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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
MESTRADO EM PSICOLOGIA
Fernanda Bocco
Cartografias da infração juvenil
Niterói
2006
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Fernanda Bocco
Cartografias da infração juvenil
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Psicologia do Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia, da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para obtenção
do grau de Mestre em Psicologia, na área de
concentração Subjetividade, Política e Exclusão
Social.
Orientadora: Prof. Maria Lívia do Nascimento.
Niterói
2006
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Fernanda Bocco
CARTOGRAFIAS DA INFRAÇÃO JUVENIL
Aprovada em agosto de 2006
BANCA EXAMINADORA
______________________________
Prof. Dra. Maria Lívia do Nascimento - Orientadora
Universidade Federal Fluminense
______________________________
Prof. Dra. Cecília Maria Bouças Coimbra
Universidade Federal Fluminense
______________________________
Prof. Dra. Estela Scheinvar
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
______________________________
Prof. Dra. Vera Malaguti Batista
Universidade Cândido Mendes; Instituto Carioca de Criminologia
Dedico este trabalho especialmente a Gilson, pela
voz e pelo sorriso que ainda me acompanham.
Também a todos os demais jovens com quem pude
me encontrar neste tempo. Sou intensamente grata
pelas vidas compartilhadas.
Agradecimentos
Qualquer trabalho que pretenda questionar as ordens estabelecidas, em especial no que
diz respeito aos jovens em cumprimento de medidas sócio-educativas, é possível se existir
um coletivo que o sustente. Meu agradecimento mais sincero a esse conjunto de pessoas que
tornou possível minha trajetória e esta produção:
- à professora e amiga Gislei Romanzini Lazzarotto, pelo afeto e pelo contágio com a
juventude e com os caminhos possíveis na universidade;
- a todas e a cada uma do grupo de Extensão ESTAÇÃO PSI (Estudos e Ações em Políticas
de Subjetivar e Inventar), do Instituto de Psicologia Social e Institucional da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pelos intermináveis intercâmbios e aprendizagens;
- às pessoas com quem convivi no Programa Integrado de Profissionalização Gráfica e
Marcenaria, na Companhia Rio-Grandense de Artes Gráficas (CORAG), e no Projeto Abrindo
Caminhos, na Procuradoria da República no Rio Grande do Sul (PR/RS), pela acolhida, pela
confiança irrestrita, e pelo estímulo e reconhecimento de meu trabalho;
- a Renata e Eduardo, integrantes do grupo que foi ao Quebec pelo Programa da CORAG, pela
paciência com meus primeiros passos e pela amizade cultivada até hoje;
- a Maria Lívia do Nascimento, pelo companheirismo e pelos incentivos, apoios e
ensinamentos que vão muito além do curso de mestrado;
- a Cecília Maria Bouças Coimbra e Vera Malaguti Batista, pela leitura carinhosa e atenta
deste material, pelas ricas contribuições, e, sobretudo, pelo exemplo de suas lutas cotidianas;
- a Estela Scheinvar, pela afetuosa proximidade e parceria durante o último ano do mestrado e
pelas intensas trocas durante e após a pré-defesa;
- a Regina Benevides, pelas minuciosas sugestões no momento da qualificação, as quais foram
valiosas para fortalecer este trabalho;
- a Enrique Martínez Reguera, por sua amorosidade e disponibilidade, por sua experiência de
vida e o que irradia dela;
- aos colegas desta caminhada na pesquisa, pela teoria em vivência e pelos providenciais risos
e abraços;
- à CAPES, pela bolsa que auxiliou a realizar parte desta pesquisa;
- a Paulinho e Andréa, por me receberem em sua casa e em seus corações;
- a todos da Organização Sathya Sai, por transformarem terras novas em terras familiares;
- à meus pais, Raúl e Argélia, pela presença amorosa, constante e incondicional, pela
transmissão do entusiasmo com os livros e com o conhecimento e pela sensibilidade de
deixar-se afetar pelos sofrimentos humanos;
- a Laura e Daniel, pelas escutas e conversas permanentes, pelo cuidado atencioso, pela paixão
com as letras e pela sobrinha;
- a Tonatiuh, incansável questionador, pelo brilho a mais que deu ao mundo e por ser meu
lugar de descanso.
Resumo
Esta pesquisa analisa a infração juvenil no contemporâneo brasileiro, considerando-a
como fenômeno social historicamente produzido e consolidado, assim como as práticas
profissionais dirigidas a jovens autores de infração. Tendo como referência principal os
conceitos de Deleuze, Guattari, Foucault, Wacqüant e Reguera, entre outros, são propostas
algumas linhas de análise sobre os elementos político-sociais que atravessam tal fenômeno,
assim como algumas possibilidades de intervenção junto aos jovens em cumprimento de
medida sócio-educativa de forma a produzir novos territórios de existência para todos.
A partir da experiência em um projeto de trabalho educativo, os registros de dois
diários de campo constituem o material de base para a construção dos questionamentos aqui
apresentados. Dessa forma, as falas e afetos dos jovens e da equipe interventora da qual
fazia parte a pesquisadora são a via escolhida para analisar como funcionamos, enquanto
sociedade, diante dos tensionamentos colocados pelo capitalismo mundial integrado e pelo
neoliberalismo.
Em um momento no qual presenciamos o encolhimento do Estado Social e a
conseqüente exacerbação do Estado Penal, a juventude pobre se na condição de excluída
por excelência, não participando do mercado de trabalho formal nem possuindo condições
reais de vir a inserir-se nele. Nesse contexto, a criminalização de porções cada vez maiores da
população sem poder aquisitivo tem sido a estratégia adotada pelo Estado Penal,
complementando-a com a militarização de suas ações sobre esses sujeitos e com a proveitosa
indústria da segurança pública, que transforma grupos sociais indesejados em mercadorias
altamente rentáveis. A infração juvenil, inserida nessa configuração punitiva e repressora, não
pertence ao âmbito individual ou dos chamados distúrbios da personalidade. O que a
caracteriza é ser socialmente construída, pautada por interesses específicos das classes
dominantes.
Assim, pensar em uma clínica da infração não se limita ao trabalho direto com esses
jovens, constituindo uma ferramenta de enfrentamento e resistência a tudo aquilo que tenta
capturar e controlar as diferenças, a criação, a solidariedade, a vida. Uma intervenção que se
pretenda clínica-política precisa partir dos encontros com os jovens, com idéias não
tradicionais, com novas maneiras de fazer psicologia, com diversos coletivos e dos efeitos
que eles produzem em todos os envolvidos.
Abstract
This research analyses contemporaneous juvenile infraction in Brazil, considering it as
a social phenomenon historically produced and consolidated, and the professional practices
oriented to youth who have committed infraction. Having as main reference the concepts of
Deleuze, Guattari, Foucault, Wacqüant and Reguera, among others, some lines of analysis are
proposed on the social and political elements present in such phenomenon, as well as some
possibilities of intervention with the youth who are subjected to disciplinary measures, in
order to produce new territories of existence for everyone.
Based on the experience from a Project of educational work, the records of two
journals constitute the foundation material for the construction of the questions presented in
this paper. Therefore, the speeches and affections of the youth and of the intervention team
including the researcher – have been the chosen way to analyze how we work, as a society, in
face of the tension imposed by the integrated world capitalism and by neoliberalism.
In a time when we testify the shrinking of the Social State and the consequent
exacerbation of the Penal State, the poor youth finds itself in a condition of exclusion, not
being able to participate in the formal workplace or having real conditions to enter it.
Considering this background, the strategy adopted by the Penal State has been the
criminalization of larger and larger portions of the population with no purchasing power,
complementing it with the militarization of its actions upon those subjects and with the
profitable industry of public safety, which transforms undesirable social groups in highly
profitable commodities. Juvenile infraction, inserted into this punitive and repressive
environment, does not belong to the individual scope or to the so-called personality disorders.
What characterizes it is being socially constructed, marked by the dominant classes specific
interests.
Therefore, thinking in an infraction clinical practice does not only mean directly
working with these youth; it constitutes a tool for facing and resisting to everything that tries
to capture and control differences, creation, solidarity, life. An intervention that intends to be
a political-clinical practice needs to start from the encounters with the youth, with
nontraditional ideas, with new ways of making Psychology, with several collectivities and
from the effects they produce in everyone involved.
Eu tenho um irmão morto. Existe alguém entre vocês que não tenha um
irmão morto? Eu tenho um irmão morto. Ele foi morto com uma bala em sua
cabeça. Foi antes do amanhecer do dia [...]. Muito antes do amanhecer a
bala que dispararam, muito antes do amanhecer a morte que beijou a fronte
de meu irmão. Meu irmão costumava rir muito, mas agora não ri mais.
Eu não podia guardar meu irmão no bolso, mas guardei a bala que o matou.
Outro dia, antes do amanhecer, perguntei à bala de onde tinha vindo, e me
disse: “do rifle de um soldado do governo de uma pessoa poderosa, que
servia a outra pessoa poderosa, que servia a outra pessoa poderosa, que
servia a outra pessoa poderosa, em todos os lugares do mundo”.
A bala que matou meu irmão não tem nacionalidade. A luta que devemos
lutar para manter nossos irmãos junto a nós, ao invés de guardar as balas
que os matam, também não tem nacionalidade.
Por isso nós [...] temos muitos bolsos grandes em nossos uniformes. Não
para guardar balas, mas para guardar irmãos.
(Múmia Abu Jamal)
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 1
Contágios com a juventude e esboços de uma pesquisa ......................................... 3
Ponte Niterói - Porto Alegre, passando por Madri ................................................. 11
I – TSUNAMIS E O CONHECIMENTO ................................................................ 19
1.1 – A orfandade da ciência ..................................................................................... 23
1.2 – Conhecer é preciso; implicar-se não é preciso ............................................... 29
1.3 – Quando o caminho subverte a meta ................................................................ 39
II – CARTOGRAFIAS DA INFRAÇÃO JUVENIL ............................................... 47
2.1 – Ordem e progresso na sociedade de consumo ................................................. 54
2.2 – Pobreza em três tempos: criminalização, militarização e rentabilização ..... 66
2.3 – Judiciário, Legislativo e Executivo: a mídia para além do quarto poder ..... 82
III – EU ACREDITO É NA RAPAZIADA ............................................................... 91
3.1 – A vida é a arte do encontro ................................................................................ 99
3.2 – Pistas para uma metodologia possível .............................................................. 122
PELAS VOZES QUE NOS FALAM ......................................................................... 133
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 141
ANEXO I ...................................................................................................................... 156
ANEXO II .................................................................................................................... 162
ANEXO III .................................................................................................................. 164
ANEXO IV .................................................................................................................. 167
INTRODUÇÃO
Pode-se afirmar que, quando trocamos de cidade, nós nos encontramos na situação
de um ator que, ao trocar de personagem, troca de iluminação, de cenário, de
roteiro, de figurino, de idioma, de maneira de impostar a voz e, certamente, troca de
público também. Ir viver em uma outra cidade significa sentir novos odores, adaptar-
se a uma alimentação diferente, aprender a apreciar sabores desconhecidos, sentir
mais ou menos frio, habituar-se a novos ruídos, redefinir a distância física em
relação às outras pessoas, caminhar em outro ritmo, e, sobretudo, mudar sua
maneira de olhar o mundo, a duração desse olhar, sua direção, profundidade e
passar a ser olhado diferentemente.
Habitar uma nova cidade, um outro país é como cumprir um ritual para passar de
uma cultura a outra, de um idioma a outro. Habitar uma nova cidade significa
reconstruir para si um cotidiano que depende da soma de uma infinidade de
pequenos detalhes no tempo. Os sons e as vozes do rádio que se deixa ligado o dia
inteiro para acostumar o ouvido a uma nova forma de expressar, de pensar; os
jornais, a televisão, o mercado, as livrarias, a burocracia, os colegas da
Universidade, os novos amigos, as pequenas viagens, as gripes, os médicos... Habitar
uma nova cidade é submeter-se a um “desenraizamento crônico”, para usar uma
expressão de Lévi-Strauss.
(Luis Eduardo R. Achutti)
A chegada na nova cidade coloca rapidamente em contato com novas sensações. O
calor, a umidade, rostos diferentes, o cinza do aeroporto, certa tensão no ar: estou no Rio de
Janeiro. Na viagem até Niterói, a passagem pela imensidão da Linha Vermelha e a certeza de
sair do “Rio-Cristo-Redentor” cartão-postal, conhecido à distância. Ao mesmo tempo, o
quanto a Linha Vermelha, a Rocinha, Candelária e tantos outros pontos não se tornaram,
também, ícones turísticos deste lugar?
Pela janela do carro através de vidros fechados e porta trancada aparecem os
primeiros prédios de Niterói: ali está o Carrefour, mais adiante o terminal rodoviário, as
barcas, e por trás de tudo o mar, impassível, alheio. Crianças e jovens na rua, vendendo
coisas, abordando os carros, mas estes estão hermeticamente fechados, assegurando que cada
um permaneça em seu devido lugar. Mesmo assim, algo afeta. Talvez o olhar-turista ainda
garanta certa estranheza com a cena e o estômago sente um embrulho, mistura de revolta,
impotência e medo. O discurso da mídia está presente ali, operando uma forma de ver através
da janela, com tudo tingido de números, estatísticas, imagens, rebeliões. Fica difícil continuar
vendo crianças (quem ainda consegue?), pois tudo insiste para que vejamos criminosos em
potencial.
