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Daniel Pecego Vieira Caetano
A Partir do Narrador Que Observa
Argumentos e Diálogos
Dissertação de mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da PUC-Rio como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em Letras,
aprovada pela Comissão Examinadora.
Orientadora: profa. Pina Maria Arnoldi Coco
Rio de Janeiro
Março de 2006
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410427/CA
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Daniel Pecego Vieira Caetano
A partir do narrador que observa
Argumentos e diálogos
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre pelo programa
de Pós-Graduação em Letras do Departamento
de Letras do Centro de Teologia e Ciências
Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
Profa. Pina Maria Arnoldi Coco
Orientadora
Departamento de Letras – PUC-Rio
Profa. Marília Rothier Cardoso
Departamento de Letras – PUC-Rio
Prof. João Luiz Vieira
Departamento de Cinema e Vídeo – UFF
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 28 de março de 2006
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410427/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e
da universidade.
Daniel Pecego Vieira Caetano
Graduou-se em Comunicação Social – Habilitação em Cinema
pela Universidade Federal Fluminense em 2001. Organizador e
autor de dois ensaios do livro “Cinema Brasileiro 1995-2005 –
Ensaios sobre uma década” (Rio de Janeiro:
Ed.Azougue/Contracampo, 2005). Em 1999 tornou-se redator e
editor da seção Plano Geral da Revista de Cinema
Contracampo (http://www.contracampo.com.br). Co-produtor e
editor do curta-metragem “Visita Cívica” (2003). Roteirista,
co-diretor e produtor executivo do longa-metragem “Conceição
– Autor Bom é Autor Morto”.
Ficha catalográfica
CDD: 800
Caetano, Daniel Pecego Vieira
A partir do narrador que observa: argumentos e
diálogos / Daniel Pecego Vieira Caetano ; orientadora: Pina
Maria Arnoldi Coco. Rio de Janeiro : PUC-Rio,
Departamento de Letras, 2006.
110 f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado) Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Letras
Inclui bibliografia
1. Letras Teses. 2. Narrador. 3. Ficção. 4. Conto. 5.
Criação literária. I. Coco, Pina Maria Arnoldi. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de
Letras. III. Título.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410427/CA
Agradecimentos
A meus pais.
A Bianca Novaes.
À minha orientadora, Pina Coco.
Aos colegas, professores e funcionários do Departamento de Letras.
À Capes e à PUC-Rio.
Esse trabalho não existiria sem estes apoios.
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Resumo
Caetano, Daniel Pecego Vieira. A partir do narrador que observa –
Argumentos e diálogos. Rio de Janeiro, 2006. 110p. Dissertação de
mestrado - Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro
A dissertação propõe questões sobre uma conduta determinada de narrador
literário – um narrador que relate somente o que se pode ver e ouvir -,
apresentando uma produção própria de ficção feita dentro desta forma e tecendo
considerações a partir desta produção. Dessa forma, ela se constitui de três contos
e ensaios em torno de questões desta produção. Pretende-se assim falar, por
conseqüência, da própria criação literária, de seus caminhos e suas bordas, a partir
de leituras de textos conhecidos sobre a própria escrita, como os de Edgar Allan
Poe, Alain Robbe-Grillet, Italo Calvino, Umberto Eco e Ricardo Piglia.
Palavras-chave
Narrador; Ficção; Conto; Criação literária.
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Abstract
Caetano, Daniel Pecego Vieira. The observing narrator – Lines, ideas and
dialogues. Rio de Janeiro, 2006. 110p. Dissertation - Departamento de
Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
This dissertation raises questions concerning a certain form of literary
narrative – that of a narrator who reports only what can be seen and heard -,
presenting the author’s own literary work of this form and making considerations
about it. The dissertation consists of three short stories and essays raising
questions over these fictional texts. The intention is to discuss literary creation
itself, its paths and borders, taking as starting point readings of well-known texts
on writing itself by Edgar Allan Poe, Alain Robbe-Grillet, Italo Calvino, Umberto
Eco and Ricardo Piglia.
Keywords
Narrator; Fiction; Short-story; Literary composition.
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SUMÁRIO
Introdução – Uma geografia da composição 8
Guerra Fria Tropical
14
Ciência do narrador
42
O Velho e o Novo
51
Numa rede de linhas que se entrecruzam
74
Washington
80
Conclusão
105
Referências bibliográficas
110
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INTRODUÇÃO
UMA GEOGRAFIA DA COMPOSIÇÃO
Essa dissertação pretende trazer questões sobre uma forma determinada de
narrador literário, apresentando uma produção de ficção feita dentro desta forma
proposta e algumas considerações em torno da produção aqui apresentada. Deste
modo, quero tratar de um certo aspecto (as regras do narrador) do grande tema que
é a própria criação literária, seus caminhos e suas bordas. Neste caso,
apresentando uma tentativa parcial de abordar esta questão específica, a das
conseqüências de um narrador que segue certas regras estritas de observação das
ações.
Para caracterizar esta tentativa, o percurso que me interessou desde o
início foi este: trabalhar com a própria criação literária, não apenas discutindo em
ensaios analíticos as questões que me interessavam sobre a forma do narrador,
mas tratando delas diretamente, a partir da inclusão nesse texto de ficções
originais, dentro do formato específico do conto literário gênero que, por sua
vez, já tem um vasto espectro de teorias próprias, algumas das quais me auxiliarão
mais à frente. Desta maneira, essa dissertação, ensaio em mais de um sentido, é
um exercício de criação de contos seguindo regras pré-definidas de narração e é
também a tentativa de compreender algumas das conseqüências e possibilidades
geradas por esta relação proposta, de apagamento da figura do narrador.
Para que isso seja possível, procurei definir com o máximo de clareza e
simplicidade as regras que norteiam a escrita dos contos que se incluem aqui, e
elas se resumem ao seguinte: eles terão um narrador que em nenhum momento
poderá dizer nada além do que os personagens podem ver e ouvir - um narrador
que, atendo-se à superfície da percepção visual e auditiva, não pode dar a
conhecer os pensamentos de seus personagens, não pode se dirigir diretamente ao
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leitor nem pode oferecer julgamentos. Relata-se somente a ação dos corpos, nada
mais.
Esta escolha foi natural no caminho para aproximar-me das regras da arte
literária. Afinal, se pelo meu percurso estou filiado à escrita característica dos
textos para cinema (como estudante, como roteirista, como redator), pensei então
em buscar um caminho literário que seja inteiramente ligado a esta escrita – sendo
assim, resolvi retirar totalmente do texto ficcional os artifícios de narração e
procurei relatar somente os acontecimentos, sem caracterizar personagens senão
pelos sinais que exibem e pelos gestos que fazem. Desta forma, imaginei de início
que iria manter até certo grau uma certa opacidade dos personagens – na pretensão
de que a imaginação do leitor seja instada a completar aquilo que o narrador
silencia na trama ficcional.
Assim, pareceu-me possível e natural este encontro da produção
acadêmica com a criação literária, e quero apresentar aqui algumas questões a
partir da escrita dos textos. Seguir regras nunca é de todo confortável, mas esta
que escolhi me pareceu que permitiria encontrar algumas percepções interessantes
acerca da relação texto-leitor. Acredito que, se por um lado certamente nessa
minha proposta uma proximidade evidente (mas, na verdade, bastante ambígua)
com a narrativa cinematográfica, por outro lado uma disparidade completa, no
aspecto que interessa a esta dissertação, entre a relação estabelecida pelo texto
literário e aquela criada pela produção cinematográfica. Afinal, se na maioria dos
casos a linguagem cinematográfica (em que o movimento dos corpos geralmente
substitui o narrador em off) estabelece entre a câmera e os personagens silêncio
similar, ela encontra, pela sua própria natureza, um outro tipo de aproximação
com o espectador uma vez que um filme se apresenta visual e sonoramente.
Sempre fez parte da natureza da literatura provocar a imaginação a partir das
palavras cantadas por um narrador – e a discussão que vou apresentar com relação
a este percurso escolhido consiste em compreender em que resulta esta atitude de
silêncio do narrador, que abre o de algumas de suas mais conhecidas armas de
sedução, não relatando nada além das ações de seus personagens.
* * *
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Essa empreitada, tentando fazer um mapeamento da construção formal dos
textos, não é uma atitude original, evidentemente e uma das intenções deste
estudo é perceber relações diversas de sua forma narrativa com certos discursos
críticos e propostas estéticas. O próprio título desse texto já denuncia está intenção
uma vez que ele remete ao célebre Filosofia da Composição, de Edgar Allan
Poe.
1
A organização deste trabalho de criação e análise de percurso parte, de
certa forma, da cronologia da escrita, mantendo, portanto, a ordem de produção de
ficção. Assim, apresento aqui os contos na ordem em que foram escritos, e cada
um deles é seguido por um texto ensaístico que contém algumas impressões
levantadas pelo conto em questão sobre as características da forma de narração.
Mas cabe avisar: não pretendo fazer um estudo auto-crítico. Creio que
encontrei uma boa delimitação para a proposta deste estudo em dois trechos do
início de um texto de Umberto Eco, o Pós-Escrito a O Nome da Rosa, quando ele
afirma que “um Narrador não deve oferecer interpretações de sua obra, (...) que é
uma máquina para gerar interpretações.
2
O autor não pode interpretar. Mas pode contar como e por
que escreveu. Os assim chamados tratados de poética nem
sempre servem para compreender a obra que os inspirou,
mas servem para compreender de que modo se resolve o
problema técnico que é a produção de uma obra.
3
A tradição de abordagem do texto literário por quem o escreveu não é
pequena e apresenta algumas questões clássicas. Em Por um Novo Romance,
Alain Robbe-Grillet ironiza: Entretanto, algo em particular que os críticos
acham difícil de suportar: é o fato de os artistas se explicarem”.
4
1
POE, Edgar Allan. “A Filosofia da composição”. In: BARROSO, Ivo (org.). “O Corvo” e suas
traduções. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2000 (2ª edição).
2
ECO, Umberto, Pós-Escrito a O Nome da Rosa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,1985, p. 8.
3
Idem, p. 13.
4
ROBBE-GRILLET, Alain, “Para que servem as teorias”, In: Por um novo romance, São Paulo:
Ed. Nova Crítica. 1969, p. 9.
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A Filosofia da Composição de Poe não esconde seu racionalismo ao
explicar a construção da obra. Poe comenta em certo trecho:
Muitas vezes pensei quão interessantemente poderia ser
escrita uma resenha, por um autor que quisesse - isto é,
que pudesse pormenorizar, passo a passo, os processos
pelos quais qualquer uma de suas composições atingia seu
ponto de acabamento. (...)
Muitos escritores – especialmente os poetaspreferem ter
por entendido que compõem por meio de uma espécie de
sutil frenesi, de intuição estática.
5
Isto se opõe claramente (e parece ironizar antecipadamente) à posição de
Julio Cortázar, quando este, em seu texto Sobre o Conto, escreve o seguinte:
No meu caso, a grande maioria dos meus contos foi escrita
– como dizê-lo – à margem da minha vontade, por cima ou
por baixo da minha consciência racional, como se eu não
fosse mais do que um meio pelo qual ele passava e se
mostrava uma força alheia.
6
No livro Seis Passeios Pelos Bosques da Ficção, Umberto Eco interpreta o
texto de Poe procurando diminuir a importância da discussão sobre o controle dos
efeitos que o poema produz nos leitores. Eco usa o exemplo de Poe para falar de
sua tese sobre leitores-modelo de diferentes graus - segundo ele, todo texto é
escrito considerando um leitor ideal, e os textos literários apresentam linhas para
um outro tipo de leitor ideal, um leitor de segundo nível: o primeiro leitor deseja
conhecer a trama, ou seja, o que o texto apresenta; o segundo leitor ideal quer
compreender como se constrói a narrativa, ou seja, de que artifícios o texto lança
mão para se apresentar. Daí o escritor italiano supõe que “Poe só quis expor o que
esperava que o leitor do primeiro nível sentisse e o leitor do segundo nível
descobrisse em seu poema”.
7
5
POE, Edgar Allan, A Filosofia da Composição, p. 38.
6
CORTÁZAR, Julio, “Sobre el cuento”, disponível em
http://www.ciudadseva.com/textos/teoria/opin/ cortaz2.htm
7
ECO, Umberto, Seis passeios pelos bosques da ficção, Rio de Janeiro: Ed. Companhia das
Letras, 1994, pp. 50-53.
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Na verdade, Poe é bastante claro ao afirmar a racionalidade de sua criação.
Em certo ponto, ele diz que:
É meu desígnio tornar manifesto que nenhum ponto de sua
composição se refere ao acaso ou à intuição, que o
trabalho caminhou, passo a passo, até completar-se, com a
precisão e a seqüência rígida de um problema matemático.
8
Antes disso, no mesmo texto, o poeta expusera sua convicção em
valorizar a construção do poema a partir de seus objetivos finais:
Há um erro radical, acho, na maneira habitual de construir-
se uma ficção. Ou a história nos concede uma tese, ou uma
é sugerida por um incidente do dia, ou, no melhor caso, o
autor senta-se para trabalhar na combinação de
acontecimentos impressionantes, para formar
simplesmente a base da narrativa, (...)
Eu prefiro sempre começar com a consideração de um
efeito. Mantendo sempre a originalidade em vista (...),
digo-me, em primeiro lugar: “Dentre os inúmeros efeitos,
ou impressões a que são suscetíveis o coração, a
inteligência ou, mais geralmente, a alma, qual irei eu, na
ocasião atual, escolher?.
9
Eco, no entanto, defende uma compreensão mais sofisticada deste olhar do
poeta sobre sua própria obra, percebendo que Poe não discute os elementos
misteriosos de seu poema, mas somente as escolhas estruturantes da obra:
Poe não está nos dizendo como parece a princípio que
efeitos deseja criar na alma de seus leitores empíricos; (...)
quando muito, ele nos revela como produziu o efeito que
deve impressionar e seduzir seu leitor do primeiro nível. Na
realidade, nos conta o que gostaria que seu leitor de segundo
8
POE, Edgar Allan, A Filosofia da Composição, p. 39.
9
Idem, pp. 37-38.
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13
nível descobrisse (...) Poe não identifica o significado último
e unívoco de seu poema: ele descreve a estratégia que
concebeu para habilitar o leitor a explorar seu poema
incessantemente.
10
Ele mesmo, Umberto Eco, também meditou sobre o assunto da própria
criação no seu precioso Pós-Escrito ao Nome da Rosa, citado anteriormente,
editado após o sucesso gigantesco de seu romance de estréia. Neste Pós-escrito,
conciliando seu saber histórico e acadêmico e sua experiência criativa, o italiano
fez uma exposição brilhante sobre as principais questões de um escritor no
contexto histórico dos anos 80. Em certo trecho ele diz o seguinte:
Quando o escritor (ou artista em geral) diz que trabalhou
sem pensar nas regras do processo, quer dizer apenas que
trabalhava sem saber que conhecia a regra. Uma criança
fala muito bem a língua materna, mas não saberia escrever
a sua respectiva gramática. Mas o gramático não é o único
que conhece as regras da língua, porque estas, sem saber, a
criança conhece muito bem: o gramático é apenas aquele
que sabe como e por que a criança conhece a língua.
Contar como se escreveu não significa provar que se
escreveu “bem”. Poe dizia que uma coisa é o efeito da
obra e outra coisa é o conhecimento do processo”.
11
As considerações que apresento aqui não pretendem servir como “chave de
entendimento” nem como “auto-análise” dos textos ficcionais. Elas irão se centrar
sobretudo num aspecto da estrutura de narração, o da relação estabelecida com o
leitor a partir da imposição de um narrador limitado, que não diz nada além
daquilo que se pode ver e ouvir. Como se sabe, os textos, ficcionais ou não,
sempre dizem mais do que pretendem. Quanto a isso, como nota Eco,
caminhos seguidos pelos textos que cabe ao escritor definir e discutir; com relação
a outras regiões que são abertas pelos textos, apenas ao leitor cabe explorá-las.
Assim, o próximo passo será apresentar o primeiro conto escrito dentro da
proposta desta dissertação, Guerra Fria Tropical.
10
ECO, Umberto, Seis passeios pelos bosques da ficção, pp. 52-53.
11
Idem, Pós-escrito a O Nome da Rosa, p. 14.
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GUERRA FRIA TROPICAL
OU: A CIA NO BRASIL
OU TAMBÉM: COMO ERA GOSTOSO O MEU ESPIÃO
Rio de Janeiro,1979. Segunda-feira, a família Hawk prepara-se para tomar o
café da manhã.
Anamélia, senhora de uns quarenta anos, prepara café, leite quente e torradas
quando o telefone começa a tocar. Toca duas vezes e ninguém atende. Ela grita por
Rodolfo e Joseph – é Joseph, seu filho de treze anos, quem socorre. Ele atende e grita:
“Mãe, é o John, é da Califórnia!”.
Anamélia larga o leite prestes a ferver e corre:
“Meu filho, como você está? Está fazendo frio aí em São Francisco?.
Enquanto ela conversa com seu discreto sotaque mineiro, mister Rodolfo, de
prováveis cinqüenta anos, aproxima-se e pergunta com seu sotaque carregado de
inglês:
“Ele foi dispensado, Anamélia?”.
Ela faz sinal para ficar quieto:
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“Quando você chega? Mês que vem? Que bom, meu filho! Seu pai quer saber
se você foi aprovado... Deu baixa? Com louvor? Parabéns, filho! Nós todos estamos
muito felizes com você!”.
Ouvindo isso, Rodolfo senta-se à mesa. Anamélia desliga o telefone, ele
pergunta se o café está pronto. A esposa vai para a cozinha, sem nada dizer. Ele chama
Joseph e grita por Dianne, a filha de dezoito anos. No rosto não esboço de alegria
ou felicidade a postura hierática e o semblante de todos os dias. Mesmo quando
chega a esposa com o café, nenhum movimento de descontração ou prazer.
Joseph pergunta à mãe as novidades de John o filho mais velho foi
dispensado da marinha norte-americana, ela conta, e com menção de louvor pelos
serviços prestados.
“Serviços prestados em tempo de paz?”, pergunta Rodolfo, sem um sorriso.
“Foi o que ele disse, Rodolfo”.
“Então por que foi dispensado? Por que não seguiu carreira?.
“Ora, deixe o rapaz seguir a vida que quiser!”.
“Pai, se não tem guerra, para quê ele vai servir ao exército?, pergunta-lhe
Joseph.
“Para servir à sua pátria, Joseph”, responde Rodolfo.
“Mas, pai, ele nasceu no Brasil!”.
“E daí? Você passou sua infância no Chile. Por acaso é chileno?.
“Sou, pai! E também sou brasileiro, pai!”.
“Não é! Você é meu filho, você é um Hawk, um americano”.
“Mamãe é brasileira”.
“... e um dia também poderá servir à sua verdadeira pátria, como seu irmão. E
esse fim de mundo em que nós estamos vai fazer parte do passado”.
“Servir à tria como? Invadindo o país dos outros, pai? Invadindo a
Nicarágua, o Irã ou Cuba?, pergunta o caçula.
“Joseph, mantenha o respeito com seu pai!... Você entenderá melhor este
assunto um dia, no futuro. Os pilotos da marinha americana lutam por um ideal: levar
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a democracia para todo o mundo... Anamélia, o que com a sua filha que não se
levanta a esta hora?.
“Ela não está em casa, Rodolfo, ela dormiu na casa de uma amiga”.
“Enfim... eu tenho que ir para uma reunião”.
“Pra quê tanta reunião, meu Deus? Vocês não vendem refrigerante no Brasil
inteiro?”.
“Vamos lançar novas marcas”.
Ele está saindo de casa quando chega Dianne, que dá alô e corre para o
chuveiro.
“Anamélia, essa garota parece confusa”.
“Não é nada, Rodolfo”.
“Ela não tem aula hoje? Afinal, onde ela dormiu?”.
“Na casa de uma amiga. Acho que foi a Claudinha”.
Rodolfo chega no pequeno escritório da CIA, no Centro do Rio de Janeiro.
ele tem pilhas de relatórios para conferir, com diversos gráficos e números sem fim – e
pode falar em inglês com os amigos. Conversa com um subordinado, mister
Douglas – já começam o dia falando mal do presidente americano, o democrata Jimmy
Carter, e sua política externa. Em seguida, examinam o texto de uma confissão obtida
pela polícia carioca, onde se relata novos planos de seqüestros de diplomatas
estrangeiros por subversivos.
Praguejam acerca do excesso de trabalho, do relaxamento ante a ameaça
comunista e também dessa mania recente de lhe cobrarem investigações sobre
“direitos humanos”. Rodolfo está convicto de que é preciso encontrar figuras-chaves
da subversão.I’m sure there’s a brain behind all these plans”, chega a dizer.
Depois pergunta sobre os informantes estudantis Douglas diz que o
informante de uma universidade aparecerá à tarde para um breve relatório. Rodolfo
recebe então um telefonema dos chefes (“It’s them”, diz Douglas). Após algumas
breves frases em inglês (“Yes, sir”, “Ok, sir”, “I’m sorry, sir”), já não detém o espanto.
Um arremedo de tradução da conversa que se segue:
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“Onde você pensa que nós estamos? Na Disneylândia? Ok, senhor. Desculpe-
me, senhor”, e logo desliga o telefone.
“E então?”, pergunta Douglas.
“Até o final do ano não teremos mais dinheiro”, responde Rodolfo.
“Nós não podemos trabalhar dessa maneira”.
“Maldito Carter”.
“Seríamos mais úteis se eles ordenassem que todos os agentes da CIA
voltassem para os EUA”.
“E agora eles também querem que a gente investigue sobre os tais direitos
humanos nas prisões brasileiras”.
“Ahn?!”.
Dianne chega ao set de filmagens com David, seu namorado, produtor do
filme, cabelinho bem cortado, porte atlético e bigode franzino. Após bons dias a todos,
ele a conduz ao camarim. Os dois aproveitam um pouco da solidão até a chegada da
maquiadora. Junto com ela chega o diretor sujeito alto de uns quarenta anos, parece
um hippie desbundado, óculos fundo de garrafa – que começa a conversar com
Dianne, que no set de filmagens é conhecida pelo pseudônimo de Sandra Muller.
Dianne já está vestida somente com um robe. Conversam enquanto se encaminham
para o cenário das filmagens:
“Sandra, essa semana sai aquela reportagem que fizeram com a gente na
semana passada”, diz-lhe seu namorado. “Dentro de poucos dias, vai nascer uma
estrela: Sandra Muller!”
“Eu espero que ninguém da minha família descubra, ou Sandra Muller vai
nascer e morrer no mesmo dia!”.
