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MARLI CRISTINA TASCA MARANGONI
A INFÂNCIA NO PAMPA:
CONTOS GAUCHESCOS E LENDAS DO SUL
Caxias do Sul - RS
2006
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MARLI CRISTINA TASCA MARANGONI
A INFÂNCIA NO PAMPA:
CONTOS GAUCHESCOS E LENDAS DO SUL
Caxias do Sul - RS
2006
2
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em Letras e Cultura
Regional, com concentração na área de Literatura e
Cultura Regional, pela Universidade de Caxias do
Sul.
Orientador: Prof. Dr. João Claudio Arendt
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3
RESUMO
Esta Dissertação investiga a construção de identidades infantis regionais, a partir de
representações da infância verificadas em Contos gauchescos e Lendas do Sul, de João
Simões Lopes Neto. Para tanto, são discutidas as relações entre os universos adulto e infantil,
os papéis destinados à personagem mirim, os modos de referir e caracterizar a criança, bem
como suas trajetórias esperadas e possíveis no mundo narrado. Desse modo, o presente estudo
demonstra a predominante constituição do sujeito infantil como herdeiro de uma tradição
sócio-cultural, entendendo-se que tal referência identitária inibe a renovação da concepção
social de infância, na sociedade representada. Configura-se, assim, uma abordagem ao texto
literário subsidiada por aportes da História e da Antropologia, contribuindo para uma
perspectiva interdisciplinar sobre a problemática da regionalidade, no âmbito dos estudos
culturais.
Palavras-chave: infância, cultura, região, identidade, representação.
4
ABSTRACT
This dissertation investigates the construction of regional identities from the infancy
representations verified in Contos gauchescos and Lendas do Sul, by João Simões Lopes
Neto. For that, there have been discussions about the relations between adult and infantile
universes, the roles of child character, the ways to refer and characterize the child, as well as
the expected and possible trajectories in the narrative. In this manner, this study demonstrates
the predominant constitution of the infantile individual as an heir of a socio-cultural tradition,
knowing that such identifying reference inhibits the renewal of the social conception of
infancy in the shown society. Therefore, an approach to the literary text is shaped supported
by History and Anthropology, contributing to an interdisciplinary perspective on regionality
matters, within the ambit of cultural studies.
Key-words: infancy, culture, region, identity, representation.
5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 07
1 INFÃNCIA, FAMÍLIA E REGIÃO .............................................................................. 19
1.1 Uma história da infância .................................................................................. 19
1.2 A infância e a família no Brasil ....................................................................... 24
1.3 Região e identidade: aspectos históricos ......................................................... 27
2 AS RELAÇÕES FAMILIARES E A INFÂNCIA ....................................................... 35
2.1 O pai, guardião da honra das filhas ................................................................ 37
2.2 O mundo adulto e o mundo infantil ................................................................ 52
3 RITOS DE PASSAGEM ................................................................................................ 80
3.1 A transição masculina da infância à vida adulta ........................................... 84
3.2 A iniciação feminina na vida adulta ................................................................ 93
3.3 Infância, ludismo e sociedade .......................................................................... 103
4 TRADIÇÃO E MUDANÇA ........................................................................................... 116
4.1 Blau Nunes, porta voz da tradição .................................................................. 116
4.2 A criança, herdeira da tradição ....................................................................... 131
4.2.1 O Negrinho, a outra criança ......................................................................... 138
CONCLUSÃO .................................................................................................................... 150
REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 161
Bibliografia complementar .................................................................................... 164
6
INTRODUÇÃO
A problemática regional impõe-se aos estudos científicos como uma demanda
investigativa que é preciso assumir para compreender aspectos do funcionamento social e da
constituição identitária. O acesso à região, por sua vez, pode ser alcançado através do
estabelecimento de relações entre essa categoria e o elemento cultural, que, em última
instância, atribui sentido à configuração regional requerida.
A proposta de investigar a construção da identidade infantil, em Contos gauchescos e
Lendas do Sul, de João Simões Lopes Neto, implica, pois, a delimitação das noções de
“cultura” e “região”, que permeiam a abordagem dos textos literários supracitados. Além
disso, torna-se necessário discutir as concepções de “representação” e “identidade”, bem
como das relações que se estabelecem entre o texto literário e a sociedade, uma vez que,
enquanto produto construído socialmente, a obra literária representa e problematiza o dado
social, recriando-o através da metáfora e da alegoria.
7
Para Antonio Candido (2000, p. 4), a consideração da produção literária em sua
integridade estética supõe o entrelaçamento entre o momento sincrônico, que se refere à
constituição da obra, e o momento diacrônico, que se ocupa do significado do texto em sua
relação com os demais sistemas da vida social. Tal integridade confere à obra uma função
total, que deriva da elaboração de um sistema simbólico e lhe permite transcender a situação
imediata, inscrevendo-se no patrimônio do grupo. Além disso, a obra adquire função social,
em decorrência da sua inserção no universo de valores culturais e do seu papel na manutenção
ou na mudança de certa ordem estabelecida socialmente. Para o destino e a apreciação da
obra, adquire relevância o sistema de idéias por ela definido, o qual configura a função
ideológica, geralmente englobada pelas demais funções.
Com o objetivo de buscar uma interpretação dialética do fenômeno literário, Antonio
Candido (2000, p.18) propõe um duplo questionamento acerca das relações entre a obra e o
meio social: “qual a influência exercida pelo meio social sobre a obra de arte? Qual a
influência exercida pela obra de arte sobre o meio?”. Deslocando a consideração periférica da
sociologia ou da história sociologicamente orientada para a estrutura da obra, torna-se
possível, segundo o teórico, uma abordagem em que a arte se apropria do elemento externo,
superando o nível ilustrativo, através da assimilação da dimensão social, que passa a constituir
fator da própria construção artística. É estabelecido, assim, um constante diálogo entre o meio
e o produto artístico, os quais se constroem mutuamente num processo comunicativo.
Decorrente da comunicação entre a realidade social e o produto que a representa, instaura-se
um “efeito”, cuja repercussão sobre o meio finaliza a obra e lhe confere realidade.
Percebida como “sistema”, a literatura funciona como elemento de constituição
identitária e, ao mesmo tempo, como expressão de identidades regionais. O texto literário não
corresponde ao reflexo mecânico de uma ordem social, mas compreende um posicionamento
frente à mesma. Como síntese resultante desse processo, o efeito pode conduzir a um reforço
8
dos valores sociais dos receptores ou à modificação da sua conduta e da sua concepção de
mundo. Nesse sentido, os elementos individuais assumem significado social na medida em
que as pessoas correspondem a necessidades coletivas, fator que permite aos indivíduos
exprimirem-se e encontrarem, dessa forma, repercussão no grupo.
O texto literário, portanto, dialoga com a maneira de ser da sociedade e mantém com
ela uma relação de cumplicidade, que, mesmo em situações de ruptura, autoriza o autor a
manifestar determinadas idéias de dada forma e em certo momento. Esse movimento, em que
se acentua a participação do indivíduo ou do grupo nos valores comuns da sociedade, é
denominado, por Antonio Candido, de integração. Entretanto, a arte, assim como a
socialização do homem, depende do equilíbrio entre essa tendência à integração e a
diferenciação, a qual atua no sentido de reforçar as peculiaridades e diferenças do indivíduo e
do grupo.
Diante disso, o texto literário é tomado como produção cultural que assimila, em sua
estrutura, a realidade externa, trazendo implicações de caráter social, histórico e ético. Trata-
se, assim, de um construto que, gerado na esfera do “fazer”, incide sobre o “agir”, domínios
humanos através dos quais se pode definir a dimensão do “ser”, uma vez que o sujeito se
constitui a partir deles.
Conseqüentemente, tais delimitações conduzem a uma definição de “cultura”,
entendida, de acordo com a proposição de Paviani (2004, p. 75), tanto como obra coletiva da
ação humana quanto reflexão sobre a mesma. A produção e a atribuição de sentido ao que é
produzido configuram, dessa forma, os dois momentos complementares do processo cultural,
de maneira que evitar o trânsito da aceitação à reflexão crítica da realidade imposta acarreta a
perda da identidade social e histórica.
Os modos de agir, fazer, pensar e conhecer, presentes na sociedade e nas relações
humanas, definem a noção de cultura, que não é, segundo Paviani (2004, p. 76), “apenas o
9
conjunto de obras, costumes, organizações, instituições, mas principalmente o sentido que as
perpassa. Este sentido permite que cada um possa situar-se no mundo, entendendo-o,
transformando-o”.
Geertz (1989) entende que a cultura é um sistema de sinais, cujo significado deve ser
continuamente interpretado, uma vez que a interpretação nunca é definitiva. A respeito dessa
noção cultural, Pozenato (2003) propõe que a cultura seja vista não como um código
lingüístico, mas como um discurso que está se produzindo permanentemente. Assim, a cultura
é percebida como um conjunto de textos que precisam ser lidos e interpretados, isto é, como
um contexto no interior do qual determinadas práticas, bens e valores fazem sentido e podem
ser explicados com propriedade.
A manifestação dos valores éticos, estéticos e técnicos de uma cultura realiza-se, pois,
através dos bens produzidos culturalmente, assim como das práticas culturais. Para o autor, o
código cultural deve possibilitar a leitura de significados, os quais podem ser desenvolvidos e
modificados. Pozenato (2003) enfatiza que perceber tal dinâmica cultural é possível dentro
de uma concepção de cultura que a entenda como um universo de sinais, cujo significado é
acessível a partir de uma visão contextual.
Cuche (2002) também salienta o aspecto dinâmico do sistema cultural. O autor afirma
que todas as culturas, devido ao fato universal dos contatos culturais, são, em diferentes graus,
feitas de continuidades e descontinuidades, atentando, ainda, para o fato de que a
continuidade será tão mais afirmada quanto mais a descontinuidade manifestar-se nos fatos.
Nesse sentido, a cultura não é uma herança que se transmite imutável através das gerações.
Como produção histórica, o processo cultural insere-se nas relações dos grupos sociais entre
si.
Por situar-se temporal e espacialmente em cada grupo e, ao mesmo tempo, no
conjunto da sociedade, a cultura constitui uma unidade estabelecida pela multiplicidade.
10
Conforme Paviani, o desdobramento dialético, configurado na dimensão da universalidade
que a singularidade requer, permite que uma manifestação particular ou regional seja
reconhecida por todos, uma vez que possui raízes locais e significações universais. As
relações culturais são, portanto, marcadas pelo grupo e pela época, sendo que tais marcas
“instauram o sentido individual e universal da existência humana”.
Contrapondo-se à noção excludente de identidade, que considera as diferenças
culturais como fatores externos ao grupo, o emprego crítico da expressão identidade
cultural” deve admitir a diferença como elemento constitutivo da própria identidade, ou seja,
como aspecto interno da construção identitária. Segundo Pozenato (2003, p. 33), ao ser
obstaculizada a eliminação das diferenças culturais, oferecem-se espaços de permanência para
tais diferenças. A manutenção da diferença contraria a eliminação da identidade.
Entendida, enfim, como processo nascido das relações entre os grupos, a cultura é
assinalada por elementos identificadores e diferenciadores, de modo que ela identifica os
indivíduos com um grupo, ao mesmo tempo em que os diferencia em relação aos outros. Por
conseguinte, de acordo com Paviani (2004, p. 77), “a identidade de um grupo requer o
reconhecimento de outros grupos e do Outro”.
Nessa perspectiva, Woodward (2000, p.9) pontua que a identidade é relacional, que
depende, para existir, de algo que está fora dela, a saber, “uma identidade que ela não é”.
Sustentadas pela diferença, as práticas e as relações sociais que configuram a identidade são
marcadas por meio de símbolos. A identidade, assim, adquire sentido através da linguagem e
dos sistemas simbólicos pelos quais é representada. A construção e a manutenção das
identidades é, logo, tanto simbólica quanto social.
Enquanto processo permeado pela redescoberta do passado, a construção cultural das
identidades implica conflitos advindos das mudanças sociais, políticas e econômicas.
11
Entretanto, na opinião de Woodward (2000, p. 27), existem maneiras distintas de se pensar a
identidade cultural, em relação ao passado que a valida.
A afirmação de determinada identidade pode, pois, efetivar-se através de um suposto e
autêntico passado, possivelmente glorioso, que parece real” e que legitima a identidade
requerida. Já numa segunda concepção, a autenticação identitária pressupõe o reconhecimento
de que a reconstrução do passado e da identidade acontece quando alguém a reivindica. Nessa
perspectiva, é enfatizada a fluidez da identidade, de forma que aqueles que a reclamam não se
limitam a ser posicionados por ela, mas são capazes de posicionar a si próprios e de
reconstruir as identidades históricas, herdadas de um suposto passado comum.
As identidades individuais e coletivas, bem como os sistemas simbólicos que as
significam, são estabelecidas, segundo Woodward, através da representação, processo cultural
que constrói os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e falar. Como
sistema de significação, a representação é uma forma de atribuição de sentido que incorpora a
arbitrariedade e a indeterminação caracterizadoras dos sistemas lingüístico e cultural. É por
meio da representação, assim compreendida, que a identidade e a diferença passam a adquirir
um sentido e a ligar-se a sistemas de poder, uma vez que “quem tem o poder de representar,
tem o poder de definir e determinar a identidade” (WOODWARD, 2000, p. 17). Portanto,
questionar a identidade e a diferença significa questionar os sistemas de representação que as
sustentam.
A respeito, Bourdieu (1989, 113-118) sustenta que as representações do mundo
social estão permanentemente em luta pela definição da realidade, de modo que é preciso
incluir no real a luta das representações do real. Como enunciados performativos, as
representações pretendem que aconteça aquilo que enunciam.
Considerando o aspecto performativo na produção da identidade, Silva (2000, p. 94)
pontua que sua eficácia produtiva depende de sua incessante repetição. Entretanto, o autor
observa que a mesma repetibilidade, através da qual é garantida a eficácia dos atos
12
performativos reforçadores das identidades existentes, pode significar, também, a
possibilidade da interrupção das identidades hegemônicas. A repetição pode ser questionada
ou contestada e, assim, interrompida, possibilitando a instauração de identidades renovadas,
que não reproduzam simplesmente as relações de poder existentes.
A configuração de uma nova divisão do mundo social dá-se, pois, através de um ato de
conhecimento, que, por estar firmado, como todo o poder simbólico, no reconhecimento,
produz a existência daquilo que enuncia. Nesse sentido, Bourdieu (1989, p. 116), ao referir a
luta das representações presente na definição da idéia de “região”, salienta que “o discurso
regionalista é performativo, uma vez que tem em vista impor como legítima uma nova
definição das fronteiras e dar a conhecer e fazer reconhecer a região assim delimitada” contra
a definição dominante, reconhecida como legítima, que a ignora.
Pozenato, por sua vez, propõe que determinada região adquire realidade apenas em seu
sentido simbólico, na medida em que “seja construído um conjunto de relações que apontem
para esse significado” (2001, p. 587). Distanciando-se da concepção de região como uma
realidade natural, tal rede de relações que delimitam uma dada região é estabelecida por um
autor, ou seja, supõe critérios escolhidos convencional, histórica e circunstancialmente.
Afastados os estigmas advindos do uso geográfico do conceito de região, que a situam
como um horizonte acanhado e estreito, as representações culturais regionais adquirem caráter
aberto e universal, que abrigam um trânsito de funções. De acordo com os novos
parâmetros impostos pela tecnologia das comunicações, a região deixa de parecer um espaço
periférico, isolado entre fronteiras e dependente de um centro, passando a ser tomada como
um complexo de relações inserido numa rede simbólica sem fronteiras.
O texto de matriz regional mostra-se, assim, ressignificado a partir dos processos e
conflitos culturais que são mobilizados em seu interior, dentre os quais situa-se a
problemática da identidade infantil. O modo como a criança é representada na produção
13
cultural de determinada região recupera, pois, o diálogo social instaurado simbolicamente, a
partir do qual é estabelecida a concepção de infância.
Atualmente, a infância é vista como uma fase da vida que se estende do nascimento até
os doze anos, na qual o indivíduo recebe tratamento diferenciado. Conforme Ariès (1981, p.
39), a sociedade nem sempre teve essa concepção de criança. Percebe-se, nesse sentido, que,
somente durante a Idade Média, as fases da vida passaram a ocupar destaque nos tratados
pseudocientíficos. Elas não correspondiam apenas a etapas biológicas, mas a funções sociais,
sendo que a idéia de infância estava relacionada à dependência, e os termos que designavam
as crianças também nomeavam as relações feudais ou senhoriais de submissão.
Com o tempo, transformou-se a concepção de infância, a qual, na modernidade, passou a
referir um processo de desenvolvimento biológico e cognitivo comum às crianças,
independentemente da cultura em que se inserem. Entretanto, conforme Zilberman (1990, p.
7), pensar a criança implica pensar a maneira como o meio a concebe e cristaliza seu modo de
ser, reforçando-o através de procedimentos distintos. Dessa forma, em cumplicidade com o
meio sócio-cultural, diferencia-se o lugar dos pequenos na rede social de papéis e relações,
que deve ser apre(e)ndido desde a tenra idade, para que eles possam ser inscritos na vida
adulta.
Nessa perspectiva, Perrotti (1990, p. 15) entende a criança como um ser onde se
encontram, dinamicamente, a esfera natural (decorrente do desenvolvimento associado à faixa
etária) e a dimensão histórica (estabelecida na constante relação, dependente de um tempo e
de um espaço, entre o crescimento natural infantil e o ambiente sócio-cultural).
Tendo em vista a relação entre o texto literário e a sociedade, é possível verificar reforços
ou rupturas da noção social de infância, através da caracterização dos papéis sociais atribuídos
à criança, tanto nas narrativas literárias quanto no contexto de produção das mesmas. Assim,
as formas de referir e individualizar a personagem mirim, os símbolos, objetos e ações aos
14
quais a criança é associada, bem como as funções que lhe são designadas no desenvolvimento
da narração, enquanto atribuem significados ao infante e ao seu universo, desvelam modos de
conceber a infância e perspectivas nutridas com relação aos pequenos. Em última instância,
tais representações são construídas com base na identidade infantil vigente em determinado
grupo cultural e, ao mesmo tempo, atuam como construtoras identitárias, considerando o
efeito que produzem.
Os elementos estruturais entre os quais a constituição do foco narrativo, a
configuração espaço-temporal, as funções designadas às personagens e sua caracterização –,
assim como o enredo dos textos nos quais a criança está presente, ao mesmo tempo em que
representam os pequenos, referem posicionamentos em relação à infância. Tais
posicionamentos são estabelecidos pela obra, uma vez que ela não é indiferente à concepção
social dessa etapa do desenvolvimento humano.
O diálogo que se instaura entre o meio social e os bens culturais que o representam
possibilita a consideração do texto ficcional, simultaneamente, como produto e produtor da
realidade. Assim, a obra literária, construto dos grupos culturais, posiciona-se frente aos seus
conflitos. Entre estes, situa-se a questão da identidade infantil, via de regra instituída
socialmente a partir de aspectos contraditórios, tais como a imitação e a invenção.
Em Contos gauchescos e Lendas do Sul, as expectativas de conservação ou renovação
associadas à criança são formuladas em relação à identidade infantil legitimada socialmente
na região da Campanha. Nesse sentido, a obra simoniana parece apontar as crianças como
elemento de conservação histórica, que a personagem infantil apresenta-se marcada,
predominantemente, pela aceitação do legado cultural constituído tradição.
Apoiado na hipótese acima, o presente estudo pretende investigar de que maneira a
representação da criança problematiza as identidades infantis em Contos gauchescos e Lendas
do Sul, de João Simões Lopes Neto, de modo a contribuir para os estudos literários no
15
contexto das culturas regionais. O estabelecimento do corpus de análise considera a
representatividade literária do autor, que, através da inovação estilística, inscreve-se no
regionalismo brasileiro de modo a obter a transfiguração da região circunscrita e a
ultrapassagem do caráter pitoresco e documentário. Além disso, a escolha dos textos observa
o conto
1
como gênero textual predominante e a ambiência rural das narrativas.
Tanto a suposta inexistência de estudos específicos acerca da representação da criança
na obra de Simões Lopes Neto, quanto a insuficiente investigação em torno do lugar infantil
nos processos culturais regionais rio-grandenses, conferem relevância a esta proposta de
estudo, tendo em vista que a problematização da identidade infantil pela literatura sinaliza a
sua validade social. O estudo é amparado por aportes oriundos da História e da Antropologia,
o que contribui para uma perspectiva interdisciplinar sobre a problemática da regionalidade,
mediando reflexões acerca da noção de infância socialmente construída e representada, no
contexto cultural gaúcho do século XIX e início do século XX.
Assim contextualizada, a investigação acerca da representação da infância e da
constituição identitária infantil, em Contos gauchescos e Lendas do Sul, apresenta quatro
momentos distintos, permeados pela questão da identidade cultural, que se configura na
orientação regional do objeto de análise. O primeiro deles constitui um capítulo dedicado à
reflexão sobre elementos subsidiários à posterior análise dos contos. Nesse sentido, são
abordados aspectos referentes à construção social do conceito de infância no mundo ocidental
e, especificamente, no Brasil. A interdependência entre o texto ficcional e a circunstância
espaço-temporal em que ele foi concebido implica, por sua vez, o enfoque de aspectos
históricos da formação da sociedade e da identidade rio-grandense, centralizados pela prosa
simoniana e relevantes para o entendimento das funções infantis na região da Campanha.
1
Considera-se que a estrutura da narração e o trabalho ficcional do autor sobre o argumento folclórico
aproximam as lendas simonianas ao gênero conto, tendo em vista a elaboração lingüística, bem como o
acréscimo e a transformação de episódios e personagens. Daí justifica-se a inserção da lenda “O Negrinho do
Pastoreio” no presente corpus de análise.
16
A análise das relações familiares, no interior das quais são concebidos os papéis
destinados à criança e é gestada a idéia de infância, desenvolve-se no segundo capítulo. Nesse
momento, ganham relevo as interações entre figuras paternas e filhas moças, não apenas pela
sua recorrência no espaço narrado, mas por encerrarem a evidência de profundas distinções de
gênero na estruturação social presente na obra simoniana e, portanto, no condicionamento da
vida infantil.
Posteriormente, são comparados os mundos adulto e infantil das narrativas, de modo a
verificar os elementos e bens simbólicos associados ao universo pueril, seja como projeção
adulta ou como construção dos infantes. Além disso, investiga-se de que maneira se instaura o
diálogo social entre pequenos e adultos, discutindo as representações através das quais ambos
os grupos se manifestam e se reconhecem.
O terceiro capítulo ocupa-se dos processos iniciáticos por meio dos quais as crianças
simonianas ensejam seu amadurecimento e inscrevem-se na vida adulta. Para tanto, são
examinados os acontecimentos e conflitos do universo narrado que desencadeiam a
transformação da criança e a maneira pela qual os pequenos são expostos a tais demandas de
adaptação. Analisa-se, ainda, tanto a atuação das distinções de gênero na atribuição do status
de adulto ao sujeito, quanto a predominância da violência e da precocidade na ruptura com a
infância, como meios legitimados pela sociedade adulta para promover a transição da
inocência pueril à independência.
Ainda nesse capítulo, discute-se a função atribuída à criança na conservação da ordem
sócio-cultural instituída pelo adulto, de modo a se constatar aproximações ou rompimentos
entre o universo adulto e infantil, bem como suas interferências mútuas. Os lugares destinados
ao ludismo no espaço representado são, igualmente, considerados, buscando-se explicitar,
através deles, a circunstância histórica da sociedade e o papel concedido ao brinquedo infantil
na reorganização da ordem histórico-social.
17
No quarto e último capítulo, enfoca-se o diálogo entre a tradição, representada pelo
porta-voz Blau Nunes, e a mudança sócio-cultural, potencialmente engendrada pelo ser
infantil. A voz da criança simoniana, filtrada pela ótica de Blau, pode, por um lado,
permanecer inaudível para o universo narrado ou incorporar a perspectiva adulta, de modo a
não intervir na ordem instaurada. Por outro lado, é possível que as reações da criança ao
projeto de continuidade histórico-social denunciem a incoerência e a decadência do mundo
adulto, indiciando o divórcio entre a realidade presente e o estágio humano ideal, e apontando
a necessidade de uma redistribuição do poder e dos papéis sociais. Ainda em relação ao
posicionamento do ser infantil perante a tradição, discute-se a atribuição de um lugar de
distinção à “outra criança”, a criança escrava, herdeira ilegítima de um legado imposto.
Finalmente, efetiva-se a retomada da problemática da identidade cultural infantil, a
partir da representação da infância discutida ao longo do estudo e à luz da hipótese formulada
inicialmente. Procura-se, ainda, explicitar as interdependências verificadas entre a
representação da infância, veiculada pelas narrativas, e a cultura regional que, no processo de
construção identitária, suscita a atribuição de diferentes valores e significados à meninice.
A investigação acerca da representação da criança na prosa simoniana objetiva, em
última análise, contribuir para a verificação dos mecanismos culturais que promovem o
estabelecimento dos processos identitários, nos quais a criança está envolvida como agente
cultural e, ao mesmo tempo, como receptora das projeções e expectativas do seu grupo social.
A apropriação ficcional da realidade sócio-cultural, através da realização metafórica e
alegórica, potencializa o efeito do texto simoniano, tornando-se viável discutir, a partir dele, a
constituição de identidades culturais para a infância no Rio Grande do Sul, tendo como
referência o universo cultural do pampa.
18
1 INFÂNCIA, FAMÍLIA E REGIÃO
1.1 Uma história da infância
Na atualidade, em grande parte dos grupos culturais, a infância é considerada uma
etapa diferenciada do desenvolvimento humano, na qual o sujeito possui interesses peculiares
e demanda uma formação específica. Nesse sentido, Ariès (1981) pontua que o sentimento da
infância constitui a expressão particular de um sentimento mais geral, que emergiu nos
séculos XVI e XVII: o sentimento da família. O mesmo autor (1981) assinala que o
surgimento da família moderna correspondeu a uma necessidade de intimidade e de
estreitamento dos laços identitários, uma vez que os membros da família se unem pela
afeição, pelo costume e pelo gênero de vida.
Como conseqüência do crescimento das cidades européias, no final do século XIV,
sensíveis mudanças na consciência dos homens sobre si mesmos e o mundo foram
desencadeadas, e teve início uma lenta transformação na sensibilidade em relação à criança. O
reconhecimento da infância como uma fase específica do desenvolvimento humano suplantou
o anonimato infantil e estabeleceu a criança como um ser especial, que passou a gozar de
certa visibilidade social e a ter um lugar na representação artística.
19
Datam do século XVII os sinais mais numerosos e significativos do desenvolvimento
da noção social de infância, dentre os quais Ariès assinala: a representação da figura infantil
isolada ou em posição central; os progressos higiênicos, que determinaram a diminuição da
mortalidade entre os pequenos, contribuindo para a consciência da alma e da personalidade
infantil; a especialização do traje, das brincadeiras e jogos destinados à criança; a substituição
da antiga aprendizagem através da sociabilidade pela educação escolar, que não apenas se
transformou no instrumento normal da passagem do estado infantil ao adulto, mas também
retardou o ingresso das crianças nessa fase.
O resultado dessa nova percepção da infância foi o desenvolvimento de novas
técnicas, valores e interditos comportamentais, que passaram a ser vistos como os mais
adequados em relação à criança. Além disso, a importância, até então inédita, que a criança
adquiriu nesse período transformou-a em elemento central da célula familiar burguesa, cujo
papel social se consolidou.
Contudo, apontando para o espaço citadino como o meio que ditou o novo status
infantil ao instaurar a família nuclear, Gélis (1991) sustenta que a mudança de atitude com
relação à criança constitui fundamentalmente uma mutação cultural, sujeita a variados ritmos,
sob o efeito das forças políticas e sociais
2
. Tal transformação ocorreu, de modo especial, entre
os meninos das classes sociais abastadas, sendo que nos estratos menos privilegiados as
crianças continuaram relegadas ao status antigo.
Observa-se, assim, que, no meio urbano, influenciada pelas relações de produção
industrial classista, e, no campo, pela permanência da estrutura familiar patriarcal, a sociedade
tendeu a regredir à precoce transição das crianças para a vida adulta, característica da época
medieval. Persistiram, portanto, em certos agrupamentos culturais, a imersão dos pequenos no
2
Admitindo a sujeição do status infantil à circunstância histórica e social, estudiosos apontam que a velocidade
da informação na sociedade contemporânea, aliada a fatores como a erotização das crianças, deu início à
“desinvenção da infância”, contribuindo para tornar novamente pouco nítidos os limites que separam crianças e
adultos.
20
universo adulto, com o qual partilhavam o trabalho e a exposição à vida. Tal processo
permite perceber a sujeição infantil à organização social, econômica e cultural proposta pelo
adulto.
Nesse sentido, a noção de infância é um construto coletivo da sociedade adulta, que
elabora, através dos produtos culturais, determinada imagem infantil. Para Charlot (1983), o
adulto atribui à natureza infantil um caráter contraditório, que pode ser resumido em quatro
fórmulas: a criança é, ao mesmo tempo, inocente e má, imperfeita e perfeita, dependente e
independente, herdeira e inovadora.
Em outras palavras, embora seja espontâneo e franco na expressão de seus desejos e
opiniões, independentemente de conveniências e formas de polidez, o sujeito infantil retoma,
ao mesmo tempo, os estereótipos adultos, dando, muitas vezes, provas de sua malícia. Ainda
que seja fraca, maleável e submissa às influências do seu ambiente, a criança também é
teimosa e oponente. Ao mesmo tempo em que se compadecem com a sorte dos infelizes e
com os animais, os pequenos mostram-se, com freqüência, agressivos e impiedosos. Portanto,
conforme Charlot (1983, p. 102), a inocência infantil inspira ao adulto ternura e desprezo,
pois “a criança é despojada de meios tanto para fazer o mal, quanto para resistir a ele. Sua
fraqueza é, assim, causa, ao mesmo tempo, de inocência e de maldade”.
Além disso, a criança manifesta potencialidades, curiosidades e interesses que são
promessas de enriquecimento. Nesse sentido, ela é superior ao adulto, porque o seu ser
constitui-se de tudo o que poderá tornar-se. Todavia, a aspiração do sujeito infantil é ser
grande, adulto, preencher a diferença de saber, de experiência e de poder, que marca sua
impotência e sua inferioridade. Ao mesmo tempo em que é, para o adulto, modelo de
disponibilidade frente à existência, a criança toma o adulto como modelo. Dessa forma, o
estado incompleto da criança não é apenas promessa de perfeição, mas também imperfeição
atual.
21
O ser infantil é, ainda, totalmente submisso ao adulto, o qual decide até mesmo sobre
sua vida e sua morte, mas pode ser também um déspota que tiraniza o adulto, sujeitando-o aos
seus caprichos. Por sua vez, o adulto deseja, ao mesmo tempo, tornar a criança independente e
conservá-la sob sua dependência, valorizá-la e valorizar-se em face dela.
A criança é, enfim, herdeira e inovadora, uma vez que prolonga o adulto, continuando
suas obras e assegurando-lhe certa forma de perpetuidade, ao mesmo tempo em que o
substitui, transformando o que ele fez e lançando-o à morte. Embora não tenha passado, a
criança remete ao adulto seu próprio passado, constituindo sua imagem. Além disso, os
pequenos são a imagem do futuro, pois evocam o futuro limitado do adulto. Dessa maneira, a
criança é, ao mesmo tempo, representante da tradição e do renovado, agente da perpetuação
social, mas também da inovação da sociedade. Herdeiro social e cultural das gerações
precedentes, o sujeito infantil é igualmente criador e, como tal, negador. Como argumenta
Charlot (1983, p. 104), “por ser movimento, a infância é, portanto, ao mesmo tempo, tanto
para a sociedade como para o adulto, prolongamento e adiantamento”.
Ariès (1981) também aponta dois aspectos contraditórios do sentimento da infância,
estabelecido ao longo do século XVII, que celebra, ao mesmo tempo, a inocência primitiva da
criança, a qual era preciso preservar, e sua apreciação racional dos mistérios sagrados, cujo
desenvolvimento se fazia necessário para sedimentar a resistência diante das tentações da vida
adulta.
Foi precisamente essa duplicidade congênita ao nascimento da infância, dividida entre
a valorização da inocência infantil e o desprezo pela sua imperfeição intelectual e física, que
levou ao aparecimento da escola. A instituição escolar consolidou-se como um estágio
dedicado, simultaneamente, a resguardar os pequenos inocentes das tentações e vícios adultos
e ao desenvolvimento das suas potencialidades morais e cognitivas, buscando afastar e
aproximar as crianças de determinados aspectos da condição adulta. As noções de inocência e
22
de racionalidade, pois, não se opunham, devendo conviver lado a lado.
Analisando essa idéia da contraditoriedade ligada à criança, Zilberman (2003) observa
que ela se institui na associação entre a utopia da vida pueril ideal adulto que é impossível
recuperar, dada a irreversibilidade do tempo e a reprodução ideológica da diminuição social
dos infantes: a menoridade, a fragilidade física e moral, a imaturidade intelectual e afetiva,
que leva toda criança ao desejo de suplantar a infância.
As contradições inerentes a essa idade constituem, portanto, uma elaboração posterior
ao seu abandono, originando-se do posicionamento dos adultos com relação a uma
experiência que está sob o domínio da memória e, dessa forma, sujeita ao “filtro da
idealização”.
O mesmo aspecto performativo
3
que atua na reconstrução utópica do passado intervém
na instauração da imagem infantil formulada pelo adulto. A esse respeito, Charlot (1983, p.
108) assinala que a criança é conduzida a identificar-se com a imagem projetada pelo adulto:
Se a imagem da criança é contraditória, é precisamente porque o adulto e a sociedade
nela projetam, ao mesmo tempo, suas aspirações e repulsas. A imagem da criança é,
assim, o reflexo do que o adulto e a sociedade pensam de si mesmos. Mas este reflexo
não é ilusão; tende, ao contrário, a tornar-se realidade. Com efeito, a representação da
criança assim elaborada transforma-se, pouco a pouco, em realidade da criança. Esta
dirige certas exigências ao adulto e à sociedade, em função de suas necessidades
essenciais. O adulto e a sociedade respondem de certa maneira a essas exigências:
valorizam-nas, aceitam-nas, recusam-nas e as condenam. Assim, reenviam à criança
uma imagem de si mesma, do que ela é ou do que deve ser. A criança define-se,
assim, ela própria, com referência ao que o adulto e a sociedade esperam dela.
Dessa forma, o desenvolvimento da criança, enquanto parte de determinada
comunidade e pertencente a uma classe, é balizado pelas expectativas dos adultos, construídas
coletivamente no meio cultural. Apontando para as interferências das circunstâncias
ambientais no desenvolvimento infantil, Ottaway, citado por Cabanas (1970, p. 83), afirma
que “el clima social es tan importante para el niño como el aire que respira. El grupo social a
que pertence determina en gran medida su comportamiento y caráter futuros”. Isso ocorre
3
O termo “performativo” designa, conforme o emprego feito por Bourdieu (1989), os atos lingüísticos ou rituais
que exercem efeitos sobre o real, transformando em realidade o que enunciam, em vista de estarem firmados no
reconhecimento.
23
porque o ambiente impõe à criança modos de ser e de atuar específicos.
Na opinião de Charlot (1983, p. 105), as determinações biológicas da infância tomam
um sentido social, de modo que é preciso integrar à própria idéia de infância os
comportamentos do adulto e da sociedade em face da criança. A representação da criança é,
pois, socialmente determinada, que exprime os desejos e recusas da sociedade e dos
adultos, construindo-se na dependência do processo histórico e cultural.
1.2 A infância e a família no Brasil
O estabelecimento do novo estatuto infantil, que acarretou sérias implicações na forma
como os europeus passaram a entender a infância, não se deu no mesmo momento no Brasil,
pois nele não se verificaram as condições para o desenvolvimento desse sentimento, de forma
que os novos preceitos acerca da criança e do que lhe era devido continuaram sendo
severamente contrariados.
A respeito da trajetória de constituição do novo status infantil, Ramos observa que a
criança é tratada de diferentes formas, de acordo com o contexto histórico e familiar em que
está inserida. Inicialmente ignorado, o sujeito infantil tende a tornar-se o centro das atenções
dos membros da família. Segundo a autora (1994, p. 26), no Brasil, o processo se repete: “o
conceito de criança da época colonial, que pertence a um pai-proprietário, vai-se emancipando
à medida que o modelo burguês propõe uma nova estrutura familiar, que protege os pequenos,
permitindo-lhes a ocupação de um maior espaço na sociedade”. Dessa forma, o
reconhecimento das particularidades da infância torna possível o oferecimento de bens
culturais específicos às crianças.
Contudo, observa-se que tanto a escolarização, quanto a emergência da vida privada,
cujos influxos trouxeram em seu bojo o desenvolvimento da noção social de infância,
chegaram com grande atraso ao país. Investigando tal constatação, Priore (2002, p. 10)
24
assinala que “o Brasil, país pobre, apoiado inicialmente no antigo sistema colonial e,
posteriormente, numa tardia industrialização, não deixou muito espaço para que tais questões
florescessem”.
A autora (2002) afirma, ainda, que, na mentalidade coletiva dos primeiros séculos de
colonização, a infância era entendida como uma esperança, o que aponta para a noção de
criança como um vir-a-ser, cujo valor residia no adulto em potencial representado pelo
pequeno. A pouca importância dedicada a esse momento de transição evidencia-se no
reduzido número de expressões com as quais os documentos da época definiam a criança:
“meúdos”, “ingênuos” e “infantes”. Tal comportamento revela um conhecimento muito difuso
dessa faixa etária, o que não significa que as crianças eram negligenciadas, mas, sim, que
inexistia a consciência das suas especificidades.
À elitização do ensino, verificada desde o início da colonização, e à precariedade da
educação pública, tardiamente instalada, somou-se o imperativo da sobrevivência para
reforçar a concepção, predominante até o século XIX, nas camadas subalternas brasileiras, de
que o trabalho infantil constituía a melhor escola. O auxílio da criança na complementação
salarial das famílias pobres ou miseráveis era, então, via de regra, priorizado em detrimento
da formação escolar.
Da mesma forma, a evolução da intimidade, atualmente entendida como condição
necessária ao estabelecimento da identidade familiar e da individualização infantil, deu-se de
modo precário no território brasileiro. A emergência do novo modelo familiar burguês e
unicelular tardou a instalar-se. Conforme sublinha Priore (2002, p. 11),
os lares monoparentais, a mestiçagem, a pobreza material e arquitetônica que traduzia-
se (sic) em espaços onde misturavam-se (sic) indistintamente crianças e adultos de
todas as condições, a presença de escravos, a forte migração interna capaz de alterar
os equilíbrios familiares, a proliferação de cortiços no século XIX e de favelas no
século XX, são fatores que alteravam a noção que se pudesse ter no Brasil, até bem
recentemente, de privacidade tal como ela foi concebida pela Europa urbana, burguesa
e iluminista.
25
A debilidade de condições para a valorização da infância, que contrariou o progresso
da situação da criança brasileira, precisa, contudo, ser observada à luz das particularidades
dos diferentes grupos regionais, pois os mesmos instituem, diferentemente, a posição dos
pequenos na rede de relações sociais. A esse respeito, Ramírez (1953) assinala que o estudo
da transição da infância à meninice e à puberdade, e da pré-adolescência à adolescência e à
juventude apresenta tantas nuanças quantos forem os meios e épocas que a condicionem, de
modo que as condições específicas da ambiência e das inter-relações sociais exercem influxos
sobre os modos de ser criança e de pensar a infância. Assim, os cuidados com o corpo, a
alimentação, o brinquedo, as formas de religiosidade e os laços familiares veiculam diferentes
significados simbólicos que instauram uma comunicação entre a sociedade dos adultos e a
criança.
