aqui a demonstração do que disse o próprio Ubaldo
ao referir-se à sua intenção de deixar bem claras e evidentes as suas leituras, entre
elas a de Joyce — disse o meu interlocutor, num exercício de intertextualização.
— Compare-se com o trecho de abertura de Um retrato do artista quando jovem:
“Era uma vez e uma vez muito boa mesmo uma vaquinha-mu que vinha andando
280
— A mesma utilização, pelo narrador, de uma sintaxe infantil nós encontraremos em algumas
crônicas de João Ubaldo que tenham como tema a própria infância — disse eu, em nota. — E
destaco este trecho: “Em matéria de pecados, aliás em matéria de religião geral, eu sempre
achei que a pior coisa é os pecados. Na aula de catecismo, que era depois da missa e antes do
futebol, (...) dona Maria José, com aquelas blusas dela de mangas fofolentas (...), dizia que se
peca por pensamentos, palavras e obras. Palavras e obras, certo, muito certo, certo. Mas
(cont.)
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pela estrada e a vaquinha-mu que vinha andando pela estrada encontrou um
garotinho...”. Em ambos os casos temos onomatopéias, repetição de palavras e
termos simples e vagos a substituir termos específicos.
— Sim. Vou anotar isso — e anotei.
281
— “Meu primeiro romance tem
umas coisas timidamente joyceanas”, disse João Ubaldo, numa entrevista.
282
— A mesma coisa vai ele fazer, não timidamente, mas explicitamente, nO
sorriso do lagarto. — E ele brindou-me com mais uma boa intertextualização:
... não vale a pena não estou ficando broxa não e se estou não ligo monstra
tiranossaura a Humanidade é muito atrasada é como os bichos igualzinha aos
bichos e em muitos sentidos nunca saiu nem vai sair da Idade da Pedra mas não
estou broxa estou ideal não sei o que sei é que não estou mal cavalos cavalos
também pensando em posar nua como Molly cavalos Mellors cavalos éguas John
Thomas eu deitada na grama florida com ele entre minhas mãos e recebendo ele
suavemente viver tudo viver tudo idealmente na cabeça de tantos lados querendo
porém sempre dizendo Não. (O sorriso do lagarto, p. 59)
... sim quando eu pus uma rosa no meu cabelo como as moças andaluzas
usavam ou será que eu vou usar uma vermelha sim e como ele me beijou debaixo
do muro mouresco e eu pensei bem tanto faz ele como um outro e então eu lhe
pedi com meus olhos que pedisse novamente sim e então ele me pediu se eu
queria sim dizer sim minha flor da montanha e primeiro eu pus meus braços à sua
volta sim e o arrastei para baixo sobre mim para que ele pudesse sentir meus
seios todos perfume sim e seu coração disparou como louco e sim eu disse sim
eu quero Sim.
283
— Mas, retornando... — disse eu, exasperado com esse final. — A
focalização interna aqui é muito mais que uma questão de perspectiva e ponto de
vista narrativo. O narrador transforma-se no personagem que está incorporando, e
ambos, encaixados, deslocam-se até o tempo específico da rememoração, no caso,
a infância. Nesse momento, um está no outro a tal ponto que não se pode falar
aqui de um narrador a falar de um personagem, mas sim de um único corpo
narrativo a falar uma mesma língua e a partir de um mesmo universo.
— E quanto à onisciência propriamente dita?
pensamento é muito descontrolado (...) (“Pensamentos, palavras e obras” (p. 31-37), in
podeis da pátria filhos, e outras histórias, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1991, p. 33).
281
São Paulo, Siciliano, 1992, p. 17.
282
“João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002.
283
James JOYCE, Ulisses, trad. Bernardina da Silveira Pinheiro, Rio de Janeiro, Objetiva, 2005, p. 815.
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— O narrador, em Setembro não tem sentido, não é, em nenhum momento,
onisciente. Trata-se de um narrador em terceira pessoa que sabe e vê exatamente o
que sabe e vê o personagem que ele está incorporando. Pode-se dizer aqui,
seguindo a classificação de Todorov relativa ao grau de ciência do narrador, que
estamos diante de um caso em que o narrador é igual ao personagem. Os outros
casos são narrador maior que o personagem, onisciência, e narrador menor que o
personagem, narrador-câmera. Você queria descrições técnicas, já lhe dei várias...
— E continuei: — O narrador, mesmo operando na terceira pessoa, participa tanto
da ficção quanto da história.
— Qual a diferença? — perguntou o meu interlocutor, querendo me dar
trabalho. — Isso me parece importante... Você falou disso lá atrás, de ficção e
história, e não explicou. Explique agora. Uma tese que tenha como um de seus
aspectos um estudo de narratologia não pode prescindir disso...
— Sim, explico tudo. Explicando eu acabo entendendo, e isso é bastante
importante. A distinção entre ficção e história... Posso aproveitar a própria
terminologia de Gerard Genette, que criou, para a ficção, como eu já disse antes,
dois níveis: o nível extradiegético, a comportar um narrador ausente da ficção, o
clássico narrador onisciente na terceira pessoa, e o nível intradiegético, a pressupor
um narrador presente na ficção. Quanto à história narrada por esse narrador, Genette
usa os termos heterodiegético, para um narrador que não participa dessa história, e
homodiegético, ou seja, o narrador que é dessa história um personagem. Se ele for o
personagem-protagonista, pode-se ainda utilizar um sub-nível dentro do
homodiegético: o narrador autodiegético, aquele que conta a sua própria história. Já
vimos isso no caso de Sargento Getúlio e agora nesse caso do Diário do farol...
— Isso me lembra o caso de Sherazade — disse ele, fazendo uma
expressão de quem estava raciocinando. — Sherazade, deixe ver, é uma narradora
inserida na ficção dAs mil e uma noites e é portanto um narrador intradiegético.
Mas ela, contudo, está ausente das historietas que conta, sendo, assim, um
narrador heterodiegético...
— Bem notado, mas essa idéia não é sua. Isso quem formalizou foi o Yves
Reuter
284
— E prossegui: — O narrador de Setembro... participa da ficção na
284
Yves REUTER, “A narração (1): A instância narrativa” (p. 65-85), in Introdução à análise do
romance — Leitura e Crítica, São Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 71, nota 1.
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155
medida em que se encontra no mesmo nível de conhecimento de seus
personagens, não conhece a história que o envolve e está bastante vulnerável aos
acontecimentos. Trata-se de um ser ficcional que passeia entre os personagens e
os fatos que narra. Participar da ficção, no entanto, não o torna o que se chama um
narrador-testemunha, um narrador ad hoc. O narrador e a sua narração, aqui,
encharcam-se mutuamente: ele transforma a história e é por ela transformado, e é
por isso que não se pode dizer, de modo algum, que se trata de um narrador
limitado ao plano do enunciado. Ele também participa da história porque sua
condição o leva a poder confundir-se com o personagem, embora ele de modo
algum seja esse personagem. Nosso narrador vê e sente, sim, mas não pode ser
visto nem sentido pelos demais personagens. Quem participa corporalmente da
história é o personagem. O narrador é uma entidade parcialmente participante, que
entra e sai, não da ficção, da qual é eterno prisioneiro, mas da história que ele
mesmo narra, entrando e saindo dos personagens que incorpora, sempre invisível.
É um fantasma, e como fantasma...
— Há aqui um trecho — interrompeu-me ele —, em terceira pessoa, em
discurso indireto livre, sem o exercício da onisciência: o narrador na entrada de
uma boate, incorporando Tristão e vendo aquilo que seu personagem vê, ou seja,
quase nada: “Não se podia ver muito bem dentro da boate, mas estava cheia de
gente, sabia-se. Sentiam-se as vozes e os cheiros”. Quem os sentia? Tristão?
— Sim, mas também o doador da narrativa. Esta expressão curiosa usa-a
o professor Carlos Reis no seu Estatuto e perspectivas do narrador na ficção de
Eça de Queirós.
285
Outro trecho demonstra a não-onisciência do narrador e a
evidência da focalização interna: “O rapaz magro estava cochichando qualquer
coisa no ouvido de uma das mulheres e ria um riso esquelético (...)” (p. 24).
— E quando tudo leva a crer que estamos diante de um exercício de
onisciência por parte do narrador? — quis saber ele.
— Você pode me dar vários exemplos, e sempre acabaremos prontos a
uma segunda leitura, que vai revelar estarmos diante do ponto de vista de algum
personagem, no caso, Tristão: “Jeremias subiu a escada penosamente. Estava
bêbedo de novo, como estivera na segunda, na terça e na quarta e como estaria
todos os dias depois” (p. 25).
285
Op. cit.
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156
— Podemos flagrar um momento em que o narrador decide lançar mão de
sua suposta onisciência?, uma onisciência que ele, se quiser, pode praticar, uma
vez que tem todas as condições para isso? É um narrador em terceira pessoa que
pode entrar e sair de suas focalizações e está formalmente presente num nível
extradiegético, não é? Ele exibe então — disse o meu interlocutor — a sua
capacidade de prever o andamento de uma ação: “Jeremias botou a caixinha no
bolso. Um dia desses morreria, alguém certamente iria dizer. ¶ — Um dia
desses você morre — disse Aspargo, tocando na caixinha, através do bolso de
Jeremias” (Setembro..., p. 35-36, realçou).
— Ele exibe essa onisciência de maneira tão mecânica, tão artificial e tão
pouco sutil que por aí podemos entrever a pouca importância que ele atribui à
capacidade prospectiva da narrativa onisciente... — e eu sorri, chegando à
conclusão de que não valia mais a pena, para esse caso, continuarmos a dissecar
as questões estritamente narratológicas. E disse: — Mostro-lhe um outro trecho da
crítica de Assis Brasil sobre a ficção moderna que estava então sendo produzida à
época e especialmente sobre o romance. Veja que Assis Brasil volta a apontar a
despreocupação de João Ubaldo Ribeiro com o que a gente pode chamar de
situações romanescas típicas. Leia você mesmo — e dei a ele o jornal.
... No romance, que veio de uma forma linear, com a narrativa obedecendo ao
esquema de começo, meio e fim, o escritor também tem procurado subverter seus
valores estruturais, mudando o ponto de vista (Henry James), criando o monólogo
(James Joyce), narrando na segunda pessoa do plural (Michel Butor), narrando
indiferentemente em todas as pessoas gramaticais (Faulkner) e ainda
misturando pseudodepoimentos pessoais com ficção (Henry Miller, Norman
Mailer), ou adotando um certo automatismo narrativo (Kerouac) e passando para
a substituição total do autor onisciente (Faulkner) ou ainda voltando à sua
reformulação (Capote, Sallinger).
No jovem romance brasileiro, as incursões anti-acadêmicas têm sido raras.
Estão todos ainda apegados a um naturalismo descritivo (...).
O romance de estréia de João Ubaldo Ribeiro, Setembro não tem sentido,
apresentado por Glauber Rocha, pode-se inscrever nessa faixa de pesquisa e
de não-compromisso com o acadêmico e a tradição. Ele de fato vem dessa
linhagem, Miller, Kerouac, Mautner, impondo a sua própria visão social e
estética. Nessa linhagem podemos observar, também, o descomprometimento
com o que chamamos de invenção, no plano, podemos dizer, onírico da criação.
Estes autores estão todos muito preocupados com uma certa linguagem para-
jornalística, e os casos narrados são antes descrições de “motivos” e de “temas”
que não chegam à formulação definida de “enredo”. Na verdade, este não
interessa muito, com suas “facilidades” de engodo, de “prende leitor”.
286
286
“A liberdade na ficção moderna”, Correio da Manhã, 8 set. 1968, realçou.
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— E veja ainda — continuei —, para permanecermos às voltas com a
minha pastinha de antiguidades jornalísticas, algumas matérias, duas sem
referência de data mas certamente de 1961, que mencionam a especificidade de
João Ubaldo Ribeiro em outra experiência literária, anterior a Setembro não tem
sentido: a antologia de contos Reunião,
287
da qual ele participou com três contos e
juntamente com mais três jovens escritores em início de carreira, Sônia Coutinho,
David Salles e Noêmio Spinola. Ouça:
(i) João Ubaldo Ribeiro apresenta-se, em cada um dos seus três contos, com
estilo totalmente diverso dos demais, testemunhando salutar insatisfação
formalística.
288
(ii) ... no texto do contista João Ubaldo Ribeiro acumula-se a cultura dum
intelectual que sabe rir.
289
(iii) “O dia parece que está dando risada” — Esta frase de Josefina (...)
qualifica um forte estigma de humor que caracteriza as peças literárias de J.U.R.
e nele se encarna como uma das facetas definitivas de sua personalidade para
futuros trabalhos. Não se sabe que conto escolher entre “Josefina”, “Decalião” e
“Campião” [sic], pois eles estão escritos na mesma atmosfera humorística, com
tal identidade estilística que não se vacilaria em dizer que é o escritor de maior
homogeneidade temática de Reunião. O burlesco, o fútil, a mofa aparecem na
hora justa e no momento exato. (...) Desce ao cotidiano e formula pensamentos na
boca de Josefina: “Debaixo de mim estou eu mesma”, (...) ou descreve “as
manhãs e as ruas. Um frio pequeno e manso subindo pelos braços (de Josefina) e
o solo morno riococheteando pelas pedras irregulares (...)”. Também poder-se-ia
afirmar que João Ubaldo Ribeiro é o que se afasta mais ou quase totalmente do
regional e se apega muito sutilmente ao modo de escrever do povo de língua
inglesa (...).
290
— Há ainda outra experiência literária anterior, que é a sua primeira
aparição, chamada Panorama do conto baiano, não tão bem recebida pela crítica
quanto foi o caso de Reunião... Veja — e dei-lhe a minha pastinha com duas
matérias separadas.
291
287
Editora “Publicações da Universidade da Bahia”, apresentação de Eduardo Portella, capa de
Calasans Neto, 1961.
288
Texto sem nenhuma referência.
289
Luis HENRIQUE, “Reunião hoje”, texto sem referência, 7 mar. 1961.
290
Adelmo OLIVEIRA, “Reunião: nova posição da literatura na Bahia”, texto sem referência.
291
A primeira, sobre o Panorama...: “... depois do amontoado medíocre de escritos editados há
pouco sob o título de Panorama do conto baiano. Alguns dos contistas de Reunião estiveram
presentes naquele volume e se redimem agora, como oferecimento de novos ângulos das suas
(cont.)
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158
— Mas, de modo geral — disse ele, devolvendo-me a resenha de Assis
Brasil e pegando as antiguidades jornalísticas para folhear —, podemos resumir
assim: Setembro não tem sentido estrutura-se sobre duas formas através das quais
o narrador se apresenta. E essas duas formas narrativas...
— ... alternam-se, e eu acho, meu caro interlocutor, que essa alternância
segue um padrão: a terceira pessoa dá conta dos trechos onde há um grupo maior
de personagens. A primeira pessoa concentra-se basicamente na figura de
Orlando, que, trancado em seu quarto, enlouquece. Não é à toa essa divisão: a
terceira pessoa narrativa, a supor um narrador, pelos menos formalmente,
extradiegético, será acionada nos momentos menos introspectivos do romance,
momentos caracterizados por alguma ação e muitos diálogos. Embora
formalmente extradiegético, o narrador em terceira pessoa permanece quase todo
o tempo com a focalização no personagem Tristão, tornando-se, na prática, como
vimos, não-onisciente e intradiegético.
— E a primeira pessoa?
— As partes em primeira pessoa, com o narrador se confundindo com o
personagem Orlando e assumindo uma voz homodiegética-autodiegética, ou seja,
como também já vimos em Getúlio, com o narrador, nesse caso, sendo um
personagem participante da diegese e dessa diegese o protagonista... Retomando,
as partes em primeira pessoa — continuei — serão introspectivas e
gradativamente, no avançar das páginas, marcadas por um fluxo cada vez mais
descontrolado da consciência de Orlando, que caminha para a dissolução, se
espatifa e se transforma em quem bem quer. Observe que, ao contrário do caso de
Getúlio, o personagem aqui não abre mão de fazer desfilarem todos os seus, ou
melhor, de João Ubaldo Ribeiro, universos literários...
(i) — Eu sou o rapaz que goza da invisibilidade.
Como Stephen, o artista, (...). (Setembro..., p. 108)
aptidões” (Adalmir da Cunha MIRANDA, “Reunião”, O Estado de S. Paulo, 6 mai. 1961); e a
segunda, sobre Reunião: “... a única novidade literária para este árido ano cultural de 61 é
apenas Reunião, onde os contistas bossa nova da praça estarão apresentando, em livro, o
primeiro conjunto de suas novas experiências literárias. (...) ... todos jovens e todos indispostos
com a literatura de ‘começo-meio-fim. (...) ¶ Diante da crise literária na Bahia (...), é um alívio
ver surgir Reunião (...). Revista Crítica, que conhece os originais, pode antecipar que se trata
de um livro até mesmo polêmico. Será que períodos sem ‘vírgulas’ ainda chocarão os
conservadores?” (“Reunião — Bossa Nova”, Diário de Notícias, 19 e 20 fev. 1961
).
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(ii) Sou o rei da Ilha de Laput e preocupo-me com detestáveis matemáticas.
(iii) Sou Idomeneus e sou rei dos cretenses. Não me serve. Pouco conhecido.
Sou Aquileus, então (...). (p. 109)
— Os momentos de narração em terceira pessoa e em primeira quase não
dialogam, porque também Tristão e Orlando, a representarem, cada um, esses dois
modos narrativos, não conseguem tampouco um diálogo produtivo. “Ainda me
entrego a certas coisas, como a conversas com Tristão, lá no jornal”, diz Orlando.
“Não devia conversar com ele: quase gosto dele” (p. 62). — E prossegui: — Em
outro trecho do livro o narrador deixa clara a distância, etária e política, entre
Tristão e Orlando, a segunda distância quase que sendo totalmente derivada da
primeira. Ouça — e li —: “Diga se não é um discurso belíssimo, disse Orlando,
sem esperar resposta. Um belo discurso, disse Tristão” (p. 76, realcei). E Tristão
ainda consegue conceber a possibilidade do diálogo, diferentemente de Orlando,
que fala somente para si, e do padre do outro romance, o Diário do farol, que
escreve mais para si mesmo, satisfazendo a sua “Vaidade”, do que para o leitor, a
quem não perde a oportunidade de insultar. “Eu conto porque conto, você lê
porque quer”, anota o padre (Diário..., p. 20). Ocupam Tristão, de um lado, e
Orlando e o padre, de outro, os dois diversos momentos de uma cadeia de
desenvolvimentos. Leia este trecho aqui do narrador, ao final da primeira parte do
segundo capítulo de Setembro... — e entreguei o livro aberto ao meu interlocutor:
Tristão concordou em silêncio e não teve ânimo de dizer que não concordava,
porque, principalmente, não poderia dizer por que não concordava. Explicações
inúteis. Vá com Deus, meu jovem, disse Orlando, entrando pela couraça a dentro,
mais uma vez.
Despediram-se na entrada do prédio. Iam para lados diferentes. (p. 91,
realçou)
— Você apontou, em Setembro..., o paralelismo entre os discursos em
primeira e terceira pessoa, materializados ambos nos personagens de Orlando e
Tristão, respectivamente, que não se entendem — começou o meu interlocutor,
com uma expressão de quem estava iniciando um novo pensamento. — Essa falta
de entendimento está patente, ora porque o próprio Orlando diz que com Tristão
não há conversa, ora porque o próprio narrador diz que eles ao final “iam para
lados diferentes”... Há ainda uma estrutural falta de comunicação, no livro, entre
os capítulos inteiros, os em primeira pessoa e os em terceira pessoa, que
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configuram histórias relativamente autônomas, dentro, ambas, do mesmo mundo,
“a atmosfera cerrada e asfixiante em que as províncias envolvem seus jovens”,
para citar aqui uma resenha de 1968 sobre Setembro...
292
— disse ele, manuseando
meus jornais e lendo o texto que compara o primeiro romance de João Ubaldo
Ribeiro ao filme Os boas vidas, I Vitelloni, de Fellini, de 1953.
293
— Continue — pedi.
— Mostro-lhe agora, ainda em Setembro..., um caso bem mais sutil de
choque entre discurso direto de um personagem e voz narrativa em terceira
pessoa: dentro de um mesmo contexto narrativo, no caso um comício político,
dois candidatos estão realizando os seus discursos às massas ao mesmo tempo em
que o narrador, um narrador em terceira pessoa, se empenha em descrever a cena.
Observamos então dois registros: os discursos dos personagens a desenvolverem-
se em frases de efeito e sobre assuntos aparentemente elevados e, ao mesmo,
tempo, a desdizer os discursos, as observações do narrador acerca de detalhes
“baixos”, de cunho escatológico e completamente estranhos ao elevado universo
discursivo dos candidatos; observações que resultam extremamente críticas,
principalmente porque estão sob o véu de uma descrição aparentemente neutra.
Veja — e ele começou a ler, surpreendentemente familiarizado com o livro.
(i) — Povo da Liberdade — disse finalmente o Vereador.
Um cachorro peludo e preto esgueirou-se velozmente entre as pernas dos
soldados da banda e um deles lhe deu um chute. (...)
— Neste noite de festa (...). ... enche-se-nos o coração de júbilo
(duas velhinhas se entreolharam interrogativamente e um dos soldados
apalpou o cinto: estava começando a ficar com dor de barriga)
e a alma de felicidade... (p. 123)
(ii) ... O discurso do Sr. Dr. Candidato Vitorioso ao Governo do Estado.
— ... o nível de vida mais baixo do mundo!
O Candidato arrotou discretamente, um tanto amedrontado, ante a
possibilidade de o arroto ser amplificado. (...)
— ... milhares de pessoas não têm dinheiro nem para comprar uma roupa!
O Candidato percebeu um fiapo de pano de bandeira pendurado na manga de
292
“Uma Semana da Pátria na vida da Província”, Fatos & Fotos, 12 out. 1968.
293
— E reproduzo aqui, em nota, mais trechos — disse eu, e peguei da mão dele o jornal. — “Nos
dois trabalhos, de resto tão diferentes, o centro da análise é a atmosfera cerrada e asfixiante em
que as províncias envolvem seus jovens (...). (...) em ambos há o traço comum da tentativa de
uma catártica autobiografia espiritual. (...) João Ubaldo narra sua aventura interior com mais
humor, mais violência e mais sinceridade do que Fellini. (...) Entre personagens típicos da
viscosa vida provinciana, eles se agitam entre a tentação permanente da sedução da vida
burguesa e a rebelião instintiva de seus jovens espíritos” (id.).
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seu paletó e deu-lhe com o dedo indicador. (...) Não pôde evitar olhar para os pés,
para ver se os sapatos haviam perdido o lustro, com toda aquela poeira. (p. 125)
— Sim, seu exemplo é bem apanhado, vou usar isso na tese — e ofereci-
lhe café. — Mas não se trata aqui, propriamente, de um choque entre discursos
diretos em primeira pessoa e um discurso narrativo em terceira pessoa... Reporto-
me à minha idéia do “terceiro excluído”: não há, de modo relevante, como eu já
disse, uma presença narrativa em terceira pessoa em Setembro... Quando ela
existe, observamos bem e verificamos então que ela está em Tristão. Quem dá
conta dessas observações aparentemente neutras que acabam por desmentir tudo o
que dizem os hipócritas candidatos é o próprio Tristão. Há uma pista para isso, e
quem dá essa pista é, agora sim, o narrador em terceira pessoa, ele mesmo, numa
de suas raríssimas aparições. Ouça, o contexto é o mesmo. Estamos no comício.
... A voz do Vereador enrouquecia-se e se exaltava (...). Tristão subitamente
destacou-se daquela figura minúscula e gritalhona, como se ela estivesse a
quilômetros de distância: como se fosse através de um telescópio: muito afastada,
sem pertencer ao mundo real. Tristão era só no mundo, por uma infinitesimal
porção de instante. (p. 123-124)
— Observe que logo em seguida a focalização começa; o narrador
incorpora Tristão e aí sim têm início as tais descrições aparentemente neutras. É
Tristão a olhar para o candidato “de cima”, “de longe”, “através de um
telescópio”, longe dos sentidos usuais; a olhar com olhos “livres”... — e li.
O Vereador, que falava ele? Que coisa, falar. (...) As palavras encadeadas
tornaram-se cada vez mais ininteligíveis, sem relação com nada. Palavras soltas,
e uma ridícula figura pequena, agitando-se. (...) O cinto preto, com pontos
brancos, pela barriga. Haveria de ter cabelos na barriga, umbigo, talvez cicatrizes.
(...) O Vereador abriu sua agora enorme boca cheia de dentes e línguas e disse:
“Sim, sou candidato à reeleição!” (p. 124)
— E Orlando? Parece-me que é Orlando o coração de Setembro não tem
sentido... — disse ele, retirando, literalmente, as palavras da minha boca.
3.3. É SETEMBRO NO DIÁRIO DE ÁGUA SANTA... EM SERGIPE E NA BAHIA
— Pode haver entre o escritor e seus narradores uma estreita correlação —
disse eu —, já que costumam por vezes compartilhar as mesmas palavras e idéias.
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Dou-lhe um pequeno exemplo de aberto diálogo entre o escritor João Ubaldo
Ribeiro e o narrador de Setembro não tem sentido, separados agora pela distância
de 31 anos. O primeiro vem do personagem Orlando, de 1968, o segundo trecho
foi dito pelo escritor numa entrevista de 1999.
(i) Haveria muito maior dignidade em mim se eu pudesse escrever em grego,
disse Orlando, mostrando as gengivas sem dentes. É absolutamente lamentável
que este jornal não possua caracteres gregos, escreveu rapidamente na máquina.
A fim de permitir a fiel reprodução de nosso pensamento. (Setembro..., p. 76)
(ii) Itaparica é a minha parte do Recôncavo e, claro, é o umbigo dele, o
omphalos (omfalos — temos caracteres gregos no jornal? Caracteres gregos são
essenciais para a correcta expressão do nosso pensamento...).
294
— Ubaldo e Orlando a se inspirarem mutuamente... — disse ele, me
oferecendo mais um café.
— Não — disse eu —, apenas João Ubaldo Ribeiro a praticar o seu
bovarismo particular, ou bovarismo auto-referente, repetindo não as cenas que leu,
mas as cenas que escreveu... É o caso do personagem Ângelo Marcos, nO sorriso
do lagarto, secretário de saúde, desonesto, mau-caráter, que começa, no discurso
direto livre, a cometer as mesmas trapalhadas gramaticais que o próprio escritor
apontou numa crônica para o jornal O Globo, bem mais antiga. E expus:
... vocês já notaram que, depois do advento da Nova República, só se usa
sujeito duplo? Antigamente, era apenas um recurso estilístico — meio
rebarbativo, tipo concurso de oratória de centro acadêmico de faculdade de
Direito, mas recurso. Agora, não. Agora é norma, começando pelo Dr. Sarney e
descendo pela hierarquia abaixo. Nenhum deles diz “a democracia é”, todos
dizem “a democracia, ela é”.
295
A nível de atendimento, capacitação tecnológica e qualificação de pessoal
— declamou, a frente do espelho (...) —, podemos afirmar que estamos (...). A
democracia, ela não é a penalização do cidadão em nome de preconceitos
xenófobos e retrógrados. A democracia, ela não é sinônimo de atraso, como a
esquerda passadista parece desejar. (O sorriso do lagarto, p. 16)
— Outro exemplo desse bovarismo ubáldico, este bem mais explícito, é o
que segue entre a personagem CLB, certamente a personagem de Ubaldo que
294
José Carlos de VASCONCELOS, “O feitiço da escrita”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias,
Portugal, 24 mar. a 6 abr. 1999.
295
“Grilos gramaticais” (p. 183-187), in Sempre aos domingos, op. cit., p. 185.
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concentra o maior número de elementos do universo intelectual do escritor baiano:
suas idéias, suas intuições, suas obsessões, suas crenças, seus protestos, o que faz
do romance A casa dos Budas ditosos um autêntico, repito, romance de idéias..., e
o próprio João Ubaldo Ribeiro, na mesma crônica, bem mais antiga, dO Globo.
Ouça — e eu li os dois trechos e as duas vozes da mesma pena.
(i) ... eu ainda padeço, embora me gabe de não padecer, da relação ritualística
que o babaca do ser humano mantém com a palavra escrita. Terá sido por isso que
a escrita era inicialmente privilégio de sacerdotes e depois de monges? Ou por
causa disso existe essa reverência cretina? (...) Chega ao ponto de muitos débeis
mentais se orgulharem de “falar como se escreve”, como se a grafia não fosse
uma tentativa muito defeituosa de engessar as palavras em símbolos metidos a
fonéticos, (...) como se a escrita tivesse precedido a fala. Ouço gente
pronunciando os emes finais, como se esta merda desta língua fosse inglês.
Umaúm, dizem eles, e não apenas nasalando o som do u, em “um-a-um”. Se
fosse assim, “um alho” era a mesma coisa que “um malho”, “um olho”, “um
molho” e a língua ficaria inviável. Outro abléptico que eu conheço (...) pronuncia
a palavra “muito” como se escreve, ou seja “múito”, sem nasalação do u. Ai!
Realmente, somos uma espécie muito atrasada e só faltamos bater a testa no chão
para coisas a que não daríamos a mínima importância se fossem somente faladas.
Estão escritas, assumem sacralidade, tanto assim que, como eu também já disse,
certas palavras nunca adquiriram passaporte para a escrita e, quando conseguem
penetrar pela mão de algum mártir, são logo deportadas de volta, condenadas à
clandestinidade ou confinadas em guetos, como fazem com gente. (...) (A casa
dos Budas..., p. 90)
(ii) Outro movimento, não tão expressivo, mas crescendo dia a dia é o
Movimento da Pronúncia-como-se-escreve. Maluquice completa, pois supõe que
a palavra escrita é anterior à falada e, depois que aprisiona a fala em símbolos
aproximados, tem prioridade sobre ela (...). No futebol, mesmo, há um exemplo
ótimo. Não tem mais “um a um. Tem, não sei por que cargas d’água, uma
expressão esquisita, mais ou menos “umaúm”. Resolveram que o “m” final do
primeiro “um” se pronuncia (pois, afinal, se escreve) e até se liga com a palavra
que se segue. Nunca ouvi ninguém falar “umavião” em vez de “um avião” ou
“umamor” em vez de “um amor”, para não falar nas confusões que ocorreriam
quando alguém dissesse “umalho” e ninguém soubesse se era “um alho” ou
“um malho”. (...) ... há exemplo extremos, como do “muito” que outro dia eu
ouvi várias vezes num comercial. O camarada devia ser membro radical do
Movimento, porque dizia “múi-to”, sem nasalizar o ditongo. Não tem coisa mais
estranha do que falar “muito” sem nasalizar o “ui” — parece que a pessoa está
tendo uma crise de sinusite —, mas ele não viu nem til nem “n” ali e, portanto, o
certo é como está escrito, é “ui”.
296
— João Ubaldo Ribeiro conseguiu, em Setembro..., escrito aos 21 anos —
retomei —, antecipar um ceticismo que só vamos encontrar mais tarde, justa e
principalmente no padre do Diário do farol. O personagem Orlando representa um
296
Id., p. 186.
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contraponto à utopia daquele universo jovem da Salvador dos anos sessenta.
Orlando, também como seus amigos, é jornalista, tem 36 anos, mulher e dois
filhos. Abandonou-os e permanece num quarto de pensão, freqüentando cada vez
mais raramente o jornal onde trabalham Tristão e os outros. Não se dá com o pai,
a quem considera um porco, tampouco com a mãe, “acima de tudo chata, fracota e
débil” (Setembro..., p. 49). O mesmo se dirá do padre que narra a sua vida de
torturador e depois faroleiro em sua ilha de nome Água Santa; uma vida que veio
a ser o que foi graças à figura violenta e abjeta do próprio pai e à “hostilidade
maldisfarçada” de sua madrasta Eunice (Diário..., p. 36). “... eu perguntava a mim
mesmo (...) se aquele era de fato meu pai ou se alguma feiticeira dos livros que lia
(...) na vasta biblioteca que ele mantinha pela casa toda havia trocado todos os
meus parentes por diabos disfarçados” (Diário..., p. 40-41).
— Você comentou, nas nossas conversas anteriores, a possibilidade de se
estabelecer uma relação entre esse narrador sem cabeça que você procura e a tal
almazinha do romance Viva o povo brasileiro — disse ele. — A almazinha como
uma representação ficcional de um tipo de narrador bastante peculiar: um narrador
que incorpora o personagem a ser narrado e com ele aprende.
— Sim. Os romances que vamos comentar aqui podem constituir uma
espécie de itinerário de aprendizados para esse narrador. E Orlando...
— E Orlando não me parece muito bem posicionado nessa escala... — e o
meu interlocutor riu. — Nem Orlando e nem o padre-faroleiro do Diário...
— Você tem razão, eu estava para chegar a esse ponto da conversa. A
gente pode identificar um ponto inicial de aprendizados; um ponto que tem os
seus sintomas e pode ser caracterizado por uma atitude generalizada de
fechamento, presente na atitude do personagem, nos diálogos e nas imagens
evocadas. O niilismo de Orlando e do padre, por exemplo... Um niilismo que eles
pretendem elevar à categoria de uma prática quotidiana alimentada unicamente
por uma certa idéia de liberdade; uma liberdade niilista, definida e concretizada,
no caso de Orlando, pela via da inação, e, no caso do padre, pelo poder destruidor:
a liberdade de não querer nada, não precisar fazer nada, não ser ninguém; e a
liberdade de não se subordinar a nada, a não ser aos seus interesses. Ouça aqui
Orlando e o padre a falarem do mundo: “Coitadinho, mal sabe o mundo que o
espera, etc. e tal. Como, se o mundo, nos termos em que foi elaborado, é de uma
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perfeição absoluta?” (Setembro..., p. 64); “Não pretendo mudar nada no mundo.
(...) ele é perfeito” (Diário..., p. 24).
— A obsessão de Orlando é a liberdade, mas uma liberdade que seja
perfeita, ou seja, que não implique qualquer necessidade, nem mesmo a própria
necessidade de ser livre?
— Sim. E Orlando reconhece ser esta a sua maior necessidade: ser livre. A
liberdade do padre-faroleiro é a de poder transcender Bem e Mal.
— “Mas querer ser livre já não é uma sujeição?” (p. 65) — leu o meu
interlocutor, citando Orlando e ilustrando a minha fala.
— Perfeito — e prossegui. — Não há projeto político e muito menos
“projeto de política” que o demova de sua tentativa de liberdade perfeita.
— “Não vejo razão alguma para se pertencer ao Partido. Por outro lado, se
quiser ser honesto, não vejo razão alguma para não se pertencer ao Partido. Não
há razões. Eis uma grande verdade” (p. 63) — leu ele novamente, citando
pensamentos do personagem. — Orlando deseja ser livre, mas para quê?
— Para não fazer nada dessa liberdade. Aplicando aqui a metáfora da
almazinha, podemos dizer isto: a almazinha, que encarnou porque encarnar é
preciso, e somente encarnando é que poderá ela aprender e se desenvolver,
encontrou em Orlando uma existência estagnada.
— “Não quero”, diz Orlando, “absolutamente nada” (p. 58) — leu.
— Estamos fazendo uma boa dobradinha: eu exponho e você ilustra.
Deixe-me seguir: João Ubaldo Ribeiro, através de Orlando, deu voz a uma postura
de descrença radical cuja conseqüência imediata é o imobilismo radical. Não há
em Orlando a combatividade que ainda se pode entrever em Tristão, que se dá ao
trabalho de discutir e discursar e debochar de tudo à sua volta, porque ainda se dá
ao luxo de estar metido num dilema. — E citei aquela matéria que compara João
Ubaldo Ribeiro a Fellini: — “Resolver esse conflito interno [a “sedução da vida
burguesa e a rebelião instintiva de seus jovens espíritos”] de modo satisfatório,
isto é, que ao mesmo tempo lhe pareça justo e racional e lhe satisfaça as próprias
necessidades afetivas, é o superproblema de Tristão”.
297
— Mas os dois são personagens iconoclastas...
297
“Uma Semana da Pátria na vida da Província”, Fatos & Fotos, 12 out. 1968.
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— Sim, é verdade, mas Orlando, mais velho, sequer acredita na própria
iconoclastia; encerra-se em seu quarto, do qual não pretende sair nem mesmo para
comer. Agora leio eu — e peguei o livro: — “Talvez sentisse fome, sim, mas isso
seria uma restrição mínima à minha liberdade. (...) inteira liberdade de morrer de
inanição” (p. 58). Orlando encerra-se também num tempo presente de
deambulações, um tempo presente que inclui também o futuro, para ele não mais
que uma sucessiva cadeia de mínimos acontecimentos presentes. O futuro é
concebido de modo minimalista: ir ao dentista, por exemplo. Não há, no ponto
inicial do aprendizado desse nosso narrador sem cabeça, qualquer futuro. Qual o
futuro do padre-faroleiro? Leia para mim — e abri na página.
... cada vez mais penso que me dar esse tiro é a melhor solução para uma vida
tão cheia quanto a minha, agora esvaziada de tudo mais. Não há ninguém a me
opor obstáculos (...). Sim, é bem possível que, quando você tiver acabado de ler
este relato, eu tenha me matado. (Diário..., p. 302)
— Dê-me mais características desse ponto inicial de aprendizados.
— A prisão no presente. São os solilóquios de Orlando os momentos mais
enclausurados de Setembro não tem sentido. — E continuei: — O personagem,
apresentado ao leitor logo ao início de uma crise, digamos, existencial, inicia, de
seu quarto, uma narrativa na primeira pessoa, autodiegética, onde predomina o
tempo presente imediatíssimo. Orlando fala de si, de dentro do seu quarto e
debruçado à janela: “Limito-me a ficar aqui na sacada, ou sentado na inexplicável
poltrona verde, sem fazer nada. (...) Novamente começa a chover” (p. 47). Seus
pensamentos giram em torno dos assuntos mais prosaicos, alternados com curtas e
nada agradáveis rememorações de infância: surras do pai, omissões da mãe etc.
... Novamente começa a chover e não me resta outra coisa, senão botar outra
vez o penico debaixo da goteira. Por enquanto, é uma goteira pequena, sem
maiores pretensões, mas julgo que deverá aumentar, principalmente se continuar
a chover dessa forma (...). (...) Onde diabo estará esse penico velho? (p. 47)
— Os solilóquios verdadeiramente introspectivos — eu disse —
apresentam-se num tom de desabafo: menos narrativo, menos sóbrio, menos
justificativo, uma fala, esta sim, para si: “Isso dois ou três amigos já vieram dizer-
me [que sou um desorientado] e eu os mandei todos à merda. Que sabem eles da
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minha vida? (...) Evidente que não sou feliz. (...) Eu poderia estar realmente melhor,
e daí?” (Setembro..., p. 48). Ou ainda: “Merda de jornal, escrever coisas” (p. 59).
— Momentos em que o Orlando-personagem se sobrepõe ao Orlando-
narrador... — disse ele.
— Sim. E agora me ocorreu algo: a prisão no presente apresenta ainda
uma outra modalidade pela qual se manifesta: a prisão no discurso. Os momentos
de rebelião verdadeira do personagem Orlando somente acontecem no nível
discursivo. Orlando não faz nada; ele apenas diz que fará, ou que poderia fazer, e
em seguida confessa nada ter feito. Seus atos de revolta são atos apresentados no
tempo presente, de validade instantânea: mal terminamos de ler a frase subversiva
e ela já é negada pelo narrador no período seguinte. A alegação de Orlando para o
não cumprimento real de suas ameaças de subversão é a velha justificativa da
necessidade de se darem as coisas de modo radical, ou então não se darem. Ouça
alguns exemplos divertidos:
(i) (...) Posso sentar-me. Sento. Não, não me sento. Devo ser rebelde (...). (...)
Rebelo-me. Não me sento. Sento, sim, não me rebelo, porque seria necessário que
eu o matasse e aviltasse seu cadáver e jogasse suas cinzas na latrina, para
satisfazer meu ódio mortal, para que a rebelião fosse satisfatória. (p. 95 e 96)
(ii) Levanto-me e enfio-lhe ambos os indicadores na boca, afastando-os para
os lados, até deixá-lo sem bochechas? Faltam-me forças para isso. (p. 97)
(iii) Dir-se-ia que eu viraria a minha boca em direção à sua mão e que cuspiria
sobre ela com violência. Mas não. (p. 98)
— Mais um sintoma do ponto zero de aprendizados do narrador sem
cabeça — continuei — configura a ausência da experiência da alteridade. O
fechamento de que tanto se fala aqui é o fechamento para aquele que está logo ali
e que é igual e também diferente: o outro. “Ninguém me entenderia, e isso é
desalentador” (p. 111), diz Orlando. Não há outros que valham a pena no
introspectivo e imediatista modo de existência de Orlando. Ele tem a razão e todos
os demais são detalhes incômodos sobre o seu caminho. Ouça: “... ninguém será
capaz de me dar uma razão plausível para eu gostar das pessoas. Também não as
odeio, é claro, Seria pueril” (p. 61). Orlando exercita, por todo o texto, uma
espécie de elogio da clausura: o único momento em que se pode, efetivamente, ser
verdadeiro é aquele em que se está sozinho. A vida na sociedade é dissimulação,
estar em meio às pessoas é permanecer em estado de fingimento. Orlando, nas
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suas referências ao mundo do lado de fora de seu quarto, aponta a falta de
honestidade como sendo intrínseca à exterioridade: “Lá fora é interessante: todos
parecem gostar muito de mim, me chamam de figura genial, mas ninguém vem
aqui e eu continuo só” (p. 47). Nas suas rememorações de velórios e enterros a
que era obrigado a ir, Orlando salienta, sempre que pode, a atitude das pessoas em
público: a mãe gostava de “parecer uma senhora bondosa, fazia todo o ‘mise-en-
scène’”. O pai, “empertigado, (...) desfilava à frente” (p. 49); “... pomposo, (...)
tentava parecer cortês e refinado” (p. 50). O cunhado Júlio Borba, invadindo o seu
quarto para espioná-lo, “entrava com um olhar que abrangia tudo, fingindo que
estava achando os arredores muito a seu gosto, fingindo vistas largas e
despreconceituadas” (p. 55).
— E quanto ao Diário...?
— A mesma relação se pode estabelecer entre o quarto fechado de
Orlando e o isolamento do padre no farol... — disse eu. — Enquanto o faroleiro,
do alto de seu farol, consegue vislumbrar toda a superfície do mar sendo varrida
pelos fachos retilíneos dos refletores (Diário..., p. 184), Orlando, de seu quarto,
faz lá o seu esforço: “Eu espiava um pedacinho de mar na ponta dos pés”
(Setembro..., p. 55), diz ele, postado à janela o dia todo e irritado quando alguém
lhe invadia o sossego, “... não tolerava aquelas intromissões” (p. 55-56).
— Há alguma relação possível entre a diminuição da intolerância de
Orlando e o seu empenho numa narrativa que não seja de si? Quando ele, por
exemplo, funciona mais como Orlando-narrador do que como Orlando-
personagem? — arriscou o meu interlocutor.
— Sim. A falta de interesse pelo outro encontra uma trégua nos momentos
que ele mesmo qualifica de “pequenos acessos de sentimentalismo”, durante os
quais o que faz Orlando é, mais uma vez, empenhar-se numa narrativa, não de si,
mas daquilo que vê, sem os rígidos julgamentos aplicados em seus instantes de
“lucidez”, ou seja, de descrédito, descrença e desânimo. A narrativa do outro
funciona aqui como uma descrição, e quem a aciona é o narrador, num texto
muito pouco auto-referente. Ouça:
... Manhã de sol, quando acontece eu me acordar antes das seis horas,
pressentir, da sacada, a luz se elevando por trás do casario em frente. Os tetos
irregulares e belos, silhuetados contra a luz. Então, se olhar para baixo, posso ver
o menino que sai para distribuir o leite, um pretinho minúsculo, para quem uma
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garrafa deve pesar toneladas, acariciando a garupa de seu jeguinho manso, antes
de saírem para a rua. Abraçaria o pobre pretinho e o acolheria em mim, não como
um filho que isso é ridículo — mas assim como um irmão, entidade que nunca
cheguei a entender bem... (Setembro..., p. 61)
— Os trechos que eu realcei na leitura indicam pequenas intrusões, dessa
vez não do narrador, a quem se costuma acusar de intrusão, mas do personagem:
Orlando-personagem a embrenhar-se por entre as frinchas do discurso de
Orlando-narrador. Orlando-personagem e Orlando-narrador — frisei — digladiam
por espaços ao longo do texto, realizando, cada qual, movimentos opostos: o
narrador, incorporando Tristão, batalha por narrar tanto o que seu personagem vê
quanto o que imagina ou relembra. A incorporação de Orlando é diferente:
precisa, afinal, valer a pena, e o que faz o personagem é justamente anular a
possibilidade de as experiências e os aprendizados acontecerem. O desencontro e
a incomunicabilidade verificados em todo o livro também se vão reproduzir
microscopicamente, no interior de Orlando, e Orlando caminha para a loucura.
— É como se a relação do personagem com o seu narrador não
funcionasse... — disse ele.
— Sim, e o resultado disso é a esquizofrenia do texto, a abrir-se e fechar-
se, espelhando assim o dilema de Orlando em seu quarto, abrindo-se e fechando-
se para o mundo e para as suas reminiscências.
— Dê-me um bom exemplo — pediu.
— Veja este caso: depois de o narrador, operando na primeira pessoa,
iniciar uma dinâmica descrição da praça Castro Alves à noite, com suas
prostitutas, e também do mercadinho das Flores, e depois da Ribeira e do largo
Dois de Julho e da feira, com seus barraqueiros ainda não entregues ao “mau-
humor profissional da luz do dia”, e ainda lançar-se a algumas lembranças de
seresteiros bêbados e seus violões, depois desse verdadeiro exercício de
observação detalhada ao qual se lança o narrador, Orlando subitamente o
interrompe para manifestar a sua opinião, fechando novamente a narrativa em si
mesmo e nas suas idiossincrasias: “Detestava, sim, todas essas reminiscências em
relação a barraqueiros e seresteiros, todas essas lembranças cartográficas da
cidade, mas não podia fazer nada” (Setembro..., p. 88).
— Outro sintoma desse ponto inicial da trajetória do narrador...
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— A sua obsessão pela verdade e pela falsidade do mundo refletida na
idéia que as pessoas fazem de si mesmas. Todo o solilóquio de Orlando gira em
torno das suas concepções do que seja verdadeiro e falso, e é em torno de si
mesmo também que está aquilo que ele poderia considerar como “a verdadeira
verdade”, termo que aqui cunhamos em contraposição ao termo por ele utilizado e
que abre o seu texto: “uma verdade inventada”. É com a verdade que Orlando se
dirige pela primeira vez ao leitor. Refere-se aos jovens poetas iniciantes, iludidos
quanto ao próprio valor literário e sempre bajulados pela crítica e pelos amigos. É
também brandindo a verdade que Orlando avança por todo o seu texto, ora
chamando esta ou aquela atitude de uma completa desonestidade, ora negando-se
a usar dentadura, “que, além de falsa, será uma coisa incômoda” (p. 54). — E li
para ele, realçando as palavras:
... Não é mais nada do que uma verdade inventada, isso é o que é. Nada mais
que uma porca invenção. O sujeito escreve dois ou três poemas nauseantes,
junta-os num livro (...) e faz um lançamento num salão qualquer, cheio de gente.
(...) Nos cantinhos, dizem horrores dele, mas ele não sabe disso. Nunca saberá.
(...)
Nunca subirá à altura de um mísero muro de alvenaria. Mas, no entanto, não
dispõe de meios para saber a verdade. No outro dia, os amigos vão
hipocritamente para os jornais e escrevem elogios para ele. (...) nenhum deles (...)
tem a coragem de se aproximar e dizer a verdade. Fica aquele mundo falso,
todo falso a cercar o homem (...). De qualquer maneira, não adiantaria mesmo
dizer a verdade. Um sujeito tão embriagado pela falsidade alheia pensaria logo
não ser a verdade mais do que o fruto do despeito. (Setembro..., p. 45-46)
— O padre do farol, por incrível que possa parecer, não estende a sua
indiferença a uma distinção entre bem e mal aos pólos da verdade e da mentira —
eu disse. — Ele, como Orlando, é igualmente obcecado pela verdade, e isso a um
tal ponto que seria capaz de matar quem duvidasse da veracidade do que diz ele
em seus escritos. Não há para o padre, e tampouco para Orlando, a literatura; eles
a vêem como a mentira em oposição à realidade, entendida como verdade. Ouça
trechos do Diário do farol.
(i) O conteúdo desta narrativa é honesto, corajoso e escrupulosamente
verdadeiro (...) Conto aqui a mais integral verdade e acredito mesmo que me
enfureceria a ponto de matar quem duvidasse dela. (p. 9)
(ii) ... não se atreva, como já avisei, a duvidar de mim, porque, mesmo sem
jamais chegar pessoalmente perto de você, eu o matarei... (p. 20)
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(iii) Interrompa esta leitura se quiser — até definitivamente, se quiser, mas, se
prosseguir, não duvide do que lhe conto agora, como, aliás, já lhe adverti. (p.
269-270, realces meus)
— O padre é um personagem que funciona todo o tempo dentro do nível
da mentira — disse ele. — O espaço da vida, para o padre, constitui a prática da
mentira, ao passo que o da literatura, que ele não chama de literatura, mas de
diário ou relatório, configura o espaço da verdade. Orlando, por sua vez, exaspera-
se com a ausência da prática da verdade justamente em seu quotidiano não-escrito.
— Sim, e a obsessão pela verdade, por suas próprias verdades, transforma-
os em personagens elitistas e arrogantes. Orlando e o padre são elitistas na medida
em que se situam a si mesmos como pertencentes a uma classe de privilegiados,
intelectual e culturalmente.
— “... os intelectuais salvando o Brasil, aclarando as trilhas estéticas para
a humanidade.”
298
Não foi isso que disse Ubaldo, acerca de si mesmo ainda jovem
e de seu grupo de amigos?
— Sim — e admirei-me de sua memória. — “Conheço cretinos que me
citariam centenas de coisas, ignorando”, diz Orlando, “que (...) eu já tive tudo e vi
tudo” (Setembro..., p. 144) — citei. — Orlando é arrogante porque deixa clara
essa distinção de modo violento e através do rebaixamento daquele que não se
encaixa, quase todos, em especial os personagens das classes mais pobres, a quem
vê com preconceito: “Gostaria de tocar uns clássicos para ela [a moça da varanda
em frente, mira dos olhares de Orlando], só para ver o que diria. Provavelmente,
torceria o nariz e diria que era música de missa, como fazia a dona da última
pensão” (p. 46-47). E diz o padre: “... a maior parte das pessoas não sabe ler e é no
fundo muito ignorante, rol no qual incluo arbitrariamente você” (Diário..., p. 10).
— Por outro lado — e ele me interrompeu —, o narrador de Setembro...,
em seus momentos em terceira pessoa, ou, como você quiser, em seus momentos
dedicados ao personagem Tristão, demonstra a sua disposição em somente
manipular informações de alta cultura se estiverem estas contrapostas ou
misturadas a um discurso de tom mais popular. A erudição, para esse narrador,
não vem sozinha ou, por outra, não faz sentido se não estiver relacionada à cultura
298
Fernando Assis PACHECO, “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras,
Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983
(trecho já citado).
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popular. Lembra-se das palavras “Recordação da casa dos mortos” escritas, com
esmalte, num cinzeiro de uma boate cheia de prostitutas? — E, depois de sorrir
diante de seu próprio exemplo, continuou: — Imagino que você pretenda
desenvolver na sua tese a idéia do personagem Orlando — disse ele, fazendo cara
de quem teve uma idéia — como o prenúncio de uma certa imagem de escritor
que Ubaldo refletia e cultivava em si mesmo quando um jovem intelectual...
— Sim — disse eu —; imagem que irá mais tarde retornar sob a idéia do
escritor já amadurecido, que escreve por dinheiro e cujo perfil pretendo esboçar
bem mais à frente, quando entrarmos no assunto Jorge Amado e a defesa da idéia
do escritor profissional.
299
— O escritor que escreve por dinheiro e defende uma postura muito pouco
romântica acerca do ofício literário, para ele nada mais que uma forma de ganhar
dinheiro, a única que ele conhece bem e bem maneja... — disse ele.
— Exato. Ouça o que diz Orlando de seu chefe, o Zebra: “Dá-me dinheiro
em troca de palavras, na máquina. Se soubesse e pudesse escrever tudo [o Zebra],
eu morreria de fome, porque ele não compraria minhas palavras” (p. 96). Observe-
se aqui que não há nada a preencher os universos da literatura e do jornalismo:
não há nada relacionado à sua suposta função; há apenas as palavras,
transformadas em objetos a serem trocados por dinheiro.
— O ofício do escritor-escrivão. — E o meu interlocutor leu para mim um
pedaço de entrevista: — “... muitas vezes só penso em escrever um livro quando
estou precisando de dinheiro”, disse Ubaldo.
300
— Sim, este nome é bom: o escritor-escrivão. Vou tratar disso no último
tópico da nossa conversa, que vai ser o último capítulo de minha tese, que
pretendo intitular “Ubaldo Amado”. Bom título, né?
3.4. A ESCRITA DA ESCRITA DA ESCRITA...
— Eu gostaria de voltar ao sintoma que descrevi antes para você —
continuei —: a prisão no presente. “Eu estou aqui e agora dizendo isto” é a
299
— Ver o Capítulo 6: “Ubaldo Amado”, item 6.3.: “O trabalho do escritor-escrivão (parte I)”, p.
418.
300
Beatriz MARINHO, “João Ubaldo Ribeiro — profissão: escritor”, O Estado de S. Paulo, 30 jun.
1990.
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fórmula da enunciação em Orlando, que também pode ser encontrada no Diário
do farol através dos seguintes trechos, em que esse retorno ao momento presente
da escrita é radical e encharcado de intimismo. O padre diz que parou a escrita
para fazer o que fez, masturbar-se, logo em seguida ao exato momento em que
escreveu aquilo que o inspirou a fazer o que fez, masturbar-se. Ouça: “No
momento em que escrevo, a cena me volta e interrompi um pouco este trabalho,
para me masturbar in memoriam, gozando tanto que minhas pernas tremeram e se
vergaram” (Diário..., p. 301). E agora outro ótimo exemplo: “Não pretendo mudar
nada no mundo. (...) Parei para rir, antes de terminar este parágrafo” (p. 24).
— É como se não houvesse distanciamento de espécie alguma entre o eu
narrante e o eu narrado?
— Sim, mas de maneiras diversas nos dois livros. No caso do Diário...
uma ausência de distância psicológica, havendo, conseqüentemente, o fechamento
da narrativa. Há, sim, uma distância temporal, uma grande distância temporal
entre o eu-narrante e o eu-narrado, temos o faroleiro já com sessenta anos a
contar a vida de um seminarista e depois de um padre, mas o personagem não tem
essa distância efetivamente realizada dentro de si, porque ele, desde menino, é o
mesmo personagem, um personagem que não se transformou e que nunca
conseguiu exercitar o distanciamento narrativo sobre si mesmo. Seu caráter
malvado, descrente, cínico, irônico, perverso e premeditado manteve-se da mesma
forma, por todo o livro, à exceção do início, em que ele ainda não tinha
ultrapassado a fronteira que ultrapassou e à qual nunca mais retornou. Não há
clausura maior que esta. No caso de Orlando não há mesmo essa distância, uma
vez que Orlando está falando no tempo presente. O Orlando que narra e o Orlando
que é narrado permanecem os mesmos, com exceção dos momentos de
relembramento, porque a narrativa de Orlando, embora não se abra para o futuro,
se abre, contudo, com vagar e detalhes, para o passado...
— ... aproximando-se da fronteira que ultrapassou o menino do Diário do
farol — disse o meu interlocutor.
— Sim. Quando se trata do passado e do rememoramento da figura
paterna, tanto o menino-Orlando quanto o menino-padre do Diário... conseguem
realmente realizar a separação entre o eu-narrante e o eu-narrado.
— Por quê?
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— Porque eles eram diferentes daquilo que se tornaram depois. É um
passado, no entanto, de conteúdo fúnebre; um passado que não ilumina o estado
presente de Orlando, e muito menos o do padre, antes escurecendo-os. Orlando
recorda-se sobretudo das surras que levava do pai, das mortes bizarras e dos
velórios de que era obrigado a participar... E Orlando recorda-se, ainda por cima,
contrariado, já que não gosta de ter condições e memória para conseguir lembrar-
se do que quer que seja. “Não sei por que penso nessas coisas. Não adianta nada.
Não adianta. Eis aí duas palavrinhas que venho repetindo há muito tempo”
(Setembro..., p. 54). Fechar-se no tempo narrativo presente... — E li: — “Distraio-
me com uma pequena coceira no dedão do pé” (p. 92). Fechar-se, como eu ia
dizendo, tem como conseqüência a irresistível tentação, ou a difícil obrigação, de
não abandonar a consciência dos atos imediatos.
— Talvez seja esta a maior clausura de Orlando... Ter a total consciência
dos mínimos atos, o que significa negar-se a todo e qualquer automatismo
quotidiano, que, para ele, quer dizer escravidão.
— Sim — concordei com o meu astuto interlocutor. E aproveitei para
ilustrar: — “... estou ficando um animal domesticado, que cumpre as coisas
supérfluas, somente porque me foram ensinadas” (p. 95). Ouça aqui este segundo
trecho — e li para ele:
(...) Nunca ninguém olhou para os degraus ao subir, e isso me incomoda.
Quase me deixa na contingência de voltar a subir de novo, com a devida atenção.
No meio, gastam-se, tantos foram os pés que passaram neles. (...) Tenho de subir
a escada com gestos precisos, de quem está acostumado a subir escadas. Há de
haver gestos precisos para isso também, mas não tenho certeza deles e hesito ao
fazer meus movimentos. Principalmente, não sei como colocar a cabeça, que
surge absolutamente incômoda, em meus planos. Bem considerados, meus pés
também necessitariam de umas reformas, só que não posso especificar quais
seriam elas. Já está, o fim da escada e, em quatro passadas, subo o resto dos
degraus, com graça e equilíbrio. (p. 94-95)
— Esse trecho guarda alguma intimidade temática com o pequeno conto
de Julio Cortázar — disse o meu interlocutor, animado. — “Instruções para subir
uma escada”.
301
Criticam ambos os atos impensados do dia-a-dia, propondo
ambos, em seu lugar, um olhar fresco, virgem e, assim, mais penetrante.
301
— Sim — disse eu, e citei o trechinho de outra crônica de João Ubaldo, bem antiga, de 1976,
em que ele faz um jogo com as palavras “tomada” e “tomada” semelhante ao que faz Cortázar
(cont.)
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— Vou me lembrar disso para a tese, obrigado — e anotei, para não
esquecer.
302
— Esta prisão no tempo presente com suas setas para um passado
fechado em morte não se revela, contudo, tão simples. Se Orlando, por exemplo,
não resiste e inicia afinal uma série de pequenas rememorações tendo como
protagonista a figura grotesca do próprio pai, “Gordo e bruto, metido a inteligente
e irônico” (Setembro..., p. 49), é porque sua fala não consegue manter-se nos
limites de um solilóquio e porque, de algum modo, ele precisa falar e, falando,
construir um mundo. A quantidade de detalhes das curtas histórias que rememora
demonstra também que Orlando não está a falar somente para si, porque, se assim
o fosse, não se preocuparia em trazer à tona, ordenada e persuasivamente, fatos e
descrições que ele mesmo já conhece. Orlando organiza seus pensamentos e
assume uma postura realmente narrativa: ordenada e lógica, como se visasse...
— A um leitor...
— Não, uma vez que ele, Orlando, não está escrevendo, como o padre-
faroleiro está. Como se visasse Orlando a um ouvinte — retoquei. — Aqui, mais
do que nunca, se pode dizer que as vozes de Orlando e do narrador sem cabeça se
encontram misturadas. É o passado de Orlando sendo narrado como ele mesmo
não narraria. Mas esse ele-mesmo não poderia narrar nada, uma vez que esse ele-
mesmo não acredita na narratividade do que quer que seja. O padre também não
acredita. Como diz Dominique Maingueneau, “... o mundo desencantado ou presa
do spleen é também um mundo no qual existe, apesar de tudo, lugar para a poesia
de (...) Baudelaire”.
303
Se eu quero chegar àquela idéia que eu esbocei um pouco
antes sobre situarem-se os narradores de Tristão, de Orlando e do padre-faroleiro
numa posição próxima àquela ocupada pelo próprio escritor João Ubaldo Ribeiro,
com 21 anos quando escreveu Setembro não tem sentido, e com sessenta anos, na
com “pé” e “pé”. — “Outra [das coisas que mais me irritam em português] é a palavra
‘tomada’, porque português é a única língua em que a gente liga a tomada na tomada. Já deve
ter morrido muita gente por aí, porque o sujeito fala ‘segure aí na tomada’, e o segurador
entende que a tomada referida é a tomada, aí vem e pega na tomada em vez de na tomada e
morre...” (J. U. R
IBEIRO [ele assinava com iniciais], “Vida triste”, Jornal da Cidade, 25 jan. a
1 fev. 1976).
302
Julio CORTÁZAR, “Instruções para subir uma escada” (p. 18-19), in Histórias de Cronópios e de
famas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972.
303
Dominique MAINGUENEAU, “Duplicidade enunciativa” (p. 157-172), in O contexto da obra
literária, op. cit., p. 171.
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escritura do Diário do farol, tenho de admitir, por outro lado, que a correlação
entre João Ubaldo e seus narradores será sempre problemática e relativa, sim.
— Trata-se do “paradoxo do fênix”... — acertou ele.
— Sim, isso mesmo. Vou ler. Ouça: “Jamais o mundo é desprovido
suficientemente de sentido para excluir a obra que o diz desprovido de sentido.
Existe uma contradição insuperável entre a presença da obra e as propriedades que
ele atribuiu ao mundo representado”,
304
diz Dominique Maingueneau. Pelo
“paradoxo do fênix”, “a obra é gerada pela destruição que parece promover”.
305
O
niilismo de Orlando não é suficiente a ponto de impedir o seu narrador de contar.
O desprezo do personagem do Diário... pela escrita de uma história não foi
suficiente a ponto de o impedir de escrever a sua história; antes, pelo contrário, ele
é estimulado a escrever justamente por esse desprezo pela escrita...
— O desprezo pelo leitor também não é suficiente para o desestimular em
sua tarefa de contar a esse mesmo leitor a sua vida...
— Certo. Ouça aqui três falas, uma em que se observa a relação de Orlando
com a literatura; outra a do próprio João Ubaldo; a última a do padre-faroleiro.
(i) Os livros me enchem a paciência agora e também não escrevo nada.
Desisti. Acho que escrever é uma inutilidade perfeita. (Setembro..., p. 47)
(ii) — Uma vez, em Itaparica, estava escrevendo no meio de seis quilos de
papel de Viva o povo brasileiro e falei para um amigo: “Veja que maluquice, que
profissão absurda, eu aqui sentado escrevendo sobre gente que nunca existiu,
contando coisas que nunca aconteceram, o que é isso?”. E ele: “Não foi você
quem inventou isso; desde que o mundo é mundo que tem gente fazendo esse tipo
de coisa, o resto é frescura”.
306
Quando perguntam hoje por que eu escrevo,
304
Id., p. 172.
305
Id., ibid.
306
— Vale a pena aqui citar o escritor Javier Marías — disse eu, abrindo o que será uma grande
nota —, em trechos de uma conferência que pronunciou quando recebeu o prêmio internacional
Rómulo Gallegos, pelo livro Amanhã, na batalha, pensa em mim (Mañana em la Batalla
Piensa em Mi). O texto de Marías poderia ser praticamente uma resposta a João Ubaldo
Ribeiro, dada cinco anos depois, e também uma conversa entre os dois escritores; uma
conversa em que partilham do mesmo estranhamento diante do mundo que criam a quatro
paredes. Ouça: “Parece certo que o homem (...) tem necessidade de alguma dose de ficção, ou
seja, necessita do imaginário, além do acontecido e real. Não me atreveria a empregar
expressões que acho recorrentes ou ridículas, como seria assegurar que o ser humano necessita
‘sonhar’ ou ‘evadir-se’ (...). ¶ Prefiro antes dizer que ele necessita conhecer o possível além do
certo, as conjecturas e as hipóteses e os fracassos além dos fatos, o descartado e o que teria
podido ser, além do que foi. (...) ¶ (...) Nós talvez consistamos, em suma, tanto do que somos
como do que não fomos, tanto do que pode ser comprovado e quantificado e rememorado,
quanto do mais incerto, indeciso e difuso, talvez sejamos feitos, em igual medida do que foi e
do que poderia ter sido. ¶ E atrevo-me a pensar que é precisamente a ficção que nos conta isso,
(cont.)
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respondo sempre assim: “Não sei, mas desde que a humanidade aprendeu a
escrever que tem gente escrevendo história. Então, é alguma coisa séria”
(risos).
307
(iii) De novo me alegro por não ser escritor profissional ou romancista
escravizado à produção dos livros de que precisa para manter-se. (Diário..., p.
145) ... desmistifico mais um pouco a suposta possessão dos escritores pelas
musas, ou a necessidade de aptidões especialíssimas para escrever um livro.
(Diário..., p. 179)
— São bastante diferentes mas, de algum modo, se assemelham... — disse
ele. — No caso de Orlando e do padre, pergunto: podemos dizer que, mesmo
quando estão eles próprios a tentar dar conta de suas vidas, através da narrativa de
histórias, mesmo em primeira pessoa, é muito mais um narrador do que o
personagem a contar as histórias? Como se o narrador estivesse, de algum modo,
isentado da descrença na possibilidade de se contar qualquer coisa...
— Sim. Alguém precisa dar-se ao trabalho de narrar... Ouça Orlando, ou
melhor, muito mais o seu narrador em primeira pessoa, num momento de louvável
empenho narrativo:
(i) Tanto ela [minha mãe] como meu pai gostavam de enterros. E nos
obrigavam a ir a velórios e funerais. Empertigado, Emanuel [o pai] desfilava à
frente, roupa preta e bengala de bambu, que também usava para bater-me pelas
costas. (Setembro..., p. 49)
(ii) Quarantina morreu porque estuporou. Foi essa a única explicação que
circulou na casa de meu pai. Morreu de noite, fazendo todo mundo acordar para
lhe arranjar sacos de água quente e lhe dar colheradas de magnésia. (...) A negra
estuporou completamente e foi morrendo devagarzinho, com as vistas reviradas.
ou melhor dito, que nos serve de memória dessa dimensão que costumamos deixar de lado (...).
E ainda hoje é a novela a forma mais elaborada da ficção (...). ¶ (...) O gênero da novela
proporciona isso ou o acentua ou o traz à nossa memória e à nossa consciência, daí talvez
decorra a sua perduração e que não tenha morrido, contrariamente ao que tantas vezes
se anunciou. (...) ¶ (...) Saber tudo isso (...) não chega a ser às vezes suficiente para o escritor,
enquanto está escrevendo. Há momentos em que ergo os olhos da máquina de escrever e acho
estranho o mundo do qual estou emergindo e me pergunto como, sendo adulto, posso dedicar
tantas horas e tanto esforço a algo sem o qual o mundo poderia passar muito bem,
incluindo a mim mesmo; (...) como posso passar boa parte de minha vida instalado na ficção,
fazendo acontecer coisas que não acontecem, com a extravagante e presunçosa idéia de que
isso possa algum dia interessar a alguém” (Javier M
ARÍAS, “O mundo reinventado pela ficção”,
Folha de S. Paulo, 5 jan. 1997
, realcei).
307
Cláudio HENRIQUE, “O que é que o baiano tem?”, O Globo, 2 fev. 1992. — Esta história
aparece recontada na crônica de nome “Do diário de um homem de letras” (p. 62-66), in O
conselheiro come, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000, p. 65. E, ainda sobre o ofício do
escritor e o sentido (ou a falta dele) de se escrever sobre gente que nunca existiu e situações
que nunca ocorreram, vale a pena a leitura da crônica “Como é seu nome completo” (p. 207-
212), in Sempre aos domingos, op. cit.
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Eu estava lá. Quando ela começou (...) a soltar uma espuma esbranquiçada pela
boca e a olhar meu pai esgazeadamente (...), me retiraram do quarto imundo em
que ela vivia (...).
Quando voltei, ela estava coberta por um lençol, exceto pela mão esquerda,
que pendia sempre para fora da cama estreita, apesar de, a todo momento,
tentarem pô-la embaixo do lençol. A mão, com as unhas brancas, insistia em
voltar, quase viva. Tive medo e nojo. (p. 51-52)
— E o mesmo se pode dizer do padre-faroleiro do Diário..., que não acredita
em nada e que pode muito bem prescindir de tudo e todos, inclusive do leitor. Esse
padre, no entanto, a despeito de sua auto-suficiência e seu desprezo por aquele que o
lê, se dá ao copioso trabalho de escrever um livro e contar em detalhes toda a sua
vida, dando satisfações a quem ele não conhece. É o narrador o responsável pela
narrativa, e não o personagem... O personagem, levando-se em conta o seu perfil
psicológico, não precisa contar nada ao leitor, a quem despreza, mas o narrador, esse
sim... E aqui retorno ao ponto em que citei para você lá atrás, um trecho em que o
narrador do Diário... se refere à “vasta biblioteca” de sua infância.
3.5. EM NOME DO PAI, DO PAI E DO PAI
— Sim, sim. Imagino que não tenha passado despercebida aqui, para você,
a presença dessa famosa “vasta biblioteca” a ocupar os espaços tanto da ficção
quanto da biografia de Ubaldo... — disse ele.
308
— Sem dúvida que não, e ainda arrisco dizer que essa “vasta biblioteca”
aqui citada deve a sua presença no romance muito mais a uma necessidade de se
inserir um dado biográfico do que a uma necessidade da narrativa propriamente
dita. É muito pouco verossímil que um personagem como o pai do padre, descrito
no texto como um autêntico brutamontes, assassino e crápula, tenha em casa uma
vastíssima biblioteca. Pode ser uma herança de família, sim; pode ser propriedade
da mãe do protagonista, sim, mas, de todo modo, a presença da biblioteca no
romance seria gratuita não fosse a sua importância simbólica no campo
biográfico. Não há, em nenhuma parte do texto do Diário..., um momento em que
308
— E lembrei-me, para que se possa ter uma idéia quase completa do universo dessa vasta
biblioteca da infância do escritor, de algumas crônicas de imprensa em que ele trata
diretamente do assunto. São elas: “Ele chegou mesmo” (p. 169-175, do livro Sempre aos
domingos, op. cit.); “Memória de livros” (p. 137-153, de Um brasileiro em Berlim, op. cit.) e
(cont.)
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o pai do faroleiro esteja em proximidade, mesmo que abstrata, com a sua “vasta
biblioteca”, onde em nenhum momento entra, nem mesmo para conferir se os
livros estão no lugar. O pai do protagonista encontra-se sempre no campo, a
checar o funcionamento da fazenda, em seu jipe ou em seu cavalo, nunca na sua
“vasta biblioteca”.
— É como se essa biblioteca presente no Diário do farol estivesse fora do
lugar... — disse ele.
— Sim. Essa biblioteca, eu diria, é um fantasma; é um dado da tal
“autobiografia fantasmagórica”, expressão dele mesmo, que João Ubaldo Ribeiro,
aqui e ali, vai tecendo ao longo de seus romances, quase como uma obsessão.
Podemos destacar mais uma recorrência no livro A casa dos Budas ditosos:
também, à sua maneira, um acerto de contas com a infância. Ouça.
Vejo tudo como se fosse hoje. A velha casa grande do Outeirão, que já peguei
com as paredes cobertas de limo de verde a retinto, insetos por tudo quanto era
canto, jias que no inverno miavam como gatos, plantas estalando, as telhas se
entrelaçando com cipós e uma ou outra cobra cor de esmeralda, o resto da chuva
ainda pingando das árvores nas plantas de folhas grandes em baixo, uns fedores e
cheiros mornos saindo das rachas nos pisos de lajota, passarinhos cantando e
piando, uns azulejos desmaiados nas paredes do varandão, umas quatro galinhas
brabas ciscando debaixo das touças de bananeira, pedras soterradas pela lama,
calangos trepando pelos troncos das mangueiras, duas ou três mutucas zumbindo
e, apesar de tudo, um silêncio que chegava a doer. Isso. Foi nesse dia, nessa
grande casa velha embolorada, que tinha uma estante de sucupira crua que as
goteiras haviam empenado nas juntas. Já conhecia muito aquela estante, mas,
mesmo assim, ou talvez por causa disso mesmo, fui mexer nos livros enrugados
pela umidade, com as páginas tresandando inesquecivelmente e, a cada uma que
eu folheava, essa exalação me trazia um arrepio no meio das costas e me deixava
enlouquecida. Havia todos os tipos de livro. Lembro bem do “O Guarany”, com
ípsilon, ilustrado pela figura de Pery, também com ípsilon, que eu achava que
mostrava um volume fascinante do lado esquerdo da tanga de espanador, de
Salambô, estampando uma mulata quase nua na capa, D. Quixote de ceroulas em
meio a alucinações, uma coleção encadernada de Anatole France se
desmanchando, tudo, tudo. (A casa dos Budas..., p. 23-24)
— Estas bibliotecas pertencem muito mais ao universo biográfico do que
ao ficcional.
— Pertencem aos dois — corrigiu-me ele —, mas é a força genética dessas
bibliotecas que comanda a sua inserção no mundo ficcional do autor...
“Voltando aos velhos ares” (O Globo, 3 nov. 1985, reunida no livro Arte e ciência de roubar
galinha, op. cit., p. 145-149).
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— Tem razão. Bem como a inserção de tudo o que pertence ao erudito
universo de uma biblioteca, que é e sempre foi, desde a infância, o universo do
menino, do jovem e do senhor João Ubaldo Ribeiro. Como escreveu uma
jornalista, acerca do livro, embora de modo um tanto atrapalhado, mas vá lá...:
“Na vida real e no romance, começa na infância a confusão das categorias
díspares”.
309
Observe que tanto o padre do Diário... quanto o próprio escritor
mantêm as mesmas opiniões quanto ao que julgam essencial no mundo da
literatura: o mínimo essencial... Ouça:
(i) Não preciso de nada de fora. Como todo homem inteligente da minha
idade, sessenta anos completos, descobri há bastante tempo que poucos livros são
mais do que suficientes para a leitura e tenho menos exemplares do que a famosa
biblioteca de seiscentos volumes que tanto maravilhava os contemporâneos de
Montaigne. (Diário..., p. 14)
(ii) — Eu leio pouco. Hoje, leio os mesmos livros. (...) ... as mesmas coisas de
antes, leio Rabelais, muito Jorge de Lima, lia muito Joyce e Graciliano Ramos,
que não leio mais.
310
(iii) Gosto de comparar a vida na casa paroquial à existência de um nobre
seiscentista, um fidalgo de posses e poder como Montaigne, cujos escritos sempre
me acompanharam, por alguma razão que tenho dificuldade em precisar.
(Diário..., p. 121-122)
(iv) — Montaigne é um nome admirado por Ubaldo, que o considera dono de
um espírito claro, honesto, observador, erudito, conhecedor das paixões e da
história humanas, como confessou em uma de suas crônicas.
311
— Mais uma vez, concordo com o que você disse acerca da força genética
dessa biblioteca a comandar a sua inserção no mundo ficcional. Você disse muito
bem — observei, com alguma inveja. — Vou anotar isso... — e fiz uma pausa —
... para a tese. — E continuei: — Qual o centro da queixa, tanto de Orlando quanto
do padre-faroleiro?
— O pai. Mas você está fazendo...
— Agora permita-me inserir mais um personagem nesse ponto de nossa
conversa — e puxei para o centro da mesa mais um romance. — Vamos observar
309
Cris GUTKOSKI, “O cinismo é para o seu bem”, Zero Hora, 1 abr. 2002.
310
“João Ubaldo: ‘Eu me achava um gênio...’”, Jornal da Telebahia, jun. 1984.
311
Ubiratan BRASIL, “Confissões de um padre amoral em Diário do farol”, Jornal do Comércio,
31 mar. 2002
.
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o perfil dos pais de Orlando, do padre-faroleiro e também do peixeiro-biólogo
João Pedroso, do romance O sorriso do lagarto.
312
Você leu esse?
— Li. Você teve sorte de encontrar um interlocutor já razoavelmente
ciente do que se passa... — disse ele, vaidoso de suas leituras.
— Não podemos deixar de atravessar essa ponte biográfica — interrompi-
o. — Não precisamos passar para o outro lado, porque o outro lado é a vida
pessoal do escritor João Ubaldo Ribeiro. Não passaremos para o outro lado, mas
podemos, por alguns instantes, permanecer somente na ponte, no meio da ponte,
no entre-lugar, para usarmos aqui a famosa expressão de Silviano Santiago, dessa
vez fora do lugar... no entre-lugar da ficção e da vida.
— Você está fazendo psicanálise...
— Eu, não. Ninguém está fazendo psicanálise, embora também ninguém
esteja aqui riscando a psicanálise do mapa... A psicanálise já está feita na
literatura, e é dessa literatura apenas mais um aspecto a ser levado em conta em
nossa discussão. Talvez em nenhum outro romance, depois de Setembro não tem
sentido, João Ubaldo Ribeiro tenha lançado mão, com tanta força, de um
personagem que remeta, direta e indiretamente, ao seu próprio pai. E não estamos
falando aqui do seu pai biograficamente constituído, é claro, isto é óbvio, mas de
uma imagem de pai como uma presença marcante e difícil, que tinha tanta
influência, força e domínio sobre o menino-João Ubaldo Ribeiro, como têm o pai
do Diário do farol e o pai de Setembro não tem sentido sobre o menino-faroleiro e
o menino-Orlando. Partem ambos da mesma constatação: “Desejo estragar, ou
macular definitivamente, sua falsa felicidade, se você se ilude em tê-la” (Diário...,
p. 12), escreve o padre. “Evidentemente que não sou feliz. Todo sujeito feliz é um
boçal” (Setembro..., p. 48), reafirma Orlando, que assim fala do pai: “Meu pai
dizia que eu não podia deixar de ser um maricas...” (p. 49), o mesmo dizendo o
padre-faroleiro acerca de seu pai, que “acreditava que eu, com a minha fragilidade
de maricas fracote... (Diário..., p. 83).
— O pai de João Pedroso está longe de ocupar um lugar central na trama
dO sorriso... — disse ele.
312
— “Assim como Ubaldo”, diz o texto da revista Veja — citei —, “João Pedroso, protagonista
da trama, mora em Itaparica, vai ao botequim todo dia à mesma hora, senta-se à mesma mesa
diante do mesmo copo de uísque (“Ninho de répteis”, Veja, 22 nov. 1989
).
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— Sim, é verdade, mas o perfil do personagem deve, sim, e muito às
lembranças que tem do pai. João Ubaldo Ribeiro, diferentemente do que fez com
Orlando e o padre-faroleiro, trazendo à tona da memória alguns péssimos
acontecimentos relacionados aos pais desses personagens, circunscreveu, de certa
forma enfraquecendo, todo o arsenal de lembranças de João Pedroso a um pacote
com cartas, as cartas do pai, a tratar de assuntos comuns tanto à biografia de João
Pedroso quanto à do próprio escritor.
— E nunca houve, na biografia de nenhum dos três, ou de nenhum dos
quatro, se inserirmos Ubaldo nisso..., uma “Carta ao pai”?
— Na biografia dos personagens, não. Quanto a João Ubaldo Ribeiro, não
sei. Estamos tratando, vale a pena lembrá-lo disso, com um material biográfico
público, e, nessa esfera, não há, não, senhor, nenhuma “Carta ao pai”, havendo
apenas as “cartas do pai” — e li.
... Eram as cartas do pai, a complementação escrita do que lhe falava quando
morava em sua casa, que nunca cessou de bombardeá-lo onde quer que estivesse
e fazer com que se sentisse num permanente inferno de recriminação e culpa. A
carta do vestibular de Direito, que não quis fazer, e o velho considerou aquilo
covardia e traição. A carta sobre o caráter de um verdadeiro homem. A carta sobre
fracasso. A de sua biografia, desde uma infância onde já se percebia fraqueza de
vontade e lassidão. A da velhice desconsolada. A da permanente decepção. (...)
Passou a vê-las, finalmente, como simples insultos despeitados, invejosos e
doentios, partidos de um homem que, apesar de ser seu pai, jamais gostara dele,
um homem que, se julgando superior, era na verdade um frustrado mesquinho,
autocrático e recalcado. (O sorriso..., p. 262)
João Ubaldo Ribeiro — Meu pai me mandava cartas quilométricas [para os
Estados Unidos] falando sobre a minha tese. Escrevi para ele dizendo que não
queria ser catedrático como ele, ficou puto, mandou várias cartas me
esculhambando. (...) Voltei pra ser professor de Ciências Políticas, na
Universidade Federal da Bahia e na Católica. (...) Não gosto desse período da
minha vida.
Jaguar — Se fosse um romance, você cortava esse pedaço?
João Ubaldo Ribeiro — É, é.
313
— Observe agora a semelhança entre as queixas do menino-Orlando e do
menino-padre, nos dois outros livros. — E li, realçando trechos.
313
JAGUAR, Fernando VITA, Fernando de BARROS, Haroldo CARDOSO, André Luiz OLIVEIRA,
“Pasquim vai à Itaparica entrevistar João Ubaldo. Muito riso e pouca literatura”, Pasquim, 23
nov. 1989.
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(i) Dizia que eu era cínico, não sei por quê. E batia mais. (Setembro..., p. 49)
... embora soubesse que ele certamente continuaria a me chamar de cínico,
não ousei baixar o rosto para não correr o risco de ter minha cabeça levantada por
um sopapo... (Diário..., p. 40)
(ii) [O pai de Orlando] Você, meu filho mais velho, (...) que só me dá
desgosto. (Setembro..., p. 49)
[O pai do padre] Cínico! Descarado! Desqualificado! Desgosto, desgosto,
desgosto! Não sei o que fiz a Deus... (Diário..., p. 40)
(iii) Quando, às vezes, eu não chorava, ficava ainda mais furioso:
Engrossando o cangote, heim? [diz o pai de Orlando] Querendo bancar o
durão? Já lhe mostro! (Setembro..., p. 49)
— ... o senhor já tem um filho homem. Eu sou homem. Padre pode usar saia,
mas é homem.
— Moleque! Está querendo engrossar o cangote, é? [diz o pai do padre]
Fazendo gracinha, é? Não sei onde estou que não lhe dou uma surra de cipó!
Quer levar uma surra de cipó? (Diário..., p. 73)
— Podemos observar também outro paralelismo — continuei —, desta vez
entre as figuras da mãe de João Pedroso, sempre omissa, da mãe de Orlando,
“chata, fracota e débil” (Setembro..., p. 49) e da madrasta do menino do Diário do
farol, cúmplice do cunhado no assassinato da irmã. Observe os três trechos:
(i) ... nunca o desonrara em nenhum sentido, sempre levando uma vida
correta, embora frouxa. Nem desonrara a mãe, embora secretamente houvesse
abafado muita raiva dela, por nunca se ter oposto às violências e injustiças do pai,
nem nunca ter defendido o filho contra acusações absurdas. (O sorriso..., p. 262)
(ii) Duas ou três vezes, quando meu pai me surrava nu (...), ela me punha, a
conselho dele, compressas de água e sal. Vinagre e sal, sei lá, não me lembro.
Punha as compressas e dizia melancolicamente, em tom sofrido:
— Meu filho, eu fico triste de ver como você obriga seu pai a tomar essas
raivas (...). Seu pai é louco por você. Você não compreende seu pai. (Setembro...,
p. 50, realcei)
(iii) Creio até que poderia fantasiar uma infância mais ou menos feliz, se me
deixasse iludir pelas falsificações da memória e se não fosse surrado pelo menos
uma ou duas vezes por semana, geralmente nu e rolando pelo chão, para que
depois minha madrasta, dizendo frases consoladoras que contradiziam (...) seu
semblante prazenteiro, me aplicar compressas de água, vinagre e sal sobre os
vergões de minha pele. (Diário..., p. 32-33, realcei de novo)
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— E ele adverte: “... meu pai não foi o pai monstro do livro e não estou
aqui a fazer análise”.
314
— O fantasma, porém, da autobiografia fantasmagórica permanece —
disse o meu interlocutor.
— Sim. Ouça: “Que o pai era severo, era mesmo”, escreve a jornalista
Cecília Costa, numa entrevista com o autor. “Que a educação foi rígida e havia
uma lenda na família de que aos quatro meses o pai batia nele, por não suportar o
choro do bebê, também é verdade”, diz ela, baseada, provavelmente, no que lhe
disse o escritor durante a entrevista.
315
E diz o padre-faroleiro nas suas confissões:
“... sei, porque minha mãe me contou, que tomei minha primeira surra aos quatro
meses de idade, por causa de meu choro de cólicas, que não o deixava conciliar
sua sesta habitual” (Diário..., p. 29). E João Ubaldo Ribeiro — continuei —,
apesar de saber que o fenômeno quase sempre acontece, sempre espera, segundo
nos diz ainda a Cecília Costa, que o leitor não superponha escritor e personagem,
um personagem, nesse caso, que “mata o pai, os irmãos, tortura, seduz, violenta”.
E explica ele: “Sempre que escrevo na primeira pessoa acontece essa confusão.
Mas juro que minha mãe está viva, não matei meu pai e meu pai não matou minha
mãe”.
316
E ele não apenas explica como também insiste em explicitar a sua
condição: “Mas repito: não sou eu quem dialoga com o leitor, é o personagem que
resolvi inventar”.
317
Isto diz João Ubaldo Ribeiro, que de certo modo vai dizer a
mesma coisa acerca das interpretações “entrelinhares”, só que através da pena de
seu escrevinhador, encarapitado em seu farol. Ouça o trecho:
Vejo certos defeitos nas páginas precedentes mas, em vez de reescrevê-las,
apenas aponto esses defeitos (...). ... compete a mim manter a disciplina narrativa
sob controle racional, procurando evitar tanto quanto possível interpretações
equivocadas, irritantes e enervantes. Se você acha que posso estar me referindo a
você, tem toda a razão. porque a maioria lê através de filtros a que se apega de
forma demente e não vejo motivo para você ser exceção. Há muita gente, gente
demais, que lê nas entrelinhas, um perfeito exercio de imbecilidade, defesa
neurótica contra a realidade ou, em inúmeros casos, o achar-se tão sabido que se
acaba sendo besta. Não existe essa coisa de entrelinhas. Pelo menos nos livros
honestos, como este, não há nada nas entrelinhas, tudo deve ser procurado e será
314
Cecília COSTA, “A temível marca da maldade de João Ubaldo”, O Globo, 18 mar. 2002.
315
Id.
316
Id.
317
Ana Cláudia PERES, “O mau pastor”, O Povo, 13 mai. 2002.
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devidamente encontrado nas linhas, aqui não são oferecidas entrelinhas, à merda
o entrelinhador (...). (Diário..., p. 180-181, realcei)
— Você se lembra do que conversamos acerca do terceiro modo de
relacionamento entre os universos da ficção e da biografia? — perguntou-me.
— Do Javier Marías? Sim, me lembro.
318
E eu disse que relacionaria esse
terceiro modo aos romances Setembro não tem sentido e Diário do farol... Ele
disse, relembremos, que “o autor apresenta a sua obra como obra de ficção, ou
pelo menos não indica que não o seja; (...). No entanto, a obra em causa tem todo
o aspecto de uma confissão (...). O resultado (...) é de uma ambigüidade tão
assombrosa que as suspeitas do leitor oscilam (...) entre dois pólos (...)”.
319
— O que acaba levando o escritor, no caso, Ubaldo, a ter de observar,
quase que através de um grito de alerta, que ele, efetivamente, não matou o pai,
que por sua vez também não matou a mãe...
— E no entanto a questão não é essa... Javier Marías observa que,
justamente para que fique mantida a ambigüidade, ele introduz um detalhe
concreto, um dado biográfico comprovável que impede seja realizada uma
identificação total e irrestrita entre ele e o seu narrador. — E li: — “Este dado
comprovável (...) deu-me ainda maior liberdade no momento de acentuar as
semelhanças entre o Narrador e eu próprio, sem que”, escreve Marías, “o dado em
questão quebrasse a ambigüidade deliberada pela qual havia optado ao não dar
nome nem fazer qualquer descrição física do Narrador”.
320
— Seu narrador, de Marías, casou-se, como eu disse lá atrás, e teve
filhos... Javier Marías, o próprio, não — disse ele.
— Pelo mesmo caminho segue João Ubaldo Ribeiro. João Pedroso,
personagem dO sorriso, é filho único, e o escritor tem um irmão e uma irmã.
321
O
próprio João Pedroso ainda declara, numa conversa com o padre Monteirinho: “...
318
Ver Capítulo 2: “A infância barroca e a linha reta de Getúlio”, p. 87.
319
“Autobiografia e ficção”, op. cit., p. 69-70.
320
“Quem escreve”, op. cit., p. 91.
321
— Veja, aliás — e fiz com a mão uma nota —, como outra personagem, Ana Clara, vê João
Pedroso, e como essa imagem coincide com muitas imagens construídas por e para João
Ubaldo Ribeiro: “Cultíssimo. (...) E não é só Biologia, não, é tudo, parece que já leu tudo. E
não é desses cultos chatóides, que só falam em polissílabos e torcem o nariz para tudo de que
os outros gostam, é um homem de grande simplicidade, que se diz ignorante, e a gente vê que
não se trata de afetação” (O sorriso..., p. 89, realcei).
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nem filhos fiz, não fiz nada”, e João Ubaldo fez quatro filhos. Outro ponto: “... eu
acredito muito em Deus, e o clérigo do Diário do farol detesta. Trata-se de um
personagem ficcional, envolvido em uma história verossímil”, diz ele
322
— li,
jornal à mão. — E ainda há inúmeras outras diferenças óbvias, tais como o fato de
João Ubaldo Ribeiro nunca ter sido seminarista, nunca ter sido padre, nunca ter
colaborado com os regimes de opressão e nunca ter sido faroleiro... Dei-lhe várias
diferenças; dou-lhe agora uma semelhança — e li dois depoimentos de João
Ubaldo que muito bem poderiam ter saído da boca do padre do romance: “Tive
uma formação rígida católica, mas não suporto a Igreja Católica, padres ou
qualquer outra religião institucionalizada”;
323
“... não aceito o magistério da Igreja
católica (...) e vivo uma esquizofrenia religiosa”;
324
“... tenho dificuldades em aceitar
o magistério da Igreja — faço força, mas é difícil. E tampouco vou à missa”.
325
— ... bem poderiam ter saído da boca do padre e certamente saíram de
mais duas bocas: da boca daquela devassa dA casa dos Budas ditosos
interrompeu-me ele, com o outro livro na mão — e ainda da boca de João
Pedroso, herói dO sorriso do lagarto. Veja — e ele leu quatro trechos.
(i) ... eu também fui criada como católica, tinha aulas de catecismo, fiz
primeira comunhão vestida de organdi branco, só falava o estritamente necessário
na sexta-feira santa, só comíamos peixe toda quinta-feira e assim por diante. (...)
O magistério da Igreja me enerva. Prefiro eu mesma ler a Bíblia e pensar do
que leio o que me parece certo pensar, quero eu mesma me inteirar das boas
novas, sem nenhum padre de voz de tenorino gripado me ensinando incoerências,
subestimando minha inteligência e repetindo baboseiras inventadas, semelhantes
à desfaçatez de afirmar que no Pentateuco há mandamentos como guardar
castidade, que os homens santos não batizados foram para um tal de limbo e
tantas outras criações conciliares, já li a Bíblia de cabo a rabo e nunca vi nada
disso nela. E por que também não observam o que também está lá, no Levítico?
Fingem que não está. E o Papa é vigário de Cristo? Certos papas, todo mundo
sabe o que foram certos papas, todos infalíveis e tantos safados? Enfim. Não vou
falar mais nisso, perda de tempo. (A casa dos Budas..., p. 14-15)
(ii) ... eu acredito muito em Deus, foi Ele Quem fez tudo, louvado seja Deus.
Existe maior sádico, no melhor dos sentidos, do que Deus? Não precisa ler Sartre,
322
Ubiratan BRASIL, “Ubaldo revela detalhes da crueldade religiosa...”, O Estado de S. Paulo, 16
mar. 2002.
323
Cecília COSTA, “A temível marca da maldade de João Ubaldo”, O Globo, 18 mar. 2002.
324
Giovanni RICCIARDI, “João Ubaldo Ribeiro” (p. 349-370), in Auto-retratos, São Paulo, Martins
Fontes, 1991, p. 353 (entrevista de outubro de 1986).
325
Crônica: “A Igreja Católica Apostólica Americana” (O Globo, 31 mar. 1985, reunida no livro
Arte e ciência de roubar galinha, op. cit., p. 97-101, p. 98).
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que já foi a moda das modas, basta participar de um papo de botequim filosófico.
Deus, Deus, Deus, eu acredito muito em Deus, acredito na Providência Divina,
acredito mesmo. (A casa dos Budas..., p. 87)
(iii) ... detesto religião organizada, qualquer que seja ela. (...) ... sempre honrei
Seu Santo Nome, embora nunca tenha aceito o magistério da Igreja. E nunca
blasfemei, jamais saiu de minha boca uma blasfêmia, uma queixa contra Ele, só
louvor. (A casa dos Budas..., p. 162, realcei)
(iv) João Pedroso conversando com padre Monteirinho: — ... eu sou um
homem religioso, apesar de não aceitar o magistério da Santa Madre e odiar
aquelas notas de pé de página das Bíblias católicas. (O sorriso do lagarto, p. 65)
— Se você não me dissesse que o primeiro trecho vem de um romance, e
descontadas as flexões próprias do gênero feminino, eu diria ser o trecho de uma
entrevista de João Ubaldo Ribeiro. Disse, a propósito, uma jornalista: “João
Ubaldo costuma argumentar que seus livros devem saciar quem queira saber
dele”.
326
E aliás... — e resolvi apontar um outro viés para enxergarmos o escritor.
— A compensação que o escritor criou para reequilibrar o caso de ser o seu alter
ego, aqui nA casa dos Budas..., uma mulher é transferir para ela um ideal de
inteligência e de beleza masculina que tem a si mesmo, João Ubaldo Ribeiro, e
principalmente o bigode de João Ubaldo Ribeiro, como modelo... — e o meu
interlocutor riu enquanto eu lia dois trechos cuja descrição poderia perfeitamente
corresponder à descrição do escritor na idade de trinta a quarenta anos: no
primeiro, o homem que a possuiu, e, no segundo trecho, a imagem do irmão, que
era também seu amante:
(i) ... Ele não era bonito, mas também não era feio. (...) E podia ser chamado
de feio atraente por outras pessoas, ou mesmo feio, ponto final. (...) Para mim ele
era bonito porque preenchia as condições para ser meu deflorador, é uma coisa
complexa, muito pessoal, é uma conjuminação de tudo o que você acha que
compõe uma pessoa e compõe você. Ele preenchia as condições objetivas e
emocionais, pronto, falava à minha neurose. Óculos de tartaruga, que ainda não
tinham entrado na moda como depois, magrinho no ponto certo, bundinha
fornidinha, voz bem modulada, sabia tudo de Penal e outros direitos, era
educadíssimo, era de esquerda — um must, nessa época —, sorriso lindo, uma
graça, pensando bem. Um jeito entre acanhado e sardônico, facilidade de falar
bem sem afetação, um rosto expressivo e franco e, óbvio, bigode. Não desses
bigodinhos ridículos, mas bigode cheio mesmo, bigode de homem macho. (A
casa dos Budas..., p. 62)
(ii) Eu era louca por meu irmão (...). Ele era lindo, parecia comigo, só que
326
Isa PESSOA, “O que é que o baiano tem?”, Leia, dez. 1989.
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mais bonito ainda, era grande como eu, tinha os mesmos lábios (...) um bigode
indizível, desses que descem pelas comissuras quase como o dos mongóis do
cinema, só que mais cheio e menos comprido, era a pessoa mais carinhosa que se
possa conceber, tinha um canto de olho enrugadinho como eu nunca vi em
ninguém, a voz só um tantinho rouca, mas forte, os pés enérgicos (...), aquele
sorriso entre maroto e tímido e no fundo resoluto (...), tinha uma inteligência
acachapante (...). (A casa dos Budas..., p. 93, realcei)
— O que não me parece muito óbvio — disse ele, retomando — é que
Ubaldo tenha realmente optado por criar uma situação ambígua entre ele e o seu
narrador, ou seus personagens, ou se não foi essa ambigüidade acidental...
— João Ubaldo Ribeiro deu o nome de “João” ao seu personagem dO
sorriso..., dando a ele não apenas um belo bigode, mas também manias e rotinas
que são suas. Deu ainda o nome de Hans Flussufer a outro personagem, desta vez
dO feitiço da ilha do Pavão, e refletiu nele duas posturas filosóficas bastante
recorrentes em si mesmo e em outros personagens, notadamente o padre
faroleiro.
327
Ouça uma declaração e em seguida um trecho de ficção — e li.
— Ribeiro, no sentido de córrego, em alemão, seria Bach. Como eu não sou
parente do compositor, apelei para o diminutivo, Flussufer. Portanto, Hans
Flussufer é João Ribeirinho, sou eu. Mas é só molecagem mesmo, pois em
comum eu e ele temos apenas o gosto por ficar “minhocando”, criando idéias.
328
Narrador em Hans: É, acreditava em tudo e talvez por isso não acreditasse
realmente em nada a não ser em Deus, mas não gostava mais de se ocupar de
problemas filosóficos, que antigamente ocupavam tanto de seu pensamento e
agora lhe pareciam circunscritos a duas ou três questões... (O feitiço..., p. 54)
— No caso do Diário do farol, ele fez diferente — continuei —: não deu
nome ao seu padre, nem fez dele qualquer descrição física relevante: “... você
talvez não haja notado, nem venha a notar por si mesmo: tenho, ao longo destas
páginas, sem mentir uma só vez, despistado minha identidade e pretendo
continuar a despistá-la da mesma forma” (Diário..., p. 199). Pôs na boca desse
327
— Eu poderia ainda citar, para permanecer dentro da ilustração das auto-referências, uma parte
da digressão que faz João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro acerca dos Pimentéis do Miséria e
grandeza do amor de Benedita. Deoquinha Jegue Ruço, um dos protagonistas do livro, também
tem, tal como João Pedroso, um bigode (à p. 87), sendo ainda, tal como Ubaldo, um Pimentel:
“Nas tremendas guerras e bravosas peripécias das quais é tão prodigiosamente abundante a
história da ilha, não houve Pimentéis que não se destacassem em cada uma delas (...). (...) E em
tudo isso estiveram os Pimentéis, sendo lícito asseverar que a História da ilha se confunde com
a deles, o que quer dizer que a História deles se confunde com a História do Brasil” (Miséria e
grandeza..., p. 29 e 31).
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padre muitas de suas próprias opiniões sobre alguns aspectos da vida, à exceção, é
claro, das opiniões mais perversas do personagem. Deu a esse padre, e também a
João Pedroso, uma densidade filosófica que às vezes assalta o próprio escritor, a
ponto de ele mesmo afirmar que o padre do livro “é muito diferente da minha
persona como cronista.
329
E as pessoas têm muita dificuldade em ver a diferença
entre um cronista relaxado e descontraído e um escritor com preocupações,
digamos, na falta de outra palavra, mais sérias”.
330
Observe que ele disse
“escritor”, e não “personagem”... Dotou esse padre da sua inteligência e da sua
cultura humanística e literária. Dotou ainda esse padre, o personagem Orlando e o
personagem João Pedroso de uma figura paterna semelhante, no tom, ao seu
próprio pai, embora desse seu próprio pai bastante diferente também, justamente
em nome da ambigüidade que deve prevalecer entre ficção e vida.
331
“... meu pai
não foi o pai monstro do livro”, disse João Ubaldo Ribeiro. Não, não foi, e é aí é
que está a graça, a graça da ficção. “... esse personagem tem muito a ver comigo
porque foi feito por mim”, diz ele. “Mas ao mesmo tempo tem pouco a ver porque
eu sou completamente diferente dele. Pelo menos eu acho que sou (risos)”.
332
— Ambigüidade que faz do Diário do farol e, em certa medida, dO
sorriso do lagarto, não uma autobiografia real — disse o meu interlocutor,
compenetrado —, mas, nas palavras de Ubaldo acerca de Sargento Getúlio, uma
autobiografia “fantasmagórica”...
— E recortada — completei, feliz com o que ele havia dito. — Os
momentos em que João Ubaldo Ribeiro mais se afasta de seus personagens são
328
Mànya MILLEN, “Uma ilha chamada Brasil”, O Globo, 22 nov. 1997.
329
— E acrescento aqui a observação de um jornalista, que diz: “[o] João Ubaldo Ribeiro, que
dialoga com os leitores sobre problemas cotidianos na coluna dominical do jornal O Estado de
S. Paulo, é apenas uma faceta do escritor. Se nas ginas do jornal ele prefere assuntos
prosaicos”, escreve Ubiratan B
RASIL, “em seus livros o autor revela, de uma forma sutil, uma
profunda erudição (...). Ubaldo adiciona aos seus escritos pensamentos de filósofos prediletos,
como Schopenhauer e Kierkegaard” (“Confissões de um padre amoral em Diário do farol”,
Jornal do Comércio, 31 mar. 2002
).
330
Cristiane COSTA, “Não vejo parentesco dos meus livros...”, Jornal do Brasil, 6 abr. 2002.
331
— E ainda acrescento, também em nota, o interesse de João Ubaldo pela biologia de seu João
Pedroso. Disse o escritor: “Uma vez, passei a noite em claro acompanhando o processo de
divisão de uma ameba. Uma coisa linda. Eu fazia minhas próprias culturas e descobri alguns
bichos não catalogados. (...) ... já tive um fascínio muito grande em olhar protozoários no
microscópio. Fui visto muitas vezes colhendo material (...) e devo até ter descoberto algumas
espécies, como o Baratinadus pitubensis” (“João Ubaldo faz hora extra na Ilha”, Tribuna da
Bahia, 6 nov. 1988
).
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3 - SETEMBRO FECHADO SOB O FAROL
190
aqueles que dizem respeito ao que fizeram eles de suas vidas, a partir dessa
infância relativamente comum.
— Hum, não sei, não sei... Quando você falou em “autobiografia
fantasmagórica”, pensei num relato de vida que oscile entre as duas condições
expostas por Javier Marías, dê cá o livro — e ele começou a estudá-lo. — O padre
do Diário... e também João Pedroso podem corresponder à formula quem eu
poderia ter sido mas não fui, o que faz Ubaldo aproximar-se dos personagens; ou
a fórmula quem não é Ninguém é portanto é parecido comigo,
333
condição que faz
os personagens se aproximarem do escritor.
— A segunda fórmula não me parece apropriada, dadas as fortes
características dos dois personagens, o padre e João Pedroso, que estão longe de
poder adaptar-se a qualquer perfil...
— Será? João Pedroso é um dos mais angustiados personag...
— Sim, você tem razão. João Pedroso funciona, em vários momentos dO
sorriso do lagarto, como um eloqüente fantasma daquilo que João Ubaldo poderia
ter sido caso não tivesse levado adiante sua profissão de escritor. A fórmula quem
eu poderia ter sido mas não fui encontra aqui, nesta homologia — eu disse —, a sua
explicitação... E repare que o fundo da discussão é o mesmo das discussões presentes
no Diário do farol: o fundo teológico associado à traição pela negação do dom...
334
(i) — Por que Deus não redime Satanás? Porque é impossível redimir aquele
que peca por si mesmo [disse João Pedroso], pela sua própria degradação
espiritual, aquele que teve a luz, o conhecimento e a oportunidade e, por si
mesmo, lançou-se ao pecado, à inimizade com Deus e, conseqüentemente, com o
Bem. (...)
— ... você está se deixando levar por um desses seus arroubos de oratória
desvairada [disse o padre Monteirinho], você já bebeu hoje?
— Não, não bebi. (...) Meu pecado, você sabe (...), é o pecado de trair meu
dom, não fazer nada do que posso e devia fazer, e não desempenhar minha
parte na vida e na evolução, é trair o Criador e a Criação. E isso não é fruto de
uma tentação, mas de mim mesmo. Nasci aqui, saí daqui, estudei, me acovardei,
herdei umas coisas, voltei, me apaguei, não quero, não posso, não faço. Você
podia me dizer: plante uma árvore, escreva um livro, faça um filho. Mas eu não
nasci para plantar árvores, nem para escrever livros e sou praticamente donzelo
332
Felipe ARAÚJO, “O diário da maldade”, Diário do Nordeste, 28 mai. 2002.
333
“Quem escreve”, op. cit., p. 90.
334
— A mesma discussão pode ser vista ainda nas digressões de outro personagem dO sorriso do
lagarto, o feiticeiro Sebastião Boanerges da Conceição, vulgo Bará da Misericórdia, às páginas
164 a 166, também angustiado ante a perspectiva de trair o dom que Deus lhe deu.
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191
(...). Eu nasci para estudar, investigar, descobrir, interpretar. Mas não faço nada
disso e com certeza é esta a razão por que sinto o Mal me rondando... (O sorriso
do lagarto, p. 129-131)
(ii) — Eu não quero ser uma pessoa dissidiosa, ruim, que traísse, porventura,
o dom que Deus lhe tenha dado. Se eu penso que sei escrever, tenho de usar
esse dom. Eu tenho a vaga idéia de que haja um problema teológico gravíssimo.
Quem não acredita em Deus, provavelmente, vai achar o meu argumento ridículo
pela premissa. Mas mesmo as pessoas que não acreditam têm uma noção de que
não é possível que essa ordem percebida seja uma ordem arbitrária. Desisti de
querer saber para onde vamos, mas eu vou fazendo a minha tarefa. É como se
agora fôssemos num navio onde houvesse um cozinheiro, um outro não sei o quê,
e eu fosse o foguista. Não sei para onde o navio vai, não sou capaz de dar um
palpite na rota do navio, não conheço navegação. Então, o melhor que posso
fazer é fazer o meu serviço de foguista direito. Eu só sei fazer isso: vou ser um
foguista. Então, quero ser o melhor foguista possível.
335
— É impressionante a semelhança das angústias... — disse ele, e sacudiu a
cabeça, como se chacoalhasse as tensões. — O que é importante nessa nossa
discussão, ou, por outra, o que salta aos meus olhos, como já percebi, não é o
quanto ou quando Ubaldo, João Pedroso e o padre se superpõem, mas o modo
como olham para a própria vida — disse o meu interlocutor, aparentemente
inspirado. — No caso específico de Ubaldo e do padre, eles olham para as
próprias vidas como se olhassem para um texto; olham-na escrita ou por escrever,
mas sempre de modo retrospectivo.
— O quanto ou quando se superpõem é igualmente importante porque essa
oscilação nos remete mais uma vez para o momento da escrita — interrompi-o. —
Ouça aqui, em referência ao Diário...: “Não vou dizer que psicografei o livro”,
disse João Ubaldo Ribeiro, “mas vivi o personagem enquanto escrevia”.
336
E um
jornalista perguntou a ele como foi a experiência de se colocar na pele de um
narrador psicopata e se aquilo de certa forma o afetou. “Às vezes, afetava, porque
eu tinha que escrever em primeira pessoa. E via uma certa repulsa”, diz ele. “Mas
também é como se eu fosse um ator”.
337
— Você se referiu ao momento da escrita e mais uma vez penso no Javier
Marías e em como ele, como escritor, guarda semelhanças, não temáticas ou
estilísticas, mas teóricas, com Ubaldo.
335
Giovanni RICCIARDI, “João Ubaldo Ribeiro”, op. cit., p. 370.
336
Luís Antônio GIRON, “Ubaldo enfrenta o diabo”, Cult, mai. 2002.
337
Roberto NICOLATO, “A personificação do mal”, Gazeta do Povo, 8 abr. 2002.
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192
— João Ubaldo Ribeiro não teoriza sobre a sua escrita... “As discussões
literárias me entediam”, diz ele numa entrevista.
338
E escreveu ainda, numa
crônica, sobre a sua dificuldade em participar de determinadas conversas havidas
em festinhas e reuniões. — E li:
... sou aquele, na festinha ou na reunião, que é visto fingindo vasta admiração
por um quadro pendurado na parede (...). (...) Adianta pouco, porque sempre
aparece alguém para mexer na ferida.
Ah, gosta do Scliar, heim? — diz o alguém que, nestes casos, costuma ser
um senhor gordo, alto e de voz tonitruante.
— Sim, sim — digo eu. — O Scliar...
Ah, eu também gosto muito — fala o senhor gordo, aproximando-se do
quadro com ar apreciador. — Ele tem uma sutileza estranha, eu diria uma
sutileza agressiva, você não acha?
Acho sim, acho. Aliás, sinceramente, eu só sabia da atividade dele como
escritor, ele é meu amigo, gosto muito, gosto muito.
O senhor gordo me olha fulminantemente. Noto que disse alguma coisa
errada. Tomo um gole de uísque, desvio a vista (...).
— O senhor está falando do Moacyr. Eu estou falando do Carlos. O pintor!
(...) Restam os passarinhos e os peixes (...) Quem sabe posso juntar-me àquela
rodinha onde estavam discutindo futebol? Literatura nem pensar.
339
— Eu percebo, isso sim, o quanto Ubaldo insiste em se colocar na posição
do “escritor que não teoriza”, do escritor que simplesmente escreve e que pode
dar-se ao luxo de se manter alheio ao que ele chama, de maneira genérica, de
“discussões acadêmicas”, o que demonstra, sem dúvida, que ele ainda se vale de
uma imagem já bastante anacrônica do que venham a ser essas teorias literárias —
disse o meu interlocutor, um pouco indignado. — Ubaldo acaba se revelando um
bocado preconceituoso com o que chama de “discussões acadêmicas”.
340
— E ele,
diante do meu silêncio, retomou: — Ubaldo não teoriza, mas Javier Marías, sim, e
quando o faz não podemos deixar de pensar em Ubaldo — e ele me deu mais uma
de suas surpresas... — Ambos têm uma relação com a escrita muito próxima com
338
Rogaciano LEITE FILHO, “Sargento Getúlio, e o Nordeste vivo”, O Povo, 21 jul. 1982.
339
“Mas não no sul”, in Sempre aos domingos, op. cit., p. 45-47, realcei.
340
Eu fiquei em silêncio me lembrando das frases anti-acadêmicas do meu objeto de estudo...
Disse ele em 1986: “Esse negócio de processo criador é coisa de crítico” (Beatriz C
ARDOSO,
“O que sei é que começo pelo título”, Tribuna da Imprensa, 11 ago. 1986); e disse em 1987:
“Proscrevem a obra a um pseudoreinado da razão e somente a razão vai dar palpite. Aí você
vira o idiota da objetividade e acaba produzindo uma coisa estéril, que não leva a ponto
nenhum, porque só a razão não adianta” (Marcos G
USMÃO & Alberto FREIRE, “Viva o povo
brasileiro pra inglês ler”, A Tarde, 24 abr. 1987); e disse em 1989: “A teoria cadaveriza as
coisas” (Alcino L
EITE NETO, “O paraíso perdido”, IstoÉ Senhor, 15 nov. 1989).
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a relação que se tem com a vida, no sentido de que não se tem, com nenhuma das
duas, tanto poder de intervenção... “Não podemos comportar-nos (...) em função
de um final conhecido (...), devendo (...) esse final (...) ater-se ao já vivido (...),
sem que isso possa apagar-se ou (...) sequer esquecer-se”,
341
diz Marías, que não
muda e nem reescreve a própria escrita. — E ele continuou a ler:
(i) Javier Marías:
... Não apenas não sei o que quero escrever, nem onde quero chegar, como não
tenho um projeto narrativo que possa enunciar nem antes nem depois de os meus
romances existirem, nem sequer sei, quando começo um, de que vai tratar, ou o
que vai acontecer nele, ou quem e quantos serão as personagens, já para não falar
em como terminará.
342
(ii) João Ubaldo Ribeiro:
— ... não sei planejar estrutura de livro nenhum...
343
— ... não sei de onde surgiu a história.
344
— Eu queria escrever um romance cujo enredo, sabia vagamente, seria um
faroleiro solitário e mal-humorado.
345
— Cheguei a pesquisar sobre o quotidiano de um faroleiro, os afazeres da
profissão. Mas acabei não aproveitando minhas anotações porque fui atropelado
pela narrativa.
346
— Vou utilizar isto — disse eu, e voltei à fórmula de Marías. — A
fórmula quem eu poderia ter sido mas não fui faz João Ubaldo Ribeiro aproximar-
se do personagem justamente porque deixa exposta a relação que ambos mantêm
com a informação privilegiada: uma relação que é sempre de poder, no caso do
padre, e também de poder, mas não só, no caso de João Ubaldo Ribeiro. Refiro-
me, é claro, à informação como sendo duas coisas: esse poderoso arsenal cultural
de ambos e um certo conhecimento da natureza humana, e não aos aspectos
específicos e menores do enredo do livro, relacionados ao contexto da ditadura no
país etc. etc... O padre, em relação ao escritor e à personagem CLB, dA casa dos
Budas..., será sempre aquele que se utilizou da informação e desse certo
conhecimento de uma maneira, ao passo que João Ubaldo Ribeiro e a pervertida
341
Javier MARÍAS, “Vaguear com bússola” (p. 93-96), in Literatura e fantasma, op. cit., p. 94.
342
Id., p. 93.
343
Beatriz MARINHO, “João Ubaldo... — profissão: escritor”, O Estado de S. Paulo, 30 jun. 1990.
344
Ubiratan BRASIL, “Ubaldo revela detalhes da crueldade religiosa...”, O Estado de S. Paulo, 16
mar. 2002.
345
Luís Antônio GIRON, “Ubaldo enfrenta o diabo”, Cult, mai. 2002.
346
Id.
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194
CLB se utilizaram da mesma informação e do mesmo certo conhecimento, só que
de outra maneira. Ele, que não pode reescrever a sua vida, porque ninguém pode,
reescreve-a através de sua ficção, e através de sua ficção ele retorna no tempo.
— Hum... — fez ele, e eu não soube interpretar aquele “hum”...
— A biblioteca é a mesma, o ritual de se sentar todos os dias para escrever
também é o mesmo, tanto para o escritor disciplinado quanto para o obstinado
faroleiro e para a memorialista CLB, dA casa dos Budas... A vida a ser contada é
que, na escritura, se transforma em outra, porque o personagem, na reescritura,
também se transforma em outro...
— ... transforma-se naquilo que Marías chama o “Outro-além-de-mim”.
347
— Bom fecho — disse eu. — Estamos sintonizados. — E, enquanto o meu
interlocutor nos preparava mais café, li.
(i) ... não vou reescrever nada do que já está no papel, nem fazer emendas,
cortes ou outras alterações. Apenas não vou prosseguir contando minha vida e
peripécias pouco dignas de menção, no seminário maior. Não há nada de notável
nelas e talvez lograsse enxergar nelas matéria para escrita apenas um romancista
necessitado de encher papel e espichar para quinhentas páginas o que podia
contar em cem ou menos. (...) Não creio nem mesmo que vá falar sobre o farol
onde hoje me encontro e que uso para título dessas páginas. Na verdade, elas são
um diário mesmo, pois me sento aqui todas as tardes, às vezes à noite também,
para escrever. E não deixa de ser o diário de um farol, porque o farol, já disse eu
no começo do que acabo de reler, conota uma infinitude de imagens e símbolos,
dos mais triviais aos mais escondidos no fundo da consciência. Quem quiser traga
à tona os seus, se desejar ou puder. (Diário..., p. 182-183, realcei)
(ii)Não gostaria de reescrever nada. Gostaria apenas de ter tido um
melhor relacionamento com o meu pai. Mas, para isso, eu teria que reescrever o
meu pai. (...) No entanto, eu não poderia perceber isso aos 25 anos, por exemplo.
Se eu pudesse voltar a essa idade, com o que sei aos 56, eu seria um homem
perigosíssimo.
348
(iii) ... Eu na realidade não tenho saudade de nada, a não ser do auge da
juventude madura, mas eu queria ser jovem trazendo na cabeça tudo o que
aprendi até hoje, aí não podia, eu ia ser ditadora do mundo. (A casa dos
Budas..., p. 36, realcei)
— O segundo trecho disse João Ubaldo Ribeiro numa entrevista de 1997...
— Já do alto de seu farol antecipado... Um farol bastante diferente do farol
do Diário... — disse ele, voltando com um café novo.
347
“Quem escreve”, op. cit., p. 92.
348
Márcio VASSALO, “A palavra é imortal”, Lector, 1997, realcei.
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195
— Sim, porque cada um, seguindo os preceitos do personagem, deve
possuir e manter o seu farol.
— O mar, no entanto, é sempre o mesmo — disse ele, fazendo cara de
poeta. E eu, ansioso por atracar em terra firme, firme mas disputada a tiros, peguei
o romance Vila Real, não sem antes provar daquele novo café.
* * *
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4
____________________________________
O PEQUENO GRANDE MUNDO
DE ARGEMIRO MEIA-LUA
O MUNDO DA CABEÇA DO NARRADOR
349
Sendo não somos, disse e se admirou de
que sua cabeça se enchia de clareza e de
que todas as palavras se apresentavam.
João Ubaldo Ribeiro, Vila Real
— Um dos aspectos mais importantes do romance Vila Real, de 1979 — e
abri o livro —, é a transposição que realiza, para dentro de seu ambiente ficcional,
de uma discussão bastante cara aos escritores, críticos de literatura, professores e
todos aqueles preocupados com o fenômeno literário em sua dupla condição de
autonomia e identificação diante de outros fenômenos culturais. É uma discussão
que se alimenta, antes de tudo, da necessidade, cada vez maior, de se colocar entre
parênteses aquilo que até então se revelava fora de dúvida: a literariedade da
literatura, ou, para irmos além: a artisticidade da literatura.
— E, se fôssemos ainda mais além, a artisticidade da arte... — disse ele.
Sim. Vila Real dá vida a esse debate através de seus próprios elementos
ficcionais, localizados justamente na formação dos discursos do narrador e do
protagonista. Vila Real — continuei — é um romance sobre a guerra entre o povo
de Argemiro e o povo de Genebaldo e Godofredo. É também uma guerra entre o
povo pobre daquela região e os grandes interesses capitalistas sobre a terra, que
não é, de antemão, de ninguém, mas daquele que a ela chega e nela se instala.
Ouça: “... um papel não poderia dar a ninguém direito à terra, porque esta era de
quem chegava até a sentir seu cheiro à distância e com ela misturar-se pelo trato
349
— Este capítulo — eu disse a ele — constitui, em parte, a reformulação e o desenvolvimento da
idéia central de um artigo que escrevi, já dirigido à tese, e cujo ingresso acabei propondo para
integrar a fortuna crítica da obra de João Ubaldo Ribeiro, publicada pela editora Nova Aguilar
(Juva B
ATELLA, “A fala do chefe: discurso e legibilidade no romance Vila Real”, in Zilá
BERND (org.) & OUTROS, João Ubaldo Ribeiro — Obra seleta, op. cit., p. 105-118.
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4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA
197
de todo dia. E nada o papel tem a ver com a terra” (Vila Real, p. 36). Mas
Argemiro e sua gente perdem a terra: para o povo de Genebaldo e Godofredo e em
seguida para uma companhia internacional de mineração, que os expulsa na virada
da noite, derrubando com suas máquinas de extração as casas, as roças e as cruzes
do cemitério, agora totalmente revirado e profanado. Vou ler:
... [Argemiro] Lembrou que a única terra que todos os homens do mundo
estavam dispostos a dar-lhes era a de suas covas. Mas assim mesmo, quando os
donos das terras desejavam, até as covas dos defuntos eram tomadas de volta,
como aconteceu em Vila Real, quando a Caravana Misteriosa [a companhia de
mineração e seus tratores quebradores de pedras] pôs suas máquinas contra o
cemitério e de lá arrancou todos os ossos e relíquias e matou a memória de
muitos. Estes não tinham pai nem mãe nem ossos nem almas por quem rezar,
nem onde botar uma flor, nem sabiam mais quem eram. (...) Até mesmo os gritos
dos que imaginavam os parentes e filhos desenterrados e para sempre vagando
(...) não conseguiram que eles detivessem as máquinas. (p. 24, 32)
— Argemiro e os seus fogem então para mais longe, assentam
acampamento num novo lugar e esperam por mais uma guerra contra o povo de
Genebaldo e Godofredo, que os quer bastante longe...
