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Cecilia Gusmão Wellisch
A invenção de Bispo do Rosario
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras da PUC-Rio, como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Letras.
Orientador: Prof. Dra. Pina Maria Arnoldi Coco
Rio de Janeiro
março de 2006
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização do autor,
do orientador e da universidade.
Cecilia Gusmão Wellisch
Formou-se em Artes Cênicas pela Escola de Teatro
Martins Penna, em 1986. É graduada e licenciada em
Letras (Português-Literaturas), pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desde 2002. Durante
a graduação, participou do programa de Iniciação
Científica, em Literatura Comparada, com bolsa para
pesquisa da agência de fomentos FAPERJ. É professora
de produção textual da Escola de Comunicação Crítica
do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro e da
ONG Nós do Cinema.
Ficha Catalográfica
CDD: 800
Wellisch, Cecilia Gusmão
A invenção do Bispo do Rosário / Cecilia
Gusmão Wellisch ; orientadora: Pina Coco.
Rio de Janeiro : PUC, Departamento de Letras,
2006.
133 f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado)
Pontifícia
Universidade Católica do Rio
de Janeiro,
Departamento de Letras.
Inclui referências bibliográficas.
1. Letras Teses. 2.
Arthur Bispo do
Rosario. 3. Cultura. 4. Artes. 5. Memória
Coco, Pina. II. Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro. Departamento de
Letras. III.
Título.
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Dedicatória.
Em meio ao ambiente embaçado pela fumaça de misto-quente da cantina
do Fundão, um certo professor, às vésperas da aposentadoria, falou-me sobre sua
forte sensação de desperdício do papel do mestre. Tentei reparar o sentimento dele
dizendo que, para mim, a jornada do conhecimento é cheia de pontos culminantes,
e a cada momento um mestre se torna para nós indispensável e inesquecível.
Este trabalho é dedicado, então, a todos os mestres da minha trajetória até
aqui, porque me são como “guardados”, espécie de código genético” do meu
pensamento. Deixarei registrados aqui somente alguns nomes, contudo, muitos
outros compõem esta lista:
Para Pina Coco, minha orientadora, por me oferecer direção e liberdade
dentro de um espaço de normas e limitações. Por isso, terminou também enredada
na trama de Rotação;
Para Ana Paula Kiffer, por me abrir vias de pensamentos, de sentidos, pela
linhagem de Antonin Artaud;
para:
Eduardo de Faria Coutinho,
Ary Pimentel,
Heidrun Krieger Olinto,
Antonio Carlos Secchin,
Cinda Gonda,
Ângela Garcia,
Armando Gens,
Tânia Brandão.
Aparecida Mendonça.
Para Daisy Maria Gusmão Wellisch, mestre de primeiras letras.
E, finalmente, ao Roberto Corrêa dos Santos, não por me ter provocado
com aquela conversa esfumaçada na cantina, mas por estar há tanto tempo, de
algum modo, cruzando o meu caminho de formação.
Agradecimentos
Às agências de fomento à pesquisa CAPES e CNPq, e à PUC-Rio, pelos auxílios
concedidos, sem os quais este trabalho não seria possível.
À Maria Cecilia Gusmão Wellisch, a grande amiga.
Aos amigos Maria Assunção, Mariana Maia, Sheila de Almeida Machado,
Eduardo Pinto, Leinimar Pires, Gláucia Soares Bastos, Cristiane Mello, Rogério
Freitas e Fernando Ferreira.
À Secretaria da PUC-Rio, com um acento especial à incansável Francisca Ferreira
de Oliveira, a Chiquinha.
Ao Marcelo da biblioteca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Aos gentilíssimos entrevistados: Luiz Camillo Osorio, Frederico Morais e
Luciana Hidalgo.
Resumo
WELLISCH, Cecilia Gusmão. A invenção de Bispo do Rosario. Rio de
Janeiro, 2006. 100 p. Dissertação de Mestrado. Departamento de Letras.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A invenção de Bispo do Rosario, potencializando as faces possíveis de
sentido da palavra “invenção”, evoca o ato criador e a descoberta, como operações
do autor e do leitor (receptor), simultaneamente. Trata-se, portanto, de Bispo do
Rosario como inventor e objeto de invenção. Na instância do objeto de invenção,
projeta-se a aventura da “descoberta” e da “tradução” de seu mundo, engendrado
pelo filtro da leitura, não apenas como um outro texto, mas como uma outra
realidade, dando ênfase à visão da escritura como superfície de alteração.
Três tomos organizam o trabalho: O Primeiro Tomo cumpre a invenção de
um espaço ficcional, no qual se dá o encontro de Arthur Bispo do Rosario,
Antonin Artaud – o qual é visitado para o assentamento teórico de algumas
importantes questões e Cecilia, a Cega. O encontro destes três personagens,
tendo em vista a encenação, colocará em jogo temas como o da representação, da
autoridade da linguagem e da potência criativa.
O Segundo Tomo conta a história da invenção de Arthur Bispo do Rosario
como artista, introduzido no circuito das artes plásticas, pelo crítico e historiador
de arte Frederico Morais. A trajetória de legitimação de Bispo como artista é
considerada por meio da análise de publicações da mídia impressa, encorpadas
com entrevistas realizadas, especificamente, para focar os pontos estratégicos
despertados pela leitura dos materiais selecionados.
Arthur Bispo do Rosario é, no último e Terceiro Tomo, apreendido como
inventor de um universo expressivo, sob a forja de minha análise, marcando, deste
modo, o caráter irremediável da escrita como invenção.
Palavras-chave
Arthur Bispo do Rosario; Cultura; Arte; Memória.
Abstract
WELLISCH, Cecilia Gusmão. The invention of Bispo do Rosario. Rio de
Janeiro, 2006. 100 p. MSc. Dissertation. Departamento de Letras.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A invenção de Bispo do Rosario, by potentializing possible senses of the
word “invention”, evokes the creative act and the discovery, as operations of the
author and the reader (receiver), simultaneously. By this way, Bispo do Rosario is
seen as an inventor and as an object of invention. In the scope of the object of
invention, are projected the adventure of the “discoveryand of the “translation”
of his world, engendered by the filter of the reading, not only as an other text, but
as an other reality, emphasizing the conception of the deed as surface of alteration.
This work is organized in three tomes: the first one relates to the invention
of a fictional place, in which occurs the encounter of Arthur Bispo do Rosario,
Antonin Artaud who is visited by the theoretical approach of some important
questions and Cecilia, the blind. The encounter of these three characters,
considering the theatrical performance, will put into play subjects like
representation, authority of language and creative potence.
The second one tells the history of the invention of Arthur Bispo do
Rosario as an artist, introduced in the sphere of the Fine Arts by the critic and art
historian Frederico Morais. The trajectory to legitimate Bispo as an artist is
considered through the analysis of press publications together with some
interviews, which were realized specifically to focus the strategic points awoken
by the reading of the selected materials.
In the last tome, Arthur Bispo do Rosario is apprehended as an inventor of
a expressive universe, in the perspective of my analysis, stressing, in this way, the
irrevocable mark of the writing as an invention.
Key Words
Arthur Bispo do Rosário; Culture; Art; Memory.
SUMÁRIO
Primeiro Tomo
1. Abertura, em si
2. Rotação
2
3 – 24
Segundo Tomo
1. Abertura
26 – 28
2. Urdimento
28 – 30
3. A apresentação
30 – 31
4. Pelos olhos do mundo dos vivos
32 – 33
4.1. “...eu digo, assim, sem empáfia nenhuma, que eu inventei o
Bispo...”
33 – 35
4.2. Fundação
36 – 48
4.3. Isto [não] é arte
48 – 54
5. Brilho, fama, riqueza terrena
54 – 57
6. Fome dos cupins e outros bichos: tragar – devorar – engolir
58 – 60
6.1. “El vampiro bajo el sol”
61 – 66
6.2. 46ª Bienal de Veneza
66 – 73
Terceiro Tomo
Roda
“EU VIM”
Urnas secretas
Tecelaria
Desfecho
75 – 81
82 – 86
87 – 91
92 – 97
98 – 100
Referências Bibliográficas
Bibliografia geral
II-
X
Dicionários
VI
Catálogos de exposições
VI-VII
Mídia impressa – arquivo MAM
VII-VIII
Sites na Internet
VIII
Documentos e ilustrações em anexo
IX-X
Entrevistas não publicadas
X
Anexos
Anexo 1: Release exposição Parque Lage
XII
Anexo 2: Carta MAM
XIII
Anexo 3: Capa CD Severino, 1994
XIV
Anexo 4: Contracapa CD Severino
XV
Anexo 5: Roda da Fortuna, de Bispo do Rosario
XVI
Anexo 6a: Ficha de doente
XVII
Anexo 6b: Farda “EU VIM”, de Bispo do Rosario
XVIII
Anexo 7: O.R.F.As, de Bispo do Rosario
XIX
Anexo 8:
“VOIS HABITANTES DA TERRA”, de Bispo do Rosario
XX
Anexo 9: Urna D Femi, de Bispo do Rosario
XXI
Anexo 10: Confetes, de Bispo do Rosario
XXII
Anexo 11: Desenho de Antonin Artaud. Cadernos de Rodez
XXIII
“(...) Tudo indica que a criação está muito mais próxima do perigo que do
conforto (...)”
Daniel Lins.
“Talvez você consiga dizer melhor a verdade na ficção.”
Pina Coco.
Primeiro Tomo
2
1. Abertura, em si
Às seis horas e dez minutos, do dia 27 de janeiro de 2006, acordei
sobressaltada de um pesadelo sinistro e típico: cheguei à PUC, no dia 14/03/2006,
às 14 horas soma que resulta em 3 –, dia e hora de minha defesa de mestrado,
dando-me conta de ter esquecido em casa todas as cópias da dissertação,
inclusive, as da banca. Entrei na sala marcada para a defesa, mãos vazias. A banca
em espessura de pedra, olhava em tom menor a minha entrada patética, ouvindo-
me dizer: “Não sei como pôde acontecer, mas esqueci tudo”, naquela cara
deslavada, sorrisinho repuxado; trágico.
Corri para fora do sonho, num só, respiração profunda, malsofrida.
Dividida entre o pesadelo e a realidade, pensei: “Não posso deixar isso acontecer
‘no dia’!”. Depois, recobrei, afinal, a instituição tem seus mecanismos e regras de
defesa contra gente do meu tipo. Tudo é entregue com antecedência, o pesadelo
não tinha a menor “condição de possibilidade”.
Pensei, contudo, no tema do pesadelo: o esquecimento: minha questão
recorrente, minha dor do pensamento. Havia, portanto, um elo de ligação entre
mim, Bispo e Artaud: a memória e seus apagamentos. Teto abstrato, o
esquecimento tem sido meu algoz. Pelas telhas rachadas da minha memória,
deixei fugir um pouco de sonho, contudo inventei um tecido de ação “mais-que-
possível”, um tipo de restauração capaz de preencher os brancos com os próprios
objetos que me escapam: as palavras.
“EU PRECISO DESTAS PALAVRAS . ESCRITA”, escreveu Arthur
Bispo, o mestre-de-obras, para eu concordar e, virada em servente, dizer, assim, o
mesmo. Vou com sua nave e com seu manto, vou representar.
Cecilia Gusmão Wellisch.
Bom divertimento.
3
2. Rotação
Personagens por ordem de entrada:
1. Artista – Arthur Bispo do Rosario: P. 3.
2. Cega – Cecilia: P. 3.
3. Homem – Antonin Artaud: P. 6.
4. Madame C.: P. 23.
Ação – Cenário.
A ação inicia-se à entrada de uma ambientação esférica, noturna. Céu
aberto, letrado. O teatro deve ser uma arena. A esfera cênica possui um balcão
superior feito de malha de ferro, constituindo o anel do meridiano celeste, onde
estão espalhadas as cadeiras para a platéia.
Integrantes da produção do espetáculo, com roupas negras, auxiliam a
entrada do público. O piso é pouco denso, coberto por uma lona bordada. Cento
e sessenta e cinco (165) letras estelares de prata são novelos de linhas (mistura
de linhas e encordoamento), riscando o espaço com múltiplas inserções. Uma
grande Roda de Bicicleta presa em um suporte de madeira ocupa o centro do
palco. Um homem negro está sob um foco de luz mortiça, vestido com uma farda
azul bordada em fios de ouro e restos, com a inscrição: EU VIM / 22 / 12 / 1938 /
MEI / NOITE
1
. Desenovela as letras soltas no espaço; com os fios, borda o
gigante tecido que é, para o cenário, chão.
Uma mulher cega, junto ao público, antes da entrada em cena, usa os pés
tateando o bordado em que pisa. Pelo tato, lê silenciosamente o texto bordado:
Cega (meia voz) MAIOR OBRA SOBRE A HISTÓRIA DE JESUS
CONTADA EM FASCÍCULOS RICAMENTE ILUSTRADOS QUE SERÃO
ENCADERNADOS E GRAVADOS EM OURO FORMANDO VOLUMES QUE
VÃO ENRIQUECER AINDA MAIS A SUA BIBLIOTECA UM LEGADO DE
BELEZA E CULTURA QUE VOCÊ E SUA FAMÍLIA NÃO PODEM
DEIXAR DE TER A PALAVRA DOS CIENTISTAS PESQUISADORES
CONSULTORES ESPECIALISTAS CATEDRÁTICOS AS MAIORES
AUTORIDADES NO ASSUNTO REALIZARAM ESTA OBRA INÉDITA E
INIMITÁVEL UM DOCUMENTO QUE TESTEMUNHA A PASSAGEM DE
JESUS PELA TERRA DE UMA FORMA DEFINITIVA EM CADA
FASCÍCULO UM TEMA COMPLETO CADA FASCÍCULO CONTERÁ UM
TEMA SOBRE A VIDA DE JESUS TRATADA SOBRE VÁRIOS ÂNGULOS
HIDALGO, L. Arthur Bispo do Rosário: o senhor do labirinto. 1996. Todas as citações dos bordados de
Arthur Bispo do Rosario serão apresentadas em caixa alta, ao longo da dissertação.
As falas de Arthur Bispo do Rosario utilizadas na dissertação apresentam-se, em sua maioria, como
atribuições feitas por pessoas de sua convivência ou entrevistadores. Trechos da entrevista concedida por
Bispo a Hugo Denizart, autor do filme, O prisioneiro da passagem, transcrita e publicada por Luciana
Hidalgo, no livro Arthur Bispo do Rosario: o senhor do labirinto, foram igualmente utilizados, não
constituindo essas falas, portanto, em atribuições. Logo, as falas atribuídas a Bispo serão citadas, conforme as
normas técnicas, pelo nome do autor do livro em que a fala está publicada, ano de publicação e número da
página em que as mesmas se encontram, a conferir.
4
PARA QUE OS FATOS SEJAM COMPREENDIDOS E ANALISADOS NUM
CONTEXTO GLOBAL INFORMAÇÕES BÍBLICAS HISTÓRICAS
ARQUEOLÓGICAS E ARTÍSTICAS PARA VOCÊ ENTENDER O MUNDO
NO QUAL JESUS TRANSMITIU SUA MENSAGEM E QUE NUNCA MAIS
DEIXOU DE SER OUVIDA PARA CRENTES EM NOME DE JESUS
MULHER O HOMEM EM SEU ÍNTIMO A MAIS RICA APRESENTAÇÃO
FARTAMENTE ILUSTRADA E RICAMENTE IMPRESSA EM PAPEL DA
MELHOR QUALIDADE ENFIM UMA OBRA É DIGNA DE SE CHAMAR
JESUS A CADA GRUPO DE 16 FASCÍCULOS SERÃO FORMADOS
VOLUMES DE RARA INSPIRAÇÃO PERPETUANDO O MAIS SAGRADO
DOS SENTIMENTOS A JESUS NA ARTE UM CAPÍTULO A PARTE AS
QUATRO PÁGINAS DE CAPAS DE CADA FASCÍCULO TAMBÉM SÃO
COLECIONÁVEIS NELA VOCÊ ENCONTRARÁ UMA AUTÊNTICA OBRA
DE ARTE AO TÉRMINO DA COLEÇÃO VOCÊ IRÁ ENCADERNÁ-LAS
FORMANDO UM VOLUME ESPECIAL JESUS NA ARTE ONDE
2
...
Cega Senhores, devo escrever uma história e estou cega. (voltando os olhos
para a frente e apontando para trás) Vejam! Tudo a dizer está sob meus pés,
entanto, nada posso ver. Vêem atrás de mim (em um giro do braço, aponta
para o homem bordando, seus olhos permanecem perdidos em direção ao
público) um homem costurando pensamentos? Trilho as linhas de seu bordado e
perco-me na cegueira indistinta deste universo infinito. Agora, quanto às
imagens... contrariamente, são elas que me espreitam.
A meio caminhar de nossa vida
Fui me encontrar em uma selva escura:
Estava a reta minha via perdida.
3
Dois homens persigo. Vasculho pistas de seus segredos solitários, tateando os
vetores de mil palavras tecidas, destecidas, mediadoras de mil sentidos, forças,
ações. Devo ligá-los em nove dias a contar daqui.
Ah! Que a tarefa de narrar é dura
Essa selva selvagem, rude e forte,
Que volve o medo à mente que a figura.
4
Artista (passa a mão pela cabeça). Ah! Eu vou entrar em transformação. Eu
vou entrar em transformação
5
... (dá um giro na grande Roda).
2
Inscrição em estandarte de Arthur Bispo do Rosario.
3
ALIGHIERI, 1998. p. 25.
4
Ibidem.
5
Cf.
BURROWES, 1999. p. 46.
5
Cega Como será entrar pela cabeça de um homem criativo? pensaram sobre
isto? Pensaram alguma vez em subir à cabeça de um artista no exato momento de
sua criação? Enxergar um pensamento por dentro? Esta experiência é que sugiro a
vocês neste instante. Subam à cabeça dos artistas. (os atores / produção indicam
com lanternas as escadas de acesso ao andar de cima). Hoje, vocês observarão
secretamente o ponto, o centro do enigma, a fonte do fluxo poético. Imaginem
uma cabeça dividida em dois hemisférios: sul e norte; em que o norte seria como
um chapéu erguido, oferecendo-lhes visão profunda daquilo que vai ao sul.
Convido-os a esta mirada insólita. As escadas lhes serão devidamente indicadas.
Vamos, senhores, valerá o esforço. Agora, sim, todos beirando o precipício do
pensamento? Custou muito venerável público? Muito bem, luz para o início do
espetáculo.
As luzes se apagam e o artista que, desde a entrada do público não parou
de trabalhar o bordado, agora é iluminado em foco. Estira um fio e entra com o
mesmo na lona para bordar, liga-se à corda elástica e começa a subir em direção
ao urdimento. É acompanhado pela luz. Com metade do corpo em cena, de
cabeça para baixo, fala para a cega:
Artista – Não está vendo nada aqui em cima da minha cabeça?
6
Cega – Não vejo.
Artista Como não? Eu trago um Deus comigo e isso não se com os olhos.
Deus está peneirando aqui em cima, está querendo falar comigo
7
. Sai daí, Cega!
Vou me transformar.
Cega – Vai se transformar em quê?
Artista – Em Rei. Me deixa que eu vou entrar em guerra
8
.
Neste momento, ao lançar do urdimento outras 165 letras sobre a Cega, o
Artista cria uma cela de cordas a imobilizar a Cega. Ele desce pela corda
elástica, lentamente. Com uma lanterna ilumina a Cega e a platéia enquanto fala.
Artista EU VOU PASSAR REVISTA CORPOS HOMES CAHIDOS
CARBONIZADOS E OS MORTOS REVERTER VOSSOS CORPOS JUNTOS
VOSSOS ESPÍRITOS (...) ESTE GLOBO ESPLENDO GIRANDO EM TORNO
6
Cf. HIDALGO, 1996. p. 24.
7
Ibidem.
8
Ibid. p. 25. Fala adaptada.
6
SEU EIXO GRECIA (...) AS MAIS LINDA HUMANIDADE REIS PRINCIPE
CHEFES NAÇÕES PALACIOS LUXUOSOS GOVERNDORES ESTADOS E
GLORIAS (...)
9
OS ANJOS VÃO ARRIANDO
A FORMOSA FINA PLUMA
ESPUMA ESPONJA
(gira a Roda)
POR ONDE SAI O VERBO
ESTRONDO
10
...
Explode um buraco no palco. Uma corda cai no buraco de onde sai uma
luz intensa. O artista segue pronto para a luz. Do buraco aberto um homem nu
emerge, paulatinamente, vindo do porão do teatro, trazendo nas mãos uma
espada. Bispo deixa o homem subir e quando ele chega à altura de seus olhos,
acerta-lhe um soco. O homem voa com a corda e cai do outro lado. A Cega
acompanha os sons. O rosto do homem sangra.
Homem (para a platéia) (...) Uma ação violenta e densa é uma similitude do
lirismo: invoca imagens sobrenaturais, um sangue de imagens, e um jorro
sangrento de imagens tanto na cabeça do poeta quanto na do espectador. (...)
Proponho assim um teatro no qual imagens físicas violentas trituram e hipnotizam
a sensibilidade do espectador que se vê no teatro como presa de um turbilhão de
forças superiores.
11
(...) “crueldade”, quando pronunciei esta palavra, foi
entendida por todo mundo como sendo “sangue”. Mas “teatro da crueldade” quer
dizer teatro difícil e cruel antes de mais nada para mim mesmo. E no plano da
representação, não se trata desta crueldade que podemos exercer uns contra os
outros ao despedaçarmos mutuamente nossos corpos, ao serramos nossas
anatomias pessoais (...) trata-se de uma crueldade muito mais terrível e necessária
que as coisas podem exercer contra nós. Não somos livres. E o céu ainda pode
desabar sobre nossas cabeças. E o teatro existe antes de mais nada para nos falar
sobre isso.
12
(...)
Existe um risco nisso tudo, mas acho que nas circunstâncias atuais vale a pena
corrê-lo (...) proponho alguma coisa para sair do marasmo, ao invés de continuar a
gemer diante desse marasmo e desse tédio, diante da inércia e da imbecilidade de
9
Cf. BURROWES, 1999. p. 61.
10
Cf. HIDALGO, 1996. p. 131.
11
ARTAUD, 1975. p. 106.
12
Ibidem. p. 103.
7
tudo.
13
(...) No ponto de ruptura a que chegou nossa sensibilidade, está fora de
dúvida que precisamos antes de mais nada de um teatro que nos desperte: nervos e
coração.
14
(suja a mão com sangue do rosto e mostra ao público) Este vermelho
entre brechas no meu rosto não é teatro, senhores, isso é pintura.
Artista (em frente ao buraco feito pela explosão). Não toque em nada!
Ninguém entra aqui estalando chão!
Homem (arrastando-se até o buraco e olhando para o fundo do mesmo)
Venho da Irlanda. Em meio ao culto Samain, em que, simbolicamente, nos
situamos fora do tempo, encontrei uma passagem e dei aqui. Trouxe a espada de
São Patrício pertencente ao mundo mágico de um Rei .
Artista Larga essa espada, rapaz! Esse lugar é meu! (pega um uniforme de
interno desfiando e entrega ao Homem). Veste a roupa. É desrespeito andar sem
roupa aqui, muito feio. Ninguém entra no meu quarto-forte desse jeito, não. É a
lei.
O Homem veste uma calça de uniforme presa no toldo por um fio. Durante
toda a ação a roupa se desfia.
Artista - Você enxerga a cor da minha aura?
15
Homem – (tocando o bordado da lona) Pele com ampliações celulares de grandes
proporções, aspecto elevado, arredondado, consistente e com bordos mal
definidos. Lesões traumáticas semelhantes à cimentação....
Artista (imponente) – Cega! Apaga a luz!
Cega – Black- out! (todas as luzes se apagam).
Artista – E agora? Em que cor você me vê?
Homem – Vejo a cor dos Reis e uma luz azul riscada nas costas.
Artista É, a luz entrou em mim. (luz sobre o Artista, vinda do buraco no chão).
Eu sou o Rei dos Reis.
13
Ibid. p. 107.
14
Idem. p. 108.
15
Cf. HIDALGO, 1996. p. 134.
8
Cega – Acendam as luzes.
Artista Estou construindo um castelo. “Pode entrar para ver a obra. Está em
exposição”
16
. Espere!
Homem – (hesita).
Artista – A espada!
O homem dois passos e entrega a espada ao artista. O Artista penetra
a espada no eixo da Roda.
Homem (indo para a Roda) A Roda do Tempo. É isso! Entrei no tempo do
Cosmo. A Roda é a cabala. Cheguei ao vácuo, ao ponto da regeneração do tempo.
Artista Não agora. Quando eu subir, os céus se abrirão e vai recomeçar a
contagem do mundo. Vou nessa nave, com esse manto e essas miniaturas que
representam a existência (...) Minha missão é essa, conseguir isso que eu tenho,
para no dia próximo eu representar a existência da terra. É o significado da minha
vida.
17
Homem (tocando na extensão da lona bordada) Este Reino é a parede de seu
corpo.
Artista – É a cópia de tudo do mundo.
Homem – O seu duplo.
Artista – Do mundo.
Homem Toda a verdadeira efígie tem sua sombra que a duplica; e a arte se
instala a partir do momento em que o escultor que modela acredita liberar uma
espécie de sombra cuja existência dilacerará seu repouso.
18
Artista – Eu sou o salvador, não sou artista de TV
19
. Isso tudo é material existente
na terra dos homens
20
.
16
Ibidem. p. 104.
17
Inscrição para um conjunto de objetos de Bispo, na montagem da exposição Brasil +500:
Mostra do Redescobrimento. Espaço Cultural dos Correios. 05 de dezembro de 2000 a 14 de
janeiro de 2001.
18
ARTAUD, 1975. p. 20.
19
Cf. CASTELLO, 1999. p. 300.
20
Cf. HIDALGO, 1996. p. 89.
9
Homem Perdoe-me. Vejo nessa sua pele estendida, derramada pelo espaço,
como espaço, juntamente com a energia da tua fome e o conjunto de todos os
corpos celestes, o teu conteúdo, tua demarcação luminosa, como objeto estético,
ampliando os fatos de tua vida até o mito. Porque a realidade é terrivelmente
superior a toda história, a toda fábula, a toda divindade, a toda surrealidade.
21
É
correto dizer que em tua consciência que trabalha uma força que ultrapassa a
arte.
Artista – Hum.
Homem – De onde você vem?
Artista – Um dia eu simplesmente apareci.
Homem – Qual é o seu nome?
Bispo - Arthur Bispo do Rosario.
Homem – O que você faz aqui?
Bispo - Em 22 de dezembro desci lá, em São Clemente, Botafogo, no fundo duma
casa dessa, quando fui reconhecido pela família. No dia seguinte, depois, me
apresentei no Mosteiro de São Bento, dia 24. Dia 24 eu vim aqui pra viver, né?
Mandado pelos frades.
22
Homem – Frades?
Bispo É, reconheceram a mim. Eu disse assim: eu vim julgar os vivos e os
mortos. Eles perceberam e mandaram eu vir para o hospício. Que antes mesmo, eu
na Ilha do Governador (...) dizia que vinha para o hospício a fim de julgar os
vivos e os mortos. Isso pra quem enxerga, quem conhece. Um médico, por
exemplo, que é psiquiatra, eu quando cheguei na Praia Vermelha, com dois dias
fui chamado por uma junta médica. Dr. Odilon Galotti. Tinha uma junta médica a
fim de me interrogar e todos eles perceberam que eu tinha vindo representar a sua
santidade. Dentro dessa santidade, me permitiam uma casa forte. A casa forte
21
ARTAUD, 2003. p. 50. Texto adaptado.
22
Cf. HIDALGO, 1996. p. 136.
10
pertence a Cristo e assim eu passei a residir na casa forte, a fim de fazer
miniaturas, porque eles perceberam a minha visão.
23
Homem – Quando vai ser a sua representação?
Bispo - Eu devo estar pronto daqui a uns seis ou cinco meses (...) com ação,
resplendor, dos pés à cabeça, a fim de me apresentar ao mundo. Dentro dessa
representação aqui.
24
Homem – Essa paisagem mostra “sua carne hostil, a hostilidade de suas entranhas
expostas, que não se sabe qual estranha força por outro lado está prestes a
provocar metamorfoses.”
25
E de onde vem esse seu brilho, Arthur?
Bispo Ah, isso eu tenho uma ação brilhosa, de um metro e meio, que eu tive
umas duas ou três vezes transformando. E ficou assim de ouro, prata e brilhante,
assim no comprido, na cabeça. eu deixo de ter alimentação, às vezes tomo um
café, depois vou deixar de ter alimentação total. E ela vem, com fé, força, sobre
mim. Recebi uma ordem, tenho que me purificar. Vou secar pra virar santo.
26
Homem – Uma ordem?
Bispo - Jesus Filho é o pai que me guia
27
. É sentado no trono, todo azul, diz só:
Jesus Filho, tem que executar no seu canto, embaixo, faça isso e isso. Eu nem
falo nada, tenho que executar isso tudo
28
. (vai para a Roda).
Homem – Desobedece!
