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Universidade Federal de Goiás
Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia
Mestrado em História
DA DEFESA DA HONRA À DEFESA DA VIDA:
uma história da violência contra a mulher na cidade de Goiânia
Mestranda: Lívia Batista da Costa.
Orientador: Prof. Dr. Marlon Salomon.
Goiânia
2006
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Lívia Batista da Costa
DA DEFESA DA HONRA À DEFESA DA VIDA:
uma história da violência contra a mulher na cidade de Goiânia
Dissertação apresentada como requisito à obtenção
do grau de mestre em História no Programa de
Mestrado em História, da Faculdade de Ciências
Humanas e Filosofia da Universidade Federal de
Goiás.
Área de concentração: Culturas, Fronteiras e
Identidades.
Linha de Pesquisa: Sertão, Projeto de Integração e
Regionalidades.
Orientador: Prof. Dr. Marlon Salomon (UFG).
Goiânia
2006
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Lívia Batista da Costa
DA DEFESA DA HONRA À DEFESA DA VIDA:
uma história da violência contra a mulher na cidade de Goiânia
Dissertação defendida no Curso de Mestrado em História da Faculdade de
Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal de Goiás, aprovada em
______de_____________de 2006, pela Banca Examinadora constituída pelos
seguintes professores:
____________________________________________________
Prof. Dr. Marlon Salomon (UFG)
Presidente
__________________________________________________________
Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior (UFRN)
__________________________________________________
Prof. Dr.Carlos Oiti Berbert Júnior (UFG)
_________________________________________________
Prof. Dr. Luís Sérgio Duarte da Silva (UFG)
Suplente
12
À memória de meu pai,
Guiomar Batista da Costa
13
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador professor Dr. Marlon Salomon, pela confiança no meu
trabalho, por seu entusiasmo, exincias e participação conjunta nesse trabalho.
Aos professores Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior e o Dr. Carlos Oiti, por
terem aceito o convite de participar da banca de defesa. Ao professor Dr. Pedro Paulo Gomes
Pereira por ter contribuído com a pesquisa na banca de qualificação, da mesma forma que o
professor Oiti.
Entre os professores da graduação e do mestrado, sou grata ao Dr. Élio Cantacio
Serpa, pelas suas aulas significantes; o Dr. Luís Sérgio Duarte por ter auxiliado com a
pesquisa, ainda na graduação, e por ter aceito o convite de participar do Seminário de
Pesquisa. À professora Dra. Heliane Prudente Nunes, que me orientou na graduação;
Antônio César, Eusébio e Fabiane, funcionários do Instituto de Pesquisas e
Estudos Históricos do Brasil Central (IPEH-BC), me acolheram com amizade e com
agradáveis manhãs e tardes de pesquisa. Da mesma forma, agradeço ao Saulo, Luciana e à
Letícia, que se mostraram sempre prestativos nos arquivos do “Diário da Manhã”, na época
em que lá pesquisei.
À minha família, especialmente a minha mãe Leonor, meu irmão Fernando, meu
tio Antônio e minha madrinha Ilza, a eles meus sinceros agradecimentos.
Aos amigos que me apoiaram e estiveram presentes, mesmo de forma indireta, na
trajetória desse trabalho: Karine, Maria Lemke, Ivone, Luciana, Ana Maria, Alysson, Bruno,
Juliana, Vinícius, Nandinho, Michelly, Luciano, Renata (e sua família); ao carinho dos meus
primos: Denise, Simone e Renato; ao colega Valney Natividade, pelas conversas frutíferas
acerca da pesquisa. À Daílza pela troca de diálogos na reta final desse trabalho.
Também agradeço à Coordenação de aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES) pelo apoio financeiro que viabilizou a pesquisa;
14
RESUMO
O objetivo dessa dissertação é investigar como o fenômeno da
violência contra a mulher foi construído como um problema social, na cidade de
Goiânia, através da imprensa escrita goianiense. Para tal reflexão, perscrutei
alguns jornais do final do século XIX e início do século XX, referentes à cidade
de Goiás, antiga capital do Estado de Goiás, e do período de 1940 a 1980, da
cidade de Goiânia. É fato, que após a cada de 1980, com o surgimento dos
grupos feministas, a violência contra a mulher passou a ser discutida na
sociedade como um problema a ser combatido. Todavia, esse fenômeno é antigo
e recorrente, inclusive na própria imprensa, no período anterior a década de
1980. Analiso as diferentes questões diante dessa violência, em momentos
distintos, mas que se integram numa rede relações, que fizeram parte da
constituição dessa violência, como um problema social em Goiânia.
15
ABSTRACT
The objective of this dissertation is to investigate how the phenomenon of
violence against women was built as a social problem, in the city of Goiânia,
through the written press. For such reflexion, I researched some newspapers of
the end of 19
th
century and beginning of the 20
th
century, related to the city of
Goiás, the old capital of Goiás, state and between 1.940 and 1.980, from the city
of Goiânia. It is a fact, after the decade of 1.980, with the upcoming of feminist
groups the violence against women stated to be discussed in society as a
problem to be faced however, this phenomenon is old and recurrent, including in
the press itself in the period prior to 1.980. I analyze the different issues in face
of this violence, in distinct moments, but that integrate in a relations net, which
took part in the constitution of this violence, as a social problem in Goiânia.
16
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 09
CATULO I - CRIMES SEXUAIS, PROSTITUIÇÃO E IMPUNIDADE.................. 19
1.1 A violência contra a mulher e a prostituição na cidade de Goiânia...................... 19
1.2 Crimes sexuais e de sedução: uma questão de honra........................................... 35
1.3 A impunidade dos agressores de mulheres: um reflexo negativo da vida citadina
.......................................................................................................................... 34
CATULO II - A FAMÍLIA, O ESTADO E A IMPRENSA...................................... 58
2.1 As relações entre a família, o Governo, e a Polícia............................................. 58
2.2 Os jornais como agentes de mediações sociais ................................................... 72
CATULO III - O FEMININSMO EM GOIÁS: A DENÚNCIA DOS CRIMES
PASSIONAIS EM GOIÂNIA .......................................................... 84
3.1 O surgimento dos grupos feministas em Goiânia................................................ 84
3.2 O amor, a paixão e o ciúme................................................................................ 91
3.3 A impunidade e legítima defesa da honra......................................................... 106
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................... 116
FONTES................................................................................................................... 119
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 120
17
INTRODUÇAO
O fenômeno da violência contra a mulher encontra-se, atualmente, disseminado na
esfera pública como um problema que deve ser combatido, prevenido e denunciado, não
apenas pelas timas de violência, mas por toda a sociedade. Tornou-se comum, depararmo-
nos com notícias sobre crimes contra as mulheres, especialmente no âmbito conjugal, por
meio da imprensa escrita e falada.
Na região Centro Oeste, apenas no ano de 2002, o jornal “O Popular” noticiou que
57% das mulheres declararam já terem sido timas de violência praticadas por seus parceiros.
(Lar, violento lar. O Popular, Goiânia, 08 de março de 2002. p.02). Somente na cidade de
Goiânia, no decorrer de 14 anos (1985-1999), foram registradas 33.829 ocorrências na
Delegacia de Pocia de Defesa da Mulher. Nesse período, a violência intrafamiliar apresentou
um índice de 70% dos casos registrados. (Dossiê: Violência Contra a Mulher. Rede Nacional
Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos, Brasil, 1999.p.7/Grupo Feminista Transas do
Corpo/ Goiânia).
Essa dissertação tem como objetivo analisar como o fenômeno da violência contra
a mulher foi construído como um problema social, na cidade de Goiânia, através da imprensa
escrita goianiense.
Refiro-me ao termo problema social”, na medida em que esse fenômeno é tratado
como um problema da alçada das esferas que compõe o corpo social, como o Estado, a Justiça
e a polícia, e cujas origens estão enraizadas no tecido social, sejam elas ligadas a questões
culturais ou cio-econômicas. Portanto, cabe a essas esferas combaterem essa violência, seja
ela cometida na esfera pública, ou no interior dos espaços privados, da família.
Todavia, essa apreensão da violência contra a mulher como um problema social é
recente. É a partir dela que a historiografia feminista discute o problema da violência contra a
mulher. A maioria das pesquisas realizada sobre esse tema refere-se ao período que se inicia
com a cada de 1970, após a atuação do movimento feminista no combate ao fenômeno da
violência contra a mulher. A partir desse período, os grupos feministas passaram a reivindicar
à instituições como o Estado, a polícia e a Justiça, medidas de prevenção e eliminação dessa
violência, definindo-a como um ato inadmissível, pois trata-se de um problema de cidadania;
a mulher, vítima de violência, é um sujeito portador de seus direitos. Desse modo, a violência
contra a mulher, mesmo que cometida no espaço doméstico, deve ser denunciada.
18
Desde então, apareceram no país ações pioneiras no combate à violência contra a
mulher. No final da década de 1970, surgiram os grupos SOS Corpo de Recife e o SOS
Mulher de São Paulo, que tinham como propósito elaborar propostas de cunho educativo e de
organização política, relativas às discriminações contra as mulheres, dentre elas, a própria
violência. Posteriormente, após a criação destes grupos, apareceram no país as primeiras
Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher. A segunda delegacia de defesa da mulher foi
inaugurada em Goiás, a partir da atuação do movimento feminista nesta região.
Posteriormente, na década de 1990, foi criada a Associação Brasileira de Organizações Não
Governamentais, liderada por grupos de mulheres de tendência feminista, que passaram a
discutir, dentre vários temas, o do femeno da violência contra a mulher. Estas instituições
tiveram reconhecimento nas esferas governamentais em âmbito nacional, no que tange à
políticas para eliminar a discriminação da mulher, e logo foram efetuadas por estados e
municípios.
Posta como um problema social, o cerne da discussão sobre o tema da violência
contra a mulher na produção historiográfica é a alise sobre as causas e origens sociais desse
fenômeno. Noto que algumas autoras justificam o problema da violência contra a mulher
através das relações de gênero
1
; outras teóricas
2
vão além dessas discussões, enfatizando que
é necessário relacionar o conceito de gênero com os de cidadania, justiça social e direitos
humanos. Assim, a maior parte das análises do femeno da violência contra a mulher tende a
privilegiar aspectos sócio-econômicos ou das relações de gênero referentes às principais
causas dessa violência.
As origens sociais desse fenômeno ligadas à sociedade patriarcal e machista que
levam njuges a violentarem suas parceiras, a falta de estrutura financeira que faz com que
as timas de violência permaneçam numa relação conjugal violenta, e o próprio estudo sobre
a concretização e atuação de políticas blicas relativas à medidas de prevenção e combate a
esse fenômeno tornaram-se objetos de discussão na historiografia. Ou seja, a maioria das
pesquisas relativa a esse problema analisa essa violência diante das atitudes atuais perante
esse fenômeno.
1
MOREIRA, Maria I et al. Violência contra a mulher na esfera conjugal. In: COSTA, Albertina de O;
BRUSCHINI, Cristina (Orgs.). Entre a virtude e o pecado. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992; STREY,
Marlene N; WERBA, Graziela C. Longe dos olhos, longe do coração: ainda a invisibilidade da violência contra a
mulher. In: GROSSI, Patrícia K; WERBA, Graziela (orgs). Violências e gênero: coisas que a gente não gostaria
de saber. Porto Alegre: Edipucrs, 2001.
2
SORJI, Bila. O Feminismo e os Dilemas da Sociedade Brasileira; SUÁREZ, Mireya; BANDEIRA, Lourdes. A
Politização da Violência contra a mulher e o fortalecimento da cidadania. In: BRUSCHINI, Cristina U;
UNBEHAUM, Sandra G. (Orgs). Gênero, Democracia e Sociedade Brasileira. São Paulo: FCC/ Ed.34, 2002.
19
Além disso, uma tendência de trabalhos que privilegiam as alises sobre os
impasses teóricos feministas ao abordarem o problema da violência contra a mulher. Nesse
sentido, há uma discussão densa acerca dos usos dos conceitos de gênero e da própria
violência, utilizados na apreensão desse femeno, que vão desde as categorias de violência
de nero, violência doméstica, violência conjugal, violência simbólica e, a própria noção de
violência contra a mulher. O debate sobre qual conceito deve ser apropriado e avaliado para
as análises da violência contra a mulher, especialmente a conjugal, tornou-se parte
constituinte das pesquisas relativas à essa violência.
3
Ao contrário da maioria das propostas dessas pesquisas sobre o fenômeno da
violência contra a mulher, o objetivo dessa dissertação se distancia propositalmente de uma
reflexão que coloque o objeto de estudo em termos de análise de suas causas e origens, ou até
mesmo, de uma discussão teórica que privilegie esses conceitos que circunscrevem essa
violência a um problema social. Para tanto, meu objetivo consiste em refletir sobre como a
violência contra a mulher foi construída como um problema social, ao invés de analisar o
postulado das noções de gênero ou cio - econômicas que articulam-se às possíveis causas e
origens sociais desse fenômeno.
A partir da década de 1980, após a atuação do movimento feminista, a violência
contra a mulher passou a ser discutida como um problema a ser combatido. Porém, o que
levou essa violência a se tornar um problema socialmente inaceitável? Como os grupos
feministas conseguiram transformar essa questão? A partir dessas perguntas, tive curiosidade
em tentar compreender como em épocas diferentes o fenômeno da violência contra a mulher
era apreendido e justificado pela sociedade goianiense; quais as relações e os fatores que o
levaram a constituir-se como um problema social. Em torno dessas questões, desenha-se o
principal objetivo dessa dissertação.
Assim, interessei-me pela história das diferentes atitudes existentes diante da
violência contra a mulher antes da década de 1980. Minha intenção foi analisar o problema
em termos históricos, tentar compreender quais as forças históricas externas a essa violência,
distantes das suas origens sociais, fizeram-na se constituir como um problema social.
3
Algumas autoras, como Bárbara Soares (1999), afirmam que as teorias feministas, que justificam a violência
contra a mulher, causada pelo desejo masculino de exercer poder e controle sobre a mulher, acabam por adotar o
modelo de “vitimização afirmativa”, o que, reduz a impotência e a passividade da vítima em valores de auto-
afirmação. Portanto, a violência contra a mulher o deve se reduzir às questões de gênero. Nesse sentido, há
uma complexa discussão do conceito de gênero.
20
Passei a investigar esse fenômeno em diversos periódicos goianos. Na época da
graduação
4
, quando iniciei a pesquisa sobre o tema da violência contra a mulher, pesquisei
alguns anos das décadas de 1980 e 1990, nos dois principais periódicos de circulação diária de
Goiânia, o “O Popular” e o “Diário da Manhã”. A escolha da imprensa como fonte de
pesquisa, ocorreu após ter tido contato com alguns trabalhos sobre o feminismo em Goiás,
segundo os quais, esses jornais divulgaram os principais crimes passionais que ocorriam na
cidade.
O jornal Drio da Manhã tornou-se a principal fonte do trabalho. Soube, então,
que ele era dirigido pelo jornalista Batista Custódio, que foi casado com a feminista Consuelo
Nasser, fundadora do grupo Cevam (Centro de Valorização da Mulher). O Cevam é o
principal grupo feminista atuante no combate ao fenômeno da violência contra a mulher e
surgiu no ano de 1981. Assim, Consuelo Nasser divulgava através do Diário da Manhã a
trajetória do Cevam e dos grupos feministas da cidade. A principal luta erguida pela jornalista
era a do combate à essa violência contra a mulher.
Todavia, como tratava-se da década de 1980 em diante, os jornais discutiam a
violência contra a mulher, já apreendida como um problema social. Dessa forma, quando
resolvi investigar sobre a constituição dessa violência como um problema social, tornou-se
necessário recuar no tempo para tentar historicizar essa constituição. Comecei a pesquisar
esse fenômeno em alguns jornais do final do século XIX e início do século XX, referentes à
antiga capital do Estado de Goiás, a cidade de Goiás, e outros, compreendidos entre o período
de 1930 até 1980 da cidade de Goiânia. Poderia parecer um recorte ousado para uma
dissertação de mestrado. Entretanto, em nenhum momento tive a intenção de fazer uma
reconstituição histórica da violência contra a mulher em todos os pormenores que a envolvem,
mas sim, em tentar compreender a trama de fatos e ligações que levaram a violência contra a
mulher a se tornar um problema socialmente inaceitável. Assim, me centrei num recorte
temático.
Analisei reportagens de jornais, tais como: “O Comércio”, “Gazeta Goyana”,
“Jornal de Goyaz” e a “Reblica”, referentes ao final do século XIX; A “Imprensa”, “O
Democrata”, O Aspirante” e “O Lar” relativos às duas primeiras décadas do século XX;
“Cidade de Goiás”, Brasil Central”, “Jornal de Notícias”, correspondentes às décadas de
1930 à 1950. As décadas de 1960 e 1970 foram pesquisadas no jornal “Cinco de Março”,
editado a partir do ano de 1959. A partir do ano de 1980, o jornal “Cinco de Março” tornou-se
4
Nas considerações finais retomo a análise da trajetória dessa pesquisa.
21
o jornal Drio da Manhã. Pelo fato do “Diário da Manhã” ter sido minha principal fonte,
ainda na graduação, o “Cinco de Março” também se tornou no principal jornal pesquisado
acerca das décadas de 1960 e 1970
5
. Esse fato deveu-se à presença da feminista Consuelo
Nasser na redação desse jornal, desde sua fundação, e pelo caráter de denúncia do jornal. O
propósito do periódico era de propagar os principais problemas que circundavam a população
goianiense.
Inicialmente, ao começar investigar nos periódicos anteriores a década de 1980, a
primeira hipótese levantada era a da invisibilidade da violência contra a mulher. No entanto,
defrontei-me com diversos casos de violência contra a mulher e inclusive de crimes
passionais, imersos a fatores estranhos com os que esse fenômeno é tratado atualmente.
Ao recuar no tempo, defrontei-me com o problema da violência contra a mulher
diante de questões que envolviam a “defesa da honra das famílias”. Esse era o cerne do debate
feito na imprensa escrita, sobre os crimes contra as mulheres que ocorriam nas primeiras
décadas da cidade de Goiânia e em décadas anteriores referentes à antiga capital do Estado, a
cidade de Goiás. Os crimes contra as mulheres eram perceptíveis quando maculavam a
honra das famílias. Portanto, eles eram apreendidos como uma violência moral ao núcleo
familiar. Quando uma “mulher de família” era agredida, a honra da família era maculada. A
família era o digo da moral. Nesse sentido, havia uma disparidade de fenômenos morais
que se entrecruzavam com o problema da violência contra a mulher, e que a tornava em
objeto de discussão na imprensa.
No decorrer das primeiras décadas da cidade de Goiânia, principalmente nas
décadas de 1960 e 1970, percebe-se que a violência contra a mulher era indissociável do
problema da prostituição. A maioria dos casos de violência contra a mulher era
problematizada pela imprensa quando ocorria nos locais conectados às zonas de meretrício.
Nessas décadas, a maioria dos bairros de residências familiares comportava pensões de
prostíbulos. As famílias denunciavam coletivamente aos jornais, que os homens que
freqüentavam as zonas confundiam as mulheres de família com as meretrizes, e as agrediam
moralmente.
Dessa forma, percebi que os locais que comportavam as zonas de tolerância eram
considerados como espaços de desordem moral, o que atingia a honra das famílias. Nesse
5
A pesquisa foi realizada no Arquivo IPHBC (Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central) e
IHGG (Instituto Histórico e Geográfico de Goiás). A década de 1980, especificamente, foi investigada nos
arquivos do jornal “Diário da Manhã” e d’O “Popular”. A imporncia desses jornais investigados e parte da
história da imprensa escrita goianiense é discutida no II capítulo da dissertação.
22
sentido, noto que esses crimes contra as mulheres, que ocorriam nos locais conectados à
prostituição, eram apreendidos como efeitos do femeno da prostituição, como uma ameaça
à honra das famílias, e não como uma agressãosica contra a mulher.
No início do primeiro capítulo, trato do problema da prostituição em relação à
violência contra a mulher. No segundo tópico desse capítulo, discuto os crimes sexuais e de
sedução que ocorriam fora das zonas de meretrício da cidade. Os casos de estupro,
defloramento e os crimes classificados como os de sedução, foram os tipos de crimes contra
as mulheres recorrentes nos registros dos jornais nas décadas de 1960 e 1970. Historicamente,
será observado que esses crimes também significaram uma ameaça à honra familiar. Uma das
preocupações do jornal, ao destacar esses crimes era a de enaltecer a ação eficiente da polícia
e do Estado, acerca da prisão desses agressores. A punição dos agressores significava uma das
formas com que as falias podiam reparar a honra maculada das mulheres, ao serem
agredidas sexualmente. Será percebido que, quando “uma moça de família” era agredida
sexualmente, as famílias procuravam a pocia para forçar um casamento, caso o agressor o
aceitasse se casar espontaneamente. Todavia, o recurso à polícia era apenas em última
instância. Geralmente, nos casos em que a estratégia do casamento não era possível, como nos
casos de defloramento e crimes conjugais, as famílias resolviam se vingar privadamente
contra os agressores, cometendo crimes contra estes. Em último caso, o crime era levado à
justiça.
No que tange propriamente aos crimes conjugais, a imprensa tendia a denunciar a
falta de ação da pocia e da Justiça do Estado de Goiás, diante da impunidade dos agressores.
Noto que não havia interesse da parte dessas esferas em combater esses crimes no interior das
famílias. Porém, a ineficiência da justiça acerca dessa impunidade implicava no retardamento
do restabelecimento da honra das famílias. Essa ameaça à honra das famílias, tamm
comprometia à honra da cidade. Nas primeiras décadas de Goiânia, havia uma preocupação
com a imagem da cidade e do Estado voltada para o progresso. Para tanto, era necessário
manter a cidade saneada moralmente, com os princípios de uma cidade civilizada.
Consequentemente, era importante proteger as famílias dos problemas que atingissem a sua
honra. A família era vista como uma base fundamental de uma cidade civilizada. Essa
discussão é feita no último tópico do primeiro capítulo.
A partir dessas discussões, será observada uma relação entre as esferas da família,
do Estado e da pocia. É tido que todos os problemas que colocaram a violência contra a
mulher como objeto de discussão nos jornais estavam direta ou indiretamente ligados à
instituição da família. As famílias solicitavam uma ação do Estado e da polícia acerca dos
23
problemas que as ameaçavam, como a prostituição, os crimes sexuais e de sedução. A
impunidade era reflexo da ineficiência desses óros institucionais.
Entretanto, será percebido que as esferas da justiça e da polícia interviam apenas
nas fronteiras dos problemas que atingiam o interior das famílias. Elas não interferiam
diretamente sobre as questões que ocorriam no interior dos espaços privados. Apenas em
última instância, elas auxiliavam as famílias a repararem sua honra perdida. Era da alçada das
próprias famílias recorrerem a essas instituições diante de problemas que maculassem a sua
honra. Em casos de crimes passionais, era através de uma espécie de uma vingança privada
que as famílias “lavavam” sua honra. A meu ver, cabia a imprensa denunciar esses problemas
em defesa da sociedade e da honra das famílias. Desse modo, as ligações entre o Estado, as
famílias, a polícia e a imprensa estão articuladas. Portanto, o segundo capítulo, num primeiro
momento, aborda a relação entre essas três instituições: a família, o Estado e a pocia. No
segundo tópico, desenvolvo a atuação da imprensa acerca de todos esses fenômenos.
Pressuponho que os jornais se constituíam como um meio de exercício de
vigilância e controle acerca das condutas do Estado, das autoridades e das próprias famílias.
Eles serviam como agentes de mediações sociais
6
entre as famílias e o Estado. Ao mesmo
tempo, eles interviam nas formas de sociabilidades do espaço urbano, demarcando limites dos
padrões de condutas que deveriam prevalecer entre o espaço público e o espaço privado.
Nesse sentido, creio que a imprensa escrita serviu como um meio de intervenção ao nível da
polícia dos costumes e do próprio Estado. Concebo, por meio das análises nos próprios
periódicos, que eles atuaram como dispositivos sociais, agentes na sociedade, propagadores
dos principais problemas que circundavam as famílias goianas. Essas análises e esses
conceitos acerca da imprensa serão desenvolvidos no texto do tópico sobre a atuação da
imprensa.
Assim, sublinho que a violência contra a mulher, nas primeiras décadas de
Goiânia, no final do século XIX e início do século XX no Estado de Goiás, era apreendida no
interior de um problema moral. Ela era perceptível quando maculava a honra familiar.
Portanto, essa violência era compreendida pela sociedade como uma violência de cunho
moral.
Portanto, observei que essa violência contra a mulher, entendida como uma
violência moral estava ligada a questões diferentes de quando ela se torna um problema
social. Como ressaltei acima, a partir da década de 1980, surgem os primeiros grupos
6
Esse conceito é analisado por Henrique Luiz Pereira Oliveira (1990). Retomo essa discussão, no tópico
específico sobre a imprensa.
24
feministas da cidade. Eles atuaram no combate à violência contra a mulher e passaram a
discutir sobre as causas dessa violência enraizadas na sociedade.
Nesse sentido, no terceiro capítulo, num primeiro momento, ressalto brevemente a
atuação do movimento feminista a partir da década de 1980 na cidade de Goiânia, e como a
imprensa passou a discutir o problema da violência contra a mulher. Os principais crimes
contra a mulher problematizados nos jornais a partir desse período, foram os crimes
passionais. A violência no interior das famílias é posta como um problema. Portanto, surgem
novas categorias como as do amor, da paixão, do ciúme, do machismo, relativas às
justificativas dos agressores de mulheres; categorias estranhas até então ao problema, como as
que sustentaram o debate sobre a violência contra a mulher nas décadas anteriores a esse
período. Tento historicizar essas noções românticas, no segundo tópico do terceiro capítulo.
Transformada em um problema social, essa violência deixa de ser apreendida
como um problema moral, de ofensa à honra das famílias. É a agressão sofrida pela mulher,
levada até a morte, que passa a ser combatida e repreendida, não apenas pelas famílias das
timas, mas por grande parte da sociedade. O ato de violência contra a mulher é que torna-se
decisivo. Os grupos feministas começaram a reivindicar ações da parte do Estado diante do
problema da violência contra a mulher, mas não para reparar a honra das famílias das timas,
e sim para punir os agressores de mulheres, e tentar adotar medidas de prevenção dessa
violência. Ou seja, esses grupos sociais clamaram ao Estado e à polícia para intervirem no
interior das famílias. Assim, uma inversão do mecanismo social entre as esferas da família
e do Estado. São os grupos feministas que passam a intermediar essas instâncias. Há, da parte
desses primeiros grupos da cidade, diversas propostas de políticas públicas a favor das vítimas
de violência. Dessa maneira, as feministas insistiram que essa violência contra a mulher é um
problema da alçada do Estado.
O surgimento das Deans (delegacias especiais de atendimento da mulher), por
exemplo, permitiu às mulheres timas de agressão denunciarem seus companheiros e
buscarem nessa instituição uma forma de garantia de segurança individual. Desde então, foi
elaborado por grupos feministas e diversos segmentos da sociedade, como advogados (as) e
juízes (as) propostas de leis para a punição dos agressores de mulheres. Conjuntamente, essas
esferas institucionais passaram a debater sobre as diversas causas e origens da violência
contra a mulher, na tentativa de analisar se elas são decorrentes de questões sócio-estruturais
e/ou culturais, dentre outras. A situação da tima de violência doméstica foi posta como uma
das preocupações de caráter governamental.
Dessa forma, os grupos feministas clamaram ao Estado e à pocia medidas de
25
intervenção no interior das esferas privadas, no que tange a violência contra a mulher. O
reconhecimento das Delegacias de Mulheres, dos SOS e outras instituições, como as próprias
casas de abrigo para timas de violência, que foram surgindo diante do combate a esse
fenômeno, representa o que podemos classificar de politização da violência contra a mulher.
7
Ou seja, o problema da violência contra a mulher passou a ter expressividade potica, sendo
debatido, interagido e reconhecido entre diversos segmentos da sociedade e instituições
governamentais. Essas novas esferas de combate a essa violência propuseram medidas de
apoio e acesso às timas de violência, referentes a atendimentos jurídicos, médicos e
psicológicos. Todavia, a emergência de toda uma série de instituições não é indiferente à
transformação histórica das atitudes perante a violência a violência contra a mulher. A
questão é que a partir de 1980, esses novos dispositivos ao tentarem se legitimar socialmente
expressaram institucionalmente o problema da violência contra a mulher.
É a partir desse cenário, que a violência contra a mulher passou a ser apreendida
como um problema social. Nesse sentido, associo o termo “social”
8
como o conjunto de
dispositivos que disseminaram na esfera blica o fenômeno da violência contra a mulher,
insistindo na afirmação de que essa violência não é um problema da esfera privada, e sim de
toda a sociedade, principalmente das instituições governamentais. Em interação com
instituições mais antigas, como o Estado e o sistema judiciário, esses grupos feministas e de
mulheres autônomas passaram a interferir diretamente sobre o problema da violência contra a
mulher.
Desse modo, através das análises feitas na imprensa escrita, percebo que a
constituição do fenômeno da violência contra a mulher como um problema social, na cidade
de Goiânia, insere-se num conjunto de relações que vão além da discussão das atitudes atuais
perante o fenômeno, pautada nas causas dessa violência. Ela está integrada à problematização
do fenômeno da prostituição, dos problemas citadinos, da ameaça à honra das famílias, da
falta de ação do Estado e da Justiça; e posteriormente, às questões de ordem sentimental: o
amor, a paixão, o ciúme e a própria legítima defesa da honra, ligadas as causas dessa
violência. Ou seja, o fenômeno da violência contra a mulher, na cidade de Goiânia, esteve
conectado a um conjunto de forças históricas que o fizeram a se constituir como um problema
social.
7
SUÁREZ e BANDEIRA (2002).
8
A definição do termo “social” foi estabelecida a partir das concepções adotadas Jaques Donzelot (1986). No
terceiro capítulo, retomo essa discussão.
26
Essas forças históricas ligadas à violência contra a mulher, quando ela era vista no
interior de um problema moral, o da ameaça à honra das famílias, foram se transformando. O
feminismo, ao denunciar os crimes passionais, colocou em cena novamente uma série de
problemas que estavam ligados ao fenômeno da violência contra a mulher, mesmo que de
forma indireta, questões tais como a família, a honra, a impunidade, a falta de ação da justiça
e da polícia. É claro que esses problemas, quando estavam conectados a essa violência,
apreendida como uma violência moral, possuíam outros sentidos.
As noções de honra e impunidade, por exemplo, sempre estiveram presentes no
fenômeno da violência contra a mulher. Porém, elas não apresentam sentidos lineares. Será
percebido que, num determinado momento, a impunidade representou uma ameaça à honra
das famílias e da cidade. Posteriormente, ela estava ligada ao alto índice de absolvições dos
criminosos de mulheres, sustentado pelo argumento da legítima defesa da honra. Assim, o
sentido da honra passa a significar o de defesa da honra pessoal, e não da família. Nas
primeiras décadas de Goiânia, era a honra familiar que deveria ser defendida. Quando uma
mulher era agredida sexualmente, a honra da família desta tima era maculada.
Sucessivamente, a honra passa a ser defendida individualmente pelos agressores de mulheres.
Ela torna-se um argumento exclusivamente jurídico. Ou seja, um deslocamento da noção
de honra. Da mesma forma, a própria noção de família nas primeiras décadas da cidade não é
a mesma na década de 1980. Discuto essas questões no decorrer da dissertação.
Portanto, sublinho que os problemas ligados à violência contra a mulher nas
primeiras décadas da cidade de Goiânia, e no início do século XX no Estado de Goiás, eram
apreendidos no interior de um problema moral, o da defesa da honra das famílias. Os casos de
violência contra a mulher eram perceptíveis quando maculavam a honra das famílias. Seja
quando as famílias procuravam repará-las, ou quando denunciavam os espaços geradores de
efeitos morais, como os da prostituição, que ofendiam a honra do núcleo familiar.
Posteriormente, essa violência transcende o problema da honra das famílias. Ela passa a ser
um fenômeno ligado à sociedade, e não apenas às famílias. A violência torna–se um problema
da alçada do Estado, da polícia e da justiça. Cabe a essas esferas debaterem sobre as origens
sociais dessa violência. Dessa forma, a transformação da violência contra a mulher, entendida
como um problema moral, para uma violência considerada como problema social está
conectada ao conjunto das forças históricas atuantes sobre a produção desse fenômeno, desde
as primeiras décadas da cidade.
27
CATULO I
CRIMES SEXUAIS, PROSTITUIÇÃO E IMPUNIDADE
1.1 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E A PROSTITUIÇÃO NA CIDADE DE GOIÂNIA
[...] As famílias, além dos infortúnios a que estão expostas por residirem
nas proximidades de lupanares se vêem na obrigação de, em muitos
pontos do bairro, escreverem a palavra “Família” nas paredes frontais da
casa a fim de não serem importunadas pelos freqüentadores menos
avisados sobre a zona [...] Nenhuma senhora de respeito ou uma moça
pode andar nas ruas, sob pena de ser confundida com as mulheres de vida
livre e assim serem abordadas ou agredidas [...] Homicídios misteriosos
já foram cometidos ali, tudo por culpa dos lupanares [...]. (São Francisco:
O Inferno das Famílias no Bairro da Luz Vermelha. Cinco de Março,
Goiânia, 11 de maio. 1975. p. 8).
O trecho da reportagem acima indica um dos maiores problemas sociais
registrados e debatidos na imprensa escrita goianiense nas cadas de 1960 e 1970: o
problema da prostituição.
Neste período, a maioria das zonas de meretrício era localizada nos bairros
familiares. Os prostíbulos se misturavam com as residências particulares e as mulheres
pertencentes às famílias eram confundidas com as prostitutas nas ruas. O jornal Cinco de
Março constantemente noticiava as reclamações da parte das famílias residentes nesses
bairros, que se estendiam desde o problema da ameaça moral contra a imagem das famílias,
até as agressões físicas e verbais cometidas pelas prostitutas, as quais eram vistas como
provocadoras: “[...] muitas ficavam ali, embriagadas e a provocar todos quantos ali vão ou
passam na rua. Fazem escândalo, andam nuas em via pública, gritam obscenidades e
provocam as mulheres sérias [...](São Francisco: O Inferno das Famílias no Bairro da Luz
Vermelha. Cinco de Março, Goiânia, 11 de maio. 1975. p. 8).
A principal queixa da parte dos pais de família registrada nos periódicos era a de
verem suas filhas sendo assediadas e até mesmo agredidas fisicamente, por homens que
freqüentavam as casas de tolerância. Além desses tipos de conflitos, também eram constantes
as notificações de crimes, decorrentes de relações amorosas entre os homens que cursavam
pelos prostíbulos com as meretrizes. Dessa forma, os bairros que comportavam as pensões de
prostíbulos eram considerados como lugares de violência e desordem pública.
28
Os conflitos que o fenômeno da prostituição gerava nos bairros implicavam
numa ameaça aos espaços privados das famílias. Nesta reportagem, citada logo acima, o
jornal publicou a reclamação de uma senhora residente do Bairro São Francisco: “[...] tive que
tirar minhas duas filhas moças da escola noturna [...] não vou deixá-las sair pelas ruas
porque ouço todos os dias casos de agressões, violências sexuais e crimes nas desprotegidas
ruas deste bairro [...] Quantos maus exemplos e cenas degradantes nossos filhos não vêem ali?
[...]. Portanto, a prostituição, além de significar uma ameaça moral para as famílias, gerava
um problema que passou a ser registrado pela imprensa: o de crimes contra as mulheres e
crianças do sexo feminino.
Todavia, percebo que esses crimes contra as mulheres e crianças de família, que
ocorriam nos espaços conectados ao meretrício, eram percebidos como efeitos da desordem
que a prostituição causava nesses locais. Essa desordem se estendia a uma desordem moral,
vistas pelas famílias como uma ameaça à honra familiar. Através dos jornais, nota-se que
quando uma mulher “de família” era agredida fisicamente e/ou moralmente nos locais ligados
às zonas de prostituição, era a honra dessa mulher e de sua família que estava sendo
ameaçada, e considerada como uma violência. Assim, a grande preocupação da imprensa e da
sociedade acerca desses casos era com a imagem e a honra das famílias.
A prostituição e os efeitos que ela provocava foi alvo de protesto das famílias
goianas, que procuravam a redação do jornal Cinco de Março para notificarem a ameaça
moral que ela significava. O principal problema para as famílias era a permanência dos
prostíbulos nos bairros familiares, a qual é decorrente desde as primeiras décadas da cidade de
Goiânia, entre 1940-1970. Nesse período, as casas de tolerância, constituíam-se num tipo
específico de comércio, num momento em que a cidade passava por um período de
crescimento demográfico, provenientes de pessoas vindas do campo ou de cidades
interioranas.
Nos primeiros anos da cidade, a prostituição era concentrada no bairro de
Campinas. Antes de ser um bairro, Campinas era uma cidade, fundada em 1810. Em 1933, foi
o município escolhido para dar apóio a construção da nova capital de Goiás
9
: a cidade de
Goiânia, localizada a cinco kilomêtros de Campinas. Dessa forma, a cidade de Campinas
passou a receber as novas obras da cidade de Goiânia, as construções urbanas e comerciais.
Além das construções de comércio e resincia, algumas eram destinadas ao comércio das
casas de prostituição. No ano de 1959, o jornal Cinco de Março, iniciou uma campanha a
9
A antiga capital do Estado de Goiás é a cidade de Gos Velha. Apenas em 1933 é que Goiânia foi escolhida
para ser a nova capital do Estado. No decorrer da dissertação, essa discussão será retomada.