— ... ou bastante mortos — disse o meu interlocutor, e seguiu, com o livro
aberto. — Vou ler o primeiro período, quero participar mais.
Assim que Nicoto trouxe a notícia de que os homens de Genebaldo tinham
armado suas tendas por todos os lados de Vera Cruz e agora as mulheres se
persignavam nas encruzilhadas, rezando pelas vidas dos filhos e maridos,
Argemiro previu que o terror se espalharia nos corações dos que estavam ali
acampados. (p. 9)
— Logo com esse primeiro período do romance podemos perceber três
assuntos essenciais para a história — antecipou-se o meu interlocutor, querendo
entrosar-se com o livro —: o recebimento de uma notícia ruim, a capacidade do
chefe de ver à frente e, por fim, a natureza dessa visão. Caberá a Argemiro, como
chefe que é, tomar as decisões, exercer o comando, dar proteção, ministrar
ensinamentos e distribuir boas palavras. Cabe-lhe também, antes de tudo,
preparar-se para a guerra, não é? — E sorriu.
— Sim, uma guerra que ele não entende e para a qual não encontra
sentido. Uma guerra só tem sentido se também empresta sentido à vida que
guerreia. Uma vida sem sentido não merece uma guerra. Argemiro conseguirá
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4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA
198
compreender a guerra e ser o verdadeiro chefe de sua gente quando encontrar, por
si, uma razão para a vida, aquela vida sem razão aparente de ser. Mas nosso
assunto é a guerra, e são também os discursos para a guerra. Para tanto, é
importante que se descrevam as representações do poder no interior da história e,
principalmente, à volta dos discursos do narrador sobre o seu protagonista, o
personagem Argemiro, naturalmente um líder e, ao mesmo tempo, incapaz de
acreditar em si mesmo como tal.
— E por que não à volta dos discursos do próprio protagonista? — disse
ele, e me entregou o livro.
— Aqui mora o um curioso aspecto narrativo do livro. Argemiro não fala
muito, embora pense o tempo todo. E é pela voz do narrador que conheceremos
esse homem de poucas palavras em sua trajetória rumo ao mundo das palavras.
Basta dizer que é pela voz do narrador que Argemiro vai dar-se conta de que está
em profunda paixão por uma das personagens, a mulher Ernesta, assunto das
páginas 130 a 135, inteiramente narradas em discurso indireto e indireto livre... —
e entreguei a ele o livro. — Vamos, em primeiro lugar, tentar compreender o
formato que assumirá a relação de Argemiro com um carisma que ele não crê
possuir e com um poder do qual ele não se julga merecedor. Em seguida, podemos
fazer a conexão de Vila Real com um dos três mapas do poder de que se serve o
antropólogo Clifford Geertz
350
para analisar de que modo se dá a sustentação dos
soberanos frente à sociedade que os entronizou.
— Você está correndo... Você disse há pouco que Vila Real entra numa
discussão cara aos intelectuais, uma discussão acerca da literariedade da
literatura... De que modo entram, nessa história, o narrador, Argemiro e as suas
dificuldades para falar? — quis saber o meu impaciente interlocutor.
— A pergunta acerca das razões que levaram Argemiro ao poder e das
razões que lá o mantêm é uma pergunta cheia de espelhos enganadores e provações.
Por quê? A história de Argemiro é a história do transcurso de uma incumbência: a
formação da legitimidade de seu comando junto a seu povo, uma legitimidade
somente proporcionada através de uma conquista bastante específica: a conquista da
própria fala, das próprias palavras, do próprio discurso. E, para tanto...
350
Referência ao texto “Centros, reis e carisma: reflexões sobre o simbolismo do poder” (p. 182-
219), in O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa, Petrópolis, Vozes, 1997.
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199
— Já entendi... E, para tanto, para a conquista da própria fala, Argemiro
terá de realizar uma superação: terá de despojar o seu discurso, ou aquele discurso
ideal que ele imagina para si, chefe que é, ou que deveria ser... despojar aquele
discurso ideal de todos os seus valores intrínsecos, os valores intrínsecos de um
discurso clássico de poder, para então transformá-lo numa fala que se apresente e
se sustente como uma... uma... — e ele ficou me olhando.
— ... mediação cultural. Eu não gosto muito dessa expressão — confessei —,
mas ela aqui é a única coisa que nos resta... E o livro vai tornar bastante explícita essa
relação entre Argemiro e o seu narrador, entre o silêncio do protagonista e a
inevitável, inevitável porque constituinte da própria forma do romance, eloqüência do
narrador, eloqüência que vamos voltar a encontrar num romance bem mais à frente: o
Miséria e grandeza do amor de Benedita, publicado em 2000.
— É porque Argemiro não fala que muito falará o narrador... E, pelos
vistos, também Benedita e seu finado marido, Deoquinha Jegue Ruço... Eu li esse.
E é por muito falar o narrador que Argemiro permanecerá silencioso...
— Sim, são eloqüências excludentes. Agora volto à sua questão. Silviano
Santiago, em seu texto “Democratização no Brasil — 1979-1981 (Cultura versus
Arte)”, faz uma pergunta. Se parafrasearmos essa pergunta, teremos a seguinte
variação: “Quando é que o discurso de Argemiro deixa de ser literário e
sociológico para ter uma dominante cultural e antropológica?”.
351
Substituindo
“discurso de Argemiro” por “arte brasileira”, e realizando as devidas
concordâncias de gênero, chegaremos à frase de Silviano Santiago...
— Eu faria ainda uma outra pequena alteração: quando é que o discurso de
Argemiro deixa de pretender ser literário e sociológico para ter uma dominante
cultural e antropológica? E como não poderiam os personagens de Vila Real estar
a falar de arte — continuou o meu interlocutor —, porque, afinal, não é de arte
que se está a falar, mas de comida e terra, e não é por ela que se está a guerrear,
mas por comida e terra, falar-se-á de poder e de discursos de poder. Tal é a
superação necessária.
351
P. 11-23, in Raul ANTELO, Maria Lúcia de Barros CAMARGO, Ana Luiza ANDRADE & Tereza
Virgínia de ALMEIDA (orgs.), Declínio da arte, ascensão da cultura, Florianópolis, Letras
Contemporâneas e
ABRALIC — Associação Brasileira de Literatura Comparada, 1998, p. 11.
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200
— A Argemiro? Sim. Aliás, gostei da sua mesóclise... E eu pretendo —
continuei, animado — que o meu capítulo sobre Vila Real, lá na tese, seja uma das
maneiras de ver representada essa superação.
— A outra maneira, claro está — concluiu, com evidente vontade de entrar
no texto... —, constitui a própria história do romance Vila Real, não é? Vamos a ela.
4.1. O REI ESTÁ SEMPRE NU
— Não. Vamos, antes, entrar no texto de Clifford Geertz, “Centros, reis e
carisma: reflexões sobre o simbolismo do poder”, que nos vai propor de imediato
uma alternativa de reflexão acerca do que pode significar a qualidade do carisma.
— E eu, retirando mais um livro das nossas infinitas estantes, li: — “... um
fenômeno cultural ou um fenômeno psicológico?”; “... um status, um estímulo ou
uma fusão ambígua dos dois”?
352
— Eu me lembro de que Weber foi um dos que...
— Sim, sim — interrompi-o, para variar. — Foi a sociologia de Weber
que reconheceu no problema a sua merecida complexidade, isso diz Geertz, e ele
chama a essa complexidade weberiana polifonia, atribuindo-lhe não apenas o
mérito de salvar a questão do simplismo, mas também o defeito de torná-la indócil
para o manejo teórico.
— Weber é um pensador difícil... Mas por que ele a tornou “indócil”?
— Uma das conseqüências dessa “intangibilidade crônica”, para responder
à sua pergunta com um termo de Geertz, revela-se sobretudo na preponderância
do aspecto psicológico sobre o aspecto cultural; aspecto psicológico entendido em
sua faceta degradada e psicologizante.
— Mas não é Weber o responsável pelo maior peso dado ao aspecto
psicológico da discussão sobre o carisma, pois não? Não ele, que...
— Não, não ele... Para Geertz, trata-se de uma redução operada pelas
leituras que se fizeram de Weber — e citei —, “... redução da valiosa complexidade
weberiana a clichês neofreudianos”.
353
A partir dessa leitura degradada, que para
352
Op. cit., p. 182.
353
Id., p. 183.
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201
Geertz é típica desses “tempos mais recentes e menos heróicos”,
354
toda a força do
carisma derivaria não daquele que o possui mas de uma determinada configuração
social caracterizada por uma desordem psicopatológica a dar vazão ao aparecimento
desses seres de brilhosa personalidade...
— O brilho da personalidade devendo-se aqui muito mais, por contraste, à
opacidade do conjunto do que a alguma característica genuinamente
singularizadora... — disse o meu interlocutor, e muito bem.
— Sim, e isso pode resultar num esvaziamento do conceito de caráter,
agora atrelado ao estabelecimento e à permanência de uma específica condição
social com todas as características de uma cultura de massa. Geertz, em meio a
tantas idéias, destaca uma necessidade: definir “a razão pela qual alguns seres
humanos vêem transcendência em outros, e exatamente o que significa esta
transcendência”.
355
E Geertz cita Edward Shils — continuei — como um
estudioso que procurou revitalizar aspectos adormecidos do complexo weberiano
de carisma: entre eles a possibilidade de uma nova interação entre a coletividade e
o indivíduo, representado este pelo seu valor simbólico e aquela através de seus
centros ativos da ordem social. Tais centros... Escute:
... Tais centros, que “não têm qualquer relação com geometria e muito pouco
com geografia” são, em essência, locais onde se concentram atividades
importantes; consistem em um ponto ou pontos de uma sociedade, onde as idéias
dominantes fundem-se com as instituições dominantes para dar lugar a uma arena
onde acontecem os eventos que influenciam a vida dos membros desta sociedade
de uma maneira fundamental.
356
— E mais tarde, no texto do próprio Geertz — segui —, há a exposição
dos centros e dos momentos do poder onde tanto a geografia quanto a geometria
ocupam posição decisiva para a permanência do poder como tal.
— Muito bem, eu já percebi que você leu muito bem o Geertz, mas de que
maneira podemos iluminar o romance Vila Real com as peculiaridades do
raciocínio de Shils, ou de Geertz? — e ele cruzou os braços.
354
Id., p. 182.
355
Id., p. 183-184.
356
Id., p. 184.
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— Ora, Argemiro não se sente a priori chefe de povo nenhum. Falar de
uma chefia a priori significa falar de uma chefia inata; significa falar de um
carisma que então vem a resultar, pragmaticamente, em efetivo comando.
Argemiro não se considera naturalmente um chefe até o exato momento em que
ele e seu povo se vêem desprovidos de um centro para o giro da ordem social.
— É justamente quando não há mais nada ao redor, não há terra nem
comida nem armas, que Argemiro é alçado à condição de líder, não é?
— Sim. Geertz faz referência, em seu texto, às estruturas simbólicas de
dominação que, em determinadas sociedades mais complexas, se tornam
extremamente palpáveis e evidentes, deixando o poder, digamos assim, exposto à sua
máxima visibilidade. Ouça — e li —: “... a visibilidade é tanta que acaba deixando a
descoberto aquela verdade que todo o misticismo do cerimonial da corte deveria
supostamente esconder — ou seja, que a majestade não é inata, e sim construída”.
357
— E que o rei, afinal, pode estar nu... — disse ele.
— O rei está sempre nu! — e acrescentei a uma frase de efeito uma
segunda frase de efeito. — Quando, em Vila Real, vemos a majestade de
Argemiro se configurando justamente a partir da ausência de uma estrutura
palpável de poder, de ritos, de cerimoniais e de cultos legitimadores, tendemos a
atribuir à sua liderança um caráter mais inato do que construído.
— Mas isso pode ser falso... — disse ele.
— Sim, porque não se pode, por outro lado, permanecer por muito tempo
na idéia da chefia congênita. Em Vila Real, será a ausência de um centro para a
comunidade, uma ausência provocada do modo mais brutal, através da expulsão e
do morticínio, o fator decisivo para a instauração da necessidade de um chefe...
— Um chefe que passará a trabalhar numa espécie de vácuo geográfico?
— Sim — e abri o livro. — Ouça:
... Primeiro, moraram na parte melhor da Jurupema, que não se chama
Aratanha. Corridos, moraram em Vila Real. De lá, buscaram Aratanha, quando a
Caravana Misteriosa fez com que eles saíssem de onde tinham plantado roças e
pensado em sossegar. Se voltavam agora a Vila Real, cumpria dizer que não
existia esperança de que os homens da Caravana Misteriosa (...) quisessem que
eles ficassem ali. (p. 24-25)
357
Id., p. 187.
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— A esse vácuo geográfico — continuei — ele vai dever a razão de ser de
seu comando. Toda a luta de Argemiro, no entanto, será o trespasse de sua
condição de chefe. Para ele, tudo estará bem quando não precisar agir como um
chefe, porque então seu povo terá um lugar para viver, já que ninguém “pode
habitar uma estrada nem tampouco nela criar filhos” (Vila Real, p. 37). Um lugar
para o restabelecimento da ordem social e a figura de um chefe vão aqui
constituir, no entendimento de Argemiro, elementos excludentes.
— Você chegou a atribuir à liderança de Argemiro um caráter inato..., e isso
equivale a estarmos aqui falando, de certo modo, do carisma de Argemiro, não? E
no entanto ele mesmo nega a sua liderança.... Mas o que fazer então do carisma?
— “O carismático” — e citei Geertz — “não é necessariamente dono de
algum atrativo especialmente popular, nem de alguma loucura inventiva; mas está
bem próximo do centro das coisas.”
358
O centro das coisas em Vila Real é a
guerra, e mais nada. Estivesse o povo de Argemiro em condições de estabilidade,
outras áreas da vida social poderiam emancipar-se, ganhando evidência e
comando, como a agricultura, a religião ou a arte do artesanato. Argemiro, nesse
caso, acredita ele, não teria de suportar o peso do comando, uma vez que ele não
seria chefe de coisa alguma.
— Mas, por razões que ele mesmo não consegue entender, ele constitui,
mesmo assim, uma referência para a sua gente... Ouça — e o meu interlocutor leu
um trecho de Vila Real —: “O senhor (...) fala com sabedoria”, diz-lhe o
combatente Alarico, “como podia falar meu próprio pai. Muitas vezes ele me
disse que sua voz era a de mais juízo entre todos os que viviam na Jurupema (...),
que sua força era conhecida e sua idéia respeitada” (p. 22).
— Sim. Alarico está a expor o que seria o carisma de Argemiro, ou a sua
parte visível..., porque o romance, em sua grande parte, acontece apenas na cabeça
de Argemiro e na fala do narrador, que expõe, para o leitor, o pensamento de seu
principal personagem. E ainda acrescento: Geertz diz que o carisma não
necessariamente deve sua aparição e seu desenvolvimento à extravagância de uma
condição emergencial. O carisma deve ser entendido como parte da normalidade
quotidiana da vida social.
359
Argemiro, que tem o carisma...
358
Id., p. 184.
359
Id., ibid.
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— Já entendi. Argemiro, que tem o carisma, embora nele não acredite, não
crê que esse carisma deva ser convertido em chefia permanente, pois somente um
povo em guerra, pensa ele, precisa de um chefe. E...
— Sim — retomei —, e é por não acreditar na transcendência exclusiva de
seu carisma que Argemiro, sob hipótese alguma, será tentado a transformar seu
poder em algo vitalício ou mesmo totalizante. Um dos principais problemas do
personagem Argemiro...
— Não tivesse ele problemas, não seria ele um herói ou, quando menos,
um chefe...
— Sim, sim. Um de seus problemas é justamente a sua incapacidade para
reter somente para si a aura e o produto dessa transcendência, uma transcendência
que ele acredita possuírem todos, e não apenas ele, ou, ainda, muito menos ele.
Argemiro espatifa então a idéia de transcendência e seu corolário imediato, a
chefia, e espalha essa idéia entre os de seu povo. Ouça, e observe que quem está a
falar é o narrador; Argemiro só pensa: “Como trazia também sob seu comando as
mulheres e as crianças (...), Argemiro pensou com grande melancolia que todos
eles teriam razão se, ao receberem a notícia, decidissem não mais haver motivo
ou sustança para lutar” (p. 11, realcei). Argemiro, que não se sente um líder, não
questionaria uma suposta desobediência às suas ordens.
— E nem mesmo consegue agir como um líder? Refiro-me à encenação do
poder...
— Nem assim. Argemiro não consegue nem mesmo operar, ainda que
minimamente, essa encenação do poder de que foi revestido pelo seu povo: tendo
recebido a notícia de que, brevemente, seriam todos atacados, Argemiro sobe ao
topo de uma pedra. Conforme revela o narrador, quase a todo o tempo em
discurso indireto livre e, portanto, quase a todo momento por dentro da cabeça de
seu personagem, Argemiro subiu à pedra “mais para ficar sozinho do que para
sopesar qualquer grande questão” (p. 10).
— Ou, poderíamos completar, para simular que sopesava qualquer grande
questão... — observou ele, apontando-me a página 73: “... pôs a perna direita para
a frente em cima de uma pedra e pensou em botar a mão no queixo (...). Ora, isto é
hora de pensar na posição, se isto é hora de pensar nessas perfumarias”.
— Sim, bem citado. Há, no entanto, uma outra modalidade de carisma que
funcionará muito bem através do acionamento de uma qualidade oposta àquela de
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que fala Geertz. À proximidade dos centros ativos da ordem social pode-se
contrapor a sua ausência, uma ausência que será tanto mais carismática quanto
mais cercada de incompreensão e imprevisibilidade. A organização social que se
observa no romance Vila Real é toda ela marcada pela ausência: ausência de um
lugar para se assentar a vida, ausência de um chefe, ausência de previsões e
provimentos, ausência de grupos de poder rivais localizados internamente,
ausência, enfim, de centros ativos da ordem social. Uma sociedade da ausência.
— Mas você disse que o centro das coisas em Vila Real é a guerra...
— Sim, eu disse, é verdade. O único centro ativo da ordem social é a
guerra. Quando Argemiro e seu povo se vêem perdidos e bastante próximos de um
segundo ataque por parte da gente inimiga de Genebaldo e Godofredo, surge dos
matos aquele que é conhecido como o que não existe, “o Filho de Lourival”,
alcunha sob a qual se revezam quatro homens, todos a responder pelo nome “o
Filho de Lourival”. Ouça:
... esse Filho de Lourival aparecia e desaparecia com petrechos de guerra e de
amedrontamento, arremetido pelos ermos e pelos cerrados e pelos montes. Há
quem diga, falou Argemiro (...), que ele é uma assombração, indo e voltando
igual a luz de cemitério e que não tem nome. (p. 59)
— Se o “carisma é sinal de envolvimento com os centros que dão vida à
sociedade”
360
— continuei, citando —, e se tais centros, no caso de Vila Real, se
resumem à guerra, o carisma daqueles conhecidos como “o Filho de Lourival”
nascerá de sua relação com a guerra iminente.
— Mas não só...
— Não só... Todo o magnetismo que os tais homens assim chamados “o
Filho de Lourival” irão exercer sobre Argemiro e todo o carisma que se desprenderá
de suas pessoas serão devidos à sua familiaridade com a guerra, sim — eu disse —,
mas também à sua condição fugidia de homens raros. Ouça de novo:
... quando aparece o Filho de Lourival, nunca se diz o nome que traz de pia,
nem qualquer outra informação. Por esta razão, quando ele vem, explica que não
existe. (...) ... você pensa que eu existo? Você se engana, você esfregue os olhos e
vai ver que eu não sou. Eu sou na sua cabeça, eu sou o que você quer. (p. 56)
360
Id., p. 186.
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— E serão devidos também a uma terceira razão. Argemiro irá respeitá-
los, a esses quatro homens, como se respeita a um verdadeiro líder, amedrontado e
estimulado principalmente por essa terceira razão, à qual se atribuirá um conteúdo
sagrado, e a esse conteúdo sagrado um poder soberano — e me levantei, fazendo
pose —: a intimidade com as palavras.
4.2. VILA REAL, MARROCOS
— O texto de Geertz — e recoloquei-o sobre a mesa, diante de um
atentíssimo interlocutor — expõe o que poderiam ser considerados mapas do
poder, em três sociedades e três tempos diversos: a Inglaterra do século XVII e
seu centro máximo de poder, Elizabete Tudor; depois a terra de Java e seu rei
Hayam Wuruk; e em seguida o Marrocos e o reinado a duras penas de Hasan.
— E cada um desses mapas é o quê? A indicação do funcionamento das
estratégias de manutenção do poder junto à sociedade?
— Sim. Geertz mostra-nos então: Elizabete a manipular e a incorporar à
sua imagem de soberana os símbolos morais e cristãos que davam sentido não
apenas àquela sociedade mas a todo o universo, e o mesmo universo inteiramente
geometrizado segundo uma rígida hierarquia de mandos a caracterizar e congelar
na imortalidade o poder real e magnífico de Hayam Wuruk. Leia aqui, por favor,
esse texto sagrado citado por Geertz — e indiquei-lhe a página.
... Camponeses reverenciam os chefes, (...) os chefes reverenciam os senhores,
os senhores reverenciam os ministros, os ministros reverenciam o rei, os reis
reverenciam os sacerdotes, os sacerdotes reverenciam os deuses, os deuses
reverenciam os poderes sagrados, e os poderes sagrados reverenciam o Nada
Supremo.
361
— Obrigado. E, finalmente, o que mais nos interessa aqui, em função de
sua proximidade com o mundo do romance Vila Real, o poder a bastar-se como
coisa-em-si, o poder que, vou citar, “não precisa ser representado como outra
coisa além de si mesmo para que se inunde de significados transcendentes”.
362
361
Id., p. 195-196, citando T. Pigeaud, Java in the 14
th
century: a study in cultural history, 5 vols.,
Haia, 1963.
362
“Centros, reis e carisma...”, op. cit., p. 202.
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Alterei aqui o tempo verbal das duas frases citadas, para que se pudessem
encaixar melhor no período — e me sentei.
— Há algum princípio que oriente essa sociedade marroquina de Hasan? E
também, conseqüentemente, que oriente a sociedade da ausência, em nosso Vila
Real?
— Há, sim, mas, antes, ouça este depoimento de João Ubaldo Ribeiro
acerca dessa sociedade que ele tão bem conhece:
— ... o baiano do Recôncavo — falador, pegador, alisador, compositor, cantor,
declamador, tomador de intimidades instantâneas, preguiçoso, relaxado, incapaz
de compreender a necessidade de horários, festeiro, cara-de-pau... (...). Em
contraste, vem o baiano do sertão, o euclideano “antes de tudo um forte” (aliás,
Euclides da Cunha se referia a nós, do Recôncavo, como “mestiços neurastênicos
do litoral” (...)), gente muito diversa do pessoal da praia. (...) São os baianos de
ancestrais cangaceiros, coronéis, jagunços, combatentes de Canudos,
acostumados a “tudo pouco”: pouco de comer, pouca chuva, pouca conversa,
pouca brincadeira, pouca intimidade, tudo pouco.
363
— Quanto ao princípio, objeto de sua pergunta — continuei —, ele pode
ser assim expresso: “... as pessoas só possuem verdadeiramente aquilo que têm a
capacidade de defender”.
364
E porque estão sempre a defender algo, terras, honras
e posições, estão sempre a viver a experiência da posse com a intensidade de
quem está prestes a perdê-la. Se não é renovada constantemente através de luta e
ameaça, a posse inverte os sinais de sua relação com o objeto possuído. E isso...
— Há um trecho de Vila Real que resume essa inversão — disse ele,
enquanto folheava o romance, todo sublinhado por mim. — Escute: “... a coisa
possuída traz o condão de possuir mais do que é possuída”, diz Argemiro...
— ... em discurso indireto livre do narrador, e conclama: “Vamos guerrear.
Por quê? Porque tudo isto é uma discordância” (p. 75). Eu conheço, meu caro, os
trechos que eu mesmo sublinhei...
— E a sociedade da ausência que você mencionou como sendo a
característica mais marcante do povo de Argemiro — continuou, impassível, o
meu interlocutor — guarda sua razão de ser no estado de constante perda-
vigilância-perda em que vivem seus membros...
363
“Os baianos”, Manchete, texto sem data.
364
“Centros, reis e carisma...”, op. cit., p. 204.
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— Isso. O poder soberano, do mesmo modo como tudo o mais, é obrigado a
renovar-se e a legitimar-se a cada dia, tendo por recurso apenas a si próprio. Este “a si
próprio” poderia concretizar-se através do conceito norte-africano de baraka. Ouça:
... O termo já foi comparado a inúmeros outros conceitos na tentativa de
explicá-lo — maná, carisma, “eletricidade espiritual”; trata-se de algo assim
como um dom de poder sobrenatural que pode ser utilizado por aqueles que o
recebem a seu bel-prazer (...). Mas o que melhor define baraka, e o que o
diferencia de outros conceitos semelhantes, é que é radicalmente individualista.
365
— Se eu lhe perguntasse qual a diferença entre o carisma de Argemiro e o
carisma daqueles homens conhecidos como “o Filho de Lourival”, você saberia
responder? — antecipou-se o meu interlocutor.
— Acho que sim... O baraka é algo que se tem ou não se tem. O Filho de
Lourival, como vimos, funda seu carisma na capacidade de organizar a guerra, nos
mistérios de sua ausência e na boa lida com as palavras. O carisma de Argemiro
não tem razão aparente de ser, e, por não ter razão aparente de ser, ele não o
compreende e nele não acredita. Veja: “O senhor (...) fala com sabedoria”, já lhe
disse o combatente Alarico, como vimos. Argemiro não alcança a natureza de seu
carisma, justamente porque seu carisma é baraka: “... algo que um indivíduo
simplesmente tem, como tem força, coragem, energia ou agressividade, e, como o
são estes atributos, é também distribuído arbitrariamente”.
366
O baraka, no entanto, constitui apenas um dos caminhos para o poder;
o outro encontra sua direção na força da linguagem como fator de comunicação,
coerção e incitamento — disse ele.
— Isso. Toda vez que se põe a pensar em seu próprio papel junto ao povo
de Vila Real, Argemiro sopesa a qualidade de sua linguagem, não apenas de sua
linguagem, mas a daqueles a quem considera. O povo de Vila Real não tem nada
mais senão a linguagem de que Argemiro terá de valer-se para sobreviverem
todos, e Argemiro, finda a guerra, sente que não é mais o mesmo, e tem a certa
altura uma visão, a visão...
... das palavras que podiam trazer sangue ao rosto dos que as ouviam e podiam
365
Id., ibid.
366
Id., ibid.
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molhar aquela terra como a chuva ou secá-la como o sol e que uma só palavra
bem posta — e viu então que não faltava nada a não ser palavras nos lugares
em que sabia que faltava tudo (...) — e que uma só palavra podia resolver, a
qual não sabia. (p. 148-149, realcei este belo trecho)
— Bonito, né? Em outro momento do romance, quando estão Argemiro e
o personagem Gaudêncio a mirar os matos que os cercam, verificando assim a
fragilidade inconteste de todos ali, à espera do povo assassino de Godofredo e
Genebaldo — disse eu —, ouve-se a fala de Gaudêncio: “Tem mais rolas nesses
matos (...) do que rola em todos os matos da Jurupema”. Em seguida, a
observação do narrador, em discurso indireto livre, incorporando o atento
Argemiro: “A fala de Gaudêncio tinha uma nota clara e certeira e, no silêncio que
boiava sobre todas as cabeças, ela soltou-se como a voz de uma corneta” (Vila
Real, p. 11). O mesmo que diz Geertz acerca do poder intimidatório da linguagem
na estrutura de poder no Marrocos poderíamos dizer aqui acerca das expectativas
de Argemiro: a linguagem...
... dá a todo tipo de conversa que não seja totalmente fútil uma qualidade de
um pega-pega com palavras, uma colisão frontal de imprecações, promessas, (...)
desculpas, rogos, ordens, provérbios, argumentos, (...) citações, ameaças (...), que
não só valoriza enormemente a fluência verbal como dá, à retórica, um poder
inequivocamente coercitivo: (...) “ele tem palavras, oratória, máximas,
eloqüência” também quer dizer, e não só metaforicamente, “ele tem poder,
influência, peso, autoridade”.
367
— A peculiaridade da sociedade marroquina de Hasan em relação aos
contextos elizabetano e javanês mora... — começou o meu interlocutor.
— ... mora, sim, na potência simbólica das palavras num universo onde,
afora o discurso e a energia suficiente para mantê-lo em funcionamento, nada
mais existe. — E prossegui: — O mesmo torneio de vontades verificado por
Geertz no Marrocos de Hasan, torneio responsável pela criação de uma verdadeira
“sociedade agonística”, pode ser encontrado no impasse de Argemiro acerca de
qual discurso seria o certo e o apropriado para aquela gente, aquele tempo e
aquela guerra. E seu torneio de vontades dá-se por dentro da cabeça, uma cabeça,
a sua própria, que de início ele não compreendia e apenas sentia latejar; uma
cabeça, a sua própria, que depois se foi tornando clara e amiga à medida que foi
367
Id., p. 173.
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encontrando dentro de si as suas palavras mesmas. — E citei, com um certo
arrebatamento, o período que penso em usar como epígrafe ao meu capítulo sobre
o universo de Argemiro: — “Sendo, não somos, disse e se admirou de que sua
cabeça se enchia de clareza e de que todas as palavras se apresentavam” (p. 143).
— Há uma idéia que podemos desenvolver — começou o meu interlocutor
— acerca da relação entre a cabeça de Argemiro e a figura do narrador. Veja que...
4.3. O ESPÚRIO LEGÍTIMO
— Deixe-me concluir — e me dispus a retomar a idéia que deu início à
conversa sobre Vila Real. — Num artigo recente acerca do panorama da literatura
brasileira contemporânea, Silviano Santiago escreveu: “O leitor estrangeiro não
quer compreender as razões pelas quais, na literatura brasileira, o legítimo quer ser
espúrio a fim de que o espúrio, por sua vez, possa ser legítimo”.
368
Silviano referia-
se a uma tendência de hibridização pouco apreciada e entendida pelo público de
fora que se põe a ler a atual produção literária brasileira. Esse leitor de fora quer ver
“o estético na arte e o político na política”.
369
As mútuas contaminações afetam a
vontade de pureza que se costuma esperar de ambos os campos.
— Essa vontade de pureza, no entanto, é uma expectativa, como você
mesmo disse, ou melhor, como disse o Silviano Santiago, uma expectativa
estrangeira. E por que razão estamos aqui a percorrer o relevo de uma expectativa
estrangeira sobre a literatura nacional?
— Chego lá. Se um romance qualquer consegue trazer para o seu
artesanato literário uma discussão política relevante, seja ela qual for, diga aí...
— Sei lá... a injustiça social, a patética distribuição das riquezas nacionais,
a violência banalizada, a indiferença dos governantes, a mediocridade intelectual
das elites econômicas...
— Sim, sim — e agradeci pela lista —, que se pense no tema mais
desagradável e urgente... Se esse romance consegue, nas palavras de Silviano,
368
“Literatura anfíbia”, Folha de S. Paulo, 30 jun. 2002.
369
Id.
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deleitar e comover, e ainda por cima ensinar,
370
ele alcança, não uma legibilidade
para os de fora, o leitor estrangeiro, em sentido lato, que o vê como espúrio, mas
uma legibilidade dirigida, para usarmos outra palavra em sentido lato,
extremamente lato, ao povo. Vai tornar-se aqui, para este público, legítimo. Ouça.
Silviano escreve, recuperando Pound, como você bem lembrou na nota: “Talvez
pudéssemos nos ater apenas a dois princípios da estética: o livro de literatura existe
‘ut delectet e ut moveat’ (para deleitar e comover). Pudéssemos nos ater a esses dois
princípios e deixar de lado um terceiro princípio: ‘Ut doceat’ (para ensinar)”.
371
— Ora — e o meu interlocutor se levantou em direção ao café —, um dos
aspectos desse artigo de Silviano reside na análise do desvio que teve de fazer a
literatura brasileira para contornar uma deficiência de base na formação de nossa
sociedade: o déficit educacional. Muito bem, mas como funciona essa discussão
dentro do “conto militar” de Ubaldo? E, antes que você responda, deixe-me citar
aqui uma resenha do jornalista Renato Pompeu, escrita em 1979, que vislumbra
importantes características de uma literatura brasileira então nascente — e ele
retirou de nossos infinitos arquivos uma matéria de revista. — Trata-se, como
você deve saber — e ele sorriu —, de uma resenha sobre Vila Real.
... Diante desse quarto livro de ficção de João Ubaldo Ribeiro (...) seja
permitido meditar sobre o destino do bom escritor brasileiro. O pequeno público
treinado para ler regularmente no país parece preferir obras de informação, tipo
reportagens ou biografias, certo de que dados, estatísticas e datas
proporcionam visão exata dos problemas nacionais.
372
Quanto a obras de
ficção, esse mesmo público tende a preferir romances estrangeiros, que lhe dão a
visão da vivência desejada no futuro (...).
(...) Ele [João Ubaldo] proporciona o que só a ficção pode dar: ao lado do
prazer de ler, da fruição da palavra, também um comentário emotivo sobre a
condição do homem, uma consciência sentimental de um modo de vida tão
370
— Nas palavras de Silviano, não — corrigiu-me ele, em nota —; nas palavras de Ezra Pound, a
citar Rodolfo Agricola. — E, pegando o ABC... de Pound, leu que — “... numa edição que data
de mil e quinhentos e pouco, diz que a gente escreve ut doceat, ut moveat aut delectet, para
ensinar, para comover ou para deleitar” (“Segunda série, Capítulo VIII” (p. 65-66), in ABC da
literatura, São Paulo, Cultrix, 1989-90, p. 65).
371
“Literatura anfíbia”, Folha de S. Paulo, 30 jun. 2002.
372
— Quanto a isso, observa ainda João Ubaldo Ribeiro, nessa entrevista. Ouça. — E o meu
interlocutor, aparentemente já inteirado dos papéis de minha pesquisa de imprensa, leu: —
“Então, você (...) diz: ‘Itaparica é uma ilha de tantos quilômetros, com tal número de
habitantes, tais atividades econômicas e determinados níveis de renda’. Isso é conhecer
Itaparica? (...) A arte (...) é uma forma de conhecer, que você chama de ‘misteriosa’, na falta de
melhor palavra. (...) Isso ao mesmo tempo é a maldição e a bênção do escritor” (Vander
P
RATA, Fernando ESCARIZ & Antônio RISÉRIO, “João Ubaldo Ribeiro: Viva o povo brasileiro”,
Jornal da Bahia, 3 set. 1983
).
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distante do leitor, num mundo criado pela arte em que mesmo assim o leitor se
pode reconhecer.
373
— Posso observar — disse eu — o quão belamente o romance se encaixa
no que está dizendo Silviano Santiago. Uma literatura para deleitar, comover e...
ensinar — e folheei a matéria. — Estão dizendo praticamente o mesmo...
— Sim. Silviano Santiago está a comentar a configuração de uma literatura
anfíbia que, no entanto, já estava configurada, e comentada, 23 anos antes...
— Sim. Vila Real foi publicado em 1979, ano referido por Silviano como
um dos marcos para uma importante transformação dentro da arte e da cultura
brasileiras. Ele circunscreve — e li — o “momento histórico da transição do século
XX para o seu ‘fim’ pelos anos de 1979 a 1981”.
374
Do mesmo modo, o discurso de
Argemiro deverá ser e parecer-lhe, num primeiro momento, espúrio, ou seja,
estranho àquilo que ele mesmo esperaria de um discurso a seu povo, um discurso
que deveria ter em si o conhecimento que ele, Argemiro, não tinha; que deveria ter
em si todas as muitas palavras que Argemiro não conhecia; que deveria ter em si
toda a instrução que Argemiro não pôde adquirir devido ao óbvio fato de ter
passado a vida sobre a enxada; um discurso que acabaria por aparentar, enfim, uma
legitimidade que, no entanto, não conseguiria sustentar-se por muito tempo. Vou ler
um trecho. Ouça: “— Sim — disse Argemiro, sentindo que o coração se apressava e
a cabeça empacava, na falta das palavras que gostaria de dizer e que sabia trazer
dentro de si, mas não havia como elas tomassem forma e voassem da boca” (p. 88).
— Isso lembra Homero — disse ele. — “Que palavra rompeu a barreira de
seus dentes?” etc. etc. E me lembra também um trecho daquele texto de Silviano
Santiago, “Vale quanto pesa...”, em que ele fala do personagem Riobaldo,
“sempre querendo afirmar-se como chefe, mas faltando-lhe a bravura e a
hombridade necessárias”.
375
No caso de Argemiro, faltam-lhe mesmo as palavras,
as palavras — e me estendeu outra xícara de café.
— E também a bravura. Ouça: “Ai, disse Argemiro, não sei falar, não sou
valente, e ia gostar de estar num copiar, espiando bois, só peço que venha comida,
só peço que não me peçam. Mais do fazer é o parir” (p. 121). — E continuei meu
373
“Alta tensão”, Veja, 18 jul. 1979, realces do meu interlocutor.
374
“Democratização no Brasil...”, op. cit., p. 11.
375
“Vale quanto pesa”, op. cit., p. 35.
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4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA
213
pensamento: — Pois bem. Esse legítimo discurso ideal presente somente na cabeça
e nas vontades de Argemiro tem a obrigação de, necessariamente, jogar por terra
suas qualidades apriorísticas, as suas muitas palavras instruídas, compridas e
didáticas, e, com urgência, contextualizar-se. Ouça: “E aí Argemiro compreendeu
todas as palavras, em primeiro lugar pelo som que fazem, o qual traz cólicas ou
risos ao rosto (...) ou ódios imorredouros ou pesadelos esquecidos antes de
deixarem de ser as nuvens escuras que rodeiam as cabeças das pessoas” (p. 146).
— Bonito... E a partir do momento em que ganha espontaneidade mas
perde, para Argemiro, a aura do que seria um legítimo discurso de poder, torna-se
automaticamente, no seu apressado entendimento, espúrio? — arriscou ele.
— Sim, mas espúrio apenas por um instante, porque, logo em seguida, se
esse discurso consegue abrir-se para o seu contexto e dele se alimentar, consegue
atingir uma terceira condição.
— Torna-se então, de outro modo e sob outras máscaras, legível,
ganhando assim uma nova e diferente legitimidade?
— Sim — e eu, abrindo um sorriso, li um trecho. — Argemiro “teve
perfeito entendimento das palavras enquanto as sopesava, avaliava e estimava, ao
flutuarem elas no ar” (p. 147). A toda essa volta podem-se dar os nomes de
engajamento, comprometimento e experiência social. — E continuei: — A
legitimidade de uma posição de chefe, uma posição de chefe a ser conquistada e
mantida pela via do discurso, ou seja, da escolha certa das palavras certas aos
ouvintes certos acerca dos assuntos certos nos momentos certos, instaura um
impasse, no entendimento do personagem Argemiro, acerca de qual discurso seria
o discurso “correto” para os de sua gente.
— Ainda é o caso de se perguntar o que há de errado com as palavras de
Argemiro...
— Sim, é sempre o caso de se perguntar o que há de errado com as
palavras de Argemiro... Elas não correspondem àquilo que ele próprio esperaria
das palavras de um líder. As palavras de um líder devem ser importantes, difíceis,
poderosas e, antes de tudo, e esta qualidade restou em último lugar justamente
para que ficasse salientada a sua precedência sobre as demais, antes de tudo, dizia
eu, as palavras devem ser muitas. Mas essas palavras que Argemiro quer para si...
essas muitas palavras são as palavras do narrador; não as dele.
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214
— “Se uma mulher sabe mais palavras do que nós, podemos chamar essa
mulher de homem?” (Vila Real, p. 125) — leu o meu interlocutor.
— Boa citação. Isto é o que pergunta a si próprio Argemiro, ensimesmado
diante de uma mulher, Ernesta, por quem nutre uma admiração que ele não
consegue entender, uma vez que baseada em qualidades normalmente associadas
aos homens, tais como a voz do mando, voz firme, precisa, clara, a voz, enfim, de
um chefe. É o que faz Diadorin, em Grande Sertão..., para sustentar-se como
homem... Ernesta terá em Maria da Fé, de Viva o povo brasileiro, o seu espelho
distante, e nem tão distante assim...
— E também as palavras devem ter por trás de si conhecimentos
adquiridos pelo estudo e pela leitura — animou-se ele, livro à mão, sem ouvir esta
minha última idéia —, conhecimentos como os que tem o padre Bartolomeu, por
exemplo, “cujo conhecimento ia além do de todos os homens” (p. 29), cuja cabeça
sabe de tudo e, portanto, conhece todas as palavras que se referem a esse “tudo”.
— Mas ele, Argemiro, não tem capacidade para resolver os problemas de
sua gente, porque ele, Argemiro — e citei, na mesma página, recuperando o livro
—, “não sabia muitas das palavras de que iria necessitar, palavras que eram névoas
e caroços por dentro do que via”. E agora volto a Silviano Santiago, antes que você
me peça que o faça... Silviano identifica o campo da arte como especialmente
convidativo para que se arme o debate acerca da explosão das muralhas, as
muralhas que distinguiam “o erudito do popular e do pop” e as muralhas que
distinguiam a então única esquerda brasileira, contraposta à repressão militar de
1964 a 1979,
376
das novas esquerdas, diferenciadas, agora internamente, a partir de
múltiplos discursos e múltiplas identidades sociais. Do mesmo modo...
— Deixe-me concluir — disse ele. — O romance Vila Real, tomando
como matéria-prima a política e a guerra numa pequena comunidade rural, realiza,
a seu turno, a mesma discussão, tendo por agente Argemiro e por “questão” a
necessidade de o seu discurso ser legível, total e potentemente legível por todos.
Vou ler, dê-me o livro:
376
— Se tomado tecnicamente — interrompeu-me ele, abrindo uma nota didática —, o militarismo
no Brasil só termina no dia 15 de março de 1985, data em que chega ao fim o governo de João
Figueiredo e é implantada no país a República Nova, com a posse do vice-presidente José
Sarney. O ano de 1979 pode ser, no entanto, tomado como um marco por ser o ano de término
do governo Geisel (1974-1979), responsável pela “abertura política” no país.
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215
... Não soube quanto tempo sentiu que de si saíam as palavras e não sabia se
estava deitado, sentado ou de pé. Não sabia mesmo se estava ou estava onde e as
palavras também não só saíam dele, como vinham de todos os cantos, fazendo
daquilo tudo um oceano. Entendeu que as palavras vinham tomar corpo em sua
cabeça e depois velejavam de todas as cores e se enfunavam loucamente, tudo
uma festa panda e tremulante, e então pôde notar que aquelas palavras também
pareciam pedras e passarinhos sobre o campo. (p. 147)
— Então — e lhe tomei o livro —, do mesmo modo como o “poema se
desnuda de seus valores intrínsecos para se tornar um mediador cultural”,
377
as
palavras de Argemiro não devem conter em si nada que não seja arrancado à força
da vida de todos os dias de seu povo. Do mesmo modo como, em nome da
comunicabilidade e da transitividade, se deve “esvaziar o discurso poético de sua
especificidade (...), equipará-lo qualitativamente ao diálogo provocativo sobre o
cotidiano”,
378
com as suas novas palavras — e me levantei —, palavras que não
sabia que sabia, falará Argemiro muitos discursos a seu povo, estabelecendo assim
“a combinação extemporânea da prática política aliada à prática da vida”,
379
para
citarmos mais uma vez as palavras de Silviano Santiago acerca da mudança de
lugar do discurso político das esquerdas: da Política para o exercício cotidiano da
política; da Arte para o exercício quotidiano da arte.
— ... do comando para o exercício quotidiano do comando.
— Sim, sim — e pedi a ele mais café.
4.4.
O NARRADOR-ENSAÍSTA
— Gostei bastante de sua reflexão: o romance Vila Real como um
universo onde se desenrolam dramaticamente as questões exposta por Silviano
Santiago. Ele, em algum momento, em algum dos dois textos que você usou, cita
Ubaldo?
— Não, não cita, e, pelo que eu saiba, nunca citou...
377
Silviano SANTIAGO, “Democratização no Brasil...”, op. cit., p. 14
378
Id., ibid.
379
Id., p. 15.
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— Pois bem — e ele coçou a cabeça, mudando de assunto. — Eu gostei de
sua reflexão, mas senti que nos afastamos do narrador, se é que chegamos a nos
aproximar...
— Sem dúvida que sim — e me sentei, disposto a uma nova conversa. —
Vila Real constitui um universo de perspectivas narrativas bem mais completo do
que o de Sargento Getúlio, este confinado ao ponto de vista enlouquecido do
protagonista.
— Mas o narrador de Vila Real incorpora antes de tudo o protagonista
Argemiro...
— Eu sei, mas o seu comprometimento é coletivo: é o povo de Argemiro o
seu mundo, o que equivale a dizer: são as palavras do povo de Argemiro o seu
mundo... — eu disse. — Se em Setembro não tem sentido, no Sargento Getúlio e
no Diário do Farol vimos predominar no narrador o exercício de uma perspectiva
individual e individualista, em Vila Real o nosso facho já abarca o universo dos
interesses de uma pequena comunidade...
— Mesmo assim, é uma comunidade de pessoas cultural e
economicamente semelhantes, e isso vai refletir-se na natureza discursiva do
narrador, não é? Em diferentes palavras, o narrador de Vila Real é um narrador
monocórdio? Sim ou não? — insistiu.
— Sim... quero dizer: não. Não é um narrador monocórdio. Mas a relativa
uniformidade do universo de personagens, “... em cada um uma história e em
todos a mesma história” (Vila Real, p. 90) — citei —, tem conseqüência direta, é
claro, sobre a personalidade do narrador, que não vai operar um estoque tão
variado de discursos, como é o caso da performance narrativa de Viva o povo
brasileiro, por exemplo, sobre o qual ainda conversaremos, inigualável entre
todos os romances, onde o narrador transita de uma ponta a outra do leque
discursivo da sociedade brasileira. Os escravos...
— ... os índios, os padres, os fazendeiros, os pardos, os alforriados, as
mulheres, os soldados, os banqueiros, os artistas, os guerrilheiros...
— Sim, e também os discursos literários..., e ainda muitos outros tipos
inclassificáveis, e também de uma ponta a outra de um período: do século XVII ao
XX. Viva o povo brasileiro e, em menor escala, mas dentro da mesma pluralidade
narrativa, O feitiço da ilha do Pavão serão o centro de minha discussão sobre o
narrador sem cabeça e o ápice de sua performance. A nossa visada sobre o narrador
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de Vila Real tem um caráter sincrônico: está confinada a um curto período de tempo
e a um exíguo espaço de ação, onde se desenrolam poucos eventos, todos eles
relacionados à luta de uma comunidade por recuperar o seu lugar no mundo. “Vila
Real (...) fala das injustiças sociais e apresenta o drama dos posseiros, através de um
realismo tenso, telúrico, cheio de lirismo e habitado de assombrações.”
380
— Eu gostei dessa espécie de definição de Vila Real — disse o meu
interlocutor. — Tão bom quanto essa é esse trecho do jornalista Mário Pontes, que
fala do “conto militar” de Ubaldo...
... no qual a presença arcaica, medieval e bíblica se mostra a cada passo. (...)
No sopro de religiosidade que atravessa o relato, eclética, por vezes maniqueísta,
por vezes de uma dialética inacabada, que proclama a unidade do amor e do ódio,
(...) da santidade e da danação. Nos nomes dos guerreiros sem biografia.
381
— Mas você concentrou quase toda a sua reflexão sobre a legitimidade do
poder no personagem Argemiro, os seus dramas, as suas assombrações e as suas
dificuldades com a palavra — continuou ele. — O narrador, no entanto...
— O narrador é o protagonista do romance, meu caro. Todo o discurso é
dele, mas as suas façanhas narrativas se revelam pouco variadas... Eu estou
chamando de façanhas narrativas o procedimento das múltiplas incorporações,
que, como eu disse, veremos em profusão em Viva o povo... e nO feitiço... Então
— e continuei —, quanto à sua pergunta acerca do caráter monocórdio do
narrador, que é aquele que efetivamente fala em Vila Real, ouça este trecho:
“Vendo assim seus defuntos virados em piso de estrada, muitos se revoltaram,
mas os homens não pareciam ouvir. A terra lhes pertencia, como provavam os
papéis que guardavam em seus barracões gelados” (p. 32, realcei). O ponto de
vista aqui é o ponto de vista do povo expulso, e o termo “barracões gelados”
demonstra que o narrador não tem em si todas as palavras e que seu campo
semântico se restringe ao de uma das partes, a mais fraca.
— Mas há algum momento em que esse narrador conduz a história sob o
ponto de vista dos mineradores trancados em seus gabinetes com ar-
condicionado? — perguntou o meu interlocutor, já conhecedor de minha resposta.
380
José Mário PEREIRA, “O romance maior de João Ubaldo”, Última Hora, 5 jun. 1982.
381
“Epopéia no sertão”, Jornal do Brasil, 4 ago. 1979.
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— Não, não há. Esses homens e seu universo revelam-se estranhos ao
narrador, que não lança mão de nenhuma atitude de onisciência quando se põe a
falar dos antagonistas. Não há gabinetes refrigerados; há apenas “barracões
gelados”... Ouça: “— Ninguém bateu em seu pessoal — disse o homem, virando
de face para baixo um papel que trazia alguma coisa anotada” (p. 35). O narrador,
aliás, não lança mão da...
— Lembrei-me agora do que ia dizer lá atrás quando você me interrompeu
— disse ele, num salto, e sentou-se. — Foi um pouco antes...
— Ei, ei! Um momento! Deixe-me concluir: eu dizia que o narrador não
lança mão de uma onisciência clássica nem mesmo quando circula entre os pares
de Argemiro. Veja esta passagem. Observe que é o narrador a contar, sim, sob o
ponto de vista de Argemiro, sim, ou seja, ele é onisciente apenas dos assuntos de
Argemiro, mas a sua focalização em Argemiro não é total, já que ele utiliza
marcações que fazem referência ao próprio Argemiro, procedimento que não seria
necessário se a focalização interna fosse total. Veja:
... Debaixo do ingazeiro, iluminados pelos fachos que atravessam as copas,
estavam Ernesta e Otoniel e, se não se tocavam, se olhavam. Desde cedo
Argemiro aprendera que os homens mostram às mulheres desejadas aquilo que
sabem fazer. (...)
Por isso que o coração gaguejou, quando ele viu que Otoniel mostrava à
Ernesta o modo de se pegar camarão. (...) Otoniel segurou um punhado de tripas
de marreco e mostrou a Ernesta. Na mão esquerda, carregava as estopas
amarradas num cordão. Estas tripas, achou Argemiro que disse Otoniel, não
devem ser limpas, mas devem estar com o cheiro natural das tripas, não curadas.
(...) Ernesta também baixou e subiu a cabeça e ainda esticou o pescoço para junto
de Otoniel, quase como se cochichasse. Mas você pesca mesmo muitos camarões
(...)? — perguntou Ernesta, na cabeça de Argemiro. (p. 130-131)
— Como você vê, o narrador transita, entre os personagens que compõem
o grupo de Argemiro, apenas como mais um ponto de vista, entre outros, e o
relacionamento do narrador com o protagonista...
— Agora falo eu — levantou-se o meu interlocutor, visivelmente disposto
a falar muito. — Lembrei-me de algo. Foi um pouco antes de você começar a falar
do discurso espúrio-legítimo... Podemos estabelecer a seguinte relação entre a
cabeça de Argemiro e as palavras do narrador: estas estão naquela, mas quem fala
não é Argemiro; é o narrador, porque Argemiro tem medo das palavras, mantendo
com elas uma atitude cerimoniosa, e toda a história é a história do medo
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gradualmente desfeito de Argemiro. Não, ainda não acabei... E eu creio poder ser
capaz de convencer você da relativa desnecessidade de ficarmos aqui a analisar as
pequenas incorporações do narrador ao longo dos personagens do grupo de
Argemiro. Isso não importa, porque o grupo de Argemiro e Argemiro são a
mesma coisa. Ouça este trecho: “Pois não era por ser melhor que os outros, mas
porque encarnava todos os outros... (p. 114); e também este: “Sou, pensou
Argemiro, filho de todas essas mulheres e pai de todos esses homens. Sou também
filho de todos esses homens e pai delas” (p. 119). Esses trechos são muito
eloqüentes. — E ele prosseguiu: — Se o narrador ainda se dispusesse a penetrar o
universo dos grupos rivais, seja o de Godofredo e Genebaldo, seja o dos
mineradores internacionais, vá lá, pois isso exigiria do narrador uma abertura e
um deslocamento ideológico em direção a mundos diferentes, mas não é essa a
peculiaridade narrativa do livro.
— Tudo isso era mais ou menos o que eu ia dizer... — e sorri, sem graça.
— Então escreva, mais tarde. O narrador, em Vila Real — disse ele,
impassível —, tem um segundo papel, e podemos desde já deixar aqui
estabelecido o óbvio: que o primeiro papel de um narrador, qualquer narrador, é
narrar, muito bem. Mas alguns narradores têm uma segunda incumbência, que
varia de caso para caso.
— E nesse caso esse segundo papel é... — e cruzei os braços, animado
com aquela idéia.
— Tornar-se e manter-se como um duplo — disse ele, convicto. —
Argemiro e o narrador formam um par, pertencendo Argemiro, originalmente, à
esfera diegética e o narrador à esfera extradiegética, embora na prática, e a prática
reflete-se na fala do narrador, as esferas se confundam, compondo ambos um
mesmo personagem. Veja: “— Sim — disse Argemiro, principiando a falar como
dera para acontecer de uns tempos para cá, como se não estivesse conversando, mas
só pensando e falando” (p. 60). Entre eles, as palavras: as palavras de um que vão
gradualmente sendo apreendidas pelo outro, que começa então a aprender a usá-
las, que começa então a aprender a vê-las como legítimas. Observe que estou
relacionando a sua idéia inicial sobre a possibilidade de o discurso de Argemiro se
tornar uma real mediação cultural para o seu povo, com o papel do narrador nessa
missão... Você pode usar essa idéia na tese; pode até dizer que é sua... O que acha?
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— Acho muito boa essa maneira de olhar para o livro. E aproveito aqui
para ilustrar o que você disse. Ouça, e veja o narrador em ação:
... Argemiro achou-se tonto mais uma vez e de novo teve vergonha de si
mesmo (...) e se via na falta das palavras. Olhando para cima e respirando
fundo, no entanto, pôde falar como se tivesse decorado alguma coisa remota
ensinada, uma voz de flauta lhe assoprando nos ouvidos (...). Disse ao homem
que um papel não poderia dar a ninguém direito à terra, porque esta era de quem
chegava até a sentir seu cheiro à distância e com ela misturar-se, pelo trato de
todo dia. Disse que não era verdade (...) que eles não tinham raízes ali (...), pois a
raiz se finca onde se trabalha, principalmente a terra, sendo esta a coisa mais
verdadeira que existe... (p. 36, realcei)
— Observe — antecipei-me — que o narrador diz que Argemiro disse,
mas quem diz o que Argemiro disse continua sendo o narrador, que chega a fazer
menção a uma suposta inspiração a acometer o espírito de Argemiro no momento
da fala. É quase uma menção a si mesmo como “a inspiração”, a “voz de flauta”,
flauta mágica... Estamos na cabeça de Argemiro, você está certo, e a cabeça de
Argemiro é a fala do narrador, e a fala do narrador é a reprodução de uma
conversa íntima, porque Argemiro está sempre em dilema, ou seja, conversando
consigo mesmo, o que equivale a dizer: conversando com o narrador e utilizando,
nessa conversa, todas as palavras que não consegue utilizar em suas conversas
com o mundo exterior. Ouça e observe que não há distinção alguma entre a fala
do narrador e a fala de Argemiro.
... Ai, disse Argemiro, não sei falar, não sou valente e ia gostar de estar num
copiar espiando bois (...).
(...) É assim: quando não se concebe que exista qualquer coisa mais que o
desespero, chega um rio de águas atrás: a água carrega a vida? conduz umas
iluminações? seu barulho move as circulações? Mas, de fato, que se possa sentir,
o rio carrega só as memórias. (...)
(...) Este rio, este rio é indiferente, pensou Argemiro. Este rio tem seus
negócios de rio a tratar, é a natureza de um rio. (...) Pode o Japiau sorrir, pensou
Argemiro. Não, ele não pode sorrir, não porque não pode, mas porque não quer.
O rio só faz viajar (...). (p. 121-123)
— Não há distinção alguma entre as falas de Argemiro e do narrador —
repeti —, e nem é relevante que haja essa distinção, não porque se trate de um
mero recurso narrativo em discurso indireto livre, com um narrador a incorporar
os pensamentos de um personagem focalizado... Não. Não há distinção entre as
falas de Argemiro e do narrador por duas razões: porque o narrador não se
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preocupou com isso, antes pelo contrário, já que são ambos, como você disse, e
muito bem, o duplo um do outro; e tamm porque o narrador e Argemiro estão
ambos envolvidos, sob diferentes condições, numa querela particular por palavras.
Com as palavras, talvez seja mais exato...
— Sim, talvez... O que diz o narrador nem sempre é o que diz, ou pensa,
Argemiro, e caberá ao leitor ensaiar uma distinção, que vai variar a cada leitura, é
certo. Quando lemos, no interior da narrativa: “No meio da umidade e das folhas
que transpiram arco-íris, as montanhas se desenterram. É necessário ver. As
montanhas se desenterram porque, se as vistas as abandonam, não há certeza de
que existam enquanto não as vemos. E de fato não existem” (Vila Real, p. 137);
quando lemos isso, não sabemos quem diz, se o narrador ou se Argemiro.
— Ah, isso quem diz é o narrador... — asseverou ele.
— Por quê?
— Porque nesse trecho ele está justamente falando da importância do olhar,
do modo de ver, do ponto de vista, ou seja, do narrador, de si próprio, sem o qual não
há Argemiro, não há montanhas, não há história alguma a narrar. Você não vê isso?
— Vejo, sim, tem razão, e vou além: observe este trecho — disse eu,
pedindo-lhe mais café —, ainda uma teorização não só sobre a importância do
ponto de vista como um fator estruturante de toda tentativa de dar sentido ao mundo
pela via da narrativa, como também uma teorização sobre a falácia da onisciência:
“Quem conhece as paragens onde habita sabe que nada se repete e que erra todo
aquele que prevê em demasia. Por isso Argemiro (...) Viu que toda coisa existente
muda de parecença, quando muda quem a vê” (p. 110, realcei).
— Sim. A reflexão sobre a narrativa percorre todo o livro — disse ele. —
Você mesmo chamou essa parte de nossa conversa de “o narrador-ensaísta”... É
essa, aliás, a pergunta que faz o Renato Pompeu naquela matéria da revista
Veja.
382
“Um romance-ensaio?”, pergunta ele, diante de Vila Real.
383
— Sim, o narrador-ensaísta, aquele que deleita e comove, como narrador, e
ensina e aponta e sugere, como ensaísta... O livro está pontuado de reflexões e
382
“Alta tensão”, Veja, 18 jul. 1979.
383
— E lhe cito, aqui em nota — disse ele —, uma afirmação de Ubaldo, menos de um mês depois
de publicada a matéria de Veja; uma afirmação que pode ser lida como uma resposta...: “O
livro fala de injustiças e, portanto, tem uma conotação política. Mas não é um comício, nem um
(cont.)
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222
frases bastante afirmativas e convictas, e me parece ser este o trabalho do narrador
por todo o livro: encontrar sentidos. Observe a firmeza da idéia: “Todas as coisas
acontecem na natureza, mas somente os homens escolhem o que é justo, enquanto
as outras criaturas escolhem o que é bom, e nisto vai grande diferença” (Vila Real,
p. 108-109), ensina o narrador. E para tanto toda a sua fala se concentra em
estabelecer relações entre o mundo dos homens, mundo moral, e o mundo da
natureza. Cito este exemplo: “Abençoou e maldisse as tiriricas que vestiam a
rampa, pois, enquanto eram obstáculos para que o inimigo rastejasse pedra acima,
também serviam para que se escondesse e se tornasse na alma ruim dos matos, na
morte sem rosto” (p. 10).
— E eu cito este — pegou o livro e leu:
... o ar da manhã está cheio de seres e pressentimentos. A terra nessas horas se
abre para minhocas que querem sair para tomar sol e as rachas do chão todas têm
finalidades (...), vindo também as completas obrigações matinais dos passarinhos
e cavalinhos do cão e de tudo em que não se pode mexer sem que se mexa no
futuro e na ordem das coisas. Os passarinhos vêem tudo de maneira assassina e
cantam para ameaçar e assim se ouvem pelos ocos que reboam as vozes que
dizem eu mato, eu mato... (p. 14-15)
— Sim. Esses trechos são como um verso, essa prosa de João Ubaldo
Ribeiro não é prosa. Vila Real é o seu primeiro e até agora único livro de versos. É
a sua epopéia sertaneja — disse eu, terminando o meu café e pegando, ansioso, A
teoria do romance, de Georg Lukács.
4.5. A EPOPÉIA SERTANEJA
— Este é um livro bonito e difícil — disse o meu interlocutor, espichando
o olhar para o meu Lukács. — O que é que vamos fazer com o Lukács? Tentar
utilizar as suas distinções entre epopéia e romance na exploração do tipo de prosa
que caracteriza Vila Real?
— Você é mesmo um interlocutor de primeira linha — e sorri para ele. —
Mas não vamos nos restringir ao tipo de prosa... Veja: Vila Real, segundo a
epígrafe do próprio autor, é um conto militar... — prossegui, retirando uma
ensaio, é um romance” (Roberto GONÇALVES, “João Ubaldo: ‘Meu livro não é um comício, é
um romance’”, Jornal do Brasil, 4 ago. 1979
).
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matéria de jornal de nossos infinitos arquivos e colocando-a sobre a mesa. —
Ouça: “João Ubaldo (...) acha que a obra pode ser classificada de épica, pois nela,
observa sorridente, ‘há pelos menos três boas batalhas’”.
384
Há ainda um elemento
que nos permite atribuir a Vila Real um espírito épico, embora não a ponto de a
caracterizarmos com uma história épica: uma aproximação com a descrição e a
sintaxe homéricas. Ouça e observe o mecanismo das comparações entre o mundo
natural e os atos humanos, e entre as partes do corpo dos guerreiros e os objetos
do cotidiano. Observe também os apostos explicativos junto aos nomes, a fazer
referência à biografia das vítimas:
(i) ... Tal como, na embocadura de um rio nascido de Zeus, brame uma grande
vaga resistindo à corrente, e, a toda a volta, os altos penhascos gritam sob o
estrondo vômito do mar, assim foi, da mesma altura, o clamor dos Troianos em
marcha. (...)
O ilustre filho de Leto, o Pelasgo, Hipótoo, puxava Pátroclo por um pé na
rude peleja (...). Mas, de repente, abateu-se sobre ele um mal de que ninguém o
protegeu (...). O filho de Télamon, saltando através da multidão, feriu-o, de perto,
traspassando o seu capacete de faces de bronze. O capacete de penacho de crina
rasgou-se (...), percutido por aquele grande pique e aquela mão espessa. Por essa
abertura, jorraram da ferida os miolos sangrentos. E logo se quebrou o ardor de
Hipótoo (...). Não pagou a seus pais o preço da sua educação, e breve foi a sua
vida (...).
385
(ii) ... No meio da capineira, a cabeça ligeira de Alarico e seus braços de pás
de catavento se rodeavam de explosões vermelhas, enquanto ele pulava entre as
balas e decapitava os adversários. Assim fez, à vista de Argemiro, com Nestor,
filho de Noêmio, que muitas vezes viera vender roupas (...). Nestor era da mesma
idade que Alarico e talvez tivessem até jogado juntos algum dia (...). Nenhum
sentimento, porém, se mostrou na cara de Alarico, quando, com o sol pelas
costas, olhou a última vez para a face amedrontada de Nestor e, sem dizer
qualquer palavra, inclinou a lâmina do facão e fez com que a cabeça do rapaz
voasse pelo ar, o rosto com expressão ainda e os olhos ainda vendo. E assim ele
avassalava a capineira como um vento (...).
Junto a Alarico, na refrega, estava Rodenaldo. Seus braços são grossos como
barris e sua cabeça é dura como pedra. (Vila Real, p. 17-18)
— Essa sintaxe homérica será encontrada em vários momentos da prosa de
João Ubaldo Ribeiro, e não à toa, já que Homero é dos seus autores preferidos,
sempre citado em respostas acerca de suas predileções de leitura, sempre citado
384
Id.
385
HOMERO, A Ilíada, Portugal, Publicações Europa-América, s/d., p. 249-250. — Baseei-me
exclusivamente no texto homérico traduzido da versão francesa e sob a forma de um texto em
prosa, que prefiro.
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em questões relativas às suas influências literárias. Como observou Wilson
Martins, “Literariamente, seus mestres de eleição (...) são os escritores ricos de
vitalidade e facúndia, tipos sangüíneos e pletóricos, forças da natureza e gênios
desmedidos: Rabelais e Homero...”.
386
Poderemos realizar com mais detalhes uma
analogia entre João Ubaldo Ribeiro e Homero quando estivermos diante do
Capítulo 14 de Viva o povo brasileiro — prometi.
387
— A inspiração em Homero é, de fato, evidente — disse ele —, e os dois
trechos lidos falam por si, mas eu prefiro ver isso em detalhes lá na frente, quando
entrarmos em Viva o povo..., como você já antecipou. Agora eu gostaria de ir mais
fundo nas reflexões do Lukács, se você não se importar...
— Não, não me importo, desde que você faça mais café... Lukács sem
café... Começo citando o húngaro, para quem o herói da epopéia nunca é um
indivíduo e o seu traço central nunca tem como objeto um destino pessoal, mas o
de uma comunidade.
388
O personagem de Vila Real, embora individualizado na
figura de Argemiro, compõe na verdade toda a comunidade. “O meu nome, disse
ele, com a mais alta alegria, que vinha de não ser diferente de todas aquelas
pessoas, de ser um deles e, portanto, cada um deles podia ser ele (...): o meu nome
é Argemiro Meia-Lua” (p. 158).
— Mas o fato de Argemiro estar por todo o tempo na mira do narrador não
o singulariza em relação aos demais?
— Argemiro é o herói de Vila Real...
— Isso não é resposta. É tautologia — disse ele, dando-me a xícara cheia.
— Obrigado. Inverta os termos. Não é a preferência do narrador por ele que
o singulariza. Singulariza-o o fato de ser ele o herói, e por isso ele é o alvo do
narrador. Há uma relação de mútua dependência e complementaridade entre o
destino do herói e o destino do povo: formam ambos o cosmos épico. Ouça a queixa
do fardo: “E depois (...) — pensou Argemiro — que desacerto é esse, quem foi que
pediu para nascer e carregar nas costas esse destino (...)” (p. 72). E Lukács faz
386
“Crônica (picaresca) da vida brasileira”, Bravo!, out. 1997.
387
— Ver Capítulo 5: “O vozerio do povo brasileiro”, item 5.9.: “’Canta, ó, musa!’: uma descrição
interpretativa”, p. 378.
388
“As formas da grande épica / epopéia e romance” (p. 23-96), in A teoria do romance — Um
ensaio histórico filosófico sobre as formas da grande épica, São Paulo, Duas Cidades, Editora
34, 2000, p. 67.
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225
referência à completude e à organicidade desse cosmos épico: elas não permitem
que uma de suas partes se volte sobre si mesma, “a ponto de descobrir-se como
interioridade, a ponto de tornar-se individualidade”.
389
Argemiro, quando pensa em
si, pensa em si mesmo como o depositário dos anseios de seu povo. Vou ler:
... Argemiro não sabia do que se passava nos momentos diminutos que cada
um vivia, mas sabia de suas caras, quando vinham à frente indagar. Então, pensou
Argemiro, estou escolhendo isto daqui, mesmo que seja só por causa deste povo,
porque, sem esse povo, é muito provável que eu fosse somente um Sem-Nome do
Sem-Nome, de tal forma que nem minha cara nem minhas palavras fossem
reconhecidas e então a terra me chupasse de volta, como chupa a água que
entrega. (p. 67)
— Argemiro é o herói da história — insisti. — Ele não é uma diferença
em relação a esse povo, mas a síntese desse povo. Além de herói, ele é também o
chefe, embora não queira, e “por ser chefe, não sou melhor, antes pior” (p. 133-
134), e a sua vontade de não ser o chefe e de afastar-se do comando para viver
uma vida sossegada e alheia não o afasta desse povo, mas, antes, constitui
obstáculo dignificador de seu caminho, obstáculo que deve ser superado, porque
ele é o herói, e o herói é aquele que supera e é tamm aquele que está preso ao
seu destino. “... ai Argemiro, por que não ficou dentro das partes de seu pai, na
barriga de sua mãe, por que não se deixou quieto, dentro dos outros labirintos?”
(p. 66). O que significa o narrador eleger a figura de Argemiro como central e,
ainda por cima, ocupar essa figura o posto de chefe de seu povo? Por que não é
Alarico, um simples soldado, o personagem incorporado pelo narrador? Por que
não é Alarico o herói? Por que o herói deve ser também o chefe?
— Será porque as preocupações e o universo de um chefe não devem
impregnar-se de um cotidiano ordinário?
— Mais que isso, mas você tocou no ponto. Ouça o Lukács, que
desenvolve essa idéia bem melhor que você...
... Que os heróis da epopéia, portanto, tenham de ser reis tem causas
diversas, embora igualmente formais, da mesma exigência para a tragédia. Nesta,
ela é fruto apenas da necessidade de remover do caminho da ontologia do destino
todas as causalidades mesquinhas da vida (...). (...) O que era símbolo na tragédia
torna-se realidade na epopéia: o peso da vinculação de um destino com uma
389
Id., ibid.
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226
totalidade. O destino universal (...) é o que, na epopéia, confere conteúdo aos
acontecimentos; e o fato de portar tal destino não cria isolamento algum à volta
do herói épico; antes, prende-o com laços indissolúveis à comunidade cujo
destino cristaliza-se em sua vida.
390
— O jornalista Mário Pontes, já em 1979, detectou muito bem esse traço
épico do romance Vila Real: “... a narrativa de Ubaldo se constrói de modo
extremamente simples, com um mínimo de acontecimentos, de simultaneidade
dramática, de ação e de diálogo, mas também (...) com a ausência de um tipo de
subjetividade tão freqüente na ficção contemporânea”.
391
A ligação indissolúvel
com a comunidade e o comprometimento do herói com os destinos de seu povo —
continuei — não deixam espaço para uma subjetividade individualizada, se é que
posso falar assim... A subjetividade é coletiva. Veja aqui este exemplo de infância
compartilhada: “E [Argemiro] recordou que conhecia todos os momentos em que
seu povo pensava no futuro, porque da mesma forma tinha pensado muitas vezes,
quando criança” (p. 66-67). Diferentemente, a forma do romance, diz Lukács,
concretiza-se na psicologia do herói, e falar de psicologia é falar de uma busca, e
falar de uma busca é falar de uma condição, composta de objetivos e caminhos,
uma condição que não está dada, daí a razão da busca. Mas Argemiro não busca
nada, porque tanto os seus objetivos quanto os seus caminhos já estão dados de
antemão, e é por isso que ele não é um herói romanesco, mas um herói épico. “Para
um homem, pensou Argemiro, (...) não é preciso mais do que ficar onde nasceu e
procurar aprender uma só coisa, já que, se sabendo tudo sobre esta só coisa, sabe-se
tudo sobre todas as coisas” (p. 151). Você acha que estou sendo muito convicto?
— Acho — disse ele, rindo.
— Pois ainda não acabei. Eu disse lá atrás a você que Vila Real é o único
livro em versos de João Ubaldo Ribeiro. E eu complemento essa observação
apontando o momento mais importante da história: o momento em que o herói,
Argemiro, traz à baila o que ele chamou de “O Evangelho Segundo Nós”, o
documento dialético que legou ao seu povo e a partir do qual ele anuncia as boas
novas, as outras, as que de fato interessam. E a anunciação dessas boas novas dá-
se através do canto de Argemiro, todo ele estruturado em versos e lágrimas. “O
390
Id., p. 67-68, realces meus.
391
“Epopéia no sertão”, Jornal do Brasil, 4 ago. 1979.
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Evangelho Segundo Nós” resulta na estetização do que disse Silviano Santiago
acerca legitimidade da voz narradora, do real comprometimento daquele que fala
no romance, daquele que de fato “tem sofrido perseguições e mutilações”,
392
daquele que é, ou deveria ser, o verdadeiro portador das chagas exibidas. “E
cantou, acompanhado pelo rio Japiau (...) e chorando como mais não se podia
chorar neste mundo:
Quem sabe do que vivemos?
Sabemos nós, que vivemos.
Quem sabe do que sofremos?
Sabemos nós, que sofremos.
Conheces os lobisomens?
Conhecemos mais que tu.
Falas como te falamos nós?
Achas que falas, maninho.
Tiveste fome em pequeno?
Tivemos nós, ó maninha.
(...) (Vila Real, p. 161)
— Este canto-choro de Argemiro configura o paroxismo de sua “tomada
de consciência” — disse eu —, para usarmos uma boa expressão, e o paroxismo
de todo o livro, com a reaquisição das palavras e da força para o combate. E não
poderia João Ubaldo Ribeiro ter expresso sob melhor forma o instante mais
importante de seu romance, “O Evangelho Segundo Nós”, senão sob a forma dos
versos, pois, de acordo com uma carta que Schiller escreve a Goethe, referida por
José Marcos Mariani de Macedo, deveria ser quase “obrigatório”, pode-se dizer,
“conceber em versos tudo o que tem de erguer-se acima do comum, pois o trivial
em parte alguma assim vem à luz...”.
393
— Veja bem — começou o meu interlocutor. — Eu também vejo esse
espírito épico em Vila Real, e muito bem, mas tenho a impressão...
— Não, não, deixe-me continuar: do que vou falar agora é justamente do
que a gente pode chamar as “extremidades da diegética”, ou seja, o início e o fim de
uma peça e o que significam ambos para o romance ou para a epopéia. Para Lukács,
392
Silviano SANTIAGO, “Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 30.
393
Carta de 24 nov. 1797, Goethe/Schiller, Briefwechsel, Frankfurt/M. Fischer, 1961, p. 257,
citado por José Marcos Mariani de MACEDO, in Georg LUKÁCS, “As formas da grande
épica...”, op. cit., p. 56.
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o romance, “... peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo”,
394
tem
em seu início e seu fim dois marcos de sentido. Lukács não está vinculando início e
fim de um romance ao início e ao fim da vida de um homem, certo? Não
necessariamente. Mas um romance começar onde começa e terminar onde termina
significa o quê? Que aquele segmento escolhido para ser o romance-em-si constitui
o “único segmento essencial determinado pelo problema”,
395
e um romance quer
dizer, sempre, um problema... E todas as referências a um antes ou a um depois são
meras estratégias para dotar de sentido aquele segmento, e não outro.
— E daí? Quero dizer, o que acontece então na epopéia, e o que acontece
em Vila Real? — indagou o meu interlocutor.
— Você é prático demais em questões teóricas... Lukács diz que uma vida
só vale a pena ser representada num romance se aquela vida está conectada, ela
mesma, a um sistema de idéias, e é por estarmos representando uma vida ligada a
idéias que se pode falar de uma forma biográfica, e não por estarmos meramente a
representar uma vida, e ponto, já que não há, na vida de todos os dias, aquilo a que
se chama “uma vida”, havendo tão somente acontecimentos esparsos e sem
narratividade. A epopéia, diz Lukács, é, por sua vez, um amálgama formado por
vida e aventuras relevantes, que não se podem separar. Seus inícios e seus finais
constituem recortes necessários para dar forma àquela manifestação, mas tanto
podem ser uns quanto outros: “... são instantes de grande intensidade, semelhantes
a outros que constituem pontos culminantes do todo, mas nunca significam mais
que a origem ou o desenlace de grandes tensões”.
396
Vila Real inicia-se com uma
notícia de guerra iminente, mais uma, a agravar a situação do povo de Argemiro.
Essa notícia que aciona o romance constitui mais um obstáculo, entre outros que
esse mesmo povo superou e terá de superar, o mesmo se podendo dizer do final do
livro, a ilustrar uma outra promessa de guerra, mais uma: “... e lá ficaram para
combater pelo que tinha sido tomado sem razão. E não se sabe o resultado, mas se
cobriram de poeira e glória e até hoje estão pelo sertão e os gritos que deram
talvez se ouçam ainda agora” (Vila Real, p. 176).
394
“As formas da grande épica...”, op. cit., p. 82.
395
Id., p. 83.
396
Id., p. 84.
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— ... tenho a impressão, como eu ia dizendo, de que você está reduzindo o
romance a uma vontade de demonstração de muitas das belas idéias do Lukács.
— Não, não estou — defendi-me —, mas, de todo modo, essa sua crítica
foi pesada...
— Não, não me leve assim tão a sério. Eu sou apenas a sua possibilidade
de diálogo. Não me superestime, mas também não deixe de me ouvir... Vila Real,
como já vimos e veremos, é um romance engajado, e por isso não se aplicam a ele
determinadas características presentes no que Lukács está chamando de o cosmos
épico. Diz ele que epopéia e tragédia não conhecem nem o crime nem a loucura e
que a epopéia ou constitui um mundo infantil onde a transgressão de normas
fortes gera uma vontade de vingança, que por sua vez gera outra vontade de
vingança, e assim ad infinitum, ou é a pura teodicéia, onde crime e castigo têm o
mesmo peso nas balanças divinas etc. etc.
397
— E continuou: — Não se trata,
evidentemente, do caso de Vila Real. O narrador aqui levanta o véu do que está
muito bem caracterizado como um crime. Transformar Vila Real numa epopéia é,
de certo modo, despolitizar o romance.
— Eu não olho para Vila Real como uma epopéia; eu olho para Argemiro
como um herói épico... E ainda creio que podemos, sim, mesmo com o risco de
despolitizarmos o romance, olhá-lo, ao romance por inteiro, como se olhássemos
para um mundo épico. Ouça aqui o que diz novamente o Mário Pontes, em outro
pedaço da matéria que eu já citei:
... isso é Vila Real: um conto cujos antepassados próximos são as gestas e os
romances de cavalaria. Renunciando ao uso de recursos do realismo tout-court ou
de qualquer um dos realismo adjetivados e em moda, o escritor se vale de alguns
daqueles elementos comuns às narrativas épicas, características de povos que
ainda não transpuseram o portal da modernidade. (...)
Essa opção por uma forma eminentemente poética, épica e, portanto, quase
arcaica de narrar (...) coaduna-se perfeitamente com a realidade levada para as
páginas de Vila Real. O sertão nordestino (...) é uma área cultural ainda
fortemente marcada por traços medievais. Da concepção basicamente ptolomaica
do universo, que é a da maioria de seus habitantes, à maneira como eles se
relacionam com o sobrenatural...
398
397
Id., p. 60-61.
398
“Epopéia no sertão”, Jornal do Brasil, 4 ago. 1979.
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— E por que eu olho para Argemiro como se olhasse para um pobre herói
épico? — retomei. — O ponto mais sólido em que me apoiei para falar do espírito
de uma epopéia sertaneja foi justamente a ausência, no herói, de um tipo de
subjetividade que é, este sim, característico do romance: uma subjetividade
problemática. “... à falta de um centro biográfico nos romances, estes tenderiam à
epopéia”, diz o tradutor de Lukács, José Marcos Mariani de Macedo, citando
Adorno.
399
E por que problemática? Porque ela se alimenta de um descompasso,
de uma clivagem, entre o mundo e o homem. Vejamos o que diz o Lukács, e
depois vejamos o que acontece em Vila Real:
... Quando o indivíduo não é problemático, seus objetivos lhe são dados com
evidência imediata, e o mundo (...) pode lhe reservar somente obstáculos e
dificuldades para a realização deles, mas nunca um perigo intrinsecamente sério.
O perigo só surge quando o mundo exterior não se liga mais a idéias, quando
estas se transformam em fatos psicológicos subjetivos, em ideais, no homem.
400
— O que acontece em Vila Real — continuei — é tudo, menos um
descompasso entre o homem e o seu universo exterior, porque o homem, sendo
não-problemático, é aquele que sabe de si. “Que os mistérios não são” (Vila Real,
p. 109), diz o narrador. Uma das mais visíveis tarefas do narrador, aqui, é
estabelecer relações de causalidade entre o que sabe e sente um homem e o que
ele percebe como sendo uma reação àquilo tudo no mundo das coisas. Temos
então, como sinais desse caráter não-problemático do herói, dou-lhe exemplos, a
certeza na concretude de algumas prioridades. Um, Argemiro sabe, e sente, que a
terra é “a coisa mais verdadeira que existe” (p. 36), muito mais verdadeira até do
que ele mesmo. Dois, a capacidade de poder conhecer o outro homem em função
do que se conhece acerca de si mesmo, simplificando, assim, enormemente, a
existência: “Um homem que termina uma coisa construída como vê a noite? Vê
em paz, uma noite funda como um funil e a vida aberta” (p. 43). Três, a
capacidade de transferir para o mundo, e assim materializá-las, as intuições:
“Argemiro soube que chegava o povo do filho de Lourival (...). Viu pelos cabelos
eriçados dos cachorros e mesmo observou pelas cintilações novas das estrelas” (p.
399
Th. W. ADORNO, “Posição do narrador no romance contemporâneo”, in Os pensadores, São
Paulo, Abril Cultural, 1980, p. 273, citado por José Marcos Mariani de M
ACEDO, in Georg
LUKÁCS, “As formas da grande épica...”, op. cit., p. 79, nota 35.
400
“As formas da grande épica...”, op. cit., p. 79.
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231
57). E, por fim, quatro, o controle sobre a morte, que parece ser dos mais
significativos emblemas dessa continuidade com o mundo. Diz o narrador, logo
ao início do livro, que o personagem “Secundino morreu como prometera fazer”:
... Tirou a dentadura de que costumava gabar-se quando ficava bêbado e a
entregou a sua mulher, Severa, dizendo:
— Com esta dentadura, você presenteie a primeira pessoa necessitada que
mereça. (...).
— Você vai precisar da dentadura para mastigar — disse Severa.
— Não — respondeu Secundino. — Nesta boca não entra mais nem comida
nem bebida.
Cruzou os braços sobre a barriga ferida, descansou as costas na árvore que lhe
dava cobertura e não quis mais mexer-se. (...) ... morreu de maneira quieta e foi
encontrado de manhã cedo (...). Severa tentou pôr nele de novo a dentadura (...),
mas a boca do velho não se abriu (...). (p. 13-14)
— Há um personagem de Viva o povo... que está em par com Argemiro no
que se refere a esta necessidade de desproblematizar a existência através da
estratégia de tornar o mundo familiar...
Filomeno...
— Filomeno Cabrito. Exatamente. Você já leu Viva o povo brasileiro?
Estamos sintonizados... Ouça aqui: “... nunca lhe tirariam a ventura de viver como
sempre quisera viver, no meio de sua terra, falando as suas palavras, comendo sua
comida, sabendo de suas respostas, não vendo em ninguém um estranho, tudo
como deve ser no mundo...” (Viva o povo..., p. 551). E não há nada mais conforme
“ao que deve ser” do que a morte... Também o velho Onofre, pai de Argemiro,
que no dia anterior à sua morte redistribuiu as obrigações entre todos — continuei,
animado —, é um belo exemplo desse destemor diante do fim da vida, destemor
que vamos encontrar mais à frente, já que você citou o Viva o povo..., na
personagem Dadinha, à página 82, ciente de que morreria no dia de seus cem
anos. O velho Onofre, então, perguntado sobre suas razões, respondeu que
daquele dia não passava, e “de fato amanheceu o dia morto (...). ... morreu quieto,
como quem diz a um carroceiro — agora siga, e assim segue, sabendo ter
cumprido a obrigação e sem medo de nada, porque não há do que ter medo” (Vila
Real, p. 115). Um mundo em que a morte não é temida e não é uma questão; um
mundo em que os homens vivem porque morrem e morrem porque vivem; um
mundo em que se pode dizer: “... eu quero é saber que na hora estou morrendo e
entregar minha carcaça ao deus que aparecer” (p. 169), diz o combatente Alarico;
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este é um mundo de homens não-problemáticos. Não é, meu crítico e atento
interlocutor, definitivamente, o mundo do romance.
4.6. O NARRADOR-BRASILEIRO: A BOA E VELHA QUESTÃO DA IDENTIDADE
— Eu quero retomar aqui dois aspectos de nossa conversa sobre Vila Real
— disse o meu interlocutor —; dois aspectos que ficaram lá para trás e que nem
eu nem você abordamos, e eu quero fazer isso antes que você o faça...
— Faça-o, enquanto eu faço outra coisa: mais café — e me levantei.
— Nem Balzac bebia tanto café assim... Inspirado por tudo o que você
falou sobre o texto de Silviano Santiago, eu afirmei que Vila Real tem por
“questão” a necessidade de o discurso de Argemiro ser “legível, total e
potentemente legível por todos”.
401
Essa legibilidade não apenas diz respeito aos
aspectos da eficácia do poder: o poder de Argemiro sobre a sua comunidade, o ter
a capacidade de se fazer obedecer, ter a possibilidade de se fazer respeitar e de se
fazer ouvir...
402
Essa legibilidade deve ser ampliada. Como? Vamos seguir essa
trilha: Vila Real tem por “questão” a necessidade de o seu discurso, não apenas o
discurso do protagonista, mas o seu discurso como romance que é, como texto
brasileiro em prosa, como manifestação artística, como literatura brasileira, escrita
por autor brasileiro que quer ser lido por um público brasileiro, cada vez mais
numeroso... a necessidade de esse romance ser legível, total e potentemente
legível por todos os seus leitores.
— Então — meti-me em seu raciocínio —, você quer dizer que não apenas
Argemiro, mas também o narrador e, antes de tudo, o próprio João Ubaldo Ribeiro
estão, cada um, comprometidos com a procura de uma legitimação: o discurso de
401
— Veja, neste capítulo, a página 214 — disse ele, abrindo uma notinha com a mão.
402
— E me lembrei — disse ele, abrindo mais uma notinha — do professor José Carlos
RODRIGUES. Diz ele, acerca da definição de poder, e em melhores palavras: “... a definição é
tautológica. Ao incluir na definição o objeto a definir, impõe um retrocesso lógico que, sob a
aparência de um procedimento intelectual de penetração, de aprofundamento e exame crítico,
se limita a confirmar e a legitimar pré-noções sobre o poder que já povoavam nossas mentes.
Assim, poder é a ‘capacidade de’, é a ‘possibilidade de’, é ‘dispor dos meios de’, é a
‘superioridade sobre’ — expressões que em última instância significam que ‘poder é poder’:
poderíamos perfeitamente reescrever a definição, simplesmente dizendo que poder é ‘poder’
usar os meios de exercício da violência, que poder é ‘poder’ levar o adversário à morte e assim
por diante” (“Quatro mitos e uma ilusão” (p. 169-287), in Tabu da morte, Rio de Janeiro,
Achiamé, 1983, p. 275).
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Argemiro ao seu povo, as descrições do narrador e a narrativa romanesca do
escritor querem ser eficazes na medida em que conseguem ser legíveis? Não
precisa responder... Eu concordo. E, você tinha razão, era isso mesmo o que eu ia
dizer. A publicação de Vila Real deu-se numa época em que João Ubaldo Ribeiro
estava, como nunca antes esteve...
— E talvez como nunca depois estará...
— Pois. ... preocupado em encontrar, com o seu texto, algo que soasse
indubitavelmente brasileiro. E isso, em João Ubaldo Ribeiro, era evidente e
sempre foi a sua marca. Ouça este depoimento do Antônio Torres e lembre-se do
que disse o Silviano Santiago acerca da capacidade do romance de deleitar,
comover e ainda ensinar: “Vila Real, de João Ubaldo Ribeiro, O cobrador, de
Rubem Fonseca, e Sangue na praça, de Edilberto Coutinho, são livros brasileiros,
relatando problemas brasileiros, cada um à sua maneira, arte e beleza conjugadas
que podem encantar e fazer pensar cada leitor”.
403
Observe agora a
afirmatividade quase agressiva dessa postura, estamos em 1979: “... eu me
considero” diz João Ubaldo Ribeiro à jornalista Vera Martins, “um dos escritores
brasileiros importantes. (...) Dou o meu recado com a maior arrogância. E o que se
pode ver de básico nos meus livros é que eles são brasileiros. Tenho absoluta
segurança da minha individualidade”.
404
Essa singularidade textual, esse som, esse
vocabulário e essa sintaxe que vamos encontrar em Vila Real, a tudo isso ele vai
chamar “identidade brasileira”. Veja esta declaração à imprensa, datada do
próprio ano em que saiu o livro, e em seguida o que ele diz a um jornalista
americano, um ano antes:
(i)Ao escrevê-lo, eu estava preocupado com um dos problemas básicos do
país, hoje, que é a afirmação da identidade brasileira. Essa afirmação começa pela
língua. (...) Quando digo que escrevo de uma forma não colonizada, não estou
desenvolvendo nenhuma xenofobia. Estou apenas criticando uma certa
subserviência a padrões estrangeiros.
405
(ii)I am not fascinating. I am lonely and frustrated. I live in a nation with
110 million people. Most of these people are presently living in conditions that
would be unbelievable to you. I have a culture and a heritage. I have a language.
403
Vivian WYLLER, “Para os amigos no Natal, o melhor de 1979”, Jornal do Brasil, 15 dez. de
1979 (depoimento de Antônio TORRES). Realcei.
404
“Dou meu recado com arrogância”, S. L., “Vila Real”, IstoÉ, 11 jul. 1979.
405
Roberto GONÇALVES, “João Ubaldo: ‘Meu livro não é um comício...’”, Jornal do Brasil, 1979.
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I have seem your movies and I have learned your songs. You know nothing about
mine. I know little sounds that are unknown to you, and you know little sounds
that are unknown to me. I belong in the same tradition as you do; I am Western
and came from Iberia and Africa and America. But also I am Brazilian and you
are American. Let us try to understand each other.
406
— Contudo — disse ele —, agora vamos brigar, e isso era a segunda coisa
que eu queria dizer: entramos, nessa busca por uma identidade textual brasileira,
numa outra espécie de dificuldade, a dificuldade e o perigo de se confundir uma
legitimidade com a sua, conseqüente ou não, legibilidade. Estou fazendo
referência, agora, à capacidade de leitura de um presumido público leitor, e
gostaria de citar aqui mais uma vez o texto de Silviano, um texto bastante feliz em
toda essa discussão, um texto escrito em 1978, um ano antes, portanto, da
publicação de Vila Real, um texto que nós já vimos em nossa conversa sobre
Sargento Getúlio, mas que também aqui se aplica, um texto onde se desenha o
quadro da pouca presença em nosso país da “criatura leitora” e da pouca eficácia,
do ponto de vista de um projeto social e político, de uma literatura que se pretenda
“conscientizadora”. Veja que Ubaldo, na declaração que você citou, está
criticando uma subserviência, por parte do público, e, nesse caso, do público
leitor, a padrões estrangeiros. Agora veja também que Silviano Santiago, nesse
texto, afirma que é pouco xenófobo o leitor de ficção brasileira.
407
— Não seria melhor dizer “o leitor brasileiro de ficção”? — interrompi-o.
— O “leitor brasileiro de ficção estrangeira”...
— É verdade, mas ele escreveu assim mesmo, como eu disse... E dizer que
esse leitor é pouco xenófobo equivale quase que a um eufemismo, não é? Ele
poderia dizer “leitor colonizado”, isso sim, já que menciona o fato de o romance
estrangeiro ter, aqui, melhor mercado que o nacional,
408
não? — E ele prosseguiu:
406
— E traduzo livremente: “Eu não estou fascinado. Eu estou sozinho e frustrado. Eu vivo num
país com 110 milhões de pessoas. A maioria dessas pessoas vive sob condições que seriam
inacreditáveis para você. Eu tenho uma cultura e uma herança. Eu tenho uma língua. Eu vi os
seus filmes e aprendi as suas canções. Você não sabe nada a meu respeito. Eu conheço
pequenos sons que são desconhecidos para você, e você conhece pequenos sons que são
desconhecidos para mim. Eu pertenço à mesma tradição a que você pertence; eu sou ocidental
e vim da Península Ibérica, da África e da América. Mas, além disso, eu sou brasileiro e você é
americano. Vamos tentar entender um ao outro” (“João Ubaldo Ribeiro”, Contemporary
Authors, 1978
).
407
Silviano SANTIAGO, “Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 26.
408
Id., ibid.
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235
— E essa postura colonizada configura justamente aquilo contra o qual Ubaldo
parece brigar, não é mesmo?
— É. Está aqui na contracapa da edição brasileira de Vila Real. Ouça:
“Procuro, basicamente, fazer uma literatura vinculada às minhas raízes,
independente, não colonizada, comprometida com a afirmação da identidade
brasileira”.
409
— O problema é que justamente essa literatura vinculada às raízes,
“independente” e “não colonizada” — continuou o meu interlocutor —, diante de
um público leitor como esse apontado por Silviano, pouco xenófobo e colonizado,
e também diante de um panorama crítico pouco convidativo, que não consegue
“apreender a qualidade da ficção brasileira em si”...
410
Diante desse quadro, livros
como Vila Real, que Silviano não menciona porque ainda não havia sido
publicado, mas que poderia ter mencionado porque é justamente o caso, o caso do
“livro um pouco estranho (isto é, experimental)”, acabam confinados a um público
bastante reduzido, o público do “gosto refinado, cosmopolita e auto-suficiente dos
happy few”,
411
nas palavras de Silviano.
— E o próprio autor, deixe-me completar — pedi —; o próprio autor tem
consciência da parca penetração de livros como Vila Real, sim, embora não se
conforme. Diz uma jornalista que, “apesar do sucesso internacional de crítica de
seus livros, João Ubaldo Ribeiro ainda não estourou no mercado da literatura no
país...”.
412
E disse João Ubaldo Ribeiro, também num tom presumivelmente
agressivo, num texto sem data mas creio que da década de 70 ou 80:
— ... já viram que a coisa que brasileiro mais gosta é que gringo diga que ele é
bom? Comigo mesmo aconteceu isto, porque, quando meu livro saiu nos Estados
Unidos e os americanos gostaram (embora escrevendo besteiras incríveis, na
maior parte dos casos), houve grandes festejos locais e recebi propostas de (...)
um porrilhão de países sobre os quais sei muito pouca coisa, nem quero saber.
413
409
Primeira edição de Vila Real, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979.
410
Silviano SANTIAGO, “Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 26.
411
Id., p. 27.
412
“Dou meu recado com arrogância”, S. L., “Vila Real”, IstoÉ, 11 jul. 1979.
413
João Ubaldo RIBEIRO, “O analfabetismo erudito”, Enfim.
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— Você diz que ele não se conforma... Não se conforma por quê? Porque
não o considera experimental...
— Talvez não o considere, propriamente, experimental, mas apenas
difícil... — eu disse. — Ouça esses trechos de matérias que tenho aqui: “Vila Real
é meu romance órfão, todo mundo diz que é difícil, vende pouco. Fico sacaneado
com isso, não acho difícil, mas, enfim”,
414
diz ele, que “lamenta certo descaso
perante o livro e a obsessão perante Sargento Getúlio. No fundo, Vila Real vive lá
no cantinho de seu coração”,
415
e completa: “... — há fãs ardorosos. João Bosco
adora, sabe de cor”.
416
Mas — e franzi o cenho —, enfim, onde é que você quer
chegar com tudo isso?
— Aqui: romances como Vila Real, que levantam “problemas de classe ou
de grupos marginalizados pelo processo político neocapitalista e repressivo”, não
conseguem “propor reflexões a camadas sociais diferentes”.
417
Por quê? Porque
não conseguem ampliar o seu público leitor. Por quê? Porque o seu veículo, o
livro, é elitista, como aponta Silviano. Essa busca por um verbo brasileiro e um
modo de ser brasileiro, refletido na literatura, acaba por torná-la, a essa literatura,
inacessível e elitista.
— Não. Uma literatura que toca nos problemas sociais dos grupos
marginalizados, que é o que faz o narrador em Vila Real, torna-se elitista a
posteriori; não por razões intrínsecas ao livro, ao discurso, ao romance, e sim por
razões que se relacionam à distribuição de renda e de cultura no país. Não concordo
com essa idéia — insisti —, ou então não concordo com a sua maneira de dispor do
texto de Silviano Santiago. O fato de romances como Vila Real não conseguirem
atingir mais que um pequeno grupo de leitores não os caracteriza como elitistas.
— A própria resenha do jornalista Renato Pompeu toca nesse aspecto do
romance; toca porque fica muito difícil deixar passar em branco esse relativo
hermetismo de Vila Real: hermetismo que conduz a elitismo, elitismo que resulta
num público-leitor reduzidíssimo. Ouça — e ele leu:
414
“João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985.
415
Cremilda MEDINA, “No caminho das almas...”, Diário de Notícias, 14 dez. 1984.
416
Daniela NAME, “As ilhas de Ubaldo”, O Globo, 3 ago. 1997.
417
Silviano SANTIAGO, “Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 29.
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... Mas, sem ser um simples pretexto, essa história, ou seja, o chamado
“enredo”, é na verdade oportunidade para exercícios de alta tensão literária.
Não há como esconder que o leitor (...) vá sentir inicialmente dificuldade com
a prosa poética de João Ubaldo Ribeiro. Ocorrerá compreensível estranheza com
suas inovadoras concepções de forma e conteúdo.
418
— Ou seja, um romance experimental, sim. Mas se você não gosta dessa
palavra, elitismo — disse ele, parecendo um pouco perdido —, podemos dizer que
a força narrativa de Vila Real explode no vazio porque àquela busca por uma
prosa legitimamente brasileira não vai corresponder nenhuma, ou quase nenhuma,
legibilidade fora dos círculos intelectuais e acadêmicos.
— Agora você está retirando toda a importância da recepção pelos círculos
intelectuais e acadêmicos... Silviano dirá nesse mesmo texto que a área de
recepção do livro de ficção é mínima, sim, mas “nem por isso sem
importância”.
419
— Continuo — e ele continuou. — Se Argemiro consegue falar a seu povo,
diretamente, encontrando as palavras compreendidas por esse povo, o mesmo não
se poderá dizer do romance como um todo, que, ao fazer a transposição dessa
língua “popular” para a sua estrutura formal, não encontrará eco algum ou mesmo
vestígio algum de um “povo leitor”. E por quê? O próprio Ubaldo responde — e o
meu interlocutor me estendeu, vitorioso, um recorte de jornal, retirado de nossos
compridos arquivos. — Veja o que acabei de descobrir: “Em Vila Real, uso a
linguagem popular, mas não a oral, e sim a forma que ela toma quando escrita. Faço
largo uso das estruturas arcaizantes que ainda se encontram no Nordeste. Daí
porque posso dizer que meu livro aspira a um modelo clássico nordestino”.
420
— Isso quer dizer...
— Isso quer dizer — adiantou-se ele — que Vila Real está distante de
qualquer linguagem atualizada e comunicativa, porque está distante da proposta
de uma arte “mais voltada para os anseios e a vontade popular (...); [d]a proposta
418
“Alta tensão”, Veja, 18 jul. 1979.
419
Silviano SANTIAGO, “Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 26.
420
Roberto GONÇALVES, “João Ubaldo: ‘Meu livro não é um comício...’”, Jornal do Brasil, 1979.
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de um texto menos difícil, porque menos enigmático, mais acessível ao geral da
população”, escreveu Silviano Santiago.
421
— Não. Isso quer dizer que um romance não deve reduzir-se a um panfleto
que tenha por meta conscientizar as massas. Isso, sim, é literatura populista. E eu
lhe digo — e olhei bem para ele — que Vila Real se destaca desse conjunto visado
por Silviano Santiago, esse conjunto que ele chamou de uma “escrita ficcional
populista”, pelas mesmas razões graças às quais Sargento Getúlio também se
destaca, como já vimos antes: por causa da postura do narrador.
— Cá estamos novamente no narrador... — e ele sorriu com alguma
ternura.
— Sim, e a ele sempre retornaremos... Vila Real põe em funcionamento
um narrador que consegue estar sempre no outro lugar, e o outro lugar localiza-se
a uma segura distância daquele lugar clássico reservado ao narrador intelectual, a
assistir de camarote às mazelas das camadas oprimidas etc. etc. Não há, em Vila
Real, sequer arquibancadas. Veja ainda isto: o que diz Silviano que falta ao texto
populista é justamente aquilo que temos de sobra em Vila Real. Ouça: “Falta ao
texto populista (...) a exibição das chagas de quem tem sofrido perseguições e
mutilações, chagas que eclodiriam num texto abafado e ríspido, fúnebre e
cinza”.
422
Você muito bem recuperou, lá atrás, a resenha do Renato Pompeu sobre
Vila Real. Faço eu agora, da mesma resenha, um outro uso, estimulado por essa
afirmativa de Silviano:
... a poesia de João Ubaldo Ribeiro, ao contrário do que aconteceu com a
esmagadora maioria dos prosistas luso-brasileiros com pretensão à sonoridade,
não está baseada na exploração dos jogos com as vogais (...). Pelo contrário, ela
parece seguir a tradição anglo-saxônica e dar precedência à sonoridade das
consoantes, às aliterações e contrastes advindos da repetição e/ou alternância das
consoantes. Assim, sua prosa, se perde em suavidade, ganha em ossatura.
(...) Mas a que vem essa forma requintada, se o próprio autor, como diz na
contracapa, não se pretende um beletrista? (...) Ora, o romance lida com o sertão.
E da mesma forma que, atrás da rudeza e brutalidade dos sons do texto, se
esconde uma poesia que aspira à beleza, também por trás da paisagem rude do
sertão (...) esconde-se uma certa beleza agreste bastante pungente.
423
421
“Repressão e censura no campo das artes na década de 70” (p. 47-55), in Vale quanto pesa, op.
cit., p. 55.
422
Silviano SANTIAGO, “Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 30.
423
“Alta tensão”, Veja, 18 jul. 1979, realcei.
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— E agora — disse o meu interlocutor, com o romance na mão e bastante
satisfeito por me ter posto para falar —, farei algo muito melhor. Não adianta
você ilustrar um discurso explicativo, o do Silviano, com outro discurso
explicativo, o do Pompeu. O que eu proponho é um diálogo direto: ilustrarmos os
dois com o texto literário. Então, acerca da materialidade áspera da palavra,
vejamos o discurso do próprio Argemiro, misturado ao do narrador. Permita-me
uma leitura longa. Vale a pena.
... Entretanto, o que mais doeu foi o Verbo. O qual acometeu os ouvidos e as
partes falantes por baixo das bochechas, (...) esboroou as peças interiores dos
ouvidos e repicou nos ossos do crânio com marteladas (...). Igualmente a um
arroto, subiu uma seta farpada pelos ocos da barriga, mas, em lugar de atingir o
goto, esvaiu-se como coisas gasosas por todo o meio da cara e então retiniu uma
clarinada e acompanhantes ribombos de zabumbas rastreando de cobra por cima
dos descampados (...). ... as minhas palavras vieram para dentro de mim em
forma de bofetadas (...) e verrumas e tantas travoelas e lancetas entre as
curvaturas delicadas de meus ouvidos mais íntimos... (p. 145-146)
— Tudo isto significa, mais uma vez — disse eu —, que Silviano está aqui
a exaltar um narrador que tenha algo a ver, efetivamente, com aquilo que está ali
narrando, e não um narrador bem-intencionado, sim, mas elitista no uso de seu
discurso ficcional, que se torna então “réplica (no duplo sentido: cópia e
contestação) do discurso de uma classe social dominante, que quer se enxergar
melhor (...), que quer se conhecer a si mesma melhor, saber por onde anda e por
onde anda o país que governa”.
424
E essa identificação do narrador com o contexto
narrado está refletida, em toda a sua materialidade, na linguagem áspera e
embrutecida por dentro da qual vamos acompanhando o protagonista. Você
escolheu um ótimo trecho. E é por isso que Jorge Amado se referiu ao romance
Vila Real como sendo Os sertõesreescrito”...
— “E assim como em Canudos só houve respeito depois da morte geral,
aqui também que seja assim” (Vila Real, p. 74) — ia lendo, animado, o meu
interlocutor. E, de repente, parou: — Mas por que reescrito?
— Isso, você pegou! Jorge Amado pegou! A matéria de onde tirei isso diz:
“A personagem central do romance, Argemiro, rude homem do campo que se
transforma em líder de um movimento de resistência à expulsão da terra onde vive
424
Silviano SANTIAGO, “Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 28.
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240
e trabalha, lembra (...) a figura de Antônio Conselheiro. Jorge Amado comentou:
‘É Os sertões reescrito’”.
425
Por que haveria Os sertões de ser reescrito? Por que
precisaria ser reescrito? Para corrigir talvez, aspemos a palavra, a sua “deficiência
estrutural”: o narrador, o narrador-intelectual, jornalista, crítico, porta-voz de um
discurso científico.
— E, para não perdermos o jogo entre os nomes... esse narrador
euclideano... Ouça — disse ele, com o romance na mão —: “De lá vieram os que
mataram Canudos e conhecem o que é melhor para nós. Pois trazem as palavras...
— ... que fazem com que matem sem remorsos” (Vila Real, p. 150) —
completei. — Silviano Santiago menciona Euclides da Cunha, nesse artigo “Vale
quanto pesa”, mas apenas para situá-lo como o narrador-antropólogo que está, de
“caderneta de campo” à mão, a anotar “com minúcia de lingüista” as expressões e
o falar caboclos, enquanto presencia “o dia-a-dia dos homens do Conselheiro”.
426
Mas Silviano pára aí e não menciona Euclides da Cunha como o personagem “de
fora”, um narrador alheio àquilo tudo, ao início crítico daquilo tudo e apenas
depois, bem depois, entendedor do que aquilo representava. Imagine-se agora a
mudança do ponto de vista: um discípulo de Antônio Conselheiro, ou ele mesmo,
o próprio, a escrever, ou melhor, falar, aquela história. Temos, guardadas as
proporções e as diferenças, o espírito de Vila Real, cujo narrador, e à frente o
escritor João Ubaldo Ribeiro, não consulta as notas minuciosas de uma caderneta
de campo, mas apenas a memória, a sua memória pessoal, a memória de quem
está escrevendo sobre a própria infância.
427
Ouça: “... tanto Sargento Getúlio
quanto Vila Real são obras cujas bases assentam na minha infância. Aliás, acho
que a gente só escreve sobre a infância”,
428
diz o escritor.
— Silviano menciona Euclides da Cunha, mas também Guimarães Rosa,
ambos citados como exemplos do escritor-antropólogo... — disse ele, e me estendeu
425
Roberto GONÇALVES, “João Ubaldo: ‘Meu livro não é um comício...’”, Jornal do Brasil, 1979.
426
“Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 37.
427
— O mesmo, aliás — interrompeu-me o meu interlocutor —, disse Jorge Amado. Ouça: “Eu
nunca tomo notas. Como escrevo sobre aquilo que vivi, aquilo que conheço, uso muito minha
memória” (Jorge Amado, citado por Antônio Fernando de F
RANCESCHI (org.), Jorge Amado,
Cadernos de Literatura Brasileira, n
o
3, São Paulo, Instituto Moreira Salles, 1997, citado por
Ilana Seltzer G
OLDSTEIN, “As criaturas ganham vida própria e o criador se torna criatura” (p.
217-269), in O Brasil Best Seller de Jorge Amado — Literatura e identidade nacional, São
Paulo, Senac Editora, p. 220).
428
Roberto GONÇALVES, “João Ubaldo: ‘Meu livro não é um comício...’”, Jornal do Brasil, 1979.
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uma reportagem de 1979. — E veja a pertinência de estarmos aqui a utilizar, para
falarmos de Vila Real, este texto de Silviano Santiago, texto em que seus dois
exemplos são justamente Euclides da Cunha e João Guimarães Rosa. — E ele leu:
... Esse novo romance de João Ubaldo Ribeiro (...) descreve amplos
movimentos de multidão, mas tudo parado, tudo deliberadamente fechado numa
narração murmurante que se recusa a subir de tom. Parece coisa talhada em
madeira. No tema como no tratamento, foi grande o risco que ele aceitou, pois
teve que abrir uma brecha, uma picada através de dois píncaros: Os sertões e
Grande Sertão: veredas.
429
— Boa inclusão. De todo modo, Rosa, através justamente de seu narrador,
permite que se misturem os discursos, o que não acontece com Euclides...
— É curioso isto o que aconteceu agora... — disse ele. — Um mesmo
texto, este do Silviano Santiago, a dar vazão a duas leituras e duas aplicações tão
diferentes... É a tal da hermenêutica, essa senhora tão idosa... — e ele sorriu.
— Mas eu ainda não acabei... Toma lugar aqui uma espécie de dança das
cadeiras: sai então do assento do discurso o narrador-intelectual, que cede a palavra,
por sua vez, ao narrador do povo, o “antípoda do ‘filho do fazendeiro’, pois nem
mesmo chegou a conhecer seu pai”, diz Silviano, tendo em mira, para essa
afirmativa, o personagem Riobaldo, “Deserdado pela sorte masculina e viajeira do
sertão, deserdado ainda pelos sucessivos processos violentos (...) da colonização e
do mandonismo local, sua vida é uma busca do nome verdadeiro, mas que nunca
será o nome de família”.
430
E nós aqui podemos, por nossa vez, fazer a comparação
que Silviano não pôde fazer, entre ele, o Urutu-Branco, o Tatarana, e...
— ... e o nosso Argemiro Meia-Lua. Deixe-me ler o trecho — pediu o meu
interlocutor:
... Soube que toda frase deve ter sete pancadas, porque esta é a marcação da
terra, que nossos ouvidos já têm o costume de acompanhar. Bem como os nomes
dos homens, por isso que se batizou nesta hora de Argemiro Meia-Lua.
Mas o meu nome, disse ele, afastando as batinas, as cordas e os cordões para
os lados, o meu nome é Argemiro Meia-Lua. Como fogo, como trovão, como lua,
como o que for preciso. O meu nome, disse ele, com a mais alta alegria (...): o
meu nome é Argemiro Meia-Lua. (p. 158)
429
José Carlos OLIVEIRA, “Isto e aquilo”, Jornal do Brasil, 26 set. 1979.
430
“Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 35.
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— Mas note que nem mesmo Guimarães Rosa vai escapar da pena afiada
de Silviano... E Rosa não vai escapar — continuou ele, subitamente animado em
discordar de mim mais uma vez — justamente porque “seu deixar falar o outro
comporta ainda uma visão elitista da literatura”.
431
E você disse o mesmo agora há
pouco. Disse-o também de maneira elitista, condescendente: “... sai então do
assento do discurso o narrador-intelectual, que cede a palavra, por sua vez, ao
narrador do povo”.
— Concordo, concordo, mas não aplique essa atitude condescendente ao
narrador de João Ubaldo Ribeiro em Vila Real, onde será Argemiro aquele que vai
conquistar/tomar a palavra, e o narrador faz o seu trabalho a partir de dentro, de
dentro do clã. E também não aplique a condescendência, como já vimos, a
Sargento Getúlio, porque o caso de Getúlio salta aos olhos pela sua potência: a
potência de quem não pede licença para falar e fala até a morte, literalmente. — E
eu ainda continuei, porque precisava esclarecer um ponto: — Observe, meu caro,
que eu sugeri aqui uma comparação de Argemiro com Riobaldo, e não a
comparação de um tom narrativo com outro. Não confunda o personagem
Riobaldo com o narrador em primeira pessoa na pele de Riobaldo. Nós já fizemos
essa distinção lá atrás, em nossa conversa sobre Sargento Getúlio...
— Distinção que, no entanto, permanece confusa e problemática... —
reclamou.
— Sim, mas não é isso o que quero esclarecer. Interessa-me agora o
espírito que orienta a narrativa, e o espírito que mora em Vila Real não é o de um
escritor-antropólogo; é antes um espírito sociológico.
432
Estou seguindo os passos
que você mesmo me apontou, quando propôs que voltássemos a esse texto de
Silviano Santiago, praticamente contemporâneo de Vila Real. E Silviano, na
página 39, aponta o discurso literário-antropológico como inativo e inapropriado
para a velha questão de origem, qual seja, a necessidade de mudança social, e isso
porque, por mais que deixe falar o outro, e o outro, graças a essa postura, de fato
431
Id., p. 37 (realces em itálico do Silviano Santiago, realces em negrito do meu interlocutor).
432
— Ilustro a idéia, nessa notinha, com palavras do próprio autor, sempre preocupado em não
solenizar a própria literatura com o status do “conhecimento acadêmico”. — E li: — “Não me
qualifico para falar em cultura brasileira porque não sou antropólogo, andei apenas de raspão
por sociologia (...). ... não penso sistematicamente a respeito de problemas como o homem
brasileiro, a cultura brasileira...” (Airton G
UIMARÃES, “João Ubaldo Ribeiro — o romancista
(cont.)
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243
fala; fala de fato como nunca antes havia de fato falado, a sua preocupação
central, como espírito antropológico, é muito mais a de, cadernetinha de campo à
mão, construir a Biblioteca Verbal, a Biblioteca de Todos os Falares, com vistas à
preservação da cultura, e não agir politicamente.
— E o espírito que mora em Vila Real não é o de um escritor-antropólogo;
é antes o espírito sociológico?
— Sim. Vamos entrar nessa discussão?
— Acabamos de entrar — disse ele, e foi pegar mais café.
4.7. UBALDO, ARGEMIRO E O NARRADOR
— Você disse lá atrás — começou o meu interlocutor — que “o escritor
João Ubaldo Ribeiro não consulta as notas minuciosas de uma caderneta de campo,
mas apenas a memória, a sua memória pessoal”. Acho que podemos começar por
aqui: o antropólogo é um personagem exterior ao campo observado e descrito...
— O sociólogo também é: falam ambos a partir de seu saber. Mas, corrijo
eu mesmo a nós os dois, nós não estamos tratando com antropólogos ou
sociólogos, mas com os seus respectivos discursos e também com escritores que
esbarram nesses discursos e neles se inspiram para a (re)criação de suas
realidades. Silviano Santiago diz, estou resumindo..., que o discurso sociológico
compreende melhor a estratificação social e o desequilíbrio econômico e desse
modo propõe mais clara e agilmente uma mudança social.
433
E esse
comprometimento explícito com as questões sociais é a marca de muitos casos
literários. Vila Real, diz João Ubaldo Ribeiro — e li —, “Mostra minhas
preocupações com o socialismo e, mais do que isso, com a Sociologia do
Comportamento, que eu estudava na época. Mistura fantasia e marxismo e há um
personagem, Argemiro, que passa a noite inteira vomitando sangue”.
434
— Entendi, mas há um porém, que o próprio Silviano levanta — disse o
meu interlocutor —: o perigo de o discurso sociológico..., e conseqüentemente o
escritor que está se valendo desse discurso sociológico, ... o perigo de ele se levar
baiano passa os olhos sobre a cultura brasileira antes de ir morar na Alemanha”, Estado de
Minas, 17 mar. 1990
).
433
“Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 39.
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244
a si mesmo por demais a sério e esquecer a sua condição de um discurso
encharcado de valores pequeno-burgueses e acabar por se tornar solene em
relação a si mesmo e se tornar, por outro lado, igualmente elitista e obcecado por
seu próprio dogmatismo camuflado. — E ele colocou sobre a mesa o trecho de
uma entrevista concedida por Ubaldo por ocasião do lançamento de Vila Real:
João Ubaldo Ribeiro — Os artistas são tão falíveis quanto qualquer outra
pessoa, têm dúvidas, se preocupam com o supermercado, com o aluguel.
Vera Martins — O senhor acha que o intelectual deve ser engajado ou pode
optar por fazer simplesmente a arte pela arte?
— ... todos devem ser engajados. Você pode escrever sobre borboletas, mas é
importante ter a certeza de que também outros temas estão à disposição.
Nesta fase de abertura, o senhor acha que escritor deve ter uma
responsabilidade específica?
— É evidente que a responsabilidade do escritor é mais ampla, inclusive por
uma questão ética. Ele recebeu mais do que os outros em termos de educação, e é
justo que pague o privilégio.
435
— Há aqui — continuou o meu implacável interlocutor —, antes de tudo,
por detrás de uma mal disfarçada defesa da falibilidade do artista, uma evidente
auto-nomeação, que transcende, é claro, o contexto histórico. Não é por estar o
país a viver uma fase de abertura que Ubaldo defende um papel mais destacado
para o artista. Essa defesa soa como intransitiva.
— Ela soa, de fato, como independente de contexto histórico, mas essa
auto-nomeação não se baseia numa suposta superioridade do discurso científico,
já que nós não estamos...
— Como não? Como não? — e ele ergueu o corpo da cadeira. — “Ele
recebeu mais do que os outros em termos de educação”, declarou Ubaldo, “e é
justo que pague o privilégio”. Ora...
Pague o privilégio”..., e pague com literatura; não com qualquer
dogmatismo sociológico ou antropológico. Mais uma vez: nós não estamos
falando do cientista, mas do artista. Ouça a ressalva de Silviano:
... esses valores [valores pequeno-burgueses que o discurso sociológico
carrega consigo], transmitidos à ideologia da luta de classes, se encontram
solidificados e empedernidos pela certeza dogmática da palavra científica.
434
Daniela NAME, “As ilhas de Ubaldo”, O Globo, 3 ago. 1997.
435
“Dou meu recado com arrogância”, S. L., “Vila Real”, IstoÉ, 11 jul. 1979.
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É aí que o bisturi literário, mais impiedoso e menos comprometido com as
instituições burguesas (tanto a universidade quanto os centros de pesquisas), mais
anárquico e bandido, mais marginal enfim, pode cortar com rigor e vigor as
carnes esclerosadas da classe dominante brasileira.
436
— E digo mais — adiantei-me, antes que ele me arrancasse a palavra. —
Essa declaração de João Ubaldo Ribeiro sobre a responsabilidade do artista,
sujeito alfabetizado e informado, é uma declaração realista, de confiança na
capacidade de conscientização e mobilização que tem a arte, ou que deveria ter a
arte... “Enquanto cidadão, o artista é outra coisa e, enquanto cidadão”, diz ele, “eu
gostaria que meus livros fossem revolucionários”.
437
— Esse soa como o Ubaldo de 1979. E hoje?
— Este é um tópico posterior de nossa conversa — adverti. — Você está
com tempo? Ótimo, porque eu acho que não seria capaz de escrever a minha tese
sem esta nossa conversa... Mas se precisar ou quiser ir embora, diga... Sim, sim,
há mais café... Hum, que bom... Volto à declaração do escritor sobre a maior
responsabilidade do artista. Veja este pensamento refletido agora nas idéias do
narrador, ou seja, veja aqui a demonstração de um engajamento, ou seja, a
demonstração de que há correspondência íntima entre o que pensa um escritor e o
que diz o seu narrador.
... da mesma forma como Alarico nasceu para carregar o nosso grito em forma
de armas, nasceram os que pensam, para justificar neste mundo que exista o povo
que lhes dá o de comer. Temos desta maneira os homens militares, que
combatem, e os homens da cabeça, que pensam. Que Deus permita haver dois
num só, se bem que não goste. (Vila Real, p. 148)
— Este “haver dois num só” — disse eu, olhando para o teto — parece ser
a condição esboçada por Silviano Santiago para a produção de uma literatura mais
legítima. Não que tenha o artista de pegar na enxada, mas que, de algum modo,
ele se coloque, ou como personagem ou como narrador, numa posição mais
biográfica em relação àquela realidade. E, desse modo — continuei —, João
Ubaldo Ribeiro realiza, em Vila Real, provavelmente o seu romance mais político,
embora de menor penetração popular, vá lá. Estou dizendo isto porque Sargento
436
“Vale quanto pesa...”, op. cit., p. 40.
437
Entrevista, João Ubaldo RIBEIRO, arquivo da Ed. Nova Fronteira.
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Getúlio e Setembro não tem sentido estão por demais enredados em momentos
específicos da biografia de João Ubaldo Ribeiro: a infância e a mocidade,
respectivamente. Com Vila Real o narrador abre-se, de fato, a uma realidade
externa e urgente, embora ainda familiar, porque o sertão é o mesmo, o mesmo
sertão de Getúlio, que é o mesmo sertão de Argemiro, que é o mesmo sertão da
infância do menino João Ubaldo Ribeiro. Ouça o jornalista Mário Pontes e em
seguida o próprio escritor, numa entrevista de 1977, dois anos antes, portanto, da
publicação de Vila Real.