Bispo (gira a Roda). Se eu desobedecer, me pega, me enrola em cima, em
sonho assim, eu caio no chão, ele me suspende, eu fico descontrolado, eu vou
ficando torto, qualquer coisa me pega em sonho e faz de bola, bola, bola
29
. (...)
Homem Senhor Arthur, não sei se o senhor sabe, mas, sua obediência é ataque,
“o que o senhor ataca não é um determinado conformismo de costumes, mas o
conformismo das próprias instituições”
30
.
23
Ibidem. p. 136 et. seq.
24
Ibid. p. 137.
25
ARTAUD, 2003. p. 46.
26
Cf. HIDALGO, 1996. p. 141.
27
Ibidem. p. 138.
28
Ibid. p. 140.
29
Idem.
11
Bispo Eu vim arrasar o mundo em fogo. (volta à costura a partir de fios
desenovelados da Roda) (...) tá escrito.
31
(começa a subir por uma corda. Do alto
lança linhas e letras sobre a Cega).
Cega (abrindo os fios e apoiada neles) Conheço a tua fala estrangeira. Tuas
palavras parecem ocupar algum espaço em mim. Qual o teu nome?
O homem caminha em direção à Cega. Toma a mulher em seus braços,
levando-a para a Roda. Bispo desce por uma corda acima da cabeça da Cega e
permanece assistindo a cena, assim, pendurado.
Homem – Toque o meu rosto.
A Cega toca o rosto do homem.
Cega – Molhado. A derreter.
Todos respiram sonoramente. A Cega continua identificando o rosto do
homem.
Cega - É um desenho. Noto pelas vértebras.
Homem Esse desenho é uma sensação que passou em mim como se diz em
algumas lendas que a morte passa.
32
Cega passei por estes olhos em alguma página. Sinto as linhas quadriculadas
de páginas tuas. Na palma de cada uma das minhas mãos o teu modo de ser é tátil,
para além da lisura das páginas. realidade nessa página molhada pelo pulso do
teu sangue. Desmancham-se as veias?
Homem – Veia, uma só veia e não duas,
E em torno da veia a página branca,
Veia extirpada de uma consciência,
Trama de um só batimento do cílio...
É preciso olhar esse desenho ainda uma vez
depois de já tê-lo visto uma vez.
33
Cega – Deixei de ver. Diga-me.
Homem Creio que ele permanece, então, não no espaço, mas no tempo, nesse
30
ARTAUD, 2003. p. 29.
31
Cf. BURROWES, 1999. p. 42.
32
ARTAUD, 1995. p. 149.
33
Ibidem.
12
ponto do espaço do tempo onde um sopro de trás do coração retém a existência e a
suspende.
34
Cega – Abstração.
Homem (...) o rosto humano ainda não encontrou a sua face e (..) cabe ao pintor
lhe dar. (...) a face humana tal qual ela é se busca ainda com dois olhos, um nariz,
uma boca e duas cavidades auriculares que respondem aos buracos das órbitas
como as quatro aberturas sepulcrais da próxima morte. O rosto humano porta com
efeito uma espécie de morte perpétua sobre seu rosto da qual o pintor deve
justamente salvá-lo.
35
Homem – Arthur! Qual é a cor do meu semblante?
Bispo (irônico) Sujo de sangue. (traz uma linha). Eu fui transparente. Às
vezes, quando deixo de trabalhar, fico transparente de novo. Mas normalmente
sou cheio de cores. (para Artaud) Qual é o seu nome, homem?
Homem (agarra-se numa corda, Bispo pula para o palco e corre para lançar ao
Homem outras cordas, uma por vez, de modo que este percorra todo o espaço
como em um vôo, enquanto fala) –
Quem sou eu?
De onde venho?
Eu sou Antonin Artaud
e basta eu dizê-lo
como só eu o sei dizer
e imediatamente
verão meu corpo atual
voar em pedaços
e se juntar
sob dez mil aspectos
notórios
um novo corpo
no qual nunca mais
poderão
me esquecer.
36
Bispo (interrompe o movimento) – O senhor existe? (volta ao bordado para
anotar).
(pausa)
34
Ibid.
35
idem. p. 206 et. seq.
36
ARTAUD, A. Artaud e o teatro. 2000. p. 334.
13
Antonin Artaud – Onde cheira a merda cheira a ser.
37
Bispo – Existe.
Artaud Poderia ter dramatizado através da cor todos esses problemas mas
preferi essa provocação de insípidas cores (...) Nada que cheire a cânfora, com
efeito, como as caixas de certos túmulos chineses onde a morte passa no azul, e o
sangue da pleura rosada das paredes evoca.
38
Bispo do Rosario ESTRUTURA MEDIANA / DESSE ESQUEMA TEM
CARAT- / BUSTO-FISICO / CORPO ALMA E CIRCULATÓRIO / DO SER
HUMANO / CABELOS PENDÕES É SEGURANÇA / 7 SETE / OUVIDO
ORELHAS TRAQUEIA PELES 7 / FACE QUIXO DENTES / BOCA LABIOS
LINGUA VOZ / FALAR CANT / FRONTAL SUPECILIO / CLAVICULA
ARTERIA / CORAÇAO DA PRESSÃO O / SANGUE NAS / VIRILHA- AS
AMIGULAS TOSSE VEIAS / CINTURA TORAX DE / ESTRUTURA /
HEMATOMAS / ASPECTO MASCULINO / GARGANTA GRITA / NO PEITO
TRAZ AGUIA E NOME / NOMES PROPRIO COMO ARACY ARACAJU
ARTHUR AGELIA
39
Artaud (...) Quero dizer que ignorando tanto o desenho quanto a natureza,
resolvi dar saída às formas, linhas, traços, sombras, cores, aspectos que, como se
faz na pintura moderna, não representam nada e não reclamam mais de serem
reunidos segundo as exigências de uma lei visual ou material qualquer, mas sim
que criassem acima do papel uma espécie de contra-figura que seria um protesto
perpétuo contra a lei do objeto criado.
40
Cega O senhor Antonin Artaud ocupa-se com a brutal força do pensamento.
Esta força, dentro dele, luta com a rudeza da linguagem, essa espécie de camisa-
de-força. A linguagem nada mais é do que uma instituição social, veículo das
ideologias, instrumento de mediação dos homens entre si, e entre os homens e a
natureza. “A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o
poder que reside na ngua, porque esquecemos que toda língua é uma
classificação, e que toda classificação é opressiva (...)”
41
. Antonin trabalha em
seus desenhos-escritos a “força de resistência que vai dirigir sua obra – para além
da desconstrução, demolição e combate das formas instituídas a um lugar de
37
Cf. http://www.sabotagem.cjb.net/
38
ARTAUD, 1995. p. 149.
39
Inscrição em um estandarte de Bispo do Rosario.
40
ARTAUD, 1995. p. 90.
41
BARTHES, 2001. p. 12.
14
inquietude permanente, daí mesmo à vertente vital do mal que lhe [sic] atinge,
assim como àqueles que o lêem.”
42
. E em 1936, antes da Segunda Grande Guerra,
em Conferência pronunciada na Universidade do México, Artaud já havia dito:
Artaud Quando o jovem pintor Balthus compõe um retrato de mulher, ele
manifesta uma terrível, uma exigente noção do amor e da mulher; e ele sabe que
não fala no vazio porque sua pintura possui um segredo de ação.
Ele pinta como alguém que conhece o segredo do raio.
Enquanto não se aplicar o segredo do raio, o mundo pensará que se trata de
ciência, e deixará isso para os sábios. Mas um dia alguém aplica esse segredo do
raio, e o aplica na destruição do mundo; é então que o mundo começa a levar em
conta esse segredo.
(...)
Essa idéia de vida é gica, supõe a presença de uma chama em todas as
manifestações do pensamento humano; e hoje, esta imagem do pensamento se
incendeia, parece a todos nós que ela está contida no teatro; e nós acreditamos que
só o teatro é feito para manifestá-la. Mas hoje a maior parte das pessoas pensa que
o teatro nada tem a ver com a realidade, todo mundo pensa que se trata de teatro;
porém somos muitos na França a crer que somente o verdadeiro teatro pode nos
mostrar a realidade (...)
43
. Penso em um teatro com a força que salta das palavras e
dos objetos em desordem, para o ar, como uma imagem invertida.
Artaud (para a Cega) – Você, quem é?
Cega Estou presa. sempre uma página escrita diante dos meus olhos, por
isso estou cega, com a ilusão de que mantenho o controle.
Artaud – E porque não está lá ao lado deles (apontando para a platéia)?
Cega – Sou cega, escrevo.
Artaud – Toda a escritura é uma porcaria
44
.
As pessoas que saem do vago para tentar precisar seja o que for do que se passa
em seu pensamento são porcos.
Todo o mundo literário é porco, e especialmente o desse tempo.
45
42
KIFFER, 2003. p. 173.
43
ARTAUD, 2000. p. 314.
44
ARTAUD, 1995. p. 209 et. seq.
45
Ibidem.
15
Bispo – A Cega espia.
Cega Investigo, senhor Arthur. Escavando tuas escrituras, foi a literatura de
Artaud emergindo, lançando-se à minha sondagem em muitas direções, até
transbordarem sobre o vazio da minha compreensão. Antonin te resguarda com
palavras.
Artaud Palavras, Cega? Ainda pensas em palavras? Modo vulgar, o teu, tendo
ao tato dos pés a pele das imagens, os quelóides das lesões carregadas de tempo e
da ação de Arthur. Diante dessa força, Cega, de que te serve a linguagem verbal
cheia de lógica, e de elaboração, e de raciocínio? De que te serve ordenar o que se
manifesta no rasgo da descontinuidade?
Cega – Não sei pensar sem palavras. Estou presa em um labirinto, como disse. As
cores são meus devaneios, pelo atrito do preto com o branco do papel, no passar
das páginas.
Artaud O que você quer? Ser um mestre em sua língua, um mestre em análises
e classificações de nossas “obras”? Demonstrar aos leitores, cheios de referências
no espírito, os embasamentos de seu cérebro e demonstrar seu conhecimento
sobre as correntes de pensamento em sua época? Como é, Cega? Esse é o seu
rangido de autômato a ser espalhado pelos quatro ventos? Pretende remoer
ideologias que ganham espaço em sua época? Cega, aqueles que crêem ainda
numa orientação do espírito, aqueles que seguem caminhos, que agitam nomes,
que fazem bradar as páginas dos livros — são os piores porcos.
46
Cega Que seja! Darei meu grunhido de autômato, agitando o nome de Arthur,
com o nome Artaud irá como península. Como você mesmo previu, hoje os seus
gêiseres e os seus jogos de alma foram descobertos. Seus escritos, cheios de tanto
dizer, foram vasculhados, remexidos, como matéria do pensamento. Você e
Arthur o estudados, lembrados por grandes nomes das correntes de
pensamentos. Nada poderá impedir a usurpação autorizada, em nome da história e
da memória.
46
Ibid. Texto adaptado.
16
Bispo (em cima da Cega, tocando seus cabelos e olhando para a platéia) O que
me falta eu vou encontrar lá fora, em casas comerciais subterrâneas, vou
encontrar. (para Artaud) Que eu tenho uma noite suave das coisas, da existência
47
.
Artaud A sociedade (...) tacha de loucura as visões exorbitadas de seus artistas
e sufoca seus gritos no “papel impresso”.
48
Cega – Dói-me a cabeça. É como se sobre ela dezenas de olhos estivessem
espreitando. Guardo a cegueira do mundo.
Silêncio demorado. Artaud caminha na direção de Bispo.
Cega - Antonin Marie-Joseph Artaud nasceu em Marselha a 4 de setembro de
1896 e morreu no dia 4 de março de 1948. Foi ator e escritor, tendo conseguido
publicar seus escritos devido a inúmeras cartas enviadas ao editor da Nouvelle
Revue Française, Jacques Rivière, nas quais falava de sua dor do pensamento e
solicitava a publicação de seus textos. Possui 28 volumes de escritos publicados
pela editora Gallimard e continuam a surgir textos inéditos seus até hoje. Escrevia
e desenhava em cadernos de papel quadriculado. Bispo do Rosario nasceu em
Sergipe, em 1911 e morreu em 1989. Não foi um escritor, mas sua obra é coberta
de palavras, conduzidas pelo bordado. Com linhas costurou, amarrou e envolveu
objetos. Foi marinheiro, pedreiro, jardineiro, pugilista, funcionário da Light.
Interno da Colônia Juliano Moreira. Produziu, incansavelmente, durante 50 anos,
confinado em uma cela do manicômio ou encerrado em quartos de locais de
trabalho. Foi reconhecido como artista, contudo sua intenção não era produzir
arte, e sim, catalogar as coisas do mundo para apresentar a Deus na hora do
derradeiro chamado.
Artaud – (ri da Cega) O que é isso agora, Cega, uma biografia? Quer uma ordem
cronológica, uma origem que nos faça razoáveis para o público? (Ri) Isso é
patético!
Apagam-se, bruscamente, as luzes sobre a Cega, com o som dos
disjuntores desarmados. A Luz incide sobre Artaud e Bispo.
Artaud – (sussurrando) Arthur, essa Cega está nos inventando.
47
Cf. BURROWES, 1999. p. 42.
48
Cf. ARTAUD, 2003. p. 14.
17
Bispo – Espia.
Artaud Controla nossos atos. Nos faz dizer recortes de tudo o que dissemos
durante a vida em contextos desconexos. Inventa falas para nós.
Bispo - O louco é um homem vivo guiado por um morto.
Artaud Não, Arthur. Falo de outra ilusão. Essa Cega está jogando com nossas
palavras. Ela nos capturou com suas garras de leitora, compõe nossos
pensamentos e nossa presença sob sua própria perspectiva. Veja, estamos em um
teatro. Ela escreve. Estamos, aqui, servindo de teatro para ela.
Bispo Bobagem. Mulher não manda no mundo dirigido por Deus, não. Se ela
vem, eu invento outro mundo. A gente inventa, então, que isso, sim, é coisa de
Reis. Vamos para o céu, se quiser eu te levo, Tuninho. Pode vir.
Artaud – Vamos embaralhar a linguagem da Cega, destorcer sua razão comedida,
seu protocolo científico. Quero vê-la girar na Roda do Tempo, sua Roda, apagá-la
pela velocidade e, assim, subtrair-lhe o controle. Façamos, então, deste
espetáculo, um acontecimento, um mundo tangente ao que ela procura nos
encaixar, depois enrolamos essa linha no pescoço dela.
Bispo – Hum.
Luz na Cega.
Cega Estar aqui entretida na trama dos pensamentos e das formas alinhadas por
vocês, me fez lembrar a história de Teseu à entrada de um labirinto, prestes a
matar o Minotauro. Para Teseu e seu povo, o Minotauro representava a face do
desconhecido, a exceção ao convencional. O Minotauro morre, porque representa
um perigo à ordem estabelecida. A exceção poderia ser representada por um de
vocês dois ou por qualquer outro homem, que de algum modo fuja à conduta
uniforme.
Artaud – Perfeito! Vamos encenar! Seja, este, o espaço de representação! A Cega
será Ariadne entregando a linha a Teseu, representado por mim. Fique o Senhor
Arthur com o Minotauro, pois, de todos nós é o que melhor soube desfazer a
clausura.
18
Bispo – Cega, vai pra Roda! O homem te leva.
Artaud leva a Cega para a Roda, precipita-se para amarrá-la. A Cega
encontra a espada, retira-a do eixo e ameaça Artaud.
Cega – Ariadne desfia o tempo, não pode estar amarrada.
Bispo – A Roda fia, Cega.
Artaud Aceitamos representar a cena proposta por você. Agora aceite nosso
cenário e ação.
Cega – Por que eu seria amarrada?
Bispo (à parte para Artaud) É muito feio homem machucar mulher. A Cega
pode ficar aqui se não tocar em nada. Embaralha o jogo dela, porque jogo não foi
feito pra mulher. Mas, não machuca.
Artaud – Ela será sacudida e ficará arrepiada com o dinamismo interior do
espetáculo e este dinamismo estará em relação direta com as angústias e as
preocupações de toda a sua vida.
49
Cega Conheço essa cena. Esse foi o sacrifício de Béatrice, em sua peça Les
Cenci. Durante os ensaios, você insinuou girar a roda em que estava presa a atriz,
por isso, ela exigiu fazer a cena amarrada à roda, todavia, apoiando os pés sobre
um banquinho.
Artaud Cega, experimente o teatro que você mesma veio encontrar.
Controlando o meu discurso, nunca poderá demonstrar o teatro que proponho.
Você criou uma farsa, um teatro vulgar, uma representação que me põe a falar
grandes “bifes”. Fez de Arthur Bispo do Rosario homem de ação, realizações e
silêncio um tagarela, para construir sua pretensiosa “dramaturgia”. “O diálogo
coisa escrita e falada não pertence especificamente à cena, pertence ao livro”.
“Romper a linguagem para tocar na vida é fazer ou refazer o teatro; e o importante
é não acreditar que esse ato deva ser algo sagrado, isto é, reservado. O importante
é crer que todos podem fazê-lo e que para isso é preciso uma preparação. (...) É
preciso acreditar num sentido da vida renovado pelo teatro onde o homem
49
ARTAUD, 1995. p. 30.
19
impavidamente torna-se o senhor daquilo que ainda não existe, e o faz nascer. E
tudo que ainda não nasceu pode vir a nascer contanto que não nos contentemos
com ser simples órgãos de registro”
50
.
Cega Cuide-se. Essa pesquisa já me desagrada. Mantenha-se longe ou não
hesitarei em cortá-lo.
Artaud Ora, Cega, o disfarce. O teu teatro é ilusão, tudo o que terias a cortar
em mim são as falas, ou o triste personagem no qual fui transformado, e isto me
seria um proveito. (Ri).
A Cega precipita-se contra Artaud com a espada e fere o seu peito.
Bispo – Pára, Cega. Quem manda aqui sou eu.
Artaud (para a platéia) Tudo que atua é uma crueldade. É a partir desta idéia
levada às últimas conseqüências que o teatro deve ser renovado. (...) Tudo que
existe no amor, no crime, na guerra ou na loucura precisa nos ser devolvido pelo
teatro, se ele pretende reencontrar seu papel necessário.
51
(segue para a platéia) A
Cega não quer participar. Queremos valorizar a platéia, ao invés de mantê-los
como voyeurs a penetrarem em nossa intimidade de fantoches.
52
Vamos levar
alguém da platéia à Roda!
Cega Este truque não convence mais a platéia deste século. Quer ultrapassar a
palavra? Quer destruir a mensagem? Faça-o com seu próprio corpo. Deixe o
público ocupar o lugar que escolheu. Quem quiser que aceite o risco ou sente-se
para sempre. Eu o desafio à Roda ou à morte!
Bispo (para Artaud) Homem não bate em mulher, não senhor. Respeita a casa
de Deus!
Artaud – (em atitude de ataque para a Cega, que se esquiva em movimentos com
a espada).
50
ARTAUD, 1975. p. 22 et. seq.
51
Ibidem. p. 109.
52
Ibid. p. 108.
20
Cega Na curva galeria, Teseu enfrenta o Minotauro. Vê-se a extremidade da
linha aos pés do herói sem sua espada.
53
Bispo se lança por uma corda sobre Artaud. Artaud cai no chão. Bispo,
em outra corda, ajuda a Cega a fugir em traçados diagonais. A movimentação
dos atores deve obedecer aos movimentos das peças do jogo de xadrez. A Cega é
a dama. Bispo é o Rei e o Bispo. Artaud é o cavalo. O leitor e o encenador
precisam esforçar-se nas regras e na arte dos enxadristas. Por ter sido tombado,
Artaud volta-se furioso contra a Cega. Bispo cria obstáculos para Artaud, com as
linhas do espaço, afinal, é também o Rei. Em sendo o Rei, não pode estar em
xeque ao jogar, assim, Artaud não pode aproximar-se da Cega, por estar
protegida por Bispo o Rei. Desenvolve-se uma cena de perseguição rea em
grunhidos. Bispo toma uma corda em que está Artaud e o faz rodar como um
peão. Artaud desfalece, escorregando pela corda até o chão. Silêncio.
Artaud – (caído. Disforme)
Ti largar
Ori tartura
La tartura
Ara tula
Ti largar
Ori tartura
Ra lartura
Ti largar
Ori tartura
Ta lartula
Ara tula
Ti largar
Ori tartura
Ta ratula
Ara tula
Ti largar
Ori tartura
Ora tartula
Ora tula.
54
Artaud levanta-se com o corpo desarticulado, porém, pleno de força. Sobe
estranhamente em direção ao urdimento. Bispo protege a Cega misturando-a à
platéia. Toma da Cega a espada e vai para o palco esperar Artaud que, vestido
com um colete, salta por uma corda elástica sobre o público, bem em cima da
Cega. Bispo ameaça partir com a espada para atacar Artaud na platéia.
53
CORTÁZAR, 2001. p. 61.
54
ARTAUD, 2004. p. 1401.
21
Cega Não ameace a platéia, Bispo! O público é desertor. Eles fogem das salas
de espetáculo. A platéia cansou desse formalismo maniqueísta, que é a explosão
do espaço, a relação direta com o espectador, como se fosse ele o “quarto
criador”, a platéia não admite ser tocada em qualquer espaço, que não seja o da
imaginação. O público desse tempo procura afeto, mas omite o corpo.
Artaud – Sinto um germe francês nesse ar. (captura a Cega).
Bispo – Sempre fui faxina dos fortes pra dar nos doentes quando estavam agitados
(...) Na Praia Vermelha, bati muito em paciente, mas nos maus que queriam
quebrar tudo. Não tenho pena, não. Quer perder a cabeça, homem? Solta a moça.
Artaud Vamos levar a cabo o nosso plano. Representamos uma cena, estão
lembrados? Giramos os papéis, assim mesmo o sacrifício terá de ocorrer.
Minotauro entrega-se a Teseu e morre. Belo desfecho contra o texto-ídolo
figurado pela Cega. Coitada, aos seus olhos embotados o texto preenche um vazio.
Ora, Cega, se vazio, força e há ação. O teatro requer teatralidade e esta
prática é uma realização diferente do texto! O texto será esmagado!
Artaud leva a Cega para a Roda e amarra-a. Bispo tenta impedir, mas é
ameaçado com a espada. Artaud gira a Roda. Quando a Roda pára, a Cega está
morta. Bispo solta as amarras das mãos e pés da Cega. Uma projeção
computadorizada transforma a Cega em um desenho de milhares de pequenas
letras pretas, em fundo branco, girando sem parar. As mãos de Artaud são
atingidas pela projeção por ter tocado a Cega.
Artaud Não seja amadora, Cega, não será com os truques do cinema, mas com
os recursos específicos do teatro, que este atingirá o seu sentido verdadeiramente
mágico. Ela não morreu, senhor Arthur. A palavra é mesmo uma matéria-prima
resistente ao tempo. Ou será o público imaginando? Quem mantém o controle da
ação, quem nos faz atuar desse modo?
Bispo (caminha na direção de Artaud com cordas elásticas nas mãos) Isso tudo
é coisa existente no mundo. (conecta as cordas nas argolas do colete de Artaud
paralisado) Coisa encontrada fora, em casas comerciais. (conecta cordas
elásticas em seu próprio cinto) É que eu tenho uma noite suave das coisas, da
existência.
Artaud – Como pude confiar em um Rei?
22
Súbita e violentamente, os fios cruzados do espaço arrastam para o ar a
tela bordada, levando dali o espaço criativo, com Bispo e Artaud. O
deslocamento de ar causado pela elevação do tecido provoca o vôo de uma
papelada que se encontrava sob a tela, ao chão.
Bispo (enquanto sobe, grita) Cega! Não permitirei que te desvies. Meus olhos
recairão sobre ti !
Cega – (desproporcionada, dirigindo-se ao público) Senhores, qual data está
marcada hoje em nosso calendário? Como os senhores vêem a realidade do
mundo em que vivemos? O que faz sentido neste mundo ou qual a sua razão?
Nossa civilização pode realmente acreditar que tudo está em seu lugar? As obras e
as vozes desmedidas da “loucura” repercutiram em outras vozes e obras de
pensadores legitimados da cultura ocidental. O pensamento destes homens circula
e nem todos conhecem a sua origem. As obras de artistas aerados, como as destes
que aqui estiveram, são utilizadas e representadas pelas mesmas instituições que
os excluíram.
Os senhores foram convidados a espiar dentro da cabeça destes artistas, o
momento exato em que se faz a criação. E então? O que define a força que emerge
das imagens, originadas do nada inicial da tela ou da gina em branco,
surpreendendo nosso olhar? A instância da inspiração artística não estará para
além da moldura “bem organizada” desse nosso mundo? Qual linha de fronteira
define a passagem do espaço cotidiano para o espaço de inspiração e criação? A
quem é permitida a passagem para este espaço? A quem é vetada? É, neste justo
ponto, que se encontram todas as imaginações, independentemente de suas
biografias, espaço, tempo, “lucidez”. Tudo mais é distintivo, todavia,
complemento. O limite da criação é a interseção, o não-lugar, do qual
magicamente surge beleza.
O espaço é tomado pelo escuro profundo do teatro. Silêncio.
A Cega - (pausa) Escuro de meus olhos. Cegueira de não conhecer os caminhos,
de ter a razão deitada em sono. Há, entretanto, nos guardados de meus
pensamentos uma luz suave sobre um mundo infinito de falas deste mundo.
23
Uma luz de canhão ilumina uma mulher de pé, no centro do palco. A
mulher tem nas mãos o livro, “Marta, a árvore e o relógio”, e uma caixa preta e
esférica, ao chão. Corpo pequeno, frágil, gestos elegantes e pensados.
Madame C.(faz para a cabine de iluminação um gesto imperativo e uma luz de
canhão ilumina a cega, rodeada pelas folhas de papéis escritos) Venha!
Cega – Madame?! O que faz tão dentro deste sonho?
Madame C. Já está bem até aqui. (dirige-se ao técnico de luz) Por favor,
acendam as luzes do teatro.
Acende-se a luz geral do teatro. A cega tem os olhos ofuscados. Pisa nas
folhas de papéis, agacha para juntá-las. Enrola as folhas e as amarra com uma
linha solta do cenário.
Madame C. – Venha, Cecília. Há algo para você.
Cecília caminha em direção à Madame C., ainda acomodando a visão à
luz geral. A mentora toma o livro nas mãos, abre uma página marcada.
Madame C. – (olhando para a Cecília) Preste atenção. Vou ler um trecho da peça
Rasto Atrás, de Jorge Andrade. Um desses autores relegados, por estarem na hora
errada, no lugar errado, escrevendo para quem não enxerga.
Madame C. – Página 461, primeira parte. () “Vicente: (Alheia-se pouco a
pouco) Papai dizia que certas caças correm rasto atrás, confundindo suas pegadas,
mudando de direção diversas vezes, até que o caçador fica completamente
perdido, sem saber o rumo que elas tomaram. E muitas vezes, são tão espertas que
ficam escondidas bem perto da gente, em lugares tão evidentes que não nos
lembramos de procurar.”
Conforme Madame C. a rubrica de “Rasto atrás”, o som dos latidos
dos cães (da rubrica da peça) é, simultaneamente, reproduzido na sala e
entrecortado pelas vozes de Artaud e Bispo do Rosario, em falas transcorridas
durante o espetáculo. Madame C. fecha o livro.
Madame C. (baixando o som) Pense e procure-me em nove dias a contar daqui.
(toma a caixa preta do chão e entrega à Cecília) A senhora K enviou a você este
enigma. Mantenha as luzes acesas, mesmo quando houver intenção em empregar a
24
sombra das idéias. Diminua também o corpus do trabalho. Os livros todos juntos
são pensamentos infinitos, mas, para agora, o infinito seria longo demais.
Cecília – Madame, tenho estes papéis.
Madame C. (pega o rolo de papéis e sai devagar, sem olhar para trás)
Examinarei com cuidado.
Cecília sorri e observa a saída da Madame C. Abre a caixa cuja tampa
possui o formato de um chapéu-coco. Levanta o chapéu e a caixa se acende,
revelando em seu interior a maquete cenográfica do espetáculo. Cecília encara a
platéia serenamente.
Cecília (colocando sobre a cabeça o chapéu) De estar tanto tempo fixada a
minha vista no interior de tantos pensamentos, “rasto atrás”, encontro um olhar
diferenciado. É que as leituras e as falas vão se ramificando, alterando
definitivamente nossas percepções. Desçam, senhores, da cabeça dos artistas.
Sigam para suas casas ou para os restaurantes da cidade. Procure, cada um, o seu
rumo. Isto é Teatro. Isto é tudo.
Os integrantes da produção do espetáculo auxiliam a saída da platéia,
concentrados na ação, sem esboçar sorriso.
FIM
Segundo Tomo
26
1. Abertura
Abrir um texto acerca da biografia de Arthur Bispo do Rosario poderia
muito bem se dar por uma assemblage, expressão incorporada pelo crítico de arte
Frederico de Morais à época da inserção de Bispo do Rosario na esfera das artes
plásticas. Para tanto, seguiria o padrão ordenador do lead jornalístico,
primeiramente, respondendo ao item “quem”:
“Era solteiro, de naturalidade desconhecida, alfabetizado, sem parentes, com
antecedentes policiais (...)”.