Tal diálogo social é estabelecido e sustentado através de representações, que atuam
como mecanismos de criação da noção de infância e seus significados. Os brinquedos, as
cantigas, as histórias, as vestimentas, os livros dirigidos especificamente ao receptor infantil
constituem, portanto, elementos nada ingênuos, pois carregam a ideologia de quem os
elabora, seleciona e oferece à criança, nesse caso, o adulto, que projeta naqueles seu ideal de
infância. É certo que a criança, como agente cultural, dispõe de alguma liberdade para aceitar,
recusar ou transformar, pelo exercício lúdico, os bens culturais materiais e imateriais a ela
dirigidos. Mas esses, de certo modo, continuam conservando um caráter adultocêntrico
4
,
que se mantêm impregnados da presença do adulto.
Ao discutir a temática da infância, através de personagens infantis, ou de
posicionamentos expressos pelo narrador, ou mesmo por personagens adultas, os textos
literários voltados para o adulto intervêm, igualmente, na construção da maneira como a
sociedade entende a idade pueril, problematizando-a simbolicamente e posicionando-se de
4
O termo “adultocentrismo” pode ser entendido como uma forma de relação social caracterizada pela
centralização do poder nas mãos do adulto que, através do exercício autoritário, monopoliza a participação
cultural, política e econômica.
26
modo a reforçá-la ou questioná-la.
A transposição da infância para o universo ficcional sinaliza diferentes posturas,
construídas a partir de variados recursos e intenções literárias. Nesse sentido, um passeio
sobre a produção narrativa brasileira revela que a mesma tem se apropriado diferentemente da
problemática infantil, transitando da indiferença à denúncia, ou promovendo a sua ascensão
ao plano simbólico do mundo narrado.
1.3 Região e identidade: aspectos históricos
O espaço regional
5
representado por Simões Lopes Neto situa-se geograficamente na
Campanha rio-grandense. A narrativa retoma e idealiza um tempo em que a demarcação física
desse espaço ainda não está consolidada, pois os campos são abertos e predomina a vida
comunitária. Tal período corresponde, historicamente, aos inícios da colonização do Rio
Grande do Sul e caracteriza-se pelas guerras de fronteira e pelo exercício pouco nítido do
poder sobre a propriedade.
Historiadores atestam que, no século XVI, apenas índios e expedições de
reconhecimento cruzaram o território gaúcho, enquanto que o século XVII foi marcado pelo
estabelecimento das missões, das quais as que realmente iniciaram a colonização do território
foram as espanholas, estabelecidas em 1632. As missões jesuíticas tornaram-se alvo de
ataques de bandeirantes paulistas, que desejavam substituir a mão-de-obra escrava por índios
aldeados, preparados para o trabalho e a obediência. Em 1640, a expulsão dos jesuítas
espanhóis para o outro lado do rio Uruguai deixou, como rastro, manadas de gado, que
passaram a reproduzir-se à solta, para a livre exploração de aventureiros paulistas e
lagunenses, os quais se punham em busca de gado e couro para negociar. Pesavento (1997, p.
9) assinala que, com esse movimento, “estava lançado o fundamento econômico básico de
5
Na obra simoniana, a demarcação do espaço regional faz-se através da representação do meio físico e
sociológico, dos tipos humanos e da linguagem da região da Campanha.
27
apropriação da terra gaúcha: a preia do gado xucro”. Em 1680, foi fundada, por portugueses, a
Colônia do Sacramento que, mais tarde, passaria à Coroa Espanhola. Dois anos depois, os
jesuítas começaram a voltar ao Rio Grande do Sul para fundar os Sete Povos das Missões,
estabelecidos no sistema de estâncias comunitárias.
No século XVIII, quando as minas substituíram os engenhos de açúcar na economia
brasileira, o território rio-grandense foi marcado pela atuação de tropeiros, que conduziam
gado para Minas Gerais, onde era usado como alimento e transporte. O tropeiro chefiava um
bando armado que realizava o arrebanho do gado solto. Entretanto, segundo Pesavento
(1997), o incremento do negócio do gado, associado ao seu abate em larga escala para a
extração do couro, acabou por apressar a devastação do rebanho, tornando-se necessário pôr
fim à atividade predatória e cuidar da reposição dos animais. Ainda na primeira metade desse
século, chegaram ao estado os primeiros escravos e, em 1732, foram distribuídas as primeiras
sesmarias, em retribuição a serviços militares. Com elas, estabeleceram-se, a partir de 1740,
as primeiras estâncias, para agrupar rebanhos e cuidar da terra e do gado. As estâncias de
gado passaram a empregar, como mão-de-obra, os peões, elementos subalternos oriundos do
antigo bando armado que tropeava gado ou aprisionava índios egressos das Missões.
Em 1750, o Tratado de Madri passou a Colônia do Sacramento para a Espanha, em
troca dos Sete Povos, os quais, entretanto, resistiram até a capitulação definitiva dos índios,
em 1801, quando o decreto foi, efetivamente, cumprido. Praticamente vencidas as Missões, os
jesuítas foram expulsos da América ainda em 1767. Conforme o Tratado de Santo Ildefonso,
em 1777, tanto a Colônia do Sacramento quanto as Missões pertenciam à Espanha, criando-
se, entre ambas, uma zona ambígua chamada de “campos neutrais”.
Com a crise da mineração, em 1789, a pecuária passou a ser aproveitada pelas
primeiras charqueadas, que, de acordo com Pesavento (1997), conferiram um novo valor à
carne, criando um mercado regional para o gado, independente das flutuações da economia
28
nacional, tendo em vista que o charque passou a servir de alimento para a escravaria. Com o
charque, instalaram-se de forma definitiva as relações escravistas de produção no Rio Grande
do Sul, que começou a enriquecer, com mais escravos, com o contrabando nos campos
neutrais, com a corrida das sesmarias e com a conquista definitiva das Missões.
Posteriormente, as guerras de independência no Prata e o conseqüente
enfraquecimento da concorrência do charque argentino trouxeram maior lucro aos fazendeiros
gaúchos. Pesavento (1997) observa que o charque possibilitou a constituição, no Rio Grande
do Sul, de uma camada senhorial enriquecida. Ao mesmo tempo, a baixa capitalização da
pecuária gaúcha promoveu uma organização caracterizada por um distanciamento social não
muito evidente. Esse fato, contudo, não significa a exclusão do exercício violento de padrões
autoritários de mando.
Os constantes conflitos resultantes da demarcação de limites implicaram o reforço
militar da área fronteiriça, através do recurso aos estancieiros que, com seus homens,
passaram à defesa da terra, em troca de maior autoridade. Pela sua importância na garantia das
fronteiras, a figura do estancieiro-soldado desempenhou importante papel e obteve certa
autonomia de poder até, pelo menos, a primeira parte do século seguinte. Segundo Pesavento
(1997, p. 22 - 23),
o permanente estado de alerta propiciava a renovada militarização da sociedade
gaúcha, onde todo o homem válido era um soldado em potencial. Na realidade, para a
defesa da terra mais contavam as forças irregulares da campanha rio-grandense do que
as tropas de linhas enviadas pelo Reino.
Contudo, exercido, muitas vezes, em defesa de interesses privados, o poder dos
estancieiros entrou seguidamente em choque com a autoridade de comandantes que
representavam a Coroa. O processo de apropriação militar da terra foi acompanhado pela
expansão econômica da pecuária sulina e, conseqüentemente, pelo fortalecimento dos
pecuaristas, os quais buscaram expressão também no plano político-administrativo. No final
do século XVIII e início do século XIX, encerrada a corrida às sesmarias, definiram-se os
29
grandes latifúndios.
Quando as turbulências da guerra interna do Prata chegaram ao fim, estabeleceu-se
novamente forte concorrência à produção do charque rio-grandense. Os estancieiros gaúchos
que, cada vez mais viviam do rodeio e da charqueada, rebelaram-se contra as oligarquias do
poder central, uma vez que, preocupadas em adquirir charque mais barato, elas não adotavam
as medidas protecionistas para o produto nacional. Contrariada econômica e politicamente em
seus interesses, a aristocracia sulina mostrou-se insatisfeita, tendo em vista que a parcialidade
do Império implicava o desprestígio da camada dominante gaúcha. O estado de tensão
instalado deflagrou a Revolução Farroupilha, que se estendeu por dez anos, ao fim dos quais
as oligarquias centrais ainda eram mais fortes. Analisando as conseqüências da Revolução
Farroupilha, Pesavento (1997) admite que se confirmou, a nível nacional, a submissão da
província aos interesses do centro do país, tendo o poder militar do Rio Grande do Sul
servido, novamente, de elemento de barganha frente ao poder central.
Finda a Revolução, em 1845, a economia sulina foi beneficiada pelos acertos
econômicos com o governo central e pelas perturbações ocorridas no Prata. Iniciou-se, então,
um período de consolidação da estância e de incremento da urbanização. A respeito disso,
Chiappini (1988, p. 248) afirma que a divisão dos campos pelas cercas simplificou o trabalho
pastoril, ao mesmo tempo em que, com o avanço do tratamento veterinário, a pecuária se
desenvolveu, superando algumas crises e consolidando, também, a indústria do charque. O
fazendeiro enriquecido passou a fazer política e negócios na cidade. Alteraram-se as relações
de trabalho e, igualmente, as relações cotidianas entre patrões e peões.
Anteriormente, enquanto não havia demarcação definida das terras, os não
proprietários podiam gozar delas, compensando seu uso pela relação de fidelidade ao
estancieiro que, por sua vez, protegia sua gente”. Num misto de economia natural e
mercantil, viviam e trabalhavam, no espaço da estância, escravos, trabalhadores livres e
30
estancieiros. Com a ascensão política e econômica dos fazendeiros, o estado ingressou em
uma nova fase do capitalismo, na qual os peões, cada vez menos numerosos, não tinham mais,
nas terras do estancieiro, o seu chão, a sua casa, os seus bichos e plantas, transferindo-se,
também, aos poucos, para a cidade. A partir de então, a marginalidade do proletariado rural
acelerou-se, e a economia da Campanha perdeu a hegemonia para os colonos alemães e
italianos, que trabalhavam na agricultura, em pequenas propriedades, ou para uma indústria
ainda incipiente, mas efetiva. Pesavento (1997) assinala que a entrada dos imigrantes
possibilitou, internamente, o processo de transição da mão-de-obra escrava para a mão-de-
obra livre, atenuando, ao mesmo tempo, o impacto da relativa estagnação da pecuária sulina
na economia provincial.
Embora contribua para suplantar a idéia de democracia rural, a breve discussão sobre
aspectos históricos da Campanha gaúcha leva a reconhecer que a estância, num primeiro
período, possibilitava maior liberdade e melhores condições de vida ao trabalhador,
transformando-se, progressivamente, em nítido mecanismo de marginalização, ao mesmo
tempo em que se acentuavam as relações capitalistas e as diferenças entre o campo e a cidade.
A esse respeito, Xavier (1964) assinala que considerar a estância como um núcleo de
produção rural sobre o qual se assenta o modo de vida e a própria formação social do povo
rio-grandense implica compreendê-la como decorrência de uma comunidade formada em
torno do estancieiro. Inicialmente, o gado xucro povoava a propriedade, que um chefe
guerreiro ou povoador afoito ocupava sem demarcação definida. A ele agregavam-se homens
livres (cuja fidelidade ao proprietário da terra tornava-se de natureza cada vez mais servil) e
escravos, partícipes da luta pela fixação da fronteira.
Resultante do singular processo de colonização, o habitante da Campanha, chamado
gaúcho, constituiu-se de um amálgama entre os elementos indígena, português, açoriano,
reinol e africano, cujos principais traços identitários são o vínculo telúrico com a natureza, a
31
agilidade física e a coragem, atributos exercidos tanto no trabalho pastoril, como na guerra.
Moreira (1982, p. 74) enfatiza que o contexto caracterizado, de um lado, pela liberdade e, de
outro, pelas lutas incessantes, originou o tipo regional gaúcho, como produto das tradições
bélicas e das exigências do espaço e da economia.
Aos poucos, a organização estancieira transformou-se em fazenda, núcleo de
exploração da propriedade rural, afrouxando-se os vínculos comunitários ou familiares. As
atrações trazidas pela vida urbana, o incremento da atividade comercial, o fracionamento da
grande propriedade pelas heranças sucessivas, o deslocamento dos proprietários para atuar na
política e no comércio urbanos, assim como a redução da demanda de trabalhadores
campeiros, promoveram, rapidamente, a passagem de uma economia semifeudal para uma
economia capitalista.
Contudo, a estância instalou determinados meios de produção, criou certo tipo de vida,
estabeleceu um linguajar característico, bem como hábitos e atitudes tão firmemente
arraigados, sob a forma de tradição, que passaram a ser adotados pelos que vieram depois, tais
como os alemães e os italianos. Chiappini (1978, p. 160) assinala que o mito do gaúcho herói,
tendo como referente o homem do campo da zona pecuária, constitui a expressão da ideologia
da classe que deteve o poder até meados de 1890, os fazendeiros-caudilhos, donos das
grandes estâncias, criadores de gado e condutores do destino político do Estado. Nesse
sentido, a imagem do homem plenamente livre está a serviço da defesa da propriedade, em
tempos de guerra, e da peonagem, como mão-de-obra errante, em tempos de paz. O
compromisso ideológico da construção tica evidencia-se o apenas no movimento de
afirmação das classes dominantes gaúchas, mas no constante aproveitamento do mito ao
longo do processo político rio-grandense.
A respeito da projeção da identidade gaúcha da Campanha para o estado do Rio
Grande do Sul, Moreira (1982, p. 84-85) entende que essa região sócio-histórica tornou-se o
32
espaço privilegiado onde se realizou a interação social entre a economia pastoril e as
rivalidades fronteiriças, bem como a conciliação ideológica entre a classe dos proprietários e
empregados, que resultou na eleição de um tipo social absorvido como o herói regional.
Além disso, a autora acrescenta que “os atos decisivos da vida histórica do Rio Grande do Sul
desenrolaram-se, quase todos, na região conhecida por Campanha. Decorre, daí, que esta
passou a identificar todo o Estado, para o restante do País, como ainda auxiliou a projetar o
que se denomina de ideologia gaúcha”.
A apropriação de elementos identitários específicos do habitante da Campanha rio-
grandense, tais como a vestimenta, certos hábitos alimentares e modos de falar, configurou o
pertencimento das minorias ao grupo cultural mais poderoso (se não do ponto de vista
econômico, seguramente do ponto de vista social) e a gradativa superação do movimento de
rechaço que “os da terra” moviam em relação aos estrangeiros. Além disso, contribuiu para
consolidar a identidade do gaúcho como guerreiro altivo e valoroso, somando, a tais atributos,
as características de homem trabalhador e vencedor.
Em torno da estância e do universo sócio-cultural por ela instaurado, erigiu-se a
identidade do habitante rio-grandense. A degradação da circunstância que a gerou o serviu
para desvelar as contradições da luta de classes e da dominação dos pobres pelos
latifundiários, historicamente escamoteadas pela organização estancieira. Ao contrário,
reforçou-se ainda mais a idealização da circunstância perdida, no contraste com o tempo
presente. Para Moreira (1982), a carga positiva atribuída ao tempo de antigamente pode ser
melhor compreendida quando se verifica que foi nesse momento histórico que se consagrou a
figura do herói sul-rio-grandense. A representação literária desse herói, segundo a autora
(1982, p. 117), deu-se concomitantemente com o processo de descensão econômica do
Estado, de modo que o florescimento do regionalismo literário encerra uma tentativa de salvar
não apenas o tipo que a realidade social extinguia, mas também um tempo passado.
33
A imagem do homem gaúcho cultivada pela tradição, inicialmente a serviço da elite
estancieira, passou a ser reforçada pelo distanciamento espaço-temporal e continuou a
cumprir uma função cultural, política e social, viabilizada, sobretudo, pelo engajamento
ideológico da organização familiar. O apego ao passado glorioso dos primórdios da estância
tende a perpetuar como legítimos determinados valores e padrões de comportamento que têm
no grupo familiar seu principal veículo de difusão e continuidade.
34
2 AS RELAÇÕES FAMILIARES E A INFÂNCIA
Referindo-se à zona fronteiriça gaúcha, temporalmente situada na época áurea da
estância, no século XIX, Ramírez atesta a preponderância dos aspectos tradicionais da
civilização rio-grandense como condicionantes da vida infantil nesse espaço e nesse momento
histórico. Tal ambiente rural que tem no gado o centro econômico e no camponês o tipo
social – lega a seus filhos, através da rudeza da existência pastoril, “uma personalidade sóbria,
retraída, em que economia de palavras e gestos” (RAMÍREZ, 1953, p. 87). Sob a ronda
vigilante da morte e dos perigos da lida campeira, a criança reproduz, conforme Ramírez, as
corajosas ações paternas, às voltas com a atividade das estâncias e charqueadas. A rusticidade
do meio, a pobreza de recursos e a tradição familiarizam o menino, desde cedo, aos afazeres
do rodeio ou da matança.
Enquanto a criança do sexo masculino é socialmente encaminhada para suceder o pai
na guerra e na peonagem, à menina cabe a preparação para os afazeres domésticos, o
casamento e a maternidade. Nesse sentido, as vivências femininas infantis concretizam-se,
prioritariamente, no espaço do resguardo familiar patriarcal, de modo que as meninas gozam
de menor visibilidade social que os sujeitos do sexo masculino, cuja aprendizagem os coloca,
35
desde cedo, em contato com o ambiente externo.
A estruturação patriarcal da sociedade centraliza o poder na figura paterna, a quem
cabe prover os que estão sob seus cuidados, as mulheres e as crianças, promovendo a sua
exclusão social e política. Conforme assinala Chaui (1984, p. 126), o caráter autoritário e
repressivo da família, em todas as classes sociais, advém da sua origem como “casa com o
chefe de família”, o qual é dotado de poder de vida e morte sobre os seus subordinados:
escravos, esposa, filhos, bois, cavalos, cães e gatos.
Segundo a mesma autora (1984), a crença equivocada de que a família assim
constituída é eterna, natural, universal e necessária instrumentaliza-a para justificar, reforçar e
reproduzir seus mecanismos repressivos. A família, por definição, contraria a natureza, visto
que resulta da proibição do incesto. Quanto às suas formas, conteúdos e funções, a instituição
familiar não tende à universalidade, mas varia enormemente conforme a circunstância espaço-
temporal e sócio-cultural. Além disso, a família não pode ser eterna, até mesmo para os
cristãos que a organização familiar teria iniciado após a expulsão do paraíso e,
tampouco, necessária, sobretudo sob o ponto de vista da sociedade capitalista, orientada para
a produtividade.
O modelo familiar configura-se, portanto, como uma manifestação ideológica da
cultura regional e, ao mesmo tempo, como veículo de sua manutenção. É, além disso, no caso
predominante da sociedade patriarcal, uma estrutura de poder que, através do chefe
doméstico, exerce autoridade sobre a vida dos seus membros e sobre a vida pública, pela
participação nas instituições políticas e religiosas.
A organização familiar patriarcal garante que, na esfera doméstica, a vontade do
homem, seja ele pai ou marido, disponha da força da lei. Essa organização, conforme observa
Chaui (1984), requer da figura feminina uma fidelidade absoluta, através da obediência ao pai
e da lealdade ao marido. Nesses termos, a esfera doméstica assume o modelo fornecido pelo
36
Estado para o exercício do poder, conservando-o em mãos masculinas.
Pautado na pretensa superioridade masculina, o machismo torna-se o ideal das
sociedades guerreiras que, como a gaúcha, fundam-se no sangue, na valentia e na honra.
Nelas, enquanto a figura masculina constitui-se na atuação cultural, através do acesso ao
espaço público, ao mercado, à política, o sujeito feminino naturaliza-se, ou seja, é entendido
como segmento não aculturado, pertencente à natureza, cabendo-lhe, em vista disso,
exclusivamente, o espaço privado. O homem, sobretudo no exercício da função paterna,
constitui o mediador do acesso da mulher ao mundo cultural. Através da atuação
disciplinadora e coerciva sobre o sujeito feminino, o homem, notadamente o pai,
responsabiliza-se pela socialização feminina, através da qual a mulher deve desempenhar seus
papéis de esposa e mãe, sem provocar danos ou constrangimentos sociais.
2.1 O pai, guardião da honra das filhas
Tomando como base o processo descrito por Ariès (1981), pode-se dizer que, na
organização familiar patriarcal, a situação das meninas mantém-se muito mais conservadora e
próxima da condição adulta, pois, além de compartilhar precocemente das lidas domésticas,
que substituem a aprendizagem através da educação escolar, sua distinção com relação às
mulheres é ainda posterior à particularização dos meninos. Nas sociedades européias, por
exemplo, a especialização da educação para meninas consolida-se apenas em fins do século
XVII, quando os meninos de todas as classes gozavam, quase uma centúria, de
vestimentas, brinquedos e processos educativos específicos. Percebe-se, nesse sentido, que,
antes mesmo da divisão classista, as crianças são submetidas, na organização patriarcal, a
severas distinções conforme o gênero, sendo, de acordo com ele, preparadas para assumir
distintas funções sociais.
Em Contos gauchescos, ainda que aos sujeitos femininos caiba uma posição periférica
37
na sociedade patriarcal representada, o relacionamento entre pai e filha é problematizado com
grande recorrência. No conto “Os cabelos da china”, por exemplo, a ligação do pai com a
filha orienta, a partir de certo momento, a ação dos protagonistas e determina a mudança no
rumo dos acontecimentos. Embora seja, aparentemente, uma seqüência de episódios de
guerra, o centro da narrativa é transferido para a temática de sangue e paixão, a qual, como
argumenta Chaves (2001), enseja a noção de mulher como “bicho caborteiro, verdadeiro
perigo que arrasta o homem à desordem, ao desequilíbrio e à destruição.
Nesse conto, o companheiro de Blau Nunes, Juca Picumã, dedica sua vida e seus
ganhos ao cuidado e ao bem estar da filha Rosa, que é, para ele, “linda como os amores! Mas
não é para o bico de qualquer lombo-sujo” (LOPES NETO, 2000, p. 90). A expressão
“lombo-sujo” é significativa do valor da filha para o pai, que acredita tê-la, honradamente, sob
sua vigilante proteção. O poder de sedução da figura feminina estende-se, como se vê,
também ao pai, que reconhece sua beleza e deseja guardá-la a alguém que dela seja
merecedor, isto é, que com ele se identifique.
O desapego de Picumã às “balastracas e bolivianos, e meia-doblas e até onças de ouro,
que ganhava” (LOPES NETO, 2000, p. 90), caracterizam-no como legítimo gaúcho, “pobre
como rato de igreja” por opção, por generosidade e por capacidade de resistência à maléfica
sedução do dinheiro. Sua descrição atesta, ainda, que o índio é representante dos velhos
tempos, no matear, no comer carne, na habilidade como cavaleiro e como artesão (foi Picumã
quem ensinou Blau Nunes a trançar), bem como na valentia que o irmana aos bichos, que
ele “comia como chimarrão, dormia como um lagarto, valente como quê... e ginete, então,
nem se fala!...” (LOPES NETO, 2000, p. 90).
Chiappini (1988, p. 317) assinala que se estabelece, entre pai e filha, além do contraste
entre dois tempos – passado e presente –, a oposição entre dois espaçosa cidade e o campo.
Enquanto Juca Picumã é homem de um mundo artesanal e semibárbaro, da estância, da doma,
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do trato com o gado e da habilidade manual, Rosa, “pedaço de céu, encravado no (seu)
coração”, representa um outro mundo, provavelmente a cidade, onde o dinheiro é mais
necessário, pois ela consome tudo quanto o pai lhe envia, o que ainda é pouco. Além disso, a
filha identifica-se com um ruivo legalista, representante de outro espaço (o Centro, a Serra ou
o Litoral) e de outra visão de mundo, abandonando o capitão do exército farrapo para
“acolherar-se” com aquele. Rosa é, pois, a mulher da terra, que se vendeu traiçoeiramente ao
estrangeiro.
Mesmo não escondendo a profunda decepção que sente ao descobrir a prostituição de
Rosa, a qual fora criada com muito zelo, Picumã não hesita em salvar sua vida, demonstrando,
mais uma vez, sua generosidade. Para isso, assassina o capitão do próprio exército em que
lutava, o qual, tendo sido traído pela moça, deseja matá-la. Depois de matar seu capitão, Juca
Picumã cospe sobre o cadáver, resmungando: “Pois é... seduziu... e agora queria degolar...”
(LOPES NETO, 2000, p. 99). Embora esteja implícito que a sedução não foi exercida pelo
capitão, mas pela jovem, o pai abona, através de tal comentário, o próprio gesto de traição e
subtrai, até certo ponto, a responsabilidade da filha. Assim, reforça-se a concepção de que é
preciso resguardar a figura feminina, protegê-la do mundo, visto que, como sujeito passivo, a
mulher apenas reage à ação alheia. Contido o desvirtuamento feminino, o mundo estaria a
salvo da destruição trazida pela feminilidade.
Embora a vida de Rosa tenha sido defendida pelo pai, o valor da moça está depreciado
aos seus olhos, pois ocorreu uma inversão de posições. Degradada pela luxúria, a jovem
iguala-se aos “lombo-sujo” dos quais ele a defendia e agora obtém o mesmo desprezo. A
descoberta da impureza da filha leva o pai a despedi-la como um bicho ingrato que, a partir de
então, não está mais sob sua responsabilidade e seus cuidados.
A feminilidade de Rosa, representada pelos seus cabelos, é indissociável da destruição
masculina, tornando-se quase impossível separar a jovem do morto, que a segura firmemente
39
pela longa trança. Chevalier (1993, p. 155) observa que a cabeleira é uma das principais
armas da mulher e a sua disposição é reveladora da sexualidade feminina. O autor aponta que
a noção de provocação sensual, ligada aos cabelos da mulher, também está na origem da
tradição cristã, segundo a qual as mulheres não podiam entrar na igreja com a cabeça
descoberta, e fazê-lo seria atentar contra o direito e os costumes. O fato de os cabelos de Rosa
estarem à mostra e frouxamente atados por uma “trança macota, ondeada, negra, lustrosa, que
caía meio desfeita” (LOPES NETO, 2000, p. 97), sinaliza, portanto, a disponibilidade e o
desejo de entrega do sujeito feminino.
Para soltar a filha, Juca Picumã corta a cabeleira dela rente à cabeça, concedendo-lhe a
liberdade para escapar e conservar a própria vida. Paradoxalmente, através dessa “castração”,
que também cumpre a função de castigo pelo mau uso do equipamento feminino, o pai
transforma a mulher em ser assexuado, libertando-a do estigma de sedução e morte,
simbolizado pelos cabelos. Nesse sentido, resguarda, também, a vida de outros homens,
impondo à filha a mutilação da sua feminilidade, como uma forma de penitência. Na ação
paterna reside a possibilidade de suspender, pelo “corte”, a atuação predatória feminina.
A trança de Rosa, que quase toca o chão, é como um cordão umbilical que a liga à
terra. Mas essa ligação se mostra suspensa pelas atitudes da moça, na traição ao velho pai,
profundamente preso ao próprio espaço, bem como na traição ao lugar onde nasceu, uma vez
que ela se entrega, levianamente, ao inimigo estrangeiro. Ao cortar a trança da filha, o pai
torna visível a cisão definitiva para com o homem que a gerou e, igualmente, entre a moça e o
espaço onde ela nasceu, condenando-a ao desterro.
Depois de cortada a trança, a jovem, “tosquiada, como égua chucra”, dispara “mato
dentro, como uma anta...”, sob o grito do pai: “Cachorra!... vai-te!...”. É notável a
animalização da figura feminina, a qual, segundo Chaves (2001), aparecendo como elemento
erótico e como manifestação imediata de uma força destrutiva, desperta, invariavelmente, a
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animalidade dos homens, deflagrando sua violência devastadora.
O mesmo autor (2001) observa que os cabelos da trança cortada deixam de ser um
dado concreto pertencente ao vel descritivo e transformam-se em “signo” do “bicho
caborteiro” no destino dos homens. Tal como a vida do capitão morto, a existência de Juca
Picumã é irremediavelmente marcada pela dupla traição de Rosa, que, ao prostituir-se, fere o
conceito paterno de honra.
Por outro lado, à hora da morte, o índio velho deseja ter restituído o buçalete que, feito
da trança, representa um elo de ligação entre ambos. Esse objeto recupera, ao mesmo tempo,
um momento de dependência da filha com relação ao pai e a amputação que a despoja do seu
aparato de feminilidade e sedução, enquanto a figura paterna é arrastada para a desgraça.
Mesmo frustrado em seu projeto de educação e desonrado pela filha, na condição de pai e
soldado, Picumã não se desfaz do elemento catalisador da destruição masculina. É
significativo que a trança, instrumento pelo qual a mulher transgressora exerce sua suposta
libertinagem, tenha sido habilmente transformada em utensílio de controle da montaria.
Picumã presenteia Blau com tal objeto, para que o amigo o use sobre o cavalo,
transferindo, assim, para o animal, o jugo que a trança feminina representa para o homem. Ao
mesmo tempo, o apetrecho de dominação da mulher, está, agora, em mãos masculinas, usado
sobre a montaria, em favor do homem que dele se apossou. Enquanto o manipula, mesmo sem
conhecer a origem do objeto, Blau tem acentuada sua potência, pois conserva sua integridade
física e ascende na carreira militar. Sob o domínio do sujeito masculino, o aparato de poder
feminino, que antes caía na trança ondeante, qual uma serpente, agora se encontra retesado e
firme, tornando-se uma prova e um veículo da virilidade. A potência vital que os cabelos,
mesmo separados do corpo, preservam, é reconduzida para reforçar a masculinidade,
neutralizando o poderio feminino.
A afeição que o pai dedica à filha, manifestada na atitude de proteção e cuidado, e
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transfigurada em elemento desencadeador do infortúnio paterno, também pode ser
identificada em “Contrabandista”. Nesse conto, às vésperas do casamento da filha, o velho
Jango Jorge vai contrabandear um vestido de noiva. Descoberto pela guarda, acaba sendo
crivado de balas. Jango é levado pelos companheiros para casa, onde a noiva e os convidados
esperam a veste nupcial para iniciar a festa. Sob o poncho do morto, a esposa encontra,
manchados de sangue, o vestido, os sapatos, o véu e as flores de laranjeira, objetos que
resultaram na morte do velho.
As vestes nupciais brancas simbolizam a pureza da noiva, cujo corpo ainda não foi
manchado pelo exercício da sexualidade. Nesse sentido, a vestimenta desvela a interioridade
da mulher casta, distinguindo-a pelo seu valor e virtude. As flores de laranjeira, por sua vez,
parecem cumprir uma função propiciatória, pois antecipam um fruto com muitas sementes,
simbolizando, conforme Chevalier (1993, p. 536), a fecundidade.
É válido assinalar o fato de que o pai tenha tomado para si a responsabilidade pela
obtenção de tais objetos, os quais se destinam não apenas a vestir a noiva, mas também a
anunciar sua castidade. Nesse sentido, pode-se entender que a figura paterna constitui,
literalmente, o doador, pois ele não preza a honra da filha, desejando exibir sua pureza
através das vestes, mas igualmente se compromete com o papel de guardião desses valores,
mobilizando-se para sua manutenção.
Ao mesmo tempo, Jango Jorge deseja que o momento da “passagem” da moça às
mãos do marido seja a manifestação bem-sucedida da sua educação disciplinadora, cujo fim
último é a contenção da sexualidade. Assim fazendo, Jango busca assegurar sua própria
valorização social, como homem e como pai, pela profícua transmissão de valores,
materialmente expressa no gesto de entrega do traje matrimonial. Tal valorização é reforçada
porque o pai, para consolidar a transição honrosa da filha para a adultez, precipita a sua
própria transição definitiva para a morte. Assim, dispondo-se a morrer pela vestimenta branca
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da filha, Jango Jorge sinaliza que seu dever social conclui-se valorosamente.
Paradoxalmente, na hora da entrega para a filha, as vestes o estão brancas, uma
vez que se mancharam com o sangue de quem morreu por elas. Nesse sentido, “a alvura
daquelas cousas bonitas” borda-se de colorado, transformando-se sob a marca da violência, de
modo que as vestimentas passam a ser “como folhas de cardo solferim esmagadas a casco de
bagual!...” (LOPES NETO, 2000, p. 131). Ao mesmo tempo em que prepara a entrega da filha
para o esposo e para a sociedade, o pai entrega-se à morte. Esse fato sinaliza que a moça a
quem o vestido se destina também está “manchada”, por oferecer ensejo à destruição
paterna.
Ao morrer para obter o presente da filha, o pai tem realçada a sua generosidade,
anteriormente destacada pelo narrador Blau Nunes, que o descreve como “despilchado
sempre, por ser muito de mãos abertas”. Essa caracterização, associada ao desprendimento
material que é condição de liberdade e de valor para o homem simoniano, também é reforçada
pela seguinte passagem: “Se numa mesa de primeira ganhava uma ponchada de balastracas,
reunia a gurizada de casa, fazia – pi! pi! pi! pi! – como para as galinhas e semeava as moedas,
rindo-se do formigamento que a miuçalha formava, catando as pratas no terreiro” (LOPES
NETO, 2000, p. 124). Pode-se dizer que aqui se manifesta, paralelamente ao afeto dedicado às
crianças e ao desejo de contentá-las, um sentimento que Ariès (1981) denomina
“paparicação”. Essa primeira manifestação de uma consciência, ainda superficial, acerca da
infância, é orientada pelo sentido de entretenimento que devia perpassar a relação dos adultos
com os pequenos, enquanto esses ainda fossem uma “coisinha engraçadinha”, cujas
palhaçadas e gracejos possibilitassem a diversão do adulto.
No conto em análise, a atitude de paparicação mantida para com as crianças é ainda
evidenciada pelo sentimento dos demais adultos com relação à moça casadoira, descrita por
Blau Nunes como “o – santo-antoninho-onde-te-porei! – daquela gente toda” (LOPES NETO,
43
2000, p. 125). Embora pertencendo à galeria das figuras femininas virtuosas dos contos de
Simões Lopes Neto, a filha de Jango Jorge carrega a marca que o feminino representa para o
mundo simoniano, ou seja, o elemento de desordem.
A jovem é descrita positivamente pelo narrador: “uma formosura; e prendada, mui
habilidosa; tinha andado na escola e sabia botar os vestidos esquisitos das cidadãs da vila”.
Trata-se, enfim, da moça que assumiu os valores e práticas socialmente legados pela tradição.
Embora tenha freqüentado o meio citadino, onde recebeu a influência da educação escolar e
de novos modos de vestir – os quais poderiam, por sua vez, implicar diferentes
comportamentos e papéis sociais –, a filha de Jango Jorge percorreu, aparentemente incólume,
o caminho de volta ao campo. Todavia, isso não impede a degradação do homem que a ela
está ligado, nesse caso, o pai, o qual, desejando agradá-la e tentando atender suas vontades,
encontra a própria morte.
Blau Nunes avalia da seguinte maneira a saída de Jango Jorge para buscar o enxoval
da filha: “Parecia-me que aquilo devia ser feito em casa, à moda antiga, mas como cada um
manda no que é seu...” (LOPES NETO, 2000, p. 125). A incursão da moça no ambiente
citadino permite supor o seu desejo de exibir um vestido de noiva cujo padrão se distinguisse
dos tradicionalmente arranjados em casa, de modo que o desvio do uso tradicional, mediado
pela figura feminina, parece desencadear o sacrifício do pai. Instaura-se, assim, além do
conflito temporal entre passado e presente, o conflito espacial, entre campo e cidade,
separando definitivamente pai e filha.
Simbolicamente, ao conduzir a figura paterna à morte, a parricida supera o conflito
edípico, pois assassina, com a injunção paterna, o pai ideal. À filha cabe enterrar a grandeza e
a invencibilidade que, quando criança, supunha no progenitor, para, então, ser-lhe possível
desposar outro homem. Da mesma forma que a morte do pai corresponde à morte da infância,
o trono dos noivos é, antes, o leito de morte de Jango Jorge, e o vestido legado à filha
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representa um dom imaterial, que possibilita à menina amada pelo pai passar à vida de esposa,
ao amor e ao sexo. Existe, enfim, um acordo de transferência do amor, que pai e filha tinham
entre si, para outro homem, de modo que Jango Jorge, mesmo morto, é levado à presença da
filha, para entregá-la ao herdeiro desse afeto inaugural. Suplantando o incesto através da
atuação do pai, a filha, “manchada” pela devoção fatal do homem que a gerou, integra-se à
sociedade, dando prosseguimento a ela e, desse modo, adquirindo a existência social que lhe
era negada enquanto criança. Nesse sentido, para crescer e ingressar em outra etapa da vida, a
filha precisa do sacrifício voluntário do pai.
Se a inserção da filha na ordem das sucessões depende do movimento paterno,
também a sobrevivência do mundo adulto mostra-se dependente dos seus rebentos. Tal
dependência, exemplarmente expressa na degradação do espaço humano que se segue à
suspensão da relação filial, pode ser verificada em “No manantial”. Esse conto é
protagonizado por Maria Altina, que se destaca pela pureza e ingenuidade, aproximando-se,
nesses termos, do universo infantil ainda não completamente suplantado, apesar dos seus
dezesseis anos de idade.
Mesmo reconhecida a maturidade física da moça para o casamento, chama a atenção a
atitude protecionista da família e, especialmente, do pai, para quem ela ainda é a “pequena”.
Nesse caso, os mimos e cuidados que a cercam, também presentes na relação pai-filha nos
contos “Os cabelos da china” e “Contrabandista”, reforçam a infantilização da figura
feminina, de forma que a atitude casta de Maria Altina encerra um sentido de dignidade e
correção exemplares. Essas, somadas ao martírio que antecede sua morte, tendem a elevá-la
quase ao nível da santificação.
O crescimento da filha de Mariano acompanha o progresso do rancho familiar, de
modo que o desabrochar da moça corresponde ao auge da propriedade, assinalando a ligação
telúrica que governa a relação do homem com a natureza nesse espaço:
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Quando a Maria Altina era a menina, a filha dele andava nos dezesseis anos, este
arranchamento era um paraíso: o arvoredo todo crescido e dando; lavouras, criação
miúda, de tudo era uma fartura; havia galpões, eira, currais, tafona.
O Mariano e as duas velhas traziam nas palminhas a pequena. Ela era o ai-Jesus!
de todos, até dos negros (LOPES NETO, 2000, p. 43).
A exuberância de vida latente na propriedade repete-se na beleza arrebatadora da
jovem, que faz “um fachadão entre a moçada” e sofre o assédio constante e grosseiro do
vizinho Chicão. Tomada de amores pelo furriel André, Maria Altina prepara-se para casar e
leva sempre ao cabelo uma rosa, da planta cultivada a partir da haste que lhe dera o rapaz. A
rosa simboliza o amor puro, mas Maria Altina não chega a concretizá-lo. Perseguida por
Chicão, que tenta violentá-la, ela mete-se no sumidouro, desaparecendo para sempre. O pai de
Altina, desesperado, lança-se sobre Chicão, de modo que ambos têm o mesmo destino da
moça.