(i) Se o Nordeste em geral, com seus coronéis e cangaceiros, suas secas e
retiradas, inspirou toda uma geração de romancistas, o sertão em particular, com
sua herança medieval, permanece um filão quase virgem para a ficção brasileira.
A verdade é que poucos até hoje tiveram olhos para distinguir o que há de
específico na cultura plantada há séculos nas caatingas, e que, graças ao
isolamento, conservou valores já perdidos pela civilização de beira-mar. Dessa
especificidade tem consciência o contador de histórias João Ubaldo Ribeiro.
438
(ii) João Ubaldo Ribeiro — Se você ouvir o depoimento de um nordestino a
respeito do que acontece no interior do Maranhão, no interior do Piauí, no interior
da Bahia, no interior de Sergipe, você pensa que realmente ele está inventando
coisas, inclusive porque esse tipo de coisa é encorajado. A descrença em torno
desse tipo de depoimento é encorajada porque, no tipo de situação que vivemos
hoje em dia, não se quer saber da existência, por exemplo, de focos de rebeldia.
439
— O mesmo sertão de Canudos... — disse ele. E leu para mim este trecho:
— “Vila Real, editado pela Nova Fronteira, (...) persegue o mapa nordestino”
440
— e também a reportagem da revista IstoÉ: — “De novo, um romance nordestino.
E nem se poderia esperar outra coisa de um autor que se define, rigorosamente,
como ‘um brasileiro não-colonizado’. (...) Seus heróis, no seu próprio dizer, ‘são
os mesmos de Canudos’”.
441
— O mesmo sertão de sua infância, e ele próprio, personagem em sua
literatura. Observe e compare os universos do narrador/personagem e do escritor
se encharcando mutuamente: “... e Argemiro procurou considerar se realmente
estava louco. Devia admitir que, por não desejar pensar no assunto, talvez tivesse
438
“João Ubaldo — O sertão e sua gente...”, O Globo, 15 mar. 1981.
439
José Luiz AIDAR, “O jovem João Ubaldo, raivoso”, Jornal da Tarde, 30 mai. 1987 (entrevista
de 1977).
440
Cremilda MEDINA, “No caminho das almas...”, Diário de Notícias, 14 dez. 1984.
441
S. L., “Vila Real”, IstoÉ, 11 jul. 1979.
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secreto conhecimento de uma loucura se escondendo no fundo da cabeça, como
uma pequena bola negra, com a qual não cabia facilitar” (p. 23). E agora cito uma
entrevista em que o escritor afirma ter a suspeita de que sua cabeça é dividida em
duas espirais que giram em sentidos contrários: “Eu imagino minha cabeça como
uma série de esferas concêntricas e, dentro, tem uma bolinha preta. (...) Eu chamo
essa bolinha preta a bola da paranóia, eu só me atrevo a ficar chegando perto dela
em horas muito especiais, porque eu tenho medo de encostar demais, aí ela pega e
empretece tudo e eu fico doido”.
442
— É uma perfeita correlação — disse ele. — Argemiro me parece ser dos
personagens de Ubaldo aquele onde mais nitidamente se depositou a obstinação
do escritor por uma forma de expressão genuína.
— Sim. Essa discussão, hoje, merece muitas aspas, mas o livro foi escrito
em 1979. João Ubaldo Ribeiro não escreveria, hoje, um livro como Vila Real,
porque a postura de Argemiro não poderia ser amenizada, a sua obstinação não
poderia ser relativizada ou enfeitada com aspas, tamanho o seu empenho na busca
de um verbo que seja realmente seu, e não imposto. Amenizada a obstinação de
Argemiro, perde o livro grande parte de sua força. E, hoje, essa obstinação soaria
quase quixotesca se não fosse amenizada. Mas, veja bem — ponderei —, eu não
estou circunscrevendo o romance a esse momento; estou circunscrevendo é a
preocupação do escritor, que se pode acompanhar com clareza em suas entrevistas
e em seus artigos.
443
Observe, mais uma vez, a intimidade entre o narrador em
Argemiro e a própria posição política de João Ubaldo Ribeiro diante do assunto
“identidade cultural”:
(i) ... E entendo que vejo estas árvores como árvores e que tenho direito a
minha língua e que posso olhar nos olhos dos estranhos e dizer: não me desculpe
por não gostar do que você gosta; não me olhe de cima para baixo; não me
envergonhe de minha fala (...). (...) Quem são os que vêm achando que falam a
mesma língua? Quem são essas pessoas? Pois essa mesma língua só é possível
quando se vê a mesma pintura do lado de fora da janela. (Vila Real, p. 153)
442
Lena FRIAS, “João Ubaldo (...) escreve para não ficar louco”, Jornal do Brasil, 31 jul. 1978.
443
— E também palestras... E cito aqui o momento de uma delas, no Centro de Estudos Luso-
Brasileiros da Universidade de Brown: “De facto, não há nada que eu possa fazer pelo meu
país senão escrever em ordem a denunciar e a clarificar, ou (e pede desculpa pela tautologia)
seja: identificar a nossa identidade” (citado por Domingos de Oliveira D
IAS (EUA), “Do
Brasil... e de Portugal — ouvindo João Ubaldo Ribeiro”, Letras & Letras, Porto, 1 dez. 1988
).
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(ii) — ... As revistas nacionais desenvolveram um estilo esquisitíssimo, cheio
dos tais adjetivos na frente dos nomes, às vezes separados por vírgulas, cheio dos
recursos jornalísticos americanos, como se fôssemos um povo imbecil, incapaz
de adaptar sua própria língua (ou seja, sua identidade cultural) a exigências
tecnológicas. Como se inglês, por ser a língua dos dominantes, tivesse sido, por
essa razão mesma, predestinada (...) para servir melhor a propósitos tecnológicos.
Na realidade, (...) inglês é uma língua que convive com imprecisões exasperantes
(...). E o português, se não atingiu a precisão da navalha do francês, foi (...)
porque os povos da língua portuguesa vêm pegando em baixo há bastantes
séculos. (...) nós abdicamos da nossa sagrada autonomia de ver o mundo à nossa
forma e importamos as formas pré-fabricadas que nos empurram. E aí ficamos
fazendo comentários cretinos, tais como “em inglês isto é muito melhor de
dizer”, esquecendo que, quando falamos tais coisas, estamos confessando que já
somos ingleses (ou americanos). E o pior é que não somos, porque lá eles nos
acham engraçados. E aí ficamos, coitados de nós, passando esta vida na
colonização e morrendo sem entender nada.
444
— Eu percebo — disse o meu interlocutor —, e isso é importante, preste
atenção, que estamos agora, mais uma vez, utilizando o personagem Argemiro e o
narrador que está por trás dele para um terceiro propósito. Já utilizamos as
palavras de Argemiro, tanto as que ele não tinha quanto as que ele passou a ter,
como uma representação de como deveria configurar-se um discurso para que ele
soasse legível culturalmente, e lançamos mão, você o fez, da pergunta de Silviano
Santiago, mesclada a uma alteração devida ao nosso assunto. Leio: “Quando é que
a arte brasileira (o discurso de Argemiro) deixa de ser literária(o) e sociológica(o)
para ter uma dominante cultural e antropológica?”.
445
Esse é o caso um. Em
seguida falei eu de uma legibilidade que deveria transcender a esfera de Argemiro
e de seu narrador, rumo à trajetória do próprio romance Vila Real, livro
considerado difícil, pouco lido e pouco conhecido; livro cujas mensagens diretas e
indiretas não são, afinal, comunicadas, porque a linguagem escolhida por Ubaldo
está longe do que seria uma linguagem trivial do quotidiano. Caso dois. Agora...
— Agora — interrompi-o —, as palavras de Argemiro estão ocupando o
lugar da língua portuguesa e até poderíamos falar de uma língua brasileira, desta
vez em guerra, não com as palavras difíceis que Argemiro não sabe, representação
do que vimos na pergunta de Silviano como sendo o discurso literário e
sociológico, caso um, e também não com o vocabulário trivial dos romances não-
difíceis e bastante acessíveis, caso dois, mas sim, caso três, uma linguagem cujas
444
João Ubaldo RIBEIRO, “O analfabetismo erudito”, Enfim, texto sem data (realces meus).
445
“Democratização no Brasil...”, op. cit., p. 11.
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palavras estão em guerra com as palavras das outras línguas, as línguas dos atuais
colonizadores, em especial o idioma inglês.
— Ubaldo bateu-se muito contra essa estrangeirização da língua... Diz
uma personagem, a velha: “Cuidado com as palavras. (...) E saibam escolher as
palavras que ouvem, mais do que as palavras que dizem” (Vila Real, p. 140-141).
— Boa citação — elogiei. — Bateu-se obstinadamente. Mostro a você o
trecho de uma entrevista de 1979, e em seguida um trecho de Vila Real,
subseqüente a um trecho que você já leu aqui sobre a materialidade áspera do
Verbo, quando o Verbo era estrangeiro a Argemiro. Quando ele afinal encontra as
suas próprias palavras, elas adquirem então outra textura:
(i) João Ubaldo Ribeiro — ... nós hoje somos uma cultura dominada pela
língua, pela cabeça; quer dizer, os romanos sabiam disso; onde está a língua
romana, está Roma.
É por isso que há a luta de afirmação de nacionalidades, como os Bascos (...),
como todas as tribos européias — porque lá só tem tribo, (...). Então, (...) para
manterem sua identidade, como reivindicação básica querem manter a língua (...),
mas nós estamos indo pras picas. Não percebem que estão fazendo o jogo dos
outros. (...) Como diz Glauber, ninguém sabe quem é da
CIA.
446
(ii) ... É repentino que o Verbo tome agora a forma de tapete, deslizando da
minha boca, e faça sair de si perfumes exemplares. Não me bote ouvidos
artificiais, que fique eu sem conchas, amparos e antolhos (...).
(...) Entendeu que as palavras vinham tomar corpo em sua cabeça e depois
velejavam de todas as cores (...), e então pôde notar que aquelas palavras também
pareciam pedras e passarinhos sobre o campo. (Vila Real, p. 147)
— E cinco anos mais tarde — disse o meu interlocutor —, voltaremos a
encontrar, refletida em outros personagens, a mesma preocupação de Ubaldo
acerca dessa peculiar condição do brasileiro: a condição de um sujeito apartado de
sua língua; ou, ainda, a sua condição, diante da língua, de um não-sujeito. Observe
o que diz o narrador de Viva o povo brasileiro, falando do personagem Filomeno,
candidato a juntar-se ao povo do Conselheiro, em Canudos — e ele, sorrindo,
começou a procurar o trecho. — Observe: o narrador poderia estar a falar de
Argemiro, embora fale de Filomeno.
... Viva o povo brasileiro! Viva nós!
Ergueu o bastão para o alto, os homens se levantaram e Filomeno, sem pensar,
446
“João Ubaldo: Estamos no mesmo barco”, Inimigos do Rei, abr. e mai. 1979.
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4 - O PEQUENO GRANDE MUNDO DE ARGEMIRO MEIA-LUA
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se viu repetindo com eles a saudação que ela tinha feito. Tampouco compreendeu
o orgulho esquisito que sentiu ao ouvir aquelas palavras, como se elas já
estivessem dentro dele durante toda a sua vida e somente agora houvessem
tomado forma. (Viva o povo..., p. 566)
— Então você já leu Viva o povo...? — surpreendi-me. — Eu, aliás, já lhe
fiz essa pergunta antes...
— Não só li, como ainda cito trechos, embora tenha sido há muito tempo...
— e ele, me estendendo um café, voltou a sorrir. — Aliás, vamos a ele? — e me
entregou o livro.
* * *
FIM DO PRIMEIRO VOLUME
(1/2)
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5
______________________________________
O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
O MUNDO DO NARRADOR SEM CABEÇA
— O novo livro que você está a escrever...?
— Será um romance, talvez intitulado Viva o povo brasileiro,
onde eu quero de certa maneira reescrever o livro de meu avô
itaparicano Ubaldo.
Entrevista a Fernando Assis Pacheco
447
— Sim — disse-lhe eu —, vamos a ele, mas antes veja isto. — E peguei
um outro livro da estante. — Veja aqui o modo como Francis Utéza se refere ao
narrador em Viva o povo brasileiro: “... um narrador multifacetado encena a luta
dos oprimidos frente a uma oligarquia implantada pelo sistema colonial”.
448
Esse
narrador multifacetado, o narrador de muitas faces, é, para melhorarmos a
designação, o narrador sem cabeça, sem face alguma...
— Maneiras diferentes de se dizer a mesma coisa... — provocou-me.
— Não, não. Um narrador multifacetado é um narrador plural, de posse de
todas as suas “facetas” e cabeças e consciente de todas elas; é um narrador que
paira sobre o tempo narrativo e tem todos os personagens à mão. Não é esse o
caso. O nosso narrador sem cabeça, sem, portanto, face alguma, vive no presente
de sua narrativa e não detém controle sobre nada, ou quase nada.
— Você pretende demonstrar essas idéias com exemplos do texto?
— Não consigo trabalhar de outra forma... Quero conversar com você
sobre as diferentes maneiras pelas quais o nosso narrador transita pelos discursos
alheios. O narrador, que estamos chamando de sem cabeça, é um narrador infiel e
instável: ele não permanece por muito tempo num mesmo personagem; ele troca
447
“João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Portugal, 21
dez. a 3 jan. 1983.
448
Viva o povo brasileiro ou O espírito da fraternidade” (p. 25-87), in Zilá BERND & Francis
U
TÉZA, O caminho do meio... op. cit., p. 25.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
252
todo o tempo de cabeça e, ao mesmo tempo, não tem a sua própria cabeça, não
tem o seu próprio discurso coeso e claramente intencionado. Há um trecho de
Viva o povo brasileiro em que um personagem pergunta a outro, referindo-se a
uma mãe-de-santo em trabalho de incorporação: “Eu sei que ela, como você diz,
incorporou uma entidade, mas aí ela deixa completamente de ser ela?”. E o outro
responde: “É, aí é só o corpo dela. Aqui se diz que ela é o cavalo desse caboco”
(Viva o povo..., p. 493-494, realcei).
— Então podemos fazer o paralelo — disse ele —: o narrador sem cabeça
incorpora um personagem, ou melhor, o discurso de um personagem, e deixa
então de poder manter o seu próprio discurso. E, enquanto a mãe-de-santo
mantém apenas o seu corpo, o narrador, no lugar de um corpo, mantém a voz
narrativa, mantendo-se narrador apenas enquanto instância do discurso, ou seja,
mantendo o status de uma voz narrativa, uma voz autorizada, relativamente
confiável etc. O narrador sem cabeça é o cavalo do personagem... Eu digo isso
pensando no trecho de uma história de Ubaldo, daquele Livro de Histórias,
449
que
li faz tempo mas bem me lembro... — e ele leu:
Luiz terá prazer em lhe reproduzir história de Suspiro, se você insistir um
pouco e não houver senhoras por perto. Se houver senhoras, mesmo que você
insista, Luiz não contará a história e ficará mais gago que o habitual, porque, se
há um sujeito respeitador de senhoras, este é Luiz Garçom, do Grande Hotel. Se
não houver senhoras, Luiz lhe explicará que passou uma grande vevergonha e
um enorme vevexame e, mesmo que Suspiro ainda estivesse vivo, ele nunca mais
ia querer ver a cara daquele jejegue.
450
— Isso. Fique com isto: o narrador sem cabeça comporta-se como uma
alma errante e sua sina é vagar, transitando pelos discursos de seus personagens.
Falarei do romance Viva o povo brasileiro e, em menor medida, dO feitiço da ilha
do Pavão, do Miséria e grandeza do amor de Benedita e dO sorriso do lagarto.
Esses quatro livros constituem o momento e o lugar em que se tornam evidentes
as características principais desse narrador.
— Borges diz que só podemos definir algo quando nada soubermos a
respeito dele... — disse o interlocutor, e disse tamm que gostaria de começar
449
Reeditado, com mais duas histórias, sob o nome Já podeis da pátria filhos, e outras histórias, op. cit.
450
“O jegue Boneco e o jegue Suspiro” (p. 139-147), in Já podeis da pátria filhos..., op. cit., p. 143.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
253
falando do título, que, à sua maneira, não deixa de ser uma definição prévia de um
livro. — Viva o povo brasileiro é um título que me incomoda... — revelou.
— Por quê? — e eu sorri. — É a exclamação?
— Sim, é a exclamação. Também.
— Não há exclamação... Trata-se, como bem observou o Moacyr Scliar,
baseado no que já havia dito o próprio João Ubaldo Ribeiro, de uma exortação.
Deixe-me ler aqui o que disseram. Ouça três comentários.
(i) — ... o Viva o povo brasileiro do título tem uma conotação até irônica. Não
no sentido de que eu não daria um “viva” ao povo brasileiro, mas no sentido de
que não se trata do povo brasileiro realmente, mas do pessoal daqui de Itaparica e
do Recôncavo Baiano. Que é brasileiro, mas não é todo o povo brasileiro.
451
(ii) ... lembro-me de ter ouvido João Ubaldo explicar que o “Viva” de Viva o
povo brasileiro não é uma interjeição do tipo “Viva o Brasil”, com exclamação e
tudo. Não, expressa antes um desejo do autor de que o povo brasileiro, seu povo,
permaneça vivo apesar de todas as agruras e adversidades. É uma exortação,
portanto.
452
(iii) Mesmo o título, sem ponto de exclamação, tem uma ambigüidade
proposital. Pode ser: “Salve o povo brasileiro” ou “Entenda o povo brasileiro”, no
sentido de vivenciá-lo.
453
— Ouça agora este único comentário... — disse o meu interlocutor, com
um sorriso esquisito. E leu: — “Ao se decidir por um título demagógico,
claramente infeliz e estranho à natureza específica da ficção, o ideólogo João
Ubaldo Ribeiro sobrepôs-se ao romancista e incorporou à admirável obra-prima
que é o seu livro a verruga panfletária que vai desfigurá-la para sempre”.
454
— E
continuou: — Viva o povo brasileiro também é um título incômodo porque
contém a idéia de uma amplidão nacional, contém a proposta de uma saga, já que
está falando justamente de um povo, e um povo é um conceito que, antes de ser
complexo, remete a um universo.
— Em outras palavras — provoquei-o —, você o considera pretensioso?
451
José Carlos TEIXEIRA, “João Ubaldo: a partir da calma de Itaparica, a longa marcha do povo
brasileiro”, O Globo, 7 set. 1983.
452
Moacyr SCLIAR, “Prefácio” (p. 9-10), in Zilá BERND & Francis UTÉZA, O caminho do meio...,
op. cit., p. 10.
453
Isa CAMBARÁ, “João Ubaldo, outro baiano na lista de ‘best sellers’”, Folha de S. Paulo, 24
dez. 1984.
454
Wilson MARTINS, “A matéria brasileira (I)”, Jornal do Brasil, 4 mai. 1985.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
254
— Sim, mas, depois que se lê o livro, já não mais se revela pretensioso.
— E por quê?
— Talvez porque a tarefa a que o livro se lança seja, efetivamente, ao
final, cumprida.
455
— Essa sua afirmativa leva-nos a um tópico que eu gostaria de abordar
mais tarde e que diz respeito ao caráter histórico ou não-histórico de Viva o povo
brasileiro, cujo título, você mesmo disse, sugere, pretensiosamente ou não, um
romance historicamente comprometido. E, já que você decidiu começar pelo
título: o avô itaparicano de João Ubaldo Ribeiro parece ter sido uma grande
inspiração para o livro, não apenas porque se dedicou a escrever uma história da
ilha de Itaparica — continuei —, história que o escritor, de certa maneira, quis
reescrever, mas também porque foi pivô, ele mesmo, de alguns casos pitorescos.
Um deles, e cito isso porque você mencionou que não gostava do título, diz
respeito ao que motivou a idéia original para o nome inicial do romance, cuja
história começou a ser elaborada em Portugal, entre 1980 e 1981.
456
Ouça estas
duas declarações, que se complementam:
(i) — Quando pensei neste romance, me veio o título: Alto lá, meu general,
em homenagem ao meu avô, que se chamava Ubaldo Osório e foi o historiador
oficial da ilha de Itaparica e um inveterado defensor de suas tradições.
457
Mas
quando estive com Glauber Rocha em Portugal e lhe falei do título, ele achou
horrível. Daí em diante, fiquei em dúvida devido à sensibilidade que tinha o
Glauber, que era meu amigo fraternal.
458
(ii) — Eu planejei esse livro (...) a partir de um episódio ocorrido com meu
avô, e que está levemente preservado na memória familiar: ele era coronel do
interior de Itaparica e se rebelou, junto com a população, contra uma determinada
obra que a seu ver ia desfigurar a cidadezinha. O comandante interventor foi lá
tomar satisfações e ele o peitou: “Alto lá, meu general!”, disse.
459
455
— Como escreveu Lúcia Helena — disse ele, sugerindo-me que isto seja uma nota —: “Se, ao ler
o título do romance, o leitor imagina que vai encontrar diante de si uma obra em que se louva
algo que, simbolicamente, o escritor estaria apresentando como ‘nosso povo’, do qual se traça um
perfil de glórias patrióticas, cairá num ledo e grosseiro engano” (Lúcia H
ELENA, “Viva o povo
brasileiro — a questão do nacional e do popular”, O Estado de S. Paulo, 17 fev. 1985).
456
Cremilda MEDINA, “No caminho das almas...”, Diário de Notícias, 14 dez. 1984.
457
— Ubaldo Osório escreveu o livro A ilha de Itaparica — história e tradição (Salvador,
Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1979).
458
Reynivaldo BRITO, “João Ubaldo Ribeiro”, texto sem referência, 12 jan. 1985.
459
Beatriz MARINHO, “João Ubaldo... — profissão: escritor”, O Estado de S. Paulo, 30 jun. 1990.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
255
— Como título, Alto lá, meu general é mesmo ruim, mas essa reação
verbal do Ubaldo Osório-avô não poderá ser lida como uma síntese das
motivações políticas do romance? — sugeriu o meu interlocutor.
— Sim. Há na frase o questionamento da autoridade e a tentativa de
aproximar a entidade militar do povo mesmo, duas atitudes que vemos presentes no
comportamento da personagem-chave, Maria da Fé,
460
a partir da segunda metade do
livro. Em conversas com seus companheiros e também nas discussões com o tenente
Patrício Macário, a guerrilheira Dafé expõe as suas idéias: diante do negro Budião,
que lhe pergunta o que fazer com os dois prisioneiros, tenente Macário e capitão
Vieira, e diante do próprio Macário, algemado à sua frente e todo sobranceiro:
(i) — (...) Esses homens não sabem, mas deviam estar do nosso lado, porque
eles pertencem ao nosso lado. Se pensassem, veriam que não pertencem ao lado
daqueles que os exploram e os mandam morrer como carneiros (...). (p. 400)
(ii) — Então? — disse ela passando os olhos pelo quarto. — Está sendo
tratado de acordo com a dignidade de um oficial?
(...)
— O Exército Brasileiro...
— ... não passa de um bando de rufiões mal-amados, cuja principal missão é
combater seu próprio povo.
— Protesto! (...) Isso é uma grave ofensa, que não posso aceitar e...
— (...) Não vim para discutir, vim para ver pela primeira e última vez o
prisioneiro, sempre tive curiosidade pelo tipo de homem que encara como ideal matar
ou morrer e viver se perfilando. Pode ficar à vontade, não sou general. (p. 401-402)
— E quanto ao narrador? Há nele esse mesmo arrojo que se observa na
guerrilheira Dafé?
— Somente se ele estiver incorporando a guerrilheira Dafé... Como eu
estava dizendo, antes de ser interrompido com essa história do título, o narrador
sem cabeça é promíscuo e instável; não permanece por muito tempo num mesmo
personagem e nem tem o seu próprio discurso coerente e claramente intencionado.
O narrador sem cabeça é um narrador em contínua incorporação. Como eu já lhe
disse, inspirei-me, para criá-lo, ou melhor, para registrar e formalizar a sua
existência, na almazinha de Viva o povo brasileiro: a almazinha em busca de
corpos nos quais encarnar. A almazinha é parte da ficção; o narrador, não. Ela é o
460
— “... que João Ubaldo acredita (...) ser a mais marcante, ‘a mais da pá virada’ do livro” — eu
li, citando trecho da resenha de José Carlos TEIXEIRA, “João Ubaldo: a partir da calma de
Itaparica...”, O Globo, 7 set. 1983
.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
256
fio condutor do romance e uma espécie de variação do narrador, mas ela é acrítica
e ingênua — disse eu. — Ouça este trecho:
... No céu de Cachoeira, misturada à luminosidade e à vibração quente do
firmamento, a almazinha do Alferes Brandão Galvão, ainda entontecida pela
visão do Imperador, com as grandezas que se sucediam de roldão e com o lindo
quadro em que já acreditava piamente, acompanhou os atos do barão lá de cima,
estremecendo de admiração e reverência. (p. 35)
— Se essa almazinha, assim ingênua e acrítica, é uma clara referência ao
povo brasileiro, por sua vez também ingênuo e acrítico, isso me parece um pouco
simplista... — disse ele.
— Não, não é. A almazinha não é um personagem fixo: ela não apenas
encarna, tornando-se diferente a cada vez, como também, ao encarnar, aprende.
Pode-se dizer que a almazinha é, sim, uma almazinha brasileira, mas em processo
de formação. O exemplo que eu citei está na página 35, e a almazinha ainda tem
um longo percurso. O narrador de Miséria e grandeza do amor de Benedita
explica isso muito bem quando menciona a necessidade que têm de voltar os que
já se foram. Vemos nesse exemplo seguinte que João Ubaldo recupera, dezesseis
anos depois, a mesma imagem da ilha de Itaparica como um lugar de almas, de
personagens e de aprendizados realizados e por realizar, e o mesmo feitio do
narrador como aquele que conhece o comportamento das almas. Ouça.
... Sabe-se de gente que está nela faz mais de quarenta ou cinqüenta
encarnações e, a cada reencarnação, por mais bem vividas que tenham sido as
anteriores, o encarnado pode até pensar que já compreende muita coisa, mas,
quando fica velho, vê que não compreende quase nada, precisa voltar sabe-se lá
quantas vezes (...).
... (...) garantem os mais antigos que a fila de almas para reencarnar na ilha já
vai de uma ponta do céu à outra (...). (Miséria e grandeza..., p. 13-14)
461
— O narrador sem cabeça tem diante de si uma grande variedade de
personagens que nele encarnam, ou cujas cabeças ele toma para si, através
justamente de suas inserções em discurso indireto livre. O narrador sem cabeça
461
— E vale a pena também citar, em nota, o que ele disse numa crônica dO Globo, de 24 nov.
1985: “Meu consolo é que aqui [em Itaparica], não se acredita muito em morte e, ao que tudo
indica, quem quer continua por aqui mesmo, só que em forma de alma, mas fazendo as mesmas
coisas que fazia quando tinha corpo” (“Os alegres mortos da nossa ilha” (p. 157-162), incluída
no livro Arte e ciência de roubar galinha, op. cit., p. 161).
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tem a capacidade de se metamorfosear ao incorporar, adotando assim variantes de
linguagem em suas metamorfoses. João Ubaldo, no Viva o povo brasileiro, nO
feitiço da ilha do Pavão e no Miséria e grandeza do amor de Benedita, exerceu
plenamente essa “antropofagia incorporante” como forma narrativa. Mas não me
pergunte ainda nada sobre isso, porque isso tem lá o seu lugar.
— E você pretende chegar a que conclusão?
— Essa pergunta é ambiciosa.
— Mas é bem intencionada... Não me venha falar aqui que você só quer
levantar discussões e que não pretende chegar a lugar algum...
— Um dos lugares a que quero chegar é a mim mesmo...
— Hum... — fez ele, torcendo o nariz. — Mais modernidades...
— Saber, de antemão, o que vou encontrar ao final desse trajeto é
desconsiderar a possibilidade de o trajeto produzir efeitos sobre mim e, como
conseqüência, transformar a mim mesmo, e bastante, ao longo dessa experiência.
— Você ainda não é uma almazinha...
— Precisamos eu e você — continuei, tentando esconder o riso — de um
contato maciço com essa capacidade narrativa de nosso narrador sem cabeça. A
leitura que farei, que faremos, você já está comprometido com isso, deve traduzir-
se, ao fim e ao cabo, em uma experiência particular.
— Sobre isso que você disse há um trecho que gostaria de citar, de Eneida
Maria de Souza, e a seu favor... — E leu o meu interlocutor: — O crítico, “ao
pensar estar interpretando a palavra do outro através de suas leituras, está
igualmente se inserindo como leitor de sua própria vida”.
462
É isso que vamos
fazer, pelo que entendi... — E, aparentemente feliz com a sua citação,
463
continuou: — Mas antes temos de ser um pouco técnicos. Nem sei se temos, mas
eu gostaria que você fosse. Que tal se começarmos por traçar as linhas básicas do
tipo de narração predominante no romance Viva o povo brasileiro, nO feitiço da
ilha... e no Miséria e grandeza...? Refiro-me ao seu tipo narratológico.
462
“Madame Bovary somos nós” (p. 129-143), in Giovanna BARTUCCI (org.), Psicanálise,
literatura e estéticas de subjetivação, Rio de Janeiro, Imago, 2001, p. 130.
463
A qual eu acrescentei outra: “Toda a crítica deve incluir no seu discurso (mesmo que da
maneira mais desviada e mais pudica possível) um discurso implícito sobre si mesma; toda a
crítica é crítica da obra e crítica de si mesma” (Roland Barthes, Ensaios críticos, Lisboa,
Edições 70, 1977, citado por Manuel R
IBEIRO, “Narciso Crítico Literário ou o Fascínio da
(cont.)
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— Você é o homem das teorias... Pois lá vai: tecnicamente, pode-se dizer
que se trata de um narrador extradiegético, ou um narrador narrando em terceira
pessoa, exercendo múltiplas focalizações internas, alternadas com momentos de
aparente onisciência, quando então sua focalização é zero ou não-focalizada, caso
típico dos narradores clássicos do século dezenove. Repare que estou lançando
mão de termos oriundos dos autores dedicados ao estudo da narratologia.
— Você poderia mencioná-los?
— Com prazer: Wayne C. Booth, Edward M. Forster, Norman Friedman,
Percy Lubbock, Jean Pouillon, Tzvetan Todorov, Gerard Genette e outros, todos,
ou quase todos, já citados aqui em nossas conversas anteriores. Se você quiser
mais detalhes, e o que não falta nesse ramo da narratologia são detalhes, sugiro-
lhe, como um verdadeiro compêndio, o Dicionário de Narratologia, dos
professores portugueses Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes. Tome. E ainda há
um pequeno setor especializado que pretendo criar na minha bibliografia final,
dedicado aos estudos de narratologia.
464
— Eu que lhe dei essa idéia... — disse ele, inflado.
— É verdade... Eu disse que o narrador de João Ubaldo Ribeiro, e
principalmente em Viva o povo..., tem esse perfil. Trata-se de um perfil técnico
inicial. Quero crer que esse perfil vai revelar-se mais sofisticado e até, em alguns
pontos, completamente diverso dessa configuração que acabei de apresentar.
— Poderia dar-me um exemplo?
— Tenho a suspeita de que a onisciência não é, como poderia aparentar,
uma característica predominante na narrativa de Viva o povo brasileiro. NO
feitiço da ilha do Pavão e no Miséria e grandeza..., o narrador é bem mais senhor
dos acontecimentos, mas em Viva o povo... a onisciência é sempre relativa, com o
perdão do paradoxo, ou seletiva, isto é, restrita ao pequeno universo do
personagem focalizado. Mas ainda é cedo para chegarmos a essas conclusões, e eu
não sei se estamos diante de um ponto de chegada ou um ponto de partida. Quero
conhecer ainda mais esse evento: como se dá essa narrativa antropofágica pelas
mãos de nosso narrador sem cabeça. Vou lhe dar amostras do que acontece pelo
Imagem através do Discurso”, Guest Book, em <http://www.letras.up.pt/upi/ilc/i_info_texts_
on_line_Narciso_Critico.htm>, acesso em 18 out. 2005
).
464
— Ver Bibliografia, p. 515, item 8.2.3.: “Estudos citados sobre o narrador”.
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livro todo e depois chegaremos aos grandes exemplos, entre os quais estão o
caboco Capiroba e a velha Dadinha. Vamos?
— Já deveríamos ter ido...
5.1. PEQUENAS INCORPORAÇÕES: O NARRADOR A CAVALO
— Observe o seguinte trecho, em que o narrador descreve um momento do
personagem Perilo Ambrósio, recentemente nomeado Barão de Pirapuama:
“Socou o lenço volumoso no bolso, sem dobrá-lo, ajeitou o chapéu na cabeça e
principiou uma marcha paquidérmica em direção à praça. Malditos punhos de
renda, malditas mulheres que o obrigam a tirar o chapéu e repetir as mesmas
saudações” (Viva o povo..., p. 29). No mesmo pequeno trecho, o narrador
conseguiu concretizar duas posturas, nesse caso, completamente opostas: um
ponto de vista exterior, o do narrador que consegue ver Perilo Ambrósio e sua
triste figura de longe, do alto, gordo, lento, desconfortável dentro de seu imenso
corpo, ponto de vista demonstrável através da expressão “marcha paquidérmica”,
claramente ofensiva, e outro ponto de vista, agora interno, o do próprio Ambrósio,
que se impacienta com as regras de etiqueta que se esperam dele em seu passeio
pela rua da Matriz abaixo, e o narrador torna-se então o seu cúmplice. Podemos
detectar, então — continuei —, um momento em que o narrador é intruso e está
emitindo um juízo de valor acerca de seu personagem, e outro momento
imediatamente seguinte em que está em focalização interna com esse personagem,
que no narrador encarna, fazendo com que veja o mundo através de seus olhos de
personagem. Dou-lhe um exemplo dO feitiço da ilha..., com a mesma estrutura,
em que o narrador não os versos pregados à porta, mas os narra, trazendo para
dentro de sua narrativa o espírito do poema.
Iô Pepeu aproximou-se para ler o que estava escrito no papel pregado na
porta. No inimitável estilo do mestre Joaquim Moniz Andrade, dodecassílabos de
grande poder evocativo exaltavam a formosura do outono, a dadivosa estação das
frutas, dom do ubertoso solo que Deus abençoa. Incumbe ao homem por ele
afortunado erguer as mãos para os céus, na alegria da colheita, quando as
macieiras, cerejeiras e pessegueiros tornam ledos os campos, na deleitável
cornucópia da abundância. (p. 39)
— Está comigo?
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— Estou. Mas não sou seu cúmplice...
— Essa alternância de posições, na grande velocidade em que se deu,
coloca o narrador na curiosa posição de precisar esconder-se de uma através do
disfarce proporcionado pela outra.
— A forma antropofágica de narrar — disse ele — é essa capacidade do
narrador de transitar entre pontos de vista diversos, dentro do mesmo núcleo
narrativo? E pontos de vista diversos significam tipos diversos de discursos e
ideologias?
— Sim, mas esse trânsito não costuma ser tão dinâmico e tão evidente. O
narrador, em regra, adota o ponto de vista do personagem que está incorporando, e
o encampa. Ouça estes dois exemplos. No primeiro, o narrador descreve o
Quilombo de Mani Banto, rei Banto, um quilombo não de negros fugidos, mas de
negros escravizados... por outros negros... e em seguida, na mesma frase, adota o
ponto de vista da ideologia dos negros senhores.
(i) ... Os fundadores são negros oriundos da grande cidade de Mbonza Congo,
nas beiras do rio Congo (...), tudo nas costas d’África e em terras e domínios que
o mundo já esqueceu. Os outros negros são descendentes dos que pertenciam aos
primeiros por herança de conquista ou foram por eles comprados como escravos,
negros uolofes, mandingas, minas, jagas, todos negros ordinários, que nem
mereciam ser chamados de negros legítimos, todos feios, horrorosos,
diferentes, nascidos para a servidão e agora cheios de liberdades (...), como
se por acaso fossem negros do Congo e como estes fossem gente e tivessem
direitos. (O feitiço da ilha..., p. 91-92)
(ii) ... todos no Recôncavo e fora dele sabiam que pirapuama era baleia e, se
não fosse, seria, pois afinal estava ali o Barão das Baleias, aquele que, na esteira
de incontáveis sofrimentos e tribulações, lutando pela Pátria, (...) obrigado a
combater a própria família, era hoje o maior entre os senhores da pesca dos
grandes bichos marinhos... (Viva o povo..., p. 31, realcei)
— Você disse que o narrador encampa o ponto de vista do personagem...
Os trechos negritados parecem muito mais uma...
— ... ironia? Sim — disse eu. — O narrador sem cabeça quer dizer uma
coisa e diz outra, e o efeito dessa distância é a ironia, e a função dessa ironia é
crítica. O narrador está incorporando os donos do Quilombo e também o Barão de
Pirapuama; o narrador está vendo o mundo pelos olhos do senhor de escravos
negros e pelos do nobre Barão, e, no entanto, mal incorpora, transforma essa
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
261
incorporação em um olhar crítico sobre os negros do Congo e sobre o próprio
Barão. A focalização interna, nesse caso, para utilizarmos a terminologia de...
— Gerard Genette?
— ... é um disfarce do narrador, que, travestido de negro senhor do Congo
e de Perilo Ambrósio, narrando aparentemente em “visão com” os dois, na
terminologia de outro francês, o Jean Pouillon, sobre o qual já falei em outro
ponto de nossa conversa,
465
está na verdade deixando evidente sua visão crítica
sobre o que representam o congolês negreiro e o Barão: a escravidão, o
mandonismo, o olhar colonizado. Essa capacidade de esconder-se no discurso do
outro é de tal maneira presente no perfil de nosso narrador sem cabeça, que
praticamente não há momentos em que esse feitio não esteja em exercício.
— Diga isso de outra maneira — pediu ele.
— Quero dizer que o narrador não apresenta uma uniformidade no tom e
nos seus posicionamentos. Ele está o tempo todo adotando um ou outro ponto de
vista. Ele não tem a sua própria cabeça; tem, sim, a capacidade de olhar para o
mundo com outros olhos, sempre outros.
466
Há uma festa na casa de Ângelo
Marcos e sua mulher, Ana Clara, personagens dO sorriso do lagarto, e o narrador
não cessa de transitar, alternando indiretos livres e, portanto, pontos de vista — e
li, procurando mudar o tom de voz na mudança de incorporação do narrador.
[em Ana Clara] Ai, (...) que coisa mais surrealista isso tudo, parece aqueles
filmes ingleses sobre a Índia. (...) os ingleses dando garden parties e fingindo que
convivem com a aristocracia crioula. Lá se vai Bebel, se embarafustando pela
casa adentro, mais rebolativa do que nunca (...). Esse martíni vai demorar. Um
drinque é bom para o nervosismo. Nervosismo, meu Deus? É, nervosismo,
nervosismo, sim. (...) Por que Ângelo Marcos não aparece, afinal este povo todo
está aqui por causa dele, só quem não vem aqui por causa dele é João.
Mas Ângelo Marcos apareceu, sim, e justamente na hora em que o prefeito
estendeu a mão para Ana Clara e ela já tinha resolvido que ia falar “meu
prefeito!”, ou qualquer coisa assim. (...) [em Ângelo Marcos] Tinha acabado de
fumar um cigarro de maconha no sótão e antecipava com enorme felicidade o
copo de vinho que (...) tinha decidido beber (...).
(...) Muita gente, hem? Ângelo Marcos, sentindo a cabeça muito leve e um
465
— Ver Capítulo 3: “Setembro fechado sob o farol”, página 143, na minha nota n
o
278.
466
— E, desse modo — completei, em nota —, emprestando ao leitor esses olhos, ou seja, o ponto
de vista do personagem em questão. Essa operação, nos casos em que João Ubaldo quer
produzir mais impacto narrativo, acaba por expor o leitor “a uma brutalidade sem reservas e
sem mediações” (Rita O
LIVIERI-GODET, “Sujeito totalitário e violência em Viva o povo
brasileiro e Diário do farol” (p. 145-162), in Zilá BERND (org.) & OUTROS, João Ubaldo
Ribeiro — Obra seleta, op. cit., p. 148).
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grande bom humor, passeou os olhos pelo pátio. Prestígio, prestígio, mesmo
formalmente fora do poder. (...)
[em João Pedroso] João Pedroso sorriu, quis dizer alguma coisa espirituosa,
(...) e continuou sorrindo sem saber mais o que fazer (...). (p. 140-143)
— O narrador contextualiza-se a todo momento — continuei —, podendo
ser capaz de realizar, sobre uma mesma matriz factual, duas narrativas parecidas e
ao mesmo tempo bastante diversas, como pode ser o caso destes dois exemplos: o
primeiro tirei do Miséria e grandeza do amor de Benedita. Trata-se do encontro
entre Cadinha, a irmã de Benedita, e Deoquinha, o marido de Benedita.
Deoquinha precisa de uma favor de Cadinha, e esta exigiu em troca que
Deoquinha se deitasse com ela. Não há discursos diretos, e é o narrador quem
conduz tudo. Começo com o narrador a incorporar Deoquinha, e depois seguimos,
alternadamente, com as minhas marcações.
[Em Deoquinha] Primeiramente Cadinha, exalando vinte e cinco mil penicos
de perfume do tipo aqui propriamente cognominado de mijo de gringo, embora o
dela nem de gringo fosse, mas de produção da baixa dos Sapateiros, fez com que
o coração de Deoquinha lhe despencasse até o estômago, com uma conversa de
olho enviesado, na qual dizia que estava em dúvida sobre se sua consciência
permitia que fizesse o combinado. [em Cadinha] Havia pensado, havia mesmo
rezado, e será que não estaria cometendo pecado abominável, traindo sua irmã
daquela forma odiosa e velhaca? [em Deoquinha] Somente depois que
Deoquinha, suando e imaginando o que ainda teria pela frente, lhe fez um
discurso candente e apaixonado, não só sobre como Deus com certeza aprovava o
que se fizesse para pôr no mundo mais um sacerdote, como sobre a coragem com
que ela sempre honrara a palavra empenhada, é que, finalmente, com a aparência
não muito convicta, ela assentiu.
[Em Cadinha] Mas estava claro que ele não a procurara por aquela razão,
aquilo já estava acertado e ela não lhe havia participado suas dúvidas. Ele queria
mais alguma coisa, naturalmente, mais um sacrifício. Era sempre assim, sempre
queriam dela tudo, sem nada dar em troca. (...) Não precisava remanchar,
relambórios dispensados, nada, absolutamente nada, alteraria sua calma de pedra,
ele podia falar à vontade. (...)
[Em Deoquinha] Que forças (...), que reforços arrancados do fundo d’alma
foram necessários para suportar a expressão de esfinge malevolente com que ela,
sentada na cadeira de balanço (...), ignorava as palavras suplicantes com que
Deoquinha abria seu coração esmagado! (...) (p. 77-79)
— O segundo exemplo vem do Viva o povo... e constitui o estupro da
negrinha Vevé, premeditado e antevisto pelo Barão e em seguida revisto pela
própria Vevé, como coisa já acontecida. A primeira descrição, com o narrador
incorporando Perilo Ambrósio, é extremamente agressiva, dispondo o narrador de
todas as vulgaridades possíveis e bem adequadas ao modo de ser do senhor, para
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
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quem a mulher, sendo negra e escrava e, portanto, um objeto, deveria ficar imóvel
e em seguida estalar de dor e morrer. O contexto mostra Ambrósio a masturbar-se
à varanda, contemplando a sua propriedade, e a imaginar o que segue:
... sem dizer uma palavra, atirá-la à cama, abrir-lhe as pernas, deixar bem claro
que não queria que se mexesse e, passando cuspe por aquela cabeça de carne
inchada e embrutecida, deflorá-la de um só golpe (...), sentir qualquer estalo de
pele ou cartilagem se rompendo, pressentir que ela era rasa ou estreita e,
empurrando-lhe os joelhos para cima, enfiar-lhe tudo com um só golpe rude que
quase a lançasse contra a cabeceira, (...) como quem trespassa, como quem
empala, como quem gostaria de que a mulher fosse inteiramente atravessada e
morresse com as vísceras destroçadas, (...) bem no instante em que (...) gozasse
dentro dela, senhor completo, senhor completo... (p. 91)
— Quando é a vez de o narrador, em indireto livre, incorporar a negrinha
Vevé e rememorar com ela o estupro — continuei, ante a expressão de horror de
meu interlocutor —, temos um outro contexto: a descrição das baleias fazendo
sexo, a imaginação de Vevé a criar cenas de amor com seu noivo Custódio e em
seguida, como contraponto, o instante do pós-estupro. O narrador, com esse
preâmbulo, insere-nos no imaginário de Vevé, do mesmo modo como ele nos
meteu no universo das fantasias de Ambrósio, a masturbar-se “por tudo aquilo que
era infinitamente seu, os negros, as negras, as outras pessoas, o mundo” (p. 90).
... Que fazer agora? Levantar-se, consertar o corpo ainda retorcido na mesma
posição em que tinha ficado quando ele (...) se limpara nos trapos em que se
transformara a sua bata branca, numa das muitas posições em que ele a tinha
virado e revirado com brutalidade (...) como um frango sendo depenado? (p. 133)
— O ponto de vista aqui é o do objeto, do corpo que foi maltratado e
“poluído” irreversivelmente pelas mãos do Barão. — E eu disse ainda: — Observe
que o narrador, aqui, faz referência à brutalidade com que o corpo de Vevé foi
virado e revirado, referência essa que não teria lugar no trecho em que o narrador
está incorporando o próprio Barão, pois que a brutalidade não existe como
conceito isolado, já que ela é a própria constituição do Barão e de seu ato. O
mesmo se pode dizer da comparação com o frango: o narrador, incorporando
Vevé, diz que Ambrósio a expôs como a um frango depenado. Toda a descrição
do estupro pelo narrador encabeçando o Barão de Pirapuama é a descrição de um
senhor de engenho que se comporta como se diante de um frango estivesse. — E
continuei: — Você falou, antes de eu entrar nas visões do estupro, que pelos
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
264
vistos o enjoaram..., você falou em ironia. Leio para você agora um outro exemplo
de Viva o povo... em que não há, da parte de nosso narrador, qualquer ironia, ou
seja, não se trata de ele querer dizer uma coisa, dizendo outra, não havendo
clivagem de pontos de vista: o narrador, cúmplice, escorrega para dentro do
discurso de seu personagem, no caso, Turíbio Cafubá, filho de Dadinha, eufórico
com o nascimento de sua filha Daê, conhecida como Vevé, cuja história de sua
“primeira vez” você já conhece, e reproduz-lhe as maneiras de se expressar.
... Desembarcou com o balaio equilibrado na cabeça, fez uns passos dentro da
água que lhe chegava aos joelhos. Pariu ao vento, foi? Tá muito certo! Homem de
boa fortuna, não? (...) Homem de boa fortuna, sim senhor, ali estava peixe de
primeira, era todo seu, o senhor não deixava? Nhô não deixava quando não tinha
trabalho na caieira ou outro serviço, Nhô não deixava que ele fosse pescar e
nunca que queria o peixe? Ha-ha-ha! Aqui é Turíbio Cafubá, meu filho, assim
chamado porque de preto quase que fica branco do pó e da queima do cal (...). E
Daê não nasceu no domingo, para ele poder dançar o dia todo, com o espírito que
veio da terra do Daomé, ou senão do Maomé? Daê-Naê-ê! (p. 95)
— Então se podem perceber duas posturas do narrador, a depender de
serem os personagens oprimidos ou opressores?
— Sim, mas a condição de oprimido e opressor não é estanque, fixa e pré-
determinada. Ela varia conforme a relação que se estabelece. Mesmo assim, há
quem veja em Viva o povo brasileiro o desenvolvimento de duas linhagens
básicas. Diz-nos a professora Eneida Leal Cunha, em sua tese Estampas do
imaginário, que o romance expõe uma divergência básica entre os descendentes
de Perilo Ambrósio, os “bem falantes” donos do poder, e os que constituem as
encarnações da almazinha: a gente do povo, os escravos e os índios.
467
— E quais são as conseqüências dessa dicotomia sobre os modos de narrar
presentes no livro?
— Esse é um dos pontos muito bem desenvolvidos pela professora Eneida
Leal Cunha — eu disse. — Segundo ela observa, o narrador se comporta de modo
muito mais retraído quando se põe a narrar à volta da linhagem dos poderosos e
“bem falantes”. O narrador deixa-os falar, e sua fala é longa e tagarela.
467
“O imaginário brasileiro: entre a genealogia e a história” (p. 147-217), in Estampas do imaginário
— literatura, cultura, história e identidade, Depart. de Letras da Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, PUC-Rio, Rio de Janeiro, abr. 1993, p. 160 (este capítulo encontra-se presente
também, sob a forma de um artigo, na Obra seleta de João Ubaldo Ribeiro, sob o nome “Viva o
povo brasileiro: história e imaginário” (p. 163-180), op. cit.).
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
265
— Ou, por outra: são esses personagens da linhagem de Perilo Ambrósio, os
poderosos e “bem falantes”, que na verdade tomam a palavra do narrador, que se
limita, em seus trabalhos narrativos, às apresentações iniciais e aos fechamentos...
— Sim. Segundo Eneida Leal, o narrador ocupa-se das apresentações,
interioriza o seu discurso no indireto livre, dando conta das relembrâncias do
personagem poderoso e “bem falante”, e então o que acontece? Assistimos ao
apagamento progressivo das “marcas do discurso do narrador, até culminar na sua
completa retração, neutralizado pela dramaticidade do diálogo e das longas falas
das personagens”,
468
diz ela, e muito bem.
— Ser o dono da pátria, das terras e do dinheiro é ser também o dono da
fala e do discurso e de todas as palavras... — disse ele, animado.
— É o que diz a Eneida na página seguinte... Há muitos exemplos, ao
longo de todo o romance, dessa eloqüência dos personagens, contraposta à relativa
mudez do narrador, que os deixa falar por páginas a fio, transformando-se
praticamente em dramático o gênero do texto. Uma das estratégias do nosso
narrador sem cabeça é justamente falar com as palavras do outro ou então deixar
falar o outro, sendo essa fala direta uma maneira de operar a descrição. As páginas
300 e 301 de Viva o povo... ocupam-se de apresentar ao leitor, pela primeira vez, o
personagem Clemente André, padre, homossexual, filho de Amleto Ferreira,
guarda-livros do Barão de Pirapuama, com Teolina.
— Entendi. Estou lendo aqui — disse o meu interlocutor, com o livro
aberto. — Ao invés do procedimento clássico de aproximar-se cada vez mais do
personagem, a partir de fora, e então adentrar-lhe as tripas através da focalização
interna, do discurso indireto livre ou da incorporação, para usarmos um termo
mais afeito ao caso desse nosso universo de fantasmas, almas e possessões... Ao
invés disso, o narrador simplesmente faz o contrário: abre a cortina e atira o padre
Clemente André no palco da narrativa, sem qualquer introdução e já com o seu
travessão, marca da total independência expressiva. A própria fala do personagem,
e não o trabalho do narrador, é que vai fornecer o panorama psicológico. O
narrador, ao não fazer nada, mas apenas doar o travessão, permitiu o contato
direto do personagem com o leitor. Posso ler?
— Desde que leia com a entonação do personagem...
468
“O imaginário brasileiro: entre a genealogia e a história”, op. cit., p. 160.
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... — Como é que fica a pessoa que precisa desesperadamente de uma coisa e,
quando essa coisa chega, não é nada daquilo que a pessoa queria? Fica morta, isto
é o que ela fica! Então uma firma como a Ambrósio Nunes & Irmãos, que se jacta
de ser tradicionalíssima e servir aos mais ilustres prelados e homens públicos,
apresenta esta garnacha mal amanhada, esta obra de albardeiro, e ousa chamá-la
de batina? (...) Olhem, olhem este enfranque, olhem isto, dá vontade de rasgar!
(...) É por isso que sempre mandei fazer minhas batinas em Roma (...). Não gosto
de nada, (...) não gosto de nada, nada, nada! E que são essa tripinhas, essas
minhoquinhas, são sutaches? Que feio, joga isto fora, joga isto fora (...)! (...) Os
senhores podem retirar-se. Domiciano, vê-me um copo d’água com um
poucochito de açúcar. (p. 300-301)
— Somente depois — continuei —, já feitas as apresentações por parte do
próprio personagem, é que entra o narrador, num modo narrativo bem próximo ao
chamado narrador-câmera. O efeito seria certamente outro se a disposição dos
trechos fosse invertida. Veja agora o trabalho do narrador:
... Padre Clemente André caiu exausto no sofá, as mãos na testa dolorida.
Esticou a perna e abriu a porta do guarda-roupas com a ponta da bota. Olhou com
desalento a extensa fileira de sotainas, capas, paramentos e chapéus — tudo
usado, tudo cansado, tudo sem brilho, nada à altura do domingo que tanto
antecipava. Levantou-se, abriu a outra porta, dedilhou as roupas penduradas,
sentiu um aperto na garganta, sentou-se novamente, desta vez para chorar com as
mãos cobrindo o rosto. (p. 301)
— Mais à frente — disse eu —, o narrador vai repetir o procedimento,
também utilizando o personagem de Clemente André, bem mais velho e já
morando na Itália. A diferença é que desta vez o personagem não virá à cena de
frente com um desabafo de viva voz, mas com uma carta, mandada de Roma para
o irmão Bonifácio Odulfo, já senhor dos negócios do pai Amleto Ferreira, que
enriquecera roubando o Barão. A carta, escrita pelo próprio punho de Clemente
André, vem entre aspas, não sendo o texto, portanto, parte específica do universo
discursivo do narrador. O narrador, diante dos personagens poderosos e “bem
falantes”, não apenas os deixa tagarelar à vontade, como também permite que
sejam bastante visíveis as suas aparições escritas, às quais confere então uma
espécie de personalidade textual, desta vez caricata e bem mais marcante que a
personalidade textual que vimos no texto de outro padre, o do Diário do Farol...
O texto da carta de Clemente André não é um texto qualquer, neutro e apenas
informativo; ele tem os tiques, os trejeitos e a afetação do personagem. Veja, o
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
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excesso na pontuação é sutil, mas, à medida que avançamos na carta, vamos
percebendo que o texto caminha aos pulinhos, os pulinhos da vírgula:
... “Recomende-me, à Dona Teresa Henriqueta, tua santa esposa, e a meus
queridos sobrinhos, que antecipo, com alegria, rever. Espero, também, que tenha
a oportunidade de estar, para despedir-me, com o nosso irmão caçula, o Coronel
Patrício Macário... etc. etc.”
(...)
... A carta continuava, pois, como sempre, o monsenhor deixava seus
intrincados problemas financeiros para o final. (...) Ainda outro dia, em Salvador,
era apenas um seminarista brincalhão — e agora quem lhe escrevia era um velho,
um velho de 60 anos, com aquela pontuação pesada e caturra que insistia ser
a correta, pois se considerava um mestre da prosa... (p. 537-538, realces meus)
— Do mesmo modo, as conversas do jovem poeta Bonifácio Odulfo
Nobre dos Reis Ferreira-Dutton com seus colegas intelectuais são paradigmáticas
dessa retirada do narrador — disse eu. — As páginas 289 a 300 são praticamente
uma sucessão ininterrupta de travessões, ficando o narrador encarregado apenas
de uma certa focalização interna, levada a cabo nos momentos em que o
personagem se encontra sem interlocução, ao final da longa passagem.
— É impossível não fazer comparações entre o comportamento do jovem
arrogante Bonifácio Odulfo e os jovens igualmente arrogantes Tristão e Orlando,
de Setembro não tem sentido — lembrou-se o meu interlocutor.
— Uma comparação que os une pela arrogância e pela juventude e os
separa pela visão de mundo... Em Bonifácio Odulfo, o ano é 1853, o espírito é
romântico, abolicionista e nacionalista. Em Tristão e Orlando, o início dos anos
60, pelos menos para esses dois personagens, é de desilusão...
— Em seguida, por oposição...
— Por oposição — continuo —, os personagens da segunda linhagem,
pobres e oprimidos, os que não têm a possibilidade de falar as suas próprias
línguas, as indígenas, as africanas, as totalmente oralizadas, estes é como se
perdessem a voz e precisassem de uma maior presença vocal do narrador, que
também fala por aqueles que, mesmo tendo o português como língua de uso, não
conseguem expressar-se verbalmente por não poderem expressar-se socialmente.
Veja o caso da viúva de um funcionário despedido por Amleto Ferreira, um
funcionário que sabia de todas as falcatruas cometidas pelo guarda-livros do
Barão de Pirapuama. Maria d’Alva Bonfim apresentou-se no gabinete de Amleto,
mas não abriu a boca; abriu-a o narrador: “A mulher estava nervosa, teve
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
268
dificuldade em começar a falar, principalmente depois que ele se levantou e, junto
à janela, declarou-se sem tempo a perder. Finalmente, gaguejando muito (...),
disse que...” (p. 330). E tudo corre em discurso indireto livre.
— O narrador não apenas fala pela dona Maria, como incorpora seus
trejeitos, sua pontuação, suas desculpas, como se vê na página seguinte...
— Sim. E o romance Miséria e grandeza do amor de Benedita talvez seja o
livro em que João Ubaldo mais fez uso desse caráter acéfalo do narrador.
469
poucos discursos diretos — eu disse —, e o narrador é então o grande personagem, a
falar por todos, mas na linguagem que é de cada um... Observe os elementos da
linguagem de cada personagem inseridos no discurso do narrador em terceira pessoa:
(i) [Incorporando o delegado que prendeu o alemão] Mocorota, aliás Sua
Excelência, o delegado Dr. Marcos Massaranduba, apareceu em pessoa, disse que
o alemão acabara de ser surpreendido vertendo água em praça pública, em
flagrante ultraje ao pudor, e que podia ser alemão, mas era um bom filho-da-
puta e ia cair na chave tão certo como o porco ronca e a galinha cisca. (p. 104)
(ii) [Incorporando um soldado e um cabo que conduziram o alemão] O
soldado Rominivaldo e o cabo Lincoln seguraram o homem, segurou um cada
braço e foram levando o elemento para a cadeia. (p. 104-105)
(iii) [Incorporando Juvenal a consolar Deoquinha] Mas Juvenal (...) não se
deixou abalar. Com a mão no braço do amigo, disse-lhe que, nesta vida, os bons
pagam por serem bons, é conforme está escrita a História da Humanidade e
corroborado à fartura nas vidas dos grandes homens, de Napoleão a Pastéul, um
pagando por ser o maior dos generais, outro pagando por ter desmascarado o
micróbio (...). (p.72-73)
(iv) [Incorporando o escrivão Zenóbio Merdinha, a anotar a tradução que
o suíço René fez do depoimento do alemão preso] ... ninguém vai dizer isso
aqui de René, mas errar é humano e o suíço também humano é. E não se vai
declarar que ele errou de propósito, foi um problema da psicologia dele, a
psicologia nem sempre é levada em consideração, mas influencia muito no
desempenho do indivíduo. (p.107)
— Esse tipo de silenciamento dos personagens sem voz não é marcante,
por outro lado, nO feitiço da ilha... — disse ele, depois de um tempo, e colocou
para falar o índio Balduíno Galo Mau.
469
— “É o narrador quem rouba a cena no romance. Irônico, ele enche a narrativa de rodopios (...).
¶ A história fica em segundo plano, e o que encanta é esse doce falastrão que mistura o mais
afetado tom erudito a expressões baixíssimas, típicas de um conversador de botequim” (Chico
M
ATTOSO, “Novo romance de João Ubaldo Ribeiro”, Jornal do Comércio, 27 nov. 2000).
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269
— Cadê o tendente? Cadê? Dão Filipe de Meulo Furutado? Cadê condenado
pecador, tendente estrumo? Uá! Uá! Índio mata, índio dá carne de branco
postadinha pra guará, pra raposa, pra tatu (...)! Índio pega toda gente e mata de
dentada, arrum, arrum (...)! (...) Cadê tendente? Não manda ele? Manda eu
também! Aqui tudo, índio já mandava antes de branco parecer! Vão te à merda do
caraio da postema da barabaridade! (O feitiço..., p. 36)
— Sim — e assenti. — NO feitiço da ilha..., João Ubaldo, talvez por estar
menos preocupado com algum rigor quanto ao linguajar dos personagens, e
certamente empenhado numa escrita que fosse, antes de tudo, engraçada,
470
não
economizou discursos diretos para índios e negros.
471
— E prossegui: — Antes de
citar um trecho da professora Eneida Leal Cunha, gostaria de referir aqui o que
talvez seja o maior exemplo dessa presença vocal do narrador diante dos
personagens sem voz em Viva o povo brasileiro. João Ubaldo, no exemplo que
darei agora, levou ao extremo essa condição, metonimizando-a através da história
do negro Feliciano, que teve a língua cortada para não dedurar a impostura de
Perilo Ambrósio, que ganhou glória de guerra pintando-se com o sangue de um
escravo morto especialmente para a composição da fraude. Feliciano não faz mais
que emitir grunhidos, e somente o entende seu amigo Budião, que, no entanto, em
nenhum momento repassa o que sabe. Quem traduz em boas palavras os
grunhidos emitidos por Feliciano e entendidos por Budião é o narrador. É ele,
com as palavras dele, e não as de Feliciano, quem de fato incorpora o personagem
sem língua, literal e figurativamente sem língua, e em seu nome fala:
... e souberam como tinha sido cortada a língua de Feliciano, mesmo ele
havendo chorado e jurado por todos os santos brancos que se o poupassem jamais
diria uma palavra sobre o assunto. Mas não adiantou — contou Feliciano a
Budião, os braços tremendo, os olhos cheios d’água —, pois eles apertaram
minhas bochechas dos dois lados até que eu abrisse a boca, puxaram minha
língua para fora com uma torquês, cortaram bem fundo com um cutilão de
magarefe e depois queimaram o toco no ferro em brasa. Não é só falar — contou
Feliciano dando uns roncos guturais — que a falta da língua impede, mas não se
470
— “Sei que queria fazer um livro picaresco, sem muito desenvolvimento de personagem.
Trabalhar mais os acontecimentos...”, disse João Ubaldo, numa entrevista (Beth N
ÉSPOLI,
“João Ubaldo cria ilha em cobertura do Rio”, O Estado de S. Paulo, 15 out. 1997).
471
— Mesmo assim — e abri uma nota —, podemos encontrar, também nO feitiço..., um narrador
a socorrer, com o seu discurso indireto, aqueles que não sabem falar direito, notadamente
índios, negros cativos, mulheres pobres. Quem se encarrega de transmitir a notícia de que o
índio Balduíno Galo Mau e Iô Pepeu foram capturados pelos guardas do Quilombo de Mani
Banto é Cirilo Índio Pequeno, ou melhor, o narrador que ao lado dele está: “Cirilo Índio
Pequeno não sabia contar mais nada, só sabia aquilo que acabara de contar. Que estava na
aldeia do Mato Preto, de onde...” (p. 109).
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
270
mastiga, não se engole o cuspe, não se sente o dente, não se sente o gosto, não se
pode conter a baba e, de vez em quando, no meio da noite, é como se a língua
tivesse voltado a seu lugar, coçando e querendo mexer-se, mas não se pode coçá-
la nem movê-la, porque ela não está lá, é uma assombração. (p. 157-158)
— Cito-lhe agora a professora Eneida:
... Retomando a divergência de fundo entre as duas linhagens — a posse da
voz e a possibilidade do discurso —, tem-se na segunda fração do romance um
elenco de personagens marcadas pela carência, pela impossibilidade social,
econômica, cultural e, muitas vezes, lingüística de penetrarem na malha cerrada
dos territórios discursivos que informam o romance (...).
Para essas personagens de pouca voz, o autor providencia um narrador em
terceira pessoa, que intervém na narrativa com freqüência, extensão e intensidade
diversas do que ocorre na primeira linhagem.
472
— Estou pensando novamente no personagem Turíbio Cafubá... — disse o
meu interlocutor.
— Sim, bem pensado. Quando recebeu a notícia de que sua filha Vevé
tinha acabado de nascer, o escravo Turíbio dançou e cantou à volta da menina, e,
mesmo sob os protestos de sua mãe, Dadinha, contou à pequena uma história, que
vem a ser justamente a história que ele imaginou para a sua “herdeira”. Essa
história, que tecnicamente configura o que a narratologia chama de narrativa
encaixada, ou encaixe,
473
tem dentro de si uma outra, uma segunda narrativa
encaixada, e desenrolam-se todas em discurso indireto livre, ou seja, Turíbio
Cafubá, na verdade, não conta nada; é o narrador que nos conta o que conta
Turíbio Cafubá à sua filha Vevé. Ouça:
... Dadinha perdeu quase todo o ar de riso e disse a ele que estava bem, que
dançasse e festejasse, mas que não ficasse tendo fantasias (...). (...) Ele,
entretanto, não se conformou e, como se fosse de noite e o tempo não existisse,
contou uma história de trancoso. Era uma vez, disse, um negro fumbambento de
cal... (p. 97, realcei)
— Desculpa lá — disse ele. — A segunda narrativa encaixada acontece
em discurso direto. É ainda o narrador a falar, mas incorporando o tal espírito das
danças que aparece a Turíbio. Está na página seguinte: “... espírito esse que garra
472
Eneida Leal CUNHA, “O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 175-176.
473
— Lanço mão dos verbetes encaixe (p. 121) e/ou nível narrativo (p. 297), de Carlos REIS e Ana
Cristina M. L
OPES, Dicionário de narratologia, op. cit.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
271
esse negro fumbambento e (...) lhe cochicha a seguinte outra história: ah, não
sabe mecê, negro velho fumbambento de cal...” — leu o meu interlocutor,
realçando um trecho. — Mas eu pensei no Turíbio Cafubá — continuou —, não
tanto para concordar com o que disse a Eneida sobre a maior presença vocal do
narrador na fala dos “sem voz”, mas para apontar uma sutileza: Turíbio Cafubá
está contando a história da sua vida, e isto é em si um ato de resistência: ter, ainda,
mesmo quando não se é dono da própria vida nem do próprio corpo, porque dono
é o senhor Barão de Pirapuama..., ter ainda a capacidade e a ousadia, e a fantasia,
como disse Dadinha, de querer contá-la, e é isso o que faz Turíbio Cafubá.
— Você quer dizer, então, que considera questão irrelevante ser esta vida
contada em discurso direto ou em discurso indireto livre?
— De certo modo, sim... — provocou o meu interlocutor.
— Isto é um grande equívoco. Turíbio não fala; quem fala é o narrador, e o
narrador canibal e sem cabeça somente fala porque realizou o movimento de
“comer” Turíbio, comer seus feitios e suas palavras, transformando-as em outra
coisa, em um discurso. “... a incorporação do outro acaba configurando-se como
um modo de dar corpo ao outro, seja ele inimigo ou amigo”, diz Ettore Finazzi-
Agrò.
474
Além disso, ser o narrador a contar um episódio da vida de Turíbio
Cafubá, o dia em que sua filha nasceu e ele contou a essa filha histórias, confere à
narrativa um caráter muito mais oral do que se fosse o próprio Turíbio o dono da
voz. É como se fosse o narrador a contar ao leitor do romance a história de
Turíbio a contar histórias: a fala do narrador é mais uma narrativa encaixada na
narrativa de Turíbio Cafubá. E isso — continuei — tem uma função: a narrativa
acerca das histórias que conta o Turíbio Cafubá chega perto do que disse o
escravo à sua filha, mas nunca o reproduz.
— E qual a função de chegar perto mas nunca reproduzir?
— Manter em funcionamento o duplo caráter do narrador: ele está falando
“... por si na linguagem de outrem, e por outrem na sua própria linguagem”,
475
como diz o Bakhtin. A forma de narrar do narrador sem cabeça é uma forma
474
“A identidade devorada — Considerações sobre a antropofagia” (p. 615-626), in João Cezar de
Castro ROCHA (org.), Valdei Lopes de ARAUJO (colab.) & OUTROS, Nenhum Brasil existe —
Pequena Enciclopédia, Rio de Janeiro, TopBooks, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e
UniverCidade Editora, 2003, p. 618.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
272
antropofágica: quando incorpora o modo de falar de Turíbio Cafubá, o narrador
sem cabeça concretiza uma diversidade. O narrador abre-se a uma alteridade e...
aprende: “... come-se para absorver as virtudes do comido”, diz Ettore Finazzi-
Agrò, “para ‘encarnar’ seu valor”.
476
— Qual então a porção Turíbio da linguagem do narrador?
— A simplicidade das idéias e os temas. E a porção do próprio narrador dá
conta da sintaxe, da escolha dos termos e da clareza da exposição: é onde entra o
narrador, com a sintaxe. Turíbio Cafubá não tem o mesmo status verbal que tem
Dadinha, que veremos depois, e, em menor escala, Joana Leixona,
477
alma
encarnante dO feitiço da ilha... Vou expor agora um outro aspecto da linguagem
do narrador em Turíbio Cafubá. O narrador, vez por outra, envolvido, através da
focalização interna, com um personagem da linhagem dos “sem voz”, introduz no
seu discurso o que podemos chamar um pensamento pronto, repetido tanto pelos
opressores quanto pelos oprimidos: um pensamento que reproduz uma ideologia.
O efeito é irônico. Veja: o narrador, com a cabeça de Turíbio, com as palavras de
Turíbio veiculadas em um discurso indireto livre, reproduz um pensamento que
lhe foi ensinado por seus patrões e pela vida. A reprodução desse pensamento
acontece através das premissas do próprio pensamento — eu disse —, e é isso que
confere a essa reprodução um caráter crítico. Turíbio é castigado com chibatas:
“Castigo leve, não lhe tomaram o privilégio de pescar, são bons cristão, boas
pessoas (...), era só porque ele deveria ter pedido consentimento para distribuir o
peixe, pois saber que ele ia ser dado não dispensava o pedido, essas coisas não se
pode deixar passar, se fosse assim onde se ia parar?” (Viva o povo..., p. 99).
— Nesse caso — disse ele —, não está a elite econômica a expressar-se
em discurso direto, mas está aqui expresso, através do discurso indireto livre, e
pela consciência de Turíbio Cafubá, um pensamento cuja origem está na postura
arrogante e paternalista dessa elite.
475
Mikhail BAKHTIN, “O plurilingüismo no romance” (p. 107-133), in Questões de literatura e de
estética — A teoria do romance, São Paulo, Hucitec, 1993, p. 119.
476
“A identidade devorada — Considerações sobre a antropofagia”, op. cit., p. 618.
477
— “Tinha sido puta de alto bordo no Porto e na grande cidade de Leixônia, puta lena,
alcoviteira de primeira, dona de casa de puta, corretora de escravos (...) e ladra até quanto pôde.
Em vista desses seus enormes pecados, estava condenada por mil e duzentos anos a baixar para
servir aos outros” (p. 71) — leu o meu interlocutor, na página aberta que lhe entreguei.
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273
— Sim, e, além disso, a presença desse pensamento na zona de expressão
do personagem Turíbio, um pobre escravo, demonstra o quanto a ideologia
colonizadora está introjetada nos colonizados. Ouça esse caso agora — segui —: o
narrador, incorporando Perilo Ambrósio, está a desfiar um rosário de queixas.
Ambrósio, o Barão de Pirapuama, não gosta nada de sua mulher, Antônia Vitória,
e desse modo o explicita:
... Perilo Ambrósio lembrou amargamente que casara com aquela viúva branca
como alvaiade, quase tão gorda quanto ele (...), porque assim entraria para o ramo
comercial através do Empório e Trapiche Soares de Almeida (...), pai dela. (...) e,
se Antônia Vitória tinha alguma boa qualidade, esta era ser filha única de pai
viúvo velho. O escaler bordejou a mancha escura dos arrecifes submersos,
anegou de novo a proa, ressurgiu quase feérico entre os cetins e filós
multicores da companhia feminina, embicou para a barca fundeada ao largo,
os negros se levantaram para manejar o cordame e acostar. (p. 58-59, realcei)
— Eu li esse longo trecho — disse eu — para que você veja a diferença
entre os dois tipos de discurso. O pedaço realçado pode representar uma voz que
seria a voz neutra do narrador, em contraste com o discurso de sua focalização em
Perilo Ambrósio: uma voz desvinculada de qualquer personagem e de qualquer
discurso “do povo”. Quase não há acentos, havendo somente uma descrição que
se quer objetiva das manobras do barco em que estão Ambrósio, sua mulher e
alguns convidados. É como se o narrador interrompesse uma ladainha, a ladainha
do Barão de Pirapuama, para “voltar ao trabalho”: o trabalho de narrar à distância.
— Mas pode ser feita uma ressalva com relação ao vocabulário, bastante
específico, desse trecho que você realçou... — disse o interlocutor.
— Você quer dizer que se trata, aqui, de um narrador neutro mas afeito ao
conhecimento singular da navegação?
— Logo, não tão neutro assim... Os termos escaler, bordejar, um termo da
marinharia, anegar, fundear, cordame e acostar constituem indícios de que o
narrador está submerso em uma linguagem de outrem. Isso me lembra o Bakhtin,
que você citou, mas continue, eu quero mais exemplos.
— Esse feitio do narrador, essa sua capacidade de falar pela boca do outro,
não constitui apenas o trânsito entre pontos de vista, com o narrador a
transformar-se ideologicamente — disse eu —, mas também um trânsito
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274
vocabular, como acabamos de ver. O narrador é canibal
478
graças à sua capacidade
de adotar a linguagem e os modos de falar do personagem que está incorporando,
mas também, como você ressalvou, a linguagem específica de um saber
específico, que não é dele, narrador, mas de um outrem inidentificável.
— Ou nem tão inidentificável assim... — disse ele, abrindo uma página dO
sorriso do lagarto. — Veja — e leu:
... Orientada pelos cochichos de Jereba ao pé do ouvido de Rufino, a lancha
amainou ao largo da ilha dos Frades e lançou poita à popa, afilando morosamente
com a correnteza do fim da vazante, até parar de todo e aninhar seu bojo branco
na água (...). Marcação precisa, náilon 90, chumbada de 200 gramas, anzol 6,
anzol 5, paradas de aço, muita linha para trabalhar o peixe, iscas de saúna e lula,
silêncio tenso... (O sorriso..., p. 191, realçou)
5.2. ANTROPOFAGIA(S) DE ONTEM E HOJE: O CABOCO COME
— Vejamos o exemplo do trecho em que João Ubaldo apresenta o
universo do índio Capiroba, o personagem antropófago.
— E aí podemos fazer a inevitável associação com o Movimento
Modernista de 1922... — disse o meu interlocutor. — O narrador sem cabeça será
sempre um antropófago. Acho que você precisa aprofundar essa idéia, aprofundar
as conexões que se podem estabelecer entre esse narrador antropófago e toda
aquela estética antropofágica...
— Como assim? — e franzi o cenho. — Não estamos aqui justamente para
isso? Talvez você é que deva aprofundar a sua questão... — provoquei, mas o meu
interlocutor pareceu não se abalar. — Quem discutiu isso foi a Eneida Leal
Cunha, que num momento de seu texto aproxima Capiroba e todo o ambiente
antropofágico que o cerca com o Manifesto Antropofágico e os demais textos que
compõem o Modernismo de 20. Aproxima-os e em seguida os afasta. Aproxima-
os invocando as suas características inclusivas: deglutem ambos os aspectos
recalcados de nossa formação, o que ela chama “os baixos começos”; aproxima-os
478
— Faço aqui como fez Ettore FINAZZI-AGRÒ, que não se deu ao trabalho de estabelecer, em seu
ensaio, uma distinção entre antropofagia e canibalismo (vendo este último como a antropofagia
em sua forma americana) e tratou-os assim, como sinônimos, mesmo sob o risco de uma vaia
etnológica. A indistinção não o impediu, no entanto, de esboçar alguma genealogia para o termo
canibal, às páginas 618 e 619 (“A identidade devorada”, op. cit., p. 618).
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
275
a crítica que ambos fazem à eliminação da diversidade na formação de nosso
“povo”. Agora passo a palavra à própria Eneida Leal:
... Apesar dos pontos de convergência, o lugar de Viva o povo brasileiro e de
João Ubaldo Ribeiro é outro, muito diverso do lugar de onde fala Oswald de
Andrade (...). A antropofagia, em um romance da década de 80, já não tem o
sentido programático e político, mesmo no âmbito da metáfora cultural, que foi
possível e necessário a Oswald. Radicalmente contrário aos primeiros textos
coloniais e colonizados que investiram contra a antropofagia, João Ubaldo
Ribeiro está também relativamente distante de Oswald. Compõe a sua fábula
antropofágica, mas já não atribui ao traço antropofágico valor negativo ou
positivo. (...) A antropofagia havia sido condenada ou defendida por vozes
opostas mas igualmente autorizadas (...). Em Viva o povo brasileiro já não é
viável uma voz autoritária ou autorizada, a apontar caminhos. A sua estratégia é
deixar falar o dominado da cultura e da história.
479
— Observe — disse eu — que estamos colocando lado a lado duas
antropofagias, a de 22 e a de hoje...
— Hoje, não! A de 1984, data em que o livro foi publicado!
— É verdade... Mas utilizo aqui a pergunta do Ettore Finazzi-Agrò: “... de
que forma se manifesta e o que nos comunica a antropofagia hoje? O que ela pode
explicar-nos de nós mesmos, de nosso relacionamento com o fora-de-nós?”.
480
— Temos então três tempos: 1922, 1984 e este tempo de agora...
— Sim, mas eu não me aventuro a falar desse “tempo de agora”. Isto se
chama pensamento de risco, ou riskfull thinking, nas palavras do Gumbrecht.
481
O
ensaio do Ettore Finazzi-Agrò, de certo modo, decidiu abordar a antropofagia para
falar, ainda que breve e cautelosamente, e nas suas últimas linhas, do estado atual
da Europa diante do multiculturalismo e da necessidade de se “chegar à harmonia
479
“O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 191-192, realcei.
480
“A identidade devorada...”, op. cit., p. 616.
481
“Universities are important because they allow scholars to practice ‘riskfull thinking’ — to
pursue ideas and research that won't produce just one or a few easy answers but that will, on
the contrary, often lead to more questions, he [Hans Ulrich Gumbrecht] said” (John S
ANFORD,
“’Elementary pleasures’ and ‘riskfull thinking’ matter to Gumbrecht”, Stanford Report, 17
nov. 2000, disponível em: <http://news-service.stanford.edu/news/2000/november29/gumb-
recht-1129.html>, acesso em 6 dez. 2005
). E traduzo: “As universidades são importantes
porque permitem aos estudantes a prática do ‘pensamento de risco’ — para buscarem idéias e
pesquisas que não irão resultar em uma ou algumas respostas fáceis, mas, ao contrário, poderão
conduzir a mais questões”.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
276
somente mediante uma plena assunção da Diferença, uma assimilação sem
hegemonia, uma incorporação que dá corpo ao Outro”.
482
Isto é riskfull thinking.
— Isto é utopia... O que diz o próprio João Ubaldo acerca disso?... Se é
que ele diz alguma coisa acerca disso... — pergunta o interlocutor.
— Diz: “Os modernistas paulistas tiveram bem pouca influência sobre
mim”.
483
E disse também, numa entrevista mais antiga:
— No meu livro Viva o povo brasileiro tem um personagem, um caboclo
mestiço de índio com negro, que come holandeses. Antes comia portugueses,
depois passou para holandeses. Admito que isto esteja ligado a essa tradição
antropofágica de Macunaíma, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Semana de
Arte Moderna. Quem trabalha na área cultural brasileira é herdeiro da Semana de
Arte Moderna, quer queira, quer não (...). Posso admitir isso como elemento
inconsciente do que fiz. Mas, na realidade, quis fazer uma gozação mesmo.
484
— Ele admite a relação com essa tradição modernista, mas não se sente,
ou não quer se sentir, devedor dessa tradição... — disse ele. — E retomo o que
você disse... Veja que Lúcia Helena concorda que a antropofagia em Ubaldo não é
resultado de influência, embora constitua, sim, uma retomada como estratégia não
positiva ou negativa... Um mero “passar a palavra a outrem”... Ouça.
A opção de João Ubaldo é um achado pessoal, mas é também a retomada (...)
de um veio marioandradino (e observe-se que não falo de influência): aquele veio
que permite a ambos apresentar a divisão entre a colônia e o não colonial, entre o
mítico e o real, entre o literário e o social, entre o “meu” discurso e o do outro,
entre a história “oficial” e suas contraversões como algo que necessita ser
focalizado a partir de uma perspectiva de desmascaramento paródico e do resgate
alegórico de vozes culturais silenciadas.
485
— A dificuldade de João Ubaldo Ribeiro em inserir-se em uma determinada
tradição literária modernista, de sentir-se devedor de uma influência, tem mais a ver
com um seu comportamento bem particular: não solenizar nenhum aspecto de sua
literatura — e lembrei-me de algumas declarações que ele fez à imprensa. — Sobre
Capiroba, veja o que diz o próprio João Ubaldo acerca do nome de seu índio:
482
“A identidade devorada...”, op. cit., p. 625.
483
“João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002.
484
Airton GUIMARÃES, “O romancista baiano passa os olhos sobre a cultura brasileira...”, Estado
de Minas, 17 mar. 1990.
485
Viva o povo brasileiro — a questão do nacional...”, O Estado de S. Paulo, 17 fev. 1985.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
277
— Capiroba ia ser Capiroca. Piroca na minha terra não tem o significado de
pênis, como no resto do país. É apelido de Pedro (...). Conheço pelo menos um
Piroca. Tinha um até que era tribuno popular (...). Mas o apelido vinha atribuído
de tensões, então mudei para Capiroba. Os holandeses... foi uma brincadeira.
Sempre quis sacanear com eles, e quando o livro foi traduzido eles adoraram.
486
— Vejo aqui aquilo a que você se referiu lá atrás — disse o meu
interlocutor —: a operação de des-aprofundamento, des-solenização que ele
realiza ao falar de seu próprio universo ficcional e das possíveis relações que se
podem estabelecer entre esse universo ficcional, a cultura e a História: “Os
holandeses... foi uma brincadeira. Sempre quis sacanear com eles”, diz João
Ubaldo, sempre gozador-de-si.
487
Veja só...
— E agora você imagine como fica um trabalho acadêmico que tenha
como tema a cultura holandesa diante de fenômenos literários tais como a
antropofagia do caboco Capiroba... Como fica um trabalho diante de uma
declaração dessas vinda da boca do autor...
— Se os textos ficassem na dependência de uma chancela de origem
autoral que os legitimasse — disse ele —, muitas teses instigantes não teriam sido
escritas: o que seria mesmo uma pena...
— Muitas vezes os autores são os menos autorizados a falar de seu
trabalho...
— João Ubaldo não pensa assim — disse ele, com uma entrevista na mão.
— Ouça — e leu.
José Carlos de Vasconcelos — Sempre disseste que O feitiço da ilha do
Pavão era uma simples história divertida, às vezes brejeira, sem nenhum outro
significado. Não admites que ele também é uma metáfora (...)?
João Ubaldo Ribeiro — ... prefiro que o leitor veja por si mesmo as
metáforas. Se precisar explicá-las, serão más metáforas. Acho que, com o tempo,
fui inventando (...) uma série de respostas um tanto cínicas para perguntas muito
repetidas, tais como “pode dizer-nos alguma coisa sobre o seu livro?”. Aí eu digo
a primeira besteira que me ocorre e, de tanto repetir essa besteira, ela se torna
automática. Para ser perfeitamente honesto há uma vasta falsa modéstia no que eu
falo a respeito de meu trabalho, mas tenho boas razões para isso: não é decoroso
486
Nahima MACIEL, “João Ubaldo Ribeiro: a arte de escrever”, Correio Braziliense, 14 set. 1997.
487
— E a explicitação da irônica preferência do narrador pelos holandeses ressurge no romance
Miséria e grandeza do amor de Benedita disse ele. E leu: — “... melhor um holandês novo
com medo de ser comido de moqueca do que um português velho, que nem no couro mais
daria”, diz o narrador (p. 30).
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
278
o sujeito sair por aí, rasgando-se em elogios a si próprio ou impondo visões sobre
o que faz. Eu gosto do que faço e tenho lá minhas pretensões (esse “lá” aí já é a
falsa modéstia em operação (...)). Minha acção, pois, é devolver a peteca ao
freguês. Ele que ache alguma coisa mais no Feitiço do que uma simples história
divertida. Se não achar nada, terá sido, das duas, uma: ou é mau achador ele, ou
sou eu mau carpinteiro. Ou ambas as coisas; nada impede que o leitor tenha um
nível de incompetência comensurável com o do escritor.
488
— De modo que eu — continuou ele — não marcaria assim uma
hierarquia entre os mais ou os menos autorizados a falar de um texto. A voz do
autor deve ser apenas mais uma voz a se levar em consideração, como você já
observou em nossa conversa sobre o Sargento Getúlio, ao associar uma fala de
Ubaldo a uma leitura de Malcolm Silvermann, contrapondo ambas à crítica de
Zilá Bernd, lembra? Não a voz principal nem mesmo a voz de origem, mas apenas
mais uma voz...
489
E agora vamos voltar? Temos muito trabalho... Você, aliás...
— E muitas vozes... Quero mostrar a você um outro tipo de canibalismo
discursivo, este bem mais radical, já que o narrador está incorporando não apenas
um ponto de vista ideológico, como também um modo de raciocinar e de se
expressar. O narrador está tentando dar conta da confusão mental em que ficaram
os índios depois que os padres portugueses tomaram conta da terra e iniciaram os
trabalhos de catequização. Estamos dentro de Viva o povo..., em Vera Cruz de
Itaparica, a 20 de dezembro de 1647. Ouça:
... Depois da redução, viu-se que alguns eram maus e outros eram bons,
apenas antes não se sabia. Mulher má não quer ir à doutrina, quer andar nua, não
quer que o padre pegue na cabeça do filho e lhe besunte a testa de banha
esverdeada, dizendo palavras mágicas que podem para sempre endoidecer a
criança. Feio, feio, mulher má. Mulheres boas não falam com mulher má, mulher
má fica sozinha, marido de mulher má também homem bom, mulher má cada vez
mais sozinha, fica com gênio muito ruim, parece maluca. Cada vez mais maluca,
castigo do céu porque é mulher má. (p. 40)
— Parece-me que o narrador está envolvido em uma tarefa dupla:
reproduz o pensamento dos padres através de um modo de expressão dos índios.
488
José Carlos de VASCONCELOS, “O feitiço da escrita”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias,
Portugal, 24 mar. a 6 abr. 1999.
489
— Ver o Capítulo 2: “A infância barroca e a linha reta de Getúlio”, p. 63, a nota n
o
94.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
279
— Exatamente — e eu me animei com a síntese de meu interlocutor.
490
O narrador abandona a sua sintaxe de narrador, se é que se pode falar aqui de uma
sintaxe de narrador...
— Talvez se possa falar da sintaxe que não é a do narrador, e só. Você não
disse que o seu narrador é sem cabeça?... Quem não tem a própria cabeça não tem
a própria boca e não tem a própria voz. Isso de certo modo contraria o que diz a
professora Eneida Leal Cunha, não? Ouça o que diz ela:
... Presente e atuante, o narrador se torna mais visível porque, à medida que
narra, constitui um discurso que é sempre igual a si mesmo, homogêneo e
unívoco, e ainda porque, contrastando com a outra linhagem, mantém quase
sempre estáveis e explícitos os limites entre o seu registro e as variações dialetais
das personagens (...).
491
— Você tem razão — disse eu —, mas não exatamente contraria.
Contraria o que diz a Eneida, porque o narrador, na verdade, não mantém nunca
um discurso que é sempre igual a si mesmo. Pelo contrário: não é o narrador que
intervém nos discursos dos personagens da linhagem dos “sem voz”,
emprestando-lhes, simbolicamente, a sua fala de narrador, doando-lhes, e
somente, dessa maneira, uma voz. É o contrário. São os personagens que levam a
sua voz até o narrador, emprestando-lhe um jeito de se expressar. O narrador não
tem cabeça e, a rigor, não tem uma voz unicamente sua, como você bem lembrou;
ele é sempre a voz do outro, seja este outro o da linhagem dos “bem falantes”
donos do poder ou da linhagem dos “aparentemente sem voz”. O narrador fala,
sim, como diz a Eneida, no lugar de seus “personagens sem voz”, mas a
linguagem que ele utiliza não é uma que seja sua e sempre igual. Ele se vale da
linguagem oralizada e particularizada do índio e do negro — e parei.
— Não, não. Não pare; continue.
— A própria Eneida Leal Cunha, mais adiante — e eu obedeci —, vai
apontar o artifício do discurso indireto livre como a maneira narrativa pela qual o
narrador se expressa. Veja esse caso, em que o narrador muda de discurso e
490
— E o mesmo acontece aqui neste trecho dO feitiço da ilha do Pavão: o pensamento dos padres
através de um modo de expressão dos índios, com a diferença de que o discurso, neste
exemplo, é direto. Veja o índio Balduíno Galo Mau: “Índio anda nu porque é nocente, (...) não
sabe mardade, padre cura disse, padre cura não se poquenta com índio nu!” (p. 40).
491
“O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 176.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
280
começa a falar e a pensar como um índio falaria e pensaria, lançando mão de um
léxico básico. Lembremo-nos de que os índios estão justamente em processo de
alfabetização, aprendendo as primeiras palavras... Esse discurso “índio”, no
entanto, traz consigo o simplismo daquele modelo de catequese. Veja: “Matar um
bicho: pôr na lista do Mal? Não. Sim. Não. Sim, sim. Não, a depender de outras
coisas da lista do Mal e das coisas da lista do Bem.
492
Sim, talvez” (p. 39). Diz a
Eneida Leal Cunha: “... o narrador (...) habilmente molda a própria voz ao ponto
de vista da personagem”.
493
A questão de fundo, no entanto, não é do índio e não
lhe diz respeito. Essa questão de fundo é a questão do branco obsedado pela
eternidade e pela expiação dos pecados. Essa encenação do narrador não tem
apenas a função de bem descrever o comportamento esquizofrênico a que ficaram
submetidos os índios, mas sim a de criticar, a partir de dentro do discurso do
oprimido, o conteúdo perverso e simplista do pensamento do opressor. O
narrador, aqui, está ingerindo, digerindo e devolvendo o discurso colonizador,
494
e
ele faz isso incorporando o modo de expressão dos índios, reproduzindo essa
ingestão e essa digestão tal qual faria, e tal qual provavelmente fez, um nativo
diante do pensamento absurdo da catequese. “... se não puder derrotar o outro (...),
então siga mastigando sua língua, destroçando seus discursos, abocanhando suas
ideologias, filosofias, obras de arte e pensamento”, diz Ettore Finazzi-Agrò.
495
492
— “Trepar com todo mundo dá ou não dá inferno? Comer filho dá inferno?” Abri aqui esta nota
para citar a personagem-protagonista dA casa dos Budas ditosos em dilema semelhante quanto
à simplicidade, que neste caso é irônica, e não ingênua como em Viva o povo brasileiro. O que
está em jogo, em ambos os casos, são os desejos e as conseqüências advindas de sua satisfação.
“Aliás, vamos deixar de lado esse negócio de inferno”, continua a mulher, “ainda conservo um
certo grilo de inferno” (p. 47).
493
“O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 187.
494
— O poeta Haroldo de CAMPOS — eu disse, abrindo com a mão um parêntese —, comparando
Viva o povo brasileiro a Catatau, de Paulo Leminski, publicado em 1975, escreveu, acerca das
duas obras: “Tudo as separa e tudo as aproxima. O compacto, complexo e às vezes tautológico
livro-limite de Leminski e o desmedido, exorbitante, caudaloso romancerio de Ubaldo. (...)
Não por acaso, nos dois livros, a antropofagia é tematizada como processo simbólico. Na
irreverente devoração canibal, a História Brasílica (num caso), senão o próprio logos do
Ocidente para aqui transplantado (no outro), são objeto de trituração. Digesto indigesto. Por um
lado, o ‘caboco’ Capiroba, guloso da carne macia e branquinha dos holandeses, criação
rabelaisiana do bardo Ubaldo. Por outro, o monstro Occam, ogre filológico, mastigador de
textos, papaletras e papa-línguas, fantasmagoria sígnica do rapsodo Leminski. Por cima das
muitas diferenças de concepção e de fatura, esse vínculo voraginoso é mais um elo
emblemático que os liga” (“Uma leminskíada barrocodélica”, Folha de S. Paulo, 2 set. 1989
).
495
“A identidade devorada...”, op. cit., p. 622.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
281
— Sim — disse ele. — O narrador é bastante feliz na sua crítica
justamente porque em nenhum instante ele nomeia de maniqueísta esse discurso
do opressor. O narrador toma emprestada a cabeça do índio e fala pela boca do
índio as palavras absurdas e o pensamento absurdo do branco colonizador. Ele
apresenta esse discurso em funcionamento e toma a enunciação desse discurso
para si, trazendo-o à própria boca, que não é própria, mas a boca de um outro...
— Disse-o bem, meu caro. Em outro trecho o narrador está contando do
medo de Capiroba: estar possuído, “permanentemente carregando algum diabo do
cão do inimigo do belzebu do tinhoso das profundas nas entranhas e na mente” (p.
40-41). O nome do “bicho preto”, do jeito que se apresenta, em fileiras de
substantivos e adjetivos, demonstra que o narrador não está fazendo mais que
repetir a ladainha que julga ter o caboclo Capiroba ouvido da boca dos padres.
— Há um exemplo parecido no romance Sargento Getúlio, não há?
— Sim. É Getúlio nomeando o preso que ele precisa transportar de Paulo
Afonso a Barra dos Coqueiros: não são as suas palavras, do sargento, mas
palavras que ele ouviu de seu chefe e, como um macaco, repete. De todo modo, o
caso de Getúlio já vimos: trata-se de um narrador em primeira pessoa, ou seja, o
narrador é um personagem que conta a história de uma vida que é a sua própria
vida, ou, ainda segundo os termos de Friedman, “o eu é o protagonista”.
496
A
mesma operação de crítica ao discurso opressor pode ser realizada não apenas
pela boca do oprimido, mas através do próprio discurso opressor e pela boca
mesma do opressor, ou melhor, do narrador a reproduzir esse discurso no indireto
livre. Veja este desmascaramento nO feitiço da ilha do Pavão:
... o mestre de campo levantou-se e (...) expôs primeiramente o que os mais
modernos sábios, estudiosos, cronistas e navegantes concordavam ser a verdade
sobre os selvagens. (...) ... ostentam espantosa indolência e falta de indústria, que
os faz viver sem veste ou agasalho e nada guardar (...). ... deve-se sempre trazer
na memória sua natureza (...) traiçoeira, ardilosa, velhaca e mentirosa (...).
Finalmente, porque foram criados no mato como bichos, não vêem nada de mais
naquilo que para os brancos é gravíssimo excesso, pecado ou motivo de desonra,
não havendo entre eles (...) ladrões, cabrões ou patifes em geral (...). (p. 61-62)
496
“’I’ as protagonist”, citado por Ligia Chiappini Moraes LEITE, “Narrador protagonista (’I’ as
protagonist)” / “A tipologia de Norman Friedman” (p. 25-70), in O foco narrativo — ou a
polêmica em torno da ilusão, São Paulo, Ática, 2002, p. 43.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
282
— Mas eu gostaria de voltar ao Viva o povo brasileiro e às estratégias
canibais do nosso narrador sem cabeça... Posso?
— Pode, e comece falando da antropofagia de Capiroba — pediu ele.
— Era justamente esse o meu intento. Estamos, eu e você, pensando pela
mesma pena... Vejo o seguinte: até um pouco antes de o narrador entrar no tema
propriamente dito da antropofagia de Capiroba, ele elenca algumas histórias de
selvagens perversos, apontando os canibais de outrora como seres
endemoinhados, “gentios em estado de brabeza e nenhuma cristandade” (p. 41),
com “dentes limados em serra para melhor rasgar a carne inocente” (p. 42), e o
canibalismo como prática imperdoável aos olhos de Deus. O narrador começa
então a tratar do tema a partir do ponto de vista dos cristão devorados, e as
vestimentas com as quais a antropofagia se apresenta são as da brutalidade e do
primitivismo. É esse o tom do narrador.
— Quase escandalizado... — diz ele.
— Sim, escandalizado. Quando a narrativa penetra no universo de
Capiroba, o nosso narrador sem cabeça simplesmente se adapta à sua nova
posição: a posição de estar ele incorporando o índio Capiroba e carregando nos
ombros a consciência de Capiroba e nas costas o seu universo simbólico. E aí
acontece uma inversão curiosa: a antropofagia, para Capiroba, um primitivo, é
tratada da maneira mais requintada, diferentemente do caso anterior, em que o
canibalismo, sob a ótica dos padres brancos, seres superiores e civilizados, é
tratado do modo mais torpe e selvagem. Quando o narrador começa então a falar
dos hábitos antropofágicos do nosso índio, ele elenca, como se estivesse a listar
pratos da culinária tradicional, tipos de preparo para as carnes dos padres.
— Fizemos, de certo modo, a nossa distinção particular entre antropofagia
e canibalismo... — disse ele. — Estou vendo aqui, à página 42: os miúdos dão
ensopados e “moqueca de miolo bem temperada na pimenta”, além da “farofinha
de tutano” e dos “culhõeszinhos na brasa”. O vocabulário e o tom não diriam
mesmo tratar-se de pratos feitos à base da carne dura dos portugueses...
— A antropofagia então, subitamente, com a mudança do ponto de vista,
passa a ser uma outra antropofagia: uma antropofagia cultural. Na página 43 o
narrador sofistica ainda mais a prática: apresenta uma lista das pessoas comidas
pelo caboco; uma lista de nomes próprios, com direito a sobrenome e ainda os
cargos e as patentes da criatura saboreada.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
283
— Esse artifício desbrutaliza a antropofagia de Capiroba — diz ele.
— Justamente — e eu completo —, e isso porque não trata os comidos
como objetos (como crêem os padres que os canibais façam), embora também não
os trate como pessoas (como os próprios padres afinal vêem os seus companheiros
de ofício, todos eles vítimas inocentes, pobres cristãos). O narrador vai tratar os
prisioneiros almoçados e jantados como variedades de pratos, com nomes e
pequenas histórias, e dessa maneira os vai personalizar e individualizar.
— Não se tratará então de um pedaço de carne — começa o meu
interlocutor — nem tampouco do quartel-mestre Lourenço Rebelo Barreto, mas
sim do “quartel-mestre Lourenço Rebelo Barreto, saudoso pela textura inigualável
de sua alcatra”, ou do jovem biscainho Jorge Ceprón Nabarro, “de laivo azedo e
enérgico, tutano suculento, triplas amplas” (p. 43 e 44). Trata-se de uma nova
leitura para o prato “filé à(de) Oswaldo Aranha”: é o próprio Oswaldo o servido...
— Isso — e não pude deixar de achar alguma graça àquilo. — Veja: a
antropofagia está longe ainda..., e esta idéia é antropológica por natureza, ... a
antropofagia está longe, dizia, de uma prática bárbara, já que o fato de se decidir
comer alguém de modo cru ou cozido já é em si um fato cultural, bem como a
classificação do corpo em partes comíveis e não-comíveis... Comer com ou sem
discursos também constitui uma demarcação entre civilização e barbárie. Ouça
este trecho do romance Vila Real, de 1979:
... não deviam ter comido as carnes dos homens de Godofredo, e de fato
comeram, porque essa proibição existe desde o tempo dos avós de todos os avós,
ao que se sabe. (...) O certo é que comeram homens como se fossem índios ou
urubus (...). Diz o povo que quando os índios comiam gente, faziam discursos aos
comidos e explicavam com preocupação que a dita gente era mesmo o de comer.
Neste caso, comeram sem palavrear, só comeram. (Vila Real, p. 95)
— Também o fato de um canibal se recusar a comer alguém — disse o
interlocutor —, por ser esse alguém indigno de ser comido, configura um dado
cultural... Lembro-me do que escreveu o Sergio Vilas Boas:
... nem os índios nem o caboco Capiroba comiam covardes. Os rituais de
antropofagia tinham um caráter que Darcy Ribeiro chama de “cultural e co-
participado” (...). Um dos primeiros visitantes do Brasil, o alemão Hans Staden,
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
284
foi levado três vezes a cerimônias de antropofagia e três vezes os índios se
recusaram a comê-lo, porque chorava e se sujava, pedindo clemência.
497
— A esses requintes se entrega a culinária sofisticada de Capiroba, que
deixa então, relativamente falando, de ser um bárbaro.
— Ocorreu-me — adiantou-se o meu interlocutor, desta vez sério — que
você também deveria relacionar esse feitio canibal com a teoria do plurilingüismo
no romance. Está me ouvindo? Estou falando do Bakhtin, que você inclusive já
citou... Não faça essa cara, eu não estou aqui para avaliá-lo. Eu sou o seu
interlocutor, ou melhor, sou o interlocutor que você é, ou deveria ser... de você
mesmo. Talvez a mais produtiva relação que se possa estabelecer com esse feitio
canibal seja esta: o fato de ter esse feitio canibal um forte componente
humorístico, que, para Bakhtin, é a forma, e aqui cito, “exteriormente mais
evidente e, ao mesmo tempo, historicamente mais importante de introdução e
organização do plurilingüismo”
498
no romance. Ele usa como base alguns
exemplos do romance humorístico inglês, onde podemos localizar uma “evocação
humorístico-paródica de quase todas as camadas da linguagem literária escrita e
falada de seu tempo”,
499
e utiliza muitos exemplos do romance Little Dorrit, de
Dickens, de 1891. Ora, penso que também a partir de Viva o povo brasileiro se
podem identificar e descrever essas tais “camadas da linguagem literária escrita e
falada de seu tempo”. O livro corre três séculos, do dezessete ao vinte, não é?
Escreveu o Márcio Moreira Alves que a linguagem de Viva o povo... “vai
mudando com os séculos, à medida que se desdobra a história das gerações da
família que o dinheiro embranquece e que serve de fio condutor da trama”.
500
No
livro encontraremos, usando as palavras do Bakhtin, uma verdadeira
“enciclopédia de todas as camadas e formas da linguagem literária”.
501
Você se
lembra do que ele chama de “construção híbrida”? — perguntou o meu
interlocutor bakhtiniano.
497
“João Ubaldo Ribeiro — o escritor carioca-baiano tenta conciliar duas metades de um Brasil
cada vez mais incompreensível”, Gazeta Mercantil, 18 e 19 mar. 2000.
498
“O plurilingüismo no romance”, op. cit., p. 107.
499
Id., ibid.
500
“Ler por prazer”, O Globo, 25 dez. 1997.
501
“O plurilingüismo no romance”, op. cit., p. 107.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
285
— Sim, lembro-me, sim, e sou capaz de dar um exemplo tirado do Viva o
povo... e outro de Miséria e grandeza do amor de Benedita. Ouça esse trecho em
que o narrador, não inteiramente sob a focalização do caboco Capiroba, já que não
utiliza a sua específica linguagem, mas bastante simpático ao ponto de vista do
índio, explicita a sua preferência pela carne holandesa:
(i) ... Rês melhor que essa, tão pálida e translúcida, encorpada e ao mesmo
tempo delicada ao tato e ao delibamento, ao mesmo tempo rija e macia, ao
mesmo tempo salutar e saborosa, ao mesmo tempo rara e fácil de caçar, rês como
essa não havia cá nem jamais haveria, cabendo ao homem aproveitar sem
questionar o que lhe dadiva a natureza, pois que do jeito que se dá se tira,
não sendo outra a fábrica da vida. (Viva o povo..., p. 44)
(ii) A verdade, como não ignoram os grandes sábios, é muitas vezes
inaceitável. Tanto assim que Lourival, evitando o olhar bisbilhoteiro dos
circunstantes e fazendo um sinal enérgico para que a irmã o acompanhasse sem
dizer palavra, entrou na casinha com ela... (Miséria e grandeza..., p. 10)
— Observe — continuei, animado —, no caso de Viva o povo..., antes de
tudo, a sofisticação da linguagem narrativa ao tratar de assunto outrora tão bizarro:
o canibalismo, mas isso já frisamos há pouco... Observe agora um caso que bem se
aplica ao que diz o nosso russo acerca da construção híbrida. Os trechos citados, e
sigamos mais uma vez com as palavras de Bakhtin, dê-me o livro, “pertence[m] a
um único falante, mas (...) na realidade estão confundidos dois enunciados, dois
modos de falar, dois estilos”.
502
Os trechos realçados procuram representar uma fala
difusa, veiculadora de um conteúdo didático, uma espécie de moral, de preceito. Há
então dois tipos de discurso, o do narrador a sofisticar a antropofagia de Capiroba,
em contraste com a rudeza de cores com que a arte de comer gente estava
representada entre os portugueses; e em seguida o outro discurso, oriundo da
linguagem comum, da opinião pública, do estoque compartilhado de ditos e
desditos populares. O mesmo raciocínio de aplica ao trecho de Miséria e
grandeza...: um narrador o tempo todo a recorrer a um estoque de conhecimentos
oriundos dos antigos sábios, não poucas vezes citando Tulcídio e os antigos, e ao
mesmo tempo um narrador incorporando o personagem Lourival diante do corpo
defunto de Deoquinha Jegue Ruço. Entre os dois discursos, nenhuma fronteira
502
Id., p. 110.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
286
formal: convivem ambos dentro do mesmo período, e a “divisão das vozes e das
linguagens”, diz Bakhtin, “ocorre nos limites de um único conjunto sintático”.
503
— A presença de Capiroba como personagem antropófago fortalece e
legitima a estratégia antropofágica do narrador sem cabeça, que por sua vez
fortalece e legitima o projeto central de Viva o povo brasileiro, que é o de deixar
falar o outro — disse o meu interlocutor, simpático à minha causa, e eu sorri,
lembrando a ele outro personagem cuja voz já ouvimos aqui, o índio Balduíno
Galo Mau, dO feitiço da ilha do Pavão, bem mais eloqüente que Capiroba, bem
mais malicioso que Capiroba e tão tupinambá quanto Capiroba...
504
E, em
agradecimento, li para ele um comentário da professora Lúcia Helena, para quem
os diálogos do livro, especialmente os travados entre Dafé, Patrício Macário, o
Barão de Pirapuama e o negro Leléu, “apontam todos para um tema subjacente no
qual insistentemente se pergunta: como nos vemos? Como vemos o outro (...)?
Como ele parece se ver e nos ver?”.
505
5.3. JOÃO UBALDO FAZ CEM ANOS
— Agora eu quero saber o seguinte — começou ele —: esse feitio canibal
só é detectável na voz do narrador strictu sensu? Não se pode apontar como uma
narrativa antropofágica, operada pelo narrador, a locução de um personagem em
discurso direto?
— Não. Nesse caso não há propriamente um feitio canibal, já que não é o
narrador a falar: trata-se do próprio personagem a falar, a ser quem ele de fato é.
Não há disfarces, pois a sua fala é legítima...
— Tenho a dizer sobre isso duas coisas — começou o interlocutor, com
um ar divertido diante de minha expressão curiosa —: a primeira diz respeito
ainda ao que escreveu Bakhtin, para quem uma outra manifestação do
503
Id., ibid.
504
— “... índio tupinambá muito do péssimo (...), rastejador mestre, doutor dos matos, amigo de
todas as ervas, conhecedor de todos os bichos, íntimo de todas as árvores (...), matreiro como
oitocentos curupiras, mentiroso como um frade viajante, o maior entendido em aguardente de
cana que se tem notícia, do fabrico ao desfrute” (O feitiço..., p. 31).
505
“Admirável mundo, o do povo”, Jornal do Brasil, 15 dez. 1984.
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plurilingüismo no romance é justamente o discurso direto dos personagens, que
ele chama de as “palavras de outrem numa linguagem de outrem”.
506
— Certo, certo, muito bem, mas aonde você quer chegar? O meu interesse
aqui é o narrador, a voz do narrador, o discurso do narrador. Se entrarmos em
considerações sobre as falas dos personagens, sobre o discurso direto dessas
variadíssimas criaturas, esta conversa só vai acabar quanto estivermos eu e você a
dar com as bengalas um no outro...
— O seu interesse é a pluralidade dos discursos... E eu vou chegar ao
narrador, só que por outro lado — disse ele —; pelo lado dos personagens. Veja:
estudando a maneira como os discursos dos personagens variam, em sua sintaxe,
sua ideologia, seu vocabulário, tom e ritmo, podemos também sustentar a
existência de um feitio canibal que não se restrinja ao narrador, mas sim que
contamine o narrador, vindo de seus personagens. Ouça o que diz o Bakhtin: “...
as palavras de um personagem quase sempre exercem influência (às vezes
poderosa) sobre as do autor, espalhando nele palavras alheias (...) e introduzindo-
lhe a estratificação e o plurilingüismo”.
507
— Não, não é o caso — interrompi-o. — Mas você acabou de me dar a
oportunidade de observar o que eu talvez não tivesse observado não fosse essa sua
idéia. Em Viva o povo brasileiro, quanto mais os personagens vão adquirindo a
sua linguagem própria, menos vai o narrador misturar-se a esse discursos “deles”.
— Agora fui eu que não peguei — disse o interlocutor.
— Digo de outro modo: o narrador, antes de colocar em cena um
personagem em sua plena atividade falante, totalmente dono de seu discurso, com
direito a discurso direto, com direito a ter lá o seu travessão, digamos... Antes
disso, o narrador exerce, com potência narrativa total, o indireto livre, misturando
os discursos, falando, para citar o seu autor russo, “... por si na linguagem de
outrem, e por outrem na sua própria linguagem”,
508
os itálicos são dele...
— Os itálicos são russos...
— Sim, os itálicos são russos... São as apresentações. Depois que os
personagens são então apresentados através do narrador, podemos notar com
506
“O plurilingüismo no romance”, op. cit., p. 119.
507
Id., p. 120.
508
Id., p. 119.
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clareza que este último vai aos poucos se retirando da cena, em meio a tanto
palavrório de personagem, personagens, em geral, seguindo os passos da idéia da
Eneida Leal Cunha, oriundos da linhagem dos poderosos e “bem falantes”. Essa
diminuição da “personalidade” do narrador funciona como um eficaz contraponto
ao exibicionismo retórico de suas criaturas.
— Discordo — disse o interlocutor.
— Certo, estamos aqui para isso, mas antes veja lá os exemplos que tenho.
Ah, eu já citei exemplo semelhante quando lhe falei antes do trecho da
embarcação bordejando “a mancha escura dos arrecifes submersos”, e os negros
se levantando “para manejar o cordame”, em que você observou a existência de
um vocabulário específico de navegação. Aquele caso, no entanto, contrapunha
um discurso do narrador em indireto livre, incorporando Ambrósio, e em seguida
a descrição das manobras da embarcação. Os exemplos que tenho agora
contrapõem, desta vez, o discurso direto dos personagens, verborrágicos, com
uma discreta entrada descritiva do narrador, que baixa o tom inflamado das
ideologias encaixadas nos discurso e, assim, deixa evidentes o seu absurdo e o seu
destempero. Dou-lhe dois exemplos longos, antes que você fique bravo comigo:
(i) ... — Querem os naturalistas ímpios — disse muito alto [o cônego D.
Araújo Marques] — fazer revogar a existência do elemento flogístico, como
querem revogar a própria existência divina, é uma analogia inevitável para eles.
Mas não, senhor guarda-livros, a mera lógica, sem o recurso à fé, desmoraliza-os.
A mera lógica!
Agora mais próximos da costa da ilha, podiam ver alguma praias,
casinholas, plantações, longas e recurvas cercas de ossos de baleia, uma ou
outra canoa encalhada na maré baixa. O dia não estava bonito, mas o
mormaço quase se fora (...). (p. 67-68)
(ii) ... — (...) A decadência da autoridade pública [diz o cônego], a flacidez do
espírito de honra e de decência, o pactuar com a insolência das classes servis,
(...), até mesmo a falta de uma verdadeira guerra, que eduque a grande massa do
povo e lhe tempere a fibra, tudo isto, estimado Barão, é-me causa de grande
receio e pena por terra como esta, que, em mãos firmes e cônscias das verdades
fundamentais, muito teria a dar à civilização européia que aqui os bons mourejam
por plantar e os maus por deitar abaixo. Abyssus abyssum invocat, Senhor Barão,
não sei verdadeiramente onde vamos parar.
O sudeste bateu mais forte, o chapéu do cônego aflou as abas como um
grande morcego. E ele, os olhos muito abertos e os cotovelos no balaústre,
continuou a discursar com veemência, enquanto a barca, mexendo suas
rodas em compassos diferentes, aprumava para Amoreiras. (p. 69)
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— Viu como o narrador surgiu em meio ao palavrório geral como uma
câmera iniciando uma descrição afastada? Agora me diga: por que discorda?
— Porque mesmo nesse discurso “neutro” e “liso” do narrador, nesse
discurso “discreto”, podemos detectar o chamado plurilingüismo bakhtiniano, o
que faz desse discurso algo apenas aparentemente “neutro”. O narrador diz, no
exemplo dois, que o chapéu do cônego aflou as abas. Esse termo está em perfeita
sintonia com o tom geral do discurso anterior, do próprio cônego. Em seguida,
caracterizar o movimento, digamos, aflante do chapéu do sujeito como
semelhante a um grande morcego pode sugerir aqui que o olhar do narrador se
deslocou então para o ponto de vista de quem estava diante do cônego, ou seja,
Perilo Ambrósio, Barão de Pirapuama, cuja antipatia pelo cônego fica clara
justamente graças a essa comparação com o morcego.
— Estou pensando... O que diz o Bakhtin sobre isso? Era a sua intenção
citá-lo, não? — provoquei.
— Sim. Diz ele que, mesmo quando, “numa observação superficial, a
linguagem do autor parece una e comedida, direta e francamente intencional, no
entanto, atrás desse plano liso e unilíngüe descobrimos uma prosa tridimensional,
um plurilingüismo profundo que responde aos imperativos do estilo, definindo-
o”.
509
Bakhtin ainda refere as chamadas zonas particulares — continuou ele,
animando-se —, compostas de semidiscursos oriundos dos personagens,
compostas de pedaços de estilo, de termos e expressões que migram do discurso
dos personagens para o discurso do autor. Bakhtin chama autor, nós chamaremos
narrador. Ele escreveu isso numa outra época, antes de o autor ser esfaqueado pelo
Barthes, que operou a separação entre o autor e sua obra e cometeu, assim, o
crime perfeito.
510
A Eneida Leal Cunha, que você citou antes, diz que os registros
lingüísticos característicos de cada personagem se generalizam, “borrando as
fronteiras entre o discurso do narrador e os discursos de personagens”.
511
— Há, de todo modo, nos exemplos que dei, uma mudança de cor entre os
discursos, e essa mudança de cor revela-se, ao final, produtiva — insisti. — Ah, e
509
Id., p. 120.
510
— Sobre isso, o texto de Roland BARTHES, “A morte do autor” (p. 49-53), in O rumor da língua,
Lisboa, Edições 70, 1984 — e o meu interlocutor o encontrou debaixo de uma pilha de livros.
511
“O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 162.
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antes que eu me esqueça: você disse mais lá atrás que tinha a dizer duas coisas
sobre o discurso dos personagens. A primeira você já disse: o discurso dos
personagens pode ser também um modo de manifestação desse feitio canibalesco.
Esse discurso apenas não provém diretamente do narrador, mas o ilustra e o
complementa, se é que entendi...
— Sim, entendeu.
— E a segunda?
— Para a segunda coisa — disse ele —, eu pedirei a você que seja mais,
um pouco mais ousado em sua análise... Quando não é um personagem a falar,
mas o narrador a falar em indireto livre tal como se fosse ele o personagem, você
nos diz que está o narrador incorporando um personagem, na verdade o seu
discurso, e, a depender da força desse discurso, uma outra cultura, muito bem. E
quando não é o narrador a falar lá em seu indireto livre, mas o personagem, com
toda a especificidade de sua linguagem, eu lhe pergunto: quem é que está, então,
aí, escondido, mais uma vez, além do narrador?
— Além do narrador? Provavelmente o escritor... — E eu senti novamente
essa idéia sendo produtiva... Já tínhamos conversado sobre isso antes, e agora esse
assunto reaparecia, se é que chegou alguma vez a desaparecer da conversa...
— Penso que sim. E nesse caso teremos o mesmo fenômeno: a capacidade
do escritor, e aqui falo do escritor mesmo, do baiano João Ubaldo Ribeiro, de,
através da sua escrita, exercer plenamente essa antropofagia narrativa. — E ele
continuou, um pouco sem graça: — Eu cheguei a reagir a esse movimento de
entrada no mundo da biografia pública quando você levantou esse assunto lá em
nossa conversa sobre Sargento Getúlio, Setembro..., o Diário do farol, O sorriso
do lagarto e Vila Real, lembra-se? De certo modo ainda sou resistente a essa
idéia, mas gosto de levantar essa bola... saber se você é capaz de um bom chute...
— Sim, você referiu “os perigos do recurso fácil ao biografismo como
válvula de explicação do universo romanesco”.
512
Nunca mais me esquecerei
dessas palavras... De todo modo, estamos ambos, como você já observou,
mudando muito ao longo dessa interlocução, não é? E esta idéia de esbarrarmos
no escritor significa torná-lo, a ele também, um personagem de toda essa grande
diegese... — e comecei a pensar nas declarações públicas de João Ubaldo Ribeiro,
512
Ver Capítulo 2: “A infância barroca e a linha reta de Getúlio”, p. 48.
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em suas entrevistas e em seus artigos auto-referentes. Pensei também no que
escreveu a professora Eneida Maria de Souza, referindo-se à...
... presença do autor não mais como ausente do texto, mas na condição de ator
e de representante do intelectual no meio acadêmico e social. Preserva-se,
portanto, o conceito de autor como ator no cenário discursivo, considerando-se o
seu papel como aquele que ultrapassa os limites do texto e alcança o território
biográfico, histórico e cultural.
513
— Você acredita que esse tipo de operação inclusiva pode ser feito? —
perguntou o meu interlocutor, retirando-me de meus devaneios.
— Ele já está sendo feito... — e continuei convicto da existência, à nossa
frente, de um grande campo de ação. Eu pensava no que eu havia conversado com
o meu interlocutor acerca da marca “João Ubaldo Ribeiro”, com as aspas, e na
figura necessária do escritor. Bem depois eu fui ler o texto da professora Eneida
Maria de Souza e vi o que ela diz acerca disso: “A figura do escritor substitui a do
autor, a partir do momento [em] que ele assume uma identidade mitológica,
fantasmática e midiática”.
514
Eu disse então a ele: — Quando vemos um
personagem como a Dadinha, por exemplo, gangana velha, mulher que no dia em
que faz cem anos morre... Quando assistimos ao verdadeiro espetáculo de
encarnações e testemunhos operado por essa estonteante e desvairada personagem
às vésperas de sua morte, estamos frente a frente não mais com as capacidades
metamorfoseantes do narrador, mas do próprio escritor João Ubaldo, que ali, com
o discurso de Dadinha bem seguro no bico da pena, teve de lançar mão de
inúmeros registros culturais, identificáveis nos mais variados tipos de discurso, e
incorporar todos eles através de sua “gangana velha”. Você tem razão, meu caro
interlocutor. E eu, que em alguns momentos não cheguei a acreditar muito nessa
nossa interlocução...
— É mesmo? Você ainda não viu nada... Ainda vamos discordar muito —
disse ele. — Continue, estou gostando.
— Certo. Talvez não haja mais em trecho algum de toda a obra romanesca
de João Ubaldo Ribeiro um momento em que ele mais teve de ser, literalmente,
trezentos, quatrocentos, quinhentos e cinqüenta para lograr chegar ao resultado a
513
“Notas sobre a crítica biográfica”, op. cit., p. 46.
514
Id., p. 47.
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que chegou com Dadinha: a representação máxima do plurilingüismo de João
Ubaldo, desse feitio canibal do próprio João Ubaldo e de sua escrita como um
todo. Veja você como o narrador resume para o leitor as linhas mestras do
discurso de Dadinha em Viva o povo...:
... Compreenderam então que Dadinha ia mesmo morrer e se ajeitaram para
aprender tudo o que pudessem e não envergonhá-la na hora da despedida, tendo
ela feito o seguinte discurso, voz dó maior, por vezes lá menor, arpejos longos,
acordes dissonantes harmonias escrupulosas, compassos múltiplos, ataques
surpreendentes, andamento expressionista, diálogos certeiros... (p. 72)
— Dadinha é a única personagem daquela linhagem dos “sem voz”, a
única personagem, representante dos tradicionalmente desvalidos de nossa
história, que fala plenamente. Ela é a exceção ao que diz a Eneida Leal. Dadinha
tem o mesmo status verbal do cônego D. Araújo Marques, de Ambrósio, de sua
mulher Antônia Vitória e de tantos outros poderosos tagarelas.