1
“Bispo nasceu em Sergipe, em 1911. Foi timoneiro e sinaleiro da Marinha,
lavador de carros e borracheiro da Light e boxeador”.
2
“Preto, solteiro e de naturalidade desconhecida (...) Além de esquizofrênico
paranóico, Arthur Bispo do Rosario foi também boxeador, campeão pela Marinha
de Guerra. Trabalhou na Light e para o advogado Humberto de Leone como ‘pau
pra toda obra’. Bispo foi ainda segurança do senador Gilberto Marinho e de
Gilberto Leone (também advogado) e porteiro do Hotel Suíço, na Glória”.
3
“Bispo era negro, pobre, louco e pós-moderno”.
4
Para, finalmente, com o item “O que”, ligar a “palavra” assemblage à direta
associação da “coisa” a que representa, demonstrando o quanto seu procedimento
de “junção de partes e de pedaços” contamina, ou obriga, o discurso daqueles que
o querem investigar, desencadeando a tendência a uma sintaxe de ordenação de
elementos consecutivos:
“À primeira vista, esse universo é o caos. Painéis, vitrines, objetos envoltos em
linha, recortes de papelão, panôs bordados, navios, miniaturas, esculturas em
madeira, latas cheias de vidros, vidrinhos, potes (...)”.
5
1
MORAIS, 1989.
2
STYCER, 1992. p. 2.
3
ABREU, 1993.
4
O ESTADO DE SÃO PAULO, 1990. p. 3.
27
“(...) Fez sua obra com tapinhas [sic] de garrafas, talheres enferrujados, pedaços
de lençóis encardidos, madeira, garrafas e quinquilharias (...)”.
6
“(...) 359 peças foram exibidas na mostra retrospectiva apresentada no Museu de
Arte Moderna (MAM) em 93. Estas estão dividias [sic] em Estandartes (12),
Roupas (5), Objetos (9), Objetos mumificados (172), Miss universo (61), Vitrines
(7) e Arquivos (2). As outras peças nunca exibidas são Vitrines e Outros. (...)”.
7
“(...) Para o público que os mantos, panôs, fardões, faixas bordadas, navios e
objetos de madeira criados por ele, fica no ar a pergunta: trata-se de um louco
artista ou de um artista louco?(...)”.
8
“Os objetos recobertos por fios azuis que Bispo retirava do próprio uniforme, os
painéis em que alinhava botões, sapatos, canecas, associando-os por cor, função
ou forma, ou os mantos bordados e decorados com fitas coloridas, por sua
contemporaneidade, o colocariam lado a lado com nomes como o de Marcel
Duchamp, Hélio Oiticica, Tony Cragg ou os artistas pop e do dada”.
9
“(...) objetos mumificados, bandeiras com textos e desenhos bordados (...), e mais
assemblages, construções de madeira, e ‘objetos achados’(...)”.
10
Usando este artifício, sairia da página branca e seguiria direto à
problemática fundamental da construção e análise de uma biografia de Arthur
Bispo do Rosario: o vazio. Vazio este, que ele preencheu bordando “PALAVRAS
. ESCRITA” ou signos, ou reunindo sucata, ou construindo objetos, como cópia
do mundo visível, com papelão, madeira e linha. Vazio preenchido pela
“apresentação” de seu universo pessoal e mítico ao mundo materialista, por meio
dos media. Vazio a que me propus enfrentar. Como preencherei o vazio? Sem
preenchê-lo. Inversamente, cavarei os brancos, pois, ao penetrar o centro de cada
5
BURROWES, 1999. p. 22.
6
REIS, 1994.
7
Ibidem.
8
REIS, 1984.
9
HOMERO, 1989.
10
PEDROSA, 1994.
28
brecha, como um eixo, é que poderei fazer rodar o tempo capaz de transportar-me
a urnas mais secretas.
2. Urdimento
A partir do culo XIX o testemunho escrito tomou alcance de documento
fundamental, a legitimar o fato histórico e, segundo Jacques Le Goff, no século
XX, o documento, bem como o texto, triunfa. Deste momento em diante, não
haveria mais história sem documentos. A definição de documento prendia-se à
idéia de texto, mas esta noção ampliou-se ao conceito de que a história está em
todas as marcas deixadas pelo homem, seja em registros escritos ou sem eles, com
tudo o que pertence ao homem, o que o expresse, havendo, inclusive, um retorno à
valorização do relato. As histórias pessoais, biografias, seguiriam a mesma
metodologia e serviram, de certo modo, à história social como fração da memória
histórica, documento. Um documento atinge valor de monumento, uma vez
utilizado por uma sociedade histórica como determinante da construção de sua
própria imagem.
Escritura é um ato de poder e, como tal, desempenha o seu movimento
característico de expansão, a difundir-se por espaço e tempo, perpetuando-se em
forma de registro, “sem deslocar-se do eixo de suas ações”. Como bem
exemplifica Michel de Certeau, em A escrita da História:
(...) Combinando o poder de reter o passado (...) e o de
superar indefinidamente a distância (...), a escrita faz a história.
Por um lado ela acumula, estoca os “segredos” da parte de cá,
não perde nada, conserva-os intactos. É arquivo. Por outro lado
ela “declara”, avança “até o fim do mundo” para os
destinatários e segundo os objetivos que lhe agradam e isto
“sem sair de um lugar”, sem que se desloque o centro de suas
ações, sem que ele se altere nos seus progressos. Ela tem na
mão a “espada” que prolonga o gesto mas não modifica o
sujeito. Sob este ponto de vista repete e difunde seus
protótipos.
11
Os discursos são construções marcadas pelas estruturas ideológicas de
grupos de pertencimento em uma sociedade. Testemunhos, invariavelmente,
orientam a história na direção de certos interesses de dominação. O contexto
11
CERTEAU, 1982. p. 217.
29
discursivo, neste caso, está a serviço de uma visão ideológica do dominador, além
do que, os documentos (no sentido de monumento) devem ser examinados pelo
pesquisador de modo a serem cuidadosamente “desestruturados”, “desmontados”
para revelarem os aspectos históricos.
O biógrafo, por seu turno, inserido em um momento histórico, em uma
determinada sociedade, ou instituição, movido por interesses pessoais, ou de
terceiros, fará a narração de uma vida. Esta inserção em um tempo e esta relação
de interesses estarão, inevitavelmente, encerradas no projeto do biógrafo, em suas
escolhas, análises, priorizações, julgamentos, e em omissões. O impulso inicial do
biógrafo, como o do historiador, reside na busca de uma operação com os fatos e
com a verdade. Não podemos, no entanto, perder a consciência de que,
independentemente deste espírito, o resultado, em verdade, será sempre uma
construção.
O problema da objetividade do historiador. A tomada
de consciência da construção do fato histórico, da não-inocência
do documento, lançou uma luz reveladora sobre os processos de
manipulação que se manifestam em todos os níveis da
constituição do saber histórico. Mas esta constatação não deve
desembocar num ceticismo de fundo a propósito da objetividade
histórica e num abandono da noção de verdade em história; pelo
contrário, os contínuos êxitos no desmascaramento e na
denúncia das mistificações e das falsificações da história
permitem um relativo otimismo a esse respeito.
12
Deverá seguir, assim, o biógrafo comprometido estimulado por um método
de “retidão biográfica”, de forma a garantir ao leitor um resultado puro e íntegro
de procedimentos, para enfrentar as brechas de uma história passada por um filtro
de memória, por uma seleção discursiva. Como seria, então, trabalhar sobre uma
história de vida toda feita de buracos? Como é o caso do passado de Arthur Bispo
do Rosario, feito de apagamentos, seja por falta de documentos escritos ou por
falta de relatos. Jacques Le Goff, em História e Memória nos oferece a concepção
de que o método histórico só pode ser inexato. A história é equívoca, pois, sempre
partirá do ponto de vista de um narrador e, uma vez narrada, a história volve a
passado, não é mais presencial, é o que se viveu e o que se viu passando pelo filtro
da memória, pela seleção discursiva de um narrador. Fatos e ficção são os
elementos negociados nos relatos das histórias de vidas e a conjunção destes
12
LE GOFF, 1994. p. 11.
30
elementos provoca um “efeito de verdade”. Por esta via, a invenção atinge
legibilidade, ao passo que a narrativa assume gêneros discursivos variados,
contextualizando de novas maneiras as posições do sujeito frente à sua existência
real. Descobrir é inventar, urdir.
O gesto barroco de Arthur Bispo trabalhou com os contrários, na medida
em que apagou o passado, preenchendo com linguagem bordada uma história
particular a reinventá-lo. Não se trata apenas do preenchimento da solidão ou da
luta contra a morte, como se caracterizam normalmente as intenções narrativas
auto-biográficas, mas da “alteração” radical das referências essenciais de uma
identidade.
Por meio da linguagem, Arthur Bispo inscreve-se como mito e este mito
sugere e reflete a origem do mundo. Investido na qualidade de “Criador”, Bispo se
vale da linguagem para realizar sua obra, pelo registro de uma história. Trata-se,
não somente, de uma história de vida ordenada pelo conjunto linear de
acontecimentos de uma existência individual, ou seja, sucessão de
acontecimentos, mas, inversamente, as linhas de conexão são revolvidas, fazendo
alusão ao mito da Torre de Babel, em que Deus confunde a língua dos homens por
estarem construindo uma Torre na pretensão de alcançar o céu. Assim, o relato de
sua história toma sentido pela ação do olhar do leitor interessado em estabelecer
conexões à existência narrada. Neste sentido, Bispo realiza o desejo do artista de
anular a arbitrariedade do signo lingüístico, expresso pelo campo hermético,
continente da poesia, tendo, ao final, seu trabalho imputado como arte.
3. A apresentação
Ocorreu no dia 22 de dezembro de 1938, à meia noite. Sete anjos em
nuvens especiais, no formato de esteiras, foram buscá-lo na rua São Clemente,
301, Botafogo. Empunhando lança, em uma nuvem de espíritos malignos, foi ele
assinalado com uma cruz de luz azul nas costas, para apresentar-se na Candelária,
onde seria reconhecido como Jesus Cristo. Este evento está registrado em um dos
estandartes de sua obra, como marca do eixo lógico condutor da história inscrita
em sua “Nova” Escritura, feita de linha fundeada, ancorada em lençol. E as
palavras entrançadas um dia se farão verdade.
31
Apresentando-se, foi logo reconhecido como sujeito “fora do lugar”,
imediatamente encaminhado para o manicômio da Praia Vermelha, no dia 24 de
dezembro de 1938, nomeado pelos “homens de capa branca” como
esquizofrênico-paranóico. Um mês depois levaram-no para a Colônia Juliano
Moreira, onde viveu o mais largo tempo de sua vida com algumas saídas para
trabalhar na casa da família Leone, de onde partiu no dia do encontro com os
anjos para revelar-se o “deus recusado” por aqueles que não sabem ver.
Em 1980, “olhos de saber ver” seguiram em direção à arruinada Colônia
Juliano Moreira, a fim de denunciar as condições do hospício e polarizar o
momento de euforia nacional dos tempos de abertura política. O jornalista Samuel
Wainer Filho, o Samuca, ao lado de seu cinegrafista, capturou pela primeira vez a
imagem de Bispo e sua obra, exibida, em cadeia nacional, no dia 18 de maio de
1980, pelo Fantástico, programa de maior audiência, da maior emissora de
televisão brasileira, Rede Globo de Televisão. Bispo talvez não tenha percebido
que, 38 anos após o evento da aparição dos anjos, naquela noite em Botafogo,
outras nuvens estariam, então, trazendo-lhe novos emissários, prontos a levarem-
no a uma segunda “apresentação”, menos mítica, do seu universo para o mundano.
As denúncias do jornalista Samuel Wainer Filho repercutiram como um
escândalo. A Colônia Juliano Moreira foi submetida a uma devassa cujo resultado
revolucionou o hospício de Jacarepaguá, conferindo liberdade aos doentes e
melhorias nas condições de infra-estrutura do manicômio. Neste mesmo ano de
1980, o psicanalista e fotógrafo Hugo Denizart, como funcionário do Ministério
da Saúde, atravessou a rotina da Colônia Juliano Moreira, para documentá-la por
meio de fotos e filmes. Avisado sobre a existência de Arthur Bispo do Rosario,
após algumas tentativas frustradas, conseguiu entrevistá-lo, criando o filme O
prisioneiro da passagem – Arthur Bispo do Rosário, em 16 mm, editado em 1982.
Denizart exibiu o filme protagonizado por Arthur Bispo em congressos, debates,
encontros; e em 1982, o exibiu pela rede BBC de Londres. Daí para frente estava
dada a partida; Bispo foi apresentado ao mundo antes de apresentar-se a Deus e os
olhos do mundo voltaram-se em sua direção.
32
4. Pelos olhos do mundo dos vivos
Partiu de Frederico Morais, crítico de artes plásticas, a motivação de
organizar uma biografia capaz de erigir o passado de Arthur Bispo do Rosario. O
crítico foi despertado para a obra de Bispo, inicialmente, pelo programa de TV
Fantástico, em 1980, e depois pelo psicanalista e fotógrafo Hugo Denizart,
produtor do já citado documentário O prisioneiro da passagem.
Em 1982, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM) organizou
a exposição À margem da vida, com trabalhos de presidiários, idosos e doentes
mentais. Cada um dos segmentos da Mostra foi organizado por um monitor. Maria
Amélia Mattei, artista plástica e diretora do que mais tarde viria a ser o Museu
Nise da Silveira, foi a responsável pela organização das obras dos internos da
Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá. Maria Amélia contou com o apoio de
Hugo Denizart na hora do diálogo com Bispo para tentar a cessão de alguns de
seus trabalhos à exposição. Bispo resistiu para liberar seus objetos, entretanto, às
vésperas da Mostra deu o seu consentimento.
A coletiva demonstrava uma tendência da época em discutir o conceito de
Arte Bruta, criado por Jean Dubuffet, na Europa, em 1945. A mostra do acervo de
Bispo do Rosario resultou no sucesso da exposição. Daí em diante iniciaram-se os
debates entre grupos da elite estética, sobre a atribuição de valor à obra de um
esquizofrênico como Arte.
Frederico Morais, então, coordenador de artes plásticas do MAM,
comovido pelo trabalho de Arthur Bispo, quis conhecê-lo em sua cela, na Colônia
Juliano Moreira. Hugo Denizart promoveu o encontro cujo desdobramento
transformou o homem de passado apagado em artista legitimado, com a obra
tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional.
Arthur Bispo do Rosario, por sua vez, nunca relacionou seu trabalho com a
obra de arte. Trabalhava duro para relatar as coisas mundo e, assim, inventou uma
técnica personalíssima. Bispo possuía o essencial, de que poucos artistas dispõem,
ele tinha o que dizer, e a função mítica de o fazer, esta, foi a motivação de todo o
seu esforço de invenção. Criou um duplo do mundo para apresentar a Deus.
Conforme o relato, daquela que mais tarde foi a biógrafa oficial de Bispo,
a jornalista Luciana Hidalgo, quando Bispo deixou alguns de seus objetos saírem
33
dos quartos do pavilhão 10 da Colônia Juliano Moreira para a exposição À
margem da vida, em 1982, no MAM “conversou com as peças, pediu que
tomassem cuidado para não se deturparem mundo afora”
13
. E quando foi
convidado a visitar o MAM para ver seu trabalho exposto, recusou dizendo:
“Meus olhos não estão preparados para ver aquilo”.
Em 1989 Arthur Bispo do Rosario faleceu. Foi sepultado sem sua nave e
sem o seu manto sagrado, pois, estes sairiam da esfera mítica da apresentação das
coisas do mundo a Deus, à esfera identitária da representação da Arte Brasileira,
destituída de sacralização, mundo afora. Frederico Morais organizou, em outubro,
quatro meses depois da morte de Bispo, a primeira grande exposição individual de
sua obra, a esta altura com a liberação do cobiçado Manto de Apresentação,
intitulada Registros de minha passagem pela terra: Arthur Bispo do Rosario.
4.1 “...eu digo, assim, sem empáfia nenhuma, que eu
inventei o Bispo...” (Frederico Morais)
Retomando os textos do lançamento oficial de Arthur Bispo como artista,
na exposição Registros de minha passagem pela terra: Arthur Bispo do Rosário, o
penúltimo parágrafo do primeiro texto de Frederico Morais esclarece um novo
ponto relevante por trás das intenções da Mostra :
Preocupada com o destino que seria dado ao acervo de
Arthur Bispo, a atual diretora da Colônia, drª Izabel do Carmo
Torres da Silva, promoveu algumas reuniões, das quais
participaram a coordenadora de Reabilitação e Integração
Social da Colônia, Denise de Almeida Correia, Pedro Gabriel
Godinho Delgado, coordenador de ensino e pesquisa,
Conceição Robaina e Maria Amélia Mattei, diretora do Museu
Nise da Silveira, da Colônia, além de Frederico Morais, Luis
Carlos Wanderlei Soares e Márcio Rollo. A morte de Bispo
pegou todos de surpresa. Decidiu-se então, em reunião realizada
no dia 19 de julho, criar uma associação de Amigos dos Artistas
da Colônia Juliano Moreira, que cuidaria prioritariamente da
obra de Bispo (...) Os objetivos da Associação, definidos nessa
reunião, foram os seguintes: levantamento e catalogação das
obras, documentação fotográfica, restauração das peças em
estado precário de conservação, divulgações, e, finalmente,
13
HIDALGO, 1996. p. 154.
34
encontrar um novo local com condições adequadas para guarda
do acervo.
14
Com a morte de Bispo do Rosario, iniciaram-se os debates políticos
envolvendo a apropriação de uma obra admitida como genial, capaz de atrair a
atenção da media, abrindo espaço editorial, oferecendo visibilidade a seus tutores,
bem como instaurando os debates sobre a questão de ordem financeira ligada à
preservação da obra. Para além dos interesses específicos relacionados à obra,
estão também envolvidos neste ponto, fatores de prestígio pessoal e institucional.
Marília Rothier Cardoso elucida um sentimento comum à atividade do biógrafo,
semelhante a dos guardiões de acervos. Ela diz o seguinte:
O biógrafo (...) coloca-se, voluntária ou
involuntariamente, na posição de herdeiro do biografado; deseja
ressuscitá-lo para fundar o poder de seu próprio nome ou
confirmar seus pontos de vista pessoais, tendo, como base, a
vida e a obra de seu objeto.
15
Procurei Frederico Morais ao fim do mês de setembro de 2005,
inicialmente, manifestando-me, simplesmente, como aluna de pós-graduação da
PUC-Rio, a fim de entrevistá-lo sobre Arthur Bispo do Rosario, tema de minha
dissertação de mestrado. Um senhor muito educado atendia-me sempre pedindo
que eu ligasse mais tarde, “lá pelas oito da noite”, contudo, à noite, atendia-me o
sinal do fax. Entendi o sinal do fax como uma senha. Preparei um texto,
apresentando a idéia de meu projeto, e pedi à minha orientadora, Pina Coco, um
segundo texto de apresentação com o timbre da PUC, dando à pesquisa um caráter
oficial. No texto, tratei de dizer:
(...) Proponho, em minha dissertação, contar a história da
construção do discurso de legitimação da obra de Arthur Bispo
do Rosario, fundado pelo crítico de artes Frederico Morais – eis
o motivo de minha insistência em encontrá-lo por meio de
textos da mídia impressa e de textos de sua autoria, encontrados
em catálogos das principais exposições do trabalho de Bispo.
Defendo a idéia de que o senhor engendrou a história “da obra”
e do próprio Arthur Bispo “como artista”, com o objetivo de
inseri-lo na esfera das artes plásticas.
16
14
MARIA, 1989. Grifo meu.
15
Cf. OLINTO, 2002. p. 116.
16
Carta de Cecilia Gusmão Wellisch, enviada por fax a Frederico Morais, em out. 2005.
35
No dia 19 de outubro, Frederico Morais respondeu-me com um
telefonema. No dia 24 de outubro o portão azul da casa de Frederico Morais, em
Santa Teresa, abria-se para mim e minhas pastas se estatelaram no chão. A frase
pontual de apresentação foi de Frederico: “você está cinqüenta minutos atrasada”,
não concordei, porém, conferindo na agenda, certifiquei-me de que ele estava com
a razão. Comecei mal, mas a entrevista decorrente fluiu como uma dedicatória. A
certo ponto da entrevista, ao falar do momento da morte de Bispo, quando se
fundou a Associação de Amigos da Colônia Juliano Moreira, e se iniciou o projeto
de divulgação e guarda do acervo de Arthur Bispo do Rosario, Frederico revela,
conscientemente, o seu verdadeiro papel, como leitor da vida e obra de Bispo e
como gerente do lançamento do nome, Arthur Bispo do Rosario, e de seu atributo
artístico. Frederico diz:
(...) a segunda parte do projeto, era inserir o Bispo no
contexto da arte brasileira. Quer dizer, começar uma discussão
sobre o Bispo artista, nesse sentido que eu digo, assim, sem
empáfia nenhuma, que eu inventei o Bispo, no sentido de que o
Bispo não existia como artista, ele existia como doente mental,
que foi o enfoque, por exemplo, do Hugo Denizart, que ele era
fotógrafo e psicanalista, né? Então eu organizei a exposição
dele no Museu, na Escola [Parque Lage]. Foi uma exposição de
impacto extraordinário, foi muito bem montada, nessa
primeira mostra, com o Gerardo Vilasecca, que trabalhava
comigo na Escola.
17
A afirmação, eu inventei o Bispo, no sentido de que o Bispo não existia
como artista (...)”, era o que eu pretendia encontrar, implicitamente, no discurso
de Frederico Morais. Era inclusive o título de minha dissertação, sugerido por
Pina Coco: A invenção de Bispo do Rosario, para refletir as questões que eu
procurava estabelecer, relacionadas com o caráter irremediável da escrita como
construção, como revelação de um discurso organizado e articulado, de um autor
em relação a um leitor. Morais, embora não conhecesse o título da dissertação, leu
o meu fax, entendia meus objetivos, assim sendo, decidiu entregar-me o presente
voluntariamente, como se me dissesse: “sabemos, ambos, ‘o que é o autor’.
Divirta-se”.
17
MORAIS, 2005.
36
4.2. Fundação
No Manual de redação e estilo, do jornal O Estado de São Paulo, está a
definição do verbete “Repercussão”, esclarecida como sendo a maior ou menor
importância de um fato. Proporcionalmente ao grau de importância deste fato, são
dedicados o número de linhas e as retrancas para o seu desdobramento. O catálogo
da exposição Registros de minha passagem pela terra: Arthur Bispo do Rosário,
no Parque Lage, representava um tablóide de jornal, impresso na Tribuna da
Imprensa, para o qual Frederico Morais, editor do catálogo, escreveu os textos
fundadores ao plano de reconhecimento de Arthur Bispo do Rosario como “artista
verdadeiro”. O formato de tablóide para o catálogo, prefigurava a repercussão do
discurso fundador de Morais por meio do mesmo veículo que o tablóide
representava –, pronunciado como matéria-prima de vozes decorrentes.
Um exemplo de fala padrão apresentada pela primeira vez no texto de
Frederico Morais e adotada posteriormente pela mídia impressa, a exemplo da
abertura deste segundo tomo, é a tendência em frisar o vazio da biografia de
Bispo, resumindo os dados de sua identidade por seqüências de elementos de
mesma função sintática, separados ou não por vírgulas. No texto de Morais
aparece assim:
Negro
Solteiro
Sem parentes
Marinheiro e boxeur
Antecedentes policiais
Esquizofrênico paranóide
Meio século internado na Colônia Juliano Moreira
Artista genial
18
Na mídia, outras vozes seguiram o mesmo modelo:
(...) artista, esquizofrênico, negro, primitivo e genial:
Arthur Bispo do Rosário [sic] (...)
19
Preto, pobre, esquizofrênico internado do manicômio
da Colônia Juliano Moreira durante 50 anos (...)
20
18
MORAIS, 1989.
19
VENTURA, 1996.
20
KLEIN, 1999.
37
Ex-marinheiro, ex-pugilista, ex-funcionário da Light,
Arthur Bispo do Rosário, nascido em Japaratuba, Sergipe, no
ano de 1909 (...)
21
No rastro da lógica de reconstrução do mundo proposta por Arthur Bispo,
Frederico Morais leu os textos costurados de Bispo como “uma espécie de summa
do conhecimento, uma enciclopédia ilustrada, uma História Universal”. Além
disso, viu em suas narrativas a estrutura épica, como na Odisséia, de Homero.
Estas associações devem ter causado grande impacto e foram absorvidas em
outros artigos e até no texto do curador da mostra de Bispo em Veneza, anos mais
tarde, em 1995:
(...) Quando seu mundo desabava, quando as últimas
pontas de sentido se esvaneciam, Bispo agiu como um
enciclopedista, disposto a reter, para salvar, ao menos o nome
das coisas.
22
(...) O registro do mundo através de longas listas de
nomes que, ou se referem à vida privada de Bispo, ou ao mundo
público, constitiu [sic] claramente um desejo de mapear o
mundo traduzindo-o num texto: um outro enciclopedismo.
(...)
(...) É o mito do gênio louco, tomado por um
bibliotecário obsessivo, que cataloga seu mundo privado.
23
(...) O único senão foi o título dado à seção: Arte
Incomum.
Incomum para quem? Não para Bispo, que tecia
com notável coerência a sua representação particular do
universo (...) a ponto de transformá-lo numa Odisséia de objetos
de dolorida beleza. (...) Para Bispo, o estranho, o estrangeiro
somos nós. É nesse sentido que se encaminham, aparentemente,
as discussões no MAC, cuja política cultural tem sido mantida
na ponta das indagações atuais.
24
O marujo cria um ponto de referência cosendo a farda.
Na análise mítica, Ulisses e Penélope são a mesma pessoa, o
direito e o avesso.
25
21
CASTELO, 1999. p. 289.
22
Ibidem. p. 301.
23
PEDROSA, 1994.
24
O ESTADO DE SÃO PAULO. 1990.
25
AGUILAR, 1995.
38
Exemplos como estes estão dispersos na teia de textos que se seguiram às
análises de Frederico Morais sobre a estética produzida por Bispo, como se
Frederico em posse da roca houvesse soltado a linha de análise para outras vozes
espalharem seus pensamentos no itinerário do tempo. Aproximações da obra de
Bispo com alguns trabalhos de Duchamp “o artista fundador de quase tudo o que
se faz hoje”, como a Roda de Bicicleta; as Urnas, feminina e masculina; o Porta-
Garrafas; associações com a Pop-Art; com as assemblages de Arman, César,
Martial Raysse e Daniel Spoerri, do Novo Realismo; com as tendências
arqueológicas; com a nova escultura inglesa, como a de Tony Cragg; com o pós-
modernismo; com a corrente arqueológica francesa, lembrando nomes como os de
Boltanski, Gasirovski, Le Gac, Bertrand ou Bertholin; e até com Hélio Oiticica;
partiram desse mesmo texto fundador, misturaram-se a outros textos ou serviram
como orientação a estudos ulteriores.
Interroguei Frederico Morais sobre as suas intenções ao relacionar Bispo
do Rosario com artistas consagrados e vertentes, por exemplo, da arte européia e
norte-americana. Ele respondeu:
(...) Então, o que se percebe é que não era um registro,
não era um registro tumultuado, mas era um registro lógico,
coerente, com um sentido, facilitando inclusive uma leitura,
uma interpretação. Ele tinha um sentido estético. Ele nunca
usou a palavra arte, mas evidentemente que ele tinha uma visão
estética das coisas, um sentido de organização, então, esses são
mais ou menos os critérios para os quais eu queria chamar
atenção.
E ao mostrar que esse mundo do Bispo não era
“tumulto”, não era só delírio, mas era um mundo coerente,
como o de qualquer artista, principalmente os chamados artistas
conceituais, quer dizer que ele tinha o domínio, tinha o controle
conceitual. Na verdade, o delírio do Bispo era o conceito.
Então, eu procuro aproximar essa criação do Bispo do que
estava ocorrendo com a arte, não mais moderna, mas a arte
pós-moderna (...)
26
Frederico Morais liderou as pesquisas a respeito da biografia de Arthur
Bispo do Rosario, até o ano de 1996. Somente 20 linhas retiradas da ficha de
doente da Colônia Juliano Moreira foi tudo o que chegou a Frederico sobre Bispo
até o início de sua pesquisa
27
, e foi mais uma das frases desgastada nos textos da
26
MORAIS, 2005.
27
Anexo 6a, p.XVII.
39
imprensa. Morais usou principalmente a dia impressa para detalhar sua análise
crítica da obra de Bispo, e, de alguma forma, deixar documentado o registro
possível da vida e obra do artista, por um projeto assumido de dar-lhe visibilidade.
Note-se a seguir a fala do crítico para uma matéria da Tribuna da Imprensa, em
1989:
Os primeiros trabalhos de Bispo, ainda na Praia
Vermelha, mais se aproximam da arte popular, o que nos
poderia remeter a uma possível origem rural. Depois de um
período de sete anos de voluntário isolamento em seu cubículo,
é uma outra visão que lhe determina a reconstrução do mundo e
de tudo o que nele havia. É quando começa a desfiar seus
uniformes para tecer os longos textos em que – como uma numa
[sic] enciclopédia descreve bandeiras, desenha mapas, e cita
países, provavelmente os que visitou em seus tempos de
Marinha, explica Morais (...)