A tragédia que põe termo à vida da jovem também deflagra a dispersão dos
sobreviventes e o desmoronamento da estância:
O arranchamento ficou abandonado; e foi chovendo dentro; desabou um canto de
parede; caiu uma porta, os cachorros gaudérios já dormiam dentro. Debaixo dos
caibros havia ninhos de morcegos e no copiar pousavam as corujas; os ventos
derrubaram os galpões, os andantes queimaram as cercas, o gado fez paradeiro na
quinta. O arranchamento alegre e farto foi desaparecendo... o feitio de mão de gente
foi se gastando, tudo foi minguando; as carquejas e embiras invadiram; o gravatá
lastrou; o umbu foi guapeando, mas abichornado, como viúvo que se deu bem em
casado... – foi ficando tapera... a tapera... que é sempre um lugar tristonho onde parece
que a gente que nunca viu... onde parece que até as árvores perguntam a quem
chega: onde está quem me plantou?... onde está quem me plantou?... (LOPES
NETO, 2000, p. 54).
Enquanto tudo está entregue ao esboroamento e à decadência, ainda sobrevive, no
manantial, a roseira nascida do talo da flor que enfeitava o cabelo da jovem no dia do seu
desaparecimento. A cruz que marca a sepultura e simboliza a morte também desaparece,
permanecendo apenas a planta, cujas raízes parece que “estão ainda bebendo sangue vivo no
coração de Maria Altina” (LOPES NETO, 2000, p. 55). A conservação da roseira assinala o
caráter transcendente e vivificante do amor da moça, que ultrapassou sua própria aniquilação
física. Esse dado sinaliza, igualmente, o pertencimento de Maria Altina ao universo natural e
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ainda não domesticado, representado pelo sumidouro, em que pese a resistência da menina à
dominação violenta tencionada por Chicão. Chevalier (1993, p. 788-789) assinala que a rosa
simboliza a taça de vida, a alma, o coração, o dom do amor (isto é, o amor puro). Além disso,
“por sua relação com o sangue derramado, a rosa parece ser freqüentemente o símbolo de um
renascimento místico”, de regeneração.
Nesse sentido, a sobrevivência de Maria Altina na rosa que a simboliza aponta para a
noção primitiva de que o sujeito e o espaço natural são um só e alimentam-se mutuamente, de
modo que a morte não significa a interrupção da existência, mas o existir sob outra forma. A
manutenção da rosa assegura que à Maria Altina está autorizada a permanência no mundo, em
vista de que suas qualidades de inocência e pureza impediram que se corrompesse a sua
relação primordial com a natureza, existente desde a idade infantil.
Coerentemente com o mito do bom selvagem, a protagonista Maria Altina incorpora, a
exemplo de uma criança, o sujeito potencialmente ideal, o ser humano em seu estado natural,
não contaminado pelas coerções sociais, que busca preservar a sua liberdade e resguardar-se
da dependência à vontade alheia. Produz-se, assim, uma relação de cumplicidade entre a moça
e o ambiente em que ela se insere.
A oposição entre o constante viço da roseira, que representa a força vital de Maria
Altina, e a taperização da estância, sinaliza, ainda, a recondução do potencial de continuidade
da jovem para a planta. Nessa perspectiva, entende-se que é preciso que a vida humana se
consuma completa e naturalmente, para esgotar suas possibilidades de criação. Quando
interrompida bruscamente, por uma morte violenta, a vida tenta prolongar-se sob uma outra
aparência. A roseira absorve a potência vital que deveria ser dedicada ao progresso do
arranchamento e que, abruptamente suspensa, encontrou outra maneira de manifestar-se. Ao
mesmo tempo, destituída do elemento que lhe sentido, isto é, da sucessora na posse da
propriedade, a estância não possui meio de continuidade e transforma-se em tapera.
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A mesma natureza com a qual Maria Altina comunga envia alguns sinais que
prenunciam a sua desgraça: os pica-paus chorando, os cachorros cavoucando e a bruxa preta
(borboleta) que entrou no quarto da moça. Além desses, ganha relevo o “paganismo” da
inocente, que era filha de casal não legitimado pelo sacramento religioso, conforme sublinha o
narrador ao iniciar o relato. Tal como se em “Contrabandista”, conto protagonizado por
Jango Jorge que, “casado ou doutro jeito, estava afamilhado” (LOPES NETO, 2000, p. 125), a
não legitimação da união, em “No manantial”, antecipa o mau desfecho dos envolvidos, de
modo que o ritual do casamento parece cumprir a função propiciatória e de resguardo
familiar.
Tal condição de ilegitimidade de nascimento marca, igualmente, a figura de Tudinha,
em "O negro Bonifácio“, em vista de que
[...] corria à boca pequena que ela era filha do capitão Pereirinha, estancieiro, que
ali, nos Guarás, tinha mais de não sei quantas léguas de campo de lei, povoado. O
certo é que o posto em que ela morava com a mãe, a sia Fermina, era um mimo; tinha
de tudo: lavoura, boa cacimba, um rodeíto manso; e a Tudinha tinha cavalo amilhado,
só do andar dela, e alguma prata nos preparos.
Parecenças, isso, tinha, e não pouco, com a gente do capitão...
O velho, às vezes, ia por lá, sestear, tomar um chimarrão... (LOPES NETO, 2000, p.
32).
Assim, embora parcialmente reconhecida e aceita, tal forma de organização familiar,
não oficializada pelo casamento, parece justificar, ao menos em parte, o desencadeamento da
"sangüeira" presente no referido conto. Todavia, enquanto em "No manantial" o sacramento
não foi legitimado devido à inexistência de um mediador autorizado - no caso, o padre -, aqui
a legitimação religiosa não é requerida, tendo em vista a necessidade de se resguardar a
condição social do capitão.
A explicitação da exigência de validar a união matrimonial pode ser encontrada neste
comentário de Blau Nunes, em “O ‘menininho’ do presépio”
(LOPES NETO, 2000, p. 173), a
propósito da personagem Vieira, quando jovem: O mocito era abusador, e mais duma feita
saiu ventando de certos ranchos daqueles pagos... Sim, que um pai cria uma filha não é pra
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carniça de gaudérios!... Por isso é que já os antigos inventaram o casamento”.
O respeito à expectativa nutrida pelo pai com relação à sua filha determina que ela não
pode ser “desperdiçada”, ou seja, não deve entregar-se a qualquer um, mas a alguém que seja
capaz de honrar o desejo do pai, os valores e a educação dele recebidos. Tal preceito é
incontestável, pois foi sancionado pelo recurso à experiência dos antigos e se instituiu como
tradição.
Entretanto, outra forma de organização familiar, praticada com legitimidade social,
não recebe a aprovação do código de valores expresso em Contos gauchescos. Trata-se do
"casamento arranjado", presente em “Melancia-Coco Verde” e “O ‘menininho’ do presépio”.
A desaprovação de tais uniões é coerente com a ética simoniana, visto que, ao estabelecer-se
apenas em função da acumulação de bens materiais, o “arranjo” da união conjugal
desencadeia o abandono deliberado dos valores essenciais do sujeito, levando-o à
desumanização.
Por outro lado, tal prática redimensiona a relação familiar, que aos sentimentos de
proteção e resguardo soma-se o sentido de posse, o qual autoriza o poder paterno a dispor da
vida da filha, conforme convém aos seus interesses. A autoridade masculina que, por um ato
de violência transforma a mulher em moeda de troca, é exercida explicitamente pelo marido
em “Jogo do osso”, causando certa estranheza entre os que assistem ao acontecimento.
Todavia, em “Melancia-Coco verde” e “O ‘menininho’ do presépio”, usufruído pelo pai, o
direito à exploração dos lucros advindos da negociação da figura feminina através do
matrimônio parece transformar-se em um dado natural, uma vez que não contestação
aparente.
Contudo, não é esse o posicionamento de Blau Nunes no conto “Melancia-Coco
Verde”, no qual o pai da moça, movido pelo desejo de obter proveito financeiro por
intermédio da filha, procura impedir a liberdade de escolha amorosa:
49
O velho Severo parece que não queria o casamento dos dois, nem por nada; teimava e
berrava que ela havia de casar-se era com o sobrinho dele, primo dela, um que tinha
uma casa de negócio na Vila.
Esse tal era um ilhéu, mui comedor de verduras, e que para montar a cavalo havia de
ser em petiço e isso mesmo o petiço havia de ser podre de manso... e até maceta... e
nambi... e porongudo!...
A moça chorava que se secava, quando caçoavam-na com o primo e o casório.
Era mesmo uma pena, lhe digo... casar uma brasileira mimosa com um pé-de-chumbo,
como aquele desgraçado daquele ilhéu... porque ele tinha um bolicho em ponto
grande!... (LOPES NETO, 2000, p. 105).
Nesse conto, a decisão paterna contraria não apenas a vontade da filha, sia Talapa, mas
igualmente os valores culturais daquele grupo particular, desprezados pelo “ilhéu”
pretendente à mão da moça. Além disso, ao abrir o espaço da comunidade ao elemento
estranho, o pai suspende uma estratégia de proteção, de sobrevivência e de coesão social, que
aconselha a união entre os pertencentes ao mesmo grupo cultural.
Assim, as represálias feitas por terceiros, procurando inibir a concretização do
casamento indesejado, não se devem à imposição da união conjugal pelo poder paterno, mas
visam regular a introdução do elemento estranho que expõe toda a coletividade como custo de
um empreendimento individual em busca de vantagens. Por sua vez, ao reforçar a
caracterização negativa da figura paterna, Blau Nunes, gozando da autoridade do “genuíno
tipo crioulo rio-grandense”, expressa o distanciamento do pai em relação ao ideal de
homem e de gaúcho, por forçar a união da filha com um ilhéu.
Tal aspecto pode ser verificado no conto “O ‘menininho’ do presépio”, em que se
repete o episódio da obrigatoriedade do matrimônio pela obediência ao pai:
É que este Miguelão não era trigo limpo; e tinha uma filha que era uma criatura boa
como uma santa, morocha linda como uma princesa. E vai, o desgraçado obrigou a
menina a casar-se com um sujeito sem eira nem beira e que diziam à boca pequena
que era parceiro nas velhacadas do Miguelão.
Era mais que mouro, e meio corcunda, e tinha um lanho grande entre a orelha e a
nuca; e mal encarado, era.
Amigo! A quincha dos ranchos esconde tanta cousa como os telhados dos ricos!...
(LOPES NETO, 2000, p. 174),
Ao apontar para as relações escusas que conspurcam as relações familiares,
independentemente da condição social a que pertencem, Blau Nunes sinaliza a corrupção
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generalizada do homem que, tomado pelo “joio” da ganância, do egoísmo e da materialidade,
é capaz de impor a infelicidade àqueles que deveria proteger.
Entretanto, se mulheres e crianças estão, historicamente, submetidas à vontade adulta e
masculina, sendo excluídas da esfera política e social, a narrativa simoniana, por situá-las
numa área interdita, confere-lhes relevo: a mulher, por seu atributo de “bicho caborteiro”,
desencadeia a perdição do macho; e a criança, por situar-se num plano irrecuperável de
integração plena com a natureza e de completo gozo da liberdade, corresponde à “idade
áurea” gaúcha, acessível apenas pelo movimento da memória.
Contudo, enquanto o valor da infância está ligado à conservação da inocência e ao
distanciamento em relação à cultura, a inocência e a castidade são necessárias à figura
feminina para configurar seu pertencimento ao mundo cultural. Existe, assim, uma
mobilização familiar, sobretudo paterna, no sentido de conter a sexualidade feminina,
potencialmente destrutiva, reconduzindo-a, através do casamento, a um único macho, para
proteger o agrupamento social e dar-lhe prosseguimento. Paradoxalmente, o valor social da
figura feminina é obtido à custa do seu resguardo no interior da família, isto é, de sua
exclusão social. Crianças e mulheres constituem, pois, um universo à parte, à margem da
sociedade, estritamente adulta e masculina. O instrumento de execução do projeto social
assim configurado é a figura paterna, possuidora do governo absoluto sobre mulheres e
crianças, e profundamente empenhada na conservação da ordem tradicional.
A relação do pai com suas filhas é marcada pelo esforço de proteção contra a vida
mundana que alimenta gaudérios carniceiros”, de modo a evitar o descontrole da potência
feminina. Em última instância, entretanto, tal proteção não se destina às jovens, muitas vezes
reduzidas a objeto de posse e à moeda de troca. A desonra feminina constitui um dano social,
uma sabotagem ao processo de continuidade da tradição, de forma que, protegendo a
virtuosidade feminina, a atuação paterna visa resguardar a organização social instituída e a
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centralização do poder na figura masculina.
Parece contraditório que a exaltação da imagem identitária do gaúcho como o homem
andarengo, despojado de raízes e bens, vagando livremente ao sabor dos ventos, possa
conciliar-se com o apego à família e com a defesa da organização familiar, também
empreendida por Blau Nunes. É lícito supor, nesse sentido, que o propósito de restauração
mítica tenha exigido da instituição familiar uma função preponderante, não mais restrita à
geração, mas prolongada no encaminhamento dos descendentes a assumir a luta paterna pela
continuidade histórica. O cultivo do sentimento familiar e o cuidado para com os dependentes
parecem constituir um investimento do homem no seu próprio passado, através da
possibilidade de restabelecer sua validade social, desgastada frente às mudanças do presente.
Sob essa perspectiva, a participação masculina no agrupamento familiar e a tomada da
responsabilidade pela educação das crianças podem ser entendidas não como uma atitude
voltada à inovação cultural, mas como uma estratégia de resistência.
2.2 O mundo adulto e o mundo infantil
Considerando as funções legadas à criança na narrativa simoniana, o estudo da
representação literária da infância possibilita o redimensionamento da problemática identitária
no contexto das culturas regionais. As projeções e expectativas da sociedade adulta são
incorporadas à imagem pueril, revestindo de significados a representação da criança na
literatura para adultos, a qual é posta em diálogo com a concepção social de infância.
Para tanto, é relevante estabelecer as relações existentes entre os mundos adulto e
infantil, de modo a verificar os elementos simbólicos associados à infância construída pelo
narrador Blau Nunes. Além disso, a constatação de aproximações, rompimentos e
interferências mútuas entre a infância e a vida adulta permitirá compreender o lugar atribuído
a essa faixa etária e às personagens infantis tanto no universo ficcional, quanto na ordem
52
sócio-cultural instituída pelo adulto.
Através dos casos que narra a seus interlocutores, Blau Nunes se oferece como guia do
percurso geográfico e existencial constituinte de Contos gauchescos e Lendas do Sul. Essa
trajetória, que reúne episódios protagonizados ou testemunhados pelo narrador, instaura um
universo cujo horizonte situa-se no passado. Blau Nunes não esconde o seu desencanto com
relação à circunstância presente, que representa uma ruptura com os valores e a visão de
mundo legitimados pela tradição.
Nessa perspectiva, a criança, pela sua proximidade com o estado natural e sua
conseqüente exclusão da esfera social, figura como um elemento capaz de restabelecer, pelo
breve período correspondente à infância, o momento histórico idealizado. Contudo, resultante
da concepção negativa do progresso humano, a inserção no contexto adulto contemporâneo da
narrativa traz consigo a frustração da possibilidade de reinstaurar o passado.
Trata-se, entretanto, do passado mítico da idade de ouro
6
, o tempo ideal cujas práticas,
constituindo a tradição, embasam a construção identitária gaúcha e alicerçam o horizonte
requerido por Blau Nunes. Ainda que localizável num passado “real”, o tempo ideal encontra-
se revestido de características míticas. Recuperado pela memória de Blau, tal passado mítico
resgata o processo de conquista e colonização do Rio Grande do Sul, que resultou num tipo
humano singular, chamado gaúcho.
Como sintetiza Arendt (2004a, p. 127), as principais características desse tipo são “o
telurismo, a rudeza, a destreza e a coragem, tanto no trabalho pastoril como na guerra”.
Reunindo tais atributos, próprios aos heróis míticos, o homem rio-grandense daquele período
vive também numa circunstância idealizada, gozando a liberdade de usufruir o tempo e os
campos abertos, bem como a manutenção de um permanente estado de guerra, a abundância
6
Conforme Mircea Eliade (2004, p. 21), o tempo mítico das origens é um tempo transfigurado pela presença
ativa e criadora dos Entes Sobrenaturais, de modo que, ao “viver” o mito, sai-se do tempo profano, cronológico,
ingressando num tempo qualitativamente diferente, um tempo “sagrado”, ao mesmo tempo primordial e
indefinidamente recuperável.
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inesgotável dos recursos naturais, a igualdade comunitária e a ausência de hierarquias sociais.
Coerente com a atuação de entidades mágicas, característica do tempo tico, aquele
momento histórico possibilita a idealização do espaço, do homem e das suas relações.
Representando o mundo a partir desse contexto, por um lado, Blau Nunes
continuidade ao mito do gaúcho-herói, ao incorporar as qualidades do “genuíno tipo – crioulo
rio-grandense” e ao exaltar um passado glorioso, já propalado pela tradição. Por outro lado,
como pontua Arendt (2004a), o narrador de Contos gauchescos promove uma cisão definitiva
com a mesma tradição, ao denunciar a suposta decadência da moral e a degradação da cultura
do Rio Grande do Sul.
O estabelecimento da circunstância mítica é, nesse caso, uma reconstrução do passado
“real”, o qual é reinvestido de sentido simbólico e passa a sedimentar a identidade coletiva. A
reconstrução idealizada do momento histórico é, pois, sempre posterior a sua efetiva vivência.
Na visão de Charlot (1983, p. 130), esse passado mítico
[...] exprime simplesmente a necessidade de voltar às origens, isto é, de reencontrar a
pureza da natureza humana eterna. O tempo da infância é apenas o símbolo da
separação entre natureza humana essencial e natureza humana corrompida.
A significação assim atribuída à meninice advém da sua interpretação em termos de
natureza e de cultura, que, revestida de um sentido temporal, coloca o tempo como dimensão
específica da infância. Tal faixa etária corporifica, então, o aspecto não-contaminado da
natureza, que se torna o âmbito preferencial da criança, que abriga o próprio modo como
ela é concebida.
O desejo de permanência da inocência primitiva transforma a criança em “bom
selvagem”, tendo como conseqüência a marginalização econômica dos pequenos
contraproducentes. Paradoxalmente, isso se opõe ao esforço para torná-los produtivos e
emancipados.
Embora a noção de infância construída por Simões Lopes Neto pareça apenas imitar a
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projeção social do contexto de produção da obra, caracterizando-se pela consciência
superficial das individualidades infantis, a relação entre os pais e seus filhos ganha, com
freqüência, o primeiro plano da narrativa. No conto “Trezentas onças”, por exemplo, o
sentimento paterno e filial impede o suicídio de Blau Nunes, que, tendo perdido uma grande
quantia em dinheiro do patrão, tenciona matar-se para escapar à acusação de roubo. A
lembrança dos “filhinhos” e dos próprios pais reforça em Blau suas responsabilidades como
pai e como filho, acompanhando-o como as estrelas “Três-Marias”, as quais, em sua
atemporalidade e onipresença, conferem coesão à existência e à continuidade da vida.
Essas mesmas estrelas juntam-se aos “bichos brutos” e, evocando a lembrança da
amizade familiar, da liberdade, do trabalho e da esperança, manifestam, na hora derradeira, a
presença divina que atua em favor da manutenção da vida. Evidencia-se, assim, a estreita
relação entre a natureza e os aspectos que dão sentido à vida humana, uma vez que os
elementos naturais, sendo portadores dos atributos positivos da existência, intervêm para
reforçar ou modificar o estado de espírito da personagem.
No conto, a intervenção constante e decisiva do cão pertencente às crianças, o qual se
revela um guia fiel do homem, presentifica a memória dos filhos de Blau. Além disso, a
relação sugerida entre as crianças e o animal sinaliza tanto a sua interação com elementos
destinados especificamente a elas, quanto sua cumplicidade para com os elementos da
natureza.
Embora a afinidade entre o homem e o meio circundante seja característica do
tratamento do espaço num texto regionalista, a paisagem transforma-se, aqui, como observa
Zilberman, em uma extensão da personalidade do herói ou do sentimento da história. Para a
autora (1992, p. 54), a natureza adquire, com Simões Lopes Neto, uma dimensão mítica,
“revelando a presença de uma mentalidade primitiva, coerente com a circunstância de onde
provêm os heróis das narrativas”.
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Além disso, é significativo o lugar ocupado pelos animais, em “Trezentas onças”, pois
são eles que, conforme assinala Zilberman (1992), introduzem a memória da família e dos
valores da existência a liberdade, o trabalho e a esperança. Assim, os filhos e a vivência
familiar, evocados pela mediação do espaço e dos animais, significam a experiência humana
de Blau e comprometem-no a enfrentar o conflito, desvelando a incoerência do suicídio:
Agora... era vender o campito, a ponta de gado manso tirando umas leiteiras para as
crianças e a junta dos jaguanés lavradores vender a tropilha dos colorados... e
pronto! Isso havia de chegar, folgado; e caso mermasse a conta... enfim, havia de se
ver o jeito a dar... Porém, matar-se um homem, assim no mais... e chefe de família...
isso, não! (LOPES NETO, 2000, p. 28).
Nota-se que a preocupação com o bem estar dos filhos e a responsabilidade pela
manutenção familiar orientam a conduta de Blau Nunes e expressam o reconhecimento da
infância e da família como valores humanos a serem preservados. Ao lado da ligação afetiva,
a dependência nutrida pelos filhos com relação à figura paterna coloca-se ao narrador-
personagem como um dos motivos para continuar vivendo. Nesse sentido, a estruturação
patriarcal da sociedade simoniana é evidente na centralização do poder pela figura paterna, o
“chefe de família”, a quem cabe prover os que estão sob seus cuidados, as mulheres e as
crianças, encaminhando-os a uma atuação social adequada.
O conto “Melancia - Coco Verde”, por sua vez, focaliza a trajetória do índio Reduzo,
criado junto aos filhos dos Costas, desde quando esses ainda eram “miudagem”. A condição
de pertencimento ao grupo familiar que o acolheu em pequeno constrói-se pela partilha de
tarefas comuns e pela educação através das lidas campeiras, as quais apresentam gradativa
aproximação com relação às vivências de trabalho próprias aos adultos, pois quando eram
taluditos o velho começou a encostá-los no serviço, também sempre de companheiros; e assim
foram aprendendo a campeirear, domando, capando... até saberem apartar boi gordo e tocar
uma tropa(LOPES NETO, 2000, p. 104).
Observa-se que a atividade dos meninos prepara-os para a sucessão no trabalho com o
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gado, igualando-se, progressivamente, aos encargos adultos. Além de habilidades físicas,
“campeirear” exige a posse de certos atributos designativos do valor do gaúcho, tais como a
coragem, a altivez, o enfrentamento da solidão e, sobretudo, certa intimidade com a violência,
necessária, por exemplo, à castração do animal e ao exercício da sua dominação. Nesse
sentido, evidencia-se a exposição dos pequenos à crueza da vida e a inibição de tentativas de
resguardá-los do universo dos adultos. A comunhão das vivências torna quase coincidentes o
mundo dos grandes e o das crianças.
A respeito da atividade infantil, Paulo Xavier (1964, p. 61-62) afirma que
as crianças eram formadas na dura escola do trabalho. As meninas adestravam-se no
artesanato doméstico os doces, as rendas, o bordado numa preparação para serem
futuras donas de casa. Esta formação concluía-se no casamento. A precocidade de sua
realização impunha o assessoramento de uma ou mais escravas que as seguiam ao
novo lar, integrando o seu dote.
Os meninos acompanhavam as lides do campo, nelas se exercitavam e aprendiam
como dirigir e trabalhar em uma estância. A tropeada era o ponto máximo da sua
formação. Partiam por estradas ou campos abertos na direção das charqueadas,
descortinando horizontes distantes e, no trato com outras gentes e outros negócios,
ganhavam a experiência necessária.
Nesse ambiente, desde muito cedo, as crianças aprendem o trabalho no campo ou no
lar, observando e imitando os adultos. Portanto, a inclusão do sujeito na esfera social e a sua
representatividade econômica implicam a superação da infância, o que admite, por parte dos
adultos, o empenho por tornar breve essa fase, concluída com a conquista de algum
desembaraço físico. Inexiste, como se vê, a preocupação com respeito às fases da vida mais
adequadas a determinadas experiências, que a precocidade agrega valor social ao sujeito,
sendo, portanto, estimulada.
Caracteristicamente medieval, a pouca diferenciação, que permeia as vivências adultas
e pueris do espaço rural gaúcho, estende-se às faixas etárias, segundo atesta Ramírez (1953, p.
88): “Inexistindo a fase escolar primária, vamos deparar um espécime humano inconfundível,
que a literatura regionalista consagrou num substantivo expressivo, o piá, vocábulo que colige
os fenômenos da infância e da meninice, até a puberdade”.
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A ausência de clareza na distinção entre as etapas do desenvolvimento biológico
humano pode ser observada em algumas passagens de Contos gauchescos. Em “No
manantial”, por exemplo, o narrador refere-se ao amor ingênuo de Maria Altina como
“milongagens de crianças” e, à moça casadoira, ora como “menina”, ora como “pécora”
(mulher astuta) e “rapariga” (moça). no conto “O ‘menininho’ do presépio”, a jovem
esposa nhã Velinda é definida pelo narrador como "quase uma criança perto do marido”.
Todavia, os termos associados à idéia de infância, tais como, “menina”, “inocente”, “guri”,
“piá”, “rapazinho”, “miúdo”, “traquina”, não apenas servem para designar determinada faixa
etária, mas parecem ligar-se intimamente, no universo simoniano, à própria noção de
inocência, o que justifica a qualificação simultânea da personagem como criança e adulta.
Nesse sentido, observa-se que não correspondência entre a idade social e a idade
cronológica do indivíduo. No caso dos meninos, embora ainda sejam crianças, do ponto de
vista biológico, cabe-lhes desempenhar um papel social equivalente ao do adulto, no que diz
respeito às suas atividades. no caso feminino, embora as moças estejam fisicamente
maduras para a procriação, conservam-se, socialmente, relegadas ao universo infantil e
apartadas do espaço masculino, enquanto não iniciadas na vida sexual.
Ainda que a personagem infantil ocupe posição de destaque em vários dos textos
simonianos (como em “O Anjo da Vitória” e em “Penar de velhos”), somente em “O
Negrinho do Pastoreio” e “O ‘menininho’ do presépio” tal importância é anunciada no título.
No último caso, entretanto, a atuação dessa figura ocorre apenas no final, quando intervém
para proteger nhã Velinda do ataque do esposo, que descobre seu envolvimento com o cadete
Vieira:
Quando a ponta do ferro matador estava a uma mão travessa... a quatro dedos da
carne macia, credo! louvado seja Deus! aí rolou da sua caminha de milhã...
rolou e caiu no boleado do seio da moça, na canhadita dos dois, caiu no regaço de nhã
Velinda o Menino Jesus, como uma defesa... e no regaço delicado ficou, como um
dono na sua casa... (LOPES NETO, 2000, p. 178).
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A participação da imagem do menino Jesus, que se interpõe ao “ferro matador” para
salvar uma criatura boa como uma santa” é tomada como um milagre pelo narrador e pelas
personagens que testemunham o caso. A intervenção milagrosa do menino consiste em
impedir a eclosão da violência, prestes a concretizar-se, novamente, em torno da figura
feminina. A atribuição de um feito milagroso à figura do Jesus criança glorifica a santidade
do inocente e outorga-lhe o poder de transformação. O Jesus do presépio é a promessa feita à
humanidade, a qual se realiza com o Jesus do sacrifício. Mas, ao concretizar o milagre, o
Menino antecipa o que estava projetado para seu futuro e, da mesma forma, a criança herda
do seu modelo as expectativas e desejos adultos de transformação da realidade em um plano
ideal.
Tradicionalmente, espera-se que o sujeito infantil demonstre, desde o nascimento, o
seu comprometimento com a herança social recebida e, ao mesmo tempo, manifeste sua
potência para a mudança. Nesse sentido, o cuidado com a vida infantil constitui uma aposta
em suas possibilidades futuras, mas estas precisam anunciar-se prematuramente para captar o
investimento material e afetivo do adulto.
As parecenças físicas entre os genitores e o sujeito infantil assinalam externamente o
seu pertencimento ao grupo familiar que lhe deu origem. Contudo, além de traços físicos,
pretende-se que a criança mostre predisposição aos valores e práticas da sua comunidade,
dando prosseguimento a uma realidade que nem mesmo os adultos que o geraram puderam
consolidar. Isso não será possível se a criança for fisicamente incapaz, do que resulta a
importância dedicada à saúde infantil, expressa, em “O ‘menininho’ do presépio”, na
referência à cor rosada do Menino. Observa-se, ainda, que ser saudável constitui um dos
atributos do herói gaúcho, capaz de garantir-lhe o cumprimento exemplar de todas as etapas
da vida social. Ao mostrar-se são, o sujeito infantil apresenta-se em condições de sobreviver
num ambiente adverso e realizar os atos de valentia próprios de um herói, honrando, assim, a
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si mesmo e ao seu genitor.
A importância dedicada ao presépio e a sua minuciosa descrição atestam, por sua vez,
que a representação do cenário de nascimento de um ser humano recria uma simbologia
orientadora das práticas sociais, as quais, embora festejando a manifestação do elemento novo
e desejado, tendem à repetição, de modo que a novidade termina por engendrar o reinício do
ciclo, e não a sua transfiguração.
O presépio constitui, antes de tudo, um modelo de representação familiar, composto de
pai, mãe, filho e elementos naturais. Trata-se, portanto, de uma família unicelular, imersa na
privacidade e distanciada das linhagens de parentesco. A ela somam-se os visitantes, cuja
função é confirmar o nascimento, atribuindo um caráter público ao rito de entrada na vida.
Além disso, através dos objetos com os quais o pequeno é presenteado pelos que o visitam, é
materialmente retribuída a promessa de dádiva social que o menino representa.
Por outro lado, as potencialidades do Jesus menino, como figura infantil modelar,
estendem-se a todas as crianças, que passam a depositárias dos atributos idealizados da
imagem santa, dentre os quais ganha relevo a inocência, como se constata nessa passagem, em
que a atitude da Criança é comparada à de "uma criancinha": “acamado numas palhinhas de
milhã e uns musgos e umas penugens estava o Menininho Jesus, ruivito e rosado, nuzinho em
pêlo, pro caso como uma criancinha que não tem pecado por mostrar as vergoinhas de seu
corpinho de inocente” (LOPES NETO, 2000, p. 177).
A descrição do presépio natalino, no conto, é estabelecida a partir de uma
representação milenar conservada através das gerações, a qual configura um espaçosico em
plena consonância com o tempo em que tal representação é atualizada, uma vez que se repete
a convivência entre humanos, bichos e plantas. Boizinhos e ovelhas participam da
organização familiar e sinalizam o sentimento telúrico que orienta a relação entre a família
santa e a natureza. A representação do modelo familiar usa-se de aspectos coincidentes com
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dados do universo que atualizou o símbolo, produzindo a identificação entre o exemplo santo
e o grupo social que dele se apropriou, de modo a tornar possível a repetição do modelo numa
circunstância social e espaço-temporal nova.
Outro elemento identifica a figura do menino Deus à imagem infantil construída
socialmente. Trata-se do despojamento material, que se associa à condição humana natural e,
portanto, distancia-se dos artefatos culturalmente instituídos, tais como as vestimentas. A
condição de nudez sem pudor sinaliza, além disso, tanto a pureza do estado primordial, no
qual nada para ser escondido, quanto a ausência de culpa ou falta, pois repete a atitude de
Adão e Eva, antes do pecado original. Todavia, enquanto a imagem do Jesus menino, em vista
do milagre operado, continua sendo "o figurão do oratório", a sujeição à passagem temporal,
via de regra, destitui a criança da sua posição exemplar. O Jesus do presépio é a eterna
criança, que se conserva imutável, tanto em sua aparência quanto em suas disposições. as
demais crianças estão, definitivamente, expostas ao tempo e às transformações dele
decorrentes. A progressiva inserção na vida e nos interesses adultos distancia os pequenos do
plano ideal, corrompendo sua inocência original. Quando se essa passagem, a criança
deixa de ser modelo de ser humano, igualando-se aos homens que deveria inspirar.
A aproximação do modelo de criança à noção de inocência é reforçada pelo fato de
que o peito de nhã Velinda caracterizada pela pureza e pela retidão –, acolhe a imagem do
Menino Jesus, fazendo-se casa” para ela. Nhã Velinda, por sua vez, identifica-se à mãe de
Jesus, jovem mulher, ao mesmo tempo casada e pura, que aceitou acolher aquele que veio
para salvar.
Da mesma forma que a inocência não é privilégio da infância mas está acessível ao
adulto e pode mantê-lo em comunhão com a condição infantil, independente da sua idade
cronológica –, também é possível, por outro lado, que uma criança esteja, antes do tempo, em
comunhão com a corruptibilidade que caracteriza o adulto.
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Esse é o caso, por exemplo, do "menino maleva", que se diverte maltratando o
virtuoso protagonista da lenda "O Negrinho do pastoreio". Todavia, enquanto o estancieiro,
que não constitui modelo de conduta para a sociedade, é punido por sua maldade e pela
demasiada valorização do bem capital, seu filho, “pior que os bichos maus”, também
responsável pela sorte do Negrinho, não sofre castigo algum, contrariando, como observam
Arendt e Conforto (2004b, p. 72), "o sentido moralizante da lenda em si e da obra de Simões
Lopes Neto, cuja regra geral é castigar os maus e exaltar os bons". Esse fato pode indicar a
sucessão do menino na maldade do pai, uma vez que sua disposição inicial o é modificada
ao longo da narrativa.
O menino herdeiro do poder econômico pode representar, assim, um elemento de
continuidade histórica, tendo em vista que a vitória simbólica do Negrinho não traz abalos
para a configuração social. Além disso, é reiterada a concepção pessimista do progresso
humano, advinda da frustração do potencial transformador infantil, que a criança, sob a
influência do mundo adulto, acaba por reeditar a circunstância dada. Portanto, embora
naturalmente bons, os pequenos também podem ser capazes de sentimentos e atitudes más,
conforme determinarem as suas vivências e aprendizagens junto aos adultos.
Nesses termos, mais do que a passagem do tempo, é a aniquilação da inocência que
assinala o ingresso definitivo na vida adulta, a qual não enseja, necessariamente, um percurso
gradativo, podendo dar-se bruscamente, a partir de vivências traumáticas, como se verifica em
“O Anjo da Vitória”. Nesse conto, o narrador adulto recupera, pela memória, o episódio limite
da sua infância, no qual o contato com a morte impele a criança para a vida adulta. Tal
condição é forjada na passagem da posição de alienação do sujeito para o mergulho na
situação de consciência e de solidão, que confere o sentido de auto-reconhecimento ao próprio
adulto narrador. A inocência infantil, assim, cede lugar para a experiência de autodescoberta e
para a revelação súbita do mundo e da condição humana, de modo que o menino, na opinião
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de Chaves (2001, p. 160), sofre a “perda da inocência para adquirir a condição de homem só”.
Em “O anjo da vitória”, o relato histórico da batalha do Passo do Rosário não se
resolve, conforme observa Chaves (2001, p. 158), como descrição épica, mas termina por
tematizar “uma crise individual, a ruptura da infância”, em que o Blau menino (um “gurizote”
de, no máximo, dez anos) integra o depoimento autobiográfico do Blau velho, que agora
narra. Deslocando-se do coletivo para o percurso individual do menino que acompanha o
padrinho na batalha, o relato centraliza a modificação da disposição inicial do guri, fundada
na ignorância de si mesmo e dos acontecimentos: “as cousas da peleia não sei, porque era
menino e não guardava as conversas dos grandes; o que eu queria era haraganear” (LOPES
NETO, 2000, p. 115). No início do episódio, portanto, o pequeno estava ainda imerso na
gratuidade da aventura, expressa pelo termo “haraganear”, gozava da proteção e dos cuidados
do padrinho, vivendo sob a segurança e o fascínio que lhe inspirava a figura mítica do general
José de Abreu.
A desordem provocada pela fumaça, ao impedir a clareza da visão e, confundindo os
exércitos, deflagrar um erro estratégico, coincide com a situação pessoal do menino. Esse, ao
testemunhar as contradições da guerra, transita entre o ser criança e o ser adulto, de forma
que, junto ao padrinho, a Hilarião e ao heróico anjo da vitória, “morre o menino para que
possa nascer o homem” (CHAVES, 2001, p. 159), gaúcho e gaudério.
Tendo em vista sua capacidade de interceder pelos homens, a figura do anjo situa-se
num plano sobre-humano e aparece, via de regra, associada a ações benfazejas e protetoras. O
“anjo da vitória” representa, pois, o guardião que assegura a sobrevivência e o sucesso na
guerra. Todavia, nem o poder angelical, nem as armas ao seu comando podem garantir a
vitória na batalha. A morte do anjo, tal como é percebida pelo menino Blau, é significativa da
potência maléfica e destrutiva da violência, quando submetida ao descontrole, “porque tudo
aquilo era da indisciplina, somentes”.
63
A aniquilação do elo com o transcendente sugere que aquela “hora maldita”
interrompeu os vínculos com o sagrado, pois gestou até mesmo a morte do intermediário da
vontade divina. Nesse sentido, ocorre a degradação da circunstância épica possível, uma vez
que, confundido o alvo do ataque, morrem os comandantes heróis e a “torenada macota”
reduz-se a um lote de fujões, ao mesmo tempo em que o menino haragano vê-se, subitamente,
homem e gaudério.
Assim, o contato com a morte física e simbólica na batalha do “Passo do Rosário”
enseja, também, para o menino, um embate entre dois lados da vida e duas visões de mundo.
O bichará que envolve o pequeno Blau assinala a transformação do menino, pois a função da
vestimenta modifica-se ao longo da narrativa. Inicialmente, o poncho serve de capa protetora
ao menino, que nele está “enroscadito”: “e eu levei um lançaço, que por sorte pegou no
malote do poncho” (LOPES NETO, 2000, p. 117). Após, o bichará parece antecipar a
desgraça iminente, “enchia-se de vento, e voava, batia aberto, que nem uma bandeira
cinzenta” (LOPES NETO, 2000, p. 118). ao final do conflito, mortos o padrinho e o
general José de Abreu, o “bicharazito se empantufou de vento, desdobrou-se, batendo como
umas asas” (LOPES NETO, 2000, p. 121), sinalizando o destino do guri de correr o mundo e
de suceder o anjo morto.
A respeito disso, Chaves (2001, p. 243) pontua que a reiteração do traje é um recurso
da linguagem do vaqueano, mas também é o da linguagem simbólica de Simões Lopes Neto,
que transforma esse dado realista em motivo da narrativa:
O bichará é inicialmente um dado da descrição aparente; logo, sinal de identidade da
personagem; agora, na extensão do significado, passa a ser a imagem de proteção e
abrigo é o escudo do herói, este menino que luta desarmado, subitamente engolfado
numa guerra absurda ‘sem saber pra quê’.
O ingresso no universo adulto corresponde à inserção do sujeito na situação de
desequilíbrio da ordem natural em virtude do uso absurdo da violência, provocada pelo adulto
e representada pela própria guerra. Em última instância, tem-se o universo infantil
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identificado à circunstância natural, mas aniquilado pela corrupção do homem, a qual é
inerente à evolução do processo civilizatório e, portanto, ao ser adulto.