515
— É verdade... — concordei, lembrando-me do trecho de uma crônica do
escritor em que se refere ao processo de escritura de Viva o povo..., e diz: “Um
dos personagens — um tal cônego que eu em má hora incluí nos convidados de
um passeio — não cala a boca há 40 laudas, está ficando cada vez mais difícil
aturá-lo”.
516
Ela não necessita de um narrador em terceira pessoa que intervenha
na narrativa, como necessitou o escravo Turíbio Cafubá, lembra-se? Ela não
precisa que lhe comam e assim possam reinventar o seu discurso... Ela arranca a
palavra do narrador e segue, ininterruptamente, com uma eloqüência somente
comparável à do próprio João Ubaldo Ribeiro. Dadinha começa por receber em
seu corpo a almazinha do caboco Capiroba, que é a mesma almazinha que
encarnou no alferes Brandão Galvão, personagem que abre o romance. Dadinha,
descobre-se logo ao início, vem a ser justamente a neta de Vu, filha do caboco
Capiroba. Vu e o holandês Sinique, digo Zernike, tiveram uma filha, que teve uma
filha, que vem a ser a Dadinha. É esta a árvore genealógica dos despossuídos...
515
— O cônego “não calava a boca”, escreveu Nahima MACIEL, numa entrevista com o escritor.
“Por dez páginas seguidas, falou e falou. E João Ubaldo não conseguia fazê-lo calar” (“João
Ubaldo Ribeiro: a arte de escrever”, Correio Braziliense, 14 set. 1997
).
516
“A crise by night” (p. 23-27), in Sempre aos domingos, op. cit., p. 25.
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... rrreis! Prochantan, prochantan, prochotan, prr-pprrr, sai-se di qui, pipoco e
zombeira no miolo! Arrum, prochantan, prochotan, sai-se daqui, desgrachado de
estralo ni juízo, palavra de sangue com pecado no tinote! Sai-se di qui, có qui
mioleira do caboco non goenta! (...) Não, anchente. Capiroba caboco grande —
rrreis! — faz mais de quinze anos que não vem, deve de ter entrado em cavalo
novo nachendo, ficando sem querer. É um recebimento geral aqui (...). (p. 72)
— Veja você — continuei — a descrição que faz Dadinha de si mesma:
um corpo aberto à entrada das almas e à convivência de vários tipos de discurso. E
veja que essa descrição tem uma característica singular: a rima. Dadinha está à
morte, e a fala que faz de si mesma através das rimas é uma fala já dotada de
posteridade: fala de si como se já não mais existisse. A rima confere à sua fala um
certo ar de anedota, historinha rimada que atravessa os tempos, coisa já finalizada
e repassada às gerações que decoraram os versinhos da vida de Dadinha...
Dadinha, ainda viva, mitologiza a si mesma e se vê à distância. Dadinha controla
tudo, tendo escolhido o dia e a hora certa para “assistir” à sua própria morte: a
História inteira, principalmente a sua história de vida, em rimas, está na sua mão.
(i) ... Nachida no 21, começo do setechentos, meu pai eu não conheci, morreu
no meu nachimento, antes do meu nachimento, minha mãe também não vi, mãe
esta que foi vendida antes de me desmamar, partindo por Serigi, para nunca mais
voltar. Que quando eu fui nacher, naquela hora tinha dezoito almas doidas em
Amoreiras e todas elas vieram para ne mim encarnar, tendo o cura porém dito que
eu não ia me criar. Encarnou a minha alma por uma grande disputa, disputa que
até hoje haja gente que discuta, fazendo com que visite, que nem a casa da puta,
meu corpo mais de cem almas, por vezes em grande luta. (p. 73)
(ii) ... Tocou as vespras? Eu só quero ir no toque das vespras, como cheguei.
(...) Vou, mas fico um pouco em Amoreira! Não deixem matar Nozinho Pirilo
Ambrósio. (...) An-bem, eu apareço. Tão com essa cara, quere saber mais alguma
coisa? Que quantas presepada!
Mas as vésperas começaram a tocar nos sinos da capela e Dadinha se
interrompeu (...). Cruzou os braços muito composta, fechou os olhos e, com a
expressão de quem vai assistir a alguma coisa fascinante, morreu exatamente
como havia escolhido. (p. 82)
— O mesmo não se pode dizer de Joana Leixona, espírito encarnante dO
feitiço da ilha... Leixona não exibe a mesma potência verbal de Dadinha; tanto é
assim que o narrador mal a deixa falar, intrometendo-se em seguida, em indireto
livre, em nome da comunicação e da clareza:
— Caraclo! (...) Carái Caráiles, poriquê si mi li acordam, si mi li abusam?
Poriquê si mi li porturbas? Non tenes aqueles que tis ocúpis os rábis sujos,
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desinfelizes, troços de carvones? Quales das quales nigrinhas rampeiras queres
mi faláris? Que si mi li fales logo, senão eu bato! Si mi li fales logo, hum, hum?
Joana Leixona havia baixado com a disposição prevista. Olhou
desdenhosamente para as quatro mulheres, cuspiu de lado, pôs as mãos nas
cadeiras e passou a discorrer sobre si mesma. Aquelas negrinhas brasileiras
de merda não sabiam nem de longe o que era o verdadeiro luxo (...). ... ó
azêmolas fedidas, (...) caganitas de breu! E, agora tirando os punhos dos
quadris, começou a gesticular para falar com mais efeitos (...). (p. 73, realcei)
— E João Ubaldo... — continuei, disposto a relacionar, com alguma
intimidade, o feitio antropofágico de meu narrador sem cabeça ao
comportamento “literário” público do escritor —, João Ubaldo não fica atrás de
Dadinha em matéria de hibridismo. Nasceu na Bahia mas se criou no Sergipe. Seu
hibridismo é cultural. Tenho aqui muitas entrevistas. Ouça: “Às vezes penso que
não sou uma coisa nem outra. Nem na maneira de falar eu me defino como baiano
ou sergipano. (...) ... numa hora eu me comporto de forma ruidosa, aberta, meio
afrescalhada, típica do baiano do Recôncavo, e de repente eu viro uma espécie de
selvagem”.
517
E é também um hibridismo literário: “... tenho uma gama muito
variada de interesses, gosto de ler tudo, me ligo em tudo e talvez por isso escreva
tanto. Meus livros são diferentes uns dos outros, e cada qual é uma obra distinta”,
diz ele.
518
Como jornalista teve de escrever sobre tudo e sob vários estilos e
pseudônimos: “Fui obrigado, durante vários anos, a escrever editoriais, num estilo
que não era meu e com uma opinião que não era a minha”.
519
No suplemento
literário Literatura, Cultura e Arte, do Jornal da Bahia, “... na época os
suplementos literários eram poderosos. (...) Estava se inventando tudo neste
período na Bahia”,
520
João Ubaldo redigia uma coluna chamada Periscópio:
521
“Eu assinava LCA; tinha ainda o poeta José Lins Ribeiro Neto, que era eu
também; tinha um tradutor de poemas árabes e chineses, que também era eu, que
não sei nem árabe nem chinês...”.
522
Interessa-se por tudo e não apenas por
517
Cícero SANDRONI, “O João da ilha”, Elle, nov. 1989.
518
Beatriz MARINHO, “João Ubaldo... — profissão: escritor”, O Estado de S. Paulo, 30 jun. 1990.
519
Marcos GUSMÃO & Alberto FREIRE, “Viva o povo brasileiro pra inglês ler”, A Tarde, 24 abr.
1987.
520
“João Ubaldo: ‘Eu me achava um gênio...’”, Jornal da Telebahia, jun. 1984.
521
“... a coluna humorística mais prestigiada da imprensa de Salvador”, escreveu o amigo de João
Ubaldo, João Carlos Teixeira Gomes (“João Ubaldo e a saga do talento triunfante”, op. cit., p. 84).
522
“João Ubaldo: ‘Eu me achava um gênio...”, Jornal da Telebahia, jun. 1984.
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literatura, olha para os próprios livros e os vê como peças distintas e
desuniformes, independentes e autônomas, confessa-se extremamente sensível, no
momento da escrita, a influências literárias de todo tipo, e por isso precisa isolar-
se fisicamente e fechar-se literariamente para conseguir escrever sem que lhe
acometam “visitas” que resultem em plágios, mesmo que camuflados: “... é um
estado extra-sensível”, diz ele.
523
— Deixar-se influenciar assim com tanta facilidade por escritas alheias —
interrompeu-me o interlocutor — é ter, assim como Dadinha, esse “corpo aberto”
que você mencionou. É mesmo uma tentação estabelecer essa relação entre o
comportamento antropofágico do narrador e a capacidade do próprio Ubaldo de
manipular os mais variados tipos de discurso...
— Sim. Ele pode ser tão variado quanto variada é a galeria de seus
personagens escritos. Pode ser, por alguns segundos, Pablo Neruda, no dia em
que, ao sopé da Sierra Maestra e percebendo que teria de escalá-la, pergunta a
Fidel Castro: “Pero no hay un ascensor?”. Pode ser Cauby Peixoto, Nélson
Gonçalves e também Lawrence Oliver recitando King Lear. Pode ser também uma
criação sua, o coronel J. P. Bloodsworth, da Royal Navy, que um dia serviu na
Índia e, vivendo no Brasil, chegou a trocar cartas com o poeta Haroldo de
Campos, a quem esculhamba por chamar-se Haroldo: “Harold”, diz o coronel
Bloodsworth, “Harold is a name, not Haroldo”.
524
— Ouça aí Dadinha novamente recebendo pedaços da almazinha do
caboco Capiroba... — leu o meu interlocutor, romance à mão.
... Caboco Capiroba — rreis! — comia muito landês, era um, era dois, era três,
verde, maduro e de vez, he-he-he-he! Vosmecês, quem daí come landês? Mentira
sua, tem muito landês aí, nunca que vai acabar a espece deles. (...) prochantá,
prochantan, prochotá, ui, ai, segura cabeça, hum, prochantan rrreeeeis! (p. 79)
— Dadinha incorpora a variedade do mundo porque João Ubaldo, para
escrevê-la, teve de incorporar a variedade do mundo — disse eu.
— João Ubaldo é Dadinha?
— João Ubaldo é Dadinha — e rimos. — Ouça o que diz ele:
523
Id.
524
Informações retiradas da matéria de Cícero SANDRONI, “O João da ilha”, Elle, nov. 1989.
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— ... continuamos [os baianos do Recôncavo] a ser e não ser tudo aquilo que
pensam de nós, a ser cidadãos de um país grande e nativos de uma nação
especial. E não aceitamos presentes de pulseiras e colares, nada que amarre (...),
não gostamos que nos passem a mão na cabeça (...), não sentamos de costas para
a porta, não damos nem nome nem objeto pessoal à gente de pouca confiança
(...), não esquecemos o santo na hora de beber, gostamos de conversar sobre
comida, temos hábitos sexuais pouco ortodoxos, somos compositores, cantores,
vaqueiros, sofredores, curtidores, lutadores.
525
— E agora — continuei — ouça a fala de Dadinha nesta sua última sessão
de vida, em que ela se dispõe a transmitir todos os ensinamentos e as experiências
que aqueles seus cem anos têm guardados. Se fosse possível, e João Ubaldo
demonstra que é quase possível, e assim o quer o seu texto, que seja possível... Se
fosse possível, os cem anos de Dadinha, do primeiro ao último, estariam, ali,
inteiriços, naqueles trechos representados, sem lacunas, como se ele pudesse
demorar os mesmos cem anos para escrever aqueles cem anos, numa espécie de
realismo radical, à Joyce.
— Por que à Joyce?
— Porque essa vontade que a gente observa no texto de Ubaldo, de
reproduzir o discurso de Dadinha, quase como se fosse em tempo real — disse eu
—, lembra a obsessão de Joyce em reproduzir a sua Dublin, em seus mínimos
detalhes. Joyce dizia que Ulisses havia sido escrito “de tal modo que, se Dublin
fosse destruída, seria possível reconstruí-la com base no romance”.
526
Ouça agora
Dadinha a “citar” João Ubaldo:
... Se cubra, não aceite pulseira nem cordão de prenda, nem nada que amarre,
não deixe ninguém passar a mão na vossa cabeça, tou avisando, laralá-lerelê! Cê
que se vire de costa pra janela e guinorando a porta, cê que aceite qualquer de
comer, cê que vá confiando, cê que vá contando o seu particular, cê que vai ver o
que cê vai ser, he-he-he, ai meu Deus, nem sei... (p. 78)
— Há ainda pequenos exemplos espalhados por todo o Viva o povo...
continuei —; pontos de contato entre facetas de personagens e facetas do próprio
escritor João Ubaldo... Veja o caso de Stalin José, personagem já do século XX,
525
João Ubaldo RIBEIRO, “Os baianos”, Manchete, texto sem referência.
526
“James Joyce”, in Malcolm BRADBURY, O mundo moderno — Dez grandes escritores, São
Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 148.
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comunista de coração e descendente dos Popós, representados pelo patriarca João
Popó, itaparicano do século XIX e patriota até o mais alto grau possível de
conservadorismo.
527
O patriotismo de Stalin José seguiu provavelmente a
inspiração do filho de João Popó, Zé Popó, companheiro de Maria da Fé,
combatente do povo e vergonha para o pai. Pois Stalin José não era simpático aos
símbolos nacionais entendidos como legitimadores de uma opressão e
mantenedores de uma distribuição injusta de poder e riquezas. Não, não era esse o
patriotismo de Stalin José, cuja fraqueza eram mesmo os desfiles escolares dos
dias da Pátria em Itaparica. O patriotismo era outro. E mesmo a posição da própria
Maria da Fé diante dos símbolos nacionais é ambígua, já que são símbolos de
opressão, mas também de solidariedade e união. O resultado, no entanto, faz
parelha com o que sente o próprio escritor João Ubaldo.
(i) ... e mesmo os poucos amigos [de Stalin José] (...) não entenderiam o que
tentasse explicar-lhes sobre sua ânsia incontrolável de chorar, quando via os
meninos de Itaparica desfilando nas paradas das datas cívicas. (p. 632)
(ii) Eu [Maria da Fé] também sinto um arrepio quando se fala no Brasil,
quando ouço os hinos e vejo o povo levantar os olhos para a bandeira. Pois não é
nossa bandeira e é nossa bandeira. (p. 431)
(iii) João Ubaldo Ribeiro — ... as pessoas, mesmo as mais simples, sempre
festejaram com muito orgulho o 7 de Setembro e outras datas. Aliás, eu sempre
fico emocionado quando assisto ao desfile do 7 de Setembro aqui em Itaparica,
com aquelas crianças de chapeuzinho verde e amarelo...
528
527
— Valeria a pena citar, em nota, e pensando-se numa provável inspiração para o personagem
João Popó, a história segundo a qual o nascimento de João Ubaldo Ribeiro era para ter sido, de
acordo com o desejo de seu avô, não no dia 23, data em que efetivamente nasceu, mas no dia 7
de janeiro — disse eu, e li. — “Eu ia nascer em dezembro. Aí não nasci, virou o mês, e nada.
Meu avô inventou que eu tinha que nascer aqui em Itaparica, aparado pela parteira que aparou
não sei quem importante, e queria que eu nascesse na data magna de Itaparica, mas o 7 de
janeiro passou e eu não nasci, minha mãe começou a sentir as dores do parto no dia 22 e nasci
no dia 23 (...). Aí, na hora de nascer, disseram que estava de cabeça dura, nasci de 10 meses,
com unhas e cabelo” (J
AGUAR, Fernando VITA, Fernando de BARROS, Haroldo CARDOSO,
André Luiz O
LIVEIRA, “Pasquim vai à Itaparica entrevistar João Ubaldo. Muito riso e pouca
literatura”, Pasquim, 23 nov. 1989). Tudo por causa da luta do povo contra os holandeses e
também contra os portugueses; luta que “não teve a dimensão dramática que as pessoas
gostariam às vezes de admitir”, diz o escritor, e continua, contando outro caricato patriotismo
do avô: “Meu avô Ubaldo, segundo a lenda local, tentou, e foi impedido na última hora pelo
padrinho da criança, pôr o nome de ‘Setedejaneiro’ a um tio, o finado irmão de minha mãe, que
acabou se chamando Flaviano (...), mas na realidade o nome dele era ‘Setedejaneiro’. E minha
mãe se chama Maria Felipa, com ‘e’, porque uma das heroínas da independência se chamava
Maria Felipa e meu avô fez questão...” (Fernando Assis P
ACHECO, “João Ubaldo Ribeiro:
histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983).
528
Maria José QUADROS, “Por João Ubaldo, uma história com agá minúsculo do povo do
Recôncavo”, O Globo, 3 nov. 1984
.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
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— É de se mencionar ainda o personagem “real” que pode fazer parelha
com João Popó, Zé Popó ou Stálin José — disse eu —, todos sensíveis às festa
cívicas nacionais: Ary de Maninha, figura de uma das crônicas de João Ubaldo
para O Globo e também figura “real” presente ficcionalmente no Miséria e
grandeza do amor de Benedita. Veja, de novo, o imbricamento dos universos:
(i) ... Ary de Maninha, verbo inflamado, tribuno destemido, palavra
tonitruante, que já fez muito marmanjo chorar cachoeiras quando discursava na
festa cívica do Sete de Janeiro.
529
(ii) ... Quem a fortuna tiver de comparecer a Itaparica por ocasião dos festejos
da verdadeira data magna da nacionalidade, o Sete de Janeiro, ouvirá discursos só
comparáveis, em muitos casos favoravelmente, aos que fazia o padre Vieira na Sé
e, se a sorte o agraciar, poderá até mesmo escutar a palavra sem rival de Ary de
Maninha, no palanque do Campo Formoso. (Miséria e grandeza..., p. 119)
— E João Ubaldo ainda aproveita de Stalin José outra faceta, relativa à sua
falta de traquejo com questões prático-administrativas, para montar o seu
personagem...
— Você inverteu os termos — observou o meu interlocutor, sorrindo. —
Inverteu escritor e personagem... Deveria ter dito: “João Ubaldo ainda aproveita
de si mesmo outra faceta, relativa à sua falta de traquejo com questões prático-
administrativas, para montar o seu personagem Stalin José”... E essa inversão
deve ter lá a sua razão de ser, não?
— Olhe... Acho que sim. Toda a sua vida intelectual pública, as suas
convicções, as suas angústias estão distribuídas entre seus personagens. Eu ia
justamente lhe dar um outro exemplo relativo ainda a Stalin José, que contava a
um conhecido a sua biografia de sofrimentos, prisões e sucessivos períodos de
clandestinidade. Fazia Stalin José uma espécie de mea culpa, para tentar entender,
em analogia com o caso de Dom Casmurro, as razões de sua mulher, que já não
mais olhava para ele como antes...
(i) ... a clandestinidade o deixou fora de casa meses, anos seguidos, os
parentes tinham sempre que sustentá-la, e ele não conseguia deixar de sentir
vergonha, por mais que fizesse sermões exaltados a si mesmo, de não ter nada,
529
João Ubaldo RIBEIRO, “Acho que venho falhando”, O Globo, texto sem data.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
299
não dar nada, não oferecer nada, de não ser um homem como os outros, que
faziam coisas, resolviam coisas, entendiam de transações, ganhavam dinheiro e se
divertiam. (p. 634)
(ii) João Ubaldo RibeiroAcho que Deus nos dá alguns poucos e preciosos
talentos. Definitivamente não saberia administrar nada, me falta absoluta
competência para isso.
530
— Qual o contexto dessa afirmação de Ubaldo?
— É uma resposta à pergunta sobre se participaria de uma campanha
política, e João Ubaldo respondeu dizendo ainda que jamais exerceria um cargo
político. Mas o contexto, aqui, não é relevante para os meus propósitos —
salientei. — Essa inabilidade de gerência não se restringe, é claro, ao universo
técnico da administração pública, mas a aspectos de sua vida aos quais ele associa
um tipo de humor a la Chaplin ou Woody Allen e cria, assim, o seu personagem
de ares atrapalhados e pouco à vontade com as chamadas “questões práticas da
vida”.
531
Há ainda, inserido no personagem Stalin José, um detalhezinho acerca do
pai do próprio João Ubaldo: uma impossibilidade de reconhecer e diferenciar
notas musicais. Stalin José não sabia cantar, nunca soube e nunca cantou nada na
vida (p. 627): “A quem teria saído, com essa surdez especializada?” (p. 628). Diz
o escritor: “Meu pai era surdo tonal, incapaz de assoviar, mas tinha gosto pela
música e uma boa cultura musical. Sempre ouvi os clássicos (...), mas meu
preferido é Bach. Só gosto de Bach”.
532
— Há pedaços de Ubaldo espalhados por todo o romance... — disse ele.
— Sim, e não foi você quem chamou a minha atenção para isso... Foi
você, isso sim, quem concordou comigo quanto à possibilidade de isso constituir
mais uma maneira de entender a sua ficção... Mais uma...
— Se fosse o caso de elegermos um único representante para o
plurilingüismo de Viva o povo brasileiro, este seria — anuncia o meu interlocutor,
convicto — ela mesma, Dadinha... — e ele me ofereceu um café fresquinho.
530
Isa PESSOA, “O que é que o baiano tem?”, Leia, dez. 1989.
531
— “Sou um chefe de família abominável, não sei providenciar nada. Fico atrapalhado se chega
um mero aviso bancário, que pode ser até uma coisa favorável: ‘Chegou-dinheiro-para-você-
no-banco’. Eu fico completamente assustado, grito: ‘Que diabo é isso? Eles querem me
pegar!’. E a minha mulher tem de ler e ir ao banco pra mim” (“João Ubaldo Ribeiro”, in
Giovanni R
ICCIARDI, Auto-retratos, op. cit., p. 368).
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300
5.4. A LÍNGUA-MULETA DO MULATO AMLETO
533
— Sim, seria o personagem Dadinha, e Dadinha tem o seu contraponto.
— Um personagem que represente o monolingüismo? — pergunta ele.
— Não exatamente. Dadinha transforma em suas todas as palavras
estranhas, sendo ela a dona de todas as palavras. Você repare que ela reconta, à sua
maneira, com suas palavras, sua pronúncia e sua representação gráfica, todas as
histórias que ouviu e viveu, atraindo para o seu universo toda a expressão alheia.
— Ela é, à sua maneira, tão antropofágica quanto Capiroba...
— Sim, e o oposto se dá com o personagem Amleto Ferreira, de Viva o
povo..., o funcionário “mulato” do Barão de Pirapuama, o personagem que vai
constituir o início da estirpe forjada dos Ferreira-Dutton. Amleto não tem em si
nenhuma palavra, e por isso as decora, mecanicamente, com o único intuito de
parecer ser aquilo que não é, e aquilo que ele não é, um homem branco europeu,
superior e bem falante, também, por sua vez, não passa de uma outra construção
fictícia. Como sobra, há aquilo que ele é e que renega: um mulato, filho de uma
mulher negra e um almirante inglês desconhecido. Eneida Leal Cunha com a palavra:
... não será a eficácia comunicativa o objetivo pleiteado pelo mulato Amleto;
ao contrário, a personagem estará às voltas com a assimilação das formas
estereotipadas e esterilizadas da língua, o arquivo (quase morto) de um léxico e
uma sintaxe dignificados pelo seu desuso no cotidiano.
534
— Estou a me lembrar agora — começou ele — do que nós conversamos
lá atrás acerca do personagem Argemiro, do romance Vila Real.
— Sim. O problema de Argemiro é justamente encontrar para si as
palavras de que precisava para conseguir comunicar-se junto ao seu povo. Ele não
se sentia um chefe porque não se acreditava capaz de sustentar as palavras que ele
considerava serem as palavras de comando e de poder: o discurso de um chefe. O
mundo da cabeça do narrador, em Vila Real, era um, e aos poucos se foi
transformando em outro. Não se podem comparar, no entanto, os estatutos dos
532
“João Ubaldo faz hora extra na Ilha”, Tribuna da Bahia, 6 nov. 1988.
533
— Aquele “ladrãozinho ordinário, covarde, luxurioso”, escreveu Leandro Konder (“Viva o
povo brasileiro”, Nas Bancas, 3 out. 1985).
534
“O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 166-167.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
301
dois personagens, Amleto e Argemiro. Estão ambos a lutar com as palavras? Sim,
mas Amleto facilita o seu trabalho porque ele não quer nada mais que um efeito
de superfície, sendo as palavras para ele nada mais que um meio em direção a
uma escalada social, e por isso as decora madrugada adentro.
— Você disse que Amleto facilita o trabalho? O trabalho dele é cem vezes
mais difícil... — disse o meu interlocutor. — Argemiro encontrou as suas próprias
palavras quando, de certo modo, ele próprio se encontrou a si mesmo, com o
perdão das redundâncias e dos psicologismos... Amleto, por sua vez, não terá com
a língua outra relação que não a da reprodução mecanicista.
— Tem razão... Você disse um pouco antes que Dadinha era tão
antropofágica quanto Capiroba. Amleto, por sua vez, não realiza nenhum tipo de
antropofagia em sua relação com a língua. Representa, ao contrário, o conjunto das
práticas colonizadas contra as quais se insurgiu toda a antropofagia, ou melhor,
representa a razão de ser do surgimento da idéia antropofágica aqui entre nós.
Amleto revela-se uma máquina reprodutora duas vezes mais patética, já que não é
branco-europeu nem pode ser considerado um personagem culto. Ouça este trecho:
... Ensaiara pequenos ditos e observações e esperava rememorar com a
facilidade habitual coisas aprendidas nos livros de boa Gramática e Retórica, nos
cartapácios bolorentos que se obrigara, tantas e tantas noites a fio, a ler com a
testa perolada de suor (...), os brocardos latinos vindos depois de capitulares
repolhudas (...). Faria uns torneios hábeis, usaria boas palavras, daquelas que
coletava com avidez para escrever num livrinho de notas e passar o dia repetindo
em voz alta. Nada mais era esta gleba, Senhor Monsenhor, que uma arrotéia
agreste e inculta, antes que nela se assinalara o arrojo do Senhor Barão de
Pirapuama, cum dilectione hominum et odio vitiorum... (p. 101-102)
— Lido todo o pedaço que vai da página 100 à página 108, que representa
o nosso primeiro contato íntimo com Amleto e seus pensamentos — continuei —,
chegamos à conclusão de que Amleto é mesmo uma farsa, sim, mas é uma farsa
tão convicta de si mesma que se torna uma farsa legítima. O uso que faz da língua
pode ser pedante e afetado, mas não é errado nem chulo. Ele é, antes de tudo, um
pragmático, e sua relação com a cultura que ele insiste em memorizar é de
pragmatismo, como bem atestam estas palavras atribuídas a ele e relembradas no
dia da missa de um ano por sua morte, já velho, já rico, já feito comendador: “... o
que não tem finalidade prática carece de sentido, é coisa vazia, de que a
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
302
Humanidade precisa aprender a livrar-se” (p. 414). Amleto conhece muito bem a
“elite” que ele precisa imitar e seduzir, caso queira ser o que quer: branco e rico.
— E conhece muito bem a sociedade racista da qual ele faz parte, também
ele a compactuar com esse racismo... — completou o meu interlocutor.
— Tocamos num ponto importante da personalidade de Amleto —
aproveitei. — Você consideraria caricatas as cenas nas quais o narrador mostra
Amleto passando goma no cabelo, para alisá-lo, passando cuspe no nariz, para
afiná-lo, e protegendo-se do sol, “pois o sol na pele lhe era uma agressão pessoal,
caso pensado contra ele, para escurecer-lhe a cor sem piedade, como já
acontecera, virando-o mais uma vez num mulato” (p. 228)? Veja esses trechos, em
que Amleto se ressente do filho, Macário, de todos eles o menos “branco” — e li:
... só ele nascera com aquela nariganga escarrapachada e aqueles beiços que
mais pareciam dois salsichões de tão carnudos — um negróide, inegavelmente,
um negróide! O cabelo, felizmente, não chegava a ser ruim, era meio anelado,
mas, com bastante goma e forçado à noite pelas toucas, podia ser penteado
razoavelmente, numa espécie de massa quebradiça puxada em direção à nuca.
(...) Para aquelas ventas, teria havido remédio. Sua mãe o empregara com ele,
e o nariz de Carlota Borroméia [irmã de Patrício Macário] ficara bem afiladinho
com a mesma técnica. Ou seja, cuspe em jejum: umedecer o cata-piolhos e o
fura-bolos na língua e massagear o nariz no sentido do afilamento. (p. 322)
— As cenas guardam um certo exagero, sim — admitiu —, que, aliás, é
uma das marcas da narrativa de João Ubaldo: um exagero e um detalhismo que
têm uma função de fundo humorístico... Vejo-as, sim, como uma caricatura.
535
— São, sim, uma caricatura — concordei —, apenas na medida em que o
seu efeito é caricato... Mas as motivações de Amleto tornam essa caricatura
complexa e, de certo modo, o isentam do ridículo de tentar parecer um branco;
isentam-no e o tornam mais problemático do que pode parecer numa primeira
leitura... O modo como Amleto via os negros não é igual, mas é semelhante a outra
visão, bem posterior no tempo, variando-se apenas o grau de tolerância e
535
— Aliás — disse ele, pegando num recorte de jornal e abrindo com um gesto uma nota de
rodapé —, há aqui uma leve crítica a esse estilo profuso de Viva o povo brasileiro, associando-
o, inclusive, ao campo das literaturas best seller. Ouça: “In tried and tested ‘Bestseller’ fashion
it’s more concerned with the accumulation of details and narrative than with insight. (...) It is,
however, lovingly detailed and expansively and imaginatively written” (Maria L
EXTON, “João
Ubaldo Ribeiro’s An Invincible Memory, Preview Books, texto sem referência). E ele mesmo
traduziu: “Na já tentada e testada moda best sellers, está-se mais preocupado com a
acumulação de detalhes e narrativas do que com inspiração. (…) [Viva o povo…] É, no entanto,
belamente detalhado e expansiva e imaginativamente escrito”.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
303
condescendência. Veja que a sociedade brasileira, na segunda metade do século
XIX, não tinha sequer rascunhada uma idéia de identidade nacional na qual se
apoiar ou da qual se orgulhar, nada, muito menos ainda a partir do universo cultural,
do suposto universo cultural, da chamada “raça” negra — continuei, segurando um
livro do Caio Prado Júnior e me inspirando. — Eu insisto: a caricatura no modo
como Amleto e os seus pares vêem os negros e a sua cultura é apenas aparente. Vou
ler para você esse trecho, escrito em 1942, na primeira edição do Formação do
Brasil contemporâneo. Ouça: é um texto acadêmico, sério, conceituado, respeitado
e citado. Você o considera uma caricatura? Provavelmente não.
A contribuição do escravo preto ou índio para a formação brasileira é, além
daquela energia motriz, quase nula. Não que deixasse de concorrer, e muito, para
a nossa “cultura”, no sentido amplo em que a antropologia emprega a expressão;
mas é antes uma contribuição passiva, resultante do simples fato da presença dele
e da considerável difusão do seu sangue, que uma intervenção ativa e construtora.
O cabedal de cultura que traz consigo da selva americana ou africana, e que não
quero subestimar, é abafado, e se não aniquilado...
536
— Não sei se você foi feliz nessa citação... — disse ele. — Está aí, clara, a
encharcar todo o texto, uma grande tolerância por parte do Caio Prado, que não
via muito futuro, no máximo uma certa potência, nesse cabedal cultural do
universo dos negros... Não, não o considero uma caricatura. Formação do Brasil
contemporâneo é um texto de 1942, um texto que inaugurou um novo olhar sobre
o negro, que não mais surge como um objeto fixo definido unicamente por sua
raça, mas se torna uma categoria de análise mais complexa, ou seja, sujeita a
contingências econômicas, sociais e históricas. Isso hoje pode parecer natural, mas
não era na época... De todo modo, o texto do Caio Prado ainda é muito marcado
pela prevalência da visão do intelectual estudioso que acredita estar em uma
posição de vantagem diante de seus objetos de estudo, ali, à sua disposição, à
disposição do olhar aprimorado... Ou seja, é, de certo modo, etnocêntrico.
— Veja o que diz o Caio Prado algumas linhas antes — insisti —, veja o
vocabulário, estamos em 1942: ele faz referência à escravidão na América, ao
“recrutamento de povos bárbaros e semi-bárbaros, arrancados de seu hábitat
536
“Vida social — organização social” (p. 269-297), in Formação do Brasil contemporâneo —
Colônia, São Paulo, Brasiliense, 2001, p. 272.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
304
natural e incluídos, sem transição, numa civilização inteiramente estranha”.
537
Negros e índios são referidos aqui e ali, aliás, de maneira muito pouco elegante:
como “pretos boçais e índios apáticos”,
538
a formar um “continente estranho e
heterogêneo de raças que beiravam ainda o estado de barbárie”.
539
Se esse
vocabulário com o qual Caio Prado se refere aos negros e índios não deve ser
visto como uma caricatura, um exagero, mas tão-somente como um resquício de
um modo de olhar para povos diferentes do nosso, um modo de olhar ainda
marcado por algum etnocentrismo, como você disse, a obsessão de Amleto em
não querer parecer um negro também não pode ser vista como uma caricatura. O
imaginário de Amleto é justamente a origem desse resquício em Caio Prado, que
se coloca a si mesmo, sem dúvida, em uma posição de superioridade cultural e
intelectual diante do diferente. Isso, hoje, academicamente falando, dentro da sua
lógica, é quase uma caricatura também... — disse eu. — Mostro a você um outro
exemplo, este do personagem Nego Leléu, outro grande realista, com sua neta,
uma das personagens-chave de Viva o povo..., a jovem Maria da Fé. Mais uma
vez, veja aqui que o desprezo pelo negro era uma constante lindamente
introjetada, e não um exagero ou uma aberração:
... Nascer preto, tudo certo, não se pode fazer nada. Mas querer ser preto?
Quem é que pode querer ser preto? Mostrasse um que, podendo, não ficasse tão
branquinho quanto uma garça! Como é que a pessoa pode aproveitar para
procurar deixar de ser preta e não aproveita?
— Eu nunca vou deixar de ser preta, voinho?
— E tu é preta? Não é preta, senão mulata, mulata de olhos verdes, e muitas
menos bem parecidas (...) hoje são quase-quase brancas, são consideradas, estão
arrumadas na vida. Eu mesmo sei de muita gente bem raceada, mas bem raceada
mesmo, que hoje é branca, atingiu as posições, tem importância na vida. (p. 376)
— O racismo de Amleto, que não é uma caricatura — e retirei um livro
das nossas generosas estantes —, alimenta-se de seu profundo realismo. Talvez
em nenhum outro personagem João Ubaldo Ribeiro tenha desenvolvido tão bem a
sua crítica a uma sociedade que não conseguia de modo algum, e, de certa forma,
ainda consegue pouco, conciliar a cor negra da pele à capacidade intelectual e à
537
Id., ibid., realces meus.
538
Id., p. 277.
539
Id., p. 275.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
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possibilidade de ascensão social. — E mostrei-lhe que livro era: o romance A
marca humana, do escritor norte-americano Philip Roth.
540
— Mas... — ia começar ele.
— Eu sei: a sociedade é outra, é a norte-americana, o tempo histórico é
outro, a segunda metade do século XX, mas a aguda consciência das próprias, e
reduzidas, possibilidades no meio social é a mesma para os dois personagens:
Amleto Ferreira e Coleman Silk, que, assim como Amleto, possui uma branca
pele negra, à qual renunciou por toda a vida, e com êxito: nasceu mulato, em uma
família negra, em meio a uma infância negra, mas viveu como um branco e
renegando seus parentes negros. Silk casou-se com uma judia, viveu, morreu e foi
enterrado como um autêntico judeu. Vou ler aqui o Roth:
... Coleman estava certo de que conseguiria fazê-la entender por que ele tinha
tomado o futuro em suas próprias mãos em vez de deixar que uma sociedade
preconceituosa determinasse seu destino — uma sociedade em que, mais de
oitenta anos após a abolição, pessoas intolerantes ainda desempenhavam um
papel importante demais. Ele conseguiria fazê-la entender que não havia nada de
errado na sua decisão de se identificar como branco: pelo contrário, era a opção
mais natural para uma pessoa com as opiniões, o temperamento e a cor de pele
que ele tinha. Tudo o que ele sempre quisera, desde pequeno, era ser livre: não
negro, nem mesmo branco — simplesmente independente e livre.
541
— Um momento... — protestou ele. — Coleman não é racista; Amleto,
sim. Coleman não está preocupado em negar uma identidade; Amleto não apenas
renega a sua origem brasileira, como ainda venera a sua pseudo-origem inglesa...
— Coleman está, sim, preocupado em afastar-se o mais que pode de uma
identificação a um grupo, o nós dos negros. Veja — e li.
... Não à tirania do nós, àquela conversa do nós, a tudo aquilo que o nós quer
empilhar sobre sua cabeça. Não, jamais a tirania do nós, sempre louco para tragá-
lo, aquele nós moral coercitivo, abrangente, histórico, inevitável (...). (...) Em vez
disso, o eu nu e cru, com toda a sua agilidade. A autodescoberta (...). A
singularidade.
542
540
— O título original, com a tradução de Paulo Henriques Britto, é The Human Stain, São Paulo,
Companhia das Letras, 2000.
541
Id., p. 157.
542
Id., p. 142.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
306
— Você tem razão... — disse ele. — E veja que Amleto ainda tem a aguda
consciência de que não é suficiente tornar-se cada vez mais branco, melhorando
assim a sua imagem e a de sua família e, desse modo, garantindo para si um futuro
de prosperidade e reconhecimento social. É necessário, para o sucesso desse
futuro, orientar-se com igual afinco para o passado...
— ... e é o que faz Amleto, em transações secretas com o padre adjutor do
Vigário Geral, que lhe forja uma nova certidão de nascimento, para si e para todos
os seus filhos, com a inclusão do nome inglês “Dutton”.
— Isso. Até que enfim concordamos... — e ele riu.
— E essa passagem em que Amleto, bastante ansioso, recebe o padre,
bastante nervoso, “enfiando com nervosismo a mão pelas dobras da sotaina para
sacar a certidão de batismo falsa, tão meandrosamente obtida” (p. 232) — citei —,
é na sua aparência bastante engraçada, pois João Ubaldo Ribeiro deixa explícita a
hipocrisia de ambos os homens: um a mentir e quase a acreditar na própria
mentira; o outro a fingir que acreditava na mentira do outro, mentira que tentava
justificar a legitimidade do pedido de uma nova certidão.
— Pois. Pois, se bem percebo, Vossa Excelência, antes desta correção,
chamava-se tão-somente Amleto Ferreira.
— Sim, pois, vicissitudes, coisas das questões religiosas do tempo de Dão
João, incúria talvez dos padrinhos, as guerras napoleônicas... Eram tempos
conturbados (...).
— Sim, pois.
— Mas a correção é necessária, de há muito que se faz necessária e, graças à
compreensão de Vossa Reverendísima e do Excelentíssimo Senhor Vigário...
Vossa Reverendíssima compreende, em primeiro lugar era preciso restaurar a
verdade dos fatos, a herança histórica de nossa família — afinal, nossa linhagem
perde-se no tempo, tanto em Inglaterra como em Portugal... (p. 233-234)
— Na sua aparência — disse eu —, a passagem é mesmo risível, mas a
passagem tem outra força por trás de todo aquele discurso, discurso desnecessário,
pois Amleto não precisava justificar-se para o padre... Amleto pagou, e não foi
pouco, pelo serviço de correção...
— O discurso é muito mais um artifício do próprio Ubaldo para colocar o
leitor ciente do que se passava — disse o meu interlocutor, com o livro aberto.
— Sim. E essa passagem funciona aqui como um resumo de toda a vida de
Amleto, pois significa a coroação de uma guerra de esforços cujo objetivo era
conseguir, não a brancura, a riqueza e a nobreza, mas a liberdade, obtida pela
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
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brancura, pela riqueza e pela nobreza, de poder reinventar o seu passado, ou seja,
poder reinventar o seu futuro.
— Que talvez seja a maior liberdade que um homem pode ter... — disse
ele, com uma expressão grave. — Merecemos um café?
— Sim — concordei, com outra expressão grave. E continuei a falar de
Amleto: — O narrador vai mostrar-se inclemente com Amleto em outro aspecto:
não na relação que o personagem estabelece com essa “elite” e seu arsenal cultural
europeizado, uma verdadeira e legítima relação de glorificação da cultura alheia...
O mulato Amleto vai tornar-se patético no trato com os negros e a sua cultura.
— Por que você diz “inclemente”?
— Veja o que diz Eneida Leal, que elenca uma série de tópicos aos quais
Amleto dedica feroz atenção e nos quais se sai ele, na verdade, muito mal — e li.
... se o tópico são as relações de classe e de dominação, Amleto não será
mostrado em situações produtivas, explorando a força de trabalho do negro, e sim
nos excessos economicamente improdutivos da instituição escravagista,
espancando negros que conspurcam a pureza castiça da língua, ou degradando o
corpo escravo do outro em prol de um prazer físico perverso e excrescente: não é
necessário possuir carnalmente uma negra, basta humilhá-la, obrigando-a a
expor os seios aos seus olhos e à dureza das suas mãos para que Amleto
atinja o orgasmo desejado...
543
— A impressão que se tem a partir do trecho de Eneida Leal Cunha é a de
que Amleto humilha a negrinha Vevé. Se há no entanto um humilhado, é este o
próprio Amleto, e isto Eneida não menciona, porque ela de fato não está orientada
para os efeitos da narrativa sobre a visão geral do leitor acerca dos personagens.
— Você não respondeu à minha pergunta... — impacientou-se. — Por que
você diz que o narrador foi “inclemente” com Amleto?
— Porque o nosso narrador sem cabeça não permanece incorporando
Amleto todo o tempo; abandona-o, se o termo não é por demais dramático...
Bastou sair de sua focalização e deixar o indireto livre, praticando assim uma
descrição “a partir de fora” do personagem, e temos então quase que um outro
personagem, observado, agora sim, sob uma visão bem mais crítica. Diante de
uma cena de embate entre um escravo e Amleto, o narrador escolhe o ponto de
vista favorável ao escravo, reiniciando a narrativa sob outras bases. O narrador
543
“O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 166.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
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abandona então uma cabeça e logo em seguida serve-se de outra, capacitando-se,
portanto, para um outro tipo de descrição. Observe que as relações de poder ao
longo de todo o romance são móveis: na conversa entre o cônego visitador e
Amleto, o narrador mostrou-se simpático a Amleto, o elemento dominado e
subordinado, o “mulato sarará, magro e um pouco melhor falante do que seria
conveniente” (p. 63), segundo a descrição de seu patrão, Perilo Ambrósio. Como
escreveu Lúcia Helena: “A questão do poder, da opressão, de suas modulações —
o fato de ser o poder uma rede complexa de relações que não podem ser
explicadas nem entendidas a partir da visão maniqueísta que oponha
romanticamente os ‘bons’ aos ‘maus’ — é tema que perpassa todo o (...) texto de
João Ubaldo”.
544
Agora é Amleto o algoz, o patético algoz.
... O mestre, que como todos os outros tinha parado de falar assim que a
presença de Amleto foi sentida, fez uma expressão perplexa. Providenciavam o
embarque, estavam guarnecendo a chalupa, era a última a sair, as outras já
haviam zarpado (...).
— Não admito! — gritou Amleto. — Não admito!
Tinha as veias do pescoço inchadas, falava levantando-se nas pontas dos pés e
baixando outra vez a cada grito, sacudia um dedo em riste apontando para os
pretos. (p. 102)
— E por mais que o mestre diga a Amleto que o negro cafuleteiro que
orienta as embarcações é “variado da idéia” e não consegue articular bem as
palavras e nem os pensamentos, Amleto não se convence, ou não entende, e
continua a dar chiliques: “Não sabe que posso mandá-lo à chibata por se
comportar pior do que um animal?” (p. 103), grita ele, e continua gritando e
exigindo dos negros que utilizem a língua cristã.
— Não estou assim tão convencido de que é Amleto aqui o humilhado...
— Eu não terminei. O narrador em seguida realiza um verdadeiro embate
de palavras, pondo-se ele mesmo, narrador, em franca competição retórica com o
próprio Amleto — eu disse. — O longo trecho da página 105 é a descrição da
saída da última embarcação para a pesca das baleias. É o narrador no inteiro
comando descritivo da cena que se desenrola diante do nariz de Amleto, que,
assim revela o narrador, tem medo de água...
— E o narrador está incorporando quem, dessa vez?
544
Viva o povo brasileiro — a questão do nacional...”, O Estado de S. Paulo, 17 fev. 1985.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
309
— Não um personagem específico, mas um conjunto de saberes — disse
eu. — Vou falar disso daqui a algum tempo, mas já lhe adianto que se trata de
uma incorporação diferente: o narrador sem cabeça dessa vez às voltas com as
suas noventa cabeças, ou, em outras palavras, o narrador incorpora um saber
popular, incorpora uma narrativa de conhecimento consensual acerca de assuntos
específicos, incorpora um arcabouço intelectual, o que você já apontou para mim
antes, lembra-se? Agora é a arte da pesca, mais à frente será o consórcio carnal
das baleias... Dou-lhe uma pequena amostra de uma narrativa cujo conhecimento
veiculado e cujo vocabulário não vêm de modo algum de Amleto: é o narrador a
exibir-se e a mostrar que Amleto não tem à sua disposição todas as palavras
daquela língua cristã que tanto cultiva e tanto decora...
... Lá dentro da chalupa, um barco esbelto e longo de quarenta pés e duas
caras, pois que seu trabalho requer que popa e proa tenham a mesma construção
externa (...). Como se estivesse em terra firme e não pisando aquele casco sem
quilha (...), um negro amarrou um pedaço de estopa a cada chumaceira,
equilibrando-se para fora num pé só. No banco de arvorar, o mestre de mar seguia
os movimentos dos outros e alisava os cabos, o gurutil da vela ainda baixada e as
costuras da verga de biriba que logo ia subir mastro acima, acompanhava a
contagem e arrumação dos arpões nos guarda-lanças (...). (p. 105, realcei)
— Amleto fica contraposto então — interrompeu-me o meu interlocutor
— a um discurso “autorizado”, o do narrador especialista, e também a uma visão
da realidade totalmente nova para ele, qual seja, a dos negros como guerreiros
expedicionários, descrita na mesma página, logo a seguir.
— Exatamente — disse eu, um pouco contrariado por ele ter falado antes
de mim. — Observe que o narrador, no mesmo parágrafo, desincorpora Amleto,
incorpora um saber especializado para realizar a sua descrição “autorizada” da
saída de uma embarcação e em seguida volta a incorporar o nosso “mulato sarará”
para revelá-lo mordido de inveja daqueles negros... E o que faz ele diante da
realidade corporal daqueles escravos, guerreiros do mar, fortes e ágeis? Faz o
único movimento que conhece: recorre a algum contexto europeu forçadamente
semelhante para, de algum modo, poder legitimar aquele outro contexto de
esforços negros em terras bárbaras. Veja: “Falarei dessa partida durante a
visitação, resolveu Amleto, pensando se não haveria uns versos de Virgílio, sobre
heróis a fazer velas, anotados em seu caderno. Poderia decorá-los antes das sete
horas, quando sairia a excursão?” (p. 106).
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— Mas isto, isto é uma tarefa associativa que tem lá seus ares de uma
“antropofagia à Amleto”... Ele viu os negros, viu o mar, associou tudo à bravura
das expedições marítimas e lembrou-se de Virgílio...
— Não, não, não — falei, pausadamente. — Não, não, não. Virgílio é aqui
um véu, nada mais que um véu. A atitude de Amleto não é antropofágica. Ele
recorre a Virgílio para não ter de enfrentar a possibilidade de aqueles negros
constituírem, eles mesmos, a sua própria epopéia. Ele recorre a Virgílio para
decorá-lo e repeti-lo, ipsis litteris, eliminando, dentro do possível, qualquer
associação com a cena originária dos negros a preparar a chalupa. Virgílio tem a
função, mal comparando, de um purificador de ar, a enobrecer e glorificar aqueles
negros. Virgílio versa sobre “heróis a fazer vela” (p. 106); não sobre escravos
imundos e incultos a preparar uma chalupa...
— Hum... — fez ele, com O sorriso do lagarto aberto à sua frente. — Há
aqui então, nesse outro romance, um movimento semelhante. Do mesmo modo
como Amleto tenta anular a imagem dos negros, procurando substituí-la por outra,
de cunho clássico, podemos ver aqui o personagem Lúcio Nemésio, cientista,
racionalista, ateu, pragmático, a observar pescadores a preparar um barco para sair
ao mar, e o que ele vê não são os pescadores negros, ou muito menos os heróis de
Virgílio, a que recorre Amleto, mas simplesmente espécimes humanos hiper-
resistentes às doenças da Ilha.
Sentados, com as cabeças baixas, os três tripulantes do batelão tainheiro, todos
de chapéu e sem camisa, acabaram de marcar o peixe e principiaram a manobrar
para botar a rede (...). Firme como se estivesse em terra e não sobre uma peça
de madeira bamboleante, um dos homens (...) levantou-se começou a bater com
um mourão na água.
Admirável — disse Dr. Lúcio Nemésio, que havia parado perto da fortaleza
(...), para assistir à pescaria. — Um espetáculo realmente admirável. (...) Quando
eu disse admirável estava pensando numa coisa completamente diferente, estava
pensando em como são resistentes esses sujeitos. Verdadeiros zoológicos
ambulantes, todos eles, todo tipo de nematóide, platelminto, protozoário, esses
bichinhos que você conhece muito melhor do que eu, o que você lembrar tem
aqui. (p. 34-35, realçou)
— Os heróis de Virgílio e os espécimes de Nemésio devem substituir os
negros imundos, e nada mais — concordei. — A comparação dos “escravos” da
antiguidade clássica, esses com aspas, e os escravos aqui das Américas, sem aspas,
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é também empregada pelo Caio Prado Jr., que eu agora cito a reboque, aproveitando
que eu já o tirei das estantes e já o atirei aqui em nossa arena de papel. Ouça:
... a comparação com o que ocorreu no mundo antigo é ilustrativa. Neste
último a escravidão se forneceu de povos e raças que muitas vezes se equiparam
a seus conquistadores, se não os superam. Contribuíram assim para estes com
valores culturais de elevado teor. Roma não teria sido o que foi se não contasse
com o que lhe trouxeram seus escravos, recrutados em todas as partes do mundo
conhecido, e que nela concentram o que então havia de melhor e culturalmente
mais elevado. Muito lhes deveu e muito deles aprendeu a civilização romana. O
escravo não foi nela a simples máquina de trabalho bruto e inconsciente que é o
seu sucessor americano.
545
— Está convencido da idéia de que o narrador, ao final de todo aquele
trecho, não poupa Amleto de nada?
— Não, não estou — disse ele.
— Então leia as páginas 107 e 108, contrapondo-as ao que disse a Eneida
Leal Cunha no trecho em negrito que li lá atrás.
546
Reproduzo para você um dos
parágrafos finais:
— Vês? Vês como fico por ti? [perguntou Amleto, segurando os peitos da
negrinha Vevé]
Mais uma vez ela não disse nada e, puxando-lhe a mão inerme para esfregá-la
por cima da braguilha, ele ia ordenar “aperte, aperte!”, quando um estertor
invencível lhe constrangeu o escroto e, sem poder abafar os gemidos, escorregou
as mãos pelos braços dela abaixo e terminou de gozar sentado no chão, quase
deitado, as pernas somente aos poucos deixando de estertorar.
— Posso ir? — perguntou ela, com a voz tão indiferente quanto o rosto. (p. 108)
— Certo, certo, convenci-me — disse ele, rindo de Amleto. E continuou:
— Você poderia arriscar a idéia de que o mulato Amleto não é apenas o
contraponto de Dadinha, como também representa tudo aquilo contra o qual João
Ubaldo, como escritor, combate?
— Que vem a ser?
— Que vem a ser — disse o interlocutor —, para simplificar, o uso
colonizado da língua. Isso pode parecer uma discussão já hoje fora de moda, mas
em 1984, data em que foi publicado o Viva o povo brasileiro, não era, e digo
545
“Vida social — organização social”, op. cit., p. 272.
546
— Ver, neste capítulo, p. 307.
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mais: era uma verdadeira questão cultural a necessidade do uso, digamos,
brasileiro da língua portuguesa. Nós já discutimos isso, eu sei, eu sei. João Ubaldo
é Dadinha; não é Amleto Ferreira. Digo isso me lembrando de outro pedaço da
declaração do escritor na contracapa de seu romance Vila Real, de 1979, e era
essa, e não outra, a sua preocupação: “Sou contra as belas letras, a contrafação, o
elitismo. Acho que o principal problema do escritor brasileiro é a busca da nossa
linguagem, do nosso fabulário, dos nossos valores próprios”.
— Você tem razão — disse eu —, e aqui está mais uma vez o próprio
escritor a dialogar com a sua obra, de fora da obra. Amleto Ferreira, em 1979, não
existia, mas existia aquilo de que ele se alimenta: as belas letras, a contrafação.
547
Em 1984 essa ainda era, como você disse, uma, digamos, “questão” para João
Ubaldo. E hoje? O que temos?
— Não sei — disse ele, me oferecendo um café.
— Como não sabe? A “questão da identidade nacional” tornou-se para ele
quase um falso problema, ou um problema invadido pela retórica. Veja o que
falou João Ubaldo no ano de 2000, por ocasião de um seminário na Alemanha, em
que a grande discussão era justamente o “problema” da identidade brasileira:
“Quando chegou a minha vez, eu disse: ‘No Brasil não temos esse problema’”. E,
diante do silêncio geral, João Ubaldo arremata: “’— Nós temos isso aqui’, eu
disse, mostrando meu RG”.
548
— Há aqui dois Ubaldos: o de 1979 e o de 2000...
— E provavelmente dois momentos muito diversos para esta suposta
“questão” da identidade nacional... — disse eu —, que nós já discutimos
exaustivamente em nossa conversa sobre Argemiro e o romance Vila Real.
547
— E escreveu João Ubaldo em 1977: “Todas as causas da Ignorância são políticas, inclusive a
Burrice. (...) O produto da Ignorância e da Burrice é o malpensar. (...) O problema político é
fazer do Estado Brasileiro o Estado dos Brasileiros. Isto não é gratuito, porque é uma questão
de Sobrevivência. A Sobrevivência ocorre quando se preserva a Identidade. Quando não
se preserva a Identidade, a Sobrevivência é a do Outro. Não adianta sobreviver usando a
cara do Outro, pois cada ser é responsável somente pela sua Cara” (“Novenário do
malpensar e da mistificação”, Tribuna da Bahia, 16 nov. 1977
, realcei). Na linha deste
arrazoado contra a colonização dentro do mesmo estilo exemplar, cito aqui um dos conselhos
de Manoel Ribeiro, pai de João Ubaldo: “Conselho n
o
2 - Não seja colonizado: ‘(...) Não seja
macaco, não imite. Tenha coragem de ser mulato, de ser cafuso e até de ser branco. (...) ... não
tenho compromisso de me humilhar perante representante de povo desenvolvido nenhum’”
(“Os 10 conselhos de Manuel Ribeiro, segundo o autor”, Correio da Bahia, 3 dez. 1981
).
548
Sergio Vilas BOAS, “... o escritor carioca-baiano tenta conciliar...”, Gazeta Mercantil, 18 e 19
mar. 2000.
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5.5. JOÃO UBALDO, A CAVALO, É MARIA DA FÉ
— Aquilo que você disse há pouco sobre os diferentes graus da presença
do escritor em sua própria obra de ficção lembra-me agora o papel de Maria da Fé
em toda essa história... — comecei. — E também o papel do personagem Capitão
Cavalo, dO feitiço da ilha...
— O papel de uma espécie de porta-voz?
— Sim, porta-voz das convicções políticas do próprio João Ubaldo, e um
porta-voz — disse eu — muito pouco dissimulado... Sim, eu me refiro à pouca
preocupação de Ubaldo em singularizar Maria da Fé e Capitão Cavalo do ponto de
vista lingüístico, tal como ele faz com os demais... Para os demais personagens, o
narrador de Ubaldo se mostrou um verdadeiro “marqueur de paroles”.
549
— Há para isso uma razão inicial bastante óbvia: Dafé, pelo que me lembro...,
graças aos empenhos de seu avô Leléu, foi alfabetizada e adquiriu, com esse
processo, uma relação mais objetiva com a língua. A professora, dona Jesuína...
— Não, isso não parece suficiente — protestei. — O discurso de Maria da
Fé, por exemplo, é de uma transparência, de uma objetividade, de uma retidão
muito pouco típicas dos personagens de Viva o povo brasileiro. Mesmo os
discursos mais preparados e cultos e sintaticamente corretos têm o seu grau de
exagero, têm a sua porção de redundância, têm os seus vícios, as suas manias, os
seus cacoetes, a sua personalidade sintática. Maria da Fé, não. Maria da Fé fala
como se fosse... o próprio João Ubaldo a falar, em conteúdo e forma, ou a
consciência autoral, se você preferir, ou alguma idéia de autor implícito... Há em
sua fala, e também na fala do Capitão Cavalo, um projeto político auto-
explicativo. Refiro-me, é claro, aos dois personagem já em sua fase adulta. E
refiro-me também, não às intervenções em indireto livre do narrador, mas aos
discursos diretos de Dafé e Cavalo.
— Não se sabe se ela fala tão bem porque sabe bem o que pensa ou se sabe
bem o que pensa porque fala tão bem... — disse ele. — Quero dizer, a linguagem
constrói o seu pensamento, que constrói a sua linguagem...
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— Ouça — e pedi silêncio — o correr desta fala de Dafé a seu
companheiro Zé Popó, que pensava em alistar-se para a Guerra do Paraguai e
pedia a ela conselhos. Observe a clareza, o engajamento e a extrema correção
sintática do discurso, a colocação dos pronomes, a concordância na regência...
Observe também, no trecho que vou realçar, a evidente consciência de si que tem
a personagem. E em seguida Capitão Cavalo, em resposta a uma delegação de
poderosos que gostaria de elegê-lo senhor absoluto da ilha, sob um regime
autoritário e escravagista.
(i) — Sim, eu sei, essa vontade também me dá — falou ela, para grande
espanto dele, que esperava pelo menos uma risada irônica. — Eu sei que é
verdade tudo o que pensamos sobre essa guerra (...), mas também esta é a nossa
terra (...). Portanto, há alguma coisa nessa guerra que também é nossa, é a nossa
terra, ou será um dia a nossa terra. (...) Eu é que não posso ir: sou mulher, sou
bandida e tenho uma responsabilidade mais importante. Se eu deixar que
essas idéias caiam, como vai ser? Mas tu não, tu podes ir, tu tens que viver isso
também, lutar pelo que se ama, sem se poder amar, pelo que é da gente mas se
vira contra a gente (...). (...) talvez tu aprendas alguma coisa que nos possa
ensinar. (Viva o povo..., p. 430-431)
(ii) — ... nunca quis ser o dono supremo da ilha do Pavão, que para mim deve
ser de todos os que nela vivem e labutam. (...) Quanto aos índios, não sei por que
não terão o direito de entrar e viver nas vilas, pois que se encontravam aqui antes
de qualquer um de nós (...). Se têm seus costumes, também temos os nossos e, se
queremos os nossos respeitados, respeitemos os dos outros. Quanto aos negros, se
estão quase todos livres, é porque compreendo que muito melhor que escravos é
ter comigo homens livres...” (O feitiço da ilha..., p. 155).
— E esses dois discursos ainda avançam por quase duas páginas, num
texto impecável e pouco caracterizado do ponto de vista dramático. São Maria da
Fé e Capitão Cavalo a falar, mas também não são; é algum vestígio de autor
implícito mas também não é; é João Ubaldo mas tamm não é; é uma idéia —
disse eu. — Maria da Fé, Cavalo e, em seguida, no avançar da história de Viva o
povo..., o general Patrício Macário são o porta-voz de uma idéia, de um projeto.
Isto aqui que diz esta senhora... Ouça o trecho que vou ler...
A utilização de mecanismos multidialetais como recurso de expressão literária
não é infreqüente na literatura brasileira e se manifesta no vocabulário, em
549
Expressão de Patrick Chamoiseau, autor do Caribe, citado por Zilá BERND, “A invencível
memória do povo brasileiro” (p. 89-105), in Zilá BERND & Francis UTÉZA, O caminho do
meio...”, op. cit., p. 94.
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estruturas sintáticas, em realizações fônicas refletidas na grafia, sobretudo nas
falas diretas em que o personagem se apresenta agindo e interagindo. No caso do
romance de João Ubaldo Ribeiro, esses recursos são utilizados, mas (...) não é aí
que reside a força verbal da obra; ultrapassa-os e penetra em um nível de
estruturação dos discurso mais profundo e mais abrangente, que faz com que a
fala de um personagem, se não houvesse outros indicadores, poderia ser
suficiente para caracterizá-lo como pertencente a determinado segmento da
sociedade estratificada de que é parte.
O autor consegue sem nenhum esforço, (...) o que indica um extraordinário
domínio da língua portuguesa na sua diversidade, expressar, reelaborados
literariamente, claro, desde o dialeto dominante do português colonizador e dos
brasileiros colonizadores aos dialetos crioulizados dos negros em fase de
aquisição do português e conseqüente perda de suas línguas de berço.
Nessa sinfonia lingüística (...), os desempenhos lingüísticos, que vivificam os
personagens, se manifestam na estruturação argumentativa de seus discursos (...),
na retórica própria aos diversos dialetos, nos referentes culturais específicos a
cada segmentos sócio-cultural (...).
550
— Mas isto — disse eu —, no entanto, não se aplica a Maria da Fé,
Macário ou Capitão Cavalo em processo discursivo.
— E essa idéia de pertencimento a uma pátria etc. etc., de que Dafé e
Macário são portadores, constitui o ponto nervoso da ideologia de Viva o povo
brasileiro... Você se lembra do que diz a Eneida Leal Cunha? — perguntou o meu
interlocutor, abrindo a tese da professora e já totalmente à vontade com o trabalho.
— Para ela o romance existe justamente para narrar a história de Maria da Fé,
551
que ela vai chamar de a terceira encarnação da almazinha, depois do alferes
Brandão Galvão e do caboco Capiroba...
— Sim, mas a professora Eneida atribui a Maria da Fé um papel que me
parece brigar com o espírito do romance: o papel de uma proposta de João Ubaldo
para... — e peguei a tese — ... “a verdadeira e mais própria encarnação da alma do
povo brasileiro, que daria uma feição definitiva à identidade nacional”.
552
— Ela afirma isso convictamente?
553
550
Rosa Virgínia Mattos e SILVA, “Viva o povo brasileiro! E a língua portuguesa!”, A Tarde, 19
mai. 1985, realcei.
551
“O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 193-194.
552
Id., p. 195.
553
E o meu interlocutor perguntou isso provavelmente pensando numa declaração de João Ubaldo,
datada de 1989, e eu digo isso porque o vi com a matéria do jornal A Classe Operária nas
mãos. O jornalista pergunta: “Você acha que em Viva o povo brasileiro descobriu a alma do
povo brasileiro? Foi isso que você perseguiu?”, e o autor responde: “... eu tive o cuidado de
evitar isso. Eu não me oponho a que se diga isso, nem acho ofensivo dizer que eu descobri a
alma do povo brasileiro, mas não foi essa a minha intenção. (...) eu imagino que o leitor possa
sentir isso, depois de ter lido o livro achar que compreendeu o povo, sua alma no sentido de
(cont.)
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— Ainda bem que não... Diz ela que a tarefa é difícil de dimensionar:
saber o quanto o autor elege mesmo Maria da Fé como projeto de construção final
da identidade brasileira, ou se ela não passaria de mais uma encarnação da
almazinha, historicamente datada etc. etc.
554
— E continuei: — Maria da Fé, de
todo modo, tem papel central no romance, e a professora Eneida demonstra isso
muito bem através dessa ótima biografia-resumo. Maria da Fé é...
... o índio antropófago e o herói da pátria das encarnações anteriores; é neta de
Dadinha, a matriarca, porta-voz do imaginário negro; é filha de Vevé, uma
escrava, e do Barão de Pirapuama; foi criada pelo Nego Leléu, que aprendeu ser a
subserviência um trabalho (...); conviveu com Budião e Merinha, negros da
senzala do Barão que o envenenaram; foi escolarizada por Dona Jesuína, mestiça
e pobre, a mãe renegada de Amleto Ferreira, que lhe incute [ela, Dona Jesuína] o
amor à pátria, o respeito aos seus heróis e aos valores instituídos, e, logo a seguir,
educada por Zé Pinto, que lhe transfere a memória de seus ascendentes (...),
heróis de uma outra história que não está nos livros escolares; finalmente
apaixona-se por Patrício Macário, militar destinado a (...) exterminá-la (...), mas
que descobre em Maria da Fé o valor da “Irmandade do Povo Brasileiro”.
555
— É uma senhora biografia... — disse ele, franzindo o beiço —, e me
parece bastante razoável a idéia de ser Maria da Fé esse amálgama final a
constituir a identidade brasileira... Mas há um contraponto para isso; um
contraponto que vulnerabiliza a força dramática do personagem... — continuou
ele, mas eu o interrompi para falar o que ele provavelmente estava pensando.
— Essa biografia é na verdade uma espécie de resumo do livro — eu
disse. — O papel de Maria da Fé, bem como o do Capitão Cavalo, é outro; é o de
porta-voz: ela desenvolve, ao longo do livro e a partir do momento em que se
torna o que é, uma série de pequenas teses sociais, para as quais terá depois a
adesão de seu companheiro, o velho Patrício Macário: a do exército como parte do
povo, e não instrumento de dominação dos poderosos (Viva o povo..., p. 431); a da
vida como tendo muitos lados e podendo ser vista e vivida de muitas maneiras (p.
509); a responsabilidade do livre-arbítrio na conduta dos homens (p. 511); a da
entender a sua maneira de ser (...). Mas a expressão ‘alma do povo’, ‘espírito do povo’, é uma
expressão associada com o nacionalismo de direita. Quer dizer, é a expressão Volk Geist em
alemão, muito usada pelo nazismo, que quer dizer precisamente isto — espírito do povo. Eu
não pensei nunca num negócio nacionalista. Eu fiz uma coisa sobre minha comunidade” (José
Reinaldo C
ARVALHO, “João Ubaldo indaga sobre a alma humana”, A Classe Operária, 12 a
25 jan. 1989).
554
Eneida Leal CUNHA, “O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 194.
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arte como forma de conhecimento (p. 318). E Capitão Cavalo, a partir da idéia da
ilha do Pavão como um ensaio do que poderia ter sido ou poderia ser ainda a
sociedade brasileira, também funciona como o personagem-articulador da idéia de
liberdade para todos, de não-opressão, de livre-propriedade, de mistura de raças e
de liberdade de crenças. Sua adesão a toda a forma de justiça e solidariedade
social teve início após o passamento da esposa, Maria Joana, cujo abatimento às
vésperas de morrer, depois de parir Iô Pepeu, único filho dos dois — expliquei —,
é assim descrito pelo narrador em indireto livre: “Sua tristeza era ver tanta
abastança nas mãos de uns poucos, que nem mesmo tinham o que fazer com ela, e
miséria e infelicidade para muitos” (O feitiço da ilha..., p. 149).
— Descrito pelo narrador com algum excesso, talvez, de didatismo e
clareza, não? — e ele sorriu.
— Eu chego lá. E todas essas teses se tornam bastante evidentes porque as
falas de Dafé e do Capitão Cavalo são claras, articuladas e firmes, características
atribuídas, nos dois livros, somente aos poderosos e “bem falantes”. A segunda
razão do realce está no fato de que Dafé, bem como o Capitão Cavalo, embora
este em menor medida, porque não tem o ímpeto revolucionário da primeira...,
Dafé, dizia eu, não fala às paredes, mas aos seus pares, que “usam” a sua fala
como arma de guerra. Sua fala é, portanto, eficaz, e não vazia. E ela fala tamm
aos seus opositores, que até chegam a argumentar de volta, sempre aos berros,
mas acabam calando, ficando a última palavra, e a última palavra é quase sempre
a mais forte, na boca da guerreira, como muito bem ilustra toda a grande
discussão de Dafé com um prisioneiro seu, um tenente da República encarregado
de destruir todas as expedições ao Arraial de Canudos.
— O povo brasileiro não deve nada a ninguém, tenente — disse ela. — Ao
povo é que devem, sempre deveram, querem continuar sempre devendo. (...)
— O Governo não pode dar satisfações a qualquer ralé que pretenda violar o
princípio da autoridade!
— Da autoridade? Quem lhes deu autoridade? De onde tiraram sua
autoridade? (p. 563-564)
— Quero fazer aqui uma observação que complementa o que você disse sobre
esse discurso escorreito de Maria da Fé — anunciou o meu interlocutor, antecipando
555
Id., p. 196-197.
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uma crítica. — Você comentou, há coisa de meia hora, os casos de Turíbio Cafubá e
do negro Feliciano diante do narrador, que entra em cena para falar “em nome dos”
oprimidos e sem voz. Você citou também a professora Eneida Leal Cunha, segundo a
qual “o autor providencia” para os personagens de pouca voz um narrador em terceira
pessoa, incumbido, então, da tarefa de falar. E esse narrador...
— Sim — interrompi-o. — Esse narrador, porque é sem cabeça e porque tem
o dom de incorporar as características orais dos discursos originais dos personagens,
apresenta então um discurso nada neutro, nada correto e nada sóbrio, antes, pelo
contrário, marcado pelas oralidades e pelos vícios de linguagem do personagem em
questão. É o narrador sendo cavalo dos discursos dos outros... E dou-lhe um bom
exemplo. Veja: é o narrador a falar e a operar essas adaptações ortográficas...
Alguém perguntou se Edésia, que era a mais antiga comedora de baiacu, já
havia sentido alguma coisa e ela respondeu que somente uma vez. Deu tomichão
nos beiços, deu tomichão nas pontas dos dedos, deu formidamento nas pernas.
Depois deu tontura, mas tontura dostosa, melhor do te tontura de vinho. E depois
deu uma leseira de mais de tinze dias, mas só foi isso te deu, se dissesse te
sentiria mais alduma toisa era potota. (p. 593)
— Pois bem — voltou o meu interlocutor. — Isso não acontece quando se
está diante dessas tais pequenas teses sociais do livro. Ou seja, nem os discursos
de Maria da Fé ou Capitão Cavalo, como você já demonstrou, nem determinados
discursos do narrador em indireto livre, como pretendo mostrar, se preocupam em
singularizar-se lingüisticamente quando estão envolvidos na explicitação de uma
dessas pequenas teses sociais.
— É como se houvesse, por parte do autor, uma tal preocupação com a
clareza na enunciação dessas teses, que ele prefira sacrificar determinados feitios
de linguagem ou mesmo erros de sintaxe e pronúncia que seriam típicos das falas
de tal ou tal personagem...
— Sim. E, sacrificando feitios de linguagem, o romance acaba por
sacrificar o que ele tem de mais potente, caindo no erro de se tornar, nesses
momentos, nada mais que a ficcionalização de um punhado de ideologias, as
ideologias do autor... E isso pode ser detectado nalgumas críticas feitas ao livro,
no caso, Viva o povo..., mas que bem poderiam estender-se aO feitiço da ilha do
Pavão. Algumas bastante contundentes e com as quais nem eu mesmo concordo,
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
319
como é o caso da resenha do New York Times, embora concorde parcialmente.
Você certamente leu... Eu estava lendo e...
— Sim, sim — e coloquei as matérias sobre a mesa, para lermos juntos.
(i) ... the real problems is the characters themselves. Rather than being
flashed-out, organic outgrowths of the story, they are stereotypes, inventions in
the service of an idea. (...) ... we have a novel of ideas told by a student of history,
rather than a story told by a real storyteller.
556
(ii) While worthies such as Patricio and Maria tend somewhat to clichè, most
characters, even minor ones, are individualized, sharply drawn and
memorable.
557
(iii) Maria da Fé, figura inesquecível (...), dá ao romance um certo tom épico.
Os seus discursos, às vezes à beira do precipício do retórico e que não excluem o
panfletário, têm a beleza e a força das autênticas criações literárias.
558
— É o Wilson Martins, no entanto — disse ele, segurando uma matéria de
jornal —, que resume bem esse desequilíbrio e aponta a sua medida. Para ele,
constituem o título, como já mostrei a você, e alguns discursos mal disfarçados a
“verruga” panfletária do livro. Ouça:
O romance de João Ubaldo Ribeiro foi escrito por um ideólogo em luta
constante contra o romancista ou por um romancista em luta constante contra um
ideólogo: a vitória coube à literatura brasileira, porque foi afinal o romancista que
se sobrepôs ao ideólogo e o obrigou a escrever um grande romance em lugar do
mau panfleto polêmico e simplista de que restam, aqui e ali, alguns traços
inoportunos.
559
— E agora lhe dou um exemplo disso tudo — continuou o meu
interlocutor, disposto a ilustrar ainda mais a sua observação —: as páginas 482 e
483 dedicam-se ao personagem Zé Popó...
556
— Traduzo: “O verdadeiro problema são os personagens eles mesmos. Ao invés de serem
arrebatamentos, crescimentos orgânicos dentro da história, eles são estereótipos, invenções a
serviço de uma idéia. (...) ... nós temos um romance de idéias contado por um estudante de
história, mais do que uma história contada por um escritor de verdade” (Mary M
ORRIS, “E
Pluribus Brazil, New York Times, 16 abr. 1989)
.
557
— “Enquanto pesos pesados como Patrício e Maria tendem de alguma maneira ao clichê” —
traduziu ele, livremente —, “muitos dos personagens, mesmo os de menor interesse, são
individualizados. nitidamente desenhados e memoráveis” (Thomas C
HRISTENSEN, “Brazilian
saga — A nation’s soul portrayed on a vast fictional canvas”, Chicago Tribune, 4 abr. 1989).
558
José Carlos de VASCONCELOS, “Viva o povo brasileiro e... João Ubaldo Ribeiro”, JL - Jornal
de Letras, Artes e Ideias, 4 fev. 1986.
559
Wilson MARTINS, “A matéria brasileira (II)”, Jornal do Brasil, 11 mai. 1985.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
320
— É justamente sobre ele que fala o Wilson Martins, em outra matéria,
que você, aliás, já citou aqui, mas apenas o trecho final, a respeito da infelicidade
do título... Ouça — e li.
Seu livro é um grande romance ideológico, por ser, antes de mais nada, um
grande romance literário e, nessas perspectivas, mesmo o que poderia ser um erro
técnico em outro contexto é valor homogêneo com a história nas coordenadas que
o autor desejou conscientemente estabelecer.
É o que ocorre, por exemplo, com o discurso de Zé Popó de volta do Paraguai
ou com o de Maria da Fé no encontro com os oficiais do Exército em Canudos,
ou, ainda, com o monólogo interior de Patrício Macário a 30 de junho de 1871.
(...) O romancista propõe uma visão ideológica da nossa história, estruturada no
populismo e no nacionalismo (valores para ele indistinguíveis e intercambiáveis),
o que implica, está claro, o inevitável maniqueísmo romântico na construção dos
personagens e o irrealismo historiográfico que ignora, precisamente, o que a
história tem... de histórico.
560
— Sim, sim — disse ele, visivelmente contrariado por eu me ter antecipado.
— Mas você me interrompeu, e bruscamente. Eu ia mencionar, antes que o Wilson
Martins o fizesse, o personagem Zé Popó. As páginas 482 e 483 mostram-no a
responder a perguntas em uma praça pública; perguntas sobre a sua participação na
Guerra do Paraguai. Não há travessões para Popó, não há um discurso direto
para Zé Popó. Há o narrador, um narrador em terceira pessoa, que o autor
providenciou para falar “em nome de” Zé Popó. E esse narrador exibe, em seu
discurso em indireto livre, alguma incorporação dos modos de falar de Zé Popó?
— Não, não exibe. É um discurso neutro, correto e claro, sem marcas
lingüísticas, um discurso tão-somente ocupado com a explicitação de algumas
idéias políticas acerca dos significados daquela guerra. E isso salta aos olhos —
disse eu — justamente porque essa não é a característica preponderante desse
narrador. Sua marca pessoal é justamente a oposta: trata-se do narrador sem
cabeça, que está o tempo todo, ou quase todo..., a incorporar um modo alheio de
se expressar. O seu discurso indireto livre...
— Deixe-me dizer isto melhor, citando Lúcia Helena, que resumiu bem
essa inconstância narrativa — antecipou-se ele, já dono de todo o meu material de
imprensa. — “O discurso indireto livre, com que dinamiza processos oníricos
belíssimos, também é obscurecido pela preferência em prol do narrador em
560
Wilson MARTINS, “A matéria brasileira (I)”, Jornal do Brasil, 4 mai. 1985.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
321
terceira pessoa, pelo diálogo construído a partir de soluções previsíveis e
consagradas”.
561
— E ele leu um trecho do livro que provavelmente ilustraria esta
segunda forma de aparição do narrador:
Não tinha presenciado nenhum dos grandes atos de heroísmo de que tanto se
falava desde que a Campanha começara? Tinha, sim, tinha visto muitos atos de
valentia e coragem, em ambos os lados. (...) Eram todos heróis e não nasceram
heróis, eram gente do povo, gente como a gente da ilha e da Bahia, que também
suportava muitas dessas coisas e mais outras, até piores, sem ir à guerra nem ser
chamada de heróica. E também foram heróicos os paraguaios. Não tinha ódio aos
paraguaios, nem achava que se devia ter ódio deles, pois lutaram pela sua terra
como nós lutamos pela nossa. Também os paraguaios eram um povo... (p. 483)
— E por aí vai — disse ele. E concluiu: — Viva o povo brasileiro não
teria a força e as cores narrativas que tem, caso o narrador se mantivesse fiel a
esse tom neutro e coerente por toda a história...
5.6. O NARRADOR DE NOVENTA CABEÇAS: LITERATURA E CONHECIMENTO
— Qual a diferença entre esse narrador de noventa cabeças e o nosso já
conhecido narrador sem cabeça? Trata-se do mesmo?
— Sim, trata-se do mesmo, mas com a sua característica central, incorporar
discursos alheios, levada ao paroxismo. Como eu disse um pouco antes, o narrador
incorpora um saber popular, incorpora uma narrativa de conhecimento consensual
acerca de assuntos específicos. O efeito desse tipo de procedimento é a presença de
uma voz “naturalmente legitimada” a falar de tal e tal tema. Trata-se de uma
legitimação conferida pelo tempo, pela tradição e pela experiência. Há uma espécie
diferente de saber nesse tipo de narrativa: um saber não-científico, ou seja, não
preciso, não verificável e não mensurável. Esse saber pode ser particular e dirigir-se
a aspectos circunscritos à vida pessoal de um personagem, ou pode ser mais amplo
e referir-se a arsenais maiores de conhecimento. Você não vai me interromper
pedindo que eu lhe dê exemplos? — provoquei.
— Exemplos, por favor... — disse ele, e me ofereceu um cafezinho.
— O romance Viva o povo... é farto em exemplos desse tipo. Há aqui, sob
uma forma literária, quase que uma espécie de projeto epistemológico subterrâneo
561
Lúcia HELENA, “Admirável mundo, o do povo”, Jornal do Brasil, 15 dez. 1984.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
322
de revelação de culturas brasileiras, em minúsculas e no plural. A entrada em
cena, no romance, do personagem Nego Leléu, por exemplo, vai revelar ao leitor
um narrador diferente, com um modo de expressar-se e uma visão de mundo
sintonizadas com os feitios de Nego Leléu, um narrador desenvolvido
especialmente para a descrição desse cativante personagem,
562
e esse narrador
carrega consigo um saber que vem dele e de seu grupo.
— O narrador, mesmo aqui — disse ele —, vai manter aquela sua
estratégia que já conhecemos? Ou seja, apresentação dos personagens em
abundantes massas de discursos sob a forma do indireto livre e focalização interna
quase que constante sobre o personagem descrito? Em suas palavras, narrador em
trabalho de incorporação...
— Sim, mas esse narrador, com todas essas características, terá aqui um
estatuto conferido pelo tipo de conhecimento que ele possui: quem descreve Nego
Leléu é o povo de onde vem Nego Leléu; é alguém que conhece as matreirices de
Nego Leléu. Na descrição que realiza do negro liberto Leovigildo, o narrador não
está necessariamente incorporando o próprio Leléu, mas alguém de fora e íntimo:
um amigo, um observador, uma pessoa do povo, ou então nada mais que um
ponto de vista geral.
563
562
— Tão cativante que nestes termos se expressou o autor desta entrevista, inspirado pelo que lhe
disse o escritor. Ouça — e li —: “Nego Leléu chegou de mansinho, para participar de apenas
algumas cenas, poucas páginas, quase nada. Foi ficando, ficando. Preencheu uma, duas, três,
quatro folhas. Vinha de longe, não era nem para ficar. Mas ficou. Falava muito, e falava bem.
Encantou o dono do papel, que não soube como manter Nego Leléu em segundo plano. O
sujeito de boa aparência, com jeitão de preto rico e pinta de sabido seduziu o autor da história.
Tomou corpo e muitas linhas. E também viveu bastante, perigou até entrar na eternidade, mas
morreu menino, empinando pipa. (...) Matar Nego Leléu foi quase um drama. A decisão,
tomada pela manhã, precisou de tempo para amadurecer. Naquele dia, ele tinha que sair da
história, já estava lá há muito tempo e, afinal, o livro continuava” (Nahima M
ACIEL, “João
Ubaldo Ribeiro: a arte de escrever”, Correio Braziliense, 14 set. 1997
).
563
— Talvez, e digo isso numa nota, o ponto de vista aqui sobre Leléu seja o do próprio Ubaldo,
em primeira mão, uma vez que a sua inspiração para o personagem tenha vindo,
concretamente, de um amigo íntimo. Ouça aqui esta resenha de 1984. — E li: — “... Leléu (...)
foi um dos poucos personagens (...) a serem descritos (...) a partir de uma pessoa real: o
pescador José Raimundo dos Santos, 52 anos, mais conhecido por José de Honorina, amigo do
escritor desde a infância” (Mário Sérgio C
ONTI, “Um brado retumbante”, Veja, 19 dez. 1984).
E diz o escritor: “... tem uma porção de coisas que o Zé sabe e eu não sei, então fica uma
conversa muito rica. Sem charme nenhum, eu aprendo muito com ele, com o discernimento
dele. Zé tem a cabeça feita desde os sete anos de idade, uma coisa raríssima, e em companhia
de Stela de Oxóssi, mãe-de-santo de Caymmi, de Carybe e de Jorge Amado. Pois Zé é um
homem importantíssimo que pouco sai de Itaparica. Uma figura que me acrescenta muito...”
(Renato S
ÉRGIO, “João Ubaldo Ribeiro — Um personagem que esqueceu de se incluir num dos
seus oito livros...”, Ele Ela, texto sem data). E continua: “... me acrescenta muito mais do que
certas figuras tidas como orientadoras da cultura brasileira e que na verdade vivem na periferia
(cont.)
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323
— Você quer dizer que um narrador não precisa ser uma consciência? Ele
pode ser nada mais que um ponto de vista? — quis saber ele. — Não precisa
sequer ser uma pessoa?
— Isso mesmo. Seymour Chatman defende a possibilidade de uma narrativa
não ser realizada através de uma mediação humana reconhecível, e ainda diz que o
dado da personalidade humana não é uma condição sine qua non para a máscara
narratológica...
564
“O narrador”, diz ele, “não precisa ser um ‘alguém’. Toda
afirmativa narrativa é proferida por um narrador, e esse narrador pode não ser um
‘alguém’, mas um ‘algo’. O agente da apresentação não precisa ser humano”, conclui
Chatman, “para merecer o nome de ‘narrador’”,
565
mas isso é uma discussão...
— Vamos a ela.
— Já estamos nela... Veja o início do trecho a que me refiro, observe a
posição geográfica do narrador, o seu conhecimento específico do valor e das
características da vestimenta do negro e a gradual aproximação, espacial e
psicológica, que o leitor começa a experimentar em relação a Leléu:
... Quem é aquele que lá vem lá longe, todo serelepe, lépido e fagueiro? Ora se
não é Nego Leléu muito bem fatiotado, chapeirão de coro mole, burjaca toda
catita, pantalonas mais que galhardas, gravata tipo plastrão, alcobaça repolhuda,
camisa de batista fino, ceroulas do melhor algodãozinho, um par de chapins
lustrosos pendurado nos dedos, embotadeiras com ligas de cadarço jogadas no
ombro — e as piores intenções! (Viva o povo..., p. 126)
— A exclamação ao final do trecho — continuei —, uma exclamação que
é do narrador e denota um certo entusiasmo de sua parte, pode sugerir a presença
de um interlocutor, o leitor, a quem se dirige o narrador no intuito de descrever, o
mais fielmente possível, o personagem que ora se apresenta. Há ao longo dessa
grande fala de abertura outras marcas da presença desse interlocutor, as sentenças
de alguma coisa européia que chegou aqui, escorregou e foi mal digerida” (Renato SÉRGIO,
“João Ubaldo Ribeiro — Um best seller desabafa: ‘A qualidade de vida das grandes cidades
não me diz nada’”, Manchete, 19 out. 1985
).
564
— Traduzi livremente deste original: “... a kind of narration that is not performed by a
recognizably human agency. I argue that human personality is not a sine qua non for
narratorhood” (Seymour C
HATMAN, “The Literary Narrator (p. 109-123), in Coming to
Terms — The Rhetoric of Narrative in Fiction and Film, Ithaca and London, Cornell
University Press, 1990, p. 115).
565
No original: “But the narrator need not to be a ‘someone’. Every narrative statement is
presented by a narrator, and the narrator may be not a someone, but a something. The agent of
presentation need not be human to merit the name ‘narrator’” (id., p. 116).
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
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“Podem crer!”, “... é o que estou lhe dizendo!” e “... meu amigo, o que é que está
pensando?” (p. 128). Esse interlocutor, que é imaginário, tal como no caso de
Grande Sertão: veredas, não se manifesta nunca. O narrador, que vê Leléu à sua
frente, conhece-o muito bem, e também às suas graças e artimanhas, e deixa isso
claro. Veja: “Quem visse assim sua marcha altiva e sua roupa airosa podia pensar
que era um negreiro preto muito rico (...). Mas não, era Nego Leléu ensaiando sua
cara de inocente” (p. 126-127).
— Não consigo ver esse narrador externo incorporando uma “pessoa do
povo” ou “algo abstrato” relacionado a um saber popular...; consigo ver apenas
uma incorporação de Leléu pelo narrador...
— Não, não. Se fosse um narrador focalizado apenas em Leléu e nos seus
pensamentos, não haveria a necessidade de esse trecho seguinte existir, uma vez
que Leléu não ficaria a revelar a si mesmo o que ele mesmo já sabe. Está claro
que temos aqui um narrador preocupado em revelar ao seu interlocutor
imaginário, o leitor, um universo: o universo, a vida e as conquistas de Leléu.
Veja o trecho: “Nego Leléu ficou forro por testamento de um português de Salinas
de Margarida, não quiseram libertar, olhavam para o papel e liam mentiras que
não estavam escritas nele” (p. 127-128). Não é Leléu e nem tampouco um
narrador focalizado em Leléu, que está a dizer isso...
— Hum... — fez ele. — E que conhecimento veiculado é esse que se
percebe das palavras desse narrador? Onde está esse saber de que você falou?
— Vejo aí nesse grande trecho de apresentação do Nego Leléu um
conhecimento do que significa levar a vida tal qual Nego Leléu a leva.
— Não entendi.
— O narrador, sendo ele uma figura do povo de Leléu, conhece muito bem
as possibilidades materiais de sua gente para saber que Leléu estava naquele dia
bem vestido e vestido como um negro liberto que tem lá o seu dinheiro guardado,
e muito bem guardado, “num lugar marcado que só ele sabia” (p. 128). O
narrador, sendo ele uma figura do povo de Leléu — continuei —, conhece muito
bem as graças que fazem os negros, a “graça da bochecha de abóbora”, a “graça
da risada” e a “graça do velho africano bem velhote” (p. 127), para agradar às
crianças e assim ser bem recebido nos locais propícios a bons negócios. O
narrador, sendo ele uma figura do povo de Leléu, sabe muito bem do valor de se
dormir com uma professora parda, velha e surda, casar com ela, montar casa, lhe
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
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dar “bom serviço de marido três vezes por semana senão mais” (p. 128) e assim
aprender a ler e a contar para subir na vida e ser alguém; sabe do valor de se ficar
amigo de coronel, de se formar oficial alfaiate, de ter negros libertos trabalhando
na oficina, de fechar luto quando a mulher morre, de arranjar mulher dama para os
ricos, de montar um prostíbulo, de louvar e sempre paparicar Perilo Ambrósio e
sua mulher Antônia Vitória, de fazer sempre o que esperam dele, Leléu, que faça;
do valor, enfim — eu disse —, de ter conduzido todos os seus negócios da exata
maneira como Leléu os conduziu, e não de outra.
— O narrador, sendo ele uma figura do povo de Leléu, sabe muito bem do
valor de se ter aprendido, na vida, “ser a subserviência um trabalho”, como bem disse
a Eneida Leal Cunha; “o mais produtivo trabalho disponível aos negros”
566
— citou o
meu interlocutor, acho que dessa vez plenamente convencido da minha idéia. —
Trata-se — continuou ele — de um conhecimento acerca do que é necessário a um
negro alforriado para conseguir ser um pouco mais que um negro alforriado... Sim, é
isso. Veja aqui o que diz o narrador nesse trecho: “Tudo neste mundo se consegue
com trabalho e quem é preto consegue menos com muito mais trabalho...” (p. 127).
— Veja aqui agora o exemplo de um saber mais amplo e impessoal do
narrador, mas um saber oriundo de uma vivência junto aos elementos do
conhecimento que estruturam esse saber: o sexo entre as baleias. Quem narra es
narrando o que ouviu falar, o que viu ou o que lhe contaram gerações a fio; não o
que estudou ou aprendeu nos livros... O narrador é antes um observador e um
ouvinte do que vê e lhe conta o povo do lugar.
567
... As baleias, das grandes e das pequenas, de qualquer das muitas famílias e
raças que todo ano aqui passeiam e são caçadas, não casam como os outros
peixes. (...) não o peixe baleia, que quando se enamora primeiro canta e assovia
(...). E também se lamenta no meio das canções, ouvindo-se cada hora seus
gemidos de paixão, a música de toda noite nesta época do ano. Assim do alto e
de longe, vê-se chispando pela flor d’água uma baleia, mas depois vê-se que são
duas. É que vão tão juntas e harmonizadas que parecem um só bicho (...),
espelhando o sol nos couros azulados. Como, nos dias mais frios, seus
esguichos se aglutinam em gotinhas vaporosas que viram rodas de arco-íris
contra a luz, acha o povo que as baleias noivas constroem assim suas grinaldas e
anunciam às outras o casamento. (Viva o povo..., p. 131-132)
566
“O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 196.
567
— “... para João Ubaldo” — e o meu interlocutor me interrompeu —, “o escritor, antes de saber
escrever” disse José CASTELLO, “tem que saber ouvir” (“Com os olhos do povo — O escritor
João Ubaldo e seu novo romance”, IstoÉ, 19 dez. 1984
).
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
326
— É um trecho bonito... — disse o meu interlocutor.
— Fica mais bonito ainda depois, quando há a descrição do ato amoroso
propriamente dito: a “grande pilastra colorida” como “um mastro festeiro” saindo
“das dobras da barriga dele” e a baleia fêmea com suas próprias dobras se
entreabrindo “em vermelhos, roxos, brancos e violetas latejantes” (p. 132). Há
duas observações a serem feitas aqui: a primeira diz respeito a algo que falei a
você bem antes e que ainda pretendo desenvolver mais à frente, sobre a
“onisciência relativa” do narrador. Observe pelos trechos que eu realcei que o
narrador não está, contrariamente ao tom dessa descrição, que pediria total
onisciência... que o narrador não está de posse de todos os ângulos de visão: ele
não está debaixo d’água; está fora d’água e consegue ver as baleias apenas quando
emergem. Aquilo que ele descreve sem ver não passa de uma dedução fantasiosa,
como é o caso da descrição dos órgãos sexuais das duas baleias.
— Isso me lembrou o início daquele livro do Peter Benchley: Tubarão.
Você leu?
— Não, não li — e fiz cara de pouco caso.
— Não seja preconceituoso... — disse ele, e eu enrubesci. — Veja este
início. Dou-lhe esse exemplo para servir de contraste entre um narrador
parcialmente ciente, caso de Ubaldo, e um onisciente de fato. O narrador de
Benchley não está fora, mas ao lado do peixe. Ouça — e ele pegou o livro de uma
estante mais recuada.
... O imenso peixe deslocava-se (...) pelo mar noturno, impulsionado por
movimentos curtos do rabo em forma de crescente. A boca estava aberta apenas o
suficiente para permitir que um jato de água lhe passasse pelas guelras. Quase
não havia outro movimento: apenas uma correção ocasional do curso,
aparentemente a esmo, pelo ligeiro levantar ou abaixar da barbatana peitoral, (...).
Os olhos nada viam na escuridão e os outros sentidos não transmitiam nada de
extraordinário ao cérebro pequeno e primitivo. O peixe poderia estar adormecido,
se não fosse pelo movimento determinado por incontáveis milhões de anos (...).
Carecendo da bexiga de flutuação (...) e das abas móveis para fazer a água rica
em oxigênio passar pelas suas guelras, ele só podia sobreviver deslocando-se. Se
parasse, iria para o fundo (...) e morreria de anoxia.
568
568
Peter BENCHLEY, Tubarão, São Paulo, Círculo do Livro, 1975, p. 9.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
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— Sim — eu disse. — O narrador de Tubarão não é apenas onisciente,
mas infalível. Não há qualquer hesitação em sua narrativa: ele sabe, e sabe que
sabe, e o que faz é comunicar ao leitor a sua ciência. O narrador de João Ubaldo
Ribeiro é tudo, menos um convicto. O início do romance O sorriso do lagarto, de
1989, é paradigmático dessa cautela narrativa diante dos eventos: “Talvez isto não
fique claro ainda por muito tempo, mas o exame consciencioso dos fatos que
levaram aos acontecimentos principais deste relato mostra que sua primeira cena
se desenrolou em data já um pouco distante, sem que ninguém então pudesse
saber o que pressagiava” (p. 9); bem como o início do próprio Viva o povo...:
“Contudo, nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do Alferes José
Francisco Brandão Galvão, agora em pé na brisa da Ponta das Baleias...” (p. 9).
— Você disse que tinha duas observações a fazer sobre a descrição do
amor entre as baleias... Qual a segunda?
— A segunda vai por aqui: o narrador desse trecho também faz as vezes de
um homem do povo, talvez um pouco mais instruído, dadas as palavras que usa,
mas o seu conhecimento é adquirido pela observação daquilo que está a descrever.
O que eu falei antes sobre a descrição das conquistas de Nego Leléu também aqui
se aplica, ainda mais certeiramente: há na literatura de João Ubaldo Ribeiro um
projeto epistemológico subterrâneo de revelação e veiculação de saberes — eu
disse mais uma vez, com uma dramaticidade talvez exagerada...
— De saberes... — fez o meu interlocutor, desconfiado. E, de repente,
pareceu lembrar-se de algo: — Lembrei-me de algo que declarou o José Saramago
acerca disso: “Com petulância de romancista, escrevi uma vez que a melhor
maneira de explicar as coisas ainda é a metáfora, isto é dizer uma coisa por
outra”.
569
Creio que isso faz eco ao que você está dizendo...
— Faz, sim. O próprio João Ubaldo diz que o escritor de ficção “não tem de
ser analítico, não tem de ser crítico, não tem de confiar na racionalidade”, e continua:
— ... e, com isso, evita dúvidas secretas e suarentas, dúvidas mal seguradas
por bulas de remédios (...), dúvidas de quem, por algum motivo muito irracional,
tem de segurar-se na razão e em uma ou mais formas de a razão organizar-se.
569
José SARAMAGO, “O tempo e a história”, Jornal de Letras, 27 jan. 1999, citado por Rita
OLIVIERI-GODET, Université de Paris 8, “Memória, história e ficção em Viva o povo brasileiro,
de João Ubaldo Ribeiro”, in <http://www.geocities.com/ail_br/memoriahistoriaficcaoemviva.
html>, acesso em 18 out. 2005
.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
328
Enfim, são coisas loucas, epistemológicas, que me dá vontade de falar e me
fazem lembrar meu amigo Glauber, cuja palavra favorita era (...) “epistemologia”.
(...) E quando o sujeito consegue ser absolutamente “sujeito” (no sentido
epistemológico, viva Glauber, que saudade!), como é o caso do ficcionista, este
sujeito, se é potente, vence o absurdo, a ponto de não mais notá-lo.
570
— Ele acredita que o escritor... — e continuei a ler.
— ... manipula (...) uma forma de conhecimento meio capeta, tão capeta que
não é redutível às categorias elementares do chamado método científico (...).
Então o sujeito pode contestar a “objetividade” do que o escritor faz, mas não
pode contestar o fato de que, “objetivo” ou não, o que o escritor faz é uma forma
de conhecimento da realidade, e, muitas vezes, essa forma é privilegiada sobre as
formas “científicas”.
571
— Umberto Eco vai, não numa direção contrária a esse pensamento de
Ubaldo, mas eu diria que uma direção paralela, não apenas chamando essa forma
de conhecimento de forma “metafórica de conhecimento”, como também
alinhando os pontos de vista sobre a realidade, proporcionados pela arte e pela
ciência ao longo da História — disse ele.
— Não é à toa que a epígrafe de Viva o povo... é, de uma ponta a outra,
nietzscheana... “O segredo da verdade é o seguinte” — li —: “não existem fatos,
só existem histórias”.
572
— Ouça — e ele retirou das estantes a Obra aberta, de Eco.
... é sempre arriscado sustentar que a metáfora ou o símbolo poético, a realidade
sonora ou a forma plástica constituem instrumentos de conhecimento do real mais
profundos do que os instrumentos proporcionados pela lógica. O conhecimento do
mundo tem na ciência seu canal autorizado, e toda aspiração do artista à vidência
(...) contém sempre algo de equívoco. A arte, mais do que conhecer o mundo,
produz complementos do mundo (...). Entretanto, toda forma artística pode (...) ser
encarada, senão como substituto do conhecimento científico, como metáfora
epistemológica: isso significa que, em cada século, o modo pelo qual as formas da
arte se estruturam reflete (...) o modo pelo qual a ciência ou (...) a cultura da época
vêem a realidade.
573
570
Entrevista, João Ubaldo RIBEIRO, arquivo da Ed. Nova Fronteira.
571
Id.
572
— “Essa minha frase não tem nada de original”, disse João Ubaldo Ribeiro. “É uma
constatação. Cada sujeito da História vê a realidade de acordo com determinantes de classe, de
profissão, formação. Várias influências socialmente adquiridas. De certa maneira, alguns fatos
da História do Brasil não aconteceram realmente como aprendemos na escola” (Márcio
V
ASSALO, “A palavra é imortal”, Lector, 1997).
573
“A poética da obra aberta” (p. 37-66), in Obra aberta, São Paulo, Perspectiva, 1991, p. 54-55.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
329
— Parece que estamos a ver João Ubaldo Ribeiro e Umberto Eco
envolvidos numa discussão — disse eu. — E Ubaldo está fazendo mais do que o
papel do artista; ele está fazendo o papel do artista que teoriza sobre a própria arte,
ao passo que Eco, o papel do teórico que se coloca no papel do artista que defende
um novo status para a sua arte; um status que pode ultrapassar o artístico em
direção ao epistemológico...
— Você diria que essa opção, na obra de Ubaldo, pela literatura como
orientadora do conhecimento, em detrimento de discursos mais científicos
oriundos de outras áreas, pode ser a conseqüência de uma feição que teve o meio
intelectual brasileiro principalmente no século XIX e início do XX?
— Desenvolva.
— Disse isso pensando no Antonio Candido, para quem “as melhores
expressões do pensamento e da sensibilidade têm quase sempre assumido, no
Brasil, forma literária”,
574
e ele se refere não apenas à parte estritamente literária,
e cita José de Alencar, Machado e Graciliano, como as de formato histórico-
sociológico, como Euclides da Cunha e Gilberto Freire. — Eu não disse nada, e
ele continuou: — Veja bem, eu não estou querendo criar aqui um padrão para
aquilo que vamos descobrindo pelo meio do caminho. Não. Apenas percebo que
Ubaldo pode ser um herdeiro desse modo de interpretar o mundo à volta.
— Sim, mas ele faz literatura, e é claro que todas as suas convicções
filosóficas, as suas idéias políticas e as suas maneiras de ver a vida se
materializam, quando efetivamente se materializam..., através de sua prosa
literária, porque é isso o que ele predominantemente faz. Contudo — continuei —,
o que ele diz em entrevistas, em crônicas e em artigos também não deixa de ser
uma via de entendimento de sua obra, como você mesmo apontou em algum
momento de nossa conversa... Ou fui eu que apontei. Já não me lembro...
— Claro, claro! — disse ele. — Mas em tudo o que ele diz há essa postura...
Essa que você apontou sobre a arte como via alternativa, mas não menor, de
conhecimento. Ouça: “A literatura”, diz o Antonio Candido, para ficarmos aqui mais
um pouco, permitiu e forçou “a proeminência da interpretação poética da descrição
574
“Literatura e Cultura, de 1900 a 1945” (p. 109-138), in Literatura e Sociedade: estudos de
teoria e história literária, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1985, p. 130.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
330
subjetiva, da técnica metafórica (da visão, numa palavra), sobre a interpretação
racional, a descrição científica, o estilo direto (ou seja, o conhecimento)”.
575
— Essas palavras do Candido estão focando uma outra época... —
comecei, percebendo que o meu interlocutor é que estava, afinal, guiando a nossa
conversa, o que não era mau...
— Não — reagiu ele, mais destemperado do que seria o razoável. — Não
me venha dizer que o Antonio Candido está se referindo a uma outra época e
escrevendo em uma outra época, que isso eu já sei, porque sei ler, e sei contar. Eu
o citei aqui porque, pelo que vi no que você disse sobre Ubaldo, há naquilo que o
Candido apontou sobre os nossos círculos intelectuais no final do século XVIII e
início do XIX uma concepção de conhecimento que é esta: e o cito novamente: “...
o espírito da burguesia brasileira se desenvolveu sob influxos dominantemente
literários, e a sua maneira de interpretar o mundo circundante foi estilizada em
termos, não de ciência, filosofia ou técnica, mas de literatura”.
576
— Você disse muito bem... Deixe-me dar um outro exemplo retirado de
Viva o povo... — pedi, quase sem graça por retomar o fio. — As páginas 248, 249
e 250 dedicam-se a uma espécie de digressão sobre o bicho tatu. Menciona o
narrador que pouco se sabe sobre o tatu, embora muito se diga que o que se deve
saber sobre o tatu é que ele cava buracos. E, partindo da constatação dessa
ignorância inicial, desata o narrador a demonstrar que quase ninguém sabe nada
sobre o tatu, somente o povo que lida com tatus e provavelmente os especialistas
que se dedicam a estudá-los. E muitas informações são transmitidas sob a forma
de um discurso pouco comprometido com a verificabilidade e com a precisão: os
hábitos alimentares de cada tipo de tatu, suas formas, suas cores e seus gostos. As
informações são entremeadas com referências ao que diz ou não diz a gente do
lugar e com juízos de valor do próprio narrador, que se coloca numa posição de
mediador entre o leitor e o povo da Ilha.
— Mostre-me esse discurso “epistemológico” sobre o tatu. Mostre-o em
funcionamento — pediu-me o meu interlocutor, tentando disfarçar um sorriso.
— Sim, veja: “O tatu não tem dentes. Quer dizer, bem olhado tem, não na
frente da boca mas atrás, umas nonadinhas que nem dentes se afiguram
575
Id., p. 131.
576
Id., p. 133.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
331
propriamente ser” (p. 248). Você vê aqui uma afirmação categórica, característica
do discurso científico, e, logo em seguida, a sua negação já num discurso
coloquial, cheio de meios termos. Há dentes? Não há dentes? Sim, há dentes, mas
não na frente, e sim atrás, e mesmo assim não são dentes, mas coisinhas pequenas.
Então não há dentes... Em seguida diz que o tatu não morde, mas mastiga. E mais
abaixo o narrador diz: “Há muitas raças de tatu na ilha, caçando-se mais
notadamente o chamado tatu-galinha, que é o tatu verdadeiro, como diz o povo”
(p. 249). Este “como diz o povo” atenua a peremptoriedade da afirmação anterior,
sobre ser o tatu-galinha um tatu verdadeiro, assertiva pouco científica, uma vez
que todos os tatus são tatus e, logo, são verdadeiros...
— João Ubaldo diz que o artista tem de ser ininteligível — citou o meu
interlocutor, que não estava lá muito interessado em tatus e começou a ler um
texto que retirou de minhas mãos —, “... fecundamente ininteligível, pois a
ambigüidade é a força da arte. O artista pode utilizar uma distinção de Dilthey,
feita a propósito de ciências humanas e ciências ‘naturais’ ou ‘exatas’. Estas
explicam, aquelas compreendem. O artista, bem ou mal, compreende”,
577
diz ele
aqui nessa entrevista.
578
E com isso chegamos à defesa de uma outra legitimidade
para o conhecimento, a firmar-se ao longo de duas vias comumente
negligenciadas por razões mais que evidentes: o conhecimento pela via da arte e o
conhecimento pela via de um saber popular.
— Sim. E bem mais à frente observamos que todo o conhecimento acerca
do bicho tatu estava sendo veiculado a partir de uma origem: o personagem Luiz
Tatu, homem do povo, caçador pobre e sem ciência, mas um profundo conhecedor
de tudo o que dizia respeito ao tatu, e isso a um tal ponto que o próprio Luiz Tatu
ia aos poucos, como notava Leléu, transformando-se ele mesmo em um tatu, “de
tanto comer tatu, falar em tatu e até conversar com tatu” (p. 251). Veja —
577
Entrevista, João Ubaldo RIBEIRO, arquivo da Ed. Nova Fronteira.
578
— E diz também — completou o meu interlocutor, em nota —, diz em outra entrevista, em que
parece estar ainda mais convicto: “A literatura, como suas artes, é renitente e resiste aos
repetidos anúncios de sua morte (...). (...) Ninguém sabe de merda nenhuma, esta é que é a
verdade, todos temos epifanias e caminhos abertos para saber onde fica o absoluto. (...) Os
artistas preservamos o sagrado direito do homem ao delírio, e já sofremos o bastante com isso,
para que a caretice crítica nos queira submeter ao escruciante processo de dissecação e redução
a categorias manejáveis. A comunidade nos devia defender. Sem nós — e principalmente sem
Nelson Gonçalves —, ela estaria [trecho censurado]. Sem os artistas, onde ficaram todos?
(“João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985
).
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
332
continuei — como o narrador desvenda a origem de seu conhecimento, apontando
o verdadeiro responsável por aquilo que, acreditávamos, era acervo seu, de origem
indefinível: “Toda esta ciência e arte do tatu, mais muitas outras observações da
Filosofia da Caça e do Alimento, foi Nego Leléu obrigado a escutar com grande
paciência nas palavras de Luiz Tatu” (p. 250).
— Há mais exemplos?
— Há, sim, e dou-lhe dois, mas desta vez não teremos a possibilidade de
indicar uma origem para o conhecimento veiculado. Podemos observar aqui o
narrador diante de um pequeno impasse epistemológico... E veja que mais uma vez o
narrador se vai valer de sua forma de narrar para deixar evidentes a dúvida e os
desacordos quanto a uma questão muito importante: o cozimento do peixe baiacu.
Veja que o narrador não diz com clareza que não há certezas acerca do cozimento do
bicho e nem, o que seria esperado, apresenta personagens a falar em discurso direto
acerca das controvérsias quanto ao preparo do peixe. A controvérsia está embutida na
forma de narrar. O narrador incorpora os desacordos à sua própria maneira de expor a
questão, transformando em linguagem, uma linguagem vacilante, a própria idéia da
falta de consenso quanto ao assunto.
— É como se ele próprio, o narrador sem cabeça, se transformasse na
questão que é objeto de sua narrativa?
— Sim. Ouça:
... o baiacu é também venenoso, costumando matar com rapidez quem o come
sem saber tratá-lo. Felizmente, existe quem saiba tratá-lo com competência.
Basta, por exemplo, remover a pele. Não, não basta remover a pele, a pele não
tem veneno, há até gente que come a pele. O problema é o umbigo. O baiacu tem
aquele umbiguinho encaroçado e é ali que está o veneno (...). É bem verdade que
na cabeça é que pode estar a sede da peçonha, de forma que o mais seguro talvez
seja jogar a cabeça fora. Claro que é bem possível assistir razão aos que afirmam
que o veneno está em todo o peixe, mas o cozimento longo em panela destapada
faz com que ele vire fumaça e vá embora. Não, não, a questão é outra, é a lua,
pois não passa de arrematada loucura comer baiacu na lua cheia (...). Que lua, que
nada, o segredo é o mês... (p. 589-590)
579
579
— João Ubaldo explora a mesma brincadeira de ir adotando, sucessivamente, variadas
“certezas” acerca da origem do “mal do baiacu” na crônica “Os comedores de baiacu” (O
Globo, 30 out. 1983, reunida no livro Arte e ciência de roubar galinha, op. cit., p. 45-49),
tendo Luiz Cuiúba e Sete Ratos, personagens de Itaparica, como os supostos detentores do
saber acerca do misterioso peixe. Os mistérios a envolver o preparo do baiacu são também
invocados nas crônicas “Mangia che ti fa bene” (p. 127-132), do Sempre aos domingos, op.
cit., p. 130; na referência à morte de Vaza-Maré, provavelmente graças a “uma moqueca de
baiacu malpreparada”, em “O dia em que o diabão levantou a saia da Viúva Martins” (O
(cont.)
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
333
— Eu disse a você que não podemos indicar uma origem para o
conhecimento veiculado. Há, sim, uma origem, mas ela se encontra fora da
diegese: num conhecimento popular, e polêmico, acerca do baiacu e, neste
segundo exemplo que lhe darei agora, numa experiência de escrita e observação
que encontramos com facilidade numa determinada idéia de escritor — disse eu
—, que é a idéia de escritor que João Ubaldo gosta de relacionar ao seu narrador:
a condição de “intérprete de seu povo e do seu tempo”.
580
— ... condição que também gosta de incorporar para si mesmo como
escritor e na qual se sente à vontade — interrompeu-me ele.
— Não sei... Veremos isso à frente...
581
Este segundo exemplo, de todo
modo, eu tiro dO feitiço da ilha do Pavão. Ouça:
Não se deve rir da desgraça alheia, nem fazer pouco caso dos desventurados,
até porque aquilo que a um vitima sói muitas vezes sobrevir a outro, não raro
piormente. (...) São tantas as penas inventariadas nos infernos, obrigatoriamente
pagas por pecados e más ações (...), que livros com mais de cem vezes as
páginas deste cá, o qual tão desutilmente vos ocupa, não seriam bastantes para
conter-lhes os resumos. Mas, desde o começo do mundo, o vizinho ri do vizinho
quando devera chorar, ou chora quando rir devera (...). (...) Rimos do que aflige o
outro, mas sabemos que o outro entre os outros virá a rir de nós (...). Portanto, ao
rir do outro, rimos de nós mesmos (...). O mundo é perfeito,
582
já diziam os
antigos, e com eles nos vemos obrigados a concordar, eis que, se tudo se
passasse como quer cada um de nós, não duraria este mesmo mundo mais do que
três peidos de mula... (O feitiço da ilha..., p. 241-242, realcei)
583
Globo, 19 jan. 1986, em Arte e ciência de roubar galinha, p. 169-173); e ainda em “Noble na
peixarada” (O Globo, 12 out. 1986, idem, p. 217-221, p. 219).
580
Expressão utilizada por Eduardo MARETTI, “Ciências versus religião na Bahia de João Ubaldo”,
O Estado de S. Paulo, 16 nov. 1989
.
581
Ver Capítulo 6: “Ubaldo Amado”, p. 407.
582
— E João Ubaldo vai retomar essa frase na epígrafe do romance Miséria e grandeza do amor
de Benedita — lembrei. E li: — “O mundo é perfeito, disse Benebê no Bar de Espanha, e todos
ficaram pensativos”. Todos, tal como o narrador dO feitiço da ilha..., concordaram, ou seja,
“ficaram pensativos”...
583
— O romance O feitiço da ilha do Pavão apresenta numerosos exemplos, através da fala do
narrador, da utilização desse estoque compartilhado de ditos e desditos populares — disse eu,
salientando que o mais longo e de mais fôlego talvez seja o próprio início do livro, onde se
empreende a descrição minuciosa do lugar simbólico ocupado pela ilha do Pavão na mente dos
habitantes do continente: “Ninguém fala nesse pavão ruante e, na verdade, não se fala na ilha
do Pavão. (...) O forasteiro que perguntar por ela receberá como resposta um sorriso e o
menear de cabeça reservado às perguntas insensatas. (...) Não se pode negar que a
verdade é distinta para cada um e talvez estejam certos os que sustentam que este mundo
não passa de miragem e, portanto, pode ser isso ou aquilo, segundo quem olha e pensa
(O feitiço da ilha..., p. 9-10, realcei).
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
334
— Eu estou vendo aqui — apontou o meu atentíssimo interlocutor uma
página do Viva o povo... — uma espécie de teorização sobre essa idéia bastante
defendida pelo Ubaldo e que você mencionou antes. Esse trecho, aliás, é daqueles que
eu definiria como trecho engajado — e abrimos na página 318, no trecho apontado
por ele. — Através da personagem Dafé ainda menininha, o narrador, ou melhor,
Ubaldo, que, já vimos, também é Maria da Fé, veicula a sua tese de duas pontas: a da
arte como uma forma de conhecimento não-mensurável e a do conhecimento como
uma forma de arte, distante, portanto, de uma formalização acadêmica; distante,
portanto, de uma tendência à elitização. Veja — disse ele. — Leia você — e eu li.
... Dafé se admirou de ver tanta ciência naquela gente comum, se admirou
também de nunca ter visto nos livros que pessoas como essas pudessem possuir
conhecimentos e habilidades tão bonitos (...). Quantos estudos não haveria ali,
como ficavam todos bonitos fazendo ali suas tarefas, agora também ela ia ser
pescadora! Até pouquinho, estivera meio convencida, porque ia ser professora e
portanto sabia muito mais coisas do que todos eles juntos, mas se via que não era
assim. Tinha gente que pescava o peixe, gente que plantava a verdura, gente que
fiava o pano, gente que trabalhava a madeira, gente de toda espécie, e tudo isso
requeria grande conhecimento e muitas coisas por dentro e por trás desse
conhecimento (...). (p. 318)
5.7. A ONISCIÊNCIA RELATIVA
— Esse assunto da onisciência relativa merece mais atenção de nossa
parte. Há um jogo entre o sabido e o insabido a permear todo o romance Viva o
povo brasileiro.
— Deixe-me antecipar a sua idéia: é possível afirmar que o narrador, na sua
condição de narrador onisciente, brinca com o leitor, escamoteando informações
que, em nome de uma dinâmica de suspense e tensão, necessária ao romance,
somente mais tarde serão reveladas? Ou, em outras palavras — concluiu o meu
apressado interlocutor —, estamos aqui desenvolvendo uma outra característica de
nosso narrador sem cabeça: ele não é confiável, se é que algum narrador o é...
— Não, meu caro — e cocei a cabeça. — Você infelizmente não pegou a
idéia. Isso que você disse poderia ser dito em relação a um modelo narrativo
clássico, com onisciência típica, e toda onisciência típica é, ou pode ser,
“traiçoeira”. O narrador sem cabeça de Viva o povo... e também dO sorriso do
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
335
lagarto, dois romances em que esse narrador está todo o tempo a “passear” entre
as consciências de seus personagens, esse narrador, dizia eu, é onisciente apenas
no âmbito do personagem que está incorporando ou cujos movimentos está
descrevendo de perto. Veja este momento: o leitor já tinha sido apresentado à
personagem Ana Clara, dO sorriso do lagarto, mas, mesmo assim, diante da cena
em que uma tartaruga é destripada em praça pública, o narrador, incorporado que
estava em João Pedroso, narra, em indireto livre, o que se segue, e em nenhum
momento traz à tona o nome que em outros trechos já tinha referido: o nome de
Ana Clara. O narrador só vai nomeá-la dentro de sua própria narração algumas
páginas à frente, quando uma outra personagem, Bebel, a chama, enfim, pelo
nome. A partir desse ponto, como se o narrador tivesse acabado ser, de certo
modo, apresentado à personagem, o nome “Ana Clara” começa então a aparecer.
O narrador passa conhecer o nome da mulher no exato instante em que o
personagem João Pedroso ouve a amiga chamar por ela. Depois de muitos “disse
ela” e “disse a mulher”, surge o nome. O narrador é o mesmo? Quantos narradores
há nO sorriso do lagarto?
— Que horror! — disse uma mulher atrás de João Pedroso. — E não é
proibido matar tartaruga?
Voz de gente de fora, voz de turista, levemente afetada, mas não desagradável.
Ele virou-se, levantando um pouco a aba do chapéu, e viu uma mulher de trinta
e poucos anos, de bermudas folgadas, blusa amarrada na barriga (...).
(...)
... e ela olhou para João Pedroso, como se esperasse que ele se apresentasse.
(...)
(...)
[Bebel] — Ah, não sei, Ana Clara e eu fizemos tantos planos, que é que você
acha, Aninha?
— Passeio por passeio, o melhor é ir à praia (...) — disse Ana Clara, olhando
novamente para João Pedroso (...). (O sorriso do lagarto, p. 79-83)
— Mas isso que você está me dizendo é o efeito, é o efeito da artimanha
narrativa! — disse ele. — Temos a impressão de que o narrador não sabe, mas ele
sabe, ora!... Você está demasiadamente preso ao texto. Veja este caso aqui — e pegou
o Viva o povo.... — As páginas 161 a 164 dedicam-se a revelar ao leitor os detalhes
da situação física do Barão de Pirapuama: sua doença misteriosa, os esforços do
médico Justino José em encontrar uma explicação, as “bostas presas” do paciente,
agravadas pelo seu incurável apetite, suas chagas e seu mau-humor crescente...
— Eu ia justamente citar esse exemplo...
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
336
— Mas agora me deixe continuar. Observe que nós já sabemos que o
Barão iria ser envenenado, porque o próprio narrador disse isso quando descreveu
o escravo Budião saindo dos matos com um punhado de ervas maléficas
apanhadas para esse fim. Se o narrador não menciona que a causa da doença é o
trabalho de envenenamento dos negros, é porque isso o leitor já sabe, ou já
deduziu, e não porque o narrador não saiba...
— O narrador só sabe aquilo que sabe o personagem que está sendo
incorporado. Se está incorporando Maria da Fé, no exato instante em que ela entra
no quartinho fechado onde está preso o tenente Patrício Macário e onde não há
mais ninguém, senão os dois — eu disse —, o narrador é então capaz de revelar
ao leitor que “Ela parou junto ao catre, (...) fechou os olhos um instante (...). O
coração disparando, (...) curvou-se para ele, tão belo e forte (...), levantou o
lençol”. Se está incorporando todo o seu bando que ficou de fora e não entrou no
dito quartinho, o narrador então pergunta: “O que ela fez em seguida?”. E ele
mesmo responde: “Ninguém sabe. O que se sabe é que saiu dali algum tempo
depois com um ar quase maroto” (Viva o povo..., p. 404).
— Você está aqui postulando a existência de um narrador sincero?
— Sim. A sua narrativa da agonia do Barão, por exemplo, é, pese-se a
palavra, “sincera”, na medida em que toda a focalização se dá pela ótica da baronesa
e pela ótica do cirurgião Justino José, que nada sabem. O narrador descreve o
desânimo geral e dá um certo relevo à figura de Merinha, escrava de nome
Emerenciana, bastante carinhosa e paciente com o seu Nhozinho. A sua descrição do
comportamento de Merinha é legítima, porque se trata daquilo que vêem a baronesa,
o cirurgião e os outros membros da casa, todos ignorantes do que realmente
acontecia. Mas observe que o narrador não diz isso: que todos estão ignorantes do
que realmente acontecia. Se estivéssemos diante de um narrador onisciente clássico,
nós teríamos essa informação e seríamos alçados, como leitores, a um patamar de
ciência semelhante ao do narrador: seríamos, por nossa vez, leitores oniscientes e
cúmplices, ou então, o que é de certa maneira uma espécie de conhecimento, o
conhecimento da própria ignorância: saberíamos, pelo narrador, que há algo de podre
no reino do Barão, mas nem isso o narrador nos diz, e por quê?