28
Todos os textos, inclusive os de Frederico Morais, até esta época, ao
descreverem a biografia de Arthur Bispo do Rosario, sublinhavam, com certa
ênfase, a circunstância de o artista ter vivido 50 anos na Colônia Juliano Moreira.
A afirmação assumiu maneirismos variados: “(...) artista sergipano que viveu 50
anos como interno da Colônia psiquiátrica (...)”
29
, “(...) O sergipano preto e pobre,
que chegou ao Rio e ficou por mais de 50 anos internado (...)”
30
, ou, “(...) negro
pobre, que passou 50 anos de sua vida num sanatório público, fazendo trabalhos
com os materiais que conseguia (...)”
31
.
É de grande relevância o levantamento feito por Frederico Morais dos
dados a respeito dos períodos em que Bispo esteve fora da Colônia Juliano
Moreira, seja por fuga, seja por regalias obtidas na troca de favores com
funcionários, pois nestas fases utilizou em seu trabalho alguns materiais cuja
qualidade e aspecto diferem daqueles arrecadados das sobras da Colônia, como é
o caso das linhas coloridas vistas no bordado do Manto de Apresentação, como se
soube depois, doadas pela família Leone (antigos patrões de Bispo, donos da casa
de Botafogo onde ele viveu e trabalhou como caseiro durante muito tempo).
Na mesma matéria do Jornal de Brasília, Frederico Morais faz referências
consideráveis sobre pistas biográficas iniciais, localizadas por meio de seus
28
HOMERO, 1989. P. 4.
29
REIS, 1994.
30
REIS, 1984.
31
PEDROSA, 1994.
40
estudos do manto, das fardas e dos panôs, até então não mencionados
publicamente:
Quando começamos a abordar sua obra [de Bispo do
Rosário] na Colônia Juliano Moreira, não existia nenhum
estudo sobre ele, apenas um pequeno texto com uns poucos
dados biográficos. Aos poucos, através da leitura da obra,
começamos a reconstituir a história de sua vida, localizamos
pessoas com quem ele trabalhou, e atingimos uma elucidação
razoável. Deu para constatar que ele sempre foi uma
personalidade bastante rica de aspectos muito variados e muito
habilidoso [sic].
(...)
Ele, inclusive, chegou a ter alta, também chegou a fugir
ou seja, passou períodos fora da colônia quando trabalhou de
porteiro e também numa clínica.
32
Em 1995, outra declaração importante de Frederico sobre os resultados de
seus estudos sobre a vida de Bispo, a partir da leitura dos bordados, foi publicada
no jornal O Estado de São Paulo:
Para reconstruir o épico de toda sua vida, dentro e fora da
colônia, o antes e o depois da loucura, precisei agir como um
detetive disposto a elucidar um crime, ou como um médico-
legista dissecando um cadáver.
(...)
Hoje sabemos que Bispo do Rosário nasceu em 16 de
março de 1911, em Japaratuba, interior de Sergipe (...)
(...)
O exame de seu prontuário médico indica a existência de
dois vazios 1944 a 1948 e 1954 a 1964. Ainda não pude
confirmar se nos dois lapsos de tempo aludidos Bispo do
Rosário teve alta médica, se foi transferido para outro hospital
ou mesmo se fugiu. É certo, porém, que nestas ausências
trabalhou em um escritório de advocacia, como porteiro do
hotel, como guarda-costas e cabo-eleitoral de um senador da
República. No início de 60, trabalhou como faz-tudo numa
clínica pediátrica, onde comprovadamente realizou parte de sua
obra. Uma nova crise levou-o de volta à colônia, em 8 de
fevereiro de 1964, de onde não mais sairia.
33
Quando Hugo Denizart conviveu com Bispo do Rosario, era também
professor de jornalismo em uma universidade particular. Certamente, fascinado
pela descoberta, levou seus alunos para conhecerem Bispo e pediu que fizessem
32
Ibidem.
33
MORAIS, 1995.
41
um trabalho sobre o tema. Uma das alunas era Luciana Hidalgo, a jovem de 28
anos que lançou em 1996 a primeira e única biografia” de Arthur Bispo no
mercado editorial. Conversei com Luciana e o primeiro assunto abordado foi a sua
motivação para escrever sobre a vida de Bispo:
Eu era jornalista e eu vi essa possibilidade de escrever
uma biografia. E eu via que as biografias começaram a
aparecer, na época, de jornalistas. Eram [biografias] de grandes
figuras, de medalhões da história do Brasil. (...) Eu estudei na
Faculdade da Cidade, me formei em jornalismo em 1983,
quer dizer, o Bispo nem tinha ainda aparecido em 89 com a
exposição, em 85 na mídia. Eu fui aluna do Hugo Denizart, que
foi quem realmente levou o Bispo pro mundo, quer dizer, levou
o mundo ao Bispo, né? Então, eu fui aluna do Hugo Denizart,
que passou o filme dele sobre o Bispo na aula e a gente foi
obrigado a entrevistá-lo e fazer uma matéria. (...)
Muito tempo depois, eu fui trabalhar na Escola de Artes
Visuais do Parque Lage e teve a exposição do Bispo lá, a
primeira, né?
(...) No Parque Lage eu vi a obra e fiquei muito
impressionada, então, aquilo ia ficando ali arquivado em mim.
Quando eu vi a possibilidade jornalística de fazer uma
biografia, eu tinha 28 anos, não era muito velha pra fazer
biografia ainda, né? Aí eu vi uma matéria no Caderno B, de um
colega (...), dizendo que a obra tava totalmente abandonada, e
falando dele de novo. Aí eu tive a idéia, “puxa, seria uma
ousadia”, né? Escrever sobre uma figura que não é um
medalhão. Claro que a obra já era conhecida, mas em 94,
quando eu decidi começar a pesquisa, o tinha nada escrito.
Algumas pessoas me ajudaram muito, que tinham feito pesquisa
pra aquele filme do Miguel Przewodowski (...) E o Miguel
Przewodowski e a Helena Martinho da Rocha, eles, nossa! Eles
me ajudaram, assim, muito. Principalmente o Miguel, ele, o
Miguel, tinha feito a primeira pesquisa, então, a suspeita de que
ele [Bispo] tinha vindo de Japaratuba, ele [Miguel] já tinha tido;
nunca tinha ido pra ver. Tinha feito um contato, o tinha
dado em muita coisa, mas tinha várias coisas, assim, que pro
início me deu um gás, porque partir do nada, nada, é muito
difícil, né? Então, cada vez que eu ia me aprofundando eu ia
ficando fascinada pela obra.
34
Perguntei à Luciana se havia procurado Frederico Morais no período de
sua pesquisa e ela respondeu:
Procurei. No início ele foi muito reticente. (...) eu acho
que ele chegou a me dizer por telefone que estava afastado
Luciana Hidalgo queria se referir à segunda exposição: Registros de minha passagem pela terra,
montada por Frederico Morais.
34
HIDALGO, 2005.
42
desse tema. Ele não era mais curador da obra. Na época, a
Denise [Correa] tinha sido afastada da direção, tanto que eu
comecei a ir e estava na fase de transição. E todo mundo
ajudou muito, tanto a obra, como a divulgação. Cada um teve
um papel importante, mas ele tinha alguma mágoa (...) aí eu não
posso dizer com muita certeza, mas me pareceu um pouco isso.
(...) Mas eu trabalhava no JB com o filho do Frederico, e eu
insisti com ele, com o filho, com o Alexandre. E no final da
minha pesquisa, quando eu estava já fechando a pesquisa em si
(...) ele me deu a entrevista e me confirmou várias coisas,
porque o Frederico tem um papel importante. Na verdade, foi o
Hugo que levou o Frederico, que já foi uma maravilha, ter
escolhido o Frederico. E depois o Frederico foi lá e fez as
primeiras associações importantes com a arte contemporânea,
né? Fez a primeira exposição.
35
Luciana Hidalgo procurou marcar as figuras de Hugo Denizart, Miguel
Przewodowski e Helena Martinho da Rocha os dois últimos são os realizadores
do filme O Bispo do Rosario, exibido pela Rede Manchete, em 1993 como reais
apoiadores de seu projeto. Por trás do levantamento de informações e pesquisa de
campo realizadas por Miguel Przewodowski e Helena Martinho da Rocha, para o
vídeo O Bispo do Rosário, estão estudos importantes de Frederico Morais a partir
dos quais a história de Arthur Bispo foi se revelando. Em entrevista, Frederico
menciona duas vezes o nome e o trabalho de Miguel Przewodowski:
Na primeira ocasião responde à minha pergunta:
O Miguel procurou pelo senhor?
É. Houve essa aproximação. Sabe, porque o impacto foi tão
grande que as pessoas começaram a fazer as suas leituras e todo
mundo queria, de certa maneira, participar desse processo e dar
sua versão através do cinema, através do teatro, quer dizer, o
Miguel foi o primeiro a tentar essa abordagem, porque ele se
comoveu com a história da Rosângela, que é uma história
bonita, trágica. Depois, houve uma espécie de gap de tempo,
depois do filme do Miguel, que é um média metragem, não é
um curta, depois é que mais tarde à medida que o Bispo
começa a ser chamado pra participar de outras exposições: foi
pro exterior, foi pra Suécia, foi pra Bienal de Veneza.
36
Na segunda vez:
35
Ibidem.
36
MORAIS, 2005.
43
Ele registrava todas as coisas que ele vivenciou, que ele sabia
existir, que ele tinha conhecimento que existia. (...) uma das
coisas que a gente teve que fazer foi a biografia do Bispo.
Construir ele. Tudo que existia era um documento roto,
estragado, rasgado, com cerca de 20 palavras que era tudo o que
se sabia da vida de Bispo, então, a gente teve que construir a
biografia do Bispo. E a gente construiu a partir da obra dele. Eu
ainda conversei com alguns conterrâneos na colônia: policiais,
internos, outros que conviveram com Bispo na época, pessoas
como a Mattei, a estagiária, a Rosângela; levantei dados de
outras atividades extra-colônia. E comecei a ler a obra dele, o
texto que ele escreveu. E aí fui identificando a biografia: o
nome do pai, etc e tal. Quer dizer, 95% da biografia do Bispo eu
criei, você entendendo? E passei dicas pra outras pessoas, o
próprio Miguel Przwodowski. A questão da Light, por exemplo,
eu sabia que ele tinha trabalhado na Light, mas eu ainda não
tinha ido à Light, aos arquivos, então ele [Miguel
Przewodowski] levanta realmente, através da Light descobre o
nome em Aracajú, mas que estava nos panôs dele, o nome
do pai, que aparece; a atividade dele como boxeur, os nomes
dos boxeurs que ele registra.
37
Não pretendo categorizar Frederico Morais oficialmente como biógrafo de
Bispo do Rosario, embora interprete o seu discurso, sua produção textual, seu
trabalho de divulgação e a sua postura assumida diante da obra de Bispo
equivalentes ao ofício do biógrafo. Abro, por exemplo, minha atenção, quando
Frederico faz uma declaração deste modo: “Quer dizer, 95% da biografia do Bispo
eu criei, você entendendo?”. Importa-me sobretudo quando, em uma fala
aparentemente inocente, surge uma revelação desta ordem, por assim ver
confirmar-se, no discurso (válido como texto), o papel assumido do biógrafo em
pele de herdeiro do biografado, experimentando uma condição íntima de
proprietário, porque se assume como “inventor” da biografia, seja com a intenção
de “fundar o poder de seu próprio nome”, seja com que intenção de “confirmar
seus pontos de vista pessoais”. Cito um trecho da biografia crítica de Janet
Malcom, na qual avalia os limites da biografia:
A biografia pode ser comparada a um livro em que um estranho
faz seus rabiscos. Depois que morremos, nossa história passa às
mãos de desconhecidos. O biógrafo não se vê como alguém que
toma essa vida emprestada, mas como seu novo proprietário,
com o direito de escrever e sublinhar onde quiser.
38
37
Ibidem. Grifo meu.
38
MALCOM, 1995. p. 190.
44
Afirmando ter “criado” noventa e cinco por cento da biografia de Bispo,
Frederico reitera, além do que, a única condição real, a única ação possível a ser
adotada pelo biógrafo, que é a do “rearranjo” a partir dos fatos, pois, a biografia
coexiste entre duas forças contidas no íntimo das histórias de vidas: a revelação e
o disfarce. Uma história de vida sempre está sob a condição da interferência,
mesmo no caso da autobiografia, porque nos dois casos está em jogo a exibição da
própria face: face de quem expõe a história pessoal de vida e de quem, pela
escrita, anuncia a própria face.
Frederico Morais falou-me das suas estratégias como crítico de artes,
curador e membro da Associação de Amigos da Colônia Juliano Moreira, para
contextualizar Bispo na história da arte brasileira:
(...) a primeira coisa era colocar o Bispo no contexto da
arte brasileira, contextualizar o Bispo (...) eu estava
absolutamente convencido, e continuo, de que é
possível ser louco e artista ao mesmo tempo. E o Mário
Pedrosa diz num desses textos que o inconsciente é um
assunto que deve ser pesquisado pelos psicanalistas e
tal, mas que, ao mesmo tempo, as imagens criadas pelo
inconsciente do artista são imagens que interessam ao
crítico de artes, pela qualidade estética, pela beleza,
pela emoção que elas contém, quer dizer, o Mário
Pedrosa tinha esse mesmo ponto de vista. O que cabe
aos psicanalistas é analisar a questão pelo o seu ângulo,
mas à crítica de arte interessa aquilo como obra de arte
(...) [eu] achava que era possível analisar a obra do
Bispo de acordo com critérios estéticos, artísticos.
39
O release da Assessoria de imprensa, sob a responsabilidade de Vera
Alvarez, revela um dos principais objetivos embutido nas intenções da Mostra:
A Escola de Artes Visuais do Parque Lage inaugura na
próxima quarta-feira, dia 18 de outubro às 19 horas, a primeira
exposição individual das obras de ARTHUR BISPO [sic], o
mais famoso interno da Colônia Juliano Moreira.
A exposição intitula-se “Registros de Minha Passagem
Pela Terra: Arthur Bispo” [sic] e tem a curadoria do crítico de
arte Frederico Morais. Reúne tapetes, objetos, assemblages
(colagens) do manto e do leito, além de fotografias e
documentos. Promove conferências, debates, projeção de filmes
e vídeo, iniciando-se assim uma avaliação de sua obra pelo
circuito de arte.
40
39
MORAIS, 2005.
40
Anexo 1. Grifo meu, p. XII.
45
Está dito, pretende-se uma “avaliação” da obra do “mais famoso interno da
Colônia Juliano Moreira”, pelo “circuito de arte”, traduzindo: Sugerimos ao
circuito das artes plásticas a avaliação da obra do esquizofrênico (grupo à
margem), Arthur Bispo do Rosario, como o fez Frederico Morais, crítico
prestigiado, legitimando-a como obra de arte. E no catálogo da exposição,
Frederico escreveu:
Afirmei certa vez que toda obra de arte, se
verdadeiramente original, é uma metáfora do mundo. Um
mundo paralelo ao real e, apesar de inventado, fundado nele,
nas vivências e projeções de seu criador no mundo real (...).
(...)
A obra criada por Arthur Bispo do Rosário [sic] na
Colônia Juliano Moreira no meio século em que esteve ali
internado é, de forma mais enfática ainda que a de outros
artistas contemporâneos, essa tentativa de reconstrução do
universo, e, como tal, é arte autêntica, que comove e pede
reflexão.
41
No trecho acima, nota-se a nuance do arbítrio no discurso de Frederico
Morais, guiado pela necessidade de estabelecer normas de avaliação crítica como
base de legitimação, propícias a convencer o leitor sobre a importância do artista.
A “afirmação” do crítico determina ou estabelece, por seu turno, a identidade da
obra de arte: “Afirmei certa vez que toda obra de arte, se verdadeiramente
original, é uma metáfora do mundo”. Neste sentido, o universo de Arthur Bispo
do Rosario é, não obra, mas obra de arte autêntica “(...) mais enfática ainda
que a de outros artistas contemporâneos (...)”, ou seja, na criação de Bispo à
parte da formação artística, um plus, um realce marcante não encontrado em
alguns artistas de formação e inclusão profissional a ele contemporâneos. Para
além da comparação, Frederico Morais atribui a Bispo propriedade ímpar.
Na matéria da jornalista Cleusa Maria, do Jornal do Brasil, para a
divulgação da exposição intitulada Arte refaz o universo, Frederico Morais é
inclusive mais contundente, arriscando um tom provocativo ao, mencionado,
projeto de inclusão de Bispo do Rosario no âmbito das artes plásticas,
estabelecendo-o em posição de paridade com a elite de artistas consagrados,
dando, portanto, a seguinte declaração:
41
MORAIS, 1989. Grifo meu.
46
Para ele [Frederico Morais], o trabalho de Bispo é tão
coerente e lógico quanto qualquer criação conceitual. “Como os
novos realistas franceses, como os novos escultores ingleses”,
prossegue o crítico”. (...) “A obra de Bispo não é diferente da
criação de Tunga (representante da vanguarda carioca em cartaz
na Galeria Paulo Klabin). O mundo de Tunga é o estranho e
absurdo quanto o de Bispo. Se Bispo não é artista, nenhum
outro dos que mencionei, na arte contemporânea, é artista.”
42
Em tom categórico, definido no trecho acima citado, Frederico Morais não
oferece espaço à contraposição de argumentos em sua astúcia argumentativa. Ou a
esfera da arte admite Bispo como artista, ou se assume desautorizada também ao
status de que desfruta.
Frederico Morais em entrevista para a atual pesquisa, comentou o fato de
ter sido consultado por alguns jornalistas como foi o caso de José Castello
para um “aval” sobre o valor do trabalho de Bispo, aos quais, Frederico sempre
respondeu positivamente:
Até nessa época um repórter da revista Isto é, o José
Castello, me telefonou pra dizer assim: “olha, Frederico, eu
estou fazendo uma matéria sobre o Bispo e eu queria ter certeza
de que ele é uma figura importante, se os trabalhos dele têm
alguma significação, e queria que você confirmasse isso”. Eu de
fato confirmei.
43
José Castello, em O inventário das sombras, descreve os pensamentos que
o perturbavam até o momento de encontrar Arthur Bispo do Rosario, na Colônia
Juliano Moreira, e iniciar com ele uma entrevista. Em vários momentos do artigo,
Castello oscila diante da afirmação de ser Bispo do Rosario um artista. Observem
este trecho:
(...) No dia anterior, eu visitara o psicanalista e
fotógrafo Hugo Denizard [sic], autor de um curta-metragem
(que não tive a chance de ver) sobre a vida de Bispo. “Vá com
respeito, e não se deixe assustar com a primeira imagem, porque
ele é um grande artista”, Denizard [sic] me sugerira. Considerei
que algum exagero era razoável num homem que, como ele, de
um lado praticava a psicanálise e se interessava pelas turvações
da mente, e por outro era também um artista, um fotógrafo de
prestígio, vulnerável portanto às impressões fortes. Artista e
louco, Bispo poderia interessar a um homem como Denizard
42
MARIA, 1989.
43
MORAIS, 2005.
47
[sic]; quanto a mim, talvez estivesse me propondo uma tarefa
acima de minhas forças.
44
Castello conta que, ao entrar no salão do pavilhão 10, conjunto de celas
muito escuras de Bispo, tinha os olhos ainda ofuscados pela claridade da manhã
acesa lá fora, no pátio. Aos poucos, conforme aclimatava os olhos para ver
“aquilo que um repórter acostumado com a ordem e a claridade, não é capaz de
ver”
45
, José Castello encontrava a existência daquilo que não supunha: “(...) o que
eu ia encontrar em Arthur Bispo do Rosario: brilho, e não escuridão, e também
movimentos tortos, que pareciam insensatos mas, na verdade, construíam uma
obra atordoante.”
46
. O repórter, em seu artigo, refere-se a uma “obra atordoante”,
a um “percurso místico [de Bispo], em que “loucura, salvação e arte estavam
dramaticamente associados” e, em contraposição, declara:
(...) ao olhar para aquelas ruínas, para aquele mundo de sobras e
dejetos, não podia, confesso, pensar em arte. Mesmo que
desejasse, Bispo não permitira que eu o fizesse. Se eu estava ali,
se ele me deixava entrar, devia respeitar a face sagrada de seu
mundo.
47
Quando estive pessoalmente com Frederico Morais, quis saber se houve
alguma dificuldade em legitimar o Bispo como artista no circuito oficial das artes
plásticas, ao que ele me respondeu:
Acho que não. Acho que se percebeu muito rapidamente
a importância do Bispo, o estatuto do Bispo como artista, talvez
porque um pouco a iniciativa tenha sido minha (...) eu já tinha
um certo prestígio, um certo nome como crítico de artes, quer
dizer, minha palavra tinha alguma autoridade. E depois pela
própria obra do Bispo. Não havia dúvida. Depois, sim, houve
uma discussão sobre isso, sobre aquilo. A Vera Chaves
Barcelos tem uma série de textos em que ela, de alguma
maneira, questiona a idéia do Bispo como artista, e diz: “O
Bispo é diferente”; mas ao mesmo tempo encantada com o
Bispo (...). A minha tese, nesse caso aí, é a seguinte: ele não se
fez um artista porque era louco, ele é artista apesar da loucura.
Porque se não, se ele se tornasse artista por causa da loucura, a
gente poderia, então, desdobrar isso, dizendo que a loucura é
um caminho necessário. Em alguns casos até é (...) Nunca estou
fazendo o elogio da loucura, mas me interessa a loucura, me
interessa muitas outras pessoas, um Rilke, um Klee, a loucura
44
CASTELO, 1999. p. 287.
45
Ibidem. p. 287.
46
Ibid.p. 287.
47
Idem. p. 300. Grifo meu.
48
como uma possível base para o trabalho criador, ou como um
estimulador, o Artaud, o Holderlin (...), a loucura não é arte
nesse sentido, também não existe uma loucura artística, senão o
louco também deveria fazer o seu estágio na Escola de Belas
Artes. Então são coisas diferentes, mas é preciso ficar claro que
o Bispo não é um artista popular, não é um artista naïf, não é
fruto de uma terapêutica ocupacional, pelo contrário, ele lutava
contra isso. Portanto ele é um artista na totalidade, na natureza
do termo.
48
“Ele era artista apesar da loucura”, diz Frederico Morais. Artista na
acepção da palavra. E qual é, leitor, exatamente a acepção da palavra arte e da
palavra artista? Não se apresse em responder. Por abrigar conceitos móveis, o
domínio dessas palavras pode acolher sentidos inesperados a cada época, prepare-
se, leitor, para as suas rotações. Um novo significado para as palavras arte e artista
será a base de um discurso dotado de força retórica suficiente, para desarticular a
torre em que se apóia o tratado de invenção de Bispo como artista e conservá-lo
em seu território específico.
4.3. Isto [não] é arte
Um título controvertido foi publicado em uma crítica de Luiz Camillo
Osorio, no jornal O Globo, à época da Mostra do Redescobrimento, no ano de
2001, sobre um dos módulos da exposição, intitulado: Imagens do Inconsciente,
em que Camillo reflete as realizações dos internos do Museu do Inconsciente,
mais especificamente, os desenhos de Fernando Diniz. A matéria trazia a seguinte
chamada: “Isto não é arte”.
O artigo de Camillo Osorio se a partir de um diálogo, por ele
presenciado, entre um aluno e uma professora em visita à, já citada, exposição:
“Imagens do Inconsciente”. A professora pergunta aos alunos o que eles acham
dos desenhos de Fernando Diniz e um aluno responde: “acho que são rabiscos de
um maluco”. A professora se interpõe à provocação do aluno, dizendo que não,
aqueles desenhos não eram rabiscos de um maluco, aqueles desenhos eram obras
de arte. O incômodo de Camillo se detém à resposta inábil da professora que, em
sua opinião, justificava não serem aqueles desenhos “coisa de maluco”, porque
estavam admitidos, por critérios de vozes autorizadas, como obras de arte.
48
MORAIS, 2005.
49
Camillo quis reforçar a reflexão de seus leitores, para o fato de que o
criador daqueles desenhos, Fernando Diniz, ser, sim, um sujeito diagnosticado
como louco, interno de um hospício e para esta especificidade não se poderia
desviar a atenção. Quer dizer, o garoto, apesar do claro propósito de irreverência
contra a professora, não estaria errado em dizer: “são rabiscos de um maluco”. Os
desenhos de Fernando Diniz não deixarão de ser desenhos de um louco, por serem
obras de arte ou por estarem simplesmente destacados em um museu, em uma
mostra de prestígio, muito menos Fernando Diniz deixará de ser um louco
diagnosticado, por produzir desenhos e pinturas admitidas como obras de arte.
Em entrevista a mim concedida, Camillo Osorio referiu-se ao caso
supracitado e, assim, desenvolveu sua argumentação:
A chamada da crítica geralmente é feita pelo editor. A
chamada dizia que aquilo não era arte. Mas o meu argumento,
que levou a essa chamada da crítica – e essa chamada, eu acho,
era pertinente, que ela pode ser lida como um
desmerecimento dos trabalhos “ah, aquilo não é arte, logo
aquilo é ruim”, ou, “logo aquilo é desqualificado” – , mas o teor
do meu argumento era o oposto, falar que aquilo não era arte
era uma maneira de qualificar aquilo, no sentido de que tomar
aquilo como arte, ou, apenas como arte, me parecia reduzir as
possibilidades de relação que aquela aura, aquelas obras, aquela
pintura, tinha com o público.(...) Eu queria, justamente, com
essa observação de que aquilo não era obra de arte, pensar em
que medida essa especificidade psíquica do Fernando Diniz,
catalogada como loucura, ela tem uma potência expressiva, e
como essa potência expressiva da loucura, tangencia a questão
artística, mas ela não se reduz à questão artística, na medida em
que a questão artística implica num quadro de referência
histórico – isso não quer dizer que seja o que interessa nas obras
de arte, o quadro de referência histórico, mas uma
consciência histórica, um pertencimento a uma história,
uma condição de possibilidade, de sentido artístico, que o artista
de certa maneira assume, enfrenta, transforma, que aquela
produção passa ao largo, o que não quer dizer que aquela
produção ao passar ao largo seja menor do que aquelas artísticas
que assumem isso como uma questão pros seus trabalhos. Eu
acho que uma diferença e quando você chama aquilo,
apenas, de uma obra de arte, você abre mão dessa diferença, que
é uma diferença até pra se potencializar a questão da loucura,
potencializar no sentido de pensar a especificidade, a
singularidade e o canal de expressão que essa consciência
artística não dá conta (...).
O artista está cumprindo determinações de um circuito,
de uma instituição, de um mercado. A diferença é que o artista
produz pra um público e para um conjunto de expectativas que
esse público, seja esse público o cara que vai freqüentar o
50
museu, seja esse público a crítica, seja esse público a História
da Arte, mas ele produz com um público, o cara dentro não
produz com um público, ele produz pra se libertar dele mesmo,
dos seus fantasmas (...).
49
A frase “tomar aquilo como arte, ou, apenas como arte, me parecia reduzir
as possibilidades de relação que aquela aura, aquelas obras, aquela pintura, tinha
com o público” era, para mim, uma menção óbvia de Camillo à pergunta que
Marcel Duchamp um dia se fez: “Como fazer uma obra de arte que não seja
Arte?”. Acontece que, transcrevendo a entrevista, pude reparar que a discussão
por ele proposta estimulava essa linha de raciocínio, porém desdobrava-se para
outro rumo, criava diferenças entre as expressões: arte / artista e potência
expressiva. Para ele, arte e artista são entidades intrinsecamente presas à
“consciência” histórica e artística –, bem como às determinações de uma esfera
artística, na qual estão em jogo: artistas, público dos museus e de galerias, críticos,
curadores, historiadores, consultores, diretores de museus, colecionadores, ou
seja, o mercado e seus intermediários. Então, tudo aquilo que produz efeito
estético, mas não está incorporado a tal contexto, é alguma coisa periférica ao
centro deste corpo (arte), algo “além”, ou fora deste território denominado “arte”,
coisa admitida como potência expressiva”, potência esta, não “reduzida” à
questão artística.
O ponto de vista de Camillo Osorio é partilhado por José Castello, aquele
de quem o leitor deve se lembrar, o qual confessa, ao olhar para a criação de
Bispo articulada com materiais recolhidos de sobras e dejetos, em ruínas, não
poder pensar naquilo como arte. José Castello conta uma passagem de seu
encontro com Arthur Bispo:
“Você se considera um artista?”, perguntei. Ele me
ignorou. Ajeitou seus painéis, remexeu nos objetos empilhados
nos baús e por fim, com uma expressão de desagrado, me disse:
“Eu sou o salvador, não sou artista de TV”. então percebi
que o tinha ofendido. A referência à TV, por certo, trazia
consigo as idéias de sucesso fácil, brilho, fama, riqueza terrena,
tudo o que ele mais desprezava. Fosse ‘só’ artista, eu me
arrisquei a pensar, talvez não tivesse realizado a obra que
deixou que depois de sua morte, contrariando seu desejo, foi
absorvida pelo circuito de arte e já mereceu exposições em
museus de prestígio.