“Sandrinha, você terminou de ler o livro que eu te passei?”, pergunta o diretor.
“Li sim”, responde ela.
“Gostou?”.
“Gostei... Meio pesado, mas muito bonito, Marcão!”.
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“Mas você entendeu por que te indiquei ele? Entendeu como é o tom da relação
de vocês nesse momento do filme?”.
“Aquela coisa da Mathilde cortar o cabelo pro Julien?”.
“Claro, isso também”.
“Isso tem a ver com esse momento do roteiro em que eu corto os pentelhos
para ele, não é?”.
“Sim, mas não é só isso”.
“Tem isso no filme, Marcão?”, pergunta David, divertindo-se: “Quero ver isso
passar na censura!”.
“Porra, David, isso é uma atualização de uma cena do Stendhal numa história
que é mistura de Pasolini com Renoir!... Mas você entendeu, Sandrinha? É aquele jogo
de sedução que é para você ter nessa parte do filme... primeiro seduziu, depois fugiu
dele, agora faz a surpresa... entendeu?”.
“Entendi sim, Marcão”.
“Então ok. Tudo pronto?”.
“Tudo pronto, Marcão”, responde o assistente.
“Então vamos rodar, que a gente tem que terminar essa filmagem ainda hoje.
Sandrinha, você tá pronta?.
“Quando você quiser”.
“Então vamos lá, vamos começar a rodar a cena da biblioteca”.
Sandrinha - aliás, Dianne - tira o robe. Nua, coloca-se em sua posição no
cenário. Diante da câmera, está deitada num sofá, oferecendo-se para o jovem ator que
interpreta seu criado e amante.
Finalzinho de tarde, mister Rodolfo recebe a visita do seu informante
estudantil. Sujeito de uns trinta e cinco anos, talvez mais, não tem novidades para
relatar no momento, mas parece convicto de que algo está sendo tramado:
“Eles estão pensando numa história de publicação de jornal na universidade. Aí
com certeza os subversivos vão ter que mostrar o rosto”.
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“E isso é para agora?”.
“Estão planejando, eu estou acompanhando as reuniões”.
“Você tem os nomes?”.
“Não, acho que eles estão tomando cuidados para não serem percebidos. Mas
acredito que nos próximos meses tudo vai ficar mais claro”.
“Espero que não haja suspeita sobre você”.
“Fique tranqüilo. Todo mundo por acredita na história de que é meu pai que
ainda paga a faculdade para eu não ser um desocupado”.
Depois do expediente, Rodolfo vai para uma boate e whiskeria mais uma
noite embriagando-se.
em casa, mais algumas doses de Jack Daniel’s ouvindo a banda de Tommy
Dorsey com Frank Sinatra, janelas fechadas. Rodolfo está absorto enquanto Anamélia
insiste em lhe falar algo.
“Ouviu, Rodolfo? Eles cresceram, a gente o tem como controlar. Você
está me escutando?”.
“Anamélia, onde está Dianne?”.
“Deve estar no teatro, Rodolfo”.
“Ela tem que sair desse teatro. Vou mandá-la no final do ano para ir morar com
seus avós em Abilene, não é melhor?”.
“Não sei, Rodolfo,o sei o que ela vai querer”.
“Não tem que querer, é melhor para ela. Se insiste em ser atriz, que seja de
verdade, não nesse paisinho... O que houve com o jantar, afinal?”.
“Está quase pronto, a aula do coral de hoje atrasou... Rodolfo, deixe eu abrir
essa janela, está muito abafado”.
“Não, Anamélia!”.
A janela esaberta antes que ele tenha tempo de reagir. Sinatra é abafado por
um samba em volume altíssimo e um forte odor de maconha queimada empesteia o
ambiente. O vizinho de baixo, um cabeludo que sempre encontra com Rodolfo no
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corredor, está novamente fazendo uso de drogas ilegais e incomodando os vizinhos
com o volume da música que ouve. Rodolfo solta um palavrão grotesco em inglês
antes de Anamélia fechar novamente a janela. No entanto, o som do samba que antes
era abafado (um disco de Jorge Ben, o de 1972) persiste, não permitindo que o Sinatra
de Everything Happens to Me se imponha inteiramente no ambiente. Rodolfo
aumenta o volume – mas continua ouvindo, baixinho, o som do Ben.
“Um dia eu vou denunciar esse hippie maconheiro!”.
“Para quê isso, Rodolfo? É só fechar as janelas”.
“Dá vontade mesmo de...”.
“Mas você é bom”.
“Algum cidadão sério deveria denunciar”.
“Nós somos cidadãos sérios. Deixe essa juventude em paz”.
“Você não entende, Anamélia”.
As filmagens duram o dia inteiro e parte da noite. Após rodar a cena final, uma
suruba entre o mendigo vingador e as outras personagens do filme, a equipe comemora
o final do trabalho. Mais tarde Dianne vai para casa, já em plena madrugada.
Dia seguinte, mesma coisa. Anamélia preparando o café, toca o telefone e
Joseph grita:
“Mãe, é o John, da Califórnia”.
“Meu Deus, agora ele liga todo dia!”.
Ela corre, enquanto Rodolfo já se senta para o café da manhã.
“Você sabe a data da sua viagem de volta, meu filho? Dia 23? Ah, que
maravilha!”.
Ele grita por Joseph e Dianne. Quando Anamélia sai do telefone o marido
pergunta:
“Anamélia, essa garota não dormiu em casa de novo?”.
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“Dormiu, Rodolfo. Ela ainda não se levantou,isso”.
“Acorde ela, por favor”.
“Deixe ela. Você não notou, mas eu acordei quando ela chegou. Era bem
tarde”, diz voltando à cozinha.
“O que essa garota tanto faz?”.
“Sua filha está fazendo teatro, não lembra? Ela me contou outro dia que achava
que seria convidada para um filme”.
“Um filme brasileiro? Anamélia, se nossa filha quer ser atriz, nós temos que
tirar ela daqui... Para que ela possa ter pelo menos a chance de uma carreira digna”.
Joseph sai do quarto ao vê-lo o pai arregala os olhos, lívido. Na camisa de
escola do garoto, um rosto pintado: o lebre retrato de Che Guevara. Rodolfo
balbucia um palavrão em inglês:
What the fuck is going on here?”.
“É um protesto, pai”.
“Ahn?”.
“É, pai. A gente quer mudar o uniforme do colégio. Na verdade a gente quer
poder ir pra escola sem uniforme, que nem o pessoal do segundo grau”.
“Anamélia! Seu filho está com uma fantasia de comunista!”.
“Que há, Rodolfo? Pare de implicar com o garoto, ele nem sabe o que é
comunismo!”, responde ela da cozinha.
“Claro que sei, mãe!”.
“José, tire a fantasia para não chatear seu pai!”.
“Não é fantasia, mãe! Eu desenhei no uniforme do colégio!”.
Ela chega à sala e assusta-se com o que vê. Rodolfo mantém-se estático,
carrancudo.
“No uniforme do colégio? Meu filho! Assim não vão te deixar assistir às
aulas”.
“Anamélia, esse retrato é de um comunista”.
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“José, meu filho, tire essa camisa, você está chateando seu pai”.
“Pode deixar, mãe. A escola sabe que os alunos vão fazer um protesto e
autorizou por um dia. E eu sei o que é comunismo sim, o professor de história
explicou pra gente. É o regime econômico em que não existe propriedade privada”.
“Anamélia, o que está havendo com esse colégio de padres? Que bagunça é
essa? Você não deveria ter matriculado as crianças numa escola religiosa um pouco
mais séria que esta?”.
“Deixe disso, Rodolfo, é apenas a educação moderna, todas as escolas são
assim agora. José, vá trocar a camisa”.
“Mas mãe!”.
“Imediatamente!”.
O garoto vai resmungando para o quarto.
“Pronto, Rodolfo, agora você pode ficar tranqüilo”.
“Meu filho usa uma camisa com um desenho de um guerrilheiro subversivo e
você me diz para ficar tranqüilo?”.
“Rodolfo, você não está atrasado? Você está sempre atrasado, não é?.
Um pouco constrangido, sai de casa.
“José!”, grita ela em seguida, “se você o tiver outra camisa limpa, pode ir
com essa mesmo!”.
Rodolfo passa o dia examinando documentos, preocupado com as
investigações da polícia carioca sobre os tais planos de seqüestro. Vê uma série de
fotos de gente morta (guerrilheiros ou talvez o), mapas, documentos e afins. Às
vezes amaldiçoa o presidente norte-americano. No final da tarde, seu informante da
véspera telefona-lhe – de um orelhão dentro da PUC-Rio.
“Oi mãe, sou eu!”, diz o informante.
“Agente Donan, por quê ligar somente a esta hora?”.
“Desculpa mãe! Eu tava numa reunião com o pessoal do diretório... a gente vai
botar pra quebrar, e! Não posso te contar mais agora, mas tem um pessoal novo
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aqui que vai arrebentar! Mas não se preocupa o, que eu estou dando apoio a
eles!”.
“Não há nada de concreto ainda? Você sabe o nome dos novos líderes?”.
“Isso a gente ainda tá decidindo, mãe. Depois eu te conto mais”.
Alguns colegas começam a chamar o agente para uma partida de futebol no
campinho.
“Mãe, eu tenho que ir! A gente vai ter uma reunião agora e eu quero estar
presente. Mas pode deixar que eu estou estudando sim, e no ano que vem eu me
formo!”.
“Quando você nos dará novas notícias, agente?”.
“No fim de semana eu passo aí, mãe! Um beijo!”.
Depois de desligar, o agente Donan vai para o futebol no campinho.
“Que história é essa de reunião do diretório, bicho?”.
“Melhor dizer isso que dizer que vou pra uma pelada. Até porque se eu disser
que levei bomba nessas matérias todas por causa de política eles respeitam, não pega
tão mal. Tem a ver com ciências sociais, não é?”.
“Nego é foda”.
Do outro lado da cidade, Rodolfo em silêncio – chega o assistente:
“E então?”.
“Fuckin’ Carter”.
Ao final do expediente, vão os dois à mesma boate e whiskeria – horas e horas
bebendo.
Na volta para casa, ainda na entrada da garagem, o carro de Rodolfo é
abordado pelos amigos do filho:
“Seu Rodolfo, o Zé tá em casa?”, “Chama o Zé pra gente, por favor?”.
“Joseph, ele se chama Joseph”, resmunga mais uma vez – a carranca de
sempre.
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E, quando enfim está chegando no apartamento, tem a vizinhança do cabeludo,
com o odor de maconha de sempre e outra música com volume às alturas – é um disco
dos Mutantes, No País do Baurets”.
Um mês depois, John chega no aeroporto estão seus pais e seu irmão
caçula para recebê-lo. Sujeito alto, chega vestido com o uniforme da marinha
americana. Procura os pais com os olhos e acena para eles antes de ir pegar as malas, o
que faz de forma calma e gentil, sorridente com os colegas de viagem. Sua mãe faz
muitos carinhos e é comum para todos que o pai o sorria. Trazendo na mala
chicletes para Joseph, eleencontra com Dianne quando chega em casa. Abraçam-se
com carinho ela comenta como ele está bonito e parece feliz, mas nota alguns
trejeitos delicados do irmão e não evita a observação:
“Você parece estar bem diferente”
John sorri.
Joseph chega em casa de noite com o joelho machucado da partida de
futebol jogada em quadra de cimento com os colegas. Rodolfo chega, o filho está
deitado preguiçosamente no sofá, na televisão desenhos animados. Notando o
machucado, manda o garoto lavar-se. Ao fundo, o vizinho hippie ouvindo um rock
talvez seja um disco de Hendrix. Corre para fechar a janela com força.
“Onde está sua mãe?”.
“Ainda está no coral, pai”.
“Na igreja até essa hora?”.
“Ela avisou que tinha que fazer um trabalho com o diretor do coro”.
“E seu irmão? Onde está?”.
“Acho que ele está embaixo, ele tinha descido pra conversar com o Pedrão,
lá da portaria”.
“Dianne não apareceu?”.
“Não, pai”.
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“Você lavou bem seu joelho? Como você se machucou?”.
“Jogando futebol com o pessoal”.
“Não acho bom que você jogue mais”.
“Por quê?!”.
“Você pode se machucar”
“Mas não tem problema!”.
“Não, eu não quero isso”.
“Eu vou continuar jogando!”
“Está proibido. Além disso, esse jogo é ridículo”.
O caçula, em tom choroso: “Ridículo é você!”, antes de sair correndo.
“Joseph!”.
E sai batendo com força a porta dos fundos. Rodolfo serve-se de um Jack
Daniels e ouve um disco de Benny Goodman enquanto relatórios e descrições dos
perfis de terroristas diversos – mas, durante o trabalho, ao fundo ainda escuta o som de
seu vizinho tocando um disco de samba. A música entra baixinho pela janela,
enervando-o, mesmo depois dele levantar-se da cadeira para fechar os vidros. Na
janela, vê a esposa entrando no prédio.
“Anamélia...”.
“Você chegou cedo hoje, Rodolfo... está com fome? Quer que sirva o jantar
logo?”.
“Onde estão as crianças, Anamélia?.
“As crianças não são mais crianças, Rodolfo. E eu acabei de entrar em casa,
você viu”.
Mais uma dose dupla de Jack Daniels.
“John não estava lá embaixo, Anamélia?”.
“Não vi”.
“Não viu Joseph?”.
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“Não”.
“E Dianne?”.
“Também não”.
“Ela vai dormir em casa hoje?”.
“Mas o que com você, Rodolfo?... Por quê essa preocupação toda agora?”.
“Anamélia, eu creio que nós iremos nos mudar em breve”.
“Como assim?”.
“Será preciso”.
“Para onde?”.
“Não sei. Não sei para que país a empresa irá nos enviar... Mas, Anamélia...”.
“Como assim não sabe? Você quer que nós nos mudemos e nem sabe para
onde vão nos mandar?”.
“Anamélia...”.
“Eu acho errado. As crianças não vão gostar de sair do Rio”.
“Anamélia, me escute, por favor. Eu não sei onde serei necessário para que a
empresa possa vender mais refrigerantes, mas não sou mais necessário no Brasil”.
“Rodolfo, por favor”.
“Me escute, Anamélia. Eu acho melhor que as crianças passem uma temporada
longe de nós”.
“Como assim?!”.
“Eu acho que é melhor para elas, é melhor para a educação delas, que passem
estes anos da juventude com a avó, em Abilene”.
“Você está louco?”.
“Anamélia, fique quieta”.
“Ficar quieta? Você quer mandar meus filhos para longe de mim, quer que eu
saia do meu país e ainda quer que eu fique quieta? O que mais que você quer? Você
bebeu demais, é?.
“Anamélia...”.
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“E não me venha com essa história de refrigerantes, seu mentiroso”.
Ele fica ligeiramente pálido.
“Do que você está falando?”.
“Você acha que eu acredito que você quer se mudar só porque essa maldita
empresa quer vender refrigerantes em outro lugar?”.
“Eu não minto, Anamélia”.
“Ora, Rodolfo, por favor... E não me fale em refrigerantes porque eu não
acredito nessa sua história. Eu moro com você, não se lembra disso?”.
“Como assim? Do que você está falando? Me diga!”.
“Eu não sei de nada, Rodolfo... mas eu sei que é mentira, não tente me enganar
mais do que você já engana”.
“Você não sabe de nada, Anamélia”.
“Você é que não sabe de nada, Rodolfo”.
Ao som de uma chave na porta, tentam encerrar a discussão:
”Eu posso não saber das coisas, mas vou criar uma tremenda confusão se você
insistir nessa idéia. Nem tente”.
“Anamélia, nunca faça isso. Você não tem idéia”.
“Você é que não tem idéia, Rodolfo”.
John entra em casa e a mãe chama-o para ajudar a esquentar a comida e
servir a mesa.
Mais à noite, Dianne vai com David assistir à primeira exibição de “Só por
amor”. A pré-estréia é numa pequena sala de exibição, dentro da empresa de
laboratório, onde mal cabem os principais membros da equipe.
Dia seguinte, o filme estréia em várias salas grandes do subúrbio e ganha boas
críticas nos jornais, para alegria do diretor e surpresa de David:
“Pornochanchada com boas críticas... Será que agora vai dar cano?.
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Além de boa bilheteria, o filme ganha logo na primeira semana uma bela capa
da revista Filme Cultura, com uma linda foto de perfil de Dianne aliás, Sandra
Müller – em pé, sorridente, abrindo para os olhos do galã boquiaberto o roupão que ela
veste.
Depois de mais um dia de trabalho, Rodolfo passa na banca de jornais da
Avenida Rio Branco, a caminho da boate e whiskeria. uma olhada nos diários
americanos. Espremido entre outros fregueses, distrai-se vendo capas de revistas e
semanários e os olhos terminam por esbarrar num rosto conhecido. Franze mais a
testa e pega o exemplar da revista com a foto de Dianne ou Sandra Müller, como
está escrito na capa. Compra o exemplar, meia-volta e segue até seu carro.
Em casa, chama por Anamélia. Ninguém no lar. Serve-se de uma dose de Jack
Daniels e senta-se na poltrona. Em silêncio por alguns minutos, saboreando a bebida,
ouve quieto o vizinho escutando um disco de Jards Maca(“Let’s play that”), até que
chega a esposa.
“Anamélia, você sabe me explicar o que está acontecendo aqui?.
“O que houve, Rodolfo? Não está acontecendo nada de errado!”.
“Onde você estava?”.
“Na igreja, Rodolfo”.
“No coral da igreja?.
“O que tem o coral da igreja, Rodolfo?”.
“Anamélia, você sabe onde está Dianne?.
“Dianne? Não, não sei... Mas o que a Dianne tem a ver com isso?”.
“Isso o quê, Anamélia?”.
“Nada, Rodolfo. O que tem Dianne de errado?.
“Olhe isso”, entregando-lhe a revista com a foto da filha.
“O que é isso, Rodolfo? Nossa filha virou capa de revista?” .
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“Nossa filha parece ter virado uma prostituta, se você não percebeu,
Anamélia”.
“Ora Rodolfo... Mas, é isso? Os tempos mudaram... Isso é arte, meu velho”.
“Você sabia, Anamélia? Ela pediu a sua autorização?”.
“Não, nunca soube. Soube apenas agora”.
“Então isso não pode ficar assim. Onde está essa garota? Nós vamos mandá-la
para Abilene agora mesmo!”.
“Ah, não vamos não!”.
“Vamos sim! Eu vou mandá-la para os USA. Minha filha não vai ser mais uma
brazilian whore!”.
“Eu não vou deixar!”.
“Anamélia!”.
É interrompido pelo barulho de uma chave na porta de casa. É Dianne quem
entra. O pai avança na direção dela enquanto começa a falar, segurando-lhe pelo braço
e em seguida puxando os cabelos.
“Dianne! Agora você vai aprender!”.
Diante dos gritos da filha, saca a revista e esfrega no rosto dela Anamélia
tenta contê-lo, também gritando.
What the fuck is this?!”.
“Pára, pai! Pára, me larga!”.
“Sua vagabunda! Prostituta!” .
Esbofeteia a filha em seguida atira a garota no chão. Ela arrasta-se até um
canto, onde chora, acolhida por Anamélia.
“Você vai morar nos Estados Unidos, Dianne... Vai morar com sua avó”.
“Não vou! Eu não vou morar no fim de mundo do Texas! A vida é minha! Eu
vou fazer o que eu quiser da minha vida, e vou morar aqui no Rio!”.
“Então você quer ser outra putinha brasileira?”.
“Vai à merda!”.
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Avança na filha – Anamélia põe-se no caminho.
“Chega, Rodolfo”.
“Saia da minha frente, Anamélia!”.
“Saia você, Rodolfo”.
“Saia!”.
“Saia você!... Eu quero me separar e morar aqui com as crianças”.
“Como assim, Anamélia? Você vai defender essa putaria?”, levantando o braço
para as duas.
“Não use este linguajar aqui, por favor. Nós não lhe pertencemos, você não
quer mais esta família e nós também não queremos mais você”.
“Anamélia, você é minha mulher!”.
“Eu não sou mais sua mulher, Rodolfo”.
“Como assim? Você enlouqueceu?”.
“Você sabe muito bem. Não sou mais fisicamente sua anos, e não quero
mais ser de maneira nenhuma. embora do país sozinho, eu não quero mais ficar
com você”.
“Eu não permito!”.
“Já é tarde, Rodolfo”.
“Você deve me obedecer, Anamélia. Nós somos casados, você tem um
compromisso comigo”.
“Esse compromisso já foi perdido, Rodolfo. o preciso de você para ter
amor. Se precisasse, nunca teria tido”.
“Anamélia...”.
“Você nunca se interessou pelo que eu faço, não é?”.
“Você tem outro?”.
Anamélia apenas olha, em silêncio.
“Foi naquele coral de igreja? Aquele sujeito que ligava para cá... aquele que
tem voz de mulher?... o tal diretor do coral?”.
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Ela nem pisca. Ele parte na direção da mulher:
Bitch!”, num murmúrio.
A o sobe para esbofetear, mas ela é mais rápida e acerta-lhe antes um tapa
no rosto. Um instante aturdido, e novamente ele levanta a mão - a filha grita, Anamélia
silencia e a mão pára no ar solta, sem saber se esconder. meia-volta - um vaso é
estilhaçado com força no chão, a caminho da porta de casa. Ele sai, ficam as duas a sós
– e Dianne chora convulsivamente, acolhida no colo da mãe.
Na portaria, Rodolfo encontra seu caçula.
“Joseph, não suba agora”.
“Que foi, pai?”.
‘Não houve nada, apenas queria que você viesse comigo. Vamos fazer alguma
coisa juntos agora... Quer ir ao cinema?”.
“Tá bom. Mas a gente não tem que ver o horário dos filmes?”.
“Não precisa, vamos logo para não ficar muito tarde”.
A turma do prédio se despede chamando o garoto de Zé, como de hábito. Já no
carro, a caminho do cinema:
“Joseph, você gosta disso?”.
“De quê, pai?”.
“Desse apelido, de te chamarem de ‘Zê’”.
“Ah, pai, apelido não é pra gostar”.
“Mas por que você não pede para pararem? Você não se incomoda?”.
“Não me incomodo não”.
O filme é O Império Contra-ataca. Saem da sessão lembrando dos momentos
mais interessantes, rindo de algumas piadas. Vão comer pizza num restaurante
próximo.
“É bom que estejam fazendo filmes assim, para todas as pessoas”.
“E é um filme inteligente, não é, pai?”.