Apesar do cansaço da longa viagem, é difícil conciliar o sono na primeira noite.
jogo do Flamengo, e os moradores dos cinco blocos do condomínio estão em êxtase gritando
pelas janelas estas, sim, abertas –, comemorando ou brigando com adversários imaginários.
Tudo muito diferente do silêncio do bairro em Porto Alegre, não sei se porque as janelas
permanecem fechadas, também para o futebol, ou se é porque se abrem e gritam apenas para
celebrar (ou lamentar) os resultados das eleições.
Nas noites seguintes, escuto disparos pela primeira vez, vindos provavelmente da
favela do Morro do Estado, bastante próxima do condomínio. Novamente custo a dormir, o
coração ainda responde acelerado com a nova experiência. É difícil não pensar que cada tiro
provavelmente esteja aumentando as estatísticas de mortes violentas no país, terminando uma
vida, sabe-se em nome de que. Depois de um tempo o sono chega, mas os sonhos estão
povoados de gritos, sirenes, dor, entranhado desconforto.
As primeiras circulações, feitas até a universidade, percorrem uma miscelânea de
edifícios bonitos, alguns moradores de rua de idades variadas, calçadas recém lavadas, outras
muito sujas, cheiros fortes de detergente ou de urina. Tudo coexistindo em um mesmo espaço,
formando uma paisagem que seria surreal se ainda estivesse visível aos olhos da população
em geral. Mas grades fechadas, câmaras de vigilância, porteiros-segurança, condomínios-
prisões; o discurso da mídia está presente ali também.
Como pesquisar em meio a tantas turbulências? Sobretudo quando se toma por objeto de
pesquisa o fenômeno da infração juvenil? Mestrado, tiros, pobreza, UFF, juventude, insegurança,
Flamengo, praia, Ingá, raiva, Sendas, violência, medo... Ao mesmo tempo, seria possível (e desejável)
isolar-se dessas experiências para construir um saber artificialmente imaculado? Deveria o mestrado ser
um fechar-se sobre si para produzir uma escrita-saber também fechados sobre si? Talvez essa mistura
de afetos que sente o sol durante o dia e o medo durante a noite, diz que não, NÃO! O movimento da
pesquisa, da construção da dissertação, é totalmente indissociável dos movimentos que esse caminho
provoca no pesquisador. Investigar sobre juventude e infração é também questionar como o
funcionamento do contemporâneo nos atravessa enquanto psicólogos, estudantes, pesquisadores,
habitantes de uma cidade, sujeitos. É questionar o que costuma parecer tão óbvio, é desconstruir clichês
quanto ao modo de ver as coisas e de viver no mundo.
O desafio, então, é o de estender esse olhar-turista para aquilo que se pesquisa, para aquilo que
se experimenta. Isso implica dispor-se às misturas e ao contágio dos encontros e, ao mesmo tempo,
insistir no constante estranhamento das falas, dos fazeres, das manchetes de notícias, das leituras
acadêmicas, das conversas cotidianas e, principalmente, de nossas práticas. Manter-se uma espécie de
estrangeiro, enfim, que se assombra com o mundo ao seu redor e não teme perder-se diante das
diferenças, pois as percebe como possibilidades de expressão em meio à multiplicidade própria da vida.
Contágios com a juventude e esboços de uma pesquisa
Vítor apareceu na sala contando acerca da proposta do procurador para pesquisar sobre os
índios. Parecia desanimado por pensar que teria de olhar em livros e enciclopédias em
busca de informações...
- Eu não gosto muito de pesquisar, sou muito ruim nisso, sempre falta alguma coisa, tem
alguma coisa errada...
- De que coisas tu gostas? – perguntei.
- Mulheres! – disse ele rindo.
- E como seria então essa pesquisa?
- Ah, aí eu ia pra rua pra conversar com elas!
- E por que então não fazemos assim com os índios?
- Ah, de mulheres eu sei, mas de índios não sei nada... Vi um índio aqui perto nestes dias,
tem um monte aqui pelo centro..
- O que tu gostarias de perguntar a ele?
- ... Eu queria perguntar de que tribo ele é, por que estava ali e não com sua tribo,
por que não são mais como eram antes, o que fez eles mudarem algumas coisas
nas suas tradições e se gostaria que as coisas voltassem a ser como eram antes
dos portugueses invadirem as terras do Brasil...Também queria saber por que as
mulheres fazem tantos filhos, o que acham de que o esposo tenha várias mulheres,
sei que em algumas tribos é assim... Também queria perguntar pros homens o que
acham de morar com o sogro quando casam...
Ficamos ambos em silêncio, eu olhei pra ele e sorri. Nem parecia mais o mesmo
de minutos atrás, tinha se incorporado na cadeira e agora respirava agitado. Com
os olhos brilhando e visivelmente decidido, ele levantou rápido e foi saindo da
sala. Já no corredor, voltou até a porta pra dizer, quase gritando:
- Agora eu me empolguei!!! É que eu gosto de pesquisa assim, quando eu pensei,
na minha cabeça, fazer pesquisa, era conversar com o índio, saber dele como é
que é, perguntar as coisas pra ele... não internet e livro, a pesquisa já tá pronta,
ali tá tudo que tu pode saber...
(Diário de campo I, 19 de fevereiro 2003)
Antes de entrar na faculdade, costumava dizer que poderia trabalhar em qualquer área
da psicologia exceto em duas: no ambiente escolar e junto a jovens. Foi no estágio curricular
em Psicologia Escolar
1
que reuni esses dois itens ao trabalhar em uma escola particular de
ensino médio, com sujeitos entre 14 e 17 anos de idade, aproximadamente. Em meio a grupos
de orientação profissional, encontros com o grêmio estudantil em incipiente formação e
acompanhamento mais próximo de alguns alunos, descobri minha grande paixão por aquela
intensidade da juventude. A sensação era de viver em movimento constante, com muitas
idéias, criatividade e força acompanhando tudo o que fazíamos. Foi então que percebi que
meu fazer em psicologia estava indissociavelmente ligado a algo daquela forma de viver
juvenil. Sentia como a intensidade circulava para todos em cada encontro, e como eu tomava
de empréstimo aquele ritmo e afeto
2
para meu trabalho com eles, para minha formação
profissional e para a vida em geral.
Mais tarde, no momento de escolher o local para o estágio em Psicologia do Trabalho,
tomei conhecimento do Programa Integrado de Profissionalização Gráfica e Marcenaria
1 No curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, onde fiz a graduação,
quatro estágios curriculares obrigatórios, na seguinte seqüência: psicopatologia, psicologia escolar, psicologia do
trabalho ou social/institucional e psicologia clínica.
2 Falo em afeto a partir da discussão proposta por Deleuze e Guattari: “o afecto não é um sentimento pessoal,
tampouco uma característica, ele é a efetuação de uma potência de matilha, que subleva e faz vacilar o eu”
(DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 21).
(PIPGM)
3
, o qual atendia jovens de bairros da periferia de Porto Alegre e jovens em cumprimento de
medida sócio-educativa
4
ou em medida protetiva
5
, oferecendo cursos profissionalizantes na área gráfica
e em marcenaria. A possibilidade de trabalhar novamente com esse público me seduziu, apesar da
pouca idéia que fazia sobre o que significasse medida sócio-educativa ou mesmo a sigla ECA
Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990).
Foi assim que tomei contato com uma realidade da qual pouco ou nada sabia mas que
despertava curiosidade e temor. Perguntava aos colegas que atuavam no local como se sentiam
estando , como eram os jovens, se estavam tranqüilos de circular naquele ambiente. Tendo como
referência prévia os alunos de uma escola privada, sentia como se fossem mundos diferentes,
juventudes diferentes; os sujeitos do programa eram “outros”, algo que não conseguia apreender e que
colocava em evidência preconceitos e limitações para lidar com aquela diversidade.
A primeira aproximação foi atravessada por uma apreensão exagerada, não sabia ao certo como
agir, o que dizer, como lidar com aqueles que sentia tão separados de mim. Tudo parecia carregado de
violência, treinada pelas notícias da mídia sobre os chamados “menores infratores”. A forma
encontrada para enfrentar a situação foi fazer uma proposta de estágio o mais organizada possível para
saber, então, o que estava fazendo no Programa. Sendo o estágio em “Psicologia do Trabalho”, a
escolha foi estudar o significado do trabalho na vida daqueles jovens, uma vez que estavam
participando de cursos profissionalizantes.
Foi com surpresa que os colegas de estágio, a supervisora e eu constatamos, a partir de material
produzido em atividade grupal com as turmas, que o assunto trabalho quase não aparecia entre os
tópicos importantes para os alunos. Relacionamentos amorosos, poesia, música, desenhos, esses eram
os temas presentes, mas parecia haver pouco sobre atividades laborais. O que podia aquilo significar?
Ou supúnhamos que o trabalho simplesmente não fazia parte do mundo daqueles jovens (fato muito
improvável, que a grande maioria trabalhava desde muito cedo), ou admitíamos que o trabalho
aparecia para eles de forma diferente do que esperávamos encontrar, ficando invisibilizado em nossas
dinâmicas.
Naquele momento, senti a imensa vontade de conhecer, de saber mais sobre a vida daqueles
jovens, apreender outras lógicas de vida que não à que estava acostumada. Não me importava mais com
3 Realizado nas dependências da Companhia Rio-Grandense de Artes Gráficas (CORAG), no período de 1999 a 2002.
4 De acordo com o ECA (Brasil, 1990), são as medidas aplicadas a jovens entre 12 e 18 anos de idade incompletos, autores
de alguma infração. As medidas sócio-educativas são, em ordem crescente de severidade: advertência, obrigação de
reparação do dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, semi-liberdade e internação, sendo as duas
últimas em regime fechado. O ECA estabelece que os jovens não podem receber pena como os adultos por entender que
ainda estão em processo de desenvolvimento.
5 De acordo com o ECA (Brasil, 1990), são as medidas aplicáveis a crianças e jovens até os 18 anos de idade incompletos
sempre que os direitos reconhecidos no ECA sejam ameaçados ou violados por “ação ou omissão da sociedade ou do
Estado; por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; e em razão de sua conduta” (p. 35).
as questões sobre o trabalho ou qualquer outro aspecto específico, nem sentia necessidade de
ocupar um lugar determinado dentro do Programa, com atividades demarcadas e objetivos
pré-estabelecidos. Queria apenas conviver e produzir algo com esse convívio.
Passei quase dois anos participando do Programa da CORAG, indo até o momento de
seu fechamento com a mudança de governo no Estado do RS
6
. Quase na mesma época, final
de 2002, fomos chamadas, através do então Projeto de Extensão Psicologia e Intervenção em
Políticas da Juventude
7
, a acompanhar um projeto similar que se iniciava na Procuradoria da
República no Rio Grande do Sul (PR/RS). Quase sem hesitar, aceitei a proposta de integrar a
nova equipe de assessoria e começamos o acompanhamento.
Ao longo dessa experiência, fui sacudida por alguns aspectos que se faziam presentes
com certa teimosia nas intervenções. Primeiro, a grande capacidade que os jovens tinham de
colocar em movimento análises sobre diversos aspectos da sociedade, como a organização do
trabalho, as relações de poder, o lugar dos estagiários, o lugar da psicologia, os especialismos,
o funcionamento da unidade onde cumprem medida sócio-educativa, entre outros. Segundo, a
intensidade das afetações em suas vidas a partir daquelas vivências coletivas. Escutávamos,
com freqüência, dos próprios técnicos da unidade de internação e das pessoas em geral que
não havia possibilidade de mudança para aqueles sujeitos, pois teriam escolhido “o
caminho do crime” (sic), esse seria seu “projeto de vida” (sic) e terminariam, invariavelmente,
presos. No entanto, vimos como se produziram efeitos sempre efeitos múltiplos em
distintos planos de suas vidas naqueles curtos períodos de tempo (quatro ou seis meses)
propiciados pelos projetos. O terceiro aspecto impressionante foi a morte como fato
excessivamente cotidiano para aqueles jovens. Dois dos quatro rapazes do primeiro grupo na
Procuradoria morreram por causas violentas, número representativo para pensar nos tantos
outros que encontram esse mesmo fim sem que fiquemos sabendo ou nos sintamos tocados.
Diante dessas vivências, não pude deixar de indagar por que, em nosso país, os jovens
autores de infração são assunto tão explorado pelos meios de comunicação, ao mesmo tempo
em que são tão desconhecidos em sua face menos midiática. Basta procurar nos últimos dados
do IBGE (2004) para confirmar que estamos presenciando uma grave realidade no que diz
respeito à situação dos jovens brasileiros em geral, e dos jovens pobres em especial. uma
incidência crescente de todas as formas de violência sobre a juventude, composta pela
população entre 15 e 24 pela classificação das Nações Unidas (UNITED NATIONS, 2002).
De acordo com Waiselfisz (2005), a taxa de mortalidade referente a essa população cresceu de
6 Na época do Programa, o governador do Estado era Olívio Dutra, do PT. Seu mandato terminou no final de
2002, quando assumiu Germano Rigotto, do PMDB.
