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Sob este aspecto, vale notar que as bifurcações entre tramas evidentes e
secretas pensadas por Piglia encontram uma curiosa ressonância com a visão de
Foucault sobre a literatura. Na sua conferência Linguagem e Literatura, diz uma
frase a que já me referi (“toda obra diz o que ela diz, o que ela conta, sua
história, sua fábula, mas, além disso, diz o que é a literatura“) e, em seguida,
completa o seu raciocínio:
Acontece que ela não o diz em dois tempos: um tempo
para o conteúdo e um tempo para a retórica; ela o diz em
unidade. (...)
Ela vai ser obrigada a ter uma linguagem única e, no
entanto, bifurcada, uma linguagem desdobrada, visto que
ao mesmo tempo que diz uma história (sic), que conta
algo, deverá a cada momento mostrar, tornar visível o que
é a literatura, o que e a linguagem da literatura, pois a
retórica, outrora encarregada de dizer o que deveria ser a
bela linguagem, desapareceu.
3
Logo no início da conferência citada, Foucault diz uma frase bastante
interessante e intimamente ligada ao propósito deste trabalho: “Formular a
questão ‘o que é a literatura?’ seria o mesmo que o ato de escrever”.
4
É a
definição dos nossos tempos (pós-modernos, poderia dizer): trata-se de literatura a
partir do momento em que se pensa como tal. E a partir do momento em que é
lida como tal, é preciso acrescentar. Não é por acaso que o título deste ensaio faz
referência ao título de um dos capítulos do romance Se um viajante numa noite de
inverno, de Italo Calvino
5
: neste livro o escritor italiano faz uma fascinante
reflexão sobre, entre outras coisas, o papel que o leitor deve exercer diante de uma
narrativa literária – tema sobre o qual também Umberto Eco se debruçou em Seis
passeios pelos bosques da ficção. De certa maneira, como ambos os italianos
apontam, qualquer texto precisa que o leitor exerça seu papel de forma adequada
para tornar-se um texto literário – por outro lado, para que um texto seja literário,
ele precisa apenas ser feito para ser lido, e nada mais, como diria o famoso corvo.
Para que um texto seja literatura, e não uma peça escrita em função de outra arte,
3
FOUCAULT, Michel, “Linguagem e Literatura”, In: MACHADO, Roberto, Foucault, a filosofia
e a literatura, Pp. 146-147.
4
Idem, p. 139.
5
CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Planeta de Agostini, 2003.
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