— Porque ele também não sabe?
— Sim, porque ele também não sabe. Aqui, neste caso, e diversamente do
que diz o professor Ronaldo Costa Fernandes em seu livro sobre o narrador —
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
337
continuei —, o narrador não sabe. Ele narra, mas não sabe. “Quem se propõe a
narrar é porque teve uma experiência anterior de compreensão de determinado fato.
Ninguém narra sem saber”,
584
diz ele. Pois o nosso narrador sem cabeça narra, sim,
sem saber. Somente mais tarde nós iremos saber, juntamente com o narrador, que
Merinha, na outra casa, a do continente, está entregue à tarefa quotidiana de
continuar praticando o envenenamento do Barão. E saberemos disso quando o
narrador estiver incorporando, em discurso indireto livre, os artífices do plano de
envenenamento: Budião e Feliciano, que sabiam não haver na “Armação quem
pudesse prosseguir no serviço que Merinha vinha fazendo com tal eficiência que as
notícias da moléstia do Barão chegavam (...) à Armação (...) já o desenganando” (p.
176). Como nem a baronesa nem o cirurgião sabem da conspiração e de seu
alcance, e isso você precisa entender, o narrador também não sabe. Quando, nO
sorriso do lagarto, personagem Ângelo Marcos encontra os cadernos secretos de
sua mulher, Ana Clara; cadernos em que ela escrevia sob o pseudônimo, ou melhor,
sob o manto da personalidade da escritora sócio-erótica Suzanna Fleischman, diz o
narrador, ocupado em dar conta da briga entre o casal, mas incorporando, aqui e ali,
o personagem do marido “traído”, logo incorporando, também, a sua não-
onisciência: “Sim, os cadernos chegaram a rasgar-se bastante, na verdadeira luta
corporal pela posse deles. E ela ainda teve o cinismo de referir-se a uma tal Suzana
Friedman, Fondman, Foster, qualquer coisa assim” (p. 221). — E segui: — Ouça
aqui o que escreveu o Mario Pontes acerca das operações narrativas dO sorriso do
lagarto, mas que bem podem estender-se ao nosso caso.
Ubaldo (...) avança sem precipitações, valendo-se quase todo o tempo de
outros narradores que, mesmo querendo, não poderiam andar mais depressa, pois
é vagarosamente que se dão conta do que acontece ao seu redor e dentro deles
próprios.
(...) ... esse narrador só raramente dá mostras de saber tudo acerca daquele que
lhe requisita a voz. Mantém-se de fora, ou finge que o faz. Ouve e fala. Não
repetindo as palavras que lhe são ditas, mas registrando a ação que se expressa
em palavras e revelando aquilo que só ele ouviu: as razões porque tal personagem
se conduz assim.
585
— Isto — disse-me o interlocutor —, isto é uma estratégia!
584
“Capítulo 2, as naturezas do narrador” (p. 40-43), in O narrador do romance, Rio de Janeiro,
Sette Letras, 1996, p. 40.
585
“As provetas do diabo”, Jornal do Brasil, 4 nov. 1989.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
338
— Do escritor. Não do narrador.
— Ora! Isso...
— Não é a mesma coisa. A nossa tentativa de estabelecer pontes entre o
narrador e a figura pública de João Ubaldo... Pontes, não; cordas, vá lá... Essa
tentativa não se alimenta desse tipo de conexão. João Ubaldo conhece a história que
está escrevendo, mas isso não significa que ele pretenda legar ao narrador o arsenal
de sua ciência. Todo o modo de ser, todo o espírito de Viva o povo... se estrutura
sobre um narrador que não pode e não deve conhecer a história que conta, porque a
história que conta não está pronta! Trata-se de um recurso narrativo, portanto
formal, que entorna e se esparrama sobre um modo de se “ler” tanto a vida histórica
do país quanto o espírito do próprio romance. Viva o povo brasileiro é isso: uma
história que não está terminada, porque a história que está terminada é a História
oficial, com o seu grande H, uma História quase que “pré-preparada”, se me
permite, para servir de modelo de dominação. E João Ubaldo Ribeiro “‘não conta a
história do povo brasileiro, mas a história com h minúsculo’ do povo do Recôncavo
Baiano”,
586
cita Sonia Apolinaro, citando palavras do próprio escritor; “... o
povinho anônimo do Recôncavo, que serve de símbolo para todo o povo brasileiro”,
completa ele.
587
Há também um outro texto, que, 13 anos depois da publicação,
volta a falar de Viva o povo..., mas devido ao projeto de levá-lo às telas. Ouça:
O volume ilustra aquela frase surrada, mas sempre pertinente: retratar o
mundo a partir da aldeia.
É possível mesmo que um país como o Brasil não tenha centro.
588
É provável
que sua realidade, talvez a sua “verdade”, deva ser buscada na periferia. É mais
ou menos o que faz João Ubaldo. Ele come pelas bordas (...). Faz do seu
microcosmo periférico de Itaparica o laboratório de tudo o que se trama e se
tramou no relacionamento entre os que mandam e os que tentam não ser
mandados. É com esse olhar terno, mas não maniqueísta, dirigido para “os de
baixo”, que ele procura captar a essência da saga de um povo.
589
586
“Livro de João Ubaldo pede passagem e sai na Passarela”, O Globo, 13 jul. 1986.
587
— “... o personagem principal do romance, como o próprio título indica, é uma entidade mítica
e fugidia — o povo brasileiro”, escreveu Mário Sérgio CONTI, que o entrevistou (“Um brado
retumbante”, Veja, 19 dez. 1984).
588
— Quando muito — e ele abriu com a mão uma nota e me interrompeu —, teremos um grande
formigueiro, à la Antonio Callado... — disse ele, fazendo referência ao romance Quarup,
publicado em 1967.
589
Luiz Zanin ORICCHIO, “Filme deverá estrear no ano 2000”, O Estado de S. Paulo, 15 out. 1997.
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339
— Se o narrador conhecesse a história que conta, do começo ao fim —
continuei —, ele estaria representando uma espécie de totalitarismo narrativo que
João Ubaldo sempre condenou e que o espírito de Viva o povo... em cada uma de
suas páginas combate.
590
Ninguém conhece a história do romance: não a conhece
o narrador e, arrisco-me até a dizer isso, também não a conhecia o próprio escritor
no momento em que estava escrevendo.
— Você não estará supondo coisas...
— Não, não estou. Digo isso baseado em entrevistas. Ouça: “Aquelas
datas lá não têm nada a ver”, disse João Ubaldo acerca da divisão não-linear das
datas que nomeiam os capítulos. “Até o meio do livro não sabia ainda que rumo
tomar. Só dali em diante é que comecei a formar um índice de razão, porque já
tinha certo controle sobre o trabalho. O começo foi muito espontâneo. Talvez seja
o livro que mais gostei de fazer”.
591
Diz, acerca dos livros que escreve, que não os
planeja: “O Viva o povo brasileiro (...) tem 670 páginas. Os originais tinham
1.670 laudas, pesavam seis quilos, mas eu escrevi de um fôlego só e nem revisei,
sequer passei a limpo”.
592
Também diz: “Eu nunca planejo livro, ele sai da minha
cabeça, é meio psicografado”.
593
Diz ainda: “... os personagens vão chegando e
entrando. (...) Não consigo dissecar os personagens. (...) Não imagino os
personagens fisicamente”.
594
E também não tem a menor idéia do que vai
acontecer com os tipos que inventa: “Já me aconteceu diversas vezes de mudar o
personagem, a forma dele de pensar e agir. Às vezes ele se recusa a fazer algo e eu
tenho que acatar”.
595
Esse modo de proceder do narrador, que vai gradualmente
sabendo das coisas, à medida que os personagens que lhe são próximos também
vão sabendo, e assim aprendendo sobre a vida, reflete, como você viu, e eu insisto
590
— E ilustro isso aqui com um comentário de Lúcia Helena: “... nesta obra riquíssima, ele (...)
mais pergunta do que responde, mais duvida do que afirma, mais dialoga do que tenta impor
uma pretensa e única (e ideológica) ‘verdade’”. E ela continua: “Viva o povo brasileiro não é
um ‘retrato’ ou uma radiografia do Brasil e de seu povo. É, antes de tudo, ficção e como tal se
comporta, metamorfoseando nosso absurdo colossal sem dele extrair lições exemplares (...). Ao
contrário, o texto de João Ubaldo apreende e interpreta rica e obliquamente a realidade
sociocultural brasileira, transgredindo-a na realidade ficcional, urdida pelo imaginário” (“Viva
o povo brasileiro — a questão do nacional...”, O Estado de S. Paulo, 17 fev. 1985
).
591
Beatriz MARINHO, “João Ubaldo... — profissão: escritor”, O Estado de S. Paulo, 30 jun. 1990.
592
Id.
593
Lena FRIAS, “João Ubaldo (...) escreve para não ficar louco”, Jornal do Brasil, 31 jul. 1978.
594
Nahima MACIEL, “João Ubaldo Ribeiro: a arte de escrever”, Correio Braziliense, 14 set. 1997.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
340
nisso, um comportamento de trabalho do próprio escritor. Estamos rodeando essa
idéia desde o início de nossa conversa... Não sei mais quem é que pariu isso... Foi
você, realmente, quem apontou para isso, ou fui eu?
— Você falava que o narrador em Viva o povo... — e ele retomou a
marcha — não é um onisciente absoluto, mas um onisciente relativo, ou seletivo...
— Sim. A onisciência absoluta o colocaria na posição de conhecedor total
da história que ele conta, ou seja, ciente antes de tudo do futuro, e isso não
acontece quase nunca — disse eu —, salvo em um ou outro caso, como esse.
Veja, e abro aqui um parêntese: o narrador está ao lado de Bonifácio Odulfo e de
súbito desloca-se, passando a operar em outro lugar, simultaneamente e com a
clarividência dos narradores clássicos.
... [Bonifácio] Perdeu-se um pouco na paisagem, talvez sentindo o bafo cálido
da inspiração poética, certamente sentindo alguma paz. Porque não era ele, era
Patrício Macário que, muito longe dali, quase à mesma hora em que ele rezava na
Sé, baixava ao chão a cornetada de “corpos ajoelhados” e fazia a oração à Virgem
das Batalhas, Nossa Senhora da Imaculada Conceição, junto a outros oficiais e
praças, a maior parte dos quais morrerá amanhã, ali mesmo nos alagadiços
de um lugar chamado Tuiuti. (p. 421, realcei)
— Fecho aqui o parêntese — e fechei. — Às vezes o narrador pratica um
outro tipo de onisciência, transitando velozmente de onisciência seletiva em
onisciência seletiva, ou seja, de personagem em personagem. Veja aqui: reunião
no gabinete de Amleto Ferreira, com amigos e familiares, data em que Amleto
comunica oficialmente a todos que fará seu filho Patrício Macário, no intuito de
domesticar seu espírito selvático, alistar-se nas fileiras do Exército brasileiro.
Observe o passeio do narrador, que não apenas observa como uma câmera, como
chega mesmo a adentrar algumas mentes:
... Amleto recostado em sua cadeira, com a expressão satisfeita, Vasco Miguel,
levantando-se um pouco impaciente pela hora de sair, o major Magalhães
entregue a graves pensamentos com o olhar perdido janela afora, o monsenhor
imaginando se seria convidado para jantar, Noêmio Pontes tomando notas de
nomes e endereços, Clemente André preocupado com sua batina nova que devia
chegar a qualquer momento, Bonifácio Odulfo silencioso, revoltado, humilhado,
rancoroso... (p. 339)
595
Id.
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341
— Agora eu quero mostrar aqui para você um exemplo em que João Ubaldo
opera uma curiosa inversão — continuei —; uma inversão cuja função, além de fazer
graça, é apontar o estado de fragilidade do próprio narrador. Observe isto:
— Só com a língua cortada — repetiu Dandão.
Mas, como tudo isso? [pensa Budião] Que sabia ele, quem lhe havia contado
essas coisas?, como sabia de Feliciano, fazendo aquela alusão a línguas cortadas?
Quem lhe havia contado, que bobagens tinha inventado Merinha, aquela
desmiolada sem juízo?
— Não é desmiolada, nem sem juízo [disse Dandão]. Ela sabia que poderia
me contar, sabia que devia me contar. (p. 108-181)
— Observe — disse eu — que o narrador é onisciente apenas no que diz
respeito ao universo imaginário de Budião. O outro personagem, Júlio Dandão, é
inacessível ao narrador e também a nós, leitores. E o que faz João Ubaldo: divide
os pensamentos de Budião entre o narrador e Dandão, que, numa atitude típica de
um narrador totalmente onisciente, repete palavras que Budião não disse, mas
pensou. As palavras de Budião em discurso indireto livre não estão na história e
nunca foram ditas. Estão apenas naquele segundo nível diegético: o que
caracteriza a relação do narrador com o leitor.
— Hum. — E o meu interlocutor repetiu o que eu havia dito, só que com
melhores palavras: — Então, estava o narrador a contar ao leitor o que se passava
pela cabeça do negro Budião, quando um personagem, Júlio Dandão,
insolitamente invade esse nível diegético e, exercendo a sua onisciência, transfere
uma informação que pertencia somente a esse nível narrador-leitor, levando-a para
o nível personagem-personagem...
— Muito bem, veja que a brincadeira de João Ubaldo Ribeiro com a
onisciência narrativa continua, sob outras formas, aqui mesmo neste trecho. O que
é que está acontecendo: Júlio Dandão está justamente ali, com Budião, Feliciano e
Zé Pinto, fundando a Irmandade do Povo Brasileiro, e eu só não falo mais dessa
Irmandade propriamente dita, que isso é assunto longo, porque o Francis Utéza já
escreveu muito bem sobre isso.
596
Toda essa seção do livro é um discurso
politicamente articuladíssimo de Júlio Dandão, mas Júlio Dandão, propriamente,
pouco fala. Quem fala é o narrador, e em discurso indireto livre. Você dirá, então,
596
Viva o povo brasileiro ou O espírito da fraternidade”, op. cit.
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seguindo a nossa linha de procedimentos, que o narrador está ali, em discurso
indireto livre, incorporando Júlio Dandão e seu discurso. Mas não. O narrador não
vai meter-se com Júlio Dandão, que este é figura inapreensível e misteriosa, e
seria uma bela contradição entre conteúdo e forma narrativa se topássemos com o
narrador agora dentro da cabeça de Dandão...
— ... ou Dandão dentro da cabeça do narrador, utilizando-se aqui as
palavras encarnação e incorporação, a servir cada um para contemplar o ponto de
vista que se está adotando.
— Sim, sim — concordei, impaciente. — E veja que o narrador, sem ser
onisciente com relação a Dandão, mas incorporando, isto sim, os seus ouvintes, vai
dando conta de duas tarefas ao mesmo tempo: dos conteúdos verdadeiramente
revolucionários do discurso de Dandão e de como esse discurso vai sendo
recepcionado por Budião, Feliciano e Zé Pinto, que, e cito, “continuaram sem
compreender direito o que ele estava dizendo, mas não sentiram vontade de perguntar
nada, como se tivessem certeza de que acabariam compreendendo” (p. 211).
— E há uma outra coisa — lembrou-me o meu interlocutor. — Como você
mesmo disse, o narrador não deixa Júlio Dandão falar, e por quê? Mais uma vez
podemos notar aqui aquilo que menciona a Eneida Leal Cunha, lembra? Foi você
mesmo que a citou... Os personagens sem voz e sem poder acabam por requerer
do narrador uma maior presença vocal, como se esses personagens não tivessem
condições de, por si, exprimir-se...
— Bem lembrado, mas não sei se isso se aplica ao caso de Júlio Dandão,
que é, dos personagens do grupo dos “sem voz” e dos “sem nada”, um dos mais
articulados... Ele tem as palavras que faltam aos outros.
— Hum, não sei... — ponderou ele. — Ele é, isto sim, dos mais calados.
Nós não ouvimos os seus discursos. Quem ouviu foram os três negros da Casa da
Farinha. Lembre-se de como termina essa seção: “... essa Irmandade, se bem que
mate e morra, não fala” (p. 212). A presença do narrador aqui, não para
representar Dandão, porque você já me convenceu de que o narrador está
representando os assustados ouvintes... Mas a presença do narrador a falar no
lugar dele é fundamental...
— E por quê? Por quê? — insisti. — Não porque ele seja um personagem
sem condições de exprimir-se... Por quê? Por causa do teor do que ele estava
dizendo. O narrador acaba, com a sua presença vocal, mediando conteúdos que
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resultariam muito pouco convincentes se saídos diretamente da boca de um
homem como Dandão.
— O que, de certo modo, foi o que Ubaldo não fez com Maria da Fé,
colocando-a para falar, e para falar muito bem, talvez até bem demais...
— Sim — tive de concordar. — Agora ouça:
... Dandão virou-se para ele e disse (...) que efetivamente tinham matado o
barão. Não só tinham matado o barão, como matariam muitos mais barões e
fariam outras coisas igualmente portentosas. Observassem bem (...). Morrendo
esses senhores de terras, aconteceriam duas coisas: a primeira era que as terras
poderiam ser divididas por herdeiros, multiplicando-se em lotes menores, já não
tão capazes de sustentar aquela riqueza e enfraquecendo a todos os proprietários,
além de lançar entre pretendentes a discórdia pela cobiça; a segunda era que
estavam sempre esses senhores endividados e hipotecados (...), devendo em letras
e obrigações mais do que valia a produção de suas terras e fazendas, de maneira
que os credores (...) é que se apossariam delas, alguns das máquinas, outros das
plantações, outros das casas, outros dos negros, tornando confusa a propriedade e
complicada a produção. (p. 209-210)
— Agora veja como Francis Utéza traduz isso em outras palavras, uma
tradução, diga-se de passagem, mais que desnecessária, dada a clareza do
raciocínio do narrador a reformular as palavras de Dandão:
... Contra a dupla injustiça em que a discriminação racial encontra a
segregação sócio-econômica, o orador estipula a eliminação física dos
latifundiários, o que, de acordo com a sua teoria, acarretaria a curto prazo as
dissensões internas entre os múltiplos herdeiros e, a médio prazo, a falência de
um sistema incapaz de produzir a mais valia necessária para cobrir o
endividamento crônico provocado pelo funcionamento baseado no tráfico
negreiro.
Tal raciocínio de perito em ciências econômicas pode surpreender na boca de
um artesão dos anos 1827.
597
— Não, não creio que seja desnecessária... — contrapôs o meu
interlocutor. — A tradução de Francis Utéza é necessária, sim, porque faz um
contraste com o discurso de Dandão, do modo como ele foi dito pelo narrador, ou
seja, do modo como ele foi entendido pelos ouvintes da Casa da Farinha. Esse
raciocínio “de perito em ciências econômicas”, como se disse, está bem mais
simplificado nas palavras do narrador...
597
Id., p. 33.
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— É verdade — disse eu. E pensei: isto é mesmo uma guerra. O meu
interlocutor gosta de discutir, e eu preciso aprender a recuar. E continuei
pensando: esse jogo com a privacidade do narrador, porque é isso mesmo o que
aconteceu: uma invasão da privacidade do narrador... Esse jogo não foi gratuito. A
escolha do personagem Júlio Dandão é acertada, porque desse modo, e nenhum
modo poderia ser mais eloqüente do que esse, João Ubaldo Ribeiro conseguiu
passar com precisão a idéia de que Júlio Dandão era considerado pessoa de
poderes fantásticos e, portanto, bastante capaz de um exercício de onisciência
como aquele: “Seu nome indicava os mais poderosos pesadelos, não se
desconhecendo tampouco que ele nunca se benzeu uma vez na vida, nem nunca
respeitou qualquer cruz” (p. 177), disse eu para mim mesmo.
— E você sabia que “dandão”, a propósito, quer dizer pesadelo? — disse
ele, adivinhando meus pensares. — Quem observou isso, porque teve o cuidado
de ir lá ao dicionário, foi o Francis Utéza nesse ensaio que estamos lendo.
598
— Sim, sim — disse eu. E retomei, cutucando o meu interlocutor: — O
grande interesse que tem para mim esse narrador sem cabeça mora justamente na sua
capacidade de potencializar, com a sua forma de narrar, os conteúdos de sua
narrativa... Você pegue um romance como Os Maias, por exemplo, em que o Eça já
está bem mais versátil com seu narrador extradiegético do que estava com O primo
Basílio e O crime do padre Amaro. NOs Maias o narrador funciona com mais
regularidade em discurso indireto livre, é muito menos onisciente e exerce bem mais
focalizações internas do que nos outros dois. Mesmo assim, o narrador é sempre o
mesmo, tem sempre a mesma fala, o mesmo vocabulário, o mesmo tom e a mesma
consciência, a despeito da variedade de situações e da variedade de personagens...
— É verdade... Viva o povo brasileiro e, em menor escala, O feitiço da ilha
do Pavão têm grande quantidade de personagens, todos muito diversos entre si,
psicológica e contextualmente, e para cada um o narrador se comporta de uma
maneira, narrando eventos sob formatos narrativos que se adaptam aos eventos
narrados — fez o meu interlocutor. — Mas... — ia começar ele, mas desistiu.
— Bom... Veja aqui este caso — mudei de assunto. — Desde que a filha
de Vevé com o Barão de Pirapuama nasceu, Leléu, ao princípio ainda tímido, mas
depois completamente assumido, não largou mais da menina, de nome Dafé,
598
Id., p. 30.
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Maria da Fé, tornando-se cada vez o seu avô postiço, e é desde então que o povo
diz que Leléu se transformou em dois: um Leléu do jeito que sempre foi: serelepe,
lépido, fagueiro, manhoso e cheio de malícias, artimanhas e as piores intenções, e
outro Leléu, esse bobo, carinhoso, generoso, paciente e orgulhoso da neta. Ora,
toda aquela passagem com Leléu ao lado de Luiz Tatu, preparando-se para ir à
mata caçar um tatu a pedido da neta Dafé, toda aquela passagem é narrada tendo-
se em conta essa idéia de existirem dois Leléus. O narrador então vai contar aqui
duas histórias, cada uma delas protagonizada por um Leléu, e através do recurso
cinematográfico da montagem paralela. O tempo presente desenvolve um Leléu
no barraco de Luiz Tatu e em seguida o mesmo Leléu nos matos, a caçar o tatu. O
narrador, ao mesmo tempo, vai dando conta dos pensamentos de Leléu e das
lembranças de Leléu acerca do nascimento de seu afeto por sua netinha Dafé. É
este então o segundo Leléu, o avô-coruja-bobo, e o narrador prioriza visivelmente
o segundo Leléu, e assim incorporando visivelmente o segundo Leléu. Vou ler, e
aqui começam a deambulação de Leléu e o lento deslocamento da atenção do
narrador: do barraco de Luiz Tatu e do contexto da caçada para as lembranças do
avô de Dafé, o avô-coruja-bobo:
... Por causa de que Nego Leléu estava metido nessa embaixada era coisa que
nem ele mesmo sabia direito, talvez fosse por causa do efeito da tal história de ele
estar virando dois (...). (...) dois Leléus completamente diferentes, na fala, no jeito
de andar, na cara, nas maneiras (...).
— Mentira desse povo — pensou em voz alta, e Luiz Tatu, que estava
mexendo no fogo e era duro de ouvido, achou que ele perguntara pelo aipim.
Ainda demora — disse (...). (p. 250-251)
— E Leléu continua a pensar, completamente alheio a Luiz Tatu e à
caçada ao tatu, acerca de estar ele a virar dois, ou não. E começou a recordar o
parto precoce de Vevé, o nascimento de Maria da Fé e a aporrinhação em que ele
ficou por ter de sustentar agora não uma, mas duas mulheres. Isso toma algumas
páginas, e em seguida o narrador cede lugar a outro narrador, o que está ocupado
com o Leléu e com a caçada ao tatu, este bem mais “preguiçoso” que o outro, o
que está envolvido nas deambulações: “Leléu sorriu outra vez, reparou apenas
vagamente nos preparativos que Luiz Tatu fazia, remexendo miuçalhas
poeirentas, pondo uma faca à cinta” (p. 255, realcei). E o narrador segue,
contando a história principal, a história de como Leléu se tornou menino e avô-
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coruja, de modo retrospectivo e em segundo plano, embora com muito mais
detalhes e incorporações do que a outra história, a da caçada, narrada em primeiro
plano mas com um narrador praticamente ausente, tão ausente que, em
determinado ponto das duas histórias — continuei —, o narrador ocupado com a
descrição da caçada se dá conta de que afinal não fizera o seu trabalho de narrar
tão bem quanto o outro, dedicado às lembranças do negro Leléu-avô. Veja aqui:
“Aliás, pensou Leléu, quem sabe de alguma coisa, a não ser o sujeito que é avô?”
(p. 263). Agora o outro:
— O tição se sacode assim — falou Luiz Tatu, agitando uma acha de lenha
com uma brasa na ponta que retalhava a escuridão, e Leléu tomou um susto. Pois
não é que já estava nos matos, já havia comido o aipim, ainda tinha uns
cisquinhos de farinha com cabaú pelas dobras das bochechas, os cachorros
já estavam trabalhando e não vira nada? Reparou que também levava um
tição, embora apenas pendurado na mão direita... (p. 263, realcei)
— Temos então para essa longa passagem da caçada e das lembranças dois
Leléus, dois narradores e dois tempos narrativos. O Leléu das lembranças, o
Leléu-avô, não sabia o que fazia o outro Leléu, o Leléu-caçador, assim como
também o narrador que optou por incorporar apenas um dos Leléus não sabia o
que descrevia o outro narrador e o que fazia o outro Leléu. Nesse trecho que eu li
temos então a coesão, o encontro dos dois narradores e a demonstração mais que
evidente da minha idéia da onisciência relativa do narrador sem cabeça.
— Dito — disse ele, e me serviu de mais café. — E o lugar de Viva o povo
brasileiro no conjunto da obra de Ubaldo... Por que essa posição de destaque?
— Você mudou bruscamente de assunto... Temos de abrir um novo item
para a nossa conversa... Hum... Há muitas respostas para essa pergunta. Veja o
que disse o próprio João Ubaldo, recapitulando a sua experiência logo após a
publicação do romance:
— Imaginei que seria um livro importante, sim, e até fiquei um pouco
decepcionado com a recepção inicial a ele, que não considerei à altura do esforço
que eu tinha feito. Escrevi ao meu então editor, Sebastião Lacerda, em tom de
brincadeira e seriedade ao mesmo tempo: “Eu fiz todas as minhas gracinhas,
usei tudo o que eu sei, e não estou vendo o resultado”.
599
599
“João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002, realcei.
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— Em cima dessa declaração... — começou o meu interlocutor
— Ah! E ouça aqui também, desculpe-me por interromper, outra
declaração sobre Viva o povo..., totalmente diversa desta que acabei de ler, que
com ela entra em choque e na qual percebemos aquela atitude de des-solenização
típica do escritor: “O que eu me lembro mais é que foi o segundo livro que eu
traduzi para o inglês,
600
depois de Sargento Getúlio. E foi mais fácil de escrever
do que os que vieram depois”.
601
— Bom — disse ele —, em cima da primeira declaração eu faço duas
perguntas: a primeira diz respeito à sensação que ele teve de que seria um livro
importante. Por quê? A segunda é esta: quais são essas “gracinhas” que alega ter
feito e para as quais não viu resultado?
— João Ubaldo diz que Viva o povo brasileiro não é um romance
histórico.
602
Estamos voltando àquilo que conversamos no início, acerca da força,
pretensiosa ou não, do título. Um título como Viva o povo brasileiro não pode, em
princípio, encabeçar um romance que não seja histórico. O livro é “quase uma
‘correção histórica’ do Brasil”, escreveu Beatriz Cardoso.
603
“O romance mete em
seus lugares algumas verdades...”, escreveu João Antônio.
604
“Imaginei uma espécie
de metáfora do povo brasileiro, a partir de Itaparica. (...) Glauber deu a maior força,
fez um discurso em favor do povo brasileiro. No livro, falo de um povo à beira do
abismo”,
605
escreveu João Ubaldo Ribeiro. Temos de começar por aqui.
600
— E disse João Ubaldo sobre as dificuldades de encontrar uma palavra inglesa para “mucama”:
“... amarguei decepções rudíssimas, como na vez em que recorri a Gilberto Freyre e Samuel
Putnam. (...) Procurei uma edição em inglês de casa Grande & Senzala que foi traduzido por
Samuel Putnam, tradutor da pesada, responsável também pelo texto em inglês de Os sertões.
Tinha! Alvíssaras! Gilberto Freyre fala em mucamas, logo Samuel Putnam traduziu mucama,
logo este que vos fala achou a palavra. ¶ Achei nada. O Putnam taca lá uma nota de pé de
página, explicando o que é mucama, assim como senzala, quilombo e uma porção de outros
termos” (“Desventuras de um tradutor” (p. 225-230), in Sempre aos domingos, op. cit., p. 230).
601
Daniela NAME, “As ilhas de Ubaldo”, O Globo, 3 ago. 1997.
602
— E diz isso, aparentemente, sozinho, porque é quase uma unanimidade o caráter histórico do
livro: “Viva o povo brasileiro é uma espécie de distintivo ficcional desse processo formador.
Valendo-se do recurso fantástico de uma alma que reencarna em habitantes de Itaparica, Bahia
— do tempo da colonização da ilha pelos holandeses (1647) até a ditadura militar, já por volta
do final do governo Geisel (1977) —, João Ubaldo desfia em estilo barroco vários momentos
decisivos da história do Brasil — Independência, Guerra do Paraguai, proclamação da
República, Estado Novo” (Sergio Vilas B
OAS, “... o escritor carioca-baiano tenta conciliar...”,
Gazeta Mercantil, 18 e 19 mar. 2000).
603
“O que sei é que começo pelo título”, Tribuna da Imprensa, 11 ago. 1986.
604
“A falsa fama do bom baiano João Ubaldo”. O Estado de S. Paulo, 14 out. 1986.
605
“João Ubaldo às voltas com mil páginas”, O Estado de S. Paulo, 11 set. 1983.
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— Temos de começar — disse ele, devagarinho — por definir o que seja
“histórico”...
5.8. AS HISTÓRIAS DE UM ROMANCE HISTÓRICO QUE SE QUER ESTÓRIA
— Um professor meu, Júlio Diniz, disse, em sala de aula, que Viva o
povo... foi o último grande romance brasileiro... — comecei, para ver o efeito de
minhas palavras.
— É uma afirmativa peremptória... — e o meu interlocutor franziu a testa.
— Que não deve ser interpretada de maneira peremptória — disse eu. — Não
se trata de um juízo de valor, a dizer que de 1984 para cá não se escreveram grandes
romances. Escreveram-se, mas nenhum com a proposta de uma abrangência como a
de Viva o povo..., que decide contar muitas longas histórias e todas elas esbarrando,
quer queira o autor, quer não queira o autor, em aspectos da história nacional. Viva o
povo... é o último grande romance brasileiro porque é o último romance histórico
brasileiro. É uma questão de embocadura...
606
João Ubaldo Ribeiro disse que
começou a contar a “história de um falso herói de guerra da Independência”, e se deu
conta de que “tinha começado ‘com embocadura de livrão’”.
607
Ouça:
(i) — Meu novo romance, Viva o povo brasileiro, não é um romance histórico.
Todo romance é um delírio, como toda obra de arte é um delírio. A redução desse
delírio a categorias objetivas é sempre uma ação empobrecedora....
608
(ii) Ele explica que, embora venha mantendo um razoável background, “para
evitar falar em Deodoro na época de Dom Pedro I” —, não está fazendo qualquer
pesquisa de linguagem ou de costumes, e muito menos consultando documentos e
outras fontes, para que o livro não acabe se tornando “uma espécie de tese de
mestrado romanceada”.
— Na realidade — diz ele —, o meu assunto é um pouco o povo brasileiro,
porque faço de Itaparica uma metáfora do Brasil em geral.
609
606
— E foi também pensando na questão da embocadura — observei, em nota — que João Carlos
Teixeira G
OMES mencionou, ao lado de Viva o povo..., outros trabalhos literários importantes.
E citei: “... só quatro outros romances com ele rivalizam pela densidade e pela vastidão do
projeto romanesco: As minas de prata, de José de Alencar; Grande sertão: veredas, de
Guimarães Rosa; O tempo e o vento, de Erico Verissimo; e, finalmente, a Pedra do reino, de
Ariano Suassuna. Cada um à sua maneira, todos eles reconstituem a saga da formação
heterogênea e rica do Brasil” (“João Ubaldo e a saga do talento triunfante”, op. cit., p. 100).
607
Vivian WYLLER, “João Ubaldo Ribeiro e o último dos livros que ‘tem’ de escrever”, Jornal do
Brasil, 30 set. 1983.
608
“João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985.
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— A professora Eneida Leal Cunha começou muito bem esta discussão —
continuei —, quando referiu a negativa de João Ubaldo acerca do status de
romance histórico atribuído a Viva o povo..., e a contrariou, afirmando que o
romance é, sim, um romance histórico, e usa como um dos argumentos a
“permanente articulação da trajetória das personagens a acontecimentos ou
versões estabelecidos e estabilizados pela historiografia oficial”,
610
e exemplifica:
a “catequese, a invasão holandesa, a independência da Bahia, o regime
escravagista e sua abolição, a proclamação da República e o golpe de 1964”.
611
Ela diz ainda... Você está me acompanhando?
— Estou, estou... Mas estou pensando também neste artigo do José Castello,
que também cita Italo Moriconi e outros. Falam de espécies diferentes de
embocadura, com especial atenção à estética já fragmentada e fragmentária daquela
literatura dos anos 80, em contraposição àqueles que seriam já uma espécie de
exceção aberrante, como Viva o povo... Ouça — e o meu interlocutor leu.
Por que não surgiram grandes romances nos anos 80? “Porque nossos
romancistas parecem ter desistido da idéia de encontrar o Romance Brasileiro, tal
qual foi concebido desde os anos 40”, propõe o professor de literatura Ítalo
Moriconi Jr. (...). No lugar da grande obra que sirva de retrato à nação, os
romancistas passaram a engendrar pequenas obras que captem aspectos
propositadamente parciais do Brasil moderno. “Os ficcionistas, hoje, não querem
mais produzir a grande obra. Preferem projetos localizados, que proponham a
fragmentação ao invés da unidade. Que busquem o mínimo detalhe ao invés do
609
José Carlos TEIXEIRA, “João Ubaldo: a partir da calma de Itaparica...”, O Globo, 7 set. 1983.
610
— Essa articulação da trajetória das personagens a acontecimentos estabilizados pela
historiografia oficial é, no entanto, sempre desarticuladora. — E citei para ele o que escreveu
Luiz Fernando Valente, para quem háuma tentativa consciente da parte dos escritores
brasileiros das décadas de 70 e 80 de se distanciarem de tudo o que fosse ‘oficial’. Tal atitude
reflete-se na predileção (...) por histórias que focalizam os socialmente marginalizados (...), e
por personagens concebidos como indivíduos atípicos, movimentando-se num espaço político e
social marcado por descontinuidades e fragmentação (...). Desse modo, o retorno ao romance
histórico pode ser visto como uma resposta às condições sociais e históricas das décadas de 70
e 80. Perplexos diante do fato de que a definição otimista do Brasil, baseada na harmonia e na
unificação, do modo como foi forjada no século XIX e manipulada tanto pela ditadura
varguista quanto pelo governo militar de 1964-1985, contradiz a realidade de uma sociedade
que é fragmentada política e socialmente, os escritores brasileiros se voltaram para o passado
em busca de explicações para as divisões percebidas no presente” (Luiz Fernando V
ALENTE,
“João Ubaldo Ribeiro: a ficção como história” (p. 181-203), in Zilá BERND (org.) & OUTROS,
João Ubaldo Ribeiro — Obra seleta, op. cit., p. 196. Segundo nota do autor, esse texto foi
publicado originalmente em inglês como “Fiction and history: the case of João Ubaldo
Ribeiro”, in Latin American Research Review, University of Texas Press, 1993).
611
“O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 150.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
350
todo”, assegura Ítalo.
... Os textos de Noll lembram os filmes inóspitos de um Win Wenders,
narrativas que fazem uma opção radical pelo empobrecimento das salvaguardas
do escritor, pela minimalização da parte da realidade que a escrita pode abarcar.
“É uma escrita rarefeita, que trata quase que só do irrelevante”, define Ítalo. “É
uma rarefação quase completa do ato de contar”.
... “Ele [Silviano Santiago] e Noll fazem uma ficção muito mais violenta e
demolidora do que os romances pretensamente totalizantes, que desejam ser
enormes painéis do social”, afirma, sem titubear, o poeta Armando Freitas Filho
(...). “Não querem fazer romances-painéis, mas dar vôos rasantes e determinados
em cima de pequenos temas. Mesmo se tornando antiépicos, estes escritores se
tornam muito mais eficazes”.
“Acho que surgiram grandes romances nos anos 80”, enfatiza o escritor
Ignácio de Loyola Brandão, autor do consagrado Zero (...). “Livros como Viva o
povo brasileiro, de João Ubaldo, ou A grande arte, de José Rubem Fonseca, são
geniais”.
“... É uma literatura que não se quer grande arte. Ela perdeu a esperança de
servir de moldura ao país, e deseja ser apenas um diminuto, mas penetrante, foco
de luz sobre a tela”.
612
— A professora Eneida Leal diz ainda que João Ubaldo não o considera
um romance histórico porque provavelmente ele, autor, tem como referência
básica de romance histórico aquele modelo “consagrado no século passado”,
613
século XIX, na verdade, no século retrasado...
— Mas por que ela diz isso? Em que se baseia para afirmar que a
referência de Ubaldo são os modelos de romance histórico do século XIX?
— Não sei. Será porque foi um século produtivo em matéria de romances
históricos? — perguntei. — Será porque os modelos de romance histórico do
século XIX são abordagens tradicionais, “que o autor, na mesma entrevista,
qualifica de colonizadas”,
614
segundo cita a própria Eneida? Não sei. Acho que a
negativa de João Ubaldo se baseia em algo mais simples, mais direto, mais
intimamente relacionado ao corpo ficcional de Viva o povo brasileiro.
— A própria professora Eneida Leal Cunha não teria chegado perto desse
“algo mais simples, mais direto, mais intimamente relacionado ao corpo ficcional”
do romance — perguntou o meu interlocutor —, quando observou que Ubaldo faz
questão de dizer que não empreende qualquer tipo de pesquisa histórica?
612
José CASTELLO, “Os anos 80 deram romance?”, Jornal do Brasil, 20 fev. 1988.
613
“O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 150.
614
Id., p. 151.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
351
— Acredito que sim. Veja o que diz ele: “Não fiz pesquisa justamente
porque não me interessava o rigor histórico, nem a historiografia oficial”.
615
— Penso que estão os dois a ver de dois modos diferentes a significação
de ser histórico. Ser um romance histórico, para Ubaldo, é ter sido feito a partir do
rigor historiográfico, é ter sido alicerçado em extensíssimas pesquisas históricas, é
estar todo ele eivado de teses subjacentes à ficção ela mesma, é manter com a
chamada História oficial uma relação íntima e...
— ... corroboradora, ou seja, colonizada, e deve ser por isso que João
Ubaldo não o vê como histórico. Como diz a Rita Olivieri-Godet, o romance é
um... — e li.
... libelo contra a historiografia tradicional e sua cumplicidade com o poder;
posiciona-se contra uma história que silencia, através de uma escrita unificada,
o movimento vivo e plural da memória coletiva; bate-se contra uma história que
aprisiona, ao impor o pensamento de um grupo como o pensamento da sociedade
como um todo.
616
— Assim é mais fácil entender por que razão a gente pode afirmar que
João Ubaldo olha para Viva o povo... como um romance até mesmo anti-histórico.
E ser um romance histórico para a professora Eneida Leal vai significar —
continuei — a incorporação de...
... tendências recentes, como a vontade de construir um contraponto à história
dos dominantes que possibilite a expressão dos dominados, ou ainda construir
uma história das mentalidades, que relegue a um plano secundário o acontecido
para penetrar e espraiar-se na malha complexa dos discursos, das
representações, do simbólico.
617
— Nesse caso — disse o meu interlocutor —, e principalmente se
levarmos em conta o último ponto da citação da Eneida Leal, ou seja, que um
romance histórico tem por força penetrar e se espraiar na “malha complexa dos
discursos, das representações, do simbólico”, nesse caso — e fez uma pausa —,
vou novamente citar aqui o José Saramago, que defende a idéia de que “toda a
615
“João Ubaldo Ribeiro, história e ótica popular”, O Estado de S. Paulo, 12 abr. 1985.
616
Rita OLIVIERI-GODET, “Memória, história e ficção em Viva o povo...”, op. cit., realcei.
617
“O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 152, realcei.
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352
ficção literária (e, em sentido mais lato, toda a obra de arte) não só é histórica,
como não poderia deixar de o ser”.
618
— O que me parece importante nessa discussão — eu disse — não é tanto
se Viva o povo brasileiro é ou não é um romance histórico, mas sim quando é
histórico e quando não o é. A professora Eneida Leal Cunha, como eu já disse a
você, sustenta que o romance é, sim, histórico...
... em especial quando se constata que o gênero acontece na atualidade,
incorporando as transformações do próprio discurso histórico ou, o que no caso
parece mais procedente, incorporando o questionamento, a desconstrução e o
descentramento aos quais a contemporaneidade submete a história tradicional.
619
— E o que me interessa aqui — continuei — são justamente as relações
que a gente pode estabelecer entre momentos diferentes do romance e o
comportamento do narrador diante desses momentos.
— Em outras palavras, interessa a você identificar os momentos em que o
narrador ele mesmo se comporta, ou não, como um narrador histórico...
— Sim. E você muito bem observou que João Ubaldo e Eneida têm
conceituações diferentes para a palavra histórico. Talvez eu prefira trabalhar com
a noção do próprio João Ubaldo. E nesse caso o narrador sem cabeça será
histórico justamente quando percebermos nele o rigor historiográfico, as
ideologias subjacentes à ficção ela mesma, a manutenção de uma versão já
legitimada da História e, acima de tudo, a postura do nacionalismo idealizante,
alicerçado em um discurso patriótico colonizado, encaixotado e pronto para a
exportação. Esse discurso patriótico colonizado é veiculado através de dois
personagens, parentes entre si mas situados em dois tempos diferentes, séculos
XIX e XX: João Popó e Ioiô Lavínio.
— E esse narrador será anti-histórico justamente quando não estiver a
serviço da versão colonizadora; quando estiver atento à micro-história, à história
das mentalidades de que fala a professora Eneida, quando for — disse ele,
frisando a palavra — histórico no sentido mais atual do termo?
618
José SARAMAGO, “O tempo e a história”, Jornal de Letras, 27 jan. 1999, p. 5, citado por Rita
OLIVIERI-GODET, “Memória, história e ficção em Viva o povo...”, op. cit.
619
“O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 152.
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353
— Sim. Agora, veja bem: o nosso foco aqui são as estratégias de nosso
narrador sem cabeça; é com o narrador e com aquilo que ele diz ou narra que
quero preocupar-me, e o nosso narrador sem cabeça é um narrador sem um
padrão de comportamento, o que equivale a dizer que o narrador sem cabeça não
está comprometido com esta ou aquela ideologia, e isso é o que torna Viva o povo
brasileiro um romance narrativamente dinâmico; um romance que abre espaço
para que seu narrador seja, por exemplo, histórico em um momento e anti-
histórico em outro, no sentido que estamos chamando de “sentido ubaldiano”, ou
“ubáldico” do termo histórico, entenda-se...
— Então você vai discordar do que escreveu a Rita Olivieri-Godet, que
menciona, em seu artigo sobre Viva o povo..., a “solidariedade entre o discurso do
narrador e o das personagens populares”?
620
— perguntou o meu interlocutor. —
Segundo o seu ponto de vista, o narrador está solidário com o personagem que
está incorporando no momento, não é isso?
— Sim, é isso mesmo — disse eu. — E essa idéia da Rita Olivieri-Godet
me parece muito menos uma solidariedade do narrador do que uma direção
principal de todo o romance; e quando eu falo em “direção principal de todo o
romance” eu não estou falando mais de narrador mas sim de autor implícito, cujo
conceito é aqui central. Segundo a noção de autor implícito, “implied author”, do
teórico inglês Wayne C. Booth, o autor pode escolher disfarçar-se, sim, mas não
pode escolher nunca desaparecer.
621
O autor implícito de Booth não constitui
apenas uma idéia genérica de homem, criada pelo autor real, que podemos chamar
a “pessoa que escreve”, mas uma versão implícita que ele constrói de si mesmo
durante a escrita, uma espécie de “segundo eu”
622
cuja presença no texto é captada
620
Rita OLIVIERI-GODET, “Memória, história e ficção em Viva o povo...”, op. cit.
621
“Telling and Showing”, in The Rhetoric of Fiction, Chicago & London, The University of
Chicago Press, 1961, p. 20. No original: “... though the author can to some extent choose his
disguises, he can never choose to disappear”.
622
— Booth cita, em nota, um trecho da aula inaugural de Kathleen Tillotson na Universidade de
Londres e publicada como The Tale and The Teller (Londres, 1959, p. 22): “Writing on George
Eliot in 1877, Dowden said that the form that most persists in the mind after reading her novels
is not any of the characters, but ‘one who, if not the real George Eliot, is that second self
who writes her books, and lives and speaks through them’. ‘The second self’, he goes on, is
‘more substantial than any mere human personality’ and has ‘fewer reserves’ (...)” (The
Rhetoric of Fiction, op. cit., nota nº 8, realcei). E traduzo: “Escrevendo sobre George Eliot em
1877, Dowden diz que a forma que mais permanece na mente depois da leitura de seus
romances não é a de nenhum personagem, mas a de ‘alguém que, se não a própria George
Eliot, aquele segundo eu que escreve seus livros e vive e fala através deles’. ‘Este segundo eu’,
(cont.)
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354
pelo leitor e absorvida como se fosse um dos rastros, ou um dos braços, o mais
importante, da pessoa que escreve; como se fosse um feixe dos seus diferentes
aspectos.
623
A noção de autor implícito não deve ser vista como mais um
fantasmático ser, o terceiro, situado entre a pessoa que escreve e o narrador,
624
embora ele lá esteja, a meio caminho entre os dois. O narrador, justamente porque
parece não se dar conta de seu papel de mediador entre o autor real e o leitor,
justamente porque não configura uma mediação suficientemente eloqüente,
precisa da ajuda do autor implícito, que assim..., estou citando..., inibe a idéia de
que é facultado ao leitor um acesso direto, através do texto ficcional, às intenções
e às ideologias do autor real.
625
Além disso, a relevância da noção de autor
implícito para a compreensão de um texto não deve partir da pergunta acerca de
sua existência ou não, neste ou naquele caso, mas sim da pergunta: o que é que se
ganha com essa noção? Ganha-se uma maneira de, com um único termo, nomear e
analisar o intento
626
textual de uma narrativa de ficção...
— ... e sem o recurso ao biografismo — disse ele.
— Nesse texto da Rita Olivieri-Godet — continuei, ignorando — há
referência às palavras da professora Lúcia Helena, para quem “a obra focaliza a
História como embate contínuo de uma argumentação discursiva em que
vencedores e vencidos tentam inscrever o texto de suas versões”.
627
E o narrador,
aqui, serve a ambos. A própria Rita complementa essa citação da Lúcia Helena,
ele continua, é ‘mais substancial que qualquer mera personalidade humana, e tem bem menos
reservas’ (...)”.
623
Sobre o autor implícito em Wayne C. Booth, ver especialmente as páginas 70 a 76, The
Rhetoric of Fiction, op. cit.
624
— Como escreveu Seymour CHATMAN: “Few reject the distinction between real author and
narrator, but some wonder why a third, seemingly ‘ghostly’ being should be situated between
the two” (“In Defense of the Implied Author” (p. 74-89), in Coming to Terms, op. cit., p. 74). E
traduzo: “Poucos rejeitam a distinção entre autor real e narrador, mas alguns perguntam por
que um terceiro, aparentemente fantasmático, ser deveria situar-se entre os dois”.
625
“Positing an implied author inhibits the overhasty assumption that the reader has direct access
through the fictional text to the real author’s intentions and ideology” (id., p. 76, realcei).
626
— Frisemos aqui a distinção de Seymour Chatman entre intento (“intent”) e intenção
(“intention”): “I use ‘intent’, rather than ‘intention’, to refer to a work’s ‘whole’ or ‘overall’
meaning, including its connotations, implications, unspoken messages” (id., p. 74). E traduzo:
“Eu uso ‘intento’, ao invés de ‘intenção’, para referir um significado geral e ‘acima de tudo’ de
todo o trabalho, incluídas as suas conotações, implicações e mensagens não ditas”.
627
A narrativa de fundação: Iracema, Macunaíma e Viva o povo brasileiro, Letras 1,
Universidade Federal de Santa Maria, RS, 1991, p. 80-94, citado por Rita OLIVIERI-GODET,
“Memória, história e ficção em Viva o povo...”, op. cit.
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afirmando ser também “verdadeiro o fato de que ela [a obra] não permanece
neutra em relação a essa discussão”.
628
Então — eu disse —, é a obra que não
permanece neutra; é a obra que se orienta solidariamente para os dominados, os
sem voz, os personagens populares; não o narrador. A obra compromete-se, sim,
com uma ideologia libertadora baseada na justiça social etc. etc. O narrador, não.
O narrador é sem cabeça. O autor implícito, não.
— Vamos entrar no texto?
— Com prazer. Gostaria de sugerir uma relação entre o comportamento
narrativo caracterizado pela onisciência absoluta e o status de histórico, no sentido
ubáldico. Quando o narrador, e eu já citei esse trecho, diz, referindo-se aos oficiais
e praças sob o comando de Patrício Macário, que “a maior parte (...) morrerá
amanhã, ali mesmo nos alagadiços de um lugar chamado Tuiuti” (Viva o povo...,
p. 421), ele está colocando a si próprio em uma posição privilegiada em relação
não apenas à história do romance, mas à História dos fatos referentes à Guerra do
Paraguai, demonstrando ao leitor que ele a conhece e que desse modo, e não de
outro, ela aconteceu, porque ele está, afinal, manuseando uma história já escrita e
já institucionalizada. Ele a corrobora e se torna, dessa maneira, histórico.
— A famosa Batalha de Tuiuti — disse o meu interlocutor — aconteceu,
tal como nos informa o próprio romance Viva o povo brasileiro, no dia 24 de maio
de 1866. Pergunto: a mera presença desse dado, historicamente verificável, por si
só não tornaria o livro histórico, bem como outros dados históricos relevantes,
todos corretamente encaixados? E faço outra vez a mesma pergunta que fiz há
pouco e você não respondeu...: quando Ubaldo diz ao seu editor, naquele trecho
que você leu para mim há pouco, que ele imaginou que o livro seria importante,
sim: “Eu fiz todas as minhas gracinhas, usei tudo o que eu sei, e não estou vendo
o resultado”.
629
Que gracinhas são essas? O que significaria este “... usei tudo o
que sei”? Por que seria o livro importante? Mais uma pergunta: podemos arriscar
dizendo que as “gracinhas” e esse “tudo o que sei” são justamente o esforço de
pesquisa e, de certa maneira, o esforço narrativo de Ubaldo em juntar, tão
magistralmente como o fez, informações históricas estabilizadas com ficção,
ficção que é, por si, desestabilizadora?
628
“Memória, história e ficção em Viva o povo...”, op. cit.
629
“João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002.
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— Creio que sim — eu disse —, e o narrador está impregnado dessa
postura histórica oficial quando esse mesmo narrador está às voltas com um
personagem que representa todo ele a corroboração do universo histórico oficial.
Veja o trecho acerca do ímpeto nacionalista do personagem João Popó:
630
o
narrador deixa evidente para o leitor que ele, narrador, sabe muito mais do que
aquilo que está ali, naquele momento, a contar. Veja como o narrador muda de
tom e se revela possuidor de um saber exclusivo:
E, claro, João Popó não sabia, mas saberia depois com orgulho
inexprimível, que a afortunada coincidência a que aludira em seu discurso era
ainda mais extraordinária do que lhe parecia. Pois, no mesmo dia, quem sabe
na mesma hora, enquanto ele invectivava o inimigo na praça da Quitanda e o
espectro da guerra estendia sua sombra gélida sobre o Brasil, o Governo de Sua
Majestade Imperial, do alto da Corte do Rio de Janeiro, baixava decreto criando
os Voluntários da Pátria, a flor da mocidade nacional que iria bater-se nos
longínquos campos de honra da campanha do Paraguai. (p. 413, realcei)
— Eu bem sei que você não está falando disso — começou ele — e que o
assunto de nossa conversa é agora o grau de historicismo do narrador em relação
ao modo como ele está narrando, eu sei. Mas... eu não posso deixar de notar que
essa postura aqui, nesse trecho do Popó, é antes de tudo satírica. Veja o que diz a
Rita Olivieri-Godet: “... quando se trata de demolir o discurso mistificador ou
despótico das elites”, e João Popó representa a elite em meio a um surto de
nacionalismo conservador, o comportamento da narrativa se baseia na paródia e
no escárnio, “que marcam a distância do narrador em relação à ideologia
veiculada por esses discursos”.
631
Em outras palavras, esse tom histórico que você
detectou no trecho lido agora é baseado na ironia e na galhofa, e por isso não é
nem de longe total e irrestrita a incorporação que realiza o narrador de um
personagem como João Popó e tantos outros membros da elite colonizadora-
conservadora-reacionária-escravocrata. Há uma distância, e quem a produz é o
tom irônico-satírico da narrativa — disse ele.
630
— Podemos observar nos primeiros momentos da crônica intitulada “A República dos ladrões”
a descrição da bibliografia responsável pelos arroubos de patriotismo do próprio João Ubaldo:
uma provável fonte de inspiração para o personagem João Popó. Trata-se dos livros Por que
me ufano de meu país, de Afonso Celso; e O Brasil e suas riquezas, de Waldomiro Potsch (O
Globo, 26 ago. 2001, crônica reunida no livro Você me mata, mãe gentil, Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 2004., p. 141-145, p. 141).
631
“Memória, história e ficção em Viva o povo...”, op. cit.
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357
— Hum... — E pensei em voz alta: — Por detrás do narrador há o nosso
bom e velho autor implícito. Esse tom irônico e satírico nasce numa instância
anterior e se concretiza na fala do narrador. Não nos esqueçamos de que o
romance, visto como um todo orgânico, se orienta em uma direção, não se
mantendo neutro em relação à discussão que encena em seus palcos
discursivos, como bem disse a própria Rita Olivieri-Godet. Há uma postura diante
da História, uma postura que precisa ser criticada. O narrador incorpora o discurso
dessa postura, mas, em nome de uma opção ideológica, o que faz é apenas realçar
as cores dessa postura, tornando-a exagerada e, assim, caricata, e essa é a
estratégia crítica.
632
Essa “distância do narrador em relação à ideologia veiculada
por esses discursos”, palavras da Rita Olivieri-Godet, é uma distância em relação
a uma ideologia, e não passa de um aspecto, entre muitos, da relação do narrador
com o personagem que ele incorpora, ou melhor, com o discurso de que aquele
personagem é, naquele momento, porta-voz.
— O que você quer dizer é que essa distância não é decisiva?
— Ela não é suficiente para afastá-los, ao narrador e ao personagem. E a
fala de um personagem transcende a sua ideologia. A ideologia de um discurso é
um aspecto, entre muitos, desse discurso, e não o discurso todo.
— Gostaria de retomar o trecho lá atrás do João Popó: os momentos em
que o nosso, o seu..., narrador sem cabeça — disse ele — se revela um narrador
onisciente; momentos, como você já demonstrou, raros e que se contam nos
dedos..., esses momentos de onisciência absoluta acontecem diante de fatos
conhecidos e já estabilizados da história nacional...
— Sim, estamos voltando ao nosso tópico... É como se, diante de “fatos” e
“conhecimentos” da História, o narrador não pudesse se comportar de outro modo.
Ele se comporta narrativamente como um narrador histórico, e um narrador
histórico, porque o fazer histórico que é alvo da crítica de João Ubaldo não passa
de um fazer linear, inteiriço, norteado por uma suposta Razão e levado adiante a
632
— Lembro-me — e abri com a mão uma nota — do trecho de uma história em que João Ubaldo
abre com humor as cortinas de um determinado fazer histórico: “Vicente, que tem o sangue
quente (...), disse (...) que ia dar uma bolacha na cara de Nequinho. E de fato, se Nequinho não
fosse meu primo, eu ia contar que efetivamente Vicente deu bolachas bem-sucedidas, mas
Nequinho é meu primo e então Vicente tomou muitíssima porrada, a História é assim feita, já
dizia meu avô” (“Vavá Paparrão contra Vanderdique Vanderlei” (p. 65-72), in Já podeis da
pátria filhos..., op. cit., p. 72).
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
358
partir de um ponto de vista também supostamente isento e situado acima dos
homens, um narrador histórico é um narrador onisciente e onipotente, é um
narrador que sabe mais do que sabem os personagens que ele incorpora, porque
ele, e mais ninguém, conhece a História, sendo o único detentor de um saber.
— Ele narra a História e vive as histórias...
— Sim. A primeira ele conhece e, ironicamente ou não, reproduz-lhe os
discursos legitimantes. As segundas ele não pode conhecer de antemão, e por isso
as vive. E você veja a diferença de tom do narrador no momento em que ele está
incorporando Zé Popó, filho de João Popó. É o momento de uma batalha — eu
disse. — Um narrador histórico, dono de todas as informações e conhecedor,
portanto, de todas as batalhas, uma vez que sabe, como já vimos que sabe, que as
batalhas são sangrentas e que muitos morrerão, entre brasileiros e paraguaios, um
narrador histórico, dizia eu, jamais poderia falar isso e se revelar assim tão
ignorante do que vinha pela frente:
... ele olhou para os lados sem acreditar. Não havia um inimigo por perto, não
havia nada a não ser camaradas, até a fuzilaria virara um bramido distante.
Tinham ganho a batalha, então, era isso que era uma batalha, já estivera em
brigas piores. (p. 440, realcei)
— Eu comecei a falar da família Popó porque todos os trechos em que o
narrador se dedica a descrever e incorporar João Popó, um personagem que
aparece já tardiamente no romance, à página 405, convergem para o evento
narrado nas páginas 479 a 484 e têm sua razão de ser numa disputa verbal entre
João Popó e seu filho Zé Popó, uma disputa entre dois tipos de discurso e de
visões sobre a História: um discurso nacionalista-idealista, formado todo ele por
uma narrativa ascética dos feitos heróicos de um povo que deve sua força e
invencibilidade aos seus grandes chefes e dirigentes da Nação, e não aos soldados,
ou ao acaso; e um outro discurso — continuei —, este desprovido de solenidade
ou romantismo, ambos levados adiante, note-se, através da fala, em indireto livre,
do narrador, que adquire então os dois feitios. Trata-se mesmo do conflito entre
um tom epopéico e um tom prosaico, anti-epopéico, ambos orientados para uma
descrição da guerra. João Popó, que a imagina, com ela sonha e sobre ela escreve,
e seu filho Zé Popó, que nela viveu. Veja:
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
359
(i) ... Já galopa desabrido o Centauro dos Pampas.
Sob uma saraivada inclemente de balas, ergue o peito majestoso e, diante de
sua aparição magnífica, recobram nossos homens o ânimo vergastado pela
sanguinolência da batalha.
Não é um homem. É um deus.
(ii) ... Corinto Mello (...) indagou de Zé Popó qual, entre todas as suas ricas
experiências como herói da Pátria, a imagem que mais lhe ficara, a reminiscência
que mais o perseguia (...), e Zé Popó respondeu: as bicheiras. Sim, as bicheiras,
falou com simplicidade.
(...)
João Popó (...) imediatamente perguntou sobre qual era o sentimento que
dominava o soldado na hora de combater pela Pátria, ao que Zé Popó respondeu:
medo. (p. 480-481)
— E essa mesma disputa de discursos tendo como tema o nacionalismo a
gente vai encontrar em outros momentos do livro — adiantou-se o meu
interlocutor, animado —: a descrição do heroísmo literário do alferes, ao início do
romance, e do heroísmo de araque de Perilo Ambrósio, feito Barão de Pirapuama
por se ter sujado em sangue escravo para fingir ferimentos de guerra.
633
— Agora deixe-me chegar a um ponto importante — pedi, sem dar muita
atenção ao que ele acabava de dizer. — Esse narrador histórico que mencionei há
pouco, que se comporta narrativamente de acordo com um fazer histórico que é
alvo de críticas, desse modo ilustrando esse próprio fazer histórico, já que se trata
de um narrador onipotente e onisciente, situado acima dos homens e conhecedor
de tudo e observador de tudo, como se a História já fosse uma partida ganha de
antemão... Esse narrador histórico, em determinado ponto do livro, encontra o seu
contraponto ficcional e realiza, com a sua personalíssima narrativa, uma espécie
de meta-história, uma espécie de meta-Viva o povo brasileiro.
— Estou curioso.
— Então me dê café... Para fazer uma crítica a uma visão da História que
João Ubaldo considera colonizadora e autoritária, e na defesa de um outro tipo de
fazer histórico, nascido à beira das fontes oficiais, fora da escrita e veiculado tão
somente pela força do que contam oralmente as gerações passadas às futuras, Viva
633
— Eu estou vendo aqui a matéria de uma revista portuguesa — disse o meu interlocutor,
fazendo uma notinha —, em que o jornalista menciona Perilo Ambrósio, mas se revelando
ignorante de sua farsa como herói de guerra. Diz ele que Ubaldo “... fez um hino, Viva o povo
brasileiro, e nele (...) [pôs] um dos mais belos heróis, Perilo Ambrósio, português e
combatente da independência brasileira” (Ferreira F
ERNANDES, “Ubaldo das bundas ditosas”,
Focus, 17 jan. 2000
).
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
360
o povo brasileiro apresenta, já próximo de seu final, a narração de sua própria
história, pela boca de um outro personagem que dela não participou e já sob o
peso dos anos passados. Essa narração é conduzida por um cego, que conta a um
grupo o que a ele contaram, e o que se lê/ouve do cego é a história do romance
Viva o povo brasileiro apresentada tal qual ela seria caso não tivesse sido escrita.
— E não foi mesmo... — disse ele. — A história que nos conta o narrador
de Viva o povo... nunca foi, dentro da lógica interna do romance, escrita...
— Sim. A história, ela mesma, não sabe, não registrou a sua transformação
em um romance. Entendi... A história que nos conta o cego foi apenas passada de
boca em boca: uma história transformada a cada rememoração, imprecisa, ambígua,
móvel e pontilhada por personagens com nomes trocados e às vezes inexistentes. O
negro Inocêncio é agora o negro Inocente, e essa alteração justifica-se pelo teor da
história de vida de Inocêncio... A negra Daê vira Adaê; Budião, vira Bodeão, e o
único guarda que vigiava Budião na cela transforma-se num exército de mais de mil
soldados... O então tenente Patrício Macário e o outro oficial seu amigo foram
deixados nus no Largo da Glória, debaixo de uma árvore... Para o cego foram os
dois comandantes obrigados por Maria da Fé a dançar pelados em meio a todo o
povo da ilha de Itaparica... “O cego desconstrói a noção de história, antecipando a
relatividade dos fatos que são narrados a seguir”, diz Karina Kushnir — e mostrei a
ele o artigo dela. — “A cegueira, ao invés de obscurecer-lhe a visão, lhe permite
enxergar o que está submerso.”
634
O cego vai descredenciar todas as outras histórias
escritas e vai eleger como única e verdadeira justamente a história de Viva o povo...,
que não é História, mas ficção, e que para ele não é, nem nunca foi ou será, uma
história escrita, mas uma história ouvida e repetida.
— O cego é a representação do anti-historiador...
— Sim, ou de um historiador não circunscrito à cientificidade. Veja:
... toda a História é falsa ou meio falsa e cada geração que chega resolve o que
aconteceu antes dela (...).
Além disso, continuou o cego, a História feita por papéis deixa passar tudo
aquilo que não se botou no papel e só se bota no papel o que interessa. Alguém
que tenha o conhecimento da escrita pega de pena e tinteiro para botar no papel o
que não lhe interessa? (...) Então toda a História dos papéis é pelo interesse de
alguém.
634
“Literatura e identidade nacional” (p. 259-276), in Gilberto VELHO (org.), Revista de Cultura
Brasileña, Embajada de Brasil en España, mar. 1998
, p. 267.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
361
(...)
Porém esta história que eu vou contar, disse o cego, é verdadeira, tão certo
como Deus está no céu. E então contou que era uma vez... (p. 515-516, realcei)
— O trecho que eu salientei para você demonstra ficcionalmente que João
Ubaldo vincula as possibilidades de transformação social à necessidade de uma
reformulação da visão que se tem do passado social do país. Essa vinculação —
continuei — está presente na convicção do cego de que a força dos poderosos se
deve antes de tudo à capacidade que tiveram, e ainda têm, de montar um passado
bem de acordo com os seus interesses. Essa é a diferença, apontada pela
professora Eneida Leal Cunha, entre João Ubaldo e a...
... vertente da prosa de ficção brasileira no século vinte, no Nordeste e na
Bahia, da qual o autor descende, [e que] esteve sempre muito mais atenta ao
presente, e muito mais preocupada com a correção futura das desigualdades
sócio-econômicas, do que especulando acerca do passado, especialmente do
passado colonial.
635
— A palavra do cego tem especial valor, já que ele funciona aqui como a
personificação de uma consciência histórica, e a consciência histórica do cego
parece-me a consciência histórica não apenas de uma idéia de autor implícito, mas
do próprio João Ubaldo — disse ele.
— A consciência histórica do cego em Viva o povo... é uma consciência
histórica imaginativa, de olhos abertos para as porções, vou usar uma variante que
já não se usa mais, estóricas em uma narrativa histórica, e isso me faz pensar no
Hayden White e em seu livro Meta-história — e retirei, feliz, o volume da estante.
— O problema aqui para nós é que White realiza o seu raciocínio às avessas,
segundo ele mesmo diz em uma nota, referindo-se a dois livros e a dois teóricos:
Mimesis, do Erich Auerbach, e Art and Illusion, do E. H. Gombrich. Vou ler: “Eu,
de certo modo, inverti a formulação deles”, escreve White. “Eles perguntam:
quais são os componentes ‘históricos’ de uma arte ‘realista’? Eu pergunto: quais
são os elementos ‘artísticos’ de uma historiografia ‘realista’?”.
636
Toda a atenção
de White..., você está me ouvindo? ... todo o seu empenho dirige-se ao século XIX
635
“O imaginário brasileiro...”, op. cit., p. 151.
636
“Introdução — A poética da História”, in Meta-história — A imaginação histórica do século
XIX, São Paulo, Edusp, 1992, p. 19, nota nº 4 da p. 18.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
362
e a alguns de seus historiadores, Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt, e
filósofos da história, Hegel, Marx, Nietzsche e Croce. Ouça:
... Diz-se com freqüência que a história é uma mescla de ciência e arte. Mas,
conquanto recentes filósofos analíticos tenham conseguido aclarar até que ponto
é possível considerar a história como uma modalidade de ciência, pouquíssima
atenção tem sido dada a seus componentes artísticos. Através da exposição do
solo lingüístico em que se constitui uma determinada idéia de história tento
estabelecer a natureza inelutavelmente poética do trabalho histórico...
637
— Então nós estamos necessariamente, ao contrário de White, à procura
da natureza, para citá-lo, inelutavelmente histórica do trabalho poético... —
ponderou o meu interlocutor.
— Não. Eu não pretendo aqui caminhar na mesma via de White, só que no
sentido oposto. Não, embora isso possa ser em alguns momentos produtivo.
— Quais momentos? — interrompeu-me.
— Já lhe digo. Eu o citei por causa da passagem do cego. O cego de Viva o
povo... não está fazendo literatura; ele está fazendo história, e ele lê a história do
mesmo modo como White o faz, e João Ubaldo, aí é que está o ponto a que quero
dar relevo, e João Ubaldo está dizendo, em suma, o mesmo que White, só que
através de um texto literário que está fazendo as vezes de uma rememoração
histórica. O cego não se vê a si mesmo como um escritor, mas como um
historiador, um historiador heterodoxo, vá lá, mas um historiador, ao passo que
White está lançando mão de um texto acadêmico. Não se trata de João Ubaldo
estar apresentando e revisitando momentos históricos em sua ficção. Há um texto
jornalístico que chama Viva o povo brasileiro de uma “revisão na história
oficial”.
638
João Ubaldo Ribeiro, aqui, não faz isso...
— Faz aqui, sim — disse o meu interlocutor —, se você situar esse cego
no contexto histórico sugerido pelo capítulo. Onde está o cego? No famosíssimo
Arraial de Santo Inácio, ponto de parada daqueles que rumavam para Canudos,
um arraial que está longe de ser, como muito bem alertou Francis Utéza, uma
invenção de Ubaldo... O arraial, olhe que coisa bonita eu vou dizer, e eu deixo
você colocar isso na sua tese como se fosse idéia sua... O Arraial de Santo Inácio
637
Id., p. 13.
638
“Um ano bem brasileiro”, Siga, dez. 1984. Matéria: “Viva o povo brasileiro”.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
363
representa aqui, na ficção de Ubaldo, uma espécie de entroncamento e meio de
caminho, não apenas para jagunços e bandidos, mas também para os universos da
ficção e da história, que ali se encontram, se arrostam e se fundem. “Os dados
espaciais e temporais fornecidos pelo narrador vêm diretamente de Euclides da
Cunha”, diz Utéza, e elenca vários pontos de contado entre os lugares por onde
passa o jagunço ficcional Filomeno Cabrito, um dos ouvintes do cego e um
amálgama de todos aqueles jagunços que se dirigiam para os braços do
Conselheiro, e os locais descritos pela pena de Euclides da Cunha nOs sertões.
Em um desse pontos se esconde justamente o Arraial de Santo Inácio:
(i) Cerca de dez ou oito léguas de Xiquexique demora a sua capital, o arraial
de Santo Inácio, erecto entre montanhas e inacessível até hoje a todas as
diligências policiais.
639
(ii) Arraial de Santo Inácio, 29 de fevereiro de 1896.
A noite baixou de sopetão e uma friagem seca cobriu as cercanias do Gentio
do Ouro e de Xique-Xique, a umas boas léguas das barrancas do São Francisco,
onde o arraial se esconde pelo meio dos montes. Esconde-se porque é um arraial
fora da lei, cafua de bandidos, jagunços fugidos e cangaceiros... (p. 514)
— Sim, sim — concordei. — E no Arraial de Santo Inácio, local não-
fictício e portanto não-aleatório, já que Canudos é um pano de fundo, está
justamente o narrador, através de um cego ficcional, discutindo o próprio fazer
histórico. A sua idéia do entroncamento ficção/história é mesmo boa e eu vou usá-
la: um cego fictício recontando a história fictícia de Viva o povo... como se fosse
real, e tratando todas as demais histórias-reais-escritas como se fossem a ficção
enganadora dos poderosos, está ali, às portas de um dos mais sangrentos
acontecimentos da História do Brasil, por sua vez relatado pelo jornalista Euclides
da Cunha, que não resistiu à tentação de ser, à sua maneira, literário, diante de um
fato que, pressentira ele, estava destinado aos compêndios de História...
639
“A luta — preliminares” (p. 145-168), in Os sertões — Campanha de Canudos, Rio de Janeiro,
Livraria Francisco Alves Editora, 1980, p. 152. — A edição a que Utéza se refere é outra —
esclareceu o meu interlocutor —, também da ed. Francisco Alves, mas do ano de 1911, com o
citado trecho situado na p. 222. O trecho, de todo modo, foi trazido à tona pelo Francis U
TÉZA,
Viva o povo brasileiro ou O espírito da fraternidade”, op. cit., p. 53.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
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— A Walnice Nogueira Galvão ilustra muito melhor do que você essa
idéia do Euclides da Cunha de ter de recorrer à literatura para conseguir dar conta
do recado... Ouça:
... Euclides privilegia uma figura que reúne duas forças contraditórias e
desvela a incapacidade raciocinante de encontrar uma síntese entre elas. Por
exemplo, a seu ver, António Conselheiro era ao mesmo tempo um grande
homem, enquanto líder, porém um degenerado enquanto encarnação das piores
potencialidades presentes nos mestiços. Como resolver tal dilema, ao nível do
discurso? Empregando a figura da antítese (...) ou sua forma mais extremada, que
é a figura do oxímoron. Isto é, resolvendo o problema não ao nível do raciocínio,
mas ao nível da literatura.
640
— Antes que você me diga que eu preciso desenvolver essa sua idéia do
Arraial de Santo Inácio como entroncamento entre ficção e história, eu gostaria de
continuar o meu raciocínio lá de trás, quando você me interrompeu: quando o
cego conta a sua história, ele o faz concebendo-a do mesmo modo como White
concebe esse fazer histórico: “... a saber: uma estrutura verbal na forma de um
discurso narrativo em prosa que pretende ser um modelo, ou ícone, de estruturas
e processos passados no interesse de explicar o que eram representando-os”.
641
E
diz o cego, diante do seu próprio fazer histórico: “... esta história que eu vou
contar (...) é verdadeira, tão certo como Deus está no céu” (p. 516).
— O cego faz história — disse o meu interlocutor —, e faz de sua história um
modelo, ou seja, uma história do que realmente aconteceu, ao contrário das outras...
Para ele, a história que realmente aconteceu é justamente a história não escrita...
— A história escrita, e agora cito as palavras da feiticeira Rita Popó, tem
um ar arrumadinho, e “a única coisa arrumada é a mentira, a qual é a explicação
certinha” (p. 596). E João Ubaldo Ribeiro ilustra muito bem essa idéia algumas
páginas à frente, quando revela, e dou dois exemplos, que a história “que ficou”
para as gerações futuras, acerca do suicídio de Carlota Borroméia, filha de Amleto
Ferreira, guarda-livros do Barão de Pirapuama, foi a história de que “tinha
morrido de um colapso ainda bem moça” (p. 655). O outro exemplo são os
detalhes do estudo de genealogia encomendado por um descendente de Bonifácio
Odulfo Nobre dos Reis Ferreira-Dutton, filho do velho Amleto. E o dr. Eulálio
640
“Introdução” (p. VII-X), in Euclides da CUNHA, Os sertões, op. cit., p. IX-X.
641
“Introdução — A poética da História”, op. cit., p. 18 (negritos meus, itálicos do White).
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
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Henrique Martins Braga Ferraz, trineto de Amleto, lê em seu estudo acerca da
“estirpe” dos Ferreira-Duttons, estirpe que nós já vimos não passar de uma grande
farsa, as minigâncias de uma bela história “para inglês ver”, cheia de detalhes
inverificáveis e de eventos românticos e heróicos a envolver uma filha de “mãe
inglesa católica” e de um pai brasileiro herdeiro de viscondes, e algum sir inglês
de “uma família aparentada com a casa de Windsor”... Nada parecido com a
provável história dos pais de Amleto — continuei —: uma brasileira quase negra,
talvez estuprada por um pirata inglês que fugiu às risadas e cuja maior qualidade
era mesmo ser inglês, e nada mais... O próprio Amleto, no “romance genealógico”
encomendado, não era um mero ladrão guarda-livros do Barão, mas nada menos
que um sócio sagaz que salvou os negócios de Perilo Ambrósio da ruína. “... ta-ta-
ta, ta-ta-ta, tudo história já conhecida” (p. 642), diz o narrador, incorporando o dr.
Eulálio Henrique, que olhava...
... para o retrato do trisavô, sisudo, colarinho alto, pescoço empertigado,
sobrancelhas cerradas. Branco que parecia leitoso, o cabelo ralo e muito liso
escorrendo pelos lados da cabeça, podia perfeitamente ser um inglês, como, aliás,
quase era, só faltou nascer na Inglaterra. Traços nórdicos visíveis. (...) Evidente
que era desses velhos caturras, poços de honestidade e austeridade... (p. 642)
— O mesmo tom aristocrático que gostavam de portar as famílias
coloniais a gente ainda vai encontrar em famílias como as de Amleto — disse ele
—, que não era aristocrática mas se tornou, ou seja, e cito o Caio Prado Jr.,
Amleto viveu o mesmo empenho de “todas as castas privilegiadas de curto
passado: o de querer entroncar-se em outras mais antigas”.
642
— Sim, muito bem citado. E de modo bastante diverso — continuei — é
escrita a outra história, a história ágrafa das demais famílias do romance. As
gerações posteriores vão aprendendo sobre as anteriores através de relatos diretos
e testemunhos de parentes e amigos. Não há papéis, logo não há “provas” que
legitimem algum passado; há apenas as histórias e a crença no fio condutor da
possessão espírita, que unifica e dá sentido ao passar do tempo. Ouça, e veja
também que as noções de tradição, de estirpe, de linhagem e de nobreza se
mantêm, embora constituídas de outra matéria. O segundo exemplo é a síntese da
conexão familiar dos personagens “sem voz”...
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(i) ... — Minha mãe — disse Zé Popó [a Patrício Macário] — é herdeira de
uma grande tradição. Tudo o que ela sabe aprendeu com a falecida Mãe Inácia, de
quem o senhor nunca deve ter ouvido falar, mas pertencia a uma espécie de
linhagem, uma linhagem que tem sua nobreza, que vem de Mãe Dadinha, de Mãe
Inácia e de outras, muito raras e prezadas para esse povo todo. (p. 492-493)
(ii) Contou-lhe [a Patrício Macário] Rufina que ele tinha a mesma alma que
Vu, filha do caboco Capiroba e, portanto, num certo sentido, ele era Vu. (...)
Disse ainda que ele (...), Patrício Macário, logo encontraria uma mulher que antes
era o caboco Capiroba e essa mulher e ele se amariam. Mostrou-lhe então,
narrando tudo em pormenores, como essa mulher (...) era também descendente
carnal do caboco Capiroba, pai de Vu, bisavô de Dadinha, trisavô de Turíbio
Cafubá, tetravô de Daê, também chamada de Vevé, avô no quinto grau dessa dita
mulher, a qual, portanto, considerando as almas, era ancestral de si mesma... (p.
498-499)
— A propósito — disse o meu interlocutor — e voltando à figura do cego:
se este seu cego opera aqui no romance como um historiador, mesmo que
heterodoxo, vale então a provocação de White aqui nesta nota de rodapé. — E ele
pegou o livro que estava folheando e leu: — “Os historiadores em geral, por mais
críticos que sejam de suas fontes”, e o cego era bastante crítico de todas as
fontes..., “tendem a ser ingênuos contadores de histórias”.
643
— Sim, e o faz sem dissimular o seu caráter passional, sem dissimular que
ele, necessariamente, ao transmitir aquelas informações, está empenhado em um
esforço de dar um sentido narrativo àquilo. “Sem narrativa”, diz Karl Erik
Schollhammer — e citei —, “não existe, para White, nem ‘compreensão’ nem
‘explicação’ histórica.”
644
O Karl Erik Schollhammer, não sei se já lhe disse, é o
meu orientador na tese que vou escrever...
—Não, não me disse — disse ele, e não disse mais nada.
— Bom... Veja aqui a história que o cego conta do assassinato de Vevé,
mãe de Maria da Fé, por quatro brancos, os quatro brancos que mais tarde foram
por sua vez mortos por Leléu, que lhes cortou os pescoços e em seguida afundou o
barco em que estavam. Foram para o fundo do mar e nunca mais apareceram.
Veja a relação de causalidade que teve de criar o cego, para dar sentido àquilo
642
“Vida social — organização social”, op. cit., p. 290.
643
“Introdução — A poética da História”, op. cit., p. 24, nota nº 6 (da p. 23).
644
“Estudos Culturais — Os novos desafios para a teoria da literatura”, in VÁRIOS AUTORES, Anais do
6º Congresso Abralic — Literatura Comparada igual a Estudos Culturais?, Florianópolis, 1998.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
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tudo, uma vez que Leléu nunca falou do crime de vingança para ninguém e,
portanto, não legou à história essa informação: “Mesmo depois que, por obra
daquela dita Irmandade, os oito brancos foram engolidos por uma grande onda
do mar e nunca mais se viu nem cisco de nenhum deles...” (p. 518). O que vemos
aqui? Uma operação narrativa a sobrepor-se a uma operação investigativa, para
citarmos as expressões de Hayden White. Ouça: “Admitimos que uma coisa é
representar “o que aconteceu” e “por que aconteceu como aconteceu” e outra bem
diferente é prover um modelo verbal, na forma de uma narrativa, de modo a
explicar o processo de desenvolvimento que conduz de uma situação a uma outra
situação”, escreve White.
645
O cego “opta” pelo segundo método — disse eu,
fazendo o gesto de colocar as aspas.
— Essa relação de causalidade criada em nome de um sentido antes de
tudo estético é parte integrante do mundo ficcional, ao passo que é raramente
admitida no universo histórico... — arriscou o meu leigo aprendiz de historiador.
— Sim, e é em nome disso que se bate o Hayden White: a assunção do
espaço de efetiva criação no interior do universo de “fatos” da história. Para o
professor Karl Erik, o “mérito principal de White tem sido mostrar para os
historiadores o papel ativo dos Tropos retóricos e das estruturas narrativas na
criação, na descrição e na compreensão da realidade histórica”, diz ele,
“liberando, assim, a historiografia da polêmica tradicional sobre a história como
‘arte’ ou como ‘ciência’”.
646
Veja aqui duas declarações: uma do White; outra do
próprio João Ubaldo Ribeiro, que está desempenhando, como ficcionista, o papel
de um historiador; papel que White gostaria de ver sendo desempenhado, ou ao
menos assumido, às inversas, pelos historiadores: o papel de ficcionistas. Ouça:
(i) ... Diz-se às vezes que o objetivo do historiador é explicar o passado
através do “achado”, da “identificação” ou “descoberta” das “estórias” que jazem
enterradas nas crônicas; e que a diferença entre “história” e “ficção” reside no
fato de que o historiador “acha” suas histórias, ao passo que o ficcionista
“inventa” as suas. Essa concepção da tarefa do historiador, porém, obscurece o
grau de “invenção” que também desempenha um papel nas operações do
historiador.
647
645
“Introdução — A poética da História”, op. cit., p. 27.
646
“Estudos Culturais — Os novos desafios para a teoria da literatura”, op. cit.
647
“Introdução — A poética da História”, op. cit., p. 22.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
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(ii) ... o Recôncavo (...) é meu mundo básico (...). (...) Nunca se contará nem
uma fração pequena das histórias que o Recôncavo viveu, vive e viverá. (...) fui
criado entre mentirosos estupendos e renomados em todas aquelas partes, sempre
quis ser um deles, vou conseguindo. E, como tudo o que se conta do Recôncavo
no Recôncavo pode acontecer, tudo efetivamente aconteceu ou está por acontecer.
Não faço literatura, digo isto a sério.
648
— A partir destas duas declarações podemos mesmo ver o texto ficcional de
Viva o povo... como o contraponto das idéias de White, e isso me faz retornar à minha
pergunta anterior, baseada no que você disse: em quais momentos seria produtivo
caminhar na mesma via de White, só que no sentido oposto... — quis saber ele, talvez
me testando para ver se eu não estava atirando palavras ao chão e à toa...
— Antes deixe-me abrir um outro flanco bastante importante nessa
história: esse flanco chama-se Dominick LaCapra, e eu o cito em cima do texto do
professor Karl Erik. LaCapra bate de frente com o White, defendendo, não uma
reconstrução narrativa do passado histórico, mesmo que essa reconstrução seja
toda ela a partir da assunção de que se trata de uma reconstrução que beira a
ficcionalidade, uma reconstrução, portanto, que não está à cata de um “fato” puro
localizado lá longe nesse passado, e que a reconstrução justamente pretenda trazer
à tona... Não — disse eu. — Isso, para LaCapra, não é suficiente, porque isso
ainda assim é uma maneira de olhar para a realidade histórica de modo a querer
vê-la, ou lê-la, como superfície coerente e objetiva, passível, portanto, de ser
submetida a uma operação narrativa. LaCapra posiciona-se contra essa
reconstrução porque acredita ser ela mais uma, entre muitas, tentativas dos
historiadores de “domesticar” o passado. Ouça: “Utilizando-se da noção
bakhtiniana de diálogo”, diz Karl Erik, “LaCapra procura ferramentas teóricas
que permitam que o passado autônomo continue desafiando as tentativas do
historiador de domesticá-lo na ordem discursiva”.
649
— Bom, você disse que se tratava de um flanco importante... Transporte
esse discussão White-LaCapra para dentro de nossa história — pediu ele.
— Você pegou a idéia. Era isso o que eu pretendia fazer: a discussão entre
os dois pode ser transportada para os palcos de Viva o povo brasileiro. Você
observe que eu citei o Hayden White justamente quando entramos na passagem do
648
José Carlos de VASCONCELOS, “O feitiço da escrita”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias,
Portugal, 24 mar. a 6 abr. 1999, realcei.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
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cego, um cego que não está fazendo literatura, mas história, como eu disse; um
cego que vai recontar para outros personagens toda a história que estávamos lendo
em primeira mão. O papel do cego é justamente recuperar uma história aleatória,
incoerente, não-objetiva, totalmente oralizada, alterada em inúmeras versões, e
reconstruí-la quase toda, como ele de fato faz, mesmo que oralmente e
defendendo a legitimidade e a superioridade de sua própria história em relação às
demais, escritas e, portanto, mentirosas. O cego arma uma teia de coerência e
objetividade sobre uma história que, em si, não tem nem mesmo esse nome de
história. Você se lembra da arrumação que ele fez para justificar o naufrágio dos
“oito” brancos que mataram Vevé?
— Por outro lado...
— Por outro lado, temos todo o romance, ou melhor, todas as histórias que
o romance tenta contar, a disputar com o cego uma visão da história. Todas as
histórias do romance formam o material inapreensível que o cego, não obstante,
busca apreender, e ele se põe então a contar, a narrar, a domesticar todas aquelas
histórias em uma só... O romance é todo ele esse material inapreensível, e é como
um material inapreensível que LaCapra vê a história.
— Todas as histórias variadas, conflitivas e desarrumadas de Viva o
povo... estão para o esforço do cego assim como a história sob o olhar de LaCapra
está para a tarefa narrativista de White... — disse ele.
— Sim. Desarrumadas, inclusive cronologicamente... Uma desarrumação
que o cego, em sua recontagem, procura justamente reordenar em linha, sincronia
transformada em diacronia... Ouça isto:
LaCapra enfatiza a importância da interação conflitiva, das vozes
contestatórias ou daquilo que Bakhtin chamaria imaginação dialógica na tensão
entre texto e contexto, que, idealmente, mantém o discurso explicativo aberto,
criando, em vez de uma interpretação representativa, uma simulação textual da
complexidade e do objeto analisado. A ênfase de LaCapra na história enquanto
conversação e um diálogo com o passado, em detrimento da história como
reconstrução do passado, contesta no discurso histórico usos tradicionais de
narrador onisciente, de ponto-de-vista unificado e da cronologia temporal
ordenadora.
650
649
“Estudos Culturais — Os novos desafios para a teoria da literatura”, op. cit. (itálicos meus).
650
Id.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
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— Sim — disse ele, animado. — E Viva o povo..., com exceção da
passagem da história do cego, é uma visão da história, e da própria história que
vai sendo contada por um narrador que a vive no presente... uma visão da história
como conversação e diálogo, onde não há muito espaço para a narrativa
onisciente, para pontos de vista unificados e para uma cronologia ordenadora... E
essa discussão ainda pode ser transportada também para o cenário que temos nO
feitiço da ilha do Pavão — continuou —, um romance que também, à sua
maneira, ensaia a possibilidade de ser uma leitura crítica da nossa história
brasileira... Senão, vejamos — e ele fez um ar acadêmico.
651
— A ilha do Pavão
abriga, no século dezoito, uma sociedade de classes, sim, mas embaralhadas e
comunicantes, não é?
— Sim — e ajudei-o, embora acreditando que O feitiço da ilha... não pode
nem de longe ser chamado um romance histórico, e isso pelas razões que eu
pretendia ir descobrindo à medida que conversávamos. — A ilha do Pavão abriga,
no século dezoito, uma sociedade em que “elementos saídos da cultura popular,
massiva e culta se entrelaçam e interagem”, escreve Zilá Bernd, “sem que o autor
intervenha para hierarquizá-los”.
652
Às representações ordinárias dos diversos
elementos formadores do que se convencionou chamar “o povo brasileiro”, João
Ubaldo contrapõe outras: são as representações rebeldes, para ficarmos em apenas
três, do índio que não quer ser índio e não quer viver no mato, do negro que não
tolera negros de outras origens e, sentindo-se superior, se organiza para escravizá-
los, do branco colonizador e rico que não quer mandar em ninguém, não é
651
E eu fiquei pensando no trecho de uma entrevista que lhe fez o José Carlos de Vasconcelos, que
às tantas lhe pergunta: “... será que cada vez te interessa menos, como escritor, essa (esta)
realidade e os aspectos sociais que lhe estão ligados?”. E João Ubaldo responde: “Não sei se
concordo com as premissas da pergunta. Fico curioso em saber o que foi que o levou a essa
percepção. Talvez nossos quadros de referência sejam mais diversos entre si do que pensamos.
(...) E os tipos, personagens e situações [dO feitiço da ilha do Pavão] me parecem — e foi você
quem puxou o assunto — metáforas do Brasil, e do Brasil de hoje. Portanto, não me creio tão
alheado assim. Mas fiquei preocupado agora. Acho que gostaria de conversar com você mais
extensamente sobre isso, estou me sentindo um pouco frustrado. Você não viu, através do
‘quilombo ao contrário’, o problema racial passado através do prisma económico/tecnológico e
com suas bases na ‘realidade’ ridicularizadas? A corrupção, a advocacia administrativa, a
hipocrisia, a desmitificação do indiozinho inocente e assim por diante? Só pra chatear, mostrar
a Inquisição a pleno vapor na Alemanha, em vez de na Ibéria, entre nossos sebentos
torquemadas? E mais outras tantas brincadeiras sérias? Eu sou mau carpinteiro” (José Carlos
de V
ASCONCELOS, “O feitiço da escrita”, JL - Jornal de Letras, Artes e Idéias, Portugal, 24
mar. a 6 abr. 1999).
652
“Identidades compósitas: escrituras híbridas”, Matraga, n
o
12, 1999, apresentado no Congresso da
Anpoll, 12 jun. 1998
, em: <http://www2.uerj.br/~pgletras/re-vista/zila.htm>, acesso em ago. 2004.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
371
arrogante e não se vê como superior nem credor de nada. São os casos de
Balduíno Galo Mau, índio mentiroso, conhecedor de todas as matreirices e avesso
à idéia sedimentada de um ser inocente, ingênuo e organicamente ligado à
natureza; caso de Afonso Jorge II, negro nobre do reino do Congo, filho do
majestoso Afonso Jorge I, conhecidos traficantes de negros de raças “muito
justamente apelidadas de infectas, raças porcas, estúpidas, atrasadas e fedorentas”
(O feitiço da ilha..., p. 92), chefes sucessivos do grande Quilombo do Mani Banto,
quilombo não de negros fugidos, mas de negros cativos;
653
caso de Capitão
Cavalo, senhor de muitas terras, branco, bastante poderoso e no entanto avesso ao
poder e aos seus exigentes caprichos, acolhedor de escravos fugidos, estimulador
de casamentos multi-étnicos, defensor do trabalho justo e da justa divisão do
produto do trabalho, socialista dos bons, revolucionário como poucos, odiado por
alguns e muito cioso de seu sossego e de sua boa consciência. A sociedade que
vamos encontrar na ilha do Pavão é, como vimos e para dizer o mínimo, diferente,
porosa e multi-étnica. — E li um trecho.
... Possivelmente [o viajante apressado] também estranhará ver negros
calçando botas, sentando-se à mesa com brancos, tuteando-os com naturalidade e
agindo em muitos casos como homens do melhor estofo e posição financial, além
de negras trajadas como damas e de braços dados com moços alvos como
príncipes do norte. (O feitiço da ilha..., p. 17)
— Não se manteria como singular, sendo diferente, poroso e multi-étnico,
contudo — disse ele —, um povo que não estivesse de algum modo apartado.
Nada melhor, para se inventar um Brasil, do que um outro lugar, “fora” do Brasil,
onde se irá plantar um projeto de Brasil. A ilha do Pavão situa-se nalgum ponto do
Recôncavo Baiano, dentro do território brasileiro mas inacessível à maioria dos
brasileiros, não? Ela será sempre, neste sentido, o “outro Brasil”, ilha dentro da
qual se vive bem, mas “da qual não se conhece navegante que não haja fugido”,
diz o narrador, “dela passando a abrigar a mais acovardada das memórias” (O
feitiço da ilha..., p. 9). Disse o escritor — e ele pegou um recorte de jornal —:
653
— Outra desconstrução opera João Ubaldo no romance Miséria e grandeza do amor de
Benedita — completei, abrindo com a mão uma nota. — É o caso do narrador a incorporar uma
opinião de três negros cativos da casa de Iaiá Naninha, mãe de Deoquinha Jegue Ruço; negros
“que se babavam de raiva quando ouviam falar na princesa Isabel, por ter ela se metido no
bem-bom da escravidão deles, forçando tantos a arranjar emprego, porfiar por obter o que
comer e entrar na luta da vida sem necessidade...” (Miséria e grandeza..., p. 27).
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
372
“Fiz uma brincadeira e resolvi imaginar (...) alternativas para aquele Brasil, como
se um outro país se desenvolvesse paralelamente ao que conhecemos”.
654
— Não bastará, no entanto, ser a vida na ilha do Pavão boa para todos
aqueles de todas as cores; não bastará funcionar a ilha como uma espécie de
paraíso contraposto ao continente desigual e totalitário. O espaço insular de
Ubaldo é produtivo, como escreve Elisalva Oliveira-Joué, na medida em que
“remete constantemente para o começo de tudo, do país e do povo, forjados pelo
encontro, na maior parte das vezes forçado, das três etnias”.
655
Se permanecesse
ancorada à condição de paraíso paralelo...
— Há ainda que se mencionar aqui — interrompeu-me ele, pegando o
livro — o romance Miséria e grandeza do amor de Benedita, num momento em
que Ubaldo deixa bem clara a relação de identidade entre a ilha do Pavão, “porosa
e multi-étnica”, e a própria ilha de Itaparica, com os seus Pimentéis,
656
que “... nos
deixaram a herança de, na ilha, nunca termos tido preconceito, podendo a mulher
ser morena, loura, preta, mulata, cafuza, fumbambenta, roxinha, azul, índia,
chinesa, japonesa ou alemoa” (p. 29).
— Se permanecesse ancorada à condição de paraíso paralelo... — disse eu,
anotando a observação e a página mas seguindo em frente —, como você sugeriu
lembrando a sua condição insular, a reunir as condições ideais de um Brasil que
poderia ter sido, mas acabou não sendo, estaríamos a falar da ilha do Pavão como
um lugar de utopia, e eu não creio que seja esse o caso... Acredito mais na sua
condição mítica... Uma das tarefas dos lugares míticos é esta: devem funcionar
como simulações de inícios. A ilha do Pavão torna-se então, sob essa idéia, o
lugar da gênese, por excelência, de uma alternativa de sociedade brasileira.
O mito deve ser ainda distinguido da utopia (projeção de um futuro ideal), da
lenda (que tem fundamento ou caráter de certo modo histórico), do conto (uma
forma dessacralizada) etc. Mas o vocabulário é hesitante, mesmo quando se trata
de especialistas, como sucede por exemplo com K. Mannheim, que designa sob o
nome de utopia aquilo que entendemos aqui como mito. Além do mais, pode
654
Daniela NAME, “As ilhas de Ubaldo”, O Globo, 3 ago. 1997.
655
Elisalva OLIVEIRA-JOUÉ, “Identidade mestiça e ilhamento na obra de João Ubaldo Ribeiro”,
1999, em: <http://www.geocities.com/ail_br/identidademesticaeilhamento.html>, acesso em 18
out. 2005.
656
— Lembre-se — disse ele, em nota — da sua observação acerca dos Pimentéis do romance e os
Pimentéis da família de Ubaldo (Capítulo 3: “Setembro fechado sob o farol”, p. 188, nota 327).
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
373
acontecer mais de uma vez que tal forma narrativa se situe a meio caminho do
mito com relação à lenda, ou do mito com relação ao conto e à utopia.
657
— A ilha do Pavão brilha na mente dos que não a conhecem e que nela
nunca pisaram como um lugar, tal como um mito, de existências não vivenciadas,
“paisagens adivinhadas, aos quais dar vida, sensações apenas entrevistas,
lembranças vívidas do que não se passou” (O feitiço da ilha..., p. 12). A ilha do
Pavão, no tempo narrativo do romance, é capaz de engendrar, para os seus
personagens, muitos prováveis futuros. — E continuei: — A história de seus
habitantes, no entanto, está confinada à ilha, e, mesmo que o leitor possa, e deva,
aumentar para níveis continentais o diâmetro de sua leitura, os acontecimentos
narrados não se esparramam para o resto do Brasil. Não é o Brasil, ou o povo do
Recôncavo Baiano, o personagem do livro, tal como é o Brasil, ou o povo do
Recôncavo, o personagem de Viva o povo brasileiro... João Ubaldo Ribeiro não
está a brincar com a história do país, imaginando o que poderia ter acontecido
conosco se... os portugueses tivessem abandonado a tarefa colonizadora e os
padres católicos desistido da missão catequética, os holandeses afinal se firmado
na terra, os negros escravos conseguido organizar-se e lutar... Não. A sociedade
que vamos conhecer lendo o romance de João Ubaldo Ribeiro é a sociedade
brasileira na medida em que todos os nossos antepassados étnicos lá estão, sim,
mas nem sempre mantendo preservadas as suas características como classe. A sua
configuração e os seus níveis de relacionamento desenvolveram-se de modo
diverso e se afastaram totalmente da experiência “continental”. A ilha permanece
isolada, e esse isolamento lhe confere características míticas, não históricas.
A metáfora do ilhamento é um dos recursos estilísticos utilizados pelo autor
para impedir que os seus relatos deslizem para uma literatura panfletária, pois, ao
situar a narrativa entre dois espaços, o insular de Itaparica ou da imaginária ilha
do Pavão e o resto do Brasil (...), o autor (...) afirma a legitimidade dos
componentes negro e índio do povo brasileiro e deixa o caminho aberto para que
brotem do texto a negação do Único — a cultura européia e o tipo branco — e a
valorização do Múltiplo e do Outro — o branco, o negro, o índio e o mestiço.
658
657
André DABEZIES, “Mitos primitivos a mitos literários” (p. 730-736), in Pierre BRUNEL (org.),
Dicionário de mitos literários, Rio de Janeiro, José Olympio, Editora UnB, 1998, p. 732.
658
Elisalva OLIVEIRA-JOUÉ, “Identidade mestiça e ilhamento...”, op. cit.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
374
— A ilha do Pavão pode não ser ainda um mito... — disse ele. — Ubaldo,
ou seu narrador, vá lá, é o primeiro a nomeá-la. Trata-se de uma criação
exclusivamente ubáldica e presente apenas em seu romance de 1997. Do mesmo
modo podemos dizer, já que você citou o Dabezies, que um mito “tampouco é
identificável com um texto. O texto literário não é em si um mito: ele retoma e
reedita imagens míticas”.
659
Podemos ir além então e afirmar também que a ilha
do Pavão, em si, não constitui um mito, mas um lugar de mitos.
— Sim, sim... João Ubaldo revela ao leitor que a ilha do Pavão possui
escondida em seu centro uma gigantesca esfera mágica a funcionar como uma
espécie de toca do tempo. Inicia-se então, dentro da história, um desfile de
experimentações: os personagens protagonistas, ao entrar e sair da esfera,
conseguem paralisar o andamento dos eventos e produzir, durante a paralisação,
futuros latentes. Os prováveis futuros que aquela sociedade do século XVIII
vivenciou correspondem, para o leitor de hoje, aos passados que tivemos ou que
poderíamos ter tido. A brincadeira remete a nossa imaginação às inúmeras
possibilidades de sociedade brasileira.
... E foi assim que começaram a usar de fato a toca do tempo, sobre a qual
aprendiam cada vez mais, embora não entendessem nada de seus mecanismos
misteriosos. Agora tinham certeza de que, enquanto o presente parava, ilimitados
e indefinidos futuros ficavam em perpétua gestação e o tempo os recebia ao
acaso, não tinha preferências. Ou podia ser levado a tê-las, pelo menos por
exclusão, embora não por inclusão. Escolher um dos futuros disponíveis, sim;
plasmar esse futuro, não, não parecia ser possível. Como não? Cada mudança
mudava tudo mais, mas como saber? (O feitiço da ilha..., p. 313)
— O que faz um mito? O mito situa-se fora do tempo — continuei. — A
ilha do Pavão abandona o seu espaço em meio às águas do Recôncavo, e é como
se deixasse de existir. O mito suspende o tempo. Mal um personagem adentra a
esfera mágica, a ilha do Pavão transforma-se, e um gigantesco Pavão abre a sua
cauda e se ilumina, produzindo à sua volta luz e ofuscamento. Em seguida o breu
e a suspensão efetiva do tempo, uma suspensão prenhe. O mito recria passados e
inventa futuros. — E li outro trecho:
... Portanto, o tempo parava, quando o pavão acendia. E o pavão acendia
659
André DABEZIES, “Mitos primitivos a mitos literários”, op. cit., p. 732.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
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quando algum deles entrava na bola. (...) E o povo via o pavão fulgurar, mas
depois não se lembrava, só se lembrava de que, repentinamente, a lua sumira,
tudo escurecera, a ilha parecera ser a única terra no meio do mar, para depois
voltar tudo a como estava antes. (O feitiço da ilha..., p. 299-300)
— Mas o mito tem também uma verdade, que não é apenas poética ou
simbólica, como o era para os antigos, mas uma verdade híbrida: “... nos dias de
hoje, o mito deve travar um diálogo”, diz-nos Dabezies, “e ter uma relação de
simbiose com a racionalidade metafísica ou cotidiana”.
660
A ilha do Pavão é a
morada do tempo; um lugar literário que possui uma esfera mágica literária que, no
entanto, foi inspirada pelo que João Ubaldo chamou de a “toca do tempo”, tradução
livre de “wormhole” (buraco de verme), um conceito da ciência, fruto de um
raciocínio operado com teorias da ciência, sim, mas que se reporta — eu disse —,
pela via da literatura, à aventura mítica do viajante do tempo.
661
O mito provoca a
ciência, que inspira a literatura, que se volta para o mito, mas alimentada, desta vez,
num diálogo específico e mais ou menos verossímil, pela ciência.
... Vem de uma especulação já conhecida de cosmólogos sobre a possibilidade
de uma viagem no tempo. Isso tem alguns fundamentos científicos. Como eu não
escrevo ficção científica nem sou cientista, não me senti obrigado a me restringir
às limitações e normas que existem para que isso aconteça. (...) ... essa esfera é
chamada por um cientista americano de “wormhole” (...). É uma complicação.
Seria uma dobra na curvatura espaço-tempo, que permitiria a você atravessar o
tempo. Como eu quis dar uma verossimilhança ao fato de a ilha aparecer e
desaparecer, recorri a isso.
662
— Você propôs a inserção do romance O feitiço da ilha do Pavão entre as
possibilidades de uma discussão sobre o romance histórico em João Ubaldo, e...
— mas ele me interrompeu.
— Eu disse que o romance é também, à sua maneira, a possibilidade de ser
uma leitura crítica da nossa história brasileira... À sua maneira, eu disse... E eu
entendi a sua ressalva, e entendi o quão diferentemente Viva o povo... e O feitiço da
ilha... se posicionam em relação à história brasileira... Eu ainda insisto, no entanto...
660
Id., p. 734.
661
Oracle ThinkQuest — Education Foundation, em: <http://library.thinkquest.org/2890/index.
htm>, acesso em 15 mar. 2005.
662
Bernardo CARVALHO, “Ubaldo, finalmente, solta novo romance”, Folha de S. Paulo, 22 nov. 1997.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
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— No que você poderia insistir, agora sou eu a interrompê-lo..., é na
conveniência de relacionarmos a discussão White-LaCapra com a situação central
dO feitiço da ilha... Uma reconstrução narrativa do passado histórico, mesmo que
admitidas as suas estratégias ficcionais, incluídas as inevitáveis cirurgias ficcionais,
é, ainda assim — disse eu —, uma maneira de observá-lo, a esse passado, como
uma superfície domesticável, passível de um controle que o tornará mais
assimilável e mais duradouro como memória estabelecida. Situação semelhante nós
temos nesse outro romance de Ubaldo, com a diferença de que vamos encontrar um
narrador totalmente empenhado em resolver a “questão”, não dos passados, mas dos
possíveis futuros para a ilha. Eu citei antes as palavras do Karl Erik: “LaCapra
procura ferramentas teóricas que permitam que o passado autônomo continue
desafiando as tentativas do historiador de domesticá-lo na ordem discursiva”.
663
— No caso dO feitiço da ilha..., teremos então um futuro também autônomo,
muito mais autônomo que o passado, uma vez que ele, o futuro, de modo algum
aconteceu, ao passo que o passado — meditou o meu interlocutor —, de algum modo,
modos diversos, é verdade, mas de algum modo o passado já aconteceu.
— E o que veremos nO feitiço da ilha... é justamente uma série de futuros
autônomos a desafiar as tentativas do narrador de reuni-los de modo a comporem,
não uma História do Brasil, mas uma história da ilha do Pavão... Veremos um
narrador a tentar demonstrar o quão risíveis são as tentativas de se domesticar uma
ordem temporal, porque um pequeno incidente desata uma série imponderável de
acontecimentos, todos eles imprevisíveis. Do mesmo modo como o cego de Viva
o povo... se debruça sobre as histórias do livro, reunindo-as sob a égide de um
passado, o narrador dO feitiço da ilha... vai atirar-se em direção a séries de
futuros, elencando-os e deles escolhendo o melhor, entre vantagens e
desvantagens... A diferença, e a força mítica do livro está aí, ao lado de sua
“fraqueza” como romance histórico..., a diferença, eu dizia, é que o narrador, ao
fim e ao cabo, escolhe de fato um futuro, e, escolhendo um futuro, demonstra ser
capaz de alterar a História, já que terá sido capaz, então, de ter escolhido um
passado... Observe o esforço narrativo em ação:
... No primeiro futuro que lhes foi dado a conhecer, um súbito ataque de
663
Karl Erik SCHOLLHAMMER, “Estudos Culturais — Os novos desafios...”, op. cit. (itálicos meus).
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
377
erisipela incapacitou o intendente Tomé Ferrão, fortalecendo as hoste de (...), mas
também alimentando as ambições de (...), a ponto de, quando os quatro tomaram
ciência do que ocorria, terem corrido de volta aonde estavam antes. Noutro deles,
o mestre-de-campo perdia de vez a razão e passava a (...). Oh, senhoras e
senhores, como os futuros são caprichosos! Num deles, acontecia tudo o que
gostariam que acontecesse, com a ilha livre, em paz e harmonia, mas Hans morria
por mordida de cobra. Regressando às pressas, salvaram Hans das presas da
jararaca (...), mas o futuro que substitui este lhes mostrou o mestre-de-campo (...)
na condição de duque e tirano da ilha e mandando esquartejar Balduíno Galo
Mau (...). Em outros futuros (...), todos os habitantes submetidos a um jugo
cruento, voluntarioso e sem peias. Em outro, as frotas portuguesas (...) trazendo
de volta tudo o que os quatro queriam para sempre abandonar e esquecer. Em
ainda outro deles, os acontecimentos levaram Balduíno à posição de rei da ilha,
(...) mas o que vinha depois, em matéria de devassidão, (...) os fez desistir. (...) E
todos os futuros, depois de descartados, voltavam aleatoriamente, aparentando a
mesma face mas sutilmente modificados, de modo que quase se
desesperançaram, até que lhes apareceu uma revolução no quilombo... (O feitiço
da ilha..., p. 314-315)
— Agora — disse ele —, fechemos este flanco LaCapra e voltemos à
minha pergunta de antes: em quais momentos seria produtivo caminhar na mesma
via de White, só que no sentido oposto...
— Você se refere à inversão que o White fez das formulações do Auerbach
e do Gombrich, que perguntam pelos componentes ‘históricos’ de uma arte
‘realista’, e o White pergunta pelos elementos ‘artísticos’ de uma historiografia
‘realista’, não é isso? Bom. Podemos utilizar raciocínios do White acerca dos
modos de operação do discurso histórico para tratar momentos do Viva o povo...,
momentos ficcionais que podem ser abordados de maneira semelhante. Veja:
Hayden White diz que é possível chegar a um sentido possível de uma estória
através da detectação da “modalidade” por meio da qual foi contada aquela estória,
e isso é o que ele chama de “explicação por elaboração de enredo”.
664
E ele
continua. Ouça: “Se, ao narrar sua estória, o historiador lhe deu a estrutura de
enredo de uma tragédia, ele a ‘explicou’ de uma maneira; se a estruturou como uma
comédia, ele a ‘explicou’ de outra maneira”.
665
Muito bem, agora vamos aplicar
esse raciocínio ao trecho, por exemplo, em que João Ubaldo aborda a Batalha de
Tuiuti, da Guerra do Paraguai. Ele trabalha com um narrador que tem a sua própria
cabeça, não permeável a possíveis incorporações, não solidário a este ou àquele
personagem, mas somente aos orixás brasileiros, que ele trata como deuses.
664
“Introdução — A poética da História”, op. cit., p. 23.
665
Id., ibid.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
378
— E ao incorporar deuses onipotentes e oniscientes — disse ele —, o
narrador transforma-se então em um narrador onipotente e onisciente...
— Sim, e João Ubaldo criou para essa passagem da Guerra do Paraguai
nada menos que um narrador épico, o que pode significar que ele a vê, ou assim
quis que ela, a guerra, surgisse em seu romance: como um acontecimento épico.
— E quais são para White os modos de elaboração de enredo?
— Você quer dizer as “explicações por elaboração de enredo”... São
quatro: a estória romanesca, a tragédia, a comédia e a sátira. E ele diz: “Pode
haver outros, e é provável que um determinado relato histórico contenha estórias
vazadas num modo como aspectos ou fases do conjunto inteiro de estórias postas
em enredo de outro modo”.
666
— Hum... Esse trecho ficou confuso: não me pareceu bem escrito — disse
o meu interlocutor —, mas entendi que ele abre aqui a possibilidade de um relato
apresentar variados tipos de elaboração de enredo, e conseqüentemente variados
tipos de explicações surgidas a partir das elaborações de enredo contidas no texto.
E podemos, realizando a operação inversa, aplicar ao texto ficcional de Viva o
povo brasileiro essa observação: Viva o povo... surge aqui como comédia, como
sátira, como estória romanesca e também como texto épico.
— Você tirou todas as palavras da minha boca... — e, pegando capacete,
lança e escudo, demorei-me um pouco mais naqueles campos alagados do Tuiuti.
5.9. CANTA, Ó, MUSA!”: UMA DESCRIÇÃO INTERPRETATIVA
— Eu gostaria de me deter um pouco mais na narrativa homérica e no
conjunto de cantos que, reunidos, formam o poema épico conhecido como A
Ilíada.
667
— Aqui está — e o meu interlocutor colocou o livro sobre a mesa.
A Ilíada — comecei —, guerra monumental de homens monumentais
auxiliados por deuses monumentais, tem como um dos pivôs uma mulher, Helena
de lindos cabelos, filha de Zeus porta-égide. Os troianos, tendo à frente
666
Id., ibid.
667
HOMERO, A Ilíada, Portugal, Publicações Europa-América, s/d.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
379
Alexandre, seu segundo marido, retêm-na... e por aí vamos...
668
O que quero
mostrar aqui, em funcionamento, é o diálogo que o narrador estabelece com a
narrativa homérica nesse Capítulo 14 de Viva o povo brasileiro.
669
Veremos aqui
o narrador, embrenhado em duas culturas, apoderar-se de um discurso clássico e
bastante cultivado pelo próprio escritor, deslocando-o para um outro contexto
épico, composto por outros personagens heróicos e motivado por uma outra causa.
João Ubaldo Ribeiro recria o discurso homérico para dar conta da intromissão dos
orixás brasileiros na Guerra do Paraguai, de 1864 a 1870.
— Antonio Risério chamou este capítulo de uma autêntica Ilíada Negra.
670
— É uma feliz expressão — concordei.
671
— No lugar de uma Guerra de
Tróia, ou a tomada de Ílion, uma guerra igualmente novelesca, sanguinária e
668
— Ubaldo pode continuar esta descrição do mundo grego com uma crônica de 1969 — disse o
meu interlocutor, divertindo-se com a minha pastinha das antiguidades. E ele leu: — “Nos
tempos heróicos houve uma guerra, conhecida como a guerra de Tróia. Oficialmente, a guerra
foi por causa de Helena, mulher de Menelau (...). Na realidade, sabe-se que os troianos tinham
descoberto petróleo e os gregos decidiram intervir, para manter a integridade ideológica da
Ásia Menor. (...) Mais tarde os gregos ficaram muito civilizados e produziram grandes
espíritos, como Sócrates, que fazia perguntas, Platão, que dava respostas, Aristóteles, que dava
diretrizes à vida política, e Alcebíades, que dava qualquer coisa. Havia também Sófocles, que
escrevia peças de teatro e depois distraía-se dançando nu e untado de óleo. Essa gente de teatro
sempre foi muito estranha. (...) Os gregos tinham uma organização social e política perfeita.
Todos votavam, com exceção dos escravos, dos metecos, das mulheres, dos ostracizados e de
outros indesejáveis. (...) Os gregos mais famosos eram os filósofos. Todos os outros gregos os
admiravam, porque eles não faziam nada a não ser falar mal do governo, discutir o tamanho do
sol e reclamar contra a falta de subvenção ao ensino. Houve diversas escolas de filósofos, entre
as quais os sofistas, que distorciam o pensamento alheio, os epicuristas, que gostavam da boa
vida, os estóicos, que não gostavam de nada e os cínicos, que só queriam perturbar” (Jornal da
Bahia, 23 e 24 fev. 1969
).
669
— Referido por Haroldo de CAMPOS — completei, em nota —, naquela sua comparação com o
Catatau, de Leminski, como “... o esplêndido capítulo 14 da gesta ubáldica. Datado do
Acampamento de Tuiuti, 24 de maio de 1866, nele se relata o embate entre os soldados
brasileiros e o exército paraguaio, narrado agora em termos da refrega homérica, com apurados
giros estilísticos, substituindo-se os deuses do panteão grego pelas divindades do céu iorubá,
com seus vistosos atributos e nomes sonoros...” (“Uma leminskíada barrocodélica”, Folha de
S. Paulo, 2 set. 1989
).
670
“Viva Ubaldo brasileiro” (p. 91-102), in VÁRIOS AUTORES, João Ubaldo Ribeiro, Cadernos de
Literatura Brasileira, op. cit., p. 101.
671
— Embora — e abri uma nota — sua origem esteja em Oswald de Andrade, que viu, mas na
obra de Jorge Amado, essa espécie de Ilíada Negra, conforme nos diz Pierre Rivas. — E li,
associando as justificativas de Oswald de Andrade ao espírito desse Capítulo 14 de João
Ubaldo Ribeiro: — “... as figuras homéricas de Jorge Amado tornam supérfluo o
aprofundamento interior. Seu clima é a ação: seu meio de comunicação é a aventura; seu
destino é o de querer viver. Obra de rapsódia e canto de trovador” (in Ponta de lance,
“Fraternité de Jorge Amado”, citado por Pierre R
IVAS, “Fortuna e infortúnios de Jorge Amado
(recepção comparada da obra amadiana)” (p. 13-43), in Rita OLIVIERI-GODET & Jacqueline
PENJON (orgs.), Jorge Amado: leituras e diálogos em torno de uma obra, Casa de Palavras,
Fundação Casa de Jorge Amado, Salvador, Bahia, 2004, p. 37).
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monumental entre brasileiros e paraguaios; em substituição aos imortais do
Olimpo a ajudar aqueus e troianos, os movimentos do mesmo modo apaixonados
dos orixás brasileiros a contribuir para o extermínio do povo de Solano López; no
lugar dos apostos qualificativos das características de cada herói olímpico, os
apostos adaptados ao feitio de cada orixá; no lugar de deuses, santos.
— Você pretende fazer na sua tese uma leitura comparada?
— Não sei. João Ubaldo transforma a sua narrativa da Guerra do Paraguai
em uma matéria mítica, e miticamente a organiza, aproveitando do poema épico
de Homero o tema, os pontos dramáticos e a forma. O tema: a guerra entre os
homens, a velha guerra, sempre presente em sua história. Os pontos dramáticos: a
existência de uma dimensão mítica habitada por deuses ou orixás; sua intromissão
em assunto de homens; sua angústia diante da morte de seus filhos mais
valorosos; o orgulho que não abandona seus corações; a estrutura de
acontecimentos e a descrição do espaço, do tempo e dos personagens envolvidos
na grande querela. Observe — segui — que essa dimensão mítica expõe o modo
como os próprios brasileiros, ou melhor aqueles brasileiros, viviam aquela guerra.
— A sua própria fala está funcionando sob esta forma...
— É verdade, e é isso o que mais certamente nos vai entreter: a forma do
texto, ou seja, a linguagem utilizada tanto pelo poeta quanto pelo nosso narrador,
agora épico, a pedir a ajuda ao divino, corporificado pelas musas, no dar conta
daquela que foi a mais antiga guerra supostamente acontecida, e pelos santos,
mortificados pelo passamento de seus filhos mais queridos. A forma do texto
constitui uma categoria soberana, a influenciar, comandar e iluminar o tema e os
pontos dramáticos presentes nos dois textos de guerra.
— Permita-me citar — disse ele, retirando mais um livro de nossas
infinitas estantes —: “Nesse sentido, consideram-se os conteúdos, também eles,
matérias formais”,
672
escreve Roberto Corrêa dos Santos, que diz acerca da
tragédia de Sófocles o mesmo que poderíamos afirmar dA Ilíada: que “manifesta
toda a sua força, em virtude da exploração ao extremo de sua potência formal”.
673
— Continue — pedi.
672
“Estados da forma” (p. 83-88), in VÁRIOS AUTORES, Revista de Estudos Literários, Ipotesi, da
Universidade Federal de Juiz de Fora, jul.-dez. 1999, Juiz de Fora, EDUFJF, 1999, p. 84.
673
Id., p. 86.
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— Certo. Agora, uma outra citação, e pegou de outro lugar: “... o divino,
em Ubaldo, não está no Deus judaico-cristão”, escreve Antonio Risério, “mas no
politeísmo nagô-iorubá, com o seu elenco de orixás façanhudos e faiscantes”.
674
— Sim, são estes orixás “façanhudos e faiscantes”, são aqueles deuses
luminosos e eloqüentes, ou, antes, a linguagem de que são feitos santos e deuses, a
nossa substância, o nosso motivo, a razão de ser desta razão que aqui se está a formar.
— Pelo que percebi, você vai lançar-se a uma descrição do
comportamento narrativo de seu narrador sem cabeça, agora com uma cabeça
épica, e para isso tenho aqui uma boa citação do professor Roberto Corrêa dos
Santos, para quem as categorias da descrição e da interpretação se comportam do
seguinte modo: a interpretação é uma força que avalia a descrição, mas não
consiste, em relação a ela, em “uma fase posterior, em um acréscimo requintado
sobre os dados já ordenados. A interpretação não é um depois”, continua o
professor, “nem mesmo um antes, mas um com, em que ambas — descrição e
interpretação — se vêem transformadas”.
675
O que acha? — perguntou ele.
— Acho perfeita a sua intromissão. Esse jogo da descrição e da
interpretação contaminando-se mutuamente e assim metamorfoseando-se à
medida que avançam sobre o seu objeto, no caso presente, um objeto textual, me
parece bem mais estimulante que o jogo tradicional, que tratava a descrição como
uma espécie de duplo minucioso de seu objeto, ou a versão decupada, exposta,
aberta à visitação pública do olhar estudioso...