7 Coordenado pela professora e pesquisadora Gislei Domingas Romanzini Lazzarotto.
128 para 137 em 100 mil habitantes entre 1980 e 2002, enquanto a taxa global de mortalidade da
população brasileira caiu de 633 para 561 em 100 mil habitantes no mesmo período.
Dentro das causas de morte, temos indicadores de mortalidade por homicídio muito superiores
aos internacionais, nessa faixa etária
8
: houve aumento de 34,5 em 100 mil habitantes, em 1993, para
54,7 em 100 mil, em 2002 (39,9% das mortes), enquanto no restante da população permaneceu estável
(3,3% das mortes) (WAISELFISZ, 2005). O coeficiente de homicídios chega a ser, por exemplo,
superior ao de países em situação de fortes conflitos abertos (POCHMANN, 2002), o que nos alerta
para uma espécie de extermínio direcionado à juventude, principalmente masculina, negra e de baixa
renda.
No entanto, os discursos da mídia continuam associando, de forma insistente, juventude,
violência e pobreza como se o jovem de baixa renda fosse o grande motivo do medo tão característico
na sociedade atual. Nota-se uma cultura anti jovem pobre sendo fomentada por alguns políticos,
especialistas, setores da sociedade civil e meios de comunicação, estes últimos predispostos a condenar
os jovens dentro da lógica da ocorrência policial ao fazer a cobertura sobre atos infracionais
reproduzindo visões sensacionalistas e preconceituosas.
Essa criminalização da juventude está impossibilitando que vejamos o massacre que se comete
cotidianamente contra o jovem estigmatizado, chamado de “menor” e estereotipado como o bandido
típico. Foi sendo criada e naturalizada uma nova classe perigosa para a sociedade como a responsável
pela violência e insegurança generalizadas (SPOSITO, 1994), sem considerar que um fenômeno
aparece dentro de uma história e de uma sociedade que o produzem.
Enquanto sobre-expomos e colocamos em vitrine o jovem-violento-criminoso mitificado pela
mídia, invisibilizamos o jovem-violentado-criminalizado que aparece nos números dos indicadores
sociais. Preferimos não reconhecer essa última versão dos fatos e não nos envolvermos com tal
realidade, reforçando a tão disseminada cultura da evitação. Com isso, vemos o delito apenas em sua
“fase terminal”
9
, dando ênfase às formas de punição ou às alternativas para preservar a ordem pública,
sem considerar o contexto que produziu essa ação. O medo e o revanchismo alimentados pelas falas e
imagens dos noticiários cumprem habilmente com a função de manter-nos ocupados e preocupados
demais para que questionemos a figura ameaçadora do “menor delinqüente” que vai sendo produzida
em série. Seria ao acaso essa criminalização massiva da juventude pobre? Seria o assunto da infração
juvenil um tema isolado, específico demais para ser analisado de forma coletiva? Não haveria algo a ser
8 Vale lembrar que os índices mencionados se referem ao território nacional, mas cada região apresenta índices bastante
diferentes entre si, ficando Rio de Janeiro, Espírito Santo e Pernambuco com taxas muito mais elevadas, e Santa Catarina,
Rio Grande do Norte e Maranhão com números bastante reduzidos (WAISELFISZ, 2005).
9 Termo usado por Carmen Oliveira (2001, p. 25).
pensado sobre a sociedade brasileira como um todo, sobre nosso modo de funcionamento no
contemporâneo?
Acredito firmemente que a discussão sobre a infração juvenil diz respeito a processos
histórico-político-econômico-sociais muito mais abrangentes, que não se restringem apenas a
esse setor da população. Estratégias para enfrentar essa realidade serão, também, estratégias
para fabricar novas condições de vida para todos. Assim, a questão que direciona este trabalho
é: que análises podem ser feitas sobre a infração juvenil, fenômeno produzido em série no
contemporâneo brasileiro, quando tomada como construção social e histórica, inevitavelmente
ligada a mecanismos políticos, científicos e econômicos, dentre outros? Diante disso, que
práticas são possíveis, junto aos jovens, para criar outras formas de existência que subvertam
a referência identitária do “criminoso” como única permitida e reconhecida?
A abordagem para aproximar-se da infração juvenil como produção social com tantos
atravessamentos precisa ser tão dinâmica quanto o próprio tema da pesquisa. O modus
operandi para o trabalho investigativo que a composição do mestrado exige não poderia usar
uma metodologia que procurasse alcançar uma resposta pronta, um resultado incontestável,
pois isso seria confirmar a busca de uma essência ou de uma cura como solução. A referência
da pesquisa-intervenção apresentada pela Análise Institucional (LOURAU, 1993) reúne a
noção de intervenção com a pesquisa para produzir uma relação entre teoria e prática na qual
não precedência de uma em relação a outra. Ela questiona a imparcialidade e neutralidade
do pesquisador ao afirmar que ambos se afetam e alteram mutuamente no decorrer do
processo, sendo a produção de conhecimento decorrente dessas transformações.
A partir dessa proposta, o método da cartografia
10
se insere não um conjunto de passos
para chegar a um fim determinado, mas um princípio que permite acompanhar um processo
em constante movimento, com a flexibilidade imprescindível para qualquer pesquisa. Com
isso, podem-se traçar paisagens à medida em que elas se criam, uma vez que “não se pode
abordar um campo movente senão com uma estratégia que esteja em conformidade com sua
natureza” (KASTRUP, 2000, p. 21). A cartografia constitui um método rigoroso que coloca
todo o tempo em análise os saberes e realidades que estão sendo criados durante esse
percurso
11
.
Seguindo na mesma direção da metodologia escolhida, o diário de campo
12
se
apresentou como um dispositivo proveitoso, uma vez que permite dar continuidade à
10 Conceito criado por Félix Guattari e retomado por Suely Rolnik (1989).
11 Uma discussão mais minuciosa sobre o método cartográfico é feita no item 1.3.
12 Essa ferramenta foi amplamente trabalhada por René Lourau (1993) ao discutir a proposta da pesquisa-
intervenção. Dentro da antropologia, Russell Bernard (1988) foi figura importante na disseminação do uso do
diário de campo como método de pesquisa.
processualidade da cartografia em um registro pessoal que encontra expressão sem preocupação com a
formalidade, seguindo apenas a intensidade da vivência que descreve. No diário de campo, a
singularidade do pesquisador se mostra como é antes de ser moldada pelo processo posterior da
pesquisa, capturando o momento da experimentação. Desse modo, além dos afetos, desconfortos e
dúvidas sentidos no percurso do fazer, a escrita do diário também permite trazer as agitações, falas e
intensidades dos jovens, dando ao texto uma riqueza vivencial valiosa.
A segunda ferramenta, que junto com o diário de campo irá operacionalizar a cartografia como
método, são os encontros em grupo, estratégia vigorosa para criar um espaço onde se possam construir,
coletivamente, possíveis análises quanto à infração e sua função social no contemporâneo. O grupo
como dispositivo, tal como proposto por Barros (1997), permite a mistura e contágio de mundos
diferentes, criando um plano de luta no qual as formas gidas de ser se desestabilizam e podem dar
passagem a novas dimensões da existência. Ouvir o outro se torna ouvir outros, outras formas de ser e
de experimentar, desmanchando o sujeito-indivíduo como forma dominante de subjetividade
13
.
De acordo com essas indicações, usarei dois diários de campo como fonte de material para a
pesquisa, ambos produzidos em intervenções em grupo com jovens autores de infração. Um deles foi
criado no início da assessoria ao projeto da PR/RS, em 2003, e o outro foi escrito durante nova
intervenção no mesmo projeto, em 2005, como uma atividade da presente pesquisa. Os elementos
usados para a análise sobre a infração partem desses registros, funcionando os diálogos como
dispositivo para as discussões que este trabalho pretende fazer.
Tendo esses indicadores metodológicos como instrumentos, como fazê-los funcionar, tanto na
intervenção como na escrita? Ambos fazeres interpelam e tensionam, convocando a tomada de escolhas
e direções a cada ação, a cada página; como operar, então, com tais delineamentos? A tendência,
reconheço, costuma ser procurar um manual, o mais detalhado possível, e aferrar-se a ele como a uma
tábua de salvação. No entanto, tenho intensificado a convicção de que os caminhos a seguir se trilham
durante o caminhar, pois não garantia ou controle sobre os resultados finais, nem mesmo sobre a
trajetória que se traça. O que é certa antecipação possível, construída a partir da própria experiência
e da de tantos outros, mas ela jamais se resume a uma previsibilidade que impeça as vicissitudes das
andanças.
Nessa lógica, a estratégia adotada para efetivar tanto a prática como a escrita é: encontrar.
Deleuze e Parnet (1998) apontam que, ao trabalharmos, a solidão é, inevitavelmente, absoluta,
existindo apenas trabalho clandestino. Mas seguem e complementam: “é uma solidão extremamente
13 Tanto o diário de campo como o grupo dispositivo são retomados novamente no item 1.3, junto à discussão sobre a
cartografia.
povoada. Não povoada de sonhos, fantasias ou projetos, mas de encontros.” (DELEUZE e
PARNET, 1998, p. 14, grifos meus). Produzir encontros, então, povoar a irrevogável solidão
de nossas práticas, essa tem sido uma maneira para fabricar o fazer no mundo. Encontrar é
achar, roubar, capturar, diz Deleuze, e o método para possibilitar isso é precisamente o
cartográfico, uma vez que seu princípio de acompanhamento dos processos permite captar o
encontro em sua plena potência.
É por isso que estão presentes, nesta pesquisa, os encontros e contágios com Ernesto
Sabato, com a Esquizoanálise de Deleuze e Guattari, com Gislei Lazzarotto, José Saramago e
Silvio Rodriguez, com Michel Foucault, Enrique Reguera, Zygmunt Bauman e Loïc
Waqcuant, com Mercedes Sosa, Sri Sathya Sai, Maria Lívia Nascimento e Charlie Brown Jr.,
com o referencial da Análise Institucional de Lapassade e Lourau, com Racionais Mc´s,
Antonio Lancetti, Vera Malaguti e Regina Benevides, com Cecília Coimbra e o
Subcomandante Insurgente Marcos e tantos outros encontros que foram marcando este
percurso.
Ponte Niterói - Porto Alegre, passando por Madri
Abrimos cuando venimos, cerramos cuando nos vamos.
Si viene cuando no estamos, es que no coincidimos.
(Placa na porta da sala onde se reúne a equipe da Coordinadora de Barrios,
Madri – Espanha)
A decisão de fazer o mestrado na Universidade Federal Fluminense foi se fortalecendo
durante o final da graduação e nos primeiros tempos depois de formada, principalmente a
partir de leituras do material produzido por professores dessa universidade. Por uma grande
afinidade com as construções teóricas e posturas políticas do grupo docente da UFF, tive
muita vontade de estar mais próxima desse núcleo de pesquisa. Incitada por isso, saí de Porto
Alegre rumo a Niterói para passar dois anos investigando o tema que me inquietava. No
entanto, mostrou-se fundamental que o material usado para a pesquisa fosse produzido em
Porto Alegre mesmo, uma vez que as realidades regionais são diferentes no que diz respeito à infração
juvenil e a experiência construída está totalmente atravessada por essa cidade. O desejo de retornar para
nova intervenção
14
não foi apenas para compor uma parte da escrita, mas sobretudo para seguir
fortalecendo a rede de relações estabelecidas ao longo da graduação com pessoas e organismos que
estão ligados, de alguma forma, ao trabalho com juventude e infração.
Entre Niterói e Porto Alegre, algumas viagens a Madri (Espanha) deram a oportunidade para
conhecer algo da realidade de um país europeu no que diz respeito às questões que quero examinar. Foi
feito contato com uma associação chamada Coordinadora de Barrios
15
, um grupo de pessoas que
trabalha de forma paralela e freqüentemente oposta ao governo em assuntos ligados à infância e à
juventude nas diversas situações que isso possa envolver. Poderia parecer uma proposta ampla e
inespecífica demais, mas aos poucos percebe-se que é exatamente dessa forma que funcionam, na
diversidade e no movimento.
No primeiro encontro, supondo talvez uma reunião formal na qual explicariam seu fazer, fui
convidada para entrar em uma sala e participar do que estava acontecendo. Eram 22h de uma quinta-
feira, e surpreendeu-me não encontrar uma instalação governamental nem um edifício moderno, mas
sim uma Paróquia localizada na periferia de Madri, onde estavam reunidos a pessoa com quem havia
feito o contato inicial, que eu não sabia tratar-se de um padre, a advogada, a presidente da associação de
mães de um bairro e alguns moradores do mesmo local, discutindo acerca de uma ordem de despejo
que seria executada no dia seguinte. Aquele pequeno grupo havia agilizado, em algumas horas, uma
série de outras associações de mães e de moradores, conseguindo, entre outras coisas, levantar a quantia
necessária para emprestar à dona da casa e evitar que ela ficasse na rua com seus filhos. Além disso,
estavam se organizando para agir no dia seguinte: enquanto uns iam ao juizado levando o dinheiro,
outros iam à residência em questão para assegurar que a polícia não usasse a força e aguardasse a
regularização dos papéis. Por que uma associação que lida com crianças e jovens estava envolvida em
uma questão habitacional? Simplesmente pelo fato de que a moradora envolvida era mãe de um jovem
que havia sido acompanhado pela Coordinadora há algum tempo atrás.