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“É sim. Inteligente e simples. A grande inteligência está em ser simples,
Joseph”.
“Eu não entendo por que você implicou tanto com a minha camisa aquela vez”.
“Não vamos falar disso, filho”.
“Mas é verdade. A história do filme é igual à história do Che”.
“Deixe de falar bobagem, garoto!”.
“Mas o treinamento do Luke o é para aprender a usar a força, como um
guerrilheiro, pai?”.
“Bobagem”.
“E o império, não é o imperialismo?”.
“Rapaz, os heróis do filme lutam pela liberdade! Isso não tem nada a ver com
terroristas!”.
“Mas que terrorismo, pai? Os guerrilheiros da América Latina lutam pela
liberdade para seus povos! Que nem os heróis do filme!”.
“Deixe de falar besteira!”.
“É verdade, eles lutam contra a miséria e a injustiça! Lutam contra a
dominação das elites!”.
“Garoto, esse filme tem uma bilheteria de milhões de dólares! Pare de falar
essas imbecilidades socialistas! Você acha que essa porcaria de filme defende uma
‘revolução’? I don’t believe it... Você perdeu a razão, por acaso?”.
“Não sei, pai, eu tenho que estudar pra saber. Mas eu sou contra a miséria e a
injustiça. E você também é, não é? O povo precisa se unir para lutar por melhores
condições de vida, você não acha, pai?”.
Holy shit... a commie”.
Em casa, mais de meia-noite, Joseph vai para a cama. As portas dos quartos
estão fechadas – e Rodolfo não se arrisca a conferir. Uma dose dupla de Jack Daniels,
escutando Sonny Stitt numa versão bebop de Everything happens to me”.
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Depois de algumas doses, ele pela janela o carro da esposa chegando na
entrada da garagem. Do banco do carona salta o mais jovem dos porteiros, que abre e
fecha o portão para a passagem do carro – depois vai atrás dele.
Minutos se passam, e Rodolfo resolve descer à garagem. Chegando lá, ouve
ruídos, uma movimentação dentro do carro. Ainda distante, apenas o porteiro no
interior, sentado no banco do carona. Aproximando-se um pouco mais, mais
alguém com a cabeça abaixada é John que es com o porteiro dentro do carro.
Chegando em frente aos dois, Rodolfo permanece alguns segundos observando a cena
de amor, sem reação até que é visto pelo porteiro, que cutuca John para avisá-lo e
depois procura se cobrir. Sem encarar o pai, John sai do carro. A discussão prestes a
começar, o porteiro afasta-se.
Damn you... Isso é uma maldição... só pode ser”.
“Pai...”.
What the fuck is going wrong here?, grita Rodolfo.
“Pai, calma”.
“Calma? Você está ficando maluco? Que merda é essa?.
“Pai, deixa eu te explicar”.
“Você não vai explicar coisa nenhuma, seu moleque! Foi por isso que você foi
expulso do exército, foi? Foi por ter virado... uma bicha?!”.
Um instante de silêncio – e John murmura:
“Pai, me respeite!”.
“Respeito? Você que mantenha o respeito!... Eu vou te tirar daqui!”.
“Como assim?”.
“Eu vou tirar todos vocês desse país de merda! Eu vou te botar num lugar onde
você aprenda a ser homem de verdade, e não essa bichinha brasileira que você virou!”.
”Eu vou ser o que eu quiser!”, responde John, gritando com o pai.
“Não, você vai ser do jeito certo! Não vai ser um viadinho brasileiro de merda!
Isso não vai acontecer com um Hawk! Eu não vou deixar!”.
Fuck you! Fuck you!”.
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Parte para cima do filho. Dá-lhe uns tapas, John procura se defender.
“Pára, pai! Pára... por favor!”.
Depois de dois safanões e se livrar de outros tantos, John empurra o pai para
longe, contra a parede.
Fuck you!.
Rodolfo levanta-se – alguns instantes em silêncio, olhando o filho. Em seguida,
entra em seu carro e vai embora – deixando John sozinho.
Vai em direção ao centro entra noutra boate. Embebeda-se a não mais poder.
No final da madrugada, a casa já fechando, arruma briga com outro freguês e os
seguranças tentam expulsá-lo. Na hora de pagar a conta, o tem dinheiro suficiente,
atrapalha-se em escrever o cheque. Depois de, enfim, conseguir desenhar o valor e a
assinatura razoavelmente, a caminho da saída ele acerta um forte murro no nariz do
segurança que tentou expulsá-lo. Os colegas partem para cima – mesmo bêbado,
consegue se defender bem por instantes, chega a desacordar um deles e quebrar o
braço de um terceiro. Depois de uma marretada na cabeça ele desfalece, recebendo o
troco dos golpes. Chutes, alguns no rosto, outros no estômago, mais outros no saco.
Cuspindo bastante sangue, dentes quebrados, ele tem o corpanzil carregado e atirado
na calçada pelos espancadores.
Fica desmaiado na rua por instantes, o sol começa a nascer pouco a pouco
mudam os habitantes das ruas. Um grupo de travestis passa por ele que, grunhindo
palavrões em inglês, tenta ficar de pé:
“Gente, olha só que coisa! Um gato desses abandonado no meio da rua!”.
“Vamos embora, Sueli!”.
O travesti aproxima-se e tenta ajudar Rodolfo a se levantar ao sentir duas
mãos o pegando, este retruca com um pontapé. O travesti, chocado com a reação,
chama-o de boçal e acerta outro chute, de troco – Rodolfo volta a cair de cara no chão.
Começa a grunhir, choroso. O travesti senta-se do lado dele. É moreno, forte, com
uma peruca loura.
“Quê que você tem pra estar de mal com o mundo, hein?”.
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Fuck you”.
“Você é gringo, é? Eu logo vi... Um homem alto e bonito assim, não podia ser
brasileiro. E quê que você fez de errado pra vir parar nesse fim de mundo, hein?”.
“Eu quero ir embora daqui”.
“Quer ir embora do Brasil? Ah, me leva com você!”, diz o travesti, rindo: “Por
quê é que quer ir embora agora? Está com saudade da mamãe?”.
Ri secamente.
“Gente, olha, ele ri! Sorri pra mim, vai, sorri pra mim”.
Sorriso forçado.
“Isso! Tá vendo como é fácil? Sorri pra sua Marilyn, vai”.
“Ahn? Você se chama Marilyn?”.
“Isso! Eu sou a sua Marilyn, meu amor!”.
Rodolfo dá uma risada, cheio de deboche.
“Rapaz... Você pode ser bonitão, pode ser gringo, maso tá parecendo que tá
com essa bola toda não, viu? Vai gozar com a cara da sua mamãe, vai!”.
“Me deixa em paz, seu viado! Esse país é uma merda mesmo”.
“Ih, virou fera! Tá com saudade da mamãe mesmo, é? Eu tou querendo te
ajudar, meu amor. Alguém fez isso por você hoje?.
“Desculpe”.
“Imagina, desculpe ter falado da sua mãe... Você não vê ela há muito tempo?.
“Minha e? Não vejo ela desde o fim da Guerra da Coréia... quase vinte
anos”.
“Brigaram, é?.
“Não, nunca! É que meu trabalho... Mas eu nunca briguei com ela, nunca”.
“Ih, mais um filhinho da mamãe que aparece na minha vida”.
“Você alguma vez já ouviu falar na Grande Depressão? No big crash da
Bolsa?.
“Meu amor, eu sei de tudo!”.
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Uma risada e continua:
“Eu nasci nessa época... Ela cuidou de mim e dos meus irmãos sozinha... eu fui
convocado para a Guerra Mundial...e ela ficou com meus dois irmãos... era uma
época terrível”.
“Meu deus, vim ajudar o homem e ele começa a chorar lembrando da mãe.
eu mesmo pra querer ajudar bêbado no chão... Vai, pára de chorar, anda! Pára de
chorar, menino!”.
“...Você pode me ajudar a me levantar daqui?.
“É o que eu estou tentando fazer desde que eu cheguei... Levanta, vai!.. vou te
botar num táxi”.
“Eu não tenho dinheiro... mas estou de carro”.
Tenta levantar-se com a ajuda do travesti – não consegue.
“Meu amor, você não tem condições de dirigir não”.
“Tenho sim... venha cá, me ajude... vamos!”.
Tenta novamente ficar de pé. Abraçado a Marilyn, dá alguns passos – e tomba,
carregando o travesti consigo para o chão.
“Menino, assim você me machuca!”.
Os dois na calçada, Rodolfo fica ligeiramente apoiado no colo de Marilyn.
“Mas olha como você tá machucado... te maltrataram mesmo, hein?... Você riu
do meu nome, mas não disse como se chama”.
“Me chamo Rodolfo”.
“Meu deus, um gringo chamado Rodolfo! Como foi que isso te aconteceu,
hein?”.
“Minha mãe... ela era apaixonada pelo Rodolfo Valentino”.
“Ih, lá vem você com essa mãe de novo”.
Marilyn fala passando a mão no corpo ferido de Rodolfo. Começa a tocar na
feridas da face e aproxima seu rosto.
“Gente, que maldade”.
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“Já me feri mais quando servia ao exército”.
“E a vida no exército? Era boa?”.
“Não era fácil, mas servi ao meu país em duas guerras militares... fora as
outras”.
“É? E com seu colegas, você tinha boa convivência?”.
Passa os dedos nos lábios de Rodolfo.
“Tinha”.
O travesti beija Rodolfo.
“Você é um gato, sabia?“.
Beijam-se novamente.
“Vem, vamos tentar levantar de novo... Vem cá, você não relaxa nunca, é?.
Dia seguinte, acorda num quarto quase miserável abraçado a Marilyn, que
agora está sem a peruca loura. Toma um susto ao se localizar e imediatamente
levanta-se da cama. Passa a mão pelo corpo e sente os sinais da transa com o travesti.
Olha para o mulato de cabelos curtos por alguns segundos em seguida veste-se com
rapidez. Quando abre a porta do quarto, deixando a luz entrar, Marilyn abre os olhos:
“Onde você vai?
“Me desculpe
E sai.
Depois de estacionar o carro, na portaria do prédio, os porteiros
conversando - num canto, Pedrão e desvia o olhar. Leva um esbarrão e sente o forte
odor de maconha: é o vizinho cabeludo, de chinelos. Depois do encontrão, o jovem vai
saindo do prédio Rodolfo observa-o por alguns instantes. Em seguida, dirige-se ao
apartamento do rapaz.
Lá, acha um bocado de maconha no congelador. Começa a remexer em várias
gavetas. Depois de revirar algumas, se encaminhando para a saída, ainda tem um
pequeno armarinho trancado ele arromba. Em suas gavetas, encontra fotos,
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desenhos, gráficos e documentos – em castelhano, russo, francês e possivelmente
outras línguas, além de jornais cubanos, argentinos, chilenos e soviéticos
subversão. Encontra uma agenda com planos, datas e contatos, encontra telegramas e
uma lista de atividades rotineiras dos diversos diplomatas em atividade no Brasil.
por instantes um telegrama da embaixada cubana - e em seguida enfia alguns
documentos no bolso. Sai do apartamento e esconde-se no corredor, em silêncio por
alguns minutos. Depois, desce à portaria.
Depois de esperar uma hora na portaria, Rodolfo esconde-se por um instante
quando vê o cabeludo chegar. Dá um bote e imobiliza o rapaz:
“Não se mova! Você está preso por atividade subversiva!”.
“O que é isso?”.
“João Lucas, Ricardo Caeiro, Emílio Gomes, não importa seu verdadeiro
nome, você está preso”.
“Me solta, gringo filho da puta!”.
uma cabeçada no hippie – que, tonto, é arrastado a o carro. Ainda
protesta:
“Você tá maluco!”.
Mas um soco e mais outro encerram a discussão.
O cabeludo acorda sendo arrastado para fora do carro, na porta da delegacia. O
berro ecoa com o sotaque de sempre:
“Eu preciso falar com o delegado!”.
“Me larga, seu gringo viado! Vocêmaluco, filho da puta!”.
Dá um murro no cabeludo. Chega o delegado.
“Prezado senhor, este homem deve ser preso. Ele se chama Paulo Martins e é o
cérebro de uma organização terrorista”.
“É o quê? Subversão?.
“Sim, senhor, este rapaz é um terrorista político, um comunista subversivo”.
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“Tá bem. Ô Rogério, anota aí a queixa e libera o rapaz, tá certo?”.
“Libera o rapaz? Meu amigo, este rapaz é um terrorista perigoso, ele precisa
ficar preso!”.
“Meu amigo, o senhor o jornal não?... Olha, agradeço muito a sua boa
vontade em ajudar o país, mas hoje mesmo o presidente Figueiredo assinou a anistia
política, sabendo? Desde hoje, vinte e oito de agosto, eu não posso botar um
subversivo na cadeia nem que eu queira, você me entendendo? Então me deixe em
paz, por favor! Muito obrigado, e tenha um bom dia!”.
“Anistia?.
“Ampla, geral e irrestrita, meu amigo! Ampla, geral e irrestrita!”.
Rodolfo parte com ferocidade para cima do cabeludo. Acerta-lhe um soco e um
chute é contido pelos policiais do distrito. O delegado ameaça autuá-lo e manda que
seus subordinados atirem-no para fora da delegacia - também manda embora o
cabeludo.
Deitado novamente na calçada, Rodolfo não contém mais o choro.
Três meses depois, Rodolfo carrega as malas para a porta do apartamento.
Gentil, um beijo no rosto de Anamélia.
“Sempre que precisar de algo, me avise”.
“Não se preocupe, Rodolfo”.
Depois abraça John, beija o rosto de Dianne e um abraço em Joseph. O
caçula beija o pai no rosto e abraça-o:
“Eu vou te visitar, pai!”.
Rodolfo toma o táxi e segue em direção ao Centro. Pára na Lapa e encontra
Marilyn que o aguarda com as malas já na rua. Um beijinho para se cumprimentar
e seguem para o aeroporto comentando amenidades sobre as despedidas.
No Galeão, Marilyn pergunta se fez errado em ter ido a caráter, com peruca
loura e tudo.
“Não se preocupe com isso”.
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Rodolfo leva o travesti por um caminho diferente, apresenta alguns
documentos, conversa com pessoas – e logo o casal é levado ao avião, antes que todos
os outros passageiros possam entrar a bordo.
Esperando os demais passageiros, os dois já com a poltrona reclinada, Marilyn
não resiste:
“Menino, você é importante mesmo, hein? Puxa vida, a gente entrou antes de
todo mundo. Estamos com tudo! Mas, meu amor, por que você está me olhando com
essa cara? Você tem que ser sério assim sempre?”.
“Marilyn, nós nos conhecemos pouco tempo... Mas eu aprendi que errei
muito, e não quero começar uma nova relação baseada em mentiras”.
“Que coisa horrorosa, meu filho! Diz pra mim o que você quer dizer, vai”.
“Marilyn, ninguém pode saber disso... você é a primeira pessoa a quem vou
contar, em toda a minha vida”.
“O que foi, meu amor?.
“Eu sou um agente secreto. Eu trabalho para a CIA”.
O travesti olha para ele, incrédulo.
“Sério?!”.
Rodolfo confirma.
“Ah, meu amor... não se preocupe com essas bobagens”, diz Marilyn, beijando-
lhe o rosto, antes de completar:
“Ninguém é perfeito”.
Em seguida a um beijo carinhoso perto da orelha, o travesti se recosta na
cadeira prepara-se para dormir. Rodolfo observa, depois se recosta também fecha
os olhos e, enfim, sorri.
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CIÊNCIA DO NARRADOR
Algumas questões tornaram-se claras após ter feito Guerra Fria Tropical –
a partir do seu resultado, a partir dos diálogos com a orientadora e com amigos e a
partir dos diálogos e pontes que encontrei em leituras de outros textos. Sobre essa
última influência, a de outros textos, quero traçar aqui semelhanças e diferenças
com uma escrita que seguiu regras semelhantes às que pretendi seguir, com
objetivos diferentes, mas nem tanto, como vou notar mais à frente. Refiro-me,
sobretudo, à escrita e às propostas de Alain Robbe-Grillet. Mas não só ao francês:
na verdade, a economia descritiva também ganhou a defesa de Italo Calvino,
que em seu ensaio “Rapidez”, publicado nas suas Seis Propostas para o Próximo
Milênio, dizia que: A principal característica do conto popular é a economia de
expressão: as peripécias mais extraordinárias são relatadas levando em conta
apenas o essencial”.
1
Além de relatar somente o que se pode ver e ouvir, a narração de Guerra
Fria Tropical tem uma outra característica que foge à regra geral da ficção
tradicional: os acontecimentos são narrados em tempo presente, ao invés da opção
mais usual pelos tempos verbais do passado. Mas não convém ignorar a tradição:
se essa é de fato uma escolha que foge à grande regra tradicional, seu uso já é
bastante comum na literatura contemporânea. E neste conto o uso do tempo
presente me pareceu ser uma boa escolha para contar uma história protagonizada
por um estrangeiro que, ao final, refez uma série de escolhas pessoais – a opção se
1
CALVINO, Italo, Seis propostas para o próximo milênio, Rio de Janeiro: Ed Companhia das
Letras, 1990, p. 50.
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tornou interessante justamente pelo efeito curioso que provoca ao apresentar os
conflitos pessoais dos personagens, sugerindo ao mesmo tempo falta de mediação,
pelo uso do tempo presente, e a frieza descritiva natural às regras de narração.
Essa percepção de ação imediata, trazida pelo uso do presente verbal, de certa
forma aproxima o leitor dos acontecimentos descritos, e isto me parecia atraente
nessa história envolvendo um agente da CIA que mal sabe falar português.
Portanto, uma vez que estava definida a regra de ponto-de-vista do
narrador, uma questão que me interessou de imediato foi em torno do uso dos
tempos verbais narrativos. Resolvi que cada um dos contos apresentados aqui teria
a narração num tempo verbal diferente, definido em sintonia com o enredo. Em
Guerra Fria Tropical usei o presente, com sua sensação de continuidade (vale
lembrar que a língua inglesa, por exemplo, usa a expressão present continuous,
presente contínuo, para designar o tempo verbal); nos outros contos, isso seria
alterado. Com a leitura de Robbe-Grillet, vi que esta questão do uso dos tempos
verbais foi bastante discutida como se pode ver na sua coletânea de ensaios
Por um Novo Romance, já foi muito questionada nos anos 1950 a predominância
da narrativa no tempo passado.
Ao me deparar com os textos do romancista e teórico francês, logo vi que,
além de ter usado em alguns romances dos anos 1950 (como A Espreita e O
Ciúme) regras idênticas com relação ao ponto-de-vista do narrador - que nestes
romances observa os personagens sem dizer o que pensam, tal qual o fiz em
Guerra Fria Tropical ele também fez uso do tempo presente, trazendo ao seu
texto o clima de distanciamento e de obscuridade que o interessava – aquilo que o
crítico Jean-Pierre Vidal chama de esfriamento narrativo” no seu estudo sobre O
Ciúme.
2
O projeto de Robbe-Grillet apresentou-se com muita força na sua época, e
ainda é fundamental nas discussões sobre experiências narrativas. Michel
Foucault escreveu uma vez que: A importância de Robbe-Grillet é avaliada pela
questão que sua obra coloca para qualquer obra que lhe seja contemporânea”,
3
e
2
VIDAL, Jean-Pierre, La Jalousie, de Robbe-Grillet, Paris: Classiques Hachette, 1973, p. 60.
3
FOUCAULT, Michel, “Distância, aspecto, origem”, in: Ditos e Escritos, vol. IV, Rio de Janeiro:
Ed. Forense Universitária. 2001, p. 60.
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talvez esse próprio ensaio aqui seja uma evidência de que essa importância não
desapareceu.
Entre várias outras diferenças, a mais perceptível que noto entre o projeto
estético de Robbe-Grillet e estes ensaios de ficção que apresento é justamente em
torno da relação entre clareza e obscuridade. Cabe lembrar novamente Umberto
Eco, que apontou, ao relembrar a idéia da máquina de gerar interpretaçõesem
Seis passeios pelos bosques da ficção:
Qualquer tentativa de ficção é necessária e fatalmente
rápida porque, ao construir um mundo que inclui uma
multiplicidade de personagens, não pode dizer tudo sobre
esse mundo. Alude a ele e pede ao leitor que preencha
uma série de lacunas. Afinal (como escrevi), todo texto
é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma
parte do seu trabalho.
4
uma diferença decisiva entre o que pretende a proposta dessa pesquisa
com relação às lacunas abertas e o que pretendia Robbe-Grillet. Em “Por um novo
romance”, o romancista francês, apesar de dizer desde o início que não é um
teórico do romance”, questiona a valorização de alguns conceitos (“noções”, na
tradução) que lhe parecem obsoletos, a saber: o personagem; a história (o enredo,
para ser mais exato); o compromisso (com propostas políticas ou visões de
mundo, por assim dizer); e a separação entre forma e conteúdo.
Sob este aspecto, é preciso apontar a diferença principal que vejo em torno
da clareza das ações: os obscuros e instigantes romances de Robbe-Grillet
mostram um forte jogo entre a opacidade e a transparência dos movimentos dos
personagens, um jogo com objetivos fascinantes mas em nenhum momento me
interessou repetir que a escolha de um olhar limitado do narrador sobre os
personagens (uma vez que ele não sabe o que pensam) se estendesse à ação. Na
verdade, a estruturação da máquina preguiçosa que fiz teve em vista privilegiar o
movimento dos corpos em detrimento da ambientação, ao contrário do que
fizeram as ficções de Robbe-Grillet.
4
ECO, Umberto, Seis passeios pelos bosques da ficção, p. 9.
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44
Além disso, o escritor francês apostava na compreensão do discurso do
narrador como um discurso inteiramente subjetivo, apesar de “frio” (para usar o
termo de Jean-Pierre Vidal). Em O Ciúme, o narrador se confunde parcialmente
com um personagem, por exemplo. Mesmo a relação evidente com a narrativa
cinematográfica era colocada a partir de outra perspectiva. Sobre isso, Robbe-
Grillet escreve que:
A atração indubitável que a criação cinematográfica exerce
sobre muitos dos novos romancistas deve ser procurada
noutro lugar. Não é a objetividade da câmera que os
apaixona, mas sim suas possibilidades no domínio do
subjetivo, do imaginário.
5
Essas diferenças entre as propostas de tessitura narrativa de Robbe-Grillet
e as que escolhi seguir talvez possa ser atribuída a contextos históricos embora
isso por vezes conduza a interpretações de certa maneira anteriores aos fatos,
que as escolhas poderiam ser outras dentro dos mesmos contextos históricos. De
todo modo, é preciso ter em mente que a produção do escritor francês se concentra
nos anos 50 e 60, época em que, como se sabe, a crise se instaura no projeto
modernista e o chamado Novo Romance, como o próprio nome consagrado
evidencia, é uma tentativa radical de produzir arte moderna.