— Um jogo que via a interpretação como uma visão deturpada de algo,
deturpada porque pessoal, subjetiva, parcial e, portanto, longe de um sentido
neutro só alcançável através da pontiaguda e desinteressada atividade descritivo-
analítica — disse o meu interlocutor, num surto de eloqüência. E continuou, dessa
vez citando: — “Assim, por privilegiar-se isto ou aquilo”, escreve Roberto Corrêa
dos Santos, “separou-se de modo simplista: a interpretação está para o sujeito,
674
“Viva Ubaldo brasileiro” , op. cit., p. 96.
675
“A história partida” (p. 11-23), in Para uma teoria da interpretação — Semiologia, literatura e
interdisciplinaridade, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989, p. 14.
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assim como a descrição e a análise estão para o objeto”.
676
Mas não — disse ele,
triunfante —; a interpretação “sofre a ação daquilo sobre o que atua”.
677
— Isto é um convite a que iniciemos, nós mesmos, eu e você, meu caro
interlocutor, através do ato interpretativo, uma guerra, uma guerra com a leitura e
com as palavras em campo. O motivo da guerra é a produção de um novo texto.
Ao final, tomaremos café, sopesando a tarefa realizada. Nossa interpretação anseia
por ser a reescritura das duas guerras: a reescritura da Guerra de Tróia, a
reescritura da Guerra do Paraguai, descrevendo-as, interpretando-as. Nosso olhar
estará depositado sobre um combate de cada uma das duas. A extensão da guerra
não tem aqui qualquer importância. Valem as palavras ditas pelo guerreiro e seu
inimigo entre um ou outro dardo, e não o tempo de combate. Um único segundo
antes da morte, a olhar para o adversário, em algum campo de guerra, significa e
compreende a guerra inteira.
— Você tornou-se, subitamente, épico...
— À nossa frente, à frente, portanto de nossa tarefa descritivo-
interpretativa, dois universos de mitos e mistérios; à nossa disposição, a
linguagem utilizada para a “apalavração” desse universo. Nossa vontade de
combate configura o nosso método, o confronto de dois textos de guerra, levando-
se em conta os três aspectos que mencionei acima: o tema, os pontos dramáticos e
a forma. Nosso objetivo: flagrar o narrador em mais uma de suas muitas
incorporações, a incorporação de um espírito épico em sua forma de narrar.
— Escreve Roberto Corrêa dos Santos — citou mais uma vez o meu
interlocutor —: “A interpretação quer escrever sempre, diferente cada vez que
tocar um texto. Como quem rasga”.
678
— Isso é bonito. Rasguemos então o canto vigésimo dA Ilíada, “A batalha
dos deuses”, do suposto Homero, aquele acerca de quem não se sabe se existiu, e o
Capítulo 14 do romance Viva o povo brasileiro — e me levantei, procurando com
os olhos o café. — Diante dos dois textos, a nossa leitura será antes de tudo
composta de “cortes, destaques de aspectos e, sobretudo, esquecimentos”,
679
676
Id., p. 15.
677
Id., p. 14.
678
Id., p. 21.
679
“O convite ao olhar” (p. 3-9), in Para uma teoria da interpretação..., op. cit., p. 4.
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segundo as palavras de Roberto Corrêa dos Santos, um autor de quem você gosta e
que dessa vez eu consegui citar antes que você o fizesse... Diante dos dois textos,
nossa ação equivalerá a um golpe de olhar. Vou valer-me aqui de uma imagem que
é sempre muito rica e muito adaptável. Ouça: estamos posicionados no meio da
plataforma de uma estação de trens no exato momento em que por nós passam ao
mesmo tempo, porém seguindo diferentes direções, duas locomotivas. Não
podemos mirar ambas simultaneamente, porque está cada uma de um lado, mas
somos capazes de vê-las com o rabo dos olhos. Pense numa linha imaginária
horizontal, perpendicular à direção dos trilhos, começando em uma janela do
primeiro trem, atravessando nossa cabeça, a entrar por um ouvido e sair pelo outro,
e terminando em uma janela do segundo trem. Esta linha imaginária só poderia
existir, em seu ângulo perpendicular, por um átimo de segundo, o segundo exato em
que as nossas específicas janelas se defrontam, intermediadas pela nossa atenta
figura, ali parada na plataforma. No átimo seguinte as janelas já se afastam, indo
cada qual para um destino oposto, criando-se assim uma diagonal. Esse átimo de
segundo deve ser congelado, e o relacionamento que essa linha estabelece entre nós
e as duas janelas das duas locomotivas em alta velocidade deve ser capaz de
representar a relação que estamos a estabelecer entre os dois textos de guerra...
— Sem “a aflição do controle”, escreve Roberto Corrêa dos Santos, “sem o
impulso de reter na análise o objeto”...
680
Os objetos, no caso, já partiram, cada qual
em sua direção. Não esqueçamos — continuou por mim o meu interlocutor — de
que algumas locomotivas são como alguns textos: não param em determinadas
estações, e alguns textos, assim como algumas janelas, se defrontam.
— Sim — e retomei. — Homero conta a sua guerra através de um texto
épico, originalmente em versos e eventualmente transposto para a prosa. A marca
épica, de todo modo, se mantém e dá o tom à narrativa. Do mesmo modo faz João
Ubaldo Ribeiro em seu combate em Tuiuti. Uma das principais características da
sintaxe épica é a utilização à farta de apostos explicativos e descritivos antecedendo
ou procedendo os nomes dos personagens. Através dos apostos, os nomes adquirem,
dentro do texto, suplementos que os transformam em algo mais do que são. O aposto
retira os nomes de seu ordinarismo e dá-lhes qualidades que os singularizam, num
680
Id., ibid.
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claro efeito poético de celebração. Tudo no épico é celebrativo, porque tudo deve ser
suficientemente marcado para que possa, no futuro, manter-se vivo.
681
— É verdade — disse o meu incansável interlocutor, e pegou o texto
homérico. — O banquete não é apenas o banquete, mas o banquete onde todos
são iguais. A Aurora, além de deusa, é referida como a Aurora do véu de açafrão,
ou a Aurora dos dedos róseos... que alguns traduzem como rosidáctila...
— Pois então: estes dois exemplos nos servem, agora, para que possamos
fazer uma distinção. Por vezes o aposto é mero suplemento, o caso da Aurora, que
você pescou aí, pelo qual suas características originais são simplesmente realçadas:
a cor amarelada da Aurora, a cor amarelada do açafrão, os dedos cor-de-rosa como
os raios do sol, e um véu, a participar aqui como poesia. Em outros momentos, o
aposto cumpre uma função ideológica: se, durante o banquete, todos são iguais, será
durante o banquete que se poderá instaurar um espaço democrático; será durante o
banquete que se processarão as decisões encaminhadoras da narrativa. É importante
que, ao menos no banquete, sejam os homens todos iguais, de vez que na guerra,
assim como no amor, os homens são, antes de tudo, diferentes. E é porque são
diferentes que há nesta vida coisas como o amor e coisas como a guerra.
— Estamos ambos, eu e você, muito solenes agora... E cito mais uma vez
o professor Roberto Corrêa dos Santos, para quem os principais processos da
forma são a seleção, a combinação e a repetição. Fale um pouco da importância da
repetição no texto homérico — pediu ele.
— A repetição dos apostos em um texto de guerra como A Ilíada tem a
função de um martelo, o martelo da memória. Graças à repetição conseguimos
memorizar os atributos dos nomes e, como resultado, abocanhar um pouquinho de
eternidade: trata-se de um rasgo de memória diante daquilo que se vai extinguir no
instante seguinte. A repetição constitui um dos modos de se comportarem o excesso
e o desperdício...
— Excesso e desperdício, perdão por interromper, mas não posso deixar
passar, que “fazem parte, por mais paradoxal que possa parecer, do que se
costumou chamar de economia textual”,
682
escreve Roberto Corrêa dos Santos.
681
— “Com uma retórica explicitamente homérica” — citei, de uma revista —, “João Ubaldo
moderniza e abrasileira o estilo da Ilíada, usando todos os elementos formais do épico, os
epítetos, as repetições, a sonoridade da toada quase hipnótica” (Rodrigo L
ACERDA, “Além do
delírio”, Cult, nov. 1997
).
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— Então — continuei —, uma vez caracterizado Aquiles como o divino, ou o
de pés rápidos, ou como o filho de Peleu, a princípio não seria mais necessária a
repetição da especificidade, mas ela ocorre. A cada vez que o nome de Hera aparece,
está ali ao lado, grudada, insistente, a sua marca: de níveos braços. Um narrador
romanesco não se comporta assim em relação à descrição de seus personagens, mas
um narrador com a cabeça no texto homérico, um narrador épico, sim.
— Como se desenvolvem os pontos dramáticos nos dois textos? Em quais
momentos se aproximam; em quais se afastam?
— O Capítulo 14 de Viva o povo... funciona como uma amostra reformulada
dos principais momentos e motivos dA Ilíada: um — e contei nos dedos da mão —,
os lugares simbólicos de Zeus e de Oxalá diante dos outros deuses e dos homens;
dois, a distribuição das forças nos dois campos adversários e as intrigas entre deuses
e orixás: os olímpicos a dividirem-se entre aqueus e troianos, os santos em bloco a
ajudar os brasileiros, com exceção de um, cuja traição será decisiva para a revanche
paraguaia; três, a teimosia e o orgulho de Aquiles, de um lado, a teimosia e o
orgulho de Ogum, de outro, e a sua posterior capitulação diante dos perigos da
derrota iminente; e quatro, o amor dos deuses e dos orixás por seus filhos e filhas e
a importância do pequeno relato de vida do combatente à hora da morte: o que vem
a ser o estabelecimento de seu “lugar no mundo”.
— Será então a guerra a única oportunidade de os negros e os pobres se
destacarem; será então na guerra que terão eles um nome, uma localização e uma
história de vida, porque na vida fora da guerra voltam a ser o que sempre foram...
— Sim — eu disse. — Lembre-se do que aconteceu ao negro Budião
quando retornou de sua participação na Guerra dos Farrapos: seus papéis
alforriantes não valiam nada na Bahia; de escravo passou a herói e de herói voltou a
escravo... “Isto aqui não tem valor nenhum”, disse-lhe o homem, “isso é coisa da
Província do Rio Grande”, “Não, é do Império”, diz-lhe Budião, “é do Imperador ”,
“Para nós é um escravo fugido do Engenho do Manguinho” (Viva o povo..., p. 313).
— Vamos então ao primeiro ponto.
— Perfeitamente: os lugares simbólicos de Zeus e Oxalá. O canto vigésimo
tem início com Zeus, o ajuntador de nuvens, falando a todos os deuses do Olimpo,
reunidos em assembléia — e impostei a voz —: “Preocupo-me com esses homens,
682
“A história partida”, op. cit., p. 20.
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ainda que se percam. No entanto, vou ficar num recesso do Olimpo, sentado, e o
espetáculo deles encantará a minha alma; ide vós, os outros deuses, ao encontro dos
troianos ou dos aqueus; ajudai um dos dois partidos, cada qual segundo a sua
idéia”.
683
Do outro lado do mundo, do outro lado do tempo, em campos distantes
chamados de Tuiuti, brasileiros e paraguaios digladiam, e morrem valorosos
homens de ambos os lados. “Oxalá, pai dos homens, vê as batalhas. (...), e viu (...)
quando seu filho Oxóssi dardejou para fora dos matos, visível somente para ele
como um raio azulado (...). Que queria Oxóssi (...) nessa batalha dos homens, em
que muitos bons haveriam de morrer, se estava escrito assim?” (p. 440-441).
— Oxalá, pai dos homens, e Zeus, pai dos deuses, ocupam então lugares
semelhantes nas duas guerras... — disse ele. — Permanecem os dois sentados,
espectadores de batalhas, e nada fazem...
— Nada fazem. Oxalá, tal como Zeus, o glorioso filho de Crono, também
tem consciência de que não pode intrometer-se, senão indiretamente, através de
conselhos. Zeus ordena a Témis que chame todos os deuses à assembléia, depois da
qual serão redistribuídos para a guerra. É o máximo que se permite. “Sentes alguma
inquietude a respeito dos troianos e dos aqueus?”,
684
pergunta-lhe Posídon, Aquele
que sacode a Terra. E a resposta de Zeus, o ajuntador de nuvens, é simples e
significativa: “Preocupo-me com esses homens, ainda que se percam”.
685
Este
preocupar-se com os homens, “ainda que se percam”, representa toda a
ambigüidade que é a própria matéria formadora dos deuses, sempre a meio caminho
entre o destino dos homens e a necessidade de se lutar contra esse mesmo destino.
— A preocupação revela seu divino paternalismo — disse ele —, e a noção
de que vão perder-se revela a consciência de que do destino ninguém escapa.
— E a mesma consciência, embora relativizada, a tem Oxalá, filho de
Olorum, senhor da alvura, respondendo a seu filho Oxóssi, que lhe vai pedir ajuda:
“Há muitas coisas que estão escritas”, diz Aquele que tem mais nomes, admitindo a
irrevogabilidade do destino. Em seguida reconsidera: “... há muitas mais que
compete aos homens escrever por si mesmos, por que sua almas são livres e, se
guerreiam, é porque escolheram a guerra”. No entanto, se Oxalá interrompe aqui
683
A Ilíada, op. cit., p. 284.
684
Id., ibid.
685
Id., ibid.
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seu pensamento, não tem como justificar sua intromissão, mesmo que somente
através de conselhos. Por isso arremata, olhando bem no fundo dos olhos de seu
valoroso filho Oxóssi: “Mas não te aflijas, pois também está escrito que quem com
fé combate por aquilo de bom em que acredita terminará por vencer” (p. 445).
— Já entendo aonde você quer chegar: se os brasileiros, seus filhos, não
vencerem a batalha em Tuiuti, isto significará que afinal não têm a fé no bom
combate, e isto resultaria na ruína de si mesmos, santos orixás, uma vez que
existem graças à fé que neles é depositada. Logo, devem os brasileiros vencer,
sim, e para que vençam precisam contar com ajuda, e uma ajuda quer dizer uma
intromissão, mesmo que numa guerra laica.
— Exatamente. E agora passo ao segundo ponto — e passei. — Quanto à
estrutura de ação dos personagens, olímpicos ou orixás, podemos observar que a
distribuição das forças e das ajudas na Guerra de Tróia se dá de modo
aparentemente diverso daquele apresentado pelo narrador de João Ubaldo em sua
Guerra do Paraguai. Os deuses, no combate que é a matéria do vigésimo canto, já
tendo assumido suas preferências por este ou aquele humano, entre gregos e
troianos, iniciam a luta e de certo modo transformam uma batalha que não era
deles em assunto olímpico, aproveitando assim a oportunidade para o aparo de
suas próprias diferenças. Podemos ver que, em Homero, os adversários, aqueus e
troianos, pertencem a uma mesma cultura e são, por isso, assistidos ambos pelos
mesmos deuses, que então se dividem, segundo a sua predileção. Vou ler.
— Não, deixe-me ler — pediu ele —: “Hera foi na direção do círculo dos
navios, bem como Palas Atena, Posídon (...) e (...) Hermes (...). Hefesto ia com
eles (...). Na direção dos troianos foram Ares (...) e, com ele, Febo [Apolo] (...) e
Ártemis (...), Latona, Xanto e Afrodite, amiga dos sorrisos”.
686
— Obrigado. Em Viva o povo..., participamos apenas de um dos lados da
querela, o dos brasileiros e seus santos orixás...
— O que não significa estejam os paraguaios desassistidos... — disse ele.
— E não estão. Oxalá, o que tudo vê, viu que “as entidades paraguaias,
estranhos seres de inacreditável aparência, estavam prestes a sair das águas,
árvores e nuvens, para também socorrer seus filhos” (p. 454). O nosso narrador
tem clara predileção por seus filhos brasileiros...
686
Id., p. 285.
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— Sim, ele é o narrador do lado de cá. Mas ele também deixa clara a
pouca concórdia entre os orixás brasileiros...
— Lembre-se de que este narrador está em sua fase épica, o que significa,
também — eu disse —, que ele não problematiza o material narrado. Não há, da
parte do narrador, uma “questão”: ele é onipotente, onipresente e onisciente. Ele
precisa narrar, e narrar para ele quer dizer dar conta de uma totalidade... — e eu
continuei. — A revelação das rixas havidas no interior do grupo dos orixás
brasileiros é um detalhe significativo a dar graça e ritmo dramático à Ilíada Negra
de João Ubaldo Ribeiro: um orixá, Omolu, que demonstra, à semelhança do que
ocorre nA Ilíada com os deuses, não estarem os santos sempre unidos, como não
estão e nem nunca estiveram os majestosos olímpicos... Omolu, o orixá que mata
sem faca, “o orixá da peste e da doença, senhor da lepra e da creca”, apresenta-se
a Ogum, “dono do ferro, mestre das armas, ferreiro incriticável” (p. 452), como
voluntário na guerra contra os paraguaios. Ogum, orgulhoso e arrogante, maltrata-
o e dispensa seus serviços, motivado por antiga e insolúvel disputa: Ogum, que é
antes de tudo um ferreiro, deu de presente a Omolu uma faca, a mesma faca que
deu a todos os homens e a todos os orixás para que sejam feitos os sacrifícios aos
santos. Omolu, conhecido como “o que mata sem faca”, realiza seus sacrifícios
matando os animais por exaustão e doença, ausentando-se assim das homenagens
a Ogum, realizadas sempre que se usa uma faca.
— Ótima história!
— Ogum, orgulhoso como quê, dispensa a presença de seu irmão na guerra.
Este, ofendido, inicia, ao término da batalha, uma epidemia de mortais doenças,
durante a qual muitos brasileiros sucumbem... — desculpe lá por toda esta
explicação, mas não pude resistir. Tudo, aqui e acolá, é muito bem arquitetado...
687
— Foi um prazer ouvi-lo. Só estou preocupado porque sinto que estamos
concordando demais... Isto pode resultar enfadonho... — Bom — continuou o
687
— E João Ubaldo deve parte dessa arquitetura ao seu amigo, José de Honorina, que já citei
antes. Ouça — e li —: “’Apenas dei umas informações ao João Ubaldo sobre as coisas dos
orixás’, diz José de Honorina, filho de santo do Axé Opo Afonja, um dos mais importantes
terreiros de candomblé de Salvador (...). Durante o período em que João Ubaldo se isolou em
Itaparica para escrever o romance, ele costumava encontrar-se diariamente com José de
Honorina, sempre às seis da manhã para conversar, principalmente sobre as religiões de origem
africana”. E diz o escritor, dentro da matéria: “’O José de Honorina é depositário de uma
enorme tradição oral, de uma inteligência popular que é impossível encontrar nos livros’”
(Mário Sérgio C
ONTI, “Um brado retumbante”, Veja, 19 dez. 1984).
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meu interlocutor —, essa história que você contou acerca de Omolu é certamente
uma referência de Ubaldo à contaminação dos rios com cadáveres, durante a
Guerra do Paraguai, graças à qual morreram muitos soldados de ambos os lados.
Com relação a isso, encontramos no livro de Julio José Chiavenato, Genocídio
Americano: a Guerra do Paraguai, Capítulo 52, referências ao crime de
contaminação dos rios com cadáveres coléricos a dizimar as populações
ribeirinhas do Paraguai. Chiavenato cita um despacho do Duque de Caxias ao
Imperador Pedro II, datado de 18 de setembro de 1867, em que confessa o crime,
“a ‘guerra bacteriológica’ primitiva” levada a cabo contra os paraguaios. Vou ler:
“O general Mitre está resignado plenamente e sem reservas às minhas ordens; (...)
em tudo, ainda enquanto a que os cadáveres coléricos se joguem nas águas do
Paraná, (...) para levar o contágio às populações ribeirinhas, principalmente às
de Corientes, Entre Rios e Santa Fé que lhe são opostas”.
688
Uma referência de
Ubaldo a essa estratégia pouco digna...
— Não sei... — protestei, para discordar um pouco. — Apenas
provavelmente. Não se sabe, evidentemente, do alcance dessa contaminação, nem se
sabe se morreram apenas paraguaios ou também brasileiros, argentinos ou uruguaios.
O que importa aqui é a presença da doença como fator determinante a preponderar
sobre as armas, ou seja, a simbolização levada a cabo por João Ubaldo Ribeiro:
Omolu, sem muito esforço e muito bem acomodado na copa de uma árvore, mostra a
dimensão de sua força, mais sutil e certeira que a de todos os instrumentos de guerra
reunidos, e acaba levando a melhor sobre os demais orixás. Omolu, ao praticar a
traição, mesmo que motivada por razões pessoais, orienta-se então para o lado dos
paraguaios, abandonando tanto seus irmãos orixás quanto seus filhos brasileiros, e
recupera assim a dinâmica de forças observada no texto homérico.
— Hum... O que tinha tudo para configurar uma participação em
monobloco apresenta então a sua surpreendente dissidência: Omolu, o que mata
sem faca. Agora o terceiro ponto, por favor...
— Com prazer. Aquiles e Ogum ocupam posições semelhantes, tendo-se
em vista o comum sentimento que os (des)motiva: o orgulho. O vigésimo canto
dA Ilíada narra um decisivo combate entre troianos e aqueus, estes últimos já
688
“Mitre e Caxias: contaminando água com cadáveres coléricos”, in Genocídio Americano: a
Guerra do Paraguai, São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 139.
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podendo contar com a presença de seu bravo Aquiles, de pés rápidos, ausente
durante quase toda a guerra por questões de orgulho besta. As razões para a
ausência de Aquiles estão no canto primeiro, que tem por nome “A peste: a ira de
Aquiles” e por tema uma briga insolúvel entre Agamémnon e o bravo filho de
Peleu e da deusa Tétis. Agamémnon e seu irmão Menelau, conhecidos como os
Atridas, representam o principal motivo de estarem os aqueus atocaiados em seus
navios, prontos para a invasão de Ílion ou Tróia, em sangrenta guerra contra seu
povo, os troianos. Menelau, por causa de Helena de belos cabelos, raptada por
Alexandre; Agamémnon, porque lhe tiraram a jovem Criseide, uma prenda de
guerra, devolvendo-a a seu pai. Então...
— Lá está você de novo a me contar coisas que já sei — protestou o meu
interlocutor. — Eu li A Ilíada. Agora deixe-me então ilustrar o que você disse:
“Consinto em devolvê-la, se é o que mais convém (...)”, responde o Atrida,
contrariado. “Mas preparai-me sem tardança uma recompensa, a fim de que eu
não seja o único dos argivos não recompensado”.
689
— E o que responde Aquiles? — perguntei-lhe.
— Aquiles responde, indignado, que não há mais recompensas
disponíveis, e completa: “Não foi por causa dos troianos armados de piques que
eu vim pelejar aqui, pois eles nada me fizeram. (...) Foi a ti, homem de grande
impudência, que nós seguimos, a fim de te agradar, procurando tirar satisfação
para Menelau e para ti, cara de cão”.
690
E Agamémnon, transtornado, decide então
roubar de Aquiles a bela Briseide; Aquiles então se enfurece e renuncia à peleja,
orientado por sua mãe, a deusa Tétis, que assim lhe dirige estas palavras aladas.
Veja como estou pegando o tom...: “Tu, permanece ao pé dos teus navios, (...)
mostra a tua ira aos aqueus: cessa absolutamente de combater”.
691
— Obrigado. Continuo então: Agamémnon é a razão da duradoura fúria do
rápido Aquiles, que durante a maior parte da guerra se mantém em seu navio,
cozinhando seu orgulho, diante dos aqueus e de alguns deuses, que passam grande
parte dA Ilíada a lamentar a ausência de tão valoroso guerreiro. A indignação de
689
A Ilíada, op. cit., p. 14.
690
Id., p. 15.
691
Id., p. 21.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
391
Aquiles deriva do fato de se haver rompido uma determinada ordem: “... me
arrebatais o que me havíeis dado”,
692
diz ele a Agamémnon.
— A guerra teria durado menos, não fosse a ira de Aquiles...
— E do mesmo modo, na segunda parte do Capítulo 14 de Viva o povo
brasileiro, nos campos chamados de Tuiuti, menos filhos valorosos teriam morrido
não fosse a demora de Ogum em entrar em campo. O orixá Ogum, “ferreiro sem
par, senhor da ferramenta, (...) cujo nome é a própria guerra” (p. 443), à semelhança
de Aquiles, o filho rápido de Peleu, também cruza os braços, indignado por não ter
sido o primeiro a ser chamado por Oxóssi, “caçador da madrugada, rei das matas,
senhor da astúcia, imbatível no arco e flecha” (p. 441), que, depois de saudar o
orixá guerreiro, peca por falar demais: “Já lá estamos, nosso irmão Xangô e eu,
ajudando nessa porfia, mas nossa ajuda não é suficiente (...). Eis porque procuro a
ajuda de meu insuperável irmão, o grande Ogum” (p. 443). Ogum responde
imediatamente, e toda a sua resposta significa um desejo de que seja a tradição
mantida e os ritos realizados. Ogum aborrece-se, tal qual Aquiles diante do fato de
Agamémnon lhe ter tomado de volta um presente dado, diante do que ele
considerou uma subversão da ordem: “... devia ser eu o primeiro a ser chamado”,
reclama Aquele cujo nome é a própria guerra. E continua, reivindicando seus ritos:
“Que animais mataram para mim antes da grande batalha? Quem me pediu que
propiciasse bom destino aos ferros dos armamentos?” (p. 444).
— Tanto em toda A Ilíada quanto no combate em Tuiuti podemos
observar uma espécie de lei das compensações a envolver, de um lado, o melhor
guerreiro e, de outro, toda a guerra, como se ambos não pudessem “acontecer” ao
mesmo tempo, como se fossem excludentes... — animou-se ele. — Assim que
Aquiles entra em campo, a longa e sanguinária guerra coma a aproximar-se de
seu fim. Do mesmo modo ocorre com a peleja entre brasileiros e paraguaios
quando Ogum desperta de seu orgulho e põe a mão em suas armas sagradas.
Aquiles e Ogum, os mais esperados e temidos guerreiros, retornam à guerra não
tanto pelos motivos que a guerra oferece, mas por razões pessoais...
— Razões de amor... — suspirei. — Aquiles, transtornado diante do corpo
morto de seu amado Pátroclo, o filho valente de Menécio, urra de dor e raiva. A ira
que cresce em seu glorioso peito supera em cem vezes a ira que vinha nutrindo contra
692
Id., p. 18.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
392
o Atrida Agamémnon por causa de Briseide. O próprio Aquiles reconhece, mais
tarde, ter sido sua ira desproporcionalmente aumentada em razão de seu objeto: uma
mulher... Diz o veloz filho de Peleu: “Atrida, terá valido a pena, para nós os dois (...),
lançarmo-nos na querela que mina a alma, e isto por uma mulher?”.
693
Sua vontade
de vingar a morte de Pátroclo faz-lhe renunciar à ira anterior. Diz-lhe sua mãe Tétis:
“... convoca desde já para a ágora os heróis aqueus, renuncia à tua ira contra
Agamémnon, (...) apressa-te a armar-te para o combate, e a revestir a tua valentia”.
694
— Do mesmo modo...
— Do mesmo modo — continuei —, urra de raiva aquele cujo nome é a
própria guerra: sua revolta dirige-se contra um sonho em que lhe surge a bela
Iansã, deusa dos ares, rainha dos ventos e das tempestades. Ogum ferve de raiva
porque não pode responder a ela, “pois não há como responder a um sonho” (p.
449). Tal como Aquiles, vemos aqui uma ira a substituir outra; um orgulho a
sobrepor-se a outro. Oxalá, pai dos homens, condoído da angústia de Oxóssi por
não ter ido primeiro a seu irmão Ogum, senhor do ferro, chama Exu, “o que
conhece mil ardis e se deleita em estratagemas, o que ri na escuridão” (p. 449), e o
encarrega da missão de convencer o orixá da guerra a abandonar seu orgulho besta
e ajudar seus valorosos filhos no combate em Tuiuti.
— E o que faz Exu?
— Exu penetra “em forma de sonho no sono de Ogum (...). Mas não
entrou como Exu, entrou transmutado na figura de Iansã, deusa dos ares” (p. 448).
Iansã chama-lhe covarde, dorminhoco e orgulhoso, ameaçando-o de nunca mais
deixar que toque em suas coxas macias: “... os meus peitos veludosos jamais outra
vez te aceitarão a cabeça, não mais consentirei que enfies a mão por baixo de meu
vestido” (p. 449), diz-lhe Iansã, ou melhor, Exu, o que trabalha no escuro. Ogum,
ferido por se ver rebaixado por Iansã, esquece o orgulho anterior e entra na peleja.
— Você veja — disse ele — que o narrador não se contenta em fazer uma
reprodução do discurso homérico em seus termos basicamente sintáticos; ele introduz
um elemento que na epopéia grega está velado: a lascívia, a sensualidade...
— Sim. Você está pensando em Iansã, não?
693
— Em nota de pé de página aqui mesmo neste ponto inserida, o tradutor Cascais Franco
observa: “Na Antiguidade, as mulheres eram tidas por naturalmente inferiores, e o seu papel
limitava-se à procriação e à execução das tarefas domésticas” — eu li (A Ilíada, nota à p. 276).
694
A Ilíada, op. cit., p. 275.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
393
— “Muitos aqueus não teriam mordido a terra imensa sob as mãos dos
nossos inimigos, enquanto durava a minha ira”, diz o valoroso filho de Peleu,
Aquiles de pés rápidos — assim leu o meu interlocutor, ignorando a minha
provocação. E continuou: — “Agora, portanto, suspendo a minha bílis: não se
deve nutrir sempre, sem descanso, uma ira ardente”.
695
E diz o orixá: “Não cabe a
mim dormir como um carneiro velho”, berra Ogum, “enquanto morrem na ingrata
guerra os nossos filhos mais valorosos” (p. 450).
— Outra essencial semelhança entre Aquiles e Ogum diz respeito à relação
que mantêm com o ferro. Aquiles — disse eu — não resiste ao brilho e ao ressoar
das ótimas armas que lhe dá o deus Hefesto, ferreiro sem par, assim como Ogum:
“... armas gloriosas, tão belas, como jamais homem algum as trouxe sobre os seus
ombros”.
696
O ferro e o aço incitam-lhe o ardor guerreiro. Diante de tais armas
Aquiles não pode furtar-se ao combate. Ogum, por sua vez, é o próprio ferro e a
própria guerra. Não se faz guerra sem que se homenageie aquele que é conhecido
como o que vai à frente, perdendo a guerra todo o seu sentido se não tiver em suas
dianteiras o orixá ferreiro.
— Se Aquiles aparecesse e em Tuiuti fincasse os pés, seria de Ogum, e
não de Hefesto, que receberia suas gloriosas armas...
— Passo agora — disse eu — ao quarto ponto: como se dá, em meio à
guerra, o amor de um deus ou orixá por seu filho? Estamos em guerra: os mortais
aqui são os homens, não os deuses. Para que morram em paz, devem deixar
garantida a memória de sua passagem sobre a terra. Essa memória reside no
pequeno esboço de sua vida, esboço que empreendem Homero e João Ubaldo tão
logo acontece de o narrador focar um ou outro valoroso guerreiro às portas do
Inferno, ou do Hades. Essa pequena biografia produzida em meio à morte de um
soldado representa a tentativa de deixar bem marcado o seu “lugar no mundo”, ou
o lugar que um dia ocupou, o nome de seu pai, o local de seu nascimento.
Vejamos algumas cenas sanguinárias levadas a cabo por Aquiles, de pés rápidos,
contra Ifítion. Leia para mim, por favor.
— “Aquiles precipitou-se no meio dos troianos (...); e primeiro ele
dominou Ifítion, nobre filho de Otrinteu, destruidor de cidades, ao pé do Tmolo,
695
Id., p. 276.
696
Id., p. 275.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
394
nevoso, na fértil região de Hida. (...) o divino Aquiles atingiu-o, com seu pique,
no meio da cabeça. Esta abriu-se em duas”.
697
— E agora diz Aquiles, dirigindo-se ao morto e, assim, homenageando-o,
como se de fato estivesse a enterrá-lo, realizando os ritos fúnebres. O conhecimento
de Aquiles parece infinito, porque se trata, na verdade, do conhecimento do narrador,
que sabe da vida, e da morte, de todos os guerreiros. Leia, por favor.
— “Jaze, pois, filho de Otrinteu, o mais assustador de todos os homens. Aqui
morres, e nasceste à beira do lago Gigeu, onde fica o domínio de teus pais, perto de
Hilo piscoso e do Hermo turbilhonante”.
698
Agora continue você — pediu ele.
— Certo. Aquiles continua a peleja e acerta mais um: “Demoleonte, (...), filho
de Antenor. O capacete de bronze não resistiu; atravessando-o com ímpeto, a ponta
quebrou o osso, e os miolos (...) espalharam-se todos”.
699
Descrevo agora o lado de
Viva o povo brasileiro. Veja as tristezas que se abatem sobre Ogum diante do fato de
que não conseguiu chegar a tempo de salvar o sargento Matias Melo Bonfim, filho de
Ogum desde menino: “Vinha de Amoreiras, onde florescem os mimos-do-céu e os
passarinhos cantam mais. Deixara seus dois filhinhos, Matilde e Baltazar, sua
mulher Mariocota e sua roça de milho e feijão, deixara sua mãe viúva e sua criação,
prometendo voltar assim que ganhasse a guerra” (p. 450).
— Não voltou...
— Não, não voltou. Ogum atrasou-se e não pôde impedir que a bala
inimiga entrasse pescoço adentro de Matias Melo Bonfim. Em seguida, volta-se
novamente o narrador para a vida de Matias: “... a Morte, a qual lhe aspirou a
alma pela boca, boca que nunca mais beijaria Matilde e Baltazar, nem nunca
mais falaria para contar das belezas de Amoreiras”. O mesmo sucedeu com outro
filho de Ogum, cabo Lívio, que, “ao erguer-se, teve a cabeça fendida pela cutilada
de um sabre e caiu morrendo, a lembrança de sua linda Gamboa, terra onde os
mariscos são fartos e as tardes frescas” (p. 451, todos os realces são meus). Você
veja — disse eu — que o narrador, tal como o faz Homero, interrompe a narração
da guerra para realizar esta espécie de enterro verbal do herói que está a morrer.
697
Id., p. 292, realçou.
698
Id., ibid., realçou.
699
Id., ibid., realcei.
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5 - O VOZERIO DO POVO BRASILEIRO
395
— Você não crê que o narrador, ao retomar essa linguagem homérica,
inserindo-a em uma outra realidade cultural, não está apenas fazendo uma
imitação servil, um pastiche de Homero?
— Não. A retomada que faz Ubaldo da linguagem homérica na Guerra de
Tróia é transformativa tanto de Homero quanto da própria narrativa brasileira que
da forma clássica nesse caso se alimentou. Homero e Ubaldo saem dessa
experiência transformados, já que representam um para o outro, tão distantes no
tempo, uma oportunidade de releitura. Vou citar aqui o seu autor: “A literatura, com
seu poder imaginativo e ficcional, tem exercido constantemente esse trabalho de
reapropriação e de redirecionamento das formas, em especial as clássicas, que,
ativadas e modificadas, vão-se tornando o que foram e o que jamais foram:
revigoradas, produzem outras, então (ir)reconhecíveis”.
700
Essa narrativa da cultura
que vimos aqui, essa terceira guerra, da cultura dos orixás misturada à cultura dos
velhos gregos, para manter-se sempre potente, deve permanecer no tempo presente,
como se as guerras originais de que tratam os textos, a de Tróia e a do Paraguai,
ainda estivessem em pleno funcionamento. As guerra assim continuam, nos campos
de Tuiuti ou ao pé das muralhas da velha Ílion. Os deuses atiram os homens à luta,
os santos orixás ajudam seus filhos valorosos em querela contra os paraguaios. A
descrição da guerra e a própria guerra continuam. Um ponto final não é uma trégua
ou uma capitulação, mas um convite a que se recomece a batalha.
— Que venham novos guerreiros! Há aqui um estandarte de guerra a ser
entregue a uma das partes! Quanto a nós... — começou ele, em tom épico, mas
não conseguindo disfarçar o colossal bocejo.
— Quanto a nós, fartamo-nos de sangue... — disse eu, e fechei Viva o
povo brasileiro. — Merecemos tomar café.
* * *
700
Roberto Corrêa dos SANTOS, “Estados da forma”, op. cit., p. 84.
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6
_________________________________
UBALDO AMADO
A CABEÇA DO NARRADOR NO MUNDO
O escritor dá à sociedade uma arte declarada, visível a
todos nas suas normas, e em troca a sociedade pode
aceitar o escritor.
Roland Barthes
701
— ... o único profissional — no sentido mais amplo da
palavra —, o único profissional literário competente que
eu conheço é Jorge Amado. Tenho uma bruta inveja dele.
João Ubaldo Ribeiro,
em 1968, com 27 anos
702
Se recebemos dinheiro por nossa obra, tudo bem. Mas
escrever para ganhar dinheiro é uma abominação. Essa
abominação se paga com o abominável produto que
assim se engendra.
Ernesto Sabato
703
— Acho que você deve ainda incluir mais um elemento na sua tese —
disse o meu incansável interlocutor. E, diante de meu silêncio, ele seguiu: — Uma
espécie de apresentação biográfica do escritor; apresentação, aliás, que deveria
constar das páginas iniciais do trabalho..., e não começar a ser desenvolvido aqui,
neste ponto, epilogadamente...
701
Roland BARTHES, “O artesanato do estilo” (p. 54-56), in O grau zero da escrita, Lisboa,
Edições 70, 1984, p. 56.
702
“João Ubaldo diz por que Setembro não tem sentido”, A Tarde, 14 e 15 set. 1968.
703
“O outro ofício do escritor”, in O escritor e seus fantasmas, São Paulo, Companhia das Letras,
2003, p. 96.
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6 - UBALDO AMADO
397
— Mas você está cansado... — e eu franzi a testa ao ouvir aquele
“epilogadamente”.
— Eu sei que estou cansado, mas não quero parar agora.
— Bom — e retornei —, não creio que deva inserir nada no começo do
trabalho. Estivemos ao longo de toda essa conversa a conhecer tanto o escritor
quanto o seu texto. Concordo, sim, que eu deva prosseguir e apresentar um retrato
do escritor, mas não ao início. Os fatos da biografia de João Ubaldo Ribeiro, fatos
relacionados à escrita de seus textos, bem entendido, adquirem mais consistência e
significado agora do que se tivessem sido apresentados antes. Antes, uma
apresentação biográfica soaria protocolar. É o que acontece na maioria das teses.
Agora, quase ao fim dos trabalhos, ela se torna, de fato, um conjunto relevante de
informações. Permita-me apresentar, então, um dos meus dois objetos de estudo: o
escritor João Ubaldo Ribeiro. O outro objeto são os romances.
— Você em nenhum momento de nossa conversa se deu ao trabalho de
separá-los. Vai fazê-lo agora?
— Não, vou apresentar escritor e obra.
— Apresente-os, ao menos, de modo original, já que você recusa com
tanta veemência o protocolo... De trás para frente, por exemplo, ou melhor... — e
ele fez uma pausa sorridente —, de frente para trás, já que de trás para frente, do
passado ao presente, é como são apresentadas quase todas as biografias, ou ao
menos as sinopses...
— Vou tentar — e me abasteci das fontes
704
e de mais café.
6.1.
O LUGAR DO ESCRITOR NO MUNDO
— João Ubaldo Ribeiro tem livros publicados na Alemanha, Inglaterra,
França, Itália, Espanha, Holanda, Suécia, Hungria, Noruega, Finlândia, Dinamarca,
Rússia, no Canadá e nos Estados Unidos e em Portugal, Israel e Cuba — disse eu. E
então comecei a retroceder. — Publicou em 2004 o livro de crônicas Você me mata,
704
Informações retiradas, filtradas e rearticuladas a partir da seção “Memória seletiva” (p. 8-14),
da série Cadernos de Literatura Brasileira, João Ubaldo Ribeiro, op. cit.; do livro de Wilson
C
OUTINHO, João Ubaldo Ribeiro: um estilo da sedução, op. cit., p. 8-16; dos sites:
<http://www.releituras.com/joao_ubald.htm> e <http://www.novafronteira.com.br/papo/jubal-
do.htm>; bem como das diversas fontes jornalísticas adiante citadas.
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6 - UBALDO AMADO
398
Mãe gentil e, em 2002, o romance Diário do farol. Em janeiro de 2000, em
Portugal, foi homenageado por alguns escritores portugueses e participou da
Semana de Estudos Lusófonos, na Universidade de Coimbra. Em 1999, foi um dos
escritores escolhidos em todo o mundo para falar ao jornal francês Libération
acerca do novo milênio que então se aproximava. Também nesse ano ficaram
prontas as edições portuguesa e alemã de seu livro O feitiço da ilha do Pavão. O
insólito romance A casa dos Budas ditosos, da série Plenos Pecados, da editora
Objetiva, apareceu pela primeira vez em abril, na IX Bienal do Livro, no Rio de
Janeiro. O lançamento em Portugal tornou-se um assunto polêmico, dada a recusa
de duas redes de supermercados em ter em suas prateleiras essa pequena história,
um depoimento sobre a luxúria. O sucesso em terras lusitanas, não obstante, foi
grande. Venderam-se em poucos dias, segundo os jornais, cinco mil exemplares,
chegando-se, mais tarde, a muitos mil livros vendidos.
— “Não obstante”? — e ele riu. — O sucesso em Portugal foi grande por
causa disso... E as vendas no Brasil?
— Algo em torno de 150 mil exemplares, lembrando-se que o Brasil tem
algo em torno de 160 milhões de pessoas e Portugal tem algo em torno de dez
milhões de pessoas... Sim, eu sei que o que temos de considerar são os números
referentes ao público leitor, ou melhor, comprador, uma vez que comprar um livro
está longe de significar ler um livro, mas são números que devem ser levados em
conta. — E continuei, pedindo-lhe mais café: — Ainda em 1999, escreve, com
Cacá Diegues, o roteiro de Deus é brasileiro, filme baseado em seu conto “O
santo que não acreditava em Deus”. Em 1998, vendeu os direitos de Viva o povo
brasileiro para o cinema, em filme que já está sendo dirigido por André Luís
Oliveira. As crônicas que escreveu para O Globo e O Estado de S. Paulo foram
reunidas no livro Arte e ciência de roubar galinha. Um ano antes, em 1997,
publicou o romance O feitiço da ilha do Pavão e vendeu para Cacá Diegues os
direitos de filmagem do livro Já podeis da pátria filhos. É ainda homenageado na
Avenida Marquês de Sapucaí pelo romance Viva o povo..., escolhido como
samba-enredo da escola Império da Tijuca para o carnaval de 1987. Detém, em
1996, a cátedra de Poetik Dozentur na Universidade de Tubigem, Alemanha. Seu
primeiro trabalho para crianças, Vida e paixão de Pandonar, o cruel, em edição
alemã, recebeu em 1995 um prêmio concedido ao melhor romance infanto-juvenil
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6 - UBALDO AMADO
399
sobre minorias não-européias, o Die Blaue Brillenschlange, em Zurique. Também
nesse ano de 1995 publicou Um brasileiro em Berlim.
— E a Academia Brasileira de Letras?
— É agora, um ano antes. No dia 8 de junho de 1994, João Ubaldo,
recebido pelo acadêmico Jorge Amado, sentou-se na cadeira do jornalista Carlos
Castello Branco, a de número 34, para a qual havia sido eleito no dia 7 de outubro
do ano anterior.
705
Ainda em 1994, recebeu, na Feira de Frankfurt, o prêmio Anna
Seghers, exclusivamente dirigido a escritores alemães e latino-americanos. Ao lado
de Cacá Diegues e Antonio Calmon, termina a adaptação para o cinema do romance
de Jorge Amado, Tieta do Agreste, com Sônia Braga e direção de Cacá Diegues.
João Ubaldo Ribeiro já tinha trabalhado com adaptações em 1993, quando entregou
à série Caso Especial, da TV Globo, o seu conto “O santo que não acreditava em
Deus”, com Lima Duarte a fazer novamente o papel central, já tendo estado na pele
do obstinado sargento Getúlio, filme dirigido por Hermano Penna, já analisado aqui
detidamente. O filme, não o Hermano Penna... — E prossegui: — Em 1991, outro
romance seu, O sorriso do lagarto, que havia sido publicado em 1989, foi ao ar,
desta vez sob a forma de uma minissérie para a TV Globo, adaptada por Walter
Negrão e Geraldinho Carneiro, com a participação de Tony Ramos, Maitê Proença
e José Lewgoy. Esse foi o ano em que retornou ao Brasil, depois de passar quinze
meses em Berlim, a convite da Deutsch Akademischer Austauschdienst, a escrever
para o jornal Frankfurter Rundschau e a produzir algumas peças para rádio. O seu
“Santo que não acreditava em Deus”, antes de virar Caso Especial, foi peça
radiofônica adaptada pelo próprio autor. Nesse mesmo ano voltou a escrever todos
os domingos uma crônica para o jornal O Globo, começando também a publicar a
mesma crônica nO Estado de S. Paulo. Em 1990, antes de se mudar com toda a
família para Berlim, publicou A vingança de Charles Tiburone, seu segundo livro
705
— “Meu ‘namoro’ com a Academia foi longo”, disse João Ubaldo. “Quando o Austregésilo de
Athayde morreu, o senador Álvaro Pacheco se inscreveu para concorrer à vaga dele. Eu não
estava pensando no assunto quando, um belo dia, me ligou o Afrânio Coutinho. Ele queria me
ditar a carta à ABL, como candidato à cadeira. Jorge Amado me aconselhou a não me
candidatar. ‘Você é um grande escritor. Se você se candidatar agora, competirá com o Álvaro
Pacheco. Você vai fazer o papel do candidato do contra’. Aí recusei. Em 1993 a cadeira
número 34 vagou, com a morte do Carlos Castello Branco, e o Cândido Mendes me convidou a
concorrer, desde que, caso ganhasse, não falasse nunca mais mal da Academia. Aceitei. O
Jorge escreveu cartas a meu favor e acabei eleito. Fui o pior candidato da história da ABL”
(Luís Antônio G
IRON, “Ubaldo enfrenta o diabo”, Cult, mai. 2002).
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6 - UBALDO AMADO
400
infanto-juvenil. Viva o povo brasileiro, considerado seu mais importante trabalho,
foi publicado seis anos antes, em 1984, ano em que recebeu por ele o Prêmio Jabuti,
na categoria “Romance”, e o Golfinho de Ouro e participou, a convite de uma TV
estatal canadense, de um grupo de filmes sobre literatura latino-americana; ao lado
do seu, os nomes de Gabriel García Marques e Jorge Luis Borges. Terminado o
Viva o povo..., o autor lançou-se à tarefa de preparar sua tradução para o inglês,
acabada dois anos depois e, segundo o autor, bem mais trabalhosa que a própria
escritura do romance. Durante esses dois anos, João Ubaldo Ribeiro começou, à
viva força, a trabalhar com um microcomputador. Vida e paixão de Pandonar, o
cruel estreou, em 1983, a presença do autor na literatura infanto-juvenil. Também
nesse ano estreou o filme Sargento Getúlio, arrebanhando, no Festival de Gramado,
como já vimos, muitos prêmios. No ano anterior, 1980, João Ubaldo Ribeiro casa-
se com a sua terceira mulher, a fisioterapeuta e psicanalista Berenice de Carvalho
Batella, com quem teve dois filhos. Também nesse ano participou do Festival
Internacional de Escritores, em Toronto, no Canadá, e também começando a
escrever Alto lá, meu general...
— O romance que mais tarde veio a chamar-se Viva o povo brasileiro...
— Sim. O livro, segundo o próprio autor, nasceu de um desafio de seus
editores e de uma pequena provocação de seu pai, que um dia lhe disse, referindo-se
à pouca espessura dos livros que seu filho João havia publicado: “Livro que não fica
em pé sozinho não presta”.
706
— E prossegui, sempre andando para trás, a
desmontar a figura do escritor, tornando-o, assim, cada vez menos conhecido e
menos famoso: — Em 1981, a convite da Fundação Calouste Gulbenkian, foi para
Lisboa, de onde, com o jornalista Tarso de Castro, editou a revista Careta e
publicou Política e Livro de Histórias. Também de Portugal comou a escrever
para O Globo uma crônica por semana, mais tarde, em 1988, reunidas no livro
Sempre aos domingos.
707
Em Cuba, no ano de 1980, ao lado de Antonio Candido e
Gianfrancesco Guarnieri, participou do júri do concurso “Casa das Américas”, cujo
706
— Tenho aqui outra informação, segundo a qual quem disse isso foi o avô português do
escritor, João Ribeiro, nascido em Fafe. Disse ele ao neto que “um livro só o é quando se põe
de pé” (Manuel Augusto dos S
ANTOS, “Um serão com o autor do livro das bu(n)das
apetitosas”, Jornal de Matosinhos, Portugal, 4 fev. 2000
).
707
Vejam-se especialmente as crônicas “Não carregue o autoclisma!”, “A grande corrida de toiros”,
“O mistério do Shaub-Lorenz”, “O revertério da colonização”, “Seres imaginários em Lisboa” e
Velhos conhecidos” (João Ubaldo R
IBEIRO, Sempre aos domingos, op. cit., p. 133-168).
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6 - UBALDO AMADO
401
primeiro prêmio foi para Ana Maria Machado. Um ano antes publicou seu terceiro
romance, Vila Real, o primeiro editado pela Nova Fronteira, e foi, por nove meses,
para os Estados Unidos, a convite do International Writing Program da
Universidade de Iowa. O próprio João Ubaldo Ribeiro entregou-se à versão de
Sargento Getúlio para o inglês, pronta em 1978. Sete anos antes, em 1971, o
romance havia saído enfim do prelo, depois de muita batalha, pela Civilização
Brasileira, sua segunda editora, e recebido o prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do
Livro, na categoria “Revelação de Autor”. Também em 1969, João Ubaldo casa-se
com sua segunda mulher, a historiadora Mônica Maria Roters, que lhe deu duas
filhas. Em 1974, a editora Artenova, do Rio de Janeiro, publicou o livro de contos
Vencecavalo e o outro povo,
708
cujo título anterior, como já lhe disse na nossa
conversa introdutória, era A guerra dos Paranaguás. Em 1968, João Ubaldo
Ribeiro viu publicado o seu primeiro romance pela carioca José Álvaro Editor: A
semana da Pátria, em seguida, por sugestão editorial, mudado para Setembro não
tem sentido. Concluído em 1963, o livro somente conseguiu ser impresso e
distribuído, segundo o próprio autor, graças ao empenho de Glauber Rocha, que lhe
fez o prefácio e conseguiu convencer o escritor Flávio Moreira da Costa a
interceder junto aos editores do Rio de Janeiro para publicar o original, e graças,
também, à ajuda conselheira e constante de Jorge Amado. Setembro não tem
sentido foi então considerado, em 1968, um dos cinco melhores romances do ano
pelo Jornal do Brasil.
— Você disse estar desmontando a figura do escritor — interrompeu-me o
meu interlocutor —, mas, na verdade, não. A figura do escritor continua montada
desde o início. Você desmontou a sua consagração pública, e mesmo assim
relativamente, porque João Ubaldo Ribeiro, desde o seu primeiro romance, foi
reconhecido como escritor, senão pelo público, ao menos pela crítica.
708
“... Vencecavalo e o outro povo (...) reúne cinco histórias desnudando os mitos a que nos
acostumamos desde a infância — heróis, estadistas, intelectuais, militares, santos,
descobridores —, investindo agressivamente contra os bloqueios do falso moralismo impostos
à sociedade brasileira por tempos políticos mais severos. ¶ (...) uma obra questionadora,
mordaz e satírica, que tem como traço comum em suas cinco histórias uma arrasadora
desmistificação, tão generalizada que atinge o próprio fazer literário e as categorias
comportadas em que costuma ser enquadrado. É, assim, um livro de extrema singularidade (...)
no panorama da literatura brasileira” (“O cáustico e brasileiro humor do baiano Ubaldo”, O
Estado do Paraná, 30 dez. 1984
).
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6 - UBALDO AMADO
402
— E essa relação, hoje, tornou-se de certo modo invertida. O
reconhecimento e a consagração partem agora de seu público leitor, não mais da
crítica especializada. — E segui, pensando nisso que havia acabado de falar: —
Em 1965, começou a lecionar Ciência Política na Universidade Federal da Bahia,
recém-chegado de sua primeira viagem aos Estados Unidos, onde fez, na
Universidade da Califórnia do Sul, um mestrado em Administração Pública e
Ciência Política, tendo sido professor da Escola de Administração e da Faculdade
de Filosofia da Universidade Federal da Bahia e professor da Escola de
Administração da Universidade Católica de Salvador. Em 1960, casou-se pela
primeira vez, com Maria Beatriz Moreira Caldas Ribeiro, colega da faculdade de
Direito que começaria a cursar em 1958. A mesma Universidade Federal da
Bahia, na coletânea Reunião, organizada por Noêmio Spinola e Sônia Coutinho,
publicou em 1961 alguns contos seus. Lá estão “Josefina”, “Decalião” e “O
campeão”.
709
No entanto, foi através da antologia Panorama do conto baiano,
710
organizada por Nelson de Araújo e Vasconcelos Maia, uma publicação da
Imprensa Oficial da Bahia, que se deu a estréia de João Ubaldo Ribeiro na ficção
brasileira. O ano é 1959, e o conto chama-se “Lugar e circunstância”. Ganhava
dinheiro, nesta época, trabalhando como office-boy para o Gabinete da Prefeitura
de Salvador e depois como redator para o Departamento de Turismo.
— Sua biografia constitui, aqui, um autêntico retorno ao útero...
— Sua vida universitária teve início, como eu disse, em 1958, como aluno
do curso de direito da Universidade Federal da Bahia — continuei, ignorando a
piada. — Editou revistas e jornais de sabor cultural e político, participou do
709
E o meu interlocutor comete aqui uma pequena interrupção, para ilustrar este trecho biográfico
com uma apreciação crítica da época: — “... se Sônia Coutinho e David Salles não são
ficcionistas de personagem, no sentido, pelo menos, da ficção tradicional” — escreve Adonias
Filho, em 1961 —, “João Ubaldo Ribeiro, dentre os quatro estreantes da Bahia, nasceu para
caracterizar uma figura em conformação por assim dizer sólida. Nos três contos publicados
(...), que correspondem a três figuras psicologicamente medidas, o contista de caracteres se
descobre para jamais ocultar-se. Em ‘Josefina’, por exemplo, quando o poder de fixação se
extravasa, há uma mulher a mostrar-se inteira e completa no fundo mesmo de todos os instintos
e uma consciência. Esse conto, aliás, a ser incorporado pela melhor novelística brasileira
contemporânea, já nos obriga a ver João Ubaldo Ribeiro como um autêntico escritor”
(A
DONIAS FILHO, “Quatro ficcionistas da Bahia: ‘Reunião’”, Jornal da Bahia, 2 e 3 jul. 1961).
710
“... cerca de trinta histórias curtas escritas por autores nascidos na Bahia. (...) A escolha dos
nomes foi a mais ampla possível. Figuram no volume escritores famosos, de milhares de
exemplares espalhados pelo mundo afora, como Jorge Amado. Ao seu lado estão rapazes ainda
inéditos, mal chegados à casa dos vinte, como Glauber Rocha, David Sales, João Ubaldo
Ribeiro” (Vasconcelos M
AIA, “Viagem para o Rio”, texto sem referência, 23 set. 1959).
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6 - UBALDO AMADO
403
movimento estudantil e, acima de tudo, leu e releu os autores clássicos que, anos
depois, estariam a respirar e mesmo a gritar dentro de sua literatura, entre eles
Graciliano Ramos e Jorge de Lima, Shakespeare e Homero. Mal tinha completos
os dezessete anos e já trabalhava, em 1957, como repórter, tendo sido, ao longo da
vida, redator, chefe de reportagem e colunista do Jornal da Bahia; colunista,
editorialista e editor-chefe da Tribuna da Bahia; colunista do jornal Frankfurter
Rundschau, na Alemanha; e ainda colaborador de vários jornais e revistas no país
e no exterior, como o alemão Diet Zeit, o inglês The Times Literary Supplement e
os portugueses O Jornal e JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias. Sua primeira
reportagem cultural foi uma entrevista com ninguém menos que o escritor Aldous
Huxley, autor de Contraponto, A ilha e Admirável mundo novo, entre outros. A
carreira de jornalista o levou mais tarde ao posto de editor-chefe dA Tribuna da
Bahia — e pedi ao meu atento interlocutor mais um café, que ninguém é de ferro.
— Saímos já da esfera pública... Este período biográfico refere-se a um
João Ubaldo eminentemente doméstico, e não sei se isso interes...
— Sim, mas é uma fase curta, uma vez que ele começou a trabalhar muito
cedo, e justamente como jornalista. Mas vamos a ela, para chegarmos ao fim, ou
melhor, ao início... — E prossegui: — João Ubaldo Ribeiro começou o curso
clássico no chamado “Colégio Central”, o Colégio da Bahia, e um ano depois, em
1956, veio a conhecer Glauber Rocha, seu grande amigo de décadas. Sua
experiência escolar anterior deu-se no colégio baiano Sofia Costa Pinto, onde,
segundo conta, acabou perseguido por uma professora de inglês, que “não
percebeu que eu falava um inglês britânico, já que estudara em Sergipe com um
professor educado na Escócia”, diz João Ubaldo Ribeiro, referindo-se ao seu
segundo colégio, o Estadual de Sergipe, que o acolheu em 1951 e onde trabalhou
duro, a tentar corresponder às expectativas do pai, o alagoano Manoel Ribeiro,
chefe da Polícia Militar à época, que o obrigava a traduzir canções francesas e
verbetes enciclopédicos, a praticar o latim, a copiar os sermões do padre António
Vieira e a ler, ler, ler e ler, principalmente nas férias. Começou a estudar para
valer em 1947, aos seis anos, com um professor particular. Entrou, em seguida,
para o Instituto Ipiranga, em Sergipe, onde deu início a uma verdadeira
bibliofagia, estimulada, alimentada e exigida por seu pai, que não se contentava
com nada menos que o primeiro lugar e a excelência, e o menino João Ubaldo
permaneceria então horas na biblioteca de sua casa, às voltas com livros infantis,
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6 - UBALDO AMADO
404
principalmente os de Monteiro Lobato. A infância toda o menino passou em
Aracaju, a colecionar, sem o saber, as histórias que convergiriam para o seu
romance Sargento Getúlio; a infância toda, com exceção dos dois primeiros
meses, vividos na casa de seu avô, na Rua do Canal, número um, na ilha de
Itaparica, a casa onde, no dia 23 de janeiro do ano de 1941, como filho
primogênito de Maria Felipa Osório Pimentel e Manoel Ribeiro e sob o nome de
João Ubaldo
711
Osório Pimentel Ribeiro, nasceu.
6.2.
A FORTUNA CRÍTICA
— Ficou bem feita a apresentação às avessas, sim, mas não podemos ficar
aqui... Estou sentindo falta de um capítulo que discuta, ou no mínimo exponha,
para posterior discussão, a ambígua posição da literatura de Ubaldo diante da
crítica e diante do público — disse ele. — Estou pensando naquilo que você disse
acerca de o reconhecimento e a consagração partirem, hoje, muito mais de seu
público leitor do que da crítica especializada... Ouça isto:
... João Ubaldo é um escritor de talento, comprovado em livros como
Vencecavalo e o outro povo (1974) e Viva o povo brasileiro (1984). Mas há muito
não lança uma obra de peso, capaz de seduzir a crítica, embora venha tendo um
ótimo retorno do público, e isso deve ser levado em conta.
(...) Seu último trabalho aclamado pela crítica foi O sorriso do lagarto, em
1989. As imperfeições do Diário do farol só reforçam a impressão de que ainda
se espera um novo grande livro do autor.
712
— Esse tema, no entanto, talvez extrapole um pouco os meus objetivos
neste capítulo, uma vez que quero tratar da idéia de escritor profissional, além, é
claro, do narrador e das rel...
— ... das relações desse narrador com o próprio escritor... Eu sei, eu sei
que você já tencionava falar da condição do escritor profissional, um assunto caro
a Ubaldo e, pelos vistos, crucial para entendermos a sua literatura e a sua
711
— Você sabia — perguntou-me o meu interlocutor, me interrompendo — que João Ubaldo
herdou o nome do avô, e é histórica a razão para tantos Ubaldos na família? — E ele leu: “... a
denodada Vila de Itaparica passa à categoria de município a 16 de maio de 1883, dia de santo
Ubaldo” (Cícero S
ANDRONI, “O João da ilha”, Elle, nov. 1989).
712
Paulo SALES, “Inventário da maldade”, Correio Folha da Bahia, 14 abr. 2002.
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6 - UBALDO AMADO
405
identidade como escritor,
713
mas esse assunto é conseqüência desse outro que
mencionei. Podemos observar, aqui e ali — disse ele —, momentos em que
Ubaldo e, por extensão, o seu narrador dão a impressão de que têm algo a dizer, e
o dizem, fora e dentro da literatura, respectivamente... têm algo a dizer sobre o
tipo de literatura que fazem, sobre o tipo de história que contam...
— E também — completei — sobre a condição do escritor na sociedade, a
relação do escritor com o público leitor e o trabalho do escritor como devendo ser
remunerado, rentável e, portanto, profissional...
714
Veja este texto do Silviano
Santiago — e li para ele:
... Não podendo ser profissional numa sociedade em que a sua mercadoria não
circula e não é rentável, em que tampouco pode crer em dispositivos estatais ou
empresariais que o amparem economicamente e em que o produto estrangeiro e
concorrente é adquirido com mais constância — o escritor acaba sendo aquele
que dispõe do lazer que a sua classe lhe possibilita, que as suas atividades
profissionais (paralelas e rendosas) lhe proporcionam. Autor do tempo que o
romance e o leitor lhe permitem. Escravo deles em suma.
715
— Houve uma mudança da posição de Ubaldo perante a crítica, que se
deve à mudança de seu universo temático, dos conteúdos literários que manipula e
da forma de narrar, agora bem mais preocupada com a legibilidade...
— Continue — pedi.
716
— Ubaldo, como cânone literário, membro da Academia Brasileira de
Letras e presença obrigatória em qualquer lista que se faça dos mais importantes
escritores brasileiros — disse ele —, é, hoje, menos felicitado pela crítica do que
era à época em que ele ainda via com reservas e pruridos a sua própria condição
713
— Sim, sim... — fiz eu com a cabeça, e me lembrei de uma declaração do escritor, que acha
ruim “esse neoromantismo brasileiro, essa glorificação boba do escritor como um ser
privilegiado” (Cristiane C
OSTA, “Não vejo parentesco dos meus livros...”, Jornal do Brasil, 6
abr. 2002).
714
“Mario da Silva Brito já havia advertido que, no Brasil”, escreveu João Carlos Teixeira GOMES,
“a literatura é fruto do cansaço e das horas roubadas ao lazer, depois que os escritores levam
seus melhores momentos e esvair-se na guerra pela sobrevivência” (“João Ubaldo e a saga do
talento triunfante”, op. cit., p. 84).
715
“Vale quanto pesa”, op. cit., p. 28.
716
E me lembrei de uma matéria não assinada, publicada no Jornal da Tarde, por ocasião do
lançamento do Diário do farol, que diz: “João Ubaldo Ribeiro virou marca registrada. O que
fará de Diário do farol (...) um best seller, mesmo que pareça mais uma crônica com mania de
grandeza que um livro à altura de Sargento Getúlio ou Viva o povo brasileiro” (“Um padre
cínico e amoral se confessa na ilha”, Jornal da Tarde, 28 mar. 2002
).
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6 - UBALDO AMADO
406
de escritor, ou à época em que ele praticava outro tipo de literatura... — E o meu
interlocutor começou a desdobrar um jornal que folheava há pouco. — Ouça.
O sorriso do lagarto não é comparável a pelo menos duas grandes obras de
Ubaldo Ribeiro: Sargento Getúlio, traduzido em várias línguas, e Viva o povo
brasileiro, uma espécie de romance metafísico cultural. O texto se perde, em
alguns momentos, em diálogos desnecesrios, longos demais, redundantes, em
que tramas e situações narradas com profundidade até filosófica (o que é comum
em João Ubaldo) se transformam em passagens perdulárias, prescindíveis à
história e ao próprio prazer que, nos momentos mais importantes, O sorriso do
lagarto proporciona ao leitor. Falta-lhe o poder de síntese, a percepção que
Sargento Getúlio, por exemplo, incorpora: nem um parágrafo, nem uma
divagação a mais do que o necessário para que a história seja a quase perfeita
fusão entre a cultura e a literatura.
[Box:]
LINGUAGEM COM FÔLEGO NARRATIVO, O AUTOR VAI ALÉM DO
KITSCH
. O mais interessante na carreira literária de João Ubaldo Ribeiro — sem
contar o melhor livro, Sargento Getúlio — é a opção pelo romance. (...) Jorge
Amado se situa num limite perigoso. Ele não trabalha, como um Vargas Llosa,
com um contraponto crítico. João Ubaldo, que como seu conterrâneo tem fôlego
narrativo, sabe dos perigos e se arrisca, colocando-se na perspectiva do
romancista tradicional, intérprete de seu povo e do seu tempo, tem muito chão a
percorrer, mantendo em pé um gênero capenga que persiste por causa do
mercado. De resto fica de novo a pergunta: por que tantos escritores
brasileiros têm seu melhor momento no início de carreira?
717
— Esse jornalista menciona a idéia de que João Ubaldo Ribeiro mantém
“em pé um gênero capenga que persiste por causa do mercado”. Ele se refere ao
romance, e eu pergunto: por causa de que outra boa razão deveria o gênero
persistir, senão também por causa do mercado? O gênero romance deveria
persistir então por causa de quem? — perguntei. — Da crítica? E por que ele usa o
verbo “persistir”? E os outros gêneros literários, como a poesia, os gêneros que
não têm respaldo mercadológico traduzido em vendas e grandes tiragens, qual o
verbo que se deve usar para eles? Não têm eles de “persistir” ainda mais? É então
a dependência do mercado que torna o gênero romance capenga? Ou ele é
capenga devido a alguma deficiência estrutural?
— Tornou-se capenga porque os tempos mudaram... A crítica Flora
Süssekind escreveu, acerca da literatura brasileira dos anos 90, num artigo que não
por acaso está aqui em cima da mesa, que... “Chama a atenção (...) uma espécie de
variação sistemática de escala, manifesta tanto em exercícios (...) de expansão e
717
Eduardo MARETTI, “Ciências versus religião na Bahia de João Ubaldo”, O Estado de S. Paulo,
16 nov. 1989
, realces do meu interlocutor.
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407
compressão, quanto em movimentos de narrativização da lírica, de um lado, e de
miniaturização da narrativa, de outro (...)”. E ela faz referência — continuou ele
— à “... rejeição da forma novelesca mais vasta, contínua”. E termina com esta
crítica à grande narrativa histórica, situando-a, hoje, como texto anacrônico que só
encontra lugar nas estantes porque vende bem: “É em direção conservadora
semelhante que se pode entender, por exemplo, a imposição editorial do modelo
bem-sucedido da vasta narrativa histórica à prosa brasileira recente...”.
718
— Pergunto-me se não há contradição no trecho “imposição editorial do
modelo bem-sucedido”... É imposição? Mas também é bem-sucedido... Dizer
“imposição” é desmerecer o referido modelo, bem como também se tornou um
demérito, ou desmérito, dizer que é bem sucedido... “Por que (honestamente, e
não com explicações abstrusas)”, pergunta João Ubaldo, “um best seller é
necessariamente um livro ruim?”. E continua: “Que diabo é um bom romancista,
senão um contador de histórias? Quem marcou a novelística contemporânea terão
sido as elucubrações cerebrinas do romance francês desta época ou a literatura
norte-americana, quase toda ela exatamente de contadores de história?”.
719
Algum
gênero chegou a sobreviver sem um mercado de leitores? — perguntei.
— O mercado consumidor de livros, do modo como ele se configura
atualmente, não é, e não deve ser, a única instância legitimadora da categoria
literária... E acredito que o articulista não se referia ao gênero “romance” de modo
geral — disse ele, voltando ao texto —, mas ao gênero do romance tradicional, e
cito, do “romancista tradicional, intérprete de seu povo e do seu tempo”,
720
tal
como Jorge Amado, tal como Ubaldo, e entre ambos essa parecença...
— Você falou em Jorge Amado... Diz João Ubaldo, acerca dessa suposta
parecença: “... pertencemos a famílias literárias diferentes. Não vejo semelhança
nenhuma”.
721
E parece que essa posição de Jorge Amado como um dos grandes
estímulos iniciais de João Ubaldo — disse eu —, como essa espécie de pai
literário, chegou mesmo a incomodá-lo, a ponto de ele declarar:
718
“Escalas e ventríloquos”, Folha de S. Paulo, 23 jul. 2000.
719
João Ubaldo RIBEIRO, “Porque Jorge Amado não pode ganhar o prêmio Nobel”, Tribuna da
Bahia, 29 ago. 1974
.
720
Eduardo MARETTI, “Ciências versus religião na Bahia de João Ubaldo”, O Estado de S. Paulo,
16 nov. 1989
. Ver o Capítulo 5: “O vozerio do povo brasileiro”, p. 333.
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6 - UBALDO AMADO
408
— Não reajo quando dizem que sou amigo de Jorge Amado, entre outros, mas
viro bicho quando alegam que meus livros são escritos por ele, ou que foram
escritos no passado pelo Glauber Rocha. O Jorge não é apenas amigo meu, é de
todo mundo, porque é generoso ao extremo, sempre dá conselho, ajuda. Só que
isso não faz com que o sujeito vire bom escritor ou venda livro. Ora, o Jorge é
uma personalidade, a casa dele em Salvador é um verdadeiro ponto de encontro.
O que me aborrece é ler matérias onde se escreve que eu só vendo livros porque
sou amigo do Jorge Amado.
722
— Isso foi em 1990... — disse ele, pegando o jornal de minhas mãos e me
passando outro, onze anos mais antigo, em que João Ubaldo diz:
— É possível que no futuro, se eu obtiver mais cartaz, possa ser considerado
herdeiro de meu compadre Jorge. Somos baianos, alegres, temos muito em
comum. Mas, em tudo isso, o importante é a demonstração de que pode haver
grande escritor fora do eixo-Rio-São Paulo.
723
— De todo modo, estou falando do que a Flora Süssekind chamou de
“vasta narrativa histórica”... — continuou o meu interlocutor. — E é esse
“romance tradicional” que persiste por causa do mercado... A condição de Ubaldo
encontra eco, sim, na de Jorge Amado. Há aqui esse texto, que você já citou por
ocasião de outro assunto, e que agora eu trago à tona de novo. Pierre Rivas diz de
Jorge Amado que se trata do...
... escritor mais lido do país, sem dúvida o mais conhecido do mundo. Mas o
sucesso não se confunde com a fortuna, que implica na aceitação da obra pelo
cânone literário e até mesmo sua inflexão, sua fecundidade, sua posteridade, ou
seja, o que se designa como sua influência, sua fecundação sobre o próprio
cânone, interno ou externo. Na tradição da modernidade, sucesso e fortuna são,
muitas vezes, inversamente proporcionais. Todos conhecem a célebre frase de
Jean Paulhan: “Sabe-se que há duas literaturas, a má, que é verdadeiramente
ilegível (mas que é bastante lida). E a boa, que não é lida. É o que chamamos de
divórcio entre o escritor e o público”.
724
— O próprio Pierre Rivas aponta essa semelhança de percurso —
continuou ele —, essa condição de herdeiro evidente e natural que Ubaldo
721
Nádia TIMM, “Shakespeare com sotaque baiano”, O Popular, 14 mai. 2002.
722
Beatriz MARINHO, “João Ubaldo... — profissão: escritor”, O Estado de S. Paulo, 30 jun. 1990.
723
Roberto GONÇALVES, “João Ubaldo: ‘Meu livro não é um comício...’”, Jornal do Brasil, 1979.
724
Les fleurs de tarbes, citado por Pierre RIVAS, “Fortuna e infortúnios de Jorge Amado”, op. cit., p. 33.
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6 - UBALDO AMADO
409
incorpora diante de Jorge Amado quando diz que não é possível comparar Amado
a Guimarães Rosa ou a Clarice Lispector quando o assunto é a amplitude do
universo temático. “Sua posteridade parece reduzida à sua Bahia natal”, escreve
Rivas, e continua: “... e João Ubaldo seria o favorito”.
725
— O favorito que, no entanto, frustrou expectativas — disse eu —, não
apenas estilísticas, mas temáticas. O sorriso do lagarto, por exemplo, assunto do
texto de Maretti, acabou por descatalogar Ubaldo, deslocando-o daquela posição em
que confortavelmente o puseram ou ele se pôs a si mesmo no início da carreira:
escritor nordestino, regionalista, focado em universos populares e em linguagens
populares...
726
Maretti critica o quê? Uma mudança na forma de narrar e no
conteúdo narrado.
727
João Ubaldo Ribeiro talvez não seja mais o favorito,
condenado a versar e versar sobre a velha Bahia, mas um escritor, que, sobretudo a
partir dO sorriso do lagarto, começou a frustrar expectativas críticas à medida que
se ia tornando mais legível e menos regionalista, mais capacitado e estimulado a
725
“Fortuna e infortúnios de Jorge Amado”, op. cit., p. 34.
726
— Há um artigo que se propõe a discutir as figuras de Ariano Suassuna e Paulo Coelho como
emblemas de uma crise no espaço da literatura, no espaço público onde se divulgam e se
constroem os gostos literários e nos espaços acadêmicos, mais recuados e mais silenciosos
diante da briga. Aqui segue a referência, mas eu ainda não acabei a nota... — e dei a ele um
papel. — Sébastien Joachim, “Proposta de um estudo pluridisciplinar sobre três ‘literaturas’ em
conflito”, Universidade Federal de Pernambuco,
INTERCOM — Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação, XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação,
Salvador, 1 a 5 set. 2002
, em: <http://www.intercom.org.br/papers/2002/coloquio/coloquio_
joachim.pdf>, acesso em 13 jun. 2005
. Agora continuo: Sébastien Joachim, em determinado
ponto de seu artigo, menciona a noção de horizonte de expectativa, de Jauss, resumida em seus
três fatores por Gérard Gingembre: “a experiência prévia” do público, “a forma e a temática de
obras anteriores cuja obra nova pressupõe o conhecimento”, “a oposição entre linguagem
poética e linguagem prática”. — E eu trouxe o assunto para a nossa área: — A literatura de
João Ubaldo, com Sargento Getúlio, Vila Real e Viva o povo... manteve relativamente estáveis
esses três fatores, que só a partir dO sorriso do lagarto se alteraram, ou seja, “a experiência
prévia” de seu público leitor quanto à “forma” e à “temática de obras anteriores” não serviu
para o olhar sobre a nova obra, que manteve uma outra relação “entre linguagem poética e
linguagem prática”, com evidente preponderância da última sobre a primeira. Eu penso
sobretudo em Vila Real como obra em que a linguagem poética não deixa qualquer espaço para
a linguagem prática.
727
— E não só critica — interrompeu-me ele, abrindo uma nota. — O texto não se limita a um
ponto de vista desfavorável. O articulista diz, em outro momento do texto: “A literatura
fortemente enraizada na cultura de uma nação é (...) aquela que as gerações contemplam,
independentemente da ‘atualidade’ de seu conteúdo e/ou de sua forma, como se
contemplassem a si mesmas, seus fantasmas, mitos, arquétipos. ¶ Entre os escritores que
podem ser considerados importantes na cultura particular da nação baiana, Jorge Amado e João
Ubaldo Ribeiro se inserem como fundamentais” (Eduardo M
ARETTI, “Ciências versus religião
na Bahia de João Ubaldo”, O Estado de S. Paulo, 16 nov. 1989
).
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escrever a partir de vários enfoques e contextos.
728
Maretti diz que João Ubaldo se
arrisca, “colocando-se na perspectiva do romancista tradicional, intérprete de seu
povo e do seu tempo”... — continuei. — Pergunto-me se ele algum dia chegou a
construir esse tipo de romance e a colocar a si mesmo nesse papel de intérp...
— Ora, se não! — disse o meu interlocutor, quase sacudindo na minha
frente uma declaração de João Ubaldo, que, apontado como escritor regionalista,
assim se defende: “... quem é que pode me acusar disso? Um qualquer escritor de
Ipanema, que representa apenas alguns milhares de brasileiros? Ao menos eu
tenho o número por mim, sempre represento uns trinta milhões de falantes”.
729
E ele continuou, guardando a matéria: — Viva o povo brasileiro é esse tipo de
romance... E esse tipo de romance chegou à exaustão...
— E João Ubaldo vem, por acaso, insistindo nesse tipo de construção de
vastos painéis históricos? Talvez, se por acaso tivesse permanecido nesse
diapasão... Viva o povo... foi um romance bastante felicitado pela crítica... — E
continuei: — João Ubaldo frustrou uma determinada expectativa, e partiu para uma
outra relação com a literatura... Menos missionária, talvez... Mais profissional.
Quando nós conversamos sobre Viva o povo..., eu esqueci de ler para você o trecho
de uma matéria contemporânea ao lançamento do romance. E nela João Ubaldo dá a
sua opinião sobre ser o livro considerado um “romance histórico”. — E li.
... a primeira edição de dez mil exemplares esgotou-se em dias e a segunda sai
na próxima semana com vinte mil exemplares. Não é muito perto de seu
conterrâneo e concorrente mais famoso, mas, se não é um Jorge Amado, Ubaldo,
ao menos, já se pode considerar um “best seller”. Já se definiu o livro como
“épico”, “epopéia”. Mas João Ubaldo, a contragosto, se permite, no máximo, usar
a expressão “romance histórico”, apesar de considerá-la “cretina”. Ele admite que
usa a verossimilhança histórica, “mas de uma forma irônica, exatamente para
mostrar que a História do Brasil não teve e mínima importância para a gente do
povo, porque nunca a beneficiou”.
730
728
— Quando penso em mais ou menos legibilidade, penso imediatamente no Sargento Getúlio e
no que escreveu João Ubaldo acerca do livro. — E li: — “... um delírio escrito em sergipês
cerrado, que eu mesmo estranho às vezes, acho que alguns pedaços eu devo ter psicografado.
(Quando fizeram um filme baseado nele, o pessoal vinha me perguntar umas coisas e eu ficava
todo sem graça, não sabia mais direito de que socavão da cabeça tinha tirado aquilo.)”
(“Desventuras de um tradutor”, Sempre aos domingos, op. cit., p. 227-228).
729
Domingos de Oliveira DIAS, “Do Brasil... e de Portugal”, Letras & Letras, Portugal, 1 dez.
1988 (sobre palestra de João Ubaldo no Centro de Estudos Luso-Brasileiros da Universidade
de Brown).
730
Isa CAMBARÁ, “João Ubaldo, outro baiano na lista...’”, Folha de S. Paulo, 24 dez. 1984.
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411
— Ubaldo começou a tornar-se mais legível... E eu acrescento: mais
fácil... O sorriso do lagarto — disse ele — pode ser o momento dessa mudança de
rumo: Ubaldo começa a manipular uma linguagem mais urbana e mais
contemporânea e a tratar de temas mais atuais. Quem são os personagens de
Sargento Getúlio e Vila Real, e também os mais inesquecíveis personagens de
Viva o povo...? São, antes de tudo, personagens excluídos, que não vivem nas
cidades, não entraram nessa modernidade onde estão e vivem os leitores de
Ubaldo e os tipos dO sorriso do lagarto... E quem são estes? Uma das mais
marcantes, além do João Pedroso, alter ego do escritor, o primeiro alter ego, aliás,
mais evidente biograficamente desde os excêntricos jornalistas de Setembro não
tem sentido, Orlando e Tristão...
— É verdade, mas João Pedroso e seu bigode não são comparáveis à força,
como alter ego, de CLB, dA casa dos Budas ditosos...
— Sim, porque, depois de Setembro... — disse ele —, o que vimos foram
Getúlio, Argemiro, de Vila Real, e toda a galeria de Viva o povo... João Pedroso, o
peixeiro-biólogo, é um Ubaldo que corresponde à formula quem eu poderia ter
sido mas não fui, como eu já disse na nossa outra conversa, citando o Javier
Marías.
731
Está em Itaparica, sim, cenário de Viva o povo..., é verdade, mas está na
contemporaneidade. É peixeiro e vive em meio ao povaréu, sim, porém é
formado, fala inglês, sabe latim, é literário e cientista...
— ... e ainda aspirante a santo... — eu disse. — Sim, santo; veja esta nota.
732
— Mas eu perguntei: e quem são os tipos dO sorriso do lagarto? Uma das
mais marcantes é a Ana Clara, jovem, citadina, moderna, inteligente, arremedo de
escritora, sexualmente atraente, um poço de possibilidades de identificação para
um leitor.
733
E há ainda a sua amiga, Bebel, e também o político Ângelo Marcos, a
731
“Quem escreve”, op. cit., p. 90. Ver Capítulo 3: “Setembro fechado sob o farol”, p. 190.
732
— Aqui — e fiz a nota —, mais uma pista das conexões de João Ubaldo com João Pedroso.
Disse o personagem Lúcio Nemésio, conversando com João Pedroso, nO sorriso do lagarto, de
1989: “— ... não acredito em Deus, como você, que eu desconfio que quer ser santo” (p. 36).
E agora o trecho desta entrevista de 1991, em que João Ubaldo diz: “— ... acredito
profundamente em Deus e tenho até uma certa aspiração à santidade” (Giovanni R
ICCIARDI,
“João Ubaldo Ribeiro”, op. cit., p. 353).
733
E, diante do que ele falava, eu pensei em ler um texto do jornalista Paulo Roberto PIRES, acerca
do Diário do farol, que também trata de uma mudança de rumo na literatura de João Ubaldo,
mas estabelecendo a fronteira entre um espírito coletivista, cujo ápice ficou encarnado em
(cont.)
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6 - UBALDO AMADO
412
tramar aquilo que tramam os políticos e que os leitores de Ubaldo conhecem bem,
porque se trata de uma faceta do quotidiano. E, o mais importante, falam todos
uma linguagem comum, e isso chegou ao ponto de O sorriso... se transformar
numa minissérie da rede Globo de televisão...
— Não por isso... Grande Sertão: veredas também se transformou num
produto televisivo para grande público, e numa linguagem...
— ... adaptada — disse ele. — Uma linguagem nada parecida com aquele
sergipês de Getúlio e aquela linguagem poética em prosa com que nos deparamos
em Vila Real.
— ... dois romances, aliás, bastante distantes do que a Flora Süssekind
chamou de “vasta narrativa histórica”... — eu disse. — E você parece estar
querendo dizer que a qualidade literária João Ubaldo se manteve com boa cotação
crítica justamente à época em que ele realizava um romance mais comprometido
com as suas origens, um romance mais regionalista, com uma linguagem mais
difícil de ser penetrada, com ambientes pouco ou nada urbanos.
— Sim. De certo modo, ficou mais fácil ler o Ubaldo. Um jornalista
perguntou a ele..., e faço aqui um parêntese para dizer o quanto não podemos de
modo algum contar com o próprio autor para levarmos a cabo uma análise da
recepção de seus livros, porque ele, literalmente, não tem o que dizer...
734
obras com o Viva o povo... e remetendo todo o tempo ao universo de Jorge Amado, e, de outro
lado, a opção por uma literatura que não se pretende agradável. Dou o trecho: “Os personagens
‘coletivos’, que na ficção de Ubaldo de alguma forma encarnam modelos e antimodelos de
nacionalidade ou do sentimento dela, dão lugar ao mais radical individualista, que não conhece
pátria ou patrão e queimou as pontes com o continente (...). ¶ Tudo no romance destrói, com
energia invejável, elementos do universo amadiano que Ubaldo soube reinventar, mas, pela
própria limitação de suas convenções, acabaram por travá-lo depois de Viva o povo brasileiro.
Morrem, nesse romance, o cenário rural (que é visto como ruína), a cordialidade, a
condescendência de pobres com ricos (e vice-versa), o sexo (que para o padre não tem graça
em si e só tem sentido como perversão), o tom picaresco e até o engajamento político (...). ¶
Tudo isso faz desse romance um auspicioso ponto final na defesa do entretenimento pelo
entretenimento que João Ubaldo Ribeiro vinha fazendo nos últimos anos (...). ¶ Sob a luz de
Lúcifer, o farol, João Ubaldo pode estar fazendo um pacto faustiano. Entregou ao padre sem
escrúpulos (...) uma alma nublada pelo peso de ser um ‘grande nome’ da literatura
brasileira. Em troca, ganha, aos 61 anos, uma vitalidade admirável” (“Tempo de monstros”,
Época, 25 mar. 2002
, realcei).
734
E ele citou uma matéria que, por sua vez, cita as palavras do Paulo Roberto Pires, que eu
mencionei há pouco, em nota: “Alguns críticos afirmaram que esse romance é um ponto final
na defesa do entretenimento que você vinha fazendo nos últimos anos. (...) Até que ponto
uma coisa pode efetivamente inviabilizar a outra?”, e João Ubaldo responde: “Eu não penso em
entretenimento quando estou escrevendo. Eu penso em escrever uma coisa clara que interesse a
alguém. Só” (Felipe A
RAÚJO, “O diário da maldade”, Diário do Nordeste, 28 mai. 2002).
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6 - UBALDO AMADO
413
— E pergunto — e retomei um ponto anterior —: esse tipo de romance
“mais comprometido com as suas origens, um romance mais regionalista, com uma
linguagem mais difícil de ser penetrada, com ambientes pouco ou nada urbanos”,
citando minhas próprias palavras..., é o tipo de romance que realiza aquele
“romancista tradicional, intérprete de seu povo e do seu tempo”? Ele chegou a ser
esse “romancista tradicional”, do modo como o foi Jorge Amado? Não. E é por isso,
talvez, por nunca ter sido um romancista tradicional, do modo como o foi Amado,
que tenha sido tão festejado pela crítica. — E eu me levantei para pegar mais café.
— Wilson Martins — começou o meu interlocutor — classifica João Ubaldo
como um escritor nacionalista e populista, mas “no bom sentido”,
735
esclarece o
jornalista que o citou...
736
E disse também que Ubaldo “sacrificou parte de sua obra
anterior por não poder libertar-se do fascínio em que o mantinha a personalidade ou a
‘persona’ literária de Jorge Amado”.
737
Ele se refere, evidentemente, uma vez que
essa crítica é de 1985, aos três romances anteriores a Viva o povo...
738
— Não há nada parecido com Jorge Amado nos três romances anteriores a
Viva o povo... — disse eu. E pedi: — Vamos organizar isso. Esse “romance
tradicional” que Jorge Amado sempre praticou poderia ter sido, mas não foi, o
tipo de romance praticado por João Ubaldo, que de algum modo conseguiu furar a
malha cerrada do realismo mais “certinho” que praticava seu compadre Jorge
Amado. Mas João Ubaldo praticou, sim, ao início de sua carreira, um romance
735
— E vemos aqui, da pena do próprio Wilson MARTINS — disse ele, munido de mais matérias
—, o esclarecimento: “O seu populismo não é popularesco e simplista como na chamada
literatura de massa (...). É o populismo ‘que se propõe a pintar os meios populares com
realismo, mas também com a simpatia de princípio que pode resultar numa certa idealização da
respectiva existência’”. E o Wilson Martins cita a fonte: Bruno H
ONGRE & OUTROS, Grand
dictionnaire de culture générale [1996], v. ‘populiome’ (“Crônica (picaresca) da vida
brasileira”, Bravo!, out. 1997
).
736
— “... respeito o Wilson Martins”, respondeu Ubaldo, na mesma matéria. “Ele sabe o que diz,
deve saber, é um crítico conceituado. Mas eu mesmo não entendo por que é assim, se é
assim...” (Clodoaldo L
ÔBO, “O feitiço da palavra”, A Tarde, 26 nov. 1997).
737
“A matéria brasileira (I)”, Jornal do Brasil, 4 mai. 1985.
738
— E João Ubaldo, de certo modo, responde a isso dois anos depois, através do que lhe pergunta
um jornalista — disse eu, em nota. E li: — “A figura onipresente de Jorge Amado na Bahia já
foi, em algum momento, opressiva para você, como escritor?”. E diz João Ubaldo: “Jorge
Amado é um grande escritor brasileiro. Uma figura importantíssima na nossa história. Por
acaso, é baiano, meu amigo e meu compadre. Temos envolvimento emocional. Somos amigos.
Nossas famílias são amigas. Nunca foi figura opressiva coisa nenhuma! Quanto a comparações,
as pessoas ficam vendo as coisas como se tudo fosse um campeonato de futebol” (Geneton de
M
ORAES NETO, “A odisséia do lobo da ilha”, Jornal do Brasil, 28 nov. 1987).
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6 - UBALDO AMADO
414
integralmente orientado para um universo nordestino que, no entanto, nunca
aspirou a ser “intérprete de seu povo e do seu tempo”, embora tenha sido, sim, por
vias transversas...
— Há uma figura imaginária desse escritor “intérprete de seu povo e do
seu tempo”, que João Ubaldo gosta de invocar em seus livros. Vimos isso naquele
exemplo que você retirou dO feitiço da ilha do Pavão. Lembra-se?
739
— Sim, você tem razão, mas eu insisto: é o narrador que invoca para si
esse foro de “intérprete de seu povo e do seu tempo”. Não creio que João Ubaldo
se coloque e se veja a si mesmo nesse papel de “intérprete”... E, como eu disse,
não há nada que chegue perto de um “romance tradicional”, escrito por esse tipo
de escritor “intérprete de seu povo e do seu tempo” em Sargento Getúlio e em
Vila Real... — repeti.
— Mas há em Viva o povo... — disse ele.
— Essa “pretensão totalizante” que atravessa Viva o povo..., chamemos
assim, não significa nada em si mesma. Não é sequer uma pretensão de dar
respostas a um enigma chamado Brasil — insisti. — A essa discussão acerca de
qualidade literária, porque creio que você está preso a isso..., a essa discussão nós
não chegaremos nunca, porque ela é quase um fantasma: existe e não existe, está e
não está, sem falar que a sua origem remonta à discussão acerca da literariedade, o
fracasso da literariedade...
740
E diz a Ilana Seltzer Goldstein: “Deixemos de lado o
debate best seller versus obra de arte”.
741
Faria minhas as palavras dela não fossem
as palavras dela responsáveis por simplificar demais o assunto, já que não há
739
Ver Capítulo 5: “O vozerio do povo brasileiro”, p. 333.
740
— O artigo de Sébastien Joachim menciona, em determinado ponto, os três níveis de
literariedade propostos por Georges Molinié e Alain Viala: a “literariedade geral”, nível difuso
que nos põe diante de uma dúvida básica acerca de um texto: ele agrada-nos ou não, ele
aborrece-nos ou não?; a “literariedade genérica”, ou seja, qual o tipo ou o estilo ou o gênero da
literatura que se tem à frente, ou que se pode ter?; e, por fim, a “literariedade singular”, nível
certamente percebido pelo público ainda mais especializado e que pode estar sensível, por
exemplo, à questão... e diz o autor do artigo: “O que há de mais individual, de mais
idiossincrático no escritor Marcel Proust ou Joyce é justamente ela, esta imagem de marca que
o impele ao universal” (G. Molinié & Alain Viala, Approches de la réception, Paris, PUF,
1989; e G. Molinié, Sémiostylistique, Paris, PUF, 1998, citados por Sébastien Joachim,
“Proposta de um estudo pluridisciplinar...”, op. cit.).
741
“As criaturas ganham vida própria e o criador se torna criatura”, op. cit., p. 219.
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6 - UBALDO AMADO
415
consenso acerca dos conceitos de best seller e muito menos de obra de arte.
742
Meu
objetivo é sair desse impasse através do que sempre foi a proposta de Jorge Amado
e também de João Ubaldo: o alcance da condição do escritor profissional, o escri...
— Tenho aqui um outro trecho do Wilson Martins, que pode jogar um
pouco de luz...
— ... ou de água... — e eu ri.
— ... na nossa conversa. — E ele leu, sério.
Na literatura brasileira contemporânea, ele [Ubaldo] se inclui na linhagem do
romance nordestino dos anos 30, cujo patriarca, aos seus olhos, será antes Jorge
Amado que qualquer dos outros vultos representativos. Contudo, não há na sua
obra a preocupação do “documento social”, nem o dogmatismo do realismo
socialista. É um realismo sem adjetivos e sem frases, embora condicionado, sem
nada perder do olhar irônico, pelo shakespeariano “leite da bondade humana”. É
nesse quadro que se inscrevem todos os seus livros, de Setembro não tem sentido
(1968) a O feitiço da ilha do Pavão (1997).
743
— A literatura de Ubaldo tornou-se mais acessível, mais popular, mais
vendável, mais legível. Por quê? E eu lhe pergunto: quem disse isso? — e ele
pegou da mesa um jornal e leu: “Não estou preocupado, fundamentalmente, com o
problema da linguagem. (...) Estou preocupado em contar uma história de forma
bem contada, em fazer uma coisa que possa ser bem entendida”.
744
— Provavelmente Jorge Amado...
— Acertou. Mas poderia ter sido o Ubaldo... — e ele sorriu, dobrando o
jornal.
— Não. Ou, por outra, João Ubaldo poderia dizer isso, sim, como até já
deve ter dito, de maneira um pouco diversa,
745
mas o seu texto, pelo contrário,
demonstra, sim, que ele não está alheio à tal preocupação com “o problema da
742
— “... seria desejável que fosse aberta uma sub-categoria do literário stricto sensu (ou literatura
erudita) para certos romances ditos populares (cf. o romance de aventura à Alexandre Dumas, o
romance policial à Arsène Lupin etc.), mais ainda para os best sellers colocados nas fronteiras
senão na intersecção do literário e da ‘indústria cultural’ que os leva para as telas”, diz
Sébastien Joachim (“Proposta de um estudo pluridisciplinar...”, op. cit.).
743
“Crônica (picaresca) da vida brasileira”, Bravo!, out. 1997.
744
“Jorge Amado — Acima do bem e do mal”, Jornal do Brasil, 29 out. 1988.
745
— E lhe dou esse exemplo, que pincei: “Eu sou um escritor muito espontâneo. Nesse ponto, sou
como Jorge Amado. (...) Hoje estou mais interessado em uma linguagem que comunique, que
seja expressiva e tão precisa quanto possível. Só isso” (“João Ubaldo Ribeiro, o mal com
sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002
, realcei).
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6 - UBALDO AMADO
416
linguagem”.
746
E tanto Jorge Amado quanto João Ubaldo falariam isso, que não
estão preocupados com “o problema da linguagem”, com a entonação de quem
fala com aspas, porque eles são sarcásticos com o que consideram ranços de
academicismo: “... o problema da linguagem”, “... a questão do discurso” etc.
etc.
747
O mesmo sarcasmo
748
se esparrama para a instância narrativa, que não
poderia ser mais explícita: o narrador em João Ubaldo está todo o tempo a dizer o
que pensa o escritor João Ubaldo. Veja este trecho em terceira pessoa de Miséria e
grandeza do amor de Benedita — e peguei o livro. — O narrador, aqui, não está
incorporando nenhum personagem específico, mas uma espécie de coletivo da ilha
de Itaparica. Veja em seguida o trecho de um artigo em que João Ubaldo reproduz
uma conversa entre ele e Glauber Rocha.
(i) Há os letrados que só se expressam em polissílabos e não podem ver uma
proparoxítona que não queiram logo desfrutar, os quais preferem explicações
mais rebuscadas, pois a simplicidade lhes traz grande desventura, de maneira que
escrevem livros e artigos de jornais para mostrar como tudo se deve à formação
histórica do itaparicano. São coisas culturais, dizem eles, mas o que se pergunta
a esses sabidórios é por que essas coisas culturais só são assim aqui na ilha e por
que não são outras em vez das que são e de que buraco saíram essas coisas
culturais. Patati-patatá, retrucam eles com ares de porreta e, se deixarem, como
aliás deixam, ficam falando besteira até o fim da existência, sem neres elucidar.
Além de tudo, embora admitindo que certos animais, como o jegue, o cachorro,
o gato, o papagaio, o macaco e alguns outros tenham lá suas coisas culturais e
exista até o falado carnaval dos caranguejos, quando eles todos saem do mangue e
vão farrear em bando pelo raso das coroas, não se pode afirmar que o animal dê
muita importância a essas coisas culturais. (Miséria e grandeza..., p. 17, realcei)
746
— Disse João Ubaldo há muito tempo, numa matéria que infelizmente está aqui sem data, e
referindo-se, não ao “problema da linguagem”, expressão genérica, irônica e pouco
comunicante, mas à própria língua como elemento concreto de identidade cultural, e por aí
podemos perceber que ele nunca esteve alheio ao, vá lá..., “problema da linguagem”: “Tem
gente que acha pachochada a gente cuidar da língua. Eu não: a língua é a cabeça. Na medida
em que entregamos a língua, entregamos a cabeça. Isto, aliás, é sabido por todo mundo, tanto
assim que, quando qualquer povo tem a sua identidade ameaçada, a primeira coisa que segura é
a língua” (“Eles pensam que são melhores que Dick Farney”, Enfim, n
o
21, texto sem data).
747
— Cito aqui, a propósito, esta declaração de João Ubaldo: “Eu não tenho vocação para a vida
literária. Eu gosto de conversar com o pessoal do ramo, meus amigos, mas não gosto da vida
literária... (...) ... são os assuntos literários, as discussões literárias. O que me enerva é o
negócio literário, a coisa literária, ficar discutindo o fato literário. Eu não me interesso muito
sobre quem fez tal seminário, sobre ‘os novos avanços da técnica narrativa’ etc. Eu não leio
essas coisas, acho chato” (José Reinaldo C
ARVALHO, “João Ubaldo indaga sobre a alma
humana”, A Classe Operária, 12 a 25 jan. 1989
).
748
— Ver ainda, sobre esse assunto, a crônica, talvez exagerada em seus tons, às vezes simplista,
embora acertada em sua crítica ao hermetismo, em que João Ubaldo aborda, entre outros
temas, a condição dos professores de literatura e da literatura como “matéria de ensino”
(“Admirável mundo novo” (p. 177-182), in Sempre aos domingos, op. cit.).
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6 - UBALDO AMADO
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(ii) Esses caras, disse eu a Glauber, são todos eruditos, eles são uns caras
ótimos. Mas eles não sabem ler o que existe aqui, eles apenas comparam, porque
a colonização tomou conta da cabeça da gente e vivemos medindo tudo com
régua alheia e ninguém está sabendo de nada, nem mesmo a respeito da nossa
língua, da nossa dança, de nada. Que coisa, disse eu, uns analfabetos eruditos.
Glauber — Você acha que existe crítica no Brasil?
Eu — Não. Acho a crítica ruim e omissa.
Glauber — Todos ruins?
Eu — Uns substitutos da censura. Uns analfabetos eruditos.
Glauber — Inclusive Wilson Martins?
Eu (depois de leve pausa) — Inclusive Wilson Martins.
Eu nunca tive (...) livro ignorado pela crítica. E não tenho motivos desse tipo
para esculhambar a crítica. Por incrível que pareça, tenho motivos honestos. (...)
o que eu digo é o seguinte: 1. que a maioria das pessoas literárias já leu Updike
e nunca leu Antônio Vieira; 2. que a maioria das pessoas literárias espera que o
outro diga o que é bom; 3. que a maioria das pessoas literárias só conhece
literatura; 4. que literatura não é literatura; 5. que, para me esculhambar, os
críticos teriam que saber mais é da nossa língua falada, das nossas ilusões, das
nossas imagens, teriam que saber mais de nossa vida, em vez de saber o que se
pensa sobre nós (...).
A literatura é um produto cultural. Não é composta de objetos atemporais,
ahistóricos, anticépticos.
749
— Há aqui bastante simplismo... — disse o meu interlocutor. E retomou:
— Você mesmo salientou isso na sua nota: que hoje Ubaldo está mais preocupado
em ser claro e preciso. Antes, ele não era obcecado pela clareza. Antes, talvez
estivesse ele, e fundamentalmente, preocupado, sim, com o problema da
linguagem, e digo isso agora sem as “aspas do desdém”. A sua lenta passagem
para uma literatura mais legível provavelmente contribuiu para que ele se firmasse
como um escritor profissional. Ubaldo tem, hoje, um público leitor que, agora
mais que antes, aponta caminhos estéticos, e isso tem um preço: de modo
justificável ou não, há uma gradual perda de fortuna crítica...
— Hum... — e eu peguei mais café.
— Você se lembra do que você mesmo disse na nossa conversa sobre a
infância de Ubaldo e o Sargento Getúlio? Sobre as discussão acerca do fazer
biográfico e sobre o que fez e o que não fez o Wilson Coutinho naquela ligeira
biografia denominada “Perfis do Rio”? Muito bem, em determinado momento, você
disse — e ele puxou pela memória —: “... veremos o que Coutinho faz e o que não
faz. O que não faz: ele não explicita e nem questiona o processo de construção
749
João Ubaldo RIBEIRO, “O analfabetismo erudito”, Enfim, texto sem data, realcei.
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canônica do escritor João Ubaldo Ribeiro; o que faz: ele reconstitui seu ambiente
literário e sua vida intelectual, mas somente através de fotogramas dispersos do
passado, estruturando assim a biografia como biografema
750
etc. etc. E se você
tentasse percorrer, antes de retomarmos a nossa discussão acerca da crítica e de
Ubaldo, justamente esse processo de construção canônica do escritor através...
—... através da reconstrução de seu ambiente literário e de sua vida
intelectual?
— Sim, embora eu saiba que...
— Certo — disse eu. — E podemos percorrer esse processo de construção
acompanhados da voz do próprio escritor ao longo de seu percurso como
escritor... O escritor-escrivão.
6.3.
O TRABALHO DO ESCRITOR-ESCRIVÃO (PARTE I)
— Defina-o — pediu o meu interlocutor.
— E não vou definir coisa alguma. Contente-se, por enquanto, com o
seguinte: há na literatura de João Ubaldo Ribeiro aspectos formais que traduzem
uma preocupação, uma preocupação bastante comum entre alguns escritores, mas
não entre todos, não entre Jorge Amado, por exemplo, com o próprio ato da
escrita. Mas não pude encontrar, curiosamente, personagens realmente escritores,
quero dizer, personagens que sejam escritores naquele sentido de escritor
profissional que tanto João Ubaldo Ribeiro defende em entrevistas, o que nos leva
à conclusão de que a tematização do ato da escrita se concretiza apenas no âmbito
do narrador. Em Viva o povo..., por exemplo, o narrador, que é formalmente
extradiegético, vez por outra desvela parcialmente o seu rosto e expõe-se sob o
papel que ele verdadeiramente tem: o de escritor, ou, para ser mais exato, o de
trabalhador braçal das palavras. E, curiosamente — prossegui —, quando nos
deparamos, ao longo da narrativa, com algum personagem que tenha um mínimo
de intimidade com o ofício da escrita, esse personagem é então caricaturado pelo
narrador como alguém que só consegue escrever sob o arroubo da inspiração...
Temos o caso, nO sorriso do lagarto, da personagem Ana Clara, que escreve sob
750
— Ver item 1.8.: “A literatura, Barthes e o vatapá”, no Capítulo 1: “Introdução”, p. 41.
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a possessão, eu diria, de uma personagem inventada por ela, a pensadora sócio-
erótica Suzanna Fleischman, e temos o caso de CLB, a voz narradora dA casa dos
Budas ditosos, que se entrega, esta sim, menos à inspiração da escrita e mais a
uma veemente confissão, toda ela oral, a um escritor de verdade, o próprio
cidadão João Ubaldo Ribeiro, que alega ter recebido as cassetes gravadas e
transcrito tudo. — O meu interlocutor olhava para algum ponto à minha frente. —
Veja bem: voltando agora a Viva o povo brasileiro, eu não estou afirmando a
existência de um escritor que se esconda pode detrás da diegese, transformando a
sua própria existência numa espécie de segunda diegese. Não. Não há essa
autonomia nem essa constância. Também não há detalhes, ou seja, não se trata de
uma voz a partir de dentro que comece então a revelar ao leitor o processo de
escrita de um romance chamado Viva o povo brasileiro.
— Quando acontece, aliás — interrompeu-me —, de a feitura do romance
se tornar tema, não é um escritor a contar como o escreveu, mas um cego, a contar
como foi que lhe contaram as história que conta o livro...
— Exatamente, e já abordamos esse cego. E o tema, então, da referência
não constitui a escrita, mas a oralidade — completei. E segui com a observação
anterior: — Há apenas, aqui e ali, em Viva o povo..., uma referência ao trabalho e
às dificuldades de um escritor, de modo geral: de qualquer escritor, qualquer
desgraçada criatura que viva do ofício de escrever. Uma deambulação narrativa
que, no entanto, mais que uma deambulação, é uma fresta por onde se pode olhar
para o profissional João Ubaldo Ribeiro...
— Entendi. E podemos dizer — animou-se ele — que aquela idéia de
estabelecermos pontes entre o narrador de Ubaldo e a sua própria personalidade
literária encontra aqui um terreno fértil.
— Eu ia chegar lá... — disse eu. — Mas lembre-se do que você mesmo falou
há algum tempo, na nossa conversa sobre o vozerio em Viva o povo brasileiro, e vou
citá-lo: “A voz do autor deve ser apenas mais uma voz a se levar em consideração.
Não a voz principal, nem mesmo a voz de origem, mas apenas mais uma voz...”.
— Quem disse isso foi você, na nossa conversa sobre o Sargento Getúlio.
Eu apenas o citei, na nossa conversa sobre Viva o povo...
751
— E ele, rindo das
751
— Ver o Capítulo 2: “A infância barroca e a linha reta de Getúlio”, p. 63, nota n
o
94; e ver
também o Capítulo 5: “O vozerio do povo brasileiro”, p. 278.
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minhas confusões, retomou o raciocínio: — A frase pode ser sua, mas a idéia, no
entanto, é minha, ou, por outra, eu apontei o caminho que nos poderia levar ao
desenvolvimento dessa idéia, quando disse a você que uma das maneiras de
chegarmos ao narrador de Ubaldo é justamente através da figura do próprio João
Ubaldo. Obrigado por citar a mim mesmo citando você. E você pode usar tudo
isso na sua tese e dizer que veio de você, sem problema algum...
— Protesto! Você desenvolveu a maior resistência a essa idéia! E desde o
início... Acho que eu o convenci de modo tão competente que você chegou ao
cúmulo de atribuir a si mesmo uma idéia minha...
— De modo algum — e o meu interlocutor se levantou, protestativo, mas
com um sorriso, eu poderia jurar..., escondido. — A sua idéia é o caminho oposto.
— Não há realmente muita diferença entre uma via e outra. Trata-se de uma
via de mão dupla: João Ubaldo, seu narrador, e novamente João Ubaldo. Todo o
universo desta idéia: chegar ao narrador ubaldiano pela via do escritor, ou chegar ao
escritor pelas pistas deixadas por seu narrador... Isto é tudo um mesmo complexo.
— Não é — disse ele. — O caminho oposto, ou seja, tentar chegar ao
escritor João Ubaldo pela via de seus narradores, nos colocaria na arriscada
posição de nos lançarmos, de repente, à complexa e delicada tarefa de escrever
aqui uma biografia do escritor. E não é esse o caso.
— Isso tudo é um mesmo complexo, como eu disse... — E, fechando esse
parêntese, comecei mais este episódio de nossa conversa...
— ... episódio que podemos chamar de “o escritor-escrivão”. O que acha?
— Bom, vou anotar isso. E centro agora a nossa discussão neste trecho de
Viva o povo... — comecei, resignado.
Muitas coisas neste mundo não podem ser descritas, como sabem os que
vivem da pena, azafamados entre vocabulários e livros alheios, na perseguição
da palavra acertada, da frase mais eloqüente, que lhes possam render páginas
extras de prosa à custa de alguma maravilha ou portento que julguem do
interesse dos leitores, assim aumentando a sua produção e o pouco que lhes
pagam. Recorrem a comparações, fazem metáforas, fabricam adjetivos, mas tudo
acaba por soar pálido e murcho, aquela maravilha ou portento esmaecendo,
perdendo a vida e a grandeza, pela falta que o bom verbo por mais bom não pode
suprir, qual seja, a de não se estar presente ao indescritível. Nas minudências da
intriga e do enredo, amores dificultados, maldades contra inocentes, dilemas
dilacerantes, azares do destino, coincidências engenhosas, surpresas bem urdidas,
arroubos de paixão e tudo o mais que constitui justa matéria dos romances e
novelas, nisto sai-se ele menos mal, conforme sua destreza no ofício, sendo esses
enredos e intrigas os mesmos desde que o mundo é mundo. Como, porém,
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descrever um cheiro? (Viva o povo..., p. 108)
— Aqui se encontra descrita — disse eu —, em poucas linhas, uma
verdadeira concepção de vida literária, não apenas a concepção do narrador do
romance, este anônimo e formalmente extradiegético narrador sem cabeça, mas
também a concepção do próprio escritor João Ubaldo Ribeiro acerca do ofício da
escrita, da vida de um escritor e de sua relação com a literatura que produz. Há
aqui uma espécie de retrato do que seria o escritor do século XIX; o escritor que
escrevia seu romance em folhetins, que recebia seus tostões medidos por palavras,
linhas e páginas escritas...
752
— Quando o narrador escreve — disse ele —: “Nas minudências da
intriga e do enredo, amores dificultados, maldades contra inocentes...” etc. etc.,
terminando com: “... e tudo o mais que constitui justa matéria dos romances e
novelas, nisto sai-se ele menos mal, conforme sua destreza no ofício, sendo esses
enredos e intrigas os mesmos desde que o mundo é mundo”, ele deixa clara a sua
referência, e a sua preferência, por um específico tipo de literatura: uma literatura
que se quer, não um sofisticado jogo de linguagens e entre linguagens, mas um
pedaço muito bem descrito da vida. O romance realista-naturalista, se quisermos
nomear a coisa assim..., ou o romance neo-realista, para ficarmos mais orientados
para os problemas sociais da atualidade. Essa justa matéria, listada pelo narrador,
é a vida ela mesma, dentro daqueles romanções que nós bem conhecemos. Disse o
narrador do Miséria e grandeza do amor de Benedita, e disse Ubaldo numa
entrevista — e ele leu, pegando da mesa o livro e um jornal.
(i) ... é desses dramas que são compostas as grandes poesias trágicas e se
desprendem os grandes romances e novelas da miséria humana. (p. 50)
(ii) — ... História humana é uma coisa redutível a essenciais. Existe uma coisa
que o Faulkner disse sobre (...) os elementos da tragédia humana. A vida é isso, o
romance é isso, é tragédia, é abandono, (...) é mentira, é ilusão, é esperança.
753
752
— Há sobre isso um livro fundamental — apontei, em nota, para ver mais tarde. — Manuel
P
ORTELA, O comércio da literatura — Mercado & representação, Lisboa, Antígona, 2003,
especialmente os capítulos 5 (“Representar o mercado”, p. 161 até somente a p. 176) e 6 (“O
comércio dos autores”, p. 211-274).
753
Entrevista a José Reinaldo CARVALHO, “João Ubaldo indaga sobre a alma humana”, A Classe
Operária, 12 a 25 jan. 1989
.
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6 - UBALDO AMADO
422
— Escrever por dinheiro está relacionado a este tipo de literatura “de
intrigas”. Quem são os mestres de Ubaldo?; os escritores que ele admira e cujos
passos de certo modo seguiu e segue?
— Balzac, Dostoiévski, Dumas, Shakespeare, Homero... — Há outros,
pensei, mas não me lembro. E eu disse: — Mas aqui há escritores de tudo quanto
é tipo de escola literária. João Ubaldo já teve como leitura recorrente o próprio
Joyce, e isso se vê bem no romance Setembro não tem sentido...
— O Joyce do Retrato do Artista..., e não o Joyce do Finnegans Wake...
— Ainda bem... — e rimos. — Como leitor de Joyce, temos o João Ubaldo
reocupado com “o problema da linguagem”... O principal, nesse trecho do Viva o
povo... que eu recortei, é o seguinte: a profissionalização do escritor — disse eu.
— Você aproximou essa descrição do ofício de escrever, levada a cabo
pelo narrador de Viva o povo..., com o romance do século XIX... Podemos
mencionar aqui a relação desses romances com a matéria bruta da realidade... —
começou ele.
— Sim, mas não quero deter-me nos conteúdos das intrigas e dos
argumentos.
— Mas o conteúdo das intrigas é definidor do tipo de literatura e do tipo
de escritor...
— A questão aqui — interrompi-o — é a profissão do escritor, uma
profissão de certo modo já em avançado estado de reconhecimentos público, sim,
mas não no Brasil do século XIX! Não se pode falar, no século XIX, de
profissionalização do escritor brasileiro — frisei. — Há um ensaio do Antonio
Candido sobre isso,
754
mas já chegaremos lá, e também um do Merquior, sobre o
escritor latino-americano, mais especialmente o brasileiro.
755
— Eu não falei nada sobre profissionalização do escritor no Brasil...
— Mas pensou... — disse eu, um pouco sem graça. — Pensou... — E
tentei explicar: — Não se esqueça do que você mesmo disse: você, meu dedicado
interlocutor, é um desdobramento de mim mesmo; você não passa do conjunto
754
“O escritor e o público” (p. 73-88), in Literatura e sociedade, São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1985.
755
José Guilherme MERQUIOR, “Situação do escritor” (p. 383-399), in César Fernández MORENO
(coord. e introd.), América latina em sua literatura, São Paulo, Perspectiva, 1979.
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6 - UBALDO AMADO
423
pessoal das minhas dúvidas, das minhas pequenas confusões e pequenas
soluções... Mas vamos voltar ao trabalho e deixar as psicanálises apressadas.
Deixe-me continuar: escritor bom, para João Ubaldo, é aquele que escreve por
dinheiro, e os escritores do grande romance do século XIX, Balzac, Dumas,
Victor Hugo, Dostoiévski, todos escreviam por dinheiro.
756
— Você não entendeu, então, nada do que você disse que eu pensei
reagiu ele. — A profissionalização do escritor está relacionada ao mercado
consumidor de livros e a um determinado público leitor, que tanto vai consumir
mais livros quanto mais digeríveis e inteligíveis forem esses livros, ou seja, esses
argumentos e essas histórias. O leitor dio no Brasil não consome, dentro da
literatura, linguagem ou “o problema da linguagem”... Ele consome histórias bem
contadas, com um impactante começo, um ótimo, e de preferência ligeiro, meio e
um excelente final. E é por isso, talvez, que o leitor médio no Brasil não
consumiu, e não consome, o Setembro não tem sentido, o Sargento Getúlio ou o
Vila Real... Mas consome O sorriso do lagarto, o Diário do farol e,
especialmente, A casa dos Budas ditosos... E consome Viva o povo brasileiro
porque acredita, o leitor médio, que estará, assim, aprendendo a “História do
Brasil”, a “História que não foi contada”, bem entendido... Você deveria, aliás, ir
às editoras de Ubaldo tentar pegar informações quanto a tiragens e vendagens dos
livros, para que se corrobore o que eu estou afirmando...
— Não consegui informações precisas acerca dos números — defendi-me.
— Mas há as informações que circulam nos jornais, e acerca disso escreveu um
jornalista português do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, citando o próprio
escritor, acerca dA casa dos Budas...: “João Ubaldo (...) recorda que relativamente
o livro até terá vendido mais entre nós do que no Brasil — ‘e olhe que aqui ele
beirou os 200 mil exemplares e ainda está sendo vendido’, sublinha”.
757
— E observe — continuou, com ar triunfante —: naquela lista que teceu o
narrador de Ubaldo no trecho que você destacou, não há referência à literatura
756
— E faço aqui referência à crônica intitulada “O conselheiro come I”, em que João Ubaldo
conta a história das intervenções que tinha de fazer a mulher de Rui Barbosa no sentido de que
fossem pagas, e em dinheiro, as freqüentes consultas que as pessoas propunham ao seu
digníssimo marido. “O conselheiro come...”, dizia ela, com um sorrisinho (in O conselheiro
come, op. cit., p. 36-39).
757
“João Ubaldo Ribeiro — Os Budas Ditosos”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Portugal,
26 mai. 2004
.
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6 - UBALDO AMADO
424
como um “problema de linguagem”. Ele fala em “enredo, amores dificultados,
maldades contra inocentes, dilemas dilacerantes, azares do destino, coincidências
engenhosas, surpresas bem urdidas, arroubos de paixão” (Viva o povo..., p. 108).
Pois bem. Isto são características de uma literatura orientada para o mercado, ou
seja, para um mercado consumidor de histórias...
— Um mercado que reconhece o escritor como um profissional nem mais
nem menos inspirado do que qualquer outro; um profissional que não mantém
com a palavra escrita nenhuma relação ritualística ou mesmo sagrada. — E li o
trecho de uma crônica.
Nunca tive pendor para as artes psicanalíticas, nem acredito estar sendo
guiado por musas, que no preciso instante me sopram soluções de origem etérea.
Pelo contrário, numa cultura acostumada a privilégios, poses e geral mistificação,
já fui grandemente esnobado por não aceitar reivindicações mágicas para a
condição de escritor. Nunca tratei minha profissão solenemente (...).
758
— O trecho de Viva o povo..., com o qual comecei tudo isso — prossegui
—, aponta para um escritor e uma literatura orientados para a sua recepção: o
público leitor. Você está insistindo nessa discussão dos conteúdos literários... Isto
é uma das facetas dessa história, mas não é a principal.
— Mas João Ubaldo volta sempre a essa defesa da literatura como tramas
bem urdidas, contadas por bons contadores, e também a esse ataque à outra literatura,
àquela literatura que concentra toda a sua artilharia nas experimentações com a
linguagem, com resultados na maioria das vezes herméticos. Essa literatura nós bem
podemos conhecer através do que diz a nossa “intelectual CLB”..., que acabou
ficando conhecida apenas como a “pervertida CLB” — e ele leu, fazendo a ponte que
eu gostaria de ter feito, entre escritor e personagem, e entre ambos a mesma opinião.
... eu me senti, não sei por quê, meio Lacan, declamando todas aquelas
baboseiras desconexas e ininteligíveis, e os crentes tentando decifrá-lo como
quem decifra Nostradamus ou a pitonisa de Delfos, (...). O que se fala e escreve
de merda engalanada na França é inacreditável, eu mesma nunca engoli nada
dessa empulhação que confunde ininteligibilidade e chatice com profundidade,
nem Lacan, nem Godard, nem Robbe-Grillet, nada dessas merdas, tudo chute e
chato e quem gosta é porque foi chantageado a gostar e, no fundo, se sente burro.
Sartre ainda tinha umas coisas, se bem que L’être et le néant é a mãe dele, mas
758
João Ubaldo RIBEIRO, “Sofrendo até o fim” (p. 56-61), in O conselheiro come, op. cit., p. 60.
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6 - UBALDO AMADO
425
ainda tinha umas coisas, às vezes era arrebatador. (A casa dos Budas..., p. 91)
— E, no caso brasileiro — continuou ele —, Jorge Amado é um terreno fértil
para estudo, e João Ubaldo, por extensão e parecença. Veja o que diz a Ilana Seltzer
Goldstein, citando a Walnice Nogueira Galvão num artigo sobre Jorge Amado.
— ... que tem...
— ... eu sei: tem um papel definidor do processo de profissionalização do
escritor no Brasil... — disse ele,
759
e leu, citando a Ilana, que citava a Walnice:
... Walnice Nogueira Galvão, em artigo sobre Jorge Amado, também
argumenta que “a ficção ao gosto do mercado” está proibida de inovar: a fim de
não prender a atenção do leitor na própria linguagem, a narrativa nos best sellers
flui solta, e o discurso busca ser realista, para não correr o risco de se restringir ao
reduzido público de iniciados.
760
— Olhe — e eu forcei uma pausa. — Já que você firma pé na importância
e até na essencialidade dos conteúdos literários para entendermos a transformação
que sofreu a ficção de João Ubaldo, digo-lhe que uma boa parcela da literatura do
século XIX, no Brasil, foi caracterizada por veicular esses tais conteúdos literários
facilmente digeríveis, de tramas bem urdidas e lineares, e no entanto isto não foi
suficiente para solidificarmos uma posição profissionalizante do escritor, muito
pelo contrário.
— E por quê? Por outras razões: por causa da inexistência de público leitor
alfabetizado, com acesso aos livros, que eram mais caros etc. etc. E olhe que isso
é uma história longa que vem até hoje. Leia e cite aquele texto do Silviano
Santiago, no Vale quanto pesa
761
— pediu ele.