29
favor da remoção da zona de meretrício das proximidades das residências familiares desse
bairro. Segundo o jornal, o meretcio campineiro era “a semente que germina delinqüência, é
um tapa na moral de cada família e um chute na quietude sagrada de cada lar”. (Decaídas
pequenas e grandes decaídas. Eis a questão: O prefeito é político, as prostitutas eleitoras.
Cinco de Março, Goiânia, I Semana de Novembro. 1959. p. 4).
10
Posteriormente, com o desenvolvimento urbano e comercial de Goiânia, os
prostíbulos foram se alastrando pelos outros bairros da cidade, principalmente naqueles que
comportavam casas comerciais. O Cinco de Março registra que essa expansão das zonas de
meretrício ocorreu devido à oficialização da Prostituição”. Para solucionar a confusão que se
fazia entre as residências particulares e os prostíbulos, o governo e a pocia do Estado de
Goiás, no início da década de 1960, resolveram identificar as pensões de prostíbulos como as
casas das luzes vermelhas”. Com essa identificação, as residências particulares não seriam
confundidas com os prostíbulos. Essa medida adotada pelo Estado foi notificada pelo jornal,
anos depois, da seguinte forma:
[...] Preferiram as autoridades o caminho mais curto e mais fácil [...]
reconheceram oficialmente, legalmente, escandalosamente, o meretrício,
oficializaram-no e aberrantemente o identificaram, com luzes vermelhas [...]
afrontando à todas as tradições de honra e respeito à sagrada família [...]
Pensaram as autoridades terem resolvido para sempre o problema das
prostitutas em Goiás. Lá estão os emblemas vermelhos da legalização da
depravação social. Mas os conflitos, as divergências, os problemas que
naquela época haviam, tornaram-se infantis, diante do drama que aquela
tresloucada medida veio constituir para hoje, caminhando a passos largos,
desde aquela época. Campinas, Setor dos Funcionários, Vila Operária, Fama,
Setor Oeste, Vila Coimbra [...] e um punhado de outros bairros o hoje
verdadeiras fontes luminosas de mulheres perdidas com a proteção oficial
[...] Hoje é quase impraticável ter família e residir em um destes bairros [...].
(Prostituição Oficializada: Estraçalha a Moral do Povo. Cinco de Março,
Goiânia, 26 de maio. 1962. p.8).
A identificação dos prostíbulos através das luzes vermelhas foi considerada pelo
jornal, como um ato que fez expandir a prostituição, além de oficializar uma autêntica
depravação social nos bairros da cidade. O Cinco de Março noticiava a denúncia de crimes de
sedução contra as mulheres, moças e menores de família que ocorriam nas ruas dos bairros,
tornando esses casos um problema público. Ao mesmo tempo, percebo que esses crimes eram
considerados como uma violência moral ao interior das famílias. Desse modo, o principal
problema da expansão dessas zonas de tolerância foi a ameaça à honra familiar que ela
10
Em algumas matérias do jornal Cinco de Março, o é especificada a data diária do jornal, mas apenas a da
semana de sua publicação.
30
significava. As famílias defendiam seus bairros coletivamente dos problemas que maculassem
à honra das “mulheres e menores de famílias”, que poderiam ser confundidas com as
meretrizes – vistas como mulheres desonestas - e serem agredidas moralmente.
Nesse sentido, os primeiros bairros de Goiânia podem ser caracterizados como
locais de encontro entre vida pública e privada, na medida em que havia uma proximidade das
famílias com os espaços da prostituição. Refiro-me a noção do termo “privado”, como o
espaço da família e, ao “público”, como os espaços da rua; espaços da cidade que comportam
fenômenos distantes do espaço “privado”, da família.
11
A prostituição, desse modo, seja concentrada em bórdeis, ou em pontos da rua,
típica da chamada prostituição de rua, era tida como um fenômeno blico, que ameaçava
moralmente os espaços privados das famílias, ao se encontrar nos arredores do núcleo
familiar. Os prostíbulos funcionavam normalmente nos mesmos espaços que as famílias
residiam. As ruas dos bairros eram invadidas pelas zonas de meretrício, tornando esse espaço
um local de conflitos, em que a prostituta era pública, podendo ser confundida com “moças de
famílias”; no qual ocorriam crimes entre homens e meretrizes, brigas conjugais com
prostitutas e, em que as “crianças de família”, ou crianças abandonadas eram incentivadas a
entrarem para o mundo da prostituição como será destacado no trabalho. Dessa forma, as
famílias eram expostas, não havendo uma separação entre vida familiar e vida blica. Assim,
creio que esses bairros de Goiânia podem ser considerados como espaços que comportavam
um tipo de sociabilidade em que o público e o privado se confundiam. Havia uma
sociabilidade pública da rua nos espaços que conectavam-se ao núcleo do privado.
Em locais como esses, a honra
12
se torna uma moeda social importante a ser
defendida. Segundo Arlete Farge (1991, p.590/591), um dos fundamentos da honra reside
nessa indistinção entre vida blica e privada. A autora, ao pesquisar sobre a falia popular
no século XVIII, na cidade de Paris, ressalta que para as famílias populares, a desonra
cometida por algum membro da família atingia todo o núcleo da família. A honra era um bem
fundamental comparado a vida. Tais considerações sobre a honra são decorrentes de uma
sociedade em que os homens viviam “face à face”. Era o olhar onipresente que fornecia o
conhecimento a respeito do outro e o direito de falar dele”. Em sociedades desse tipo, era
comum disseminar dúvidas sobre as condutas de cada membro da família.
11
Considerei algumas noções de “público” e “privado, e da própria não de “sociabilidade”, a partir de
Philippe Ariès (1991). Todavia, apenas aproximei essas noções, estabelecendo uma mediação com a realidade da
12
O conceito de honra possui um conjunto amplo de significados, que especificamente no corpo da pesquisa, não
possui um sentido linear. Dessa forma, sublinho que no decorrer do trabalho ele será discutido de acordo com os
problemas que circunscrevem o fenômeno da violência contra a mulher.
31
Mesmo tratando-se de realidades distintas, é plausível uma analogia da
perspectiva da autora com a realidade da pesquisa, de considerar que em locais onde não
uma distinção tida entre o público e o privado, a honra se torna uma moeda social
importante a ser defendida. Acredito que as famílias goianas, entre as décadas de 1930 a
1970, podem ser pensadas como famílias que possuem características de uma família
popular
13
, a qual se amolda a partir de uma redução de cada um de seus membros aos outros,
numa relação circular de vigilância contra as tentações do exterior, como o cabaré e a rua”.
Assim, concebo que se tratava de famílias extensas, que compunham os primeiros bairros da
cidade, num momento em que Goiânia passava por um período de crescimento. A relão
entre membros das famílias, com pessoas que vinham de fora, entre vizinhos e “estranhos”
nos mesmos locais, e entre famílias e prostitutas, compunham uma espécie de sociedade em
que não havia distinção entre o que era privado e público, cabendo a família se proteger
moralmente. Para tanto, a vivência nesses locais gerava uma auto-afirmação da palavra
“família”, como o núcleo da moralidade.
A família em seu conjunto, em sua extensão maior, era tida como o código da
moral. Não havia uma identificação entre os membros das famílias, a não ser pela própria
palavra “família”. Nos periódicos percebe-se que nos casos de mulheres agredidas nos
espaços conectados a prostituição, a identificação de tais mulheres, prostitutas ou não - era
designada pela palavra família. Portanto, são perceptíveis as expressões como mulher, menor
e esposa de família. O termo “mulher de família” era apreendido, grosso modo, como o
oposto da mulher prostituta, vista como desonesta e imoral.
Desse modo, uma ofensa moral cometida contra uma mulher de “família” atingia
todo o círculo da família. Não tratava-se de uma questão individual. A honra da mulher
atingida, maculava a imagem do núcleo familiar, sendo dessa forma, uma questão de cunho
mais amplo. No decorrer da pesquisa, será identificado que as famílias queixavam-se
conjuntamente dos problemas que as afetavam, como a segurança nos bairros, a falta de
policiamento e de atitude das autoridades para com os problemas que a circundavam, dentre
eles os crimes contra as mulheres. Acredito que é como se houvesse uma espécie de
sociabilidade comunitária, em que as famílias se uniam para defenderem seus lares. É notório,
que cabia as próprias famílias repararem a honra perdida das “mulheres de família”, seja
13
Jaques Donzelot (1986, p.44). Refiro-me às características da “família popular” estabelecidas por esse autor, e
por Farge (1991). É claro, que o processo de constituição da “família” popular e/ou nuclear burguesa na França
possui suas especificidades próprias, diferentes do Brasil. Porém, apenas comparo algumas nões que acredito
serem condizentes com as famílias goianas, no que tange à noção de honra.
32
cometendo crimes de vingança contra os agressores ou recorrendo, em última instância, à
justiça na tentativa de reparar o crime.
Destarte, em Goiânia, nas suas primeiras décadas, a honra não possuía um sentido
de defesa individual, mas sim familiar. No caso específico da relação do femeno da
prostituição, as famílias necessitavam se alto afirmarem como núcleo moral diante da
promiscuidade”, das desordens morais que as meretrizes comportavam. A defesa da “moral
das famílias” nos periódicos indica uma necessidade da distinção entre as condutas e os
hábitos das mulheres de família com as meretrizes. No espaço de uma convivência mútua,
onde o parecer”
14
sobre o outro é motivo de insulto, de pertencimento a família ou não, a
honra se torna umdigo de defesa da moral.
Nos casos de crimes sexuais e de sedução, que aconteciam fora dos locais
conectados às zonas
15
, a honra também possuía um sentido de defesa coletiva. Noto que era a
honra familiar a principal moeda social defendida pelas famílias goianas. Dessa forma, a
defesa da honra do núcleo familiar parece ter sido a principal moeda social defendida nas
primeiras décadas da cidade. Os problemas que envolviam essa questão, mesmo que de forma
indireta, eram compreendidos como femenos morais que transformavam-se em objeto de
discussão na imprensa escrita goianiense. Desse modo, nas primeiras cadas da cidade,
especialmente entre 1960 e 1970, apenas a prostituição era considerada como um problema a
ser combatido, pois atingia à honra das famílias. Em contraponto, a maioria dos casos de
violência contra a mulher era registrada pelos jornais quando ocorria nas zonas de
meretrício, ou se referia a casos de violência sexual e crimes de sedução.
Quando se tratava da violência contra as menores do sexo feminino, a
preocupação era mais intensa. No ano de 1963, vários moradores do bairro Fama entregaram
um abaixo assinado para o jornal, “protestando contra a revoltante promiscuidade na vila
Fama, e reivindicando o fechamento dos lupanares, onde “diuturnamente eram seduzidas
mocinhas”. Os moradores também denunciavam o aprisionamento de várias menores de
família nos prostíbulos. A acusação era de que as menores foram seduzidas pelos
proprietários dos prostíbulos para trabalharem naqueles recintos. (Promiscuidade leva à
indignação e à revolta da populão da fama. Cinco de Março, Goiânia, 07 de outubro. 1963.
p. 03).
Dessa forma, as menores tornavam-se outro alvo de preocupação, tanto no que
concerne à sua entrada para o mundo da prostituão, quanto ao problema do assédio sexual,
14
Para Áries (1991), a honra equivale ao parecer: conservar ou defender a honra equivale a salvar as aparências.
15
Discussão do próximo tópico.
33
por parte dos homens que freqüentavam as zonas. Era necessário “proteger as menores de um
futuro amoral”, pois convivendo nos mesmos locais de prostíbulos era perigoso que elas
aderissem à prostituição e não se tornassemfuturas esposas de famílias”. (Corrupção de
Menores. Cinco de Março, Goiânia, III Semana de Novembro. 1961. p.5).
O problema não era apenas com as menores de famílias, mas também, com as
crianças abandonadas outro tema de campanha do jornal Cinco de Março. Os menores
abandonados eram percebidos como os “futuros criminosos”, o que colocava em pauta o
debate sobre a criminalidade infantil. O jornal enfatizava que a ausência de um lar era o
principal dano gerado aos menores. Assim, grande parte das meninas entrava para os
prostíbulos:
[...] é uma prática absurda e criminosa do amor livre. Meninas que ainda
mal estão fisicamente constituídas integram-se a todas as perdições, a
todos os vícios e a todas as desgraças do sub-mundo, sórdido e
corrompido pela prostituição [...] é um crime social; afirma o Juíz de
Menores [...]. (A Salvão Moral de um Povo. Cinco de Março, Goiânia,
26 de março. 1962. p. 03).
Nesse sentido, compreende-se que a família era o centro da preocupação. Quando
o problema considerado era o das mulheres e menores de família aderirem à prostituição ou
serem violentadas por homens que freqüentavam as zonas, afirmava-se que isso ameaçava a
imagem e a honra das famílias goianienses. Quando se tratava das menores abandonadas que
se prostituíam, o problema era a ausência de um lar. Na reportagem intitulada: “Menor
Abandonado: Juventude Transviada”, o Cinco de Março registrou que no caso do menor que
cometesse um crime seria “levado em conta à educação e situação moral e material da
família”. (Juventude Transviada. Cinco de Março, Goiânia, II Semana de Novembro de 1960.
p. 27).
Portanto, percebe-se que o jornal considerava a família como uma instituição
fundamental para a proteção das menores. É como se o núcleo da família fosse o responsável
pela moral de cada membro da família. A criança pertencente a uma família, ou uma menor
abandonada, vivendo num espaço híbrido, entre o mundo da família e o da prostituição tendia
a ser uma fonte de preocupação de cunho moral. O não pertencimento à família significava o
pertencimento ao mundo da prostituição. Nos periódicos, a expressão “moral das famílias
permeava o debate sobre os principais problemas de cunho moral que poderiam repercutir
sobre as famílias.
Considerando essas abordagens sobre as zonas de tolerância e os espaços privados
das famílias, concebo que o sentido da palavra moral, estava ligado às noções de dignidade,
34
reputação social das famílias e, de virtudes e condutas das “mulheres de família”. Nesse
sentido, o significado dessa moral pode ser associado ao comportamento do indivíduo em
relação a outros indivíduos ou grupos; uma moral ligada as condutas dos indivíduos. Porém,
essa preocupação com tais condutas era sempre conectada à instituição da família. Os
comportamentos morais de menores e/ou mulheres de família eram apreendidos como uma
defesa da honra da família. Da mesma forma, os insultos e injúrias contra essas, significavam
uma ameaça à honra dessa instituição. Então, pressuponho que essa moralidade que
enquadrava o controle do comportamento estava centrada no código da honra das famílias. A
família em seu conjunto era a consistência moral. Assim, a prostituição se constituía num dos
principais problemas de defesa da honra das famílias.
É interessante ressaltar que, desde o final do século XIX, a prostituição
significava uma ameaça à moral das famílias. Magali Engel (1989, p.87), ao analisar os textos
dicos produzidos na cidade do Rio de Janeiro, entre as décadas de 1840 e 1890, aponta que
a prostituição era percebida como uma doença física e moral. A realização do prazer sexual
sem a finalidade reprodutora, era condenada pela medicina do século XIX.
Consequentemente, a prostituição era encarada como uma ameaça para a instituição da
família, a qual era concebida pelo dico como uma instituição higienizadora. Assim, ela era
vista como o espaço da sexualidade moralmente doente, vinculada às noções de adultério,
união criminosa e de degradação dos costumes.
Todavia, percebe-se que para as famílias goianas o grande problema era a
localização dos prostíbulos nos bairros familiares. Nota-se que membros das famílias
solicitavam às autoridades para que houvesse um local específico para as zonas de meretrício.
Não se percebe nas reportagens, registros de reclamações da parte das mães de família, ou da
própria imprensa, para que houvesse algum tipo de regulamentação nas zonas, ou até mesmo
alguma forma de eliminar a prostituição. Também, não encontrei nenhuma discussão acerca
das causas da prostituição, ou de qualquer tipo de preocupação com a vida dessas prostitutas.
Pressuponho que para as famílias, bastava que houvesse um local específico para
as prostitutas, longe do núcleo familiar. Desse modo, a prostituição deixaria de ser um
problema: ela evitaria os crimes contra mulheres e menores, e principalmente preservaria a
imagem e a honra das famílias, estando longe da imoralidade que as prostitutas
representavam. Nos trechos de algumas reportagens, esse fato torna-se evidente: “[...] Não
condenamos as mulheres por serem decaídas, são umas infelizes, são pobres germes que
minam uma sociedade [...] O Estado pode construir, de comum acordo com o município,
casas populares, em terras do próprio Estado, ou do próprio município, e vender, ou alugar
35
para as mulheres de vida livre deixarem os bairros [...]”. (Prostituição Oficializada: Estraçalha
a Moral do Povo. Cinco de Março, Goiânia, 26 de maio. 1962. p. 8).
Em outra matéria, a reclamação das famílias do Bairro São Francisco é radical:
[...] Nós mães de famílias deste Bairro, desejamos que o Governo solucione, de uma vez por
todas, este problema: Ou transfira para um local determinado a zona de meretrício ou compre
nossas casas [...]. (Mães Desesperadas lutam pela honra de suas filhas. Cinco de Março,
Goiânia, 01 de janeiro. 1962.p.1).
16
Portanto, percebe-se que o problema em si não era a prostituta. A grande questão
para as famílias goianas era a separação das zonas dos núcleos familiares. De certa forma,
esse fato talvez esteja ligado à idéia de que a prostituição se tornava alvo de repressão
quando ameaçasse a tranqüilidade e a moral blica. Historicamente, esse acontecimento é
perceptível. O fenômeno da prostituição, além de ter sido sempre considerado como uma
ameaça à família, representava um reflexo de “caos urbano” para a cidade. Segundo as
concepções médicas do século XIX, a prostituição era um fenômeno que atingia a “saúde
física, moral e social da população urbana”. Para Engel, a prostituta manifestava um caráter
contagioso:
[...] Disseminada pelas ruas da cidade, exibindo a obscenidade e a
depravação, a prostituição pública é concebida, em si, como um atentado
à moralidade pública. O perigo apresentado às famílias honestas é
associado, explicitamente, ao caráter mais público ou mais aparente das
“cenas abjetas” da prostituição”. (ENGEL,1989, p.88).
Essa associação da prostituta como uma ameaça ao caráter público também se
materializou na própria legislação, desde o período imperial. No Código de Processo Criminal
de 1832, dentre as atribuições dos juízes de paz, incluía-se a de “obrigar a assinar o termo de
bem viver aos vadios, mendigos, bêbados por hábito, prostitutas, que perturbam o sossego
público, aos turbulentos, que por palavras ou ações ofendem os bons costumes, a
tranqüilidade pública e a paz das famílias”. (ENGEL, 1989, p. 88).
Desse modo, nota-se que a prostituta, desde o século XIX, era classificada como
parte dos indivíduos que ameaçavam a ordem pública e as famílias. Essa visão de que a
prostituta em si, era uma ameaça à moral blica, era combatida pelos jornais do Estado de
Goiás no início do século XX:
16
É interessante perceber que esse trecho refere-se ao ano de 1962. No início do texto, no trecho da reportagem
acima, vemos que posteriormente em 1975, as reclamações das famílias permaneceram as mesmas.
36
[...] sendo constantes as queixas contra vadios (entre esses,
essencialmente os foliões, ciganos e meretrizes) que infestam os diversos
bairros desta Capital, dos municípios distritos do Estado, perturbando
profundamente a ordem, a tranqüilidade, a moral pública [...] recomendo
aos Senhores Delegados e Subdelegados de polícia a mais severa
observância [...]. (Instruções às autoridades policiais, A Imprensa, Goíaz,
28 de outubro.1914. p.4).
17
Ou seja, parece que a questão da prostituição ser pública, e estar presente nos
bairros e nas ruas da cidade, era apreendida pela imprensa, desde o início do século XX, no
Estado de Goiás, como um problema de ordem moral. Havia uma tentativa de controle dessa
moralidade, no que tange às condutas das prostitutas, que implicava no controle da
moralidade pública. Na cidade do Rio de Janeiro, no período do Estado Novo, houve uma
política de controle e localização das zonas de meretrício. Em 1930, Nelson Hungria, um
jurista e delegado de Polícia da época, defendeu que a prostituição era um mal necessário
18
para a defesa da virtude das “mulheres honestas” da época. Dessa forma, era necessário elas
existirem, porém, em locais determinados, para que não ofendessem a moralidade blica. A
polícia fez campanhas de moralização, para “limpar o centro da cidade”. As prostitutas e a
boêmia noturna foram alvos de repressão policial. Todavia, não havia um consenso entre os
juristas da época. Alguns que participaram do Conselho Brasileiro de Higiene Social (CBHS),
defendiam a extinção total da prostituição, e exatamente por isso estudavam as suas causas
(SUESAN CAULFIELD, 2000, p.170).
Assim, em alguns locais, o femeno da prostituão esteve diretamente ligado à
ordenação das cidades. No caso de Goiânia, essas reivindicações para que houvesse a
separação entre as zonas e os núcleos familiares, envolveram uma série de questões. A própria
preocupação de caráter imobiliário era registrada pelos jornais. Os proprietários de imóveis
dos bairros onde havia prostíbulos queixavam-se de não conseguirem vender seus imóveis
devido a constante desvalorização do local. Além disso, as próprias prostitutas eram
proprietárias de residências nesses bairros e se recusavam a vendê-las. Entretanto, não tenho a
intenção de me aprofundar nessa questão, nem em todos os problemas que envolvem a
prostituição em Goiânia nessas cadas. Analiso esse fenômeno, na medida em que ele era
17
Em relação aos jornais do final do século XIX e início do século XX, permaneci com a transcrição original dos
trechos das reportagens no decorrer de toda a dissertação.
18
No século XIX, alguns médicos defendiam a regulamentação da prostituição e tentavam demonstrar que
cientificamente a prostituição era um mal inevitável, e, portanto não poderia ser extinta. Ela era necessária para
que o homem satisfizesse suas necessidades sexuais fisiológicas que não poderiam ser comprimidas. Porém, era
necessário que houvesse um controle médico sobre as prostitutas, que elas fossem inscritas na polícia e fossem
isoladas, tornando-se, não uma prostituição livre, mas pública e vigiada. Assim, havia os defensores da
normatização da prostituição e os defensores da exclusão. Ver Engel, 1989.
37
considerado como um problema moral, e toca em questões diretamente ligadas à violência
contra a mulher, como a própria ameaça à família, e os próprios casos de crimes contra as
mulheres nas zonas.
Como foi destacado, as prostitutas, além de terem representado uma imoralidade,
geravam nos bairros o aumento da violência. Ao mesmo tempo, os atos criminosos cometidos
por elas em vias blicas eram condenados. Todavia, além de significar uma ameaça externa
às famílias, as prostitutas geravam conflitos no interior das próprias residências. O Cinco de
Março publicou o apelo dramático de uma noiva devido a morte de seu companheiro:
[...] a senhorita Deborah Aires da Silva, assistiu no interior de sua
própria residência, ao assassinato frio e bárbaro de seu noivo, Sr. José
Alves Nascimento, praticado por dois tradicionais desordeiros, em defesa
das prostitutas que muito tempo provocavam as famílias da rua P-30,
no Setor dos Funcionários. [...]. (A procura de mundanas. Cinco de
Março, Goiânia, 20 de agosto de 1962.p.8).
Segundo a reportagem, os desordeiros estavam a procura das mundanas e
entraram na residência dessa senhorita provocando vários conflitos. Atima, o sr. Jo
Alves, tentando defender a residência, acabou sendo morto. Diversos casos como esse, eram
registrados pelo jornal. Por outro lado, as prostitutas também eram timas de envolvimentos
amorosos que ocorriam nos prostíbulos, nas ruas da cidade, ou em suas próprias residências:
A 6 de abril de 1936, foi realizado o primeiro júri de Goiânia. Os réus
eram Antonio Vieira, Heráclito Rubino do Carmo e Pedro José
Inoscêncio, acusados do assassinato de Narcisa do Carmo, que fora
amante de Antonio e a primeira prostituta a se instalar na Nova Capital
[...]. (Uma cidade com medo da violência. O Popular, Goiânia, 24 de
outubro de 1979. p.12).
Nessa matéria, nota-se que o primeiro júri realizado na cidade de Goiânia foi
relativo a um crime passional, tendo a primeira prostituta da cidade como tima. A prostituta
nesse caso foi o pivô do crime. Percebo que nas primeiras décadas da cidade eram constantes
crimes contra as meretrizes. Segundo Engel (1989, p.25, apud CHALHOUB, 1986), as
prostitutas, nas primeiras cadas do século XX do Rio de Janeiro, inspiravam crimes
passionais. Era comum agressões de homens contra prostitutas e de homens em situações de
conflitos por conta das meretrizes.
Em Goiânia, na maioria desses casos que envolviam as meretrizes, o destaque dos
jornais era noticiar a impunidade ou a prisão dos agressores. Todavia, através dos trechos dos
38
jornais, parece que o cerne do problema não era o próprio crime contra a prostituta e sim o
constrangimento moral que ele significava, principalmente para as famílias. O jornal de
notícias” na década de 1950 publicou o seguinte acontecimento:
[...] O promotor Sócrates Pinto ingressou perante o Juízo Criminal
oferecendo a seguinte denuncia contra Gualter de Oliverira: [...] Mais ou
menos à meia noite de 29 de julho de 1952, quando as luzes do Bairro de
Campinas se encontravam apagadas, dirigiu-se para a casa de
tolerância situada a Avenida Ceará. nr. 182, de propriedade de Adelina
Rita de Jesus, à procura da rameira Ana Maria Gonzáles, que ali era
inquilina de um quarto [...] Rita de Jesus convenceu Ana Maria de que
conhecendo o feitio moral de seu companheiro, sabia-o capaz de derrubar
a porta, e de perturbar o sossego das famílias residentes na vizinhança
[...] penetrando Gualter no prédio, foi logo dizendo a Maria: “eu vim aqui
para te matar: desfechando-lhe um tiro [...] o acusado perseguido pelo
clamor público [...] foi afinal preso [...] (Tentou contra a vida da amante e
foi agora denunciado pelo promotor de Justiça Criminal. Jornal de
Noticias, Goiânia, 07 de dezembro. 1952. p. 4).
O principal acontecimento ressaltado pelo jornal foi a prisão do agressor. Mas o
que me chamou a atenção nesse trecho acima é o fato do acusado ter sido perseguido pelo
clamor público”. Isso me faz perceber o crime como uma ameaça às famílias. Observa-se a o
registro da preocupação com o sossego das famílias residentes no bairro de Campinas, onde a
prostituta residia. Ou seja, acredito que os crimes que ocorriam nos espaços que comportavam
as meretrizes eram apreendidos como efeitos da prostituição. A desordem moral provocada
nesses espaços causava efeitos nos seus moradores. Quando ocorriam crimes como esse, os
moradores clamavam pela prisão dos criminosos.
Apesar de nesse caso citado acima ser ressaltada a prisão do agressor, na grande
maioria dos outros crimes, a impunidade prevalecia. Da mesma forma que em outros casos de
violência contra a mulher em âmbito conjugal, que não envolveram as meretrizes
19
.
No ano de 1963, o jornal relatou o assassinato de um presidiário cometido contra
uma meretriz no prostíbulo:
[...] Em liberdade constante, apesar de ser presidiário, Honorato visitava
sua amante diariamente em uma pensão do “bass-fond” na Vila Nova,
onde, no dia 12 último, por volta das 12 horas a assassinou violentamente
por estrangulamento, depois de haver espancado durante rios minutos.
A amante de Honorato chamava-se Gasparina Maria de Jesus, mais
conhecida como Maria Rosa (Nona Avenida, 59 Vila Nova). (Morte da
Prostituta. Cinco de Março, Goiânia, 18 de fevereiro de 1963.p.02).
19
Esse assunto é objeto de discussão do terceiro tópico da dissertação.
39
O jornal relata que o motivo que levou o assassino a cometer tal delito foi o ciúme
pela meretriz. Na maioria dos outros casos que envolvia as prostitutas, esse era o motivo
alegado pelos agressores, que também gerava conflitos entre outros homens. : “[...] Na noite
do último dia 13, José Ricardo de Faria, vulgo Zezinho, descarregou seu revólver Castelo 32
contra Floriano [...] Zezinho contou a razão de seu crime: Floriano havia dormido com sua
amásia prostituta”. (Morreu por causa da prostituta. Cinco de Março, Goiânia, 19 de janeiro
1970, p.06). Da mesma forma que no caso do presidrio, que matou a amante meretriz e
ficou em liberdade, outras manchetes registravam matérias dessa natureza: (“Matou por
ciúmes da meretriz e com ela vive em liberdade”. Cinco de Março, Goiânia, 11 de julho.
1965.p.4).
Assim, pressuponho que esses crimes que envolveram as prostitutas, seja quando
elas tornaram-se as timas ou as causadoras dos conflitos entre outros homens, foram
entendidos como efeitos da desordem gerada pela prostituição. A proximidade dos prostíbulos
às residências e o próprio interior das pensões refletia a extensão da desordemblica e moral
que os lupanares causavam. Creio que o próprio ciúme pela prostituta argumentado pelos
autores dos crimes era entendido pela sociedade como efeito de uma desordem moral gerada
pelas prostitutas. A impunidade desses agressores, que se envolveram com as meretrizes,
também significava uma ameaça à moral das famílias. E, nesse sentido, penso que cabia aos
jornais denunciarem a falta de ação da pocia e da justiça acerca dessa impunidade, já que
esses parecem terem sidos dispositivos atuantes na defesa da honra das famílias.
20
Portanto, percebo que nas primeiras décadas da cidade, a violência contra a
mulher era indissociável do problema da prostituição, da desordem que ela causava. Ela era
um efeito da prostituição; indiretamente, quando expunha as famílias à agressão moral, e
mulheres e menores de famílias eram agredidas. Diretamente, quando a prostituta era morta.
A proximidade dos prostíbulos das residências familiares causava, dentre vários efeitos, o dos
crimes contra as mulheres. No entanto, esses crimes eram percebidos como efeitos dessa
proximidade e o como uma agressão a um ser humano, a própria mulher, como ocorre após
a década de 1980, quando a violência contra a mulher torna-se um problema social a ser
combatido.
Por meio das análises nos periódicos, será percebido na dissertação, que após a
década de 1980, a violência contra a mulher passa a ser apreendida como um problema que
deve ser da alçada de esferas institucionais como o Estado e a pocia. Os crimes contra as
20
A forma metodológica de lidar com os jornais como fonte de pesquisa, e a atuação desses, na sociedade goiana
são discutidas no segundo capítulo do trabalho.
40
mulheres deixam de ser noticiados apenas quando atingem a honra das famílias. Posta como
um problema social, essa violência é justificada pela sociedade e pela imprensa através de
suas causas enraizadas no tecido social, sejam de origens econômicas ou culturais. Ela não
será mais observada apenas quando se restringir a espaços específicos, como o da prostituição
e atingir a honra das famílias. A grande denúncia acerca dessa violência vai ser contra o
agressor, sobre o ato individual cometido por este. Assim, as causas que levaram o agressor a
cometer tal delito são debatidas.
No que tange especificamente ao fenômeno da prostituição, ele era considerado o
responsável por diversos tipos de desordens, que eram tidas como imorais. No ano de 1970,
na página policial, do dia 26 de janeiro, o Cinco de Março registrou que a Delegacia de
Costumes de Goiânia “prendeu no último dia 13, nada menos que 36 libertinas por atentado
ao pudor em plena via blica”. O crime de atentado ao pudor era estabelecido no código
penal de 1890. As prostitutas poderiam ser enquadradas no artigo 282, que definia como
ultraje público ao pudor, justamente a ofensa dos bons costumes e exibição de atos obscenos,
cuja pena era de 1 a 6 meses de prisão”. Elas também poderiam ser incluídas no artigo “dos
vadios e capoeiras” quando ofendessem a moral e os bons costumes. Nesse caso, a prisão era
apenas de 15 a 30 dias. (ENGEL, 1989, p.32).
Ou seja, a prostituta era vista como uma ameaça à sociedade, consequentemente
como criminosa. Para Jurandir Freire Costa (1999), as prostitutas significavam para os
higienistas do século XIX, mulheres criminosas, no sentido de que cometiam uma falta
higiênica, pois pervertiam com o exemplo de suas vidas, a moral de mulher mãe. Elas
seduziam os homens e destruíam as famílias. Elas acabavam por induzir crianças de famílias
para o mundo da libertinagem.
Torna-se interessante perceber, através desses estudos, que essas concepções
acerca da prostituição são recorrentes no século XIX. Em contraponto, as vemos presentes na
cidade de Goiânia em plena década de 1960 e 1970. Na análise de alguns autores, o fato da
prostituição ter significado um problema para as famílias goianas, estava ligado a aspectos
culturais. Para Eliezer Cardoso Oliveira (1999), Goiânia, nas suas primeiras décadas, possuía
características culturais provincianas, mesmo que constantemente tenha sido representada
como uma cidade moderna
21
. Segundo o autor, essas características provincianas tem a ver
com a relação entre Campinas e Goiânia. Como vimos acima, Campinas foi o município
escolhido para receber a cidade de Goiânia, além de ter sido o bairro de maior concentração
21
Essa discussão sobre Goiânia como uma cidade moderna será retomada à frente.
41
da prostituição. Oliveira ressalta que Campinas, desde o início de sua história, se constituía
como uma sociedade “fechada, de tradições centenárias, baseadas nos princípios da religião
católica”. A religiosidade era muito forte e interferia em rios aspectos da cidade.
Nesse sentido, a influência cultural, religiosa e moralista de Campinas influenciou
as famílias goianas nas primeiras décadas da cidade. Oliveira indica que a construção de
Goiânia provocou conflitos nos valores culturais entre os habitantes de Campinas, que tiveram
que se adaptar às novas condições urbanas e consequentemente sociais instaladas nesse
município. Os grupos de Goiânia que passaram a se instalar no município, eram grupos
heterogêneos, com ideais de crescimento urbano para o novo município, mas também
deixaram-se influenciar pela populão de Campinas. Isso gerou uma rivalidade entre
Campinas e Goiânia até os anos 60, perceptível em várias manifestações culturais e sociais.
De certa forma, “havia um sentimento de repúdio e aprovação por parte da população de
Campinas”. (OLIVEIRA, 1999. p. 40).
Esse acontecimento é notório em algumas matérias do Cinco de Março. Numa
matéria, o autor diz que “Campinas foi a cidade que dirigiu os primeiros passos de Goiânia.
Antes de transferir a capital de Goiás para Campinas, ela era uma cidade de respeito e
moralidade”. (Araújo Vivaldo. Campinas, um bairro que clama por Justiça e Moralidade”,
Cinco de Março, Goiânia, II semana de novembro. 1959. p.4).
Portanto, enquanto alguns espaços, como Campinas, deveriam ser considerados
como espaços da moralidade, a prostituição significava o espaço da imoralidade. O próprio
trajeto dos ônibus coletivos que passavam pelas zonas boêmias no bairro de Campinas na
década de 1960, foi alvo de campanha do jornal Cinco de Março, devido ao apelo das
famílias. Encontra-se nas reportagens dos primeiros anos dessa década, diversas propostas de
mudança dos trechos dos ônibus, feitas pelo prefeito, para que os coletivos não passassem nas
ruas boêmias. no final do ano de 1959, o jornal publicava que o Diretor de Inspetoria de
Trânsito do Estado de Goiás, na época, Adolfo de Souza Filho, declarou que a “sociedade
goianiense aplaudia pela mudança do trajeto do coletivo da zona de meretcio [...] Essa seria
mais uma vitória que arquivaram no Caderno de Moralizações [...](Coletivos nas zonas
boêmias. Cinco de Março, Goiânia, 03 de outubro. 1959.p.01).
Assim, o problema da prostituição estava diretamente ligado à instituição da
família. No entanto, penso que o fato da prostituição ter significado um problema para as
famílias não estava conectado apenas ao aspecto cultural presente nas primeiras décadas da
cidade de Goiânia. Percebe-se nas reportagens dos jornais, que as famílias ao reclamarem da
prostituição, exigiam uma ação do Estado em relação ao problema. As famílias queixavam-se
42
das zonas de meretrícios presentes nos bairros, por vários fatores. Dentre os efeitos que elas
provocavam, surgiam os crimes cometidos contra menores e mulheres de famílias. Além do
que, como a própria imprensa apontava tornava-se difícil vender as propriedades de imóveis
nesses bairros.
As famílias, junto aos jornais, clamavam para que o Estado zelasse pela
instituição da família, para que afastasse as zonas de meretrício dos bairros familiares.
Pressuponho que não era apenas por uma questão de preservação da imagem da família
goiana, baseada nos princípios de honra e moralidade, que o Estado tentava adotar medidas
para solucionar o problema da prostituição. Penso que o aspecto cultural não deve ser
determinante em relação ao problema da prostituição. Havia todo um interesse e dever do
Estado em atender as necessidades da família. Da mesma forma, ao identificar os prostíbulos
com luzes vermelhas, o Estado teve o interesse de permanecer com os prostíbulos, que de fato
eram locais de comércio. Assim, suponho que o problema da prostituição esteve ligado a uma
rede de relações, como a própria ligação entre o papel do Estado e da família, que é
constituída historicamente.
22
Nesse momento, ressalto essas questões apenas para pensarmos
no femeno da prostituição, para além de um problema exclusivamente de ordem cultural.