Mas falei das diferenças entre o caminho que escolhi e as exigências do
projeto estético de Robbe-Grillet justamente para poder buscar agora as
semelhanças evidentes. Desse modo, posso apontar alguns aspectos que mostrem
de que forma o narrador se apresentou dentro da estrutura criada pelo francês, e
que mostrem também de que forma esta proposta narrativa se aproxima do meu
exercício de criação literária.
Robbe-Grillet investiu decisivamente contra o valor do personagem e do
enredo porque sua compreensão do gesto criativo exigia que a literatura não fosse
apenas nova, mas criadora de um novo leitor e, por conseqüência, um novo
homem, que o espera mais da literatura a oferta de clichês romanescos
confortáveis a partir da psicologização de personagens. Em Para que servem as
5
ROBBE-GRILLET, Alain, “Tempo e descrição no romance atual”, In: Por um novo romance, pp.
99-100.
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teorias, ele escreve que: O termo Novo Romance (...) se trata apenas de um
rótulo cômodo que engloba (...) todos aqueles que se decidiram a inventar o
romance, isto é, a inventar o homem”.
6
No texto Sobre algumas noções obsoletas, ele faz uma exposição histórica
da crise do enredo e das características (os “elementos técnicos”) de uma literatura
tradicional a ser ultrapassada:
Todos os elementos técnicos da narrativa emprego
sistemático do passado perfeito e da terceira pessoa do
singular, adoção incondicional do desenrolar cronológico,
intrigas lineares, curva regular das paixões, tensão de cada
episódio na direção de um fim, etc. – tudo objetivava
impor a imagem de um universo estável, coerente,
contínuo, unívoco, inteiramente decifrável. (...)
Mas eis que, a partir de Flaubert tudo começa a vacilar (...)
As exigências da anedota são, sem dúvida alguma, menos
constrangedoras para Proust do que para Flaubert, para
Faulkner do que para Proust, para Beckett do que para
Faulkner... Doravante, trata-se de uma outra coisa. Contar
tornou-se literalmente impossível.
7
O vigor das propostas de Robbe-Grillet é considerável, é um admirável
movimento-limite modernista, mas de certo modo o outras as forças que
provocaram minha curta pesquisa literária. O movimento-limite de Robbe-Grillet
foi feito, e é necessário apontar que o movimento que eu quis fazer aqui é muito
mais táctil do que desbravador um exercício literário, antes de se pretender um
enfrentamento histórico. Talvez isso traga à tona a velha questão da criatividade e
da vontade de criar um novo leitor. Parece-me evidente que qualquer escrita que
se proponha literária ainda precisa recriar a própria noção do que seja literatura,
como afirmou Michel Foucault uma vez, ao notar que pode-se dizer que toda
obra diz o que ela diz, o que ela conta, sua história, sua fábula, mas, além disso,
diz o que é a literatura”.
8
6
ROBBE-GRILLET, Alain, “Para que servem as teorias”, In: Por um novo romance, p. 8.
7
Idem, “Sobre algumas noções obsoletas”, p. 25.
8
FOUCAULT, Michel, “Linguagem e literatura”, In: MACHADO, Roberto. Foulcaut, a filosofia
e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 146.
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Mas muito já se escreveu também sobre a crise do conceito de
originalidade. Sobre isso, vale a pena lembrar o que diz Poe:
A verdade é que a originalidade (a não ser em espíritos
de força muito comum) de modo algum é uma questão,
como muitos supõem, de impulso ou de intuição. Para
ser encontrada, ela, em geral, tem de ser procurada
trabalhosamente, e embora seja um mérito positivo da
mais alta classe, seu alcance requer menos invenção que
negação.
9
Era necessário ao momento de Robbe-Grillet que se produzisse uma
literatura para negar inteiramente estas características, como um gesto radical em
nome da invenção do novo leitor mas este movimento está feito e convém
notar que o contexto cultural de Robbe-Grillet é específico de um europeu de
meado do século XX. Este projeto ultra-modernista da formação de um “novo
leitor” (logo, “novo homem”) como intenção última da criação artística, tese
defendida Robbe-Grillet, ainda mantém inteiramente seu vigor (e, vale lembrar,
Umberto Eco defende idéia idêntica no Pós-escrito a O Nome da Rosa, que data
de meados dos anos 80). No entanto, é evidente que aceitar como regra absoluta a
negação de todas essas regras prévias apontadas pelo escritor francês seria um
equívoco tão grande quanto ignorar que elas podem engessar a criação. Parece-me
razoável considerar que rupturas com as regras da tradição são necessárias em
certos momentos e podem ser deflagradoras a qualquer momento, mas nenhuma
ruptura acontecida pode se tornar uma obrigação, uma nova regra (o que seria um
contra-senso). Na verdade, diante da lógica apresentada por Robbe-Grillet, é o
caso de argumentar que, depois da crise gerada pelas suas idéias, o que interessa
agora é justamente que o gesto de contar volte a se tornar possível e essa tarefa
enorme não cabe somente a pequenas dissertações, mas a toda nova literatura que
se fizer nos dias de hoje.
Com relação à postura do narrador, no entanto, o que o francês escreveu
vale para esse texto a restrição a descrições psicológicas aqui ambiciona
provocar efeito de estranhamento e, preguiçosamente à moda de Eco, procurar
9
POE, Edgar Allan, “A Filosofia da composição”, p. 46.
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47
uma outra relação com a imaginação do leitor. Dessa forma, a narrativa sugere a
inviabilidade de uma compreensão totalizante do mundo. Quanto a isso, vale
lembrar a ironia de Robbe-Grillet sobre a natureza metafísica do narrador clássico,
ao responder à acusação de que seus textos pretendiam alcançar a “objetividade
total”, no ensaio Novo Romance, homem novo:
É fácil demonstrar que meus romances (...) são mais
subjetivos mesmo que os de Balzac, por exemplo. Quem
descreve o mundo nos romances de Balzac? Quem é esse
narrador onisciente, onipresente, (...) que segue ao mesmo
tempo os movimentos dos rostos e os das consciências
(...)? Só pode ser um Deus.
10
A saída para fugir da sedução confortável das palavras de caráter
visceral, analógico ou encantatório”, segundo o francês, está no uso do adjetivo
ótico, descritivo, aquele que se contenta com medir, situar, limitar, definir.
11
Neste aspecto, demarcadas todas as diferenças, pareceu-me evidente o parentesco
entre essas ficções que apresento aqui e as propostas do escritor do outrora Novo
Romance.
Mas não me parece necessário que uma proposta de radicalização do
ponto-de-vista do narrador obrigue o texto de ficção a manter sob o manto da
invisibilidade o seu enredo e seus personagens. Na verdade, ao contrário, creio
que é justamente o que é visível e parece superficial à primeira vista que, no
sentimento de nossos dias, tem apresentado maior vigor – e sobre isso vale a pena
lembrar que a visibilidade foi uma das propostas de Italo Calvino nas suas “lições
americanas”. Ali ele comenta, em certo ponto, sobre a capacidade que cada um
tem de recriar mentalmente cenas cinematográficas descritas por um texto e
percebe que: Esse ‘cinema mental’ funciona continuamente em nós e sempre
funcionou, mesmo antes da invenção do cinema e não cessa nunca de projetar
imagens em nossa tela interior”.
12
Mais à frente, ainda em sua defesa da visibilidade, ao apontar que
atualmente a literatura já não se refere a uma autoridade ou tradição que seria sua
10
ROBBE-GRILLET, Alain, “Novo romance, homem novo”, In: Por um novo romance, pp. 92-93
11
Idem, “Um caminho para o romance do futuro”, p. 19
12
CALVINO, Italo, Seis Propostas para o próximo Milênio, p. 99.
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origem ou fim, mas antes disso visa à originalidade, à invenção, Calvino afirma
que:
Parece-me que nessa situação o problema da prioridade da
imagem visual ou da expressão verbal (que é um pouco
assim como o problema do ovo e da galinha) se inclina
decididamente para a imagem visual.
13
Umberto Eco, apesar de ter inúmeros pontos de vista próximos aos de
Robbe-Grillet, defende coisa parecida no Pós-Escrito ao Nome da Rosa. Ali,
depois de uma meditação sobre as características do pós-modernismo, ele
rememora uma idéia apresentada por Renato Barilli numa reunião dos teóricos
italianos que se autodenominaram Grupo 63:
Na verdade, ninguém se lembra mais de tudo que
aconteceu em 1965, quando o grupo [grupo 63] se reuniu
novamente em Palermo, para discutir o romance
experimental (e pensar que as atas ainda estão no catálogo
da editora Feltrinelli sob o título Il Romanzo Sperimentale,
com a data de 1965 na capa e 1966 como data de
impressão).
Ora, no decorrer daquele debate, surgiram muitas coisas
interessantes. Principalmente a comunicação de abertura
de Renato Barilli, que já era o teórico de todos os
experimentalismos do Nouveau Roman.(...)E o que dizia
Barilli? Dizia que, até então, tinha-se privilegiado o fim do
enredo e o bloqueio da ação na epifania e no êxtase
materialista. Mas que estava começando uma nova fase da
narrativa, com a revalorização da ão, embora se tratasse
de uma ação autre.
14
É evidente, portanto, que outros caminhos podem ser escolhidos a partir de
questões muito próximas das apresentadas por Robbe-Grillet, e igualmente
evidente que o privilégio da ação, que é o caminho aqui escolhido, não é uma
opção estranha aos nossos dias.
13
Idem, p. 102.
14
ECO, Umberto, Pós-escrito ao Nome da Rosa, pp. 51-52.
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Optei por fazer duas experiências na narrativa seguinte, ambas bastante simples. A
primeira é que as ações são contadas no tempo verbal da terceira pessoa do
passado (e não mais do presente), o tempo tradicionalmente percebido como
“literário”, como já apontava o francês – fiz essa escolha justamente para trabalhar
o uso da regra dentro do modo tradicional de narração do conto. A segunda é que
há dois tempos narrativos, ao invés de um único desenvolvimento cronológico –
sendo que um desses tempos parte da fala de um personagem. Assim, o narrador,
se não pode contar o que os personagens pensam, tem a liberdade de alternar dois
diferentes fluxos cronológicos. Seguiu-se, portanto, o conto O velho e o novo,
dentro das mesmas regras de narração, mas alternando tempos e relatando as
ações no passado.
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O VELHO E O NOVO
Um carro sofreu um grave acidente nas imediações do Aeroporto de Orly
na segunda semana de dezembro de 1989. Após o acidente foram encontrados os
corpos do motorista do táxi, que se espatifara num poste de luz, e de seu
passageiro, um jovem jornalista brasileiro. O motorista, Benoît Gérard, de
quarenta e oito anos de idade, deixou uma viúva e dois filhos homens, de quinze e
doze anos, e o passageiro, Jorge Lobo, um jovem de vinte e sete anos, tinha como
parentes vivos apenas duas irmãs e um cunhado que imediatamente trouxeram
seu corpo de volta ao Brasil e o enterraram no cemitério São João Batista, em
Botafogo. Todos os pertences do jovem também foram enviados ao Brasil, com
exceção de uns poucos objetos que a polícia francesa recolheu para investigações.
Um funcionário da embaixada, o secretário Fernando Bosco, foi chamado
para examinar uns poucos documentos e auxiliar a polícia a arquivar aquele caso
sem grande importância. Bosco foi apresentado ao inspetor Pierre Delon,
responsável pelo caso, que lhe falou de alguns rolos de fita cassete que
precisavam ser examinados pela polícia o que levou Bosco a comentar sobre a
perda de tempo que a investigação representaria. Delon explicou-lhe que uma fita,
sem nada escrito, parecia ser uma espécie de memorial, pois apenas uma voz era
ouvida, enquanto duas outras fitas, onde havia escrito entrevistas, continham
conversas.
Logo começaram a ouvir a primeira destas entrevistas, indicada por um
algarismo romano. Depois de um início de ruídos pouco claros, percebia-se uma
voz jovem - Presidente, eu estou gravando” interrompida por uma voz velha e
frágil – “Não! Eu não lhe autorizei a gravar nada, desligue isso!”.
“Senhor presidente...”.
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“Desligue ou eu não falo nada!... Juliette!”.
“Está bem, senhor”.
“Juliette, s’il vous plaît, aidez-moi!”. Ouviu-se uma breve interrupção, e a
gravação logo é retomada pela voz jovem: “Vamos , vamos tentar de novo...
Córsega, 02 de dezembro de 1989, entrevista com o presidente JK... podemos ir,
senhor?”.
Delon percebeu que Bosco intrigou-se profundamente ao ouvir um nome
na audição. Perguntou-lhe de que se tratava, mas o brasileiro fez sinal para que se
calasse.
“Pois bem, vamos lá... Senhor, quanto tempo o senhor está refugiado
aqui?.
“Ahn? De quoi parlez-vous, monsieur?”.
“Senhor presidente...”.
“Pois bem, se é isso que quer saber, vim morar nesta ilha em 1976, jovem.
E nada mais temos a conversar, está bem?”.
Novamente ouvia-se o som da fita sendo interrompida, mas desta vez, no
entanto, a interrupção se devia não à gravação, mas ao inspetor francês, que
irritado parou o gravador à espera das respostas de Bosco. O secretário
permaneceu em silêncio por alguns instantes, depois pediu a Delon que lhe
permitisse levar o material para ser examinado com mais cuidado.
“Nada disso”, foi a resposta, “Este material pertence à polícia francesa e
precisa ser examinado por um policial francês”.
“No entanto, monsieur, o senhor, um policial francês, só poderá examinar
este material com minha ajuda, e eu não conseguirei traduzi-lo senão após uma
audição adequada, com um papel onde possa escrever o que é falado”.
“Caro amigo, peço-lhe a sua ajuda. Eu notei que um nome foi citado. Do
quem se tratava?”.
“Caro senhor inspetor, trata-se de...”.
“E então?”.
“De uma informação sem sentido”.
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“Perdão, meu caro?”.
Bosco sugeriu que pegassem café e dedicassem atenção, de início, às
anotações no caderno, que talvez lhes permitissem compreender melhor o
contexto e os personagens das gravações e do acidente automobilístico. Delon
aceitou a proposta e, enquanto pegavam copos de café, voltou a perguntar sobre o
nome citado na fita.
“Caro senhor, estou aqui para colaborar com o senhor... No entanto, minha
posição não permite a criação de suposições absurdas. Prefiro examinar com
atenção antes o material que temos”.
“Mas, meu caro amigo, esta é uma investigação. Eu preciso conhecer todas
as hipóteses, por mais absurdas que sejam. Não conhece você a frase de Sherlock
Holmes sobre certas hipóteses verdadeiras, por mais absurdas que pareçam?.
“Entendo, mas acredito que antes devemos saber melhor do que se trata”.
“Em nome da polícia francesa, peço-lhe que me revele o nome que escutou
na fita”.
“Eram duas letras, caro senhor, que identificavam um ex-presidente
brasileiro. Digo identificavam porque ele morreu jámuitos anos”.
“Quantos anos atrás?”.
“Cerca de dez anos atrás. Certamente bem antes de inventarem estas
pequenas fitas de som”.
Armados com seus copos cheios de café, os dois voltaram à sala e
Bosco propôs que ouvissem inicialmente a fita a ele descrita como memorial,
“Talvez ela possa nos ajudar a iluminar o sentido das conversas”, disse ele.
Ligaram o gravador.
“Córsega, dezembro de 1989. Talvez eu devesse ter iniciado este diário
meses atrás. Mas não sei ainda o que devo gravar aqui. Somente agora, dois meses
depois de ter chegado à Córsega, é que eu consigo organizar mentalmente essas
minhas investigações, agora que parecem estar chegando ao fim. Essas anotações
sonoras sobre minhas suspeitas iniciais são pra, ainda que como rascunho, dar
organização a essa reportagem. Então vamos lá: três anos que ouvi falar pela
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primeira vez das histórias de pessoas que contavam que JK o tinha morrido,
mas demorei bastante a dar algum crédito a isso. Só quando conheci Solange e ela
me contou. Nela eu acreditei”.
Bosco riu.
“De que se trata isto?”, perguntou Delon.
“Ele está apenas rememorando loucuras, senhor”.
“No entanto, faz quase quatro meses que estou viajando, investigando
essa idéia maluca que de repente me parecia tão óbvia. Agora já nem sei por que
de repente acreditei tanto nessa história maluca... Sei que, depois de algum tempo
procurando emprego nos jornais e revistas, acabei por juntar algum dinheiro com
bicos diversos e consegui convencer minha família a me apoiar nessa
investigação. Faz mais de três meses que saí do Brasil. Passei dois meses em Paris
e Marselha fazendo pesquisas e não tenho dúvida de que Juscelino passou pelas
duas cidades quando fugiu. Encontrei o consultório em que fez uma operação
plástica. O cirurgião morreu três anos, mas eu conversei com a secretária do
lugar. Imagino que o homem que procuro hoje tenha um rosto mais fino, mais
magro, e um nariz menor do que antes da operação. Encontrei o homem que lhe
vendeu um falso passaporte, um húngaro, ex-agente soviético, que insistia em
falar comigo num português sofrível e me arrancou dois mil dólares para contar o
novo nome do homem que eu procurava: João César Miranda, português que em
1976 viajou para a Córsega. Era a pista que eu queria, mas mais tarde eu descobri
que este português não saiu mais da ilha, onde teria morrido de infarto, em 1977,
num restaurante em Ajaccio”.
O inspetor Delon novamente interrompeu a audição da fita.
“Caro senhor secretário, o senhor tem o dever de me informar o que esta
fita está relatando!”.
“Caro amigo, não se irrite comigo. Até o momento, ainda estou surpreso
com as loucuras que este rapaz disse”.
“Mas de que se trata?.
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“Trata-se, meu amigo, de uma investigação em busca de uma pessoa que
teria morrido em 1976. Nosso narrador, no entanto, parece crer que ele não
morreu em 1976, e sim em 1977. O senhor me entende? Isto não faz sentido!”.
“Suponho, então, que o mais conveniente é dar o caso por encerrado e
arquivar este material?.
“Acredito que sim. Mas quero levar estas fitas para a embaixada”.
“Estou desolado, mas não será possível. Estas fitas pertencem à polícia
francesa”.
“Meu amigo, estas fitas pertencem, ou pertenciam, a um brasileiro, e creio
que o mais conveniente é que eu as leve para que sejam entregues à sua família”.
“Perdão, meu senhor. Estas fitas foram autuadas pela polícia francesa
numa investigação, e não poderão ser entregues até que o promotor decida pelo
arquivamento e autorize expressamente sua liberação após examiná-las”.
“Mas, senhor, o senhor acaba de dizer que irá arquivar o caso!”.
“Eu posso arquivar o caso, mas não posso lhe entregar as fitas, senhor
secretário. E o promotor possivelmente irá investigar por conta própria para saber
por que estas fitas devem ser liberadas”.
“Podemos então continuar a ouvi-las? Quero entender melhor do que se
trata, mesmo que não veja sentido nesta investigação”.
“Caro senhor, se não há sentido na investigação...”.
“Mas vejamos, meu amigo, mesmo as histórias dos loucos podem fazer
sentido”.
“Se não há crime, não investigação”.
“Mas quem lhe disse que não há crime?”.
“O senhor”.
“Pois se o senhor não pode me liberar estas fitas, eu tampouco posso lhe
afirmar qualquer coisa enquanto não souber o que há nestas gravações”.
E voltaram à audição das fitas.
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“Mas acabei descobrindo que quem morreu foi este nome, João César
Miranda. Não tinha registro de funeral, ninguém reclamou o corpo, nem sequer foi
enterrado como indigente. O corpo desapareceu, sem deixar sinais, se é que
existiu. cerca de um mês, encontrei uma ex-legista do lugar, que me contou
nunca ter visto o corpo deste senhor português. Com mais um pouco de dinheiro,
acabei descobrindo que o chefe dela entregou o atestado para um senhor francês,
da Bretanha, chamado Jean-François Brisseau, e que este senhor morava em Porto
Vecchio, no sudeste da Córsega. A coisa ficou mais complicada quando eu
cheguei aqui e descobri que não havia qualquer francês chamado Jean-François
Brisseau. Isso me tomou quase um mês. Mas a história da legista faria sentido se
eu acreditasse na semelhança de datas e descrições entre este senhor bretão e um
argentino de meia-idade, chamado Juan Carlos, que vários camponeses me
contaram ter ido morar desde aquele ano num terreno perto da praia de
Palombaggia. E aqui estou... Falando sem parar... nem sei mais o que estou
dizendo... É impressionante como essa história pode ser verdade, de tão
romanesca, parece, isso sim, uma história própria do romantismo numa época em
que isso não faz o menor sentido... Um ex-presidente que simula sua própria
morte para não ser assassinado e nunca mais é visto, quem acreditaria nisso?...
Ainda tenho a mesma grande dúvida de quando ouvia as histórias da Solange: por
que ele não reapareceu? O que terá acontecido com Juscelino? As últimas
testemunhas que encontrei que diziam ter visto JK contavam histórias de 1978.
Por que não reapareceu, durante a anistia ou depois? Por que ele preferiu viver
escondido? Essa é a primeira pergunta que eu quero fazer quando encontrar com
ele”.
Um silêncio tomou o lugar da voz por alguns instantes. O policial encarou
Bosco e levantou-se de onde estava sentado quando ouviu o som de interrupção da
gravação em seguida moveu-se lentamente até o aparelho e fez menção de parar
a fita.
A gravação, no entanto, logo foi retomada e ainda se ouviu:
“A entrevista hoje não deu certo”.
Delon desligou o aparelho.
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“Meu caro amigo, eu creio que esta é uma boa hora para você me explicar
em detalhes o que há nestes registros. Peço-lhe que me conte quem foi esse
homem que nosso infeliz amigo pretendia encontrar”.
Bosco moveu a cabeça sinalizando que concordava.
“Vamos pegar um pouco mais de café”.
***
Jorge ficara em silêncio por alguns instantes com o gravador à mão antes
de desligá-lo. Depois de chegar na casa do senhor Juan Carlos, em Palombaggia,
perguntou a dois serventes da casa onde estava o patrão. Disseram-lhe que estava
no quarto, com a enfermeira, madame Juliette Lébrun. Chamaram-na e Jorge
pediu para falar com Juan Carlos e se ele poderia ir vê-lo na sala.