Sem manuais ou catálogos que descrevessem suas atividades específicas, atuavam onde fosse
necessário, levando apenas em conta que seu fazer estivesse comprometido diretamente com as
crianças e jovens, tomando posição sempre a favor da luta pela garantia dos direitos humanos, fazendo
frente ao abuso de poder e lutando contra as injustiças e violações cometidas, especialmente as
14 De junho a setembro de 2005 estive em Porto Alegre realizando intervenção junto aos jovens do Abrindo Caminhos, na
PR/RS. Disso resultou a produção de um vídeo que conta a história do projeto através de diversas entrevistas com os
envolvidos desde seu início, em 2003.
15 Coletivo fundado pelo psicólogo, filósofo e escritor Enrique Martínez Reguera, na década de 1970. Para conhecer melhor
seu trabalho, entrar na página web www.coordinadoradebarrios.org .
efetuadas pelo Estado. A equipe da Coordinadora costuma ser presença constante em
audiências que envolvem jovens, muitas vezes mesmo fora da comunidade de Madri. Uma de
suas labores mais incansáveis são as denúncias aos maus-tratos cometidos nos Centros de
Internação (unidades de cumprimento de medida sócio-educativa), contando, para isso, com
um programa semanal na rádio e a publicação semestral de uma revista chamada Canijín
16
,
além da distribuição de panfletos e organização periódica de manifestações. Também
oferecem cursos profissionalizantes, grupos de diversos tipos, atendimento jurídico gratuito e,
quando for preciso, alojamento para diversos imigrantes sem documentação em um dos salões
da paróquia, os quais chegaram a ser pouco mais de 40 (em sua maioria marroquinos). Vale
dizer que a Paróquia, chamada San Carlos Borromeo, tem notoriedade nacional pelo polêmico
e subversivo trabalho levado adiante por Enrique de Castro, mais conhecido como o “padre
vermelho” por suas inclinações comunistas/anarquistas. Desde a época da Espanha franquista,
questionou com veemência o próprio funcionamento da Igreja Católica, e suas tendências
revolucionárias o mantiveram em um incansável compromisso com as questões sociais,
mesmo depois de seu afastamento oficial, há alguns anos, por ordem do Bispo de Madri.
O convívio com essa experiência por alguns meses, durante a produção da dissertação,
e a possibilidade de conhecer pessoalmente Enrique Martínez Reguera, cujos livros havia lido
com entusiasmo tempos antes, provocou uma espécie de força renovada, efeito do contágio
com um trabalho tão intenso e que realmente se inventava a cada momento. Conhecer como
funciona o sistema de internações na Espanha, especificamente na Comunidade de Madri, a
Ley de Menores que eles possuem e os problemas que costumam enfrentar serviu para ver que
existe um movimento mundial muito semelhante no que diz respeito à situação da juventude,
a sua criminalização e aos processos que acompanham esse fenômeno. Com isso, pude
construir e definir melhor tanto o foco desta dissertação como as estratégias para realizar o
trabalho de campo em Porto Alegre.
As parcerias com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e com a
Procuradoria da República no Rio Grande do Sul (PR/RS), espaço onde foram feitas as duas
intervenções que constam nos diários usados na pesquisa, foram fundamentais para a
realização desta pesquisa. A primeira, com a Universidade, ocorre através do atual Projeto de
Extensão ESTAÇÃO PSI Estudos e Ações em Políticas de Subjetivar e Inventar –,
coordenado pela professora e pesquisadora Gislei Lazzarotto, com quem consolidei alianças
ao longo de cinco anos de trabalho conjunto com jovens autores de infração, desde o
16 Canijín é o diminutivo de canijo, que significa mirrado, pequeno. Nessa revista, uma seção na qual
publicam cartas, desenhos, poesias e demais produções enviadas pelos jovens desde os Centros de Internação,
sendo comum aparecerem denúncias em primeira mão das torturas e abusos cometidos.
Programa da CORAG em 2001. Seguir ativa na equipe de intervenção do ESTAÇÃO PSI, mesmo sem
estar geograficamente próxima, tem sido possível porque criamos, para cada projeto em que atuamos,
uma lista eletrônica específica na qual compartilhamos questões referentes ao nosso fazer e aos efeitos
desse fazer na singularidade de cada uma e no coletivo da equipe interventora.
A segunda parceria, com a Procuradoria da República, surgiu no final de 2002, quando chegou
ao Departamento de Psicologia Social e Institucional da UFRGS um pedido para dar assessoria a um
projeto de trabalho educativo
17
com jovens em cumprimento de medida sócio-educativa, a ser
implementado na PR/RS. Através do projeto de extensão, naquele momento chamado Psicologia e
Intervenção em Políticas da Juventude, foram feitas as negociações e foi assinado o convênio, ainda
naquele ano, para dar início ao trabalho em 2003. Começamos o acompanhamento no local através de
reuniões entre a psicologia, os procuradores envolvidos
18
e os servidores que estariam trabalhando junto
aos jovens. Algum tempo depois de iniciadas as atividades, a equipe local se reuniu e deu ao projeto o
nome de Abrindo Caminhos, mostrando a aposta nas possibilidades de vida que poderiam ser abertas
para todos a partir daquele espaço.
Nas competências formais da PR/RS, não está previsto qualquer tipo de relação com jovens em
cumprimento de medida sócio-educativa. Sua função, enquanto órgão representante do Ministério
Público Federal no estado do Rio Grande do Sul, é proteger o patrimônio público social, os bens,
serviços ou interesses da União, de suas entidades autárquicas e empresas públicas federais. Também
atua na defesa de direitos e interesses chamados difusos ou coletivos, que seriam aqueles referentes aos
índios e às populações indígenas, ao meio ambiente, aos bens e direitos de valor artístico, estético,
histórico e paisagístico, integrantes do patrimônio nacional.
Chama a atenção que tanto na Procuradoria da República como no Programa da CORAG, e em
várias outras ações similares que tivemos contato, os projetos surgiram sempre a partir de um desejo
instituinte, apoiado por um coletivo que se contagiou pela idéia, mas não por uma iniciativa
organizacional propriamente dita. O movimento que conduziu à formação do projeto dentro da PR/RS
iniciou em 1994, com um grupo de pessoas com interesses em comum que fundaram o Comitê da
Cidadania, o qual passou a integrar ações da campanha de combate à fome e à miséria. No segundo
semestre de 2002, um de seus fundadores tomou conhecimento de um trabalho com jovens autores de
infração na Justiça Federal, o qual, por sua vez, havia se inspirado no trabalho realizado na CORAG.
Foi através de seu contato informal com a psicóloga da Justiça que surgiu a possibilidade de levar à
17 De acordo com o ECA, artigo 68 § 1º, o trabalho educativo se refere a uma atividade na qual privilegia-se o aspecto de
aprendizagem e o desenvolvimento pessoal e social sobre o aspecto produtivo, mesmo quando haja remuneração pelo
trabalho efetuado.
18 Vale citar especialmente o Dr. Douglas Fisher, então procurador-chefe, e o Dr. Marcelo Veiga Beckhausen, então
coordenador de estágios. Ambos deram total suporte e incentivo para que o projeto acontecesse naquele momento.
PR/RS essa iniciativa, levando-o a procurar outros parceiros para colocá-la em prática.
É interessante mencionar que, quando foi extinto o projeto da CORAG, os professores
do Programa e a equipe de psicologia foram tomados por um desânimo e impotência por não
poder seguir adiante naquele trabalho. Parecia que algo se fechava, mesmo sabendo o quão
rica havia sido a experiência para todos. ficamos sabendo que nosso fazer tinha se
irradiado e chegado à Justiça depois do contato com a PR/RS, sendo ele mesmo também
provocado por essa rede de propagação. Foi assim que aprendemos que não é possível ter
controle e previsão absolutos sobre os efeitos de nossas práticas; uma vez efetuadas, elas se
difundem e vão colocando em funcionamento outros efeitos e outras práticas.
Na PR/RS, a atuação da equipe da psicologia, formada pela estagiária no local, por
bolsistas de extensão e pela orientadora, se em vários planos. Faz parte da equipe local
junto aos servidores envolvidos no projeto, mantém contato com os técnicos de referência das
unidades que fizeram encaminhamentos e participa nas reuniões periódicas coletivas com
procuradores, equipe local e técnicos para discutir questões referentes ao projeto como um
todo. Ao mesmo tempo, realiza semanalmente encontros grupais com os jovens, disponibiliza
espaços individuais para escuta, acolhe e encaminha para outros serviços, se necessário, temas
relacionados à escola (acompanhar o jovem para matricular-se, por exemplo) e à saúde
(tramitar marcação de consultas), circula pelo edifício, resolve questões sobre vales-
transporte, enfim, está atenta aos movimentos em curso e os usa para coletivizar as análises
sobre o projeto e seu funcionamento.
São oferecidas quatro vagas em diversos setores da Procuradoria para jovens que
cumprem medida sócio-educativa tanto em meio aberto como em meio fechado
19
. A seleção
ocorre em dois momentos, sendo o primeiro uma pré-seleção feita nas unidades de internação
ou pelos técnicos responsáveis, no caso de meio aberto. A segunda etapa é feita dentro da
Procuradoria, envolvendo os funcionários dos setores que participam do projeto, a equipe de
psicologia e, depois de iniciada a primeira turma, os próprios jovens, que explicam o
funcionamento de seu setor e descrevem suas atividades e experiências no local. O período do
estágio é de 6 meses, podendo ser renovado por outros 6, chegando a um máximo de um ano.
Existem dois convênios feitos pela PR/RS para esses encaminhamentos. Um deles é
com a Fundação de Atendimento Sócio-Educativo
20
(FASE/RS), órgão vinculado à Secretaria
19 Recentemente, em meados de 2005, foi feito convênio também para receber jovens em medida protetiva,
encaminhados pela FPE Fundação de Proteção Especial, órgão municipal responsável pelos abrigos em Porto
Alegre.
20 Atualmente, a instituição possui 16 unidades no sistema de atendimento aos jovens autores de atos
infracionais, sendo 12 de internação, uma de internação provisória e três de semiliberdade, cinco delas em Porto
Alegre e dez no interior do Estado, com uma população de 1075 internos (FASE, 2006).
de Trabalho, Cidadania e Ação Social (STCAS) do Governo do Estado, o qual é responsável pela
execução de medidas sócio-educativas em meio fechado (internação e semi-liberdade), criado em maio
de 2002 como parte integrante de uma série de reestruturações internas que finalmente extinguiram a
anterior FEBEM. O segundo convênio é com a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC),
entidade municipal responsável pela execução das medidas em meio aberto (liberdade assistida e
prestação de serviço à comunidade), através do Programa de Execução de Medidas Sócio-Educativas
em Meio Aberto (PEMSE).
As vagas oferecidas aos jovens estão condicionadas ao cumprimento de alguns requisitos
definidos no início do Abrindo Caminhos pela própria PR/RS e são utilizados pelas unidades ou pelos
técnicos ao fazerem a seleção dos candidatos: a) ter entre 16 e 18 anos incompletos, b) estar cursando
no mínimo a quinta série do ensino fundamental, c) ter disponibilidade no turno da tarde e d) conciliar
período de cumprimento da medida e a data de finalização de estágio (para evitar o jovem ser desligado
da internação antes do término do estágio e não poder continuar até o final).
Esses requisitos vêm sendo discutidos na equipe de psicologia a partir da intervenção feita em
2005 para elaboração do segundo diário de campo usado nesta pesquisa. O critério da idade, por
exemplo, foi usado a partir de um entendimento das exigências do ECA para configurar um Trabalho
Educativo, mas recentemente percebemos que não há uma indicação clara sobre isso, havendo inclusive
alguns órgãos governamentais
21
que desenvolvem atividades de Trabalho Educativo com jovens entre
14 e 18 anos
22
. De qualquer forma, sabemos que todo tipo de seleção e, portanto, seus critérios são
arbitrários e deixam de lado um grande contingente de interessados que ficam impedidos de participar.
A maioria dos programas voltados para esse público impõem critérios que acabam sendo extremamente
elitizadores e reforçam a política de meritocracia para ter acesso a ofertas que deveriam estar
disponíveis para todos os jovens, incluídos aqui aqueles que não se encontram dentro do sistema sócio-
educativo ou protetivo.
Nossa forma de flexibilizar a seletividade tem sido ajustar os critérios às especificidades dos
casos cotidianos, permitindo algumas margens com relação à idade, por exemplo, ou mantendo o jovem
no projeto durante eventuais períodos nos quais esteja sem escola. Outra ação, iniciada a partir da ida a
campo para este trabalho, é o acompanhamento dos egressos do projeto, seja pela participação destes
em atividades específicas ou por encontros esporádicos, fazendo com que não haja um término brusco
ao completar os 18 anos e sim a possibilidade de seguir participando de acordo com seu desejo,
21 Ver na página http://www.portoalegre.rs.gov.br/pol_social/Fasc/criancas.htm referência sobre o Trabalho Educativo
desenvolvido.
22 A questão que se coloca é como articular os cruzamentos com legislações relacionadas à possibilidade de trabalhar (CLT
e condição de aprendiz, etc). Na falta de regulamentação mais clara, são usadas as regaras do ECA com as demais.
contando com recursos da própria PR/RS ou da Universidade para despesas com transporte.