Em “O boi velho”, também é latente a associação entre a inocência e a criança, em
oposição ao homem, ao qual se liga a maldade. A passagem do tempo que enseja a evolução
traduz-se, negativamente, por meio da aquisição da violência, não mais como mecanismo
regulador natural, mas como instrumento de extermínio e dominação.
Nesse conto, para evitar o prejuízo do couro perdido, os adultos ricos matam o boi
velho, que os tinha carregado quando crianças. O homem, “bicho mau”, aproxima-se dos
urubus, “bichos malditos”, que se alimentam do primeiro boi morto, de modo que essa
aproximação evidencia a lógica corrupta da exploração capitalista como traço da postura
adulta adquirida. Ora, tal lógica está justamente pautada na utilidade material e na
produtividade, de cuja esfera encontram-se excluídas as crianças (que são entendidas como
uma promessa para o futuro) e o boi velho (que só representa possibilidades de ganhos depois
da morte). A riqueza material é, assim, entendida como o germe corruptor do indivíduo e da
sociedade, já que ela degrada a relação do homem com a natureza.
A morte do boi velho metaforiza o rompimento com o telurismo que, em tempos
primordiais, regulava as relações entre os seres humanos e o espaço natural. A caracterização
do boi e a descrição da sua trajetória junto ao grupo humano sugerem o pertencimento do
animal à esfera familiar. Entretanto, o sentimento de cumplicidade e de interdependência
mútua é suspenso com o atraiçoamento do boi pelos homens, os quais, procedendo à prática
de rapina, transformam-no em mero objeto de consumo e passam a exercer uma intervenção
violenta e predatória sobre o ambiente. Tal evolução negativa da atitude humana para com a
natureza coincide precisamente com o abandono definitivo do tempo mítico e sagrado.
A violação dos ideais gauchescos, que se verifica na circunstância atual, também é
assinalada por Zilberman (1992, p. 58):
65
O sacrifício do animal representa a ruptura, por se cortarem os laços sagrados que
unem o indivíduo ao meio natural, característico do pensamento mágico do homem do
campo. E fazê-lo por dinheiro significa interpolar nesta relação um valor materialista
que deveria inexistir, para não se perder o equilíbrio tanto social, quanto físico, com o
espaço geográfico.
Por outro lado, não é por acaso que os promotores dessa cisão definitiva com a
condição mágica sejam justamente “uns Silvas mui políticos, sempre metidos em eleições e
enredos de qualificações votantes”. Como observa Zilberman (1992), a interferência da
autoridade que permite acessar o poder independentemente do ato guerreiro –, aliada à
motivação econômica, anula a harmonia supostamente peculiar à sociedade gaúcha. A
suspensão do relacionamento amistoso com os animais, através de instituições e atitudes
interesseiras, leva, pois, a uma ruptura, intolerável para o pensamento mítico gaúcho: a
ruptura com o meio natural.
Nesse contexto, a criança é o elemento de ligação entre a circunstância mítica e a
realidade contemporânea, por estar mais imersa na natureza, do que ligada à cultura. Como
realidade humana ainda não plenamente levada a termo, a criança torna-se porta-voz
transitória do tempo primordial.
A natureza passa a ser o âmbito preferencial da criança, que constitui o seu habitat
mais adequado. Ela abriga, ainda, o modo como a própria infância é concebida. A esse
respeito, Zilberman (2003, p. 18) afirma que a infância
[...] encarna o ideal da permanência do primitivo, pois a criança é o bom selvagem,
cuja naturalidade é preciso conservar enquanto o ser humano atravessa o período
infantil. A conseqüência é sua marginalização em relação ao setor de produção,
porque exerce uma atividade inútil do ponto de vista econômico (não traz dinheiro
para dentro de casa) e, até mesmo, contraproducente (apenas consome).
O tempo infantil corresponde, em suma, ao tempo da natureza, opondo-se à
organização temporal profana do presente, na medida em que, alheia aos processos de
produção, a infância corporifica o não contaminado da natureza. Tal como Émile, de Jean
Jacques Rousseau (1999), a criança encontra nos cenários edênicos, nos quais o ser humano e
66
a natureza convivem sem sobreposições, o espaço ideal para a conservação da sua inocência
pueril. Todavia, conservar esta ingenuidade primeira implica intensificar a improdutividade
social.
Na engrenagem do mundo civilizado, os laços de afetividade e gratidão são
abandonados em favor do lucro e do proveito material, ficando relegados aos pequenos e aos
elementos naturais. Existe, na atitude do boi velho, um aspecto contemplativo, advindo da sua
docilidade e do desapego que demonstra. Para Chevalier (1993, p. 137), “o boi é um símbolo
de bondade, de calma, de força pacífica; de capacidade de trabalho e de sacrifício”. Assim,
em “O boi velho”, o animal se humaniza ao assumir a fidelidade, a paciência, a sensibilidade
(tal qual uma pessoa penarosa”) e até a fala, que são traços caracteristicamente humanos. A
respeito disso, Chiappini (1988, p. 298) acentua que a criança preserva no boi o
companheiro, “porque ainda não saiu da idade da inocência; para ela, a ambição do lucro não
se impôs ao ponto de superar o valor dos bichos”. Os bois, assim como o cachorro e o cavalo,
em “Trezentas onças”, têm inteligência, dispõem de fala e alma próprias, que, como afirma
o narrador, “os animais se entendem... eles trocam língua!...” (LOPES NETO, 2000, p. 69).
Tal como a expressão do boi Cabiúna, “a língua de trapos” do gurizinho gordote, ainda
imersa na naturalidade e distante da organização e da forma da linguagem adulta, é estranha
aos homens-bichos de rapina, mas serve, em seu estágio inicial, ao desmascaramento do
mundo adulto, evidenciando a sua decadência e a sua maldade. A narrativa propõe, portanto,
a decisiva oposição entre o universo infantil e o adulto, quando
[...] um gurizinho, gordote, claro, de cabelos cacheados, que estava comendo uma
munhata, chegou-se para o boi morto e metendo-lhe a fatia na boca, batia-lhe na aspa
e dizia-lhe na sua língua de trapos:
- Tome, tabiúna! Nó té... Nô fá bila, tabiúna!...
E ria-se o inocente, para os grandes, que estavam por ali, calados, os diabos, cá pra
mim, com remorsos por aquela judiaria com o boi velho, que os havia carregado a
todos, tantas vezes, para alegria do banho e das guabirobas, dos araçás, das pitangas,
dos guabijus!... (LOPES NETO, 2000, p. 70).
O gurizinho risonho e inocente distingue-se sensivelmente dos grandes, diabos a quem
67
cabe o remorso. Os cabelos cacheados do pequeno assinalam, por sua vez, a proximidade do
nascimento, pois correspondem à primeira penugem que cobre os bebês e podem sinalizar que
o menino ainda conserva seus atributos originais, tanto externa como internamente.
Não é gratuita a subversão do mundo adulto decadente por parte do menino,
justamente o elemento sica e intelectualmente mais frágil, que ainda não possui a
consciência da morte como dimensão do ato de violência praticado e que ainda comunga
desinteressadamente com a natureza. o ser inocente, representado pela criança, é capaz de
reinstalar a circunstância mítica, enquanto ele não for corrompido pela passagem do tempo.
Nesses termos, é a ruptura com a inocência, engendrada pela aquisição da violência, a
fronteira onde, conforme Chaves (2001, p. 178), “morre o menino e nasce então o homem, o
bicho-homem”.
Chaves observa, ainda, que o fatalismo determinista, no qual se orienta a concepção
simoniana sobre o destino humano, decorre, em grande parte, da tradição naturalista vigente
na época de produção da obra, de modo que a noção de tempo corruptor, a degradação
originária que age na natureza do homem e a idéia de animalidade do indivíduo são
recorrentes na literatura do período.
Coerente com essa visão de homem, Simões Lopes Neto constrói, no conto "Batendo
orelha!...", uma alegoria sobre a condição humana e, ao mesmo tempo, um tratado sobre a
educação, a qual aparece como elemento desumanizador
7
. Nesse texto, traçando um paralelo
entre as vidas do homem e do cavalo, o narrador demonstra, ironicamente, as coincidências
que os aproximam, desde o nascimento até a morte. A primeira infância do potro e do menino
é o único momento assinalado pela fartura, pelo cuidado alheio e pela plenitude vital. A ele se
a sucessão de episódios de violência, de restrições morais e materiais e de subtração da
7
Chiappini (1988) argumenta, a respeito, que a desumanização do homem não se pela sua redução a animal,
mas, ao contrário, pela perda da capacidade de se irmanar com ele e com a natureza, separando-se dessa raiz
primordial e enrijecendo-se na ambição. Nesse sentido, a autora (1988, p. 298–299) sublinha que, “negando a
animalidade, o homem permanece um bicho, mas um bicho mau e, portanto, paradoxalmente, se desumaniza”.
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liberdade de ambos, tais como a palmatória e o ferro em brasa, o serviço militar e a captura,
os quais, não por acaso, terminam por igualar o homem e o bicho.
Chiappini (1978, p. 220) destaca a origem anônima da violência dirigida ao homem e
ao animal, uma vez que os danos são empreendidos por sujeitos indeterminados, como
ilustram as seguintes expressões: “o caparam”; “sentaram-lhe a farda no lombo”; lanharam-
lhe as virilhas”; cortaram-lhe o cabelo”. O processo de restrições e perdas atinge a mutilação
do próprio corpo e desvela a arbitrariedade e o caráter opressor das instituições sociais, dentre
as quais a família, a escola, o exército e a polícia.
O ingresso na escola constitui o primeiro movimento para “ajustar o sujeito”, sendo
entendido como imposição e, por isso mesmo, como ato de tortura, que desconsidera o desejo
pessoal e o percurso individual de desenvolvimento:andaria nos oito anos quando meteram-
lhe nas mãos a cartilha das letras e o mestre gio começou a inchar-lhe as unhas, de
palmatoadas” (LOPES NETO, 2000, p. 167). Observa-se que a instituição escolar, visando
realizar a transição da ignorância ao conhecimento, ou seja, da barbárie à civilização, repete a
violência familiar e social.
Dessa forma, a educação do ser humano equivale à doma do animal, destinando-se a
marcar o sujeito pela força e pelo constrangimento físico ou moral. Entretanto, tal uso do
poder mostra-se desastroso, uma vez que o homem resultante desse processo “educativo”
animaliza-se ao perder a liberdade e ser, continuamente, subjugado por outros homens, os
quais detêm sobre ele o direito de posse.
Conforme sugere o posicionamento de Blau Nunes, a permanência no estado natural,
engendrando a aprendizagem informal através da tradição, mostra-se mais adequada ao
aperfeiçoamento humano, pois cultiva a ligação essencial entre o homem e a natureza.
Contrariamente, a ação civilizatória da educação escolar busca distinguir o homem do animal
e, nesse sentido, constitui uma artificialidade que contraria a própria natureza humana e a
69
desumaniza.
Como reação à marca da escola, as personagens mantêm a alegria despreocupada da
infância, conservando certa liberdade, apesar da subordinação à família manada). Na
seqüência, ambos procedem a uma tentativa de conquista amorosa, que é designativa da
curiosidade, da necessidade de explorar o próprio corpo e da descoberta da sexualidade. Tais
brincadeiras representam faltas contra as normas familiares e, são, em vista disso, brutalmente
reprimidas e punidas com a expulsão do grupo familiar, de modo que o mocito “foi mandado
incorporar”. No quartel, a reação foi contida com violência ainda maior, enquadrando
definitivamente o sujeito na ordem opressora.
A mudança de nome a cada etapa, conforme aponta Chiappini (1978), é designativa
não apenas da passagem do tempo e do crescimento das personagens, mas da sua decadência
física e moral. Essa decadência metamorfoseia o homem e o potro, que se encontram e se
unem pelas mesmas carências, danos e desconfortos, os quais remetem, por oposição, à
infância: fome, sede, frio, cansaço, maus cheiros, barulhos, sujeira e doenças. Em última
instância, é a condição econômica das personagens (a desvalorização do cavalo e a carência
financeira do homem) que desencadeia o seu fim: animal e ser humano transformam-se em
bestas de tração.
A última tentativa de reação das personagens, segundo assinala Chiappini (1978, p.
226), distingue-se pelo seu caráter autodestrutivo e irracional. Não se trata de agredir o outro,
seja ele instrumento de tortura ou torturador, mas de negar-se a qualquer ação, precipitando o
processo destruidor. “Empacar” e “traguear” constituem legítimos atos de rebeldia e sinalizam
a impossibilidade de reação, demonstrando a inevitabilidade do processo de degradação.
“Batendo orelha” atesta, no título, que homem e animal encontram-se lado a lado,
irmanados pela mesma condição, gozando de vida e morte equivalentes. Embrutecidos e
coisificados, enquanto o empacador é assassinado com um golpe de cabo de relho entre as
70
orelhas, o borrachão “estica o molambo” depois de “apanhar estouros” da polícia.
A sorte do cavalo mancarrão aproxima-se do destino reservado ao boi velho, do conto
de mesmo nome. Em ambos os casos, o tempo constitui um fator determinante de
aviltamento, uma vez que, como observa Chiappini (1978, p. 229-230), “o boi deve morrer
porque envelheceu e os homens não são mais crianças”. Quando o menino oferece o alimento
ao boi, num gesto que agora se mostra inútil, repete a oferta feita pelos adultos quando eram
crianças. Em vista disso, os grandes revivem a própria inocência perdida e o seu remorso é
produto da acusação que lhes faz a criança que foram, ao mesmo tempo em que o sacrifício
do boi é, também, o sacrifício da criança que ainda têm dentro de si.
Reiterando a temática da animalização bestial do homem, a ficção simoniana alcança
expressar simbolicamente a evolução negativa do ser humano que se corrompe em bicho
mau, enquanto o animal permanece inalterável em seus valores de fidelidade e perseverança,
chegando a humanizar-se. Nesse sentido, Chaves (2001, p. 179) entende que,
no discurso psicológico do vaqueano que conta seus casos, o homem sempre
empreenderá a busca do menino, privilegiando a recordação de um mundo
irrecuperável onde a gratuidade da inocência está representada no livre haraganear
pelos campos e na ação do boi velho [...].
O caráter gratuito da experiência infantil compreende a noção de ludicidade, inerente à
própria idéia de infância. É próprio do ser criança a exploração curiosa da realidade, pelo
prazer da descoberta, com vistas ao reconhecimento, à contínua adaptação às demandas do
mundo e à autoconstrução. A narração de Blau Nunes concede pouca atenção aos objetos e
brincadeiras das personagens infantis, que são referidas, no conto “Penar de velhos”, como
“bobages de criança”, cujo valor é instituído somente na transgressão do seu sentido primeiro.
É justamente quando não mais servem ao seu propósito inicial, tendo em vista que o menino
Binga foge de casa, que tais bobagens ganham um lugar de destaque na cena familiar, pois,
revestidas de um significado simbólico, acabam compondo uma espécie de altar que
representa “o doninho”:
71
Ajuntou num canto da sala todas as cousas do Binga; os aperos, o laço; umas
tamanquinhas gastas; um carretão de brinquedo, enfiadas de ovos, uma chuspa
cheia de pelotas de barro, argolas e ossinhos de mocotó; enfim, não sei quantas mais
bobages de criança... mas que tocavam no coração quando a gente pensava que o
doninho andava por esse mundo, de gaudério e teatino... como o cachorro chimarrão,
comendo de esmola algum soquete ordinário e tinindo de frio, sem ao menos um
bichará esburacado... (LOPES NETO, 2000, p. 153).
Os pertences de Binga, em sua maioria, imitam, em tamanho reduzido ou equivalente,
os instrumentos do adulto, sejam de trabalho, sejam de lazer, evidenciando a identificação do
menino com os homens e a experimentação dos seus afazeres. Arreios, laço e carretão
destinam-se à lida com o gado e com a montaria, e sua oferta à criança antecipa-lhe as
perspectivas de futuro. Observa-se que é, precisamente, através do manejo do laço que se
manifesta a alminha de gaúcho de Binga, levando-o a assumir, precocemente, a sua condição
de maturidade e independência.
as tamanquinhas constituem uma peça do vestuário infantil, possivelmente
reservada a ocasiões especiais e fornecida por adultos. Ovos, pelotas de barro, argolas e
ossinhos de mocotó compõem, por sua vez, pequenas coleções resultantes da exploração do
espaço natural pela criança, cuja finalidade é o reconhecimento lúdico de si mesmo e do
ambiente.
Tais objetos configuram a imagem identitária de Binga como uma criança ativa e
corajosa, em que é possível adivinhar um valoroso e hábil adulto. Porém, a mesma
inquietude impede-o de aceitar sem reação a autoridade contraditória do pai, levando-o a
renunciar à sua família, à sua herança e às suas coisas. O abandono dos objetos de uso pessoal
assinala o ingresso em outra etapa da vida, inconciliável com os materiais agora relegados ao
passado.
Despojando-se do que era seu, Binga Cruz rompe, também, com o seu pertencimento
àquele grupo familiar, àquela imagem identitária e ao tempo de infância, para viver como
“cachorro chimarrão”, sem vestimenta, sem alimento e sem guarida. Através de sua atitude,
Binga revela-se um andarilho em potencial, pronto a partir a qualquer momento. A liberdade
72
do andante desambicionado e de espírito aventureiro compõe a imagem social do gaúcho que
Binga, desde menino, sente-se chamado a cumprir.
Observa-se, ainda, o o envolvimento da gente grande nos brinquedos infantis, que,
se não lhes são completamente indiferentes, também não mobilizam a participação dos
adultos. A façanha da caça à avestruz realizada pelo menino Binga dá-se enquanto os adultos
da casa dormem a sesta. Esse fato talvez aponte para os momentos breves e escusos que
podem ser dedicados à brincadeira, a qual, não representando ganho econômico algum,
revela-se inútil. Apesar do aparente desinteresse adulto pela atividade infantil, pode-se
constatar a presença do brinquedo como mediador da relação entre a criança e o mundo,
inclusive através da imitação dos fazeres adultos, visualizada em “Penar de velhos”.
Entretanto, é no ato de “haraganear” que a dimensão lúdica infantil concretiza-se de
modo mais pungente e ganha o plano simbólico da narrativa simoniana. A liberdade de
usufruir o espaço e o tempo estrutura-se coerentemente com o mundo infantil construído, na
comunhão com a condição humana primitiva. Tal circunstância sintetiza a exclusão dos
processos produtivos e a inocência original, explícita na relação não violenta do homem com
o espaço.
A atitude lúdica manifesta-se, também, na perseguição ao nhandú, a qual se realiza
como competição de força e destreza entre o menino e o bicho. Vencido o animal, novamente
se faz notar a postura lúdica do menino, na falta de vigilância que permite à avestruz escapar
ao laço. O descompromisso com o resultado da ação, que teve, em si mesma, sua real
importância, traduz-se no descuido do menino e se opõe severamente à preocupação com o
produto do trabalho e com sua utilidade material. Nesses termos, o ludismo mostra-se na
forma de desafio, assumido como ato de liberdade, porque se de maneira voluntária e
dissociada do compromisso com a função utilitária.
Fundamental para o homem gaúcho, tal como entende Simões Lopes Neto, a liberdade
73
individual é apresentada como um valor irredutível que substantiva a humanidade do
indivíduo, determinando a sua relação com a natureza e a possibilidade de atribuir-lhe um
sentido, de modo que, conforme Chaves (2001), a crise ou a privação da liberdade, seja
através da violência, da escravidão ou da injustiça, é a negativa da própria condição de
humanidade, que metamorfiza a personagem em “bicho mau”.
O gozo pleno da liberdade espaço-temporal constitui o ideal nostalgicamente
manifesto em “Correr eguada”, conto que recupera o tempo mítico em que o direito à
propriedade, supostamente, ainda não era exercido ou não era percebido com nitidez. A
vastidão das “terras de ninguém”, de cuja generosidade é possível viver, retoma a própria
imagem paradisíaca, associando-se à idéia de divertimento que, mais do que a de trabalho,
permeava as lidas campeiras das quais advinha o sustento.
Chaves (2001, p. 182) assinala que a violência contra a montaria, em “Correr eguada”,
é plenamente permitida e sancionada, pois não altera o equilíbrio fundamental da existência,
constituindo uma ação através da qual o homem se integra ao mundo “que lhe é oferecido
como um espaço aberto e fonte inesgotável de recursos, a qual incessantemente se refaz e
recompõe”. Nesse sentido, o espaço mítico ainda não estratificado pela ordenação social e,
portanto, ainda regido pela liberdade –, corresponde à própria infância, enquanto que o correr
eguada é análogo ao “haraganear“, desejado pelo Blau menino, em “O Anjo da Vitória”, pois
enseja a atitude primordial diante do mundo, baseada na contemplação, no reconhecimento e
no usufruto desprovido da intenção de lucro e de dominação.
Ainda nesse conto, observa-se que um traço essencial, subjacente ao processo de
transformação do menino Blau, distingue o haraganear (que caracteriza, inicialmente, o guri)
do correr mundo” (a que se obrigado o pequeno sobrevivente da batalha de “O anjo da
vitória”): enquanto o haraganear supõe uma ão gratuita, orientada pelo exercício lúdico, o
“correr mundo”, ou o ser gaudério, impõe a obrigatoriedade da sobrevivência aliada à solidão
74
do vagar incerto e sem pouso, o que, pesadamente imposto à criança, transforma-a em pessoa
adulta, extraindo-a da atmosfera mítica.
A mesma passagem, de haragano a gaudério, é realizada por Binga Cruz, em “Penar de
velhos”. Assim como Blau, ainda menino, necessita “correr mundo”, “enancado num lote de
fujões”, Binga precisa fugir “sem rumo certo ao deus-dará”. No início da narrativa, o menino
“levado da casqueira” já exercita não só os limites do espaço circundante – quando “fura aqui,
fura ali, varou a cerca para dar fé, bem à sua vontade” (LOPES NETO, 2000, p. 150) –, mas
também os seus próprios limites, quando se rende ao desejo e, sobre o cavalo tomado
escondido do pai, abandona-se à perseguição da avestruz, assumindo sua “alminha de
gaúcho”.
Cedendo, momentaneamente, às expectativas sociais de que é depositária a figura do
gaúcho e à necessidade de testar suas próprias habilidades, Binga consegue, após perigosos
lances e disparadas, laçar e manear a avestruz, tornando-se “vencedor, afinal!” (LOPES
NETO, 2000, p. 151). Tal vitória representa a imitação bem-sucedida do modelo adulto,
caracterizando-se pela experimentação da destreza e do poder masculino, pois exige a
valentia, o controle da força e o domínio sobre si mesmo e sobre os outros. Todavia, ao
perceber-se vencedor, o menino está comprometido a admitir “a criançada”, tal como convém
ao nível de maturidade experienciada, acabando por deflagrar o ato violento que o subtrai de
uma vez do espaço familiar e infantil. O processo de flexibilização das fronteiras do
ambiente próximo e de si mesmo, iniciado por Binga, é abruptamente levado a termo, quando
o pai, lesado em sua propriedade pela perda do cavalo, intenta uma humilhação vexatória que
o menino já não pode aceitar:
o velho andou mal... ali no mais, à vista da peonada, quis sovar o filho... e quando
o guri viu o rabo-de-tatu no ar... quebrou o corpo, disparou e de vereda encarapitou-se
num matungo que estava de piquete, encilhado, e abriu campo fora, sem rumo certo ao
deus-dará... Debalde o velho gritou-lhe – Pára aí, menino! Pára aí, menino!
Qual! No peito do gauchinhoo cabia a vergonha daquele guascaço do rabo de tatu,
que caía-lhe em cima, se ele não foge... (NETO, 2000, p. 152).
75
A inadequação entre a causa e a conseqüência, que promove a aniquilação do bem
humano e afetivo o filho único –, decorrente da perda do bem material, culmina com o
padecimento dos pais e com a decadência da propriedade, entregue ao abandono. Fica, assim,
explícito que a criança catalisa as expectativas adultas, de modo que a sua falta é insuportável,
acarretando a ruína do universo familiar e comprometendo o sentido da experiência humana.
Isso não significa que a criança possui, nesse momento, o status modernamente
dedicado à infância, pois não cabe aos pequenos uma posição central no grupo familiar. Seus
interesses, necessidades e medos o ocupam lugar prioritário nas preocupações dos adultos.
A importância da criança reside no herdeiro potencial que ela constitui, de modo que seu
valor está ligado à sucessão do grupo familiar, à sobrevivência do nome, à manutenção da
propriedade e, sobretudo, ao compromisso com os bens familiares não materiais.
Como se vê, a inflexibilidade do patriarca determina o afastamento dos seus, uma vez
que o mau uso da violência conduz ao exílio sem fim da personagem e, conseqüentemente, ao
abandono da condição de menino, para a aquisição da seriedade adulta que a luta pela
sobrevivência impõe. Os valores de honra e altivez que orientam a fuga definitiva e a renúncia
ao convívio familiar transformam o menino em gaudério, cujo sofrimento parece ser maior
que o martírio de Jesus, pois esse, “sendo Deus, morreu perto de sua mãe...” (LOPES NETO,
2000, p. 154). Observa-se que a família sagrada representa, para Blau, um modelo de
organização familiar, pois resguarda a proximidade entre pais e filhos, embasando-se numa
cumplicidade de projetos, necessária à continuidade histórica.
Como o legítimo herói gaúcho, Binga não pode aceitar o dano, uma vez que essa
atitude implicaria passividade. Por isso, o menino recebe a ofensa moral ativamente, não
como vítima, mas como desafiado. O ato de insubordinação do guri que escapa à punição do
pai repete a atitude das avestruzes, as quais persistem na fuga à opressão do laço. A
insubmissão desempenha, assim, a função de resistência ao exercício autoritário do poder,
76
revelando um movimento no sentido de evitar a própria anulação. A identificação de Binga a
uma realidade ainda não domesticada recupera o estado primordial da existência, “força larvar
que não pode ser contida nem dominada” (CHAVES, 2001, p. 218) e que antecipa o gesto
decisivo de libertação. Em última instância, é a pertinência ao estado natural que, orientando a
ação infantil, leva a criança a contrapor-se à dominação representada pelo adulto.
Dessa forma, o código ético simoniano, alicerçado no telurismo e depositado na
criança, não parece ser uma herança do universo adulto. Ao contrário do que se poderia supor,
o homem, cuja experiência norteia-se pela altivez, pela honra e pela generosidade, é que
precisa conservar a herança recebida da criança que foi. Esperar-se-ia que a criança, por estar
naturalmente imbuída dos ideais exemplares de um passado remoto, projetasse para o futuro a
sua natureza primitiva, atravessando imune a fronteira temporal.
Contudo, coerente com a visão pessimista da evolução humana e com a concepção
cíclica do tempo, o universo simoniano raramente concede o privilégio da inocência e da
liberdade ao homem adulto, já que a ultrapassagem da infância acarreta a perda da condição
natural. A infância parece, assim, resultar de um idílico arcaísmo que está fadado a ser
transposto. O potencial subversivo da criança simoniana está em oferecer-se como um
lampejo capaz de evocar uma circunstância ideal e revelar as contradições do mundo adulto,
pouco antes de fazer parte dele.
Em virtude de não poder projetar-se para além da infância, a atitude transgressora
infantil constitui um malogro, de modo que a criança acaba por apropriar-se da herança
cultural legada pelo adulto, atendendo às expectativas sociais nutridas por ele, sob pena de
desorganizar o universo instalado. Nesse sentido, ao transgredir a ordem estabelecida, o Binga
gaudério não seqüência à previsão de continuidade a ele dirigida pelo adulto. Além de sua
atitude desestruturar a ordem do mundo instaurado, Binga torna-se um excluído do processo
histórico-cultural oficial, porque se coloca à margem da sociedade.
77
A não realização das expectativas adultas equivale, portanto, ao vagar perdido pelo
mundo, desregrado e despojado de raízes, ou seja, corresponde aoo-lugar social
8
destinado
à figura do "gaudério", a quem se opõe a sociedade organizada. Ao abandonar a posição
marginal infantil, o homem é levado a assumir a continuidade histórica e o papel social que
lhe cabe, para evitar a reiteração desse lugar de exclusão que, de provisório enquanto
circunscrito ao período infantil –, passa a ser definitivo.
Embora atuem reciprocamente um sobre o outro, a intervenção do elemento infantil
sobre o universo adulto simoniano não chega a promover transformações efetivas no sentido
de religar a realidade ao estado de infância do mundo, ou seja, ao tempo mítico. Por sua vez, a
circunstância adulta termina, inevitavelmente, por absorver a infância, produzindo a
transfiguração da condição natural humana para a aceitação do sujeito perante a sociedade
adulta, ou para a sua anulação social.
É legítimo distinguir uma dupla via de influências que liga a comunidade de adultos a
seus rebentos. Os pais e familiares organizam a sociedade a partir de determinados padrões de
comportamento e, buscando a superação da própria transitoriedade, encaminham, através de
diversas representações, suas expectativas de continuidade às crianças e aos jovens.
As disposições para que a herança seja assumida são transmitidas aos depositários do
plano sucessório de forma inconsciente, pela maneira de ser dos adultos e, também
explicitamente, por ações educativas – tais como os exemplos, os julgamentos, os elogios e as
sanções –, orientadas para a perpetuação da linhagem. Nesse sentido, Bourdieu (1997)
explicita que herdar é aceitar fazer-se instrumento dócil do projeto de reprodução, cujo lugar e
instrumento é o pai. A herança bem sucedida consiste, pois, numa superação do pai destinada
a conservá-lo e a conservar, igualmente, seu projeto de superação, situado na ordem das
sucessões. Para Bourdieu (1997, p. 9), “os herdeiros que, aceitando herdar, portanto, serem
8
Nesse contexto, a expressão “não-lugar” é empregada para significar a invisibilidade social do sujeito. Tal uso
distingue-se da delimitação que as ciências antropológicas têm proposto para o termo, denotando, através dele,
os espaços de transição.
78
herdados pela herança, conseguem apropriar-se dela, escapam às antinomias da sucessão”, de
modo que a reprodução do idêntico funciona, para pai e herdeiro, como reconhecimento
próprio e ratificação da qualidade da identidade social de ambos.
Entretanto, tal projeto pode apresentar contradições. As expectativas parentais
destinadas à superação do pai são desejadas e, ao mesmo tempo, não desejadas, que
representam seu assassinato, com a injunção paterna. Além disso, as ambições paternas
podem ampliar-se e encaminhar aos substitutos o compromisso com a concretização de um
ideal nem sempre realizável, o qual não pode ser satisfeito nem rechaçado. Esses
desnivelamentos, somados a discordâncias do projeto de sucessão em relação às conquistas e
determinações individuais, produzem tensões entre adultos e herdeiros, pela satisfação,
superação ou repúdio da herança.
Freqüentemente, crianças e jovens acabam introduzindo rupturas no processo
histórico-social instalado, cuja conseqüência é a desestabilização do mundo instituído. Ao
interromper o movimento de continuidade projetado pelos adultos, os sujeitos por eles
gerados desvelam tanto a impossibilidade do projeto concebido, quanto a falência da estrutura
social gestada, que não consegue solucionar suas contradições. A sociedade assim organizada
mostra-se incoerente, que alimenta os agentes da própria destruição. Se, por um lado, a
continuidade desse arranjo social é impossível, em vista de que a degeneração o faz
insustentável, por outro, o regresso ao tempo mítico mostra-se igualmente irrealizável. Isso
porque a corrupção, em que também estão imersas as crianças, acaba por solapar a infância,
impedindo-a de mediar o reingresso humano na circunstância perdida.......................................
79
3 RITOS DE PASSAGEM
A atribuição de um valor especial à idade para a classificação dos sujeitos parece ser
um dado universal. A idade constitui uma condição natural que adquire, nos diferentes grupos
sociais, uma conotação cultural, desempenhando determinados significados de acordo com os
papéis assumidos pelos indivíduos. Em qualquer sociedade, a vida individual consiste em
passar sucessivamente de uma idade a outra e de um papel a outro.
Gennep (1978) observa que toda alteração na situação de um indivíduo implica ações e
reações entre o profano e o sagrado, as quais devem ser regulamentadas e vigiadas, a fim de
que a sociedade não sofra nenhum constrangimento ou dano. Todavia, entre o mundo sagrado
e o mundo profano existe tamanha incompatibilidade, que a passagem de um ao outro o
pode ser feita sem a intermediação do rito.
Embora o rito tenha como objetivo aparente reforçar a ligação do homem com o
sagrado, Durkheim (1996) sublinha que a sua função real consiste em reforçar os vínculos que
unem o indivíduo à sociedade de que é membro, estabelecendo um estado de máxima coesão
social, de modo que a comunhão das consciências eleva a vitalidade social. Nesse sentido,
segundo Gil (1994, p. 346), o rito constitui “um instrumento para reinvestir de sentido o
mundo constituído e cristalizado da experiência social”. Através de tal fenômeno, a sociedade
reimpõe-se as estruturas normativas vigentes.
Nesse contexto, os ritos de passagem são manifestações culturais que se destinam a
marcar os momentos decisivos do ciclo vital de cada um tais como o nascimento, o
80
aniversário, o casamento e a morte –, encaminhando o indivíduo para o cumprimento das
disposições sociais, as quais, revestidas de autoridade pela intervenção do sagrado, requerem
o estatuto de realidade.
Os processos sociais nomeados como rituais de passagem caracterizam uma zona
marginal na qual os iniciados ficam isolados da marcação linear temporal da sociedade,
vivendo um estado social diferenciado. Tais ritos são marcados por cerimônias de separação e
de agregação, que criam, no seu interstício, um estado de liminaridade.
Mello (1987, p. 308) entende que o rito de passagem, especificamente, “está ligado à
atribuição de nova identidade a um indivíduo ou a vários por conta de alterações biológicas ou
outras”. Em geral, tais ritos supõem certas provações que deixam marcas indeléveis no
sujeito. A partir dessa vivência e da transformação da personalidade que dela decorre, altera-
se a posição social atribuída ao indivíduo, de quem passa a ser exigida a atuação em um novo
papel.
O rito de passagem da infância à vida adulta, em particular, possibilita o alcance de
maior visibilidade social, a qual é autorizada pelo exercício de um papel até então vetado.
Contudo, além de fazer passar o indivíduo do estatuto “infantil” ao estatuto “adulto”, esse ato
ritual tem funções não exclusivamente sociais, pois pretende o efeito de fazer crescer (no
sentido biológico) o sujeito que a ele é submetido.
Tal rito confere, ainda, ao iniciado um traço de humanidade que o distingue dos
animais, separando-o, em definitivo, do estado de natureza. Nesse sentido, posteriormente à
separação com relação ao mundo anterior à sociedade humana, ou ainda, ao mundo feminino
e infantil, dá-se a agregação à comunidade sexual e à família. Cumprindo as etapas de
separação, iniciação e agregação itinerário que, aliás, coincide com a aventura mítica –, o
sujeito, antes objeto de indiferença ou de um distraído afeto, transforma-se em membro
efetivo e modelar do seu grupo, autorizado a realizar determinados feitos e a acessar certas
81
posições que lhe rendem o respeito dos seus. Além disso, a partir de então, é permitido e
esperado que o sujeito admitido como adulto possa constituir seu próprio agrupamento
familiar, dando continuidade à organização social estabelecida.
Entretanto, no universo simoniano, a passagem para a condição adulta enseja,
freqüentemente, tanto a aquisição da violência, quanto a bestialização
9
pela ruptura com o
telurismo. Nesse contexto, contrariadas as expectativas do grupo, ocorrem descontinuidades
no processo histórico, cuja maior conseqüência é a exclusão social do iniciado, que atravessa
a fronteira para a invisibilidade social.
Nem sempre associados à idade cronológica, os ritos de passagem guardam, em geral,
íntima ligação com a idéia de morte e ressurreição, pois, através deles, morre o sujeito, cuja
condição anterior é definitivamente abandonada e, em seu lugar, nasce um novo indivíduo.
Materializa-se, assim, a passagem do ser humano a um outro estado, marcando, de certo
modo, a idade social do indivíduo, conforme a posição então adquirida.
Para Elkin (1968), a idade, o sexo, a religião e a nacionalidade constituem a
localização do indivíduo em determinada estrutura da sociedade. A cada posição social
corresponde um comportamento esperado, um papel, o qual não somente implica o
reconhecimento da expectativa socialmente nutrida, mas também o cultivo de sentimentos e
valores apropriados. Além disso, a cooperação entre os indivíduos implica o
compartilhamento de símbolos comuns (conceitos, gestos e objetos) que orientam um
“consenso de papel”, possibilitando que cada um não apenas saiba como se portar, mas qual
comportamento esperar do outro.
Nesses termos, a disposição da criança em cooperar com o adulto depende de um
9
Considerando, especificamente, a construção identitária gaúcha, é possível entender que a animalização do
homem rio-grandense é socialmente bem-vista e desejada, por ensejar a identidade e a aliança com a natureza,
própria da apreensão telúrica do mundo. A profunda identificação entre o gaúcho e o mundo natural pode ser
exemplarmente constatada na imagem do “centauro dos pampas”, que legitima através da tradição a unidade
indissolúvel entre o gaúcho e o elemento da natureza. A bestialização, por sua vez, transforma o homem em
“bicho mau”, o qual, corrompido pelo materialismo e pelo uso absurdo da violência, promove o desequilíbrio
nas relações com a natureza e, desse modo, a suspensão do vínculo telúrico.
82
processo de socialização, a partir do qual ela se torna um membro funcional do grupo,
reconhecendo e localizando as posições, agindo e desempenhando os papéis que lhe são
apropriados. As expectativas de sua posição de idade são aprendidas, essencialmente, através
do comportamento de outras pessoas, que dirigem aos pequenos distinções para as
expectativas do presente, do passado e do futuro, bem como lhes sugerem ações conforme o
esperado. O crescimento supõe, assim, o aprendizado de novas funções, marcado por ritos de
passagem, a partir da adaptação ou do abandono dos velhos papéis, conforme preconizar o
diálogo instaurado socialmente.
É, portanto, através da socialização que a criança separa-se da natureza e ingressa na
cultura. A socialização constitui o processo pelo qual alguém aprende os modos de
determinada sociedade, a fim de poder atuar dentro dela, pois o indivíduo não é considerado
membro propriamente dito, “completo”, desde o nascimento. Elkin (1968) acredita que a
criança não aprende os modos do grupo pelo encontro com a cultura de forma abstrata, mas
por intermédio de outras pessoas que lhe transmitem os padrões da sociedade. São, pois, as
reações dos outros que servem de modelo à criança e a encorajam ou não a determinadas
atitudes, as quais, quando reiteradas, podem transformar-se em estruturantes da personalidade.
As relações de igualdade e de autoridade, que norteiam o convívio familiar, estabelecem a
mediação entre a criança e a sociedade, levando à inclusão social infantil. Cabe aos membros
familiares, um imprescindível papel na intermediação do processo de socialização. Segundo
Gennep (1978, p. 57), tal papel consiste na constituição de vínculos que viabilizem as
mudanças de estado sem abalos sociais violentos, nem paradas bruscas na vida individual e
coletiva. Nesse sentido, interações empobrecidas do grupo social com a criança podem
conduzir à frustração da expectativa socialmente formulada e à suspensão da atitude
cooperativa entre as gerações, inibindo a continuidade histórico-social.