(...)
49
OSORIO, 2005.
51
A partir dos anos 80, as artes plásticas brasileiras
tornaram-se, mais que nunca, peças de investimento e de
mercado. A obra de Arthur Bispo do Rosário, porém, o se
encaixa nesse circuito de marchands, galerias, museus e
bienais. Levada, anos depois de sua morte, para uma
retrospectiva no Museu de Arte Moderna do Rio, ela foi um
pastiche de si mesma. Sua obra poderá ser, e será, exposta
muitas outras vezes; mas, por mais que se fale dela, por mais
que se teorize a seu respeito, ela estará sempre a nos escapar.
Visto como ‘artista’, e aqui não há nenhuma desonra para a arte,
Bispo seria traído. Metade da obra, aquela parte que não quer
brilhar, mas transcender, ficaria de fora.
50
Castello desenvolve um pensamento “semelhante” ao de Camillo Osorio.
Alguns pontos sobressaem em seu texto, um deles encontra-se no seguinte
período: “(...) fosse artista, eu me arrisquei a pensar, talvez não tivesse
realizado a obra que deixou”. Castello, por uma estratégia argumentativa, “se
arrisca” a um jogo de palavras, através do qual concede a Bispo um espaço não
limitado ao campo do ser “só” artista, associando, indiretamente, o “artista” a
valores “desprezados” por Bispo, do tipo: “brilho, fama, riqueza terrena”. A prova
desta associação feita por Castello está, ao final do trecho, quando o autor afirma
que Bispo, visto como artista, seria traído, pois “metade da obra [de Bispo],
aquela parte que não quer brilhar, mas transcender, ficaria de fora”.
Outro ponto importante está ali onde Castello faz menção ao fato de a obra
de Bispo, montada em uma retrospectiva no Museu de Belas Artes, parecer “um
pastiche de si mesma”. Pastiche é o termo usado para designar a “imitação” de
uma obra, o uso do termo suscita um julgamento crítico pejorativo associado à
idéia de cópia malfeita “cópia malfeita de si mesma”. É da competência da
curadoria relacionar os trabalhos de um artista (ou de um conjunto de artistas) a
um contexto de idéias eleitas, idéias a serem refletidas, inventando, encadeando
um discurso para a montagem da exposição. “Montar” uma exposição é um
trabalho conceitual e criativo. Ao modo, por exemplo, de uma produção textual, o
curador construirá um diálogo com o público, fará um vínculo entre suas idéias e
o trabalho do artista. Qualquer montagem de exposição, nesses termos, interferirá
em uma idéia inicial. Arthur Bispo do Rosario esperava usar a sua nave e o seu
manto para se apresentar a Deus no dia do Juízo Final, no entanto, foi sepultado
50
CASTELO, 1999. p. 300.
52
sem a obra que, uma vez mantida, tomou outro destino, assumiu novo contexto,
muito diverso da representação sagrada.
Se relacionarmos a fala de Luiz Camillo Osorio com a de Frederico
Morais, para ressaltar a oposição de seus conteúdos, notamos o uso dos mesmos
elementos relacionados: o louco, o artista e o círculo das artes plásticas,
remanejados em movimentos de inserção ou exclusão, pelo plano de construírem
argumentações distintas. Frederico Morais, balizando a obra de arte autêntica
como uma metáfora do mundo e identificando esta qualidade na obra de Arthur
Bispo do Rosario, atribui a ele uma condição vantajosa em relação à obra de
“outros artistas contemporâneos”, não comprometidos com a mesma proposição
poética. Além de, por comparação, erguer Bispo do Rosario a um patamar até
“superior” ao de certos artistas contemporâneos, o inclui no mundo das artes
plásticas.
Afirmando ser a potência expressiva de um louco tangencial à questão do
artista, por não se reduzir a ela e porque o artista cumpre determinações de um
circuito, Camillo Osorio reserva a obra de Arthur Bispo do Rosario à parte ao
“circuito das artes”, por entender este espaço como sendo aquele em que está
implícita a relação do artista com o público (em suas variadas faces), sendo o
objeto estético resultado da consciência desta interação e concebido para um
mercado: representação calculada.
Camillo evoca a força da situação cultural; provoca uma quebra de
consenso no discurso de afirmação de Bispo do Rosario como artista, convocando
uma consciência para o sistema produtivo e social em que se insere a realidade
artística; desmonta, por isso, os modelos convencionais assentados para o papel da
arte e do artista; eleva, em contrapartida, o valor expressivo do trabalho de Bispo,
mantendo-o em sua especificidade: o espaço da loucura. Enquanto, Frederico
Morais, afirma ser Bispo do Rosario um artista na totalidade, na natureza do
termo, Camillo enuncia uma outra natureza para o mesmo termo, em sua
totalidade.
Perguntei a Camillo se via algum impedimento em os trabalhos de Bispo
ocuparem as salas dos grandes Museus. Transcrevo, a seguir, o trecho da
entrevista relativo ao assunto:
53
Você acha que o espaço dessas obras não é o espaço dos
grandes museus?
Eu acho que até pode ser o espaço dos museus, eu não veria
nenhum problema em o Ministério da Saúde fazer um comodato
com o Ministério da Cultura e esses trabalhos ganharem uma
sala especial dentro de um museu, não vejo problema nenhum
nisso.
Você acha que deveria ser uma sala especial?
Acho que sim. Eu acho que (...) tudo bem, seria possível se
pensar, eventualmente, em curadorias, como num exemplo,
assim, de imediato, trazer algumas coisas do Leonilson para
dialogarem com o Bispo, e outros artistas que possam dialogar,
desenhos do Barrio, enfim, pontualmente. Agora, deveria, sim,
ser, eu acho, um espaço “Bispo do Rosario”, ou criar uma força
conjunta, pegar o Engenho de Dentro, pegar o Bispo, criar um
espaço dentro de uma única instituição, que pode ser Museu
do Inconsciente” ou “Doutora Nise”, desde que se especificasse
a diferença entre o Bispo e os artistas do Engenho de Dentro e
ter um espaço próprio.
51
Por contrastar o valor da criação de Bispo com o valor do artista, mesmo
elevando o primeiro a uma potência expressiva e a uma dignidade alheia ao
pragmatismo do mercado, e depois reduzindo o segundo, por mediar a potência
expressiva com as solicitações de público e mercado, sinto-me tentada a entrever
na fórmula do discurso de Camillo um traço retórico, inclinado a elevar o valor da
obra do sujeito contextualizado na loucura, para, assim, alinhá-lo fora da categoria
artística propriamente dita.
Enquanto escrevo este item nomeado como “Isto [não] é arte”, devo
organizar o discurso, devo adequar-me ao atual contexto e, para tanto, ajusto-me
ao campo semântico do tema examinado, mas perturbo-me com o perigo de
levianamente proferir. Como nomear essa outra coisa “não arte”, empreendida por
esse sujeito “não artista”? Vejo-me, momentaneamente, privada de uma palavra,
uma unidade que os represente. Concebendo a palavra como um continente, um
território, e deslocando-me na superfície de articulação de idéias de Camillo,
“arte” é continente para os artistas, não para o louco.
O livro sobre a obra de Abraham Palatnik, escrito por Camillo, conta a
experiência transformadora e relevante vivida pelo artista, após ter freqüentado,
em 1948, o ateliê dos internos do Museu do Inconsciente, orientado pela doutora
51
OSORIO, 2005.
54
Nise da Silveira. Nesse livro, Camillo apresenta quatro expressões para
representar a coisa “não arte”, as quatro possibilidades consistem em palavras
seguidas de um complemento. As expressões são: força expressiva, potência
estética, expressão criativa, realizações assombrosas
52
. Para o “não artista”, por
sua vez, a palavra fica sendo: louco, mesmo. Aonde quero chegar?
Mesmo concordando em haver uma irrefutável diferença entre as
contingências de produção estética de um “louco” e de um “artista”, suponho não
haver um espaço específico para a ocorrência da arte, porque ela simplesmente
acontece sem que se possa controlar, sem que possamos circunscrever-lhe o
espaço de ocorrência.
O painel de controvérsias exibido pelas declarações anteriores, evidencia o
fato de a obra de Bispo recolocar a questão ontológica: “O que é arte?no debate
crítico, afinal, o estatuto da arte e o valor de um objeto artístico escapam a um
consenso por estarem submetidos a fatores ligados ao juízo crítico. Este juízo,
como sabemos, é instável, e resulta de uma espécie de negociação ou “reação”
entre o objeto estético e o receptor, conforme um complexo cultural internalizado
pelo público (o receptor) e presente no próprio objeto estético, porque os valores,
as orientações, a consciência histórica do receptor interferirá em sua leitura. É o
que se chama efeito estético” que, por sua parte, “será plantado na estrutura da
obra e será atualizado de acordo com o ‘horizonte de expectativas’ (...) de seu
receptor”.
53
5. Brilho, fama, riqueza terrena
Em 1990, após o sucesso da exposição Registros de minha passagem pela
terra: Arthur Bispo do Rosário, na Escola de Artes Visuais Parque Lage, o círculo
das artes plásticas continuou sob o impacto do que vira. O crítico Geraldo Edson
de Andrade, do jornal Última Hora, Rio de Janeiro, publicou um texto intitulado
Um ano passado a limpo, em que a foto legendada é da miniatura de uma
embarcação de Arthur Bispo. Geraldo Edson, ao longo da matéria escrita no
primeiro mês do ano de 1990, abre a redação assim: “Triste. O que mais
caracterizou o ano de 1989 não foram as exposições nem os eventos
52
OSORIO, 2004. p. 52.
53
COSTA LIMA, 2002. p. 25.
55
internacionais ligados às artes plásticas, mas, sim, a perda de alguns dos nossos
mais expressivos valores (...)”, referindo-se ao falecimento de Germano Blum,
Paulo Garcez, José de Freitas, Nelson Porto, Haroldo Barroso e o crítico Marc
Berkowitz. Continua a revisão do ano anterior, ressaltando a crise econômica:
(...) Enfrentamos crises (...) A primeira econômica. Com a
inflação galopante após o frustrado Cruzado Novo, o mercado
de arte tentou de todas as maneiras driblar a falta de
compradores, mas esbarrou numa moeda mais forte, o dólar,
que os principais artistas adotaram. Tornou-se impossível para a
classe média tentar chegar a [sic] obra de arte. Como opção, a
feira de Ipanema [sic], já que, por desinformação, qualquer
quadro acaba servindo para ocupar uma parede. Triste, porém
verdadeiro.
54
E finaliza a matéria com o seguinte parágrafo:
A maior surpresa, e também a melhor exposição do ano,
aconteceu na Escola de Artes Visuais do Parque Lage: Arthur
Bispo, que durante anos foi interno na Colônia Juliano Moreira,
teve toda a sua obra coletada pelo crítico Frederico Morais. Pela
primeira vez pude contestar nos olhos do visitante a emoção.
Aquela emoção pura que os verdadeiros artistas são capazes
de transmitir. Uma maravilha.
55
Pontos notáveis sobressaem na crônica de Geraldo: o primeiro ponto está
em contextualizar o momento histórico-social em que se encontrava o meio de
artes plásticas brasileiro, na época em que Bispo do Rosario é apresentado como
artista. O segundo item reflete o fato de Bispo aparecer no cenário das artes , no
ano de 1989, trazendo uma “maravilha”, como diz o crítico, exatamente em um
momento de crise para o mercado das artes.
Como sabemos, a obra de Bispo foi construída a partir de subprodutos,
restos do mundo industrializado, recolhas do lixo da instituição psiquiátrica.
Geraldo confronta, voluntária ou involuntariamente, valores opostos dentro de um
mesmo espaço de exibição: um lado é o de quem agencia os valores estéticos da
produção artística como empreendimento, com vistas ao mercado de grandes
“investidores”, isto porque, arte, em um certo patamar de atuação é também uma
forma de enriquecimento, caso contrário, não existiriam colecionadores; o outro
54
ANDRADE, 1990. p. 2.
55
Ibidem.
56
lado é o daquele que produz arte sem saber, sem a perspectiva de mercado,
transformando os bens de consumo ordinários em efeito estético. Quer dizer, o
grande efeito, a “grande emoção” causada pelos trabalhos de Bispo estão
associados, na ordem inversa de raciocínio, a valores e referenciais embutidos na
noção de sistemas de produção e mercado, isto atribui à obra de Bispo uma
vocação crítica que, mesmo em seu caráter espontâneo, não intencional, “realiza-
se” mediante o olhar do outro a atualizar, pela leitura, sua própria realidade,
porque o leitor anseia por interpretar.
O terceiro ponto recai sobre a seguinte frase: Pela primeira vez pude
contestar nos olhos do visitante a emoção. Aquela emoção pura que os
verdadeiros artistas são capazes de transmitir”. Note-se o papel de testemunha
ocular assumido por Geraldo, quando afirma ter visto a emoção nos olhos do
visitante pela primeira vez, caracterizando, portanto, o êxito do projeto de
transformação de Bispo do Rosario em artista verdadeiro.
No mês de março de 1990, o Museu de Arte contemporânea (MAC)
montou a exposição Registros de minha passagem pela Terra. O Estado de São
Paulo publicou uma nota assim:
Quando Ana Mae Barbosa, diretora do Museu de Arte
Contemporânea (MAC) der início hoje, às 9 horas, ao simpósio
que acompanha como evento paralelo a [sic] mostra de Arthur
Bispo do Rosário, algo será acrescentado a um diário que o
museu tem mantido com a natureza da arte. Desde 1987, na
direção do museu, Ana Mae tem orientado parte desta reflexão
pela exposição da arte produzida fora da hierarquia bem-
pensante da estética oficial, e, através da produção das minorias,
com o que a maioria chama de normalidade.
(...) O único senão foi o título dado à seção: Arte
Incomum.
Incomum para quem? Não para Bispo, que tecia com
notável coerência a sua representação particular do universo (...)
a ponto de transformá-lo numa Odisséia de objetos de dolorida
beleza. (...) Para Bispo, o estranho, o estrangeiro somos nós. É
nesse sentido que se encaminham, aparentemente, as discussões
no MAC, cuja política cultural tem sido mantida na ponta das
indagações atuais.
56
E a Folha de São Paulo divulgou uma matéria na coluna “Acontece”, na
qual o repórter Marco Henrique Veloso inicia o a redação, dizendo:
56
O ESTADO DE SÃO PAULO. 1990.
57
É incrível o esforço que se tem feito para colocar os
objetos criados por Arthur Bispo do Rosário, morto em julho de
1989, no interior do universo da arte. Terreno quase místico da
sociedade contemporânea, a arte tem a sua definição limitada
por valores aristocráticos, que a tornariam reconhecíveis apenas
a alguns poucos, enquanto, de outro lado, ela poderia ser tudo
ou melhor, qualquer produto da atividade humana pode ser arte.
A exposição de Bispo, que o Museu de Arte Contemporânea
está apresentando até o dia 27 de maio, tem tudo para acelerar
esse tipo de discussão.
57
Mesmo considerando certa ambigüidade na escrita do segundo repórter,
está marcada na redação de ambos, a preocupação em pronunciarem suas
opiniões, ou a opinião das instituições por eles representadas, sobre a
característica elitista e hierárquica do espaço dos grandes museus.
Quando a diretora do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo expôs o
acervo de Bispo sofreu reação de um grupo de artistas. O argumento do grupo
queria caracterizar o MAC como território de elite, porque “lugar de louco é no
hospício”, segundo a declaração da diretora do Museu de Arte do Rio Grande do
Sul (MARGS), Míriam Avruch, no dia 12 de junho de 1990, no período de
divulgação da mostra Registros de minha passagem pela Terra, para a temporada
de Porto Alegre
58
.
O tema, é claro, foi utilizado como “gancho” de reportagem, em tom de
“denuncia”, para render boas chamadas e despertar o interesse do leitor sobre o
evento, mas sugere, simultaneamente, as controvérsias decorridas no entorno da
repercussão da obra de Arthur Bispo e sua penetração em um “espaço” fundado
em alicerces institucionais de uma produção cultural erudita; espaço reservado à
visibilidade nacional e internacional dos artistas reconhecidos como
“verdadeiros”; espaço de legitimação, prestígio e hierarquia, como é o caso do
Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, no contexto nacional. Ocupar os
salões de um grande museu não significa, como vimos, somente preencher o
espaço físico do mesmo, ou ocupar uma sala, ou uma parede, para além disso está
envolvido um gigantesco conjunto de valores simbólicos, com vistas sempre
lançadas ao mercado global.
57
VELOSO, 1990.
58
SILVA, 1990. p. 2.
58
6. Fome dos cupins e outros bichos: tragar devorar
engolir
O ano de 1992 traz uma nova polêmica em torno da produção de Arthur
Bispo, acompanhada de novos ganchos de divulgação. O acervo de Bispo estava
ameaçado, entregue aos cupins. Daniel Stycer, pelo O Globo, escreve:
O Brasil está prestes a apagar mais um pedaço de sua
memória. Enquanto boa parte das 802 obras do artista Arthur
Bispo do Rosário apodrece e é consumida pelos cupins no
Museu Nise da Silveira, na Colônia Juliano Moreira, seus restos
mortais correm o risco iminente de serem jogados no ossário
geral do Cemitério do Pechincha, em Jacarepaguá. Isto porquê,
transcorridos exatos três anos de sua morte neste domingo, a
associação dos amigos dos artistas da colônia ainda não
conseguiu juntar Cr$ 689 mil, o mínimo necessário para dar um
destino digno à ossada do artista.
59
Vê-se na escrita de Daniel Stycer a associação da obra de Bispo do
Rosario com a memória histórica do país e a intenção de denunciar as autoridades
públicas, omissas à responsabilidade de proteção de um patrimônio cultural
brasileiro. O repórter informa ao leitor desavisado sobre a incorporação do
trabalho de Bispo ao ambiente internacional, ao ter sido exibido, em parte (369
peças), no Museu Kulturhuset, em Estocolmo, na exposição Viva Brasil viva, ao
lado de 29 artistas brasileiros e recebendo destaque no catálogo da exposição.
Mais adiante, a psicóloga e diretora do Museu Nise da Silveira, instalado
na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, relata o estado precário de
conservação do Museu, “sujeito ao vento e à chuva”, sem janelas e com goteiras.
As boas notícias estão por conta da conclusão do inventário da obra do artista que,
contudo, ainda esperava obter através do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural
(Inepac), o tombamento cultural da obra.
Paralelamente à exposição, programou-se a produção de um vídeo,
dirigido por Miguel Przewodowski e Helena Martinho da Rocha, contando a
história de amor não correspondida, de Arthur Bispo do Rosario pela estagiária de
psicologia Rosângela Maria, única a conseguir uma pálida aproximação de Bispo
59
STYCER, 1992. p. 2. Grifo meu.
59
com a realidade. Com Rubens Corrêa, no papel de Bispo, e Christiane Torloni, no
papel de Rosângela Maria, o vídeo foi exibido pela TV Manchete.
Como se vê, cada exposição aliava estratégias pela sobrevivência da
memória de Bispo, transformada em memória e identidade nacionais. Bispo, que
pensou apresentar o mundo a Deus, representava o país aos olhos do mundo. O
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM) iniciou os preparativos para a
exposição em 1992. Um release, com data do dia 30/11/92, com o timbre do
Museu de Arte Moderna e assinado pela Coordenadora de Artes Plásticas, Denise
Mattar, solicitava apoio da transportadora Fink, nos seguintes termos:
O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro está
organizando uma grande exposição de Arthur Bispo do Rosário
(ver biografia anexa). A mostra será apresentada de 7 de Janeiro
a 7 de Março de 1993, ocupando uma área de 1.800 m
2
.
Acreditamos que será uma das mais importantes
mostras do Museu, especialmente voltada para o público
visitante neste período: turistas internos e estrangeiros.
Apesar de sua importância a mostra não contará com
nenhum patrocínio, porisso [sic], devido ao nosso longo
trabalho em conjunto, vimos solicitar à sua empresa o apoio
para a realização desse evento.
As obras do artista estão guardadas no Museu da
Colônia Juliano Moreira em Jacarepaguá e devido à dificuldade
da montagem da exposição gostaríamos de fazer esse transporte
ainda no início de Dezembro.
60
Partindo de uma das mais prestigiadas instituições brasileiras de Artes
Plásticas, o texto confere a Bispo do Rosario, sem restrições, a competência de
“artista” e credita ao evento o alcance de “uma das mais importantes mostras do
Museu”, ainda assim, a carta revela o descaso das competências públicas em
relação a seu próprio patrimônio. A despeito das dificuldades, foi aberta a
exposição Arthur Bispo do Rosário, o inventário do mundo, no salão principal do
MAM. Dois dias depois o Jornal do Brasil publicava:
Foi uma loucura! Meio Rio de Janeiro se acotovelou
anteontem às portas do Museu de Arte Moderna na abertura da
retrospectiva das obras do esquizofrênico Arthur Bispo do
Rosário. A multidão cerca de 800 pessoas número
raramente visto em outras exposições obrigou os organizares
[sic] a abrirem as portas antes da hora. (...)
(...) Todos comentavam a ironia da trajetória de Bispo
de interno da Colônia Juliano Moreira ao centro das artes
60
Anexo 2. Grifo meu, p. XIII.
60
plásticas cariocas da atualidade. Uma trajetória que agora se
reveste de cores trágicas. As festejadas obras de Bispo estão
ameaçadas: os cupins estão devorando assemblages, cenários,
(...) e objetos mumificados. “As obras precisam de um
cuidadoso trabalho de restauração e a Colônia Juliano Moreira
não tem recursos”, diz Luiz Carlos Wanderley, da Colônia, que
apresentou pedidos de ajuda a várias instituições culturais do
governo, sem sucesso. “No Brasil o conjunto da obra de um
artista não sobrevive em bom estado sequer dez anos após a sua
morte, por absoluto descaso das autoridades”, comenta Aluízio
Carvão, em meio aos artistas plásticos presentes como Lena
Bergstein, Ana Maria Maiolino, Manfredo Souzanetto, Cristina
Pape.
61
Os problemas com o acervo de Arthur Bispo do Rosario se estenderão por
algum tempo, mesmo que em maio de 1993, por ocasião de uma individual de
Bispo do Rosario, em Brasília, o jornalista Marcos Savini tenha anunciado:
Devido à precariedade dos suportes utilizados por Bispo
na confecção de sua obra, muitas de suas peças foram
deterioradas pelo tempo, cupins ou umidade, além do abandono
institucional a que foi relegado antes de suscitar interesse do
Governo Federal que patrocinou a restauração e
conservação do acervo e de particulares. Devido a esta
mesma precariedade, algumas das peças expostas no Rio de
Janeiro não puderam ser transportadas para Brasília, o que
segundo o curador Frederico de Morais [sic], não prejudica a
exposição na Athos Bulcão: “Todos os aspectos principais estão
representados”.
62
A afirmação de que o Governo Federal “patrocinou a restauração e
conservação do acervo” deve ser lida com reservas, pois não há, até esta época,
nenhuma menção direta na imprensa a respeito de ações do Estado em favor da
obra. Ao contrário, as indisposições políticas com as autoridades públicas só
vieram a se acirrar, conforme a obra alcançava maior visibilidade internacional.
61
JORNAL DO BRASIL, 1993.
62
SAVINI, 1993. Grifo meu.
61
6. 1. “El vampiro bajo el sol”
Ya se hizo noche, sé que debo hacer
Tengo mis cortes bajo una nueva piel
Los que me siguen no me alcanzarán
Hasta el amanecer (...).
(Herbert Vianna. In.: Severino)
Com o título “Exaltação a Bispo”, o Jornal do Brasil conta a história de
uma negociação entre a gravadora da banda, EMI-Odeon e os responsáveis pelo
acervo de Arthur Bispo do Rosario, a Associação de Amigos da Colônia Juliano
Moreira. Como capa do Caderno B de de abril de 1994, a matéria inicia da
seguinte forma:
O novo disco do Paralamas do Sucesso, Severino, com
lançamento previsto ainda para este mês, pode tirar do
esquecimento todo o acervo de obras de arte criadas por Arthur
Bispo do Rosário. Abandonados numa sala da Colônia Juliano
Moreira, os objetos criados por Bispo fascinaram os integrantes
da banda, que resolveram usá-los como ilustração da capa e do
encarte do novo álbum um alerta pela preservação de um dos
patrimônios mais originais da arte brasileira.
63
A obra de Bispo a esta altura estava tombada pelo patrimônio histórico,
mas as imagens, podiam ser negociadas. Conforme conta o repórter Paulo Reis, a
inglesa Lucy, esposa de Herbert Viana teria sugerido relacionar a obra de Bispo
ao projeto visual do CD, e menciona, em seguida, o entusiasmo do artista gráfico
Gringo Cardia, responsável pela programação visual do projeto, ao saber da idéia.
Gringo havia selecionado imagens de panôs bordados de Bispo para integrar a
arte do CD, as quais seriam também incluídas nos singles promocionais.
A obra, infestada de cupins, sofria devastação e os Paralamas do Sucesso
ofereciam-se como uma espécie de incentivadores. Transcrevo consecutivamente
as declarações de Herbert Viana, Gringo Cárdia, do jornalista Paulo Reis e de
Frederico Morais, demonstrando, cada um, as idéias alojadas na transação:
Como este disco fala muito de trabalho, de pobreza e do
Brasil, a idéia era usar pás e enxadas na capa. Mas depois de ver
as criações do Bispo, mudamos de idéia. (...) Obras como essas
63
REIS, 1984.
62
tinham que estar num grande museu, e não abandonadas e
apodrecendo.
64
(...) a descrição do universo deste homem (...) tem tudo
a ver com o disco do Paralamas. Os dois tentam resgatar uma
identidade perdida – no caso do disco, a própria identidade
brasileira.
65
Absoluto descaso com a cultura brasileira. Para o crítico
Frederico Morais, só isso explica o abandono da obra de Arthur
Bispo do Rosário, instalada precariamente na Colônia Juliano
Moreira.
66
Não ar condicionado e a sala tem goteiras e cupins
(...) é preciso fazer um trabalho mais técnico de restauração e
conservação, e a Juliano Moreira não tem dinheiro nem para
tratar dos internos (...) Nós recebemos convites do Nordeste e
da Bienal de Cuba, mas não conseguimos as embalagens, que
custariam US$ 25 mil.
67
A negociação, ao final, consistiu no pagamento, por parte da gravadora
EMI-Odeon, da descupinização do acervo instalado, precariamente, no Museu
Nise da Silveira, na Colônia Juliano Moreira, em troca dos direitos de livre
utilização de imagens da obra de Bispo no projeto gráfico do CD dos Paralamas
do Sucesso, com o bônus da divulgação adjacente. O leitor deverá se perguntar:
“Quem é o proprietário da obra?E a minha resposta é: o alienado mental, para o
Estado, não é dono de nada, assim, tudo o que Bispo criou, mesmo em vida,
pertenceu, e pertence ainda, à Colônia Juliano Moreira, quer dizer, ao Ministério
da Saúde. Aliás, Bispo chegou a dizer em entrevista a Hugo Denizart, enquanto
filmavam O prisioneiro da passagem:
HUGO – E como vai ser essa representação?
BISPO Eu vou estancar e apresentar o resplendor a fim da
representação do mundo. E quem deve me apresentar são os
interessados aqui da Colônia que, segundo a habitação de
Cristo, diz: eu, do hospício, devo apresentar a minha
transformação [sic]diretores. Mais nada.
64
Cf. REIS, 1984.
65
Ibidem.
66
Ibid. 1984.
67
Idem. 1984.
63
HUGO – Aos diretores?
BISPO É, aos diretores, eles o ficam aqui? quem pode
me apresentar são eles. Isso tudo aqui foi feito pra eles. pra
eles. Mais nada.
HUGO – Isso aqui foi feito para os diretores?
BISPO Não é eles que ditam? Então essa representação é
deles. E mais a minha representação do mundo.
(...)
HUGO – Mas os donos da representação são eles?
BISPO É, que são os diretores do hospício e daqui é que eu
devo ser apresentado à humanidade.
68
Outra pergunta possível do leitor, seria: Qual o valor representativo de
uma obra criada sem mensuração de partida, uma obra sem preço? Valor é coisa
que se atribui a algo. O valor da obra é estabelecido pelo artista em negociação
com o mercado. As obras de Bispo não foram criadas para o mercado, foram
criadas como uma representação das coisas do mundo, para Deus conhecer essas
“aparências”. O valor incutido por Bispo na obra, era um valor sagrado. Quando
Frederico Morais lançou Arthur Bispo no meio de arte brasileiro, assumiu, junto
com a Associação de Amigos da Colônia Juliano Moreira, a responsabilidade de
alterar o valor daquela obra, na medida em que tornou permutável o seu espaço de
atuação.