Ao longo dos três anos de existência do projeto
23
, passaram por 19 jovens em
cumprimento de medida sócio-educativa, 1 estagiária não-curricular de psicologia, 5
estagiárias curriculares, 3 bolsistas de extensão e uma infinidade de histórias e afetos que se
entrecruzaram e, acredito, foram abrindo caminhos. A volta à PR/RS durante a realização
desta pesquisa tem a ver com esses encontros que ainda reverberam em minha trajetória.
Assim, graças à manutenção do vínculo com o ESTAÇÃO PSI, pude levar adiante a intenção
de fazer uma nova intervenção na Procuradoria. Com esse objetivo, foi criado o Traçando e
Abrindo Caminhos: Arte para contar histórias possíveis (Anexo I), trabalho de
aproximadamente dois meses de duração oferecido aos jovens egressos e aos que ainda
participam no projeto Abrindo Caminhos. A partir dessa proposta, foi construído um vídeo
com entrevistas a diversos participantes do Abrindo Caminhos, entre servidores, procuradores,
equipe de psicologia e jovens, o qual foi exibido para toda a Procuradoria como fechamento
do grupo/intervenção. O processo de construção desse vídeo está relatado no segundo diário
de campo, o qual, junto com o primeiro, possibilitam as análises aqui propostas sobre a
infração juvenil no contemporâneo brasileiro.
Com relação à organização da escrita, a dissertação está dividida em três capítulos. No
primeiro, uma discussão acerca da produção do conhecimento na atualidade, questionando
a lógica científica que se proclama pura, neutra e portadora da verdade, desprezando os
demais saberes existentes no mundo. Também são apresentadas as ferramentas metodológicas
escolhidas, colocando em análise a prática do pesquisador e suas implicações com seu fazer,
sobretudo na área da psicologia, partindo das produções de Lourau, Deleuze e Foucault, entre
outras.
O segundo e terceiro capítulos foram criados a partir da intervenção com os jovens,
sendo suas construções dadas em função das falas e dos efeitos produzidos no encontro. O
segundo capítulo procura desnaturalizar a figura do “menor infrator” tão propagada na
sociedade, contrariando a lógica dominante que atribui a causa desse fenômeno aos chamados
problemas de personalidade ao abordar a infração juvenil enquanto produção social. Além
disso, problematiza a criminalização da juventude pobre, a militarização das ações sobre ela e
a rentabilização de sua condição, relacionando esses processos aos interesses do mercado e ao
surgimento do Estado Penal. Para encerrar, é analisado o discurso da mídia e sua relação com
o projeto neoliberal na demonização dos jovens das “classes perigosas”. Nessa seção, as idéias
de Wacquant, Bauman, Batista e Reguera acompanham os questionamentos apresentados.
23 Está sendo discutida a transformação do Projeto em Programa, em um movimento de afirmar a permanência
do Abrindo Caminhos como uma das ações contínuas da Procuradoria.
No terceiro capítulo, é relatada uma experiência com jovens em cumprimento de medida sócio-
educativa realizada a partir de um modo de fazer psicologia que se afirma na potência do encontro e na
aliança com os jovens como estratégia para subverter as formas de subjetivação capitalística. Os
conceitos de Deleuze, Guattari e Tosquelles, e os trabalhos de Reguera e Vicentin, entre outros, ajudam
a pensar nessa intervenção que alia a clínica à política, possibilitando a criação de novos territórios
existenciais tanto para os jovens como para os que trabalham com eles.
I - TSUNAMIS E O CONHECIMENTO
Son los expulsados, los proscriptos, los ultrajados, los despojados de su
patria y de su terruño, los empujados con brutalidad a las simas más
hondas. Ahí es donde están los catecúmenos de hoy.
(E. Jünger)
Estamos vivendo, desde o Iluminismo e de forma cada vez mais marcante, momentos de uma
busca compulsiva pelo saber e domínio absolutos sobre o universo, a natureza e o homem. Não é
exagero nem ficção afirmar que os grandes proprietários do contemporâneo são aqueles que formam
parte das elites científicas, as quais gozam de plenos privilégios e poderes por deterem um dos produtos
mais apreciados em nossa sociedade: a informação
24
. Ou, deveríamos diferenciar, A informação, uma
vez que existem diversas outras informações circulando em nosso cotidiano, as quais são consideradas
crendices menores por alguns círculos formais da ciência. Estes rejeitam, em nome da superioridade dA
informação, qualquer construção que escape de seus moldes e patenteamentos.
Em meio a essa torrente de conhecimentos, poucas vezes nos perguntamos acerca de seus
propósitos e sentidos, acerca do que faremos com eles e a serviço de que interesses estão sendo usados.
Sem questionar a proclamada excelência da ciência, construímos uma absurda lógica na qual cada vez
mais se sabe sobre a vida e cada vez menos se usa esse saber para favorecê-la e potencializá-la. Mas,
quando nos deparamos com um evento mundial da ordem do acontecimento, no sentido em que os
estóicos e Deleuze (1974) o concebem
25
, nossa submissão e conformidade com tal condição se vêem
abaladas.
Estando em Madri, no início de 2005, fui surpreendida pela notícia de um grande maremoto
ocorrido na costa asiática, fenômeno conhecido por Tsunami. Houve devastação de grandes porções
continentais e muitos mortos e feridos, deixando a todos perplexos por sua magnitude e efeitos. As
autoridades se manifestaram prontamente, tentando dar explicações para semelhante destruição em uma
época na qual a tecnologia da meteorologia está tão avançada que permitiria, supõe-se, detectar algo
dessa ordem com certa antecedência.
Alguns dias depois, noticiou-se a demissão compulsória do chefe do setor meteorológico da
Tailândia, e foi aberta uma investigação para determinar por que o departamento não havia emitido
uma advertência sobre a Tsunami, preparando a população para evacuar os locais da costa, que
contavam com recursos científicos para tanto. Na mesma semana, ainda sem encontrar respostas à
dúvida colocada, foi divulgado que seis tribos indígenas “primitivas”, habitantes das ilhas de Andaman
e Nicobar, sobreviveram à Tsunami graças a sistemas ancestrais de detecção de mudanças na natureza.
Através da observação do canto dos pássaros e da mudança nos padrões de conduta dos animais
marítimos, os aborígines fugiram para as florestas do interior da ilha em busca de segurança e, com
isso, não foram constatadas vítimas entre as comunidades dos jarwas, onges, shompens, sentenaleses e
grande andamaneses (JORNAL DO TERRA, 2005).
24 Lourau (1981) se refere aos intelectuais como “capitalistas do saber”.
25 Um acontecimento se refere àquilo que ocorre, aos verbos infinitivos que trazem a emergência do novo e atualizam o que
ainda não sabíamos possível.
Estarrecidos, fomos todos testemunhas da incapacidade dos renomados cientistas do
departamento de meteorologia, com todos os seus títulos acadêmicos, para antecipar a
chegada e a gravidade do furioso fenômeno que assolou aqueles territórios
26
. Enquanto isso,
aqueles autóctones considerados menos desenvolvidos, com seus saberes milenares, foram
capazes de prognosticar sua vinda e tomar as providências necessárias para colocar a salvo a
si e a sua comunidade.
Diante do acontecimento-Tsunami, seria possível seguir afirmando a supremacia da
técnica em detrimento de outras formas de vivenciar o mundo? A situação relatada poderia
parecer caricatural e, à primeira vista, até mesmo ser tomada como um episódio isolado e nada
significativo, uma notícia a mais em meio a tantas outras mais rotineiras. No entanto, acredito
que a situação paradoxal que suscitou nos leva a questionar para que serve a ciência em
nossas vidas, que lugar ela ocupa, vem ocupando e queremos que ocupe no mundo
contemporâneo. Também faz pensar no status que atribuímos aos saberes e sujeitos fora da
ciência, como nos relacionamos com eles e de que forma damos reconhecimento à sua
autenticidade.
Temos presenciado com demasiada freqüência, ao longo do último século, incidentes
semelhantes nos quais vidas valem menos que especulações e tecnologias de ponta. O escritor
Ernesto Sabato
27
, no início dos anos 50, alertava para a crise desta civilização baseada na
razão e na máquina, afirmando que a desumanização presente no mundo era
[...] resultado de duas forças dinâmicas e amorais: o dinheiro e a razão.
Com elas, o homem conquista o poder secular. Mas e está a raiz do
paradoxo essa conquista se faz diante da abstração [...], a história do
crescente domínio do homem sobre o universo foi também a historia das
sucessivas abstrações. O capitalismo moderno e a ciência positiva são as
duas caras de uma mesma realidade despossuída de atributos concretos, de
uma abstrata fantasmagoria da qual também forma parte o homem, mas não
o homem concreto e individual, senão o homem massa, esse estranho ser
ainda com aspecto humano, com olhos e choro, voz e emoções, mas na
verdade engrenagem de uma gigantesca maquinaria anônima. Esse é o
destino contraditório daquele semideus renascentista que reivindicou sua
individualidade, proclamando sua vontade de domínio e transformação das
coisas. Ignorava que também ele chegaria a se transformar em coisa.
(SABATO, 1951, p. 9, tradução minha).
26 Um tempo depois, circularam rumores de que a Tsunami foi detectada a tempo mas não foi emitido nenhum
tipo de alerta para evitar o pânico entre os turistas e os efeitos econômicos provindos disso. Em sendo assim,
caberia outra pergunta: as milhares de vítimas foram um risco aceitável a correr pelo receio dos governantes de
afetar o turismo “desnecessariamente” caso a Tsunami não ocorresse?
27 O autor de diversas novelas e ensaios é formado em física e trabalhou de 1938 a 1945 no Laboratório Curie,
na França. Depois disso, afastou-se completamente do mundo científico, colocando em seus escritos fortes
críticas à ciência e ao racionalismo. Também foi o presidente da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de
pessoas (CONADEP), em 1983, a qual investigou e publicou um informe sobre os crimes do Estado cometidos
pela ditadura militar no poder entre 1976 e 1983. Publicado em 1984, o informe foi chamado de Nunca Mais,
mundialmente conhecido como Informe Sabato.
No século XXI, nos deparamos com uma forma predominante de entender e exercer a ciência
que parece totalmente dissociada da vida e dos homens. Idéias gestadas em salas isoladas, por cérebros
igualmente isolados, sem qualquer relação com o abafado mundo de cimento e sangue que cerca as
torres de produção do conhecimento, como se isso fosse possível e devesse ser ansiado. A tecnolatria
vem chegando a tais níveis que não deixa espaço para a existência de nenhuma outra forma de saber,
sendo desqualificados e desprezados quaisquer conhecimentos produzidos pelos que estão fora da
universidade, como o saber do trabalho manual e da vida em comunidade (COIMBRA, LOBO e
BARROS, 1991). Inclusive dentro da universidade os saberes não-intelectuais que acionam nosso fazer
de forma intuitiva
28
costumam não ser percebidos nem reconhecidos. A formação acadêmica costuma
estar muito mais preocupada com o “incentivo da racionalidade científica e costuma priorizar o
conceito teórico previamente estudado mais que a função que esse conceito possa operar, de forma
puramente intensiva, antes do contato formal com a teoria” (BOCCO e LAZZAROTTO, 2004, p. 39).
Os conhecimentos produzidos na universidade não devem, de forma alguma, sobrepor-se às
demais vozes da sociedade. A idéia de que leituras, práticas e construções teóricas durante
aproximadamente cinco anos possam valer, por si sós, mais do que toda uma vida de experiências de
um sujeito apenas por ele não estar alfabetizado sempre me foi absurda. Isso não significa que os
conhecimentos de um e de outro sejam iguais, pelo contrário, afirmo a importância de suas diferenças.
Mas por que hierarquizar essa disparidade? Por que comparar e qualificar um como melhor que o
outro? Quando essa obstinação científica, tão arraigada nas práticas profissionais e de pesquisa, parece
predominar e capturar outros sentidos possíveis, Sabato nos brinda uma delicada leveza:
A gente do interior vive em seu silêncio uma vida tão a contrapelo do progresso que
infunde respeito. São descendentes de culturas aborígines. Seus rostos enrugados,
enrugadíssimos, sulcados pelas inclemências, pela austeridade com que viveram e por
essa bondade resistente e calada que prevalece nos gestos e se reflete em seus rostos.
Frente aos homens e mulheres com os quais nos encontramos nas zonas mais
distantes do país, nos perguntamos a que chamamos sabedoria. Eles praticamente não
falam, quero dizer, não polemizam [...] A experiência a a vida, não os argumentos.
No campo, nas aldeias do interior, o velho não argumenta, ele é testemunha da vida.
Seu testemunho é essa vida que vemos nele, entre suas rugas e seu andar agachado.
Acredito que esse é o conhecimento sapiencial. Ter gostado da vida, sua doçura, seu
êxtase e sua dor, sua agrura [...]. O mestre, a testemunha, o sábio falam de sua
experiência. (SABATO, 2004, p. 110-111, tradução minha)
28 Intuição no sentido Bergsoniano, tal como nos apresenta Deleuze (1999). Para Bergson, a realidade não tem como
princípio constitutivo supremo a substância, mas a vida. Se a realidade é vida é necessário outro método para estudá-la que
não o positivista, um método que possa aproximar-se da realidade sem submetê-la a nenhuma pressão, a nenhuma distorção,
a nenhuma abstração. Para o autor, o método que tem estas qualidades é a intuição, capacidade que nos leva a perceber
imediatamente o seu objeto e todo o seu dinamismo. A intuição a modificação das coisas em seu processo dinâmico,
mostrando um universo em contínua mutação, criando novas formas e o absolutamente novo.