— Cito o Antonio Candido, num ensaio de 1965, para ilustrar isso que eu
disse:
... Entre nós, nunca tendo havido consolidação da opinião literária, o grupo
759
E eu me lembrei do trecho de uma matéria não assinada que cita palavras de Jorge Amado, para
quem a “literatura do Brasil só será grande, quando for uma literatura profissional. O que se vê,
por enquanto, é que vários escritores lançam, um ou dois livros e largam a literatura para fazer
outras coisas, a fim de sobreviverem. Só é escritor verdadeiro o bom profissional”
(“Longamente esperada chega Tereza Batista na Bahia, A Tarde, 20 dez. 1972
).
760
“As criaturas ganham vida própria e o criador se torna criatura”, op. cit., p. 217.
761
“Vale quanto pesa”, op. cit.
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6 - UBALDO AMADO
426
literário nunca se especializou a ponto de diferenciar-se demasiadamente do teor
comum de vida e de opinião. Quase sempre produziu literatura como a
produziriam leigos inteligentes, pois quase sempre a sua atividade se elaborou à
margem de outras, com as quais a sociedade o retribuía. Papel social reconhecido
ao escritor, mas pouca remuneração para o seu exercício específico; público
receptivo mas restrito e pouco refinado. Conseqüência: literatura acessível mas
pouco difundida; consciência grupal do artista, mas pouco refinamento
artesanal.
762
— Literatura acessível — disse ele, aproveitando meu realce — do ponto
de vista da legibilidade, e não do acesso material ao livro...
— O Antonio Candido dá conta, nesse ensaio — prossegui, para não
perder o fio da meada —, do itinerário de um papel social que se foi tornando
mais e mais nítido em relação aos demais; um papel social determinado em grande
parte pelo tipo de recepção que tinha o escritor: dos públicos de auditório de
cerimônias religiosas, típicos da nossa literatura colonial, aos mais específicos. A
figura do escritor, no entanto, sempre foi secundária: era-se antes alguma outra
coisa, e, em seguida, como atividade de segunda mão e exercida num certo ócio
criativo, a atividade criadora nas letras. Aos poucos foi essa atividade do escritor
revestindo-se das luzes da militância intelectual, difundindo-se “certa concepção
da tarefa do homem de letras como agente positivo na vida civil”,
763
diz Candido,
dirigindo o olhar para o final do século XVIII.
— Você pretende me contar essa história inteira? — provocou-me, mas eu
fingi que não era comigo, porque para mim estava sendo muito importante aquele
pequeno histórico. E continuei:
— O escritor começou a transformar-se, então, num intelectual, de quem
se esperavam palavras de comando ideológico.
— Em qual campo?
— Basicamente o campo dos assuntos relacionados às questões nacionais.
Mas o escritor, independentemente dos formatos que assumiam a sua consciência
de si e a sua imagem perante o público, esteve sempre na posição de alguém a
quem se deve incentivar, apoiar e financiar — eu disse. — Candido refere a
“atitude paternal do Governo, numa sociedade em que o escritor esperava
acomodar-se nas carreiras paralelas e respeitáveis, que lhe permitiriam viver com
762
“O escritor e o público”, op. cit., p. 87, realcei.
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6 - UBALDO AMADO
427
aprovação pública”,
764
e cita o exemplo de Gonçalves Dias e Machado de Assis,
“homens ajustados à superestrutura administrativa”.
765
E João Ubaldo costuma
indignar-se com esse ranço histórico que, de certo modo, ainda perdura. Ele diz
que, no Brasil, confessar essa relação entre literatura e dinheiro; o dinheiro sendo,
na maior parte das vezes, a verdadeira fonte de inspiração para a literatura, é
complicado e até indecente, e ele faz então uma referência a esse ranço histórico:
“É o vezo aristocrata de certas classes brasileiras que consideram a atividade de
escrever algo próprio apenas para pessoas bem postas na vida, que jamais
precisem do resultado do que produzem para sobreviver”.
766
Para ele — segui —,
é esta uma imagem de escritor
767
que não desapareceu com o tempo: uma imagem
completamente incompatível com a visão moderna do escritor como um
trabalhador como outro qualquer.
— Continue.
— Continuo com o próprio Ubaldo. E faço agora o seguinte: apresento-o,
mas não dentro dos cânones do resumo biográfico...
— ... que você tentou subverter invertendo a linearidade...
— Sim, mas que, de todo modo, acabei não subvertendo coisíssima nenhuma.
Apresento-o através de suas próprias palavras e próprias idéias, e dou-lhe então, com
essa nova apresentação, um exemplo de biografema — e coloquei no colo todas as
minhas anotações. — Quando está precisando de dinheiro, faz ele o seguinte: “Penso
então numa história, nos direitos, no que vou levantar com a edição, e parto para a
luta porque vivo disso”.
768
Diz que se afina mais com os escritores que chama
“desarrumados”, como Balzac e Dostoiévski. “Sou vidrado neles. Talvez por terem
uma vida tão desarrumada, suas obras transpiram isso. Eles escreviam por dinheiro.
763
Id., p. 78.
764
Id., p. 83.
765
Id., p. 84.
766
Beatriz MARINHO, “João Ubaldo... — profissão: escritor”, O Estado de S. Paulo, 30 jun. 1990.
767
— Mais precisamente, segundo as palavras de uma crônica, em que bem se pode observar que a
imagem forjada pelo próprio João Ubaldo da figura de um escritor já está bastante anacrônica:
“Escritor, naturalmente, é velho, fala difícil e tem absoluto desprezo por quem não acompanha
seus altos padrões culturais e seu fino cultivo de rigorosa correção de linguagem de acordo
com a gramática” (“Envelhecendo com graça e elegância”, dO Globo, de 30 mar. 1986
,
reunida no livro Arte e ciência de roubar galinha, op. cit., p. 181-185, p. 184).
768
Beatriz MARINHO, “João Ubaldo... — profissão: escritor”, O Estado de S. Paulo, 30 jun. 1990.
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6 - UBALDO AMADO
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Eram geniais para aumentar páginas, encompridando diálogos, e escrever todas
aquelas coisas ‘desarrumadas’. Eugénie Grandet é um romance ‘desarrumado’.”
769
Diz que faz parte de uma linhagem de escritores, “Dumas, Dickens, Sir Walter Scott”,
que escreviam por dinheiro: “... o que acho muito justo”.
770
— Sim, sim — disse o meu interlocutor, com o romance aberto na página
108. — Esse trecho de Viva o povo... é justamente um instante na vida de um escritor
qualquer que de repente se vê às voltas com um problema: descrever um cheiro.
— Sim, e João Ubaldo faz referência ao fato de esse escritor qualquer
escrever por dinheiro, e por pouco dinheiro. Faz referência também ao fato de
poder aumentar esse pouco dinheiro com alguns truques simples: encompridando
palavras e páginas, porque um bom punhado de palavras vai significar um pouco
mais de dinheiro, que vai significar comida ou bebida, e a continuação da
existência: escrever para comer; comer para escrever.
— Siga, estou gostando — e ele nos serviu de mais café, prometendo não
me interromper nos momentos seguintes.
6.4.
O TRABALHO DO ESCRITOR-ESCRIVÃO (PARTE II: RETRATO FALADO)
— João Ubaldo diz também que inspiração e momentos adequados são
coisas que não existem: “Eu acredito é em trabalho, em todo dia sentar e escrever.
(...) você deve sentar, de acordo com suas idiossincrasias, no lugar que você acha
que gosta, no horário que você gosta e escrever seu livro”.
771
Acredita em
disciplina, porque em literatura “não se recebem entidades nem se pratica
sacerdócio; trabalha-se”;
772
acredita na profissionalização do escritor, mas quando
era jovem sentia vergonha caso se referissem a ele como escritor: “... achava que
era uma pretensão”,
773
e conta a seguinte história: “Uma vez eu estava num
aeroporto com Jorge Amado, e, na hora de preencher o formulário, estava lá:
769
Beatriz CARDOSO, “O que sei é que começo pelo título”, Tribuna da Imprensa, 11 ago. 1986.
770
Beatriz MARINHO, “João Ubaldo... — profissão: escritor”, O Estado de S. Paulo, 30 jun. 1990.
771
José Carlos TEIXEIRA, “João Ubaldo: a partir da calma de Itaparica...”, O Globo, 7 set. 1983.
772
Maria Sílvia CAMARGO, “Um herói tirado da infância”, Jornal do Brasil, 9 abr. 1983.
773
Fernando Assis PACHECO, “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras,
Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983
.
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6 - UBALDO AMADO
429
profissão. Coloquei ‘jornalista’. O Jorge reparou e disse: ‘Deixa disso, rapaz, bota
lá escritor’.
774
Foi o que fiz, ainda meio acanhado”.
775
Diz também que não
consegue deixar para trás um certo barroquismo: “É a minha prosa, a prosa que eu
aprendi com padre Antônio Vieira, Manoel Bernardes. Gosto da língua portuguesa
nessa forma”.
776
Diz que não faz pesquisa: “Sou um leitor de literatura barroca e
rococó, já tenho todo esse vocabulário na cabeça”,
777
mas, para dar conta do que
chama “rigor de produção”, escreve cercado de almanaques e calendários, para
saber, exemplo, “em que dia da semana caiu o 8 de novembro de 1746”.
778
E
explica: “Sou muito perfeccionista, meticuloso. (...) Se um personagem risca um
fósforo
779
na bota, vou a um almanaque conferir se realmente já existiam fósforos
naquela época”.
780
Diz que começa a escrever como se começasse a ler: “... boto
título, dedicatória, epígrafe e desembesto”. Parte, em geral, de uma idéia básica,
“que tenho ou acho que tenho. (...) É difícil explicar mais do que isso. (...) O ato
de escrever sem os elementos clássicos da pesquisa, das anotações, fica tão
variado quanto a natureza humana”.
781
Diz que faz questão de ser claro, de que
sua frase seja inteligível e seu período logicamente bem construído.
782
E diz
também que já passou pela experiência de ver um livro seu desandar: “O José
Rubem Fonseca tem uma teoria de que, se você abandona um livro por um tempo,
quando volta, já não pega mais a história. Perde a embocadura. Meu truque é
774
— Em outro depoimento, João Ubaldo faz referência a essa circunstância, mas como tendo
acontecido muito antes. “Foi ele quem primeiro acreditou em mim, desde os meus 17 anos, foi
ele que, me vendo registrar-me num hotel, olhou o item onde eu declarava timidamente que
minha profissão era jornalista, pegou a ficha, rasgou-a e disse: — Jornalista é muito bom, mas
não é o que você é. Bote aí ‘escritor’, você é escritor” (João Ubaldo R
IBEIRO, “Jorge Amado e
eu”, O Globo, 12 ago. 2001
).
775
Beatriz MARINHO, “João Ubaldo... — profissão: escritor”, O Estado de S. Paulo, 30 jun. 1990.
776
Rodrigo LACERDA, “Utopia tropical”, Cult, nov. 1997.
777
Fábio FERNANDES, “O feitiço do escritor de Itaparica”, Tribuna da Imprensa, 21 nov. 1997.
778
“João Ubaldo Ribeiro, história e ótica popular”, O Estado de S. Paulo, 12 abr. 1985.
779
— Se o Wilson MARTINS está certo... — interrompeu-me o meu interlocutor —, então
detectamos aqui um descuido desse tipo no Viva o povo brasileiro. — E ele leu: — “Devem-se
ao caráter programático da história os raros anacronismos que possam ocorrer: é o caso de Zé
Popó”, disse o crítico, “que encerra discurso de exaltado patriotismo ‘com o punho fechado
apontando para cima’, gesto ideológico que certamente ainda não havia sido inventado em
1870 quando ocorre o episódio” (“A matéria brasileira (I)”, Jornal do Brasil, 11 mai. 1985
).
780
“João Ubaldo Ribeiro, história e ótica popular”, O Estado de S. Paulo, 12 abr. 1985.
781
Beatriz MARINHO, “João Ubaldo... — profissão: escritor”, O Estado de S. Paulo, 30 jun. 1990.
782
Álvaro Costa e SILVA, “João Ubaldo e o padre”, Gazeta Mercantil, 13 e 14 abr. 2002.
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6 - UBALDO AMADO
430
voltar e copiar o que eu fiz. Quando chego ao lugar em que ele empacou, o livro
pega de novo”.
783
Aos seis anos já estava na escola, “porque meu pai achava um
absurdo ter um filho analfabeto com essa idade”. Aos nove, soube da morte de
Monteiro Lobato, a quem considera “um gênio”
784
e cuja obra infantil já tinha lido
inteira, e resolveu então continuar: “Não fazia idéia do que era direito autoral, e
cheguei a encher alguns cadernos com aventuras de Narizinho, Pedrinho,
Emília...”.
785
Sempre viveu em casarões antigos e entupidos de livros, fez
caligrafia com os sermões do padre António Vieira, sempre viveu fantasias e
febres relacionadas à leitura, lendo tudo o que lhe caísse nas mãos: “... gibis,
almanaques sobre mecânica, Shakespeare, Dickens, biografias”.
786
Tudo era
sedutor, e tudo ainda era pouco: “Li Shakespeare com dez anos de idade e não
entendi nada; quer dizer, entendi que as coisas terminavam mal...”,
787
e encantou-
se pelas três tragédias, Hamlet, Romeu e Julieta e Macbeth, “que meu pai me
explicava com paciência”.
788
Conta que foi um moleque muito pernóstico,
“conhecido como aquele (...) que falava difícil”. Um dia, descobriu em meio às
pilhas de livros do avô Ubaldo um sobre o general Osório, que, entre outras
façanhas, tinha escrito alguns sonetos: “Eu copiei um (...) e apresentei à família
em Itaparica como obra de minha lavra. Fiz um sucesso ensurdecedor durante uns
quinze dias! Até que (...) meu pai ficou desconfiado, eu tinha nove anos... e fui
flagrado por plágio”.
789
Conta que começou a trabalhar numa redação de jornal
porque o pai achou que ele deveria escrever a sério, “e não ficar escrevendo
frescuras em casa”.
790
Participou de uma revista chamada Ângulos, conheceu
Glauber Rocha e entrou na Faculdade de Direito, “que, na época, era uma escola
de humanidades, não uma fábrica de técnicos como é hoje. Quem tinha vocação
783
Cristiane COSTA, “Não vejo parentesco dos meus livros...”, Jornal do Brasil, 6 abr. 2002.
784
Lilian FONTES, “Do jeito que o povo gosta”, Rio Artes, 1994.
785
“João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002.
786
Beatriz MARINHO, “João Ubaldo... — profissão: escritor”, O Estado de S. Paulo, 30 jun. 1990.
787
Lilian FONTES, “Do jeito que o povo gosta”, Rio Artes, 1994.
788
Beatriz MARINHO, “João Ubaldo... — profissão: escritor”, O Estado de S. Paulo, 30 jun. 1990.
789
Fernando Assis PACHECO, “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras,
Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983
.
790
Marcos GUSMÃO & Alberto FREIRE, “Viva o povo brasileiro pra inglês ler”, A Tarde, 24 abr. 1987.
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6 - UBALDO AMADO
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para poeta cursava Direito. Filosofia era para meninas casadoiras”.
791
Começou a
trabalhar no Jornal da Bahia aos dezessete anos, e sua primeira missão foi uma
matéria sobre as filas da cidade de Salvador: “Lá fui eu de repórter, todo besta”.
Chegou à redação, escreveu a matéria com uma letra caprichada e entregou: “Não
me esqueço mais da reação do meu chefe: ‘Meu filho, você guardou bem as suas
anotações?’. Quando eu disse que tinha guardado, ele rasgou tudo o que eu tinha
escrito, não me deixou nem copiar à máquina. E sofri das duas da tarde até as oito
da noite, pra encher duas laudas e meia”.
792
Jornal, diz, é como futebol: “O
sujeito, para ter aquelas qualidades todas, (...) tem que ficar dando corridinhas de
cinqüenta metros no treino (...). (...) para quem quer ser escritor, é um treino
fantástico. Você é obrigado a fazer cinqüenta vezes aquela merda, e aí, quando
você chega no jogo, aquele negócio lhe ajudou”.
793
Diz que redação de jornal é
como sauna: “Todo o mundo fica nu e ninguém liga”.
794
Também aos dezessete
anos publicou seu primeiro conto num jornal baiano, “... um conto pernóstico
chamado ‘Lugar e circunstância’. Era sobre a infância, e não era ruim, não. Eu
estava influenciado por um professor que vivia falando em Ortega y Gasset, ‘Yo
soy yo y mi circunstancia’...”.
795
Diz que, como jornalista, é “o pior do mundo”.
796
Diz que não gosta dos contos presentes em Reunião, antologia de 1961,
organizada por Noêmio Spinola e Sônia Coutinho: “... me dá um certo embaraço”,
e relembra o dia em que leu uma crítica de Assis Brasil sobre o livro, que também
tinha contos de Sônia Coutinho, Noêmio Spinola e David Salles: “... ele elogiou
todo o mundo e, no final, me esculhambou. Fingi que não liguei, mas fiquei
emputecido. Hoje, acho que o Assis Brasil tinha razão, os meus contos eram ruins
mesmo, umas besteiradas delirantes, com exceção talvez de um, ‘Josefina’, que eu
escrevi para cumprir a promessa que, tomando umas cachaças no Seminário, fiz a
uma puta sergipana, de botar o nome dela no jornal”. João Ubaldo diz que sente
791
“João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002.
792
Renato SÉRGIO, “João Ubaldo Ribeiro — Um best seller desabafa: ‘A qualidade de vida das
grandes cidades não me diz nada’”, Manchete, 19 out. 1985
.
793
Marcos GUSMÃO & Alberto FREIRE, “Viva o povo brasileiro pra inglês ler”, A Tarde, 24 abr. 1987.
794
Márcio VASSALO, “A palavra é imortal”, Lector, nº 24, 1997.
795
Fernando Assis PACHECO, “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras,
Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983
.
796
Maria Sílvia CAMARGO, “Um herói tirado da infância”, Jornal do Brasil, 9 abr. 1983.
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6 - UBALDO AMADO
432
arrepios ao imaginar a si mesmo aos dezoito anos: “... um fedelho pernóstico,
radical, intolerante e metido a saber de tudo”.
797
Aos 23, “o que eu era mesmo era
intelectual de porta de livraria,
798
(...) vivia escrevendo poemas e peças, e estava a
fazer aquilo, os estudos, para agradar meu pai”. Quando lhe pediam que
escrevesse alguma coisa, escrevia. Como se achava na obrigação de escrever, não
recusava nada: “... se aparecesse um amigo dizendo ‘ô, João Ubaldo, você não
quer escrever um folheto sobre esse vinho aqui?’, (...) eu respondia
‘imediatamente’. (...) Eu, a vergonha da família, que tinha abandonado uma
carreira futurosa para ficar sem emprego, e sou escritor... Então eu ficava
imaginando uma espécie de superfigura dizendo assim: ‘Você não é escritor, filho
da puta? Escreva!’”. João Ubaldo era, como professor de “História das Idéias
Políticas” e “Organização Social e Política do Brasil”, em 1965, 1966, um
provocador: “... na bibliografia eu botava autores tabu, tome Marx, tome Engels,
tome Lenine!”. Acompanhava-o sempre, nas aulas, em meio aos alunos e munido
de um gravador, um policial informante: “... era um tira simpático, muito educado,
era um dos ouvintes mais educados que eu tinha. (...) Até o dia em que o ICBA
(Instituto Cultural Brasil-Alemanha) me convidou para uma conferência, e lá
estava meu tira, eu já gostava, já tinha uma certa afeição por ele, mas então falei
dele em público e a coisa ficou desagradável, achei de fazer graça: ‘... aquele
rapaz que ali está, não sei quê, que sempre me acompanha...’”. João Ubaldo foi
então processado, “mas nunca fui preso... Algum juiz decretou até a prisão
preventiva, só que eu tinha ido para os Estados Unidos e eles não sabiam; depois
797
“João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985.
798
— E aos 29 anos escreveu ele, com bastante ironia, provavelmente sobre a sua própria imagem
de intelectual. — E li uma espécie de receita: — “Para ser um intelectual, é necessário que
você possua algum talento. Não cultura ou inteligência porque estas, às vezes, atrapalham
bastante (...). As alegrias da vida intelectual são esquivas e fugidias, só compensando para
aqueles que a elas dedicam todos os seus momentos, na inefável busca de maiores alturas para
o espírito. (...) 2. O intelectual tem crises de angústia — As crises de angústia são
absolutamente indispensáveis para a manutenção de uma imagem adequada. Não é difícil
angustiar-se, embora os detalhes fiquem a cargo da imaginação e do senso artístico de cada um.
Alguns gritam repentinamente, outros permanecem silenciosos durante horas a fio... (...) 4. Os
intelectuais acham engraçadas coisas que ninguém acha engraçadas, nem mesmo os outros
intelectuais — Há diversas oportunidades para que o intelectual se manifeste com gargalhadas
(...). Entre estas, se encontram filmes dramáticos americanos, concertos de música clássica,
conferências sobre fissão nuclear, tragédias de Sófocles ou filmes dinamarqueses sem
legendas. A risada, preferivelmente, será dada com uma leve curvatura de cabeça para trás e
pode, na maior parte dos casos, ser seguida de um pequeno comentário” (“Como ser um
intelectual (I)”, Coluna Satyricon, Jornal da Bahia, 8 jul. 1970
).
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6 - UBALDO AMADO
433
voltei e não me prenderam”.
799
Diz que não se interessa por literatura; que nunca
conseguiu se interessar por literatura: “Eu me interesso pelas coisas (...). Sempre
fui metido a biólogo, principalmente a zoólogo, botânico não. Literatura... eu não
sei pra onde é que vai”. Diz que Cervantes é sua “grande paixão”; Homero, o seu
“clássico predileto”; Rabelais, “de dar inveja”; Shakespeare, “irretocável”; Os três
mosqueteiros, “um dos maiores romances do mundo”; Pablo Neruda, “um grande
e extraordinário poeta”; Vargas Llosa, “um competente escritor de quem não
gosto”; Jorge Luis Borges, el brujo, alguém de quem gosta “mais com a cabeça do
que com o coração”.
800
Diz que lê todos os dias a mesma página de Ricardo III, de
Shakespeare: “Meu pai dizia que esse é traço de loucura (...). Leio sempre
Macbeth, Hamlet, (...) Ilíada, Odisséia, Invenção de Orfeu”. Diz que recita de
cabeça e em inglês o monólogo de Hamlet e que a cada vez descobre algo novo no
to be or not to be.
801
Há, por isso, escritores que aprecia mas não lê: João Cabral
de Melo Neto; e outros que lê e, pronto, chora: Castro Alves.
802
Costuma dizer
que é constituído de dois Ubaldos: o “Grande Ubaldo”, “... um cara simpático,
relaxado, tolerante, sem vocações. Um boa praça”, e o “Pequeno Ubaldo”, “... um
sujeito chato demais. Ele gosta de me aporrinhar: ‘E aí, meu amigo, tomando
uísque em casa, em vez de estar trabalhando?!’. O ‘Pequeno Ubaldo’ é uma figura
insuportável com a qual eu convivo. (...) Não é uma consciência boa, como a de
Pinóquio. (...) é uma consciência desagradável, é um neurótico. Ele vê sempre o
lado mau das coisas. (...) Antigamente, ele me obrigava a acordar cedo. Se eu
acordasse às dez ou onze horas da manhã, o ‘Pequeno Ubaldo’ me aporrinhava
sem parar: ‘É isso aí, acordando a esta hora, já perdeu praticamente toda a
manhã... Não tem nada e ainda se dá ao desplante de acordar tarde... Daqui a
pouco vai beber, vai almoçar e depois vai dormir de novo.
803
Você é um
799
Fernando Assis PACHECO, “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras,
Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983
.
800
Beatriz CARDOSO, “O que sei é que começo pelo título”, Tribuna da Imprensa, 11 ago. 1986.
801
Luís Antônio GIRON, “Ubaldo enfrenta o diabo”, Cult, mai. 2002.
802
Cremilda MEDINA, “No caminho das almas...”, Diário de Notícias, 14 dez. 1984.
803
— Aparição semelhante, que poderíamos nomear de o “Pequeno Pedroso” — disse eu, em nota
—, acomete, não por acaso, o personagem principal dO sorriso do lagarto: “Muitas vezes, ali
mesmo, bêbedo ou não, fora obrigado quase a rezar para acreditar que a vida tinha algum
sentido (...). Como também já acontecera muitas vezes, viu diante de si uma réplica de si
(cont.)
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6 - UBALDO AMADO
434
desclassificado’”,
804
diz o “Pequeno Ubaldo”, “espécie de inquisidor (...)
‘mesquinho, acusatório’”.
805
Diz que já recebeu da crítica “algumas porradas, mas
poucas. (...) Fiquei retado. Eu sou igual aos outros, gosto de elogios, não gosto de
nego me esculhambar, não”.
806
Diz que droga não inventa nada: “William
Faulkner só andava bêbado, era um bêbado patológico, entrava numa carraspana,
deitava na cama, botava uma garrafa junto, acordava, bebia de novo, escornava
(...), mas não foi assim que Faulkner escreveu a obra dele, ele ia lá e escrevia sem
cachaça”.
807
Desde menino ouve que o romance está em decadência: “Quando
escrevia Viva o povo brasileiro, um livro enorme, disse para um amigo que me
sentia meio maluco, escrevendo aquele monte de besteiras. Ele me respondeu que
não fora eu que inventara o romance e que ele continuaria a existir depois de
mim”.
808
Diz que foi Glauber Rocha quem o persuadiu a jamais usar epígrafes:
“Desde então só uso epígrafes que eu mesmo construo”.
809
Diz que “a mulher do
homem é ele mesmo, tirante as de quando em vez (...). Minha mulher sou eu...”.
810
— Isto é um trecho da fala do sargento Getúlio, na página 39! — disse ele,
me interrompendo pela segunda vez.
— Sim, mas não me interrompa. Você prometeu... — E continuo: — João
Ubaldo não suporta a parte da tarde: “... a tarde me deixa burro. Sou uma pessoa
da manhã (...). De manhã, estou com a corda toda”.
811
Diz que o esforço da
tradução é um esforço impossível, que não existe tradução, que odeia traduzir: “...
não consigo aceitar inteiramente tradução de coisa nenhuma, nem de nome de
peixe”, e propõe um problema: “... traduzir Moby Dick. (...) o primeiro período
mesmo, olhando-o com severidade e algum desprezo e lhe fazendo um sermão” (p. 211,
realcei).
804
Márcio VASSALO, “A palavra é imortal”, Lector, nº 24, 1997.
805
Sergio Vilas BOAS, “... o escritor carioca-baiano tenta conciliar...”, Gazeta Mercantil, 18 e 19
mar. 2000.
806
“João Ubaldo: ‘Eu me achava um gênio...’”, Jornal da Telebahia, jun. 1984.
807
Marcos GUSMÃO & Alberto FREIRE, “Viva o povo brasileiro pra inglês ler”, A Tarde, 24 abr. 1987.
808
Airton GUIMARÃES, “O romancista baiano passa os olhos sobre a cultura brasileira...”, Estado
de Minas, 17 mar. 1990
.
809
“João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002.
810
Lena FRIAS, “João Ubaldo (...) escreve para não ficar louco”, Jornal do Brasil, 31 jul. 1978.
811
Renato SÉRGIO, “João Ubaldo Ribeiro — Um personagem que esqueceu de se incluir num dos
seus oito livros...”, Ele Ela, texto sem referência.
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6 - UBALDO AMADO
435
tem apenas três palavras: ‘Call me Ishmael’. Se me tivessem encomendado a
tradução (...), eu ainda estaria empacado nesse período. Como botar isto em
português (...) decente? ‘Chama-me Ishmael’?, ‘Chame-me Ishmael’?, ‘Me chame
de Ishmael’?, ‘Meu nome é Ishmael’? (...) Nenhuma dessas soluções trágicas
traduz de facto a frase”.
812
Quando sente que as coisas perderam o sentido, quando
sente que não sabe para onde vai, que não sabe o que está fazendo ou não sabe o
que significa aquilo que está fazendo, “... nessas horas eu escrevo. Eu escrevo
com o corpo todo. Levanto, tiro a roupa, visto a roupa, corro, bebo água, choro,
fico emocionadíssimo, volto. (...) Não posso escrever na frente de ninguém porque
eu tenho pudor, porque é realmente a coisa mais íntima que eu faço”.
813
Diz que
escrever é uma tarefa tirânica, “porque você escreve o dia inteiro e enche os
amigos (...), porque você não escreve apenas sentado à máquina, mas o tempo
todo está escrevendo”.
814
Diz que gosta de escrever na frente da mulher: “Entrego
a ela nervosamente as páginas prontas, à espera de um comentário. Ela vai lendo e
dá uma risadinha. Então eu grito: ‘Por que você riu? Esse trecho não é para rir, e
você riu! Faça o favor de me respeitar!’”.
815
Diz que controla a própria
prolixidade, “como um buffer de impressora eletrónica segura o jorro de dados
que sai do processador”,
816
e que na hora não tem certeza de quase nada: “De
repente ocorrem alguns alarmes falsos e tenho que abandoná-los no meio do
caminho”.
817
Diz que escreve porque não tem opção, “... uma compulsão tão
grande que se não ceder a ela não preservo a minha sanidade”;
818
que escrever é a
única coisa que sabe fazer e que sente que tem algo a dizer: “Numa entrevista à
Libération, depois de ter pensado muito, cheguei à conclusão de que escrevo
porque quero; porque, no fundo, o meu escrever é reduzível a isto; não a um ato
voluntarista, mas a um ato de decisão, um aspecto do livre-arbítrio. (...) Existe um
812
José Carlos de VASCONCELOS, “O feitiço da escrita”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias,
Portugal, 24 mar. a 6 abr. 1999
.
813
Lena FRIAS, “João Ubaldo (...) escreve para não ficar louco”, Jornal do Brasil, 31 jul. 1978.
814
José Carlos TEIXEIRA, “João Ubaldo: a partir da calma de Itaparica...”, O Globo, 7 set. 1983.
815
Cícero SANDRONI, “O João da ilha”, Elle, nov. 1989.
816
José Carlos de VASCONCELOS, “O feitiço da escrita”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias,
Portugal, 24 mar. a 6 abr. 1999
.
817
Reynivaldo BRITO, “João Ubaldo Ribeiro”, texto sem referência, 12 jan. 1985.
818
José Mário PEREIRA, “O romance maior de João Ubaldo”, Última Hora, 5 jun. 1982.
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6 - UBALDO AMADO
436
velho verso em português (que não é assim mas a expressão ficou): ‘Não se pode
passar pela vida em brancas nuvens’, sem ter feito nada. Então, eu escrevo por
isso, para não passar pela vida em brancas nuvens”.
819
Embora escreva bem mais
devagar do que escrevia quando era jovem, “... mas não por falta de
espontaneidade; por excesso dela”;
820
acredita que tem, hoje, mais controle sobre
o ofício: “Soluciono os meus problemas redacionais e narrativos com uma
habilidade de veterano”,
821
e conta um pedaço do seu dia-a-dia tecendo o romance
O sorriso do lagarto: “... enquanto escrevia (...), vi-me várias vezes levantando-
me no meio de um parágrafo absolutamente inesperado e mil vezes bem-vindo,
para dar uma dançadinha em torno da mesa com os braços para cima, antes de ter
coragem de espiar o monitor e confirmar, em letras agora coruscantes, que o nó
estava desatado, desfeito, desmoralizado, desenrolado de uma forma tão óbvia que
somente minha estupidez não percebia antes”, e exclama: “Nosso Senhor dos
Escritores existe e a Providência socorre os desvalidos das letras!”.
822
Diz que
escrevia com alegria: “... hoje em dia, não sei se escrevo mais”,
823
que escrever é
um gozo e que às vezes passa um dia inteiro às voltas com três ou quatro palavras:
“Computador, neste sentido, atrasa o trabalho, porque torna esse tipo de curtição
muito fácil, você vê dicionários, conjuga verbos, acha sinônimos, lê citações,
lembra situações, faz o diabo com uns dois cliques ou três”.
824
Diz que em algum
momento da vida experimentou parar de escrever, e... “comecei a ter ausências de
vários minutos, em qualquer lugar em que estivesse, enquanto delirava acordado.
Eu ficava louco”.
825
Diz que escreve desde os dezessete anos e que não suporta
que o vejam como uma revelação: “Então ficam comentando que estou com
quarenta anos e estourei. Estourei coisa nenhuma... eu escrevendo desde os
819
“João Ubaldo Ribeiro”, in José Domingues de BRITO (org.), Por que escrevo? — coletânea de
depoimentos célebres, São Paulo, Escrituras, 1999, p. 101 (fonte: Giovanni R
ICCIARDI, Auto-
retratos, op. cit.).
820
José Carlos de VASCONCELOS, “O feitiço da escrita”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias,
Portugal, 24 mar. a 6 abr. 1999
.
821
Márcio VASSALO, “A palavra é imortal”, Lector, nº 24, 1997.
822
João Ubaldo RIBEIRO, “Escrever romances é sofrer até o fim”, Folha de S. Paulo, 19 abr. 1992.
823
Rodrigo LACERDA, “Utopia tropical”, Cult, nov. 1997.
824
José Carlos de VASCONCELOS, “O feitiço da escrita”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias,
Portugal, 24 mar. a 6 abr. 1999
.
825
Maria Sílvia CAMARGO, “Um herói tirado da infância”, Jornal do Brasil, 9 abr. 1983.
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6 - UBALDO AMADO
437
dezessete anos e muita gente achando que era porcaria, eu sem saber direito o que
ia ser da minha vida”.
826
Diz que não sabe fazer nada além de escrever, que é
incompetente em quase tudo o que há de mais elementar e que não consegue
cuidar direito de si mesmo: “Eu já disse, um pouco dramaticamente, a uma
jornalista que eu queria impressionar, que eu escrevia para não ficar maluco. Hoje
eu acho que não foi apenas uma frase de impacto. Eu escrevo para não ficar louco
e, portanto, para não ficar infeliz. A não ser que se considere a loucura uma forma
suprema de felicidade por causa de algumas vantagens que a loucura nos traria na
nossa relação com a realidade. Eu não quero ser maluco”.
827
Diz que não é fácil
viver só de escrever: “... como disse num título Osman Lins (...), é uma guerra
sem testemunhas. (...) De minha parte, comunico que continuo comendo,
regularmente, (...), que não estou grato por nada, a não ser pelo que fiz, pelo meu
dom, e que não desisto...”.
828
Diz que gosta mesmo é de ler livro de biologia e
zoologia,
829
e que pescar vicia; escrever, não: “Preferiria dar um tempinho... Mas
você vive de escrever para escrever o que você quer. E aí vira profissional”.
830
— Muito bom — disse o meu interlocutor, ainda embalado. — Isso é o
que eu chamo um verdadeiro “retrato falado”... Sinto-me mais familiarizado com
o autor. Você merece um café.
— Obrigado digo eu, não por me ouvir, mas por não me interromper,
senão duas vezes — e, olhando para o romance Miséria e grandeza do amor de
Benedita, saboreei aquele café. Meu interlocutor folheava, ansioso por uma
discussão, a edição portuguesa do livro A casa dos Budas ditosos.
6.5.
O CASO DA CASA DITOSA: MISÉRIA E GRANDEZA
— Você disse — e ele levantou a cabeça, agitando o livro com a mão —
que esse livro causou polêmica em Portugal, sendo, ao mesmo tempo, um sucesso
de vendas... Parece-me que esta pode ser uma boa amostra da idéia de estar
826
“João Ubaldo: ‘Eu me achava um gênio...’”, Jornal da Telebahia, jun. 1984.
827
Beatriz CARDOSO, “O que sei é que começo pelo título”, Tribuna da Imprensa, 11 ago. 1986.
828
“João Ubaldo Ribeiro solta o verbo”, Jornal da Bahia, 17 e 18 fev. 1985.
829
“João Ubaldo — O sertão e sua gente...”, O Globo, 15 mar. 1981.
830
Luís Antônio GIRON, “Itaparica, o sorriso de João”, O Estado de S. Paulo, 8 mai. 1988.
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6 - UBALDO AMADO
438
Ubaldo numa ambígua posição, sempre a oscilar entre a crítica e o público. Por
que A casa dos Budas... vendeu tanto em Portugal? Por se tratar de um grande
autor brasileiro, autor de Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro? Por se tratar
de um grande livro? Você disse que o sucesso em terras lusitanas, não obstante a
“censura”, foi grande. Eu diria: graças, e muito, à “censura”. Não?
— Não sei. É isso o que eu gostaria de discutir com você... Dou-lhe um
quadro heterogêneo do caso: A casa dos Budas ditosos foi publicado no Brasil em
1999, pertencendo à rie “Plenos Pecados”, da editora Objetiva. O lançamento do
livro em Portugal, pela editora Dom Quixote, apresentou contratempos: a venda
foi proibida em dois hipermercados, Pão de Açúcar, Jumbo, do grupo Auchan, e
Continente, do grupo Sonae, que, juntos, totalizam muitos pontos de comércio.
831
“É óbvio que o veto (...) acabou por beneficiar a carreira do livro”,
832
disse João
Ubaldo, para quem a proibição, uma espécie de censura, prejudica a imagem de
Portugal junto à opinião pública brasileira.
833
“A imagem que passou foi que os
portugueses proibiram a comercialização pura e simples do livro, o que não é
verdade”.
834
Esta espécie de censura
835
repercutiu em todo o país, através dos
jornais, e talvez tenha aguçado a curiosidade dos portugueses, tanto daqueles que
já conheciam o obra de João Ubaldo Ribeiro, escritor amplamente publicado por
editoras portuguesas, quanto daqueles que vieram a conhecê-lo através das
acusações e da alcunha, aqui recebida, de escritor pornográfico e/ou erótico. Ouça
isto. A primeira citação é o trecho da carta de um leitor.
831
— A cadeia de distribuição Continente tem 20 lojas e a Pão de Açúcar tem 11 lojas, segundo a
reportagem: “Hipers censuram livro. PCP considera facto preocupante e interpela o Governo”,
Avante!, 6 jan. 2000
, em: <http://www.pcp.pt/avante/1362/6203e2.html>, acesso em 18 out. 2005.
832
Sérgio ALMEIDA, “A feliz desdita de ‘seu’ Ubaldo”, Jornal de Notícias, 22 jan. 2000.
833
— A ressalva de João Ubaldo, a sua preocupação com a imagem de Portugal e o seu confesso
amor pelo mundo lusitano não foram suficientes para calar o bem humorado comentário de um
jornalista português — eu disse, em nota. — Vale a pena ouvir: “Li, numa revista, um
comentário irônico do autor à alegada proibição de venda de seu livro (...). Mas foi só porque
ele teve aquela reação muito brasileira de culpar o país inteiro (Portugal) pela reacção
conservadora de uns gestores (...). Também nem tanto, ó companheiro. Não vale a pena
confundirmos tacanhez com Inquisição... (...) Viva o povo brasileiro. E, já agora, Viva o povo
português que também tem laivos de graça” (Possidónio C
ACHAPA, “Viva a luxúria”, Diário
de Notícias, texto sem data).
834
Sérgio ALMEIDA, “A feliz desdita de ‘seu’ Ubaldo”, Jornal de Notícias, 22 jan. 2000.
835
— “Estamos chocados com o que aconteceu”, disse o editor português de João Ubaldo, Nelson
de Matos. “É um gesto grave, trata-se de censura” (“Moralistas”, Tal & Qual, Portugal, 10
dez. 1999).
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6 - UBALDO AMADO
439
(i) Não li o livro, nem sequer o folheei. Provavelmente (...) não o compraria.
Mas na próxima ida à livraria procura-lo-ei, mais não seja porque do autor só
conheço alguns trabalhos publicados em jornais. Mas uma coisa garanto. Nos
hipermercados Continente ou Pão de Açúcar não comprarei nem uma chucha
[chupeta] enquanto esta atitude não for revista.
836
(ii) Compre o livro numa livraria de bairro, saboreie boa literatura e ofenda a
moral dos hipermercados Continente e Pão de Açúcar. Melhor ainda, ofenda-os
mesmo: nunca mais lá ponha os pés”.
837
— Continue com o seu quadro heterogêneo... — disse ele, com alguma
ironia. — O livro recebeu resenhas favoráveis?
— Em Portugal? Não propriamente resenhas... A revista Grande
Reportagem menciona “a qualidade excepcional da escrita” de João Ubaldo.
838
Maria João Seixas critica o estratagema das fitas cassete deixadas na casa do
escritor: “... soou-me a falso e transformou toda a narrativa — lida, ouvida e vista
— numa quase impostura de inventário voyeurista”, e elogia aspectos do texto:
“Gosto do permanente uso e abuso do superlativo absoluto simples, da
adjectivação raticada [sic], a sublinhar o ‘divertimento’, também ele superlativo e
absoluto, embora nada simples, das descrições da narradora e a criar a
indispensável distância com o leitor (...)”.
839
A revista Visão escreveu que João
Ubaldo “tem uma prodigiosa capacidade (...) e uma fantástica imaginação”, e que
ele ficou surpreso com a notícia de que a “sua última ficção (...) teria a sua
distribuição e venda proibida (...). Motivo: ‘Uma ofensa à moral pública’”. E a
matéria ainda menciona a senhora Isabel Megre — continuei, animado —,
diretora das Relações Institucionais do grupo Auchan, proprietário do Pão de
Açúcar e do Jumbo, “confirmando a decisão tomada e a razão evocada”. Disse
ela: “A política comercial e o que está à vendas nas lojas é decisão nossa. O livro
836
Miguel REGO, “Livros em hipermercados”, Diário de Notícias, Portugal, 16 dez. 1999.
837
“A casa dos Budas ditosos”, Grande Reportagem, Portugal, jan. 2000.
838
Id.
839
Maria João SEIXAS, “A Propósito de A casa dos Budas ditosos”, Teatro Nacional D. Maria II,
Lisboa, 28 mai. 2004, Arquivo Storm Magazine, em: <http://www.stormmagazine.
com/novodb/arqmais.php?id=272&sec=&secn=>, acesso em 29 jul. 2005
(conversa que teve
lugar no salão do Teatro Nacional D. Maria II, após a apresentação da peça homônima,
interpretada por Fernanda Torres, com direção de Domingos de Oliveira, tendo como
convidadas ao debate Maria João Seixas e Paula Moura Pinheiro).
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6 - UBALDO AMADO
440
ofende a política e a ética comercial
840
do grupo...”.
841
Outra matéria,
contemporânea à estréia da peça homônima em Portugal,
842
com a atriz Fernanda
Torres, faz referência à “polémica gerada pelo livro. Fernanda Torres tem um
ponto de vista curioso: ‘Foi proibida a venda em supermercados, né? Pois olha,
um país que vende livros em supermercados já merece que lhe tire o meu
chapéu”,
843
diz ela. Um tal Manuel Augusto dos Santos faz referência ao livro
como A casa dos Budas Apetitosos [sic], provavelmente um erro, e não uma
brincadeira, e “revela” que o texto, escrito “em ‘brasileiro’[,] tem uma leitura
ainda mais interessante, com aqueles termos que só eles conseguem arranjar”.
844
Outro erro comete o jornal Diário Económico, no seu título: “Ubaldo Rodrigues
[sic] relançou livro proibido”.
845
“... baiano, negróide, barrigudinho, irônico, de
voz cheia, mestre da palavra, bigudinho matreirão, Tiradentes de merceeiros,
sambista de costumes, Pão de Açúcar de idéias, Continente de liberdade, pai de
santo num mundo onde pequenos delitos fazem a grandeza humana”: é assim,
com essa descrição estereotipada e um desinteressante jogo de palavras com os
nomes dos hipermercados, que o jornalista António Risco, da revista Focus, se
refere ao escritor.
846
“... especialista em raparigas de programa e prostituição
infantil” é o papel que João Ubaldo diz lhe ter sido atribuído pelo público
brasileiro que se deparou com o romance, e assim declarou aos jornais
portugueses, que acabaram por explorar à larga essa superposição: “... o (...)
inconveniente é que me transformei numa espécie de sexólogo sobre o
840
— Salientei o “ética comercial” — disse eu, abrindo com a mão uma nota — porque vale a
pena ouvir este trecho: “Só nos faltava mais esta, neste pequeno e tão original país. Em
Portugal, até o capitalismo é diferente. Em vez da lei da oferta e da procura, temos a lei da
rolha e a regulação do mercado submete-se ao prontuário da moral beata e puritana. O passo
seguinte deverá ser o dos escritores e editores, antes de lançarem uma obra, terem de passar
pelos censores da caixa do hipermercado, para ver se os critérios de ‘moral pública’ inscritos
nos códigos de barras não fazem disparar o sinal de alarme” (João Paulo G
UERRA, “Exame
prévio”, Diário Económico, Portugal, 29 nov. 1999
).
841
“Livro proibido: O pecado da luxúria”, Visão, Portugal, 2 a 8 dez. 1999.
842
— A peça ficou em cartaz no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, e depois no Porto, no
Teatro São João.
843
Marcos CRUZ, “Sexo forte”, Diário de Notícias, Portugal, 4 jun. 2004.
844
“Um serão com o autor do livro das bu(n)das apetitosas”, Jornal de Matosinhos, Portugal, 4
fev. 2000.
845
Portugal, 27 jan. 2000.
846
“Casino”, Portugal, 24 jan. 2000.
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6 - UBALDO AMADO
441
comportamento sexual dos homens brasileiros, que eu, lamentavelmente ou não,
desconheço”.
847
“Tenho recebido centenas de cartas pedindo ajuda!”,
848
diz ele, e
vai além, revelando que “no Brasil tem tido algumas ‘propostas’ de leitoras que
levaram o livro muito à letra e confundem o escritor com a personagem”, segundo
nos conta outra matéria.
849
“São elas [as mulheres de todas as idades] que (...)
interrogam Ubaldo na rua (...) e inventam histórias sobre a performance sexual do
escritor”.
850
E diz ele, em outra entrevista: “Tudo em meu livro (...) foi atribuído a
mim quando, na verdade, o personagem era inteiramente fictício. Fiz uma
brincadeira (...), dizendo que uma senhora tinha deixado os originais aqui em casa
(...). Até hoje encontro pessoas que acham que não fui eu que escrevi o livro”.
851
E a onda de mistificação em torno do romancista brasileiro chega ao paroxismo
com a informação, absolutamente falaciosa, de que A casa dos Budas... “vem
acrescentar-se à longa lista dos seus livros polêmicos, muitos deles censurados
no Brasil”...
852
E muitos pequenos jornais portugueses mencionaram em primeiro
plano as origens portugueses do escritor.
853
— E no Brasil?
— Foi criticado por alguns jornalistas justamente por não ter conseguido
ser o que se pode chamar um “bom pornógrafo”.
854
Salta aos olhos a crítica do
Diogo Mainardi, mencionado por João Ubaldo como um “escrevinhador de
847
“João Ubaldo Ribeiro e os dias da polêmica”, Correio da Manhã, Portugal, 18 jan. 2000.
848
Luísa JEREMIAS, “Mulher é igual a homem”, A Capital, Portugal, 18 jan. 2000.
849
“João Ubaldo ‘ditoso’ em Portugal”, Visão, Portugal, 20 jan. 2000.
850
Maria João CAETANO, “’Portugal não é nenhum convento’”, Diário de Notícias, Portugal, 18
jan. 2000.
851
“João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002.
852
“Ubaldo Ribeiro, o polêmico”, VIP, Portugal, 25 jan. 2000, realcei o erro.
853
— É o caso do avô, “João Ribeiro, (...) que deve ter chegado ao Brasil aí por 1910 — meio
deportado pela família porque fizera um filho a uma mãe solteira, fora parar à cidade de
Penedo, no Estado do Alagoas, onde chegou a gerente de uma fábrica têxtil, pertencente a uns
portugueses amigos da família. (...) uma pessoa adorável, que lhe dava dinheiro para livros,
revistas e guloseimas. Grande companheiro de infância, confidente e amigo, era pessoa culta,
leitor de Camilo e Junqueiro. Como muitos minhotos de gema, tinha horror à água, mas era
apreciador de vinho e cerveja. Nunca o castigou, desmentindo assim as origens de uma terra,
que se diz de justiça do pau” (Lima de C
ARVALHO, “João Ubaldo promove seus ‘Budas
Ditosos’”, Jornal de Notícias, Portugal, 16 jan. 2000
).
854
— “Acho-me um bom pornógrafo”, disse João Ubaldo à Maria Teresa HORTA, do Diário de
Notícias (Portugal, 22 jan. 2000
).
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6 - UBALDO AMADO
442
apreciações, um rapaz conhecido por falar mal de todo o mundo”.
855
Diogo
Mainardi ainda toca, talvez desnecessariamente, em outro ponto: o fato de
constituir o livro uma literatura de encomenda, e rentável, condição que, para o
resenhista, acabou sendo a que prevaleceu, como se o mero fato de ser uma
literatura de encomenda, por si só, já constituísse um fator a ser levado em conta
numa avaliação estética. Veja, ou melhor, ouça:
A primeira dificuldade de escrever sobre sexo é a linguagem. (...) ... em vez de
tentar resolver o problema lingüístico, João Ubaldo Ribeiro achou melhor
escamoteá-lo, sufocando o palavreado chulo com coloquialismos. A segunda
dificuldade de escrever sobre sexo é o moralismo. (...) Quando a luxúria é
despida do caráter pecaminoso, no entanto, corre-se o risco de tornar idênticas
todas as aventuras sexuais (...). (...) João Ubaldo Ribeiro sabia que podia quebrar
a cara enfiando-se nesse projeto. Como a libertina de A casa dos Budas ditosos,
ele perdeu a vergonha e foi em frente, à procura de uma recompensa mais
material, presumivelmente.
856
— No Brasil, no entanto, não houve qualquer proibição...
— E nem em Portugal... — disse ele, mas eu não parei de falar.
— Portugal recebeu-o bem, e isso, creio eu, não porque tenha sido
proibida a venda, mas porque uma parte do público leitor português,
especialmente do meio literário, conhece João Ubaldo, que tem uma história com
Portugal que é bastante anterior a esse episódio.
857
Ele próprio, inclusive,
855
Maria Teresa HORTA, “Acho-me um bom pornógrafo”, Diário de Notícias, Portugal, 22 jan.
2000. — E disse ainda o escritor que o livro, no entanto, “não levantou qualquer celeuma, nem
a intelectualidade me fez algum reparo” (Elsa A
NDRADE, “A censura foi a melhor promoção”,
24 Horas, Portugal, 23 jan. 2000
).
856
Diogo MAINARDI, “Nunca aconteceu antes...”, Veja, 5 mai. 1999, realcei.
857
— João Ubaldo morou em Portugal por aproximadamente um ano, no início da década de
oitenta, devido a uma bolsa concedida pela Fundação Calouste Gulbenkian, para que estudasse
o escritor português Ferreira de Castro. Uma matéria portuguesa faz menção às “redondezas da
casa onde morou, na rua Epifânio Dias, uma paralela à Avenida Estados Unidos da América.
‘Era ali o meu lugar, era ali a minha vida. Sempre que posso, voltou ao apartamento onde vivi.
É um roteiro sentimental muito pessoal, que não tem nada a ver com monumentos’”, disse João
Ubaldo, que durante esse período manteve intensa convivência com uma boa parte do meio
literário português: Afonso Praça, Fernando Namora, Assis Pacheco. “Lembra-se ainda de
verter garrafas de uísque com [José] Cardoso Pires, no bar do Hotel Tivoli” (Sara Belo L
UÍS,
“Oito dias em Portugal”, Visão, Portugal, 27 jan. a 2 fev. 2000
), e lembra-se também do amigo
José Carlos de Vasconcelos, jornalista e editor do JL - Jornal de Letras Artes e Ideias, onde
João Ubaldo chegou a publicar, e ainda publica, crônicas, entrevistas e artigos, entre eles a
“Explicação de Glauber Rocha”, escrito em seguida à morte do cineasta, em agosto de 1981,
com 42 anos, logo após chegar ao Rio, em estado grave, após um período internado num
hospital perto de Lisboa (no JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Portugal, 1 a 14 set. 1981
).
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6 - UBALDO AMADO
443
reivindicou essa proximidade com Portugal,
858
em resposta ao que disseram os
representantes dos hipermercados. Ouça:
— Mas o pior mesmo (...) foi quando os supermercados, após levantarem esta
ridícula questão moral, resolveram dourar a pílula, dizendo que na realidade
decidiram não vender o livro porque eu não era conhecido. Achavam que eu era
um pé-rapado que havia escrito um livro de sacanagem. Morei um ano lá, tenho
um filho que nasceu em Lisboa, participei de programas de rádio, vendi muito
livro e já dei muita entrevista, tendo sido capa
859
do Jornal de Letras.
860
— Pelo que percebi do seu quadro, os meios de comunicação portugueses
fizeram, com essa história da “pseudo-proibição”, uma verdadeira festa de matérias e
entrevistas com o autor, transformando em notícia algo que, em si, não era notícia
alguma... — disse ele, visivelmente satisfeito em iniciar uma discussão.
— Como não era notícia alguma? E por que “pseudo-proibição”?
— Uma cadeia de lojas não vender um livro não é notícia, não é um fato
jornalístico que justifique esse universo de reportagens. O que foi feito com A casa
dos Budas ditosos em Portugal — disse ele — é exatamente o que se faz com um
livro quando se quer alçá-lo à condição de livro best seller:
861
cola-se ao livro uma
858
— João Ubaldo é autor ainda da famosa coluna “Cartas ao Zé”, dirigidas a José Carlos de
Vasconcelos e publicadas no jornal português O Se7e. Em uma delas — disse eu —, o escritor,
bem humorado, contesta publicamente a existência do escritor José Cardoso Pires. Trata-se da
resposta a uma crônica de Cardoso Pires, em que o escritor português chama o autor das
“Cartas ao Zé” de farsante, um farsante que se vem fazendo passar pelo verdadeiro João
Ubaldo Ribeiro, autor de Sargento Getúlio, Vila Real e Livro de Histórias. Pretendo reproduzir
na tese trechos das duas crônicas — pensei, tendo uma idéia —, criando assim uma espécie de
segunda epígrafe para todo o trabalho. Ver ainda, como uma ótima síntese da história da
presença da literatura brasileira em Portugal, da década de 70 até os dias de hoje, o artigo do
próprio José Carlos de Vasconcelos, “Do Brasil para Portugal — Falando em português” (JL -
Jornal de Letras, Artes e Ideias, 5 fev. 2003
), e cito um trecho: “Pela época do 25 de Abril de
1974, coube ao nosso (...) Irineu Garcia lançar entre nós vários escritores brasileiros. Irineu,
que assinou aqui no JL, desde o n
o
1 e até à sua súbita morte, em Abril de 1984, a excelente
coluna Zona Tórrida, dedicada à literatura brasileira...”.
859
— João Ubaldo refere-se ao JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, n
o
48, de 21 dez. a 3 jan.
1983, e também ao de n
o
743, de 24 mar. a 6 abr. 1999.
860
Cecília COSTA, “Polêmica sobre luxúria leva Ubaldo a Portugal”, O Globo, 16 jan. 2000.
861
— O conceito de best seller aqui — e ele abriu com a mão um parêntese — não é técnico, mas
relativo. Pode-se falar que um autor tem, entre os seus próprios livros, aquele que é o best
seller, o que mais vendeu. Ubaldo, embora seja best seller num sentido absoluto no Brasil, em
Portugal está longe disso... Como bem disse o Jorge Oliveira e Sousa, do grupo Sonae,
justificando a recusa do livro com a concorrência das festas de fim de ano — continuou o meu
interlocutor, pegando das minhas mãos uma matéria —: “Toda a gente sabe que as prateleiras
no Natal são exploradas ao milímetro e, entre um autor desconhecido e por exemplo o Jorge
Amado, claro que damos prioridade a livros que o português médio conhece” (“João Ubaldo
(cont.)
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6 - UBALDO AMADO
444
história, que por sua vez produz a oportunidade de se poder falar do livro, caso em
que o livro pode ainda ter o que dizer e merece ser considerado como texto literário
com alguma autonomia em relação à história que foi colada a ele, ou então fala-se
mais da história colada ao livro, e secundariamente do livro...
862
ou, ainda, cria-se a
oportunidade de se poder falar mais do autor, caso em que o autor é na verdade bem
mais importante que o livro, porque o autor é, ele mesmo, um best seller.
— O que se pode chamar de o discurso crítico literário em sua relação com
o mercado editorial e literário não permite essa visão estanque — eu disse. — O
crítico Manuel Ribeiro, num artigo de que gostei, menciona os fatores que entram
em pauta no funcionamento do discurso crítico literário: os agentes críticos, as
estratégias discursivas usadas na interpretação de uma obra, os autores, os gêneros
resenhados, o tipo de publicação que serve como veículo, o formato do público-
alvo, o modo como a obra está sujeita a inúmeras interferências e condicionantes
que vão guiar o seu percurso dentro de um dado sistema literário e estabelecer seu
valor literário e o seu espaço no cânone.
863
— Quem começou essa história? — perguntou ele, anotando a minha
citação num bloquinho.
— A editora, num comunicado enviado à imprensa, disse que as
superfícies recusaram a distribuição e a venda do livro, alegando ofensa à moral
pública. O editor, Nelson de Matos, justificou a importância do comunicado com a
necessidade de “reagir a uma atitude censória que pelos vistos persiste na
sociedade portuguesa”, impedindo que “um dia destes só se divulgue o que possa
ser aprovado pelas grandes superfícies”.
864
Ribeiro: censura nos hipermercados?”, texto sem referência, 7 dez. 1999). A casa dos Budas...
parece ter sido, em Portugal, no entanto, em sentido relativo, o seu best seller...
862
— Vem-me à cabeça agora — disse ele, em nota — o caso de Salman Rushdie e seus Versos
satânicos e o caso da beatice do devoto Sousa Lara versus o Saramago com o seu Evangelho...
Isso acontece, muitas vezes, como é o caso de Rushdie, Saramago e Ubaldo, guardadas as
diferenças de gravidade..., à revelia do autor, que em alguns casos se beneficia e em outros se
prejudica. O escritor Salman Rushdie saiu beneficiado da querela, mas o homem Salman
Rushdie teve a vida profundamente transformada e transtornada com o veto à sua obra...
863
Manuel RIBEIRO, “Narciso Crítico Literário...”, op. cit.
864
Jair Rattner, “Livro de Ubaldo é vetado em Portugal”. Texto enviado por Jair Rattner, por e-
mail, para Cecília Andrade, diretora literária da editora Dom Quixote, em 10 dez. 1999, que
gentilmente mo cedeu. Trata-se de matéria publicada em 4 dez. 1999
, provavelmente no jornal
O Estado de S. Paulo.
Comentário:
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6 - UBALDO AMADO
445
— Ele está, provavelmente, preocupado com o fato de que “o setor de
supermercados representa hoje”, segundo ele mesmo disse, “25% a 30% das
vendas de livros no país” — citou o meu interlocutor, tirando-me a matéria das
mãos e lendo. E seguiu lendo: — “Normalmente, cada rede de supermercados
pede inicialmente 100 a 200 livros de cada lançamento”,
865
disse o editor.
— Mas Nelson de Matos salientou o fato de que João Ubaldo é, hoje, em
Portugal, um nome cada vez mais famoso, destacando, entre os livros, o Viva o
povo brasileiro, já na segunda edição.
866
— É disso que estamos falando aqui, não é? — disse ele. — De João
Ubaldo Ribeiro, hoje, no Brasil, ser tratado pelas editoras e comprado pelo
público como, antes de tudo, antes do texto que faz e do romance que escreve,
como um best seller. É isso o que vem acontecendo com os livros de Ubaldo: é
ele, e são as histórias em torno dele, o mais importante. Em seguida, os livros.
Quando Ubaldo escreveu o Getúlio..., quem era Ubaldo? O autor do Sargento
Getúlio... Hoje, são os livros...
— O mercado literário, o mercado editorial e o discurso crítico literário
são diferentes, hoje, do tempo em que João Ubaldo estava lá na Bahia a escrever o
seu Sargento Getúlio... — e citei:
... a literatura, encarada enquanto uma forma de discurso, não pode continuar a
ser definida como sendo o efeito de um simples acto de leitura, nem de
características puramente imanentes que reificam a ideia de uma essência/
unicidade/singularidade do texto literário, mas que o espaço pluridiscursivo em
que circula apresenta constrangimentos de vária ordem que orientam os sentidos
de leitura e de significação...
867
— Deixe-me terminar essa idéia: como em Portugal isso é mais complicado
e ele não é tão conhecido pelo público leitor médio, há, então, que se criar uma
história. Criada a história — disse ele —, nasce aí o best seller, e começam as
vendas... Foi o que fez o editor, quando se deparou com uma recusa de caráter
865
Id.
866
— Isto segundo a reportagem de Alexandra Lucas COELHO, “Polémica em torno do romance de
João Ubaldo Ribeiro”, Público, Portugal, 1 dez. 1999
.
867
Manuel RIBEIRO, “Narciso Crítico Literário...”, op. cit.
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6 - UBALDO AMADO
446
meramente comercial... Uma recusa que ia prejudicar grandemente as vendas e que
precisava ser revertida em algo que favorecesse grandemente as vendas. E foi...
— Foi a expectativa favorável em relação às vendas que levou a Dom
Quixote a imprimir, como tiragem inicial, 5 mil exemplares, quando em Portugal,
segundo disse o editor, o número médio anda pelos 3 mil...
868
E isso foi anterior à
celeuma. Ouça:
... é frequente pensar-se que o início do percurso de canonização de um texto
literário se inicia aquando da sua recepção pelos críticos ou pelo público-leitor,
naquele momento em que se realiza a fusão dos horizontes de expectativa entre
texto literário e leitores. No entanto, tudo começa a ser pensado muito antes na
secretária do editor ao pesar os prós e os contras de uma publicação, ao tentar
calcular o prejuízo da edição da obra, ao convencer críticos a redigir recensões
[resenhas] ou meros pareceres para figurarem na contracapa de uma primeira
edição, ao publicitá-la em periódicos da especialidade e, enfim, ao convencer
livreiros a comprá-la em quantidade.
869
— E tudo isso foi levado em conta quando se decidiu por uma tiragem de
5 mil, e não de 2,5 ou de 3 mil, como é praxe em Portugal para autores não tão
conhecidos do grande público... — eu disse.
— A própria presença física de Ubaldo em Portugal deve ter tido suas
motivações justamente na história da “censura”, não? Repare que estou usando a
palavra “censura” sempre entre aspas... — disse ele, sem me ouvir e pegando o
romance Miséria e grandeza do amor de Benedita. — Você mencionou uma
matéria cujo título era “Ubaldo Rodrigues [sic] relançou livro proibido”. Um livro
proibido é um livro que não se pode comprar, e A casa dos Budas... poderia ser
comprado em qualquer livraria de Portugal, com exceção dos tais
supermercados... Não se pode dizer do livro que seja um livro proibido...
— Você poderia ter razão se a questão se tivesse resumido a um aspecto
meramente comercial.
870
Os donos das redes de hipermercado diriam assim: não
868
Alexandra Lucas COELHO, “Polémica em torno do romance de João Ubaldo Ribeiro”, Público,
Portugal, 1 dez. 1999
.
869
James O. HOGE, ed., Literary Reviewing, Virginia, Charlottesville, University Press of Virginia,
1980; e também Elrud I
BSCH, Dick SCHRAM & Gerard STEEN (eds.) (1991), Empirical Studies
of Literature: Proceedings of the Second IGEL-Conference, Amsterdam 1989, Amsterdam-
Atlanta, Rodopi — ambos citados por Manuel R
IBEIRO, “Narciso Crítico Literário...”, op. cit.
870
— Um jornalista, aliás, menciona isto — observei, contrariado mas decidido a não sonegar
informações ao meu interlocutor —, salientando que o “depoimento do escritor à revista Visão
(...) parece um pouco exagerado. Queixa-se de ter apanhado ‘um susto’, e diz que nunca um
(cont.)
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6 - UBALDO AMADO
447
queremos comprar esse livro para o revender aqui, e ponto. E isso talvez tenha
acontecido em determinado instante, pois, segundo nos conta o jornal O Globo,
um dos representantes dos proprietários do Continente ou do Pão de
Açúcar/Jumbo disse à editora Dom Quixote: tenho o direito de dizer não ao
livro...
871
Pois bem, mas um outro porta-voz aferrou-se aos aspectos morais da
história, e ainda disse, e isso, meu caro — continuei —, é, sim, notícia, que se
tratava de uma indelicadeza “vender tal obra durante as comemorações do
nascimento de Cristo”...
872
E complemento a citação: “Até mesmo o Partido
Comunista Português se pronunciou. Em seu jornal Avante,
873
(...) os editores do
PC informam que o grupo parlamentar do partido pediu um pronunciamento dos
Ministérios da Cultura e da Economia de Portugal sobre a questão”.
874
— Sim, sim — disse ele, rindo. — Você me deu o ponto... Se a notícia foi
artificialmente criada ou não, isso é irrelevante, embora para mim isso seja
óbvio... Ou seja, é óbvio, para mim, que o representante da Sonae, por exemplo,
não tenha visto nada de mais no livro, e tanto não viu que nem quis comprá-lo,
porque acreditava que o livro não iria vender nada... O ponto, no entanto, é o
seguinte, e acho que aqui discordamos radicalmente: não se pode falar em censura
quando um livro é vetado por um grupo comercial privado que alegue razões
livro seu havia sido proibido, nem nos tempos da ‘ditadura brasileira mais recente’. A bem
dizer, o livro não foi proibido” (João Cândido da S
ILVA, “Um dia a casa vem abaixo”, texto
sem referência, Portugal, dez. 1999
).
871
— Sendo mais específico — completei —, cito a declaração, embora nela não acredite..., do
representante da Sonae, dona do hipermercado Continente, Jorge Oliveira e Sousa, que disse:
“Desconhecemos esse argumento [o argumento moral] em absoluto. (...) ... João Ubaldo
Ribeiro tem um tipo de escrita muito específico, não é um autor conhecido em Portugal. Nós
não somos uma livraria, vendemos sobretudo best sellers, e os nossos critérios são os mesmos
para livros, bolachas, chocolates” (Alexandra Lucas C
OELHO, “Polémica em torno do romance
de João Ubaldo Ribeiro”, Público, Portugal, 1 dez. 1999
).
872
— E ouça aqui mais detalhes, de outra matéria: “O grupo Auchan explica os motivos do veto:
‘A Auchan considerou que o livro não segue os padrões morais e éticos do grupo no âmbito
mundial e optou por não vendê-lo’, afirma o assessor de imprensa Telmo Carrapa (...), que não
explica de forma conveniente como é que os supermercados do grupo vendem vídeos
pornográficos. ‘Talvez o gerente de produto não seja o mesmo’” (Jair R
ATTNER, “Livro de
Ubaldo é vetado em Portugal”, O Estado de S. Paulo, 4 dez. 1999
).
873
— “Os deputados comunistas Agostinho Lopes e Luísa Mesquita (...) consideram (...) uma
‘flagrante ofensa à livre circulação do livro e à liberdade de criação dos escritores’” — li,
abrindo uma nota. — “Inquirido é também o Ministério da Economia quanto aos
procedimentos que pensa adoptar face ao que os parlamentares do PCP não hesitam em
classificar de ‘atentado à liberdade de concorrência’” (“Hipers censuram livro”, Avante!, 6 jan.
2000, em: <http://www.pcp.pt/avante/1362/6203e2.html>, acesso em 18 out. 2005).
874
Cecília COSTA, “Polêmica sobre luxúria leva Ubaldo a Portugal”, O Globo, 16 jan. 2000.
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6 - UBALDO AMADO
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comerciais e... Também não se pode falar em censura quando um livro é vetado
por um grupo comercial privado que alegue razões éticas, morais, religiosas etc.
Não se pode, em suma, falar de censura.
— Muito bem — eu disse, fazendo uma careta. — Fica assim firmada a sua
posição, por mais escandalosa que ela me pareça... A minha posição é a de que um
veto que invoque razões de ordem moral, ética, é, sim, um tipo de censura, há muitos
tipos de censura, e esta configura um ato de paternalismo, um ato que desqualifica o
público comprador, que lhe impõe uma espécie de tutela, que o subestima como
agente capaz de decidir por conta própria, quase uma censura que se impõe às
crianças... — E, depois de uma minúscula pausa: — Entrevistei alguns portugueses,
quando estive em Portugal, acerca justamente desse assunto — e eu abri uma pastinha
vermelha e verde —, e percebi, ao fim e ao cabo, entre os depoimentos, bastante
polêmica... Podemos discutir através dos entrevistados...
— Deixe-me ver — pediu ele, já começando a passar os olhos pela
entrevistas transcritas. — Podemos ter uma idéia do universo português... Espero
que seu grupo de entrevistados seja heterogêneo...
— Creio que sim.
875
Disse-me, por exemplo, o jornalista José Carlos de
Vasconcelos, 65 anos, que não se justifica estar um livro desses inacessível num
hipermercado, e ele apresenta uma alternativa bastante civilizada, que não
infantiliza o público, nem impossibilita a venda:
— ... um hipermercado é um sítio que é freqüentado por toda espécie de
pessoas, muitas delas sem formação para poder pegar num livro destes e o poder
875
— Entrevistei — e abro aqui uma nota — quinze pessoas: 1. Mário Negreiros (42 anos,
vitivinicultor, jornalista, colaborador do Jornal de Negócios, ex-correspondente internacional
do jornal Público e da rádio TSF no Brasil). 2. Eva Gaspar (34 anos, jornalista do Jornal de
Negócios e da revista Sábado). 3. Isabel Lopes da Silva (55 anos, produtora de TV). 4. Sandra
Campos (30 anos, estudante, doutoranda em literaturas africanas). 5. José Carlos de
Vasconcelos (65 anos, jornalista, coordenador editorial do Gabinete Editorial da revista Visão,
diretor do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias). 6. Fernando Bastos (18 anos, estudante
brasileiro, com nacionalidade portuguesa, viveu muitos anos no Brasil e mora atualmente em
Portugal). 7. Maria Gomes de Oliveira Xavier (36 anos, socióloga, foi morar no Brasil com 5
anos de idade, retornou a Portugal com 28). 8. Manoel de Castro Vilas Boas (35 anos, gestor,
brasileiro, mora há dez anos em Portugal). 9. Filipe Manuel Nogueira Ferreira (32 anos,
engenheiro químico). 10. António Maria de Carvalho da Costa Pereira (41 anos, piloto de
aviação civil). 11. Maria do Carmo Guerreiro (80 anos, dona-de-casa). 12. Jorge Manoel
Teixeira (81 anos, arquiteto). 13. Fernando Viana (42 anos, engenheiro). 14. Maria Rita Brito
Monteiro (42 anos, mestranda em ciência da educação). 15. Joaquim Trigo de Negreiros (46
anos, jornalista, trabalhou no jornal Público, faz atualmente um doutorado em ciências da
comunicação).
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ver como documento literário que é (...)... Talvez se possa justificar (...) que um
livro como esse esteja, por exemplo, fechado, (...) com uma cinta, uma coisa
qualquer que o não torne acessível de forma simples e imediata à leitura ali de
quem passa. Há sempre a questão (...) das crianças. (...) A única justificação que
pode haver para alguma coisa não é a proibição; é o (...) não poder ser livremente
folheado por quem passa e que até inadvertidamente vai procurar pormenores... É
a mesma razão que faz com que certo grupo de revistas, até Playboy e tal, que são
revistas de indiscutível qualidade, estejam dentro de plásticos...
— E disse-me ainda a produtora de TV, Isabel Lopes da Silva, 55 anos —
prossegui, armando-me com a ajuda de alguns de meus entrevistados —: “... não
concordo que alguma livraria me proíba a venda de qualquer livro... Eu, quando
me dirijo a uma livraria, é o sítio onde eu penso que vou encontrar tudo e mais
alguma coisa. Se eu quiser um livro pornográfico, é porque lá tem, se eu quiser
um livro de culinária, é porque lá tem”.
— Por outro lado, há muitas livrarias em Portugal... — disse o meu
interlocutor, pegando outra entrevista e entrando em campo. — “As pessoas têm o
direito de comprar noutro sítio...”, disse o piloto de aviação civil, António Maria de
Carvalho da Costa Pereira, 41 anos. E ouça aqui o que disse o vitivinicultor e
jornalista Mário Negreiros, 42 anos, quando você lhe perguntou se o caso merecia a
cobertura jornalística que teve: “... a rigor não aconteceu nada, mas justifica-se que
os jornais façam grandes tempestades em copos d’água na medida em que queiram
vender. (...) era um bom produto. (...) ... para isso foi preciso dar ao produto uma
dimensão que ele não tinha. (...) acho que foi sensacionalismo, mesmo”.
— A essa pergunta, então — eu disse —, veja o que me respondeu o
jornalista José Carlos de Vasconcelos, 55 anos:
— Eu acho que sim, que justifica que a isso tenha sido dado relevo porque foi,
que me recordo, um fato único, uma obra literária ser impedida de vender em
hipermercados com alegadas razões éticas e morais. (...) a coleção Europa-
América tinha uma coleção dos grandes clássicos da literatura erótica, e eu não
sei se esse tipo de livro vai normalmente para hipermercados... Mas o que é fato é
que foi a primeira vez que isso se verificou, e, tratando-se de um autor com a
qualidade e a popularidade do João Ubaldo... Eu falo por mim... Nós, na Visão...
eu tratei disso... tenho uma ligação pessoal ao João... Acho que é justificável...
Depois, a partir daí, como tudo no jornalismo, a questão é começar. Há outros
que pegam nos temas e há um certo efeito multiplicador.
— Não sei se concordo... — disse o meu interlocutor, sacando mais um
depoimento da minha pastinha vermelha e verde. — A opinião da mestranda
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6 - UBALDO AMADO
450
Maria Rita Brito Monteiro, 42 anos, é a de que a cobertura jornalística não se
justifica, e isso porque...
— ... se calhar, isto acontece relativamente a muitas outras obras, e nós não
sabemos, por outros motivos. Depois, porque acho que as livrarias dentro dos
supermercados não são assim tão importantes, e até porque há muitos outros
hipermercados que poderão ter vendido o livro. E, para além disso, mesmo do
ponto de vista estratégico, se a idéia era aumentarem as vendas do livro,
conseguiram; se era um ato de censura, foi muito ingênuo...
— Este argumento não está bem fundamentado... — respondi. — Trata-se
de uma discussão de interesse público, e sobre isso é muito bem acertado o que
me disse o jornalista e professor Joaquim Trigo de Negreiros, 46 anos, que
concorda, sim, com a ampla cobertura de imprensa dada ao caso, porque “o
episódio suscita uma discussão mais abrangente sobre questões relacionadas com
a liberdade de escolha dos consumidores e o modo como ela pode ser limitada por
constrangimentos na ‘ponta’ da oferta”.
— Eu gostaria — disse ele — de entrar no ponto da discussão, ou seja,
remeto-me aqui a uma das perguntas principais de sua entrevista: se os
argumentos apresentados pelo Grupo Auchan, “O livro ofende a política e a ética
comercial do grupo”, justificam que seja vetado o acesso do livro às estantes de
vendas dos hipermercados Pão de Açúcar e Jumbo? E ainda se argumentos de
natureza ética, moral, ou seja, argumentos não-comerciais, podem ser invocados,
por parte de um grupo comercial, para a entrada de produtos em suas lojas? E lhe
dou — seguiu o meu interlocutor — a resposta do Mário Negreiros:
— Se argumentos de natureza ética e moral podem ser invocados (...)?
Plenamente: sim! Acho que sim e acho que é bom que assim seja e não vejo
nenhum problema nisso. E (...) se se tratasse de um livro de propaganda nazista...
se poderiam ser invocadas razões éticas e morais, também acho que sim... E se
fulano não gostasse que se falasse das cenouras e aparecesse um livro sobre
cenouras, acho perfeitamente legítimo que o dono da loja, seja ela um
hipermercado ou uma lojinha de esquina, faça impor no seu estabelecimentozinho
as suas idiossincrasias, as suas simpatias. Perfeitamente legítimo. Não está a
impedir que os outros vendam (...)!
— Um estabelecimento comercial principalmente do porte desses grandes
hipermercados — rebati —, não pode furtar-se à sua condição de um lugar de
inúmeros interesses públicos, e por isso há uma espécie de função social
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6 - UBALDO AMADO
451
envolvida. Na opinião da entrevistada Isabel Lopes da Silva, impedir a entrada de
um livro, alegando-se uma razão moral, é “passar um atestado de minoridade às
pessoas. As pessoas é que sabem o que é que vão comprar, e ninguém tem nada a
ver com isso. E se me apetece ir comprar material pornográfico, seja ele para
vestir, seja para ler, seja para comer... É a minha vida privada”, disse-me ela. E
disse-me ainda a Maria do Carmo Guerreiro, 80 anos, dona de casa, que não acha
legítimo. Quem quer compra, quem não quer não compra... É um grande escritor,
que é preciso conhecer...”, e ela cita o caso dO crime do padre Amaro, do Eça de
Queirós, “porque hoje não há ninguém que lhe passe pela cabeça vetar o Eça, e
naquele tempo eu nem podia dizer os livros que eu lia... Só se liam aquelas
porcariazinhas... (...) cada um é que escolhe e que faça o seu julgamento”.
— Em outras palavras — emendou o meu interlocutor —, você insiste na
idéia de que este caso configura um tipo de censura ao Ubaldo? O que dizem os
seus entrevistados? Refiro-me à sua outra pergunta, acerca dos argumentos
apresentados pelo editor Nelson de Matos para ter emitido um comunicado à
imprensa assim que soube da recusa das redes de hipermercados. Disse o editor da
Dom Quixote que ficou chocado e que o gesto é grave e censório. Trata-se de
censura um hipermercado se recusar a vender um determinado livro, seja
invocando razões morais-éticas ou apenas comerciais? E, nesse caso, houve da
parte do editor um aproveitamento comercial da situação? O editor tem razões
para estar chocado, embora soubesse, ao mesmo tempo, que o episódio acabaria
naturalmente aumentando as vendas? Tudo isso são perguntas suas... — disse ele.
— Eu estou vendo aqui as respostas do jornalista-vitivinicultor, Mário Negreiros:
“... é evidente que é uma coisa que promove o livro, a notícia de que ele foi
vetado, a aura de proibido dá-lhe encanto e, portanto, comercialmente é
interessante”. E, quanto ao editor da Dom Quixote: “... não acho absolutamente
que ele tenha razões pra ficar chocado...”. E você lhe perguntou ainda sobre a
censura: “Não, não se trata de censura, de maneira nenhuma... O livro está livre.
Só não é vendido naquela loja... Pra mim dá no mesmo”.
— Eu insisto na idéia de que se trata de uma espécie de censura, diferente, é
claro, de uma censura originária de um ato de governo que quer silenciar a
possibilidade de dissenso. Passo a palavra ao jornalista José Carlos de Vasconcelos:
— É um pouco das duas coisas... (...) Para uma pessoa como eu, que muitos
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6 - UBALDO AMADO
452
anos teve que sofrer a censura e que lutou contra ela, portanto, a censura normal, a
censura à imprensa, que era uma censura prévia, que impedia que se escrevesse
tudo... Só quem sofreu a censura em Portugal sabe o que isso representou e o que
ela tinha de brutal, de feroz, de primário etc. Portanto, eu não quero estar a
comparar isso à censura neste sentido... Agora, é um ato que impede de chegar a
um certo extrato de público, a certo local, uma obra de criação, porque A casa dos
Budas ditosos é uma obra literária de criação. E, dentro desse sentido mais amplo,
obviamente, é censura, de alguma medida... (...) Só que o critério que invocam para
não o ter à venda é que não tem fundamento. A razão, de fato, por que impediram a
sua venda, mesmo que não assumam, é verdade que por trás disso está um juízo de
valor... alguma coisa para não perder, porventura chocar alguns dos compradores
do seu negócio. (...) Acho que numa parte o editor tem razão a falar em censura,
tratando-se, portanto, desta censura em sentido amplo, que significa impedir a
chegada de um certo produto cultural a uma certa parte do público. E é óbvio que,
por outro lado, (...) houve também da sua parte um certo aproveitamento da
situação. (...) Parece-me que (...) o editor do livro aproveitou a circunstância e
tentou dar-lhe a maior projeção, (...) porventura, com esse intuito comercial.
— E eu passo a palavra à mestranda em educação, Maria Rita Brito
Monteiro — disse ele, contra-atacando com uma boa declaração.
— ... uma editora, quando tem este tipo de comentário, “Trata-se de censura”,
(...) está mais ou menos a se colocar ao mesmo nível do grupo do supermercado
que disse que se tratava de razões éticas e morais, o grupo Auchan... Porque na
realidade está a atribuir um poder e um papel de protagonismo que um
supermercado não tem, não pode e nem deve ter. Eu não sei se terá sido
programado este tipo de comentário, no sentido de aumentarem as vendas do
livro... Não sei se foi uma estratégia... A mim parece-me que é provavelmente
errado no sentido em que dá demasiada importância ao assunto: é apenas um
supermercado que não quis colocar o livro à venda...
— E é curioso... — continuou ele. — Quando você pergunta diretamente
se o entrevistado considera censório o ato dos hipermercados, quase ninguém diz
que sim, mesmo aqueles que se mostraram mais chocados... mesmo esses, e isso
porque provavelmente se lembram do período histórico de censura salazarista
real... Ouça a doutoranda Sandra Campos, 30 anos: “... quando ele fala em
censura, num país que passou por isso, que teve um Index de livros proibidos, (...)
essa imagem do passado cai logo sobre as nossas cabeças, e (...) é uma coisa que
não queremos voltar a ter, e ele [o editor] se aproveitou um bocado disso para
obter mais atenção por parte do público”.
— Os únicos que acreditam ser o ato uma espécie de censura foram
justamente o José Carlos de Vasconcelos, jornalista veterano e praticamente um
nome inseparável da história do jornalismo literário português, a dona-de-casa
Maria do Carmo Guerreiro e o arquiteto Jorge Manoel Teixeira — disse eu.
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6 - UBALDO AMADO
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— A sua outra pergunta aponta diretamente para o que pode configurar a
real posição de Ubaldo dentro do mercado português, uma posição, pelos vistos,
bastante diversa da brasileira, onde ele é, efetivamente, um best seller:
Crê que os argumentos apresentados pelo Grupo Sonae (“João Ubaldo
Ribeiro tem um tipo de escrita muito específico, não é um autor conhecido em
Portugal. Nós não somos uma livraria, vendemos sobretudo best sellers, e os
nossos critérios são os mesmos para livros, bolachas, chocolates”) são
comerciais, ou há razões morais que optaram por não revelar? Acredita que os
critérios invocados pelo Grupo para que qualquer livro seja posto à venda (“... a
credibilidade do autor, a qualidade da editora e o sucesso alcançado pelo livro no
mercado”) se aplicam, ou não, ao escritor João Ubaldo Ribeiro e à editora Dom
Quixote?
— Eu ainda prefiro acreditar que o grupo Sonae escamoteou suas reais
razões, e suas reais razões têm origem numa postura de puritanismo. Veja o que
disseram o Mário Negreiros e o José Carlos de Vasconcelos...
— Seu exemplo não é bom — disse ele —: são ambos jornalistas e, pelos
vistos, bons conhecedores do que se escreve no Brasil. — Eu, de todo modo, li.
Mário Negreiros — Eu, conhecendo o João Ubaldo e o que ele representa no
Brasil, é evidente que tendo a achar que isto não se aplica, porque João Ubaldo,
antes ainda dA casa dos Budas, era eleito para a Academia [Brasileira de
Letras]... Já era imortal... É o louro maior que se pode ter numa carreira de
escritor... Pode ser que em Portugal, por algum fenômeno esquisitíssimo, ele seja
menos conhecido e considerado do que outros, mas eu apostaria que, se fôssemos
aos supermercados do grupo Sonae, muito provavelmente encontraríamos muitos
autores a quem isto se aplicaria muito mais do que ao João Ubaldo, mesmo eu
não sabendo muito bem o que é que o João Ubaldo representa em Portugal e
tendo, por outro lado, a percepção do que ele representa no Brasil, que não tem
nada a ver com o que eles dizem aqui... É um escritor consagrado, popular, com
visibilidade até de massa, porque escreve nO Globo...
José Carlos de Vasconcelos — É óbvio, em relação a este grupo Sonae, que
isto não é exato, que o João Ubaldo Ribeiro não seja um autor conhecido em
Portugal... Quer dizer, na altura o João Ubaldo já era um autor bastante conhecido
em Portugal, já tinha vários livros editados, já tinha colaborado em jornais de
grande expressão, era falado... (...) Não é propriamente um best seller, para dar só
um exemplo brasileiro, como poderia ser, e como é, nesta altura, o Paulo Coelho,
que nessa altura não sei se era, nessa altura não sei se o Paulo Coelho vendia mais
que o João Ubaldo, se calhar até vendia menos... E em relação à A casa dos
Budas ditosos até vendeu menos... E, por outro lado, isto até que é contraditório
porque A casa dos Budas ditosos foi um livro muito vendido, foi um best seller...
(...) ... por outro lado, a credibilidade do autor, a qualidade da editora e o sucesso
alcançado pelo livro no mercado... A credibilidade do autor é grande, porque é
um grande escritor, tinha editado em Portugal, pelo menos, o Livro de histórias,
que eu próprio editei, e nO Jornal, que era a editora então das que mais vendia
em Portugal; tinha tido uma coluna nO Se7e, que era o semanário que mais se
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6 - UBALDO AMADO
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vendia em Portugal, à certa altura... A qualidade da editora... é a Dom Quixote,
das melhores editoras portuguesas, e o sucesso alcançado pelo livro no mercado é
um argumento contraditório, porque só se pode saber se tem sucesso de venda ou
não, no mercado, depois de o livro estar no mercado... Se eles não chegam a
deixá-lo estar, não podem usar esse argumento...
— Para alguns — completei —, as razões invocadas pelo grupo Sonae se
devem ao fato de eles simplesmente não conhecerem João Ubaldo Ribeiro, e
então, como defesa, alegarem que conhecem, sim, e, conhecendo, o consideram
pouco vendável. Para muitos entrevistados, ainda, as verdadeiras razões do grupo
Sonae não são as que foram alegadas, ou seja, as razões comerciais, mas sim as
morais, que eles tiveram pudor em admitir. Disseram a mestranda em educação e
o doutorando em ciências da comunicação:
Maria Rita Brito Monteiro — Os argumentos apresentados pelo grupo
Sonae são menos comprometedores. (...) À partida provavelmente eles não
quereriam vender porque o considerariam imoral, mas tiveram o cuidado de
arranjar uma justificação melhor planeada. Definiram os critérios, que são os best
sellers, os escritores conhecidos... Ficavam só aqui com o problema a resolver se
o João Ubaldo era conhecido ou não... A credibilidade da editora, acho que isso
também não se poderia pôr em causa, porque a Dom Quixote é uma editora que
mais ou menos todas as pessoas consideram credível, portanto eles ficam
somente com esse problema a resolver: a questão de o João Ubaldo ser ou não um
autor... vendável. E isso eles poderiam sempre dizer que no nosso país não o
seria... Portanto, a verdade é que tá mais bem pensada esta argumentação. É mais
curta, mais estreita, mas não pretende também dar nenhum ensinamento moral e
nem colocar o supermercado numa posição de juiz de valor relativamente à obra.
Joaquim Trigo de Negreiros — Os critérios são estranhos. João Ubaldo
Ribeiro é obviamente um escritor “credível”, imaginando que isso quer dizer que
se trata de um escritor reconhecido e prestigiado, a Dom Quixote é evidentemente
uma editora de qualidade e é esquisito alegar que “o sucesso alcançado pelo livro
no mercado” condiciona a decisão de o pôr no mercado...
— Por mais que esteja o Ubaldo, entre os demais escritores brasileiros,
numa posição de certa proeminência, em Portugal, só comparável a Jorge Amado
e Paulo Coelho, o que importa, parece claro, é que o livro só teve grandes
vendagens por causa dessa história de “censura”... A isso se chama estratégia de
marketing... — disse ele. — Há aqui, admito, uma conseqüência e um hábito que
se forma: o livro passa a ser tratado pela crítica portuguesa como um best seller
brasileiro que é finalmente exportado para Portugal, o que acaba prejudicando a
sua trajetória como texto literário que também, e antes de tudo, deve ser
considerado por si, e não somente observado pela lente das histórias
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circunstanciais que vão povoando essa trajetória. Ganha o escritor João Ubaldo
em fama e sucesso, ganham escritor e editor em dinheiro, mais ganha o editor, é
claro... e perde a literatura de Ubaldo em fortuna crítica legítima...
876
— A sua condição de best seller, para o universo português — eu disse, mais
pensando alto do que falando —, é de difícil demarcação. Há dois lados: a
intelectualidade portuguesa, incluídos os jornalistas, e há o público português médio,
incluídos os comerciantes portugueses. Ilustro esses dois segmentos, para você ter
uma idéia. — E peguei duas matérias. A primeira, um debate entre um articulista do
jornal Público e, do outro lado, um poeta, deputado socialista e à época candidato a
candidato à presidência da República em Portugal. A segunda, um depoimento.
(i) Vasco Graça Moura — É possível e até normal o livreiro recusar livros
(...). Nada disso configura tecnicamente uma situação de censura, no sentido em
que o acto censório é ofensivo das liberdades de pensamento e criação e da sua
expressão e circulação públicas, mas sim um direito de escolha do produto (...)
com que o comerciante constrói a sua estratégia empresarial. (...) E todavia,
mesmo agindo os gestores do hipermercado num quadro que se afigura à partida
insusceptível de consistente ataque jurídico, custa a crer que casos como os de
João Ubaldo ainda aconteçam em finais do milénio. Há aqui um inevitável
aspecto mais ‘personalizado’ a ter em conta.
É civilizacional e culturalmente chocante que a gestão de uma cadeia de
livrarias de importante aviamento, como as das grandes superfícies, recuse a obra
876
— Uma das poucas exceções dentro da recepção portuguesa do livro, e posteriormente da peça,
interpretada por Fernanda Torres — eu disse, interrompendo-o —, foi o texto introdutório de
Helena Vasconcelos à conversa que teve lugar no salão do Teatro Nacional D. Maria II, tendo
como convidadas Maria João Seixas e Paula Moura Pinheiro. A autora situa o texto da peça (e
do livro) no sistema literário das prováveis influências de João Ubaldo Ribeiro e identifica na
história os temas centrais. Vale a pena ouvir — e li. — “... esta peça é mais sobre liberdade (...)
do que propriamente sobre sexo. Este texto é o relato de uma libertina. E, como tal, citarei
quatro fontes literárias que poderão ter servido de ponto de partida ao autor: 1 - Choderlos de
Laclos e As Ligações Perigosas: o mesmo truque do autor que se assume como mero veículo
de transcrição — em Laclos são as cartas (...) e, em JUR, são as fitas gravadas, bem mais
‘modernas’ (...). 2 - Ovídio: o “nosso” Ovídio e a sua Arte de Amar — para a poética do sexo e
uma certa (ténue) melancolia. (...). 3 - Marquês de Sade: há um método na libertinagem e
Roland Barthes fala longamente sobre o assunto no seu clássico Sade, Fourier e Loyola. O
sistema sadeano é complexo mas uma coisa é certa — fazem-se listas, organiza-se a acção. É
por isso que Fernanda Torres, ao interpretar esta personagem, dá tanta ênfase às listas de
nomes — todos os nomes, todas as combinações possíveis. (...) Sade é pedagógico. Esta peça é
pedagógica. 4 - Casanova: (...) Veneza bem podia ser a Bahia de Todos os Santos! O admirável
Casanova bem podia ser irmão desta mulher. Tal como ela, Casanova admite que a sua vida foi
uma ‘sucessão de feitos afortunados’. Tal como ela conta uma longa, entusiasta, dramática,
poética e erótica história que nos leva para bem mais longe do que a simples ‘confissão’ ou
testemunho. (...) Ao transgredir, a mulher dA casa dos Budas ditosos arrasa todos os tabus (...).
Vou enumerar alguns: a infância como sinónimo de pureza, o racismo, o incesto, a violação, as
drogas, a religião, a maternidade, a monogamia, o dinheiro, a esterilidade, a doença, a morte”
(Helena V
ASCONCELOS, Introdução a: “A Propósito de A casa dos Budas ditosos”, Arquivo
Storm Magazine, op. cit.).
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6 - UBALDO AMADO
456
de alguém que acedeu a um especial estatuto reconhecido de ‘autor,
permitindo-se invocar reservas quanto ao seu conteúdo e sobretudo traçar a
fronteira entre erotismo e pornografia.
Manuel Alegre Acresce que a escrita de João Ubaldo é magnífica. Nada
tem a ver com aquele tipo de prosa que Fernando Pessoa comparava a um corno.
(...) Tratando-se de um livro que no Brasil é um best seller e cujo autor,
membro da Academia Brasileira de Letras, nem sequer no tempo da Ditadura
Militar viu qualquer livro seu apreendido, é natural que esta mal-disfarçada
censura (...) não seja propriamente um incentivo ao desenvolvimento das relações
culturais (e não só) luso-brasileiras.
877
(ii) Manuel Araújo, diretor da comunicação da Sonae — “Temos apenas 5
mil livros nas nossas lojas e há cerca de 15 mil títulos candidatos a serem
vendidos” (...). Ele explica que os critérios são a credibilidade do autor, a
qualidade da editora e o sucesso alcançado pelo livro no mercado.
878
— Segundo esses critérios, ele teriam a “obrigação comercial” de
distribuir o livro. Ora, é o imortal João Ubaldo Ribeiro, membro da ABL; é a
editora Dom Quixote, das mais representativas em Portugal; é o sucesso de vendas
no Brasil e a promessa de sucesso em Portugal. As razões, ao fim e ao cabo, não
foram comerciais, mas morais, e isso é, sim, notícia.
— De modo inverso pensa o seu entrevistado, o Filipe Manuel Nogueira
Ferreira, 32 anos, engenheiro químico. Foi o único que inverteu os raciocínios, ou
seja, o argumento escamoteado não é o moral, mas o comercial, e o grupo Sonae
foi o único que abriu o jogo. Para ele:
— ... estes argumentos apresentados pelo grupo Sonae são de certa forma mais
verdadeiros, e acabam por ser aquilo que eu penso que se passa realmente na
seleção de livros dentro das grandes superfícies. Não há uma razão ética ou
moral; existe é uma razão comercial. Eles não são especialistas, e por isso
apostam em best sellers, apostam naquilo que eles sabem que tem uma tiragem
bastante grande. E, mais uma vez, quando eles comparam os critérios dos livros a
bolachas e chocolates, obviamente, esta comparação é puramente comercial, na
base do preço de custo, preço de venda, margens brutas... Quanto aos critérios
invocados, penso que a qualidade é sempre um argumento muito difícil de avaliar
por aqueles que não são conhecedores do meio...
877
Vasco Graça MOURA, “Editores não vão sentir-se condicionados” versus Manuel Alegre, “Está
em causa a liberdade de comprar e ler”, em “Vice-Versa: caso Ubaldo: um Index nos
Hipermercados?”, Portugal, texto sem referência, realcei.
878
Jair RATTNER, “Livro de Ubaldo é vetado em Portugal”, O Estado de S. Paulo, 4 dez. 1999,
realces meus.
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— E o Filipe Manuel Nogueira Ferreira está a ser bastante coerente —
continuou o meu interlocutor —, porque, em relação à postura do grupo Auchan,
por exemplo, pensa ele que o argumento apresentado, de ordem moral...
— ... não é válido. Não é função das grandes superfícies imporem moral ou de
certa forma filtrarem o acesso dos bens ao consumidor comum... Embora me
parece que aqui talvez seja mais uma desculpa sobre a razão pela qual não
compraram o livro. Não me parece que os grandes hipermercados conheçam o
conteúdo dos livros que têm em exposição em detalhe, para dizerem o que é que
é moral ou de acordo com a ética comercial do grupo, ou não.
— Concordo com você — eu disse, e segui — que o romance A casa dos
Budas ditosos foi muito pouco observado de modo mais direto, como você notou,
livre das “notícias”, criadas ou não, que lhe vão sendo coladas à capa. Concordo
quanto ao fato, mas não concordo quanto ao princípio, porque creio que um livro
deve ser observado, pela crítica, levando-se em conta, sim, todos os aspectos que
lhe são correlatos, inclusive este dos hipermercados. Você está todo o tempo a
tentar limitar o olhar sobre João Ubaldo Ribeiro, ora procurando restringir esse
olhar aos conteúdos temáticos ou à forma de narrar de seus romances, ora tentando
desgrudar uma história, criada ou não, deste ou daquele livro... Como se tentasse
isolar a literatura do quadro social e literário em que ela se insere. Admito que o
episódio do veto à venda constitui um elemento bastante estranho aos assuntos
literários... O mesmo Manuel Ribeiro menciona o que ele chama de “interferências
que se poderão fazer sentir no mesmo [no campo literário] pela inclusão de agentes
considerados ‘impróprios’ para a reafirmação da ilusão da obra de arte como
criação e como fétiche dotada de valor próprio”.
879
E ele menciona em seu artigo
justamente, à guisa de ilustração, o caso de João Ubaldo como um exemplo desse
tipo de interferência, em que, ao fim e ao cabo, “a obra e o autor adquiriram outra
dimensão e outro valor dentro do campo literário”. E assim fecha:
Esta situação leva-me a considerar o seguinte: se até um director de vendas já
se coloca no lugar de crítico literário por competências travessas, obtendo por
momentos maior impacto que aquele sobre a valorização de uma obra literária e
de um autor, que pensar então da função do crítico literário neste caso? Deverá
este repudiar a intromissão desses agentes no seu campo de acção, defendendo a
obra e o autor das consequências nefastas do lápis azul da economia neoliberal?
879
Manuel RIBEIRO, “Narciso Crítico Literário...”, op. cit.
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Ou invocar os seus pares, a sua autoridade e competência para reafirmar o valor
artístico e a autonomia da obra de arte?
880
— A imagem do escritor best seller é uma imagem bastante próxima à do
escritor profissional, sendo de difícil demarcação as fronteiras entre ambas: João
Ubaldo é um escritor que, segundo ele mesmo diz, escreve por dinheiro e escreveu,
no caso dA casa dos Budas..., sob explícita encomenda. Essa sua idéia, portanto, de
que a literatura de Ubaldo mudou, na forma narrativa e nos conteúdos temáticos, é
estéril e... — e fiz uma pausa dramática — de um saudosismo barato...
— Uma literatura como a que vemos nA casa dos Budas ditosos não se
sustentava, em Portugal, sem a história da pseudo-censura — insistiu ele.
— Assim não chegaremos a lugar algum que seja objetivamente
mensurável. Não adianta tentar supor o que teria sido do livro A casa dos Budas
ditosos sem as histórias que acompanharam a sua trajetória. Cito aqui o que
escreveu o escritor Nelson de Oliveira, num artigo recente:
A mais sofisticada leitura possível de determinado texto (...) não es muito
distante do tautológico refinamento de um simplório silogismo. “A é igual a B, C
é igual a A, logo C é igual a B” é o resumo do enredo categórico, por exemplo, de
toda crítica imanente, de toda análise com lupa que não leva em consideração
nada além das premissas oferecidas pelo próprio texto. É esse tipo de raciocínio,
de temperamento escolástico, que está na base até mesmo das investidas mais
arrojadas da crítica literária. Enquanto a crítica não abandonar o seu apego ao
raciocínio cartesiano, harmônico, em linha reta, com começo, meio e fim,
partindo do geral para chegar ao particular, jamais recuperará a credibilidade
perdida. O livro A saiu pela Companhia das Letras ou pela Record? Seu autor
mora em Higienópolis ou no Capão Redondo? O livro B recebeu duas páginas na
Veja ou foi ignorado por todos os meios de comunicação? (...) Trabalha na Rede
Globo? Tem coluna no Estadão ou na Folha? O livro C foi editado às expensas
do pai do autor? (...) Seu autor paga pensão à ex-mulher? Enquanto a crítica
continuar fazendo vista grossa para tudo o que não é texto, para os fantasmas que
acompanham cada livro publicado, para a vaidade ou a humildade, o rancor ou a
simpatia, o orgulho ferido ou a consciência tranqüila do autor, do editor e do
próprio crítico, ela jamais recuperará o seu emprego. Porque o que está
angustiando o autor, o editor e o crítico de hoje não é mais o peso da tradição, é a
pressão retórica de tudo o que não é literatura, de tudo o que é instintivo, sobre a
mente dos leitores. A posição social de todo novo livro é sempre análoga à
posição social do autor. Por isso, no campo das idéias, não existe leitor isento ou
crítico imparcial: a primeira defesa e o primeiro ataque, disfarçados de rigor
científico e de desapegado exercício de inteligência, trabalham com a lógica das
aves de rapina. A restrição ou o elogio, quando lançados, são menos para o
880
Id.
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livro e mais para o autor e seu séquito de confrades e leitores.
881
— E o mesmo podemos detectar em Miséria e grandeza do amor de
Benedita... — retomei, mudando de livro, mas não mudando de assunto... — A
crítica também não se deu ao trabalho de olhar para o livro por si, admito. Mas este
caso é bem mais radical, porque o livro ficou quase que em último lugar em toda a
história... O comportamento dos meios de comunicação brasileiros, notadamente os
jornais e revistas, diante do texto foi todo ele pautado pelo fato de ter sido o
romance o primeiro e-book,
882
o mesmo se podendo dizer dos jornais e revistas
portugueses.
883
A seção de lançamentos da revista Bravo!, por exemplo, incluiu o
Miséria e grandeza..., e uma das colunas internas, justamente a de título “Por que
ler”, diz que o livro deve ser lido porque constitui a primeira experiência
brasileira de livros em formato eletrônico, “baixáveis” pela Internet. O livro foi
comentado na seção “Comportamento” do jornal A Tarde, com o título: “A era do
881
Nelson de OLIVEIRA, “Credibilidade perdida”, Jornal do Brasil, 25 jun. 2005, realcei.
882
— E sobre isso versaram os principais meios de comunicação impressos do país, que tiveram o
romance de Ubaldo como tema por ser ele o pioneiro do novo formato. É o caso das
reportagens de IstoÉ (Luiz C
HAGAS, Livros, “Leitur@ livre” [referência ao romance Anjos de
Badaró, de Mário Prata, cuja construção se deu em tempo real e publicamente, com os
internautas acessando o site do escritor e assistindo-o a escrever o livro, diante de uma
câmera], 7 jun. 2000
); dO Globo (“João Ubaldo lança seu primeiro e-book”, 18 mai. 2000, e
Rení T
OGNOMI e Mànya MILLEN, Segundo Caderno (capa), “A hora do e-book — Mário Prata
se junta a Ubaldo na onda do livro eletrônico”, 26 mai. 2000
); do Jornal do Brasil (“Ubaldo
lança livro a R$ 4 na Internet”, 18 mai. 2000
, e Elis MONTEIRO, “Livro eletrônico desponta
como nova opção de leitura”, 25 mai. 2000
); de Veja (Marcelo MARTHE, “Novela no monitor.
Com João Ubaldo Ribeiro, a literatura brasileira entra na era do e-book — o livro virtual”, 24
mai. 2000); dO Estado de S. Paulo (chamada de primeira página, “Colunista João Ubaldo
lança livro na Internet”, e página interna, matéria de Beatriz Coelho S
ILVA, “João Ubaldo lança
novo livro pela Internet”, 18 mai. 2000
, e ainda Ubiratan BRASIL, “Anjos de Mario Prata
invadem Internet”, com o “olho” da matéria: “João Ubaldo produz livro eletrônico”, 23 mai.
2000); de Época (Decio VIOTTO, “Itaparica eletrônica”, 22 mai. 2000); do Zero Hora (“João
Ubaldo lança livro virtual”, 19 mai. 2000
); da Folha de S. Paulo (Cristina GRILLO, “Novo
romance só será vendido pela Internet — João Ubaldo Ribeiro lança e-livro Amor de
Benedita”, 18 mai. 2000
); e ainda, em meio digital, do site NO. (Paulo Roberto PIRES, “João
Ubaldo na rede”, <http://www.no.com.br>, acesso em 18 mai. 2000
).
883
— Como é o caso do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, que diz, no subtítulo do box: “O
último livro do brasileiro João Ubaldo Ribeiro (...) está à venda na Internet e ainda não foi
editado em papel. O primeiro capítulo é gratuito, os outros a pagar. O JL conversou, por
correio electrónico, com este pioneiro da literatura digital e com o seu editor Carlos Augusto
Lacerda, sobre estes sinais dos tempos” (José Afonso F
URTADO, “Literatura digital: o futuro do
livro” e “e-Ubaldo” (box), Portugal, 14 jun. 2000
), e também nesta nota: “O primeiro e-book
lançado no Brasil surge agora em edição portuguesa” (“Ubaldo”, Portugal, 15 mai. 2002
); e
ainda no Diário de Notícias: “Miséria e grandeza do amor...”, Portugal, 26 set. 2002
; e no
Público, Isabel C
OUTINHO, “Romance electrónico de João Ubaldo Ribeiro”, Portugal, 24 jun.
2000.
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6 - UBALDO AMADO
460
e-book
884
— disse eu, jornal à mão. — “Mais que um livro”, diz a matéria do
caderno de Cultura do Estado de S. Paulo, “Miséria e Grandeza... (...) foi um
formato”. E a matéria ainda salienta o fato de que o livro “foi praticamente ignorado
pelos resenhistas. Acumulou mais espaço nos cadernos de informática do que nos
culturais”.
885
E diz ainda o mesmo jornalista, mas numa matéria anterior, por
ocasião do lançamento digital do livro, justificando a atenção dada ao formato: “É
até natural, uma vez que Ubaldo vinha de um sucesso de público, com A casa dos
Budas ditosos (...), que, além das resenhas habituais, foi motivo para extensas
entrevistas e reportagens”.
886
E veja ainda a declaração do próprio:
“Além das várias reportagens sobre a venda do livro digital, foram só duas
críticas, uma nO Estado e outra nO Globo”, diz o (...) escritor, que não sabe
muito bem explicar por que Miséria e grandeza..., “um livro como outro livro
meu qualquer”, foi encarado apenas como uma novidade no mundo eletrônico,
mas não no literário.
“Acho esse livro muito bem feito, penso que me dei muito bem”, afirma
Ubaldo. “Não sei se foi pela novidade ou pelo fato de não terem mandado para os
resenhistas, não entendo muito bem essas coisas do mundo editorial”, completa a
sua breve lista de não-explicações para o aparente descaso.
887
— Esta matéria, em seguida, diz que o livro ganha agora uma “nova e
mais que merecida chance”, que vem a ser a sua publicação em papel — eu disse
—, e no parágrafo seguinte revela o que considero possa ser, ou ainda é, uma das
mais incômodas características para a imagem de um livro aqui no Brasil... Um
elemento que pesa negativamente quando se vai levar em conta a gênese de uma
obra, para a formação de um juízo crítico:
888
“O livro foi escrito em pouco mais
884
Iza CALBO, 29 jun. 2000.
885
Haroldo Ceravolo SEREZA, “Ubaldo eletrônico é lançado como livro de verdade”, O Estado de
S. Paulo, 4 dez. 2000
.
886
Haroldo Ceravolo SEREZA, “Ubaldo eletrônico é simples e saboroso”, O Estado de S. Paulo,
16 jul. 2000
.
887
Haroldo Ceravolo SEREZA, “Ubaldo eletrônico é lançado como livro de verdade”, O Estado de
S. Paulo, 4 dez. 2000
.
888
— Vale a pena citar aqui o que disse o escritor Rodrigo LACERDA, numa espécie de “Resumo
de Ubaldo”: “Quando perguntado por que está tão distante do estilo dito contemporâneo de
escrita, ele não hesita em responder: ‘Não faço a menor idéia’. Ou, quando caracteriza seu
processo criativo, ele diz: ‘Eu só sento e escrevo. Escolho o título, ponho no papel, e aí
continuo, ponho a dedicatória, a epígrafe e começo: Capítulo 1’. (...) Ele é daqueles que não
suportam racionalizar sobre o que escreve. Além de negar qualquer planejamento antes e
durante a escrita, em sua opinião tambémo leitor é um mistério’ e a experiência da leitura
(cont.)
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6 - UBALDO AMADO
461
de quatro semanas,
889
após uma encomenda da Submarino e da Nova
Fronteira”,
890
diz o jornalista, que ainda cita uma declaração de Ubaldo, em que se
pode notar, mais uma vez, aquela sua típica atitude de des-solenização perante o
seu trabalho: “Foi um tema que me veio com facilidade”...
— Isto não se diz... — disse o meu interlocutor. E ele, de repente, como se
percebesse algo, observou: — João Ubaldo diz que sua motivação central foi
dinheiro, dando a entender que se não fosse pelo dinheiro não aceitaria nada,
como aliás não escreveria nada... Mas, ao mesmo tempo, diz, segundo essa
declaração que você citou na nota, acerca do Gutemberg, que não poderia não
aceitar, sob pena de não estar a exercitar uma olhar histórico amplo... Isto tudo
para dizer que a relação de Ubaldo com a sua condição de escritor profissional é
problemática e contraditória. É como se nem ele mesmo estivesse convencido
disso, e por isso fala tanto e repisa tanto que o que lhe interessa é dinheiro,
dinheiro, dinheiro... Ele fala que o que ele quer é ser bem pago e que — e citou
“... todo escritor trabalha muito melhor se sabe de antemão que vai ser bem
pago”...
891
Ele disse isso em praticamente todas as entrevistas que deu. Veja isto
— e ele pegou outra matéria. — Perguntaram-lhe: “O que te seduziu na
proposta?”, e ele respondeu com uma só palavra: “Dinheiro”.
892
Mas continue —
pediu ele, e eu retomei.
— E o autor da reportagem ainda completa: “Se comparada à pornografia
reinante no livro cujo pecado era a luxúria (...), Miséria e grandeza... poderia até,
com alguma leniência, ser colocado numa estante de livros infanto-juvenis”.
893
idem, por conseqüência, o que inviabiliza qualquer teorização” (“Utopia tropical”, Cult, nov.
1997).
889
— E, segundo o editor, Carlos Augusto Lacerda: “... o lançamento não fica nada a dever aos
outros trabalhos do escritor, apesar de ter sido escrito em apenas dois meses” (em
<http://www.globo.com/diversaoarte/arquivo/livros/20000523/4kffzp.htm>, acesso em 9 jun.
2005, realcei).
890
— “... recusar essa proposta seria o mesmo que um escritor do tempo de Gutemberg exigir que
sua obra só saísse em papiro e não em livro, a novidade daquela época”, disse João Ubaldo
(“João Ubaldo lança livro pela Internet”, Diário do Nordeste, 20 jun. 2000
).
891
Beatriz Coelho SILVA, “João Ubaldo lança romance virtual”, A Gazeta, 21 mai. 2000.
892
“Por trás da tela — Leitura virtual”, IstoÉ, 29 mai. 2000.
893
Haroldo Ceravolo SEREZA, “Ubaldo eletrônico é lançado como livro de verdade”, O Estado de
S. Paulo, 4 dez. 2000
.
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6 - UBALDO AMADO
462
— Você mencionou a aproximação com a literatura infanto-juvenil... —
disse ele. — Agora ouça aqui este comentário do escritor Rodrigo Lacerda acerca
do romance O feitiço da ilha do Pavão, que, no todo, é bastante elogioso ao livro,
mas ainda assim aponta para um flanco que é alvo de críticas recorrentes — e o
meu interlocutor leu.
As primeiras páginas do novo romance são, de fato, a antítese de noventa por
cento da prosa que se faz atualmente. É um cenário tropical, de sonho, luxuriante,
descrito de forma requintada, barroca, rococó. Frases longas, orações
intercaladas, (...) figuras demoníacas, as forças positivas e negativas da natureza,
o bem e o mal, o mistério. Depois, os personagens aparecem e vêm confirmar o
anti-realismo, o fundo mítico, arquetípico, de cada elemento do romance. Para
muitos críticos atuais, isso chega até a parecer livro infanto-juvenil.
894
— E você ainda insiste em não admitir a possibilidade de que talvez tenha
havido, sim, uma mudança... de que os livros de Ubaldo tenham se tornado, com o
tempo e graças a uma necessidade dele de ampliar a sua base de leitores, mais
legíveis, menos complexos e, conseqüentemente, menos apreciados pela crítica...
895
— Isto não é evidente — disse eu. — O que é evidente é o fato de João
Ubaldo se ter tornado, sob todos os aspectos exteriores ao texto literário em si, um
escritor comercial. E o que é ser um escritor comercial, no caso de João Ubaldo?
É ser um escritor que vende muito, confessa escrever por dinheiro e aceitar
encomendas
896
mediante adiantamentos decentes, e mais nada. Quanto aos
894
Rodrigo LACERDA, “Utopia tropical”, Cult, nov. 1997.
895
— “Não cabe falar mais da trama, até porque ela não tem muito de especial” — leu o meu
interlocutor, abrindo uma nota na conversa. — “Há uma surpresinha aqui, outra ali, um bom
final e nada mais”. E o texto da legenda da foto chama Ubaldo de “mestre do dendê
narrativo”... (“Novo Ubaldo busca outro endereço, agora nas livrarias”, Jornal da Tarde, 19
nov. 2000; e esta matéria foi republicada no Jornal do Comércio e assinada por Chico
Mattoso, “Novo romance de João Ubaldo Ribeiro”, 27 nov. 2000
). Uma outra matéria, esta da
Internet — disse ele, mexendo nas minhas cópias —, ainda comete o erro de chamar o livro,
que caracteriza como uma “novela leve”, de Mistério [sic] e grandeza do amor de Benedita
(em: Renata C
OSTA, <http://paralela.com.br/pgMain.jhtml?ch=ch10&pg=pg6Hom_1006.
html>, acesso em 9 jun. 2005
).
896
E peguei meu interlocutor rindo com uma declaração de João Ubaldo acerca das encomendas
artísticas na história: “A obra dos renascentistas, a Capela Sistina, tudo isso foi encomenda,
como boa parte da obra de Rembrandt e da obra musical de grandes compositores, como Bach,
que escreveu os Concertos de Brandenburgo para puxar o saco de um nobre. Mozart era pouco
mais que um empregado de cozinha da Corte. O imperador mandava chamá-lo e pedia um
concerto para o sábado seguinte. E lá vinha uma obra-prima” (“João Ubaldo Ribeiro, o mal
com sotaque baiano”, Continente, Portugal, jun. 2002
).
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6 - UBALDO AMADO
463
aspectos estético-filosóficos de seus romances, ou que nome você queira dar a
esse nível literário... Ouça aqui — e citei mais uma vez o Manuel Ribeiro:
Talvez ainda haja quem teime em manter afastados e igualmente estanques o
valor comercial adquirido pela literatura no âmbito da sua produção e consumo
enquanto objecto de arte, da atribuição de um valor simbólico de distinção a esse
mesmo objecto, o qual muitas das vezes é “sacralizado” por critérios aleatórios,
mas que se reiteram periodicamente na história literária e são próprios ao campo
literário. Ao tentar-se objectivar a ruptura entre o que é literário e o que é social
ou comercial, a intenção subjacente mais não é do que a tentativa de produção de
um “sentido de distinção” do agente que tal posição sustenta, de modo a marcar
a fronteira social e de poder em relação às diferentes experiências de leitura que
os textos literários permitem.
897
— E declarações como essa, do Esdras do Nascimento, sobre Miséria e
grandeza...?: “Bem escrita, as frases nascendo umas das outras, em musicalidade
invejável, (...) pode-se dizer, sem sombra de dúvida, que essa novela de João
Ubaldo Ribeiro nivela-se à obra-prima A morte e a morte de Quincas Berro d’Água,
de Jorge Amado”;
898
e ainda essa: “Apesar da linguagem peculiar do escritor —
cheia de apostos e longos parágrafos, com vírgulas e mais vírgulas —, Ubaldo
comprova mais uma vez o quanto é hábil para criar histórias”...
899
Essas avaliações
só demonstram um esforço, por parte de um tipo de crítica, menos jornalística
talvez, de, perante o leitor, “criar (...) um efeito de distanciamento que o obrigue [ao
leitor] a encarar esse discurso enquanto construção hermética e autotélica, mas
produtora de valor artístico e inibidora de influências externas à sua constituição,
em especial as económicas”.
900
E João Ubaldo, na contramão desse efeito de
distanciamento...
— ... e assim se opondo a uma crítica que quer afastá-lo, e preservá-lo, da
condição recém adquirida de escritor best seller cuja literatura não está mais
imune às questões econômicas...
897
Manuel RIBEIRO, “Narciso Crítico Literário...”, op. cit.
898
“Diabo ronda as devotas de Itaparica”, O Globo, 29 jul. 2000.
899
Gêza MARIA, “João Ubaldo Ribeiro faz da hipocrisia tema de novo romance”, O Popular, 23
jan. 2001, salientei.
900
Manuel RIBEIRO, “Narciso Crítico Literário...”, op. cit.
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6 - UBALDO AMADO
464
— Sim. E João Ubaldo diz então que “o único juiz autorizado de um livro
é o seu leitor.
901
Ele dirá: não me quero aproximar mais desta porcaria e fecha o
livro, desaconselhando-o aos amigos. Ou, pelo contrário, diz que se trata de um
livro extraordinário, ou simplesmente que o considera medíocre”.
902
O fato é que
declarações como essa, e também como esta outra, em que ele arrisca a idéia de
que o livro possa vender bem às vésperas do Natal — e li —: “... pode ser que ele
emplaque; sou um escritor conhecido, e, se ele virar presente, é capaz de sair bem,
mas pode também não vender nada; isso é sempre um mistério”,
903
disse ele...
Declarações como esta — retomei —, que mais parecem vir da boca de um editor,
e não do autor do livro, só reforçam uma postura comercial de João Ubaldo; uma
postura que acaba por contaminar os juízos críticos acerca de seus livros...
— Você disse contaminar...
— Sim, eu insisto na idéia de que um livro possui em sua história aspectos
que devem ser levados em conta numa análise crítica, mas o que acontece é que a
postura crítica, em geral, estabelece nexos de valor: escreveu por dinheiro, então é
comercial; se é comercial, é então um best seller; se é um best seller, tem então
pouca profundidade literária; se tem pouca profundidade literária, é ruim; se é
ruim, não é literatura, porque literatura não se escreve por dinheiro, como disse o
Ernesto Sabato na epígrafe desta conversa... — eu disse.
— Declaração ainda mais impactante é essa. Veja: “Do jeito que o negócio
foi feito, eu ganhei um dinheirinho. Minha principal fonte de inspiração é me
pagarem para que eu trabalhe”.
904
901
— João Ubaldo manifesta a sua concordância com aquilo que Ralph Cohen se limita a
diagnosticar: “The trust that a reader gives to the reviewer should, under present reviewing
conditions, be withheld. Until the reader has made an effort to read the book and assess the
remarks of the reviewer, such remarks are untested and uncontested”, e traduzo eu mesmo: “A
confiança que o leitor deposita no crítico deveria, sob o atual estado da crítica, ser suspensa.
Até que o leitor tenha feito um esforço para ler o livro e avaliar os comentários do crítico, esses
comentários são inverificáveis e não contestáveis” (“Reviewing Criticism. Literary Theory”, in
James H
OGE (ed.), Literary Reviewing, Virginia, Charlottesville, University Press of Virginia,
1980, p. 3-18, citado por Manuel R
IBEIRO, “Narciso Crítico Literário...”, op. cit.).
902
Maria Teresa HORTA, “Acho-me um bom pornógrafo”, Diário de Notícias, Portugal, 22 jan. 2000.
903
Haroldo Ceravolo SEREZA, “Ubaldo eletrônico é lançado como livro de verdade”, O Estado de
S. Paulo, 4 dez. 2000
.
904
“e-Ubaldo — O último livro do brasileiro João Ubaldo Ribeiro”, Matéria principal: José
Afonso F
URTADO, “Literatura digital: o futuro do livro”, JL - Jornal de Letras, Artes e
Ideias, Portugal, 14 jun. 2000
.
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6 - UBALDO AMADO
465
— A postura oposta a essa des-solenização de João Ubaldo é a de Sabato e
ainda a de muitos críticos, para quem a apropriação simbólica, de que são alvo as
obras de arte...