Bispo morreu e sua obra foi mantida, como um corpo fica quando perde o
espírito, até apodrecer, devorado pelos vermes, e sumir. Frederico incensou de
arte o corpo sem dono, deu-lhe outra vida. O problema é que para permanecer, a
obra precisou entrar em relação com o mundo dos vivos e passou a depender de
seus valores materiais. Para além da dependência, a obra virada em arte conectou-
se aos fundamentos da construção da realidade intersubjetiva de nossa vida
cotidiana e foi atingida pela cobiça do mercado. “Exumaram” o corpo, sem
calcularem os riscos de não poderem contar com o comprometimento do Estado,
daí se viram envolvidos em transações onde a sobrevivência “mais valia” e os
acordos, não.
68
HIDALGO, 1996. p. 137.
64
uma considerável diferença entre o compromisso oficial do Estado e o
comprometimento voluntário da Associação de Amigos da Colônia Juliano
Moreira. À atitude do primeiro está implicada uma promessa pactual, não
cumprida, e à atuação da segunda subentende-se a responsabilidade de proteger,
preservar, defender, diretamente, o acervo. A Associação de Amigos da Colônia
depende do dinheiro do Estado para agir. O Estado é o dono, a Associação,
resgata. Sem dinheiro, quero dizer, sem o comprometimento do Estado, o acervo é
terra de ninguém, e terra sem dono é coisa capturável.
A crise financeira por que passava o Museu Nise da Silveira pode ser
calculada pela qualidade do pacto ajustado. Frederico Morais na mesma matéria
do Jornal do Brasil, anteriormente citada, denuncia o descaso com a cultura
brasileira, ao abandonarem a obra de Arthur Bispo:
Bispo é comprovadamente um dos mais importantes
nomes da arte brasileira nas últimas décadas e já influencia
vários artistas. A sua obra tem reconhecimento internacional,
mas ninguém se dispõe a investir na sua preservação.
(...)
Acho ótima esta iniciativa dos Paralamas e espero que
com o auê em torno do lançamento do disco a gente possa
voltar à carga para salvar as criações do Bispo”.
69
A capa do CD, em sua face, apresenta um detalhe do estandarte Eu preciso
destas palavras . Escrita
70
. No ângulo direito, ao do encarte, o programador
visual do projeto, Gringo Cardia, inscreveu o nome da banda, junto com o título
do álbum. Como a resolução de divulgar a obra de Bispo, para chamar a atenção
de “outras” empresas dispostas a financiar a recuperação e conservação do acervo,
estava inserida no negócio da concessão de imagens, uma biografia e um texto
sobre Bispo deveriam acompanhar o encarte do CD. O texto está na penúltima
página do encarte, assinado por Frederico Morais. Abaixo estão os
agradecimentos
71
.
Enquanto o leitor se pergunta: “Qual teria sido o preço pago pelo projeto
gráfico de Gringo Cardia para o CD da banda Paralamas do Sucesso?”, eu ofereço
um trecho da reportagem de Luís Antônio Giron, de 1995, um ano após o
lançamento do CD Severino, onde ele apresenta os dados de vendagem do disco:
69
REIS, 1984.
70
Anexo 3, p. XIV.
71
Anexo 4, p. XV.
65
O CD vendeu quase 100 mil cópias. Mas os Paralamas
pagaram R$ 1.500,00 para o museu. Uma barbada pelo uso
de uma obra de arte no projeto gráfico de um disco.
72
Ainda em 1994, em meio ao desprezo total das autoridades competentes,
no caso, o Ministério Saúde e, por extensão, o Governo do Estado responsável
pelo tombamento e pela recuperação material do acervo – um acontecimento
começou a esboçar contornos de uma disputa, agravada um ano depois, em 1995,
pelo controle do acervo de Arthur Bispo do Rosario. O Museu Nacional de Belas
Artes (MNBA), naquele ano, com o objetivo de dar um melhor destino ao acervo
de Bispo, fez um requerimento ao diretor da Colônia, Laerth Tomé, solicitando o
empréstimo do mesmo, em regime de comodato, de modo que fizesse parte de um
antigo projeto de mapeamento da arte brasileira a ser ocupado na Galeria Mário
Pedrosa, galeria esta, recém-inaugurada e batizada com o nome do idealizador do
projeto. Conforme cita o repórter Paulo Reis do Jornal do Brasil, de 16/09/1994, o
diretor da Colônia responde assim: “Podemos até emprestar. O que não pode é
ficar no Museu para sempre. Em hipótese alguma”.
Laerth alegou o fato de estar sendo construído na Colônia um museu para
as peças do acervo. Segundo ele, o museu estava pintado de branco e com
janelas novas. No entanto, diante da pergunta do repórter sobre a existência de
uma reserva técnica, o diretor da Colônia respondeu: “Nós providenciamos apenas
o que a Denise Correa, a diretora do Museu Nise da Silveira, nos pediu.
Limpamos o local e colocamos janelas”. Na mesma matéria citada, o repórter
Paulo Reis uma descrição do estado em que se encontrava o Museu Nise da
Silveira:
A obra de Arthur Bispo do Rosário, difundida
internacionalmente, se encontra em estado deplorável. Sua
degradação é visível. Encoberta pela poeira e incompleta
objetos foram arrancados por desconhecidos, pisoteados e
quebrados –, está exposta em salas sem a mínima condição de
preservá-la. Enquanto o museu Nise da Silveira, localizado no
terceiro andar do prédio administrativo da Colônia Juliano
Moreira, não fica pronto, os trabalhos de Bispo encontram-se
espalhados em três salas. Numa delas, um canteiro de obras
onde trabalhadores caminham distraidamente sobre os objetos.
(...) Como o prédio da Colônia Juliano Moreira foi todo
pintado e as obras não estavam cobertas, acabaram borradas de
72
GIRON, 1995.
66
tinta. A descupinização do local, paga pela gravadora EMI-
Odeon como retribuição à utilização de obras na capa do último
disco do Paralamas do Sucesso, já não é eficiente.
73
Nesta mesma matéria, o repórter Paulo Reis torna pública, pela primeira
vez, a opinião de Frederico Morais a respeito do destino mais acertado para o
acervo de Bispo:
Para o crítico Frederico Morais, que vem cuidando da
divulgação internacional da obra de Bispo, o local realmente
não têm condições de preservar o acervo. “No momento tem
muita gente interessada em ver a obra de Bispo. (em
Jacarepaguá), ela fica distante. Não condições materiais e
físicas para que a obra permaneça onde está. Se houvesse, eu
defenderia a sua manutenção na Colônia. Mas acho que num
lugar como o MNBA melhores condições de exposição e
restauração”, defende.
74
6.2. 46ª Bienal de Veneza
O ano de 1995 trouxe o mais alto reconhecimento ao trabalho de Arthur
Bispo. Verificou-se também, neste ano, o aferramento das polêmicas em torno de
sua conservação e o domínio sobre sua repercussão. No dia 04/02/1995 saem dois
extensos textos de Frederico Morais no jornal O Estado de São Paulo. No
primeiro deles, com o pretexto de noticiar a participação da obra de Bispo na 46ª
edição da Bienal de Veneza, ao lado de Oscar Niemeyer e Nuno Ramos. Morais
escreve uma micro-biografia divulgando descobertas inéditas sobre o passado de
Bispo, aptas a preencherem os apagamentos propositais do próprio artista. A
matéria de gina inteira chama a atenção do leitor para o discurso de auto-
referencial de Frederico, querendo demonstrar todos os anos de esforço e
dedicação por ele dedicados à obra do seu protegido. Note-se esta passagem:
(...) tendo como ponto de apoio, sempre, o que ele, Bispo
do Rosário [sic] chamava de “registros de minha passagem pela
terra” (...) fui levantando nomes, locais, datas, atividades,
histórias de amor e de vida, posteriormente confirmadas por
depoimentos de contemporâneos seus e novos documentos, que
me permitiram elaborar uma biografia mínima, necessária à
compreensão do seu universo simbólico. Para reconstruir o
73
REIS, 1994.
74
Ibidem.
67
épico de toda sua vida, dentro e fora da colônia, o antes e o
depois da loucura, precisei agir como um detetive disposto a
elucidar um crime, ou como um médico-legista dissecando um
cadáver.
(...)
Hoje sabemos que Bispo do Rosário nasceu em 16 de
março de 1911, em Japaratuba, interior de Sergipe (...)
(...)
O exame de seu prontuário médico indica a existência de
dois vazios 1944 a 1948 e 1954 a 1964. Ainda não pude
confirmar se nos dois lapsos de tempo aludidos Bispo do
Rosário teve alta médica, se foi transferido para outro hospital
ou mesmo se fugiu. É certo, porém, que nestas ausências
trabalhou em um escritório de advocacia, como porteiro do
hotel, como guarda-costas e cabo-eleitoral de um senador da
República. No início de 60, trabalhou como faz-tudo numa
clínica pediátrica, onde comprovadamente realizou parte de sua
obra. Uma nova crise levou-o de volta à colônia, em 8 de
fevereiro de 1964, de onde não mais sairia.
(...) O resgate de Bispo do Rosário como artista teve
início em 1982, quando incluí alguns estandartes e assemblages
na Mostra À margem da Vida, que organizei para o Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro (...)
75
Frederico Morais escreve em primeira pessoa, em tom de relato pessoal, na
intenção evidente de registrar, na memória documental da mídia, seu trabalho
biográfico e crítico sobre a obra de Bispo do Rosario. Por sua curadoria, diz ele,
inseriu Bispo no cenário mundial das Artes; levou-o a participar da primeira
mostra internacional: Viva Brasil Viva, em Estocolmo, em 1991; apresentou-o ao
público de São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba e Brasília e
organizou as exposições em cada uma destas localidades. Comenta Frederico
haver, então, uma fortuna crítica sobre Bispo do Rosario análises, ensaios, teses
universitárias, filmes de curta e média metragem. E se refere a publicações em
andamento na Suécia, México e França.
Na mesma matéria, um segundo artigo conta a história de como se formou,
quatorze (14) dias depois da morte de Arthur Bispo, a Associação de Amigos dos
Artistas da Colônia Juliano Moreira, com a prioridade de proteger e divulgar a
obra de Bispo. Conta sobre o propósito presente na mostra da Escola de Artes
Visuais do Parque Lage de “inserir a obra do artista no ecúmeno da cultura
brasileira, mediante a discussão ampla de seus múltiplos significados”. E expõe os
problemas financeiros do acervo:
75
MORAIS, 1995.
68
O acervo de Bispo do Rosário está legalmente
sob a guarda da Colônia Juliano Moreira, órgão do Ministério
da Saúde, que não dispõe de verbas específicas destinadas à sua
conservação e circulação. A associação de Amigos também não
conseguiu captar recursos pela Lei Rouanet, apesar de ter seus
projetos aprovados. Não foi possível obter verbas nem de
instituições privadas de financiamento, como a Vitae, ou de
empresas nacionais e multinacionais. O acervo continua sob
constante ameaça, deteriorando-se, e podendo mesmo, em
tempo curto, desaparecer de todo.
Foram estas dificuldades materiais e financeiras que
impediram o envio da obra de Bispo do Rosário para a última
Bienal de Cuba e para a Collection d’Art Brut [sic], de
Lausanne, dirigida por Michel Thevoz. O governo federal,
apesar do crescente prestígio internacional de Bispo do Rosário,
jamais deu qualquer ajuda, seja através do Itamaraty, seja
através do Ministério da Cultura. O tombamento do acervo pelo
Estado, em tese, obrigaria o governo do Rio a contribuir com
recursos humanos, financeiros e logísticos para sua preservação,
mas nada fez até hoje.
76
Não aparece no texto de Frederico outra denúncia senão a do descaso das
autoridades públicas em não assumir as responsabilidades de praxe no caso de um
tombamento. As intenções do texto, de 1995, primeiro a ser publicado na
imprensa sobre a participação de Bispo na Bienal de Veneza, se atêm muito mais
a um resgate pessoal do crítico sobre a luta travada pelo projeto, desde 1982, de
inscrever Arthur Bispo do Rosario na História das Artes Plásticas, bem como a de
lutar pela conservação do seu acervo e dar-lhe visibilidade frente à opinião
pública. Além disso, está no artigo a intenção de relatar a história da formação,
dos objetivos e da atuação da Associação de Amigos da Colônia Juliano Moreira,
ao longo de 12 anos, para tentar fazer sobreviver a integridade física da obra.
Todavia, uma pergunta, me parece, é deixada no ar: porque Frederico Morais
retoma o seu histórico de trabalho (de 12 anos!) em relação à obra de Bispo,
precisamente, no momento da divulgação de participação do acervo de Bispo na
Bienal de Veneza, o evento máximo do meio de artes plásticas?
No dia 25 de abril de 1995, os jornais brasileiros divulgaram nota sobre a
participação de Arthur Bispo do Rosario, na 46ª edição da Bienal de Veneza:
SÃO PAULO O presidente da Fundação Bienal de
São Paulo, Edemar Cid Ferreira, assinou ontem um convênio
76
Ibidem.
69
com o Ministério da Saúde para a cessão de 140 obras do artista
plástico sergipano Arthur Bispo do Rosário (1911-1989).
Bispo e o artista paulistano Nuno Ramos, 35, vão
representar o Brasil na próxima Bienal de Veneza (Itália), a
começar dia 6 de junho. O acordo foi firmado no prédio da
Bienal pelo ministro da Saúde, Adib Jatene, e o presidente da
fundação.
77
No jornal o Estado de São Paulo a notícia traz estes termos:
As obras do artista, ex-interno esquizofrênico da
Colônia Juliano Moreira, sofrem problemas de conservação no
Rio. A Bienal está gastando R$ 20 mil com o restauro das obras
de Bispo, avaliadas em R$ 300 mil. (...)
O “meteoro” de Nuno Ramos tem um custo estimado de
R$ 50mil, dos quais R$ 25 mil são bancados pela Fundação
Bienal. o restauro das obras de Bispo do Rosário está sendo
feito pela especialista Cláudia Nunes, do Museu Imperial de
Petrópolis.
78
Na Folha de São Paulo, o mesmo assunto acima é esclarecido da seguinte
forma:
Jatene [Ministro da Saúde] disse que a Bienal tem um
papel importante no restauro das obras de Bispo: “Como não
[sic] são peças preparadas por um artista plástico não-
convencional, elas necessitam de cuidados. A Bienal tem
tecnologia para restaurá-las”.
Segundo Cid Ferreira, as peças estão sendo
encaminhadas para o trabalho de limpeza e restauração no ateliê
de Cláudia Nunes, em Petrópolis (RJ).
O custo da operação, segundo a Bienal, é de R$ 20.000.
O seguro é de US$ 300.000. Deverão estar prontas para
embarcar à Itália, em dez caixas, no fim de maio.
“A dificuldade se deve ao fato de Bispo ter trabalhado
com materiais perecíveis”, diz Cid Ferreira.
Bispo bordava em lençóis e panos, usava madeira sem
tratamento e colava materiais de todo tipo em painéis. “Sua
produção foi escolhida por questionar o suporte
convencional das artes”, define o presidente da fundação.
A escolha partiu do crítico Nelson Aguilar, curador do
pavilhão brasileiro em Veneza, que considera Bispo um
“grande artista do povo”. O abandono do suporte (sobretudo a
tela) o levou a eleger Nuno Ramos. Este vai receber R$ 25.000
para criar a instalação “Craca”, uma bola de alumínio de 5 por
2,5 metros que pesa 2,5 toneladas e representa um meteoro em
tamanho natural.
77
O ESTADO DE MINAS. 1995.
78
MEDEIROS, 1995.
70
Cid Ferreira afirma que a peça custa o dobro: “Os
custos complementares estão sendo cobertos pela iniciativa
privada”. Segundo ele, Nuno Ramos já está na metade da
elaboração.
(...)
A Bienal de São Paulo é encarregada de organizar os
eventos de arte brasileira no exterior, por acordo firmado em
1994 com o Ministério das Relações Exteriores. Pela
combinação, ela custeia a reforma do pavilhão brasileiro de
Veneza, orçada em US$ 36.000.
79
Todas as negociações empreendidas, até então, foram determinadas por
desigualdade de trocas, negociações sempre cedidas ao proveito de quem detinha
dinheiro e poder, como foi o caso do acordo com o Governo Estadual, depois com
o Paralamas do Sucesso & EMI-Odeon, e, finalmente, com os empresários da
Bienal de Veneza. Todos os citados usufruíram vantagens em representar ou
serem representados pela obra de Bispo do Rosario e nenhum deles se dignou a
cumprir ou travar acordo justo, à altura do valor internacionalmente creditado à
obra. O valor é concedido em discursos, entretanto não se converteu em paga à
manutenção rigorosa, qualificada e extensiva a toda a obra, em equivalência ao
valor cultural do acervo.
No dia 13 de julho de 1995, a Folha de São Paulo publicou a seguinte
manchete: Associação acusa Bienal de ‘calote cultural’. Luís Antônio Giron era o
repórter local e chamava a atenção para o fato de a repercussão internacional de
Bispo do Rosario estar causando uma “disputa pelo controle da sua obra”. Na
trama política do caso exposto por Giron, a Associação de Amigos da Colônia
Juliano Moreira acusava a Fundação Bienal de São Paulo de “se apropriar do
prestígio da produção do artista, sem preservar a integridade da obra”. Um acordo,
feito em abril daquele ano, entre a Associação e o Ministério da Saúde, concedia
direitos ao Ministério em expor o trabalho de Bispo no circuito internacional,
mediante restauração do acervo como um todo, na época, inventariado em 600
peças.
Realmente, o mais surpreendente de todo esse cruzamento de interesses e
imputação de valores à fatura de Bispo, ficou por conta da negociação do crítico
Nelson Aguilar, curador da mostra brasileira em Veneza, ao ter estabelecido
contato com a Alpargatas S.A., de São Paulo e negociado a cessão da assemblage
79
PIZA, 1995. Grifo meu.
71
de congas (tênis fabricados pela empresa Alpargatas), criada por Arthur Bispo do
Rosario, em troca de R$ 6.000,00. O jornal publicou o tom deselegante dos
representantes da Fundação Bienal de São Paulo, representada principalmente
pelo crítico Nelson Aguilar, com Gerardo Vilasecca, presidente da Associação de
Amigos da Colônia Juliano Moreira, à época da Bienal.
Gerardo Vilasecca, sobre o problema das restaurações e sobre a
participação do acervo de Bispo, na Bienal, pronuncia-se:
Queríamos que um dos nossos 60 membros monitorasse
a obra em Veneza, e nem essa hipótese foi considerada.
(...)
A maneira como foi feito o restauro não teve
profissionalismo. (...) Foi restaurada uma pequena parte
da obra e faz uso da imagem de Bispo. Uma mostra
representativa deveria considerar as 600 obras.
80
Nelson Aguilar, rebate:
Essa associação é provinciana. Está arraigada no
cadáver do artista e pretende tirar benefício dele. Desejava
transformá-lo no ‘homem elefante’ da arte brasileira, levando a
obra para passear no circuito da arte bruta, dos loucos e
marginais. Tiramos Bispo da sarjeta e fornecemos à sua obra
projeção internacional. Hoje é um artista cosmopolita. A
associação não passa de uma atravessadora.
81
O gerente de eventos da Bienal, Romão Pereira, diz que Vilasecca “quer
entrar na historia sem ter cacife” e sobre a cessão de imagem à empresa
Alpargatas, observe-se o trecho da reportagem:
Segundo Pereira, a Alpargatas vai pagar R$ 6 mil pelo
uso da vitrine de congas: “Isso vai ajudar na recuperação das
outras obras. E foi iniciativa da Bienal começar negociações
com a empresa.”
82
Agora é possível entender o motivo da longa matéria escrita por Frederico,
em primeira pessoa, no jornal O Estado de São Paulo, do dia 04 de fevereiro de
1995, descrevendo toda a sua trajetória de 12 anos, em nome de uma obra cuja
compreensão da opinião pública, seja dos grupos mais populares ou dos mais
80
GIRON, 1995. Grifo meu.
81
Ibidem.
82
Ibid.
72
eruditos, foi por ele encetada. Quando, em entrevista, indaguei Frederico Morais
sobre o seu afastamento, em 1995, ele respondeu:
(...) o cansaço era muito grande e então eu me afastei. Aí,
a mostra já tinha circulado pelo Brasil, as capitais mais
importantes, veio a idéia de levar pra Bienal de Veneza, e,
então, o Nelson Aguilar era o curador, mas o Nelson Aguilar
(...) resolve tudo depressa, ele é ao contrário, ele não se liga
inteiramente nas coisas, quer resolver as coisas por telefone,
quando eu cheguei a mandar pra ele uma lista de coisas que eu
achava interessante pra fazer parte do pavilhão brasileiro, que é
um espaço relativamente pequeno, e ele me pediu um texto,
eu fiz um texto. depois ele vem aqui ao Rio de Janeiro, de
táxi, fica lá meia hora, como se pudesse em meia hora, com o
táxi fora esperando, ver a obra do Bispo, resolver. Enfim, eu
comecei a divergir dele. Por outro lado, ele entrou pela cúpula
do Ministério da Saúde, com aquele cirurgião, Jatene, né?
Sabe? começou a atropelar as coisas, e eu, então, retirei meu
texto que eu tinha feito pro catálogo da Bienal e a partir daí, eu
me afastei, me aborreci.
83
É de Frederico Morais e sua equipe de pesquisa, o mérito de a obra de
Bispo chegar a ser escolhida para um evento histórico como é o da Bienal de
Veneza. Frederico Morais não inventou o artista, mas engendrou um discurso de
afirmação e com ele inscreveu Bispo na História das Artes Plásticas. A biografia
da obra de Arthur Bispo foi fundada por Frederico Morais, em versão para o
mundo dos vivos e, neste mundo, Morais foi ascendente e descendente. Foi
biógrafo e, indiretamente, biografado.
À maneira indissociável de ser um biógrafo, Morais compôs a si mesmo
nessa relação de “inter-esse”. Um estudo integral da produção em mídia impressa
da obra de Arthur Bispo do Rosario, que desvincule o nome de Frederico Morais
do conteúdo das informações incorrerá em omissão. No dia 11 de setembro de
1997, o Museu Nise da Silveira, na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá,
ganhou uma sala especial, com oficina de restauração, por um acordo travado com
o Ministério da Cultura e o Centro de Artes do México.
Outros nomes tomaram a frente do acervo de Bispo nas ginas dos
jornais. Frederico Morais desapareceu de cena e seu nome apresenta-se,
unicamente, associado à curadoria das duas primeiras exposições: À margem da
vida, em 1982, no MAM, e Registros de minha passagem pela terra, em 1989, no
83
MORAIS, 2005.
73
Parque Lage. Uma publicação do Jornal do Brasil, do dia 17 de novembro de
1996, não deixa de citá-lo como o pioneiro a investir na tarefa de catalogar a
dispersa obra do Bispo. Sabemos ter sido muito mais.
Foi o processo de análise do material jornalístico, comparado a leituras
precedentes, o responsável por me fazer entender o próprio trajeto dessa tarefa
produtiva, exatamente pelo branco inicial, pelo vazio das brechas às quais me
propunha penetrar, como um eixo capaz de fazer mover a roda do tempo,
iniciando-me por urnas mais secretas. É certo não serem estas as decisivas urnas
de minha procura. Outras ainda estarão por vir, pois fazem parte de um mundo
menos tangível.
Terceiro Tomo
75
Roda
Afirmei ser o “vazio” a problemática fundamental da construção e análise
“acerca” de uma biografia de Arthur Bispo do Rosario. Refiro-me à problemática
do vazio, se sabe, não como expressão de dificuldades referentes à narrativa
da vida de Arthur Bispo também objeto de sua arte –, mas como o conjunto de
questões manifestadas por essa própria idéia de vacuidade no contexto da obra.
Ofereço ao leitor a comodidade da imagem da Roda
1
, de Arthur Bispo, em
seu sentido figurado de tempo circular. Os aros da Roda são linhas e brechas a
formar novos vazios ao vaivém da morte para a vida. Linhas estruturais
concêntricas, excêntricas, linhas relacionais entre centro e extremidade. Aros
apagados sob o impulso e, por assim dizer, multiplicados a ponto de vazio,
ludibriando vistas descontínuas por efeito do decurso. No apagamento dos aros,
a ilusão de desaparecimento do próprio ato de impulsão, refletindo o sentido
simbólico de libertar-se da confusão de imagens, desejos e emoções, “para escapar
das existências efêmeras, para sentir a sede do absoluto”
2
. Contudo, o eixo da
roda, como forma de aparecimento, faz menção ao presente inapreensível.
O eixo da roda é Arthur Bispo do Rosario, presente, em seu próprio nome:
“ponto fixo no espaço que se move”.
3
Deste ponto fixo, ele inventa a si, compõe e
descreve o universo em forma e conteúdo. E por esta forma e conteúdo referirem-
se ao universo simbólico, sempre haverá um ponto de partida como eixo,
relacionando cada elemento da obra (forma) ao pensamento (conteúdo) do autor e
do leitor. Esta roda guarda o segredo do movimento, da existência da obra pelo
pensamento e do próprio universo simbólico cultural humano.
Não afirmo ser a Roda uma síntese da obra de Bispo, nem estou certa de
ser adequado empregar a idéia de “síntese” à característica circular sugerida pela
noção de “obra”. Uma obra se dá, acredito, por múltiplos vazios iniciais pontos
de partida – como aplicações de um pensamento. O artista mantém sob seu
controle o segredo da ação, contudo, a ação define o resultado como pensamento.
O artista parte do vazio e, invariavelmente, sua visão inicial é desviada pelo
próprio ato criativo. um todo, isto é inegável, mas o todo que se edificou ao
1
Anexo 5, p. XVI.
2
CHEVALIER, 1999. p. 932.
3
Cf. AMADO, 2005. p. 186.
76
final de inúmeras entradas, ou partidas. Francis Bacon se refere a este aspecto em
A brutalidade dos fatos:
(...) prevejo em pensamento, prevejo a imagem, mas
dificilmente ela será executada como fora prevista. Ela se
transforma em decorrência da própria pintura. Eu uso pincéis
muito grossos, e, por causa da maneira como trabalho, muitas
vezes não sei o que a tinta fará, e ela faz muitas coisas que são
muito melhores do que se seguissem minhas ordens. Isso seria
obra do acaso? Talvez alguém dissesse que não, porque acaba
tornando-se um processo seletivo que começa com algo
imprevisto, selecionado para ser preservado. A pessoa, é claro,
procura conservar a vitalidade do imprevisto mas preservando
também a continuidade. (...)
4
No que diz respeito à concepção genérica de obra, neste caso, o que
examinamos são conjuntos religados sem maior esforço por um leitor, que opera
matematicamente em sua compreensão, tangendo linhas imaginárias de ponto a
ponto, a ponto de reuni-los em unidade. Contrariando, assim, os próprios critérios
do autor, o leitor, com sua operacionalização, cerca os trabalhos de Bispo na
emblemática categoria de obra. Calcular que se trata de uma obra é associação de
quem o lê, o enquadramento é nosso.
Por sua vez, a idéia de fusão oferecida pela síntese concede ao trabalho de
Arthur Bispo uma representação de um todo “coerente”, valor perseguido por uma
cultura firmada em um espírito ocidental cartesiano, interessada em diferenciar o
espaço do artista, do espaço do “louco criativo”. Em sendo assim, associar o
trabalho de Bispo à essência de um todo coerente é dizer, subliminarmente: “a
obra não é louca”; autorizando-a como arte a despeito da biografia de seu autor.
Em um primeiro momento, quando o trabalho de Bispo era desconhecido e
procurou-se legitimá-lo como arte, fixar a maneira de analisá-lo por uma
formulação de ordem e coerência funcionou como agenciamento do discurso de
reconhecimento. Certamente, hoje, ainda haverá quem questione a criação de
Bispo como obra de arte, ou haverá quem queira reservá-la a um espaço
“especial”, vizinho, mas, distinto da arte “erudita”.
A categoria dos loucos ainda representa um excesso à estrutura de uma
civilização “obrigada a aceitar, respeitar e apreciar a harmonia, a limpeza e a
4
BACON, 1995. p.16 et. seq.
77
ordem”
5
. Todavia, regra geral, o trabalho de Bispo é respeitado como obra de arte
genuína, podendo defrontar a ordem da coerência confirmando-se pela
(des)razão, pela via da descontinuidade do real formado de elementos aleatórios,
justapostos, fora de propósito, indeterminados como a nova representação da
realidade sugerida pela física moderna.
Afirmo haver uma interação entre a Roda e o secreto sistema dinâmico da
criação de Arthur Bispo, análogo à constituição dos átomos, de que é feito o ser.
Átomos possuem o aspecto de esferas rígidas, no entanto, consistem de espaço
vazio. O núcleo é a fonte de energia dos átomos, e os elétrons, reagindo ao
confinamento no átomo, giram em altíssima velocidade, algo em torno de 960
quilômetros por segundo, de modo aleatório e imprevisível. Prótons e nêutrons,
confinados em um espaço ainda menor, o núcleo, giram em um estado de energia
de aproximadamente 64.000 quilômetros por segundo. Um ser, então, parece
constituir-se de vazios preenchidos por energia e velocidade. Refiro-me, por
extensão, à cultura humana edificada por uma voragem dos códigos pré-
fabricados, responsáveis pela determinação da consciência, do pensamento.