Que a produção do saber não se torne campo árido onde a vida não pulsa nem late, e
que saibamos reconhecer os tantos mestres nativos em sua erudição corpórea. Com sua
simplicidade experiencial, que eles sigam nos indagando sobre o preço que pagamos, com
vidas, por nossa arrogância tecnológica. Enfim, que não sejam necessários desastres como o
Tsunami para jogar por terra nossas certezas teóricas e nos manter em constante movimento
de invenção. Eis os desejos que me acompanham nesta aventura de fazer ciência.
1.1 – A orfandade da ciência
Recuerdo que en la facultad estudiábamos el “progreso” como el paso del mito al
logos, del mito a la razón; y nos sentíamos unos genios por haber superado el
oscurantismo antiguo y medieval.
(Ernesto Sabato)
De forma geral e consensual, entendemos por ciência um conjunto de conhecimentos
produzidos e acumulados historicamente, dotados de universalidade e de objetividade e
estruturados de acordo com métodos específicos de modo a permitir sua transmissão ao longo
dos tempos. Com algumas ligeiras variações, essa é a definição predominante oferecida pelos
dicionários, enciclopédias e discursos universitários. Mas o que entendemos por ciência
atualmente difere bastante daquilo que era concebido pelos antigos chineses ou pelos
pensadores da Ásia Menor nos séculos antes de Cristo. O surgimento do positivismo, entre os
séculos XVIII e XIX, foi fator decisivo para conceber uma ciência preocupada apenas com as
verdades e com os descobrimentos comprováveis e replicáveis. Nesse momento, o saber
contemplativo dos filósofos cedeu lugar ao saber operativo da ciência aliada à técnica, fruto
de uma sociedade eminentemente industrial. Operar o mundo significava transformá-lo e
submetê-lo aos interesses de um novo ideal de homem: um homem senhor de si e do universo.
Assim, a aposta na razão foi levada às últimas conseqüências e a matemática foi eleita
como a forma mais segura de representação da realidade. Na esperança de resolver os
problemas do mundo e da vida, o pensamento positivista tentou aplicar os princípios e
métodos das ciências ditas exatas às ciências classificadas como humanas, consolidando uma
forma de pensar guiada estritamente pelo racionalismo. Dessa forma, a produção de
conhecimento ficou confinada às universidades e laboratórios e procurou prescindir ao máximo dos
vestígios de humanidade que pudessem colocar em risco a suposta castidade do saber assim
constituído. Nessa perspectiva, um cientista competente seria aquele capaz de posicionar-se acima da
versão de sua própria situação na sociedade e na história, projetando sua visão “pura” para explicar
determinados fenômenos da natureza.
Mas o paradigma comtiano
29
não permaneceu incólume nem incontestável ao longo dos anos,
mesmo que ainda ocupe um lugar hegemônico, sobretudo nos ambientes acadêmicos. Entre suas
contestações, merecem especial destaque os movimentos sociais, intelectuais e políticos ocorridos
durante as décadas de 50 e 60 na França e em outros países, nos quais diversos intelectuais,
trabalhadores, estudantes e profissionais se opuseram aos dogmas positivistas e começaram a
questionar as certezas aparentemente inabaláveis que propagavam. Confrontando a idéia da razão como
fonte de todo conhecimento, a produção de Michel Foucault (1996a) assinalou que tanto os domínios
de saber como as disciplinas e as ciências não surgem, como se acreditava, a partir do interior mental
de um indivíduo, muito pelo contrário. Ele aponta que o conhecimento não está inscrito na natureza
humana e nem pode ser considerado como um exercício inerente ao homem, respondendo a uma
estrutura universal, pois ele é sempre da ordem do resultado, do efeito, sempre com caráter perspectivo
pelas lutas e batalhas que o produzem. Não haveria, então, “uma natureza do conhecimento, uma
essência [...], condições universais para o conhecimento, mas [...] o resultado histórico e pontual de
condições que não são da ordem do conhecimento” (FOUCAULT, 1996a, p. 24), este existindo apenas
em relação aos acontecimentos que o engendram.
Com essa crítica, quebra-se a preponderância da cultura racional que atribui ao sujeito,
sobretudo a seu consciente, a capacidade de domínio da natureza e de si, através da representação
mental do mundo. O homem iluminista deixa de ser o núcleo central do conhecimento para dar lugar a
uma produção sempre social e contextualizada. Inspirando-se em Nietzsche, Foucault (1996a) diz que o
conhecimento não é descoberta, mas invenção, resultado da luta entre instintos e forças, situando
quaisquer supostos universais e verdades eternas no interior das formações históricas. Ao opor-se à
solenidade da origem e à busca metafísica por um motivo inicial, o autor situa a ciência
genealogicamente e joga luz sobre sua tão fantasiada procedência: não início, nenhum princípio ou
causa, nada de Pais nem Mães, nada de concepção ou berço esplêndido a ciência é órfã. Mas isso não
supõe a inexistência de um percurso que a teça, ela conta com um tipo de irmandade de conexões, uma
vizinhança de práticas e sujeitos que não são dados definitivamente, mas se constituem no interior da
própria história.
29 Para conhecer as idéias do autor, ver Comte (1990).
Ao questionar a razão como fonte do conhecimento, temos de ser cuidadosos para não
repetir a mesma totalização que estamos questionando ao positivismo. O próprio Foucault
(1992) nos lembra de que o pensamento ocidental, desde o século XIX, não parou de criticar o
papel da razão em diversos planos. Não se trata, então, de fazer um julgamento à razão como
se esta fosse uma entidade universal, ou como se se opusesse à não-razão. Tampouco se trata
de tomar a “racionalização da sociedade ou da cultura como se se tratasse de um todo, mas de
analisar esse processo em diferentes âmbitos cada um deles enraizado em uma experiência
fundamental: loucura, doença, morte, crime, sexualidade, etc” (FOUCAULT, 1992, p. 180,
tradução minha). O problema central não consiste em saber se as coisas se adequam ou não
aos princípios da razão, mas em descobrir a que tipo de racionalidade recorrem. Então, ao
falar da racionalidade, refiro-me a um tipo de razão amplamente estendida na cultura
contemporânea ocidental, possuidor das características mencionadas anteriormente.
Na psicologia, podemos observar a mesma preponderância do racionalismo positivista:
há um forte credo na verdade última sobre os sujeitos, como se estes fossem um código fixo a
ser decomposto. Insiste uma lógica que tudo torna passível de compreensão e interpretação,
tudo reduzível à consciência e às palavras. Hegel defendia a explicabilidade da existência
inteira, tanto da própria como a da história, mas Foucault e Nietzsche questionam essa certeza
ao afirmar que existe sempre uma indeterminação imanente aos seres, à vida, através da qual
se abrem horizontes intermináveis e inimagináveis. Não chegamos nunca a uma razão final
pelo simples fato de que ela não existe, temos apenas pequenos e inúmeros acoplamentos
transitórios que compõem nossos caminhos durante o próprio caminhar. A exatidão, glória
suprema na ciência positivista, fica impossível se assumimos a realidade como movimento
permanente.
Parafraseando Stengers (2002), não se trata mais de questionar sobre os fundamentos,
mas sim de indagar sobre as fundações, sobre as configurações vigentes no momento em que
os fundamentos se estabelecem. Pensar na produção de conhecimento e na relação com o
mundo em termos de rupturas e movimento ao invés da linearidade coloca em perspectiva as
verdades inquestionáveis, pois as traz ao solo das forças cotidianas e pequenas que estão em
jogo para constituir os domínios de saber. Um bom exemplo disso nos é dado por Foucault
quando relata o que descobriu ao estudar sobre a disciplina psiquiátrica:
[...] essa prática não se manifesta somente em uma disciplina de status e
pretensão científicos; encontramo-la igualmente empregada em textos
jurídicos, em expressões literárias, em reflexões filosóficas, em decisões de
ordem política, em propósitos cotidianos, em opiniões. [...] Recuando no
tempo e procurando o que pôde preceder nos séculos XVII e XVIII a
instauração da psiquiatria, percebeu-se que não havia nenhuma disciplina anterior.
(FOUCAULT, 2000, p. 202-203).
Mesmo sem uma origem pontual, a psiquiatria constitui um dos campos de maior poder em
nossas sociedades ocidentais, com seu discurso médico-psiquiátrico impregnando praticamente todos
os planos da existência. Dizer que a produção de conhecimento não tem origem não significa negar sua
história. Justamente enquanto produção histórica é que descartamos a porção divinizada dos saberes-
verdades para demorar-nos nas “meticulosidades e nos acasos dos começos” (FOUCAULT, 1979, p.
14), uma vez que tais começos históricos são sempre baixos, mesquinhos, irônicos. Com a análise da
proveniência vemos a dispersão característica das formações de saber, os acidentes, desvios, erros e
falhas que deram nascimento ao que existe. Com isso, descobrimos que “na raiz daquilo que nós
conhecemos e daquilo que nós somos não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente”
(FOUCAULT, 1979, p. 15).
Que efeitos têm, tanto para nossa leitura de mundo como para a pesquisa, transformar essas
propostas em ação? Um deles pode ser sentido no corpo, pois desconforto quando contrariamos as
obviedades do pensamento estruturado. Temos profundamente arraigados o domínio da consciência,
da lógica dedutiva e causal. Costumamos pensar em termos de tradição, influência, desenvolvimento e
evolução, aprisionando-nos na repetição do mesmo e insistindo em ocultar as novidades e irrupções
presentes em cada fala, em cada ação. Mas para produzir algo inédito é preciso desconfiar dos termos
fechados em si, tão familiares e habituais.
Essas formas prévias de continuidade, todas essas sínteses que não problematizamos e
que deixamos valer de pleno direito, é preciso, pois, mantê-las em suspenso. Não se
trata, é claro, de recusá-las definitivamente, mas sacudir a quietude com a qual as
aceitamos; mostrar que elas não se justificam por si mesmas, que são sempre o efeito
de uma construção cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser
controladas. (FOUCAULT, 2000, p. 29).
Christian Ferrer
30
escreveu que a leitura das obras de Foucault provoca uma inquietação que
poderia ser descrita na fórmula “pânico doutrinal”, uma vez que vai deslocando as certezas do leitor.
Ao contrário do que sentimos com autores mais polêmicos, que provocam reações de rejeição
instantânea, a experiência de ler um livro de Foucault por primeira vez “implica passar uma temporada
visitando a sala de torturas, porque escrever e pensar, como o faz Foucault, conduz a decapitar a
identidade política do interlocutor” (FERRER, 1992, p. 7, tradução minha). É um martírio que se inicia
lentamente, sem que percebamos ao certo de onde vem, e transforma radicalmente nossa relação com o
30 No prólogo à edição Argentina do livro de Foucault (1992).
mundo. Nas palavras de Ferrer “uma vez que as águas de um lago foram agitadas, não é
possível contemplar a mesma evidência de todos os dias” (1992, p. 7, tradução minha).
Assim, não é nenhum exagero o que Paul Veyne (1982) declarou em seu livro:
Foucault efetivamente revolucionou a história. Em uma leitura distraída, poderíamos opinar
que a obra de Foucault não trouxe grandes novidades, ou que propôs algo relativamente
simples de fazer. Mas quando ficamos atentos ao nosso cotidiano, vemos quão difícil é essa
tarefa de desestabilizar aquilo que se apresenta como unido e homogêneo. Admitir que são as
práticas sociais as criadoras da realidade pressupõe não mais indagar-nos por qual motivo ou
razão algo foi feito (busca pela origem), mas sim que tipo de racionalidade se instaura a partir
desse ato constituinte. Essa é a grande revolução: não a priori que não seja histórico no
mundo, nem em nós mesmos, sempre há construções a partir de jogos de forças. As coisas não
passam de objetivações das práticas, e estas precisam ter suas determinações denunciadas.
Esse caráter de produção que Foucault às práticas nos possibilita inverter a lógica
tradicional acerca do objeto de conhecimento e de nossa relação com ele. Não mais estudamos
um objeto distante e definido a priori, mas o produzimos em função de nossas práticas
(BARROS e PASSOS, 2000). É o que a Análise Institucional definiu como pesquisa-
intervenção, conceito que rompe com essa forma de relação entre sujeito e objeto, assim como
entre teoria e prática (BARROS, 1994a), para propor uma não separação dos termos, os quais
se constituem ao mesmo tempo e no mesmo processo. O que vem primeiro é a relação, o
entre, colocando em manifesto a existência de jogos de interesses e de poder no campo de
intervenção, os quais costumam ser ignorados e desconsiderados. Com isso, problematizamos
as forças que constroem a realidade e também os efeitos de nossas práticas nessa construção,
assumindo-nos como autores ativos tanto de nós como dos objetos de conhecimento,
transformando-nos ao mesmo tempo que àqueles.