Dessa forma, concebo que os casos de violência contra a mulher ligados às zonas
de meretrício, eram percebidos pela sociedade como efeitos da desordem moral que a
prostituição causava. Essa desordem ameaçava à honra das famílias, que acredito ter sido a
principal moeda social a ser defendida. Como o fenômeno da prostituição era apreendido
como um problema que atingia diretamente a honra das famílias, ele era considerado pela
imprensa como um grave problema a ser discutido e debatido pela sociedade. Destarte, os
crimes de violência contra as mulheres que ocorriam nesses locais eram problematizados
pelos jornais, pois eles acabavam significando uma ameaça para as famílias. Na seqüência
desse primeiro capítulo, será observado que os outros casos de violência contra a mulher nas
décadas anteriores de 1980, que não envolviam o fenômeno da prostituição, abrangiam um
conjunto de problemas intrínsecos a questões de ordem moral, de defesa da honra das
famílias.
22
Essa discussão será abordada, em específico, no capítulo 2.
43
1.2 CRIMES SEXUAIS E DE SEDUÇÃO: UMA QUESTÃO DE HONRA
Além dos casos de violência contra a mulher que ocorriam nas zonas de
prostituição e que envolviam as meretrizes, os crimes classificados como sexuais e de sedução
também eram destacados pelos jornais. Esses crimes foram registrados nos periódicos entre as
décadas de 1930 a 1970
23
, e compreenderam crimes como os de estupro, defloramento e
crimes de sedução.
Segundo Boris Fausto (2001), historicamente, a definição de crime sexual se
assentou em alguns pressupostos básicos, como o próprio controle da sexualidade feminina
através do casamento e da família. A honra da mulher e da família constituiram-se como o
principal objeto de reflexão para a definição de crime sexual. O significado da honra nos
casos das timas de crimes sexuais, pautava-se na questão da virgindade. A lei que punia
crimes como o de defloramento, por exemplo, tendia a defender mais um princípio moral do
que físico. Cauelfield (2000) aponta que no final do século XIX e nas primeiras décadas do
século XX, especialistas brasileiros em medicina legal produziram uma gama de estudos
sobre o hímem. O grande objetivo desses estudos era provar a virgindade feminina ou a
ausência desta que significava a perda da honra. As timas de crimes sexuais eram
submetidas a exames feitos por especialistas médicos.
Dessa forma, o conceito de crime sexual foi associado ao significado da honra. Na
legislação, ele passou a ser discutido e definido desde o digo Criminal de 1830, no qual
um capítulo específico sobre crimes contra a honra dos indivíduos, incluindo calúnia, injúria e
ofensas sexuais. Nesse digo, a noção da honra significava mais “uma expressão da virtude
pessoal que de precedência social ou moralidade religiosa”; ao contrário do que era
estabelecido na parte criminal das Ordenações Filipinas Portuguesas, de 1603, respectiva aos
rituais de poder absoluto e de atribuição de status”, na qual a maioria dos crimes classificada
como crimes contra a honra era relacionada às ofensas contra a autoridade potica e à ordem
pública. (CAUELFIELD, 2002, p.51).
O fato do sentido da honra no digo de 1830 estar ligado a uma expressão da
virtude pessoal, manifestou-se nas próprias penas relativas aos crimes sexuais. No caso de
estupro, por exemplo, a honra das timas era associada ao pudor e a fidelidade. A tima era
23
A maioria das fontes circunscreve as décadas de 1960 e 1970 devido a maior quantidade de casos registrados
na imprensa nesse período.
44
julgada como mulher honesta (virgem) ou desonesta
24
(prostituta). Os estupradores, que no
Código das Ordenações Filipinas recebiam pena de morte, passaram a receber condenações de
3 a 12 anos, exceto se a tima não fosse prostituta. Nesse caso, o agressor recebia pena
apenas de 1 s a dois anos. (CAUELFIELD, 2002, p. 42).
Todavia, um fato interessante que surgiu no Código de 1830, é que os homens que
se casassem com as timas de crimes sexuais estariam liberados de todas as condenações.
Segundo Cauelfield, essa discussão foi recorrente nos debates jurídicos do século XIX. Por
outro lado, na década de 1970, encontrei uma reportagem do ano de 1975, do jornal Cinco de
Março, intitulada: “Nos casos de sedução o culpado ou casa-se com a vítima ou vai preso”.
A reportagem apontou que na justiça da cidade de Anápolis, num total de 15
processos envolvendo sedução e estupros de pessoas maiores e menores, dois réus resolveram
se casar com as timas. Isso apenas nos três primeiros meses do ano de 1975. Segundo o juiz
de Anápolis, responsável por esses casos na época, “[...] se o interessado resolve casar-se,
muito bem, o caso fica encerrado. Em caso contrário, aplico a lei e, conforme o caso envio a
prisão aos culpados [...]”. “Em Anápolis, era proverbial: seduziu, ou vai preso ou se casa”.
A maioria desses casos de sedução da cidade de Anápolis envolvia jovens da alta sociedade
que, quando não aceitavam se casar, cumpriam pena por “desencaminhar moças menores”.
(Nos casos de sedução o culpado ou se casa com a tima ou vai preso. Cinco de Março,
Goiânia, 07 a 13 de abril. 1975.p.1).
Nesse sentido, nota-se que o recurso ao casamento estava ligado à imagem da
família e da tima de agressão. No trecho acima, o juiz deixa claro que se o agressor optasse
pela estratégia do casamento, o caso era tido como encerrado. Esse ato demonstra que diante
de um crime que supostamente a punição deveria ser realizada pela justiça, essa punição
poderia ser resolvida pela própria família. Ou seja, o exercício da justiça era limitado diante
desses crimes. Se as famílias conseguissem resolver o problema sem necessidade da ação da
justiça, o caso ficava encerrado. Ao contrário, elas poderiam recorrer a justiça para forçar um
casamento. Portanto, era da alçada e do interesse das famílias reparar a honra perdida das
timas de sedução. Essa ordem supostamente “inversa” entre o mecanismo da justiça e das
famílias diante de crimes sexuais contra as mulheres era comum em Goiânia até meados da
década de 1970.
No dia 02 de agosto de 1971, o Cinco de Março noticiou o caso de um
estuprador perigoso para o sexo frágil dos 9 aos 90” [anos], que após violentar uma doente
24
É válido ressaltar, que no Código Civil de 1916, o fato do homem poder pedir a anulação do casamento, caso a
mulher fosse desonesta, foi atenuante.
45
mental estuprou duas filhas menores da viúva com quem vivia. O agressor, após ter sido preso
em flagrante, insistiu com a polícia para se casar com a menor de 13 anos para reparar o mal
que fez”. Como o exame médico comprovou a violência carnal nas menores, o agressor
utilizou esse argumento. (Depois de violentar uma boba, o tarado estuprou duas filhas, Cinco
de Março, Goiânia, 02 de agosto. 1971. p. 29).
A possibilidade de se casar com a tima de crime sexual também foi recorrente
nas décadas de 1920 e 1930 na cidade do Rio de Janeiro. Caulfield ressalta que
aproximadamente 500 famílias, a maioria pertencente à classe trabalhadora, recorriam à
polícia por terem tido suas filhas defloradas. Nesses casos, e de outros tipos de crimes
sexuais, os acusados muitas vezes sofriam agressões da pocia e às vezes eram obrigados a se
casar. Eles eram considerados como sedutores” e foram alvo de discussão e assunto de
interesse na sociedade carioca nas décadas de 1920 e 1930, na qual a honra sexual possuía um
extremo valor.
Entretanto, Sandra Pesavento (2001) aponta que, no século XIX, era uma prática
comum moças combinarem com os parceiros para que fossem defloradas e assim poderem se
casar. Pesavento, ao pesquisar nos jornais do final do século XIX da cidade de Porto Alegre,
evidenciou uma prática corrente de casais de namorados que planejavam entre si, o rapto da
moça, seguido de defloramento. Essa era uma estratégia constante dos casais que não tinham
o consentimento das famílias para a aceitação do casamento. Como na lei era estabelecido que
o casamento livrava o agressor da culpa, os casais utilizavam-se desse argumento. Dessa
forma, para Pesavento, não havia violência e sim estratégias de ação matrimonial.
Pressuponho que esse conceito deestratégias de ação matrimonial” pode ser
concebido em parte dos casos de estupro e defloramento, na realidade da cidade de Goiânia.
No ano de 1975, o Cinco de Março registrou que em cada 10 queixas de crimes sexuais
denunciadas nas Delegacias de Goiânia, 9 eram falsas. Apenas neste ano de 1975, o jornal
apontou que as queixas desses crimes aumentaram em mais de 300%. Segundo a matéria, com
o grande número de incidências desses crimes, a Divisão Técnica Policial chegou a elaborar
um manual de orientação para os delegados sobre qual a melhor maneira de agir nesses casos,
pois se tornara um fato, moças alegarem terem sido violentadas quando na verdade tiveram
relação por vontade própria. Segundo o chefe da Divisão Técnica Policial (Dtp):
pouco tempo uma mulher chegou a ponto de passar grude de polvilho
nas pernas, mentindo que seu namorado havia tentado possuí-la a força.
houve casos em que a pretensa vítima arranha seu próprio corpo, para
provar ter sido violentada. O que acontece é que na maioria dos casos não
46
houve qualquer violência, e a mulher pretende apenas foar um
casamento ou uma indenização.” ( Leonardo Rodrigues. Cinco de Março,
Goiânia, 14 a 20 de abril. 1975. p. 03).
O chefe da Divisão Técnica seguiu sua fala, transcrita no jornal, alegando que é
impossível, do ponto de vista técnico-científico que uma mulher seja violentada e não tenha
vestígios no seu corpo deixados pelo agressor, como hematomas em partes específicas e até
pelos pubianos.
O que me chama a atenção nessa reportagem é o fato da hipótese da mulher se
utilizar de artimanhas para acusar o agressor. Pressuponho que há um paradoxo nesses crimes
considerados como crimes de sedução e sexual, no sentido de quem é vítima e agressor. Penso
que o argumento da sedução pode ser visto num duplo sentido: ao mesmo tempo em que ele
significava uma ameaça, poderia servir como uma estratégia, da qual as mulheres se
utilizavam para tornarem-se vítimas.
Na reportagem do dia 25 de março de 1963, na matéria intitulada: ‘Milionário
seduz impunemente”, o Cinco de Março transcreve uma carta, que uma senhora enviou a
redação do jornal, alegando que foi seduzida por um “fazendeiro milionário, que após perdê-
la, por haver a mesma retornado ao lado de seu marido, procurou matá-la”. É curioso o fato da
mulher assumir sua traição, alegando que tornou-se amante do milionário porque foi
seduzida. Na carta escrita ao jornal, a senhora narrou:
[...] Meu nome é Carmelinda Gomes da Cunha, sou brasileira, casada [...]
No ano de 1961 fui juntamente com meu marido, João Vieira da Cunha,
morar na fazenda do Sr. André Vila Verde, [...] com o passar do tempo
fui seduzida pelo nosso patrão, tornando-me sua amante [...] Logo,
reconciliei-me com meu marido [...] Não satisfeito e inconformado, o
outro arquitetou um plano diabólico [...]. (Carmelinda Gomes da Cunha,
Milionário seduz impunemente. Cinco de Março, Goiânia, 25 de março
de 1963.p.08).
Através dessas denúncias de crimes sexuais, nota-se que eles eram apreendidos no
interior de um problema moral. Era através de categorias morais, como a própria sedução que
eles eram problematizados. Historicamente, a própria legislação defendia princípios morais
acerca desses. Para Cauelfield, a legislação, ao definir os conceitos e as penas relativas aos
crimes sexuais, baseou-se nos valores tradicionais de gênero, no sentido de preservar a honra
sexual das mulheres de famílias, ditas honestas, ao contrário das desonestas – prostitutas.
Todavia é interessante ressaltar que, nesses casos em que as mulheres (ditas
honestas) utilizaram-se da própria sexualidade feminina para simular um ato de violência
47
sexual, na estratégia de conseguirem se casar, ou até mesmo para justificarem a sua traição,
percebe-se a inversão de um dispositivo e de sua utilização estratégica. No interior de uma
moral que enquadra os corpos, ela pode ser invertida em prol daqueles a quem supostamente
deveria socorrer. Ou seja, enquanto a legislação definia as penas relativas aos crimes sexuais
contra mulheres apreendidas no interior de uma moral, as próprias timas invertiam esse
mecanismo a seu favor.
Contudo, o meu interesse não é perceber se as timas de fato se utilizavam do
pretexto de sedução seja para se casarem ou para outros motivos -, mas sim perceber como
esses crimes tornaram-se um problema para a imprensa. Nesse sentido, concebo que eles
significavam um problema devido a ameaça à honra da mulher e das famílias. O próprio
casamento era um mecanismo social ao qual as famílias podiam recorrer para reparar à honra
de suas filhas. Estrategicamente, os agressores poderiam utilizar desse mecanismo para se
livrarem da prisão.
Quando a sedução era seguida de estupro, a ruptura do hímen é que era levada em
consideração. Como foi ressaltado, ela representava a perda da honra feminina. No entanto,
segundo Cauelfield, da parte da legislação do século XIX, e início do século XX, todas as
definições sobre a defesa da honra feminina não tinham um critério claro. À ela eram
associadas às questões da cor e da classe social. Da mesma forma, os conceitos de família e
sexualidade não eram tão bem definidos no código de 1830.
Todas essas questões levaram os juristas brasileiros a tentarem elaborar novas
definições sobre esses conceitos. Vale ressaltar que, no livro de Cauelfield, aprofunda-se essa
discussão sobre o conceito de honra nos debates jurídicos, ressaltando o papel e a discussão
de cada grupo jurídico, junto às transformações sociais e poticas no final do século XIX e
início do século XX. No entanto, o que me desperta a atenção é que ela deixa claro que o
houve um movimento linear acerca desses conceitos na legislação, especificamente, o de
honra.
No digo penal de 1890, a defesa da honra das famílias passou a ser o principal
ponto a ser defendido. Ofensas como calúnias e injúrias continuaram sendo “crimes contra a
honra e boa fama”. Por outro lado, os crimes sexuais (incluindo estupro e defloramento)
deixaram de ser crimes contra as pessoas e passaram a ser considerados como “crimes contra
a segurança da honra e honestidade das famílias”. Os crimes de defloramento e estupro
ficaram caracterizados pelo ato do coito vaginal. Todavia, o alvo principal da proteção
legislativa era a honra, corporificada na mulher, através da definição dos crimes de estupro
48
(artigo 269) e de defloramento (artigo 267), consistente em “deflorar mulher de menor de
idade, e virgem, empregando sedução, engano ou fraude” (FAUSTO, 2002, p.161).
Como bem expressa Boris Fausto (2002, p.162), “não se tratava de proteger a
honra como atributo individual feminino e sim como apanágio do marido ou da família”. A
honra da mulher, nesse sentido, “era o instrumento mediador da estabilidade de instituições
básicas, como o casamento e a família”. Segundo o autor, a honra da mulher era sempre
julgada. No caso do estupro, o texto da lei permaneceu o mesmo do digo de 1830, que
distinguia a intensidade da pena pelo fato de a ofendida ser mulher honesta e honrada
(“virgem, se solteira, fiel ao marido, se casada”) ou prostituta.
Uma das únicas formas de reparar o defloramento de uma jovem honesta era a
promessa de casamento. No entanto, quando tratava-se de uma “mulher desonesta”, não havia
um consenso de como a lei deveria protegê-la. O código penal de 1890 punia o estupro de
prostitutas com uma sentença seis meses a dois anos. Porém, Cauelfield aponta que alguns
criminalistas eram contra qualquer tipo de penalidade para o estupro contra as prostitutas, pois
esse crime significava um crime contra a honra das famílias. Consequentemente, a prostituta
o deveria ter nenhuma proteção da lei.
Percebe-se, dessa forma, que a honra da mulher e da família se assentou na
legislação como uma das instituições a serem preservadas. No código de 1830, o sentido da
defesa da honra sexual era baseado num princípio individual, e no código de 1890 da família.
A partir do Código Penal de 1940, ocorrem algumas alterações. O crime de
defloramento, por exemplo, passou a ser definido como o de sedução: “seduzir mulher
virgem, menor de dezoito anos e maior de quatorze anos e ter com ela conjunção carnal”. Os
crimes sexuais passaram a ser rotulados de “crimes contra os costumes”. Segundo Fausto
(2002, p. 197 apud HUNGRIA e LACERDA, 1959), o termo crimes contra os costumes foi
empregado para designar os hábitos da vida sexual aprovados pela moral prática, ou o que
vale o mesmo, a conduta social adaptada à conveniência e disciplina social”. Para Fausto, essa
alteração se deve ao fato da legislação penalter perdido importância como instrumento
garantidor da estabilidade da família”.
Portanto, concebo que a honra da família e da mulher possuem toda uma
construção histórica e cultural que se materializou na legislação, e passou a se manifestar nos
crimes sexuais e de sedução. No entanto, é válido ressaltar que, no universo da pesquisa,
quando me refiro aos crimes de sedução, não significa que sempre ocorriam atos de estupro
ou defloramento. A própria tentativa de seduzir, em si, era considerada como um crime. Outro
ponto a ser sublinhado, é que os crimes sexuais e de sedução possuíam um duplo significado:
49
ao mesmo tempo que eles eram um problema de cunho moral e externo às famílias,
combatidos por elas mesmas, eles também eram cometidos pelas próprias famílias, contra
outras famílias, que procuravam reparar à honra perdida.
Na reportagem do dia 27 de abril de 1952, na primeira página, o jornal Cidade de
Goiás registrou a matéria intitulada “Condenado a sessenta e sete anos de Reclusão”, na qual
descreve que o réu, juntamente com seu filho, assassinou toda uma família, por motivo de
desconfiança de que um homem procurava seduzir sua mulher. Toda a família desse suposto
sedutor foi assassinada. Tipos de crimes como esse eram caracterizados como crimes de
defesa da honra da família, maculada por um sedutor.
Em outra reportagem do mesmo jornal, na qual uma seqüência de julgamentos
realizados no Tribunal de Júri da cidade, encontramos o registro de um crime que envolve o
problema da “desonra”: o réu mata um homem que tentou “desonrar” sua filha. Segundo o
jornal, o réu foi absolvido. (Sessão do Júri. Cidade de Goiás, 06 de agosto de 1939. p. 1).
Portanto, esses crimes envolveram a defesa da honra do núcleo familiar. Se
ocorria uma tentativa de crime sexual (defloramento, estupro ou o próprio ato de seduzir)
contra menores e mulheres de famílias, cabia às famílias reparar a sua honra maculada. Ferir a
honra sexual da mulher significava uma injúria para as famílias. Desse modo, muitas vezes, os
pais e irmãos das vítimas, para se vingarem dos supostos sedutores, os assassinavam.
Da pauta submetida ao Tribunal de Júri Popular de Pirenópolis, relativa a
fevereiro, o julgamento que despertou maior interesse do público foi o de
Valdomiro Pereira de Siqueira, lavrador, denunciado pela prática de
homicídio contra seu cunhado Roque Moreira [...] A irmã de Valdomiro,
esposa da vítima, vinha se queixando de maus tratos que lhe dispensava o
esposo Roque o qual, ultimamente, dedicava muitos cuidados à amante
que arranjara, deixando de cumprir com suas obrigações no lar [...]
segundo o próprio criminoso declarou em seu depoimento acabou por
detonar seis tiros de revólver contra o cunhado que teve morte
instantânea. [...] O julgamento [...] teve como representante do ministério
público o promotor [..] que procurou destruir a tese da legítima defesa da
honra [...] houve absolvição do réu por 5 a 2 [..] Matou para defender a
irmã: Júri absolveu. Cinco de Março, Goiânia, 03 a 09 de março de
1975.p.02).
Tratava-se do que podemos considerar como uma vingança de cunho privado.
Não havia nenhuma interferência direta da justiça e da polícia na punição desses crimes. Essas
instâncias apenas interferiam sobre esses casos quando as famílias não conseguiam resolver
entre si próprias a punição dos crimes, e buscavam o auxílio nessas esferas para punirem os
50
agressores. Assim, o argumento da legítima defesa da honra tamm era utilizado por parte de
pais de famílias ao defenderem suas filhas, ou pelos próprios irmãos na defesa da tima.
Essas atitudes também eram perceptíveis quando ocorriam casos de violência
sexual contra menores e moças de família nas localidades das zonas de meretrício. Como se
disse anteriormente, as famílias denunciavam ao Estado e a polícia os espaços da prostituição
como produtores de desordens morais que ameaçavam sua honra. A honra possuía um valor
externo e comunitário às famílias, e era defendida coletivamente. Destarte, ressalto
novamente que a violência contra a mulher entre as décadas de 1930 a 1970 só era perceptível
quando envolvia a defesa da honra das famílias. Portanto, pressuponho que ela era apreendida
como uma violência moral.
Não apenas em casos que compreendia uma suposta tentativa de sedução ou
desonra, como os casos citados acima, a honra também era o principal argumento utilizado
em crimes classificados como passionais, nos quais o agressor se apoiava no argumento da
legítima defesa da honra. No ano de 1975, foi publicada a matéria sobre a morte de um
motorista assassinado pelo seu ex-sogro, que quis vingar a morte de sua filha:
Assassinado pelo ex-sogro, morreu em Anápolis na penúltima semana o
motorista de caminhão Vitório Pires de Moraes, que em outubro do ano
passado tornou-se conhecido como principal protagonista do crime do
botijão de gás, matando a esposa a facadas, tiros e finalmente a golpes de
um botijão de cozinha [...] A morte de Vitório ocorreu na rua
Washington Carvalho [...] Tratava-se do pai da jovem mulher assassinada
pelo marido[...] Num homicídio passional que provocou à época muita
celeuma na opinião pública dadas as contradições das testemunhas [...]
Naquele dia, ele chegou à sua resincia por volta das 13 horas e,
encontrando a mulher em trajes sumários, iniciou uma briga [...] Ao se
apresentar a polícia, Vitório estava ferido na perna por um tiro, segundo
ele desfechado por sua esposa, a quem teria matado em legítima defesa
[...] alegou ainda o motorista, em seu depoimento, que encontrara um
homem em sua casa [...] O assassinato de Vitório segundo a opinião
pública de Anápolis, resultou de uma vingança típica de sua família [...]
o clima de violência acentuou-se com as pesadas acusações feitas por
Vitório à honra da morta [...]. (O crime do botijão de gás. Cinco de
Março, Goiânia, 03 de março de 1975. p.5).
Percebe-se que nesse caso, por uma questão de honra e de vingança, o sogro
assassinou o genro por ter matado sua filha. a tima, na época que assassinou sua esposa,
alegou ter matado em legítima defesa da honra, denegrindo a honra da tima. Torna-se claro
que foi um tipo de crime em defesa da honra das famílias. Como o próprio trecho da
reportagem descreve, parece que o crime foi uma vingança da família da vítima. Para reparar
a honra denegrida da filha, o pai se vinga do genro.
51
Todavia, esse crime é referente ao ano de 1975. Até o final da década de 1970 são
poucos os registros de crimes classificados como passionais. Quando eles são destacados nos
jornais, a categoria da honra como justificativa de tais delitos torna-se a pivô dos casos.
Porém, trata-se da honra familiar. É a defesa da honra da família, em seu conjunto, que deve
ser zelada. Não se trata da defesa da honra individual do agressor, como ocorre após o ano de
1980, quando a violência contra a mulher passa a ser apreendida como um problema social.
Após esse período, a honra transforma-se num argumento exclusivamente jurídico, no que a
maioria dos njuges de mulheres se utiliza para justificar a violência cometida contra suas
parceiras. De fato, nesse caso citado acima, o agressor utilizou-se do argumento de que
assassinou a esposa pela traição, defendendo assim a sua honra. Pom, o enfoque dado pelo
jornal é a vingança da família da tima. Posteriormente, o argumento da legítima defesa da
honra torna-se um dos pilares da impunidade acerca dos crimes passionais. A preocupação
será com o alto índice de mulheres assassinadas por seus parceiros que passam a se
defenderem apoiados no argumento de legítima defesa.
25
Diante desses casos de crimes sexuais, é interessante perceber o conceito de honra
sexual estabelecido por Cauelfield (2002, p.25), que o como “um conjunto de normas que
estabelecidas aparentemente com base na natureza, sustentavam a lógica da manutenção de
relações desiguais de poder nas esferas públicas e privadas”. Em Goiânia, nota-se que a
defesa da honra sexual era feita coletivamente no espaço público quando se tratava dos
interesses das famílias em conjunto, como é o caso da prostituição, e também era defendida
por algumas famílias isoladamente contra outras famílias, para reparar a honra perdida de
algum membro da família. Ou seja, as famílias detinham a honra como um digo
determinante de afirmação moral das condutas dos membros de família. A honra da vítima, ao
ser maculada, atingia diretamente a honra do núcleo familiar.
Segundo Farge, (1991, p. 589 apud COURTIN, 1675), desde o século XVI, a
honra constitui um bem fundamental, comparável ao bem da vida. É o que tornava os homens
estimados e valorizados. Consequentemente, a desonra era comparada à morte. Segundo a
autora, a honra foi tema comum nos textos sobre civilidade dos séculos XVII e XVIII. Era
preferível a morte do que sofrer uma injúria: [...]Perguntai ao primeiro que aparecer o que é
ter honra; ele vos responderá que é ter coração. Perguntai-lhe o que é ter coração; ele vos di
que é preferível morrer a sofrer uma injúria [...].
25
Essa discussão é retomada no terceiro capítulo.
52
Como foi citado anteriormente, Farge ressalta que para a família popular do
século XVIII, na cidade de Paris, a honra se constituía em um dos principais princípios a ser
zelado numa sociedade em que a vida pública e privada se confundiam.
Desde então, eram comum, “disseminar vidas sobre a virtude das mulheres”, o
que poderia ora atingir a própria mulher e até mesmo o homem ligado a ela. A mulher
seduzida ou abandonada, nem sequer poderia pensar em obter uma colocação que lhe
permitisse viver casada e criar filhos. A má reputação acarretava diversas conseqüências. A
honra perdida de um dos membros da família maculava o restante da família. Vários
parisienses recorriam à pocia para reparar sua honra. Assim, a família atingida em sua honra
precisava de reabilitação. Nesse contexto, havia numa mesma lógica de honra, movimentos de
defesa coletiva em relação às autoridades e defesas pessoais relativas a atos pessoais. Cabia
honrar pai e mãe e também as autoridades soberanas. (FARGE, 1991, p.595).
Estabelecendo uma conexão com a noção de honra, nesse contexto pesquisado por
Farge, noto que as famílias goianas defendiam sua honra diante de problemas blicos e
externos a elas, como é o caso da prostituição e de crimes sexuais e de sedução contra
mulheres de família. Esses problemas atingiam o âmbito do privado. E era da alçada das
próprias famílias repararem sua honra maculada.
Entretanto, quando essa violência torna-se um problema social - em que ela passa
a ser considerada como uma violência sica contra um ser humano, a qual deve ser
repreendida não apenas pelas famílias, mas também pela sociedade - a defesa da honra das
famílias deixa de ter tanta importância, e o que passa a ser questionado é o ato individual do
agressor, e o que o levou a cometer tal delito. A honra da família não será mais o ponto
principal de discussão do fenômeno da violência contra a mulher. Ela deixa de ser da alçada
das famílias. Surgem grupos sociais, como de mulheres autônomas e feministas, que irão
intervir pelas famílias diante dos crimes cometidos contra as mulheres. Mas não por uma
questão de honra, e sim, devido a uma agressão física cometida contra o corpo de uma
mulher. É essa agressão sica, e não moral, que será posta como um problema.
No que tange propriamente aos crimes sexuais, percebi uma preocupação da parte
dos jornais em registrar a ação competente da pocia e da justiça acerca de alguns crimes de
estupro e defloramento.
Durante o ano de 1970, o Cinco de Março registrou um caso polêmico noticiado
pelo jornal na época como a “Trinca de Irmãos Tarados”. Segundo esse jornal, esses três
irmãos agiam em conjunto, estuprando mulheres, principalmente adolescentes e menores. O
jornal registrava: “[...] a rapidez e a justeza da sentença do Juiz da 6ª Vara obtiveram ótima
53
repercussão nos meios judiciários e entre a população de Goiânia que ficou chocada com o
crime. (Justiça age com rapidez e acerto no caso do crime que abalou Goiânia: Irmãos
Tarados Condenados a 24 anos de Cadeia. Cinco de Março, Goiânia, 12 de outubro de 1970.
p.5).
Em outra matéria, na qual esses agressores cometeram um estupro contra uma
menor de 13 anos, a reportagem apontou que “[...] o delegado Paulo Edgard de Goidoy
Pinheiro não poupou esforços para que os tarados fossem presos em flagrante. A ação
eficiente do titular do DP foi elogiada, em ocio pelo Juíz Corregedor. (Trinca de Tarados
estupra menina de treze anos. Cinco de Março, Goiânia, 07 de setembro de 1970. p.1).
Creio que essa ação competente da pocia e da justiça, acerca dos crimes sexuais,
era reflexo de um problema moral que o estupro e o defloramento significavam. Em casos
como esse citado acima, em que a honra das menores não foi reparada através do casamento,
cabia à polícia prender esses agressores. A prisão dos agressores era a única forma de reparar
a honra perdida. Casos como o de defloramento da parte dos pais contra as filhas, em que o
mecanismo do casamento não poderia ser atualizado, demonstram que a última instância a
quem as famílias poderiam procurar para reparar a honra maculada era a pocia. Em
novembro de 1969, por exemplo, é publicada a matéria sobre um pai dentista que “violentou
uma filha de 6 anos, a qual tornara-se amante do próprio pai ”. O jornal registrou que a garota
foi levada ao médico que constatou o defloramento praticado a algum tempo, e dessa forma, o
pai foi indiciado de acordo com o artigo específico do código penal. (Dentista violentou filha
de seis anos. Cinco de Março, Goiânia, 10 de fevereiro de 1969.p.19).
Em raras exceções, tratando-se de crimes sexuais, o Cinco de Março registrava a
falta de ação da pocia e da Justiça. Geralmente ela era relativa aos casos ocorridos nas
cidades do interior. Um exemplo é o caso polêmico do delegado de pocia da cidade de
Goianésia, Nilo Pereira Ribeiro, antigo sargento da pocia militar do Estado de Goiás. As
notícias registravam que o delegado praticava extorsões, violências de todas as categorias e
principalmente, crimes sexuais: da série de crimes sexuais praticada pelo sargento monstro,
um deles foi devidamente comprovado pelo fazendeiro Antônio Ernesto, que por um motivo
qualquer foi levado a prisão e escutou o sargento dizendo: não se preocupe com isso, e todas
as moças que você achar no jeito, não perca a vaza e em cima”. (O caso de Nilo Branco.
Cinco de Março, Goiânia, 05 de fevereiro de 1962, p.8).
Esse assunto foi registrado com ênfase pelo jornal no decorrer de vários anos.
Penso que o fato de que tratava-se de um membro da própria polícia, de um delegado, fez com
que o jornal denunciasse a falta de ação da polícia do Estado de Goiás. Ou seja, não era
54
possível admitir que aquele a quem se deveria recorrer em última instância para reparar um
ato violento que ofendia a moral da mulher, deslegitimasse a instituição com seus próprios
atos. Noto que a polícia era um dispositivo que auxiliava as famílias a forçar um casamento e
punir os agressores de crimes sexuais. Portanto, o fato de um próprio membro da pocia
cometer tais delitos era inaceitável.
Nos outros casos de defloramento e estupro noticiados pelos jornais, detectei dois
fatores que permaneceram constantes. Os agressores eram sempre caracterizados como
sedutores, e algumas vezes “anormais”; o jornal sempre indicava que o agressor foi indiciado,
e logo elogiava a ação eficiente da Justiça. Como exemplo, ressalto o caso do pai que
violentou suas três filhas:
[...] Pedro Souza Barbosa residente na Rua 43 s/n, Fama, estuprou suas
três filhas menores de nove, dez e doze anos, respectivamente [...] O
anormal violentou a filha mais velha quanto esta tinha apenas seis anos
de idade [...] A prisão preventiva do indiciado foi decretada pelo juiz
Jales Ferreira da Costa, da Vara Criminal de Goiânia. Aliás é de se
elogiar a atuação desse magistrado que imprime funcionabilidade nos
casos que lhe são entregues. (Pai violentou suas três filhas menores.
Cinco de Março, Goiânia, 21 de setembro de 1970, p. 17).
Dessa forma, diante desses casos noto que cabia às famílias reparar a honra
perdida quando suas filhas fossem desonradas ou seduzidas. Quando não havia como
remediar a honra perdida através do casamento, a única solão era clamar pela atuação da
polícia. De toda forma, parece-me que a solução através do casamento era a melhor reposta
para as famílias. No interior de Goiás, na cidade de Ipo, esse fato parecia ser constante:
[...] No Cartório do Crime da Comarca, estão registrados 14 processos de
estupro e sedução, sendo três deles verificados em fevereiro. O juiz Tito
Mendanha, que está com mais de 760 processos em andamento, informa
que tem feito cerca de cinco a seis casamentos mensais com separação de
corpos, casos acontecidos com menores em que as famílias solucionam o
problema sem a interferência da polícia. (270 ações de desquite, em
1974, na comarca de Iporá, levam juiz a pedir a instituição urgente do
divórcio. Cinco de Março, Goiânia, 24 de fevereiro a 2 de março de
1975. p. 2 ).
Nesse sentido, creio que o mecanismo do casamento, sem a intervenção da
polícia, era uma forma das famílias não precisarem expor a honra perdida de suas filhas,
tornando pública a perda da virgindade ou uma agressão sexual. A partir de vários casos de
55
estupro noticiados pelos jornais, percebo que as próprias famílias solicitavam a ação eficiente
da polícia e condenavam esses casos que ocorriam no espaço público. Em vários casos,
ocorria a própria tentativa de linchamento do agressor, da parte das famílias.
Quando o mecanismo do linchamento era perceptível, os jornais registravam a
tamanha comoção social em torno desses crimes. Numa matéria do ano de 1979, foi publicado
o epidio de um estupro, em que o agressor foi preso por populares e sofreu tentativa de
linchamento numa região próxima ao local do crime: Estava desgostoso e bebi muito. Não
me lembro o que aconteceu com a menina”. (Tarado espancado após estuprar menina. Cinco
de Março, Goiânia, 02 a 09 de setembro de 1979. p. 9). No ano de 1975, outro acontecimento
era registrado pelo jornal com o título Sei que estou marcado para morrer”, frase do acusado
declarada à pocia que mobilizou-se com o caso:
[...] As aulas mal haviam terminado quando a menina S.F.F, de 12 anos
de idade, entrou na quadra do Instituto de Educação de Goiás [...] para
abrigar-se da forte chuva que caia. Um desconhecido aproximou-se,
sorridente de boa aparência, e a tranqüila confiança da estudante
transformou-se momentos depois em nico e terror [...] o rapaz
empurrou-a sob ameaça rumo a um capinzal existente nos fundos do
colégio e a violentou. Horas depois, enquanto a menor era internada num
dos hospitais da cidade, a polícia se mobilizava na captura do criminoso
[..] (Sei que estou marcado para morrer. Cinco de Março, Goiânia, 24 a
12 de março de 1975. p.1).
Entretanto, concebo que o estupro o era visto como um ato de violência sico e
psíquico contra a mulher, mas sim contra uma moeda social importante, a honra. Por isso,
poderia haver a sua reparação, através de mecanismos sociais como o casamento, ou em
última instância pela prisão do agressor. Nesse sentido, o que estava em julgamento não era o
crime, a lesão contra a tima, mas como esses delitos afetavam à honra das famílias. O que
movia a decisão de condenação ou absolvição era a preservação da honra da família.
Assim, esses crimes eram compreendidos no interior de uma violência moral que
as famílias sofriam, da perda da honra das “mulheres de família”, ligada a princípios como o
da virgindade. Os crimes sexuais envolviam justamente a parte sexual das mulheres que
historicamente se constituiu como o princípio da honra sexual. Quando essa honra sexual da
mulher era atingida, a honra das famílias era maculada e muitas vezes exposta, diante da
sociedade. Era essa violência moral que a sociedade condenava. Assim, creio que o estupro
deixava marcas na alma dessas mulheres, na moral das famílias.
56
Por fim, o que me interessa frizar, é que parte dos casos de violência contra a
mulher nas primeiras décadas da cidade de Goiânia, até a década de 1970, tornava-se um
problema para os jornais quando ocorria nos locais conectados às zonas de meretrício, ou era
relativa aos crimes sexuais e de sedução. A prostituição é que foi destacada como o principal
problema a ser combatido, pois atingia direta ou indiretamente a honra e a moral das famílias
goianas, o que pressuponho ter sido a preocupação central dos jornais e da sociedade. Os
crimes sexuais e de sedução que não ocorriam nesses locais tornavam-se um problema na
medida em que representavam uma ameaça à honra sexual das mulheres e das famílias.
1.3 A IMPUNIDADE DOS AGRESSORES DE MULHERES:
UM REFLEXO NEGATIVO DA VIDA CITADINA
Como foi exposto acima, a maioria dos casos de violência contra a mulher
registrada nos jornais, nas primeiras décadas da cidade de Goiânia, envolvia o fenômeno da
prostituição, ou se referia a crimes sexuais e de sedução. Todavia, encontrei outros casos que
o envolviam diretamente esses problemas. Uma das preocupações dos jornais era em
destacar a impunidade dos criminosos, principalmente daqueles que possuíam um alto poder
aquisitivo. As manchetes registravam: “Miliorio matador continua impune: embriagado
fulminou esposa incauta”; “Matador da esposa adúltera será julgado em abril: júri”; “Matador
da Caminhoneta azul: Hospital psiquiátrico virou presídio milionário”; “Cortina de Silêncio
Envolvendo Inquérito do Raptor Milionário”.