“Na sala se impossível, caro senhor. A esta hora o senhor Juan se
recolheu a seu quarto e de lá não irá sair até amanhã”.
“Pergunte-lhe então se posso falar com ele em seu quarto”.
“Sobre que assunto o senhor deseja falar?”.
“Diga-lhe que procuro um homem que ele conhece, que se chama
Juscelino”.
“Pardon... Gilles Seline?”.
“Não, minha senhora. Jús-cê-li-nô”.
“Jous-ce-li-nô... Está bem... Perdoe-me, mas qual é seu nome? Senhor
Lobo... Sim, eu lhe peço que me aguarde um instante”.
Assim que ela se afastou, ele voltou a se aproximar dos serventes.
“Meus amigos, lhes parece que minha presença incomoda de alguma
maneira?”.
“De forma alguma, meu senhor. Mas o senhor Juan não irá sentar à cadeira
de rodas a esta hora. O senhor só falará com ele caso lhe permita ir a seu quarto”.
“Por que ele usa cadeira de rodas? Algum acidente?”.
“Não senhor, é por causa do derrame que ele teve anos atrás”.
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Madame Lébrun voltou e pediu que Jorge a acompanhasse. Ele entrou na
casa, passou rapidamente pela varanda arejada e pela sala, onde se viam dois sofás
e uma grande poltrona, antes de se dirigir ao quarto principal. Era um quarto
bastante grande e escuro, com paredes altas e um largo armário embutido na parte
frontal à porta de entrada. Ao centro, uma cama grande e um abajur à direita ao
lado dela, uma cadeira de rodas, como haviam mencionado os serventes.
O velho estava deitado na cama, sentado e encarando Jorge de forma até
agressiva.
“Quem é o senhor?”, perguntou ele, com uma voz fina e trêmula.
“Eu me chamo...”.
“E o que deseja de mim?”.
“Me chamo Jorge Lobo, senhor presidente”.
Jorge percebeu que o velho parecia furioso em seu silêncio. Ele mantinha
o mesmo rictus facial.
Qui êtes-vous? Qu’est-ce que voulez-vous ici?”.
“Senhor presidente, eu lhe juro que não quero seu mal”.
Ele aparentava fazer um grande esforço para falar.
“O que você quer de mim?”.
“Senhor presidente, eu quero apenas falar com o senhor”.
O velho silenciou por instantes –não movia em momento algum os
músculos do lado direito do seu rosto, de uma tal forma que o lábio inferior não
encostava completamente no superior, mantendo constantemente uma espécie de
sorriso. Os olhos estavam pequenos e as rugas puxadas, como aparentam ser os
rostos que sofreram muitas operações plásticas.
Jorge tirou o gravador da bolsa que carregava.
“Senhor, eu quero apenas fazer uma entrevista. Prometo que não irei
revelar onde o senhor se esconde”.
“Vá embora, rapaz. Eu não sou ninguém, eu estou morto!”.
Jorge acionou o gravador.
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“Presidente, eu estou gravando”.
“Não! Eu não lhe autorizei a gravar nada, desligue isso!”.
“Senhor presidente...”.
“Desligue ou eu não falo nada!... Juliette!”.
“Está bem, senhor”.
“Juliette, s’il vous plaît, aidez-moi!”.
Jorge desligou o gravador antes que Madame Lébrun entrasse na sala.
“Pronto, senhor”.
“Donnez-moi ça, monsieur!”.
“Não senhor”.
“Juliette!”.
“Oui, monsieur?”, disse a enfermeira.
“Senhor, este é meu material de trabalho. Mais importante do que ele é o
que eu sei. Eu não quero o seu mal, quero apenas conversar um pouco”.
O velho permaneceu por alguns instantes em silêncio.
“Vá embora! Imediatamente! Partez! Juliette, montrez le chemin au
monsieur, s’il vous plaît”.
“Senhor... eu não pretendo contar a ninguém. Mas não se preocupe, os
militares já foram embora”.
“Partez!”.
“Senhor, eu quero o seu bem”.
Jorge foi embora.
No hotel, mais à noite, acabara de acionar o gravador quando bateram-
lhe à porta. Era um dos serventes, que vinha lhe dizer para voltar à casa no dia
seguinte, pois o senhor Juan Carlos desejava vê-lo. Jorge disse-lhe que aceitava o
convite e, poucos instantes depois, voltou ao gravador.
***
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“Tentarei lhe explicar de forma clara e rápida, meu amigo. O homem que
este jovem repórter falecido pretendia encontrar morreu em 1976, também num
desastre de automóvel, numa rodovia brasileira. Este homem foi presidente do
Brasil entre 1955 e 1960 – antes já havia sido prefeito da sua cidade e governador.
Ele pretendia candidatar-se novamente em 1965, mas precisou mudar seus planos
depois que houve a mudança de governo, em 1964. Foi parlamentar por um curto
período e teve seu mandato cassado pelo novo governo”.
“Ele foi considerado um bom presidente?”.
“Por muitos brasileiros sim... foi um período de muito crescimento
econômico, muitas pessoas têm boas lembranças do seu governo por esta razão.
Mas durante o seu período o país se endividou muito, e houve muitas denúncias
de corrupção”.
“Por que foi cassado?”.
“Porque era conhecido pela população, por corrupção, agitação, ou
qualquer outra razão que estivesse disponível”.
“E ele tinha chance de ser novamente eleito?”.
“Talvez... mas quem poderia fazer afirmações sobre um futuro que não
aconteceu, meu amigo?”.
Delon ficou alguns instantes em silêncio.
“E de onde veio esta idéia rocambolesca de que ele teria encenado a
própria morte?”.
“Veja bem, meu amigo... De fato, naqueles anos meu país sofreu de uma
terrível doença, o terrorismo”.
“De esquerdistas?.
“Não somente... de fato, isso vinha de ambos os lados. E Juscelino morreu
logo em seguida a dois dos mais conhecidos políticos do período anterior ao golpe
de estado. Muitas pessoas ligavam os fatos em teses de conspiração”.
“Como foi o seu acidente?.
“Este é o ponto mais curioso. Juscelino morreu numa viagem de carro
entre as duas maiores cidades do país. Ele havia sumido horas antes do acidente, e
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houve testemunhas que relataram que o acidente teria sido provocado por um
segundo carro, que teria fugido depois de jogar para fora da pista o carro onde ele
estava. Daí surgiram as teses conspiratórias”.
“Mas se ele foi morto, seu corpo encontrado e enterrado, como este jovem
podia acreditar que iria encontrá-lo vivo em algum ponto do planeta?.
“É este o problema, meu amigo. O corpo foi destroçado pelo acidente. O
cadáver foi identificado apenas por seus documentos pessoais”.
“Então não puderam identificar seu corpo?”.
“Na verdade não totalmente... mas encontraram seus documentos, e a
família reconheceu sua morte”.
“E estavam assassinando outros políticos na época?”.
“Não provas... apenas lhe disse que corriam boatos na época sobre o
assunto”.
“Então ele ainda pode estar vivo?”.
“Meu senhor, isto é apenas uma hipótese delirante”.
“E as fitas?”.
“Não nada nelas além de uma conversa entre um velho e um garoto e
provavelmente alguns delírios deste último”.
Delon hesitou alguns segundos. Depois apanhou o telefone e comunicou-
se com um colega.
“Por favor, eu preciso saber quando o senhor Jorge Lobo, envolvido no
acidente de hoje, partiu da Córsega. Preciso também que algum policial de
investigar um senhor chamado Juan Carlos, que mora em Porto Vecchio, perto de
Palombaggia. Preciso que tomem o testemunho deste senhor Juan Carlos e que
examinem rigorosamente os seus documentos. Eu ficarei na espera por uma
resposta e lhes agradeço pela atenção. Obrigado”.
Em seguida, voltou-se novamente para Bosco.
“Vamos escutar o resto das fitas, senhor Bosco?”.
Voltaram ao aparelho de som.
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“A entrevista hoje não deu certo, mas o dia foi de vitórias. Hoje encontrei
JK e conversei com ele. Na verdade não conversamos, mas pelo menos sei que
ele esvivo. Amanhã vou voltar lá e espero que dê tudo certo. Um empregado da
casa já veio me chamar para voltar lá amanhã. Eu só preciso convencer ele de que
não vou fazer mal nenhum, e tudo vai dar certo... ele mora numa casa perto de
uma praia, com dois empregados e uma enfermeira. Ele precisa da enfermeira
porque teve um derrame e anda de cadeira de rodas. Acho que ele também não
consegue mover parte do corpo. Ele fala de um jeito muito estranho, pra ser
sincero ele é muito estranho”.
Por alguns instantes o silêncio se manteve, e Delon fez menção de
interromper a fita.
“Amanhã eu falo mais. Ou não, ou amanhã começo a escrever”.
Um som de final de gravação se seguiu, e depois um som de início. Bosco
fez sinal para que Delon esperasse.
“Eu nem sei ainda por que vou gravar mais disso. O Juscelino acabou de
morrer”.
Delon interrompeu a fita, e Bosco se manifestou.
“Não, por favor!”.
“Meu amigo, se que você o poderia me explicar o que este jovem
falou?.
“Ele acabou de dizer que o presidente havia morrido!”.
“Mas ele já não havia morrido antes? Mais uma vez?”.
“Meu amigo, ele havia apenas comentado de sua alegria por ter encontrado
seu objeto de investigação. É agora que ele parece nos contar o mais importante!”.
“Mas ele não disse nada que possa nos ajudar?”.
“Não! Eu lhe juro!”.
Um tanto a contragosto, Delon acionou novamente o aparelho.
“O presidente Juscelino morreu faz alguns minutos, depois de um mal-
estar repentino. Eu consegui conversar com ele, consegui encontrá-lo, e agora
nada vai acontecer. A notícia não vale mais nada, minha matéria vai ser apenas
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uma curiosidade bizarra. O morto que não morreu enfim está morto. Não há mais
chance de levar JK de volta”.
Um longo silêncio se seguiu.
“O que ele está dizendo?”.
“Ele disse que o velho homem morreu após um mal-estar repentino”.
“Isto pode ser mentira dele!”.
“Meu senhor, tudo pode ser mentira dele!”.
“Mas é possível que isso seja uma tentativa de proteger o velho!”.
Bosco fez sinal pedindo silêncio ao policial.
“Eu estou me sentindo um idiota. Por que é que nenhum agente achou esse
cara antes de mim? Desde ontem eu já estava achando que estavam me seguindo,
mas agora eu tenho certeza. E agora que o homem morreu, eu sirvo pra quê agora?
Pra quê que vão me seguir ainda? Eu nem sei se alguém ainda vai ouvir isso, mas,
olha, eu tô com medo,com medo de ter mostrado o caminho da toca pra onça”.
O silêncio deu lugar por instantes ao barulho da gravação sendo
interrompida. Em seguida só havia silêncio na fita.
E então?.
“Trata-se de um paranóico, meu amigo... no final de seu depoimento, ele
diz que o seu entrevistado, que ele tanto procurou, acabou de morrer e depois fala
que estava sendo seguido. Não é preciso ser psicanalista para saber que se trata do
discurso de um paranóico”.
“Mas ele de fato morreu, meu amigo”.
“Não vejo ligação entre um fato e outro”.
“Ora, meu amigo, não preciso ser psicanalista para notar que você
raciocina como diplomata... Eu raciocino como um policial: se o rapaz tinha medo
de estar sendo seguido e ele morre logo depois, eu vejo sim uma possível ligação
entre os fatos”.
“Ora, meu amigo!”.
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“Não sei... eu preciso pensar em todas as hipóteses... no final, a que restar,
por mais improvável que seja”.
“Conan Doyle, mais uma vez”.
“Sim, Conan Doyle. Mas de fato estamos perdendo nosso caso aqui.
Agora, ao que parece, o senhor Juan está morto e nós não temos mais testemunhas
para nos contar o que aconteceu com o jovem atropelado. Vamos ao menos
escutar o final da fita de entrevistas?”.
Diante do silêncio do brasileiro, o inspetor trocou de fita e reiniciou o
aparelho de som.
“Vamos lá, vamos tentar de novo... Córsega, 3 de dezembro de 1989,
entrevista com o presidente JK... podemos ir, senhor?
***
No dia seguinte, Jorge voltara à casa de Palombaggia logo depois do café
da manhã. Chegando ao terreno, novamente pediu para um dos serventes chamar
Madame Lébrun, como no dia anterior. Madame Lébrun veio.
“Queira me acompanhar, senhor, por favor”.
Levou-o à varanda da casa, do lado oposto ao da porta de entrada. O velho
estava sentado tomando sol numa poltrona azul, com óculos escuros e um boné
escondendo os cabelos brancos.
“Bom dia, senhor Lobo... Gostou da casa da vovozinha? Como foi a
travessia do bosque?.
“Bom dia, senhor presidente”.
“Por favor, senhor Lobo, não me chame desta maneira!”.
“Certo... como o senhor prefere? JK?”.
“Chame-me apenas de senhor, por favor. Se precisar, refira-se a mim como
J. Carlos”.
“Sim, senhor”.
“Você sabe quem foi J. Carlos?”.
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“Não... mas conheço a rua, no Jardim Botânico”.
“A rua, sim, exatamente... J. Carlos foi um caricaturista, desses dos
jornais, foi um terrível cartunista... você conhece a história do Brasil?”.
“Não sei, senhor. Acho que sim, um pouco, mas não muito”.
“Como você me encontrou, rapaz? Como foi que o lobo atravessou o
bosque?”.
“Na verdade, conheci uma pessoa que o reconheceu quando o senhor
estava em Marselha, vindo para a Córsega”.
“Não importa, isso não interessa, na verdade”.
“E o senhor sabe o que aconteceu com o Brasil nos últimos anos?”.
“Não, não sei de nada”.
“Não sabe quem é o atual presidente do país? Estamos no meio de uma
eleição para presidente, a primeira em quase trinta anos”.
O velho permaneceu em silêncio.
“O senhor realmente não sabia disso?”.
“Sim, rapaz, eu fico sabendo de alguma coisa. Meus empregados me
trazem eventualmente as edições dominicais do Le Monde. É meu único meio de
informação, atualmente... Mas vão fazer uma eleição, é? Que bom... eleição é uma
coisa muito boa, faz bem para o povo”.
“Senhor, incomoda-se se eu gravar a nossa conversa?”.
O velho novamente se calou.
“Vou dar início à gravação, está bem?.
Jorge acionou o gravador.
“Vamos lá, vamos tentar de novo... Córsega, 3 de dezembro de 1989,
entrevista com o presidente JK... podemos ir, senhor?... Pois bem, vamos lá...
Senhor, há quanto tempo o senhor está refugiado aqui?”.
“Ahn? De quoi parlez-vous, monsieur?”.
“Senhor presidente...”.
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“Pois bem, se é isso que quer saber, vim morar nesta ilha em 1976, jovem.
E nada mais temos a conversar, está bem?”.
“Senhor presidente, se o senhor quiser, eu posso desligar o gravador”.
“Não, quero que vá embora daqui!”.
“Senhor...”.
Jorge desligou o gravador.
Dias depois, Bosco externou ao inspetor seu desapontamento com aquela
interrupção.
“Senhor, eu desliguei o gravador... vamos conversar?”.
O velho falou de forma pausada.
“Desculpe-me, meu jovem... São besteiras de um velho homem, peço que
me compreenda. Mas pode ligar seu aparelho, eu não me incomodo com a
gravação da nossa conversa. Nem tenho mais por que me incomodar. Eu estou
morto, rapaz”.
Jorge ligou novamente o gravador.
“Senhor, por que o senhor desapareceu? Acreditava que poderiam
assassiná-lo?”.
“Meu jovem, por que você me faz perguntas cujas respostas já conhece?”.
“Me desculpe... o senhor me disse que regularmente o jornal Le
Monde”.
“Regularmente não, eventualmente... uma vez por mês, digamos”.
“E o senhor acompanha as notícias sobre o Brasil? Sabe o que está
acontecendo no seu país?”.
“Meu jovem, desculpe eu me repetir, mas eu não tenho país. Meu tempo
passou, eu estou morto”.
“Senhor...”.
“Está bem... Olhe, a última coisa que acompanhei com atenção foi a morte
do Tancredo. Meu Deus, o que foi aquilo?”.
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“O senhor acredita em quê?.
“Eu não acredito em nada, rapaz. Mas que coisa terrível, o pobre homem
falecer às vésperas de tomar posse... É uma história muito sofrida a desse povo,
sabe?.
“E desde então? O senhor sabe o que se passou com o país? Quem o
presidiu?.
“Sim, eu sei. Nem precisa me dizer o nome desse idiota”.
“O senhor não gosta dele?”.
“É um imbecil, um medíocre, uma figura mesquinha. Sempre foi assim e
não vai mudar. Era assim enquanto fez oposição e continuou assim depois que
passou ao governo”.
“Ele fazia parte da oposição ao seu governo, não é?”.
“Sim, rapaz, ele e aqueles medíocres da UDN... Banda de música!”
A fita terminou. Jorge trocou de lado às pressas e voltou a acionar o
gravador, mas o velho continuou a falar no seu ritmo lento.
“Eram uns infelizes, isso que eles eram. Os mais espertos depois
aprenderam o caminho doce do poder. Os outros, esses foram uns infelizes a vida
toda. O Lacerda, por exemplo, podia ter sido um homem de estatura muito maior
do que teve... ele sempre quis isso, mas nunca conseguiu, e por quê? Porque era
um medíocre, pensava pequeno, pensava apenas em conquistar o poder no dia
seguinte. O poder pelo poder... O poder pelo poder, meu jovem, não serve para
nada, envelhece a quem o tem... o tempo passa e depois não lhes sobra nada
para se lembrar. É isso que estes idiotas não enxergam. E eles serviram para quê?
Para eleger o Jânio Quadros”.
“O que o senhor teria a dizer hoje para os brasileiros?.
“Essa é uma pergunta idiota. Diga-lhes que morri. Próxima?”.
“O senhor sabe como foram os últimos anos do governo Sarney?”.
“Meu jovem, por favor, respeite os pedidos desse velho”.
“Mas o senhor sabe?.
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“Muito pouco, sendo-lhe sincero. Soube do caso desse plano econômico
para conter a inflação... você sabe que eles ainda dizem que a culpa é minha, não
sabe? Depois de trinta anos, a culpa da inflação é minha!”.
“O que o senhor achou do Cruzado e de todos estes planos econômicos?”.
“Meu jovem, veja bem... Olhe, eu simpatizei com o rapaz que foi ministro
e lançou o plano, como ele se chama?”.
“Funaro?.
“Esse, esse mesmo... simpatizava com ele... mas todo governo tem certas
figuras que parecem acreditar que um país deve ser governado através de um
manual de regrinhas... Um país não é feito de quinas, é feito de gente... Não é
com regras que se comanda um país, é com objetivos. A melhor maneira de tornar
um povo feliz e produtivo é com confiança, é fazendo as pessoas acreditarem na
sua própria capacidade. Mas o que você quer de mim, afinal? Um discurso para o
futuro? Eu não tenho mais idade para isso, meu jovem. Meu tempo já foi embora”.
“O senhor sabe algo das eleições atuais?”.
“Não... eu lhe disse que lia eventualmente... minha enfermeira não gosta
que eu leia coisas que me preocupem... ordens do médico”.
“Amanhã irá se realizar o segundo turno das eleições”.
“Então enfim conseguiram implantar o segundo turno... São uns infelizes
mesmo... E quem são os candidatos? Algum do meu tempo?.
“Leonel Brizola concorreu no primeiro turno, mas ficou em terceiro lugar
e está fora”.
“Leonel Brizola! Este homem não vai morrer nunca! Se não morreu agora,
não vai morrer mais... Desde 1960 que ele sonhava com essa eleição. Deve ter
sido uma dor tremenda para ele”.
“Há mais um conhecido seu que voltou ao poder. Jânio Quadros elegeu-se
prefeito de São Paulo”.
“Você está falando sério?.
O repórter confirmou.
“O que o senhor acha disso?”.
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O velho moveu os olhos, com seu rosto retorcido, mas o respondeu. O
silêncio manteve-se por alguns momentos. Jorge olhava para o velho, que
permanecia calado, com os olhos perdendo-se no panorama da varanda, onde era
possível ver parte da mata e toda a praia de Palombaggia.
“E quem são os dois concorrentes agora? À presidência, quero dizer?.
“O líder das pesquisas é um ex-governador de Alagoas, Collor de Melo”.
“Parente de alguém?”.
“De um ex-governador, Arnon de Melo”.
“O Arnon! Meu Deus, e deixaram o filho dele se candidatar? Deve ser uma
criança ainda!”.
“Ele é bastante jovem sim, e o outro candidato também”.
“Quem é?.
“É um ex-líder sindical, é conhecido como Lula”.
“O Lula! Eu li sobre ele nos jornais anos atrás, na época daquelas greves.
Mas ele é bem de esquerda, não é? Ou já deixou de ser? Ele tem chances?”.
“Não sei”.
“E quem você prefere?”.
“O Lula, senhor. O Collor não parece ser um homem de bom caráter”.
“O pai dele já era um homem terrível... E o outro é melhor?”.
“Parece, pelo menos... Não sei é se irão deixar ele governar, se vencer”.
“É um esquerdista, não é? Essa gente que não sabe ceder é terrível”.
“O senhor teme que ele vire um novo Jango?”.
“Eu? Eu o falei nada, rapaz! Quem está me contando as coisas é você...
Mas se ele foi sindicalista vai saber negociar. Todo mundo aprende. O caso do
Jango foi outro”.
“O senhor pretendia continuar seu trabalho, não é?”.
“Quem está vivo sempre quer continuar a trabalhar, rapaz... Mas agora não
quero mais, agora eu morri”.
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“O senhor se arrepende de algo que fez? Ou de ter deixado de fazer algo?”.
“Rapaz, eu não tenho mais tempo para isso, nem preciso”.
“Mas enquadrar os militares, por exemplo? O senhor o acha que faltou
disciplina? Para impedir esses casos terroristas, por exemplo?”.
“Isso não foi no meu tempo, rapaz! reclamar com outro fantasma,
reclamar com o Jânio ou com João Goulart!”.
“Mas o senhor também lidou com revoltas militares no seu governo,
não?”.
O velho começou a ofegar.
“Rapaz, nem sempre é hora de usar a espada! Se as pessoas no Brasil
tivessem escolhido o caminho da conciliação eo do confronto, as coisas teriam
sido diferentes. O que mais eu poderia ter feito?”.
“O senhor acha que foi injustiçado?”.