Com esses movimentos de criação de saber imanentes a nosso fazer, confirmamos a
inseparabilidade dos momentos ditos teóricos, meramente especulativos, dos momentos ditos
práticos, meramente técnicos. Não um que venha antes ou que seja causado pelo outro,
que “nenhuma teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de muro e é preciso a
prática para atravessar o muro” (DELEUZE e FOUCAULT, 1979, p. 70). Como colocam
esses autores, a teoria, então, não expressa ou traduz uma prática, ela mesma é uma prática
que produz realidades e ocorre sempre como luta de forças. A gênese teórica e social são
indissociáveis, sendo o momento da pesquisa “o momento da produção teórica e, sobretudo,
de produção do objeto e daquele que conhece; o momento da pesquisa é momento de
intervenção” (BARROS e PASSOS, 2000, p. 5).
Fazer ciência partindo desses co-engendramentos não ocorre de forma tranqüila, o movimento
muitas vezes nos deixa mareados. Por outro lado, o caminho higienista proposto pela ciência positivista
certamente oferece a segurança da distância, pois é sempre mais fácil buscar objetos prontos do que
criá-los. Mas seguir os padrões ditos científicos pode endurecer de tal forma a relação com o mundo e
com o próprio pesquisar que pode não haver espaço para o novo, uma vez que “a ciência não é a forma
superior do conhecimento: ela é o conhecimento que se aplica a ‘modelos de série’” (VEYNE, 1982,
p.174), buscando repetições e constantes para explicar os fenômenos. Quantas vezes não nos sentimos
presos ao tentar formatar nossas idéias de acordo com um modelo acadêmico rígido? Quanta riqueza se
perde ao deixar de lado os processos e afetos presentes na prática da pesquisa? Foucault (2000) nos diz
para desconfiarmos das falsas continuidades e questionarmos os objetos eternos da ciência. Ele propõe
estarmos atentos aos acontecimentos, à raridade que escapa à monotonia da regularidade, afirmando o
movimento caleidoscópico com suas diagramações novas a cada momento.
Portanto, assumir a orfandade da ciência e negar sua origem transcendental convoca a nos
aventurarmos pelos tropeços da produção de conhecimento no campo de forças em que ele se dá. As
palavras de Foucault nos dão uma dica para essa aventura: “Você não está seguro do que diz? [...] você
arranja a saída que lhe permitirá [...] ressurgir em outro lugar e zombar como o faz agora: não, não,
eu não estou onde você me espreita, mas aqui de onde o observo rindo” (FOUCAULT, 2000, p. 20).
Subverter as verdades totalizadoras nos liberdade para a criação e a diferença, para reconhecer as
mudanças em nós e naquilo que conhecemos. “Não me pergunte quem sou e não me diga para
permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres
quando se trata de escrever (FOUCAULT, 2000, p. 20). Trabalhando com a infração juvenil, essas
análises de Foucault nos alertam e alentam para não ficarmos presos em pensamentos-verdades que
levam a uma única direção possível, na qual a infração se equipara com doença, desvio de
personalidade e criminalidade inata e perpétua. Que possamos romper esse emparelhamento automático
e criar espaços para outras composições e acontecimentos, nos quais reconhecemos que o jovem autor
de infração comporta, ao mesmo tempo e para além do ato infracional, um etos de cuidado, de amizade,
de carinho.
1.2 – Conhecer é preciso; implicar-se não é preciso
Me gustan los estudiantes
que rugen como los vientos
cuando les meten al oído
sotanas y regimientos.
(Mercedes Sosa)
Era manhã de sexta-feira e estávamos reunidos os cinco alunos do grupo de supervisão
acadêmica do estágio de clínica. A supervisora de determinada orientação psicanalítica
escutou meu relato sobre o público atendido no hospital geral onde trabalhava, na unidade
pediátrica, o qual era composto quase exclusivamente por pacientes com escassos recursos
econômicos. Falei de suas realidades e de quão pouco acesso as crianças tinham ao mundo da
literatura e da arte em geral, por exemplo, e de como isso fazia diferença na forma de sentir e
pensar o mundo, se comparadas às crianças de classe média. Arriscando o comentário em um
espaço bastante desfavorável a ele, falei como era difícil pra mim pensar em termos de
estruturas universais (consciente e inconsciente, id, ego e superego, real, simbólico e
imaginário) quando a experiência insistia em mostrar a multiplicidade de elementos que
estavam subjetivando e fabricando determinadas configurações, ao invés de outras. Como
dizer que aquelas crianças eram iguais e funcionavam da mesma forma que outras que, desde
cedo, usavam internet e aprendiam outros idiomas, por exemplo? Depois de um longo silêncio
de escuta, recebi o veredicto em tom de interpretação: eu era racista. Racista e preconceituosa
por afirmar que os pobres seriam menos capazes que os ricos. Tentei protestar perguntando
em que parte de minha fala eu teria dito isso, mas não houve caso. Não havia lugar para a
diversidade dos sujeitos naquela sala de supervisão nem para a minha nem para a que eu
procurava invocar nas crianças que atendia no hospital.
Mais tarde, li em palavras aquilo que tinha intuído em sensação durante o estágio: o
inconsciente é algo que nunca se tem, como um produto acabado, ele precisa ser
permanentemente fabricado, um espaço social e político a ser conquistado. Deleuze e Parnet
(1998) dizem que não se pode representar um sujeito, pois não há sujeitos de enunciação, mas
sim “programar um agenciamento”, este entendido como uma composição feita de diversos
elementos heterogêneos. “Não sobrecodificar os enunciados, mas, ao contrário, impedi-los de
cair sob a tirania de constelações ditas significantes” (DELEUZE E PARNET, 1998, p. 95).
Não era tão disparatado, então, o que sentia quanto às estruturas sobrecodificadoras da
psicanálise que massificavam sujeitos idênticos sob significantes universais. Anos depois,
assistindo a uma palestra sobre famílias de jovens autores de infração, voltei a me surpreender
com essa massificação ainda presente em algumas linhas psicanalíticas:
Falou uma psicanalista que até acho interessante, mas terminar o encontro dizendo
que a questão da família contemporânea é o sexo, parece sinal de que mais de cem
anos de psicanálise e seguem patinando exatamente nas mesmas reflexões narcisistas.
Será que não haveria muitas outras coisas mais ricas a serem faladas em um encontro
como este sobre o jovem autor de infração e suas famílias? (Diário de campo II, 20 de
julho 2005)
É realmente assombroso como podemos chegar a produzir realidades tão diferentes a partir de
nossas práticas de análise, de supervisão ou mesmo de pesquisa, dependendo das trajetórias conceituais
e vivenciais de cada um. Sempre encontraremos no analisando, no aluno ou no objeto investigado
aquilo que acionamos e criamos na relação que estabelecemos com eles
31
. Nossas práticas cotidianas,
“por menores e pouco visíveis que se apresentem, constituem poderosos instrumentos de reprodução
e/ou criação, produzindo os mais surpreendentes efeitos” (COIMBRA e NASCIMENTO, 2003, p. 33).
Naquele espaço instituído da supervisão, fortalecíamos a pretensa igualdade entre os homens,
propagada pelo liberalismo e por uma parte da psicanálise, confirmando o modelo do indivíduo a-
histórico e resultado apenas de sua topografia intra-psíquica, no máximo intra-famliliar.
Pensar na forma em que nossas práticas são instrumento de criação do mundo coloca em
questão o paradigma dominante que defende a neutralidade e objetividade da ciência, que todo
conhecer seria, necessariamente, fazer, intervir, alterar. Lourau (1993) chamou a atenção para o fato de
que quase todas as ciências estão baseadas na noção de desimplicação, sendo poucas as que se
questionam acerca da posição do pesquisador diante de sua produção. Por isso, o autor diz que o maior
escândalo da Análise Institucional é o conceito de análise de implicações, pois ela rompe com essa
tradição ao apresentar um intelectual implicado, sendo que
estar implicado (realizar ou aceitar a análise de minhas implicações) é, ao fim de
tudo, admitir que eu sou objetivado por aquilo que pretendo objetivar: fenômenos,
acontecimentos, grupos, idéias, etc. Com o saber científico anulo o saber das
mulheres, das crianças, dos loucos... o saber social, cada vez mais reprimido como
culpado e inferior. (LOURAU, 1977, p. 88)
Implicação não se refere ao grau de participação ou engajamento em algum movimento ou
prática
32
, e sim à análise dos lugares que ocupamos no mundo, que uso fazemos desses lugares, como
nos posicionamos nos jogos de poder, que alianças fazemos e em nome de que. Mas, como lembram
Coimbra e Nascimento (2003), não se trata de debater tudo isso apenas na situação específica na qual
nos encontramos, e sim estender esse exercício ao cotidiano, à vida, às relações sociais em geral, ao
31 Sobre a instituição da supervisão e como ela amolda os estagiários, vale a pena ler o texto de Baptista (2000).
32 No texto de Coimbra e Nascimento (2004), é problematizado o sobre-ativismo dos profissionais que, embalados pelo
ritmo acelerado do mundo capitalista, não param nunca para pensar sobre seu fazer e suas implicações.
lugar que ocupamos na história. A análise de implicações é uma prática indissociável da
proposta da pesquisa-intervenção, na qual é impossível para o pesquisador esconder-se atrás
das posições científicas e imparciais, tendo que assumir sua posição no mundo. Se
reconhecemos que o próprio movimento de conhecer altera o objeto a ser conhecido, e
também altera a nós mesmos, não se pode manter uma postura indiferente.
Desde o genocídio de Hiroshima, ficou evidente que o conhecimento científico não é
puro nem alienado dos processos político-sociais que o engendram. Também ficou evidente o
quão desastrosos podem ser os resultados de uma prática que não se questione sobre o que
está provocando no mundo. O próprio Robert Openheimer, conhecido como pai da bomba
atômica, ficou tão afetado pela força destrutiva de sua criação que aconselhou dar participação
aos russos nos segredos atômicos e se opôs ao desenvolvimento da bomba.
Remi Hess, problematizando esse tipo de ocorrência, nos coloca a instigante pergunta:
como se pode compreender a “‘reprodução e a ‘sobrevivência do sistema’ se, ao mesmo
tempo, esquecemos de analisar o papel decisivo que os intelectuais desempenham na
institucionalização de uma ordem social infame, porém tolerada? Eis os lapsos dos
intelectuais” (HESS, 2004, p. 24-25). Esse lapso é o que o intelectual implicado procura evitar
ao assumir que não lugar para meios termos: ou toma o partido da ordem vigente ou se
opõe a ela, pois inevitavelmente suas práticas operarão em um sentido ou no outro. Por isso, é
uma opção política assumir nossos jogos de valores, forças e tendências ao invés de procurar
negá-los, uma vez que estarão agindo independente de nossa vontade.
A noção de análise das implicações é inovadora porque coloca no centro da
investigação aquilo que até então era considerado “escória da ciência”
33
, inconvenientes
menores a serem evitados. É precisamente naquilo que procuramos esconder e deixar de lado
no momento de pesquisa ou intervenção onde aparecem os atravessamentos que devem ser
evidenciados. A ferramenta da análise institucional perturba o raciocínio mercantilista que
fetichiza os produtos ocultando o processo de produção. Em um momento em que a ciência
formal parece ser o campo que mais permite a ocultação do trabalhador em relação ao
seu ofício, a análise de implicações enfatiza o desvendamento do momento de criação e de
tudo que o perpassa, sem dissociar a vida cotidiana do trabalho de campo nem da elaboração
teórica.
Na psicologia, temos uma longa tradição que busca pregar a necessidade da distância
mínima com relação aos pacientes ou objetos de pesquisa para garantir a objetividade de
nosso saber. Esse ideal de psicólogo, que pode parecer tão natural, não surgiu ao acaso, ele é o
33 Expressão usada por René Lourau (2004).
resultado histórico de uma busca por afirmar o status científico da psicologia no final do século XIX.
Também a psicanálise deu um grande reforço ao instaurar o analista-tábula-rasa como figura
imprescindível para melhor permitir a projeção das questões inconscientes dos pacientes. Desse modo,
foi sendo feita uma trajetória na qual não parecia haver lugar para o psicólogo-político, implicado com
as questões de sua época e atento aos efeitos dessas implicações em seu fazer (BOCCO, MANZINI e
NASCIMENTO, 2006).
Lourau conta uma anedota sobre “o acidente mortal sofrido por um artista, atropelado por um
ônibus ao recuar alguns passos para ver a obra que acabara de pintar num muro próximo” (HESS, 2004,
p. 28) para alertar-nos de que não podemos tomar muita distância quanto à nossa produção pois
corremos o risco de perder a vida. Vida e obra são imanentes, não distância entre elas. Os planos
clínico e político
34
mantêm entre si o mesmo tipo de relação de inseparabilidade, uma vez que não
apenas escutamos subjetividades através de nossas práticas, mas também produzimos subjetividades.
Não estamos alheios aos efeitos que se produzem nos sujeitos com os quais trabalhamos, muito pelo
contrário, temos um compromisso com o que nossa escuta provoca. Assim, ela é política porque
sempre está implicada na produção de realidades e porque só pode efetivar essa produção de uma forma
coletiva, jamais a partir de uma autoria individual.
Tradicionalmente, o fazer da psicologia têm estado sob o domínio de certa acepção da clínica
originada do klinikos grego, cuja raiz etimológica significa inclinar-se sobre o leito, remetendo ao
atendimento individual baseado no modelo médico. Esta compreensão da clínica se acopla à
experiência individual que foi sendo construída nos séculos XVI e XVII e que se fortaleceu nos séculos
XVIII e XIX (BARROS, 1994b). Para a psicologia, essa forma de pensar reforçou uma lógica privada e
intimista, centrada apenas nas questões psíquicas de um indivíduo que seria fechado em si mesmo.