Somos a ressonância de signos. Fazemos parte de um mundo de sinais e símbolos.
Em A construção social da realidade, Thomas Luckmann e Peter L. Berger,
dizem:
Apreendo a realidade da vida diária como uma
realidade ordenada. Seus fenômenos acham-se previamente
dispostos em padrões que parecem ser independentes da
apreensão que deles tenho e que se impõem à minha apreensão.
A realidade da vida cotidiana aparece já objetivada, isto é,
constituída por uma ordem de objetos que foram designados
como objetos antes de minha entrada na cena. A linguagem
usada na vida cotidiana fornece-me continuamente as
necessárias objetivações e determina a ordem em que estas
adquirem sentido e na qual a vida cotidiana ganha significado
para mim.
6
Armazenar, apreender para reforçar a competência e aperfeiçoar o
desempenho futuro é um princípio racional. Experiências são armazenadas na
memória como um acervo histórico-social disponível do conhecimento, nos
servem como “receitas” para operarmos em nossos propósitos pragmáticos. Este
5
Ibidem. p. 8.
6
BERGER, 1973. p. 38.
78
acervo nos torna capaz de prever e neutralizar os acontecimentos no tempo, numa
tendência a facilitar a vida, economizar tempo, programando o futuro. Conservar
padrões para manter um modelo de ordenação e controle são características
universais dos seres humanos.
Antonin Artaud, contrariamente, desejava escavar o bem estruturado e
impregnado sistema do pensamento Ocidental, para transformar o fracasso das
raízes pré-moldadas do mesmo, que “não deixa mais ao pensamento o tempo de
retomar raiz nele mesmo”. Artaud propunha uma regressão no tempo, à vida da
Idade Média, para metamorfosearmos nossas mentalidades em essência. Sobre o
pensamento, Artaud escreve em O teatro e seu duplo:
Se o signo da época é a confusão, vejo na base dessa
confusão uma ruptura entre as coisas e as palavras, as idéias, os
signos que são a representação dessas coisas.
(...)
É preciso insistir nessa idéia da cultura em ação e que
se torna em nós uma espécie de novo órgão, uma espécie de
segunda alma: e a civilização é a cultura que se aplica e que
rege até mesmo nossas ações mais sutis, o espírito presente nas
coisas; e é apenas de modo artificial que se separa a civilização
da cultura e que duas palavras para significar uma mesma e
idêntica ação.
(...) para todo mundo, um civilizado culto é um homem
bem informado sobre os sistemas e que pensa em sistemas, em
formas, em signos, em representações.
É um monstro no qual se desenvolveu até o absurdo
essa faculdade que temos de extrair pensamento de nossos atos
ao invés de identificar nossos atos com nossos pensamentos.
(...)
Todas nossas idéias sobre a vida têm de ser revistas
numa época em que nada mais adere à vida.
7
Artaud que, como Bispo também viveu em sanatórios, sabemos, sofria de
algo, para ele denominado “a grande dor do pensamento”. Desde criança sofreu de
problemas neurológicos, suportou convulsões, esteve internado em sanatório aos
19 anos; e aos 24 anos passou a fazer uso de láudamo para aliviar suas intensas
dores de cabeça. Durante toda a vida passou pelas mãos de médicos e psiquiatras.
Em suas cartas a Jacques Rivière relata de maneira emocional o seu sofrimento:
Eu sofro de uma assustadora doença do espírito. Meu
pensamento me abandona em todos os níveis. Do fato simples
7
ARTAUD, 1975. p. 16 et. seq.
79
do pensamento ao fato exterior de sua materialização nas
palavras. Palavras, formas de frases, direções interiores do
pensamento, reações simples do espírito, eu estou na busca
constante do meu ser intelectual.
Quando então eu consigo alcançar uma forma, imperfeita que
seja, eu a fixo, no temor de perder todo o pensamento. Eu estou
abaixo de mim mesmo, eu sei, eu sofro, mas aceito com medo
de não morrer completamente.
Tudo isto, que é muito mal dito, corre o risco de introduzir um
terrível equívoco no vosso julgamento de mim. (...)
8
A dificuldade de Artaud em materializar palavras, associada à profunda dor
do pensamento é também a dor do poeta no trato com as palavras. Artaud
enfrentou a dor daquilo que chamou erosão mental” e, em meio ao
desmoronamento, desafiou o bloqueio da linguagem, sujeitou as palavras aos seus
pensamentos e os pensamentos à sua força, pois, segundo ele, “o pensamento não
é uma massa, um conjunto de conteúdos que já está aí, o pensamento está inserido
numa relação de forças
9
.
A física moderna ensina que não se pode observar e medir, ao mesmo
tempo, a velocidade de um elétron, pois, ao ser focado por uma luz, sua
velocidade se altera. Pode-se medir, ora a exata posição do elétron, ao manifestar-
se como partícula, ora a sua velocidade, ao manifestar-se como onda. A incerteza,
assim, está prevista para o ser e para as coisas, substituindo o determinismo e a
objetividade. A ciência descobriu que as distâncias são ambíguas e os intervalos
de tempo entre eventos não são absolutos, dependem do observador. Entender o
universo de Bispo por uma lógica do pensamento esquemático, imperativo, será
fatalmente incidir em fracasso, por trair as forças abertas do pensamento. No
interior da força propulsora da arte reside uma configuração de resistência ao
controle, empenhando-se no prazer e lutando contra o poder das convenções,
tendo em vista a necessidade de reconstrução de um mundo desenraizado do
comum, para além das categorias.
Falar de arte é falar de um tempo sem tempo, de saltar os limites da
história. Trata-se de um fenômeno capaz de arrancar o ser de suas correlações
com a realidade, ou seja, estado estético. Todo o artista, de uma maneira ou de
outra, intervém sobre a realidade:
8
ARTAUD, 2004. p. 69.
9
KIFFER, 8/3/04. PUC-Rio. Xerocópia.
80
(...) hay hombres que en algún momento cesan de ser
ellos y su circunstancia, hay una hora en que se anhela ser uno
mismo y lo inesperado, uno mismo y el momento en que la
puerta que antes y después da al zaguán se entorna lentamente
para dejar-nos ver el prado donde relincha el unicornio.
10
Quando Cortázar fala da “porta que se abre lentamente para deixar-nos ver
o prado onde relincha o unicórnio”, guia-nos ao caminho de uma transposição de
linhas: do real ao imaginário “fantástico”. Afinal, o que define a força que
emerge das imagens originadas do nada inicial da folha de papel, surpreendendo
nosso olhar? Qual operação define esta experiência, esta sensação de eterna
novidade? Qual linha de fronteira define a passagem do espaço cotidiano para o
de inspiração e criação? A quem é permitida a passagem para este lugar? A quem
é vetada? É, justamente, neste ponto, que se encontram todas as imaginações,
independentemente de suas biografias, espaço, tempo, “lucidez”. O limite da
criação é o ponto indeterminado, o não-lugar, do qual magicamente surge beleza.
O filósofo Deleuze disse que “Se a esquizofrenia é o universal, o grande artista é
realmente aquele que atravessa a parede esquizofrênica e atinge a pátria
desconhecida, onde não mais nenhum tempo, nenhum meio, nenhuma
escola”
11
.
Leitor, sua tarefa é a de observador experiente de minhas propostas como
leitora. Igualmente, somos, para aqui, as chaves das percepções. Já, as metáforas,
servem como transportes de sentidos. Ofereci, desde o primeiro momento, a Roda,
de Arthur Bispo, em seu sentido figurado. Imagine-se agora impulsionando a
Roda e perceberá nitidamente como se um pensamento transportado por uma
relação de forças. Metáforas são como a Roda posta em giro, aptas ao
apagamento. Transportadoras, ultrapassam a ordem do sentido absoluto.
O que fez Bispo do Rosario, se não, preencher o vazio de sua condição
original? Foi a práxis, ininterrupta, dia após dia, incansável, ao longo de 50 anos
de construção, por um circuito de gestos, a operação dinâmica capaz de imprimir
um aspecto consistente à existência do homem e do artista. A função da roda, a
sua rotação essencial, abre uma (d)obra do universo simbólico à obra de Bispo,
inventor de si mesmo. Bispo, ao girar a roda, desfez as linhas fixas do portão do
10
CORTÁZAR, 1991. Contracapa.
11
DELEUSE, 1974. p. 88.
81
quarto forte, desfez a célula quarto pequeno, cela –; pelo vazio libertou-se,
amalgamando sordidez com beleza.
Rode, leitor, a Roda à Obra. Reordenadas as letras, intervertido o dpara
o b”, como o efeito do passar da página, abre-se à Ro
d
a o anagrama dO
b
ra.
Agarre-se ao primeiro fio de palavra que se dobre. Deixe-se lançar ao vazio.
Preencher será o seu transporte.
82
“EU VIM”
Arthur Bispo do Rosario ao longo da vida insistiu em afirmar ter um
dia simplesmente aparecido, construíra para si uma nova história transformando o
mundo ordinário em extraordinário. Minucioso relator da própria história, tratou
de documentar sua passagem pela terra sobrepondo linha em trama de
tecido, amarrando multi-signos pelos pontos do bordado, numa sintaxe exclusiva,
rigorosa, tendo em vista o firme propósito de registrar as coisas do mundo e de
sua existência transformada, conforme o seu critério de seleção. Bispo vivia pela
finalidade de “se apresentar”.
Ao interlocutor cuja abordagem pretendesse vasculhar sua origem, dizia:
“tudo está aí”, “tudo está escrito, tudo está escrito”, referindo-se à sua obra,
edificada ao longo de aproximadamente 50 anos. Ali está seu vazio preenchido, a
sua memória fixada, atracada pelos fios do bordado nos tecidos. Frederico Morais,
por exemplo, adverte-nos para o fato de Bispo não pretender apenas contar a sua
história, nem sequer escrevê-la, ele costurava essa história, numa tentativa de
deixar um marco mais sólido.
Como se não bastasse o gesto de costura da própria história, Bispo foi
capaz de restaurar para si um corpo, por assim dizer, ao interferir nos códigos da
vestidura, subvertendo seus padrões, portanto, confirma a máxima de Nietzsche de
que a “consciência de si é uma ficção”. Refiro-me à operação sobre as fardas e
sobre o manto de apresentação. Suportes de linguagem, as fardas e o manto, como
aparados do corpo, exercem, a um tempo, a ação de guardar e publicar. São
vitrines do parecer e arquivo do ser. Publicado é o ser guardado pela ordem da
palavra, em sua força de desígnio, bem como a palavra equivale à carne, ao corpo,
do que é nomeado.
Bispo nomeou-se por meio da invenção de trajes, ancorou-se nas palavras
ali bordadas de modo a reorganizar seu ser no mundo, sua individualidade.
Legendado pela palavra e guardado pela re-significação do traje, recupera-se
como eixo. As vestes impressas com a potência da palavra escrita convertem-se,
neste caso, simultaneamente, em ação de difusão e abrigo, afinal, a escrita atua em
um movimento de expansão, como, contrariamente, a língua marca o lugar de
origem, territorializa. Investido no centro da cúpula, da grande tenda, a exemplo
83
do Manto de Apresentação, Bispo é a coluna central do universo, gesto simbólico
de atravessar a cabeça pelo corte central da vestimenta, transporta-se para além do
mundo material, assume um papel emblemático, pois, como para os celtas,
“aquele que veste o manto toma o aspecto, a forma e o rosto que quer pelo tempo
em que o leva sobre si”.
12
Bispo entrega-se a si mesmo, manifestando o espaço do
jogo de invenções.
Afasto totalmente a proposição de análise do caso clínico de Arthur Bispo
do Rosario, contudo, considero adequada a reflexão dos psicanalistas José
Francisco da Gama e Angela Ceppas Figueiredo, no artigo Em carne viva: dor, à
argumentação que pretendo desenvolver. Os autores ao investigarem a dor mental
do ser, vítima de um vazio essencial, de uma perda possível de ser vivida na fase
pré-verbal, quando a criança, por algum motivo é afastada da mãe, notaram que
essa dor, vivida como ameaça de aniquilação” e como “perda de uma parte de
seu próprio corpo”, provoca expressões particulares do ser em relação com o
espaço físico, no contato interpessoal, de modo a criar códigos de conduta e
“hábitos” no duplo sentido da indumentária e do agir para a identidade do
corpo, como auto-representação, sob a metáfora de uma “segunda pele”. A certa
altura do artigo, ao analisarem o caso clínico de um certo paciente, os autores
escrevem:
(...) Sistematicamente vestia a camisa (“t-shirt”) pelo
avesso, talvez desvelando e expressando, com este gesto, a sua
vulnerabilidade e exposição, como se estivesse em carne-viva e
usasse a agitação e o espaço-moldura que se formava em volta
dele como uma pele protetora. Esse era um modo autista-
contíguo (OGDEN, 1992, p.49 e ss.; 1996, p.341) de Maurício
criar uma sensação precária de contenção e coesão do seu eu
ameaçado de desmoronamento. O espaço, a camisa, o aroma de
seu corpo, o emplastro gorduroso que eram os seus cabelos,
constituíam uma forma-sensação que envelopava precariamente
a sua personalidade (...)
(...) A segunda pele manifesta-se, defensivamente, como
um tipo de concha muscular ou como uma musculatura verbal
correspondente (...)
13
.
Ao compararmos a camisa usada por Bispo na foto da ficha de doente
14
,
por ocasião da entrada no manicômio, com a farda Eu Vim
15
, confeccionada anos
12
CHEVALIER, 1999. p. 589.
13
GAMA, 2005. p.111 et. seq.
84
mais tarde, na alta fase de sua criação, notamos que a estampa floral da camisa
parece idêntica à da farda, cujas emendas sugerem o aproveitamento daquela
camisa como “decoração”, no duplo sentido da palavra ampliada à noção de
adornar e guardar pelo coração, na memória; metaforizando, dessa maneira, ou,
quem sabe, confirmando a idéia da reinvenção de si mesmo. O aspecto pífio da
camisa do doente mental transforma-se em farda, sob a intervenção de um
pensamento a fim de falar de “outro modo”: “EU VIM / 22 / 12 / 1938 / MEIA /
NOITE”. Vir é fazer-se presente, apresentar-se. O ser re-configurado atualiza o
seu registro com data de ingresso no universo simbólico existencial e proclama
um novo sistema de vestuário como intimação à distinção, hierarquia e autoridade
da exibição de seus significados.
O ser civilizado veste-se, disciplinado por regras de conduta e influenciado
por fatores de identidade social, as quais funcionam como inserção no âmbito
privado e público. O corpo contemporâneo, na “ordem” civilizada, está em
constante mutação, seja pela busca da perfeição (body building), seja por um
propósito de luta, performance ou reconfiguração do eu (body modification).
Roupas são formas de comunicação do sujeito com o mundo, porque “O ser
humano inventa sua identidade cultural a partir de intervenções sobre si mesmo e
sobre a natureza, criando o habitat [sic] que o grego chamava de ethos, ou seja,
morada”.
16
Em um mundo que perdeu o centro, em crise com o real, pela arte,
Bispo encontra uma passagem a equilibrá-lo ao centro, contra a desordem
dinâmica do tempo. Reconfigurar-se foi a retomada da unidade perdida, dentro do
edifício barroco em que se encontrava, numa medida defensiva e de proteção.
Tecido bordado é tecido tátil, fibroso, semelhante à pele afetada por lesões
cuja recomposição das fibras manifesta ilustrações nodosas quelóides. Refiro-
me a lesões, contudo, retenho meu olhar depois da dor, ultrapassando a
causalidade clínica. Leio as camadas ulteriores (tecido, bordado), conformadas em
tensão com o vazio, descendentes, por um lado, da esfera profunda povoada por
vozes de autoridade a comandarem a ação de trabalhar, e por outro lado, leio-as
como camadas resultantes da reação ao mundo exterior. Leio a expressão, que
vence a doença e a razão, manifestando-se como objeto de representação.
14
Anexo. 6a, p. VI.
15
Anexo 6b, p. XVIII.
16
VILLAÇA, 1998. p. 214.
85
A matéria da segunda superfície construída por Arthur Bispo, a que me
refiro, prolongou-se, estendendo-se pelo espaço da cela em que viveu, em
múltiplas formas e dimensões, como matéria celular de uma existência
transformada para além do limite circunscrito ao corpo individual. Fez-se, Bispo,
repertório de imagens, a criar para si uma cápsula vedada de material pictórico,
transfigurado em uma certa Escritura capaz de produzir sentido à sua imagem e
ser dela conteúdo, situando-se nos limites de suas idealizações. A dinâmica desse
território concebido é semelhante a do organismo, propício à regeneração,
constituída por um movimento mútuo de transporte da profundidade em direção à
superfície e dessa peculiar superfície em reação à exterioridade. Desta forma, as
fardas e o manto bordados são uma espécie de “crosta sutil” mediadora entre a
sombra mais profunda do corpo e a sombra da exterioridade.
Os pontos cheios dos bordados são regenerações, na medida em que
converte os materiais ordinários, como lençóis, uniformes de internos, restos,
representativos da miséria e da tendência à generalização do indivíduo, peculiares
à instituição psiquiátrica, em uma profusão de objetos simbólicos, carregados de
efeito estético. Daí a idéia de “crosta sutil”, cheia de leveza, que as próprias
palavras de Bispo figuram como “uma noite suave das coisas, da existência,
pois, em reação ao espaço grotesco, inóspito, em que vivia, o seu processo de
trabalho foi a fundação de uma superfície poética.
EU PRECISO DESTAS PALAVRAS . ESCRITA
17
, foi o que escreveu Bispo
em um dos estandartes, no qual coexistem, bordados: um corpo masculino de
CLOVES com a descrição em detalhes de tudo o que o caracteriza enquanto
corpo funções, movimentos, excreções e a narração do itinerário relativo, em
suas palavras, a COMO EU VIM TERRA TAMBARDILHO. Retorna o tema da
apresentação, da prefiguração de uma origem: COMO EU VIM, seguindo-se à
descrição do trajeto desde a partida até o porto, chegada à superestrutura de bordo,
ao castelo da popa, digo, à composição de sua existência transformada. Ao
alcance da trajetória está associado o exame minucioso do que é e do que pode um
corpo
18
, sinalizando para um esforço de desmontagem, daquele que precisa
desmembrar uma estrutura para compreender o seu sistema, em similaridade com
os procedimentos do método científico.
17
Anexo 3, p. XIV.
18
Referência ao título de Daniel Lins e Sylvio Gadelha Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo.
86
Frederico Morais, em entrevista, quis ceder-me a sua leitura em torno da
frase EU PRECISO DESTAS PALAVRAS . ESCRITA, ele disse assim:
Tem aí esses jogos de palavras de textos que
são... você que é da área, podia estudar. Outra coisa,
um panô dele que escrito assim: Eu preciso destas
palavras . Escrita. “Escrita” sem “S” (...) quer dizer, é
uma narrativa. As palavras pra ele, o texto que ele tava
fazendo, de alguma maneira ele era autônomo, ele era
uma escrita, ele era uma écriture, no sentido do Roland
Barthes. Quer dizer, pode ser um erro, pode ser que ele
não tenha consciência, mas nada me impede que eu faça
uma leitura.
19
Entender Bispo como uma écriture, a contrapelo, equivale a afirmar ser ele
o próprio bordado, ser o bordado a sua pele, a sua carne, a sua estrutura. A
necessidade das palavras escritas ou a necessidade da escrita advém tanto de um
processo de defesa, quanto de um procedimento de investigação e reconstituição
de si mesmo, afinal, a escrita é ação, é a construção de um corpus. A escritura de
Bispo é também uma superfície refletora, uma miragem, pois, provoca-nos a falsa
certeza de podermos decifrar em seqüência lógica o seu sistema, entretanto,
nossas estratégias usuais de abordagem de coesão e coerência textuais fracassam.
À distância paralisamos anestesiados pela beleza, em seguida somos atraídos por
um sinal de sentido, adiante, de muito perto, somos traídos pelo sonho de
estarmos prontos a decodificar o seu específico “sistema de escrita”, através da
estrutura lógica do pensamento argumentativo e, então, perdemo-nos no labirinto.
Verdadeiramente, o acesso está (en)cerrado em outra ordem, em um sistema
intrincado de resistência, que se projeta e se recolhe, simultaneamente, como o
calafrio.
Um livro existe ao ser aberto pelo primeiro leitor. Bispo existiu para o
mundo ao ter a imagem de sua cela, em película, projetada. As portas da Colônia
Juliano Moreira se abriram e estava o continente celular do “artista”, então, o
mundo pôde ler em sua pele de farda: “EU VIM”. Estava escrito.
19
MORAIS, 2005.
87
Urnas secretas
“O primeiro quadro que eu aprendi foi uma gota d’água, depois uma pêra, uma
folha. Eu pensava: um dia eu vou aprender isso por dentro” (Fernando Diniz).
Alinhar significa colocar uma porção de coisas ligadas por um fio. Um
rosário é uma fileira de 165 contas alinhadas por um fio de linha, subitamente,
solto aos seus olhos, leitor. Desfeito o nó, derramam-se as contas celeradas a
ponto da frase não poder articular-se ao tempo do ato, nem as contas de seus olhos
dão conta do tilintar desvairado das 165 contas ricocheteando sonoras pelo chão,
até retornarem ao silêncio recolhido de suas próprias mãos, leitor, que ao juntá-las
na página, sentirão, com quantas contas se desfia o nome de um Rosario.
Espere, leitor! Não desfaça, das contas, o cercado. Mantenha em concha a
postura das mãos (pense). Quantos desenhos podem figurar o continente deste
gesto? Quantas referências estão nele contidas? Atendemos juntos, leitor, para o
“tilintar” das contas, eis uma palavra guardadora de dois gestos: soar e saltar.
Conter é guardar, mas guardar para quê? Antonio Cicero, entre a pele do poema e
da filosofia, guarda, para olhar, fitar, admirar. Para ele, em cofre nada se guarda,
“perde-se a coisa à vista”, por isso Cícero escreve poemas, para pôr a coisa à
vista.
Representar é uma forma de “encerrar” algo, porque no ato da
representação revelamos essa coisa qualquer, esse algo, e o fechamos em um
tempo. Como em um ritual, incluímos e sepultamos a imagem do que é por nós
representado. Carlo Ginzburg, em um artigo, no qual reflete sobre a representação
das efígies dos reis, conta que os romanos, dos anos 133-6, representavam com
máscaras de cera seus mortos e as incineravam como representação do “funeral da
imagem” (funus imaginarium). Sobre o sentido da representação, Ginzburg assim
se pronuncia:
(...) a representação” faz as vezes da realidade representada e,
portanto, evoca a ausência; por outro, torna visível a realidade
representada e, portanto, sugere a presença. Mas a
contraposição é presente, ainda que como sucedâneo; no
segundo, ela acaba remetendo, por contraste, à realidade
ausente que pretende representar. (...)
20
20
GINZBURG, 2001. p. 85.
88
A idéia de sucessão sugerida por Ginzburg, expressa o movimento
circular, ou a visão em abismo, entre aquilo que é representado e a sua
representação. Os objetos revestidos por fios azuis, codinome O.R.F.As
21
, criados
por Arthur Bispo do Rosario, e nomeados por Frederico Morais, estimulam nossa
interpretação ao sentido deste “funeral da imagem”, pelo fato do procedimento
técnico assemelhar-se tanto à característica das mumificações. Arthur Bispo,
como dissemos, por falta de materiais, desmanchava os uniformes de internos e
usava as linhas destecidas para realizar o seu trabalho. As O.R.F.As são o
resultado de moldes, ou bases, de papelão, de madeira, ou da própria referência de
um objeto danificado, recobertos pelas linhas azuis dos uniformes, constituindo
um movimento espiral de revestimento do objeto. Ocultado o modelo pelo fio, a
camada de linha azul recebia o nome do objeto representado em bordado branco,
por exemplo: o nome ROCA, à representação de tal imagem.
Arthur Bispo duplicava imagens de existência terrena e ocupava, com as
unidades por ele fabricadas, a “ausência” de objetos existentes na realidade prática
da vida no manicômio. Objetos ausentes, neste caso, são aqueles resgatados por
sua memória, todavia o acessíveis em realidade. Bispo fabrica objetos em falta
ou objetos inacabados, para tanto, duplica, restaura, modifica. O desígnio do
artista, conteúdo que o lançava à obra, era igualmente ritual, por uma motivação
mítica de apresentação das coisas da existência terrena a Deus, e ao mundo, pois,
como ele mesmo disse em entrevista a Hugo Denizart:
(...) Minha apresentação ao mundo. Eu devo estar
pronto daqui a uns seis ou cinco meses (...) com ação,
resplendor, dos pés à cabeça, a fim de me apresentar ao mundo.
Dentro dessa representação aqui. (...) daqui é que eu devo ser
apresentado à humanidade. (...)
22
Não se pode, portanto, analisar a obra de Bispo sem levar em consideração
este detalhe preciso, pois, a despeito de sua alienação, foi este o conteúdo sob o
qual orientou-se durante a criação: destinar aquela representação a Deus e ao
mundo, em que se inclui a existência terrena, a humanidade
23
. Tomando-se como
Jesus Cristo e guardado pela representação por ele elaborada, estava pronto para
21
Anexo 7, p. XIX.
22
Cf. HIDALGO, 1996. p. 137. Grifo meu.
23
Anexo 8, p. XX.
89
apresentar-se ao mundo habitado pela humanidade, sob a guarda de Deus. E para
este caso cabe acordar a análise de Heidegger sobre o poema de Hölderlin, que
diz: “...Poeticamente o homem habita...”. E assim discorre Heidegger:
(...) O homem não habita somente porque instaura e
edifica sua morada sobre esta terra, sob o céu, ou porque,
enquanto agricultor, tanto cuida do crescimento como edifica
construções. O homem é capaz de construir nessa acepção
porque já constrói no sentido de tomar poeticamente uma
medida. Construir em sentido próprio acontece enquanto os
poetas forem aqueles que tomam a medida para o arquitetônico,
para a harmonia construtiva do habitar.
24
Bispo inventou para si um propósito sagrado em sua forma de habitar o
espaço que lhe coube, por este propósito sagrado construiu poeticamente o seu
habitar e, uma vez apresentado, trouxe aos homens a sensação de estarem sendo
despertados para o sentido “inaugural” da própria razão de habitar o mundo.
Assim localiza-se a poesia da obra de Bispo: pela dimensão inventiva e
representativa da morada.
Arthur Bispo nos revela de modo inaugural o sentido da morada da
humanidade sobre a terra, organizando a profusão de coisas do mundo, por um
critério gico e seletivo. Bispo agrupa modelos simétricos ou assimétricos,
estabelecendo uma analogia de formas, de materiais ou de significados. Pela via
de seus procedimentos, incorporou a desordem do mundo como linguagem e
edificou uma babel como leitura do mundo. Nosso constrangimento e asco diante
do caos em que foi transformado o quarto-forte de Arthur Bispo, reflete a nossa
leitura em tudo desastrosa do mundo como hoje se nos apresenta.
Reconhecemos o nosso caos, embora “mascaremos” as deficiências do
sistema em que habitamos. Bispo do Rosario desmascara essa “simulação” pelo
arremedo de nossa realidade ordenada. A visão dos elementos de nossa realidade
manipulados pela linguagem de Bispo, nos afeta, tanto por vermos refletida nessa
linguagem, nossa imagem de morada em desatino, quanto por vermos a
representação dessa realidade preenchida por uma poesia exterior à sua essência
objetiva; o que resulta em ironia, afinal, nos enchemos de prazer em testemunhar a
maneira como Bispo preencheu de poesia a realidade e nos frustramos em admitir
a ausência de poesia no nosso modo prosaico de construir a realidade: nossa
24
HEIDEGGER, 2001. p. 178.
90
morada. Ao ler o mundo, ao revelar o Universo, ao renomear as coisas, Bispo
rompeu o controle da internação, autorizou-se à expressão.
De fato, está o mesmo movimento circular sugerido por Ginzburg ao
afirmar que a representação evoca ausência e presença simultânea e
sucessivamente. A poética de Arthur Bispo ao se valer de uma técnica de
guardados, a todo tempo expõe ausência e presença de significantes e
significados. O exemplo é toda a obra, afinal, como ele dizia: “tudo está aí”, o
todo é o universo de Arthur Bispo do Rosario, as partes são as unidades e os
conjuntos manufaturados. Descobrindo a permuta entre [conteúdo continente]
ou [forma conteúdo], não avistamos somente as formas e essências de todas as
coisas, para além está o gesto potencial contido nessas permutas, movimentos
provocados pelo conteúdo de cada uma dessas palavras, envolvidas na ação dos
guardados.
Bispo costurou um saco do tecido azul dos uniformes da Colônia, todo
bordado em pontos largos, ao arranjo do alinhavo; conferiu ao saco a feição do
rosto masculino com a barba mal feita. O título dado ao saco é Urna D Femi
25
,
bem como Bispo o nomeou, com as letras recortadas e costuradas na face da peça.