Por outro lado, a atuação mal-sucedida dos adultos na socialização da infância tem
83
como conseqüência a descontinuidade, introduzida na sociedade adulta pelas crianças. Como
argumenta Elkin (1968, p. 15), “a socialização não é estritamente um processo de mão única”,
de modo que o ingresso de um novo membro numa família ou em qualquer unidade modifica
o grupo. Ao mesmo tempo em que o universo adulto intervém no desenvolvimento da criança
e na própria duração da infância, ele também sofre os abalos conseqüentes do êxito ou do
insucesso do desempenho familiar ao longo da inserção sócio-cultural infantil.
3.1 A transição masculina da infância à vida adulta
Seja por priorizar a perspectiva de Blau Nunes, seja por dedicar importância periférica
à brincadeira e ao desenvolvimento pueris, a narrativa simoniana não permite entrever
estágios gradativos entre a infância e a condição adulta. A primeira é, via de regra,
abandonada de forma drástica e repentina, inexistindo a possibilidade de recuos. Configura-
se, assim, uma sociedade com poucos degraus etários, em que morre a criança para que possa
emergir o adulto, sem fases intermediárias. Tendo em vista a vivência inconclusa do processo
de socialização que o sentido de pertencimento à cultura ainda não está plenamente
consolidado –, as crianças experimentam violentos ritos de passagem para a vida adulta. Tal
violência concretiza-se na obrigatoriedade e na precocidade com que se realiza a transição,
repetindo-se na circunstância e na atitude dos adultos que a engendram.
No conto “Penar de velhos”, por exemplo, o exercício autoritário do poder paterno
impele Binga, menino de doze anos, a atravessar a fronteira para a vida adulta, interrompendo
bruscamente a exploração lúdica do mundo e das próprias habilidades. A iniciação do “guri
levado da casqueira” acontece com a caça às avestruzes, desafio ou provação que transforma
definitivamente o menino, porque revela sua “alminha de gaúcho”. Nesse caso, Binga imita
com sucesso uma atividade característica dos adultos daquele grupo social, ou seja, o trabalho
com o gado.
84
Porém, ao invés de obter a aprovação familiar pela demonstração de valores e
destrezas socialmente demandados como traços identitários do grupo no qual está inserido, a
vitória de Binga é anulada pelo dano material ocasionado, qual seja, a morte do cavalo
pertencente ao pai. Desse modo, a iniciação consuma-se desastrosamente, com a fuga à
autoridade estabelecida e a conseqüente marginalização social de Binga, que teve “um fim
que nunca se soube”. O ritual iniciático produz, assim, o efeito contrário ao desejado, que,
ao invés de mediar a condução definitiva do menino ao convívio social, resulta no banimento
voluntário da criança.
Observa-se que o roteiro de iniciação de Binga à vida adulta, embora efetivamente
cumprido, dá-se de modo solitário (enquanto os adultos do grupo tiram a sesta) e, portanto,
não obtém o reconhecimento social. Para ser reconhecida, a vitória do menino sobre a
avestruz necessitava ter-se realizado publicamente, em vista de que a participação da
sociedade é condição para a legitimidade do procedimento ritual iniciático. O pai de Binga,
desconhecendo o caminho das provas percorrido pelo filho no enfrentamento e na superação
do conflito, interpreta sua atitude como transgressão. Por isso, dirige ao menino uma sanção
correspondente ao prejuízo material e ao constrangimento social provocado pela apropriação
indevida do cavalo, atitude que representou um insulto à autoridade instituída.
Se, por um lado, o ato iniciático não obteve valor social, visto que não foi presenciado
pela comunidade adulta, por outro, não pode ser negado por Binga, que o vivenciou.
Desencadeia-se, pois, uma ruptura inconciliável entre a disposição individual e o arranjo
social. A quebra da aliança entre o sujeito e a coletividade culmina com o exercício de uma
real transgressão, cujos efeitos trazem abalos ao plano material pela conseqüente
degradação da propriedade familiar e, sobretudo, ao plano afetivo e social, pela frustração
do projeto sucessório.
Bourdieu (1997, p. 10-11) entende que a identificação do filho com o pai e seu projeto
85
constitui condição necessária, mas não suficiente, à transmissão bem-sucedida da herança
paterna, essencialmente entendida como “a tendência a perseverar no ser e a perpetuar a
posição social familiar”. No processo de aceitação e apropriação da herança, intervêm
discordâncias entre as disposições do herdeiro e o destino encerrado em sua herança e, ainda,
as contradições existentes no próprio projeto paterno.
Nesse sentido, ao transformar-se em desertor, Binga converte-se em “fracassado”
social, pois falha no objetivo que lhe estava socialmente destinado pelo projeto inscrito na
trajetória da família e no futuro que ela implicava. O procedimento de rebeldia constitui a
negação do projeto parental, uma vez que conduz ao avesso do estilo de vida familiar e à
construção de uma imagem social negativa. Ao recusar a herança, Binga anula,
retrospectivamente, todo o procedimento paterno, materializado na herança rejeitada.
No conto “O anjo da vitória”, o menino Blau, então com dez anos, experimenta
igualmente uma brusca passagem para a vida adulta. A imersão no contexto da guerra,
desencadeada pelos adultos, conduz à perda da inocência, promovendo sua inevitável
transição. O contato com a crueza da morte física e simbólica, trazendo como conseqüência a
desproteção e o abandono do guri, constitui a provação que o transforma definitivamente em
gaúcho solitário, modificando de forma traumática sua disposição inicial. O “não saber” que
caracteriza a atitude primeira de ingenuidade é substituído pela plena consciência das
desgraças e contradições humanas, a qual é inerente à condição adulta.
Todavia, contrariamente ao que sucede a Binga, Blau Nunes insere-se na continuidade
do processo histórico-social encaminhado pelos adultos que o precederam, posto que
prossegue nos ofícios da guerra e de peão. Ao transformar-se em legítimo e íntegro herdeiro
dos valores e habilidades preconizados pela tradição, Blau Nunes passa a constituir modelo a
ser imitado pela geração seguinte.
Assim como o ingresso na vida adulta através da guerra é considerado socialmente
86
produtivo e sadio, o rito de passagem da vida para a morte também deve acontecer num
campo de batalha. Tal como no conto “Contrabandista”, em que a morte do velho Jango
Jorge, durante um confronto com a guarda, eleva-o à categoria de herói, em “Juca Guerra”, o
depoimento de Blau, referindo-se à personagem que dá nome ao conto, reitera essa concepção
de honra e de virilidade do adulto:
Veja vancê!... um gaúcho daqueles... destorcido, bonzão!
Aquilo, era pra ficar na coxilha, picado de espada, rachado de lançaços, mas não pra
morrer como foi, aperreado em cima da cama, o corpo besuntado de unturas e a
garganta entupida de melados e pozinhos dos doutores!
Pobre de mim!... ‘stou vendo que hei de morrer do mesmo jeito, como um pisa-flores
da cidade, como bicho de galinheiro!... (LOPES NETO, 2003, p. 157-158).
A impotência, mesmo quando imposta pela doença, é inaceitável e degradante ao herói
gaúcho, cujos atributos essenciais são tanto a valentia, que o torna capaz de domar, isto é, de
impor a inação ao outro, como a liberdade de ação e a virilidade, entendida como pujança
vital e sexual. A respeito disso, Moreira (1982, p. 46-47) assinala que, ao herói, o podem
ser atribuídas fraquezas ou debilidades, de modo que a vista, o ouvido, o faro e até o gosto
sinais da exuberância física do homem –, devem conservar-se em sua plenitude, inclusive na
velhice.
Nessa perspectiva, a violência parece exercer uma mediação socialmente aceitável e
até requerida não apenas nos ritos de passagem da infância para a condição adulta, mas
também da vida para a morte, marcando com valor o início e o fim da vida social. A atividade
guerreira adquire, nesse espaço, um significado de festividade coletiva e coesiva, cumprindo
uma função cerimonial e imprimindo publicamente a marca da validade e da legitimidade aos
momentos essenciais da trajetória individual. No entanto, essa existência precisa iniciar e
findar prematuramente, visto que o sujeito é capaz de sobreviver com independência e
honra, e sustentar a instabilidade que caracteriza a sociedade gaúcha, enquanto for fisicamente
forte (jovem adulto). Logo, ao verdadeiro herói cabe manter-se eternamente jovial, firme e
saudável, invencível até mesmo ao tempo.
87
Conforme aponta Zilberman (1992, p.55-56), as práticas violentas permearam a
constituição política e identitária rio-grandense, de maneira que, em Contos gauchescos,
[...] avulta uma sociedade marcada pela violência, originária dos crimes vinculados à
preservação da honra pessoal ou da manutenção de um estado de guerra, o que
conserva as personagens em constante conflito armado. A violência não é, pois,
atributo da sociedade civil, mas efeito da permanente condição militar experimentada
pela Província. Esta circunstância integra-se à personalidade do rio-grandense e, se o
faz um homem violento, garante seu espírito guerreiro, a disponibilidade para a luta e
a propalada coragem.
Nesse contexto, inexistindo uma autoridade legal que regulamente o funcionamento do
grupo, é imprescindível, à sobrevivência pessoal, a posse de todos os atributos guerreiros
vinculados à coragem, à valentia e ao mando. Embora pertença ao passado, ou justamente por
esse motivo, tal mundo ainda sintetiza os valores ideais, que se chocam com o materialismo
vigente no tempo da narração de Blau.
Demonstrando o profundo distanciamento do mito, os homens do presente
empreendem a busca do tempo perdido, perfeito e unitário. Para tanto, reenviam às gerações
ulteriores a responsabilidade pela recuperação do passado, cujos valores continuam a balizar a
aprovação social e a legitimar o uso de formas violentas, seja para a transformação de
meninos em homens, seja para o desfecho glorioso da vida.
Em vista disso, a manutenção das tradições e valores socialmente válidos preconiza
que a iniciação da vida social, exemplarmente concretizada em meio à batalha, cumpre-se
proficuamente quando alcança endurecer os sujeitos, amadurecendo-os através do sofrimento
e preparando-os para a aspereza da vida. Essa, por sua vez, deve findar, preferencialmente, da
mesma forma como iniciou. A trajetória da existência, desenvolvida conforme os padrões
sociais desejáveis, circunscreve, pois, um ciclo de vida engajado na continuidade histórica,
que pode ser exemplificado, respectivamente, em seu princípio e fim, pelo menino Blau, do
conto “O anjo da vitória”, e pelo velho Jango Jorge, de “Contrabandista”.
88
Estrutura-se, desse modo, um universo organizado e coeso, que se pretende fechado e
auto-suficiente. Daí advém a profunda antipatia nutrida para com os estrangeiros que
adentram esse mundo. Castelhanos, reinóis”, “lamões” e “ilhéus” são considerados
desprezíveis pela sociedade gaúcha, uma vez que seus valores e comportamentos divergem do
padrão social validado pela tradição. Além disso, os elementos estranhos à sociedade assim
organizada constituem, potencialmente, uma ameaça ao processo de continuidade histórico-
social instituído, que são portadores de usos e padrões comportamentais diferenciados, os
quais podem provocar fraturas na tradição.
No mundo simoniano, como acentua Arendt (2004a, p. 128), os papéis e posições
sociais são claramente definidos, figurando “os patrões e os peões, os bons e os maus, os
homens e as mulheres, os amigos (desde o cavalo, até Bento Gonçalves, por exemplo) e os
inimigos (castelhanos, portugueses, paulistas, entre outros)”. A representação da sociedade
como uma ordem dicotômica, onde cada elemento encontra seu lugar e seu papel, converge
para a configuração de uma identidade coletiva e implica, segundo o autor (2004 a), a
delimitação de um território e de relações com o meio circundante e com os outros, aos quais
cabe a exclusão.
A configuração desse universo, coerente em sua particularidade, realiza a
manifestação do regional e do regionalismo na obra simoniana. Como argumenta Chaves
(2001, p. 15),
os Contos gauchescos e as Lendas do Sul ainda são uma expressão do regional e
traduzem uma ideologia regionalista, porque delineiam intencionalmente um espaço
físico particularizado dentro duma prosa mimética; mas, sobretudo, porque nele
representam um mundo e um código social que se encerram em si mesmos. Se
obtivermos uma visão panorâmica, constatar-se-á que na divisão maniqueísta deste
mundo social os “de fora” e os “de dentro”, erguendo uma barreira quase
intransponível entre o território privilegiado do pampa e o que está situado além de
suas fronteiras, distinguindo o gaúcho de todos os outros, inimigos ou forasteiros.
Estes últimos sempre são mantidos na posição de elementos estranhos e nunca
totalmente assimilados.
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Assim como na tradição popular, são recorrentes os episódios de Contos gauchescos
em que o desempenho dos estrangeiros é ridicularizado e seus costumes desprestigiados. É o
caso, por exemplo, do castelhano “maula”, personagem do conto Deve um queijo”, e do
general Barbacena, de “O anjo da vitória”, o qual, “por andar um dia a cavalo tinha que
tomar banhos de salmoura e esfregar as assaduras com sebo...” (LOPES NETO, 2000, p. 115).
O comportamento de rejeição endereçado aos que provêm do exterior cuja imagem
está, com freqüência, associada à urbanidade –, marca com ênfase a diferença distintiva do
grupo circunscrito, acabando por reforçar seus laços identitários e sua coesão interna.
Evidencia-se, assim, no posicionamento de Blau Nunes, a pretensa superioridade cultural sul-
rio-grandense, capaz de sobrepujar, seja na força física, seja no valor moral, os representantes
de culturas alheias, repelindo tais influências com uma espontaneidade naturalizada. De fato,
como observa Chaves (2001, p. 17), formula-se a idéia “regionalista” de uma raça gaúcha,
viril e perfeita, auto-suficiente no contraste com o elemento externo. A exaltação do tipo
humano considerado ideal, o gaúcho-herói, implica confrontá-lo com o seu contrário, o
trabalhador agrícola ou comerciante, o estrangeiro ou o gaúcho citadino. Nesse sentido, uma
das formas de manifestação do regionalismo é a oposição campo-cidade, a qual, conforme
Chiappini (1978, p. 37), marca não apenas uma oposição espacial, mas, sobretudo, temporal.
O caso mais ilustrativo do conflito entre o grupo e o agente estranho talvez seja o que
se vê no conto “Melancia-Coco Verde”. O ilhéu pretendente ao casamento com sia Talapa não
se envergonha de ser um cavaleiro inábil, ignorando o desprestígio social de que se torna alvo,
em decorrência de tal condição. O moço também não cultiva os hábitos de alimentação do
grupo de ingresso, marcando, assim, sua desvinculação a ele, uma vez que as escolhas
alimentares e o próprio ato de comer são modos de assinalar a distinção ou o pertencimento a
determinado espaço sócio-cultural. Moreira (1982, p. 48) assinala que o atributo indispensável
ao herói, a saúde, é freqüentemente atestado pela alimentação, de maneira que comer
90
churrasco e beber chimarrão, por exemplo, representam a natureza forte do sujeito e a sua
adesão à moral do gaúcho.
A saúde do herói, fundamental na consolidação do “tipo forte” é, segundo a autora
(1982), atestada, também, pelos trajes e, sobretudo, pela resistência física do homem. Esta é
exercida nas lutas e nas exigentes tarefas da estância, das quais o citadino não participa. Nesse
sentido, trocar o cavalo pela carreta sinaliza a fraqueza do ilhéu, também evidenciada pelo seu
trabalho, o comércio, e pelo seu espaço, o urbano, já que o rapaz possui “uma casa de negócio
na Vila”.
Como observa Moreira (1982), os elementos exteriores, principalmente ligados ao
vestuário, à alimentação e ao meio de transporte, podem ser interpretados como reflexos da
integridade física e moral do homem, e como sintoma de sua resistência. Além disso, a autora
afirma (1982, p. 108) que “o telurismo, sendo o atributo básico do herói, determina a
configuração do anti-herói, entendido como o elemento não vinculado à terra”. Ora, o ilhéu
não manifesta qualquer desejo de ajustar-se àquele grupo, distanciando-se ainda mais dele por
sua insolência. Na perspectiva de Blau Nunes, tudo o que era “do bom e do melhor, para o
ilhéu não valia nem um sabugo!” (LOPES NETO, 2000, p.105), de modo que o
comportamento depreciativo dirigido pelo estranho ao grupo de ingresso autoriza a
reciprocidade do sentimento de rechaço.
À personagem Costinha, ao contrário, cabe a aprovação social e o amor coerente de sia
Talapa, uma vez que o jovem compartilha com a moça a mesma origem sócio-cultural,
constituindo um genuíno herdeiro dos valores e hábitos daquele grupo e, portanto,
verdadeiramente capacitado a desposar a jovem. As condições de Costinha para o casamento
são reiteradas pela sua iniciação gloriosa no campo de batalha, momento em que o rapaz
assume a postura guerreira que lhe foi legada, mesmo conhecendo que a sua ausência
significa a possibilidade de perder a mão da moça para o ilhéu. O narrador, representante do
91
grupo sócio-cultural, interpreta a atitude de Costinha da seguinte maneira: “Filho de tigre é
pintado!... Diante do dever o moço engoliu a tristeza, e mesmo não quis se desmoralizar,
desertando justamente naquela hora de peleia” (LOPES NETO, 2000, p. 109). O filho do
Costa carrega no próprio nome, diminutivo da denominação paterna, o legado recebido. Mas a
herança doada ao filho pelo velho Costa, que foi “alferes dos dragões do Rio Pardo”, estende-
se também à potencialidade guerreira. Em sua atuação estratégica e corajosa, Costinha revela-
se a reedição da figura paterna e retorna de sua incursão na guerra portando a marca da sua
legitimidade perante o grupo social. O rito de iniciação na guerra autoriza o jovem a enfrentar
o pai da moça e desposá-la.
Observa-se, entretanto, que, contrariando a suposta superioridade natural do tipo
humano rio-grandense, a corrupção material – perpetrada, nesse caso, pelo pai de sia Talapa -,
expõe a coletividade, de forma inescrupulosa, a rupturas na trajetória de continuidade
histórico-social. Tanto a admissão do ilhéu ao grupo a que pertence a jovem, quanto a saída
da jovem do seu grupo de pertencimento, para ingressar no universo sócio-cultural do noivo,
são indesejáveis ao processo de sucessão instalado. Por um lado, o estrangeiro não iniciado na
violência da guerra está impossibilitado de assumir o papel que lhe seria outorgado pelo
casamento, porque não dispõe da força, dos valores e das habilidades indispensáveis à
sobrevivência e à proteção familiar nesse espaço. Por outro, na opinião de Blau, é lamentável
lançar para fora do grupo “uma brasileira mimosa” como sia Talapa, legando-a a quem,
embora possuidor de bens materiais, mostra-se incapaz de honrá-la.
Nesse sentido, a ganância e a mesquinharia, acarretadas pelo processo civilizatório,
mobilizam não apenas o rompimento da aliança humana com a natureza, a que se assiste em
“O boi velho”, mas promovem, igualmente, a ruptura do indivíduo com o sentimento familiar
e com a comunidade, pela sobreposição dos interesses pessoais ao projeto coletivo. Como
92
conseqüência mais séria, a deterioração do homem acentua o distanciamento entre a condição
humana e o tempo sagrado, contrariando de forma irredutível a tradição constituída mito.
A degradação da circunstância tica, advinda da impossibilidade absoluta de
conciliação entre os planos sagrado e profano, corresponde, por sua vez, ao ingresso humano
no tempo histórico e problemático, em que, conforme assinala Chaves (2001), os roteiros
iniciáticos passam a funcionar em uma dimensão psicológica, deixando de cumprir a função
transcendental de renovação do tempo mítico, destruído. Nesses termos, é lícito entender
que a agregação social se dá, agora, não mais na harmonização entre a ordem mítica e a
ordem humana, mas na aceitação do mundo humano em sua ordenação vigente. Assim
procedendo, o iniciado sela em definitivo o seu pertencimento ao mundo dos homens.
3.2 A iniciação feminina na vida adulta
A condição sexual, assim como a idade, constitui um dado natural que adquire, nos
diversos grupos sociais, significados culturais singulares. A distinção de gênero tem
especializado, ao longo do tempo, posições e papéis sociais conforme o sexo, de modo que o
processo de inclusão das meninas na sociedade adulta também obedece a padrões divergentes
dos meninos.
A diferenciação entre o masculino e o feminino é problematizada com recorrência no
universo simoniano, adquirindo uma funcionalidade simbólica que se torna fundamental para
a compreensão do mundo representado. Interditada na esfera daão, a qual se passa em uma
sociedade machista, a figura feminina freqüentemente toma a posição central nos conflitos
entre os homens, desencadeando a sua aniquilação e aproximando de maneira irredutível a
paixão e a morte.
Chaves (2001, p. 145) discute com profundidade o arquétipo feminino simoniano, o
qual se apresenta, segundo ele, a partir de uma dupla dimensão: sob o ponto de vista
93
sociológico, como a contradição do mundo social representado em Contos gauchescos; sob o
ponto de vista simbólico e literário, como a transfiguração em imagem, símbolo e metáfora da
apreensão intuitiva da realidade, do absurdo que é o homem e a humana condição. Nesse
sentido, o autor entende que
a sociedade machista, patriarcal e conservadora privilegiou o protótipo masculino,
sublimando em princípios e valores éticos aqueles atributos da coragem pessoal, da
valentia, da afirmação violenta da masculinidade. Ao fazê-lo, estabeleceu uma
unilateralidade ideológica que procura excluir a mulher da esfera da ação, uma vez
que ela é, de fato, encarada como um objeto das relações de posse. Mas justamente
esta perspectiva ideológica gera uma força igual e contrária, engendrando o seu
próprio câncer. A exclusão da mulher da esfera da ação corresponde a situá-la numa
área interdita e, portanto, a mitificá-la, pela aberração da ordem natural, fetichizando-
a. Por isto ela se torna “limite” do homem; por isto é inacessível e identificada ao
pecado, ao demoníaco; por isto, ainda, centraliza uma área de “desequilíbrio”, cuja
última conseqüência é a associação de sua figura com a destruição e a morte.
O signo do feminino, embora reservando a suas portadoras um lugar marginal nas
esferas social, política e econômica, encerra, em Contos gauchescos, uma identificação
inevitável com a força indomada e selvagem da vida primordial, que os homens, em todo o
seu poder, não podem subjugar. Assim, enquanto os meninos transformam-se em “bichos
maus”, as meninas, independentemente da sua posição social e dos seus valores,
metamorfoseiam-se em “bichos caborteiros” ou “precipício pros homens”.
Todavia, enquanto a bestialização da figura masculina é adquirida na passagem através
do tempo corruptor, na medida em que os meninos aprendem” a violência depredatória, a
animalização bestial da figura feminina é inerente à sua condição, constituindo um estigma
que engendra a destruição, contrariando, algumas vezes, a sua vontade e o seu
comportamento. Tal concepção pode ser ilustrada pela profusão de termos zoológicos com
que as mulheres são caracterizadas, bem como pela conclusão dirigida por Blau Nunes ao seu
interlocutor, no conto “O negro Bonifácio”: “Ah! Mulheres!... Estancieiras ou peonas, é tudo
a mesma cousa... tudo é bicho caborteiro... a mais santinha tem mais malícia que um sorro
velho!” (LOPES NETO, 2000, p. 39).
Nesse sentido, mesmo as mulheres virtuosas, que constituem a representação da
94
inocência e estão, aparentemente, distantes da maldade, tornam-se foco gerador da violência e
do desatino dos machos, pois, como argumenta Chaves (2001, p. 142), elas poderão até não
trazer em si mesmas esta animalidade selvagem, mas acionam invariavelmente a animalidade
masculina, deflagrando sua ação predatória.
Portanto, embora a mulher desencadeie a violência absurda dos machos, a quem não
está acessível o conhecimento e o controle do mundo feminino, não cabe a ela a prática da
violência como forma de iniciação no mundo adulto, pois o ofício da guerra é atribuição
masculina, assim como a proteção e o sustento familiar. Nessa perspectiva, as mulheres que
perpetram atos violentos contra o homem, sejam eles físicos ou morais, representam o
descontrole da potência vital e a fuga aos padrões sociais e, por isso, não constituem modelos
de comportamento. Esse é o caso de Rosa, personagem do conto Os cabelos da china”, que,
ao prostituir-se, fere a honra paterna; de Lalica, do conto “O jogo do osso”, que, vendida pelo
marido, despreza-o, entregando-se facilmente a outro; e de Tudinha, deO negro Bonifácio”,
a qual, apesar de não ser casada, manteve um relacionamento com o negro, cujo cadáver
mutila. Praticada pelas mulheres, a violência transforma-se em selvageria e acentua a
marginalidade do sujeito feminino que, nesse procedimento, desumaniza-se. Em todos os
casos, a violência do homem foi desencadeada por um atentado da mulher contra a família,
através do adultério.
O cumprimento das disposições sociais e, em última instância, a garantia de
pertencimento à comunidade humana determinam que as meninas passem da guarda do pai à
guarda do marido. É, precisamente, essa passagem que coincide com o seu ingresso na vida
adulta, inexistindo momentos intermediários. Nesse sentido, há um descompasso entre a idade
cronológica e a idade social da figura feminina, pois ela é considerada criança enquanto
inocente ou donzela, isto é, enquanto não iniciada na vida sexual.
Assim, o tratamento reservado à Maria Altina, no conto “No manantial”, à sia Talapa,
95
de “Melancia-Coco Verde”, e à filha de Jango Jorge, de “Contrabandista”, por exemplo,
demonstra a infantilização das moças em idade de casar, pois é somente com a consumação
da união conjugal que as meninas transformam-se em mulheres, atravessando a fronteira de
resguardo familiar que delimita a infância.
Ora, tal transição, a exemplo da passagem dos meninos a homens, também constitui
uma violência, dando-se repentina e precocemente, sem a possibilidade de ensaios e recuos,
uma vez que a preparação das moças para o casamento restringe-se à convivência com outras
mulheres e ao aprendizado dos afazeres domésticos. Ainda mais violenta se torna essa
passagem quando a união conjugal é imposta pelo pai, ocorrência que se em “Melancia-
Coco Verde” e “O ‘menininho’ do presépio”. A masculinidade e a paternidade conferem ao
pai o direito de dispor da filha para a obtenção de vantagens pessoais, podendo-se entender
que não haveria sanções sociais, caso a escolha paterna fosse considerada adequada pelo
grupo social.
Excetuando-se a menção à filha de Mariano, em “No manantial”, inexiste, nos relatos
de Blau, a individualização de meninas propriamente ditas (no sentido etário do termo), pois
estas aparecem no momento em que estão aptas ao casamento. Na trajetória da própria
Maria Altina, que protagoniza o citado conto, existe uma lacuna correspondente à infância, de
modo que a existência da personagem é inicialmente assinalada, mas a moça volta à cena
somente aos dezesseis anos, em idade de casar, isto é, no período de transitar para a adultez.
Tal percurso aproxima-se do processo de construção européia da noção social de
infância, descrito por Ariès. O autor (1981) observa que a diferenciação das meninas deu-se
de modo particular, pois foi posterior à distinção dos meninos. Nesse sentido, enquanto esses
gozavam de um status que os separava da comunidade de adultos, a iniciação das meninas
na adultez, através do casamento, continuava a ser precoce, que apenas cerca de um século
depois dos meninos a escola substituiu a aprendizagem feminina através da prática,
96
prolongando, desse modo, também a sua infância.
Nessa perspectiva, a ausência de figuras femininas infantis no espaço de Contos
gauchescos sinaliza a sua invisibilidade social. A infância feminina parece constituir um
momento de profundo resguardo, à semelhança de um estado de incubação, findo somente
com a puberdade física, quando a moça adquire alguma nitidez na sociedade, que lhe viabiliza
a obtenção de um marido. É, portanto, através dos seus atributos físicos que a jovem é
percebida. Conforme Moreira (1982, p. 47), a mulher gaúcha é, essencialmente, forte e sadia,
de modo que a importância dedicada às qualidades sicas das mulheres es ligada a sua
função sexual no grupo. A beleza sedutora viabiliza o cumprimento dessa função, ao mesmo
tempo em que anuncia a fertilidade feminina, a promessa de geração de herdeiros. A mulher
simoniana é, invariavelmente, caracterizada através dos encantos do seu corpo, às vezes,
associados à pureza de santa, outras vezes, às habilidades de moça “prendada”.
A descrição que Blau Nunes faz de Tudinha, em “O negro Bonifácio”, permite
perceber um ideal de beleza, formulado em comparação com elementos naturais e, ao mesmo
tempo, torna explícito o efeito do olhar e da fala da mulher sobre a imaginação masculina:
Alta e delgada, parecia assim um jerivá ainda novinho, quando balança a copa verde
tocada de leve por um vento pouco, da tarde. Tinha uns pés pequenos e as mãos mui
bem torneadas; cabelo cacheado, as sobrancelhas finas, nariz alinhado.
Mas o rebenqueador, o rebenqueador... eram os olhos!
Os olhos da Tudinha eram assim a modo olhos de veado-virá, assustado: pretos,
grandes, com luz dentro, tímidos e ao mesmo tempo haraganos... pareciam olhos que
estavam sempre ouvindo... ouvindo mais, que vendo....
Face cor de pêssego maduro; os dentes brancos e lustrosos como dente de cachorro
novo; e os lábios de morocha deviam ser macios como treval, doces como mirim,
frescos como polpa de guabiju...
E apesar de arisca, era foliona e embuçalava um cristão, pelo só falar, tão cativo...
No mais, buenaça, sem entono [...] (LOPES NETO, 2000, p. 32).
A imagem da moça deixa entrever uma noção de “belo” associada à delicadeza e à
jovialidade. A alusão ao seu “pé pequeno”, por sua vez, pode ensejar uma conotação ligada à
sexualidade, que essa parte do corpo da mulher é, freqüentemente, apontada como um
fetiche masculino de cunho erótico.
Os olhos de Tudinha, ao mesmo tempo tímidos e haraganos, condensam a imagem
97
feminina historicamente construída, evocando dois aspectos contraditórios: sua passividade
social – já que à mulher não cabe a iniciativa e a ação, mas a espera e a aceitação da investida
do homem; e a insubordinação que advém da sua natureza selvagem uma vez que o ser
feminino, como o animal arisco, esquiva-se da dominação.
Também sedutora é a imagem feminina construída por Blau Nunes a partir da visão de
Rosa, a filha de Juca Picumã, no conto “Os cabelos da china”:
Por Deus e um patacão!...
Era um chinocão de agalhas!... Seiúda, enquartada, de boas cores, olhos terneiros... e
com uma trança macota, ondeada, negra, lustrosa, que caía meio desfeita, pelas costas,
até o garrão!... (LOPES NETO, 2000, p. 97)
Nesse caso, o que causa arrebatamento ao olhar masculino é a vitalidade, a
generosidade das formas e a saúde física (as boas cores) da moça e, sobretudo, os longos
cabelos, relacionados ao vigor e à disponibilidade sexual.
Por outro lado, além dos atributos da sensualidade física feminina, as qualidades
morais que se depreendem da conduta da mulher também são critérios para a sua avaliação e
para a sua valorização ou depreciação. Nesses termos, o ideal feminino é essencialmente
controverso, pois se embasa no lúbrico potencial para a maternidade e, igualmente, na
inocência da virgindade. Assim como as condições para a procriação, as virtudes do espírito
permitem a constituição de um agrupamento familiar solidário com o projeto social, devendo,
por isso, ser consideradas na escolha da parceira. O tratamento reservado à moça, portanto,
deve estar em conformidade com sua condição moral: respeitoso, se a jovem for honrada;
aproveitador, se ela se prestar para “carniça de gaudérios”.
Em “No manantial”, Chicão ignora os valores morais de Altina, obtendo, por isso, o
desprezo da moça e frustrando suas tentativas de conquista. Blau Nunes descreve as
investidas desastrosas de Chicão, dizendo que
ele era um bruto, que olhava, queria a Maria Altina de carne e osso. Do mais
não se lhe dava; não queria saber se a menina era vergonhosa, ou trabalhadeira ou
prendada.
98
Ele olhava-lhe para as ancas, e os seios, e para a grossura dos braços; era mal
comparando – como um pastor no faro de uma guincha (LOPES NETO, 2000, p. 45).
Enquanto o furriel André conquista Maria Altina dando-lhe uma rosa, sinal de amor,
delicadeza e sensibilidade, Chicão presenteia a “cobiçada” com ovos de perdiz e ninhadas de
animais, elementos ligados à fertilidade e à procriação. Enquanto a rosa sinaliza a perfeição e
a transcendência do sentimento, os presentes de Chicão associam-se unicamente ao exercício
da função sexual. Para Chicão, cujo pai tinha filhos como um rato”, o relacionamento
amoroso reduz-se à vazão descontrolada do instinto sexual violento, comportamento que o
bestializa, distanciando-o, ao mesmo tempo, do seu objeto de desejo.
Envolto em repressões e tabus, o corpo feminino constitui o passaporte da mulher para
a vida social, possibilitando-lhe, quando belo/saudável, ser percebida e admitida no grupo de
adultos. Todavia, se a condição de pertencimento à sociedade adulta permite ao sujeito
masculino alcançar maior saliência no grupo social, através do desempenho de novos papéis,
o mesmo o sucede ao sexo feminino. Para as meninas, a participação na comunidade dos
adultos não constitui garantia de inclusão nos processos sociais, políticos e econômicos. Via
de regra, os sujeitos femininos, mesmo acessando um lugar entre os adultos, continuam
compondo um grupo à parte, nunca inteiramente assimilado pela esfera masculina que,
embora detentora do prestígio social, revela-se incapaz de exercer efetivo poder sobre as
mulheres. Como registra Chaves (2001, p. 143), o aparecimento da mulher como a desmedida
e a desordem reitera “a oposição essencial e intransponível entre o masculino e o feminino”.
Assim, no rito de passagem das meninas à vida adulta, a etapa de separação, embora
prolongada, não consegue efetivar a distinção com relação ao mundo irracional e inumano,
pois a bestialidade aparece como uma característica inalterável da figura feminina, que se
manifesta independentemente das suas atitudes e valores, estando amarrada à própria
feminilidade. Da mesma forma, a etapa de agregação à vida social está comprometida por tal
atributo que, geralmente, provoca a destruição do mundo em torno do sujeito feminino.
99
Contrariamente à ordenação masculina que legitima o funcionamento da sociedade
representada, a interdição social e histórica da mulher acaba por autorizar-lhe intervenções
decisivas no percurso socialmente projetado pelos homens e para os homens. A insuperável
associação entre o signo feminino e o caráter demoníaco destrutivo, expressa na bestialização
naturalizada da mulher, assinala, por sua vez, a impossibilidade da convivência sem conflitos
entre o masculino e o feminino, e acentua a depreciação social da figura feminina, portadora
da marca negativa.
O desprestígio social feminino pode explicar a freqüente preferência dos pais, na
sociedade rio-grandense, pelo nascimento de herdeiros machos. De fato, cabe aos meninos
levar adiante, a despeito da existência feminina, o movimento de continuidade histórica
projetado pela sociedade adulta patriarcal. O ser feminino representa uma força que atua
ameaçadoramente em sentido contrário, sustentando um permanente embate com o elemento
masculino e nunca plenamente assimilado aos processos sociais.
Nesse sentido, a iniciação das meninas na adultez leva a termo uma breve incursão
social, que transforma o casamento em um exercício de participação conveniente ao processo
histórico instaurado, através da possibilidade de geração de filhos, preferencialmente do sexo
masculino. Tal participação, contudo, não extrai o segmento feminino do interdito social, o
qual se estende ao exercício do papel materno.
Mesmo quando são focalizadas relações familiares em Contos gauchescos, as
aparições da figura materna são poucas e secundárias. Em “O Negro Bonifácio”, a ausência
do pai (que não assume explicitamente a paternidade) garante a sia Fermina maior
visibilidade, ao lado da filha Tudinha, enquanto que, em “Penar de velhos”, destaca-se o
sofrimento da “velhita”, que padece ante as conseqüências nefastas da atitude do marido para
100
com o pequeno Binga
10
. no conto “Contrabandista”, a mãe da noiva e mulher de Jango
Jorge é apenas referida como “a dona da casa”, “mocetona”, “bem parecida e mui
prazenteira” e, em No manantial”, é assinalada a morte da moça com quem Mariano tivera
Maria Altina.
Ao lado desses breves comparecimentos, vários relacionamentos de pais e filhos e,
principalmente, filhas moças, são centralizadas pela narrativa de Blau. Assim, entre Rosa e
Juca Picumã (“Os cabelos da china”), sia Talapa e Severo, Costinha e Costa lunanco
(“Melancia-Coco Verde”), nhã Velinda e Miguelão (“O ‘menininho’ do presépio”), e
inclusive entre Blau e seu padrinho, não se interpõe a figura materna.
Além de ser subtraída do seu papel materno, a e pode assumir como próprios os
ideais masculinos vigentes, atuando também em favor da manutenção da sociedade guerreira
e patriarcal. Esse é o caso da velhita nhã Tuca, que “parou patrulha” para conversar com o
imperador, no conto “Chasque do imperador”. Os filhos, netos e sobrinhos da senhora
apresentaram-se como voluntários, na Guerra do Paraguai, em memória ao esposo da velha, o
qual havia lutado na Guerra dos Farrapos. Comprometendo-se com o modelo masculino, a
mãe assume o lugar do marido morto e prefere o sacrifício dos seus à derrota na batalha, a
qual significa a dissolução dos ideais identitários. Nhã Tuca recomenda ao seu Caxias”:
“Vancê notícias minhas e bote a benção neles; e diga a eles que não deixem o imperador
perder a guerra... ainda que nenhum deles nunca mais me apareça!” (LOPES NETO, 2000, p.
86). O sofrimento pela perda dos homens e a aniquilação familiar são um preço que a figura
feminina paga sem contestação, pelo valor que representa a continuidade da tradição guerreira
e heróica. A mulher, nesse caso, alia-se à força masculina ao invés de contrapor-se a ela,
10
Observa-se que a mãe de Binga, “uma santa senhora”, parece ser o modelo materno de Contos gauchescos.
Aparentemente, ela não se envolve na educação do filho, relegando tal função ao autoritarismo da figura paterna,
de forma conveniente à manutenção do patriarcalismo. Assim, a mãe circunscreve seu território de atuação no
interior do espaço do lar, de modo que, enquanto se a tentativa de punição de Binga pelo pai, ela “andava
pra dentro, nos seus arranjos”. Além disso, a “velhita” sofre calada a perda do filho, não alardeia sua dor, mas
conserva sua bondade hospitaleira e permanece ao lado do marido, cuja violência foi responsável pela
desagregação familiar.
101
reiterando a sua própria exclusão social e política. Chiappini (1978, p. 185) entende que a
mulher gaúcha é o protótipo da “mãe espartana”, resignada a encaminhar seus filhos à luta e a
esperar por eles, vivos ou mortos. A masculinização da expectativa feminina, que passa a
compactuar com o sacrifício dos seus, transforma-se em cumprimento de um dever, mas não
assegura à mulher um lugar social entre os homens, reforçando sua condição de passividade.
Com a velhice, portanto, a intervenção feminina torna-se ainda mais improvável, uma vez que
a força opositora advinda da sua sexualidade neutraliza-se, e a mulher passa a assumir um
papel solidário ao projeto masculino.