26
Esses crimes exemplificam uma das principais denúncias feitas pela imprensa
escrita entre as décadas de 1940 e 1980: a de que a Justiça em Goiás protegia os criminosos
pertencentes às classes sociais altas, que ficavam impunes. No caso de um raptor milionário, o
jornal registrava:
Encontra-se em tramitação no 1° distrito policial um inquérito por crime
de rapto e estupro que pela circunstância de envolver um rapaz mineiro,
filho de importante família mineira com ramificações em nosso estado,
vem sendo cercado de uma espessa cortina de silêncio [...] a jovem, num
primeiro momento, não quis denunciar devido ao prestígio do pai do
sedutor [...] posteriormente, ela foi submetida a exame pericial, após o
26
Reportagens do Jornal Cinco de Março referentes às seguintes datas: 31/12/62, p.03; 18/02/63, p.1; 21/01/63,
p.5; 05/05/70, p.4.
57
que foi instaurado inquérito visando a punição do raptor
milionário.”(Cortina de silêncio envolve inquérito do raptor milionário.
Cinco de Março, Goiânia, 05 de maio. 1970. p.4).
É interessante perceber que, nesse caso, classificado como crime de sedução
seguido de estupro, o jornal fez questão de notificar a impunidade do agressor, já que se
tratava de um “milionário”. Essa impunidade também significava o reflexo de um problema
moral. Como vimos anteriormente, o primeiro dispositivo de reparação da honra perdida era o
casamento. Quando o ato do casamento não era possível, as famílias recorriam à pocia para
intervir, forçando o agressor a se casar ou ser preso.
No crime citado acima, vemos que o agressor permaneceu impune. Quando a
impunidade era recorrente, a falta de ação da justiça era combatida, pois ela tornava-se a
última instância a quem recorrer, quando não era possível reparar a honra através do
casamento. Em casos de relações conjugais violentas, como os destacados nas manchetes
acima, a única forma de reparar a honra era através da prisão do agressor. Ao dar queixa na
polícia e ver que o algoz permanecia impune, era necessário levar o caso a justiça. A
impunidade tornava-se inadmissível.
Creio que em casos como esses não era apenas a honra da tima e de sua família
que era exposta e colocada em risco, mas também a honra da família do agressor. Levar o
caso à justiça, significava expor a filha e sua família a toda a sociedade. Por outro lado, esse
ato desmoralizava a família do agressor. No trecho da reportagem citado acima, percebe-se
um temor da parte da própria tima em denunciar o criminoso devido ao prestígio da família.
Tratava-se de uma família de reputação e alto poder aquisitivo. Nesse sentido, uma denúncia
contra um agressor pertencente a uma família de alto poder econômico, macularia a honra
dessa família. De toda forma, independente do poder aquisitivo do agressor e de sua família,
cabia a justiça restaurar a dignidade da família da tima, quando esta não era restabelecida
através de estratégias adotadas pelas próprias famílias.
Nos casos de relações conjugais violentas, a impunidade sempre prevalecia, sendo
o principal problema combatido pelos jornais. Como tratava-se de famílias com alto poder
econômico, parece que a justiça era falha: “[ ...] Mais uma vez, terrível cena de sangue vem
trazer-nos provas cabais de recuo da justiça [...] assassinar e ficar no arquivo da impunidade
basta ter dinheiro [...]” ( Milionário matador continua impune: embriagado fulminou esposa
incauta. Cinco de Março, Goiânia, 31 de dezembro.1962. p. 2).
58
Um dos acontecimentos marcantes na década de 1960 foi o do assassinato de
Belgina Marques Rezende. Ela era funcionária do Cepaigo (Centro Penitenciário de
Atividades Industriais do Estado de Goiás) e foi encontrada morta, após ter sido vista pela
última vez com o sobrinho do ex-governador Pedro Ludovico, um fiscal de rendas do Estado,
chamado João Alberto. Segundo os jornais, ele confessou o crime, logo após ter cometido o
assassinato, alegando que Belgina o abandonou para se casar com o diretor do presídio.
Todavia, anos depois, João Alberto negou o homicídio e foi submetido a dois júris populares
sendo absolvido por unanimidade por inexistência de exame de corpo de delito.
Esse crime ocorreu no dia 20 de abril de 1965 e foi registrado com ênfase no
decorrer das décadas de 1960 a 1980, pois o criminoso era parente do ex-governador do
Estado, além dele ter sido absolvido. No dia 31 de maio de 1965, o Cinco de Março registrou
esse caso, com a seguinte manchete: “Matador de Belgina Marques Resende lubridia a Justiça
e Escapa à Lei”.
É perceptível que os jornais, sobretudo o Cinco de Março, faziam questão de
registrar a impunidade dos agressores, principalmente daqueles pertencentes à famílias de
camadas altas da sociedade. No entanto, meu interesse não é destacar se os agressores de
mulheres possuíam um alto poder aquisitivo ou não, e se a justiça em Goiás era falha diante
da impunidade, mas sim em tentar compreender, como esses problemas eram aprendidos
pelas famílias e pela própria imprensa. Nesse sentido, percebo que a impunidade era vista
como um problema que desonrava a imagem e a honra das famílias. Além disso, noto que ela
também maculava a imagem da cidade de Goiânia e do Estado de Goiás. Nas primeiras
décadas da cidade, parece que a preocupação maior acerca da impunidade, era com a imagem
do Estado em ascensão perante a opinião pública:
[...] Lamentavelmente, no entanto, contrapondo-se a esse progresso
extraordinário, grassa no território goiano um mal que córroi os alicerces
do seu conceito de Estado em ascensão é a impunidade. Essa terrível
doença, oriunda de nossa formação política e social, tem contribuído de
modo protuberante para o achincalhamento do nome de Goiás, para o seu
descrédito diante da opinião pública nacional [...] “E’ realmente
lastimável que a terra do Anhanguera, a qual no momento se prepara para
acolher a “massa cinzenta” da nação, sirva de estímulo, para o crime [...].
(Impunidade: Mãe do Crime. Brasil Central, Goiânia, 03 de fevereiro.
1957. p. 02).
A impunidade e a criminalidade eram vistas como uma ameaça à imagem da
cidade de Goiânia e do Estado de Goiás perante a nação. Nas décadas de 1940 e 1950, a
59
cidade de Goiânia passava por um momento de crescimento econômico e demográfico. Os
jornais registravam como ela começava a adquirir o aspecto das grandes metpoles, a evoluir
em todos os setores da atividade humana, e ao mesmo tempo, possuir “terríveis mazelas
sociais, atestado eloquente da miséria humana”. (Crimes + Crimes = Impunidade. Cidade de
Goiás, 14 de abril, 1957. p. 4). Nessa reportagem, percebo que a preocupação com os casos de
violência, a mendicância, a própria criminalidade e a ausência de meios adequados de
repressão ao crime, eram reflexos negativos da vida citadina. O crime em si era visto como
um problema de âmbito regional: “Em Goiás, cadeia para rico é mito”. Essa matéria refere-se
ao ano de 1957. No ano de 1964, o Cinco de Março continuava a publicar manchetes dessa
natureza: (Relação dos grandes processos paralisados nos Cartórios do Crime ou
desaparecidos, envolvendo figurões de dinheiro e da potica! Justiça em Goiás protege os
ricos! Cinco de Março, Goiânia, 28 de dezembro de 1964, p.2).
Dessa forma, torna-se evidente a inquietação do jornal com a criminalidade e a
impunidade desde as primeiras décadas de Goiânia e, consequentemente com a imagem da
cidade. A preocupação com a criminalidade na cidade era associada à necessidade de produzir
uma cidade civilizada. O jornal Brasil Central deixava evidente essa questão:
Goiânia, a capital caçula do Brasil, tão decantada por seus foros de beleza
e progresso, com uma vintena de existência, tem um grande e grave
problema que está a deturpar tudo que dela dizem, pois nunca poderemos
ser considerados um povo civilizado, nunca deixaremos de ser taxados de
cangaceiros se o crime não deixar de campear a solta (...). (É preciso agir
senhor Juiz. Jornal Brasil Central, Goiânia, 22 de fevereiro de 1957.p.5).
Nota-se a ligação do crime como um problema de ordem civilizatória, que denigre
a imagem da cidade de Goiânia voltada para o progresso. Essa preocupação com a cidade
voltada para o progresso, é vista desde o momento em que ela foi idealizada pelo governador
Pedro Ludovico Teixeira, em 1932
27
. Ludovico desejava a transferência da capital do Estado
de Goiás, da antiga Cidade de Gos, para uma nova cidade, Goiânia. Ele acreditava que
Goiânia romperia com o atraso da Cidade de Goiás e simbolizaria um novo espaço urbano
caracterizado pelo progresso e modernidade. Ele almejava que Goiânia atraísse rias pessoas
e dinamizasse a economia do Estado (GOMIDE, 2003). No trecho da matéria acima, o autor,
ao afirmar: “nunca deixaremos de ser taxados de cangaceiros se o crime campear a solta”,
27
A cidade de Goiânia foi idealizada por Pedro Ludovico no ano de 1932 e iniciada no ano de 1933. Porém,
apenas em 1937 é que ocorreu definitivamente a transferência da antiga capital do Estado para Goiânia. Em
1942, Goiânia foi apresentada à nação através do conhecido batismo cultural.
60
simboliza bem a dicotomia entre o arcaico e novo; luta que efetivou-se no plano concreto e
simlico, na transferência da capital da cidade de Goiás para Goiânia. Ser taxado de
cangaceiro simbolizava a não - civilização, um obstáculo para o progresso.
Como aponta Nasr Fayad Chaul (2000, p.122/123), a construção de Goiânia está
ligada à expansão de fronteiras, mais precisamente na chamada Marcha para Oeste, durante o
Governo Vargas. Um dos projetos primordiais do Estado Novo foi sua tentativa de integração
e unificação do interior do Brasil através do tema da Marcha para o Oeste. Vargas visava a
inserção das regiões na construção da nação. Nesse contexto, Chaul aponta que na Marcha
para o Oeste, “Goiânia era o símbolo desse novo Brasil grande, do novo, do progresso, que
levava o Estado de Goiás a sair do marasmo político-econômico”. Nesse sentido, Goiânia
sustentaria a iia de modernidade substituindo a de decadência e atraso.
A propaganda oficial do governo do Estado dizia que Goiânia era um mundo de
possibilidades, uma terra de oportunidades. Goiânia seria a filha mais nova do Estado Novo.
Essa propagação atraiu um fluxo migratório de pessoas, especialmente nas décadas de
1940/50. As 1955, essa atração foi reforçada pelo projeto de construção de Brasília, durante
o governo de Juscelino Kubitschek. A cidade de Goiânia teve uma importância estratégica na
construção da nova capital federal.
Ao lado da propagação dessa imagem positiva da cidade, os jornais locais, na
década de 1950, difundiam os problemas que persistiam na cidade. Em outra reportagem, o
jornal Brasil Central, chegou a apontar Goiânia como um centro que está na “vanguarda dos
crimes”: assaltos, roubos, espancamentos “[...] fica-se até temeroso de sair à noite em Goiânia
[...]. (Crimes. Brasil Central, Goiânia, 10 de fevereiro.1957. p.01).
Essa preocupação também era vista em relação ao problema do menor
abandonado. No dia 27 de janeiro de 1957, na primeira página, o Brasil Central publicou uma
matéria intitulada “Pequenos Vigaristas”, na qual o problema do menor abandonado na cidade
de Goiânia, gerava para ela, uma imagem de cidade abandonada: “[...] crianças de 6 a 15 anos
enchem nossas ruas com pedidos suplicantes e implorações [...] A nossa capital atualmente é
centro de turismo. Não podemos mostrar aos visitantes a face da vadiagem e desorganização
social [...]”. Quando se tratava da própria criminalidade infantil, os jornais registravam que os
menores abandonados também se apoiavam na impunidade.
Assim, pode-se pensar que parte dos casos de violência contra a mulher, também
tornava-se um problema na medida em que refletiam algum aspecto que pudesse denegrir a
imagem da cidade, que estava conectada à imagem das famílias. No caso, a impunidade dos
agressores de mulheres era um desses aspectos. Creio, que todos esses problemas, como o da
61
criminalidade, do menor abandonado, da própria prostituição, dos crimes sexuais e de sedução
eram apreendidos como femenos que de certa forma atingiam a moral da cidade e das
famílias:
[...] O que não pensarão do conceito moral da família goianiense, os
visitantes que m, sabendo que infelizmente, a hoje as mulheres
honestas, as moças, as criaas do Setor dos Funcionários, merecem o
pouco apreço das autoridades? [...]. (Remoção do Meretrício: Mães
desesperadas lutam pela honra de suas filhas. Cinco de Março, Goiânia,
22 de junho. 1964.p.05).
A preocupação com o conceito da moral da família perante seus visitantes é
tida. Assim, a honra das famílias, ao ser exposta e agredida moralmente, colocava em risco
a imagem da cidade. Noto que para manter a imagem de uma cidade civilizada, com ideais de
modernidade e progresso, Goiânia deveria preservar a imagem da família goianiense. Para
tanto, era necessário sanear moralmente a cidade e afastar todos os fenômenos que pudessem
atingir a honra das famílias. A instituição da família deveria se identificar com princípios de
honradez e civilidade.
Aqui, sublinho novamente o fato de que nas primeiras décadas da cidade de
Goiânia, todos os problemas que circundavam a violência contra a mulher estavam inseridos
num problema de ordem moral. Percebe-se que num determinado momento, os crimes contra
a mulher eram intrínsecos ao problema da prostituição que ameaçava a honra das famílias.
Eles eram efeitos da desordem moral que a prostituição gerava. Os crimes sexuais e de
sedução que não ocorriam próximos às zonas de meretcio também atingiam a honra das
famílias. A honra maculada das mulheres é que colocava em cena determinados dispositivos
sociais, como o casamento e a polícia, que poderiam reparar a honra das famílias. Nesse
pico, vemos que a impunidade também era resultante de uma falta de ação da justiça
relativa à defesa da honra das famílias. Ao mesmo tempo, ela era um reflexo negativo da vida
citadina, que ameaçava a honra da cidade. Para manter a imagem da cidade, era necessário
preservar a honra das famílias.
Ou seja, toda essa rede de relações que envolveu os casos de violência contra a
mulher, até a década de 1970, era apreendida no interior de um quadro moral. Essa violência
contra a mulher era visível quando maculava a honra das famílias, quando estava ligada a
problemas que direta ou indiretamente atingiam os núcleos familiares. Os próprios
dispositivos como o Estado, a polícia e a justiça apenas interviam na esfera do privado.
quando tornavam-se o último recurso a quem elas poderiam recorrer. Entretanto, esses
62
dispositivos agiam apenas nos limites dos problemas que atingiam a honra familiar.
28
Os
crimes contra a mulheres ainda não eram vistos como um problema social, que tinha suas
raízes nas falhas do tecido social, e que portanto deveria ser combatida pelas esferas
institucionais.
De toda forma, no que tange à denúncia do problema da impunidade, como vimos
nos casos citados acima, ela estava diretamente ligada à denúncia da falta de ação da pocia e
da justa do Estado de Goiás. A ineficiência desses órgãos também era registrada como um
reflexo negativo para a imagem da cidade:
Não, não podem continuar as arbitrariedades dos encarregados de manter
a ordem, de salvaguardar os habitantes de nossa Capital. A todo momento
temos notícias alarmantes de atos desumanos praticados pelos
representantes da lei. A aplicação da justiça está ou não está
concorrendo para aumentar as estatísticas de crimes em nosso Estado?
[...] Por isso os patrícios de outros Estados falam de nossa terra no que se
refere à segurança, e à sem cerimônia de dar cabo à vida do próximo,
pois a própria polícia é quem dá exemplo [...]. ( Aluízio Mendonça.
Polícia Acéfala. Brasil Central, Goiânia, 13 de janeiro de 1957.p.3 ).
Acredito, que a ação da polícia como um órgão eficiente, que prevenisse e
combatesse os crimes que ocorriam nos espaços públicos, e que maculavam a honra da
cidade, condizia com a imagem do Estado, e especialmente da cidade de Goiânia, como um
espaço capaz de receber novos habitantes, que fornecesse uma infra-estrutura adequada de
uma cidade e de um Estado moderno. Para tanto, o jornal ressaltava a necessidade da ação
eficiente da polícia e da Justiça. Da mesma forma, a desordem blica presente nas ruas de
Goiânia era alvo de pedidos de ação eficaz da polícia. O jornal Brasil Central fazia questão de
registrar suas reclamações com a Delegacia de Polícia da Cidade :
Insistentemente, por estas colunas temos solicitado as vistas da Delegacia
de Polícia para a Vagabundagem que campeia nos principais logradouros
públicos da cidade, onde desocupados promovem desordens, cometem
dasatinos, quebram vidraças, danificam veículos, vaiam transeuntes e
usam de linguagem pornográfica que ferem os ouvidos de senhoras e
senhoritas que transitam nesses lugares, dos quais o centro é a praça da
Liberdade, onde está localizado o Jardim Público. (Vagabundagem.
Brasil Central, Goiânia, 22 de agosto de 1956. p.3).
28
Retomo essa discussão no II capítulo.
63
Observa-se um apelo à pocia para r ordem às ruas blicas da cidade, do
centro e da localização do jardim blico contra a vagabundagem. Novamente, vemos que a
questão da moral das “senhoras” e “senhoritas” era exaltada. Era necessário afastar dos
espaços públicos a desordem moral que “desocupados” promoviam e que atingiam
moralmente mulheres de família.
Essa ligação entre o saneamento moral dos espaços da cidade e a preservação da
imagem das famílias foi vista no período da “belle époque” na cidade do Rio de Janeiro. No
final do século XIX e início do século XX, os administradores municipais decretaram uma
série de medidas autoritárias para sanear e civilizar o centro da cidade. O objetivo era criar
uma cidade moderna e civilizada. As poticas implementadas eram feitas em nome da higiene
social e da saúde blica, tanto da cidade quanto das famílias. Portanto, foram adotadas
medidas de controle sobre a prostituição e crimes sexuais na defesa da honra sexual. Segundo
Cauelfield, parte dos juristas brasileiros, até as décadas de 1920 e 1930, acreditava que a
defesa da honra feminina era sinônimo de civilização. A proteção da honra sexual das
mulheres pelo poder público era marca do progresso e da civilização. (CAUELFIELD, 2000).
Assim, acredito que em Goiânia, a defesa da honra sexual feminina, e
consequentemente das famílias, era associada à defesa da honra da cidade. Todavia, ao
contrário da realidade da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX, apontada por
Cauelfield, a honra das mulheres e das famílias em Goiânia não era defendida pelo poder
público. Era da alçada das próprias famílias defenderem sua honra. Por isso, constantemente
as famílias queixavam-se às redações do jornal sobre a falta de ação do Estado e da polícia
acerca dos fenômenos que causavam desordem moral nos bairros que residiam. Parece-me
que cabia à imprensa defender a honra das famílias e da cidade.
No ano de 1922, o termo “vagabundagem já era registrado e combatido nos
jornais do Estado de Goiás. Da mesma forma, o apelo era feito à pocia do Estado, e a
preocupação era relativa à organização da sociedade:
Não somos nós somente: é toda a sociedade que apella para o exm.dr.
Chefe de Policia, pedindo serias e imediatas providências, afim de que
seja reprimida a vagabundagem nesta capital [...] O número de
desocupados, desde tempos vem tomando proporções [...] e ameaça a
ordem natural de uma sociedade bem organizada [...] A vagabundagem é
a melhor companheira de todos os vícios: acoroçoa o furto e a
devassidão, a embriaguez e o crime [...]. (Vagabundagem. A Imprensa,
Goiânia, 18 de março de 1922. p. 2) .
64
Outro exemplo que implica na articulação dessa ameaça a imagem das famílias e
da cidade é o caso registrado nos jornais na época por “Chapas Branca”. Esse termo refere-se
a algumas viaturas públicas, identificadas com placas brancas. Essas viaturas pertenciam aos
altos funcionários do governo e circulavam pela cidade, principalmente nas zonas boêmias,
onde transitavam “ameaçando a integridade física de crianças e senhoras que por elas
transitam”. (Chapas Brancas. Jornal Brasil Central, Goiânia, 19 de agosto.1972, p. 3).
Segundo a imprensa, os homens que dirigiam essas viaturas assediavam moças de famílias e
prostitutas. O problema dessas viaturas era relacionado à questão da degradação pública, da
ameaça à moral de cada família. Mais uma vez, vemos o jornal noticiarr a sua denúncia contra
a falta de autoridade do governo:
[....] Causa-nos repulsa assistir a degradação pública que vem tomando
conta de nosso torrão, como seja, o pouco caso que fazem nossos
governantes para com a coisa pública. Estas viaturas oficiais deveriam
merecer melhor atenção de nossos poderes, dando a ela a sua devida
aplicação, punindo os irresponsáveis [...]. (O problema das viaturas.
Cinco de Março, Goiânia, 25 de junho de 1976. p.7).
Nesse sentido, acredito que a imprensa tratava de proteger a honra das famílias e
da cidade. Havia, uma concepção cívica da honra defendida pelos jornais. Esse conceito é
definido por Farge (1991), segundo a qual a honra cívica se define cada vez mais pelo respeito
à boa ordem geral da cidade. No entanto, no seu trabalho, ela percebe essa concepção cívica
da honra exercitada pela Pocia e pelo Estado.
Como já foi destacado, ao pesquisar sobre a família popular no século XVIII, na
cidade de Paris, através dos interrogarios e depoimentos policiais, Farge ressalta que a honra
se constituía um bem fundamental para as famílias e era uma necessidade blica e privada.
Havia uma ligação entre a tranqüilidade pública e familiar. Dessa forma, cabia à polícia a
tarefa de manter e zelar pela manutenção da ordem pública, o que consequentemente
garantiria a tranqüilidade das famílias. Para Farge, essa manutenção da ordem blica se
associava à iia de civilidade.
Através do diálogo com Norbert Elias, a autora nos mostra que num determinado
momento, a iia de civilidade passa a ser promovida fora das práticas tradicionais da corte e
da magistratura para ser transformada em norma social. Segundo ela, “já não é uma classe ou
grupo que deve encarnar a civilidade, e sim o próprio Estado, a sociedade como um todo”.
Inicia-se assim um processo de civilização no qual tudo que parece bárbaro, violento e
65
irracional deve refinar-se ou desaparecer. A pocia torna-se um dos meios mais seguros de
obter um mínimo de civilização onde reina a confusão (FARGE, 1991, p. 604).
Desse modo, penso que o problema da honra cívica associado à idéia de
civilização é visível nas primeiras décadas de Goiânia. Qualquer tipo de manifestação ou
criminalidade que estivesse associada à degradação pública eram reflexos negativos da
cidade, que poderiam ser obstáculos à imagem de uma cidade civilizada. Todavia, é
interessante ressaltar que, ao contrário da realidade parisiense pesquisada por Farge, em que
essa honra cívica era defendida e exercitada pelo Estado e pela Pocia, em Goiânia parece
que essa defesa era feita pela própria imprensa.
Percebe-se nitidamente a denúncia da parte dos jornais da falta de ação dos
governantes e da polícia em relação à impunidade e à desordem blica e moral presente nos
bairros da cidade. Além disso, afirmava-se que a própria desordem era cometida pelos
próprios governantes. Os carros que circulavam com Chapa Branca eram dirigidos por oficiais
do governo. Eles freqüentavam as zonas boêmias, da mesma forma que vários policiais.
Assim, as famílias, através da redação dos jornais, solicitavam uma ação da pocia e do
Estado.
Portanto, considero necessário frizar e retomar o que tomei como ponto de partida
nesse tópico do trabalho: a impunidade dos agressores de mulheres. Vimos que essa questão
levou alguns casos de violência contra a mulher a se tornar um problema para a imprensa.
Essa impunidade estava diretamente ligada à falta de ação da pocia e da Justiça do Estado.
Consequentemente, o problema do menor abandonado, os diversos tipos de criminalidade, a
desordem blica e a própria prostituição refletiam aspectos negativos da imagem da cidade
de Goiânia e das famílias. Todos esses fenômenos estavam ligados à defesa da honra das
famílias.
A partir dessas discussões é interessante notar que não como dissociar a rede
de articulações que se formava entre o papel do Estado, da Polícia e das Famílias. As famílias
queixavam-se da falta de ação do Estado e da pocia diante dos fenômenos morais que as
ameaçavam. Assim, existia um mecanismo social em relação ao papel do Estado e das
famílias. Cabia ao Estado e à polícia reparar e proteger a honra das famílias. O não
cumprimento do dever dessas instituições era combatido pela imprensa. Na seqüência, irei
abordar a relação entre esse mecanismo, o papel do Estado e da polícia diante dos problemas
que ameaçavam a dignidade das famílias, e então, problematizar a atuação da imprensa na
sociedade, a qual, pressuponho ter intervido nas formas de condutas das famílias, do Estado e
da pocia.
66
CAPÍTULO II
A FAMÍLIA, O ESTADO E A IMPRENSA
2.1 AS RELAÇÕES ENTRE A FAMÍLIA, O GOVERNO E A POLÍCIA
Diante das análises feitas acerca dos casos de violência contra a mulher, torna-se
claro que os problemas que os circundavam e os colocaram como objeto de discussão na
imprensa escrita estão direta ou indiretamente ligados à família.
No caso da prostituição, percebe-se que o fato dos bairros familiares se
localizarem próximos das zonas ou comportarem penes de prostíbulos, significou uma
ameaça à honra das famílias goianas, as quais queixavam-se da falta de ação da pocia e do
Estado em relação às zonas de meretrício. Cabia ao Estado providenciar um local específico
para esses prostíbulos, zonas de tolerância distantes dos espaços familiares.
Parte dos crimes sexuais, como os de sedução e estupro, também foi apreendida
como uma ofensa à honra das famílias. Na própria legislação, esse fato é perceptível. Nas
primeiras cadas de Goiânia, as famílias recorriam à pocia e à justiça para reparar a honra
perdida da tima de crime sexual, quando o mecanismo do casamento não fazia efeito. Os
jornais faziam questão de registrar a ação da pocia relativa à prisão dos agressores. Da
mesma forma, grande parte dos casos de violência contra a mulher no âmbito conjugal era
discutida na imprensa quando a impunidade era recorrente: a falta de ação da Justa e do
Estado era o responsável. Era dever dessas instâncias repararem a honra das famílias, assim
como sanear moralmente a cidade para preservar as famílias.
Nesse sentido, as relações entre a família, a polícia e o Estado se entrecruzavam na
medida em que as relações entre o público e o privado se mesclavam: no caso da prostituição,
as famílias se sentiam ameaçadas no interior dos seus espaços privados por “personagens”
públicas como as prostitutas. As prostitutas levavam ao interior das famílias exemplos e
ofensas imorais. A desordem provocada pela prostituão gerava crimes sexuais e de sedução
contra as mulheres de famílias. Do mesmo modo, os crimes sexuais, tornavam-se públicos
pela imprensa. Esses casos, como os de estupro e defloramento, expunham o que
historicamente se constituiu de mais privado e defendido nas mulheres no que tange à honra
sexual: a preservação do men.
67
Nesse sentido, a vida blica e privada se confundiam tornando-se objeto de
discussão para a imprensa. Todos esses fenômenos ocorriam nos bairros ou nas ruas da
cidade. Consequentemente, as famílias e a imprensa reivindicavam à polícia e ao Estado que
tomassem providências acerca desses fenômenos. Os jornais denunciavam os problemas
específicos de cada bairro:
[...] Crimes: 1- Bairro com mais de 10 mil habitantes sem policiamento.
2- Tarados agem livremente desacatando as falias
3- Arranhadores põem em sobressalto pais de famílias
Vila Operária: Reclamam os moradores: [...] não policiamento e
algumas famílias se mudam [...]. (Criminosos agem livremente na Vila
Operária. Cinco de Março,Goiânia, III Semana de abril de 1961. p. 8).
Trechos de reportagens como esse eram publicados constantemente em jornais
como o Cinco de Março. Em outras matérias, o apelo à ação do Estado e da Polícia era claro:
[...] Analisando friamente os últimos crimes perpetrados em Goiás, chega
se a calamitosa conclusão de que o Estado está sem polícia [...] Em
ligeiros passeios pelas ruas mais centrais de Goiânia, esbarra-se de
quando em bárbaros criminosos apontados pela crônica policial e pela
própria polícia como portadores de alta periculosidade [...] Hoje em dia,
para a segurança de sua própria família, você, leitor, deve portar armas à
cintura e dormir com elas sob o travesseiro, porque o órgão destinado à
segurança, passou a ser, simplesmente mais uma sigla revelando-se
inepto e deficiente [...] (Goiás Sem Policiamento: Assassinatos Impunes.
Cinco de Março, Goiânia, 25 de agosto de 1968.p).
A segurança da família era sempre ressaltada nos jornais. Segundo o jornal, sem a
ação da pocia e do Estado, a impunidade prevalecia e a criminalidade se proliferava pelos
bairros familiares. Percebe-se no primeiro trecho da reportagem citado acima, que os
moradores do bairro Vila Operária queixavam-se da falta de policiamento, que deixava
margens para “marginais” agirem livremente, desacatando as famílias. A Vila operária era um
dos bairros que comportava as zonas de meretrício, assim como a maioria dos primeiros
bairros da cidade de Goiânia. Portanto, as famílias clamavam ao Estado para reforçar a
segurança desses bairros. Todavia, como vimos anteriormente, a criminalidade, a desordem
pública nos bairros, a impunidade, a prostituição e consequentemente os casos de violência
contra a mulher ocorridos nesses locais, eram apreendidos pelas famílias como problemas de
ordem moral. As famílias sentiam sua honra ameaçada. Assim, penso que a própria segurança
das famílias era entendida como efeitos ligados direta ou indiretamente a essa desordem
68
moral. Zelar pela segurança das famílias, era zelar pela honra dessa instituição. A família
tornava-se o espaço da segurança, ao contrário dos espaços da rua.
Assim sendo, as famílias e a própria imprensa compreendiam que o Estado
deveria agir diante desses problemas que a cercavam. Nesse sentido, não posso deixar de
evidenciar um dos crimes polêmicos da cidade de Goiânia, contra toda uma família, que ficou
conhecido nacionalmente como o crime da Rua 74. Esse crime ocorreu no ano de 1957, no
bairro popular. Toda a família do comerciante Wanderley Matteuci foi morta à golpes de
machado e enforcamento, sobrevivendo apenas a filha de um ano e oito meses.
O crime gerou protestos e cocios na Praça Cívica e a pressão da opinião pública
sobre a pocia foi intensa, fazendo com que no ano de 1958 o governador José Ludovico de
Almeida demitisse o Secretário de Segurança Pública. No ano de 1959, a polícia prendeu o
ex-marinheiro Santino Hildo de Fonseca, acusado de ser o autor do crime a mando do irmão
de Wanderley, Wilson Matteucci. A versão da pocia foi questionada pelos próprios
familiares que não acreditaram nessa versão. O agressor, Santino Hildo, foi condenado a 20
anos de cadeia.
O jornal Brasil Central, na reportagem do dia 25 de janeiro de 1959, intitulada,
Deslindando o mistério do Assassínio da Rua 74noticiou sobre o crime, apontando que os
responsáveis pelo trucidamento da família confessaram o crime à polícia e ao Poder
Judiciário. Nessa matéria, o jornal registrou a ação da pocia sobre a prisão dos responsáveis,
mas sem enaltecer ou desqualificar o papel dessa instituição. No entanto, no ano de l957
quando ocorreu o crime, o autor da matéria fez questão de denunciar a falta de ação da pocia
e principalmente do Estado:
[...] A reação não se faz esperar; porém recorrer a quem? Se alguém me
fizesse tal pergunta, com o minguado conhecimento que possuo de teoria
geral do Estado [...] responderia automaticamente [...]: “Vá ao Estado, ele
é a entidade que enfeixa em si, através de seus órgãos dotados de
autoridades e força todo o poder necessário e suficiente para a
manutenção da paz social [...] Na teoria é assim, mas e na prática, na vida
real? [...] Em face da grande desgraça, cumpre ao Estado empenhar todos
os seus esfoos no sentido de punir, devidamente, aos impiedosos
chacinadores da família indefesa; não que, com isto, se venha compensar
a perda à família enlutada [...] Nada mais fa reviver seus entes
queridos, mas deverá o Estado empregar todas as suas energias, a fim de
corrigir os erros do passado [...] através de medidas, sobretudo,
preventivas para sustar a onda de crimes que constitui ameaça geral [...]
(Nelson Spinola Marinelli. A Matança da Rua 74. Brasil Central,
Goiânia, 15 de dezembro de 1957. p.3).
69
O autor da matéria indaga sobre a função do Estado como entidade responvel
pela manuteão da paz social, da segurança das famílias. Esse crime chegou a ser tema de
romance do autor Miguel Jorge intitulado Veias e Vinhos. Oliveira (2004, p.175) ressalta que
nesse romance o autor quis mostrar a violência e a impunidade na cidade de Goiânia, nas suas
primeiras décadas. Uma violência que atingia as camadas mais pobres, como moradores do
bairro popular, “sempre esquecidos pelo poder público”. Segundo Oliveira, nas falas das
personagens é notório a visão dos primeiros bairros da cidade como locais que estavam
atraindo muitas pessoas, já que Goiânia era propagada enquanto uma cidade de
oportunidades. Para uma das personagens, essa leva de estranhos que chegava nos bairros”
era a causa da “degradação moral e das desordens” que ocorriam na cidade.
Tal indicação dada pelo autor é interessante no que concerne à apreensão que os
moradores desses bairros tinham acerca da violência nesses locais, da degradação moral. A
idéia de que a presença de pessoas “estranhas”, de outros locais, fosse a causa das desordens
acarretadas na cidade, revela a preocupação das famílias goianas com a presença, o olhar de
outros” habitantes, os quais poderiam acarretar conflitos de ordem moral que atingissem a
honra das famílias e da cidade.
Nesse sentido, o esquecimento do poder público sobre os problemas que atingiam
os bairros, foi alvo de reivindicação da parte da imprensa. No ano de 1963, o Cinco de Março
registrou que o crime da rua 74 foi “mais uma das mal versações da polícia goiana. Polícia de
pouco gabarito [...]. (Advogados, Crimes e Policiais. Cinco de Março, Goiânia, 11 de
fevereiro de 1963,p.6). Assim, os jornais denunciavam a falta de ação do Estado,
considerando que ele era a entidade que deveria punir os diversos crimes, protegendo as
famílias. Conseqüentemente, o Estado deveria dar assistência à polícia. Foi essa ligação entre
o dever do Estado e da polícia sobre as famílias que permeou o debate do crime da rua 74.
Para entender tal relação entre a instância da família e do Estado, recorro às
análises feitas por Jacques Donzelot (1986). Segundo o autor, no Antigo Regime, a relação
entre o Estado e a família é tida, sendo a família objeto e sujeito do governo. Ela era sujeito
no sentido da “distribuição interna de seus poderes: a mulher, os filhos e os aderentes deviam
obrigação a um chefe de família”. Porém, ao mesmo tempo, esse chefe de família
29
devia
obrigações ao governo, o que tornava a família seu objeto. Assim, a família se situava em
relações de dependência. Ela poderia estar inscrita “em redes de solidariedade, como as
corporações e comunidades aldeãs, ou blocos de dependência do tipo feudal, ou religioso”.
29
O qual tinha que fornecer uma contribuição em imposto, em trabalho (corvéias) e em homens (milícias).
70
Além disso, o chefe da família também deveria responder pela fidelidade à ordem
pública dos membros da família. Cabia a ele o poder de punir os filhos e a parentela caso
fugissem das obrigações relativas ao papel da família e a ofendessem moralmente, e dessa
forma, ele poderia se apoiar nas famosas “Lettres de cachet de famille”. Esse documento
exemplifica a correlação intrínseca entre a instância pública e familiar nessa época na Europa:
o indivíduo que ameaçasse a ordem blica poderia sofrer intervenção por meio dessas cartas
régias de família, que o punia. Como exemplo, Donzelot mostra que as moças que possuíam
algum tipo de “vigarisse” e pudessem provocar desordens públicas, poderiam causar
conseqüências para as famílias, demonstrando o seu descrédito. Portanto, o próprio chefe de
família poderia recorrer as “lettres de cachet de famille” e pedir o confinamento desta. Da
mesma forma, o rapaz que fugisse com alguma moça de classe inferior a sua, “aniquilaria os
cálculos matrimoniais”, e também poderia sofrer intervenção do Estado, através desse
documento. (1986, p.50). Nesse sentido, Donzelot chama a atenção para o fato de que o
Estado cobrava das famílias a manutenção da ordem blica, e para tanto exigia que o chefe
da família garantisse essa ordem da parte dos componentes das famílias.
Dessa forma, as “lettres de cachetdemonstravam o mecanismo de que o Estado
se utilizava para intervir diretamente nas famílias:
[...] a fim de assegurar a ordem pública, o Estado se apóia diretamente na
família jogando indissociavelmente com seu medo de descrédito público
e com suas ambições privadas [...] o Estado diz às famílias: mantendo
vossa gente nas regras da obediência às nossas exigências, com o que,
podereis fazer deles o uso que vos forneceremos o apoio necessário para
chamá-los à ordem (DONZELOT, 1989, p. 51).