Urna D Femi era o receptáculo destinado somente aos nomes femininos. Zuenir
Ventura foi um nome metido ali. O conteúdo encontra um continente peculiar,
conforme o arbítrio de seu inventor, porque dentre as inúmeras representações da
urna em seu valor simbólico, está a expressão da vontade, da passagem do voto
individual. O movimento reservado à Urna induz à penetração dos papéis
conduzidos pelas mãos ali enfiadas. Gesto efetivo, traduz o imaginário simbólico
erótico relacionado ao feminino, à segurança da morada e ao escoamento da vida
para a morte.
uma assemblage intitulada: Confetes
26
. São quinze garrafas plásticas
transparentes contendo confetes coloridos até a boca. Bispo do Rosario, disse em
entrevista a José Castello: “Eu fui transparente. Às vezes, quando deixo de
trabalhar fico transparente de novo. Mas normalmente sou cheio de cores”
27
.
Assim Bispo do Rosario guarda em si, poeticamente, as cores. Suponhamos
lançados ao ar os confetes. Pronto, estão lançados. Transmute, leitor, o
25
Anexo 9, p. XXI.
26
Anexo 10, p. XXII.
27
Cf. CASTELO, 1999.
91
movimento ativo e descendente das mãos que continham as contas do rosário, ao
movimento receptivo das mãos espalmadas, para onde irão desmaiar levemente os
confetes coloridos de papel. Suas mãos agora, leitor, não contêm mais,
propriamente, os confetes, estão contidas no gesto disponível, volvem-se ao
continente da fantasia. Agora, as mãos parelhadas contra o disparate das contas,
descerram-se em revelação, porquanto, nesse movimento, como transporte, se
uma parte de nós “pesa, pondera: / outra parte / delira. (...)” ao “Traduzir uma
parte/ na outra parte/ - que é uma questão/ de vida ou morte - / será arte?”
28
(pense).
Recolha, leitor, as rodelinhas coloridas de papel à transparência das
garrafas plásticas. Dê-se tempo a pensar na representação deste gesto entre o
protocolar e a poesia. Recupere, enquanto guarda, a sua imaginação. Por minha
parte, traduzo as garrafas como a transparência de Bispo em seus dias de
descanso, e os confetes, todas as cores para cada dia de trabalho, porque deste
modo ele se encheu de cor e inscreveu nesta história o seu nome: Arthur Bispo do
Rosario.
28
GULLAR, 2002.
92
Tecelaria
Toda a linguagem é uma convenção, um código partilhado por um povo,
cujo sistema de funcionamento atende a necessidades internas, com regras
próprias, dentro de condições históricas, geográficas e culturais particulares. Toda
a língua impõe uma ordem e sobre este fato, Roland Barthes declara:
(...) a língua, como desempenho de toda linguagem, não
é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente:
fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a
dizer.
Assim que ela é proferida, mesmo que na intimidade
mais profunda do sujeito, a língua entra a serviço do poder.
Nela, infalivelmente, duas rubricas se delineiam: a autoridade
da asserção, o gregarismo da repetição.
29
As convenções de uma linguagem, sua sistemática, organizam-se em
compêndios a servir como linha de conduta aos usuários de uma língua, são
compêndios com estudos das partes constituintes do sistema lingüístico.
Gramáticas descrevem os modos de uso de uma língua por seus falantes. Nem
sempre os usuários da língua têm consciência deste fato tão simples: a língua é do
usuário. O certo é: de algum modo, em uma sociedade, por um secreto projeto
natural de equilíbrio consentido de normas, confere-se uma subliminar autoridade
ao “ser” simbólico “Gramática”, quase como se ela mesma possuísse faculdades
próprias para instituir normas de emprego da linguagem.
Sabemos que os registros feitos em uma gramática são de responsabilidade
de um estudioso da língua, o gramático, sujeito que, de antemão, está assegurado
pela mesma dinâmica, anteriormente, descrita, de forças internas capazes de fixar,
de modo universalizante, as relações de normas dentro do tecido social,
assumindo, assim, sem o menor esforço e sem o menor sinal de contestação, o
status de autoridade uniformizadora de prescrições e regras consideradas
“dignas”, no âmbito do uso da língua escrita e falada em um dado território.
muito que se vêem gramáticos apropriando-se desta ordem para legislar em nome
de uma língua “culta” cuja origem o usuário nem mais reconhece. Gramática,
por esta via, é lei: ordena; condena.
Dentro da extensa teia de regras gramaticais, contidas nessa autoridade do
discurso, procuramos deter nosso imaginário, vesti-lo em palavras consentidas,
29
BARTHES, p.14. et. seq. Grifo meu.
93
depois conectar estas palavras, conjuminá-las entre si, conforme técnicas
incontestáveis do “bem dizer”, de modo a se obter êxito no falar ou imprimir
idéias no papel. Fala e escrita são manifestações, construções concretas alinhando
pensamentos. Clarice Lispector traduz a materialização do pensamento, no
seguinte plano:
Esta é uma declaração de amor: amo a língua portuguesa.
Ela não é fácil. Não é maleável (...) A língua portuguesa é um
verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem
escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de
superficialismo.
Às vezes ela reage diante de um pensamento mais
complicado. Às vezes se assusta com o imprevisível de uma
frase. Eu gosto de manejá-la (...)
Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo
nas minhas mãos. E este desejo todos os que escrevem têm. (...)
Todos nós que escrevemos estamos fazendo do túmulo do
pensamento alguma coisa que lhe dê vida.
30
O desejo de proferir, de declarar, vai desde a primitiva necessidade de
contato, aos ninhos mais suspensos, às vigas mais travejadas de nossa imaginação.
Por andaimes, pórticos, fustes, cúpulas, nos deslocamos e nos definimos como
verdadeira fundição de reflexões, percepções, sentimentos, combinações de idéias
que se reproduzem, se desenvolvem progressivamente, se alastram, incham,
superlotam os limites de nosso continente à incontinência e, à beira do
transbordamento, não se pode conter o dissoluto.
A manifestação do pensamento daí emerge através da representação.
Formas de representação não seriam convenções? Então, nosso universo
imaginativo está interditado, circunstancialmente, a relações de ordem e
subordinação, ou seja, sob relações de poder. poder em todos os mecanismos
sociais, em todo e qualquer discurso, assegurava Roland Barthes, em 1977, em
sua Aula Inaugural da Cadeira de Semiologia Literária do Colégio de França:
A linguagem é uma legislação, a língua é seu código.
Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos
que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é
opressiva: ordo quer dizer, ao mesmo tempo, repartição e
cominação. Jákobson mostrou que um idioma se define menos
pelo que ele permite dizer, do que por aquilo que ele obriga a
dizer (...) por sua própria estrutura, a língua implica uma relação
fatal de alienação. Falar, e com maior razão discorrer, não é
30
LISPECTOR, 1984. p. 134.
94
comunicar, como se repete com demasiada freqüência, é
sujeitar: toda língua é uma reição generalizada.
31
O Homem quer exprimir(-se), ele é dotado desta necessidade de
comunicação porque sente, reflete. Somos seres expressivos e cada um de nós
aplica as atividades do pensamento a uma ou mais formas de linguagem para
estabelecer conexão com os pares sociais nossa realidade. As representações,
como bem declarou Clarice, devem ser manejadas, e isto sugere o movimento das
mãos, manobra manoeuvrer, para “realizar” pensamentos. Por assim dizer, a
nossa expressão pode ser entendida como algo que se pela produção, por uma
construção em que se supõe o fato de ela vir a materializa-se, concretamente, por
meio da fala, da escrita, de objetos, de cores, de idéias, gestos, construções: por
meio de significantes e significados. Marilena Chauí afirma que “a linguagem não
traduz (...) nem representa idéias feitas por um pensamento silencioso, mas
encarna significações”.
32
Obras de arte são, deste modo, encarnações, materialidades, concretudes,
compostas sob verdadeira multiplicidade de formas, sendo, a cada composição,
um acontecimento inaugural. O ser expressivo, maneja o espaço hermético –
fechado do sistema da língua de forma a abrir fendas de passagem, frente ao
alinhamento labiríntico de muros suspensos que é a ordem da linguagem.
(...)
Água da palavra
Água calada, pura
Água da palavra
Água de rosa dura
Proa da palavra
Duro silêncio, nosso pai.
(...)
Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando o mais dentro aflora
Tora da palavra
Rio, pau enorme, nosso pai.
33
31
BARTHES, 2001. p. 12 et. seq.
32
CHAUI, 2001. p. 149.
33
Cf. FERRAZ, 2003. p. 296 et. seq.
95
Mais uma vez, tomamos de empréstimo o pensamento de Roland Barthes
que afirma, por exemplo, ser a literatura uma “trapaça salutar” dos homens contra
a língua, para podermos escutá-la fora do poder. Antonin Artaud, muito antes de
Barthes, desafiava o poder da linguagem propondo a dissolução das palavras:
Eu já lhes disse: nada de obras, nada de língua, nada de palavra,
nada de espírito, nada.
Nada, exceto um belo Pesa-nervos.
Uma espécie de estação incompreensível e bem no meio de tudo
no espírito.
E não esperem que eu lhes nomeie esse tudo, que eu lhes diga
em quantas partes ele se
Divide (...) e, que eu me ponha a discutir sobre esse tudo,
e que, discutindo, eu me perca e me ponha assim, sem perceber,
a PENSAR — e que ele se
ilumine, que ele viva, que ele se enfeite de uma multidão de
palavras, todas bem cobertas
de sentido, todas diversas, e capazes de expor muito bem todas
as atitudes, todas as nuanças
de um pensamento muito sensível e penetrante.
(...)
Vamos, eu serei compreendido dentro de dez anos pelas pessoas
que farão o que vocês
fazem hoje. Então meus gêiseres serão conhecidos, meus gelos
serão vistos, o modo de
desnaturar meus venenos estará aprendido, meus jogos d’alma
estarão descobertos. (...) Então ver-se-á fumegar as junturas das
pedras, e arborescentes buquês de olhos mentais se cristalizarão
em glossários,
então ver-se-ão cair aerólitos de pedra, então ver-se-ão cordas,
então se compreenderá a geometria sem espaços, e se aprenderá
o que é a configuração do espírito, e se compreenderá como eu
perdi o espírito.
Então se compreenderá por que meu espírito não está aí,
então ver-se-ão todas as línguas estancar, todos os espíritos
secar,
todas as línguas encorrear,
as figuras humanas se achatarão, se desinflarão, como que
aspiradas por ventosas secantes,
e essa lubrificante membrana continuará a flutuar no ar, esta
membrana lubrificante e cáustica, esta membrana de duas
espessuras, de múltiplos graus, de um infinito de lagartos, esta
melancólica e vítrea membrana, mas tão sensível, tão pertinente
também, tão capaz de se multiplicar, de se desdobrar, de se
voltar com seu espelhamento de lagartos, de sentidos, de
estupefacientes, de irrigações penetrantes e virosas, então tudo
isto será considerado certo,
e eu não terei mais necessidade de falar.
34
34
ARTAUD, 1995. p. 209 et. seq.
96
A imagem radical, proposta por Artaud é a de escavar o sistema da
linguagem em sua arbitrariedade. A imagem da figura humana transmutada em
membrana que se desenraiza, se desmancha, se multiplica e se desdobra é a
expressão em deforma, a palavra em delírio e o aniquilamento da própria figura
humana como significante. Artaud evoca, ainda, a “necessidade de falar”, quer se
fazer entender por aqueles que ainda esperam o “enfeite de uma multidão de
palavras todas bem cobertas de sentido”. O projeto de Artaud era fazer da
linguagem, ação, em uma relação estreita entre conceito e gesto, resultando em
força. Segundo Deleuze: “Artaud é o único a ter sido profundidade absoluta na
literatura e a ter descoberto um corpo vital e a linguagem prodigiosa deste corpo
(...). Ele explorava o infra-sentido, hoje ainda desconhecido”.
35
Na verdade, Artaud propunha uma expressão capaz de “perturbar os
homens”, capaz de revelar ao homem a sua genuína realidade, jamais suposta por
ele mesmo. Determinado pelo projeto de abater as palavras, as metáforas, os
sentidos, Artaud escreveu compulsivamente, proferiu, debateu. Manejou a
linguagem para afirmar, para evidenciar a justeza da articulação de seu plano. Por
este motivo escreveu e desenhou em cadernos franceses de pauta quadriculada.
Existem até o momento vinte e oito volumes de textos seus publicados pela
editora Gallimard e este número de publicações não dá conta de toda a sua
produção.
Arthur Bispo do Rosario, entre idas e vindas, viveu cerca de 50 anos no
estado sórdido de um hospício, sob administração institucional brasileira, é uma
realidade inimaginável, é uma porta que se abre lentamente para deixar-nos ver o
prado onde relincha o anjo do abismo. Ainda assim, o senso estético em Bispo do
Rosario o transfere para um registro mágico, alterando o aspecto deplorável de seu
espaço de ser no asilo, reinventando sua própria existência. Deste modo, todo o
real, o caos o asco, convertia-se em beleza, ponto de fuga de seu olhar
involuntariamente subversor. Nem revoltado, nem intencionalmente político,
Bispo trazia à superfície uma contradição, para além dos muros dos asilos de
loucos e para o qual nossas vistas embaçam.
(...) Parece-me que estou a ver, era melhor ser prudente, nem
todos os casos são iguais, costuma-se até dizer que não há
cegueiras, mas cegos, quando a experiência dos tempos não tem
35
DELEUZE, 2003. p. 96.
97
feito outra coisas [sic] que dizer-nos que não cegos, mas
cegueiras. (...)
36
Nosso mundo está fechado pela ordem e deformado pela arbitrariedade
cega de suas normas universalizantes, capazes de deliberar, legislar, excluir ou
eliminar o desconhecido, o que a razão não pode controlar. As questões filosóficas
acerca do pensamento não estão, e nem sabemos se algum dia estarão,
inteiramente respondidas. Segundo Michel Foucauld:
(...) O homem é um ser pensante. A maneira como ele pensa
tem relação com a sociedade, com a política, com a economia e
com a história; também se relaciona com categorias muito
gerais, até universais, e com estruturas formais. Porém o
pensamento e as relações sociais são duas coisas bem
diferentes. As categorias universais da lógica não estão aptas a
dar conta adequadamente da maneira como as pessoas
realmente pensam.
37
um mal-estar presente no estado miserável de condições, no qual se
funda a obra Arthur Bispo do Rosario. Bispo, diante da insuficiência de materiais,
elaborava o seu inventário do universo, desfiando lençóis e o uniforme de interno,
de modo que a linha destecida servisse à costura, ao bordado e ao revestimento
das O.R.F.A.s. Este detalhe, precisamente, o destecer do uniforme, transfigurado
em representação da existência, é o que magicamente causa um efeito de
perplexidade. Toda a tensão de sua narrativa está aí, no escandaloso silêncio deste
gesto transformador da miséria da realidade.
Neste ponto, no desfiar do enredado tecido uniforme, fundador de um
universo transformado, entrevejo a interseção entre Bispo do Rosario e Antonin
Artaud, como se a cada fio da trama puxado por Bispo, se fizesse uma transição
de imagens, revelando por detrás a face auto-retratada de Artaud, em seus
cadernos quadriculados de Rodez
38
.
36
SARAMAGO, 2001. p. 308.
37
Cf. MOTTA, 2004. p. 294.
38
Anexo 11, p. XXIII.
98
Desfecho
Iniciei a jornada de pesquisa sobre Arthur Bispo do Rosario descobrindo
Antonin Artaud. Contudo, o movimento circular imposto pelo processo
manifestava-se furtivamente e revelava em alternância um ou outro pelo
desentretecer das retículas. Pensei em figurar Antonin Artaud como único teórico
a estabelecer os critérios de minhas análises, na tentativa de escapar à armadilha
desgastada de arrolar o sempre mesmo elenco canônico presente nas produções
científicas dos estudos da literatura. Naquele momento, a fortuna crítica de
Antonin Artaud servia como assentamento suficiente e obrigatório à dissertação.
Com o tempo, conforme arquitetava entradas pelo universo de Bispo, outras
leituras e os próprios autores do bloco canônico tornaram-se indispensáveis, então
renunciei à disposição inicial.
Defini como ponto de partida à pesquisa sobre o trabalho de Arthur Bispo,
o estudo de sua construção poética. Pretendia analisar a obra pela perspectiva
artística. Afastei, inclusive, como proposição de trabalho, os discursos de focagem
sobre a análise da criação de Bispo pela via do caso clínico, por três motivos:
primeiro por acreditar na possibilidade de ocorrência da obra de arte nas mais
diversas condições de existência. O segundo motivo, ao primeiro adjacente,
articulava-se pela deliberação de conduzir os estudos por uma vertente menos
explorada e menos determinada pelo discurso da psiquiatria, excessivamente
aplicado nas investigações sobre a obra do mesmo. Vizinho à segunda justificativa
é o motivo final, porque reitera o obstáculo ao discurso da psiquiatria. Poupo,
assim, o leitor à frustração de preencher lacunas à proporção que hesito por um
campo de conhecimento excêntrico à minha experiência teórica.
A questão da “invenção” perseguiu o meu processo de trabalho. A
primeira manifestação do tema surgiu pela escrita de uma peça teatral,
engendrando um encontro entre mim, Bispo do Rosario, Antonin Artaud e Qorpo
Santo no espaço criativo. Poeta, dramaturgo e professor de língua portuguesa,
Qorpo Santo, excelente idéia sugerida por Pina Coco, teria valorizado o trabalho.
Chegou a fazer parte de minha pesquisa, entretanto precisou ser afastado, por uma
questão, para aqui, administrativa: a urgência do tempo. Precisei mudar
99
completamente a estrutura da peça em função da saída de Qorpo Santo e como
resultado disso ocorreu a dramaturgia de Rotação.
O tema da “invenção” tornou-se o traço distintivo da dissertação, quando
passei a explorar, nos arquivos do MAM, as matérias jornalísticas sobre a
divulgação da obra de Bispo do Rosario. Realizei um primeiro esboço de capítulo,
estudando um extenso material de mídia impressa e catálogos de exposições com
textos fundadores de Frederico Morais a respeito da obra de Arthur Bispo. Os
textos de Morais revelavam a construção da figura de Bispo como artista e a
importância do espaço midiático à propagação desta idéia elaborada pelos
discursos sucedidos a partir de então.
A dissertação foi complementada por entrevistas, a fim de investigar, ou
confirmar, as proposições evidenciadas pela soma de narrativas da mídia
impressa. Trazendo uma experiência e um interesse de formação, estimulavam-me
as descobertas de implícitos confinados nos discursos e os contrastes perceptíveis
entre as ações dos sujeitos, ocorrências dos fatos, os fatos e a mão do tempo. Sem
dúvida, o Segundo Tomo adquiriu grande importância por seu caráter documental
e por estarem ali implicadas as entrevistas concedidas por Frederico Morais, Luiz
Camillo Osorio e Luciana Hidalgo. A entrevista com Camillo Osorio destacou-se
inesperadamente a ponto de desnortear em parte o meu processo de análise, a
dois dedos de prosa para o fim.
Segui novas leituras, escapei, enfrentei, até acordar para o fato de ali estar
a maior contribuição ao trabalho, a oportunidade de permitir o contraste de forças
discursivas. Na contraposição do pensamento crítico de Camillo estava a
oportunidade do debate sobre as noções contemporâneas do que é arte e seus
valores contíguos, sobre os limites do julgamento crítico e sobre o papel do
intelectual.
A produção intelectual consiste na apresentação de uma leitura. O papel do
intelectual é igualmente comprometido com a sugestão de alternativas desviadas
do pensamento prefixado, condicionado, obsoleto, e aberto a um ambiente de
coexistência da multiplicidade de vozes. Cada qual, dentro de seu campo
específico de desempenho, deve esforçar-se por eliminar as fronteiras, investindo
em uma participação ampliada. Trabalhei nesta resolução. Permiti visibilidade às
divergências de princípios, acreditando ser do combate inventivo, no sentido do
rearranjo de idéias, que nascem em força e variedade as novas hipóteses.
100
Determinei neste projeto a urgência de minhas inquietações a respeito dos
limites da linguagem, da construção poética, do escritor e do leitor como
inventores, do texto como revelador incontido e da escrita de si. Assim sendo, a
utilização da fala em primeira pessoa, critério formal, quer desencobrir a furtiva
presença do autor na tecitura do texto. É uma espécie de chamado ao aspecto de
não podermos jamais escamotear nossos papéis indissociáveis na relação circular
entre leitor, texto e escritor. Foi um prazer exercer os três “papéis”, ser leitora, ser
o texto, e por ambos escrever. Cheguei ao fim. Quanto à sensação de
incompletude, desta não escapo, é a minha destinação, a telha partida. Veja, leitor,
quantas voltas uma Roda pode dar. Verifique ali no alto o número desta última
página. O número é cem: 100. Ei-lo, o eterno retorno.
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II
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Suzanna (coord.). Imagens do inconsciente. Apresentação Edemar Cid
Ferreira; tradução John Norman. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo :
Associação Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000.
ROSARIO, Arthur Bispo do. Arthur Bispo do Rosario: registros de minha
passagem pela terra. Apresentação Ana Mae Barbosa. Belo Horizonte:
Museu de Arte, 1990.
ROSARIO, Arthur Bispo do. Arthur Bispo do Rosario: registros de minha
passagem pela terra. Apresentação Geraldo Magalhães. São Paulo:
MAC/USP, 1990.
ROSARIO, Arthur Bispo do. O Inventário do universo. Apresentação Frederico
Morais. Rio de Janeiro: MAM, 1993.
____. In: Catálogo da exposição: Arthur Bispo do Rosário: o inventário do
universo. Rio de Janeiro: MAM, 1993.
Mídia Impressa – Arquivo MAM
ABREU, Gilberto de. O maluco beleza da Juliano Moreira. Tribuna da
Imprensa – Tribuna Bis. Rio de Janeiro. 11 jan.1993.
ANDRADE, Geraldo Edson de. Um ano passado a limpo. Revista. Artes
Plásticas. Última Hora. Rio de Janeiro. 02 jan.1990. P.2.
GIRON, Luís Antônio. Paranóico é atração do Brasil na Bienal de Veneza. Folha
de São Paulo. 22 mai.1995.
____. Associação acusa Bienal de ‘calote cultural’. Folha de São Paulo. São
Paulo. 13 jul.1995.
HOMERO, Vilma. Visão especial da arte. Tribuna da Imprensa - Tribuna Bis.
Rio de Janeiro. 11 out. 1989.
JORNAL DO BRASIL – Caderno B. Arte de Bispo atrai multidão ao MAM. Rio
VIII
de Janeiro. 14 jan. 1993.
MARIA, Cleusa. Arte refaz o universo. Jornal do Brasil. 18 out. 1989.
MEDEIROS, Jotabê. Janete libera obras de Bispo para Veneza. O Estado de São
Paulo. Caderno 2. São Paulo. 25 abr. 1995.
MORAIS, Frederico. Bispo do Rosário conjuga arte e loucura. O Estado de São
Paulo. São Paulo. 04 fev. 1995.
O ESTADO DE MINAS. Obras de Bispo serão expostas em Veneza. Belo
Horizonte. Minas Gerais. 25 abr. 1995.
O ESTADO DE SÃO PAULO. Arte e loucura entram na política cultural do
MAC. São Paulo. 09 mar. 1990. P.3.
PEDROSA, João. Um outsider das artes. Jornal da Tarde. Modo de vida. São
Paulo. 4 ago. 1994.
PIZA, Daniel. Jatene libera obras de Bispo a Veneza. Folha de São Paulo. Artes
Plásticas. São Paulo. 25 abr.1995.
REIS, Paulo. Exaltação a Bispo. Jornal do Brasil. Caderno B. Capa. Rio de
Janeiro. 01 abr. 1984.
____. O Bispo esquecido. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro. 16 set. 1994.
SAVINI, Marcos. Demiurgo do inconsciente. Jornal de Brasília – Caderno 2.
Brasília, Distrito Federal. 27 mai.1993.
STYCER, Daniel. A arte da sucata entregue aos cupins. O Globo - Segundo
Caderno. Rio de Janeiro. 04 jul. 1992. P.2.
VELOSO, Marco Henrique. Exposição de Bispo silencia a história da arte. Folha
de São Paulo. Ilustrada. Acontece. São Paulo. 22 abr.1990.
Sites na Internet
ARTAUD, Antonin. Para acabar com o julgamento de Deus. In:
<http://www.sabotagem.cjb.net/>
DENIZART, Hugo. Depoimentos/entrevista. Enciclopédia: artes visuais 2003.
Verbete 505. In: <www.itaucultural.org.br>
PROA. Imagens do trabalho de Arthur Bispo. In:
<
http://www.proa.org/index.html>
IX
Documentos e ilustrações em anexo
ARTAUD, Antonin. Imagem de um dos cadernos quadriculados de Rodez, nos
quais Artaud trabalhava. Acessível no site
<http://expositions.bnf.fr/brouillons/images/3/112.jpg>
FICHA DE DOENTE. Colônia Juliano Moreira. Ficha de Arthur Bispo do
Rosario. Pasta: RUF 09043 – 01826. Arquivo do Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro (MAM).
MAM. Carta com pedido de apoio à transportadora FINK. Rio de Janeiro, 30 nov.
1992.
PARALAMAS DO SUCESSO. Severino. Encarte. Designer: Gringo Cardia.
EMI-Odeon, 1994. 1 CD (2:18h).
PARQUE LAGE. Escola de Artes Visuais. Release da Exposição “Registros de
minha passagem pela terra”. Rio de Janeiro, out. – nov. 1989.
PROA. Fundación Proa Arte Contemporáneo argentino. Apresenta imagens dos
trabalhos de Bispo do Rosario. Roda da Fortuna. Disponível em :
< http://www.proa.org/index.html>
ROSARIO, Arthur Bispo. Confetes. Vitrine catalogada como Assamblage.
Suporte com quinze garrafas plásticas do tipo pet azuis e verdes, cheias de
confetes coloridos. s/d.
____. EU VIM. Farda tipo militar, azul marinho com 4 tiras amarelas (plásticas),
nos punhos; bordada com floral e nomes próprios, em linha
branca. s/d.
____. O.R.F.As. Objetos Revestidos com Fios Azuis dos uniformes de internos
do Hospital Psiquiátrico: Colônia Juliano Moreira. Suportes de madeira,
papelão ou metal. Nomeados e numerados (algarismos romanos) em bordado
branco. Foto aproximada In.: HIDALGO, Luciana. Arthur Bispo do Rosário:
o senhor do labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
< http://www.proa.org/index.html>
____. Urna D Femi. In: KLEIN, Cristian. A arte que Deus já julgou. Jornal do
Brasil. Capa do B. Rio de Janeiro 21 jun. 1999. Objeto confeccionado com
tecido de lençóis azuis do hospital psiquiátrico. Bordados em ponto largo e
aplicação do nome do objeto em letras de tecido recortado e costuradas na
X
face do suporte.
Entrevistas não publicadas
HIDALGO, Luciana. Entrevistadora: Cecilia Gusmão Wellisch. Gravação de voz
digital (55:10 min). Entrevista concedida para o projeto de mestrado A invenção
de Bispo do Rosario, pela PUC-Rio. Rio de Janeiro, 9 nov. 2005. Arquivo
pessoal.
MORAIS, Frederico. Entrevistadora: Cecilia Gusmão Wellisch. 3 fitas cassete
(120 min). Entrevista concedida para o projeto de mestrado A invenção de Bispo
do Rosario, pela PUC-Rio. Rio de Janeiro, 24 out. 2005. Arquivo pessoal.
OSORIO, Luiz Camillo. Entrevistadora: Cecilia Gusmão Wellisch. Gravação de
voz digital 128 kbps (48:38 min). Rio de Janeiro, 27 dez. 2005. Arquivo pessoal.
XI
Anexos
XII
Anexo 1 - Release Parque Lage.
XIII
Anexo 2 - Carta do MAM.
XIV
Anexo 3 - Capa CD “Severino” - Paralamas do Sucesso.
XV
Anexo 4 - contracapa CD “Severino”, com texto de Frederico Morais.
XVI
Anexo 5“Roda da Fortuna”, de Bispo do Rosario. Museu Nise da Silveira, Colônia
Juliano Moreira, Jacarepaguá.
XVII
Anexo 6a - Ficha de doente da Colônia Juliano Moreira – detalhe do padrão floral na
camisa semelhante ao das fardas.
XVIII
Anexo 6b - Farda “EU VIM” - Bispo do Rosario – Museu Nise da Silveira, Jacarepaguá;
com detalhe do padrão folhal da camisa, recortado da foto 3X4 da ficha de
entrada na Colônia Juliano Moreira (Anexo 6a).
Detalhe do Anexo 6a
XIX
Anexo 7 – “O.R.F.As”, de Bispo do Rosario. Museu Nise da Silveira, Jacarepaguá.
XX
Anexo 8 – “VOIS HABITANTES /Planeta/ DA TERRA”, de Bispo do Rosario. In: CD
“Severino”, Paralamas do Sucesso.
XXI
Anexo 9 – “Urna D Femi”, de Bispo do Rosario. Museu Nise da Silveira.
XXII
Anexo 10 – “Confetes”, de Bispo do Rosario – Museu Nise da Silveira, Jacarepaguá.
XXIII
Anexo 11 - Antonin Artaud – Auto-retrato, Caderno de Rodez.
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