O apagamento social feminino, anterior e posteriormente ao momento da transição
para a comunidade adulta, ou seja, tanto como menina, quanto como mãe, advém da
centralização da figura masculina na sociedade representada e garante a prevalência do cunho
autoritário nas relações familiares, que primam pela manutenção da ordem patriarcal. Nesse
sentido, a ternura, caracteristicamente exercida pela mãe e relegada ao universo feminino, não
tem presença garantida em tal conjuntura, tendo em vista o obscurecimento social do ser
feminino. Considerando que as demonstrações de sensibilidade estão vetadas aos homens,
predomina, nas relações familiares, o zelo excessivo da possessão masculina, que, muitas
vezes somado à brutalidade, promove o isolamento feminino, reconduzindo as filhas e
esposas a uma posição social pouco nítida. Assegura-se, desse modo, a exclusão da força
feminina, incognoscível e indomável, no processo histórico-social.
No percurso de transição de meninas a mulheres, a feminilidade permanece um
estrato periférico em relação ao elemento adulto e masculino. Nessa sociedade guerreira e
machista, a ascensão feminina a posições centrais somente pode se concretizar, portanto, na
usurpação do papel de agente da violência, pertencente ao homem, de modo que a superação
da invisibilidade social efetiva-se pela transgressão.
102
3.3 Infância, ludismo e sociedade
Para que o processo de socialização possa efetivamente conduzir a criança a um novo
papel na sociedade, sem exigir-lhe atitudes para as quais ela o tenha sido preparada, o
brinquedo infantil ocupa um lugar imprescindível. Assim como se com o adulto, não basta
à criança relacionar-se com o mundo real, com os objetos, uma vez que ela precisa dominar
imagens, símbolos e significados, os quais constituem mediadores indispensáveis entre o
sujeito e o seu espaço sócio-cultural. A cultura na qual a criança está inserida, mais do que
real, é composta de representações. Conseqüentemente, a infância consiste em um momento
de apropriação do mundo representado, que transita através de muitos canais. Dentre esses,
situa-se o brinquedo, objeto de desejo da criança e lugar de inscrição do desejo do adulto,
daquilo que o adulto deseja que a criança deseje. O brinquedo aparece, pois, como uma
manifestação da cultura colocada ao alcance da criança, por meio da qual ela constrói a si
mesma, interage com o mundo e ensaia uma nova função, de modo a assumi-la sem traumas
no tempo oportuno. O jogo constitui, em suma, um exercício que possibilita à criança,
progressivamente, explorar de forma lúdica o mundo e apropriar-se do papel a ela dirigido
pela expectativa social.
Em Contos gauchescos, poucas são as referências a brinquedos infantis, quase sempre
mal distintos do trabalho e de seus instrumentos. A meninice de Reduzo, junto aos filhos dos
Costas, em “Melancia-Coco Verde”, por exemplo, caracteriza-se pelas seguintes atividades:
ninhar, armar urupucas, botar as vacas, ir aos araçás e pegar mulitas. Até que, “taluditos”, o
velho foi “encostando” os meninos no serviço (LOPES NETO, 2000, p. 104). no conto “O
‘menininho’ do presépio”, enquanto a sala do presépio não é aberta e os adultos conversam,
acontecem algumas brincadeiras entre as crianças: “a gurizada corria na pega dos vaga-lumes,
rodando por cima dos cachorros ou fazendo provas de burlantins, nos cabeçalhos das carretas”
(LOPES NETO, 2000, p. 176). Como se vê, as atividades lúdicas infantis realizam-se, via de
103
regra, no aproveitamento dos elementos naturais, sendo precário o uso de artefatos
especificamente construídos para o manuseio dos pequenos.
Dentre os objetos oferecidos pelo adulto para o exercício lúdico infantil, sobressaem-
se o laço e os aperos, que também constituem instrumentos de trabalho, cuja exploração é
exclusiva do sexo masculino. Enquanto isso, as moças donzelas, embora ainda sejam
consideradas socialmente pertencentes ao universo infantil, encontram-se entregues à costura
e a outras “prendas”, correspondentes à ocupação das mulheres adultas. Observa-se que, no
espaço narrado, assim como a distinção de classe ainda não es clara, as distinções etárias
pouco diferenciam atividades, destinando-se apenas a marcar o lugar social ocupado pelo
sujeito. Contudo, a diferenciação de gênero é, desde cedo, culturalmente exercida, inclusive
através dos produtos destinados à apropriação lúdica. Tal delimitação social aponta para a
vinculação da brincadeira com a construção da identidade, pois torna-se natural e inevitável
que os representantes de cada sexo mostrem-se inclinados a determinadas habilidades e
dediquem-se a determinadas práticas. Logo, a oferta de elementos para a interação dos
pequenos documenta a forma como os adultos se colocam com relação ao mundo infantil,
materializando, ao mesmo tempo, um projeto adulto destinado às crianças.
É possível entender que os brinquedos não sejam realmente necessários no ambiente
sócio-cultural representado, pois quando as crianças participam da vida cotidiana do adulto,
não precisam “brincar de ser adultos”. Além disso, o período de treinamento para a vida
adulta, delimitado pela puerilidade, parece estar revestido de uma conotação lúdica, advinda
da idealização do trabalho no campo e na guerra, quase indistinto do lazer. Seja pela
indissociação, ainda requerida, entre o labor da estância e a ludicidade, seja pelo valor de que
é investida a precoce adesão aos traços culturais mais marcantes através da revelação da
“alminha de gaúcho” –, as crianças são, desde cedo, envolvidas no trabalho, e os adultos não
as encorajam ao brinquedo.
104
Todavia, a interação da criança com os outros e consigo mesma precisa encontrar no
brinquedo um objeto de inter-relação e de diálogo. O brinquedo constitui um elemento de
transição da subjetividade para a vida cotidiana, do mundo interno para o externo, que a
manipulação lúdica de objetos leva a criança a representar, a agir e a imaginar. O brincar da
criança não está somente ancorado no presente, mas também oportuniza a resolução de
conflitos do passado, ao mesmo tempo em que se projeta para o futuro, antecipando algumas
de suas possibilidades.
Na obra simoniana, a pouca oferta de equipamentos para o brincar infantil pode
sinalizar, nesse sentido, a desvalorização do aspecto lúdico nessa sociedade, bem como a
precariedade de bens simbólicos que possibilitem à criança reconstruir, através da fantasia,
seu universo e suas relações. Além disso, a passagem de um papel passivo para um papel
ativo é o mecanismo básico de muitas atividades lúdicas, de modo que, ao ser privada da
manipulação de objetos que imitam os reais, a criança não é incentivada a experimentar o
poder de organizar e controlar, através do brinquedo, o mundo que lhe é dado pelos adultos.
Nesse sentido, a atitude inovadora da criança perante o meio não é exercitada, e o poder
conserva-se nas mãos do homem adulto.
Apesar da escassez de artefatos para o ludismo infantil, a preponderante exploração
livre do espaço aberto e natural, tanto no exercício de habilidades corporais, quanto na
interação com animais, favorece a constituição de uma cultura infantil, concretizada na
formação de grupos infantis identificados pelas brincadeiras, interesses e vivências. Nesse
sentido, o usufruto do espaço alimenta o ludismo, de modo que essa vivência “real”,
caracterizadora da própria infância, ameniza, de certa forma, a ausência de produtos culturais
que a representariam. Em todo o caso, a precariedade do diálogo simbólico e de trocas
afetivas entre pais e filhos, no mundo simoniano, pode explicar, ao menos em parte, o
malogro da condição infantil, prematuramente levada a termo, e a destruição das suas
105
potencialidades de transformação.
No conto “O ‘menininho’ do presépio”, a organização do cenário natalino possibilita a
manifestação de outra função exercida pelo brinquedo, que o extrai da exclusividade infantil.
A representação da cena do nascimento do Menino aponta para a intervenção lúdica da
comunidade sobre alguns objetos, com o fim de compor o ambiente mágico celebrado, como
se no seguinte trecho: “fazia a modo uma ramada no alto de uns cerritos, e fingindo grotas
e sangões e umas reboleiras; havia esparramados uns alimais entre boizinhos e ovelhas de
brinquedo e outros enfeites” (LOPES NETO, 2000, p. 177). A transgressão do objeto, o qual
“faz-de-conta” que é outra coisa, é característica da atuação infantil sobre o espaço e os seus
elementos. Entretanto, nesse caso, os brinquedos não se destinam apenas às crianças, pois o
local, o momento, a forma como estão dispostos e, sobretudo, o que passam a representar,
transformam-nos em objetos de adoração, com os quais os adultos também interagem.
A representação sagrada faz surgir uma ordem de coisas mais elevada do que aquela
em que o grupo social habitualmente vive. A realização através da representação sagrada
conserva, segundo Huizinga (1999, p. 17), as características do exercício lúdico, uma vez que
é executada em um espaço circunscrito sob a forma de festa, dentro de um espírito de alegria
e liberdade, em cuja intenção é delimitado um universo próprio de valor temporário. Seus
efeitos, contudo, não cessam depois de acabado o momento, e sua influência benéfica
continua garantindo a segurança, a ordem e a prosperidade do grupo até a próxima época do
ritual sagrado. Assim, “aquele tal Menininho do Presépio ainda hoje é o figurão do oratório e
é o mesmíssimo presépio que, mais de cinqüenta anos, se arma sempre na estância, no
festo do Natal” (LOPES NETO, 2000, p. 178).
Função similar é atribuída ao brinquedo em “Penar de velhos”, no qual “todas as
cousas do Binga”, que até o episódio da fuga não mereciam lugar e atenção especiais, são
apropriadas pelos adultos como a representação do próprio Binga ausente e colocam-se a
106
serviço da homenagem e do culto, na esfera do sagrado.
Como se constata em Contos gauchescos, a ludicidade não é uma experiência
exclusiva da infância, constituindo um fenômeno cultural que diz respeito à sociedade como
um todo. Segundo Huizinga (1999), em todos os grupos humanos, a atividade lúdica não é
apenas produto, mas matriz da cultura, uma vez que o jogo desempenha uma função de
substrato cultural. Assim, a política, o comércio, o lucro, a indústria, a religião, a ciência, a
arte e o direito têm suas raízes no solo primitivo do jogo e nasceram enquanto tal.
Em Contos gauchescos, o espaço e o tempo primitivos do Rio Grande do Sul parecem
ser dotados de uma característica essencialmente lúdica. Tomar mate, correr eguada e até
guerrear são atos, antes de tudo, prazerosos, assumidos espontaneamente, livremente
realizados, segundo leis próprias que dão sentido à vida do homem rio-grandense. Contudo, o
ludismo requerido não extrai o homem do funcionamento espaço-temporal cotidiano, pois
pretende absorver a totalidade da circunstância humana. Desse modo, a atribuição de um
caráter lúdico absoluto àquele momento histórico mostra-se produto de uma idealização
posterior, que converteu o passado em circunstância mítica e generalizou o potencial lúdico
da vida na estância primitiva.
O jogo constitui, para Huizinga (1999), um intervalo no cotidiano, que se torna
elemento da própria vida, de modo a instaurar um mundo temporário dentro do habitual,
estabelecendo uma ordem específica e absoluta. A atividade lúdica implica uma evasão da
vida corrente para uma esfera interina de atuação, que possibilita ao sujeito e à sociedade a
satisfação de carências vitais e culturais, pois o significado do jogo está, freqüentemente,
associado a aspectos sagrados e sociais ou a ideais comunitários.
Huizinga (1999, p. 84-85) entende, ainda, que as variadas formas de jogo são dotadas
de uma capacidade criadora de cultura, devido ao fato de permitirem o desenvolvimento das
necessidades humanas inatas de ritmo, harmonia, mudança, alternância, contraste, clímax etc.
107
A esse sentido lúdico está ligado um espírito que almeja a honra, a dignidade, a superioridade
e a beleza. Todos os elementos da cultura procuram expressão em nobres formas lúdicas, de
modo que uma geração mais tardia virá a chamar de “heróica” a época que conheceu tais
aspirações.
À medida que uma civilização vai-se tornando mais complexa, conforme o autor
(1999), o velho solo cultural vai sendo gradualmente coberto por uma nova camada de idéias,
sistemas de pensamento e conhecimento, doutrinas de idéias e regulamentos, normas morais e
convenções, que vão perdendo sua relação direta com o jogo. Assim, no curso da evolução
das sociedades, o elemento lúdico tende a ser, progressivamente, dessacralizado e transferido,
em sua maior parte, para o domínio da infância. O restante pode cristalizar-se em diferentes
saberes: folclore, poesia, filosofia, e as diversas formas da vida jurídica e política, ocultando,
sob os fenômenos culturais, a ludicidade original. Nesse momento, o jogo ganha um plano
secundário, completamente divorciado do trabalho e do âmbito das “coisas sérias”, sendo
considerado, a partir de então, menos importante que elas. Por isso, reservam-se a ele tempos
e lugares restritos, de modo a garantir a sanidade do grupo social.
Distanciando-se da primitiva ludicidade, a prática do jogo mostra-se propensa a
especializar-se cada vez mais conforme o sexo e a faixa etária. Entre as crianças, a passagem
de objetos ritualísticos a brinquedos concretiza-se através da transgressão mediada pela
fantasia, que reelabora os elementos abandonados pelo mundo adulto, dos quais a infância se
torna depositária. Para os adultos, o jogo tende a viabilizar a vazão de certos instintos,
socialmente reprimidos na vida cotidiana, passando a constituir uma função cultural
reconhecida.
Em todos os jogos, a idéia de ganhar reside, primordialmente, na possibilidade de
poder exibir a outros os êxitos obtidos. Na vitória reside a prova da superioridade em um
determinado jogo. Contudo, Huizinga (1999, p. 58) observa que a prova dessa superioridade
108
propende a conferir ao vencedor uma aparência de superioridade em geral. Os frutos da
vitória podem ter um valor simbólico ou material, mas o vitorioso ganha alguma coisa mais
do que apenas o jogo enquanto tal. Ganha estima e conquista honrarias que passam
imediatamente do indivíduo para o grupo ao qual ele pertence. O desejo bem sucedido de ser
o melhor e o festejado dentre todos resulta em um aumento de poder do indivíduo ou do
grupo que ele representa.
No espaço regional narrado, observa-se que o fazer lúdico feminino e infantil está
destituído de valor social, realizando-se sem uma regularidade explícita, já que sua função não
é reconhecida socialmente. Os jogos para homens, dentre os quais as carreiras e o jogo do
osso, substituem, por sua vez, as antigas correrias bárbaras, e adquirem a importância vital de
desafios, intimamente ligados à demonstração da potência viril, da valentia e da habilidade.
Moreira (1982, p. 70) verifica que o fazer do homem gaúcho nos divertimentos reveste-se de
grande valor, pois, embora tenha um caráter de afastamento das atividades costumeiras, “para
o gaúcho a festa é oportunidade para demonstrar o fazer (entendido como o fazer bem), como
também para o encontro com a aventura, que, em muitas vezes, culmina com a violência”. A
festa e o divertimento aparecem, portanto, como uma provocação à exibição da perícia,
ensejando a aventura, seja através da violência física, seja através da luta pelas palavras, nas
trovas e na narração de causos. Por meio do jogo, o homem precisa afirmar-se como legítimo
representante do grupo social, fazendo-se, assim, digno do seu respeito. Em vista disso, a
erupção da agressividade destrutiva, relativamente contida na organização ordenada da
estância, encontra, no espaço do jogo, o cenário ideal.
A mesma autora (1982, p. 77-78) observa que, “se o passado representa o tempo bom,
primeiro, é natural que o gaúcho expresse seu desejo de reencontrá-lo, através da constante
invocação da luta”. Este fazer “corresponde à recriação do tempo sagrado, possibilitando não
só a contemporaneidade com o illud tempus, como a restituição ao gaúcho das forças vitais do
109
momento primeiro”, do que resulta a positividade do passado em oposição ao presente.
Huizinga (1999) acredita que, em toda a sociedade primitiva saudável, baseada na vida
de guerreiros, floresce um ideal de cavalaria e conduta cavalheiresca. De acordo com tal
concepção, o modelo viril de virtude está sempre ligado à convicção de que a honra, para ser
válida, deve ser publicamente reconhecida, sendo este reconhecimento, se necessário, imposto
pela força. Desse modo, a virtude e a honra, a nobreza e a glória encontram-se, desde o início,
inseridas numa forma de competição, isto é, de jogo.
Esses ideais mostram-se marcadamente presentes em “Duelo de Farrapos”
11
, conto em
que Blau Nunes reitera a dignidade e a lealdade como valores inalteráveis dos “guascas de
lei”, mesmo quando em luta num desafio mortal. O duelo entre o general Bento Gonçalves e
o coronel Onofre Pires é travado em absoluto segredo, apenas testemunhado pelo narrador,
ordenança do primeiro. Embora não esteja bem claro o motivo da luta, a mulher aparece como
a emissária da violência e do desassossego dos machos. Enviada pelos castelhanos como
chasque, função geralmente desempenhada por um homem, uma “vivaracha” provoca
estremecimentos na relação amigável do general e do coronel do exército farrapo.
Apesar do sigilo com relação à luta, a rivalidade entre os contendores é notória e,
seguramente, os efeitos da luta também são publicamente reconhecidos. No decorrer do
desafio, a honra de cada um é colocada à prova, e, nesse aspecto, ambos saem vitoriosos. Esse
resultado do jogo competitivo é reforçado pelo narrador, pois sinaliza o triunfo dos homens
em outro jogo: contra o ardil da mulher, que instala a rivalidade entre os amigos. Sobre a
emissária, Blau afirma que “ela não podia mudar o preceito de honra deles: brigavam, de
morte, mas como guascas de lei: leais, sempre!” (LOPES NESTO, 2000, p. 147). Nesse
sentido, ambos os lutadores equivalem-se em valor ético e moral, e o desfecho do duelo,
11
O conto “Duelo de Farrapos” é baseado em um fato histórico, qual seja o duelo de espada entre o general
Bento Gonçalves e o coronel Onofre Pires, durante a Guerra dos Farrapos. Blau Nunes narra o caso como
testemunha que, embora não conhecendo o “adentro dos segredos” dos “graúdos”, atribui à intervenção de uma
mulher a causa da desavença. Os chefes farroupilhas lutam com dignidade e lealdade, e a principal conseqüência
do duelo, a morte do coronel Onofre, é omitida pela narração.
110
dependente da habilidade e da força, é secundário para a narrativa. Por isso, a efetiva
conseqüência do jogo entre os homens, a morte de Onofre Pires, é omitida pelo narrador, ao
mesmo tempo em que ganha relevo a eterna disputa entre os sexos, manipulada por um
“sorro” castelhano, o qual envia uma mulher como mensageira. Esse embate entre o
masculino e o feminino deflagra, via de regra, os jogos competitivos entre os homens.
Assim como nos jogos de azar, na competição esportiva a instabilidade chega ao
extremo. A tensão confere ao jogo um certo valor ético, na medida em que estão em teste as
qualidades do jogador, não apenas a força, a tenacidade, a habilidade e a coragem, mas,
igualmente, suas capacidades “espirituais”, sua lealdade. Desse modo, apesar do ardente
desejo de vitória, o sujeito deve sempre obedecer às regras do jogo, evitando “aproveitar-se”
de meios ilegítimos.
Os homens entram em competição para serem os primeiros em força ou destreza, em
conhecimentos ou riqueza, em esplendor, generosidade. Competem com a força do corpo ou
das armas, com a razão ou com os punhos, defrontando-se uns aos outros com exibições,
palavras, insultos e astúcia. Como se em Contos gauchescos, o raro, a disputa por um
lugar social privilegiado, ensejada pelos jogos tradicionais, termina em uma contenda de vida
e morte, concretizando a expressão violenta da necessidade humana de lutar, de obter honra e
glória. Pelo seu significado social, tais desafios são tomados como coisa muito séria, criando
uma atmosfera propícia à violência gratuita, às mortes inesperadas e à libertação de instintos
de agressividade, que terminam por confundir homem e bicho. É o que se vê, por exemplo,
em “O negro Bonifácio” e “Jogo do osso”, em que, ao aparente estado de ordem inicial,
seguem-se a tensão, o movimento e a mudança, em torno do ato de jogar.
Nesses casos, o ludismo masculino distingue-se severamente da gratuidade da
brincadeira infantil, em que o faz-de-conta limita a reordenação proposta pelo jogo ao período
de tempo em que se joga. Embora se faça também por diversão, agrega-se ao jogo masculino
111
a necessidade de firmar um lugar de credibilidade perante o grupo. Além disso, o retorno à
situação inicial torna-se, freqüentemente, impossível, uma vez que, ao longo da disputa, as
vidas podem modificar-se irremediavelmente. Assim, embora ligado à idéia de ócio, o jogo
adulto pode associar-se também às noções de obrigação e dever, pois desempenha uma função
cultural legítima, que precisa ser ratificada pela prática.
Em ambos os contos citados, a aposta aparece para agregar um valor material ao valor
social da atividade, desvirtuando o próprio jogo, entendido como fazer que transcende as
necessidades imediatas da vida e desliga-se da materialidade. A inserção indevida da mulher
no jogo, mediada pelo perdedor, através da aposta, oferece ensejo à eclosão da violência. A
conversa, “o saracoteio” e a dança aparecem como as atividades lúdicas femininas por
excelência. Assim, à mulher não cabe propriamente o lugar de partícipe do jogo masculino,
mas de objeto da rivalidade dos machos. O jogo competitivo masculino transforma-se em
metáfora do desempenho no jogo sexual, nos rituais de conquista amorosa e de subjugação da
figura feminina. Nesses casos, contudo, ao ser evocada na esfera da ão do homem, mesmo
como sujeito marcado pela passividade, a figura feminina acaba invertendo o andamento do
jogo, do qual os homens saem perdedores.
Em “O negro Bonifácio”, por insistência de Bonifácio, Tudinha faz uma aposta
12
na
carreira de cavalos, na qual o lobuno do negro perde para o tordilho de Nadico, um dos
namorados da jovem. Ao pagar a libra de doces que devia, Bonifácio sofre nova perda, com a
desfeita da moça, que lhe pede para entregar os doces a sua mãe. Quando o negro revida, os
namorados de Tudinha intervêm e instaura-se um conflito generalizado, “espirrando a
sangüeira naquele reduto”.
No decorrer do conto, o negro é descrito por Blau Nunes com um misto de
desaprovação e de admiração respeitosa, pois Bonifácio é “um governo”, “ginetaço”,
12
A aposta constitui, segundo Huizinga (1999, p. 58), um penhor, no sentido de um objeto simbólico que é
atirado dentro do campo de jogo, a título de desafio.
112
“atrevido”, “excomungado” e “perdidaço pela cachaça, pelo truco e pela taba”. Observa-se
que a caracterização do negro como viciado no truco e na taba registra que o jogo é, para ele,
uma necessidade danosa e, portanto, escapa à esfera da liberdade, à qual pertence a atividade
lúdica. Porém, não é precisamente a derrota na carreira disputada que impõe a luta ao negro,
mas a ofensa a sua virilidade de macho conquistador, ensejada pelo insucesso no jogo. O
negro pachola, cujos atributos se confundem com os do herói gaúcho, não pode aceitar
passivamente o dano à honra que lhe é dirigido pelo antagonista (no caso, a Tudinha), e, por
isso, toma-o como desafio.
Ao fim da contenda, quando se evidenciam as relações entre a jovem e Bonifácio,
como assinala Chiappini (1978, p. 216), invertem-se as posições de ambos: a força e a
invencibilidade cabem, agora, à mulher rabiosa”, enquanto o homem assume o lugar de
passividade e fraqueza. Tal lugar é referendado pela castração perpetrada por Tudinha, a qual,
de meiga e doce, passa à posição agressiva. A morte não é o bastante para o negro. A
potência sexual que dota seu corpo de vigor e lhe garante a superioridade na relação com a
mulher precisa ser aniquilada, através da mutilação física, que é levada a termo pela mão
feminina.
Da mesma forma, em “Jogo do osso”, Lalica fere o estatuto de virilidade do macho
que a vende, pois levanta a suspeita quanto à sua potência sexual, xingando-o de “retalhado”,
termo que designa o animal tornado incapaz de fecundar. Chiappini (1978, p. 78) observa que
a castração, aqui, se através da linguagem. O ato lingüístico tem, contudo, o mesmo efeito
de fazer irromper a brutalidade, em defesa da honra masculina. Tal descontrole no uso da
violência, embora provoque a perplexidade, parece estar socialmente sancionado, porque é
movido por uma justa causa: conter a degradação do homem como macho, sobre cuja
virilidade está firmada a sociedade patriarcal. Assim, Moreira (1982, p. 53) observa que a
defesa da honra possibilita a demonstração da valentia, podendo, também, oferecer a mostra
113
de outros aspectos da escala de valores do homem, tais como a vingança, que, “uma vez
ofendido, o herói deve reparar a ofensa”.
Em “O Negrinho do Pastoreio”, a aposta também aparece como elemento integrante
da atividade lúdica das carreiras. O estancieiro mesquinho, que não goza de uma posição
social modelar, deseja escapar à outra perda em jogo: o dano material. Huizinga (1999, p. 59)
acredita que “a pura avareza não comercia nem joga; nunca arrisca. E a essência do espírito
lúdico é ousar, correr riscos, suportar a incerteza e a tensão”. Nesse sentido, o dono do
Negrinho mostra-se profundamente distanciado da atmosfera lúdica, por sua avareza.
Pressionado a participar da disputa, o estancieiro mau impõe a obrigatoriedade do jogo ao
Negrinho, que compete em nome do seu senhor. Porém, sujeito às ordens e obrigado à vitória,
o jogo deixa de ser uma atividade voluntária, perdendo-se da sua característica essencial, a
liberdade.
Além da competição de habilidade e coragem, o comportamento lúdico também se
realiza, no espaço narrado, sob a forma de linguagem, através da qual é possível ao homem
dar expressão à vida e criar um outro mundo. Segundo atesta Xavier (1964, p. 61), essa forma
de ludismo era prática comum nos galpões ou nos tios das estâncias, onde se exibiam “as
qualidades pessoais, contavam-se vantagens e causos raros. As conversas sempre se
limitavam às lidas e relações pessoais no cenário pampeano”. Assim, a narração é
estabelecida como desafio de fluência verbal, memória e criatividade. Ao ser contado, o
mundo, por sua vez, conquista o estatuto de realidade através da representação. Moreira
(1982, p. 71) entende que “o gaúcho, então, conta, porque tem o que contar. Porque, em
outros tempos, houve um fazer que hoje é relatado”.
Por meio do exercício lúdico da linguagem, Blau Nunes organiza e revela o universo
de Contos gauchescos. A narração, como se , constitui outro fazer lúdico que pertence de
forma exclusiva ao homem, uma vez que a mulheres e crianças o cabe a palavra. Pela
114
posição social em que se encontra, a figura feminina o está autorizada a falar em nome do
grupo. à criança, falta a experiência, em cuja validade ancora-se a narrativa voltada à
recuperação do passado. Nessa perspectiva, seja sob a forma de competições de habilidade, de
jogos de azar ou de narrativas, a atividade lúdica adulta masculina goza de uma importância
social que não encontra equivalência entre as manifestações do ludismo feminino e infantil.
É possível entender que enquanto o fazer lúdico adulto e masculino apresenta um
estatuto reconhecido de conservação e adaptação cultural, o jogo infantil volta-se,
prioritariamente, à imitação do adulto e à sucessão nas experiências culturais legitimadas.
Essa modalidade de brincadeira ganha, via de regra, a sanção social, por ser entendida como
um treinamento para o futuro. No entanto, a adesão das crianças a essa forma de exercício
lúdico não significa, necessariamente, o desejo de repetir os modelos paternos, mas ilustra,
seguramente, a necessidade de aprovação que orienta as ações infantis.
Em suma, o brinquedo infantil furta-se de seu potencial criativo e transformador,
voltando-se ao alcance de uma efetiva posição no grupo social que permita à criança
abandonar o anonimato infantil. A atividade lúdica da criança, ao invés de viabilizar a
transgressão do universo instalado, coloca-se, via de regra, a serviço da antecipação da vida
adulta. Consolidado o processo de socialização, o qual se utiliza do brinquedo como meio de
inscrição na condição adulta, o ingresso da criança na vida pública tende a frustrar a novidade.
115
4 TRADIÇÃO E MUDANÇA
4.1 Blau Nunes, porta-voz da tradição
Tendo em vista o caráter público da cultura, a difusão da totalidade acumulada de
padrões de comportamento atua como um mecanismo de controle coletivo, cujos significados
são partilhados e com os quais os sujeitos se relacionam através da subversão de modo a
introduzir uma mudança cultural –, ou da aceitação, estabelecendo a continuidade histórica.
Nesses termos, a cultura é caracteristicamente estável, enquanto cria tradição e institui
padrões de comportamento, e ao mesmo tempo dinâmica, porque está sempre em processo de
mudança em razão de novas necessidades e de novas situações.
A idéia de transmitir uma cultura é, muitas vezes, compreendida como uma operação
de reprodução idêntica daquilo que cada um recebeu. Entretanto, tal significação, centrada na
idéia de fidelidade ao modelo de conservação da herança, contempla apenas parte dos
fenômenos observados nas sociedades humanas. Inerentes a todo movimento cultural, as
forças de tradição e mudança veiculam diferentes formas de inserção do passado no presente,
compreendendo um posicionamento antagônico que atua através da atitude dos indivíduos,
das sociedades e das épocas perante o seu passado. Assim, enquanto a consciência da
modernidade, associada à inovação, nasce do sentimento de ruptura com o passado, nas
sociedades ditas tradicionais, o passado tem um valor seguro, e os indivíduos mais velhos,
como depositários da memória coletiva, possuem garantias de autenticidade. Atentando para a
relação entre o passado e as sociedades tradicionais, Giddens (2001, p. 37-38) argumenta que,
nelas,
116
[...] o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam a
experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço,
inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado,
presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados por práticas sociais
recorrentes.
É nesse sentido que a figura de Blau Nunes, com seus “oitenta e oito anos, todos os
dentes, vista aguda e ouvido fino”, goza, em Contos gauchescos, da credibilidade que lhe
confere a experiência, vivida em plena conciliação com a herança cultural recebida. Prandi
(1977, p. 181) sugere que, através da atitude tradicionalista, as maneiras de ser e de
comportar-se do grupo social são apropriadas de forma não deliberada pelo sujeito, que as
vive como próprias, de modo que a recorrência das práticas conduz à sua interpretação em
termos de natureza.
Além disso, a narração de Blau se faz concomitantemente às suas andanças. O tapejara
constitui-se como senhor e doador das suas memórias e dos seus caminhos. A respeito disso,
Pozenato (1974, p. 52) afirma que Blau Nunes prova sua liberdade andando, em vista de que
o deslocar-se contínuo, o avançar sobre o horizonte, é um puro exercício de liberdade.
Por outro lado, andando, ele se faz conhecedor. Cada palmo de chão, ele o povoa de
significação, que transmite a seu ouvinte e companheiro de andanças. Não é vazio de
significado o fato de narrar andando: ao mesmo tempo que narra, vai abrindo os
caminhos, fazendo do ouvinte um também andante; e enquanto os abre, preenche-os
de significado pela narração. Sua narração recobra, mais uma vez, o caráter de
exemplaridade.
O narrador Blau está autorizado a manifestar-se como representante do seu grupo
sócio-cultural, pois sua fala legitima-se pelo testemunho da tradição. Ao apropriar-se dela
como um dado natural, o tapejara transforma-se em seu autêntico porta-voz. O ato de contar,
como estender ao sol, “para arejar, roupas guardadas ao fundo de uma arca”, permite salvar
do esquecimento e reviver um passado que está no inconsciente coletivo. Nesse sentido,
contar é repetir.
Tedesco (2004) entende que a memória coletiva, por meio da narração, reafirma sua
força de transmissão, uma vez que, para continuar a recordar, é necessário que cada geração,
117
como um dever, transmita o fato passado, inserindo nova vida em uma tradição comum. Na
medida em que é possível a elaboração e a apropriação do ato narrativo, o mesmo constrói,
segundo o autor, um sentimento de identidade coletiva do grupo e um sentido de
pertencimento dos indivíduos.
Através da narração, a voz de Blau estabelece a mediação entre o mito e a realidade e
advoga certo tipo de regra moral. Conforme pontua Chiappini (1978), no trânsito entre os dois
planos temporais o “agora evocador” e o “passado evocado” e entre os dois planos
espaciais a viagem de Blau e suas viagens através dos casos –, o narrador emprega a
tradição como arma de combate às novas ordens morais e políticas, invocando elementos
conservadores do passado.
O vocábulo “tradição” compreende a entrega que uma geração faz para outra de um
bem que lhe pertence
13
. Prandi (1977, p. 166) também observa que os vários significados
atribuídos a esse termo (“consignação”, segundo Cícero, “ensinamento”, consoante
Quintiliano,narração”, para Tácito) são permeados por um traço invariante: “a passagem de
um conjunto de dados culturais de um antecedente a um conseqüente que pode figurar-se
como famílias, grupos, gerações, classes ou sociedades”. Desse modo, ao assumir a herança
da tradição, recebida das gerações anteriores, Blau não apenas se compromete a vivê-la como
algo profundamente próprio, mas também a transmiti-la, para que a mesma continue sendo
interiorizada naturalmente pelos descendentes.
A tradição caracteriza-se pelo fato de ser inscrita na consciência coletiva dos grupos
que dela são portadores, como normas implícitas ou direitos adquiridos no tempo e, como
tais, inextinguíveis. Através da repetibilidade, concretizada na transmissão sucessiva ao longo
das gerações, a tradição opera e se oferece como um direito quase automático à legitimação.
Segundo Prandi (1977), dessa característica advém o fato de que a tradição transforma-se,
13
Etim. Lat. Traditïo: “ação de dar, entrega”, conforme HOUAISS (2001).
118
muitas vezes, na representação da verdade, pondo-se como garantia de crenças, enunciados,
visões de mundo e comportamentos cuja persistência parece tornar inatacáveis.
Embora marcadamente tradicional porque tendendo à repetição aparentemente
incontestável de determinados padrões de comportamento –, o mundo simoniano abriga
permanentes conflitos, ora explicitamente declarados, ora travados de forma velada, entre
representantes de diferentes posições sociais, etárias, sexuais, econômicas e sócio-culturais, a
serviço de distintas ideologias e visões de mundo. Patrões e peões, personagens ilustres e
sujeitos anônimos, nativos e estrangeiros, homens e mulheres, adultos e crianças, agentes do
mundo cultural e do mundo natural dialogam e interpenetram-se ao longo das páginas
narradas, configurando um universo dicotômico e em constante tensão pela sobrevivência
física e/ou social e pelo poder de legitimar.
Dentro desse universo, a palavra do narrador é, certamente, a que se sobressai com
mais nitidez, pelo fato de que não apenas evoca, mas perpassa todas as demais. Através do
ponto de vista particular de Blau Nunes, o mundo representado pela recursão à memória é
enunciado e ganha realidade. A perspectiva do narrador, por sua vez, também é constituída
por diferentes vozes sociais
14
que se articulam na enunciação da complexa personagem: o tipo
crioulo rio-grandense, o menino que se fez homem na guerra, o moço militar, o velho paisano,
o tapejara “senhor dos caminhos” da sua terra, o sujeito anônimo que não conhece os segredos
dos grandes, o peão satisfeito com a sua condição social e econômica, o homem que admira e
despreza as mulheres, o valente que deseja sucumbir em batalha, o guardião do código ético
gaúcho, o humano saudoso do tempo passado, o desencantado com o presente.
Na construção do tapejara intervém, além disso, o ponto de vista do autor, o qual se
constitui agente de um contexto histórico e sócio-cultural instaurado, ao mesmo tempo em
que é constituído por outros discursos. Cabe a Simões Lopes Neto o controle do espaço
14
Essa expressão é empregada, conforme a concepção da natureza dialógica do discurso formulada por Bakhtin
(1981), para denotar diferentes entoações e sistemas de valores que posicionam as mais variadas visões de
mundo atuantes e em confronto na sociedade.
119
ficcional e a articulação das vozes sociais manifestadas na narração. Assim, o escritor faz
representar determinadas problemáticas, de forma coerente à manifestação de uma intenção
literária e ideológica, nem sempre aliada ao discurso socialmente dominante.
Contrariamente às tendências literárias em voga, Simões Lopes Neto concede a voz
aos pobres e anônimos, apresentando, através deles, um “avesso da História”
15
e avançando
tanto em relação ao realismo descritivo, de modo a alcançar a problematização simbólica e
psicológica do homem, quanto em relação à proposta regionalista, pela inusitada superação da
contradição interna. A esse respeito, Candido (2002) assinala a ruptura dos padrões estéticos
vigentes através da incorporação do dialeto gauchesco à obra literária, recurso, até então,
inédito na literatura regionalista. O autor argumenta que a adoção da primeira pessoa de um
narrador rústico como enfoque narrativo atenua ao máximo o hiato entre criador e criatura,
dissolvendo, de certo modo, o homem culto no homem rústico. Segundo Candido (2002, p.
91-92), “com a utilização do narrador fictício fica evitada a situação de dualidade, porque não
há diferença de cultura entre quem narra e quem é objeto na narrativa”.
Ao lado dos aspectos inovadores da produção simoniana, contudo, a imagem
idealizada do gaúcho que culminou na transfiguração do tipo humano em centauro dos
pampas”, sancionada pela tradição –, é reiterada na ficção de Simões Lopes Neto. A
construção do gaúcho constitui, na verdade, uma “identidade atribuída”, tendo sido enunciada
primeiramente em 1870, na literatura culta, pelo cearense Alencar, em “O gaúcho”, a partir do
qual, de acordo com Chaves (2001, p. 36), “estava instaurado um modelo na literatura
brasileira, que seria modificado aqui e ali ao longo do tempo e na mudança do gosto, mas
permaneceria essencialmente tal como Alencar o idealizou – o gaúcho”.
Tal identidade, legitimada pelo homem rio-grandense, constitui uma assimilação do
discurso alheio, tanto do ponto de vista literário quanto social, através da aceitação da palavra
15
Chiappini (1988, p. 133) explicita que “Simões Lopes Neto afina com os avessos da ‘Belle Époque’,
defendendo o fantástico e o maravilhoso, nas histórias dos velhos narradores, testemunhas de outros tempos e de
outras terras”.
120
do outro sobre o sujeito, em favor da instauração do mito do gaúcho herói, conveniente à elite
patriarcal. Os recorrentes conflitos de fronteira com “os de fora” desse grupo sócio-cultural
circunscrito ou, em outros termos, com a alteridade, estão a serviço da distinção e da
manutenção da herança mítica construída e repassada através do tempo. Conforme acentua
Chaves (2001, p. 16), no texto simoniano, coerentemente com tal posição ideológica,
[...] o sentimento coletivo é refratário a qualquer abertura para o exterior, desconhece
o progresso ou qualquer mudança acentuada nos antigos padrões de conduta,
tornando-se conservador e reacionário, e fecha-se em si mesmo ao procurar manter
intacto o próprio código ético.
Contos gauchescos insere-se em um projeto simoniano que, por um lado, dedica-se a
valorizar a identidade gaúcha firmada no passado heróico e, por outro, desvela a conclusão de
uma etapa, pois o universo telúrico recomposto pelas narrativas está em vias de destruição.
Dessa forma, a voz de Blau Nunes está comprometida dialogicamente com a tradição, uma
vez que, através da expressão saudosista, manifesta expectativas de continuidade do passado
glorioso e, ao mesmo tempo, um sentimento de desolação em vista da inegável degradação do
presente.
O guasca “dotado de uma memória de rara nitidez” transforma-se em agente de
conservação do que Burke (1998, p. 51) chama de “pequena tradição”
16
, posto que constitui o
legítimo detentor do seu mecanismo de permanência. A pequena tradição não dispõe de outro
suporte além da memória e da oralidade para a sua manutenção, até o momento em que,
registrada pelo patrício interlocutor de Blau, passe a integrar a grande tradição, conservada e
transmitida pela escrita.