“Eu preferia que tivessem me matado logo! Feito fizeram com o Allende,
aquilo sim foi um golpe de estado de verdade, não foi uma patuscada! O homem
ficou até o final no palácio e no final o assassinaram. Comigo eles perderam a
hora, era melhor ter me matado de imediato... Onde se viu, chamar um ex-
presidente para depor em quartéis? Juliette!”.
“Calma, senhor, por favor”.
O velho seguiu chamando a enfermeira, com o rosto bastante vermelho.
“Eu preferia ter sido morto em Paris, era isso que deveriam ter feito! Mas
não... Os imbecis acreditavam que estavam certos! Achavam era certo, que
estavam salvando a democracia... Juliette, s’il vous plaît!... Como pode isso? Um
ser humano achar que um golpe de estado pode salvar a democracia? Agora
enterraram o país nesse buraco de onde ele não sai mais, com esse bando de
idiotas, incompetentes...”.
“Senhor presidente!”, disse Jorge, e desligou o gravador.
***
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Bosco permaneceu em silêncio.
“O que o senhor disse que acontecerá com estas fitas?”.
“Elas serão remetidas ao promotor junto com a avaliação de caso, e o
promotor decidirá o que fazer, se vai abrir novas investigações, se devolve o
material ou se apenas cuida de arquivá-lo”.
“E qual é a hipótese mais provável?”.
“O arquivo... a menos que...”.
“A menos que?.
“A menos que eu resolva abrir o caso e encontrar um suspeito para ser
acusado, e ele dificilmente arquivará o caso... Ou, também, a menos que a
embaixada brasileira peça o material para torná-lo público por qualquer razão.
Nesse caso ele provavelmente liberará o material ao invés de arquivá-lo”.
***
Quando a enfermeira enfim chegou à varanda, o velho não conseguia mais
falar estava arquejando e movia o braço esquerdo sem parar, enquanto Jorge
tentava acudi-lo.Monsieur!”, disse ela, e logo pegou seu braço e procurou
acalmá-lo. Jorge tratou de ajudá-la e segurou-o enquanto ela pedia calma ao
velho. De uma forma admiravelmente rápida, ela preparou uma injeção e aplicou-
a no pescoço do velho, que logo perdeu a consciência. Monsieur, je vous
demande de nous laisser. Maintenant j’irai appeller le medécin, et monsieur Juan
doit se réposer”, pediu ela a Jorge com a autoridade de uma ordem. Depois de
perguntar se não poderia ajudar de alguma forma, Jorge voltou ao hotel, no centro
de Porto Vecchio.
Algumas horas depois, um dos serventes veio ao seu quarto para lhe avisar
da morte do velho. Depois que ficou sozinho, Jorge Lobo deu duas voltas no
quarto antes de remexer sua mala e depois chegar à janela. Preparou um baseado,
acendeu e fumou enquanto observava a vista da cidade.
Depois ele pegou o gravador, recolocou a fita em que tinha gravado nos
dias anteriores e começou a falar:
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“Eu nem sei ainda por que vou gravar mais disso. O Juscelino acabou de
morrer... O presidente JK morreu poucos minutos, após um mal-estar
repentino. Eu consegui conversar com ele, consegui encontrá-lo, e agora nada vai
acontecer”.
***
Bosco olhava para o chão por alguns instantes, antes de responder:
“Mas não há acusação, correto? algum suspeito?”.
“Na fita ele menciona que estava sendo seguido. O velho morreu e depois
ele o sobreviveu a uma batida de automóveis, quase como uma repetição
paródica à história da fuga do seu ex-presidente. E o senhor havia mencionado a
existência de grupos terroristas. Podemos investigar esta possibilidade, interrogar
alguns brasileiros que estão na cidade”.
“Meu amigo, não há evidências de que esta história seja verdade. Tudo que
temos são conjecturas improváveis. Até o momento, o que se sabe é que JK
morreu treze anos, que não mais grupos terroristas no Brasil e que este
jovem sofreu um acidente. A embaixada brasileira não reconhece nenhum fato
além destes”.
Delon respondeu de forma bastante pausada:
“Está certo. E a embaixada brasileira o tem interesse em divulgar o
material gravado nestas fitas?”.
“Não vejo razão para tal. Se a família eventualmente mostrar interesse,
podemos nos manifestar”.
Pierre Delon manteve-se em silêncio. Pegou o maço, acendeu um cigarro e
levantou-se da cadeira, caminhando enquanto tragava.
“E então?”, perguntou Bosco.
“Está certo, eu irei propor o arquivamento do caso”.
Depois que se despediram e Fernando Bosco foi embora, Delon ainda
permaneceu alguns minutos na sala. Terminou seu cigarro e voltou a escutar por
instantes o início de uma das fitas:
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“Presidente, eu estou gravando”.
“Não! Eu não lhe autorizei a gravar nada, desligue isso!”.
“Senhor presidente...”.
“Desligue ou eu não falo nada!... Juliette!”.
Delon desligou o som, pôs as fitas num envelope, anotou alguma coisa e
guardou-o numa gaveta da sua escrivaninha. Mais tarde preencheu todos os
formulários e arquivou o caso, conforme dissera. Nos dias seguintes chegou a
falar em três ocasiões com amigos sobre o caso, gerando conversas de alguns
minutos sobre a política destes países latino-americanos em meio aos almoços dos
seus colegas inspetores de polícia.
Ao sair da delegacia, Fernando Bosco olhou diversas vezes para os lados,
em meio ao caos do final da tarde às margens do Sena. No final da tarde de um
domingo, três semanas depois do encontro com Pierre Delon, seu corpo foi
encontrado por sua esposa na cozinha de sua casa com duas balas na cabeça, num
caso de aparente latrocínio que a polícia francesa não soube elucidar.
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NUMA REDE DE LINHAS QUE SE ENTRELAÇAM
A intenção de usar o pretérito narrativo e os dois tempos de ação era
apresentar um destino frágil e inútil à ão do repórter-protagonista tornando
essa ação análoga ao tema central de O Velho e o Novo, sobre as possibilidades
que não se realizaram. Para que o repórter se desse conta de seu fracasso e, da
mesma forma, o leitor soubesse que nem mesmo o registro desse fracasso veio à
tona no final, o uso do tempo passado me pareceu ser o mais interessante. Para
que a estrutura fizesse sentido, no entanto, eu precisava criar uma outra
investigação, posterior à primeira. Daí veio a idéia do encontro entre o diplomata
e o policial.
As escolhas que fiz, em certa medida, denotam também a influência e as
sugestões trazidas pelos textos de Ricardo Piglia. O escritor argentino, como se
sabe, já apresentou algumas teses próprias sobre a estrutura do conto. Na mais
conhecida delas (que, de certa maneira, serviu de base a todas as outras),
publicada no seu livro Formas Breves, ele parte de uma pretensa anotação que
Tchecov teria feito num caderno (“um homem em Montecarlo vai ao cassino,
ganha um milhão, volta para casa, suicida-se) para afirmar o seguinte:
A forma clássica do conto está condensada no núcleo
desse relato futuro e não-escrito.
Contra o previsível e o convencional (jogar-perder-
suicidar-se), a intriga se oferece como um paradoxo. A
anedota tende a desvincular a história do jogo e a história
do suicídio. Essa cisão é a chave para definir o caráter
duplo da forma do conto.
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Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.
(...) O conto clássico (Poe, Quiroga) narra em primeiro
plano a história 1 (o relato do jogo) e constrói em segredo
a história 2 (o relato do suicídio). A arte do contista
consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da
história 1. Um relato visível esconde um relato secreto,
narrado de modo elíptico e fragmentário.
O efeito de surpresa se produz quando o final da história
secreta aparece na superfície.
1
A partir desta convicção, Piglia examinou e criou novos olhares sobre as
obras de contistas como Kafka, Hemingway e Borges, oferecendo argumentos a
partir de exemplos diversos para mostrar que cada um destes contistas construiu
seu estilo característico ao criar um modo próprio de apresentar as histórias
evidentes e as histórias secretas em seus contos.
O desenvolvimento da narração em dois tempos, de certa forma, explicita
ao máximo a sugestão de Piglia se algum truque narrativo ali, no caso, é
somente o fato de que, ao final, descobre-se que a história secreta, que trata de
ações terroristas, tem o seu desfecho justamente no tempo narrativo que está mais
evidente, o do encontro entre o policial e o diplomata. Quis assumir de forma
explícita este truque narrativo, de tal maneira que esta história secreta em nenhum
momento parece ser o assunto principal do conto a história central em torno do
encontro do repórter com um ex-presidente exilado talvez seja rodeada de
mistério, mas não é secreta, é evidente.
Dessa forma, assimilando a tese estrutural de Piglia e a narração no
pretérito, pretendi que o tom de O Velho e o Novo soasse tradicional em todo o
seu desenrolar (ou quase), de maneira que a própria forma narrativa ecoasse uma
proposta falida do sistema clássico de ordem e progresso (cuja falência, a seu
modo, a trama pretende trazer à tona). Sobre isso, deparei-me com outro trecho de
Piglia bastante instigante, que, de uma maneira peculiar, sugeria o tom que o
conto apresentou:
1
PIGLIA, Ricardo, “Teses sobre o conto”, in: Formas Breves, São Paulo: Ed. Companhia das
Letras, 2004, pp. 89-90.
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O relato se dirige a um interlocutor perplexo, que vai
sendo perversamente enganado e termina perdido numa
rede de fatos incertos e palavras cegas. Sua confusão
decide a lógica intrínseca da ficção.
O que compreende, na revelação final, é que a história que
tentou decifrar é falsa e que outra trama, silenciosa e
secreta, a ele destinada.
A arte de narrar se baseia na leitura equivocada dos sinais.
Tal como as artes divinatórias, a narração desvela um
mundo esquecido em pegadas que encerram o segredo do
futuro.
2
Resolvi usar o pretérito justamente porque nesse caso eu quis conduzir a
imaginação do leitor para uma compreensão histórica dos personagens citados,
tratando de um mundo esquecido e de um futuro perdido.
Como disse anteriormente, a relação entre o leitor e o narrador ausente
em O Velho e o Novo conciliou-se com um paralelismo narrativo (os dois tempos
cronológicos) e com o uso de um outro recurso tradicional (o tempo verbal no
pretérito), como modo de mediar a relação entre o leitor e as ações dos
personagens. Para isto, usei bastante um outro recurso, o dos diálogos e falas de
personagens (com o uso de um gravador, inclusive). Devo dizer que fiz isso não
porque a regra do narrador ausente obriga a isso, mas sobretudo por gosto em
fazer diálogos. Mas esta é uma escolha que, mais uma vez, aproxima o conto dos
textos próprios para teatro e/ou cinema, e este movimento foi consciente,
justamente para manter essa proximidade com outras artes embora não me
pareça que o uso constante de diálogos (que também ocorre no conto seguinte a
este ensaio, Washington) seja um recurso obrigatório e inescapável para um
narrador ausente.
Na verdade, o fraseamento dos contos, sem digressões, de modo geral os
torna assemelhados ao texto feito para teatro ou cinema, apesar de um ou outro
elemento estranho (o uso de gravador novamente é um exemplo). Pois a intenção
de fazer este exercício é justamente a de apresentar como produção
essencialmente literária aquilo que, tendo forma próxima do texto funcional de
outras artes, não abre mão de se pensar como escrita.
2
PIGLIA, Ricardo, “Novas teses sobre o conto”, in: Formas Breves, p. 103.
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Sob este aspecto, vale notar que as bifurcações entre tramas evidentes e
secretas pensadas por Piglia encontram uma curiosa ressonância com a visão de
Foucault sobre a literatura. Na sua conferência Linguagem e Literatura, diz uma
frase a que já me referi (“toda obra diz o que ela diz, o que ela conta, sua
história, sua fábula, mas, além disso, diz o que é a literatura“) e, em seguida,
completa o seu raciocínio:
Acontece que ela o o diz em dois tempos: um tempo
para o conteúdo e um tempo para a retórica; ela o diz em
unidade. (...)
Ela vai ser obrigada a ter uma linguagem única e, no
entanto, bifurcada, uma linguagem desdobrada, visto que
ao mesmo tempo que diz uma história (sic), que conta
algo, deverá a cada momento mostrar, tornar visível o que
é a literatura, o que e a linguagem da literatura, pois a
retórica, outrora encarregada de dizer o que deveria ser a
bela linguagem, desapareceu.
3
Logo no início da conferência citada, Foucault diz uma frase bastante
interessante e intimamente ligada ao propósito deste trabalho: Formular a
questão ‘o que é a literatura?’ seria o mesmo que o ato de escrever.
4
É a
definição dos nossos tempos (pós-modernos, poderia dizer): trata-se de literatura a
partir do momento em que se pensa como tal. E a partir do momento em que é
lida como tal, é preciso acrescentar. Não é por acaso que o título deste ensaio faz
referência ao título de um dos capítulos do romance Se um viajante numa noite de
inverno, de Italo Calvino
5
: neste livro o escritor italiano faz uma fascinante
reflexão sobre, entre outras coisas, o papel que o leitor deve exercer diante de uma
narrativa literária tema sobre o qual também Umberto Eco se debruçou em Seis
passeios pelos bosques da ficção. De certa maneira, como ambos os italianos
apontam, qualquer texto precisa que o leitor exerça seu papel de forma adequada
para tornar-se um texto literário – por outro lado, para que um texto seja literário,
ele precisa apenas ser feito para ser lido, e nada mais, como diria o famoso corvo.
Para que um texto seja literatura, e não uma peça escrita em função de outra arte,
3
FOUCAULT, Michel, “Linguagem e Literatura”, In: MACHADO, Roberto, Foucault, a filosofia
e a literatura, Pp. 146-147.
4
Idem, p. 139.
5
CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Planeta de Agostini, 2003.
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basta-lhe que sobreviva no papel, sem precisar de nenhuma ajuda além da leitura
imaginosa.
É tendo isso em vista que proponho esta aposta na imaginação do leitor
para completar os personagens e mundos, a partir do relato somente das ações.
Em suas conferências de Harvard, ao relembrar a origem dos estudos sobre a
ficção, Eco nos recorda que:
A norma sica para se lidar com uma obra de ficção é a
seguinte: o leitor precisa aceitar tacitamente um acordo
ficcional, que Coleridge chamou de “suspensão da
descrença”. O leitor tem de saber que o que está sendo
narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve
pensar que o escritor está contando mentiras. De acordo
com John Searle, o autor simplesmente finge dizer a
verdade. Aceitamos o acordo ficcional e fingimos que o
que é narrado de fato aconteceu.
6
A proposta aqui é simples: a partir do momento em que o narrador o se
dirige ao leitor para explicar a fábula (seja fazendo análises psicológicas dos
personagens ou contando a origem do seu relato), caberá ao leitor aceitar a
“suspensão da descrença” de forma explicitamente ativa, porque há algo nos
personagens a se completar. Isso, novamente, se aproxima das propostas de
Robbe-Grillet já comentadas é o interesse em fazer um texto para um novo
leitor, a que tanto o francês quanto Eco se referem, que vem à tona. A capacidade
das palavras bem-postas sugerirem o indizível é comentada por Calvino no ensaio
Exatidão, das suas Seis Propostas para o próximo milênio:
A palavra associa o traço visível à coisa invisível, à coisa
ausente, à coisa desejada ou temida, como uma frágil
passarela improvisada sobre o abismo.
Por isso o justo emprego da linguagem é, para mim,
aquele que permite o aproximar-se das coisas (presentes
ou ausentes) com discrição, atenção e cautela, respeitando
o que as coisas (presentes ou ausentes) comunicam sem o
recurso das palavras.
7
6
ECO, Umberto, Seis passeios pelos bosques da ficção, p. 81.
7
CALVINO, Italo, Seis propostas para o próximo milênio, pp. 90-91.
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78
A perspectiva histórica trouxe a O Velho e o Novo esta aproximação maior
com a forma tradicional. No conto seguinte, voltei a usar um tempo narrativo
único, com um único protagonista. Se eu quis usar em O velho e o Novo certos
artifícios que o aproximaram da forma clássica, neste escolhi um tempo verbal
que lhe dá, talvez, um tom mais sombrio como se fosse uma predição. Vale
lembrar novamente as teses de Ricardo Piglia, quando ele aponta a crise que os
escritores modernistas trazem ao formato de “história secreta” que base à sua
tese:
A versão moderna do conto, que vem de Tchecov,
Katherine Mansfield, Sherwood Anderson e do Joyce de
Dublinenses, abandona o final surpreendente e a estrutura
fechada; trabalha a tensão entre as duas histórias sem
nunca resolvê-la. A história secreta é contada de um modo
cada vez mais elusivo. O conto clássico à Poe contava uma
história anunciando que havia outra; o conto moderno
conta duas histórias como se fossem uma só.
8
A partir destas questões (e de algumas outras, certamente) escrevi o conto
Washington, que se segue.
8
PIGLIA, Ricardo, Formas Breves, p. 91.
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WASHINGTON
São Paulo, ano 2000. Washington, rapaz de quase 18 anos, vai acordar
com o som do despertador – irá se levantar, desligar a campainha e voltar a deitar.
Alguns minutos depois, vai se levantar novamente e sairá do seu quarto para a
cozinha. Depois de um copo d’água, sairá pela sala aa entrada do banheiro - vai
tomar banho, vão ser quase seis e meia da manhã. No final do corredor, alguns
ruídos escaparão do quarto de sua mãe. Antes de fechar a porta, Washington i
ver Vital saindo do quarto dela, de cueca, passando em frente ao banheiro onde
ele estará e caminhando pela sala. Vital vai caminhar até a cozinha, onde vai se
servir de um copo d’água. Vital Brasil é um homem alto, um pouco gordo, de 45
anos. Depois de pegar o copo d’água no filtro, vai pegar uma garrafa de
champanhe na geladeira e voltar para o quarto.
Washington chegará atrasado no curso e vai perder a primeira aula. Irá
descer ao tio e comprar uma coca-cola e um cheeseburger na cantina. Após o
lanche, vai se deitar numa das mesas que ficam recostadas à parede.
Mais tarde, ao voltar para casa, assim que virar a esquina da Rua Kansas
com a Capimirim ele vai ver Mary, sua mãe, saindo do edifício acompanhada de
uma jovem.
“Oi, meu filho. Tudo bem? Como foi a aula?”.
“Legal”.
“Bem, eu tenho que correr, nem era pra passar em casa... Olha, essa é a
Helena, uma amiga minha que chegou ontem em São Paulo”.
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Washington, que quase não vai olhar para a e, irá girar os olhos para
Helena e ver ela sorrir.
“Acho que eu falei com ele por telefone na semana passada”, Helena vai
dizer.
É uma jovem quase da sua idade, 17 anos, um bocado mais baixa que ele.
Os dois se cumprimentarão com um beijo no rosto.
“Oi, prazer”.
A mãe vai continuar: “Escuta, eu vou ter que correr para o escritório,
ontem aconteceu uma coisa muito importante e agora tem um monte de coisas lá
pra eu resolver. se não faz muita bagunça, ‘tá? Talvez eu precise encontrar
umas pessoas em casa mais tarde, aí eu ligo pra te avisar”.
Depois do almoço, Washington vai descer ao apartamento de João Batista,
vizinho seu, pouco mais de trinta anos, cnico em informática que vai estar em
pleno trabalho de configuração de um computador. Washington vai tirar do bolso
um pacote com maconha e fumar um baseado com o amigo - depois jogarão
videogame por algumas horas no computador Washington vai se divertir
especialmente com Doom 2, um jogo que lhe permite usar várias armas para matar
vilões e monstros inumanos que surgem pelo caminho. Depois vai subir para
jantar seu apartamento estará vazio quando ele chegar. Vai assistir à
programação da televisão enquanto janta, depois verá um filme de ação no vídeo.
será mais de meia-noite e ele vai ter acabado de se deitar quando sua mãe
chegar e for ao seu quarto.
“Tudo bem? Te acordei?... Estudou bastante?.
“Um pouco”.
“O que foi? Você tá triste?”.
Ela dará um beijo no rosto do filho, depois vai pô-lo no seu colo e acariciar
seus cabelos.
“Te contei?”.
“O quê?”.
“O Vital deve ser candidato a vice-prefeito”.
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“É mesmo?”.
“É, ele acertou isso ontem num encontro do prefeito com ele e os outros
vereadores do partido”.
“Mas isso é melhor que ser vereador?”.
“Não sei... Acho que tem mais poder,?”.
“Mas ele tem mais chance de perder”.
“Bom, mas foi o que eles combinaram lá no partido... E ele me contou que
o que ele quer mesmo é concorrer pra deputado federal e ir pra Brasília daqui a
dois anos”.
“Lá é melhor que São Paulo?”.
“Eu nunca fui a Brasília, meu amor. Mas lá é que fica o poder”.
“E você? A gente teria que ir também?”.
“Não sei, não sei se ele vai querer que eu continue trabalhando com ele.
Pode ser também que eu fique cuidando das coisas por aqui, né?... Você gostaria
de morar em Brasília? Você teria que terminar a faculdade aqui antes”.
“Eu prefiro que a gente fique aqui”.
“Bem... Isso pode acontecer daqui a mais de dois anos, então nem
adianta ficar imaginando agora o que pode acontecer amanhã, porque tudo pode
ser diferente. Vai ser como tiver que ser”.
Alguns dias depois, Washington estasentado numa das mesas do pátio
do colégio, de pernas estendidas. Helena, depois de pegar uma coca na cantina,
vai acender um cigarro e caminhar pelo pátio até chegar junto a ele.
“Tudo bem?”.
“Tudo”.
“Lembra de mim?”.
“Lembro”.
“A sua mão apresentou a gente na semana passada”.
“Eu sei”.
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“Ela me falou que você estudava aqui também”.
“É”.
“Você se veste sempre de preto?”.
“É”.
“Todo dia?”.
“Eu curto... por quê?”.
“Sei lá, achei maneiro... é punk, né?”.
“É”.
“Legal... e... você vai tentar o quê?”.
“Como assim?”.
“No vestibular... você vai tentar o quê?.
“Direito”.
“Legal... Você curte esse negócio de leis, de juiz?”.
“É”.
“É... Você já gosta de se vestir de preto,?”.
“É”.
“Interessante”.
“E você?.
“Vou fazer psicologia”.
“Legal”.
“Eu curto isso de, sei lá, querer entender as pessoas, sacou? Entender todas
as loucuras, a cabeça das pessoas... Porque, se você for ver, ninguém é normal,
todo mundo tem mil loucuras, né?”.
“É verdade”.
“Então”.