É justamente esse mecanismo entre a família e o Estado que me interessa
sublinhar. Percebe-se que nesse momento estudado por Donzelot, o Estado cobrava das
famílias a manutenção da ordem pública. As famílias, para preservarem sua honra, poderiam
recorrer às autoridades através das “lettres de cachet”. Assim, a família, ao mesmo tempo em
que era objeto do governo, era sujeito deste, sendo responsável pela manutenção da ordem.
Ou seja, desde o Antigo Regime havia uma “inscrição direta da família no campo político”.
Nesse momento, a família se situava em relações de dependências privadas e
públicas, um elo de liames sociais, que organiza os indivíduos em torno da posse de uma
situação (profissão, privilégio e status) outorgada e reconhecida por setores sociais mais
amplos”. A família era atingida pelo sistema de obrigações, das honras, dos favores, das
71
obediências clientesticas e também das suas proteções. Ela tinha a função de manutenção da
ordem. Mas também era parte ativa da sociedade. (DONZELOT, 1989, p.49).
No entanto, Donzelot aponta que esse mecanismo começa a se tornar inadequado
a partir do século XVIII. As famílias o conseguem “conter seus membros tão facilmente” e
as próprias “Lettres de Cachetsão questionadas por aqueles de quem são timas. A tomada
da Bastilha, conduzida pelo baixo povo e pelos indigentes de Paris, “por aqueles que as
manobras cio-familiares o mais contêm, resulta numa interpelação que intima o Estado a
se encarregar dos cidadãos, e a tornar-se a instância responsável pela satisfação de suas
necessidades”. (DONZELOT, 1989, p. 2).
Para Donzelot, o fenômeno histórico da tomada da Bastilha significou a
destruição simbólica da cumplicidade da família com a soberania real. Ocorre uma ruptura da
aliança entre as classes populares e burguesas. O Estado transforma-se na instância
reorganizadora do corpo social, em função do direito dos pobres à assistência, ao trabalho e à
educação. Ele “deixa de ser um cume de uma pirâmide de opressões feudais”. Perante a ele,
todos são iguais. Nesse sentido, é necessário uma forma na qual o Estado possa garantir o
desenvolvimento de práticas de conservação e de formação da populão dissociando-as de
qualquer atribuição diretamente política”. Para tanto, o Estado se apoiou no meio da
filantropia. Esse é o exemplo dado por Donzelot da intervenção do Estado nas famílias no
século XIX.
O meio filantrópico se organizou em dois los: o médico-higienista e o
assistencialista. O pólo médico-higienista buscou o Estado como um instrumento direto de
contribuição na realização das medidas relativas “à higiene blica e privada, à educação e à
proteção dos indivíduos, que inicialmente tiveram efeito ao nível dos problemas colocados
para a economia”. Esse lo exerceu um papel de controle, de conservação e integração,
“fazendo da esfera industrial o suporte de uma civilização dos costumes, de integração dos
cidadãos”. O pólo assistencial se fundamentou numa definição liberal de Estado, “transferindo
para a esfera privada as demandas aos direitos ao trabalho e à assistência”. Ele transformou os
direitos políticos em uma questão de moralidade econômica. (DONZELOT, 1989, p.56).
Assim, o Estado ancorado pelos higienistas e pelos profissionais sociais
interviram na esfera do direito privado. A medicina higienista, a filantropia e a assistência
social estabeleceram um elo entre a instância da família e do Estado. Através de mecanismos
institucionais como a educação, a saúde, assistência social reivindicados pela própria
sociedade, o Estado passou a interferir no âmbito privado. Dessa forma, Donzelot (1989,
p.56/57) afirma que não se pode conceber os métodos da filantropia do século XIX como
72
formas ingenuamente apoticas de intervenção privada na esfera dos problemas ditos
sociais, mas sim como uma estratégia deliberadamente despolitizante face à instauração de
equipamento coletivos, ocupando uma posição nevrálgica eqüidistante da iniciativa privada e
do Estado. Os núcleos aos redores da atividade filantpica nesse período, tentavam buscar
uma distância calculada entre as funções do Estado liberal e a difusão de técnicas de bem
estar e da gestão da populão”.
Enquanto que no Antigo Regime a família tinha a função de manutenção da
ordem feudal, sendo ao mesmo tempo sujeito e objeto de poder, a família burguesa moderna
passa a ter o papel de mediação entre o indivíduo, a sociedade e o Estado.
Portanto, observa-se que historicamente coube ao Estado intervir na instância da
vida privada, encarregando-se de cumprir com as necessidades dos cidadãos. Para tanto, o
Estado buscou meios que não significassem formas diretamente poticas, como a filantropia,
as quais não ficavam diretamente ligadas à esfera privada e nem ao Estado. A família
constitui-se como uma parte ativa e passiva do Estado. Num determinado momento, ela podia
se apoiar, de uma forma blica, nas cartas régias de família para preservar sua honra. Esse
documento era um meio de conciliar a reparação da honra com a privacidade da família. Ela
preservava o sigilo sobre a desonra cometida por um membro da família (FARGE, 1991).
Dessa maneira, na realidade da França, a relação entre o Estado e as famílias
esteve diretamente ligada à defesa da honra das famílias. Em Goiânia, a cobrança das famílias
acerca do papel do Estado como a instituição responvel pelas suas necessidades é bem clara.
Porém, as famílias goianas não tinham um apoio do Estado, como o das “lettres de cachet”,
que poderia intervir sobre a honra maculada das famílias.
30
Elas cobravam do Estado à
manutenção da ordem pública e da segurança nos bairros. Essa desordem e essa falta de
segurança eram apreendidas como fatores que atingiam diretamente à honra das famílias.
Constantemente, mulheres e crianças de famílias eram expostas e agredidas moralmente. A
prostituição gerava crimes no interior das pensões e nos locais próximos a elas. Esses
problemas refletiam a falta de ação do Estado e da Polícia diante desses efeitos que
maculavam a honra das famílias.
Essas esferas interviam apenas nos limites desses problemas morais. No caso da
prostituição, por exemplo, o Estado adotou medidas delimitadas acerca desse fenômeno,
como a estratégia da identificação dos prostíbulos através das luzes vermelhas e a mudança
dos trechos dos coletivos nas zonas de tolerância. Da mesma forma, no que tange
30
Família e Estado, em Goiânia, remetem a historicidades distintas. Apenas estabeleci algumas comparações
entre o papel do Estado e da família na França apontadas por Donzelot.
73
propriamente aos crimes sexuais e de sedução contra as mulheres, o Estado não interferia
diretamente sobre esses crimes, na medida em que não adotava propostas de prevenção e
punição a tais delitos. Esses crimes, não eram vistos como um problema de seu interesse e
dever, pois, a compreensão que se tinha, é que esses crimes eram da alçada das famílias. De
fato, a pocia e a justiça, eram os últimos recursos a quem as famílias procuravam para
restaurar a honra perdida; seja insistindo com a polícia para forçar um casamento, ou
clamando a justiça para prenderem os agressores de crimes de estupro e de ordem conjugal.
Apenas dessa forma, essas instituições agiam diante desses casos, que se tornavam
perceptíveis, apenas quando maculavam a honra da família e da cidade.
Para tanto, as famílias buscavam a imprensa, especialmente a redação do jornal
Cinco de Março, para registrarem suas cobranças acerca do papel do Estado. Nesse sentido,
penso que coube à imprensa intervir pelas famílias em relação às atitudes que deveriam estar
sendo cumpridas pelas autoridades acerca da defesa da honra das famílias. Como escrevi no
pico sobre a impunidade, pressuponho que o jornal apelava para a defesa de uma honra
cívica, a qual deveria ser cumprida pelo Estado, pela pocia e pela justiça. Assim, creio que
os jornais serviram como um espaço de mediação entre a esfera das famílias e do Estado. Mas
antes de adentrar nesse papel da imprensa, sublinho ainda alguns aspectos dessa articulação
entre o Estado, a família e a pocia.
Desse modo, destaco a questão do problema do menor abandonado. Esse
fenômeno foi considerado pelo jornal Cinco de Março como um dos maiores problemas
atuantes na década de 1960 em Goiânia, assim como a prostituição. Todavia, pressuponho que
o problema do menor abandonado era considerado pela imprensa como um fenômeno mais
intenso e preocupante do que os efeitos que as zonas de tolerância causavam. Nas
reportagens, eram registradas e debatidas as causas desse problema e as possíveis soluções
que o Estado poderia tomar. O governo do Estado de Goiás era sempre apontado como o
culpado desse problema, que inclusive não dava assistência ao Juizado de Menores:
Ampare o Governo, as crianças abandonadas de uma nação e ela se
desenvolverá por si mesma [...] Em Goiânia, o índice oberrante de
crianças desamparadas está parecendo um legítimo aviso de revolução, e
o governo permanece de braços cruzados, enquanto os jornais gritam pela
proteção às crianças atiradas à responsabilidade de ninguém [...] O
próprio Juizado de Menores encontra-se no mais completo abandono por
parte do governo. Quando uma menor apreendida nos prostíbulos ou
vadiando pelas ruas da cidade, o Juiz de Menores se vê obrigado a
devolvê-la ao lugar de origem, à míngua de um local [...] Pasmem,
leitores, mas, por incrível que pareça, o Juizado de Menores de nossa
74
Capital tem como patrimônio, um birô vermelho, algumas cadeiras, uma
sala improvisada (desde sua criação) e um homem com a mais genuína
boa vontade [...] O Governo precisa abrir luta no lado dos menores
abandonados [...] (Menor abandonado: epopéia de uma geração. Cinco de
Março, Goiânia, 27 de janeiro de 1964.p.2).
Observa-se que a reportagem começa associando o problema do menor
abandonado ao desenvolvimento da nação. Logo em seguida, o governo é culpado por esse
problema, pela falta de estrutura do Juizado de Menores na cidade. Essas reivindicações da
parte do jornal Cinco de Março foram registradas desde o início da década de 1960 até
meados da década de 1970. A falta de um Juizado de Menores com instalações adequadas
capazes de amparar e dar assistência aos menores, fazia com que esses menores se apoiassem
na criminalidade: “[...] a rua, ambiente natural da criança abandonada, é uma verdadeira
escola de crimes. Na promiscuidade em que vivem infância e juventude abandonadas, se
processa lentamente um eficiente e efetivo aprendizado de criminalidade e marginalismo
[...]. (Problema do Menor Abandonado: O Maior Culpado é o próprio governo de Goiás.
Cinco de Março, Goiânia, 10 de maio de 1965. p.3).
Outras manchetes do mesmo jornal noticiavam: “Da incúria administrativa:
Juizado de Menores de Goiânia é órgão fantasma”. (Goiânia, 10 de março de 1965. p.1);
Adoção e legitimação adotiva. (10 de junho de 1970.p.10); Câmara debate sobre o Menor. (11
de outubro de 1971. p.31). Muitas vezes, percebe-se que o debate sobre o problema do menor
abandonado intensificava-se, indo além do problema da criminalidade e da falta de um
Juizado de Menores, chegando a apontar a solução do problema na adoção de crianças.
Segundo o Cinco de Março, as famílias, os particulares” começavam a fazer pela infância o
que o Estado negava-se a fazer:
[...]o Dr. Crispim Borges, Juiz de Menores de Goiânia, deu início à
entrevista que nos concedeu sobre as medidas que vem adotando com o
fim de solucionar, provisoriamente o problema do menor abandonado.
Encontramos na lei, capitulando no Código Civil Brasileiro, o meio
adequado disse o Juiz de Menores, contudo, de início, antes de
aplicarmos o remédio legal em todo o seu rigor, resolvemos apelar para
os espíritos bem formados, para os corações bondosos dos cidadãos de
posses, bem situados social e financeiramente, para que adotem crianças
abandonadas, principalmente as órfãs [...] A campanha encetada pelo
Juizado de Menores e Ministério Público para conseguirem turores
expontâneos para menores abandonados em Goiânia, começou a dar
resultado 48 horas após o seu lançamento [...]. (Particulares farão pela
infância o que Estado se nega a fazer: Primeiros tutores voluntários e
75
primeiros órfãos amparados. Cinco de Março, Goiânia, 17 de maio de
1965, p.2).
Aqui percebe-se a inversão de papéis. O Estado interpela as famílias a darem
apóio a resolução do problema do menor abandonado tentando conciliar seus interesses com
os interesses familiares. Cabe as famílias, dessa forma, darem assistência ao Estado. No
entanto, no século XVIII, Donzelot nos aponta que:
essa harmonia entre a ordem das famílias e a ordem estatal é produto
mais de uma conivência tática do que de uma aliança estratégica [...]o
que perturba as famílias são os filhos adulterinos, os menores rebeldes, as
moças de reputação; ou seja, tudo que pudesse prejudicar a honra
familiar. Porém, a preocupação para o Estado é o desperdício de forças
vivas, são os indivíduos inutilizados ou inúteis. (DONZELOT, 1989,
p.29).
Donzelot ressalta que uma das preocupações do Estado, no que tange ao
fenômeno do menor abandonado no século XVIII, é que eles deveriam se tornar úteis ao
Estado, antes de falecerem. Ao mesmo tempo, os menores abandonados o pertenciam à
instituição da família, tornando-se assim um perigo na sociedade por sua vagabundagem, sua
miséria e também uma perca, já que constituem forças não empregadas”. O autor cita que
quando surgiu o hospício de menores abandonados o objetivo foi conciliar o interesse das
famílias e do Estado. “Conciliar os interesses das famílias pela moralização dos
comportamentos e a força do Estado através do tratamento dos restos inevitáveis desse regime
familiar, os celibatários e os menores abandonados”. (DONZELOT, 1989, p.28).
Nesse sentido, esse interesse do Estado pelos menores abandonados, apontado por
Donzelot, contribui para entendermos o mecanismo da relação entre o Estado e as famílias
diante desse fenômeno. Em Goiânia, percebo que essas concepções levantadas pelo autor o
bem tidas. De certa forma, os menores abandonados, por serem vistos como delinqüentes
em potencial expostos à criminalidade, constitram-se como uma preocupação ameaçadora
as famílias, assim como a prostituição. Esse problema também estava relacionado a um
reflexo negativo da vida citadina, como foi destacado na reportagem anteriormente intitulada:
Pequenos Vigaristas”. (“Brasil Central, Goiânia, 27 de janeiro.1957. p.1). Dessa maneira,
por se tratar de um problema que atinge moralmente a honra das famílias e da cidade, as
famílias clamavam por uma ação do Estado.
76
Todavia, considero que o problema do menor abandonado, ao contrário dos
crimes contra as mulheres que ocorriam nas primeiras décadas da cidade, era apreendido
como um “problema social”, e não apenas moral, que atingia a honra das famílias e da cidade,
no sentido de que se debatia sobre as causas desse femeno enraizadas no tecido social, e
portanto, era da alçada das esferas institucionais intervirem diretamente sobre esse fenômeno.
O próprio método de adoção exemplifica essa preocupação social com as crianças sem
nenhum auxílio, e que contribuíam com a marginalidade. Além do que, o método de adoção
exemplifica a articulação entre a esfera do Estado com as próprias famílias, diante do combate
ao problema do menor abandonado.
A associão do menor abandonado com a criminalidade fez com que diversas
vezes o jornal apontasse o papel da pocia acerca desse fenômeno. Era registrado nos
periódicos que cabia à polícia zelar pelos menores, não apenas os abandonados, mas também
menores de famílias que nas ruas praticavam
[...] vandalismos, freqüentavam zonas de prostituição e casas de jogo de
bilhar e snooder até altas madrugadas, sem a mínima repressão policial
[...] caso a polícia não intervenha nesses centros de corrupção de
menores, [...] terá amanha, que devassar antros mais perigosos, porque os
menores de hoje, amanhã serão grandes criminosos. (Antro de perdição
corrompe menores em alta madrugada. Cinco de Março, Goiânia, 29 de
outubro de 1962, p.02).
É interessante perceber que enquanto na década de 1960 o menor era apontado
como o futuro criminoso, a partir da década de 1970 ele é registrado como um temido
criminoso, inclusive como assassino de mulheres:
[...] Existem em Goiânia, menores que são temidos até pela Polícia.
Andam fortemente armados e dispostos a enfrentar a Lei a Bala.
Raimundinho é um desses marginais. Com um parceiro de crimes
assassinou uma jovem no Setor Sul. Preso e levado para a Guanabara,
conseguiu fugir, retornando a esta Capital [...] (Os menores e seus crimes.
Cinco de Março, Goiânia, 07 de setembro de 1971. p.19).
Novamente o papel da pocia torna-se alvo de discussão. Em algumas matérias,
haviam justificativas da ineficiência desse órgão:
com menos de meia dúzia de viaturas, a maioria em péssimo estado de
conservação a Rádio Patrulha de Goiânia não tem condições de efetuar
o serviço de patrulhamento da cidade prestando o socorro policial que a
população necessita [...] Não contando com pessoal especializado, as
77
poucas delegacias policiais que verdadeiramente funcionam em Goiânia,
não o conta do volume de serviço em tempo útil. Dezenas de crimes
insolúveis abalaram a opinião pública do Estado nos últimos tempos [...]
(Goiânia, Enquanto Inocentes são torturados continua infestada de
marginais. Cinco de Março, Goiânia, 21 de junho. 1965.p.1).
No ano de 1970, essas justificativas ainda continuavam nos jornais:Goiânia
continua à mercê dos marginais e a pocia civil não tem condições para conter o vertiginoso
aumento da criminalidade, conforme palavras do próprio Secretário de Segurança Pública
[...]. (Assim Caminha a Seguraa. Goiânia à mer dos marginais. Cinco de Março,
Goiânia, 02 de outubro de 1970.p.10)
Como apontei anteriormente, através de Farge (1991), a polícia passou a ser
definida como um dos meios mais seguros de obter um mínimo de civilização onde reinava a
confusão. Todavia, em Goiânia sempre a “confusão”, a marginalidade, a criminalidade eram
associadas a ineficiência da polícia e do Estado. Historicamente, a polícia teve como objetivo:
assegurar a felicidade do Estado, através da sabedoria de seus
regulamentos, e aumentar suas forças e sua potência tanto quanto ele for
capaz [...] A ciência da polícia consiste, portanto, em regular todas as
coisas relativas ao estado presente da sociedade, em consolidá-la,
melhorá-la e em agir de forma que tudo concorra para a felicidade dos
membros que a constituem. Ela visa fazer com que tudo o que compõe o
Estado sirva à consolidação e ao aumento de seu poder, como também à
felicidade pública”. ( DONZELOT (1989), apud VON JUSTI, Elément
généraux de police, (1768), p.13)
Todo esse papel da polícia, relativo à sua eficiência, a regulamentação da ordem e
à felicidade pública a serviço do Estado, era destacado nos jornais do Estado de Goiás do final
do século XIX e no início do século XX. Nos casos de assassinatos do final do século XIX, a
ação do Estado e da polícia era sempre exaltada. No ano de 1892, o jornal de Goiàz notificou
o seguinte assassinato:
[...] Em plena rua, no dia 19 deste, foi barbarmente assassinado em Santa
Rita do Paranahyba o cidadão Pedro Soares [...] por Thomaz Antonio
Francisco, que faz alarde de ser o autor desse delicto. O respectivo
subdelegado reuniu populares e conseguiu prendelo mas tendo se
congregado os amigos do criminoso para arrancal-o da prisão, aquella
autoridade tegraphou ao chefe de policia [...] O chefe da policia, no
mesmo momento, telegraphou ao subdelegado [...] e fez seguir para
aquelle ponto uma força commandada por um alferes para ser mantida a
78
ordem publica. (Assassinato. Jornal de Goyaz, Goiânia, 25 de abril de
1892, p.5).
31
Logo abaixo desse trecho, encontra-se na mesma reportagem um elogio ao
Batalhão de Polícia da época por prestar os melhores serviços ao Estado e não poupar
esforços para manter a disciplina. Além da ação competente da pocia, o elogio do Estado
sobre as leis de repressão ao crime também era noticiado:
[...]Crimes communs e insignificantes alterações, que sempre apparecem,
são reprimidos dentro da lei e pelas auctoridades competentes. Esse bom
Estado que, felizmente, em quase todas as mensagens, é accentuado,
deve-se a índole ordeira do povo goyano que, com praser, aqui deixo
consignado, é obidiente as leis e respeitador dos direitos alheios. Até o
presente momento. (Tranqüilidade Pública. A Imprensa, Goiânia, 06 de
junho. 1914. p. 03).
A maioria dos outros crimes registrada nos jornais do final do século XIX era
relativa aos chamados crimes de sedição”, que envolvia manobras poticas. A ação eficiente
da pocia e do Estado em relação ao impedimento ou a concretização desses crimes era
sempre destacada nos periódicos. Também havia registros de crimes contra as mulheres, e
outros em que elas eram assassinas nos jornais do século XIX. Esses crimes serão ressaltados
no último capítulo.
Independente da forma problematizada, seja da ineficiência ou do enaltecimento
do papel da pocia e do Estado, percebe-se que cabia à polícia manter a tranilidade e a
ordem blica na cidade de Goiânia e nos municípios do Estado de Goiás. Essa defesa da
ordemblica estava ligada à defesa da honra das famílias e da cidade. Como foi destacado, a
desordem que prevalecia nos bairros e na cidade se estendia a uma desordem moral. Para
tanto, era necessário à interferência da pocia na defesa da honra das famílias. O não
cumprimento desse dever significava uma ofensa às famílias, que sentiam os efeitos
provocados por essa desordem moral, sustentada pela ineficiência da pocia e do Estado.
Essa associão entre a manutenção da ordem pública e da defesa da honra das
famílias, como dever da pocia, era perceptível na cidade de Paris no século XVIII. Segundo
Farge (1991, p. 605), a pocia deveria afastar da sociedade desordens muito graves para
promover a paz e a felicidade das famílias. Ela deveria “conhecer o povo, interferir nas redes
31
Sublinho novamente que mantive com a transcrição original dos jornais do final do século XIX e início do
século XX.
79
de suas relações para dominá-los e incitá-los a comportamentos ordenados”. A pocia tinha
sido constrda sobre uma filosofia da ordem e da felicidade que se atinha sobre o bem estar
das famílias.
Portanto, essas funções do Estado e da polícia, como mecanismos de intervenção
sobre os problemas que atingiam a honra das famílias, se constitram historicamente, em
outros contextos, e na cidade de Goiânia e Estado de Goiás. Na maioria das vezes, esses
óros foram acusados por sua ineficiência. Porém, na década de 1980, o jornal Opção
noticiava que:
[...] Em meados dos anos 50, terminava uma fase histórica da Polícia
goiana e a capital dava mais um salto rumo ao desenvolvimento. No dia
19 de agosto de 1955 foi criada a Secretaria de Segurança Pública, e a
polícia civil deixou de ser parte integrante da Secretaria de Interior e da
Justiça [...] o delegado atual diz que a violência urbana está ligada à
marginalidade social, como desemprego, subemprego, prostituição e
menor abandonado. (“1960-1980 A Cidade do Medo”. Jornal Opção,
Goiânia, 19 a 25 de outubro. 1981).
Nota-se que o fato da inauguração da Secretaria de Segurança Pública é apontado
como um acontecimento voltado para o progresso. Entretanto, nas reportagens das décadas
anteriores a essa inauguração, a denúncia à falta de ação dessa entidade é constante, ligada a
um retrocesso da cidade. As esse trecho, a reportagem continuou discutindo sobre as causas
da violência urbana na cidade de Goiânia. Esse apontamento reflete uma questão importante.
A de que as causas da violência começam a ser discutidas. Essa violência passa a estar ligada
ao problema da prostituição, do menor abandonado, do desemprego, subemprego e
marginalidade social. Ou seja, a problemas de origem social.
Percebo que a apreensão da violência urbana ligada à desordem blica, a
criminalidade, a partir do final da década de 1970, não se restringe mais a questões morais,
como um fenômeno de violência contra a honra das famílias e da cidade, mas sim, como um
fenômeno social cujas causas estão enraizadas na sociedade. a partir do final da década de
1970, jornais como “O Popular” passaram a discutir as causas e os fatores dessa violência. As
manchetes desse jornal registravam: “Violência Gera Insegurança” Goiânia, 24 de outubro.
1977.p.4 ); Uma Cidade com medo da violência, Goiânia, 24 de outubro. 1979. p.12) .
Após o ano de 1980, os casos de violência contra a mulher também foram
discutidos como problemas dessa natureza. Surgiram os grupos feministas, que clamaram por
uma ação do Estado e da polícia diante desses crimes. O problema deixa de ser da alçada das
80
famílias. Esses grupos passam a interferir pelas famílias em relação à violência contra a
mulher. Não se trata mais de uma questão de cunho moral, mas de uma agressão cometida
contra o corpo da mulher. Vê-se, então, uma transformação na maneira como o fenômeno é
problematizado.
2.2 OS JORNAIS COMO AGENTES DE MEDIAÇÕES SOCIAIS
Diante das alises feitas na imprensa escrita goianiense, é interessante perceber o
modo como os jornais operavam na sociedade, e serviam como um espaço de denúncia e
propagação de determinadas discussões acerca dos principais problemas que ocorriam nas
ruas e nos bairros da cidade.
Todavia, antes de adentrar nessa discussão, lembrarei brevemente um pouco da
história da imprensa goiana, destacando o surgimento dos principais jornais goianos utilizados
nesse trabalho como fontes de pesquisa.
Para tanto, não posso deixar de remeter ao nascimento do primeiro periódico da
região centro oeste. Ele foi intitulado “A Matutina Meiapontense” e surgiu no ano de 1830, no
arraial de Meia Ponte (atual cidade de Pirenópolis) no estado de Goiás. O jornal circulou no
período de 1830 a 1834. Ele divulgava os decretos e resoluções da Assembléia Geral, as
sessões das câmaras legislativas, os discursos dos Srs. senadores e deputados, notícias
nacionais e estrangeiras. Segundo José Mendonça Teles (1989, p.28), os princípios do jornal
eram baseados na divulgação de notícias que tinham por fim, a felicidade datria, na
identificação de todos os brasileiros com a constituição e com o imperador. Todavia, vários
leitores escreviam à Matutina sob a capa do anonimato, fazendo críticas ao governo, à igreja,
à magistratura, aos costumes e a moral.
A Matutina marcou o início da história da imprensa goiana. Posteriormente a ela,
foram surgindo vários periódicos que se disseminaram nos municípios de Goiás. Para Teles, a
história da imprensa goiana, pode ser dividida em cinco períodos, num prisma meramente
metodológico. O primeiro, é justamente o tempo de circulação do jornal A Matutina, entre
1830 a 1834. O segundo, corresponde aos anos de 1834 a 1890, com o aparecimento do
segundo jornal goiano, o Correio Oficial de Goiás, seguido de vários outros periódicos que se
destacaram na defesa de interesses poticos locais. Nesse período, somente na cidade de
Goiás, circularam mais de 30 periódicos.
81
as décadas de 1890 a 1936 compreendem a fase da expansão de rios jornais,
sendo a maioria defensora de grupos poticos, principalmente daqueles que estiveram
envolvidos na mudança da capital da cidade de Goiás para Goiânia. No ano de 1934, surgiu a
Associação Goiana de Imprensa e, em 1936, ocorreu a transferência do Correio Oficial para
Goiânia, marcando o início desse quarto período. Entre 1936 e 1945 apareceram vários
periódicos em Goiânia, como a Folha de Goiás, o Popular e a Revista Oeste, dentre outros. O
ano de 1945 em diante é classificado como o quinto período, caracterizado como o momento
de grande revolução na imprensa escrita e falada de Goiânia.
Teles ressalta que esse período envolve todo um processo acelerado de
desenvolvimento que atingiu o Estado de Goiás, e que foi divulgado, especialmente pelo DEI
(Departamento Estadual de Informação). Este divulgou para os outros estados e municípios o
desenvolvimento do Estado de Goiás e particularmente o da nova capital, a cidade de Goiânia.
A imagem de Goiânia, como terra de oportunidades foi propagada por vários periódicos, num
momento de grande desenvolvimento dos órgãos de comunicação. Ocorreu o aparecimento de
rias emissoras de rádios, como a Rádio Clube de Goiânia, a pioneira na cidade, surgida no
ano de 1942, e a Brasil Central, criada para lutar pela mudança da capital federal. Na
Universidade Federal de Goiás, foi criado o curso de jornalismo, que segundo Teles, foi um
marco na difusão da carreira jornalística.
Dentre os jornais que surgiram nesse período, o “O Popular” destaca-se como um
jornal de grande potencial, devido a sua estrutura empresarial. O jornal registra vários tipos de
notícias, desde acontecimentos cotidianos a questões poticas e econômicas. Outro jornal
considerado como um dos principais periódicos de circulação diária é o Diário da Manhã.
Originou-se no dia 12 de março de 1980. Seu fundador foi o jornalista Batista Custódio, o
mesmo até então, do “mais ousado dos jornais do Estado de Goiás, o semanário Cinco de
Março”. Por tornar-se a fonte principal do trabalho, ressaltarei um pouco sobre a história do
Cinco de Março, que se transformou no Diário da Manhã. (TELES, p.59).
Desde o início do seu surgimento, ele possui um caráter de denúncia. Foi fundado
em setembro de 1959, após um episódio violento entre estudantes e a pocia militar, contra as
irregularidades do governo da época, de José Feliciano Ferreira. O jornal recebeu o nome de
Cinco de Março, devido a data desse epidio, em que a polícia assassinou um dos estudantes.
Em protesto, os seus fundadores, os jornalistas Batista Custódio - chefe e editor do jornal até
o momento -, Thelmo de Faria e Consuelo Nasser, intitularam o jornal de Cinco de Março. A
partir dessa época, até o ano de 1979, último ano de sua circulação, o jornal se apresentou
82
como um jornal noticioso, de denúncia e de prestação de serviços à comunidade (TELES,
1989).
O Cinco de Março,embrião do jornal Diário da Manhã”, foi um jornal de
oposição em plena época da ditadura militar. Foi o precursor da imprensa de contestação no
Estado de Goiás. O jornal publicava matérias que quebravam o silêncio sobre atos
autoritários do governo”. No ano de 1984, quando o jornal já tinha se transformado no Diário
da Manhã, ele sofreu repressão da parte do Estado e ficou fechado até o ano de 1986. Batista
Custódio chegou a ser preso algumas vezes, devido a oposição feita contra o seu jornal.
Atualmente, o Diário da Manhã possui uma sessão sobre os bairros de Goiânia, sendo
considerado um jornal “que ouve a comunidade, e da voz as suas reivindicações”. (25 anos. A
Idade da História do Diário da Manhã. Diário da Manhã, Goiânia, 12 de março. 2005. p.03).
Nos primeiros anos da década de 1980, o Diário da Manhã combateu fortemente a
violência contra a mulher, por meio das reportagens registradas pela conceituada feminista
Consuelo Nasser, a qual foi casada com Batista Custódio e participou da direção do jornal
durante rios anos. A jornalista e feminista dava abertura as manifestações dos primeiros
grupos feministas da cidade. Ela fundou o Cevam (Centro de Valorização da Mulher), em
1981, principal grupo contra a violência sofrida pelas mulheres. Portanto, as reportagens do
jornal, especialmente dos primeiros anos da década de 1980, tiveram como principal foco de
denúncia e combate, o fenômeno da violência contra a mulher.
32
Escolher a imprensa escrita como fonte de pesquisa, implica na possibilidade de
analisá-la sob diversos olhares. A forma com que os jornais nos remetem notícias próximas ou
distantes pode ser questionada diante da construção das narrativas feitas nos periódicos; a
neutralidade ou a objetividade na transcrição dos acontecimentos podem suscitar diversas
indagações.
Alguns pesquisadores, ao tomarem os jornais como fontes de pesquisa, lidam com
os periódicos como formas de representação. Pesavento (2001), ao investigar os crimes e
conflitos cotidianos nos jornais do final do século XIX, da cidade de Porto Alegre, considerou
as notícias dos jornais como representações do social, a partir das quais os homens recriam o
32
Dentre os outros jornais citados na pesquisa, ressalto brevemente as origens de alguns. O “Cidade de Goiás
surgiu no ano de 1938, e defendia a imagem da antiga capital do Estado, como será destacado logo adiante; ele
foi relançado em 1985. O “Brasil Central”, fundado em 1931, era porta voz da arquidiocese e foi divulgado em
todo o Estado. O jornal não se resumia a assuntos religiosos, tendo um caráter noticioso, e circulou até o ano de
1949; O jornal “A Imprensa”, foi iniciado em 1922 na cidade de Goiás e tinha como propriedade uma sociedade
anônima. O Jornal de Notícias teve sua segunda fase no ano de 1956, e também possuía um caráter de denúncia.
(TELES, 1989).
83
real, atribuindo “sentido às coisas, estabelecendo distinções e valores”. Para ela, as
representações sociais não possuem uma corresponncia exata com a realidade, e se impõem
por critérios de plausibilidade e verossimilhança. (2001.p.09).
No início dessa pesquisa, ainda no período da graduação, analisava os jornais,
através de uma certa noção de representação. No período, investiguei apenas alguns anos das
décadas de 1980 e 1990 dos jornais, Diário da Manhã e O Popular. A maior quantidade de
fontes circunscrevia aos periódicos da década de 1980, do Diário da Manhã, que registrava e
debatia as posições de diversos segmentos da sociedade, como os grupos feministas,
advogados (as), juízes (as), e inclusive da própria opinião pública, sobre os crimes passionais
que repercutiam na cidade. Nesse sentido, meu objetivo foi discutir como cada grupo social
representava esses crimes. Como na época, a violência contra a mulher era apreendida como
um problema social, as discussões pautavam-se nas causas desse fenômeno. Assim, estabeleci
uma discussão com o relato dos crimes nos jornais, com a “representação”
33
que cada grupo
social construía sobre a motivação e origem desses crimes.
Todavia, após o contato com os periódicos das décadas anteriores passei a analisar
e discutir as fontes jornalísticas de outra maneira. Creio que torne-se perceptível que tanto os
jornais da cidade de Goiás e de Goiânia, no decorrer das décadas analisadas, serviram como
um espaço de denúncia e propagação de determinadas discussões acerca dos fenômenos
compreendidos como os principais problemas da cidade. Porém, pressuponho que ao
propagarem tais denúncias, eles atuavam na sociedade como dispositivos que serviam como
uma espécie de agentes de mediações sociais entre as esferas das famílias, do Estado, da
polícia e da justiça, no que tange aos problemas que circundavam essas esferas.
Nesse sentido, os jornais investigados podem ser pensados, não apenas como
portadores de notícias - que podem podem ser apreendidas como “representações” do real -,
construídas por aqueles que as escrevem, mas sim, como agentes, participantes ativos na
construção dos acontecimentos, que interviram e mediaram as formas de sociabilidades,
através da relação leitor, escritor e ouvinte.
Para tal reflexão, considerei as análises realizadas por Henrrique Luiz Pereira
Oliveira (1990). O autor, ao tratar sobre como foi problematizada a questão das crianças
recém - nascidas expostas, e os investimentos na remodelação das condutas da população no
espaço urbano de Desterro - atual cidade de Florianópolis - durante os anos de 1828 a 1887,
observa que os cronistas dos jornais operaram na cidade como “agentes de mediações
33
Refiro-me, apenas, a uma certa noção de representação, na medida em que cada grupo representava a violência
contra a mulher de uma forma.
84
sociais”. O discurso médico higienista, disseminado na cidade de Desterro, na época, foi
propagado por diversos agentes” não médicos, dentre eles, a imprensa periódica. Segundo o
autor, sob a ótica do discurso médico higienista, a imprensa escrita passou a registrar os
problemas da cidade, julgando as práticas sociais e distinguindo os limites do que poderia ser
considerado como tolerável e intolerável nos espaços que comportavam a cidade.
Para Oliveira (1990, p.227), os jornais interviram nas formas de sociabilidade no
espaço urbano, na medida em que serviam como um “meio para exercer a vigilância e
correção dos comportamentos nos espaços blicos”, e até mesmo, das condutas no espaço
privado. Além de uma vigilância acerca dos comportamentos, os jornais também serviam
como um meio de pressionar as autoridades a tomarem determinadas providências.
Creio, que as análises feitas pelo autor sobre a atuação dos jornais em Desterro,
permite-nos pensar na atuação dos jornais de Goiânia. Acredito que parte da imprensa escrita
goianiense, através de suas denúncias, estabelecia padrões de comportamentos que definiam
os limites do que deveria ser aceito ou não. No caso das denúncias do problema da
prostituição, dos crimes sexuais e de sedução, isso se torna bem claro: as zonas de meretrício
o deveriam se localizar nas proximidades dos bairros familiares. As moças de família
poderiam ser confundidas com prostitutas e serem seduzidas e violentadas, o que ameaçaria a
honra das “famílias”. Dessa forma, a prostituta era vista como uma mulher blica, que
deveria ficar longe das residências, enquanto as moças de família, deveriam ser protegidas nos
seus espaços privados e nos espaço próximos as suas residências.
Ou seja, não era admissível que as zonas de meretrício se localizassem nos bairros
familiares ou perto deles. As prostitutas e as mulheres de família eram apreendidas no interior
de uma moral, que definia quem eram mulheres honestas e desonestas. Assim, suponho que a
imprensa trabalhava na modelagem das condutas das famílias, e tentava definir determinados
limites, ou seja, determinadas delimitações entre o espaço público e o privado, relativos às
condutas e práticas sociais tidas como permitidas ou não, morais/imorais, lícitas/ilícitas, que
operavam como moduladores sociais, como dispositivos de modulação social dos corpos.