... depende, e numa proporção muito superior, de um conjunto de coordenadas
históricas e de práticas sociais que se têm afirmado sucessivamente na
legitimação de certas categorias de juízos de valor para obter uma distinção
simbólica dos objectos artísticos em causa. O que sustenta este efeito de distinção
simbólica é a sua dependência de uma “crença” (...) na transcendência e na
sacralização das propriedades reconhecidas aos objectos de arte, de algo que
possui uma “aura” própria definível de acordo com uma simbologia que uma
determinada élite possui, (...) pelas práticas discursivas da crítica literária. A
autonomia do campo literário, conforme Bourdieu descreve (1983 e 1992),
905
é
adquirida igualmente através de uma pretensa ruptura entre o meio social e o
meio cultural, por um distanciamento que os agentes culturais procuram fomentar
ao elevar e ao distinguir o valor dos objectos artísticos.
906
— Esta postura comercial de Ubaldo, esse efeito de indistinção simbólica,
de des-sacralização da obra de arte somente influi e opera negativamente na
recepção de seus livros, nunca no processo de construção da obra... Não... — e ele
me mostrou essa conversa de João Ubaldo com uma jornalista:
— Às vezes, tenho vontade de escrever (...) um livro descompromissado, mas
tenho medo.
— Medo de quê?
— No Brasil, depois que o sujeito ganha certa projeção, é comum que se
espere dele sempre uma obra-prima. Então, quando eu antevejo a aporrinhação
que vou ter, me contenho e procuro caprichar no que vou fazer.
— Há uma cobrança maior dos leitores ou da crítica?
— Dos dois.
907
— Estamos diante de um impasse, porque esse tema — disse ele —, o
tema das brigas por espaço e legitimação das culturas erudita, popular e “de
massa”, não é um tema novo...
905
Pierre BOURDIEU, “The Field of Cultural Production, or: the Economic World Reversed”,
Poetics, 12, 1983, p. 311-356; e Les Règles de l’Art: Genèse et Structure du Champ Littéraire,
Paris, Ed. Seuil, Coll. Libre Examen, 1992, citados ambos por Manuel R
IBEIRO, “Narciso
Crítico Literário...”, op. cit.
906
Manuel RIBEIRO, “Narciso Crítico Literário...”, op. cit.
907
Viviane ROSALEM, “Escrevo por dinheiro”, IstoÉ, 22 nov. 1999, em: <http://www.terra.com.br/
istoegente/16/reportagens/ent_ubaldo.htm>, acesso em 18 out. 2005
.
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6 - UBALDO AMADO
466
— Mas é polêmico e é disperso, e sobre ele há uma bibliografia simplesmente
gigantesca...
908
E eu começaria questionando essa sua tripartição da cultura...
— E é por isso que considero este capítulo não um ponto de chegada, mas
um ponto de partida para uma outra discussão, um outro trabalho.
— Admito que nós poderíamos ter aprofun...
— Quanto ao artigo do Sébastien Joachim, bastante citado por você,
“Proposta de um estudo pluridisciplinar sobre três ‘literaturas em conflito”... Que
“três literaturas” em conflito são essas? — quis saber ele, com o artigo na mão.
— Literaturas oral, erudita e massiva. E o autor, diante das três, pergunta:
Que noção do “literário” seria importável de uma a outra, ou própria de cada
uma? Dito de modo diferente, como liberar duas dentre elas do gueto onde as
encerram as definições e as práticas rituais de consagração da instituição literária
autocrata e hierarquizante (prêmios, (...) academias, fortuna crítica, “capas” para
revistas escolhidas, (...) Universidade...)? Não há resposta pronta para isso, e não
se está mesmo seguro de que a questão esteja colocada de maneira certa.
909
— O desenvolvimento dessa nossa última conversa levou-me a solidificar
uma idéia... — E o meu interlocutor, depois de pensar e sopesar o que ia dizer,
revelou-me: — Eu estava à procura de um tema para um doutorado que pretendo
começar este ano, e acho que acabei de encontrá-lo... Sua tese me inspirou,
principalmente neste ponto... — E, depois de uma pausa: — Confesso, meu caro,
que não posso esconder o meu desejo de usar o título “Ubaldo Amado”...
— Mas a idéia é minha... Eu é que lhe falei desse “Ubaldo Amado”
quando conversávamos sobre Setembro não tem sentido e Diário do farol, naquele
que será o Capítulo 3 da tese...
910
— Sim, eu sei... O título é bom, porque aponta para a pergunta: será que
Ubaldo chegará a ser avaliado pelos seus pares da maneira tão claramente
polarizada como o foi Jorge Amado? Veja esta amostra — e ele leu:
Héllio Pellegrino: Ele é o nosso Homero. Sua obra (...) faz dele um arauto (...)
908
— Refiro-me ao artigo do Sébastien JOACHIM, já citado, que apresenta uma “senhora”
bibliografia...
909
Sébastien JOACHIM, “Proposta de um estudo pluridisciplinar sobre três ‘literaturas’ em
conflito”, op. cit.
910
— Ver o Capítulo 3: “Setembro fechado sob o farol”, p. 172.
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6 - UBALDO AMADO
467
das vastas forças telúricas que dão espessura e dinamismo ao processo civilizatório
brasileiro. Nélida Piñon: Jorge é um pouco o nosso Gorki. É um escritor culto,
inteligente, e no entanto intimamente ligado às camadas populares. Sábato
Magaldi: Os livros de Jorge Amado são muito elaborados. Antônio Houaiss:
Dizem que ele possui certas repetições temáticas e uma aparente monotonia
ambiental e de personagens. Mas isso não me parece fundamental. Creio até que as
repetições se fortalecem a cada livro; quando ele retoma uma estrutura, sempre a
aperfeiçoa. Ferreira Gullar: Eu penso que uma das primeiras obrigações do
romancista é não ser chato. Márcio Souza: Ele provou que é possível fazer uma
literatura como querem os leitores, e não como quer o poder. João Ubaldo
Ribeiro: Pode-se gostar dele ou não, mas acho impossível não o ver como o
escritor brasileiro por excelência. (...) Não podemos esquecer que ele, com sua
literatura clara e atraente, ensinou os brasileiros a ler ficção.
Alfredo Bosi: Ao leitor curioso e glutão, a sua obra tem dado de tudo um
pouco: pieguice e volúpia em vez de paixão, estereótipos em vez de trato
orgânico dos conflitos sociais, pitoresco em vez de captação estética do meio,
tipos “folclóricos” em vez de pessoas, descuido formal a pretexto de oralidade.
Walnice Galvão: A última proeza, Tereza Batista, em suas 462 páginas, é uma
amostra do que pode haver de pior na literatura best seller e em nós mesmos. (...)
A bandeira progressista de Jorge Amado é o populismo, a glorificação do “povo”
justificando qualquer barbaridade que sua ficção perpetre. (...) A arma estilística
de que Jorge Amado tão bem se serve, o discurso indireto livre, permite a
seus escritos a irresponsabilidade. Pois eles são narrados, sem que haja um
narrador, por uma voz misteriosa que flui não se sabe de onde. Caio Fernando
Abreu: Não passa de folclore gratuito para estrangeiro ver. (...) Eu, como
escritor, penso que temos a obrigação de tornar esse país mais digno, não só na
obra que produzimos, mas no posicionamento político. Por isso acho lamentável
a obra do senhor Jorge Amado. Carlos Guilherme Motta: A sua dialética, como
a de Gilberto Freyre, é uma dialética que carrega água para o monjolo do
conservadorismo. (...) É regionalismo demais para enfrentar a difícil questão
nacional dos dias que correm. Carlos Nelson Coutinho: Na fase mais recente,
ele praticou uma literatura meramente agradável. Ele abandonou as preocupações
com o aprofundamento estético de seus romances. Eles agora são baseados num
populismo superficial, muito distante de uma concepção efetivamente
revolucionária do nacional-popular.
911
— Pretendo começar a introdução da minha tese com essa citação... —
disse ele, esfregando as mãos e olhando para cima.
— O título é todo seu — eu disse, pensando se não era a hora de começar
a ensaiar uma conclusão para a nossa conversa... E fui lavar a cafeteira.
* * *
911
“Jorge Amado — Acima do bem e do mal”, Jornal do Brasil, 29 out. 1988, realces do meu
interlocutor, que provavelmente estava a pensar no meu narrador sem cabeça...
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7
______________________________________
CONCLUSÃO:
MISTÉRIOS, PROBLEMAS E PALAVRAS
... adianto-me apontando a minha
máscara com o dedo.
Roland Barthes
— Estou pensando se não é a hora de começarmos a ensaiar uma
conclusão para essa nossa conversa... — comecei.
— Você nem começou a escrever a tese e já quer esboçar a conclusão... —
disse ele, rindo. — E emendou: — Sim, sim, estou cansado... Façamos desta nossa
conversa de agora o que virá a ser o último capítulo de nossa tese — e corrigiu-se
—; sua tese, inteiramente sua.
— Eu já diria nossa...
— Sua. Eu faria tudo diferente...
— Quando terminei a minha dissertação sobre o escritor mineiro Campos de
Carvalho..., quando terminei o texto e parti para escrever a conclusão, lembrei-me
de algo que me disseram: que a conclusão não passa de uma introdução mais
convicta, e que a conclusão se escreve ao início e a introdução ao fim... Talvez não
seja assim, mas, de todo modo, posso dizer que a conclusão é uma introdução mais
convicta, uma vez que já passou pelo calvário do trabalho em si, que é justamente o
momento em que de fato padecemos, ou seja, a escrita. Depois, então, é só reiterar,
corroborar e ratificar: ratificar retificando ou retificar ratificando... Mas aqui não
houve escrita-escrita, mas essa fala-escrita, ou escrita-falada, que foi a nossa
conversa. E o que farei agora? Retomar as idéias que desenvolvi para você, que
desenvolvemos juntos, na primeira parte de nossa conversa, há não sei quantas
horas? A conclusão deve terminar em paz, disseram-me. Pelos vistos, e estou
citando a mim mesmo, isto aqui não será uma conclusão...
— Vá lá, deixe de modernidades...
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7 - CONCLUSÃO: MISTÉRIOS PROBLEMAS E PALAVRAS
469
— Em outras palavras, não sei até que ponto eu posso afirmar que
reconheço a mim mesmo e ao meu trabalho depois de tudo o que conversamos nós
dois aqui, nesta generosíssima biblioteca, que só não nos deu mais porque nós não
pedimos... Ao início da conversa eu não sabia que não tinha como saber, mas
agora sei isto: sei que não tenho como saber o quanto posso estar certo e o quanto
posso estar errado acerca do que discutimos. Isto significa dizer que posso ter
errado, ou que podemos ter errado, da maneira certa...
— Hum... — fez o meu interlocutor, desconfiado. — Você disse que
estava citando a si mesmo. Cite para valer — pediu. E eu obedeci.
... Chegar, ao final de um trabalho, à conclusão de que se estava certo desde o
início é transformar este trabalho na ratificação de si mesmo. É escrever uma
introdução póstuma, é terminar a conclusão “em paz”, é acertar da maneira errada
— é, enfim, nada aprender com o que se fez. Errar da maneira certa significa, aqui,
a consciência de que se trilhou um caminho e com ele se aprendeu — e que o
mundo, afinal, ficou diferente. A distância entre a minha condição inicial e esta de
agora, findas as tarefas, não mora apenas no tempo, que este não decorre vazio,
mas no que se pôs dentro dele e dentro dele se desenvolveu: a leitura e a análise da
obra de [e agora substituo Campos de Carvalho por] João Ubaldo Ribeiro.
912
— Com João Ubaldo Ribeiro, no entanto, eu não caí no mesmo erro em
que caí com o Campos de Carvalho: subestimar a capacidade do narrador de ir
além de sua biografia como narrador, em direção a outras esferas, notadamente a
esfera intelectual do próprio escritor.
— Talvez o seu erro, aqui, tenha sido o erro inverso: você superestimou a
capacidade de ambos, narrador e escritor, de se contaminarem mutuamente, e
superdimensionou os espaços intertextuais em que pudemos perceber, realmente,
essa contaminação. Você, em doze palavras — disse ele, com um sorrisinho —,
superdimensionou esse autobiografismo fantasmagórico em toda a obra de João
Ubaldo Ribeiro.
7.1. A MORTE DO AUTOR”; O LUGAR DO ESCRITOR
— Barthes, em seu conhecido texto de 1968, pergunta quem é, afinal, que
está falando, e cita como exemplo um trecho da novela Sarrasine, de Balzac, onde
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7 - CONCLUSÃO: MISTÉRIOS PROBLEMAS E PALAVRAS
470
aquele que fala assim define a mulher — e citei, disposto a defender-me —, “com
seus medos súbitos, os seus caprichos sem razão, as suas perturbações
instintivas”.
913
— Quem fala assim?
— Esta é a pergunta que faz Barthes, e oferece como resposta algumas
opções: o herói da história, o indivíduo Balzac, o autor Balzac, uma espécie de
conhecimento geral, uma espécie de psicologia romântica? Jamais se poderá
saber. Diz ele que a escrita é a destruição de toda a voz; “... é esse neutro (...) para
onde foge o nosso sujeito”. Diz também que na escrita se perde toda a identidade,
“a começar pela do corpo que escreve”.
914
Na escrita, diz Foucault, abre-se um
espaço, e nesse espaço o sujeito que escreve “não pára de desaparecer”.
915
— Hum, agora que já sabemos um pouco mais do escritor João Ubaldo
Ribeiro, agora que já podemos identificá-lo em meio a um mar de palavras,
916
agora você quer matá-lo? — e o meu interlocutor riu.
— Não, não quero matá-lo; quero, de certo modo, ressuscitá-lo, mas o
farei passo a passo, e além disso eu...
— O texto de Barthes é, sem dúvida, paradigmático, mas, para ficarmos
ainda com a mesma linguagem figurada, não é ele, de fato, “o assassino”. O autor,
pode-se dizer, adoeceu, e o que fez Barthes foi dar o chute final no moribundo.
“Do século XVIII em diante” — interrompeu-me ele, pegando um livro que já
estava na mesa —, “a evolução do romance tende, progressivamente, ao sequestro
do autor”, escreve Oscar Tacca. “Do texto ao romance, o autor passa ao prefácio.
E este reduz-se, pouco a pouco, até desaparecer”.
917
— E continuou: — Quando
912
Juva BATELLA, “Capítulo 8: Cabeça sem mundo, mundo sem cabeça” (p. 262-270), in Quem
tem medo de Campos de Carvalho?, Rio de Janeiro, 7Letras, 2004, p. 263.
913
“A morte do autor”, op. cit., p. 49.
914
Id., ibid.
915
“O que é um autor?” (1969) (p. 264-298), in Manoel Barros da MOTTA (org.), Michel Foucault
— Estética: literatura e pintura, música e cinema, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001,
p. 268.
916
“De meã estatura, forte compleição, traços de caboclo, bigode antigo, poderosa voz de baixo,
(...) um formidável contador de histórias, (...) uma figura única”, descreve José Carlos de
V
ASCONCELOS. “Ídolo de pescadores da sua ilha e de muita gente da sua região (...), como de
freqüentadores de botecas do Leblon ou de gente ilustrada do Rio e São Paulo, (...) membro da
Academia Brasileira de Letras, [João Ubaldo] vai, a seu modo, entrando na lenda” (“O feitiço
da escrita”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, 24 mar. a 6 abr. 1999
).
917
“Autor e fautor” (p. 35-60), in As vozes do romance, op. cit., p. 36.
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7 - CONCLUSÃO: MISTÉRIOS PROBLEMAS E PALAVRAS
471
começamos a nossa conversa, pelo que eu me lembro, era eu quem já considerava
morto o autor, e posso dizer que ainda considero, ou que, pelo menos, eu o quero
morto, em nome de uma boa análise literária... Conversamos sobre isso lá atrás...
Você estava à cata de um centro nervoso para os romances de Ubaldo, e chegamos
afinal à figura do narrador, e você me perguntou: “Será o narrador? Esse narrador
intrometido (...) que podemos chamar o narrador sem cabeça, o fio comum, o
problema, o nó, o centro nervoso que enlaça os nove livros indicados, de
Setembro não tem sentido a Diário do farol, e lhes dá um eixo?”. E você ainda
arriscou: “Pode ser ele, e não a constância de um autor e a autoridade de sua
assinatura, que dá sentido e coerência à idéia de obra”.
918
— Lembro-me, mas logo em seguida decidimos nos aventurar, e...
— Você decidiu. Decidiu aventurar-se pelos perigosos e alagadiços
terrenos biográficos, e me disse isso, lembro-me bem... — E ele me citou: —
“Minha análise acerca do narrador em Ubaldo incluirá mais um elemento (...).
Refiro-me ao próprio escritor João Ubaldo, que será muitas vezes colocado diante
e também ao lado de seu narrador, numa espécie de nova biografia...”.
919
— Sim, e você fez: “Hum...” — lembrei-lhe. E continuei: — Todos os
meus movimentos se realizaram, a partir daí, no sentido de trazer João Ubaldo
novamente para a cena de nossa análise, não como protagonista, é verdade, uma
vez que o protagonista sempre foi o narrador, com exceção, talvez, de nossa
conversa intitulada “Ubaldo Amado”... Mas, de todo modo, João Ubaldo Ribeiro
figurou, aqui, como um importante coadjuvante...
— Sim. E, aproveitando o rumo que você começou dando a essa prosa:
Barthes indignava-se diante da idéia de que um autor, sendo este ou aquele,
poderia explicar uma obra, dar-lhe um sentido, uma essência, um valor, uma razão
de ser, um fim. Barthes indignava-se com o reducionismo a que um texto é
submetido quando lido através da ótica de sua genealogia, ótica segundo a qual “a
obra de Baudelaire é o falhanço do homem Baudelaire, (...) a de Van Gogh é a sua
loucura, a de Tchaikowski o seu vício”.
920
Pudera... — insistiu ele. — Se um texto
literário comporta uma explicação atrelada à história de vida de quem, um dia, o
918
Ver Capítulo 1: “Introdução: mistérios problemas e palavras”, p. 31.
919
Id., p. 34.
920
“A morte do autor”, op. cit., p. 50.
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7 - CONCLUSÃO: MISTÉRIOS PROBLEMAS E PALAVRAS
472
teceu ou o está tecendo; se a literatura está atrelada à necessidade de uma
explicação, a literatura não passa da modalidade um pouco mais sofisticada de
uma confissão. E o autor, esse pobre, não faria mais nada de sua vida senão
justificar seus parágrafos com seus passados; cada linha de escrita com uma linha
de vida. Nesse sentido...
— Não foi isso o que fizemos — eu lhe disse. — Depois de tudo o que
vimos nos romances de João Ubaldo e também no que disse e escreveu João
Ubaldo à e na imprensa ao longo de todos esses anos que conseguimos eu e você
abarcar com a nossa conversa, não consigo acreditar num espaço supostamente
vazio em sua obra... um espaço deixado vazio pelo desaparecimento do autor. —
E segui: — Porque o lugar do autor não se encontra vago. Não porque ele lá resida
como um senador romano e de lá nunca tenha, de fato, saído, mantendo-se desse
espaço senhor irrestrito... Também não porque, como o querem Barthes e
Foucault, o lugar do autor esteja, por sua vez, cheio de morte, a morte do autor,
que ocuparia todo o espaço à volta. Não, enfim, porque haja ali um morto a
desempenhar um papel: o papel de permanecer desaparecendo a cada gesto de
escrita, um papel que não pode ser representado por mais ninguém.
— Por quê, então? Se não é o caso de se poder contar com um autor pleno
de si, e se também não é o caso de se encontrar nada mais que a sua morte, ou o
vazio de sua desaparição, é o caso, então, de se falar de quem, ou de quê?
— Eu citei para você, em nossa conversa intitulada “Ubaldo Amado”, um
trecho de Viva o povo..., um trecho que fala das dificuldade do escritor em
descrever um cheiro, lembra-se?
921
Vou citar somente o início e o final.
... Muitas coisas neste mundo não podem ser descritas, como sabem os que
vivem da pena (...). Nas minudências da intriga e do enredo, amores dificultados,
maldades contra inocentes, dilemas dilacerantes (...), nisto sai-se ele menos mal,
conforme sua destreza no ofício, sendo esses enredos e intrigas os mesmos desde
que o mundo é mundo. Como, porém, descrever um cheiro? (p. 108-109)
— E eu lhe pergunto: quem é que está, aqui, falando? É o cidadão
itaparicano João Ubaldo Ribeiro, filho de Manoel Ribeiro e Maria Felipa, educado
com rigor e seriedade, pai de quatro filhos e cheio de pitorescas histórias de
infância? É esta memória individual?, ou é ainda uma outra voz, a do homem
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473
culto, a do intelectual humanista e leitor profissional que se senta e dá forma a
uma mala de conhecimentos, pensamentos e cultura, sabendo de antemão que esse
arsenal, embora coletivo e aparentemente infinito, somente pode ser manipulado
na solidão da escrita e no curto espaço de uma vida? Será ainda a voz do narrador,
e apenas ela, a fazer as vezes de um escritor de ofício?
— Se um texto narrativo tem uma voz, essa voz é a do narrador — disse
ele. E pegou um texto da mesa. — Isso me lembra o que escreveu Foucault.
... essa relação da escrita com a morte também se manifesta no
desaparecimento das características individuais do sujeito que escreve; através de
todas as chicanas que ele estabelece entre ele e o que ele escreve, o sujeito que
escreve despista todos os signos de sua individualidade particular; a marca do
escritor não é mais do que a singularidade de sua ausência; é preciso que ele faça
o papel do morto no jogo da escrita.
922
— Para o português José Saramago, em seu artigo “O autor como
narrador” — e eu retirei um texto de minha pasta —, que começa com um
encenado e irônico pedido de desculpas por estar ele, “um simples prático da
literatura”, a aventurar-se nas estranhas terras da teoria literária; terras onde se
falam línguas que apenas “vagas semelhanças guardam ainda com a linguagem
comum”,
923
a idéia da morte do autor é absurda e perigosa. Saramago questiona a
importância atribuída à figura do narrador, para ele uma escorregadia entidade,
“propiciadora (...) de suculentas e gratificantes especulações teóricas”, e vê com
temor a conseqüência imediata dessa preferência: o descomprometimento
compulsório do autor e seu pensamento, reduzidos a “um papel de perigosa
secundaridade na compreensão complexiva da obra”.
924
Saramago — continuei —
não nega o que ele chama de “o instável equilíbrio do fingimento”, mas tamm
não acredita em fingimentos puros, falsidades puras que, assim como as verdades
ditas puras, não existem, senão bastante misturadas nos caldos da ficção. Sua
maior preocupação não é tanto com a promoção do narrador à esfera da
921
Ver Capítulo 6: “Ubaldo Amado”, p. 420-421.
922
“O que é um autor?”, op. cit., p. 269.
923
“O autor como narrador”, Cult, nº 17.
924
Id.
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7 - CONCLUSÃO: MISTÉRIOS PROBLEMAS E PALAVRAS
474
paternidade, mas com o espaço supostamente vazio deixado pelo desaparecimento
do autor.
— Sim — disse ele. — Eu conheço esse texto. Saramago, além de
obcecado por si mesmo..., é também a tal ponto obcecado pela necessidade de
permanecer o autor em condição de proeminência em qualquer análise que se faça
de uma obra literária, que chega ao ponto de se perguntar se o que move o leitor
não será o desejo de encontrar dentro do livro, mais do que a história em si, “a
pessoa invisível mas omnipresente do seu autor”.
925
E este começou a ser, de certo
modo, o seu, seu desejo — e ele olhou fixo para mim —, ao debruçar-se sobre o
que você chamou de o narrador sem cabeça na obra de Ubaldo, não? — E, não
esperando a minha resposta, seguiu: — Para Saramago, não há espaços vazios.
Quando se põe ele a refletir sobre a sua própria obra, coloca-se a si mesmo, sem a
menor cerimônia, no centro narrativo de tudo o que escreve, o que vale dizer: não
há uma única linha escrita, um único pensamento formulado por seus narradores,
que não esteja de acordo com as idéias do próprio cidadão português José
Saramago. Isto...
— Sim — interrompi-o. — Isto, já sei o que você vai dizer, se por um lado
contribui, e muito, para a formação de uma identidade, uma homogeneidade e
uma coerência ideológica a envolver os narradores de Saramago, os livros de
Saramago e o próprio homem Saramago, por outro lado diminuiu enormemente as
suas, podemos assim dizer, alternativas de fingimento. E Barthes...
— Você tirou as palavr...
— ... Barthes minimizou e reduziu a uma espécie de desfunção o papel do
autor no manejo com o texto literário.
— Sim, e Saramago — disse ele —, em sua amadora e simplista incursão
pela “terra estranha” da teoria literária, dimensionou a sua importância ao ponto de
eleger a si próprio o centro nervoso de seus romances, desconsiderando
radicalmente a mera hipótese de um narrador. Mas veja bem: ponderemos... Não me
interessa, como o fez Barthes, dar cabo inteiramente do autor. — E ele citou um
texto de Foucault: — “... é insuficiente afirmar: deixemos (...) o autor e vamos
925
Id.
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7 - CONCLUSÃO: MISTÉRIOS PROBLEMAS E PALAVRAS
475
estudar, em si mesma, a obra”, diz ele. “A palavra ‘obra’ e a unidade que ela
designa são provavelmente tão problemáticas quanto a individualidade do autor”.
926
— Você não poderá dizer que mantivemos aqui, em proeminência, ao
longo de toda a nossa conversa — observei —, a individualidade do autor João
Ubaldo Ribeiro. Não. Sua vida não foi justificativa para as suas estratégias
literárias, assim como o foram os fracassos do homem Baudelaire, a loucura de
Van Gogh, os vícios de Tchaikowski e tantas outras infiltrações de vidas em
obras, muitas perfeitamente dispensáveis e prejudiciais tanto às vidas quanto às
obras. Vamos fazer mais café?
7.2. O SCRIPTOR MODERNO
— Há uma frase famosa de Barthes — disse eu. — “Quem fala (na
narrativa) não é quem escreve (na vida) e quem escreve não é quem é”.
927
Essa
frase, além de ser uma recuperação de uma pergunta de Lacan: “O sujeito do qual
falo quando falo é o mesmo que aquele que fala?”, aponta o dedo para os três
personagens da grande história que é um texto: o narrador a falar, o escritor a
escrever e o autor a ser quem é, ou quem foi.
— Hum... — fez ele.
— Esse escritor, que Barthes chama o scriptor moderno, preenche o
espaço que ele próprio de certo modo esvaziou com o seu “ato criminoso”; o
scriptor moderno, que “nasce ao mesmo tempo que o seu texto”, que “não é de
modo algum o sujeito de que o seu texto seria o predicado”. O scriptor moderno,
diferentemente do autor, não é aquele que sai às ruas a comprar o pão; o scriptor
só o é no momento em que escreve: “... não existe outro tempo para além do da
enunciação, e todo texto é escrito eternamente aqui e agora”.
928
O scriptor não é,
como o autor, “um passado do seu próprio livro”,
929
um “antes”, do qual será o
926
“O que é um autor?op. cit., p. 270.
927
Roland BARTHES, “Introdução à análise estrutural da narrativa” (p. 18-58), in VÁRIOS AUTORES,
Análise estrutural da narrativa, Rio de Janeiro, Vozes, 1971, p. 47 (Barthes abre a nota n
o
53
para citar Lacan).
928
“A morte do autor”, op. cit., p. 51.
929
Id., ibid.
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7 - CONCLUSÃO: MISTÉRIOS PROBLEMAS E PALAVRAS
476
livro um necessário “depois”. Ele se faz de atos de escrita, ele é o que escreve, o
que está para sempre escrevendo.
— Mas esse seu scriptor, do jeito que está, não tem valor empírico,
somente teórico... — disse ele.
— Se, entretanto, ampliarmos um pouco mais a gama de suas tarefas, se a
figura do scriptor moderno estiver encaixada em um meio intelectual e artístico,
rodeado de textos, “obras” e ainda outros escritores, ela muda um pouco de
natureza; abandona a solidão do ato da escrita, solidão inapreensível, você tem
razão..., condição teórica..., e socializa-se, adquirindo outra dinâmica. O que
podemos chamar o “escritor” será então aquele que escreve e também aquele que
reflete e se expressa publicamente acerca de seu texto. E esse scriptor
continuei — ganha então o que Foucault chama o “nome do autor”. Muito mais
que uma mera designação, muito mais que uma descrição, o nome do autor é mais
que um nome próprio, mais que um elemento em um discurso: “... ele exerce um
certo papel em relação ao discurso: assegura uma função classificatória; (...)
permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, deles excluir alguns,
opô-los a outros”.
930
O nome do autor é um nome entre aspas, e as aspas marcam
o nome não mais como significados, mas como significantes.
931
O “escritor”,
dono agora também de um nome de autor, pode funcionar como um elemento de
mediação entre o autor real e o narrador; um elemento de mediação que não tem a
responsabilidade ou o comprometimento de explicar ou justificar nada, embora
posso fazê-lo, e comumente o faz. O “escritor” é um personagem relativamente
autônomo do autor; um personagem que cria e comenta personagens. O autor é o
cidadão que viveu, ou não, aquilo que o “escritor” escreveu. O autor tem uma
vida; o “escritor”, uma biografia pública de idéias. Se a vida do autor será mais
tarde transformada em matéria ficcional, a tarefa não é sua, mas do “escritor”. “Eu
930
“O que é um autor?”, op. cit., p. 273.
931
“It is a narratological (and not merely a biographical) fact” — citei — “that a text is
signed by a ‘Pynchon’ or a ‘Hemingway’ or a ‘James’”. E traduzo: “É um fato narratológico
(e não meramente biográfico) que um texto seja assinado por um ‘Pynchon’ ou um
‘Hemingway’ ou um ‘James’” (Seymour C
HATMAN, “In Defense of the Implied Author”, op.
cit., p. 88).
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costumo dizer irresponsavelmente que um sujeito só escreve sobre a infância”,
disse João Ubaldo em uma entrevista.
932
— Você não pode dizer que alguém tem a infância.
— Não, ninguém tem a infância. O que temos — eu disse, fazendo um ar
solene — é a memória da infância. O autor tem a memória da infância. O
“escritor” tem a memória da infância em processo de narrativa.
— Não me interessa a infância de João Ubaldo. — disse ele.
— Não, mas sim o que fez ele dessa infância. Interessou-nos o “escritor”
João Ubaldo Ribeiro, ou seja, a consciência que tem idéias acerca da literatura,
opiniões sobre a cultura brasileira, reflexões sobre o ato da escrita, considerações
sobre si mesmo como um homem público de letras. “João Ubaldo Ribeiro”, e as
aspas indicam aqui o significante, nessa condição de “escritor”, somente pode ser
conhecido através de suas entrevistas à imprensa e dos artigos que escreve acerca
de seu ofício; pode, com outras palavras, e pôde aqui, ser apreendido e levado em
consideração como uma parte relevante no processo de análise de sua obra
romanesca, e isso a partir do que declara e escreve sobre e sob a sua condição de
“escritor”.
— O “escritor” “João Ubaldo Ribeiro” é constituído não dos ossos, da
carne e das vísceras do autor, mas das palavras, dos pensamentos e das opiniões
de um “ser de escrita”… — disse ele.
— Você está, efetivamente, especializado em assassinar escritores... — e
ri. — Estivemos, aqui, mais próximos do narrador porque passamos com vagar e
atenção por aquilo que pensa e diz o “escritor” “João Ubaldo Ribeiro”. — E me
lembrei de algo: — Você se lembra de dois exemplos que citei em nossa conversa
chamada “Setembro fechado sob o farol”?
933
— perguntei-lhe.
(i) Haveria muito maior dignidade em mim se eu pudesse escrever em grego,
disse Orlando, mostrando as gengivas sem dentes. É absolutamente lamentável
que este jornal não possua caracteres gregos, escreveu rapidamente na máquina.
A fim de permitir a fiel reprodução de nosso pensamento. (Setembro..., p. 76)
(ii) Itaparica é a minha parte do Recôncavo e, claro, é o umbigo dele, o
omphalos (omfalos — temos caracteres gregos no jornal? Caracteres gregos são
932
Fernando Assis PACHECO, “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso...”, JL - Jornal de Letras,
Artes e Ideias, Portugal, 21 dez. a 3 jan. 1983.
933
— Ver o Capítulo 3: “Setembro fechado sob o farol”, p. 162.
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7 - CONCLUSÃO: MISTÉRIOS PROBLEMAS E PALAVRAS
478
essenciais para a correcta expressão do nosso pensamento...).
934
— Sim — disse ele —, me lembro, sim, e eu ainda comentei: “Ubaldo e
Orlando a se inspirarem mutuamente...”.
— Pois. Escreveu Foucault que “o nome do autor não está localizado no
estado civil dos homens, não está localizado na ficção da obra, mas na ruptura
que instaura um certo grupo de discursos e seu modo singular de ser”.
935
O que
constitui o exemplo número (ii), citado agora, senão a performance deste
“escritor” em ação, não uma ação de escrita (do scriptor barthesiano), mas uma
ação social: uma entrevista à imprensa. É o autor pondo em funcionamento o seu
nome de autor, fazendo jogos com esse nome de autor; jogos com a linguagem e
com a memória. Sua memória pessoal, a memória do autor João Ubaldo Ribeiro?
Não, mas a memória do “escritor” a relembrar e a parodiar seus próprios
personagens. Quem está falando no exemplo número (ii) não é, portanto, o autor e
nem o narrador, este está a falar no exemplo número (i), mas esta “ruptura que
instaura um certo grupo de discursos”.
— Esta ruptura é o “escritor”.
— Sim. Esses exemplos (i) e (ii) ainda exibem, através das respectivas
vozes do narrador e do “escritor”, além de um mesmo conteúdo, uma mesma
postura irreverente diante do público ofício das letras e do privado universo da
literatura: des-sacralização e desmitificação do artista e de sua suposta aura. — E
me lembrei de outro ponto: — Perguntei, no capítulo introdutório, o que, à
exceção da marca autoral, definiria uma obra. Esta pergunta era apenas o começo
da história, uma vez que a expressão “marca autoral” ainda quedava serena na
frase, não problematizada, não questionada, não enfraquecida. Questionem-se a
figura do autor e a permanência de alguma suposta marca autoral, e a noção de
obra, por sua vez, ganha então imediata instabilidade. “O que é uma obra?”,
934
José Carlos de VASCONCELOS, “O feitiço da escrita”, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias,
Portugal, 24 mar. a 6 abr. 1999
.
935
“O que é um autor?” op. cit., p. 274 (grifamos). — Uma outra citação também ilustra o caso: o
romancista, que podemos chamar aqui, seguindo-se a nossa escolha de nomes, o escritor, seria,
para Todorov, “uma espécie de catalizador de certa linguagem” (grifamos) (Georges J
EAN,
Le roman, Seuil, Paris, 1971, p. 142, citado por Oscar TACCA, “Introdução”, in As vozes do
romance, op. cit., p. 34).
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7 - CONCLUSÃO: MISTÉRIOS PROBLEMAS E PALAVRAS
479
pergunta Foucault. “Uma obra não é aquilo que é escrito por aquele que é um
autor?”
936
Se a marca autoral não define uma obra, o que, então, a define?
— Foucault não tem uma resposta — disse ele, levantando os ombros.
— Não. Não há, para ele, a teoria da obra. Há maneiras de a perseguir;
perseguir algo que constantemente se forma e deforma. Já uma vez a teoria
acreditou no autor e em seguida o abandonou, passando a olhar a obra como algo
que deva ser perscrutado apenas “em sua estrutura, em sua arquitetura, em sua
forma intrínseca e no jogo de suas relações internas”.
937
Em seguida, do ato da
escrita surge o scriptor.
— O que definiria uma obra senão, também, a possibilidade, aqui, de alguns
bons cruzamentos e algumas boas mortes? — perguntou ele. E emendou: —
Distinguir o autor do “escritor” implicará, também, mais um ato de violência:
decapitar o artista, ou espanar a névoa romântica à sua volta, se não é o próprio
artista todo ele feito dessa névoa que o singulariza, sacraliza e mitifica. A degola do
artista pode ser chamada a outra morte do autor: uma, barthesiana, a do autor como
a origem, a explicação, a causa, o passado e a justificativa de sua obra; a outra
morte, romântica: a do autor como aquele que tem o dom, recebe a inspiração,
carrega a aura e sofre a condição de único visionário de uma sociedade de cegos.
— Sim, sim... E basta de chutarmos cachorros mortos... Se o termo autor
perde a aura que o singularizava, o termo “escritor” ganha, por sua vez, um
complemento adjetivo que o readapta à sociedade e o encaixa prosaicamente
entre os demais ofícios: o “escritor-escrivão”, como vimos.
938
Ser um “escritor-
escrivão” é, antes de tudo, antes mesmo de se enxergar a si mesmo como um
vocacionado, ser um profissional das letras, um sujeito que escreve para viver, que
escreve, portanto, por dinheiro e que consegue manter uma relação de quase total
pragmatismo com o ofício da escrita. “João Ubaldo Ribeiro” é o exemplo
eloqüente da idéia do escritor profissional, que vive do que escreve, que se
preocupa com o que vai ganhar com o que escreve, não sabe fazer outra coisa
além de escrever e não fomenta (mais) acerca de si mesmo o folclore das imagens
estereotipadas do artista. Conhecemos o autor João Ubaldo Ribeiro e o matamos
936
“O que é um autor?”, op. cit., p. 269.
937
Id., ibid.
938
Ver Capítulo 6: “Ubaldo Amado”, item 6.3.: “O trabalho do escritor-escrivão (parte I)”, p. 418.
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7 - CONCLUSÃO: MISTÉRIOS PROBLEMAS E PALAVRAS
480
não uma, mas duas vezes. E, passadas tantas palavras, minhas e suas, conhecemos
agora o “escritor” e o narrador, essa espécie de “escritor-escrivão”. Você se
lembra do que eu disse em nossa conversas introdutória?
— Não.
— Eu disse: “A figura do escritor substituiu a do autor”, citando a Eneida
Maria de Souza. E eu disse ainda que o escritor está metido numa “região de
sombra que se instala nos intervalos e interstícios da vida e da obra”.
939
Se o homem
está para a vida, assim como o autor está para obra, o escritor está para ambas.
940
Se
a obra representa o cânone, a alta cultura, a esfera pura da autoria — e fiz uma
pausa —, a vida movimenta-se no prosaico e na desmistificação, constituindo o
universo não do autor, mas do escritor em pleno exercício de sua sociabilidade.
— É preciso... — começou ele
— Ah! — E me lembrei, quase que com susto: — Você disse, ao início
desta conversa: “Eu faria tudo diferente...”.
7.3. É PRECISO REDIVIDIR TODA A TESE”, DISSE ELE
— Como assim?
— Redividir — e ele sorriu. — Quer mais café?
— Não. Quero um uísque... — eu disse, exasperado. — Por que redividir?
— Veja — e ele, dando-me um copo d’água, começou, sem a menor
cerimônia, a redividir a minha tese. — Tenho a impressão de que você poderia
reestruturá-la utilizando um outro critério, bem mais temático do que o que você
utilizou. Não, não faça essa expressão de angústia. Pelo que deduzi do andamento
de nossa conversa, você vai apresentar a obra de João Ubaldo de modo
subordinado à sua vida. Faço agora uma pequena retrospectiva do caminho
trilhado. — E ele abriu a boca para falar: — Começamos a conversa com
Sargento Getúlio, seu segundo livro, porque...
— Não. Antes fizemos o seguinte: depois de apresentá-lo à almazinha que
abre a cena inicial de Viva o povo brasileiro, perguntei a você o que é que liga um
autor à sua obra, além da assinatura. E perguntei também o que é que dá unidade a
939
“Notas sobre a crítica biográfica”, op. cit., p. 47.
940
Ver Capítulo 1: “Introdução: mistérios, problemas e palavras”, p. 45.
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7 - CONCLUSÃO: MISTÉRIOS PROBLEMAS E PALAVRAS
481
uma obra, definindo-se obra aqui como a sucessão de livros, os muitos livros e
textos que um escritor cria, desenvolve, retoca, assina e, em alguns casos,
muitos..., acaba também por ter de vender. E, no caso de João Ubaldo Ribeiro —
continuei —, se nos abstivéssemos da autoria como elemento unificador,
poderíamos encontrar ainda uma marca, um padrão, uma obsessão ou um estilo
que funcionasse bem como elemento substituinte do nome “João Ubaldo
Ribeiro”? Cheguei a propor a você que observássemos a obra do escritor baiano,
os nove romances, sob o prisma de um facho que se ia abrindo gradualmente...
— Sim: do universo fechado dos jovens jornalistas Tristão e Orlando no
Setembro não tem sentido, à posição singular de Getúlio diante de sua missão, à
condição insular da comunidade em Vila Real, à amplitude nacional a que chegou
o Recôncavo Baiano em Viva o povo brasileiro, às preocupações humanísticas
próprias à temática dO sorriso do lagarto, à abertura radical do tempo histórico
nO feitiço da ilha do Pavão, ao reenclausuramento de toda a narrativa do Diário
do farol. Sim, lembro-me — disse ele —, mas esta sugestão acabou por se revelar
mais eficiente como estratégia de aproximação dos romances do que propriamente
como tentativa de encontrarmos o padrão, a obsessão ou o estilo “João Ubaldo
Ribeiro”. — E emendou: — E a sua idéia do facho não pôde ser aplicada aos dois
romances caracterizados por você mesmo como “explícita encomenda”: Miséria e
grandeza do amor de Benedita e A casa dos Budas ditosos.
— Concordo em parte. Percorremos o facho e, inspirados pela condição da
almazinha de Viva o povo..., errática e ambígua quanto à sua própria identidade,
avançamos rumo à idéia seguinte: relacionar o comportamento errático e
cambiante dessa almazinha às estratégias narrativas presentes nos romances, ou
seja, às posturas adotadas pelo narrador em João Ubaldo Ribeiro. A almazinha
torna-se então a representação ficcional do que passamos a chamar o nosso
narrador sem cabeça. E o nosso narrador sem cabeça — continuei —, a cada
romance e à medida que se abre o leque desse facho, vai aprimorando o seu
principal traço de comportamento, qual seja, a capacidade de incorporar o outro e
os seus discursos.
— Permita-me retornar ao meu ponto — disse ele. — Você acabou por
percorrer, em toda a nossa conversa, um caminho biográfico. Acompanhe-me:
todo o universo sergipano de Getúlio coincide com o universo vivido pelo menino
Ubaldo. Passamos em seguida a tratar de Setembro não tem sentido, seu primeiro
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7 - CONCLUSÃO: MISTÉRIOS PROBLEMAS E PALAVRAS
482
romance, porque o que se detecta ali naquelas páginas são a mocidade do
jornalista João Ubaldo Ribeiro, seu ambiente cultural e o seu círculo de amizades,
notadamente a amizade com Glauber Rocha, tão bem recontada no artigo de João
Carlos Teixeira Gomes.
941
Entramos no universo do Diário do farol antes de tudo
porque foi produtivo traçar paralelos entre o primeiro e por enquanto o último
romance, entre a biografia de Orlando, personagem de Setembro..., e a biografia
do padre-faroleiro, no quesito “figura paterna” e na semelhante circunstância de
estarem os dois a falar de suas vidas, tanto no tempo presente, momento da escrita
e/ou da fala, quanto retrospectivamente. Vila Real significa a consolidação de uma
literatura explicitamente engajada, fortalecida pela aceitação crítica de Sargento
Getúlio. A partir desse ponto: a monumentalidade de Viva o povo brasileiro e a
prática efetiva da multivocalidade narrativa, ou, para ficarmos em nosso terreno, o
momento de maturidade de seu narrador sem cabeça. Talvez seja este o momento
em que a personalidade literária do escritor esteja mais afinada com o modo de ser
de seu narrador. O capítulo seguinte de nossa conversa levou-nos à posição de
Ubaldo no universo editorial em seus dois aspectos: crítica e público. Eu
proponho que você utilize em seu sumário futuro um outro princípio, que vai lhe
obrigar a remodelar todo o sumário e, conseqüentemente, toda a tese...
— E que princípio é esse?
— O princípio temático — disse ele. — E você trabalharia sobre três
capítulos-tema: “A terra”, “A história”, “O homem”. No capítulo referente à
“terra” você identificaria os aspectos, na obra de Ubaldo, que podem ser
conectados às lembranças de infância do escritor, bem como aqueles que abordam
a terra como protagonista de um problema social. Os romances Sargento Getúlio e
Vila Real seriam centrais para a abordagem, e o Setembro não tem sentido poderia
ser usado como complemento ao Diário do farol, para o esboço da figura paterna
do escritor. O romance Miséria e grandeza do amor de Benedita constitui a
representação do universo insular do escritor, estando o narrador, aqui, bastante
próximo ao próprio Ubaldo, ambos a fazer o papel do contador local de histórias.
Mas não só. O quadro que lhe proponho tem como característica a diluição dos
romances, e não o tratamento compartimentado. Todos os romances, de certo
modo, estão presentes, com maior ou menor representatividade, em cada um
941
“João Ubaldo e a saga do talento triunfante”, op. cit.
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7 - CONCLUSÃO: MISTÉRIOS PROBLEMAS E PALAVRAS
483
desses três temas. O capítulo-tema “A história” teria como protagonista o romance
Viva o povo brasileiro, debruçando-se secundariamente sobre O feitiço da ilha do
Pavão, ambos tratando dos movimentos interpretativos acerca da formação do
Brasil na obra de Ubaldo. Por fim, no capítulo “O homem”, observaríamos
personagens que apresentam como força vital dois aspectos que se relacionam
com a destrutividade e a consumição: o primeiro, sendo dela parte constituinte; o
segundo, como um flerte, ou seja, o mal e o sexo. E me refiro, basicamente, aos
romances Diário do farol, a aspectos dO sorriso do lagarto e, por fim, A casa dos
Budas ditosos. Os três temas, repito, encontram-se esparramados sobre toda a
superfície romanesca de Ubaldo...
— Não estou vendo grandes diferenças entre a sua proposta e o que
organizamos aqui — disse eu, levemente decepcionado e intensamente aliviado. E
me lembrei de um texto da professora Zilá Bernd que se propõe justamente a uma
divisão acerca da obra de Ubaldo. E eu repassei mentalmente o texto, enquanto o
meu interlocutor continuava a sua digressão.
A vasta obra de João Ubaldo Ribeiro é praticamente impossível de ser
classificada ou sequer dividida em diferentes fases, pois há temas recorrentes que
se apresentam de maneira embrionária nos primeiros romances e que voltam nos
demais transfigurados. (...) ... sua ficção — apesar da enorme profusão de formas,
figuras e estratégias narrativas as mais variadas — está estruturada sobre alguns
poucos núcleos temáticos que se tornam recorrentes, tais como: o mal; a volta ao
centro espiritual (a ilha); a releitura da história pela ótica popular; a valorização
dos “pequenos episódios, das vidas sem importância”; e a tentativa (...) de
reabilitar o mito e os imaginários coletivos e dar voz aos subalternos.
942
— E, além do mais — interrompi-o —, senti falta de um elemento
importante nesse quadro: o mercado editorial e a nossa discussão acerca da
polêmica a envolver o conceito de best seller e o de literatura de qualidade... O
nosso capítulo “Ubaldo Amado” representa uma espécie de respiradouro em toda
essa história: o momento em que saímos da literatura, para observá-la de fora...
— Não coloquei o “Ubaldo Amado” porque com ele a sua tese pode ficar
por demais extensa... E, além disso... — e ele montou uma expressão encabulada
—, pensei em tratar disso eu mesmo, numa provável futura tese, exclusivamente
dedicada a essa discussão... — e sorriu sem graça.
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7 - CONCLUSÃO: MISTÉRIOS PROBLEMAS E PALAVRAS
484
— Ah... — fiz eu. — Ah...
— De todo modo — continuou —, o assunto de sua tese é a linguagem. É
o narrador na obra de Ubaldo, eu sei, mas o narrador não passa de um ser de
linguagem. O que você quer observar de perto são justamente as linguagens
acionadas por Ubaldo quando põe em funcionamento a sua máquina de narrar.
Todos os temas que lhe propus nesse rascunho de sumário que lhe fiz agora
devem relacionar-se à forma como a narrativa é posta em movimento. Quais
maneiras de narrar estão embutidas nos assuntos relacionados à terra e à sua
infância, nos momentos em que Ubaldo cria novos pontos de vista sobre os
personagens e os eventos da história do país, nos momentos em que o escritor se
propõe a refletir acerca do mal, do sexo e dos descaminhos da ciência. Até que
ponto podemos encontrar um tipo específico de linguagem e uma singular forma
de narrar em cada elemento desses? — E ele respirou. — E aproveito para tecer
mais uma observação; na verdade uma crítica ao modo como você optou por
dividir a nossa conversa até aqui: senti falta de uma análise mais demorada de
outros livros. Ou seja, já encetamos muito boas conversas sobre Setembro não tem
sentido, Sargento Getúlio, Vila Real, Viva o povo brasileiro e Diário do farol...
Mas e quanto aos demais romances?
O sorriso do lagarto, O feitiço da ilha do Pavão, A casa dos Budas ditosos
e Miséria e grandeza do amor de Benedita? Foi bom você ter feito essa pergunta...
— É uma pergunta que certamente farão a você na sua defesa...
— Sim, e eu responderei: falamos desses romances, e não foi pouco,
embora de modo menos marcado e dentro dos outros capítulos da conversa;
falamos deles a reboque dos outros, que considero mais relevantes. Não posso
ficar reproduzindo análises de cunho narratológico com cada um dos livros, sob o
perigo de estar a repetir observações, procedimentos e conclusões. O romance que
melhor me serviu para uma extensa abordagem narratológica foi Viva o povo
brasileiro. Os comportamentos mais recorrentes de nosso narrador sem cabeça,
comportamentos verificados com evidência em Viva o povo..., vão ressurgir nos
romances seguintes. Trata-se — continuei — de uma característica da prosa
romanesca de João Ubaldo Ribeiro. Não posso também continuar a construir, nos
942
“A escritura mestiça de João Ubaldo Ribeiro” (p. 13-27), in João Ubaldo Ribeiro — Obra
seleta, op. cit., p. 13-14.
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7 - CONCLUSÃO: MISTÉRIOS PROBLEMAS E PALAVRAS
485
romances que você citou agora, embora ao fim e ao cabo eu as tenha construído,
sim, as pontes biográficas que atravessamos em Setembro não tem sentido,
Sargento Getúlio, Vila Real, Viva o povo... e Diário do farol.
— Lembro-me — disse ele — da figura de João Pedroso, dO sorriso do
lagarto, e da força, como alter ego, da personagem libertina dA casa dos Budas
ditosos...
— Sim. A literatura de Ubaldo é marcada por esse autobiografismo
fantasmagórico. Um autobiografismo fantasmagórico que se repete de modo
diverso a cada romance, sendo, porém, o mesmo o seu fundo... — e respirei
fundo. — O que fizemos ao longo de nossa conversa foi apresentar o narrador de
João Ubaldo Ribeiro e o próprio João Ubaldo Ribeiro através de inúmeros temas a
eles relacionados. Isto, de certo, representa uma maneira pouco convencional e
duplamente rentável de se estudar uma pessoa: estudam-se a pessoa e os pequenos
temas que lhe dizem respeito, como um mosaico de espelhos tendo o escritor ao
centro; um mosaico que reflete, por um lado, a ótica moderna através da qual o
sujeito aparece na tela decomposto e fragmentado. Por outro lado, na medida em
que mantém o escritor no centro de todos os espelhos e lentes, sendo ele mesmo,
íntegro, senhor de si e de sua “personalidade literária”, a origem de todas as
imagens e fragmentos, conseguimos corresponder à necessidade oposta, que
configura o próprio fascínio contemporâneo pela biografia: manter, nos limites do
sujeito, os limites de sua obra, tentando alcançar a compreensão desta através
daquele. Chega.
— Há, no entanto — e ele tomou uns ares filosóficos —, como um desafio
a toda atividade biográfica, o passado, esse fantasma a ser conjurado, repetidas e
infrutíferas vezes. Sua tese, quando estiver escrita, não passará de mais uma
conjuração... O mais que se pode fazer é saber: e você deve saber que o passado
não é algo que se possa simplesmente trazer à tona, não existindo por si, senão
como uma retalhada e lacunosa presentificação. Você deve saber também que
toda rememoração é ilusória e que alguns pedaços de vida são lembrados
justamente para que outros sejam esquecidos. Sabendo de tudo isso, você deve
ainda saber, portanto, que a lembrança constitui, ao fim e ao cabo — disse ele —,
uma das mais ardilosas formas do esquecimento.
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486
7.4. EXIT: LETS PROUST...
— Puxa — eu disse. — Isto ficou bonito. Não me animo a falar mais nada
depois disso que você disse... — e fiz uma pausa, um pouco chateado, é verdade,
por ter sido ele afinal a ficar com a última palavra nessa nossa conversa.... — E
então acho que é isso... Acho que, em linhas gerais, é sobre isso a minha tese...
— Muito bom, mas há muito trabalho pela frente, muito trabalho... Você é,
literalmente, um sujeito em tese, o que significa ser um homem em tese, um filho
em tese, um marido em tese, em suma, um vivente em tese... E eu preciso ir, na
prática, andando. Estou cansado.... — e ele bocejou.
— Muito obrigado por sua interlocução — eu disse, da maneira mais
simpática possível.
— Foi um prazer.
— E foi um processo quase socrático esse... Você literalmente arrancou
essa tese de mim, obrigando-me a falar e falar e falar...
— Sim, e agora é com você. Como eu disse, há muito trabalho pela
frente... — e ele deu um sorrisinho compungido.
— É preciso sentar e escrever...
— Sim — disse ele, apertando a minha mão. — É preciso sentar e
escrever...
— E é o que vou fazer: sentar e escrever...
— Então faça isso: sente e escreva — e o meu interlocutor, soltando a
minha mão, caminhou em direção à porta.
— Já tenho a epígrafe inicial, que eu mesmo inventei... — eu disse, mais
para mim mesmo do que para ele, que não se voltou. — “Errar é humano,
sussurram as almas, também elas errantes” — e me sentei, em busca da tese.
FIM
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8
_______________________________________________
BIBLIOGRAFIA DE JOÃO UBALDO RIBEIRO
E BIBLIOGRAFIA GERAL
(ilustradas com notas de rodapé)
8.1. DE JOÃO UBALDO RIBEIRO
943
8.1.1. ROMANCES
1968: Setembro não tem sentido (1ª ed.: José Álvaro Editor, direitos adquiridos
pela Nova Fronteira, Rio de Janeiro, no ano de 1987).
1971: Sargento Getúlio (1ª ed.: Artenova).
1979: Vila Real (1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira).
1984: Viva o povo brasileiro (1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira).
1989: O sorriso do lagarto (1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira).
1997: O feitiço da ilha do Pavão (1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira).
1999: A casa dos Budas ditosos (1ª ed.: Objetiva, série “Plenos Pecados”).
2000: Miséria e grandeza do amor de Benedita (1ª ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, como e-book e, em seguida, como livro impresso)
2002: Diário do farol (1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira).
8.1.2. OUTROS
1959: (participação em coletâneas) — “Lugar e circunstância”. In: ARAÚJO,
Nelson & MAIA, Vasconcelos (orgs.). Panorama do conto baiano.
Salvador: Imprensa Oficial da Bahia.
943
— Muitas informações presentes aqui nesta bibliografia de João Ubaldo Ribeiro,
principalmente aquelas referentes às suas obras publicadas no exterior, foram gentilmente
cedidas a mim pela professora Zilá Bernd, que as coletou e sistematizou para a Obra seleta de
João Ubaldo Ribeiro (op. cit.).
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488
1961: (participação em coletâneas) — “Josefina”, “Decalião”, “O campeão”. In:
SALLES, David (org). Reunião: contos. Apresentação de Eduardo Portella,
capa de Calasans Neto. Salvador: Universidade da Bahia.
1974: (contos) — Vencecavalo e o outro povo. São Paulo: Arte Nova.
944
1977: (antologia) — Histórias pitorescas. Sem referência.
1981: (ensaio) — Política (quem manda, por que manda, como manda). Rio de
Janeiro: Nova Fronteira.
1981: (contos): Livro de histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
1983: (infanto-juvenil) — Vida e paixão de Pandonar, o cruel. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira.
1988: (crônicas) — Sempre aos domingos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Reunião de 42 crônicas para O Globo, de 1981 a 1987.
1990: (infanto-juvenil) — A vingança de Charles Tiburone. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira.
1991: (contos) — Já podeis da pátria filhos, e outras histórias. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira. Reedição do Livro de histórias, com a inclusão dos contos
“Patrocinando a arte” e “O estouro da boiada”.
1992: (apresentação de livros) — “Um espelho distante”. In: ANÔNIMO. Arte de
furtar - Séc. VXIII (“Clássicos Nova Fronteira”). Rio de Janeiro: Nova
fronteira.
1993: (organização de livro e apresentação) — “Apresentação”. In:
B
ERNARDES, Manuel. Nova floresta - Séc. XVII (Coleção “A arte da
prosa”). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
1995: (crônicas) — Um brasileiro em Berlim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
1995: (apresentação de livros) — “Apresentação”. In: L
ACERDA, Rodrigo. O
mistério do Leão Rampante. São Paulo: Ateliê Editorial, 1995.
1997: (apresentação de livros) — “Vida e livro fascinantes”. In: GOMES, João
Carlos Teixeira. Glauber Rocha, esse vulcão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
944
— É divertida a história da gênese de Vencecavalo... — disse eu, em nota. — Ouça: “Estava na
casa de Jorge Amado, com uma raiva danada porque Sargento Getúlio não teve o sucesso que
eu queria. Tive um ataque: ‘Vou escrever A volta do Sargento Getúlio, O filho do Sargento
Getúlio e até Sargento Getúlio cavalga novamente!’. Acabei fazendo um livro de contos, em
que um filho virtual do sargento aparecia. Batizei de A guerra dos Paranaguás, mas o editor
Álvaro Pacheco resolveu mudar. Vencecavalo é o filho do sargento Getúlio. Mas até eu tenho
dificuldade para lembrar esse título”, diz o autor (Daniela N
AME, “As ilhas de Ubaldo”, O
Globo, 3 ago. 1997). — E acrescentei: — Jorge Amado considerava Vencecavalo... um
“Rabelais tropical” (Mário PONTES, “João Ubaldo — O sertão e sua gente...”, O Globo, 15
mar. 1981).
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489
1998: (crônicas) — Arte e ciência de roubar galinha. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
1998: (participação em coletâneas) — “Já podeis da pátria filhos”. In: COSTA,
Flávio Moreira da. Onze em campo e um banco de primeira. Rio de
Janeiro: Relume Dumará.
2000: (crônicas) — O conselheiro come. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
2004: (crônicas) — Você me mata, Mãe gentil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
8.1.3. VERSÕES PARA O INGLÊS
945
(DO PRÓPRIO AUTOR)
946
1977: Sergeant Getúlio (Sargento Getúlio). Boston: Houghton Mifflin;
947
Londres: André Deutsch, 1980.
948
1989: An invincible memory (Viva o povo brasileiro). Londres: Faber and Faber;
Nova Iorque: Harper & Row, 1989.
949
945
“— ... I suffered a lot while translating my books”, escreveu João Ubaldo Ribeiro num artigo
— e comecei a ler. — “So why did I do it? I have been the victim of unfortunate
circumstances. The first novel I worked on was Sergeant Getúlio, which, written in dialect, is
hard to understand, even for Brazilians. The hapless American translator to whom this torture
was assigned couldn’t avoid doing a terrible job on the first thirty pages, after which he gave
up. They sent it back to me, and because it was my first publication outside Brazil, because I
was young and had illusions, I volunteered to do the translation. It was an ordeal I swore I
would never go through again” (João Ubaldo Ribeiro, “Suffering in translation”, The Times,
17 a 23 nov. 1989
). E traduzi: “Eu sofri muito enquanto traduzia meus livros. Então por que fiz
isso? Fui vítima de infelizes circunstâncias. O primeiro romance em que trabalhei foi Sargento
Getúlio, o qual, escrito num dialeto, é difícil de se entender, mesmo por brasileiros. O infeliz
tradutor americano ao qual essa tortura foi imposta não conseguiu evitar de fazer um péssimo
trabalho nas primeiras trinta páginas, depois das quais ele desistiu. Eles me mandaram tudo de
volta, e porque esse era a minha primeira publicação fora do Brasil, e porque eu era jovem e
tinha ilusões, eu voluntariamente me ofereci para fazer a tradução. Isso foi uma tarefa em que
eu jurei jamais entrar novamente”.
946
— Disse o seu amigo José de Honorina: “Tem um bando de sacanas na Academia que num faz
o que João fez: meter todo o povo brasileiro (...) em inglês. Escreveu o livro duas vezes, em
português e em inglês. Eu perguntei ao agente dele (Thomas Coltchie): ‘Venha cá, por que nós
somos obrigados a falar em inglês e vocês não aprendem a falar em português?’. O sacana me
disse assim: ‘Imperialismo cultural. Pra lidar com o mundo, tem que falar inglês’, e João se
entendeu com o mundo, levou dois anos fazendo, meteu Viva o povo brasileiro todo em inglês,
não deu trabalho àqueles (...) de lá” (J
AGUAR, Fernando VITA, Fernando de BARROS, Haroldo
CARDOSO, André Luiz OLIVEIRA, “Pasquim vai à Itaparica entrevistar João Ubaldo. Muito riso
e pouca literatura”, Pasquim, 23 nov. 1989
).
947
— E disse, com relação à versão para o inglês de seu Getúlio: “— O Sargento Getúlio é muito
difícil, principalmente para quem não conhece a linguagem semi-dialetal. Eu resolvi traduzir eu
mesmo por uma questão de zelo” (“João Ubaldo Ribeiro: ‘Nada do que é humano me é
estranho’”, texto sem referência).
948
— “Meu único exemplar da edição americana é um que saiu errado, com as páginas do fim
encadernadas de cabeça para baixo, porque todos os outros me foram tomados por amigos”,
disse ele. “Caetano Veloso mesmo me exigiu um exemplar e depois disse, com desplante, que
em inglês era melhor do que em português...” (Arquivo da editora Nova Fronteira).
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490
8.1.4. LIVROS TRADUZIDOS
950
PARA O ALEMÃO:
GÜDE-MERTIN, Ray (trad.). Der Heilige, der nicht an Gott glaubte (O santo que
não acreditava em Deus). Frankfurt: Suhrkamp, 1981.
__________. Ein Brasilianer in Berlin (Um brasileiro em Berlin). Frankfurt:
Suhrkamp, 1994.
__________. Leben und Leidenschaft von Pandonar dem Grausamen (Vida e paixão
de Pandonar, o cruel). Munique: Hanser, 1994.
949
— E retomo agora o artigo em inglês. Ouça: “... my agent arranged for me to go to New York,
where he then lived, and proceeded to convince me that my new book would be all but murdered
by any translator other than myself. I was properly flattered, but stood my ground. Never, I said.
So he ordered two bottles of Scotch, saying he had to drink to forget my foolhardy decision —
and I joined him, and two hours later, reciting parts of Byron’s Don Juan and believing myself to
be the full equal of Dickens, I signed the contract that he had been hiding in an envelope under
one of the bottles. It took me longer to translate the book than to write it (...) So should I suffocate
the book with hundreds of footnotes, making it longer than the New York telephone directory? I
decided I wouldn’t. That involved a little cheating here and there — with the knowledge of the
publishers, I hasten to add. For example, when I mentioned D. Pedro I, our first emperor (...), I
added the word ‘emperor’, which was not in the original. (...) I don’t think it’s extremely
important to understand everything, but there are those who feel cheated because I have neither
made a glossary nor presented them with a synopsis of Brazilian history. (...) And what of the
profanities, obscenities, curse words and assorted racial slurs with which Portuguese is so
opulently endowed, making foul-mouthed English sound virginal by comparison? Again an
impossible mission, interspersed by embarrasing consultations with American friends over the
phone” (João Ubaldo Ribeiro, “Suffering in translation”, The Times, 17 a 23 nov. 1989
). E
traduzi: “Meu agente arranjou de eu ir para Nova Iorque, onde ele então morava, e começou a
convencer-me de que meu novo livro seria nada menos que destruído por qualquer outro tradutor
que não eu mesmo. Eu estava mesmo lisonjeado, mas mantive o pé. Nunca, eu disse. Ele pediu
então duas garrafas de Scotch, alegando que tinha de beber para esquecer a minha imprudente
decisão — e eu me juntei a ele. E duas horas depois, recitando partes do Don Juan, de Byron, e
me sentindo à altura de Dickens, assinei o contrato que ele tinha escondido num envelope,
debaixo de uma das garrafas. Demorei mais tempo para traduzir o livro do que para escrever (...).
Eu iria sufocar o livro com centenas de notas de rodapé, fazendo-o maior que a lista telefônica de
Nova Iorque? Decidi que não. Isso significou uma ou outra trapaceadazinha, com o
consentimento dos editores, apresso-me a acrescentar. Por exemplo, quando eu menciono D.
Pedro I, nosso primeiro Imperador, eu acrescentei a palavra ‘imperador’, que não estava no
original. (...) Eu não acho que seja extremamente importante entender tudo, mas há os que se
sentem fraudados porque eu nem fiz um glossário nem lhes presenteei com uma sinopse da
História do Brasil. (...) E todas as blasfêmias, obscenidades, palavrões, grunhidos racistas, dos
quais a língua portuguesa é tão bem servida, fazendo o mais desbocado inglês parecer virginal na
comparação? Mais uma vez uma missão impossível, entremeada por embaraçosas consultas a
amigos americanos por telefone”. E disse ainda João Ubaldo, noutra matéria: “— A tradução que
eu fiz para o inglês (...) foi usada como uma espécie de vulgata” (entrevista a José Reinaldo
C
ARVALHO, “João Ubaldo indaga sobre a alma humana”, A Classe Operária, 12 a 25 jan. 1989).
950
— Zilá Bernd manteve conversações com o agente literário de João Ubaldo, Thomas Coltchie,
que lhe disse existirem ainda traduções para o finlandês, o holandês e o norueguês. As
referências, no entanto, não chegaram a tempo.
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MEYER-CLASON, Curt & DEUTSCH, Jacob (trad.). Brasilien, Brasilien (Viva o
povo brasileiro). Frankfurt: Suhrkamp, 1988.
951
MEYER-CLASON, Curt (trad.). Sargento Getúlio. Frankfurt: Suhrkamp, 1988.
SCHWEDER-SCHREINER, Karin von (trad.). Das Lächeln der Eidechse (O sorriso
do lagarto). Frankfurt: Suhrkamp, 1994.
PARA O HOLANDÊS:
LEMMENS, Harrie (trad.). Bericht uit de vuurtoren (Diário do farol). Amsterdã: De
Bezige Bij, 2004.
__________. Brazilië Brazilië (Viva o povo brasileiro). Amsterdã: Anthos, 2004.
__________. De ongelukkige en grootmoedige liefde van Benedita (Miséria e
grandeza do amor de Benedita). Amsterdã: De Bezige Bij, 2005.
__________. Het huis van de gelukkige boeddha’s (A casa dos Budas ditosos).
Amsterdã: De Bezige Bij, 2001.
PARA O DINAMARQUÊS:
SIBAST, Peer (trad.). Sergenten (Sargento Getúlio). Aarhus: Husets, 1991.
PARA O ESPANHOL:
GURGEL, Beatriz de Moura. La casa de los budas dicttosos (A casa dos Budas
ditosos). Colección: La Sonrisa Vertical. Barcelona: Tusquets, 2000.
MERLINO, Mario (trad.). El hechizo de la isla del pavo real (O feitiço da ilha do
pavão). Barcelona: Tusquets, 2001.
__________. La sonrisa del lagarto (O sorriso do lagarto). Madri: Alfaguara, 1993.
__________. La venganza de Charles Tirabuzón (A vingança de Charles
Tiburone). Madrid: Alfaguara, 1993.
__________. Sargento Getulio (Sargento Getúlio). Madri: Alfaguara, 1984.
__________. Vida y pasión de Pandonar el cruel (Vida e paixão de Pandonar, o
cruel). Madrid: Alfaguara, 1986.
951
— Vou colocar em nota de rodapé — pensei — o que diz João Ubaldo sobre o seu tradutor
alemão: “— Para o alemão, o tradutor principal foi um amigo meu, Kurt Meyer Klason [sic],
que é tradutor de Guimarães Rosa, de Drummond, de muitos escritores brasileiros. Ele tem
muitos serviços prestados à divulgação da literatura brasileira no exterior. É um especialista,
mas a editora achou por bem pegar a colaboração também de outras pessoas. (...) Interessante é
que a edição alemã cita na sobrecapa uma opinião sua sobre o livro publicada na Tribuna
Operária” (José Reinaldo C
ARVALHO, “João Ubaldo indaga sobre a alma humana”, A Classe
Operária, 12 a 25 jan. 1989
).
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__________. Vila Real. Madri: Altera Taurus/Alfaguara, 1991.
__________. Viva el pueblo brasileño (Viva o povo brasileiro). Madri: Alfaguara,
1989; Barcelona: Tusquets, Colección Andanzas, 2001; Barcelona:
Círculo de Lectores, 2001.
PARA O CASTELHANO:
OIARTZABAL, Karlos Zabala (trad.). Buda zoriontsuen etxea (A casa dos Budas
ditosos). Espanha, Navarro: Txalaparta Argitaletxea, 2003.
PARA O FRANCÊS:
RAILLARD, Alice (trad.). Sergent Getúlio (Sargento Getúlio). Paris: Gallimard,
1978. Reedição em 2004.
952
__________. Vila Real. Paris: Gallimard, 1986.
THIÉRIOT, Jacques (trad.). Le sourire du lézard (O sorriso do lagarto). Paris: Le
serpent à plumes, 1998.
__________. Ô luxure ou la maison des bouddhas bienhereux (Luxúria ou A casa
dos Budas ditosos). Paris: Le serpent à plumes, 2001. Reedição em 2004.
__________. Vive le peuple brésilien (Viva o povo brasileiro). Paris: Pierre
Belfond, 1989.
953
PARA O HEBRAICO:
TIVON, Miriam (trad.) Samal Getúlio (Sargento Getúlio). Tel-Aviv: Zmora-Bitan,
1984.
952
— Ouça esta nota — eu disse a ele. — “... dificuldade mesmo, corpo-a-corpo ferrenho com a
palavra e a frase, Alice Raillard experimentou sobretudo, entre os seus trabalhos já publicados,
na tradução de Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, para a Gallimard. Seu regionalismo
tortuosamente burilado na linguagem obrigou a tradutora ao duplo esforço de decifrar o
acúmulo de elipses no português e, depois, fabricar elipses de eficaz correspondência no
francês” (Roberto P
ONTUAL, Alice Raillard — Nacionalidade: francesa, Profissão: tradutora,
Especialidade: literatura brasileira contemporânea, Jornal do Brasil, 14 fev. 1981). Alice
Raillard referiu-se ainda, em outro momento, citado por Zilá Bernd, à sensação de dépaysement
provocada pelo drama de Getúlio (Zilá B
ERND, “Um certo Sargento Getúlio”, op. cit., p. 19). E
disse João Ubaldo Ribeiro, em uma entrevista, que gosta muito da edição francesa: “... acho
uma belíssima tradução, sou o maior fã de Alice” (Arquivo da editora Nova Fronteira).
953
— “Grande e Pequeno Ubaldos em geral se incomodam dos porquês do fascínio que seus livros
despertam nos europeus”, diz o jornalista Sergio Vilas BOAS. “‘Acho que gostam da minha
carmen-mirandice’”, responde Ubaldo. — E continuei a nota: — “A edição francesa de Vive le
peuple brésilien, por exemplo, traz na capa índios com lanças e corpos pintados nas cores azul,
vermelha e branca, numa simetria que em muito remete à bandeira dos EUA” (“... o escritor
carioca-baiano tenta conciliar...”, Gazeta Mercantil, 18 e 19 mar. 2000
).
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PARA O INGLÊS:
LANDERS, Clifford E. (trad.). The house of the fortunate buddhas (A casa dos
Budas ditosos). Naples: 2001.
__________. The lizard’s smile (O sorriso do lagarto). Nova Iorque: Atheneum,
1994; London: André Deutsch, 1996.
PARA O ITALIANO:
FERIOLI, Daniela (trad.). Libro delle storie naturali (Livro de histórias). Turim:
Einaudi, 1991.
MORETTI, Stefano (trad.). Sergente Getúlio (Sargento Getúlio). Turim: Einaudi, 1986.
VALENTINETTI, C. M. (trad.). Viva il popolo brasiliano (Viva o povo brasileiro).
Milão: Frassinelli, 1997.
PARA O IUGOSLAVO:
MODER, Janko (trad.). Serzant Getúlio (Sargento Getúlio). Murska Sobota:
Pomuta Zalozba, 1984.
PARA O RUSSO:
954
NOVIKOVA, Ludmila (trad.). Sargento Getúlio.
955
PARA O SUECO:
SJÖGREN, Orjan (trad.). Ödlas leenden (O sorriso do lagarto). Estocolmo: Bra
Böcker, 1994.
954
— Sobre a tradução de Sargento Getúlio, diz aqui uma matéria: “Ludmila Novikov [sic] [já
traduziu Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marques, e Tia Júlia e o escrevinhador, de
Mario Vargas Lhosa] foi à Bahia conversar com Jorge Amado, de quem é amiga há muitos
anos. Manifestou vontade de traduzir o livro para o russo. Jorge Amado pegou o telefone e
ligou para João Ubaldo na ilha de Itaparica. ‘— João, eu tenho aqui ao meu lado uma russa
maluca que quer traduzir o seu romance’ — disse Jorge Amado” (“Ludmila Novikov [sic],
tradutora russa de Sargento Getúlio”, texto sem referência, 7 abr. 1985
).
955
— Segundo nos diz Zilá Bernd, na bibliografia da Obra seleta de João Ubaldo Ribeiro,
Ludmila Novikova traduziu Sargento Getúlio para o russo, sim. A tradução, no entanto, foi
publicada em uma revista e com tiragem de 800 mil exemplares. Não se encontraram as
referências completas dessa tradução. Segundo Zilá, nem o próprio João Ubaldo Ribeiro tem
uma cópia (“Bibliografia do autor / Obras publicadas no exterior / Russo”, in Zilá B
ERND (org.)
& OUTROS, João Ubaldo Ribeiro — Obra seleta, op. cit., p. 1401). Há ainda — continuei
uma matéria da Folha de S. Paulo que menciona também, além de outros números, a reação do
próprio João Ubaldo. Veja — e li. — “Nos próximos meses, vai ser lançado na Rússia, com
uma tiragem inicial de 600 mil exemplares, o que fez o escritor ficar emocionado. ‘Há muito
que eu não tinha essas emoções que chamo literárias, mas fiquei louco quando soube o total da
primeira tiragem. É uma fábula, principalmente para um escritor brasileiro, que é best seller
quando vende 40 mil livros’” (Isa C
AMBARÁ, “João Ubaldo, outro baiano na lista...’”, Folha de
S. Paulo, 24 dez. 1984
.
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TÄCKMARK, Sven Erik & KRUMLINDE, Lars (trad.). Bresilien, Bresilien (Viva o
povo brasileiro). Bra Böcker: 1991.
956
__________. Sergeant Getúlio (Sargento Getúlio). Estocolmo: Wilken, 1991.
8.1.5. ADAPTAÇÕES, ROTEIROS (AUTORIA E CO-AUTORIA) EM CINEMA,
TELEVISÃO E TEATRO
1983 (longa-metragem): Sargento Getúlio, com direção de Hermano Penna
(participação nos diálogos do roteiro).
1991 (minissérie): O sorriso do lagarto, uma adaptação de Walter Negrão e
Geraldo Carneiro, com direção de Roberto Talma, pela Rede Globo.
1993 (programa TV): O santo que não acreditava em Deus, do livro Já podeis
da pátria filhos, de 1981, “Caso Especial”, com direção de Roberto Talma,
pela Rede Globo (adaptação).
1994 (minissérie): O compadre de Ogum, do romance Os pastores da noite, de
Jorge Amado, pela Rede Globo (adaptação).
1994 (programa TV): O poder da arte e da palavra, do livro Já podeis da pátria
filhos, de 1981, “Teleteatro/Brasil Especial”, com direção de Tizuka
Yamazaki, pela Rede Globo.
1995 (programa TV): A maldita, do conto “Patrocinando a arte”, do livro
podeis da pátria filhos, de 1981, “Caso Especial”, com direção de Reinaldo
Boury, pela Rede Globo (adaptação).
1996 (longa-metragem): Tieta do Agreste, de Jorge Amado, com direção de Cacá
Diegues (adaptação de roteiro para cinema com Cacá Diegues e Antônio
Calmon).
1997 (programa TV): Danada de sabida, do conto “O artista que veio aqui
dançar com as moças”, do livro Já podeis da pátria filhos, de 1981, “Terça
Nobre”, com direção de Reinaldo Boury, pela TV Bahia (roteiro com
Geraldo Carneiro).
2003 (longa-metragem): Deus é brasileiro, adaptação do conto “O santo que não
acreditava em Deus”, do livro Já podeis da pátria filhos, de 1981, com
direção de Cacá Diegues.
957
956
— “Na Suécia, (...) Viva o povo... (...) vendeu mais de 100 mil exemplares. A capa, um rosto
metade onça, metade mulher e olhos verdes”, diz Sergio Vilas Boas (“... o escritor carioca-
baiano tenta conciliar...”, Gazeta Mercantil, 18 e 19 mar. 2000
).
957
— “O cineasta Cacá Diegues lhe pediu para adaptar seu conto ‘O santo que não acreditava em
Deus’ para o cinema. Como será este filme? João Ubaldo: — Será uma comédia e não um
filme patético ou sentimentalóide. Espero que ele faça algo interessante porque eu não gosto de
ver filme chato. Deve se chamar Deus é brasileiro, e não será nada parecido com o ‘Caso
(cont.)
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2004 (peça de teatro): A casa dos Budas ditosos, adaptada e dirigida por
Domingos de Oliveira, com Fernanda Torres como protagonista.
2004-2005 (longa-metragem): Viva o povo brasileiro, em fase de pré-produção
em 2004, com direção de André Luiz Oliveira.
8.2. GERAL
8.2.1. BIBLIOGRAFIA CITADA SOBRE JOÃO UBALDO RIBEIRO (LIVROS,
CAPÍTULOS
, TESES, DISSERTAÇÕES, ARTIGOS, ENSAIOS)
BENTES, Ivana (org.). “Carta de João Ubaldo Ribeiro a Glauber Rocha: Salvador, 11
de novembro de 1963”. In: _____. Glauber Rocha — Cartas ao mundo,
São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 227-229.
BERND, Zilá & UTÉZA, Francis. O caminho do meio — uma leitura da obra de
João Ubaldo Ribeiro. Porto Alegre: Ed. da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, UFRGS, 2001.
BERND, Zilá (org.) & OUTROS. João Ubaldo Ribeiro — Obra seleta (em um
volume). Biblioteca Luso-Brasileira, Séria Brasileira. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2005.
BRITO, José Domingues de (org.). “João Ubaldo Ribeiro”. In: _____. Por que
escrevo? — coletânea de depoimentos célebres. São Paulo: Escrituras,
1999, p. 101. Fonte: RICCIARDI, Giovanni. Auto-retratos. São Paulo:
Martins Fontes, 1991.
COUTINHO,
Wilson. João Ubaldo Ribeiro: um estilo da sedução. Coleção
“Perfis do Rio”. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Prefeitura
Municipal do Rio de Janeiro; Rioarte, 1998.
CUNHA,
Eneida Leal. Estampas do imaginário — literatura, cultura, história e
identidade. Departamento de Letras da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, PUC-Rio. Rio de Janeiro, abr. 1993.
Orient. Affonso Romano de Sant’Anna.
FASSONI, Orlando. “Sargento Getúlio”. Os anos Embrafilme. Embrafilme, s/d.,
p. 141-142.
MATTOS, Stella Costa de. Sargento Getúlio — uma história de aretê. Instituto de
Letras e Artes, Pós-graduação em Lingüística e Letras, Pontifícia
Especial’ exibido pela Rede Globo em 1993. Surgirão novos personagens e o Deus será mal-
humorado, de pavio curto, do jeito que o Cacá Diegues gosta” (Viviane ROSALEM, “Escrevo
por dinheiro”, IstoÉ, 22 nov. 1999
).
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496
Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Orientação de Regina
Zilberman. Porto Alegre, dez. 1985.
RICCIARDI, Giovanni. “João Ubaldo Ribeiro”. In: _____. Auto-retratos. São Paulo:
Martins Fontes, 1991, p. 349-370. Entrevista de outubro de 1986.
ROCHA, Fátima Cristina Dias. “São Bernardo e Sargento Getúlio: vozes e gestos
em contraponto”. In: NUÑEZ, Carlinda Fragale Pate (org.).
Armadilhas ficcionais: modos de desarmar. Rio de Janeiro: 7Letras,
2003, p. 41-55.
VÁRIOS AUTORES. João Ubaldo Ribeiro. Cadernos de Literatura Brasileira, nº
7. Instituto Moreira Salles, mar. 1999.
YUNES, Eliana. “O poder da fala em Sargento Getúlio” (nov. 1978). In: VÁRIOS
AUTORES. Linguagens/PUC-RJ, Literatura/Estudos, vol. 1, nº 2. Rio
de Janeiro, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro —
PUC-Rio, s/d.
8.2.2. BIBLIOGRAFIA CITADA DE IMPRENSA (ORGANIZADA POR ORDEM DE
VEÍCULO
)
958
NACIONAIS:
A Classe Operária:
CARVALHO, José Reinaldo (entrevista). “João Ubaldo indaga sobre a alma
humana — No dia 21 de dezembro, primeiro do verão, o escritor João
Ubaldo Ribeiro recebeu a reportagem da ‘Classe’ na ilha de Itaparica
(Bahia), ‘a terra mais brasileira que existe’, como diz um de seus
personagens. Mais do que uma entrevista, o encontro com o criador de
Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro foi um papo ameno, num
banco da praça da Quitanda, num intervalo entre a cotidiana pescaria e
o diurno trabalho para terminar o seu novo livro, O sorriso do lagarto,
prometido para este ano”. 12 a 25 jan. 1989.
A Gazeta (Vitória, ES):
SILVA, Beatriz Coelho. “João Ubaldo lança romance virtual — O escritor
pretende, em 2001, publicar Misérias [sic] e Grandezas [sic] do
amor... em livro”. Literatura, 21 mai. 2000.
958
— Esta bibliografia de imprensa resultou de uma pesquisa que realizei nos arquivos do Jornal do
Brasil e dO Globo; a partir de algum material coletado em casa, em edições recentes; na Internet;
durante a minha “bolsa-sanduíche” em Lisboa, especificamente na Biblioteca Nacional de
Lisboa, na Hemeroteca de Lisboa e junto à editora do autor, a Dom Quixote. Destaco agora, entre
as fontes, o material que encontrei na Biblioteca Juracy Magalhães Jr., em Itaparica — material
que, com a ajuda da Dalva, diretora, da Isa, da Robertina, do Moisés e do Bartolomeu, a quem,
mais uma vez, agradeço, organizei, filtrei, cataloguei e, em seguida, graças à confiança que
depositaram em mim, trouxe para o Rio de Janeiro, onde fotocopiei e fichei.
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497
A Tarde (Salvador, BA):
CALBO, Iza. “A era do e-book — João Ubaldo Ribeiro entra na era do e-book,
vendendo livro via Internet. Mas há quem prefira a estante tradicional.
Confira!”. Caderno 2, Comportamento, 29 jun. 2000.
GUSMÃO, Marcos & FREIRE, Alberto. “Viva o povo brasileiro pra inglês ler”.
Caderno 2, 24 abr. 1987.
JULIETA. “Sociedade”. Coluna social, set. 1968.
LÔBO, Clodoaldo. “O feitiço da palavra — em entrevista exclusiva, por telefone,
João Ubaldo Ribeiro fala sobre seu mais recente livro, O feitiço da
ilha do Pavão”. Caderno 2, 26 nov. 1997.
NÃO ASSINADO. “João Ubaldo diz por que Setembro não tem sentido”. 14 e 15
set. 1968.
__________. “Longamente esperada chega Tereza Batista na Bahia”, 20 dez. 1972.
SILVA, Rosa Virgínia Mattos e. “Viva o povo brasileiro! E a língua portuguesa!”.
19 mai. 1985.
BNB Notícias — Banco do Nordeste do Brasil:
NÃO ASSINADO. “Prêmio de Literatura José Lins do Rego”. Notícias, Especial,
19 jul. 1982.
Bravo! (São Paulo, SP):
MARTINS, Wilson. “Crônica (picaresca) da vida brasileira — o novo livro do
escritor baiano é mais um painel da epopéia primitiva e tumultuosa da
nacionalidade em formação”. Crítica, out. 1997.
PIZA, Daniel. “O faroleiro e as trevas — Em Diário do farol, João Ubaldo Ribeiro
tenta construir uma teologia do Mal por meio de um personagem que, no
entanto, se perde no esquematismo”. Livros, mai. 2002
.
Carta Capital (São Paulo, SP):
GAMA,
Rinaldo. “O impulso vital — em Diário do farol, João Ubaldo embarca
em uma narrativa sobre o Mal absoluto”. Plural Livros, 27 mar. 2002.
Correio Braziliense (Brasília, DF):
MACIEL, Nahima (entrevista). “João Ubaldo Ribeiro: a arte de escrever”. Pensar,
Livros e Idéias, Caderno 2, 14 set. 1997
, p. 2-3.
Correio da Bahia (Salvador, BA):
RIBEIRO, João Ubaldo. “Os 10 conselhos de Manuel Ribeiro, segundo o autor —
Um dos melhores romancistas brasileiros, com reconhecimento
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498
inclusive no exterior — chegou a ser alvo de matéria destacada no
famoso The New York Times, já poucos anos —, o escritor João
Ubaldo Ribeiro entrou numa nova seara: a política. Autor de sucessos
literários como Sargento Getúlio, Vila Real e Livro de histórias, João
Ubaldo, que está morando em Portugal, acaba de publicar Política —
quem manda, por que manda, como manda. É um autêntico curso
prático dado por um ex-professor de Ciência Política da Universidade
Federal da Bahia, que tem mestrado em Administração Pública e
Ciência Política pela Southern California University. No final deste
livro, João Ubaldo apresenta um decálogo de bons conselhos que seu
pai, professor Manoel Ribeiro, lhe deu, pensando em torná-lo um
‘cidadão honesto e prestante’. Aqui, a síntese da interpretação feita
por Ubaldo sobre os ensinamentos recebidos e, que viraram sucesso
nacional também, a explicitação do próprio Manoel Ribeiro, em
entrevista concedida ontem”. Opinião e Análise, 3 dez. 1981.
Correio da Manhã (Rio de Janeiro, RJ):
BRASIL, Assis. “A liberdade na ficção moderna”. 4º Caderno, 8 set. 1968.
Correio Folha da Bahia (Salvador, BA):
SALES, Paulo (entrevista). “Inventário da maldade / Imperfeitas impressões”.
Domingo, 14 abr. 2002.
Cult (São Paulo, SP):
GIRON, Luís Antônio. “Ubaldo enfrenta o diabo”, ano V, nº 57, mai. 2002, p. 8-14.
LACERDA, Rodrigo. “Além do delírio — A Guerra do Paraguai, um dos
episódios mais sangrentos da história brasileira, encontrou e A
retirada da Laguna, do Visconde de Taunay, e Viva o povo brasileiro,
de João Ubaldo Ribeiro, sua melhor expressão literária”. Nov. 1997
,
p. 46-51.
__________. “Utopia tropical — O feitiço da ilha do Pavão, novo romance de
João Ubaldo Ribeiro, assinala um processo de isolamento geográfico e
estilístico do escritor, que encontrou na fantasia e na linguagem
barroca a melhor forma de preservar um universo de riso e luxúria”.
Nov. 1997
, p. 32-39.
SARAMAGO, José. “O autor como narrador”, ano II, nº 17, p. 25-29.
Diário de Notícias (Salvador, BA; São Paulo, SP):
GOMES, Adgemar. “Coluna do Adgemar Gomes”. Salvador, set. 1969.
MEDINA,
Cremilda. “No caminho das almas do recôncavo baiano — jornalista,
escritor, Ubaldo Ribeiro está atavicamente ligado a uma literatura de
tempos e espaços amplos; persegue as raízes da terra — a Bahia ou o
Nordeste das suas origens familiares —, e, ainda que conheça bem os
contornos deste mapa, fareja sempre linguagens, hábitos e valores do
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499
Brasil mulato”. Magazine, São Paulo, 14 dez. 1984, republicado, em
outro veículo, sem referência, sob o título “Na trilha das almas do
Recôncavo Baiano”.
NÃO ASSINADO. “Lançamento do livro de João Ubaldo leva grande público a
‘Civilização’”. Salvador, 21 set. 1968.
NÃO ASSINADO. “Reunião — Bossa Nova”. 3
o
Caderno, Revista Crítica,
Salvador, 19 e 20 fev. 1961.
Diário do Nordeste (Fortaleza, CE):
ARAÚJO,
Felipe. “O diário da maldade — sai o tom regionalista, entra a
contemplação do mal. Em seu novo romance, Diário do farol, João
Ubaldo Ribeiro segue colhendo as vantagens — e também o ônus —
de ser o nosso maior romancista vivo”. Caderno 3, 28 mai. 2002
, p. 5.
NÃO ASSINADO. “João Ubaldo lança livro pela Internet”. Caderno 3, 20 jun. 2000.
__________. “João Ubaldo Ribeiro: tão nordestino, que só escreve em nordestês”.
21 jul. 1982.
Ele Ela (São Paulo, SP):
SÉRGIO, Renato. “João Ubaldo Ribeiro — Um personagem que esqueceu de se
incluir num dos seus oito livros, desde o primeiro, Setembro não tem
sentido, escrito na flor dos vinte anos — agora reeditado —, até Viva
o povo brasileiro, aos 40. E já pensando no próximo: O sorriso do
lagarto. Frase padrão: ‘Baiano não nasce, estréia’”. Texto sem data.
Elle (São Paulo, SP):
SANDRONI, Cícero. “O João da ilha — É o romancista João Ubaldo Ribeiro, que
preserva sua intimidade em Itaparica, para escrever em paz, como
revela nesta entrevista”, ano 2, nº 11, nov. 1989.
Enfim:
RIBEIRO, João Ubaldo. “Eles pensam que são melhores que Dick Farney”, n
o
21.
Texto sem data.
__________. “O analfabetismo erudito”. Texto sem data, p. 20-21.
Época (São Paulo, SP):
PIRES,
Paulo Roberto. “Tempo de monstros — Em novo romance, Diário do
farol, João Ubaldo Ribeiro rompe as convenções do regionalismo”. 25
mar. 2002.
VIOTTO, Decio. “Itaparica eletrônica — Com cenários e personagens baianos,
João Ubaldo Ribeiro escreve o primeiro e-book do país”. Ciência e
Tecnologia, Internet, 22 mai. 2000
, p. 107.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA
500
Estado de Minas (Belo Horizonte, MG):
GUIMARÃES, Airton. “João Ubaldo Ribeiro — o romancista baiano passa os
olhos sobre a cultura brasileira antes de ir morar na Alemanha”. 17
mar. 1990.
Fatos & Fotos (São Paulo, SP):
NÃO ASSINADO. “Uma Semana da Pátria na vida da Província”. Livros, 12 out.
1968.
Folha da Tarde (São Paulo, SP):
CAMBARÁ,
Isa. “Receita à brasileira de um romance popular”, 25 dez. 1984.
Republicado também, em outro veículo, sem referência, sob o título “Viva
João Ubaldo Ribeiro — Escritor baiano é sucesso com novo livro”.
Folha de S. Paulo (São Paulo, SP):
ARARIPE,
Flaminio. “Sargento Getúlio”. 9 abr. 1978.
CAMBARÁ, Isa. “João Ubaldo, outro baiano na lista de ‘best sellers’”. 24 dez. 1984.
CAMPOS, Haroldo de. “Uma leminskíada barrocodélica”. 2 set. 1989.
CARVALHO, Bernardo. “Ubaldo, finalmente, solta novo romance”. Ilustrada,
Livros, 22 nov. 1997.
GONÇALVES FILHO, Antônio. “Lima Duarte e a obsessão de um personagem”.
Ilustrada, 22 mai. 1983.
GRILLO, Cristina. “Novo romance só será vendido pela Internet — João Ubaldo
Ribeiro lança e-livro Amor de Benedita”. Literatura, 18 mai. 2000
.
MARÍAS, Javier. “O mundo reinventado pela ficção — Literatura resiste como
forma de preservar aspectos esquecidos da realidade”. Caderno M
AIS!,
5 jan. 1997, p. 11.
RIBEIRO, João Ubaldo. “Escrever romances é sofrer até o fim — João Ubaldo
Ribeiro conta como planeja e realiza seus livros”. Letras, 19 abr. 1992
.
SANTIAGO,
Silviano. “Literatura anfíbia”. Caderno MAIS!, 30 jun. 2002, p. 7.
SÜSSEKIND, Flora. “Escalas e ventríloquos”. Caderno MAIS!, 23 jul. 2000, p. 6-11.
Gazeta do Povo (Curitiba, PR):
NICOLATO, Roberto. “A personificação do mal — autor não quer ser confundido
com personagens e enfatiza que não pretendeu atingir a Igreja”.
Caderno G, 8 abr. 2002.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA
501
Gazeta Mercantil (Rio de Janeiro, RJ):
VILAS BOAS, Sergio. “João Ubaldo Ribeiro — o escritor carioca-baiano tenta
conciliar duas metades de um Brasil cada vez mais incompreensível”.
Leitura de Fim de Semana, 18 e 19 mar. 2000, p. 2.
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Lector:
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preconceito intelectual contra o humorismo e diz que escrever é um
ato tão íntimo quanto fazer sexo” / “O chef das palavras e o tempero
do pensamento — um dos autores mais traduzidos do Brasil, João
Ubaldo Ribeiro mostra os ingredientes de uma conversa que alimenta
a alma”, ano III, nº 24, 1997, p. 8-9.
Leia (São Paulo, SP):
PESSOA,
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amanhã produção de novo livro, ao vivo pela rede mundial”, com o
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23 mai. 2000, p. D-7.
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— em seu mais recente romance, nas livrarias a partir de segunda-
feira, o escritor e colunista do Estado choca com o relato confessional
de um padre amoral e inescrupuloso e diz que sua intenção é refletir,
com base na filosofia, sobre os precários limites entre bem e mal” /
“’Não sou anti-clerical’, garante Ubaldo — O escritor não quer ser
confundido com o padre de Diário do farol, que peca em profusão e
ridiculariza os atos católicos”. Caderno 2, 16 mar. 2002, p. D-1 e D-3.
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Pavão, que deve ser lançado no fim do ano, enquanto o cineasta
André de Oliveira cuida da versão de Viva o povo brasileiro para o
cinema”. Personalidade, Caderno 2, 15 out. 1997, p. D-5.
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durante as comemorações dos 500 anos do Descobrimento” / “Livro é
universal, mas conserva o ‘sabor local’”. Caderno 2, 15 out. 1997, p. D-5.
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conta 300 anos de História” / “Escritor comenta sua obra livro a
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uma ilha deserta que resolve passar a limpo toda a sua existência. Ao
longo de mais de 300 páginas, o leitor é confrontado com uma
realidade na qual não existe nem o Bem nem o Mal. O Vida&Arte
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Siga:
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CARDOSO, Beatriz. “O que sei é que começo pelo título”. Tribuna Bis, 11 ago.
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Ubaldo Ribeiro é uma admirável fantasia sobre a História do Brasil”.
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CONTI, Mário Sérgio (entrevista). “Um brado retumbante — No romance Viva o
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Livros, 19 dez. 1984, p. 109-110.
MAINARDI, Diogo. “Nunca aconteceu antes... — João Ubaldo Ribeiro escreve
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NÃO ASSINADO. “Ninho de répteis — João Ubaldo Ribeiro combina traição,
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22 nov. 1989, p. 143-144.
POMPEU, Renato. “Alta tensão”. 18 jul. 1979.
Zero Hora (Porto Alegre, RS):
GUTKOSKI, Cris. “O cinismo é para o seu bem — O novo romance de João
Ubaldo Ribeiro, Diário do farol, embaralha a moralidade das
instituições”. Segundo Caderno, 1 abr. 2002.
NÃO ASSINADO. “João Ubaldo lança livro virtual — Romance estará à venda
em junho na Internet e em 2001 nas livrarias”. Segundo Caderno,
Cultura, 19 mai. 2000, p. 10.
INTERNACIONAIS (PORTUGAL):
24 Horas:
ANDRADE, Elsa. “A censura foi a melhor promoção — Último livro de João
Ubaldo Ribeiro proibido em dois hipermercados / A casa dos Budas
ditosos poderia ter sido apenas mais um livro do escritor brasileiro.
Mas o rótulo de pornográfico com que foi classificado transformou-o
num campeão de vendas”. Cultura e Espectáculos, 23 jan. 2000
.
A Capital:
JEREMIAS, Luísa. “Mulher é igual a homem — O escritor brasileiro João Ubaldo
Ribeiro está em Lisboa a (re)lançar o seu último trabalho, A casa dos
Budas ditosos, livro com venda proibida em dois hipermercados
portugueses por ‘ofender a moral pública’”. 18 jan. 2000.
Continente:
NÃO ASSINADO. “João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano — o autor
fala das influências autobiográficas de seu novo livro, da imagem e da
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510
profissionalização do escritor”. Literatura, Entrevista, ano II, nº 18,
jun. 2002, p. 40-47.
Correio da Manhã:
NÃO ASSINADO. “João Ubaldo Ribeiro e os dias da polêmica”. 18 jan. 2000.
Diário de Notícias:
CACHAPA, Possidónio. “Viva a luxúria — Polémico em Portugal, um sucesso de
vendas certo, A casa dos Budas ditosos é uma variação sobre o pecado
de ‘acamar’. Delicioso às vezes, enumerativo, apenas, outras. As mais
das vezes, divertido”. Livros, DNA. Texto sem data, p. 56.
CAETANO, Maria João. “’Portugal não é nenhum convento’ — Autor de A casa dos
budas ditosos, Ubaldo Ribeiro, está em Portugal e agradece aos
supermercados a publicidade gratuita”. Artes e Multimídia, 18 jan. 2000.
CRUZ, Marcos. “Sexo forte”. 4 jun. 2004, p. 48.
HORTA, Maria Teresa (entrevista). “Acho-me um bom pornógrafo”. Artes e
Multimídia, 22 jan. 2000.
NÃO ASSINADO. “Miséria e grandeza do amor...”. Livros (notas), Estante, DN
Magazine, 26 set. 2002, p. 44.
REGO, Miguel. “Livros em hipermercados”. Meu caro DN, Seção de cartas dos
leitores, 16 dez. 1999, p. 20.
Diário Económico:
GUERRA,
João Paulo. “Exame prévio”. Coluna Vertebral, 29 nov. 1999.
NÃO ASSINADO. “Ubaldo Rodrigues [sic] relançou livro proibido”. 27 jan. 2000
.
Focus:
FERNANDES, Ferreira. “Ubaldo das bundas ditosas — Apesar de censurado,
João Ubaldo Ribeiro é um escritor bendito. Lê-lo é um prazer, mesmo
quando é prazer demais”, n
o
13, 17 jan. 2000, p. 90-92.
RISCO,
António. “Casino”. Crónicas de António Arisco, 24 jan. 2000.
Grande Reportagem:
NÃO ASSINADO. “A casa dos Budas ditosos, João Ubaldo Ribeiro”. Jan. 2000.
JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias:
FURTADO, José Afonso. “Literatura digital: o futuro do livro” e “e-Ubaldo”
(box) — “O último livro do brasileiro João Ubaldo Ribeiro (...) está à
venda na Internet e ainda não foi editado em papel. O primeiro
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capítulo é gratuito, os outros a pagar. O JL conversou, por correio
electrónico, com este pioneiro da literatura digital e com o seu editor
Carlos Augusto Lacerda, sobre estes sinais dos tempos”. Tema, 14
jun. 2000, p. 12-13.
GARCIA, Irineu. “João Ubaldo Ribeiro: aboio alucinante”. Zona Tórrida, n
o
61,
21 jun. a 4 jul. 1983, p. 13.
NÃO ASSINADO. “João Ubaldo Ribeiro — Os Budas Ditosos”, n
o
878, 26 mai.
2004, p. 41.
__________. “O primeiro e-book lançado no Brasil surge agora em edição
portuguesa”, Livros, Ficção / “Ubaldo”. 15 mai. 2002, p. 24.
PACHECO, Fernando Assis. “João Ubaldo Ribeiro: histórias de riso, lágrimas e
fantasia”, ano II, nº 48, 21 dez. a 3 jan. 1983.
RIBEIRO, João Ubaldo. “Explicação de Glauber Rocha”, ano 1, n
o
14, 1 a 14 set.
1981.
VASCONCELOS, José Carlos de. “Do Brasil para Portugal — Falando em
português”. 5 fev. 2003, p. 21.
__________. “Viva o povo brasileiro e... João Ubaldo Ribeiro — Que um dos
mais espantosos livros da literatura portuguesa publicado nos últimos
anos, saído no Brasil há cerca de um ano, tenha passado basicamente
desapercebido e sem referências no nosso país, é um dos muitos e
indesmentíveis sinais de que os dois países de cada um dos lados do
Atlântico, irmãos para efeitos dos discursos de pompa ou
circunstância, continuam de costas voltadas um para o outro, até
naquilo que mais os deveria unir: a língua viva da sua gente e dos seus
escritores, a arte e a cultura”. Romance, 4 fev. 1986, p. 4.
__________ (entrevista). “João Ubaldo Ribeiro — O feitiço da escrita”, ano XIX,
nº 743, 24 mar. a 6 abr. 1999
, p. 9-12.
Jornal de Matosinhos:
SANTOS, Manuel Augusto dos. “Um serão com o autor do livro das bu(n)das
apetitosas / ‘Seu’ João Ubaldo: um cara legal”. 4 fev. 2000
.
Jornal de Notícias:
ALMEIDA, Sérgio. “A feliz desdita de ‘seu’ Ubaldo — Escritor brasileiro
encerrou périplo português no Porto, grato aos censores dos ‘hipers’
pelo sucesso do seu livro”, JN Cultura, 22 jan. 2000
.
CARVALHO,
Lima de. “João Ubaldo promove seus ‘Budas Ditosos’ — Livro
que hipermercados portugueses vetaram está no top há 40 semanas e a
multiplicar o número de fãs do escritor”. 16 jan. 2000.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA
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Letras e Artes:
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COELHO, Alexandra Lucas. “Polémica em torno do romance de João Ubaldo
Ribeiro. Foi você que pediu um best seller? Este livro vai bem com
doces de Natal? Duas cadeias de hipermercados acham que não. O
editor acha que é censura. O autor, João Ubaldo, diz que ‘quem tem
boca diz o que quer’. Ele escreveu o que quis. Pornográfico? Decida o
leitor”. 1 dez. 1999
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COUTINHO, Isabel. “Romance electrónico de João Ubaldo Ribeiro”. Ciber-
Escritas, 24 jun. 2000.
Tal & Qual:
NÃO ASSINADO. “Moralistas — O centro comercial Amoreiras retirou o seu
cartaz de natal por pressão de um grupo de católicos; duas cadeias de
hipermercados recusaram-se a vender um livro erótico; uma exposição
de fotografias provocou um escândalo em Lisboa. Saudades da
censura?”. 10 dez. 1999
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Visão:
LUÍS, Sara Belo. “Oito dias em Portugal — Um escritor em fanicos — João
Ubaldo Ribeiro voltou ao país onde viveu há 20 anos, e esteve quase a
cometer um crime. Por exaustão”, n
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hipermercados recusaram, por ‘imoral’, o último livro de João Ubaldo
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PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA
523
9
___________________________________
APÊNDICE
QUESTIONÁRIO PROUST COM
JOÃO UBALDO RIBEIRO
959
1. Qual foi seu primeiro texto?
Depende do que você quer dizer com “primeiro texto”. No sentido mais
rigoroso, foram as descrições e dissertações que fiz ainda no curso primário, para
as aulas de português. Não sei qual foi a primeira. Fiz ainda umas quadrinhas e
bobagens assim. Mais claramente, lembro que, quando Monteiro Lobato morreu,
fiquei pasmo, porque não me ocorria a idéia de que ele fosse morrer algum dia. Eu
devia ter meus oito ou nove anos e me lembro de que, sem saber da besteira que
estava cometendo, comecei a “continuar” a obra de infantil de Monteiro Lobato,
num caderno que há muito se perdeu. Meu primeiro texto literário publicado foi o
conto “Lugar e circunstância”, que hoje não me parece ser um conto, mas uma
mera reminiscência fictícia da primeira infância, no suplemento literário do hoje
falecido Jornal da Bahia. Antes, no antigo ginásio, eu, que era muito elogiado
pelos professores de português, escrevia coisas esparsas, cujo teor me escapa, não
recordo direito.
2. Lembra-se de quais foram seus motivos?
Eu sempre gostei de escrever, embora não pensasse numa carreira de
escritor profissional, o que só ocorreria décadas depois, por volta de meus quarenta
anos (antes disso, eu já tinha publicado uns três livros e alguns contos, mas sempre
achando que seriam uma atividade paralela). Meus motivos para escrever foram os
elogios que eu recebia de quem lia meus textos “privados”, a convicção de meu
amigo Glauber de que eu era um escritor, o envolvimento com uma excelente
revista do Centro Acadêmico da faculdade de Direito da Universidade da Bahia
959
Questionário realizado com o escritor, por e-mail, de 11 ago. 2002 a 31 mai. 2003.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210323/CA
524
(Ângulos), o início de minha enturmação com a patota dos intelectuais e artistas da
Salvador de meu tempo, a idéia romântica que eu fazia da vida de um escritor e
motivar as mulheres a acharem pelo menos uma coisa atraente em mim, já que eu
era feio, sem dinheiro, desajeitado e meio abestalhado.
3. Quem foi seu primeiro leitor?
Meu pai.
4. Quais foram os primeiros comentários que você recebeu sobre esses
textos?
Eram bem escritores, engraçados e revelavam jeito para a coisa.
5. Você conserva algum traço daquela escrita?
Acho que sim, mas não consigo pôr o dedo em cima.
6. O que estava lendo nesse momento?
Eu lia tudo desde pequeno. E, nessa época, a lista é interminável,
Hemingway, Sartre, Faulkner, Graciliano Ramos, Jorge de Lima, Joyce, Kafka,
Jack Kerouac — tudo o que aparecia eu traçava. Realmente, daria para encher a
página só de nomes. Sobre isso, há um texto mais detalhado no último capítulo (?)
de Um brasileiro em Berlim.
960
7. Como teve acesso a suas primeiras leituras?
Novamente, isto está bem exposto no capítulo final de Um brasileiro em
Berlim. Eu sempre vivi em casas superlotadas de livros e tinha acesso livre a
praticamente tudo.
8. Em que línguas você lê?
Muito bem, só português e inglês. Razoavelmente, espanhol.
Mediocremente, francês, italiano, catalão e galego. Decifro penosamente algum
latim e alemão, mas não os leio correntemente.
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9. Que autores tiveram mais importância em sua formação?
Impossível dizer, porque acho que foram praticamente todos os bons que
eu li, numa lista que vai de Monteiro Lobato a Shakespeare, Joyce e Rabelais.
10. Qual é seu poeta favorito?
Não tenho um favorito, tenho inúmeros. Jorge de Lima, W. H. Auden,
Shakespeare, Castro Alves, John Donne, João Cabral de Melo Neto, entre muitos
outros.
11. Quando e onde se encontra com escritores?
Por acaso ou em ocasiões especiais, geralmente eventos promovidos por
universidades e entidades culturais.
12. Tem amigos escritores? Quem são eles?
Depois que Jorge Amado morreu, não tenho praticamente nenhum amigo
íntimo escritor, a não ser alguns companheiros de geração na Bahia,
especialmente João Carlos Teixeira Gomes. E, especialmente, sou muito amigo do
poeta Geraldo Carneiro.
13. Tem inimigos escritores? Quem são eles?
É muito difícil saber. Não creio que tenha inimigos ferrenhos, mas nunca
se sabe.
14. Você pertence a algum grupo?
De jeito nenhum.
15. Quais são seus personagens de ficção favoritos?
Difícil dizer, vou esquecer muitos. Mas ponha D. Quixote, Hamlet, Emília
(Monteiro Lobato), Ricardo III (Shakespeare), Gargântua, Diomedes (Ilíada),
Aquiles (idem), Tom Jones (Fielding), Peter Pan, Alice (Carrol), Tarzan,
Setembrini (A montanha mágica), os três mosqueteiros (principalmente Athos e o
quarto, D’Artagnan), Dan’l Webster (Stephen Vicent Benét, em The Devil and
960
João Ubaldo refere-se à crônica “Memória de livros”, já citada.
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Dan’l Webster), o narrador anônimo de Guys and Dolls (Damon Runyon),
Robinson Crusoe, Sherlock Holmes... Não acaba nunca.
16. Que personagem feminino se aproxima de seu ideal de mulher?
Esta é mais difícil, porque não se trata de personagens, mas de ideal de
mulher. Nunca tive realmente ideal de mulher, sempre tive o gosto variegado
nessa matéria. Eugénie Grandet, talvez; talvez Penélope, talvez a deusa Palas-
Atena (que, aliás, não era dada a chamegos e era virgem).
17. Que frase da literatura cita com mais freqüência?
Talvez: “Mais do que prometia a força humana” (Camões). Mas só talvez,
porque não creio que haja uma favorita, entre dezenas.
18. Quais são os traços definidores de seu estilo?
Não faço idéia. Não gosto muito de parágrafos, costumo usar poucos.
19. Qual de seus livros prefere?
Viva o povo brasileiro.
20. Que efeito lhe causam as críticas sobre sua obra?
Irritação, geralmente.
21. Qual a opinião sobre você que mais o incomodou?
A de que eu sou um “debochado acadêmico”, que saiu na Folha, não sei
quando, da autoria de sei lá quem. Mas uma porção de outras me irritou, só que eu
esqueço com facilidade.
22. De que condições você precisa para escrever?
Sossego, no sentido mais abrangente. Meus dicionários, meus livros
favoritos, minha mulher.
23. Quais são as etapas de seu trabalho até chegar ao texto definitivo?
Bolação (caótica e errática), título, dedicatória, epigrafe e texto.
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24. O que está escrevendo neste momento?
Ainda está chocando na cabeça, não sei bem. E o que eu imagino que vou
escrever antes de começar quase nunca é o que sai escrito.
25. Que livro você gostaria de ter escrito?
A Ilíada.
26. Que país escolheria para viver?
Aqui mesmo, mas rico o suficiente para ter casas fora e ficar fora quando
me desse na telha.
27. Que época escolheria para viver?
A época de minha infância, em Aracaju, mas só como eu a fantasio.
28. Se lhe assegurassem impunidade, quem você mataria?
A sangue frio ninguém. Enlouquecido de raiva, qualquer um.
29. Quem você ressuscitaria?
Glauber Rocha.
30. Qual é o feito militar que mais admira?
A resistência espartana nas Termópilas, durante as guerras greco-persas.
31. Qual é a reforma que mais lhe agrada?
A reforma fiscal, com a adoção do imposto único.
32. Qual é seu personagem favorito na História de seu país?
O Barão de Itararé.
33. Tem ou teve alguma militância política? Qual?
Na adolescência, pós-adolescência e maturidade jovem, de esquerda,
simpatizante do marxismo, leitor da Critique de la raison dialéctique.
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34. Tem algum fanatismo?
Tenho horror a todo fanatismo.
35. Qual é seu quadro favorito?
Qualquer Van Gogh, Renoir, Bosch, Miró, Rafael.
36. Qual é seu cheiro favorito?
Livro velho, virilha de mulher.
37. Que esportes pratica ou praticou?
Futebol, tiro ao alvo, pescaria, xadrez (pessimamente em todos os casos,
menos tiro ao alvo).
38. Qual é seu prato predileto?
Uma bela feijoada, com bastante paio e toucinho cozido (para esmagar
com farinha).
39. Qual é seu nome preferido?
Pedro.
40. Qual é sua piada predileta?
Gozado, houve um tempo em que eu contava piadas a festa inteira, sabia
todas. Hoje me lembro de algumas, se as ouço repetidas. E, de vez em quando, me
ocorre uma. Agora, não me ocorre nenhuma, nem favorita, nem não-favorita.
Receio que, no momento, não tenha piada favorita.
41. Que matérias eram seus pontos fracos?
Todas as “ciências duras”, ou seja, matemática, física, química etc. Mas
hoje sei que, embora não tenha, por exemplo, nenhum talento matemático em
especial, também não sou uma toupeira, sou uma vítima de professores ruins na
infância e pré-adolescência. E adolescência também, pensando bem, tudo. Eu tive
alguns poucos bons professores, mas a maioria era péssima e hoje tenho certeza
de que me daria melhor em matemática, se ma tivessem ensinado direito.
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42. Há alguma ciência que o interesse particularmente?
Biologia.
43. Qual é sua música favorita?
Também não tenho. Mas gosto muito dos Concertos de Brandenburgo, todos
os seis, a Tocata e fuga em ré menor. Eu gosto enormissimamente de Bach e muito de
Mozart, Beethoven, Vivaldi, Brahms. Mas sou ignorante em matéria de música.
44. O que sente ao cantar o hino nacional?
Em ocasiões como jogos da Copa, acontecimentos políticos importantes
ou cenas que me emocionem por alguma razão, eu choro.
45. Como definiria a brasilidade?
Não sei. Minha formação nas ciências sociais me impede de me endereçar
a esses assuntos com simplicidade, fico logo com vontade de dar uma de minhas
aulas antigas. Não posso dizer isso, a não ser, talvez, num ensaio. Falha minha,
sem brincadeira.
46. Convive com animais?
Não, porque vivo em apartamento e isso fica difícil. E não gosto de bichos
presos, como, por exemplo, passarinhos em gaiolas. Quando era jovem, gostava
muito de cachorros, gatos, todos os bichos domésticos. Já não gosto tanto, embora
saiba bastante sobre cachorros, porque houve um tempo em que lia regularmente
revistas especializadas. Tenho asco invencível de baratas e outros insetos,
inclusive em forma de lagartas. Gosto de ver pássaros livres, na Natureza.
Abomino, contudo, pombos e pardais. Bem, já respondi demais. A resposta certa é
não, não convivo com animais.
47. O que faz nas horas de ócio?
Não tenho propriamente horas de ócio. Se é ócio mesmo, eu durmo. Sou
capaz de dormir o dia inteiro, se for o caso, e não fico com problemas para dormir
também à noite. A não ser que ler, entrar na Internet, conversar etc. seja
considerado ócio.
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48. Em que medida sua condição de escritor influenciou sua relação
com as mulheres?
Não faço idéia. De modo geral, atraio chatas literárias, que julgam poder ter
o que quer que imaginam que sejam “altos papos”. Um grande número de chatas
mesmo, muitas sub-escritoras com enormes vocações e minúsculos talentos, chatas,
chatas, chatas são a esmagadora maioria das mulheres que a condição de escritor
me rendeu. E olhe que me dou bem com as mulheres, tenho grandes amigas e já fui
bom nisso, para ser modesto. Tive reputação entre elas, em certo período,
infelizmente muito curto, de minha vida. Mas mulheres que só encontrei pela via da
minha condição de escritor foram, como disse, geralmente chatas variadas.
49. Que filmes você viu várias vezes?
Ah, uma porrada, no tempo em que eu era cinéfilo. Houve tempo em que eu
sabia os elencos principais de qualquer filme (quase sempre americano, depois
italiano e francês um pouco) que se citasse num papo. Não sei dizer. O grande
ditador, Picnic (Férias de amor, em português, que Glauber e eu adorávamos), tudo
de John Ford, Hitchcock, Frank Capra. Sicca e Zavatini, ah, não acaba mais. Eu via
tudo várias vezes, não há como citar sem produzir um volume de várias páginas.
50. Que órgãos de imprensa lê?
Tenho lido menos desses órgãos ultimamente, bem menos. Lia sempre a
Time e a Newsweek, mas há muito tempo não as compro. Leio todo dia, quase
sempre com angústia e nervosismo, O Globo e o JB. Leio mal, há certos
colunistas, notadamente os que fazem quatro metáforas a cada duas linhas, cujo
texto não posso encarar sem me exasperar. E as notícias me deprimem, tudo me
deprime e me deixa ansioso. Leio alguns pedaços de coisas na Internet, às vezes
dou uma curtida na Tribuna do Norte, de Natal, RN. Não leio habitualmente
nenhuma revista mais. Abandonei o Scientific American, onde freqüentemente
achava artigos que não entendia, mas adorava assim mesmo, a Discover, a
Superinteressante. Não sei o que se passa comigo, não gosto disto. Talvez seja por
causa de minhas pálpebras, que vou operar agora e que me chateiam para ler e
escrever, talvez seja porque eu passe tempo demais diante desta máquina. Como
disse, não gosto disso e vou mudar. Se bem que vem aí um novo romance e não
vou largar o teclado. Mas quero, sim, voltar a ler minhas revistas.
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51. De que vive?
De escrever. Principalmente de escrever para jornal, porque, apesar de
meus livros, costumeiramente, venderem bem, não dá. Eu ainda me dou por feliz,
porque meu agente vendeu bem dois livros meus e eu pude comprar o
apartamento, tendo, portanto, onde cair morto e não deixando a viúva desabrigada.
Mas preciso escrever para jornal, senão o dinheiro, além de tudo incerto e
irregular, não dá.
52. Qual sua relação com o dinheiro?
Dinheiro me deixa nervoso. Quer dizer, pensar nele, gerenciá-lo, lidar com
ele de outra forma que não seja um simples receber e gastar. Eu não sou
consumidor e não sinto falta de uma porção de coisas que atraem outras pessoas,
mas gosto de ter dinheiro para as necessidades relativamente modestas que minha
mulher e eu temos e tenho pavor de ficar com problemas de dinheiro. À medida
que vou ficando mais velho, vou ficando menos mão-aberta, meio pão-duro, até,
em relação a meus quase pródigos padrões antigos. Eu não queria ser milionário,
não queria mesmo, mas queria ter certeza de que nunca mais teria problemas com
dinheiro, como amigos meus, de meu tempo, estão enfrentando. Tremo em pensar,
agradeço a Deus minha situação.
53. Como imagina seu momento perfeito?
Imagino-me morrendo em paz e me transformando num espírito puro;
desaparecendo como se esvanecesse.
54. De que dia de sua vida você se lembra especialmente?
Eu tinha 23 anos e era considerado o melhor aluno de estatística. Um dia,
o meu professor americano disse: “É graças a alunos como o Ribeiro que ainda
vale a pena lecionar”. Disso eu me lembro especialmente.
55. O que lhe causa mais vergonha?
Ficar nervoso em público, e eu raramente fico nervoso em público. E
quando fico nervoso sinto vergonha por estar nervoso.
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56. De que tem mais medo?
Morro de medo de morte de gente querida. É do que tenho mais medo.
57. De que se arrepende?
Eu não me arrependo de nada. Não, não, me arrependo, sim. Arrependo-
me de não ter desfrutado de momentos cuja riqueza só hoje eu sou capaz de
compreender.
58. Quem você despreza?
Eu desprezo o canalha, traidor, assassino, delator. Antes de tudo, o traidor.
59. O que detesta acima de tudo?
A resposta está acima.
60. Qual seria sua maior infelicidade?
Perder a fé.
61. Qual é o principal traço de seu caráter?
A persistência.
62. Quantas horas dorme?
Isso varia muito; já variou muito. Hoje durmo oito horas por dia.
63. Como gostaria de morrer?
A resposta está acima: em paz e me transformando num espírito puro;
desaparecendo como se esvanecesse.
64. Acredita em Deus? Em qual?
Sim, acredito. Acredito em um deus. Basta isso.
65. Qual é sua divisa?
“Não há nada como um dia após o outro.”
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66. O que gostaria de ter sido?
Eu gostaria de ter sido um grande jogador de futebol, um craque das
multidões, o rei dos estádios.
67. Para que serve um escritor?
Também não sei. Não estou querendo ser tautológico, mas diria que serve
para escrever.
68. Por que escreve?
Não sei. Só sei que, desde que o homem aprendeu a falar, mesmo antes de
aprender a escrever, contava histórias. Alguma razão para isso há de haver, não
sei qual.
* * *
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