O propósito de ensino e transmissão de conhecimentos acerca “daquele tempo”,
próprio do doador que deseja repassar sua herança, pode ser entrevisto na comoção e nos
16
Peter Burke (1998, p. 51) discute a proposição de Robert Redfield, o qual sugere que, em certas sociedades,
existem duas tradições culturais interdependentes: a “grande tradição”, da minoria culta, cultivada em escolas ou
templos e a “pequena tradição” que opera sozinha e se mantém na vida dos iletrados, em suas comunidades
aldeãs. Burke reformula o modelo de Redfield, admitindo a participação das elites na pequena tradição (já que as
mesmas têm acesso a ambas as tradições) e contrariando a relativa homogeneidade atribuída à cultura popular,
tendo em vista que diferenças sociais e ecológicas determinam diferenças na cultura material e estimulam
diferentes atitudes, formas de lidar com a natureza, ofícios, ritos e peculiaridades próprias de cada grupo cultural.
121
comentários de Blau sobre os valores e as práticas antigas, as quais se sobrepõem
qualitativamente aos usos do presente, como se pode ver neste trecho: “é verdade que
muita cousa boa, isso é verdade... mas ainda não nada, como antigamente, tomar mate e
correr eguada... Xô-mico!... Vancê veja... eu até choro!... Ah! tempo!... “(LOPES NETO,
2000, p. 79).
A proposta pedagógica é explicitamente manifesta na apresentação de Contos
gauchescos, em que se distingue a voz do autor:
Vi a colmeia e o curral; vi o pomar e o rebanho; vi a seara e as manufaturas; vi a serra,
os rios, a campina e as cidades; e dos rostos e da aurora, de pássaros e de crianças, dos
sulcos do arado, das águas e de tudo, estes olhos pobres olhos condenados à morte,
ao desaparecimento guardarão na retina a o último milésimo da luz, a impressão
da visão sublimada e consoladora; e o coração, quando faltar ao ritmo, arfará num
último esto para que a raça que se está formando aquilate, ame e glorifique os lugares
e os homens de nossos tempos heróicos, pela integração da Pátria comum, agora
abençoada na paz (LOPES NETO, 2000, p. 20).
Ao endereçar à “raça que se está formando” uma proposta de apreço, de amor e de
ufanismo pelo passado, o texto de abertura de Contos gauchescos torna explícito seu
compromisso ideológico com a conservação do “tempo heróico”, do seu espaço paradisíaco e
dos seus homens valorosos. Por isso, evidencia-se a superação desse tempo, impondo-se a
necessidade de narrá-lo, de evocá-lo pela linguagem, uma vez que sua realidade não está mais
presentificada, mas situa-se na memória. Ao mesmo tempo, manifesta-se declaradamente que
o horizonte de expectativas encaminhado à nova geração encontra-se no passado,
transformado em ideal a ser perseguido, em modelo no qual se devem inspirar os homens do
presente e do futuro. A perfeição espaço-temporal e humana foi atingida, restando aos
descendentes reconhecê-la, glorificá-la e imitá-la.
Em “Artigos de fé do gaúcho”, ao mesmo tempo repositório de tradições e receituário,
composto de mandamentos que orientam a conduta do legítimo gaúcho, também se identifica
com clareza a intenção de ensinamento. Embora constituindo uma compilação de saberes
pertencentes ao meio social, o narrador não se exime da responsabilidade sobre eles, porque
122
não apenas acolhe tais verdades coletivas, mas as toma como seu código pessoal, comprovado
pela experiência e passível de ser convicta e autenticamente propagado.
A perspectiva de Blau Nunes confunde-se com o ponto de vista coletivo instituído pela
tradição, gozando da sua autoridade modelar. O entrelaçamento entre a fala do vaqueano e o
discurso social coletivo manifesta-se, por exemplo, na enunciação do sentimento supersticioso
popular, que pode ser visualizado, em “O negro Bonifácio”, na crença de que a valentia dessa
personagem devia-se a “alguma oração forte, que ele tinha, cosida no corpo”; em Os cabelos
da china”, no objeto agourento; e, ainda, na admiração respeitosa que orienta o olhar do
narrador sobre as mulheres, em outros contos. Além disso, a intervenção de provérbios ou
ditos populares em meio ao discurso narrativo contribui para configurar o tom de verdade
sancionada que permeia a narração. É o que se vê nas seguintes passagens:
E agora?!... Filho de tigre é pintado! (LOPES NETO, 2000, p. 109).
Mas, vá vancê escuitando.
Rabo de saia é sempre precipício pros homens... (LOPES NETO, 2000, p. 143).
Eh-pucha! Patrício, eu sou mui rude... a gente caras, não corações... (LOPES
NETO, 2000, p. 27).
Outro partícipe das narrativas, cuja manifestação determina modificações no olhar do
narrador sobre os fatos, é o espaço natural, que fala ao campeiro através de seus elementos. O
cachorrinho fiel e outros “bichos brutos”, em “Trezentas onças”, o boi Cabiúna, em “O boi
velho”, a bruxa preta que anuncia o mau agouro, em “No manantial”, por exemplo, adquirem
um caráter divino e transcendente, ao mesmo tempo em que se humanizam, pela apropriação
de sentimentos, sensibilidade e linguagem, caracteristicamente humanos. Por outro lado, o
diálogo entre tais elementos e o homem se faz possível pelo vínculo telúrico que une Blau
ao universo e, em última instância, pelo seu pertencimento ao espaço mítico primordial, que a
tradição visa resguardar.
123
É em coerência com esse conjunto de valores, amparado na tradição, que Blau Nunes
expressa seu julgamento acerca das personagens e suas atitudes, reprovando-as ou
solidarizando-se com elas. O narrador assim justifica o adagiário que compõe “Artigos de
do gaúcho”:
Muita gente anda no mundo sem saber pra quê: vivem, porque vêem os outros
viverem.
Alguns aprendem à sua custa, quase sempre tarde pra um proveito melhor. Eu sou
desses.
Pra não suceder assim a vancê, eu vou ensinar-lhe o que os doutores nunca hão de
ensinar-lhe por mais que queimem as pestanas deletreando nos seus livrões. Vancê
note na sua livreta: (LOPES NETO, 2000 p. 163).
A aprendizagem através da vivência é, assim, relativizada, que a apropriação da
experiência alheia (precisamente, dos mais antigos) pode antecipar conhecimentos da vida
prática, fundando e organizando o repertório da tradição. Todavia, a sugestão de que o
interlocutor tome nota dos preceitos para conservá-los indica o seu apagamento social, tendo
em vista que não é preciso registrar um código comportamental ainda em vigência.
Tal interlocutor, suposto na narração, funciona como elemento de mediação para o
receptor, na medida em que faculta antecipar possíveis opiniões e fornece ensejo para
explicações acerca de vocábulos e práticas especificamente regionais ou em desuso. É o
que pode ser constatado nos seguintes trechos:
Vancê não sabe o que é inhatium?
É mosquito; bem posto o nome!
Banhado de Inhatium... Virge’ Nossa Senhora!... mosquito, aí, fumaceava no ar!
(LOPES NETO, p. 115).
Se vancê fosse daquele tempo, eu calava-me, porque não lhe contava novidade, mas
vancê é um guri, perto de mim, que podia ser seu avô... Pois escuite. (LOPES NETO,
p. 73).
O narratário que, implicitamente, dialoga com o narrador é por este constituído como
“patrãozinho”, patrício moço, citadino alegre e estudado. Ele está distanciado do universo de
Blau, velho paisano “que comeu do ruim” e que, embora reconheça a função da escrita, não
pertence ao mundo letrado. É a esse sujeito que Blau Nunes suas memórias a conhecer,
124
reconstruindo, na interlocução, o seu percurso existencial. Embora nas sombras e nunca
explicitamente nomeado, o narratário atua nas cenas e, ainda que possa ser percebido como
um jovem aprendiz do sábio idoso da aldeia, sua atuação coloca-se como contraponto da
narrativa, visto que interliga as memórias de Blau Nunes ao momento da narração.
Fischer (1999, p. 81), analisando as duas personagens, afirma que
[...] Blau, o narrador, é um velho e experimentado peão, que está, por algum motivo
não enunciado, acompanhando outro sujeito num périplo, ao longo do qual fala,
rememora, moraliza; este, o interlocutor, que jamais tem voz no andamento das
histórias – a não ser, se quisermos uma hipótese plausível, naquelas primeiras páginas,
quando uma voz faz a apresentação de Blaué mais jovem que Blau e não conhece a
vida campeira, mas parece ter algum interesse tanto na experiência de Blau porque
presta atenção a seus causos quanto naquela vida gaúcha interiorana porque anota
as coisas que ele vai dizendo.
Observa-se, ainda, que o diálogo de Blau Nunes com o “patrãozinho” reitera a
oposição entre o passado e o presente, que permeia a narração dos casos. Em última instância,
Blau e seu interlocutor recuperam o movimento cultural conflitante entre a tradição e a
mudança.
Embora portadora de arquétipos, a tradição não constitui um puro dado inercial, uma
vez que vive na história e, sendo moldada por ela, pode destituir a vitalidade de certas
práticas. Assim, movimentos de mudança são gestados no interior da própria tradição,
subentendidos na sua historicidade e na sujeição do processo cultural à circunstância espaço-
temporal da sociedade. Como mecanismo que se contrapõe ao poder coercivo e à autoridade
moral da tradição, a atitude de inovação estabelece o aspecto novo no que tange à ordem
instaurada, enquanto que, pela renovação, parece ser reforçada a dependência para com os
elementos tradicionais, reinvestidos de sentido.
Como construção humana, a tradição não é, assim, imutável. Embora ela aponte para a
repetição, através de gerações, de uma prática ou saber herdado do passado, esse aspecto não
garante a sua estabilidade de conteúdo. Isso acontece porque a manutenção das tradições
125
apresenta fins simbólicos ou normativos, permanecendo enquanto as práticas e saberes
tradicionais veicularem valor e significado ao grupo que deles se apropriou.
É certo que a presença do elemento contemporâneo em Contos gauchescos, apesar de
portador da transformação cultural, não assegura que sua voz seja de fato expressa e ouvida,
isto é, o garante que esteja efetivamente representado o conflito entre as vozes de
continuidade e de subversão, que predomina o ponto de vista do ancião sobre o passado e
sua mutação. Submetida ao olhar de Blau, a circunstância contemporânea é traduzida não em
termos de progresso desejável, mas de perdição humana e cultural.
Contudo, o confronto entre as vozes sociais aparece, por vezes, incorporado à fala do
tapejara, assinalando a construção polifônica
17
do discurso, em que o narrador é representado
como uma autoconsciência
18
. Nesse sentido, ao assimilar o olhar alheio e responder a ele,
Blau Nunes manifesta certa consciência de si mesmo e de seu grupo social, como se nas
seguintes passagens:
Agora imagine vancê se a gente de dentro podia andar com tantas etiquetas e
pedindo louvado pra se defender, pra se divertir e pra luxar!... O tal rei nosso senhor,
não se enxergava, mesmo!...
E logo com quem!... Com a gauchada!... (LOPES NETO, 2000, p. 127).
Galego, naquele tempo, era gente, vancê creia! Estância, era dele; negócio, era dele;
oficial, era ele; era arrematante das sisas, ele; surgião, ele; padre-vigário, ele; e pra
botar a milicada em cima dos continentistas... era ele!...
E cada presilha!...
Gente da terra não valia nada!...
Que é que vancê está dizendo?... O que nós somos hoje a eles devemos? Qual! É
verdade que uns inventaram plantação de trigo... isso, enfim, era bom... sempre era
uma fartura; noutras casas plantavam e fiavam linho... também não era mau, isso;
noutras cardavam lã... Algum mais vivaracho botava tenda e vendia mechiflarias ou
prendas de ouro... nalgum trocava-se uns quantos couros por um pão de açúcar, e
pipote de cana por qualquer meia dúzia de vacas. E sempre corria alguma dobla, de
salário, e algum cruzado pela peonada de ajuste.
Mas, como quera... eram mui entonados, os reinóis (LOPES NETO, 2000, p. 106).
17
Conforme a concepção de Bakhtin (1981), a polifonia é um dos efeitos da construção dialógica do discurso,
através do qual torna-se possível escutar as vozes sociais em embate no texto, ou ao menos algumas delas. A
monofonia, ao contrário, consiste no efeito de sentido em que o diálogo é mascarado e uma voz apenas se faz
ouvir.
18
Flávio Loureiro Chaves (2001) observa que o aparente conformismo de Blau Nunes, diante do paraíso da
estância democrática do passado, estrutura-se nos limites de sua “consciência possível”. Embora o possa
desmitificar com clareza esse mundo, o narrador desloca a visão dominante do passado a partir do seu ângulo de
dominado, ao transformar as personagens da história oficial em personagens secundárias das suas narrativas e ao
acusar a marca da propriedade mesmo naquele tempo.
126
Enquanto o interlocutor pode ser lido apenas através da fala de Blau, os demais porta-
vozes da inovação (tais como o desgraçado do ilhéu”, de “Melancia Coco Verde”, “os
Silva”, bichos maus de “O boi velho”, e “o tal fulano da beira da praia”, premiado por um
questionado ato de valentia, em “Juca Guerra”) são marcados pelo ponto de vista do narrador,
que os constrói a partir de um posicionamento negativo.
Desse modo, o “outro”, presentificado em tais personagens, é constituído por meio do
discurso de Blau Nunes que, assim, comunica seu juízo acerca da posição e da importância
dos sujeitos referidos, exprimindo sua atitude valorativa. Através de sua avaliação social, o
locutor Blau Nunes expressa uma concepção de que o ingresso de estrangeiros, a nova relação
do homem com a natureza e a instauração de novos valores, embora engendrados por
transformações praticamente consolidadas, deveriam ser repelidos, porque contrários à
tradição e potencialmente nocivos para a ordem vigente.
Todavia, não existe, conforme Prandi (1977, p. 191), sociedade que o manifeste
uma intersecção perenemente mutável entre um patrimônio marcado pelo passado e as
constantes exigências de inovação que surgem em todos os níveis de vida coletiva. Assim
como as forças de conservação destinam-se a assegurar a sobrevivência da comunidade sócio-
cultural, atitudes de inovação são admitidas com o mesmo propósito, de modo a corresponder
às necessidades de adaptação, por meio da qual o grupo faz frente às demandas do contexto
histórico.
O mesmo autor assinala, ainda, a completa impossibilidade de uma revolução
19
absoluta que, “voltando a página” a todos os níveis, fosse capaz de lacerar a trama de todas as
19
O termo revolução refere-se à definição proposta pelas ciências sociais que o entendem, conforme aponta
Prandi (1977, p. 191), “como a conquista do poder público por parte de uma classe que nunca o deteve
anteriormente, em vista de impor a todo o grupo uma nova medida de valores”, de modo tal que a transferência
de poder implicaria a inauguração de uma sociedade radicalmente transformada, empenhada em apagar
comportamentos públicos, instituições ou formas culturais considerados solidários com o precedente arranjo
político.
127
tradições, já que o resultado seria “uma espécie de suicídio cultural da sociedade”. O
apagamento de todos os sinais do passado levaria, pois, à privação da saúde social e à
dissolução da identidade sócio-cultural. A sobrevivência da comunidade depende do
equilíbrio entre os movimentos de conservação, voltados à contínua retomada do passado,
bem como de mudança, destinados a estabelecer o elemento inovador.
Em Contos gauchescos, o discurso de Blau formula o julgamento das situações
narradas que, combinando os planos histórico e intersubjetivo do texto, exerce uma função de
conservação. Por um lado, institui-se, através da narração, um diálogo entre indivíduo e
sociedade, através do qual se instala a ideologia, cujo objetivo, nesse caso, é regular a
introdução da novidade, reajustando o mundo conforme a ordem precedente. Por outro, o
trânsito entre as diferentes perspectivas relativiza o posicionamento de Blau, assinalando o
limiar de um novo tempo e explicitando a intervenção de uma descontinuidade no processo
sócio-cultural.
O entrelaçamento das dimensões social, histórica, folclórica, regional, psicológica e
mítica tece, em Contos gauchescos, a história de Blau Nunes, em sua trajetória da infância à
velhice. A narração de Blau traduz, pois, uma tentativa de (re)construção identitária individual
e coletiva, que pode concretizar-se pelo recurso dialético à tradição, dado constitutivo do
“genuíno tipo crioulo rio-grandense”, por meio do qual se configura o pertencimento do
sujeito ao espaço e ao grupo. Diante de ameaças à estabilidade e à segurança da sociedade, o
sentido da tradição é restaurado como uma forma de adequação à crise.
A instalação do capitalismo, a divisão das grandes propriedades, o envolvimento dos
estancieiros na política, o fim do gado xucro, o progressivo domínio da cidade sobre a
estância e o processo de taperização das velhas casas rurais delinearam, a partir da segunda
metade do século XIX, uma nova configuração econômica, social e cultural. Pozenato (2003,
p. 54) entende que as mudanças nas formas de produção implicam modificações nas
128
representações e nas relações sociais. Tais mudanças podem consolidar o rompimento de um
processo de definição de valores, de tecitura de significados e de estruturação de uma cultura
correspondente a eles. O trauma, portanto, não mexe apenas nas coisas, mas no significado
todo da cultura. A ultrapassagem das rupturas evidenciadas no processo sócio-cultural
gaúcho parece ter exigido buscar impulso no passado, resguardado pelas tradições, de modo a
assegurar a continuidade dos símbolos e seus significados através da atualização.
Como mecanismo de proteção, a manutenção das tradições funda-se na preservação da
identidade cultural, mediante a valorização do patrimônio e da memória, em resposta ao
desconforto do presente e às incertezas do futuro. Observa-se, assim, que a tradição
concretiza-se como uma estratégia através da qual a sociedade é capaz de organizar e
transmitir seus conteúdos culturais, com vistas à própria sobrevivência.
Porém, ao mesmo tempo em que restaura, Blau Nunes contradiz, em alguns aspectos,
a mesma tradição, deixando transparecer, em certos episódios, os impasses da sociedade da
estância. Além disso, a tradição é marcada pelo momento histórico em que atua, de modo que,
quando realiza sua profissão de tradicionalista, Blau faz uma escolha presente. O passado,
ao mesmo tempo em que intervém na construção do presente, é reconstruído por esse. São as
condições do presente que conferem ao passado um sentido, o qual é continuamente exposto a
reajustes e negociações. Tal ressemantização do passado com relação à circunstância presente
pode ser entendida como uma manifestação renovadora das práticas tradicionais, por meio da
qual os sentidos não são suplantados, mas atualizados para novas exigências. A respeito,
Tedesco (2004, p. 32-33) observa que “é comum, no processo histórico e social, a produção
do esquecimento ou do silêncio alter/auto-imposto para ajustar o passado com as
intenções/ressentimentos ainda conseqüentes do presente e das perspectivas futuras”.
Percebe-se, nessa linha de pensamento, que a história narrada por Blau passa ao largo
de certos aspectos participantes da construção do Rio Grande do Sul, tais como as distinções
129
de classe e o exercício do poder sobre a propriedade, bem como apresenta um novo olhar
sobre acontecimentos históricos, dentre os quais a batalha do Passo do Rosário, no conto “O
anjo da vitória”. O ponto de vista adotado, as temáticas contempladas, as lembranças eleitas e
até os “esquecimentos” são, na realidade, escolhas deliberadas que selecionam o que convém
à configuração “daquele tempo” idealizado, para opô-lo ao presente da narração, desprezando
ou remodelando o que não contribui para esse objetivo.
O refúgio no passado, vantajoso para as elites pelo seu potencial alienante, também
parece ter sido a intenção de Simões Lopes Neto, o qual, segundo assinala Arendt (2004a, p.
130), apodera-se “do mito da perdida idade de ouro, levando o gaúcho a contemplar e viver
imerso num passado histórico, glorioso, repleto de míticas bravatas”. O autor (2004a) ainda
observa que, através da literatura, Simões Lopes Neto conseguiu representar muito bem o
ideário do gaúcho guerreiro e nobre de caráter, do mesmo modo que objetivou a busca de uma
identidade para o habitante do Rio Grande do Sul, remexendo e até manipulando as
representações simbólicas coletivas.
A reorganização do passado não objetiva, como se vê, a construção de uma realidade
completamente nova, posto que constitui um movimento para promover a inscrição do
momento presente em um passado remoto, reatando a experiência do grupo social à realidade
idealizada. O mesmo passado, em função das necessidades presentes, é resgatado e
interpretado para restituir ao grupo social o evento fundante, numa tentativa de solucionar o
vácuo deixado pelas profundas transformações sócio-culturais.
Estruturantes da dinâmica cultural, as tensões entre as referências tradicionais e as
mudanças visam restabelecer a compatibilidade entre os momentos inerciais da cultura e os
movimentos dos processos inovadores, procurando amenizar os desequilíbrios na vida sócio-
cultural. Contrariando a instituição do capitalismo e denunciando as sensíveis rupturas
advindas da nova organização social e econômica, Blau Nunes busca assegurar seu próprio
130
lugar de doador da herança. O valor da experiência, depreciado pela excessiva importância
dedicada à produtividade econômica, precisa ser restaurado pelo narrador, o qual busca, a
partir dele, atribuir sentido a sua trajetória de vida. Assim, a profissão de de Blau é um
recurso para afirmar e negar a própria finitude, bem como uma tentativa de salvaguardar o
projeto sucessório implicado na tradição.
4.2 A criança, herdeira da tradição
O movimento de transmissão que garante a sobrevivência das práticas tradicionais
origina-se dos adultos, guardiões da memória e da experiência, e destina-se aos pequenos
herdeiros. Assim, a tradição reserva à infância um espaço e uma função particularmente
decisivas à própria conservação e à ressignificação do patrimônio sócio-cultural.
Nesse contexto, a criança é percebida, via de regra, como um organismo em formação,
um ser incompleto, cujo estágio de evolução conclui-se com a maturidade física e intelectual,
ou seja, com a conquista do status de adulto. Conforme sublinha Perroti (1990, 12), no
confronto com o adulto, ser completo e evoluído, a criança
[...] é sempre alguma coisa imperfeita que necessita ser lapidada, educada. E a
lapidação será feita segundo critérios fixados pelo adulto, pois este representa, na
perspectiva evolucionista, o estágio mais avançado do organismo vivo em suas
diferentes fases.
Tal concepção coloca o sujeito infantil na posição de recebedor passivo da cultura e
dos bens acabados, produzidos histórica e socialmente. A passividade da criança, entretanto,
não é motivada por condições naturais, mas imposta pelo modelo social que, dessa maneira,
continua sendo reafirmado e reeditado a cada geração. As imagens de um bloco de argila, que
pode ser moldado conforme o desejo do oleiro, ou de uma tábula rasa, em que podem ser
inscritos códigos de conduta e modelos de papéis sociais, ilustram bem a noção de criança
como um ser maleável e docilmente receptivo às influências do seu ambiente social. Contudo,
caso o processo cultural não seja entendido como mera acumulação e transmissão de
131
experiências, a infância pode assumir um ativo papel na recriação de si mesma, do outro e do
mundo.
Ainda que nem sempre esteja bem distinta dos adultos, a criança constitui uma
comunidade à parte, que se diferencia por suas necessidades e interesses. Por um lado, tendo
em vista a sua condição de dependência e fragilidade, o grupo infantil encontra-se, em grande
parte, sob os influxos e as determinações da sociedade adulta. Por outro, a participação da
criança no mundo adulto impõe modificações à organização estabelecida e às expectativas de
continuidade. Atuando sobre os bens simbólicos e a herança cultural que lhe são destinados, a
criança transforma-se em agente da cultura, capaz de ajustar-se à tradição, aceitando-a, ou de
contrapor-se a ela, questionando sua contraditoriedade.
Paralelamente à condição natural de crescimento, a condição histórica intervém na
constituição da infância, pois a maturidade infantil está em relação constante com o ambiente
sócio-cultural, acessível à criança através de representações culturais e identitárias. Essas
definem-se, por sua vez, não apenas por posições de classe, mas também por posições
adultocêntricas, já que o poder de construir e impor a representação encontra-se,
predominantemente, nas mãos dos adultos economicamente privilegiados.
Em Contos gauchescos, Simões Lopes Neto alcançou representar uma determinada
cultura e sua identidade a partir de pontos de vista muitas vezes distintos daquele das elites.
Para tanto, concedeu uma relativa visibilidade ao homem pobre e ao sujeito infantil. Nesse
sentido, Blau Nunes reconstrói as representações dominantes do passado e da realidade, ao
mesmo tempo em que seus posicionamentos são dimensionados pela experiência infantil.
Chaves (2001, p. 218) assinala que o ingresso no círculo mágico do universo infantil é
um recurso essencial ao entendimento da ficção simoniana, pois o mesmo relaciona-se à
noção pessimista do progresso humano, que determina a valorização do passado “pré-
132
histórico” e origina o privilégio atribuído à infância, idade de personagens ainda não
“reificadas na engrenagem do tempo corruptor”.
Nessa ótica, a infância exerce uma significativa função no universo simoniano, que
ultrapassa a atuação das personagens infantis, adquirindo um papel simbólico, profundamente
ligado ao passado de cada adulto, partícipe ou narrador dos causos, e aos momentos iniciais
do próprio mundo. A intervenção da infância desvela as contradições da sociedade adulta, ao
mesmo tempo em que absorve seu aspecto contraditório, por situar-se no limiar da natureza e
da cultura, no entre-lugar social.
Embora caracteristicamente portadora do aspecto inovador e criativo, a ação da
criança, em Contos gauchescos, é orientada para a reapropriação de um universo extinto,
situado na memória de infância ou de juventude dos adultos. Ou seja, espera-se que o ser
infantil não traga inovações, mas renove práticas e valores de uma tradição desgastada,
atribuindo-lhes novos sentidos e retomando a unidade comunitária do grupo cultural, em vias
de dissolução devido ao capitalismo.
Recuperando lembranças pessoais ou testemunhos em torno do ser criança, o narrador
compõe a infância como a circunstância da ingenuidade, do riso, da curiosidade, da alegria e
da profunda identificação com o meio natural. Por outro lado, o desconhecimento, a pouca
consciência do ambiente cultural em torno, a perplexidade, a solidão, o choro e o medo
marcam com igual intensidade a etapa pueril.
Ao mesmo tempo em que está distante da racionalidade adulta, a “gurizada” possui um
equipamento que orienta sua ação exploratória sobre o mundo, que é a sensibilidade intuitiva,
através da qual o outro e o espaço são percebidos. A curiosidade investigativa e a partilha
indistinta do universo adulto colocam os pequenos a meio caminho entre o “não-saber” e a
compreensão da circunstância humana, da qual advém o espanto que os torna adultos.
133
Em Contos gauchescos, somente através das palavras do velho Blau, porta-voz da
tradição, faz-se ouvir a voz infantil. É o caso, portanto, de um adulto a dizer a infância, a qual
se tornou um território idealizado da liberdade espaço-temporal. Contudo, apesar de
perpassada pela perspectiva adulta e submetida a certa idealização, a puerilidade não
significa, de forma alguma, a inexistência de conflitos, a completude absoluta, o usufruto sem
ônus do tempo e do espaço.
Em “O Anjo da vitória”, o menino Blau está “sem querer”,sem saber pra quê”, “sem
ninguém”, “sem saber como”. A ausência do desejo, o desconhecimento da finalidade e dos
meios, a perda dos que lhe eram solidários, transformam a criança em sujeito da falta. Essa
infância, portanto, não coincide com a perfeição edênica que, via de regra, os adultos fazem
corresponder à meninice. Trata-se de uma infância que, representada com intenção realista,
mostra-se na dependência de um ambiente hostil e profundamente engajada na tradição
patriarcal.
Coerente com a organização social do espaço narrado, a palavra não é acessível à
criança, porque pertence exclusivamente ao homem adulto, experiente na guerra e guardião
dos valores tradicionais. Assim, revela-se quase ausente a fala das personagens infantis.
Quando o menino Blau chama por seu padrinho e por Hilarião, mortos no campo de batalha,
ninguém atende ao seu chamado, sua voz não encontra resposta. em “O boi velho”, a
“miuçalha” exprime-se “numa algazarra de festa” para os bois, mas apenas o “gurizinho
gordote e claro”, do mesmo conto, é individualizado pela fala, porque sualíngua de trapos”,
que não pode ser traduzida pelo adulto, precisa ser transcrita.
É curioso notar que, no único episódio de discurso direto infantil, a criança não se
dirige aos adultos ou a outros pequenos, mas ao animal, pois com ele comunga, além do
alimento, a linguagem muitas vezes incompreendida e a sujeição aos “bichos maus”, os quais
detêm a posse sobre a vida de ambos. Nessa perspectiva, crianças e animais igualam-se
134
também pela fidelidade e pela sensibilidade, já inexistentes nos homens corrompidos pelo
capitalismo.
Embora não haja apropriação efetiva da perspectiva infantil pelo narrador, constata-se
certa identidade entre os valores infantis e os que são defendidos pelo “digno e velho” Blau,
sobretudo no que diz respeito ao sentimento telúrico. A criança, como um ser que corporifica
o primitivo, compartilha com o porta-voz da tradição a posse do mesmo código ético, a
concepção cíclica do tempo e o pensamento mágico, antecipando as características próprias ao
herói gaúcho. Nessa ótica, a manifestação infantil, assim como o testemunho de Blau Nunes,
é, simultaneamente, ingênua e sábia, herdeira e questionadora.
Na sociedade guerreira e patriarcal representada, os meninos e meninas simonianos
mostram-se, sobretudo, através da inação. A criança não é percebida como sujeito, mas como
o ser que sofre a ão alheia. Privada da ação e da fala, a criança não tem assegurada sua
visibilidade social
20
, permanecendo indistinta em meio aos adultos, como um quase animal ou
um ser ainda não humanizado. Dentro da narrativa simoniana, o episódio que, via de regra,
individualiza o ser infantil, seja ele masculino ou feminino, consiste na circunstância que lhe
imprime a marca adulta, isto é, dá-se simultaneamente à interrupção da infância.
Observa-se que as práticas de criação dos filhos fornecem a chave para a transmissão
de todos os demais traços culturais, de modo a permitir a coesão e a manutenção do grupo
social. No mundo narrado, parece predominar o autoritarismo masculino na imposição de um
projeto coerente com a tradição, não sendo explicitadas preocupações específicas com a
educação dos pequenos. Dentre os vinte e um conselhos que compõem “Artigos de do
gaúcho”, por exemplo, a maioria volta-se aos cuidados com os cavalos, alguns se referem ao
20
Ao transformar-se em objeto de representação na obra simoniana, a criança adquire visibilidade narrativa,
passando a desempenhar papéis e funções na interação de Blau com o seu leitor/interlocutor. Contudo, a nitidez
da criança na narrativa não está, necessariamente, associada à sua visibilidade social, na medida em que o
aproveitamento da infância como motivo ficcional não garante que se modifique o modo como a sociedade
representada percebe o ser infantil. Pozenato (2003) chama a atenção para o fato de que o nível da produção e o
nível da representação cultural podem ser absolutamente separados. Segundo o autor (2003, p. 53), “quando
existe a separação, seguramente há a alienação de alguma coisa, e há alguém interessado”.
135
trato com as mulheres e nenhum deles se dedica à criação das crianças. A própria
desconsideração da identidade infantil, bem como das especificidades infantis, parece
constituir uma prática cuja repetibilidade ao longo do tempo instituiu-a como tradição.
Discutindo a dinâmica cultural, Pozenato (2003, p. 82) entende que “se alguém aceita,
pura e simplesmente, uma determinada ordem moral, muito provavelmente essa aceitação está
vinculada a algum tipo de interesse”, seja o de ter mais poder, seja o de se subtrair ao poder.
Mesmo quando a atitude infantil parece fundar-se na aceitação, visa interferir, de alguma
forma, nas relações de poder instituídas, através da reordenação da própria posição na
hierarquia identitária.
Apesar de não gozarem de cuidados especiais e de estarem expostas à adultização
precoce que termina por subordinar a identidade infantil, as crianças podem mostrar-se
capazes de reagir à ação e à palavra do grande-outro. Em “Penar de velhos”, Binga rebela-se
contra a autoridade paterna e, fazendo-o, contrapõe-se à violência masculina, sancionada pela
tradição. Pozenato (2003, p. 42) observa que “a rebeldia nunca é um gesto do indivíduo, é
uma rebeldia na direção de uma coletividade. Ela tem sentido dentro de um contexto maior”.
Nessa perspectiva, o menino manifesta sua contrariedade em relação à contaminação do
espaço privado pelo público, pois não admite que a sua vergonha seja presenciada pela
“peonada”.
Ao requerer a separação entre o público e o privado, Binga propõe uma mudança nas
relações sociais que rompe com a tradição da vida comunitária e indica uma possibilidade de
promover a valorização da infância, uma vez que a privacidade familiar tende sempre a
centralizar a figura infantil. Ao mesmo tempo, o menino revela-se um autêntico “gauchinho”,
assumindo a autoria dos seus atos e contrapondo-se à própria humilhação. O guri
compromete-se com a imagem do gaúcho legitimada pela tradição, como se essa identidade
fosse parte da sua “natureza”.
136
Através de sua forma particular de lidar com os conflitos da organização sócio-
cultural, o menino Binga assume e, ao mesmo tempo, contesta o legado paterno. Ao
transformar-se em um pária social, o “guri desguaritado” desestabiliza o movimento da
tradição, que acontece unidirecionalmente, de pai para filho. Binga inverte o sentido da
transmissão, encaminhando ao pai, através da sua atitude, um indício da contradição da
herança. Abdicando da sua inserção no projeto familiar, que o conduziria a ser dono de
estância, resta a Binga o engajamento na tradição “da margem”, sustentada pelos que não
dispõem de propriedade e de poder. A estes, cabe assumir a designação de gaudério ou de
peão.
Por constituir-se na dependência de um contexto histórico, social e cultural, o adulto
também traz as marcas de uma construção que se fez adultocentricamente, às custas de
assimetrias e violências, com o fim de justificar e legitimar a superioridade adulta masculina.
Nesse sentido, referências de identificação e reconhecimento daquilo que torna o sujeito
masculino verdadeiramente um “homem gaúcho” fazem parte de um legado que é custoso
sustentar e impossível repelir.
O alto preço pago por Binga pela sua intervenção no processo cultural, cujo controle
cabe exclusivamente ao homem adulto, também é pago por este último. Daí que o penar a que
os pais de Binga sucumbem torna-se ainda mais desorientador porque o menino é filho único,
e os velhos não têm a quem transmitir seu legado. Se, “engambelado por um padre gringo”, o
pai de Binga desperdiça toda a sua herança material, deixando-a para “missas e outros
engrólios”, da mesma forma, sua herança não material é desperdiçada, em vista de não haver
herdeiros.
4.2.1 O Negrinho, a outra criança
137
Ao contrário de Binga Cruz, o menino escravo que protagoniza “O Negrinho do
Pastoreio” não pode contrapor-se explicitamente ao exercício de violência do adulto. A ele
não cabe o ato de rebeldia libertador, mas a aceitação passiva da possessão alheia, porque, na
condição de objeto, foi coisificado para servir de instrumento de trabalho. Nesse ponto de
vista, o Negrinho representa o colonizado, enquanto a gente “da terra” é a colonizadora, que
dele usufrui. O estancieiro, além do poder econômico, detém os meios de produção, dentre os
quais, os escravos.
A referida lenda contraria a idéia de igualdade entre senhores e escravos, segundo a
qual os negros viviam felizes no Rio Grande do Sul, comendo à vontade e realizando
trabalhos mais sadios que fatigantes. A respeito disso, Moreira (1982, p. 59) assinala que,
embora a posição social não pareça constituir um valor para o gaúcho, “um aspecto que
merece ser considerado e que romperia com o mito da democracia campesina. É o tratamento
dispensado ao negro”, o qual pode ser verificado, por exemplo, em “O mate do João
Cardoso”, em que a personagem que nome ao título dirige-se com brutalidade ao seu
escravo, chamando-o de “crioulo”, “bandalho” e “diabo”.
No conto “Melancia-Coco Verde”, a personagem escrava é a única solidária ao
sofrimento da sia Talapa, assumindo uma posição maternal para com ela. O narrador descreve
da seguinte maneira a relação de intimidade e de cumplicidade entre a jovem e a escrava:
Uma negra que havia lhe dado de mamar era a única criatura que chorava com a
moça... mas chorava escondido, a pobre, por medo do laço... De noite, fechadas no
quarto, as duas abraçavam-se, rezavam e só diziam, no consolo de uma esperança:
- Mãe santíssima... valei-me!...
- Nossa Senhora!... manda nhô Costinha aparecer!... (LOPES NETO, 2000, p. 107-
108).
Nessa passagem, a organização do espaço da estância deixa entrever uma profunda
desigualdade, exercida através de padrões violentos de autoridade. Tendo em vista que a
liberdade é, por excelência, o elemento humanizador para o sujeito rio-grandense, é pertinente
entender que seja questionado, no texto, o pertencimento do ser não-livre à humanidade.
138
Nesse sentido, o negro Bonifácio goza do mesmo respeito social devido ao genuíno homem
gaúcho, em virtude, possivelmente, da sua condição de liberto. Além disso, Moreira (1982, p.
67) acredita que essa personagem é respeitada porque “sabe fazer”, isto é, seu valor é
reconhecido pelo desempenho exemplar que demonstra no pastoreio e na guerra, valor
também atestado pela sua vestimenta e postura.
Não é esse o caso do Negrinho que, na lenda, perde a corrida de cavalos, da qual
participa por ordem do patrão. Uma vez demonstrado o “não saber fazer”, é imposta ao
Negrinho uma cruel expiação. Como se vê, na ordenação desigual do universo estancieiro
também estão mergulhadas as crianças, que as personagens infantis partilham das práticas
adultas, especializadas em conformidade com a posição social. Em “O Negrinho do
Pastoreio”, evidencia-se, nitidamente, uma estratificação que não estava explícita até então,
no mundo narrado: a divisão de classes sociais. Assim, as ocupações do negrinho e do filho
do estancieiro diferenciam-se sensivelmente: “todas as madrugadas o Negrinho galopeava o
parelheiro baio; depois conduzia os avios do chimarrão e à tarde sofria os maus tratos do
menino, que o judiava e se ria” (LOPES NETO, 1984, p. 169). ao filho do estancieiro,
distinguido pela condição de possuidor, cabe ensaiar-se no tratamento aos escravos dos quais
será herdeiro.
Saint-Hilaire (1974, p.73), em visita à casa de um estancieiro pelotense, a 11 de
setembro de 1820, fez o seguinte registro:
sempre na sala um pequeno negro de 10 a 12 anos, cuja função é ir chamar os
outros escravos, servir água e prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço
criatura mais infeliz que essa criança. Nunca se assenta, jamais sorri, em tempo algum
brinca! Passa a vida tristemente encostado à parede e é freqüentemente maltratado
pelos filhos do dono. À noite chega-lhe o sono, e, quando não há ninguém na sala, cai
de joelhos para poder dormir. Não é esta casa a única que usa esse impiedoso sistema:
ele é freqüente em outras.