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A sineta vai tocar, indicando o fim do recreio. Depois de um instante de
silêncio entre os dois, em meio à movimentação das pessoas em torno,
Washington vai falar:
“Mas você vai estudar aqui na Anhembi-Morumbi?”.
“Vou, vou terminar o segundo grau aqui pra poder fazer uma faculdade”.
“Sabe que a Anhembi tem uma faculdade, né? Não é muito longe daqui”.
“É, eu sei sim”.
“E onde você tá morando?”.
“Tô morando aqui perto”.
“Aqui no bairro mesmo?”.
“É... A sua mãe que me ajudou a arrumar um lugar pra ficar aqui no
Brooklin e me trouxe nessa escola”.
“Legal”.
“Tá na hora de subir,?”.
“É”.
Os dois vão caminhar até a escada e subir para a sala de aula. Enquanto
caminharem, Washington vai perguntar:
“Mas de onde você é? Você é gaúcha?”.
“Não.. sou de Santa Catarina, de Videira... Conhece?.
“Não”.
“Pois é, sou de lá”.
“E você veio com a sua família?.
“Não, vim sozinha”.
“Sério?”.
“É”.
“Mas você tá sozinha? E teus pais tão te dando uma força?”.
Ela vai encará-lo por um instante, depois virar os olhos e dizer:
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“É, mais ou menos”.
“Mas já dá pra você ficar numa boa só com o trabalho?”.
“Mais ou menos... Você nunca conheceu as outras meninas que
trabalharam com a sua mãe não?”.
“De vez em quando tem uma ou outra ligando lá pra casa, quase todo mês,
mas faz tempo que eu só falava pelo telefone. Você foi a primeira que eu vi ao
vivo faz, sei lá, uns três anos, mais ou menos”.
“Entendi... essa aqui que é minha sala”.
“Então você já tá trabalhando direto aqui em São Paulo, é?”.
“É, mais ou menos... Depois a gente fala mais, tá? Tchau”.
Ela vai lhe dar um beijo curto no rosto e virar as costas.
“Tá”.
Quando estiver chegando em casa, Washington vai ver o carro importado
de Vital Brasil, com Luiz, o motorista, do lado de fora, junto ao banco da frente, e
Artur, o filho de 15 anos de idade de Vital, sentado no banco de trás, com o rosto
na janela. Washington, quando perceber que Artur lhe encara, vai fazer um aceno
rápido com a cabeça e em seguida baixar os olhos, enquanto o outro não moverá o
rosto. Quando estiver entrando na portaria do prédio, vai encontrar com a mãe,
que estará saindo bem vestida e maquiada, ainda que apressada.
“Oi meu filho. A Zefa já foi, mas deixou comida pra você, tá? Eu estou
indo com o Vital para uma reunião em Campinas, não sei se a gente volta hoje ou
amanhã. Depois eu ligo pra dizer, tá? Qualquer coisa, eu deixei um dinheiro na
mesinha da sala, embaixo do vaso”.
Após almoçar, Washington irá até uma pequena vila numa transversal da
Santo Amaro, onde vai comprar quatro trouxinhas de maconha. Depois vai passar
na locadora, devolver o filme da noite anterior e pegar três outros. Em seguida, i
a uma lanchonete, onde vai comer um cheeseburger com salada e tomar um copo
grande de coca-cola. Mais tarde, irá descer ao apartamento de João Batista, onde
vai fumar um baseado com o amigo e depois vai usar o computador para entrar
numa sala de chat na internet, o que irá ocupar sua atenção por alguns minutos.
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Washington vai usar o apelido B@dBoy e, após tentar conversar com alguém na
sala, vai começar a trocar ofensas com outros internautas quando começarem a
discutir futebol. Após sair da sala de chat e se desconectar da internet, Washington
vai jogar videogame. Depois de cerca de duas horas, João Batista vai interromper
seu trabalho para se arrumar e ir ao cinema com uma garota - Washington
voltará para o seu apartamento. Quando chegar lá, ele vai assistir a um dos filmes
que pegou, um filme pornô, com atrizes louras de seios grandes, e vai começar a
se masturbar poucos minutos depois do filme se iniciar. No final da noite, após
ver as novelas durante o jantar e o seriado a seguir, ele vai assistir a um outro
filme de ação, com uma história cheia de aventuras, passada em um universo
paralelo, com muitas figuras mitológicas, filmada com muitos efeitos especiais.
Na tarde do sábado seguinte, Washington estará no apartamento de João
Batista, sozinho no escritório, disputando uma partida no videogame de futebol
virtual da FIFA enquanto o amigo estará trabalhando na sala, quando o interfone
irá tocar. Depois de atender, João Batista irá ao escritório falar com Washington,
que não vai parar de jogar seu videogame enquanto o amigo estiver falando.
“Aí, o porteiro falou que tem uma mina embaixo chamada Helena, que
procurando pela tua mãe ou por você”.
“Entendi. Eu vou descer lá, então”.
“Não, eu mandei ela subir. Chega aí”.
Washington irá interromper a partida e levantar com rapidez quando João
Batista terminar de falar. Vai caminhar pela sala e acabará se sentando no sofá,
enquanto o amigo vai abrir a porta e receber Helena, que logo vai sair da porta do
elevador, entrar no apartamento e, em seguida a se apresentar a João Batista, vai
falar com Washington.
“Oi, desculpa te incomodar... Tudo bem?”.
“Tudo... Você queria falar com a minha mãe?”.
“É, você sabe dela?”.
“Ela ligou hoje cedo dizendo que só volta de Campinas de noite. Falou que
quem procurasse ela era pra ligar só amanhã”.
“Entendi. Mas ela deixou algum número de telefone?”.
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“Deixou. É assunto de trabalho?”.
“É, mais ou menos”.
“Mas o quê que você quer?”.
“Precisava falar com ela”.
“Ela tem celular, você tem o número?
“Já, esse eu tenho”.
“O chefe dela também tem, você conhece ele?”.
João Batista vai se intrometer:
“É o Vital Brasil, vereador”.
“Conheço. Eu tenho o celular dela, mas acho que pega em São Paulo.
Você podia me dar o telefone de onde ela tá?.
“Posso”.
“Então vamos lá?”.
“Você não prefere esperar aqui?”.
“Não, mas você se incomoda se eu for?”.
João Batista dirá:
“Pode esperar aqui, se quiser”.
“Pode ir”.
“Vamos lá. João Batista, vai com a gente?”.
“Não precisa”.
“Vou, vamos lá”.
Os três vão subir para o apartamento de Washington. No elevador, João
Batista vai comentar:
“Acho que até hoje eu só fui no teu apartamento uma vez, não é, garoto?”.
“É”.
“Cara, sua mãe deve ter uma impressão péssima de mim”.
“Sei lá”.
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“Por quê?”, Helena perguntou.
“Porque foi num dia que o Washington ficou meio mal... e a gente tava
bem doido, e ela percebeu, claro”.
“Mas vocês sempre foram vizinhos?”.
“Não. Eu cheguei aqui no prédio tem o quê?... Mês que vem faz dois anos,
é, dois anos”.
Eles vão sair do elevador e entrar no apartamento de Washington.
Enquanto isso, João Batista vai seguir falando.
“Mas de onde você é? Você é gaúcha?”.
“Não, sou de Santa Catarina, de Videira”.
“Ah, que legal. Lá é lindo, não é?”.
“Você conhece?”.
“Videira não. Florianópolis e as praias... A Guarda, Garopaba, a Praia
do Rosa”.
“Essa parte eu não conheci. Além de Videira eu conheci Blumenau,
Joinville e as cidades da região... Com licença”, diz ela.
“Entra aí”, vai dizer Washington.
“Com licença”, vai dizer João Batista.
“Peraí, deixa eu pegar o número”.
“Legal essa reforma que ela fez, né?”, vai comentar João Batista, “Acho
que você não viu lá na minha casa como é que o apartamento era originalmente. A
mãe dele arrebentou a parede que separava o quarto de empregada da área e
conseguiu fazer um quartinho maior pra ele”.
“É, eu não vi não”.
“É bom que assim ele fica num canto tranqüilo, depois da cozinha... Lá em
casa eu usei o espaço pra fazer meu escritório”.
“Olha, o telefone que ela deixou foi esse aqui”.
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Helena irá pegar a agenda que Washington vai lhe entregar, vai apóia-la na
mesinha da cozinha e então vai abrir sua bolsa, apanhar caneta e papel e anotar o
número.
“Tá bem, obrigada”.
Ela vai fazer um movimento de saída - Washington vai lhe perguntar
então:
“Você precisa de mais alguma coisa?.
“Não, obrigada. Agora eu me arranjo”.
“Quer ligar daqui?”.
“Não... Eu só vou ter que falar com ela mais tarde”.
Os três estarão entrando no elevador quando João Batista voltar a falar:
“Você não quer de repente ir com a gente lá pra casa?... Aí você pode ligar
de lá, de repente a gente pede uma pizza”.
“Não, obrigada, eu tenho que ir pra casa”.
“... fuma um baseadinho”.
Os três vão trocar olhares: Helena vai observar a reação de Washington,
que irá encarar João Batista.
“Você fuma?, vai perguntar João Batista.
O elevador vai parar e chegar ao andar.
“Às vezes... Mas hoje não dá, foi mal. Fica pra outro dia”.
João Batista vai abrir a porta e, enquanto der um beijo de despedida no
rosto de Helena, vai sugerir:
“Tranqüilo... Você morando aqui perto, não é? Então, outro dia a gente
combina de fumar um”.
“Beleza”.
Washington irá segurar a porta e olhar para ela antes de falar.
“Olha, se você precisar, me procura,?”.
“Tá, ‘brigada”.
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“Pra qualquer coisa... Me liga ou passa aqui”.
“Ok, pode deixar”.
Ela vai encostar seu corpo e abraçá-lo quando for lhe dar um beijo no
rosto. Em seguida, eles vão trocar um olhar rápido e ele vai sair do elevador.
Quando ele estiver entrando novamente no apartamento de João Batista, o
amigo irá comentar enquanto eles forem pegar copos de refrigerantes na cozinha:
“Que mina linda, hein meu?”.
“É, linda”.
“Pô, muito gostosa... E pareceu ser muito gente-boa. De onde é que ela
conhece a tua mãe?”.
“É, sei lá”.
“Você não sabe?”.
“Não... Mas acho que sim”.
“Mas parente ela não deve ser, porque a tua mãe é mineira, né?.
“É”.
“Será que é da família do teu pai? Não deve ser, né? De onde ele era?”.
“Meu pai era inglês”.
“Sério? Quem era? Era aquele que tinha uma foto com a tua mãe numa
mesinha da sala?.
“Era”.
“Entendi. Quantos anos você tinha quando ele morreu?”.
“Tinha acabado de nascer”.
“Pô... Foi mal. Você fica chateado de falar nisso?”.
“Não, beleza”, Washington vai responder, sem olhar para o amigo.
“E você tem contato com a tua família inglesa?.
“Não... A minha mãe disse que perdeu, que nunca conheceu eles”.
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“Pô, meu, você tem que recuperar isso. Com isso, hoje em dia você podia
pedir cidadania européia”.
“É, né?”.
“Claro... podia ir morar na Europa se quisesse. Se bem que você não
tem a menor cara de inglês, né?”.
“É”.
“Pô, você tinha que ter saído mais parecido com teu pai. Você não fala
inglês não?”.
“Não”.
“Ah, mas estando lá você pega rapidinho... Foi ele que te deu teu nome?”.
“Sei lá, acho que foi”.
“Engraçado que eu pensava que Washington é um nome mais americano...
Que não era inglês, entendeu? Porque é o nome da capital dos Estados Unidos”.
“É, eu lembro. De repente foi isso e eu confundindo... Eu lembro que
minha mãe me disse que achava um nome bonito”.
“É, e foi o nome de um presidente americano também. Mas ninguém deve
entender direito... Ficar soletrando pra todo mundo: “dábliu, a, éssi, agá”... Meu,
deve ser um saco pra soletrar isso. Fala a verdade, ninguém deve saber escrever
direito, não é?”.
“É”.
“Bem... Então parente do teu pai a minao é”.
Washington não irá responder ele vai se sentar em frente ao computador
e voltar a jogar a partir do ponto em que havia parado.
“E a tua mãe arrumou um trampo pra guria no escritório do vereador?”.
“Sei lá”.
“Onde é o escritório dele?”.
“Na Berrini. Mas a minha mãe o trabalha no escritório dele, ela trabalha
num lugar perto da Cardoso de Melo”.
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“Onde?”.
“Numa ruazinha lá, eu nunca fui”.
“Mas tua mãe não é tipo secretária do cara?”.
“Mais ou menos, ela é mais particular, é tipo cuidar da agenda dele. Ele
tem outra secretária no escritório da Berrini, a Fátima”.
“Saquei. Mas e essa Helena, você conhecia essa mina daonde?”.
“Ela entrou pro cursinho da Anhembi”.
“Saquei”.
“É, tá terminando o segundo grau”.
“E você trocou uma idéia com ela por lá?”.
“Mais ou menos”.
“Saquei”.
Washington vai se distrair e ser derrotado pelo computador no joguinho
seu personagem vai morrer ao ser atacado pelas costas por um monstro.
“Ahhh”.
Em seguida vai se levantar, despedir-se de João Batista e irá voltar a seu
apartamento. Vai chegar, abrir um pacote e comer alguns biscoitos. Depois, irá se
sentar em frente à tevê e assistir a um filme pornô.
Em certo momento da madrugada, quando já estiver deitado, sua e vai
entrar em casa acompanhada de Vital Brasil. Apesar de fazerem pouco barulho na
chegada, Vital vai parar de murmurar assim que Mary fechar a porta que separa a
cozinha do quarto de Washington, que vai poder escutar a conversa dos dois.
“Mas foda. Foi o que eu te falei, agora ninguém sabe pra quem vai
sobrar nem quando a poeira vai baixar”.
“Mas e? Você acha que resolve logo?”.
“Sei lá, ! Esse filho da puta não sabe cuidar da própria mulher, olha o
que acontece. Enquanto essa maluca, essa imbecil estiver falando tudo isso, pode
sobrar pra qualquer um”.
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“É?”.
“Claro. E agora a eleição vai ser um tremendo salve-se-quem-puder, com
um prefeito querendo se reeleger enquanto é denunciado por corrupção pela
própria esposa. Isso se não der uma merda maior”.
“Mas você acha que tem motivo pra se preocupar?”.
“Não sei, minha querida. Essa mulher maluca resolveu espalhar lama pra
todos os lados. Vamos ver como é que o pessoal vai reagir amanhã com as
declarações nos jornais. Se derem crédito a ela...eu não sei”.
“Você ainda muito tenso, né?”, ela vai dizer, e em seguida vai servir a
ele um copo de uísque com gelo: “Esquece isso”.
“Hmm, bom, hoje eu tô precisando de uma massagem mesmo”.
“Vem cá, então”.
Depois de algumas horas, Washington vai se levantar, passar pela cozinha
e pela sala e seguir até o banheiro. Dentro dele, poucos minutos depois vai ouvir a
porta do quarto de sua mãe se abrindo e a voz de Vital, que de início estará apenas
murmurando:
“Só vou te ligar amanhã à tarde, então aproveita pra descansar”.
“Tá, pode deixar”.
“E, olha, lembra que eu vou ficar com meu filho no sábado, se marca
com essa guria nova”.
“Ok, ela já me ligou hoje”.
“Então toma aqui uma grana pra preparar tudo”, ele vai dizer quando pegar
um chumaço de notas no bolso do paletó – “Ela é bonitinha?”.
“É sim, bem bonita, você vai gostar”.
“Que bom. Mas essaé pro Artur”.
“Olha só, quem diria?... Vai abrir mão?”.
“É... Você acha que ela tem futuro?.
“Ah, não sei... Você quer saber na profissão ou na vida?”.
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“Nas duas”.
“Na profissão se quiser ela tem, a menina é linda. Agora, na vida... Ela a
parece decidida, mas você sabe como é”.
“Mas, se for decidida, a mulher pode até usar a profissão pra dar certo,
né?”.
“Ah, mas isso o é pra qualquer uma. Elas ficam todas achando que uma
hora vão arrumar um marido rico”.
“Bom, mas você mesma...”.
“Fala baixo, por favor”.
“Desculpa. Mas eu nem ia falar disso, ia dizer que você mesma já me
contou de uma guria que você me apresentou e que depois casou com um ricaço
francês, lembra?.
“Ah, mas essa garota você lembra dela, ela era um negócio de bonita, né?
E isso de conhecer um gringo é tirar a sorte grande, é uma em um milhão, disso eu
sei muito bem”.
“Fala a verdade, se não fosse esse nosso esquema ia ficar ruim pra você,
não é, meu amor?”.
“É, Vital, eu sou a amante que você tem vergonha, né?”.
“Não é assim”.
“Ainda fico arrumando menina novinha pra vocês. Melhor que um marido.
E você ainda me vem com essa conversa... Obrigado, viu?”.
“Ô, Mary, nem vem”.
“Não, mas tudo bem, você sabe que eu brincando. Ia ser pior de outro
jeito, né?”.
“... Mas então essa menina nova tem muito futuro pela frente na
profissão?”.
“Se ela quiser”.
“E por trás também, né? bem, brincadeira. Mas então, o futuro depois a
gente vê”.
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“Sei. Você não presta, Vital”.
“É, e é por isso que gostam de mim”, ele irá dizer, antes de dar um beijo de
despedida na boca de Mary e, em seguida, sair do apartamento. Ela então vai se
servir de um copo d’água e irá voltar para o seu quarto. Somente alguns instantes
após ela fechar a porta do quarto é que Washington vai sair do banheiro, em
silêncio.
Em certos momentos dos três dias seguintes, segunda, terça e quarta-feira,
Washington irá avistar Helena no cursinho, mas, mesmo trocando acenos, não vão
se falar. Na quinta-feira, quando ele estiver na fila para comprar um sanduíche na
cantina, ela vai se postar atrás. Ele irá cumprimentá-la.
“Tudo bom?.
“Tudo. Desculpa ter te incomodado no sábado”.
“Que isso, não incomodou não”.
“Ah, que bom”.
Vai chegar a vez dele comprar a ficha de um cheeseburger e uma coca-
cola. Ela vai fazer o pedido dela em seguida, e depois vai ter dificuldade em
chamar a atenção do balconista quando este estiver preparando o sanduíche de
Washington.
“E aí, cê tá morando legal?”.
“Tô, tô sim...pra me virar”.
“Da hora... falou que é aqui perto, né?.
“É, mais ou menos”.
“Em que rua que é?.
“Eu numa ruazinha chamada Los Angeles, sabe qual é? É uma que
cruza a Pensilvânia e a Padre Antônio José dos Santos”.
“Sei, sim. Não é uma que muda de nome?”.
“É, mais ou menos, depois da Padre Antônio tem uma outra rua que se
chama Nova Orleans”.
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O atendente vai chegar com o sanduíche dele, que vai pegar a comida e
continuar a falar.
“Pô, então é aqui do lado, né?”.
“É, é sair aqui da Nova Iorque e descer dois quarteirões da
Pensilvânia”.
“Mais perto que a minha casa”.
“Ah, mas você também mora aqui pertinho”.
“É, mas eu tenho que descer a Nova Iorque inteira até a Kansas, e depois
descer a Kansas toda, atravessar a Hípica inteira, até chegar na minha rua”.
O atendente vai chegar com o sanduíche dela.
“Tinha que ter uma Rua Washington, né?”.
“Como assim?”.
“Ah, com esses nomes americanos todos, tinha que ter também uma Rua
Washington. Aí você ia poder morar nela”.
“É”.
“Mas agora você tá bem com a sua mãe na Capimirim mesmo, né?”.
“Você vai subir pra sala?”.
“É, eu preciso pegar umas coisas que estão na minha mochila. Depois a
gente se fala. Um beijo”.
“Tchau”.
Quando chegar em casa, Washington vai encontrar sua mãe deitada no
sofá, maquiada e bem-vestida como sempre.
“Oi, meu filho. Como foi a aula?.
“Legal”.
“Gente, me deu um cansaço... Bom, mas eu tenho que levantar e dar um
pulo no escritório do Vital. Washington, você me faz um favor? Você pode ligar
para o escritório do Vital e dizer para a Fátima que eu vou passar de carro na
esquina da Berrini daqui a dez minutos?.
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“Tá bom”.
“Meu filho, você ia ficar chateado se a gente tivesse que se mudar?”.
“Pra onde?”.
“Sei lá, sair de São Paulo”.
“Pra quê?”.
“Não sei. Estão acontecendo alguns problemas com o trabalho do Vital,
ele pode não se reeleger no final do ano... E eu não sei se eu vou poder
continuar trabalhando numa boa com ele no ano que vem... Quer, dizer, claro que
eu vou, mas...”.
“Não, por mim numa boa”.
“O importante é que a gente fique bem,? Mas não se preocupa não, que
vai dar tudo certo”.
“Tá”.
Ela vai apanhar a bolsa, tomar um copo d’água e beijar a testa do filho
antes de abrir a porta para sair de casa. Mais tarde, ele i até a casa de João
Batista usar a internet. Ele irá entrar numa sala de chat com imagens explícitas de
sexo de todas as modalidades, em que acabará trocando mensagens com alguém
com o apelido Gata Acompanhante depois de algumas perguntas sobre
localização e preço de serviço, Washington, aliás B@dBoy, vai enviar sem parar
mensagens com o texto “puta! puta! puta! puta! puta! puta! puta! puta!” para a tal
Gata Acompanhante por alguns minutos, ase cansar, desconectar-se da internet
e começar a jogar Doom 2.
No dia seguinte Washington vai percorrer praticamente toda a área do
colégio, e Helena não estará por lá. Depois da aula, ele vai caminhar pela Padre
Antônio José dos Santos até chegar no trecho entre a Los Angeles e a Nova
Orleans. Ele irá olhar por alguns minutos para a Los Angeles antes de seguir para
casa, caminhando pela Rua Ribeiro do Vale. Depois do almoço, sua mãe vai ligar
para avisar que estaviajando e que voltará no dia seguinte. Ele vai passar a
tarde em casa, ora assistindo à televisão, ora deitado sem dormir, no sofá e depois
em sua cama. No início da noite, irá comprar trouxinhas de maconha na
transversal da Santo Amaro. Depois, seguirá novamente até a Rua Los Angeles,
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97
no ponto entre a Pensilvânia e a Padre Antônio José dos Santos. Depois que
chegar, não vai ficar mais do que dez minutos até voltar a caminhar em direção à
sua casa.