Portanto, acredito que os jornais delimitavam fronteiras nos espaços públicos da
cidade e nos próprios bairros familiares, no que tange às condutas morais que deveriam
prevalecer nesses espaços e que não ofendessem a honra das famílias. Eles restringiam as
formas citas ou não para cada espaço”. Da mesma forma, as questões que se enquadravam
como reflexos negativos da vida citadina de Goiânia, como a impunidade, o problema do
menor abandonado, a prostituição e a própria criminalidade urbana, foram alvos dos
periódicos que estrategicamente demarcavam e redefiniam às condutas tidas como
85
intoleráveis; tanto do descaso das autoridades para com esses problemas, que atingiam a
honra das famílias e da cidade e, as próprias condutas de costumes dos membros das famílias,
que pudessem macular a honra dessas instituições.
Ao denunciarem esses fenômenos morais, os jornais apelavam para uma ação da
polícia e do Estado, no sentido de combater todas as atitudes que causassem desordem urbana,
estendida a uma desordem moral, que denegrissem a imagem das famílias e da cidade. A
ineficiência e/ou exaltação do papel da polícia e do Estado eram sempre registradas, no
sentido de corresponderem com os limites tolerável, intolerável, lícito, ou ilícito
normativos que deveriam prevalecer na cidade e no Estado. Desde o final do culo XIX e
início do século XX, percebe-se que os jornais adotavam ações corretivas para restabelecer a
ordem e tranilidade pública.
Assim, procurei pensar os jornais através desse conceito definido por Oliveira
(1990), o de “agentes de mediações sociais”; a imprensa como um espaço operador de
mediações sociais. Acredito que as considerações feitas por Oliveira se enquadram nas formas
como os jornais operaram na cidade de Goiânia. A própria relação entre os jornais e as
famílias goianas demonstra que os jornais agiam como um meio intermediário entre as esferas
da família, do Estado, da pocia, e outras instituições, no que tange à problematização dos
fenômenos apreendidos como morais e sociais. Penso, que alguns jornais, como o Cinco de
Março, tornaram-se um meio estratégico para as famílias, as quais o procuravam quando
ocorria algum tipo de incidente nos bairros, ou em locais próximos à elas, que pudessem
atingir o núcleo familiar.
Nesse sentido, é plausível pensar que os jornais do final do século XIX, referentes
ao Estado de Goiás, e os da década de 1930 em diante, da cidade de Goiânia, constitam - se
como um meio de exercício de vigilância e controle acerca das condutas, não apenas do
Estado e das autoridades, mas dos próprios indivíduos, pois, ao mesmo tempo, eles exerciam
uma vigilância ao nível dos costumes da população. Dessa forma, observo que os jornais
goianos, sobretudo o Cinco de Março, interviram nas formas de sociabilidade do espaço
urbano, interferindo sobre as relações sociais, e definindo as práticas toleráveis entre o espaço
público e privado através da relação escritor – jornalleitores.
Certas noções sobre essa relação entre escritor, jornal, leitores e ouvintes com as
formas de sociabilidade, foram estabelecidas por Roger Chartier (2001). O autor, ao discutir
algumas definões da opinião pública no século XVIII, enfatiza a relação existente entre as
86
formas de sociabilidade e espaço público a partir da circulação do escrito
34
. Para ele, os
jornais, como meio de circulação do impresso, se vinculam às formas de sociabilidade. Eles
possibilitam a comunicação entre aqueles que lêem e escrevem, independente de serem
pessoas que participam da mesma sociedade, e/ou que apenas lêem, e escrevem somente em
suas esferas privadas. Segundo Chartier, essas considerações incluem o jornal “não como
lugar propriamente dito, mas sim como elemento que se vincula a outros lugares e que
funciona como uma forma de comunicação entre eles”. (2001, p.123).
Nesse sentido, os jornais identificam formas específicas de sociabilidade. Mesmo
tratando-se de contextos distintos, no caso dos periódicos goianos, acredito que eles atuavam
na sociedade como um meio que possibilitava às famílias goianas de se comunicarem entre si
e denunciarem às autoridades, suas principais queixas referentes à desordens no espaço
público, que atingiam suas esferas privadas. Os modos de sociabilidade apreendidos como
lícitos ou não, eram assim registrados nos periódicos.
Mesmo sem ter informações sobre o número de pessoas que nas primeiras décadas
de Goiânia, não tinham acesso à leitura e aos jornais, noto que a imprensa proporcionou uma
ligação entre o público e o privado, colocando em cena os diversos conflitos existentes entre
as famílias, o Estado, a polícia e a própria imprensa diante dos problemas considerados como
fenômenos morais. Portanto, ao analisar esses jornais como espaço de propagação dos
acontecimentos, como dispositivos, agentes de mediações sociais, é plausível pensar que tais
registros nos jornais, não apenas possibilitavam a ligação entre leitor e escritor com as formas
de sociabilidade, como também interviriam nessas formas de sociabilidade.
Outra questão relevante ao se conceber os jornais dessa forma, é analisar como
eles se tornavam um meio para exercer certas vigilâncias sobre os comportamentos no espaço
urbano, e das próprias condutas nos espaços privados, mas de forma invisível. Refiro-me a
uma vigilância invisível, no sentido de que a maioria das reportagens ficava em anonimato,
principalmente aquelas que continham denúncias contra os governantes ou algum órgão de
responsabilidadeblica. Dessa forma, considero novamente outro conceito definido por
Oliveira (1999), reelaborado a partir de Michel Foucault, o de que os jornais funcionavam
como uma forma de panóptico sem torre, multipresente. As matérias jornalísticas ficavam em
anonimato, mas não deixavam de registrar e colocar diversos acontecimentos, ao contato do
34
Em diálogo com Chartier (2001), Carlos Aguirre Anaya aponta que a circulação do escrito no século XVIII
estava especialmente ligada aos jornais diários, os periódicos e as formas de sociabilidade que eles supõe. Estes
expunham diversas opiniões compartilhadas e debatidas em diferentes locais. Todavia, a difusão e a circulação
dos periódicos estão inseridas em diferentes etapas em vários momentos. Ver em Chartier (2001).
87
julgamento público. Recorrendo aos tópicos acima da dissertação, observa-se que são raras às
vezes em que é declarado o nome do autor da matéria. Todavia, é notório que os pequenos
acontecimentos, conflitos cotidianos entre famílias e prostitutas, ou mesmos os crimes entre
as próprias famílias, eram noticiados pelos jornais.
Assim, suponho que a imprensa intervia nas condutas do espaço urbano através de
determinadas estratégias, como o próprio anonimato. O caráter de denúncia era evidente. As
denúncias da parte do jornal eram sempre feitas com ataques ao Estado, e até mesmo, ao Juiz
de Menores, quando tratava-se do problema do menor abandonado e da criminalidade infantil.
Os jornais tentavam pressionar as autoridades a tomarem provincias.
Em se tratando do jornal Cinco de Março, fica explícito o quanto ele fazia questão
de ressaltar o seu papel de agente interventor nos problemas da sociedade. No dia 26 de
novembro de 1962, ele registrou um fato polêmico, o afastamento de uma aluna do colégio
tradicional de Goiânia, Instituto de Educação de Goiás (I.E.G), que recebe apenas alunas do
corpo discente. Algumas alunas estavam sendo assediadas, tornando-se “vítimas de gracejos”.
Todavia, “algumas delas cederam ao assédio e passaram a freqüentar lugares suspeitos”.
Segundo a reportagem, o caso foi esclarecido na medida em que se comprovou que apenas
uma aluna foi encontrada em casas noturnas. É interessante ressaltar o trecho da reportagem
desse caso, para perceber o caráter modulador do jornal e da exaltação do seu papel como
interventor nos problemas da sociedade:
[...] Entendemos, entretanto, que o dever daquele Diretor seria outro
senão o de levar o conhecimento público, [...] as providências tomadas
por ele diante do acontecido, a fim de não só salvaguardar a honra das
outras mil alunas que estudam no I.E.G., mas também de fazer jus à
confiança que os pais dessas mesmas alunas depositaram no colégio, ao
matricularem ali, suas filhas. Pois, da maneira como se divulgava, sem
nenhum esclarecimento oficial, vidas outras poderiam sobrecair sobre
moças honradas e de exemplar conduta social [...]. Os comentários na
opinião pública deixam de existir, quando ela essatisfatoriamente
esclarecida e convicta da realidade dos fatos [...] Entendemos mais que a
função da imprensa sadia, não é outra senão a de esclarecer, orientar e
educar a opinião pública e não alimentar nela quaisquer degenerescência.
Por isso mesmo, deixaremos de publicar o nome da aluna expulsa do
I.E.G, porque com isso, alimentaríamos a fogueira do escândalo social
[...]. (Aluna do Instituto foi afastada: Esclarecido o delicado
acontecimento. Cinco de Março, Goiânia, 26 de novembro de 1962, p.3)
Aqui, pode-se observar o caráter estratégico do jornal, como de interventor das
condutas corretivas. Todos os casos considerados polêmicos e que mobilizavam a população,
88
o Cinco de Março problematizava. Na última semana de novembro do ano de 1959, o jornal
chegou a publicar que “há reclamações de que o jornal só publica sobre o meretrício e
menores abandonados”. Diante desse fato, o jornal se defendeu: “esses problemas são os
principais problemas sociais atuais [...] o estes os problemas da preocupação de uma
sociedade inteira. (Os problemas sociais. Cinco de Março, Goiânia, última semana de
novembro de 1959. p. 7).
Portanto, o jornal constantemente problematizava os fenômenos considerados
como os problemas da época, tornando-se dessa forma, a principal fonte de pesquisa desse
trabalho. Sobre o início da campanha contra a prostituição, o Cinco de Março notificou:
(...) Começávamos naquela época a nossa luta de imprensa, fundáramos a
pouco o “Cinco de Março”, e principiamos a pregação pela remoção do
meretcio, dos núcleos residenciais. Nossa luta foi dura, foi ferrenha, foi
ininterrupta. Procurando resolver o problema, satisfatoriamente, entramos
em choque com a polícia, e, até mesmo com o então Governador José
Feliciano Ferreira, que procurando não incompatilizar-se com as suas
eleitoras, esquivava-se do problema e fugia à luta. Enfrentamos protestos
políticos de todos os quilates possíveis (..) (Prostituão oficializada
estraçalha moral do povo. Cinco de Março, Goiânia, 26 de
maio.1962.p.08)
Através das discussões que esse jornal promoveu, como a campanha contra a
prostituição e o problema do menor abandonado, penso que ele possa ter servido como uma
forma de “consolidação de uma esfera contratual
35
, não de um modelo de instância jurídica,
mas apenas no sentido de tentar resolver determinados problemas cotidianos, seja do espaço
público ou privado, e de denunciar as autoridades. Essa concepção é válida não apenas para o
Cinco de Março, mas também para outros jornais analisados. A importância da imprensa e o
papel dos jornais na sociedade, também eram destacados nos jornais do Estado de Goiás. No
ano de 1938, o jornal “Cidade de Goiaz” registrou essa importância relacionando-a ao
desenvolvimento do Estado de Goiás:
Hoje é um dia de festas para Goiaz depois de alguns meses de espera,
surge, em fim, o jornal que levará, para todos recantos deste Estado tão
grande e o bom, a mensagem de amizade da Terra de Anhanguera.
Goiaz não podia continuar sem um jornal que a irmanasse às outras
cidades cultas do Estado. O descaso em que marchava a imprensa em
nossa cidade contrastava, singularmente, com a aureola do centro de
intelectualidade adquirida atras dos tempos pelo mérito de grandes
inteligências que aqui se formaram [...] O jornal é um dos índices mais
expressivos da cultura dos povos. Ele nos traz, na longa fileira dos anos,
35
Esse conceito também é definido por Oliveira (1999).
89
a palpitação da vida civilizada, fazendo-nos acompanhar a trajetória
apressada dos dias [...] Quando a cidade de Goiaz se vê desprovida de um
de seus fatores de progresso, há um desabrochar de esforço que faz surgir
[...] (Nice Monteiro, Bom dia. Cidade de Goiaz, Goiânia, 19 de junho de
1938, p.01).
Esse trecho é apenas um dos exemplos da atuação dos jornais. Nele, vemos que,
ao mesmo tempo em que o jornal se propaga enquanto tal, ele cultiva a imagem do Estado,
especificamente da cidade de Goiás, a antiga capital. Tal fato revela que a imprensa escrita
também teve o seu papel de atuação, diante da disputa que ocorreu entre os grupos poticos
favoráveis à transferência da capital da cidade de Gos para a cidade de Goiânia
denominados por mudancistas contra os grupos antimudancistas.
36
Na citação acima, do
jornal Cidade de Goiás, é notório a valorização da cidade de Goiás e do surgimento do jornal
como propagador da antiga capital. Conjuntamente, há uma crítica do descaso que é feita
sobre a capital quando não algum indício de progresso. Os detalhes positivos da antiga
capital do Estado indicam da parte da autora uma valorização positiva da cidade de Goiás.
Esse acontecimento condiz com a afirmação de Gomide (2004), de que os grupos
antimudancistas expressaram seus descontentamentos com o desejo da transferência da capital
e a necessidade de preservação da cidade de Goiás, através de alguns jornais locais como O
Democrata, Cidade de Goiás e A Coligação.
Desse modo, considero que a imprensa escrita da cidade de Gos e da cidade de
Goiânia são notoriamente fontes significativas de pesquisa, para aqueles que desejarem
pesquisar sobre a luta simbólica e/ou concreta que efetivou-se na transferência da capital da
cidade de Goiás para Goiânia, baseada em princípios de progresso versus tradição (arcaico).
Enquanto jornais como o Cidade de Goiás, na década de 1930, valorizava a imagem da cidade
de Goiás, outros como o Cinco de Março, a partir do ano de 1959, data de sua edição,
passaram a se preocupar com a imagem positiva da cidade, como espaço de modernidade e
progresso. As denúncias sobre a impunidade, a ineficiência do Estado, da Justiça e da pocia
diante dos casos de violência, da criminalidade infantil e da prostituição revelaram aspectos
negativos da vida citadina em confronto com os ideais modernos propostos pelo poder público
desde a fundação da cidade.
36
Compostos por representantes políticos e personalidades da antiga capital, que não desejavam a transferência
da capital da cidade de Goiás para Goiânia. A discussão sobre esses grupos com aqueles favoráveis a mudança
da capital, os mudancistas, na década de 1930 é analisada por rios trabalhos da historiografia goiana. 2004.
Dentre eles, CHAUL, Nasr Fayad; SILVA, Luís Sérgio Duarte. (org). As cidades dos sonhos. Goiânia: Ed. Ufg,
90
Assim, acredito que a imprensa escrita, sobretudo o jornal Cinco de Março, pode
ser concebida como um dispositivo que atuou na cidade como propagador da imagem da
cidade “moderna”, voltada para o “progresso”, mas com reflexos negativos de problemas, não
condizentes com princípios civilizatórios, necessários para uma capital moderna.
Oliveira (2004), ao discutir sobre as imagens goianas na literatura mudancista
aponta que a maioria das pesquisas feita na historiografia goiana é relativa aos ideais de
modernidade, que o poder público tentou construir desde a fundação de Goiânia. Dessa
maneira, grande parte das pesquisas foi feita através de fontes orais, fotografias, dentre outras,
que incorporaram esse discurso da imagem positiva da cidade. Nesse sentido, vejo que as
fontes jornalísticas apresentam um outro lado dessa imagem, além de proporcionarem um
leque de possibilidades de objetos de estudos, que não necessariamente referem-se à discussão
sobre a mudança da capital e a dicotomia da imagem de Goiânia tão discutida pela
historiografia goiana - mas que se correlacionam e se integram, direta ou indiretamente, na
construção desses acontecimentos.
Portanto, tratando-se das primeiras décadas da cidade de Goiânia, e do final do
século XIX e início XX do Estado de Goiás, considero que a imprensa teve uma atuação
importante nas denúncias dos femenos apreendidos como problemas morais e sociais, no
espaço público e privado, agindo como agentes de mediação social entre os problemas que
existiam entre as famílias e o espaço público. Na década de 1980, na qual o problema da
violência contra a mulher passa a ser declarado como um dos grandes problemas sociais da
cidade pressuponho que os jornais, especialmente o Diário da Manhã, também opera como
um agente interventor de mediações sociais.
Porém, as intervenções corretivas que ele opera nessa década, incluem as condutas
afetivas acerca dos cônjuges envolvidos numa relação conjugal violenta. Esse fato é
perceptível quando são discutidas as causas dessa violência. Creio que a imprensa passa a
interferir nas atitudes dos agressores de mulheres e das timas, ao policiar os costumes no
interior das famílias. Ela não age mais apenas nos limites dos problemas que afetavam as
famílias. Após a década de 1980, ocorre uma transformação da noção de violência, doravante
entendida como um ato, um gesto exercido e realizado unilateralmente sobre a superfície dos
corpos. A violência sica contra o corpo da mulher é que passa a ser declarada como um ato
inadmissível. Nesse sentido, de maneira quase imperceptível a imprensa adentra no interior da
vida privada, instalando limites da intimidade entre os cônjuges.
Por fim, acredito que a imprensa teve uma atuação importante no que tange à
constituição dos fenômenos morais e sociais, que emergiram na cidade de Goiânia e, no
91
Estado de Goiás. Ela agiu como um instrumento mediador de sociabilidades, entre os
problemas que existiam entre as famílias e o espaço público.
92
CATULO III
O FEMINISMO EM GOIÁS: A DENÚNCIA DOS CRIMES PASSIONAIS
3.1 O SURGIMENTO DOS GRUPOS FEMINISTAS EM GOIÂNIA
É perceptível que os problemas que circundaram e colocaram os casos de
violência contra a mulher como objeto de discussão na imprensa escrita, nas primeiras
décadas da cidade de Goiânia, estavam ligados a fenômenos morais que atingiam a defesa da
honra das famílias.
No entanto, a partir do ano de 1975, jornais como o Cinco de Março começaram a
dar um maior enfoque a alguns casos de assassinatos de mulheres, que não envolviam esses
problemas. O Cinco de Março passou a noticiar os dados pessoais das timas, geralmente
acompanhados de uma foto da tima ao lado. Alguns casos foram destacados como crimes
que mobilizaram a população.
No ano de 1975, o jornal publicou a morte de uma ex-miss da cidade de
Nerópolis, cidade próxima de Goiânia. Segundo o Cinco de Março, o assassinato causou
revolta na população devido a não identificação da causa do crime e do agressor:
Com um tiro na cabeça, foi morta no interior da churrascaria da Luci, em
Neropólis, Vera Lúcia Bastos Ramos, 28 anos, ex-miss da cidade [...] O
crime que abalou a população da vizinha cidade, ainda está envolto em
mistério e nem os depoimentos das testemunhas que se encontravam no
local, quando a morte ocorreu, possibilitam uma definição clara de
identificação do autor [...] Vera Lúcia era desquitada, enfermeira de
família tradicional em Nerópolis, filha de Antônio da Cunha Bastos e
Luiza de Castro Bastos. Deixou um filho de seis meses e, segundo seus
familiares, estava grávida de oito meses [...] Pela tradição e estima que
gozam seus familiares na cidade, sua morte consternou toda a população
mais ainda pela forma violenta e o mistério que a envolve [...] Descartada
a hipótese do suicídio, a tenncia da polícia é acreditar que o episódio
todo, fatal para a moça tenha resultado de um lamentável acidente
[...](Em Nerópolis, Mistério na morte da ex miss. Um tiro na cabeça e o
silêncio das testemunhas. Cinco de Março, Goiânia, 12 a 18 de maio de
1975. p. 7).
A reportagem evidencia vários dados da história da vida da tima, chegando a
ocupar duas páginas do jornal, o que não se encontra nos registros de crimes anteriores, que
na maioria das vezes eram destacados através de pequenos trechos. A matéria registra que o
93
crime da ex-miss comoveu a população devido à tima pertencer a uma família tradicional da
cidade. Todavia, percebi que após esse crime, o jornal, independente da situação social da
tima, passou a destacar detalhes sobre a sua vida, enfatizando os possíveis motivos de sua
morte ou das agressões sofridas.
Em 1979, a matéria intitulada “Quem matou a bela Inaldadiscutiu sobre o caso
do assassinato de uma estudante e manequim chamada Inalda Fátima Guimarães. A suspeita
de quem assassinou a estudante é que colocou o crime em debate. O Cinco de Março registrou
que esse caso “estava atravessando o tempo e caindo no rol dos crimes insolúveis” e, que sua
equipe de reportagem conseguiu pistas do assassino através de outra tima agredida num dia
anterior [...]. (Quem matou a bela Inalda? Cinco de Março, Goiânia, 03 a 09 .1979).
Ou seja, observa-se uma preocupação mais intensa da parte do jornal ao registrar
os casos de violência contra a mulher. Nesse mesmo ano de 1979, o jornal publicou alguns
casos de agressões contra as mulheres, incomuns aos dos anos anteriores:
[...] Espancada pelo amásio a lavadeira Maria Lourdes Amorim teve o
braço direito destroncado, o esquerdo quebrado [...] Quinta feira, 31 de
agosto. O dia fora duro e Maria de Lourdes, apesar dos seus 27 anos de
idade estava esgotada [...] Chegando em casa, Maria de Lourdes
estranhou o estado do amásio. Ele não se firmava sobre as pernas de tão
bêbado [...] Maria de Lourdes depois de passar pelo Instituto de Medicina
Legal, foi dar parte do amásio no D. P. [...]. (Bêbado quebra braço de
mulher a pancadas. Cinco de Março, Goiânia, 10 a 16 de setembro de
1979.p.08).
Apesar do tom pitoresco da reportagem, em casos como esse, detalhes
importantes no que tange à denúncia da violência contra a mulher: as agressões físicas
sofridas pela tima classificadas atualmente como lesão corporal pela Delegacia Especial
de Defesa da Mulher – e o motivo da agressão sofrida, no caso, o fato do agressor ter bebido e
ter sido denunciado pela vítima à delegacia. Nota-se que, anteriormente, nas primeiras
décadas da cidade, não registros nos jornais de casos em que as esposas denunciam seus
parceiros. Isso significa que a violência conjugal, ocorrida no interior das famílias, e
apreendida como um problema de defesa da honra, não era exposta publicamente. Além desse
fator, não havia uma instituição específica, de auxílio as vítimas de violência contra a mulher,
a qual elas pudessem recorrer.
Portanto, esse caso acima, exemplifica uma das principais mudanças na
problematização acerca da violência contra a mulher: a violência no interior das famílias
passou a ser debatida. As causas internas a essa violência tornam-se os fatores principais a
94
serem questionados. O argumento do agressor, de ter violentado a esposa por decorrência da
embriaguez, por exemplo, é típica na grande maioria dos crimes entre njuges. Assim como
a bebida, outras justificativas alegadas pelos criminosos começaram a ser indagadas, pois elas
colocam em pauta a discussão sobre as causas que levam os njuges de mulheres a
violentarem suas parceiras.
Porém, nesses casos citados acima, referentes ao final da década 1970, o jornal
aponta apenas os primeiros indícios dessa mudança na apreensão do fenômeno da violência
contra a mulher: a própria foto da tima exposta ao lado da descrição do crime, junto à
detalhes sobre sua vida, revela um dos indícios de preocupação com a tima da violência,
como um sujeito que sofreu uma agressão sica. Percebe-se que não uma preocupação
com a violência moral contra as famílias, e sim com a vítima de agressão. A vítima é
identificada através de seu nome. As expressões como “mulheres, ou menores de famílias”,
deixam de ser noticiadas pelos jornais.
De toda forma, é a partir do ano de 1980 que essas mudanças na compreensão
acerca desse fenômeno são perceptíveis nos registros dos jornais. A maioria dos crimes
registrada é relativa aos crimes passionais. Esses crimes passam a ser problematizados através
de noções românticas, tais como amor e paio, referentes à maioria das justificativas dos
agressores. Essas categorias românticas aparecem nos jornais após o ano de 1980. Os seus
significados não estão ligados a problemas de ordem moral. Elas eram debatidas pela
imprensa como denúncias de assassinatos e agressões físicas contra as mulheres, pois eram os
argumentos dados pelos agressores, por terem cometido tais delitos. Retorno essa discussão
logo abaixo.
Nesse momento, gostaria de sublinhar as novas forças atuantes que surgem diante
do fenômeno da violência contra a mulher, após a década de 1980, perceptíveis através dos
jornais de Goiânia. A partir do ano de 1980, jornais como o “Diário da Manhã” e “O
Popular”, além de noticiarem os principais crimes passionais que ocorriam na cidade,
passaram a registrar e debater sobre as causas desse fenômeno:
[...] a violência contra a mulher começa desde a infância, apoiada pela
literatura infantil, onde a mulher sempre desempenha um papel
secundário. Enquanto sua função é de doméstica, o homem tem seu papel
social reconhecido [...] A mulher é violentada quando sai para trabalhar
na fábrica ou como doméstica [...] A mulher é violentada também dentro
do aspecto ideológico [..] Veja que na fase da formação de nossas
crianças a mulher passa a ser discriminada [...]. (Telma Camargo
Quarenta mulheres mortas por seus maridos. O Popular, Goiânia, 08 de
novembro de 1981.p.11).
95
A autora dessa matéria é uma das componentes dos primeiros grupos feministas
de Goiânia, o GFE (Grupo Feministas de Estudos). Observa-se que o jornal publica a opinião
da feminista, sobre as causas da violência contra a mulher. Para ela, essa violência está
enraizada nas desigualdades entre os sexos construídas desde a infância. No decorrer de
outras entrevistas que a feminista concede ao jornal, ela afirma que essa desigualdade é fruto
de uma cultura machista e patriarcal, típica das famílias goianas.
Dessa forma, a origem social da violência contra a mulher torna-se um dos
principais pontos de discussão sobre esse fenômeno a partir da atuação do movimento
feminista. Trechos de reportagens como esse, noticiando as principais opiniões dos grupos
feministas e de outros segmentos da sociedade, sobre os casos que levam um homem a agredir
uma mulher, foram comuns e quantitativos nas folhas dos jornais de circulação diária de
Goiânia, nessa época.
Portanto, surgem na década de 1980 novas forças históricas diante do femeno
da violência contra a mulher, os grupos feministas. No ano de 1981, é inaugurado o grupo
GFE (Grupo Feminista de Estudos), que posteriormente se dividiu no grupo Eva do Novo. No
ano de 1983 surgiu o CEVAM (Centro de Valorização da Mulher). Esses grupos foram
compostos de mulheres intelectuais, de classe média, professoras e profissionais liberais, com
o objetivo “de estudar a questão da mulher para atuarem como formadoras de opinião sobre a
opressão de gênero”, além de terem como prioridade o estudo da situação e atuação da mulher
na sociedade. Havia uma luta específica da parte destes grupos pela igualdade de direitos
entre os sexos, sendo este o ponto principal do ideário feminista que se propagava na
sociedade brasileira dos anos 80, como parte de um dos movimentos sociais urbanos que
lutavam por direitos humanos, num período de redemocratização do país. ( ROCHA e
BICALHO,1999,p.22).
Esses grupos feministas constitram-se como fruto da geração dos anos 60 e 70,
no qual mulheres engajadas numa ação política” começaram a atuar no espaço público na
busca de melhores creches, melhoria salarial, em torno da anistia, e até mesmo promovendo
trabalhos educativos junto a sindicatos, associações e movimentos populares de bairro em
defesa da democracia.
O Cevam (Centro de Valorização da Mulher) tornou-se a principal entidade no
combate a violência contra a mulher, desde a década de 1980. As componentes desse grupo
começaram a protestar contra a absolvição da maior parte dos criminosos de mulheres:
96
[...] No julgamento de amanhã, um grupo de manifestantes filiado ao
Cevam – Centro de Valorização da Mulher – voltará a distribuir panfletos
na porta do Fórum, numa campanha desencadeada desde o início do mês
e que visa levar ao conhecimento do povo as constantes violências a que
as mulheres são submetidas. A orientação do Cevam é para que, em cada
julgamento, a distribuição dos panfletos seja feita por um grupo diferente
de mulheres, e do lado de fora do Fórum [...]. (Vai ao Júri o homem que
matou a mulher. Diário da Manhã, Goiânia, 25 de setembro.1983.p.16).
O Cevam manifestou-se através de slogans, tais como: “Sem Punição Mais
Mulheres Morrerão”; Marido e Companheiro não é carrasco (...)”; “Em briga de marido e
mulher não se mete a colher, chama-se a polícia”. Ele teve presença marcante, com a
realização de denúncias de assassinatos de mulheres na porta do Fórum; lutou pela criação da
Delegacia Especial de Defesa da Mulher e da Secretaria Estadual da Condição Feminina, em
1987. Ele deixou de ter sede própria no período de 1991 a 1994, reestruturando-se com o
propósito de exigir o fortalecimento da delegacia da mulher. (ROCHA e BICALHO, 1999, p.
25).
Desde o surgimento desses grupos, as feministas protestaram contra o alto índice
de absolvições de agressores de mulheres, contra os argumentos da legítima defesa da honra,
do ciúme, da traição e do amor, relativos às principais justificativas dos cônjuges de mulheres.
Portanto, iniciou-se o debate sobre as possíveis medidas de prevenção e solução dessa
violência. Essa discussão é lançada na opinião pública pelo feminismo, que passa a insistir
que a violência contra a mulher é um problema de direitos humanos, que deve ser discutido
por toda a sociedade. A partir da atuação desses grupos de denúncia, os jornais registraram a
opinião das feministas, de advogados (as), juízes (as), delegados (as) e também da própria
opinião pública, que passaram a interagir com esse problema.
Os grupos feministas reivindicaram à instituições como o Estado, a justiça e a
polícia atitudes em relação ao combate à esse femeno. Foi a partir dessas reivindicações
que surgiram as delegacias especiais de defesa da mulher e, até mesmo, instituições de caráter
o governamental no auxílio às timas de violência. O Cevam e o GFE associaram-se às
ações institucionais das quais originaram-se o Conselho Municipal da Condição Feminina, a
Delegacia Especial de Polícia de Defesa da Mulher em Gos, junto a Secretaria Estadual da
Condição Feminina. (ABREU, 2002, p.55).
Essas novas instituições, principalmente a Delegacia de Polícia de Defesa da
Mulher, auxiliaram na disseminação do problema do femeno da violência contra a mulher
na esfera pública. O surgimento de uma Delegacia proporcionou às vítimas de violência
97
denunciarem seus parceiros. Uma das concretizações de caráter governamental consiste no
surgimento das casas de abrigo para as timas de violência, que não possuem condições
estruturais para sair de uma relação conjugal violenta. Essas casas de abrigo, iniciadas na
década de 1980, têm como objetivo fornecer apoio material e psicológico à essas mulheres.
O feminismo em Goiânia foi ganhando espaço na década de 1980. Parte das
propostas feitas por esses grupos, inclusive o seu reconhecimento como instituições aptas a
auxiliarem no combate à violência contra a mulher, foram reconhecidas pelo Estado. A
Câmara Municipal de Goiânia, no dia 31 de outubro de 1989, aprovou e sancionou a lei que:
Institui campanha permanente em defesa dos direitos da mulher e contra
a violência e discriminação de quem é vítima. Art.1: Fica instituída a
campanha permanente em defesa dos direitos das mulheres e as
violências e discriminações de quem são vítimas, a ser promovida junto à
comunidade goianiense [...] A elaboração do conteúdo do programa desta
campanha será coordenado pelo Conselho Municipal da condição
Feminina, sendo assegurado a participação das entidades e movimentos
de mulheres da capital, bem como da Delegacia Municipal da Mulher
[...]. (GOIÁS. Fonte: Câmara Municipal de Goiânia, 1989).
Dessa forma, nota-se que os grupos feministas atuaram na sociedade em parceria
com as esferas do Estado e da Justiça, clamando por medidas e propostas de prevenção dessa
violência. A própria lei municipal reconheceu a violência como um fenômeno socialmente
inaceitável. Coube ao Conselho Municipal da Condição Feminina, com o apoio da Câmara
Municipal, iniciar uma campanha contra a violência contra a mulher, que interagisse com a
comunidade e as entidades feministas. Assim, o surgimento dessas novas instâncias, desses
novos dispositivos, em interação com o Estado e a sociedade, revela o momento em que à
violência contra a mulher se transforma em um problema social. Esses grupos atuaram entre
as instâncias da família e do Estado diante do combate da violência contra a mulher.
Anteriormente a década de 1980, cabia apenas às famílias procurarem a polícia e a
justiça, para repararem sua honra perdida, diante dos crimes contra as mulheres de família que
ocorriam nos espaços da cidade. Esses crimes eram perceptíveis quando estavam
interligados a femenos que atingiam a honra das famílias, que por vezes, também atingiam
a honra da cidade. A violência contra a mulher era entendida como uma violência moral, de
ofensa à honra das famílias. Dessa forma, o Estado e a polícia eram acusados pelas famílias
diante de sua ineficiência acerca desses problemas. Essas esferas agiam apenas nas fronteiras
das questões morais que ameaçavam o interior dos espaços privados, das famílias. Não havia
uma interferência direta do Estado no interior do núcleo familiar. A resolução dos crimes
98
passionais, por exemplo, era feita pelas próprias famílias, pela reparação da honra maculada.
O recurso às instituições do Estado e da Justiça era limitado. Elas interferiam sobre esses
crimes quando as famílias a procuravam. E, de toda forma, a punição feita por esses órgãos,
o era por uma questão de defesa à tima de violência, mas sim, por uma questão de
reparação da honra das famílias. Após a década de 1980, as mulheres timas de violência,
puderam recorrer à justiça para acusarem seus parceiros, o que revela um movimento que
substitui os tipos de vingança privada, cometidas pelas famílias das timas desonradas, pela
força da lei. Dessa forma, há um deslocamento de sentido dessas esferas.
A partir da década de 1980, os grupos feministas transformaram o problema da
violência como um fenômeno que o dever ser ignorado pelo Estado. Passa a se exigir uma
ação da justiça em relação à punição dos agressores de mulheres. Porém, não se trata mais de
reparar a dignidade das famílias, mas sim, de discutir as origens sociais desse problema e
buscar possíveis soluções para ele.
Nesse sentido, as imbricações entre as esferas institucionais e o espaço das
famílias foram se alterando, e possibilitando a transformação da violência contra a mulher em
um problema social. As relações entre os campos da justiça, do Estado e da polícia se
reorganizaram diante dos problemas das famílias, articulando-se em novas instâncias de
intervenção no âmbito do privado. O surgimento desses novos dispositivos que circunscrevem
as famílias, como os grupos feministas, e suas relações com “setores mais vastos e antigos”,
como o Estado, a Justiça e a pocia, pode ser relacionado a uma das explicações dadas por
Donzelot (1986, p.1/8) sobre a ascensão do termo social. Para ele, o social é diferente de
setores como o econômico e o judiciário. Ele é a extensão desses “setores”. É um donio
híbrido nas relações entre o público e o privado; ele se encontra no entrecruzamento entre
rias linhagens em mutação principalmente com as famílias”. novos dispositivos que
funcionam nos interstícios de “aparelhos mais vastos” ou mais antigos e agem sobre as
famílias.
Dessa maneira, acredito que a autonomização dos grupos feministas, das
delegacias de defesa da mulher, e de outras instituições, mediadas por esferas governamentais
ou não, diante da violência contra a mulher, revelam um dos elementos que comem o
processo de transformação dessa violência como um problema social.
Todavia, a constituição desse fenômeno como um problema social é decorrente de
um conjunto de forças históricas ligadas à esse fenômeno, desde quando ele era apreendido
como um problema moral, de ofensa à honra das famílias. Isso inclui os elementos que
99
conectavam-se aos crimes contra as mulheres, como a prostituição, os problemas negativos da
vida citadina, como a própria impunidade, como foi destacado no decorrer do trabalho.
Com o surgimento dos grupos feministas, as feministas começaram a afirmar que
a violência contra a mulher não é problema da alçada das famílias, mas sim, um problema
social, que possui suas origens na sociedade, sejam elas econômicas ou culturais. Portanto,
cabe às esferas institucionais agirem sobre esse femeno, tomando medidas de intervenção
no interior dos espaços privados. A violência no interior das famílias passa a ser combatida
como uma violência que atinge diretamente o corpo da mulher, identificado erroneamente
pelo agente da agressão como objeto de sua posse.
37
Os grupos feministas comaram a
insistir que a mulher é portadora de direitos como ser humano. Para tanto, é necessário
existirem leis específicas sobre os crimes contra a mulher relativas a punições dos
agressores.
38
Ou seja, nota-se a inversão do mecanismo social que ligava as famílias e o Estado
diante da violência contra a mulher. Por se tornar um problema social, os motivos alegados
pelos agressores ao assassinarem suas parceiras, relativos ao ciúme, ao amor, e a legítima
defesa da honra passaram a ser questionados. O argumento da legítima defesa não está ligado
a um sentido de defesa da honra das famílias, mas de defesa da honra pessoal do agressor. A
noção de honra não desaparece, mas muda de sentido.
39
A partir da década de 1980, a violência no interior da família é problematizada.
Todavia, apesar dessa violência ter sido considerada como um problema, a grande
preocupação não foi com a instituição da família, mas com a situação da mulher, sujeito dessa
violência, e das causas relativas a essa violência. Assim, essa violência deixa de ser um
problema moral e passa a ser um problema social.
3.2 CRIMES PASSIONAIS: O AMOR, A PAIXÃO E O CIÚME
[...] a causa da absolvição de tais criminosos passionais não é a paixão
mesma, é a loucura, de que a paio é apenas uma manifestação. Assim,
para que a paio exclua a responsabilidade de criminoso, é preciso que
37
Identificados como grupos de denúncia dessa violência, eles devem ser vistos, antes de tudo, como
dispositivos do social. Eles passam a operar cortes no interior das famílias; a instaurar novos limites entre os
corpos no interior dos espaços privados. De maneira quase imperceptível, desenham nesse espaço novos limites
entre os corpos, marcando as distâncias das aproximações autorizadas e das separações doravante exigidas.