O relato do viajante demonstra que a história do Negrinho encontra correspondência
fora da ficção, e atesta a prática comum de dispor de crianças escravas para desgastantes
139
tarefas. O adestramento no trabalho e a obediência ao senhor possibilitam ao menino escravo
a sobrevivência, de forma que, conforme Góes e Florentino (2002, p. 178), por volta dos 12
anos, quando conclui o aprendizado de algum ofício, a criança é considerada adulta, e a
profissão passa a ser usada como um sobrenome que a identifica, como se com o Negrinho
do Pastoreio. A marcação do ofício no nome indica que ele não é mais aprendiz e que seu
trabalho deve ser exemplarmente executado. O diminutivo pelo qual o menino é nomeado
sinaliza que se trata de um homem pequeno, porque não distinção etária no tratamento aos
escravos já especializados em algum ofício.
Embora nenhuma personagem seja nomeada, na lenda, o narrador assim se refere ao
menino escravo: “A este não deram padrinhos nem nome”. Tal caracterização define o lugar
marginal que o pequeno ocupa, pois ninguém é responsável pelo seu cuidado. O menino não
foi nomeado e, portanto, não possui existência social. A ausência de nome próprio aponta,
também, que o negrinho está destituído de identidade, precisando apropriar-se da referência
identitária alheia para sobreviver. Além disso, ao ser chamado de Negrinho”, o pequeno
escravo torna-se símbolo de toda essa classe de marginalizados pelo branco colonizador.
Na lenda simoniana, a punição que desencadeia os infortúnios do escravo é justificada
pelo seu mau desempenho na aposta feita pelo patrão. Apesar de não haver, necessariamente,
a identificação do escravo com os modelos identitários gaúchos, é fundamental que o menino
assuma a tradição do meio sócio-cultural a que serve, transformando-se em herdeiro, ainda
que ilegítimo, de práticas e habilidades imprescindíveis. Trair a herança imposta faz do
escravo uma ferramenta imprestável, mas descartá-lo representa uma perda material ao
estancieiro. Como compensação pelo prejuízo que representa, o corpo do menino transforma-
se, antes de ser completamente aniquilado, em alvo de uma violência desmedida. O castigo
imposto difere do atraiçoamento do boi Cabiúna, no conto “O boi velho”, uma vez que,
enquanto a morte do boi visa a obtenção de lucro com o aproveitamento do couro, não
140
ganho material com a morte do menino. Ela é, simplesmente, um nítido exercício da maldade
humana.
A destreza sobre o cavalo constitui um dos traços identitários mais fortes do homem
gaúcho, de modo que a falha sobre a montaria deprecia o sujeito, transformando-se em dano
passível de reprimendas sociais. A atuação do Negrinho, interpretada pelo estancieiro como
inabilidade, deve ser exemplarmente punida e, como o menino inexiste socialmente, seu
castigo precisa ser sico. Ao perder a carreira por sua incompetência, ele mostra-se
desajustado em relação àquela prática tradicional, que se encontra revestida de valor social e,
nesse caso, também de valor material, porque muito dinheiro foi posto em jogo, na
dependência de sua habilidade. Em vista disso, a validade material do menino escravo, a qual
lhe garante a vida, deprecia-se. Assim como o filho e o baio, o Negrinho era depositário da
confiança do estancieiro, que para esses três viventes olhava nos olhos. A derrota na
corrida significa a traição da credibilidade que o dono depositava em seu objeto de posse, e o
desprezo a ele dirigido acentua-se em virtude do dano financeiro.
A carreira, situação que fornece ensejo ao conflito da lenda, constitui um espaço
propício à festa popular, típica da estância dos primeiros tempos, em que todos se misturam.
Na descrição desse evento comunitário, evidencia-se o suspense oriundo da contenção da
violência, que consiste numa estratégia freqüente para solucionar disputas. Assim, quando a
parada é questionada, “mais de um torena coçou o punho da adaga, mais de um desapresilhou
a pistola, mais de um virou as esporas para o peito do pé...”. No entanto, a figura respeitosa do
juiz foi capaz de impedir a eclosão iminente da violência. Ele era “um velho do tempo da
guerra de Sepé-Tiaraju, era um juiz macanudo, que tinha visto muito mundo. Abanando a
cabeça branca sentenciou, para todos ouvirem: Foi na lei!” (LOPES NETO, 1984, p. 170).
Os cabelos brancos do velho autorizam-no a decidir a contenda, pois a sua trajetória
de vida lhe confere uma credibilidade tal, que seu julgamento é incontestável, correspondendo
141
à verdade sancionada pela tradição e aceita pelos demais. Desse modo, ao estancieiro mau não
restam meios de contrariar a derrota. Chiappini (1988, p. 257) salienta, a respeito, que a
imposição inquestionável do velho juiz confirma uma das intenções tidas da lenda
simoniana: “restaurar a dignidade da tradição da estância e dos homens que aí vivem contra o
seu amesquinhar pelo dinheiro e pela ambição”.
O patrão mau situa-se na dependência das suas posses e está a tal ponto alienado pela
corrupção material, que, ao lonquear um tourito magro, parecia que era o “seu próprio couro
que ele estava lonqueando” e, ao perder a aposta, entregou as mil onças com a alma
arrebentada. Nessa atitude, o estancieiro contradiz valores tradicionais, tais como a bondade e
o desprendimento material, exercendo egoisticamente a posse do espaço natural que está sob
os seus domínios e opondo-se ao estancieiro bom, que doa o dinheiro, sendo, por isso
exaltado pelo narrador.
Por não constituir modelo de conduta, o estancieiro mau é desdenhado. Nele, o código
ético do homem gaúcho encontra-se corrompido pelo materialismo:
Não dava pousada a ninguém, não emprestava um cavalo a um andante; no inverno o
fogo da sua casa não fazia brasas; as geadas e o minuano podiam entanguir gente, que
a sua porta não se abria; no verão a sombra dos seus umbus abrigava os cachorros;
e ninguém de fora bebia água das suas cacimbas (LOPES NETO, 1984, 168).
Ferindo os valores tradicionais do povo gaúcho, o estancieiro mau distingue-se
negativamente dos demais, divorcia-se do seu espaço e das suas origens, suspende a
hospitalidade e as aparentes relações comunitárias da estância e, por isso, não encontra aliados
na sociedade. Como punição social pela sua mesquinharia, o estancieiro obtém a solidão e o
desprezo:
[...] quando tinha serviço na estância, ninguém vinha de vontade dar-lhe um ajutório; e
a campeirada folheira não gostava de conchavar-se com ele, porque o homem dava
para comer um churrasco de tourito magro, farinha grossa e erva-caúna e nem um
naco de fumo... e tudo, debaixo de tanta somiticaria e choradeira, que parecia que era
o seu próprio couro que ele estava lonqueando... (LOPES NETO, 1984, p. 168).
142
A solidão imposta ao estancieiro mau advém do uso autocrático do poder e consiste
em um exílio do mundo dos homens, pela aliança firmada com o mundo material. Distingue-
se, nesse sentido, da solidão típica do gaúcho, a qual parece ser uma maneira de exercer o
reconhecimento do espaço e consolidar a sua fusão ao meio natural.
Enquanto o estancieiro mesquinho é socialmente marginalizado, o estancieiro bom é
valorizado pelo seu desapego ao dinheiro. Todavia, como observam Arendt e Conforto
(2004b, p. 71), o dinheiro distribuído aos pobres pelo estancieiro bom advém de uma aposta e,
portanto, não compromete o capital do doador, que, com sua atitude, não soluciona, mas, ao
contrário, alimenta, as desigualdades sociais. Encontra-se, assim, valorizada e reforçada
socialmente a atitude paternalista que orienta a própria vida na estância, onde os homens
pobres, sejam cativos ou livres, são dependentes do estancieiro para sobreviveros primeiros
contando com sua bondade, os demais, com sua esmola. A esse respeito, Xavier (1964, p. 58)
atesta que
o estancieiro é o protetor de todos os dependentes da sua área e sobre todos exerce
autoridade indiscutível. Toda a população – campeiros, escravos e animais – existe em
função de suas necessidades e de sua família. Para servi-la e defendê-la. Para fazer
prosperar o núcleo de produção. Para enriquecer o dono da estância.
A lenda “O Negrinho do Pastoreio” enuncia uma reflexão sobre o poder, a sua
hipertrofia em violência e a maldade que se sobrepõe a formas mais elaboradas de exercício
da autoridade. As novas relações de trabalho estabelecidas na estância do patrão mau obtêm a
desaprovação da comunidade, uma vez que antecipam a transformação da organização
estancieira, anulando a pretensa igualdade dos tempos anteriores e acentuando as diferenças
sociais. A partir de então, o homem livre e pobre o pode mais usufruir do seu próprio
espaço, de seu pedaço de terra e de sua casa no território do estancieiro e não conta mais com
a proteção do homem a que serve. Tudo pertence àquele que detém a posse da terra e dos
instrumentos de produção, estando a serviço da sua ascensão econômica. O pacto de
143
dependência mútua entre patrão e peão é suplantado, pois a partilha de valores e tarefas
comuns é substituída pela compra e venda da força de trabalho.
Apesar da resistência social dirigida à nova configuração das relações sociais e de
trabalho, sabe-se que, em pouco tempo, ela estará consolidada. O menino maleva, cuja
maldade não recebe castigo, é o herdeiro do modelo paterno. Além da posse da terra e de tudo
o que sobre ela, animais ou escravos, o filho exercita a relação doentia com aquilo que
possui, ensaiando-se na maldade que lhe inspira o exemplo do pai.
A atuação do menino mau é decisiva à sorte do Negrinho, que, além de estar
desprovido de identidade e de proteção familiar, o possui infância. Como objeto, o
Negrinho serve de brinquedo ao filho do patrão, cujo divertimento é vê-lo sofrer. O real se
impõe com tamanha força ao menino cativo, cerceando-lhe de tal forma a liberdade de existir,
que para ele é impossível realizar uma fuga no espaço, tal como a de Binga Cruz, em “Penar
de velhos”. Desse modo, a única forma de escapamento para o Negrinho é o ingresso em
outro plano, o transcendente.
A sucessão de castigos dirigida ao escravo é requerida através de desonrosos e
ilegítimos movimentos de traição, roubo e delação, nos quais o menino sádico alia-se aos
“bichos maus”. Mas o Negrinho também oferece ensejo à intervenção do mal, quando se
entrega ao sono. Chiappini (1988, p. 270) observa que a sonegação do trabalho, o seu boicote
pelo descuido e pelo sono, é o elemento humanizador do pequeno escravo. Através dessa
atitude, o escravo retoma sua subjetividade e sua condição humana. Além disso, a repulsa à
lida assinala o contraste com o tempo lúdico do mito, explicitando a dissociação entre o labor
e o prazer. Ao mesmo tempo, contraria a apologia ao trabalho, num momento histórico em
que o enriquecimento material começa a ser nitidamente perseguido.
O sono e a vigília, o perder e o achar, o choro e riso, intercalam-se no gradativo
processo de transcendência do Negrinho, que vence a dor, o medo, a fome, a fraqueza, o
144
cansaço e, por fim, a própria morte. Em seu caminho de provação, buscando reaver, junto ao
pastoreio perdido, o seu lugar no olhar do estancieiro, o Negrinho conta com a intervenção de
Nossa Senhora, “madrinha dos que não a têm”, e dela recebe o objeto mágico: a vela, de cujos
pingos nascem novas luzes. Observa-se, novamente, a apropriação dos elementos identitários
alheios, como forma de sobrevivência, já que o menino recorre à Virgem, assumindo a crença
religiosa do colonizador, para obter proteção no espaço hostil que lhe foi imposto.
Contudo, o poder intermitente da vela e dao se mostra, a princípio, maior do que
a maldade humana, servindo apenas para retardar o desfecho e permitir nova investida do mal.
Ao fim, o menino é recompensado pelo seu sofrimento, alcançando uma vitória simbólica:
recebe uma tropilha de cavalos que pastoreia a hoje sem ninguém ver. Ao sobrepor-se ao
plano material, sico e humano, autorizado pela presença da Virgem guardiã, o Negrinho
acessa, enfim, o território da liberdade plena sobre o tempo e o espaço, isto é, alcança a eterna
infância, no gozo lúdico e gratuito da nova condição. Conforme assinala Chaves (2001, p.
208), a superação do mundo corrompido e o restabelecimento da dimensão da liberdade, ainda
que por meio do fantástico e do imaginário, constituem o “milagre novo”. Através dele, a
criança escrava é definitivamente extraída da sua posição de objeto.
Entretanto, o pequeno torna-se eterno devedor de Nossa Senhora, necessitando, para
todo o sempre, “pagar” o toco de vela tomado do oratório, restituindo à dona aquele utensílio
que, transformando a noite em dia, permitiu-lhe localizar a tropilha de cavalos. Nesse sentido,
embora atinja o estatuto do homem livre, a dependência vital do escravo para com o
estancieiro não é anulada, mas transferida para a Virgem, que, em troca da proteção, se faz
merecedora do infinito devotamento do Negrinho. Substituindo o senhor, a Virgem se faz
senhora.
A respeito, Meyer (1960, p. 112) entende que o desfecho concedido ao pequeno
escravo não poderia ser mais ingrato, tendo em vista que ele não apaga o terrível absurdo do
145
martírio. O autor acentua que a transformação do menino em um “prestimoso piá que procura
e acha as coisas perdidas” é resultado do egoísmo humano. Perdurando a tristeza sob qualquer
transformação ou adaptação do Negrinho, o sentido pungitivo e profundo do seu percurso é “o
de uma constante acusação”.
A redenção do escravo pelo acesso à esfera sobre-humana dá-se à custa de terríveis
sofrimentos no mundo dos homens, o que sinaliza com clareza a função da dor e da carência
no plano material para o alcance da recompensa na eternidade. Como compensação pelos
sofrimentos terrenos, o Negrinho transforma-se, de ser desejante, em mediador do desejo
alheio, capaz de realizar intervenções na realidade. A criança torna-se intermediária,
permanentemente situada entre os dois mundos, em constante comunicação com os homens,
apesar de pertencer a outro plano. Assim como o menino Jesus, no conto O ‘menininho’ do
presépio”, o Negrinho pode operar pequenos milagres. Ao mesmo tempo, sua trajetória entre
os homens aproxima-o do Jesus da paixão, pelos episódios de perseguição e pelo sacrifício
que resulta em um bem comum. Além disso, nota-se a presença constante de Nossa Senhora,
cuja atuação não impede o flagelo do protegido. Como o Jesus morto, o pequeno ressuscita
após três dias, voltando à vida sob outra forma, em um plano superior. o potencial de
comunicar-se com o mundo humano, ao ser invocada, coloca a criança em posição similar à
de Nossa Senhora. Contudo, se o escravo se esquiva à posse do patrão, fazendo-se sujeito, seu
território de ação não escapa à relação entre homens e objetos, em torno da qual aconteceu seu
próprio flagelo.
No momento em que o patrão o Negrinho sarado e risonho sobre o formigueiro,
tendo a Virgem por guarda, ocorre uma inversão de posições entre o estancieiro e o menino,
uma vez que “o senhor caiu de joelhos diante do escravo”. A dissolução da hierarquia social
reinstaura a comunidade primordial, em que vigora a igualdade utópica, uma forma especial
de vida, ao mesmo tempo real e ideal. Entretanto, a redistribuição de papéis é provisória,
146
causando estremecimentos momentâneos na estruturação do poder, tendo em vista que apenas
no momento da passagem ao outro mundo o Negrinho alcança sobrepor-se ao seu senhor.
Ao contrário de Binga que, em “Penar de velhos”, realiza uma intervenção efetiva no
projeto sucessório, a vitória do Negrinho não se realiza na esfera social, mas no plano
transcendente. Os efeitos da sua trajetória e a sua ascensão a “achador” de coisas perdidas não
trazem abalos efetivos à configuração social em vigência, de modo que continuarão existindo
estancieiros maus e meninos-objetos que lhes pertencem. Esse fato parece ilustrar a
impotência do segmento infantil e, sobretudo, cativo, diante dos conflitos sociais, bem como a
alienação da sua força para fora da estrutura social.
No entanto, a lenda não critica, necessariamente, a escravidão, pois é plausível supor
que o estancieiro exaltado também fizesse uso do trabalho escravo. A crítica é, novamente, à
desumanização que, tendo em vista o materialismo, reduz as relações com o mundo e com os
outros ao nível da possessão violenta. O homem assim degradado o que lhe pertence: o
escravo, o cavalo e o próprio filho. Ao contrário do Negrinho, que escapou à vida que lhe era
imposta, o menino mau está definitivamente sujeito ao poder paterno e obrigado à sua
herança, não podendo questioná-la. Ele também é um homem pequeno, corrompido pela
posse, já doutrinado na maldade paterna.
Quer seja para validar, quer seja para depreciar, o olhar do outro é, necessariamente,
uma referência identitária, de modo que a valorização da fala, das habilidades, do aspecto
físico, do desempenho do adulto mostra à criança que ela é defeituosa. A construção
identitária requer a delimitação de fronteiras diferenciais, daquilo que distingue um grupo do
“outro”. Por isso, o estabelecimento da identidade infantil necessita da criança a vontade de
distinguir-se em relação ao outro, o adulto. É inviável, entretanto, reclamar tal configuração,
uma vez que apenas os detentores das características adultas situam-se de forma privilegiada
na escala hierárquica de valor social. A possibilidade de consolidação da identidade infantil é,
147
historicamente, anulada pelo investimento da criança no sentido de igualar-se ao modelo
social representado pelo adulto. Tal modo de significar a infância resulta na formulação de
práticas historicamente organizadas para inibir a constituição e a valorização da identidade
infantil, cuja lógica de funcionamento responde pela manutenção das relações de poder
estabelecidas pela tradição.
Para a criança cativa, junto à distinção de idade, a diferenciação de classe intervém
para obstar a constituição identitária. Antes mesmo de reconhecer-se criança, o desafio do
Negrinho é saber-se humano, que sua primeira distinção é com relação ao mundo dos
objetos. Nesse sentido, o que o diferencia do menino colonizador também tornado
instrumento, nesse caso, para a realização do projeto paterno –, é a anulação das
possibilidades de futuro, ou seja, a sua condenação a estar excluído de todos os projetos
sociais.
A ascensão do menino escravo à esfera transcendente retira-o do seu pertencimento ao
plano inanimado, auferindo-lhe, de imediato, o estatuto de sujeito sobre-humano, permitindo-
lhe a vontade e devolvendo-lhe vida própria. Ao mesmo tempo, contudo, expulsa-o
definitivamente do universo social, negando-lhe a possibilidade de realizar-se numa trajetória
de vida e cristalizando-o em eterna criança. O Negrinho, transformado em “achador” de
coisas perdidas, conserva-se com um poder limitado na reorganização do mundo, sendo capaz
de deslocar objetos no espaço, mas não intervindo na redistribuição de posições sociais.
A nova condição do Negrinho, por sua vez, também foi outorgada por um adulto,
substituto da mãe. É, novamente, o olhar de um grande-outro poderoso que permite à criança
tornar-se sujeito e adquirir autonomia, ao mesmo tempo em que lhe impõe limites de atuação.
Em vista disso, parece não haver, para as crianças, solução de identificação e de
reconhecimento fora da sua relação com o adulto e dos conflitos pelo exercício do poder.
148
Impedindo a circulação do poder, a sujeição das crianças produz uma identidade
infantil desde cedo ajustada e construída a partir de modelos adultos. Ainda assim, a principal
força da mudança histórica e social reside nas transformações que ocorrem através de
sucessivas interações entre pais e crianças, na medida em que essas passam,
progressivamente, de herdeiros sem história a sujeitos comprometidos com as antinomias
sucessórias da tradição. -----------------------------------------------------------------------------------
149
CONCLUSÃO
Ensejada pela circunstância peculiar que configura o período da infância, a
constituição identitária infantil traduz um conflito assimétrico entre as referências individuais,
ainda em estruturação, e aquelas atribuídas aos pequenos pelo adulto. Tendo em vista a
condição de fragilidade e dependência imputada ao sujeito infantil, a formação identitária da
criança desenvolve-se a partir da intensa participação da figura adulta, a qual,
prioritariamente, detém os meios para representar a realidade e, encaminhando suas
representações aos sucessores, formula, em larga medida, as referências identificatórias da
criança, dizendo-lhe como ela é e como deve ser. Desse fato advém a característica
adultocêntrica da identidade cultural infantil.
Como construção social, a identidade apresenta-se dinâmica, mostrando cumplicidade
com os contextos sócio-culturais no interior dos quais ela é produzida. Tais contextos
determinam a posição dos agentes, orientando suas representações e suas escolhas. No
primeiro capítulo desse trabalho, demonstrou-se que a atribuição de certos traços de
reconhecimento ao sujeito infantil produz-se em referência à concepção social de infância, a
qual, sujeita às transformações históricas vivenciadas pelo grupo, destina diferentes papéis,
expectativas e interditos comportamentais à criança. A noção de infância, em vista das
mudanças sócio-culturais, é marcada pela transitoriedade. Além disso, a construção identitária
infantil está sujeita à mutabilidade do ser criança, que se caracteriza pela indefinição e por um
processo constante de amadurecimento físico e psicológico. Por estabelecer-se em coesão
150
com o meio sócio-cultural, o plano social endereçado à criança implica um sentido de
reconhecimento e de adesão ao universo físico e simbólico no qual se insere o sujeito infantil.
Nessa perspectiva, entendeu-se a formação identitária pueril como uma construção regional,
circunscrita a certos valores e modelos, que constituem referências do pertencimento a
determinado grupo cultural.
No mesmo capítulo, enfatizou-se que a família constitui o primeiro espaço que abriga
o ser infantil, ao mesmo tempo em que catalisa e veicula as experiências sociais. Em virtude
disso, a célula familiar torna-se o lugar ideal de transmissão da herança cultural e da educação
para o cumprimento bem-sucedido dos papéis socialmente esperados. A estrutura familiar, no
interior da qual se processa a identidade infantil, configura distinções etárias, de gênero e
classe social, com maior ou menor clareza. Essas diferenciações encontram-se a serviço de
determinada ordem social, cuja conservação depende do cultivo de hierarquias de poder
estabelecidas, através das representações. Nesse sentido, considerou-se que a apropriação da
infância como tema ficcional e da criança como personagem traduz um posicionamento em
relação à idéia que o contexto de produção legitima em torno do período infantil.
O singular processo de constituição da sociedade sul-rio-grandense, embasado na
permanente tensão e no conflito armado, consolidou uma organização social estruturada na
valorização da masculinidade. Como se verificou ainda no primeiro capítulo, através da
família patriarcal, a comunidade gaúcha alimenta severas distinções de nero, as quais
tornam inevitável a diferenciação entre as expectativas e interdições voltadas para os meninos
e para as meninas.
No espaço regional construído pela representação simoniana, as identidades culturais
infantis também se concretizam como conseqüência da mediação familiar entre a criança e o
seu meio social. Visando a manutenção do privilégio dos traços de masculinidade, a família
patriarcal inflige um rigoroso controle sobre o corpo feminino quando jovem, por intermédio
151
do qual concretizam-se sensíveis danos e constrangimentos à posição masculina. Para tanto, a
atuação paterna mostra-se enfática no sentido de resguardar a honra das moças. O estudo
realizado no segundo capítulo registrou que é parte da função paterna exercer uma severa
vigilância sobre a iniciação sexual das filhas e encaminhá-las a uma união conjugal
conveniente à manutenção dos valores patriarcais, masculinos e adultos.
A afirmação identitária implica, necessariamente, um movimento voltado à
diferenciação. Contudo, no caso específico das identidades infantis regionais discutidas no
decorrer desse trabalho, reivindicar a sua distinção com relação aos adultos mostra-se
incoerente. Em uma sociedade estruturada sobre o valor da força e da experiência heróica, um
ser que se traduz pela carência de memórias e pela fragilidade física não pode pretender um
lugar privilegiado, a menos que se aproprie da trajetória alheia, antecipando-a à
experimentação das próprias possibilidades. A aceitação e a interiorização da identidade
construída pelos outros tende a produzir o reconhecimento de uma diferença negativa entre os
grupos, levando o estrato estigmatizado a uma tentativa de eliminar, na medida do possível,
os sinais exteriores da distinção.
Desse fato resulta que, na narrativa simoniana, a aprovação e o reconhecimento social
são, predominantemente, buscados na transgressão da condição infantil, através da entrada
abrupta na vida adulta e pública. Tal tentativa expressa-se na atuação do menino Blau que,
após a vivência traumática da guerra, mistura-se indistintamente aos soldados e peões. O
pequeno Binga Cruz também assume o status de homem na imitação vitoriosa da atividade
adulta de manejo do laço. A “criançada” de Binga, na caça às avestruzes, concretiza-se por
um movimento de inquietação e de ousadia que permite, conforme a avaliação do narrador, a
manifestação daquela “alminha de gaúcho”. A busca pela identificação com o adulto,
manifestada pelas crianças simonianas, seja na partilha de tarefas, seja na antecipação de
vivências circunscritas à condição adulta, pode ser percebida como fruto do desejo infantil de
152
reclamar o lugar de valor pertencente ao homem e de obter o reconhecimento social.
Conforme foi percebido na delimitação do mundo adulto e do mundo infantil, a neutralização
dos procedimentos de diferenciação torna difusas as fronteiras sociais e simbólicas entre a
infância e a vida adulta, possibilitando à criança ascender precocemente ao status privilegiado
do adulto.
Ao lado da mobilização da criança no sentido de anular o contraste negativo e de
igualar-se ao grande-outro, pôde-se perceber, ainda no segundo capítulo, uma forma de reação
infantil à ordem social, advinda, de modo espontâneo, do posicionamento da criança perante o
mundo. A manifestação da inocência infantil é capaz de desvelar as contradições e a
decadência do espaço social, permitindo a lucidez momentânea dos adultos corrompidos, os
quais se recolocam em relação ao seu passado e à própria infância. A análise de tal aspecto
deu-se a partir da leitura de “O boi velho”, salientando-se no episódio em que o “menino
gordote” tenta comungar o alimento com o boi morto. Contudo, concluiu-se que essa reação
infantil tende a ser suplantada pela passagem do tempo, uma vez que não constitui uma
estratégia consciente da criança.
Consoante a discussão realizada, a frustração das possibilidades de renovação da
ordem social pela criança parece estar ligada à desvalorização do ser infantil, que pode
alcançar posições de maior prestígio quando ascende à condição de adulto. Tanto para os
meninos, como para as meninas, a passagem à vida adulta concretiza-se, geralmente, na
reiteração de um dado lugar social, que, embora conflituoso e desgastado, é percebido como
natural, tornando-se, portanto, difícil questioná-lo. Ao longo do terceiro capítulo, assinalou-se
que as distinções de gênero encerram, em larga medida, o significado das relações sociais no
espaço simoniano, de modo que a contestação do lugar social em função das características
sexuais responde por grande parte dos conflitos nas narrativas de Blau Nunes. Isso se
verificou nas disputas entre Tudinha e o negro Bonifácio, Lalica e Chico Ruivo, Maria Altina
153
e Chicão, Sia Talapa e seu Severo, nhã Velinda e o pai Miguelão que, entre outras
personagens, põem-se em luta pela conservação ou pela atualização das distinções
estabelecidas a partir dos traços sexuais.
As diferenciações de gênero delineiam não apenas os papéis sociais, mas também, os
processos de iniciação para a vida adulta. O mesmo capítulo destacou que o sujeito feminino
experimenta sua primeira (e, às vezes, única) aparição pública no momento da passagem à
comunidade dos adultos. Trata-se da circunstância que envolve a iniciação sexual das moças,
quando essas atingem a idade de casar, como se evidencia, por exemplo, na individualização
de Maria Altina, de “No manatial”, Sia Talapa, de “Melancia-Coco Verde”, Tudinha, de “O
negro Bonifácio”, e Rosa, de “Os cabelos da china”. Tais jovens tornam-se visíveis quando
alcançam a maturidade para o exercício sexual, compartilhando entre si a beleza física e o
potencial de sedução. A admissão à comunidade de adultos, contudo, não retira a figura
feminina da obscuridade social. As tentativas femininas de intervenção no processo cultural
revelam-se, geralmente, desastrosas por colocarem em risco o interdito da sexualidade. Por
isso, as investidas da mulher ao espaço social estão sujeitas a sanções, as quais se concretizam
através da violência e da destruição do espaço afetivo em torno da figura feminina, bem como
do julgamento e do rechaço da comunidade, que lhes dirige, ao mesmo tempo, temor,
admiração e desprezo.
Segundo foi constatado, as meninas tornam-se mulheres exemplares quando
restringem sua atuação à esfera privada e quando, contrariando sua natureza, não provocam os
homens ao desafio. Dos sujeitos femininos, espera-se que prossigam na postura de submissão,
o que os coloca a serviço da ordem estabelecida. Atentando para a avaliação social dirigida à
mãe de Binga, em “Penar de velhos”, e à velha nhã Tuca, em “Chasque do imperador”,
admitiu-se que a idade avançada viabiliza à mulher aliar-se sem reservas ao projeto social,
pois a condição de velhice neutraliza o potencial indomado e incognoscível da feminilidade.
154
em relação à transformação de meninos a homens, a análise explicitada enfatizou
que o menino Blau, em “O anjo da Vitória”, experimenta, em meio à guerra, uma transição
brutal para a vida adulta. A “tormenta da valentia”, ensejando a perda da inocência e o
reconhecimento da violência desmedida, encaminha o menino para uma trajetória
comprometida com o modelo de homem propalado pela tradição. Repetindo o modelo, Blau
encontra um lugar de prestígio no meio social, ao mesmo tempo em que aceita as contradições
do seu tempo de menino, entendendo como degradantes as transformações do presente. Já no
caso de Binga Cruz, personagem do conto “Penar de velhos” que reage à violência paterna,
reitera-se a exclusão social do sujeito, pela negação do projeto sucessório a ele encaminhado.
Nesse mesmo capítulo ressaltou-se, também, que, na sua passagem a homens, os
meninos são chamados a assumir uma postura ativa, a qual constitui um elemento de distinção
cultural, sendo incorporada como própria da natureza masculina e como exigência da
condição de masculinidade. Ao longo da investigação, demonstrou-se que Blau Nunes, Juca
Guerra, Costinha, Juca Picumã e Jango Jorge, entre outros, são reedições dos heróis míticos
gaúchos, que seu modo de vida e seus valores mantêm notável coerência com a tradição,
conservando-se incorruptíveis diante das degenerações produzidas pela passagem do tempo.
A tais figuras opõem-se os estrangeiros e os degradados pela materialidade, cujos modos de
fazer e de ser trazem ameaças concretas à estabilidade sócio-cultural, catalisando, em virtude
disso, a rejeição da comunidade. Tomadas como indícios da potência viril e do pertencimento
ao grupo social, as formas de vestir, comer, falar, trançar, andar a cavalo e lutar, entre outras,
são designativas do valor do sujeito masculino. Conforme foi verificado, o desempenho
nessas tarefas assegura ao homem, e mesmo ao menino, uma posição modelar na sociedade
adulta simoniana.
O ingresso violento na vida adulta deve-se, ao menos em parte, à negação de uma
função social ao brinquedo infantil que, ao lado da precariedade de objetos para o manuseio,
155
contribui para transformar o ludismo da criança simoniana numa experiência quase marginal.
A análise do conto “Penar de velhos”, por exemplo, apontou que os pertences de Binga
resultam da exploração do espaço natural e da transferência de objetos de trabalho do adulto
para o domínio infantil, o que direciona as escolhas identificatórias da criança e permite-lhe
ensaiar a sucessão dos afazeres paternos. Na circunstância narrada, percebeu-se que, tendo em
vista a depreciação da atividade lúdica infantil, as crianças empregam o brinquedo como
instrumento para garantir o precoce compromisso com a condição adulta, deixando de
experimentar a possibilidade de recuos na aprendizagem do modo de ser adulto e, igualmente,
abstendo-se de vivenciar o poder de controlar e organizar o mundo que lhes é oferecido.
Em estreita relação com o exercício da dimensão lúdica, realiza-se a evolução sócio-
cultural, tendo em vista o papel que o jogo assume na regulação e na manifestação da
criatividade social. Em Contos gauchescos e Lendas do sul, constatou-se que a atividade
lúdica masculina goza de valor social, desempenhando a função de ensejar o desafio à
virilidade e de oportunizar a eclosão da violência bárbara, submetida a certo controle no
ambiente da estância. Esse aspecto foi elucidado, por exemplo, no estudo dos contos “Jogo do
Osso” e “O Negro Bonifácio”, em que o fazer lúdico dos homens transforma-se em disputa
pela honra e pela posição de virilidade, engendrando a retomada do conflito social entre o
masculino e o feminino.
Se a atuação adulta exige do sujeito masculino uma posição de atividade social, ela
postula, ao mesmo tempo, a aceitação convicta do legado constituído pela tradição, como foi
enfatizado no terceiro capítulo. Nesse momento, explicitou-se, igualmente, que o abandono
precoce da infância tende a ser entendido, pelo adulto, como a conquista da identidade gaúcha
pelo ser infantil, o qual, a então caracterizado pela indefinição, sela seu pertencimento
àquele grupo sócio-cultural. No entanto, ponderou-se que, em tal atitude, pode residir uma
reação deliberada à invisibilidade social, através da renúncia a uma identidade
156
desprivilegiada, para a admissão no grupo de maior prestígio social e, conseqüentemente,
identitário.
O quarto capítulo examinou a posição de Blau Nunes, como a figura que sintetiza as
virtudes identitárias do homem gaúcho tradicional. Por isso, de acordo com o que foi
discutido, a palavra lhe pertence e, através da sua fala, são reinterpretadas as identidades cujo
posicionamento ao longo do tempo é considerado periférico. Tal fato sinalizou que, embora o
sujeito possa, conforme sua posição social, estar preso a diferentes tradições, as quais se
deixam perceber no espaço narrado, apenas a mais forte do ponto de vista social e político
goza de inteira legitimação.
A discussão desenvolvida nesse capítulo salientou que o compromisso inconteste com
a herança da tradição legitimada e a aceitação das suas contraditoriedades levam o sujeito a
integrar-se ao projeto social, transformando-o em representante do grupo. Paradoxalmente, tal
atitude extrai o sujeito da história, ao consolidar procedimentos de repetição. Nessa
perspectiva, verificou-se que o potencial infantil para a inovação é reconduzido para o
cumprimento de um papel cultural que reside no passado. A circunstância passada, por sua
vez, exposta a renegociações, reveste-se de uma condição de perfeição, sendo traduzida a
partir de características míticas, como modelo para as gerações seguintes.
A contestação à conjuntura de autoritarismo cultural e identitário pode ser ensejada
pela inadaptação do sujeito ao projeto social. Todavia, como foi exposto no mesmo capítulo,
as reações infantis advindas da rebeldia à circunstância histórica e à imposição cultural são,
geralmente, alienadas para outros planos, produzindo intervenções cujos resultados mostram-
se reajustáveis ao projeto coletivo. O sujeito continua, nesse caso, sendo excluído do processo
histórico-social, tendo em vista que sua marginalidade não lhe permite opor-se às
representações legitimadas. A atuação de Binga Cruz, que foge à autoridade paterna, permite-
lhe encaminhar à estrutura social um indício de sua incoerência e de sua falibilidade. Ao
157
mesmo tempo, resta-lhe “um fim que nunca se soube”, isto é, o definitivo não reconhecimento
social.
Dentre os herdeiros ilegítimos da tradição, a criança colonizada, representada pelo
Negrinho do Pastoreio, mostra-se ainda mais próxima da vida adulta do que as demais, uma
vez que quase não existem limites etários distintivos entre os escravos. Conforme foi
salientado na discussão da lenda “O Negrinho do Pastoreio”, apesar de compartilhar o status
do ser adulto para o trabalho, o menino escravo encontra-se efetivamente apartado do mundo
social e político. Para ele, a conquista de um desempenho equivalente ao do homem adulto
não possibilita a visibilidade social, em vista do seu pertencimento ao plano dos objetos.
Averiguou-se, igualmente, que as referências através das quais o Negrinho transita de
instrumento de trabalho a ser milagroso, constituem identidades atribuídas por adultos, sem
garantias de equivalência em relação à auto-identidade do sujeito referido. São os outros que
dizem ao Negrinho o que ou quem ele é um negrinho, uma estaca, um “achador” do que se
perde no campo – circunscrevendo um espaço adequado para a sua atuação.
A discussão enfocada no quarto capítulo observou, ainda, que a negação de autonomia
e do poder para “dizer-se” não é exclusiva da criança escrava. O que a distingue dos meninos
colonizadores é que o acesso destes a um lugar social é, geralmente, uma questão de tempo. Já
para os pequenos cativos, assim como para as meninas, o pertencimento social é, via de regra,
uma interdição dificilmente transgredida.
No decorrer do estudo, demonstrou-se que as representações concebidas para a
infância simoniana ilustram, ao lado da precariedade de elementos de distinção, a frágil
atenção que os adultos dedicam ao ser infantil, por causa da limitada nitidez com que o
percebem. Em Contos gauchescos e Lendas do Sul, o desempenho infantil na reação à
identidade atribuída e ao plano sucessório evidencia-se nas tentativas de instaurar conflitos
pela redefinição identitária e de atualizar a concepção de infância. Ao mesmo tempo,
158
manifesta-se claramente a resistência do grupo ao questionamento dos lugares sociais.
Aliando-se ao plano social que lhes é endereçado, ou reagindo a ele, Blau Nunes, Negrinho,
Binga Cruz, Costinha, sia Talapa, nhã Velinda, Tudinha, Maria Altina, entre outras
personagens, nomeadas ou não, apresentam percursos profundamente assinalados pelo
compromisso com a herança da tradição e pelos riscos da contestação ao projeto socialmente
formulado. Tendo em vista que o sujeito infantil, via de regra, não experimenta outros modos
de ser adulto, acaba por inserir-se na continuidade histórica, de maneira que se evitam
rompimentos severos no andamento do processo sócio-cultural.
Portanto, comprovou-se a hipótese norteadora deste trabalho, de que, em Contos
gauchescos e Lendas do Sul, predomina a aceitação de uma herança constituída tradição
fato que inibe a atualização do conceito de infância. Na sociedade representada, mostrou-se
com clareza um movimento de conservação sócio-cultural, cujo fortalecimento através das
gerações torna-se difícil romper, impondo um alto custo aos que o contrariam.
Outrossim, confirmou-se, ao longo da investigação realizada, que o embate entre a
posição de agente da própria constituição identitária e de receptor passivo da imagem
socialmente projetada encerra uma notável interdependência entre o lugar infantil e os
processos culturais. À criança cabe um significativo papel na dinâmica cultural, que precisa
ser revitalizado e reconstruído, para conduzir à emancipação das identidades infantis
regionais. Desenvolvido em estreita dependência com relação ao olhar adultocêntrico e às
distinções de gênero e de classe, o processo identitário infantil regional vivencia, em Contos
gauchescos e Lendas do Sul, lutas nem sempre declaradas pela conquista da autonomia da
infância no universo sócio-cultural gaúcho.
Finalmente, considerando o fenômeno literário em suas relações com a sociedade,
cabe salientar que, ao veicular a temática da infância e viabilizar o questionamento do status
infantil na sociedade, as obras literárias mostram-se essencialmente transgressoras.
159
Cumprindo-se literariamente, os textos mostram-se subversivos à ordem dada, tanto pela
instauração de uma nova linguagem, quanto em vista do efeito social produzido pela
representação. Disso resulta um movimento sobre a realidade, o qual se mostra capaz de
mobilizar o conflito social em torno da herança cultural, problematizando a noção de infância
vigente no grupo representado.
160
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