No dia seguinte, quando sua mãe chegar, Washington não vai sair do
quarto ela vai comprovar com o termômetro que ele está com febre. No
domingo à noite, quando ele estiver assistindo a um programa de debate esportivo
na televisão, sua mãe vai atender a um telefonema de Vital.
“Oi... É, eu soube sim... Mas ficou ruim assim?... Não, não li tudo, mas o
porteiro me mostrou... Na tevê, é? Que merda... E isso vai sair amanhã?... Mas
deve dar pra dar um jeito, né?... Não, claro, tudo bem. Eu tô em casa, pode vir”.
Vital irá chegar ao apartamento algumas horas depois, cerca de dez da
noite. Assim que ele entrar, Mary vai pedir a Washington que vá para o quarto.
“Desculpa, mas o Vital tem que tratar de alguns assuntos de trabalho com
a mamãe”.
Assim que Washington fechar a porta da cozinha, os dois vão começar a
conversar. O rapaz não vai sair da cozinha, onde poderá escutar a conversa,
mesmo que não muito bem.
“E aí, tudo bem?”.
“Ah, tudo bem. Eu vou ter que agüentar alguns processos na justiça e uma
porrada de jornalistas falando mal de mim por uns dois anos, mas tudo bem. No
fim ninguém vai preso nessa porra mesmo”.
“Mas e a eleição, o quê que vocês decidiram?”.
“Eu vou tentar a reeleição pra vereador mesmo. É mais tranqüilo agora”.
“E por quê que você resolveu viajar assim?”.
“Eu tenho umas coisas que eu preciso tirar do país”.
“É grana?”.
“Eu tenho que fazer isso logo, pra evitar confusão... combinado com
uns amigos do aeroporto, eu vou sair com meu filho pra Europa, pra França. Lá a
gente já pega uma outra passagem pra Suíça”.
“E fica lá até a poeira baixar?”.
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“E qualquer coisa, é só uma viagem de alguns dias com o meu filho”.
“Quando você vai?”.
“Depois de amanhã, às sete da manhã”.
“Mas você vai fugir de vez?”.
“Claro que não, minha filha. Você acha que eu sou burro de não voltar pro
país?”.
“Mas a genteo vai mais poder manter o nosso esquema, né?... A
imprensa pode acabar descobrindo”.
“Não se preocupa não, que vai dar tudo certo. Fica tranqüila, que eu não
vou te deixar na pior não. Olha, tem aqui uma grana que deve te garantir por pelo
menos dois meses. Eu vou voltar bem antes disso, eu tenho que fazer campanha
para a minha reeleição ainda esse ano, meu bem”.
“Tá bom”.
“E outra coisa, eu quero que você procure aquela menina que você
apresentou ao Artur anteontem. Pergunta pra ela se ela não quer ir com a gente pra
ficar com meu filho, que eu pago tudo, ok?”.
“Só com o teu filho?”.
“Claro, deixa de ser maluca”.
“Mas e se ela não tiver passaporte, Vital?”.
“Me descobre isso amanhã cedo e se precisar pega os documentos dela,
que eu tenho uns amigos que resolvem isso ao final do dia”.
“Então tá bom”.
“Diz pra ela que ela vai gostar, eu pago tudo na viagem e também pago
como se fosse trabalho”.
“E se o Artur cansar dela?.
“Eu pago tudo, mesmo quando ele cansar, e mando ela de volta se ele
quiser”.
“É, é bom negócio pra ela. De repente no final ela nem volta, fica por lá
pela Europa pra tentar arrumar a vida”.
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“É... O Artur ficou maluco pela guria, parece que ela é um negócio”.
“Eu te disse que ela é muito bonita”.
“Maravilha, quero mais é que meu filho se divirta. Avisa pra ela que a
gente vai sair de helicóptero do prédio da Berrini pra Guarulhos às quatro e
meia da madrugada de amanhã pra terça”.
“Tá bem em cima”.
“A gente dá um jeito”.
“Eu levo ela lá, se for o caso”.
“Ótimo”.
Vital vai sair em seguida, e Mary estará telefonando para Helena no
momento em que Washington voltar para o seu quarto.
No dia seguinte, Washington não irá encontrar Helena no colégio. À tarde,
vai remexer no armário da mãe até achar o envelope com dinheiro – vai tirar de lá
pouco menos da metade. Irá em seguida à transversal da Santo Amaro para
comprar novas trouxinhas de maconha e fazer um novo pedido: um revólver. Dois
dos traficantes locais lhe oferecem esquemas diferentes – um fala de um amigo no
Bairro do Limão, outro diz a Washington que pode levá-lo à casa de uns amigos
no Campo Limpo. Washington vai aceitar a oferta deste segundo e irá acompanhá-
lo até um apartamento de quarto e sala na Rua Fonseca Brasil. Lá, depois de uma
espera de quase duas horas, Washington terá que mostrar o dinheiro antes de ver
os produtos – e vai comprar a pistola mais barata disponível, uma de calibre 38, já
carregada com seis balas.
De volta ao Brooklin, vai caminhar pela Rua Pensilvânia até a Los
Angeles, onde vai virar e caminhar lentamente até a Padre Antônio dos Santos.
Em seguida, vai caminhar para casa. No caminho, vai comprar um cachorro-
quente recheado e uma lata de refrigerante num vendedor ambulante.
chegando, vai ouvir o recado de sua mãe na secretária eletrônica: “Washington,
sou eu, queria saber como você e avisar que vou chegar tarde. se estuda um
pouco, tá? Um beijo e durma bem”.
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Ele vai assistir à programação da televisão por algumas horas quase
todos os canais já estarão fora do ar quando ele desligar o aparelho. Vai então sair
de casa, com a arma no bolso.
Washington irá caminhar pela Rua Kansas até chegar na Avenida Luís
Carlos Berrini, por onde vai andar ainda alguns metros a chegar à torre
comercial em que fica o escritório de Vital Brasil. Lá, vai entrar e falar com o
vigia.
“Boa noite, a minha mãe trabalha com o Vital Brasil e pediu que eu viesse
aqui pegar uma coisa com ele”.
“Que coisa?”.
“Uns documentos de trabalho. Ele está aí, não está? Ou esta vindo? Ela me
falou que ele estaria aqui, amigo”.
“Como você se chama, garoto?.
“Wellington”.
“Você tem algum tipo de identificação?”.
“Só minha identidade”.
O vigia vai olhar a identidade por alguns instantes e dizer:
“Tá, vai , o escritório dele é no treze... Mas parece que ele ia usar o
heliporto no terraço. Não sei se ele está aqui não, mas se o estiver você
volta aqui”.
“Tá bem, pode deixar”.
Washington vai subir até o décimo-terceiro andar – não haverá ninguém lá.
Ele vai subir então direto para o terraço, que estará vazio, também sem ninguém
por perto. Washington vai escolher um lugar para se sentar, próximo às antenas de
televisão, e vai ficar remexendo no revólver enquanto esperar. Depois de algum
tempo, um helicóptero vai aterrissar na área do heliporto. O piloto vai abrir as
portas, sair e dar um giro em torno da máquina, e em seguida voltará a se sentar
em sua cadeira, deitando-a um pouco para descansar.
Cerca de meia-hora depois, quando o sol ainda oculto estiver começando a
iluminar o céu, vão chegar ao terraço Vital Brasil, seu filho e o motorista Luiz,
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que carrega um carrinho com as malas dos dois. Washington vai descer
lentamente os dois lances de escada que separam o heliporto da área das antenas
de televisão.
“Porra, a Mary ainda não aqui? tá na hora, caralho! A gente tem que
ir embora”, irá dizer Vital.
“Não”, Washington vai dizer, empunhando a arma, alguns instantes antes
de sua mãe e Helena abrirem a porta e entrarem no terraço.
“Washington?”, Vital vai dizer.
“A garota não vai”.
“Que porra é essa?”.
“Washington, meu filho, o que você está fazendo?”, sua mãe vai dizer.
Luiz vai começar a caminhar na direção de Washington. Vital vai atrás
dele. Washington vai começar a recuar.
“Ela não vai e você não vai levar a tua grana. Pára ou eu atiro”.
“Cala a boca, moleque, abaixa essa merda!”, Vital vai dizer.
“Meu filho, por favor”, Mary irá dizer, enquanto começa a correr na
direção do filho.
Washington, andando lentamente para trás, vai olhar para Vital,
enquanto Luiz irá se aproximando.
“Washington, deixa de ser louco!”, vai gritar Helena, largando a mochila
no chão.
“Larga essa merda, seu filho de uma puta! Larga essa merda que você não
tem coragem de usar”, vai dizer Vital Brasil.
Washington vai se encostar no parapeito do terraço. Luiz vai dar um salto
e tentar arrancar a arma das mãos de Washington. O revólver vai disparar,
acertando o capanga no pescoço. Ele vai cair, e Washington vai abaixar as mãos
com a arma. Helena vai gritar e se agachar, protegendo-se atrás da sua mochila.
“Não!”, irá gritar Mary.
Vital vai dar um chute na mão de Washington, tirando a arma dele.
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“Pai!”, vai gritar Artur, e irá correr para bater em Washington.
Então Vital vai acertar um soco no rapaz e outro em seguida, fazendo o
garoto cair no chão. O piloto do helicóptero vai sair da nave e se afastar da área.
“Pára, Vital!”, dirá Mary, tentando segurá-lo.
Artur, no entanto, não vai parar vai acertar um chute na boca do rapaz e,
apesar de Mary pular sobre ele, um outro chute na barriga. Mary vai tentar pegar a
arma, mas Artur vai apanhar antes.
“Larga!”.
A arma vai disparar, e o disparo vai acertar Mary na barriga, um pouco
acima da perna direita. Ela vai fazer um movimento zonzo para o lado até se
apoiar na gradezinha do parapeito. A grade vai ceder, Mary vai perder o equilíbrio
e vai cair do alto dos vinte andares do prédio.
“Mãe!”.
Washington vai avançar sobre Artur e disputar com ele a posse do
revólver. Apesar da coronhada que tomará de Vital, Washington vai conseguir
derrubar Artur e, com o revólver prensado entre as quatro mãos, ele conseguirá
dar um tiro na bochecha do rapaz. A cabeça de Artur vai girar para o lado,
enquanto Washington vai apanhar a arma e dar um pulo para trás.
“Artur!”, Vital vai gritar. O garoto vai se debater ainda por alguns
instantes e depois parar de se mexer. Vital vai gritar e avançar para cima de
Washington.
“Seu filho duma puta, você matou meu filho! Filho da puta! Você vai se
fuder, seu merda”.
Washington vai acertar dois tiros à queima-roupa na cara do vereador.
“Filho da puta é você, caralho!”.
Washington vai se desvencilhar do corpo agonizante e, todo sujo de
sangue, irá olhar para Helena, que vai começar a chorar. Ele vai abraçá-la e vão se
beijar, chorando. O piloto vai aproveitar a distração dos dois para correr até a
porta de saída.
“Que barulho foi esse?, ela irá dizer.
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“Foi o barulho da porta. Caralho, a porra do piloto!”.
“Hein?”.
“Vamos, vam’bora logo, nem acredito que ainda não tenha chegado
ninguém aqui”.
“Pra onde?”.
“Pra longe daqui, rápido. Me ajuda!”.
Ele vai se levantar e remexer em uma pasta da bagagem de Vital, até
conseguir abri-la e ver uma pequena fortuna em notas de dólar. Vai fechar de
novo a pasta, caminhar até o corpo de Vital, pegar sua carteira e tirar dela todo o
dinheiro guardado. Depois vai pegar a mochila de Helena e botar nas costas.
Os dois vão descer até o terceiro andar de elevador, descendo os últimos
andares pela escada. Vão encontrar a saída pela garagem ao saírem, na porta da
frente do prédio já haverá dois seguranças olhando para cima e falando no walkie-
talkie com mais alguém sobre a chegada da polícia.
O casal irá caminhar até uma transversal, em que vão conseguir apanhar
um táxi, que vai pegar o caminho para a Marginal do Rio Pinheiros, ainda sem
muito engarrafamento, até a rodoviária. Lá, os dois vão discutir para onde ir, se
para Brasília, para o Rio de Janeiro ou para Salvador. Ao tentarem comprar
passagens para Salvador, logo descobrem que o passagens para depois do
ônibus das seis da manhã, que terá acabado de partir. Irão resolver comprar então
passagens para alguma cidade do interior de São Paulo, de onde poderão seguir
para outra capital nos dias seguintes comprarão então a passagem para Bauru,
no ônibus que parti em dez minutos. Vão entrar no ônibus e sentar-se,
carregando junto a eles a maleta de Vital. O ônibus irá tomar seu rumo
pontualmente. Vai sair das ruas de São Paulo em poucos minutos, tomando uma
estrada ensolarada que parece não ter fim.
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CONCLUSÃO
O futuro é o tempo verbal das predições, e isso me fez usá-lo na narração
dos movimentos de Washington. Mais do que transmitir uma crença de “destino
inescapável” dos personagens, isso me pareceu trazer ao conto um ar de fábula
sombria, que me pareceu lhe cair bem. Assim, o texto ganhou um tom um tanto
solene, de todo modo mais solene do que os demais; isto me interessou porque me
parecia que a atmosfera sombria convinha à trama e aos personagens, para que se
assemelhasse à profecia de uma miúda tragédia do subdesenvolvimento.
Acredito que o desenvolvimento de um protagonista forte - não
exatamente por apresentar uma personalidade forte, mas no sentido de dominar a
ação dramática – faz de Washington um texto mais próximo de Guerra Fria
Tropical que de O Velho e o Novo. Dessa forma, talvez estes dois tenham uma
afinidade maior com minhas intenções, já que a história secreta de que fala
Ricardo Piglia, em ambos, parece se desenvolver na mente dos protagonistas, só
vindo à tona a partir de decisões inesperadas que eles tomam (como acontece com
o jogador suicida imaginado por Tchecov e usado como referência por Piglia).
Não vejo necessariamente maior afinidade com a regra de narração, mas sim com
a disposição de instigar ao trabalho a imaginação dos leitores. O que quero notar é
que, sob este aspecto, a própria estrutura do enredo é decisiva para criar este
estímulo. Parece-me que o enredo de O Velho e o Novo não se predispõe a isso
com a mesma riqueza, simplesmente porque não é das dúvidas do personagem
central que o conto busca força. Devido à relação que eu quis estabelecer com
certos ruídos da tradição (como versões mal-contadas da História, diálogos mal-
traduzidos, de certo modo uma idéia de progresso engasgado”), o conto não
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poderia ter a curva das paixões (ironizada por Robbe-Grillet
1
) que movimenta os
protagonistas dos outros contos.
Lembro então novamente da diferença entre o obscurecimento das ações
presente nas ficções de Robbe-Grillet e a visibilidade que procurei sugerir nestes
contos, e me parece que a “curva das paixões” dos protagonistas é justamente o
que justifica a escolha desta perspectiva diante das ações. Como o escritor francês
apontou, a descrição psicológica dessa curva foi a força motriz do romance de
uma certa época. Se em um determinado momento pareceu necessário ao francês
romper com essa força motriz, de modo que nem mesmo os movimentos dos seus
personagens pudessem ser explícitos, noto que a escolha de o contar senão as
ações põe a lógicas das paixões dos personagens em outra esfera, a da imaginação
do leitor. Os leitores têm para si não a possibilidade de se identificar com um
outro construído e simpático, mas apenas possíveis outros a serem imaginados. E,
se o relato das ações puder sugerir o mistério definitivo que sustenta a curva das
paixões, seja esta regular ou não, se este mistério ainda puder levar a imaginar
como que pode ser o que não se conhece, então este talvez seja um caminho para
que se torne possível voltar a contar. Pois, afinal, é para criar novos mundos que
existe a vontade de contar.
Para concluir este exercício literário de criação e anotação, devo lembrar
que tudo poderia ser diferente nos textos ficcionais cada palavra, cada frase,
cada ão. Isto se trata de uma obviedade, decerto. Mas a afirmação da criação
depende desta obviedade que, na verdade, é um paradoxo: tudo poderia ter sido
criado de outro modo; mas, se fosse criado de outro modo, seria outra coisa. Se
algo é criado como é, isso não se deve somente ao acaso nem somente à lógica. A
que se deveria cada movimento e cada palavra, no final das contas? Isto está no
reino do indizível. Conforme já comentei anteriormente, Poe, a seu modo, apostou
na justificativa racional, ao contrário de Cortázar, como comentei no capítulo
“Ciência do narrador”. Juan Bosch, contista nascido na República Dominicana,
em seus Apontamentos sobre a arte de escrever contos escreveu que: O contista
cria personagens, e logo estes personagens se rebelam diante do autor e agem
1
ROBBE-GRILLET, Alain, “Sobre algumas noções obsoletas”, In: Por um novo romance, p. 8.
Cf. citação apontada pela nota nº 18 deste trabalho, presente no capítulo “Ciência do Narrador”.
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conforme sua própria natureza.
2
Umberto Eco, por sua vez, propôs uma
compreensão nuançada do assunto, analisando os compromissos firmados entre
autor, personagem e leitor, ao falar da construção do enredo de O Nome da Rosa e
de um personagem específico (o assassino) cuja simples existência, segundo ele,
obrigava a trama a seguir determinados caminhos:
Não se pense que esta seja uma posição “idealista”, como
se alguém dissesse que os personagens têm vida própria,
enquanto o autor, como que em transe, os faz agir segundo
o que eles lhe sugerem. Besteira típica de redação de
vestibular. Acontece que os personagens são forçados a
agir segundo as leis do mundo em que vivem. Ou seja, o
narrador é prisioneiro de suas próprias premissas.
3
No entanto, cabe acrescentar ao comentário do escritor italiano que, uma
vez cumpridas, estas premissas, por natureza, oferecem ainda várias alternativas,
incontáveis.
Para dar um exemplo, lembro-me agora de um romance com proposta
semelhante, mas com regras e intenções inteiramente diversas. Refiro-me ao livro
O Selvagem da Ópera, de Rubem Fonseca
4
, em que o narrador do livro, ao
assumir explicitamente um parentesco com a escrita de cinema semelhante ao que
procurei (seu romance se apresenta como texto-base para um filme que se
feito), impõe-se regras bastante diferentes das que me impus, quase opostas. A
partir da justificativa de sugerir a, digamos, carga emocional de um filme
melodramático típico”, seu narrador se permite abusar de toda sorte de recursos
emotivos e psicologizantes. Fonseca o faz com ironia e propósitos bastante
interessantes, criando assim um subtexto a partir da comparação inevitável entre o
desejo que Carlos Gomes nutriu de fazer óperas segundo o modelo europeu e a
vontade do narrador de servir à produção de um filme tipicamente industrial. A
partir da construção dessa relação entre o universo do compositor de óperas e o
pretenso filme que o existe, com O Selvagem da Ópera o escritor comprovou a
atualidade dos conflitos culturais próprios do artista de um país subdesenvolvido
2
BOSCH, Juan, “Apuntos sobre el arte de escribir cuentos”. Disponível em
http://www.ciudadseva.com/textos/teoria/opin/bosch.htm
3
ECO, Umberto, Pós-escrito a O Nome da rosa, pp. 26-27.
4
FONSECA, Rubem, O Selvagem da Ópera, Rio de Janeiro: Companhia das letras, 1994.
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(sempre imprensado entre os modelos externos e a falta de estrutura de seu país de
origem) apresentados pela figura do compositor.
Não era essa a pretensão que eu tinha ao escolher as formas de Guerra
Fria Tropical, O Velho e o Novo e Washington ao contrário, não cabia à forma
narrativa esclarecer os sentimentos dos personagens, que a trama trata de sugerir e
cabe ao leitor imaginar.
A leitura do romance de Fonseca me deixou evidente isto que chamei de
obviedade e de paradoxo que a aproximação da literatura com os modelos
textuais de outras artes (peças e roteiros) pode se dar de maneiras diversas, não-
reduzíveis, com objetivos paralelos, transversos ou opostos. Para que haja criação,
basta-lhe que encerre um mistério próprio (como diz Piglia ao desenvolver sua
tese: Uma história pode ser contada de maneiras distintas, mas sempre um
duplo movimento, algo incompreensível que acontece e está oculto”
5
); e basta-lhe
também que haja a vontade de redefinir o que seja a criação literária, que exista a
procura da expressão necessária, única, concisa, memorável de que fala
Calvino.
6
Foucault comenta em certo momento que a literatura parece condenada a
falar cada vez mais de si mesma, percebendo que a literatura é uma linguagem
ao infinito, que permite falar de si mesma ao infinito“.
7
Procurei aqui restringir o
meu papel ao que me cabe: falar da busca dessa expressão, necessária, única,
concisa, memorável”, no aspecto em que essa busca me pareceu partilhável com o
leitor. A partir da leitura de textos propositivos de diversos escritores, tratei (como
Foucault já sugeria...) das questões que me interessavam sobre o que é a própria
literatura e a sua relação com outras artes e escritas; sobre as regras tradicionais e
as transgressões modernas do texto narrativo; sobre o que significa, o que permite
e o que obriga a forma do conto, da narrativa curta; sobre a possibilidade de
pensar a própria criação; e, finalmente, sobre a possibilidade do narrador-
observador levar o leitor a imaginar os personagens de um novo mundo, a
imaginar outros. Estas, de todo modo, foram as questões que me nortearam desde
5
PIGLIA, Ricardo, Formas Breves, p. 106.
6
CALVINO, Italo, Seis propostas para o próximo milênio, p. 61.
7
FOUCAULT, Michel, “Linguagem e literatura”, p. 155.
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o momento em que me predispus a procurar conciliar nesta dissertação a criação
ficcional e a discussão acadêmica.
Os contos que compõem este trabalho, de todo modo, não se restringem a
isso e apresentam outras questões, tanto entre si quanto cada um à sua maneira.
Eles ainda têm aspectos diversos que não cabe a quem escreveu explorar: alguns
são evidentes, como os temas relacionados a contextos histórico-políticos; outros
incluem percursos de estudo diversos (por exemplo, o estudo de mapas de São
Paulo e da Córsega; ou análises críticas de obras tematicamente aparentadas
cuja possível listagem é justamente um aspecto que me parece dispensável aqui).
Apresentei questões que me ocuparam enquanto procurei pensar a construção de
uma perspectiva e evitei falar dos sentimentos que procurava sugerir com os
textos. Procurei refletir sobre as escolhas que fiz para aplicar nos textos esta
perspectiva escolhida, não sobre as compreensões e sentimentos que estes contos
podem provocar. Quanto a isso, como já se disse, sinta quem lê.
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1992.
VIDAL, Jean-Pierre. La Jalousie, de Robbe-Grillet. Paris: Classiques Hachette,
1973.
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