38
Vale ressaltar que, atualmente, a violência contra a mulher ainda é especificada na legislação como um crime
de menor potencial.
39
Retomo essa discussão no último tópico.
100
esta seja louca e aquela uma forma de loucura [...] (ROBERTO LYRA,
1932, p.20).
Após a atuação do movimento feminista, a maior parte dos casos de violência
contra a mulher destacada pela imprensa refere-se aos crimes passionais. Esse conceito é
relativo aos crimes cometidos por paixão. Com aponta Luiza Magib Eluf (2003, p.111), de
todo crime conceituado como passional derivam, no sentido amplo do termo, os crimes
decorrentes de uma paixão. Vários tipos de homicídios, muitas vezes, são classificados como
passionais. Todavia, na linguagem jurídica, o termo passional designa apenas os crimes
cometidos em razão de relacionamento sexual e amoroso.
Nesse sentido, a maioria dos crimes entre njuges, classificada como
passional, foi problematizada nos jornais da cada de 1980 através das noções do amor, da
paixão, do ciúme, da traição e da legítima defesa da honra, relativas à maioria das
justificativas alegada pelos agressores de mulheres. A pergunta, “Mata-se por amor?” esteve
no cerne das discussões acerca da violência conjugal por parte dos grupos feministas, da
imprensa e da própria opinião pública.
No dia 02 de agosto de 1981, o Diário da Manhã divulgou uma matéria extra
intitulada: “Assassinatos de Mulheres. Os Casos que abalaram Goiás”. A reportagem é rica
em problematizações sobre as causas dos crimes passionais, preenchendo cinco folhas do
jornal. Ela tornou-se aqui a nossa principal fonte, por exemplificar os principais problemas
acerca desses crimes a partir da década de 1980. Segundo a matéria,
[...] Ao todo, de janeiro até agora, apenas o Diário da Manhã noticiou que
outras 14 mulheres foram mortas pelos seus maridos, ex-maridos,
companheiros, todos que diziam amá-las, a tiros de revólver, golpes de
machado, espancamentos e facadas. As razões apresentadas pelos
assassinos são invariavelmente seu próprio ciúme e pretensa infidelidade
conjugal das vítimas. E numa sombria perspectiva de impunidade para
esses criminosos, somente neste ano foram absolvidos dois matadores
de mulheres. Em maio, foi absolvido Agnaldo Nepomuceno que, no dia
22 de outubro de 1976, matou sua amante Divina Lima de Souza, com
rias facadas. Sua liberdade deveu-se a um simples atestado médico que
o definia como epiléptico, e portanto, inconsciente dos seus atos. No mês
de junho, sustentando a tese de legítima defesa da honra” [...] foi
igualmente absolvido Divino Vieira da Cunha [...]
Nota-se que as questões da impunidade, do amor, do ciúme, da infidelidade e da
legítima defesa da honra, permeavam o debate sobre esses crimes. A grande preocupação era
101
com o índice de mortalidade de mulheres timas de agressões cometidas por seus parceiros.
Os abusos sofridos pelas vítimas, através de facadas e espancamentos, tornam visível o
conjunto das marcas da violência inscrita nos seus corpos. A dimensão da violência sica
registrada nos jornais reflete a inversão do significado da violência contra a mulher. Ela o é
mais uma violência que afeta apenas a moral e a honra das mulheres, da família, mas uma
violência que gera danos sicos na vítima de agressão, até no limite, a morte.
Diante dessa dimensão da violência sica contra a mulher, as categorias morais
que antes circunscreviam os crimes, deixam de atuar sobre esse fenômeno. Surgem novas
noções que aparecem nos casos de violência contra a mulher, especificamente, nos crimes
passionais, como o ciúme, o amor, e a infidelidade, correspondentes a fatores internos à
família, à relação conjugal. Na trajetória desses crimes passionais, na maioria das vezes,
observam-se as seguintes seqüências: o agressor alegava ter assassinado a parceira devido ao
adultério, à suposta infidelidade conjugal ou ainda pela não aceitação do rompimento do
relacionamento. Esses fatos eram justificados pelo argumento do ciúme, o que era associado
como conseqüência do amor do cônjuge pela tima.
40
Os advogados de defesa alegavam à
legítima defesa da honra ou um crime acidental, muitas vezes movido por um momento de
forte emoção e, na grande maioria dos casos, os criminosos eram absolvidos. Na mesma
reportagem supra citada, o Diário da Manhã divulgou uma seqüência de crimes, desde a
década de 1960:
20 de abril de 1965 - Belgina Marques Rezende, funcionária do
“Cepaigo” [...] desapareceu, depois de ter sido vista dentro de um carro
em companhia de João Alberto Magalhães Borges, fiscal de rendas do
Estado, sobrinho do ex-governador Pedro Ludovico, [...] com quem
mantinha um romance a mais de quatro anos [...] Motivo: ela queria o
rompimento definitivo do romance a fim de se casar com o noivo, que
não era senão o diretor do presídio [...] Após a morte, João Alberto
colocou o corpo no banco traseiro do carro [...] e o jogou dentro do
Ribeirão de Anicuns [...] Cinco meses depois [...] João Alberto,
submetido a dois júris populares, foi absolvido por unanimidade de votos
por inexisncia do corpo de delito.
17 de abril de 1967 - Maria Helena Di Simiema Mendonça, funcionária
pública estadual, 24 anos, casada, mãe de dois filhos, morreu pelas mãos
40
É interessante perceber que, a partir do momento em que a violência contra a mulher se transforma em ação de
um agente (de força superior) sobre um corpo (identificado a uma força inferior), em que ela passa a estar
localizada na superfície exterior do corpo da mulher, a origem dessa agressão, concomitantemente, será
localizada na interioridade do corpo do agressor. Uma psiquê até então inexistente, passa a ser alegada. Se
pensarmos nos grupos feministas, como dispositivo do social, de denúncia das origens da agressão, até que ponto
não devemos relacioná–los à produção de um novo espaço interior, de uma nova interioridade? Ao tentarem
impor limites entre os corpos, pressuponho que a atuação desses grupos possa estar relacionada a uma
psicologização do social. Pretendo desenvolver esse problema em outro trabalho.
102
do ex-marido, o professor e advogado Evandro Mendonça Ribeiro [...]
Em sua defesa, Evandro declarou que Maria Helena era adúltera [...] Os
argumentos de Evandro foram acatados pelo corpo de jurados e ele foi
absolvido em legítima defesa da honra.
22 de abril de 1977 - Maria Augusta Xavier Sabag [...] foi brutalmente
espancada até a morte pelo marido, o advogado Marcos Sabag [...] o
advogado confessou o crime dizendo que não pretendia matar sua
mulher, mas que não conteve o ciúme que ela tinha por ele [...] Talvez
por ser Maria Augusta pertencente a família influente, tendo seu próprio
tio, Rivadávia Xavier Nunes, ex-secretário da Segurança Pública [...]
Marcos foi um dos raros casos (ou o único?) de matadores de mulheres
condenados em Goiás. Sua pena foi de 21 anos de prisão [...]
19 de maio de 1980 - Joana D’arc Guerra, 25 anos, estudante de direito
na UFG, desquitada um ano e meio, foi assassinada pelo ex-marido
Eduardo Rosa [...] No processo, uma testemunha declarou que o motivo
provável do crime foi o ciúme [...] Ao apresentar sua versão, Eduardo
disse que tudo começou com uma discussão em que sua ex-mulher lhe
exigia um veículo [...] Joana D’arc se apossou da arma que estava dentro
do carro de Eduardo e ele, ao tentar desarmá-la, teria disparado
acidentalmente [...] O processo ainda encontra-se em fase de inquirição
de testemunhas [...]
Percebe-se que o primeiro crime registrado na reportagem é o assassinato de
Belgina Márquez, do qual tratamos anteriormente. Na época, o jornal considerou como
problema a impunidade do agressor, uma das questões que levou os crimes conjugais a
serem registrados nos jornais. Todavia, essa impunidade refletia uma ameaça moral às
famílias e a cidade. Ela estava ligada a outras questões. Nessa reportagem acima, vemos
novamente o problema da impunidade diante do mesmo crime. Porém, ele não está ligado
a um problema moral, mas às agressões sicas cometidas pelos agressores que se apóiam
no argumento da legítima defesa da honra. Esse argumento tornou-se num dos pilares que
sustentou a impunidade.
Nota-se que os outros crimes citados envolvem esses fatores. Independente do
status social dos cônjuges, os crimes passionais foram considerados pelo jornal Drio da
Manhã como um dos grandes problemas sociais da época. Todavia, os crimes que envolveram
agressores ou vítimas pertencentes às camadas altas da sociedade eram retratados como
patológicos. As timas tornavam-se culpadas e o pretexto dos agressores era o da legítima
defesa da honra, muitas vezes seguida do envolvimento com a bebida. O argumento dos
agressores era de que no ato do crime, eles foram levados por um momento de forte emoção.
Em algumas matérias jornalísticas da década de 80, evidenciei slogans, tais como:
“Assassinos ricos necessitam de tratamento médico”.
O argumento de ter agido num momento de forte emoção, fez parte dos
103
principais crimes passionais que repercutiram nacionalmente e na imprensa goianiense
nessa década. Dentre eles, encontra-se o de Doca Street contra Ângela Diniz. Segundo Eluf
(2003), foi a partir desse crime que o ciúme, o argumento de ter agido sob forte emoção e o
slogam “quem ama não mata” comaram a repercutir na imprensa escrita e falada. O caso
ocorreu no dia 30 de dezembro de 1976. Doca alegou ter assassinado Ângela devido ao seu
ciúme, pelo fato dela tentar seduzir uma outra mulher, uma alemã chamada Gabrielle
Dayer. Após matar Ângela, ele alegou à imprensa que a amava. Eluf aponta que a primeira
provincia tomada pelo advogado contratado pela mãe de Doca foi procurar realizar uma
perícia dico-psiqutrica para justificar a tese defensória de violenta emoção.
Dessa forma, Doca, instruído por seu advogado, deu uma versão passional para o
crime que cometeu, tendo uma outra mulher como pivô. No entanto, a perícia dica não
conseguiu confirmar um estado emocional que justificasse a agressão de Doca”. O segundo
advogado do agressor usou a tese da legítima defesa da honra, com excesso culposo, e
conseguiu uma pena diminuta de dois anos. No entanto, em novembro de 1981, Doca foi
levado novamente a julgamento devido a pressão das feministas - com o slogan: “quem ama
o mata” - , e dos próprios promotores de justiça, que não conformaram-se com a decisão do
Júri. Doca foi condenado a 15 anos de reclusão por homicídio qualificado. O Júri entendeu
que ele não agiu em legítima defesa, muito menos para defender sua “honra ferida” (ELUF,
2003, p. 68/69).
Eluf, ao analisar esse crime, cita que a revista Veja, no dia 11 de novembro de
1981, após o julgamento de Doca, registrou que a organização feminista SOS Mulher de São
Paulo, catalogou 722 crimes impunes de homens contra mulheres, que alegaram ter
assassinado suas parceiras por ciúmes. Segundo a autora, iniciava-se na sociedade brasileira
um processo de mobilização contra os crimes passionais, movidos pelo amor.
Outro crime, considerado como um dos principais crimes passionais à época, foi
do cantor goiano Lindomar Castilho, que assassinou a ex-esposa Eliane Grammont numa
boate em São Paulo, no ano de 1981. Eliane estava cantando ao lado de um primo de
Lindomar que, segundo os comentários jornalísticos, tinha um relacionamento amoroso com
ela. Por ciúmes, Lindomar assassinou a ex-esposa. Após confessar o crime, disse à imprensa
que a amava com certeza total, mas que agiu sob um momento de forte emoção.
Eluf (2003) ressalta que o argumento de ter agido sob um momento de forte
emoção resultou na tese de homicídio previlegiado: resultante de violenta emoção. Esse
argumento foi utilizado pelo advogado de Lindomar. No entanto, no último julgamento do
104
caso, realizado em 1984, o Júri alegou ter ocorrido homicídio qualificado: meio que
impossibilita a defesa da vítima. O advogado Márcio Tomaz Bastos, contratado pela família
de Eliane, em entrevista concedida à folha de São Paulo, o dia 23 de agosto de 1984,
declarou:
Não se aceita mais um crime com este [...] é o chamado falso crime
passional. Lindomar se dizia apaixonado e traído pela mulher, mas eles
estavam separados há um ano. Foi um crime premeditado [...] Ele
finalizou repetindo “quem ama não mata”, frase cunhada pelos
movimentos feministas de então. (ELUF, 2003, p.78).
Portanto, a questão do amor foi invocada no tribunal do júri, pelo movimento
feminista, e inclusive por diversas opiniões registradas nos jornais. No caso de Lindomar
Castilho, desde o primeiro julgamento, as feministas manifestaram-se na porta do Primeiro
Tribunal do Júri da cidade de São Paulo, gritando o slogam: “quem ama não mata”, “sem
punição mais mulheres morrerão”. O jornal Diário da Manhã, de Goiânia, acompanhou todos
os passos de investigação policial, até a condenação de Lindomar. O crime causou revolta nas
feministas, pelo fato de Lindomar continuar fazendo shows normalmente após cometer o
crime: (“Primeiro Show após o crime. Lindomar ainda crê na paz e no amor”. Diário da
Manhã, Goiânia, 02 de outubro de 1981, p.02).
As questões do amor, do ciúme e do argumento defensivo de ter agido em um
momento sob forte emoção, foram os novos dispositivos atuantes no problema da violência
contra a mulher. Ressaltei esses crimes alegados sob o argumento do amor, para demonstrar a
ênfase que os jornais passaram às lhe dar. A imprensa, ao discutir se o agressor assassinou por
amor ou por ter agido sob um momento de forte emoção, demonstra que o problema,
doravante, foi colocado em termos das causas e das origens dessa violência. Nesses casos
específicos de crimes, eram essas noções românticas, justificadas pelos criminosos e
apreendidas por parte da opinião pública como será visto posteriormente- que eram as
causas dessa violência. Nesse sentido, diferentes segmentos da sociedade, como as feministas,
os advogados, juízes, dentre outros, passaram a explicar, de acordo com suas opiniões
específicas, o que pensavam dessas noções românticas como justificativas dessa violência.
Na década de 1930, na cidade do Rio de Janeiro, essas noções foram o ponto
principal de discussão no Tribunal do Júri e da própria imprensa carioca. Nesse momento, o
índice de absolvições de criminosos de mulheres que assassinaram suas esposas e/ou parceiras
destacou-se na sociedade. A benevolência do Tribunal do Júri com os crimes baseados na
paixão fez com que parte dos juristas brasileiros e membros do Conselho Brasileiro de
105
Higiene Social passassem a questionar esses crimes. Roberto Lyra, em “O Amor e a
Responsabilidade Criminal” (1932), através de fatos concretos julgados no Tribunal do Júri
nesse período, demonstra através de alguns libelos – exposição feita ao Juiz - como o amor e a
paixão foram condenados pela sociedade e consequentemente no Tribunal.
Os sentimentos da paixão e do amor, que levavam os agressores a assassinarem
suas parceiras, eram associados à loucura e eram percebidos como um problema criado pelo
romantismo do século XIX. No prefácio da obra de Lyra, Afrânio Peixoto - criminologista da
época - alega que a paixão e o amor, baseados no romantismo do século XIX, geraram a
glorificação do crime passional, levando os advogados de defesa a serem benevolentes com os
crimes baseados no amor. Segundo Peixoto, “amor invocado”, certa a absolvição. Para ele,
[..] o romantismo, o disse, o disseram, é uma tumultuaria moda, o
apenas literária, mas philosofica, política, jurídica, social, doutrina
scientífica, e também literária [...] mas é tempo que se torne a sabedoria,
ao juízo, depois de experimentadas as calamidades do sensualismo
individualista [...] Dessas paixões, a do amor, absorveu todas as outras,
chegando no seu delírio, à glorificação do crime passional. Passional, isto
é, restrictivamente, erótico, amoroso. Mesmo sem amor, quase sempre; o
crime em que a paciente, raramente o paciente, seja uma criatura de outro
sexo [...] os advogados de defeza descontam a benevolência do jury,
quando os abomináveis o classificados de passionais [...] (PEIXOTO in
prefácio, LYRA, 1932, p.11).
Tanto Afrânio Peixoto quanto Roberto Lyra, junto a outros juristas da época,
foram contra a absolvição dos criminosos passionais. Para tanto, começaram a questionar tais
noções, como o próprio amor, que levavam os agressores a serem absolvidos. Nas notas
publicadas por Lyra, ele indica os argumentos feitos pelos promotores públicos da época
relativos a esses crimes passionais. Geralmente, o promotor público questionava aauto
caricatura do criminoso passional”. O perfil psicológico do acusado era sempre requisitado
por parte de alguns promotores públicos, que eram contra a absolvição desses criminosos, já
que a maioria alegava “ter perdido a cabeça no momento do crime”, estando em pleno estado
de loucura. Os advogados de defesa se apoiavam nesse argumento da loucura, fazendo com
que parte do júri popular e a própria populão acreditassem nessa versão. Lyra, promotor
atuante na época, ressaltava ironicamente:
[...] para que a paixão exclua a responsabilidade de um criminoso, é
preciso que este seja louco e aquela uma forma de loucura [...] O
arrastamento passional que leva ao crime o pode ser um fenômeno
patológico isolado; pode ser a transformação de uma moléstia nervosa,
106
em indivíduos dotados desses temperamentos [...] desequilibrados,
predispostos à alienação mental, nos quais a paixão é uma neuropatia em
evolução para a loucura, é uma nevrose precursora [...] o crime passional
marca o período em que a tenncia para a loucura tornou-se loucura. A
loucura simplesmente passional, que aparece em indivíduos os na
ocasião do crime, que não existia antes dele e que deixa de existir depois
dele, é uma criação da imaginação dos poetas e da fantasia dos
romancistas e dramaturgos, mas que não é admitida na medicina legal,
nem pelo direito penal. (LYRA, 1932, p.20).
No decorrer de todo o livro, Lyra critica a justificativa da paixão que leva à loucura,
no sentido de que vários criminosos nunca tinham apresentado nenhum estado de loucura até
o momento do crime. Para o autor, essa loucura servia para justificar o crime passional. Ao
questionar o perfil psicológico do criminoso era realizado o auto-exame de sanidade mental
do acusado, no que era calculado as medidas do cérebro e da face. As esse exame é que
verificava se o acusado era um tipo normal, que nunca sofreu “de alienação mental, nem é
dotado de patologia, irritabilidade do humor e dos sentimentos [...] não é um neuropata
predisposto para a loucura [...]. (LYRA, 1932, p.42).
Esse argumento da loucura apoiavase no Código Penal de 1890, que aludia tanto o
estado de completa, total e inteira perturbação dos sentidos quanto da intelincia nos crimes
cometidos por amor, ódio, ciúme e cobiça. Segundo Lyra, a maioria dos homicidas, quando
o alegava o argumento da legítima defesa da honra, se apoiava diretamente nesse artigo do
código penal, de que o delito fora conseqüência de um desvario, de um ato inconsciente,
caracterizado por uma total perturbação dos sentidos.
As questões relativas ao estado mental do criminoso passional eram discutidas para
avaliarem o grau de responsabilidade dos criminosos. É interessante perceber que, no digo
penal de 1940, foi determinado que a “emoção ou a paixão” não eliminavam mais a
responsabilidade criminal, aliás, tornavam-se fatores atenuantes. Todavia, nos crimes
passionais ocorridos na década de 1980, tais como os de Lindomar Castilho e Doca Street,
ocorridos em São Paulo, os advogados de defesa continuaram a se apoiar no argumento de
que os réus agiram por um momento de forte emoção. No caso de Doca, a perícia médica
chegou a realizar um exame de sanidade mental e o constatou nenhum estado de
perturbação emocional. Em outros casos famosos de Goiânia, os advogados afirmavam que os
agressores necessitavam de tratamento médico.
Em Goiânia, essas questões foram pertinentes. No dia 04 de julho de 1981, o jornal
Diário da Manhã notificou o caso do procurador do Tribunal de Contas do Estado, Joaquim
Gomes de Brito, que assassinou sua esposa, Maria Mazarello, alegando infidelidade da parte
107
da vítima. O caso ficou conhecido como o Caso do Jaó, pelo fato dos cônjuges residirem
nesse bairro de Goiânia. Após ter cometido o crime, Joaquim teve que ser internado. O crime
foi repercutido com intensidade.
Da mesma forma, o caso do agressor Waldir Roma, que mandou assassinar sua ex-
mulher, Maria Helena Caiado, no ano de 1980, causou ampla repercussão. Constantemente, o
jornal registrava fatos, tais como: [..] Esta era a segunda vez que Waldir Roma deixava a Casa
de Detenção para tratamento psiquiátrico [...] (Caso Maria Helena. Waldir desaparece. Cinco
de Março, Goiânia, 20 de agosto de 1981. p.02).
Segundo Lyra, na década de 1930, nos laudos criminais, era descrito e questionado a
hipótese ou simulação da amnésia, o ato consciente ou inconsciente ligado ao estado de
perturbação dos sentidos movidos pela paixão. Ao discutirem esses problemas, os promotores
públicos da época liam nos tribunais trechos dos pensamentos de médicos e psiquiatras
retirados da literatura médica parisiense que repercutiam no Brasil. A paixão não era vista
como um femeno patológico, mas ao contrário, como um sentimento bastante racional.
Porém, era necessário conter o ímpeto das paixões:
[...] a paixão por mais violenta que seja , nos momentos de sua maior
agitação, deixa o homem consciente do que faz, em vez de apagar a
inteligência, atiça-a ; longe de embota-la , aguça-a [...] O homem, sob o
império da paixão, mesmo inteiramente dominado por ela, não perde de
todo a consciência, o governo de si próprio [...] pode, em qualquer fase
da paixão, recuar na sua conduta, deixar de seguir a senda do crime; e si
não teve força para parar a tempo de o chegar ao crime, é sempre um
responsável. (LYRA, 1932, p.69, apud MATOS e MORAIS).
Por trás de todos esses questionamentos do amor e da paixão no Tribunal do Júri,
o problema central era se o criminoso oferecia perigo ou não à sociedade. No prefácio do livro
de Lyra, Afrânio Peixoto argumentava que as paixões que levavam a matar são insociáveis,
pois “só as atividades limitadas, os impulsos contidos, permitem a vida da sociedade [...] As
paixões ingovernáveis seriam a desordem e o extermínio [...] Não deve haver socialmente
lugar para as paixões sceleradas”. (PEIXOTO in prefácio LYRA, 1932, p.11).
Peixoto analisava essa paixão que levava a matar como o contrário do amor
verdadeiro e da razão. O crime passional tornava-se uma ameaça para a sociedade e
principalmente para a desestruturação da família. A partir dessas discussões, parte dos juízes,
advogados e especialistas em medicina legal promoveu, através do Conselho Brasileiro de
Higiene Social (CBHS), uma campanha contra os crimes passionais na década de 1930, na
108
cidade do Rio de Janeiro. Roberto Lyra e Afrânio Peixoto foram dois dos fundadores da
campanha. O objetivo principal da campanha foi expor os motivos causadores desses crimes,
no sentido de reeducar a sociedade, rejeitando e condenando as doutrinas e convenções
sociais que absolviam esses crimes. Os juristas pretendiam rever o digo Penal de 1940 que
especificava que a emoção ou a paixão não eliminam a responsabilidade criminal.
Segundo Susan Besse (1989), essa campanha decorreu de uma preocupação social
intensa no Rio de Janeiro no período de 1910 até os anos de 1930, num momento em que o
alarde sobre os crimes passionais crescia gradativamente na imprensa popular, nas revistas
femininas e nos tribunais. Para a autora, os advogados vendiam sua oratória dos tribunais para
os jornais, que se apoiavam num forte sensacionalismo. Lyra, em sua obra, no ano de 1932,
descrevia uma matéria publicada no jornal A Esquerda, do dia 28 de abril de 1931:
não há dia em que se o registre um homicídio bestial, que para maior
escarneo do nosso orgulho de civilizados e comprometimento absoluto do
nosso crédito de sentimentais, se oculta sempre sob as dobras de um
romance de amor e ainda tem a irrisão de culminar num suicídio frustro
do matador passional [...] uma rajada de insânia que desencadeasse sobre
a família carioca, estraçalhando lares [...]. (LYRA, 1932 p. 86).
Dessa forma, nota-se que os crimes passionais dessa época tornavam-se um
problema social na cidade do Rio de Janeiro, na medida em que o Estado, através do
Conselho Brasileiro de Higiene Social, começou a adotar medidas de prevenção contra esses
crimes. Porém, a principal significação desses crimes era com a ameaça à civilização e
também à destruição da família, a qual era a instituição considerada na época do Estado Novo
como a base da nação.
Como ressalta Besse (1989, p.196), o motivo real dessa campanha era o fato dos
crimes passionais terem tornado-se uma ameaça à desagregação da família, que era encarada
como a base para proporcionar estabilidade e continuidade das grandes transformações sociais
pelos quais passava a cidade do Rio de Janeiro nesse período. Nesse sentido, a campanha
fazia parte de um projeto mais amplo do Estado, a intenção “era moralizar a sociedade,
disciplinar as paixões e racionalizar o amor, a fim de torna´-lo socialmente útil como base de
relações familiares estáveis”. O Conselho Brasileiro de Higiene Social apresentava a
campanha como um trabalho de higiene social e moral. Para tanto, envolvia o Estado no
disciplinamento das paixões humanas”. O alto índice de crimes passionais simbolizava um
retrocesso para a civilização, como empecilhos a ordem e ao progresso que deveriam
109
prevalecer no crescimento da sociedade urbana industrial do Rio de Janeiro nesse período.
Aqui, percebe-se a intervenção do Estado na esfera do privado:
[...] casamentos sadios e equilibrados, em que a razão se associe ao
sentimento [...] O Estado tinha o dever de supervisionar os casamentos e
até desmanchar os romances “em nome da saúde, da disciplina, da
moralidade” e deveria evitar o casamento dos loucos de paixão. Ao
impedir casamentos inconvenientes, promovendo os higiênicos, o Estado
defendia “a conservação da vida, o aperfeiçoamento da espécie, a
organização social, a civilização.” (CAUELFIEL, 2002, apud LYRA
1932, p.181).
Percebo que para conter essas paixões no âmbito do privado, o Estado, através do
Conselho Brasileiro de Higiene Social e da própria divulgação da imprensa, mobilizou a
população em torno dos crimes movidos pelo amor, a fim de assegurar seus interesses,
disseminando princípios no âmbito familiar, que deveriam tornar-se civilizado”. O discurso
higienista diagnosticou o amor romântico como delírio, e correlacionou a ele a intervenção
dica sobre as famílias e as condutas afetivas. Como aponta Costa (1999, p.231), “o ponto
culminante da união conjugal era o amor. Mas, ao contrário do amor romântico, o amor
higiênico era pragmático [...] a cumplicidade com o romantismo sentimental tinha limites
[...].
Besse cita que “relatos horripilantes de crimes da paixão tornaram-se matéria -
prima da imprensa popular”. O blico comovido pela campanha e pelo alarde dos crimes
passionais, lotava os tribunais para assistir e julgar esses crimes passionais. Muitas vezes, a
própria imprensa criticava esse sensacionalismo, que poderia contribuir no número de
absolvições:
[...] Corram ao Júri. Corram aos jornais [...] Nunca deixem vazia a
tribuna da acusação particular nos tribunais do povo [...] Façam sentir à
consciência dos juizes de fato que as vítimas dos matadores passionais
não são apenas os esquemas que os autos arquivam [...] eram criaturas
vivas, cheias das ilusões que povoam sempre a alma e o coração [..] E o
maior rigor que o tribunal terá para com esses abutres que fazem do amor
apenas o pretexto para a satisfação dos seus pendores sanguinários- de
servir de antídoto a muito paroxismo sentimental. Por outro lado evitem
que os jornais, em que tantas colaboram, a que tantas emprestam o
prestigio da sua intelincia e a irradiação do seu encanto, sirvam de
pasto ao sensacionalismo odioso das grandes reportagens policiais. No
dia que o assassínio de uma mulher, em vez de esmiuçar os antecedentes
quase sempre desfigurados da sua vida intima constituir-se, apenas, um
libelo desassombrado contra a covardia da besta humana [...], os
110
homicídios passionais decrescerão noventa por cento. (LYRA, 1932,
p.88).
Portanto, nesse momento, na cidade do Rio de Janeiro, houve o combate a esses
crimes passionais, e a sua grande preocupação era com a ameaça à honra da família e da
cidade. Em Goiânia, essa preocupação com a honra das famílias como base da nação foi
perceptível nas primeiras décadas da cidade, porém, ligada a crimes externos às famílias.
Contudo, no que tange à problematização desses crimes passionais, acompanhados dessas
noções românticas, ela surge em Goiânia, na década de 1980, após a transformão dos
crimes passionais em um problema social.
Assim, os crimes passionais justificados pelo amor, entram em cena na imprensa
goianiense. Esse “amor romântico”, que na cidade do Rio de Janeiro na década de 30, foi alvo
de intervenção do Estado, contra um sentimento irracional associado à loucura, que
representava um retrocesso à civilização e à destruição das famílias considerada como a
base da nação -, foi em Goiânia o elemento que sustentou o alto índice de mortalidade das
timas de crimes passionais. A preocupação não era com a destruição das famílias, mas com
as mulheres, vítimas de assassinatos cometidos por seus parceiros, que se apoiavam no
argumento do amor e do ciúme.
Dessa forma, a problematização dessas noções românticas, dadas pelos
criminosos de mulheres, esteve ligada à discussão das origens sociais desses crimes movidos
pela paixão. Não havia uma preocupação diretamente com a instituição da família, mas sim
com a tima de violência e com a punição dos agressores. Portanto, os periódicos
registravam como a sociedade percebia essas justificativas. Na concepção do psiquiatra da
época, Eduardo Verano, ao contrário do amor, era o sentimento do ódio que levava a matar:
Quais as causas da violência do homem contra a mulher? [...] Para o
psiquiatra Eduardo Verano [...], o fator principal que leva o homem a
agredir sua companheira é uma vida emocional estruturada imaturamente
[...] Quando o homem espanca a mulher por imaturidade emocional e ela
não se rebela por medo, continuando ambos a viver juntos, os dois são
considerados desajustados [..] Não se destrói nada por amor. Destrói-se
por ódio, pois, matar é um gesto de desamor. Embora confessando que
sua opinião seja passível de discussões do ponto de vista psiquiátrico,
conclui: O amor, no sentido adulto, é um tipo de sentimento que não
admite exclusividade ou posse. O amor somente é egoísta quando
neurótico. (Eduardo Verano. Assassinatos de Mulheres. Os casos que
abalaram Goiás. Diário da manhã, Goiânia, 02 de agosto de 1981.
ed.extra).
111
Percebe-se que uma discussão de como os sentimentos de ódio e amor
permeavam uma relação conjugal violenta. Na posição do psiquiatra, o ódio torna-se uma das
causas que levam o homem a violentar sua parceira. Ou seja, na versão do psiquiatra, as
causas desses crimes são de origem emocional. Para tanto, ele analisava a vida sentimental do
casal.
Essa percepção tamm é ressaltada por Eluf (2003, p.11), procuradora de Justiça
do Estado de São Paulo, e que analisa o problema dos crimes passionais. Para ela, “a paixão
que move a conduta criminosa não resulta do amor, mas sim do ódio, da possessividade, do
ciúme ignóbil, da busca da vingança, do sentimento de frustração aliado à prepotência, da
mistura de desejo sexual frustrado com rancor”.
Esse sentimento do ciúme associado ao sentimento de posse, como justificativa do
crime, predominou na maioria dos casos noticiados pelo Diário da Manhã. A o aceitação da
separação tornou-se um fato constante. No dia 17 de julho de 1983, o jornal publicou uma
cronologia dos assassinatos ocorridos nesse mesmo ano, tanto nas cidades do interior, quanto
em Goiânia:
[...] 18 de abril – Em Pires do Rio, Terezinha de Jesus Ribeiro era morta a
tiros e facadas por seu cunhado Milton Luz Vieira. Motivo: ciúmes. 14-
de maio O fazendeiro Sebastião Alves Garcia, de 50 anos, que estava
separado de sua esposa [..], em virtude dos espancamentos constantes,
tentou-se reconciliar. Maria não aceitou e foi morta a tiros. Dois dias
depois, o gerente da fazenda São Bento, em Bela Vista [..] discutiu com
sua mulher [..] Ele pensava que estava sendo traído pela esposa e,
inconformado com esse pesadelo que o perseguia, esfaqueou Valdeci a
a morte e depois se suicidou com um tiro no peito [..] 9 de junho-
Vanderlei de Moura Rodrigues estava separado judicialmente de sua
mulher [...] Tentou fazer com que ela desistisse da ação de desquite. o
conseguiu e matou-a com dois tiros [...] (Polícia. 15 mulheres mortas em
60 dias. Diário da Manhã, Goiânia, 17 de julho de 1983. p. 24).
Essas causas da violência, apoiadas nas justificativas dos agressores, eram
apreendidas como uma ameaça às timas de agressão. O Grupo Feminista de Estudos
afirmava:
[...] O AMOR. Com relação à afetividade, ao sentimento que se presume
existir em uma relação mulher/homem, muitas ressalvas se têm a fazer
[...] Como podemos falar de amor em uma relação onde um domina e o
outro é dominado? [..] Será possível falarmos em amar uma pessoa, ao
mesmo tempo em que a ignorarmos enquanto sujeito? Será possível
amarmos uma pessoa que nos oprime e nos sufoca? [...] (Feminismo.
112
Grupo Feminista de Estudos. Diário da Manhã, Goiânia, 22 de julho de
1982, p.43).
Para as feministas da década de 1980, todas as causas relacionadas ao problema
da violência contra a mulher estavam inseridas nas relações desiguais entre os sexos
construídas historicamente. O próprio amor era associado à relação de dominação.
Deste modo, destaquei esses crimes para enfatizar que, após a década de 1980, há
um novo cenário diante da violência contra a mulher, quando ela se torna um problema social;
os diversos segmentos da sociedade que interagiram diante desse fenômeno, analisavam as
origens sociais dessa violência; sejam elas nas formas de educação que formam homens
machistas, da economia agrária e patriarcal, nas formas culturais da sociedade, ligadas à
questões da religião ou de problemas de nero. Portanto, essa violência deixou de significar
uma ameaça moral e externa às famílias, e passou a ser um problema de agressão, não apenas
moral, mas sobretudo, uma agressão física contra a mulher.
Após a apreensão dessa violência como um problema social, que deve interessar a
toda a sociedade, considero que o jornal tornou-se um meio que levou a vida privada ao
público, como um mecanismo de intervenção corretiva sobre as condutas afetivas das timas
e agressores. Ele serviu como uma espécie de diagnoticador desse “romantismoque foi o
embro desses crimes passionais. Ao mesmo tempo, creio que ele serviu como um espaço
estratégico para os advogados de defesa justificarem as atitudes dos réus, para os agressores
exporem suas defesas e, para os grupos feministas e outros segmentos da sociedade
interessados na luta contra essa violência, repreenderem o problema da impunidade
sustentado por essas justificativas românticas. Assim, novamente, concebo que os jornais
dessa época podem ser considerados como “agentes de mediação social”, entre as esferas
governamentais, as famílias e outros membros da sociedade, propondo novas formas de
sociabilidade para as timas de agressão e aqueles comprometidos no combate a essa
violência. Portanto, acredito que os jornais desse período possam ser considerados como
dispositivos de modulação das condutas.
Nesse sentido, não posso deixar de ressaltar, novamente, que essa nova percepção
sobre a violência contra a mulher condiz com a maioria das pesquisas realizada sobre esse
tema, da parte da historiografia feminista. Desde os primeiros trabalhos produzidos na década
de 1980, a historiografia vem afirmando que a violência contra a mulher, dentre suas várias
formas de expressão, está inserida nas relações desiguais entre os sexos.
113
Algumas autoras, como Saffiotti (1997), atribui à violência conjugal a hegemonia
do poder masculino decorrente da cultura patriarcal, que legitima a superioridade desse poder.
Azevedo (1985) afirma à sua decorrência a subalternidade feminina baseada na
hierarquização de gênero. Outras versões, como a de Grossi, Strey e Werba (2001) afirmam
que a reprodução das imagens de homens e mulheres, baseadas na dominação masculina, foi
disseminada nas esferas institucionais e nas relações interpessoais legitimando a violência
contra a mulher.
Ou seja, as autoras alegam que as causas dessa violência estão enraizadas na
diferença entre os sexos que se construiu historicamente. Alguns estudos, como ressaltei no
início desse trabalho, ampliam a discussão, relacionando o conceito de gênero com os de
cidadania, justiça social e direitos humanos. Suárez e Bandeira (2002, p.309), enfatizam que
essa violência é decorrente de questões sócio-estruturais, e de conflitos interpessoais. Segundo
as autoras, “essa violência é uma grande ameaça à paz social e que, portanto, é necessário o
enraizamento de uma nova sociabilidade que estabeleça novas práticas interativas de
investimentos subjetivos entre as pessoas. É necessário "que o Estado amplie investimentos
em programas sociais que forneça apoio econômico as timas de agressão de baixa camada
social, e invista em redes de assistência psicológica para os próprios agressores de
mulheres”.
41
Algumas autoras criticam esses estudos, porém, ao meu ver, acabam retomando o
mesmo postulado das noções de nero. Mirian Pillar Grossi (1998) afirma que as análises
sobre o fenômeno da violência contra a mulher, que o reduzem à explicações sócio-
econômicas e culturais “são explicações generalizantes, que não podem ser explicativas para
esse estudo”. A autora faz essa crítica, mas acaba defendendo uma análise que também se
reduz numa explicação generalizante, de ordem cultural. O objetivo da autora é investigar
porque as mulheres permanecem numa relação conjugal violenta. Para tanto, ela critica as
teorias patriarcais que naturalizam os papéis sexuais, colocando a mulher numa situação de
subordinão, enquanto tima de violência, e até mesmo a violência de nero, que para ela,
acaba essencializando essa violência”. (1998, p.117).
Dessa forma, Grossi alega que é necessário estudar as complexas relações
afetivo/conjugal que existem a partir da comunicação de cada casal, e que permanece
41
Ressaltei essas considerações apenas para sublinhar que a discussão sobre o fenômeno da violência contra a
mulher, após a atuação do movimento feminista, é debatida por parte da historiografia em termos de se investigar
as origens e as causas desse fenômeno. Ou seja, a historiografia se situa no interior dessa historicidade.
114
violência. Sendo assim, ela aponta que podem existir violência de homens contra homens,
mulheres contra mulheres, e de mulheres contra homens. Portanto, deve-se pensar em relações
homoeróticas, e não apenas do ponto de vista da heterossexualidade. Dessa forma, as
mulheres não são reduzidas apenas à timas de violência. A partir dessa primeira questão, a
autora problematiza a falta de comunicação que existe entre os casais, citando algumas falas
de vítimas conjugais -entrevistadas- e, acaba por discutir os problemas emocionais/sexuais
que existem entre um casal. Sua tese é de que o casal vive num contexto de oscilação entre
amor e dor e, portanto, as mulheres são co-participantes dessa violência. Desse modo, para
entender essa violência, é necessário compreender as complexas relações afetivas conjugais
entre um casal.
Acredito que Grossi, o ultrapassa o que critica ao tentar compreender as origens
emocionais/afetivas de um casal. Essas questões também colocam o objeto de estudo em
termos de explicar suas causas e origens sociais. A complexa relação afetiva que vive um
casal, e a posição das mulheres como sujeitos participantes da violência, também se
enquadram em explicações de ordem cultural, em conflitos de gênero,
42
já que essa categoria
permite pensar na desnaturalização entre os sexos, mostrando seu caráter relacional. Portanto,
as mulheres podem ser vítimas ou agressoras.
Todavia, não me cabe aqui aprofundar essas discussões e nem analisar quais os
conceitos e posições teóricas são ajustáveis aos casos de violência contra a mulher e/ou
conjugal. Ao contrário, a intenção do trabalho foi propositalmente distanciar-se dessas
discussões atuais sobre o fenômeno, para tentar apreender a trama de significados, os
elementos e as forças históricas ligadas a essa violência, que a levou a se constituir como um
problema social, ao invés de retomar o postulado das noções de gênero e/ou sócio -
econômica relativas às causas dessa violência. Esse trabalho não pretende tomar partido na
controvérsia historiográfica a respeito das verdadeiras causas sociais que explicam a
existência desse intolerável femeno, como a questão da desigualdade entre os sexos e
dominação patriarcal. Ele pretende, antes, pensar o corpo histórico na qual ela própria se
situa.
3.2. A IMPUNIDADE E A LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA
42
Refiro-me apenas à não de gênero, enquanto categoria que permite a desnaturalização entre os sexos. Esse
conceito possui uma densa discussão na historiografia feminista. Entretanto, o trabalho não teve como intenção
discutir o fenômeno da violência contra a mulher e os problemas conectados a ele numa perspectiva de gênero.
115
Marias são 213. Mas ainda faltam muitas. Uma em particular Maria
de Lourdes Mendes, 48. A mulher condenada a viver de tatear a
escuridão ao lado de um único e eterno companheiro, o medo. Em 8 de
julho de 1996 ela levou um tiro na testa dado pelo mecânico Adevaldo
Sobrinho de Moraes, que a deixou remediavelmente cega [...] Histórias
como a de Maria de Lourdes enchem de letras 1.212 processos de crimes
dolosos contra a vida (homicídio e tentativa de homicídio) [...] Um
detalhe assustador: o total refere-se aos praticados contra mulheres e
na comarca de Goiânia [...] poucos concluídos, o que significa que a
grande maioria dos autores desses crimes não está cumprindo pena [...] O
levantamento foi solicitado pela advogada, jornalista e presidente do
Cevam, Consuelo Nasser [...] o mais antigo despacho data do dia 1 de
junho de 1989 [...] Enquanto isso, os réus gozam das benesses de um
modelo de Justiça que não acompanhou a evolução do modo de operar do
criminoso, que muitas vezes divide o teto com a própria vítima para
premeditar o crime. Assim Caminha a Impunidade. Levantamento mostra
que atentar contra a vida de mulheres não cadeia. (Cidades. Diário da
Manhã ,Goiânia, 17 de fevereiro de 2002, p.3).
No ano de 2002, o Diário da Manhã continuou a publicar um dos maiores
problemas que sempre envolveu o fenômeno da violência contra a mulher: o problema da
impunidade. Nessa matéria, o jornal noticiou com detalhes alguns dos processos de crimes
contra as mulheres paralisados no Judiciário desde a década de 1980. Em muitos casos, alguns
processos voltaram para as mãos dos advogados de defesa, estando as timas aguardando a
intimação do réu e de alguma testemunha. Segundo o jornal, um dos motivos da certeza da
impunidade dos agressores pautava-se na falta de uma lei específica que punia o agressor. Até
o momento atual, ao invés de cumprir pena, o agressor pode pagar uma cesta básica a uma
instituição necessitada.
43
Todavia, como foi ressaltado, a impunidade nas primeiras décadas da cidade
estava associada a um problema que atingia a honra das famílias e da cidade. Já, na década de
1980, a impunidade aparece ligada ao argumento da legítima defesa da honra, que sustentava
a impunidade dos agressores de mulheres. Como foi citado no pico acima, a maioria dos
acusados apoiava-se nesse argumento, muitas vezes instruído pelos próprios advogados de
defesa. A infidelidade da tima, ou a dúvida acerca desta, era o fio condutor dos crimes
impunes. Dentre eles, o jornal destacou, no decorrer dos primeiros anos da década de 1980, o
crime cometido contra uma funcionária pública chamada Maria Mazarello de Brito,
assassinada por seu esposo Joaquim de Brito, servidor do Tribunal de Contas:
43
Em novembro de 1995, entrou em vigor a lei 9.999. As penas de privação da liberdade cederam lugar as penas
alternativas, como o pagamento de uma cesta básica.
116
[...] Nas declarações de ontem, Joaquim Gomes bateu na mesma tecla, ou
seja, tentou, como fizera antes, explicar o crime como um acidente [...]
Na primeira vez que foi ouvido, Joaquim afirmou que o tiro fora
disparado em conseqüência de um desequilíbrio provocado pelo excesso
de bebida [...] Apesar de estar visivelmente preocupado em não
acrescentar nada naquilo que havia dito antes, Joaquim Gomes acabou
por fazê-lo, ao comentar que não tinha vida quanto à honra de Maria
Mazarello [...] ressaltou o fato de chegar em casa e encontrar todas as
portas fechadas e nenhuma lâmpada acesa “o que não era de costume”.
Lembrou também que a mulher só abriu a porta depois que ele chamou
algumas vezes o que serviu para irritá-lo ainda mais. Com estas
afirmações Joaquim Gomes está, evidentemente orientado por seu
advogado, dando margens à especulação sobre a fidelidade conjugal de
Maria Mazarello o que pode ser usado como argumento, posteriormente
no tribunal de Júri [...] Os depoimentos de seus irmãos seguiram a mesma
linha acrescentando o fato do acusado ter diversas vezes sido internado
em clínicas de repouso [...]. (José Luiz de Oliveira Filho. Marido insiste
que foi acidente, Diário da Manhã, Goiânia, 04 de julho de 1983, p.10).
A morte de Maria Mazarello causou ampla repercussão na imprensa goianiense
por envolver njuges da alta camada social da cidade. Como na maioria dos outros casos, os
advogados de defesa dos agressores argumentavam que seu cliente necessitava de um
tratamento dico”, causando o retardamento do julgamento. Nota-se no trecho acima, que
Joaquim afirmava não ter dúvidas sobre a “honra” da tima. Nas outras reportagens sobre as
investigações policiais sobre o caso, são destacados alguns depoimentos de testemunhas que
afirmavam que Maria Mazarello conviveu durante anos com a desconfiança de seu parceiro,
sem ter motivo algum.
Assim, é perceptível que a noção de honra nesses crimes tornou-se um argumento
exclusivamente jurídico. Ela é associada a uma defesa da honra pessoal e não das famílias.
Nesse sentido, há um deslocamento dessa noção, no momento em que a violência contra a
mulher transforma-se em um problema social. O argumento da legítima defesa da honra
torna-se um dispositivo estratégico no Tribunal do Júri. A maioria dos agressores, ao
assassinar suas parceiras por suspeita da infidelidade da tima, alegou estar defendendo sua
honra. Ou seja, a honra passa a ter um sentido de defesa pessoal, em benefício próprio do
agressor. Ela deixa de ser da alçada das famílias. E, pelo fato desses crimes se tratarem de um
problema social”, a honra pode ser restabelecida pelo aparato judicial.
Dessa forma, percebe-se que a noção de honra é atuante no fenômeno da violência
contra a mulher em Goiânia, desde as primeiras décadas da cidade, quando ela era apreendida
no interior de um quadro moral, em que a defesa da honra das famílias era a principal questão
defendida. Todavia, nessas décadas, a justiça e a polícia o interviam diretamente no interior
117
dos espaços privados. Os crimes passionais que ocorriam no interior das famílias eram
resolvidos entre os próprios membros das famílias, que na maioria das vezes cometiam outros
crimes contra os agressores, como vingaa pela honra perdida da vítima. Nos casos de
defloramento e crimes sexuais, as famílias recorriam, em última instância, à pocia para
forçar um casamento, quando este não ocorria de forma espontânea. Era uma das formas com
que elas poderiam reconquistar a honra perdida. Ou seja, cabia às famílias defenderem e
recuperarem a honra maculada. As esferas institucionais interferiam apenas nos limites dos
problemas relativos à defesa da honra das famílias.
Após a apreensão da violência contra a mulher como um problema social, a
legítima defesa da honra passou a ser um atenuante nos casos de crimes passionais, estando
ligada a uma defesa de virtude pessoal. O argumento da legítima defesa da honra, utilizado
pelos próprios agressores de mulheres, foi apoiado no julgamento da própria honra da mulher.
Representantes da sociedade, como o próprio corpo jurídico, passaram a
manifestar suas posições diante de questões pertinentes no julgamento desses crimes, como a
própria noção de legítima defesa da honra. O Juiz de Direito Fausto Vicente Monterio de Sá,
atuante na década de 1980, ressaltou:
O crime passional é uma ficção popular [...] Aquele que realmente ama
não mata nunca [...] Discordando da tese da legítima defesa da honra que
vem sustentando a impunidade da maioria dos matadores de mulheres,
observa o juiz: “A honra é um bem jurídico inalienável porque diz
respeito à personalidade e, como tal, constitui um patrimônio da
sociedade. Portanto não pode ser objeto de legítima defesa. Para o Juiz,
as absolvições sob fundamento da legítima defesa da honra, nada mais
são que um gesto de complacência do júri, atendendo às peculariedades
de cada caso [...] Grande parte das absolvições de marido assassinos por
parte do júri popular resulta de uma filosofia humanistica peculiar dos
jurados, que representam a sociedade no tribunal [...] o júri popular, do
ponto de vista do juiz é muito benevolente [..] essas absolvições são
também uma espécie de válvula de escape, já que o sistema penitenciário
em vigor ainda não oferece condições ideais [...]. (Fausto Vicente
Monteiro de Sá. A honra não pode ser objeto de legítima defesa. Cinco de
Março,Goiânia, 02 de agosto de 1981, ed.extra).
Para o juiz, grande parte da culpa das absolvições dos criminosos de mulheres é
devida à benevolência do júri popular que aceita a legítima defesa da honra. Como lembra
Eluf, os “crimes dolosos contra a vida – o homicídio, o infanticídio, o aborto e a instigação do
suicídio são julgados pelo Tribunal do Júri, que tem como objetivo fazer com que os
criminosos sejam julgados pela comunidade, e não pelo próprio corpo Judiciário. Essa
118
instituição trata-se de uma exceção aberta pela lei para os casos em que uma pessoa tira a vida
da outra, em situações peculiares”: momento que o crime foi praticado no “calor de uma
específica situação da vida, por isso é importante que todas as circunstâncias que o rodeiam
sejam levadas a julgamento”. Então, homens e mulheres do cotidiano são as melhores pessoas
para julgarem esses crimes; essa é a justificativa doutrinária para o júri popular. (ELUF, 2003,
p.121).
Assim, Eluf aponta que a decisão do júri sempre foi soberana, no sentido que o
Tribunal não pode modificá-la. Essa decisão esteve apoiada no problema da impunidade.
Considero que a participação do Tribunal de Júri, ou seja, da comunidade conjuntamente com
uma esfera jurídica, nas decisões sobre os crimes passionais, revela um dos elementos da
transformação do fenômeno da violência contra a mulher num problema social.
Primeiramente, os conflitos internos a família, são colocados ao julgamento público. A
família é inserida no corpo jurídico. Cabe a uma esfera jurídica, junto a membros de toda a
sociedade, julgarem sobre um crime passional; um crime que antes era da alçada das famílias.
Se exposto, na esfera blica, a honra da família era mais exposta, mais maculada. Ou seja, a
inquietação com a honra da família deixa de ter importância. A preocupação com o “parecer”,
com os “outros”, deixa de ser uma moeda social para as famílias goianas. Nesse sentido, a
própria noção de família se altera. A família em seu conjunto maior deixa de ser o digo da
moral; a defesa da honra pessoal de cada membro da família, sem se preocupar com o núcleo
da família, é que é levada a julgamento.
Em segundo lugar, a junção das pessoas comuns da sociedade, com esferas
institucionais, na função de debater, julgar sobre um crime “privado”, revela que o fenômeno
da violência contra a mulher não se restringe mais, ao núcleo do privado, mas é um problema
que atravessa o social. Portanto, essa violência se insere no social”, torna-se um problema
inaceitável nos espaços públicos e privados. A justiça passa a interferir no interior das
famílias.
Anteriormente, alguns crimes passionais eram levados ao Tribunal do Júri. No
pico sobre crimes sexuais, são citados alguns crimes da cidade de Goiás, que envolveram o
problema da desonra e da sedução, em que, um dos réus foi condenado e os outros dois foram
absolvidos por esse Tribunal. Porém, havia uma preocupação com a honra das famílias. A
defesa feita por esse tribunal era relativa à defesa dessa instituição e não dos crimes sexuais
cometidos contra o corpo das timas de violência. Quando as famílias procuravam à justiça,
era para reparar a honra maculada. A própria agressão física sofrida pelas vítimas, não era
alvo de combate da justiça e da polícia.
119
No que tange essas particularidades é interessante sublinhar que, no início do
século XX, o jornal de Goiás debatia sobre o alto índice de absolvições de criminosos
apoiados na votação desse tribunal:
Um dos assumptos bem interessantes e que merecem especial cuidado do
Congresso Legislativo, na presente sessão, é o que se refere a instituição
do jury, infelizmente, muito decahhida entre nós [...] O nosso Estado
querendo imitar o do Rio Grande do Sul, procurou introduzir na lei do
Jury reformas que pela experiência feita, deram em resultado a completa
ruína de um dos mais livres institutos que o paiz conserva. A diminuição
dos juizes de facto para o corpo julgador e o voto descoberto [...]
mostraram a incoveniencia da reforma, pelas absolvições constantes
mesmo dos crimes os mais nefardes e monstruosos [..] As absolvições
continuam com menoscabo dos mais altos interesses sociais, observando-
se o triste espectaculo da promiscuidade de indivíduos prejudiciaes à
collectividade com a sua parte [..] Na escolha dos jurados, dos
cidadãos que, como juizes de facto, tem de conhecer das circunstancias
que rodearam um crime qualquer, e de decidir da culpabilidade ou o do
accusado como delinqüente, é que está a chave do problema a ser
resolvido. o é em nosso Estado que o jury tem-se desmoralizado,
descendo a ponto de não ser considerado mais uma instituição e sim um
meio seguro como a derimente salvadora de um caso, absolutamente sem
defeza [...] (Reforma do Jury. A Imprensa, Goiáz, 27 de junho de
1914.p.1).
Percebe-se que o jornal critica a votação do júri feita pelos próprios cidadãos que
asseguravam o índice de absolvições, além de denegrir a instituição do Tribunal do Estado de
Goiás. Parece que naquele momento, o júri popular já decidia sobre os crimes passionais. O
jornal não cita nenhum caso do Estado em específico, mas logo abaixo do trecho citado
acima, ele registra um crime passional que o tribunal de Liverpool da Inglaterra condenou o
criminoso a sentença de morte. No restante da reportagem, a crítica da falta de rigor do
tribunal no Brasil é perceptível. Todavia, é importante notar no trecho acima, que as críticas
feitas ao júri estão ligadas a questões de ordem moral. O jornal cita que a impunidade de
“indivíduos proscuos são prejudiciais a coletividade”. Tal fato permite-nos pensar que a
preocupação com a impunidade, com os crimes que ocorriam não era com o próprio indivíduo
em si, ou com a própria tima, mas com as famílias e a imagem do Estado; fato que concerne
com a maioria das outras fontes do final do século XIX e início do século XX do Estado de
Goiás.
De toda maneira, percebo que a decisão do júri popular sempre esteve ligada à
questão da impunidade, destacada pela imprensa goianiense e do Estado de Goiás. A legítima
defesa da honra, muitas vezes, era aceita por esse júri, que acatava que a honra do marido
120
poderia ser defendida. A preocupação do júri sempre foi constante no Estado de Goiás. No
ano de 1938, é noticiado o fato da nova legislação contemplar a mulher como jurado:
[..] A nova lei do Jury (decreto lei n.167 de 5 d e janeiro deste ano)
contempla a mulher como jurado, estabelece que os jurados o
responsáveis criminalmente, nos mesmos termos em que são os juízes de
Ofício, por prevaricação [..] É de se ver a atenção preciosa que
dispensavam a marcha dos trabalhos do Tribunal, o tom de gravidade e
correção, prestando ouvidos aos debates [..] Indiscutivelmente o juri
valorizou-se com a intervenção feminina [...]. (Nota da Semana. Senhor
Fleuri Curado. Cidade de Goiás, 16 de janeiro de 1938.p.1).
Desse modo, evidencia-se que a responsabilidade criminal do corpo de jurados
desde então, era noticiada pelo jornal como um princípio a ser zelado. Porém, na grande
maioria dos crimes julgados, era o próprio júri popular que, muitas vezes, sustentou a
impunidade. Mesmo quando não envolvia o argumento da legítima defesa da honra pelo
criminoso passional, o jornal sempre destacava as datas dos julgamentos que seriam
realizadas pelo Tribunal do Júri: [...] Haverá julgamento em agosto? Waldir Roma seria
julgado pelo Tribunal do Júri Popular de Goiânia no próximo mês de agosto, [..] nos dois
crimes de que é acusado de co-participação os assassinatos de Raimundo Feitosa e Maria
Helena Caiado [...] ( O caso de Waldir Roma. Diário da Manhã, Goiânia, 12 de fevereiro de
1981.p.05).
Esse crime que envolveu a morte de uma funcionária blica chamada Maria
Helena Caiado, a mando do comerciante de alto prestígio goianiense, Waldir Roma, causou
grande repercussão no Estado de Goiás e nacionalmente. A tima era pertencente a uma
família tradicional de Goiás, a família Caiado. No dia 16 de dezembro de 1980, Maria Helena
foi assaltada no centro da cidade quando voltava para sua resincia. Ao agir em legítima
defesa, ela foi morta pelos pistoleiros contratados a mando do seu ex – amante, Waldir Roma.
O motivo alegado por Waldir Roma é de que queria apenas passar um susto na tima, pois
ela estava “levando uma vida bastante irregular, chegando tarde em casa, e deixando as
crianças a s com a empregada”. O envolvimento de Waldir Roma no comando do crime
surgiu em janeiro do ano de 1981, após a morte do fazendeiro Raimundo Feitosa, assassinado
pelos mesmos pistoleiros que mataram Maria Helena. O fazendeiro foi morto a mando de sua
esposa que era amiga de Waldir Roma, que indicou os mesmos pistoleiros do caso de Maria
Helena. (Waldir Roma é o mandante do crime. Diário da Manhã, 19 de novembro de
1981.p.10)
121
A história desses crimes envolve uma trama complexa registrada no Diário da
Manhã até o final da década de 1980. A impunidade desses acusados foi problematizada no
decorrer de vários anos da década de 1980, assim como os outros crimes que ocorreram nesse
período.
É interessante sublinhar, que foi no Código Penal de 1830 que o direito dos
maridos matarem suas esposas adúlteras e suas amantes foi reincidido. Nas Ordenações
Filipinas, esse fato era permitido, com exceção dos casos em que o “amante fosse de melhor
qualidade do que o marido”. Todavia, no digo Penal de 1830, o adultério cometido pelas
esposas prevaleceu como um argumento atenuante que poderia livrar os esposos da culpa. Em
relação a punição, o Código de 1830 estabeleceu pena de 1 a 3 anos de prisão para esposas
infiéis e maridos que tivessem amantes. o digo de 1890 foi mais radical. Ele eliminou a
vingança de alguma injúria ou desonra como atenuante. No entanto, continuou a prevalecer no
código o atenuante da legítima defesa da pessoa”, que deu margens a inclusão da legítima
defesa da honra, “já que esta era considerada não somente como um patrimônio essencial,
mas parte ativa da personalidade humana”. (Cauelfield, 2000, p.84.)
Contudo, é curioso observar que tanto a discussão sobre os crimes passionais feita
na legislação quanto na própria imprensa é relativa às vítimas de violência. É raro, a discussão
sobre mulheres criminosas. Porém, nos jornais do final do século XIX, do Estado de Goiás, a
maioria dos casos registrado é relativa às mulheres que assassinaram seus parceiros:
Na fazenda do capitão Carvalho Bastos, no Jathay, uma mulher
assassinou o marido descarregando-lhe, dormindo este, uma
machadada na testa. o satisfeita ainda esbordoou o cadáver e
arrastou-o para fora de casa. O assassino era um homem honesto e
muito laborioso.(Assassinato. Gazeta Goyana, Goiás, 07/03/1891.p.2).
Em outro jornal, o registro de que:
[...] Tem-se dado vários assassinatos, um número que é muito para
lamentar [..] Na palma, no dia 03 de abril, ás 3 horas da tarde, uma
sujeita de nome Martha pequena-, tendo-se travado de razões contra o
seu amante, José Ramos, e recebendo dele um tempo, cravou-lhe uma
facada no coração, matando-o instantaneamente [...] (Crimes.
Província de Goiáz, Goiânia, 02 de julho de 1870,p.2)
As mulheres também utilizavam-se do argumento da tese da legítima defesa da
honra. Na reportagem do dia 03 de agosto de 1939 na página 02, o jornal “Cidade de Goiás
122
registrou um caso em que duas rés, mãe e filha, foram submetidas a julgamento por um crime
praticado contra um homem. O jornal não registra os motivos, nem a origem das pessoas.
Ao ressaltar esses crimes, não tenho a intenção de enfatizar a visibilidade das
mulheres criminosas, ou até mesmo, discutir sobre os padrões normativos existentes entre os
sexos. Porém, não como negar que esse fato nos possibilita pensar que o podemos
generalizar o problema da violência contra a mulher, apenas diante de um ângulo: o das
relações desiguais entre os sexos, na qual a posição da mulher como subordinada e tima de
violência sempre foi recorrente.
De toda forma, em relação a legítima defesa da honra e a impunidade, o Diário da
Manhã registrou na década de 1980 que:
“De Doca Street a Lindomar Castilho, a linha mestra é uma : o
recrudescimento da violência contra a mulher nos últimos anos e,
principalmente, a impunidade dos criminosos e a transformação da vítima
em ré de ação [...] Em Goiânia, as mulheres têm opiniões diversas quanto
ao crime cometido por Lindomar [...] Ontem, no Diário da Manhã, sete
mulheres atribuíram o crime ao machismo do homem brasileiro, que se
julga dono da mulher; à certeza da impunidade; ou às próprias
conseqüências de uma paixão violenta [...] AS OPINIÕES: Cristina de
Castro, engenheira eletrônica, disse que Lindomar Castilho cometeu um
crime passional típico quando um dos njuges não se conforma com a
separação [...]. A pianista Belkiss Carneiro de Mendonça acredita que
Lindomar matou a sua ex-mulher porque deve ter ficado perturbado
com alguma coisa”. Em sã consciência, ele não faria uma coisa dessas”
[...] Neusa Peres, pintora classificou o crime como “terrível [...] que
tudo denota de um alto grau de machismo [...], pois a legislação é toda
feita por homens [...] Violeta Carrara, empresária, acha que este “é um
problema que acontece na vida das pessoas. Por orgulho ferido, ciúmes, a
pessoa perde o controle e se descompensa [...] Amor e paixão o um
negócio muito violento [...]. (Comportamento. Lindomar mata. O que
pensam as mulheres. Diário da Manhã, Goiânia, 03 de abril. 1981. p.05).
Nessa reportagem, o jornal noticiou o que pensava a opinião pública sobre o
assassinato de mulheres, no caso específico, o de Lindomar Castilho. Nota-se que o primeiro
problema destacado é o da impunidade, e a ele esteve associado vários fatores, como a
justificativa da paixão e o machismo. Portanto, a soma de todos esses fatores, como a
impunidade, (sustentada na votação do júri popular), a legítima defesa da honra, a paio, o
ciúme e a traição sustentaram o debate sobre os crimes passionais, após a transformação do
fenômeno da violência contra a mulher em um problema social.
O cerne do debate na imprensa goianiense nesse período foi feito sobre as causas
dos altos índices de mortes de mulheres assassinadas por seus parceiros. Nota-se através do
123
trecho acima, que a opinião pública pensa essas causas como decorrentes do machismo, ou
ciúmes, ou problemas de origens patológicas quando existe a questão do amor e da paixão.
A traição, na maioria dos crimes passionais, era evidenciada como a causa do
crime. A tima se transformava em da ação, através do argumento de legítima defesa da
honra. Marisa Corrêa (1983), ao investigar sobre os homicídios e tentativa de homicídio entre
casais, nos processos judiciais da cidade de Campinas, no estado de São Paulo, referentes aos
anos de 1952 a 1972, constatou que na maioria dos homicídios de mulheres, os advogados de
defesa do réu argumentaram a legítima defesa da honra e foram apoiados pelo Tribunal do
Júri.
A autora argumenta que essa defesa no tribunal é apoiada pela construção
desigual dos atributos masculinos e femininos, construída historicamente, e que prevalecem
no julgamento do crime. uma benevolência masculina; a fidelidade da esposa é posta
como o dever principal em relação ao marido, assim como os seus outros atributos ligados a
esfera do lar. No decorrer do livro de Correa, ela discorre sobre os processos criminais
enfatizando que os esteriótipos masculinos e femininos aceitos na sociedade brasileira foram
apropriados pelo sistema jurídico, passando a ser parte dos autos de um processo.
Dessa forma, Corrêa analisa o fenômeno dos crimes passionais, a questão da
legítima defesa da honra, em termos de compreender suas origens sociais, que para ela,
localizam-se na desigualdade predominante entre os sexos.
Diante dessas questões, não dúvidas de que após a disseminação da violência
contra a mulher na esfera bica como um problema social, tornou-se comum o debate sobre
o assassinato de mulheres cometido por seus njuges. Por fim, o que me interessa frizar é
que a impunidade e a legítima defesa da honra foram justificadas após a década de 1980,
como elementos que incidiram diretamente sobre um problema a ser combatido, o da
violência contra o corpo da mulher, levada muitas vezes até ao limite, a morte. o foram
mais as categorias morais, como a defesa da honra das famílias, que colocaram em cena esses
elementos. Eles foram transformados em mecanismos que passaram a operar no interior do
corpo jurídico como fatores que sustentaram a impunidade dos agressores de mulheres.
Portanto, se passou a buscar as origens desses elementos, na tentativa de pesquisar medidas de
prevenção e combate a essa violência contra a mulher.
124
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Perscrutar a constituição do fenômeno da violência contra a mulher na cidade de
Goiânia, levou-me a defrontar com uma rede de relações, até então desconhecidas, das
análises que tinha sobre essa violência.
No período da graduação, quando resolvi estudar esse fenômeno, tive como
primeiro passo a análise da historiografia sobre esse tema. A primeira informação que obtive,
foi a de que a partir da década de 1970, após a atuação do movimento feminista, a violência
contra a mulher passou a ser considerada como um problema social no país. Como foi
ressaltado, no início da pesquisa, após o contato com alguns trabalhos sobre essa violência,
especificamente na cidade de Goiânia, detectei que os primeiros grupos feministas surgiram
após o ano de 1980, e que os jornais da época, divulgaram a atuação desses grupos diante de
questões como a violência contra a mulher. Foram esses dados que me levaram a escolher a
imprensa escrita como fonte de pesquisa e a década de 1980 como período a ser analisado.
Desse modo, desde o primeiro dia de pesquisa no arquivo do Diário da Manhã,
encontrei uma série de reportagens sobre os principais crimes passionais da época, e de várias
discussões acerca da apreensão da violência contra a mulher feitas por diversos segmentos da
sociedade, principalmente dos grupos feministas, como um fenômeno a ser combatido. Ou
seja, as fontes jornalísticas que detinha problematizavam essa violência como um problema
social. É notório que os jornais a partir da década de 1980 registravam e debatiam as origens e
as causas dessa violência, sob a perspectiva de vários grupos sociais que passaram a intervir
sobre esse problema. Nesse sentido, meu objetivo consistia em debater e confrontar as
diversas opiniões sobre essa violência, a partir das representações que cada grupo fazia desse
problema. Ao mesmo tempo, tentava aproximar essas análises das concepções teóricas
feministas sobre as causas desse fenômeno.
Sendo assim, as análises que fiz, iam de acordo com a maioria dos trabalhos
realizada pela historiografia feminista, no sentido de que as fontes que possuía debatiam a
violência contra a mulher a partir das atitudes atuais diante desse fenômeno.
Nessa época, ao escolher investigar os jornais a partir de 1980 em diante, parti do
caminho mais modo: era certo que encontraria esse fenômeno noticiado nos jornais a partir
desse período. A própria historiografia e o contexto me proporcionaram essa certeza. Por
outro lado, todos esses dados me levaram à hipótese, de que uma pesquisa sobre esse
fenômeno, antes da década de 1980, seria impossível, pois não encontraria registros nos
125
jornais de décadas anteriores e apenas me defrontaria com a invisibilidade desse femeno,
haja visto que ainda não tinha surgido os grupos feministas.
Entretanto, como foi observado, são constantes os registros de casos dessa
violência, desde os jornais do final do século XIX do Estado de Goiás e início do século XX,
mesmo que ligados a outros tipos de problemas. As questões conectadas à violência como um
problema moral, nas primeiras décadas da cidade, colocou em cena uma série de dispositivos
e mecanismos que fizeram parte da historicização da constituição dessa violência como um
problema social. A relação dessa violência com a prostituição, com problemas de ordem
citadina, com o Estado, a Justiça, a família, com a honra e a moral, me proporcionou
compreender a importância de investigar caminhos desconhecidos, de perscrutar outros
arquivos. A própria atuação da imprensa, diante dessa violência, antes de se tornar um
problema social, me possibilitou pensar nas diferentes formas metodológicas de conceber os
jornais como fontes de pesquisa.
Assim, pesquisar essa violência antes da década de 1980, me fez apreender fatos
particulares imersos a esse fenômeno. Acredito que, ao analisar essa violência, apenas após o
ano de 1980, através de um dado já concebido, de uma verdade - construída por grupos num
momento específico e que precisavam se legitimar socialmente a de que a partir da atuação
de grupos como o das feministas, a violência contra a mulher passou a ser visibilizada, me
obscureceu a soma dos problemas, o conjunto de forças históricas que envolveu a constituição
dessa violência contra a mulher como um problema social.
Nesse sentido, a pesquisa da história de um fenômeno, através de um recorte
cronológico arbitrário, reduz o horizonte do problema. Como afirma Paul Veine (1992,
p.188): a explicação histórica não segue caminhos já traçados de uma vez por todas; a
história não tem anatomia”. Não se pode encontrar, em sua fluidez, um núcleo consistente”.
Assim sendo, considero ter sido fundamental “intervir sobre o curso desse acontecimento”,
dessa violência contra a mulher posta como um problema social após a atuação do feminismo,
e de pesquisar o conjunto de relações conectadas à esse fenômeno.
Acredito que a violência contra a mulher, ligada à problematização da prostituição,
dos problemas citadinos, das relações entre a instituição da família com as instituições
governamentais, e da série de questões que a levaram a se constituir em um problema social,
abre novas possibilidades de pensar sobre esse fenômeno, para além de uma discussão
pautada nas origens sociais dessa violência.
Nesse sentido, sublinho novamente, que em nenhum momento tive a pretensão de
fazer uma análise do que seja a violência contra a mulher e de quais seriam suas “verdadeiras”
126
ou “possíveis” causas e origens; da mesma forma, não pretendi analisá-la sob a perspectiva
dos estudos de gênero e/ou de análises sócio–econômicas; e nem mesmo, de fazer uma
reconstituição histórica dos principais crimes contra as mulheres noticiados pela imprensa.
Tentei me distanciar dessas análises sobre as origens internas à essa violência sem
desconsiderá-las-, na inteão de não abordar o fenômeno em termos de explicação a partir de
suas causas e origens. Procurei entender a trama que envolveu essa violência até o momento
que ela se constituiu como um problema social.
Creio que essa história sobre as relações que envolveram o fenômeno da violência
contra as mulheres na cidade de Goiânia, possa se somar aos estudos feitos sobre essa
temática. Assim, gostaria de enfatizar que, apesar de ter me distanciado das discussões
teóricas contemporâneas que abordam o fenômeno da violência contra a mulher, não deixo de
considerar a importância dessas pesquisas, que buscam e analisam medidas de prevenção e
combate a essa violência. Minha posição, aqui adotada, foi de produzir um trabalho histórico,
que pudesse fornecer outros olhares dispersos e conectados ao tema. De toda forma, acredito
que a pesquisa demonstra uma realidade presente e antiga dessa violência na cidade de
Goiânia, que não pode ser ignorada, mas ao contrário, deve ser pensada, discutida e analisada
por toda a sociedade.
Os dados mais recentes confirmam que a impunidade, a legítima defesa da honra e
a versão passional continuam como bases dessa violência. Todavia, jornais como o Diário da
Manhã apresentam atualmente a maioria dos casos de violência contra a mulher de forma
pejorativa, que pode ser considerada como uma banalização dessa violência. Os crimes são
noticiados através de charges das vítimas e algozes, através de narrações pitorescas que
transformam, a meu ver, a própria notícia dessa violência em uma agressão contra a própria
mulher. A maioria dos crimes repercutidos são os que envolvem timas e/ou algozes de alta
posição social na cidade.
Assim, considero que é inegável a importância da atuação do movimento feminista
a partir dos anos 80, do problema da violência contra a mulher. Além das particularidades
dessa violência, espero que a pesquisa possa ser mais uma contribuição acerca dos estudos
sobre a “cidade dos sonhos”, a cidade idealizada”, a “terra de oportunidades”, a cidade de
Goiânia. Creio, que o trabalho possa dar abertura para a investigação de novos objetos de
estudos, aqui conectados com o tema da violência contra a mulher, mas que podem ser
analisados sob diferentes aspectos.
127
FONTES
1 - ACERVOS
1.1 - ARQUIVO DO CEDOC (CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO)
JORNAL DIÁRIO DA MANHÃ – GOIÂNIA, 1981, 1982, 1983, 1987, 1988.
1.2 – ARQUIVO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE GOIÁS (IHGG)
JORNAL O POPULAR: REPORTAGENS DIVERSAS DAS DÉCADAS 1970 a 1990.
1.3 INSTITTUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS HISTÓRICOS DO BRASIL
CENTRAL (IPHBC)
PERIÓDICOS:
A IMPRENSA: GOIÂNIA, 1914.
O ASPIRANTE: GOIÂNIA, 1931.
O LAR: GOIÂNIA, 1926, 1927, 1928,1932.
JORNAL DE GOIÁS, GOIÁS, 1932 a 1937.
BRASIL CENTRAL: GOIÂNIA, 1937, 1938, 1939, 1940, 1941, 1942, 1957, 1959.
JORNAL DE NOTÍCIAS: GOIÂNIA, 1952 a 1958.
CINCO DE MARÇO: GOIÂNIA, 1959 a 1979.
JORNAIS DIVERSOS: SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX
O COMÉRCIO: (06/04/1879 31/01/1882)
GAZETA GOYANA: (13/09/1890 – 30/05/ 1891)
JORNAL DE GOYAZ: (12/03/1892 – 18/12/1893)
A REPÚBLICA: (28/09/1896 - 14/08/1907)
A IMPRENSA: (02/02/1922 - 21/02/1932)
O DEMOCRATA: (10/08/1923 - 09/12/1927)
128
BIBLIOGRAFIA
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