Imersos no que Guattari (1981) chamou de Capitalismo Mundial Integrado, os especialistas psi fomos
acumulando um poder que decide sobre vidas e mortes, que pode cortar e distribuir de acordo com um
imperialismo que pensa apenas em termos de fitness e de adaptação aos moldes, sob um discurso
pretensamente humanitário:
Enrique [Martínez Reguera]
35
usou algumas vezes o termo “colonizadores de almas”
para referir-se aos especialistas que pretendem estar ajudando mas que na verdade
estão tentando impor uma ajuda que o outro não precisa. No trabalho com jovens, por
34 Problematização feita durante a disciplina de mestrado “Subjetividade e Clínica”, ministrada em 2004/2 por Eduardo
Passos e Regina Benevides.
35 A partir da relação de parceria iniciada em 2004, durante visita à Coordinadora de Barrios em Madri, foi organizada a
ida do autor a Porto Alegre para lançamento do livro “Crianças de rua, crianças de ninguém: Psicologia da infância
explorada”, em 2005. Aproveitando sua presença na cidade, realizamos mais dois eventos, um no Conselho Regional de
Psicologia (CRP/07) e outro na Procuradoria da República no Rio Grande do Sul, com os participantes do Projeto Abrindo
Caminhos. Os trechos do diário de campo que mencionam Enrique são registros feitos durante esses encontros e em
conversas durante sua estadia.
exemplo, não se ouve o que eles querem, damos aquilo que achamos
melhor, ou que queremos dar, porque não supomos que o outro tenha voz,
tenha interesses, desejo. Vemos muito, de forma geral e nestes projetos,
uma “cultura redentorista” que prega a salvação do outro através da
realização de nossas vontades, do domínio de nossa idéia de certo, de cura.
(Diário de campo II, 29 de julho 2005)
A prática da avaliação psicológica e da construção de laudos é uma das atividades
mais requisitadas da profissão, e o maior exemplo do poder que exercemos. Mesmo assim,
ainda são poucos os que se perguntam: como é possível medir um sujeito? Quais os efeitos
disso sobre aqueles que são avaliados? Como se pode plasmar uma vida em um papel?
muito em jogo quando afirmamos, com nosso saber, que alguém é (considerado) incapaz,
inútil ou perigoso. No caso dos jovens autores de infração, uma avaliação pode significar seis
meses a mais na internação, ou alguns dias no isolamento, ou suspensão das visitas, ou
proibição de saída para atividades externas e para o final de semana, quando não vários desses
itens sobrepostos.
Ao louvar a figura do self made man, atribuímos sucessos e fracassos a um ser
individual que triunfa ou falha, sempre por sua própria conta. As trajetórias pessoais se
apresentam como imperativamente particulares, sem colocar em cena o que existe de coletivo
em cada enunciação. É o que Coimbra e Leitão (2003) chamam de sistema da meritocracia, no
qual tudo depende das capacidades e eficiências individuais. Guiados por esse preceito, não
apenas psicólogos e psiquiatras, mas também juristas, pedagogos, médicos, policiais e
governantes insistem em um sujeito-indivíduo composto apenas por instâncias psico(pato)
lógicas e definido por fatores relacionados à origem – genético/hereditária, racial e geográfica.
Com os movimentos sociais das décadas de 50 e 60, e suas críticas a tudo aquilo
tradicionalmente instituído
36
, a clínica começou a ser pensada dentro de outra perspectiva.
Para além do klinikos acolhimento sobre o leito, Passos e Benevides (2001) propõem pensar a
clínica-clinamen. Esse termo é tomado de empréstimo de Epicuro e designa o movimento de
choque entre os átomos ao caírem no vazio, através do qual se articulam e vão compondo as
coisas. Esses pequenos movimentos de desvio têm a potência de geração do mundo, daí uma
clínica clinamen que convoca à construção de desvios para abrir possibilidades e dar outros
rumos ao que parece imutável. Essa é a experiência clínica em sua dimensão política,
desestabilizando as formas de organização majoritárias do sócius a partir de pequenos
36 A instituição se refere a um conjunto de práticas que se repetem e se legitimam, instrumentando-se em
estabelecimentos, dispositivos e agentes e determinando certas formas de relações sociais. A principal
característica da instituição é ser produzida historicamente, mas os processos de institucionalização têm por
efeito o ocultamento do sentido desta produção histórica, fazendo com que apareçam de forma naturalizada em
nosso cotidiano (RODRIGUES et al, 1992).
movimentos de desvio que produzem novas configurações para a criação do real, sempre e
invariavelmente de forma coletiva.
Guattari (1990a; 1990b; GUATTARI e ROLNIK, 1986) nos deixa algumas dicas para romper
com os paradigmas predominantes em psicologia que enfatizam estruturas de personalidade absolutas e
totalizadoras como as unidades de composição dos sujeitos. Ele toma a subjetividade não como uma
essência interna ao indivíduo, mas como um movimento de construção permanente, composta por
elementos econômicos, políticos, tecnológicos, midiáticos e ecológicos, entre outros. Processos de
subjetivação mais do que subjetividades em si, modos de existir sempre múltiplos e temporários.
Assim, ao deslocar a subjetividade do interior do sujeito para algo que transita e ocorre sempre entre,
com uma diversidade de componentes, a clínica toma uma dimensão terminantemente política e
coletiva. Trata-se de tornar público o que privatiza, contrariando a idéia do psiquismo como
propriedade privada interna e fechada sobre si.
Coimbra (1995, 1996) mostra muito bem quais os efeitos de uma clínica que se proclame neutra
e imparcial e ignore as implicações de seu fazer político. Durante a ditadura brasileira de 64, os
profissionais psi tiveram grande participação no fortalecimento e difusão das categorias do subversivo e
do drogado, ambas vistas como perigosas e ameaçadoras da ordem vigente, devendo ser identificadas e
controladas (COIMBRA, 1995). O discurso psicologizante os classificava de doentes, anti-sociais,
desviantes, reduzindo suas posturas políticas contestadoras a distúrbios de comportamento, ainda
culpabilizando as famílias por não terem conseguido criar filhos que mantivessem a sociedade
saudável. “A ênfase dada à responsabilidade individual de cada membro da família mostra o
fechamento dela sobre si mesma, sinais gritantes de uma vida pessoal desmedida e de uma vida pública
esvaziada” (COIMBRA, 1995, p. 32), tudo que o governo ansiava naqueles momentos de autoritarismo
e tirania.
Sob a ficção da objetividade científica, as práticas desses profissionais produziram verdades que
imobilizaram os movimentos sociais pelo sentimento de incompetência e culpa que geraram nas
famílias, contribuindo para a manutenção da ordem vigente e alimentando o poder repressivo dos
militares. Em pesquisas encomendadas por eles
37
para conhecer melhor os chamados inimigos da
pátria”, os psicólogos concluíram que os jovens revolucionários procuravam esse caminho por estarem
em um período no qual precisavam firmar sua personalidade e mostrar que eram adultos e capazes de
decidirem por si (COIMBRA, 1996). Os especialistas também aplicaram diversos testes de
personalidade para mostrar os perfis dos ditos “terroristas brasileiros”, encontrando que estes
apresentavam traços tais como dificuldades de relacionamento, escasso interesse humano e social,
37 Para maiores detalhes, ver “Murici: recuperar jovens que se desviaram é a grande tarefa”, em O globo de 12.11.1971.
imaturidade, estabilidade emocional precária e dificuldade de adaptação e ajustamento, entre
outros (COIMBRA, 1996). Sem mencionar as torturas que acompanhavam tais aplicações de
testes e o terror a que eram submetidos os que se negassem a participar, os estudos dos
psicólogos e psiquiatras reforçaram uma cultura da intimidade que tudo reduziu ao privado,
esterilizando o ximo possível um plano social que pudesse repudiar as barbaridades
cometidas cotidianamente.
Assim como os profissionais psi colaboraram com a ditadura brasileira e minaram os
espaços públicos, transformando-os em projeções internas de transtornos de personalidade,
muitos outros intelectuais estiveram a serviço dos interesses dominantes, acreditando que suas
práticas estavam distantes das lutas cotidianas dos demais. Mas o conhecimento é, sempre,
intervenção; as práticas são, invariavelmente, sociais; a clínica é, indissociavelmente, política.
Se pudéssemos dizer que existe alguma vocação da clínica, seria a de
afirmar sua potência de dispositivo, isto é, de produtor de efeitos de sentido
variados. Mas não basta chamar a atenção para tal caráter de dispositivo
como algo em si. que se rastrear sempre em que práticas tal
dispositivo se sustenta, o que está fazendo funcionar, que visibilidades tem
permitido passar, que dizibilidades tem autorizado conectar, que lutas tem
enfrentado na produção de subjetividades outras. (BENEVIDES, 2002, p.
136-137)
Rastrear o que produzimos e queremos produzir com nossas ações, reconhecendo que nossa
história singular é uma das linhas que compõem e são compostas pelas configurações
históricas de cada momento.
A realidade não possui uma origem nem está totalmente dada, ela se faz e refaz a todo
momento através das diversas práticas que empreendemos. Estas não ocorrem em um vel
abstrato ou geral, e sim nos pequenos gestos do cotidiano, clinamen dos átomos que
engendram mundos. Não oposição entre os níveis que Guattari (e ROLNIK, 1986) chama
de macro ou molar e o micro ou molecular, pois sempre existe uma afetação mútua entre eles.
Trabalhar com uma abordagem micropolítica convoca à desconstrução dos universais e das
hierarquias opressoras, enfatizando as incessantes construções que reproduzem ou subvertem
os modos de subjetividade dominante.
Relacionar-se com o mundo através dessas revoluções moleculares exige criatividade e
abertura de nossa parte. Temos que ir contra as pressões dominantes que nos fazem acreditar
que nada pode ser feito de forma diferente, que nada podemos contra os poderes instituídos a
não ser jogar seu jogo. Trata-se não apenas de produzir condições de uma vida coletiva, mas
também de encarnar a “vida para si próprio, tanto no campo material, quanto no campo
subjetivo” (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 46). Ernesto Sabato, referindo-se à literatura, defende que
ler lhes dará um olhar mais aberto sobre os homens e sobre o mundo, e os ajudará a
rejeitar a realidade como um fato irrevogável. Essa negação, essa sagrada rebeldia, é a
fenda que abrimos sobre a opacidade do mundo. Através dela pode filtrar-se uma
novidade que alente nosso compromisso (SABATO, 2005, s/n, tradução minha).
Assim como a leitura, os conhecimentos acadêmicos que produzimos também devem estar
sempre a serviço do questionamento de tudo aquilo que inibe os movimentos de vida e de inovação.
Manter essa sagrada rebeldia para subverter tudo aquilo que nos amarre de forma fatalista, eis um
desafio lido tanto para a arte como para a sala de aula, para a clínica, para as relações sociais,
familiares e para a pesquisa. É uma estratégia de enfrentamento, mais do que um domínio específico,
não estando limitada por fronteiras entre campos separados.
À capacidade que devemos exercitar de estarmos atentos para os processos que estão ocorrendo
no social e em nós, de aguçar a potencialidade de nosso olho de ser tocado por aquilo que vê, Suely
Rolnik chama de vibratilidade. Aliar-se com as forças da processualidade, diz ela, depende
mais do que de qualquer outro tipo de aprendizado, de estar à escuta do mal-estar
mobilizado pela desestabilização em s mesmos, da capacidade de suportá-lo e de
improvisar formas que dêem sentido e valor àquilo que essa incômoda sensação nos
sopra. (ROLNIK, 2002, p. 32-33)
O contato com os jovens autores de infração provoca uma sensação de mal-estar porque desloca
totalmente as tranqüilidades e confortos dos pensamentos e fazeres estabelecidos, conectando-nos com
uma realidade que apenas conseguimos experimentar através das falas, risos e lágrimas dos próprios
jovens, embora essa realidade tenha tudo a ver com nossas falas, risos e lágrimas. Não podemos
pretender atribuir-nos a função de representar os jovens e falar por eles, pois os sujeitos podem falar
por si mesmos e não precisam de um especialista para ser suas consciências (DELEUZE e
FOUCAULT, 1979). Sempre saberão melhor que nós acerca de sua vivência e o dirão muito bem sem
precisar de nossas palavras. A idéia é fazer alianças com, conspirar juntos estratégias que operem para
favorecer a vida.
Esta pesquisa pretende trazer as vozes dos jovens autores de infração, misturadas à minha, para
tornar públicas nossas indignações, assim como nossas revoluções. Foucault (1977) disse que fez
apenas autobiografia, escreveu procurando sua emoção, o riso, a surpresa, um particular tremor. Não
poderia conceber outra forma de produzir conhecimento que não seja por autobiografias, por questões
que nos atravessam e desestabilizam de tal forma que não podemos descansar enquanto não seguimos
os caminhos a que nos convocam. Em última análise, a luta será sempre a mesma apesar da
descontinuidade geográfica ou temática das diversas frentes, trata-se de combater o poder a
partir de nossas atividades e, dessa forma, alimentar as revoluções moleculares. Desde
qualquer lugar podemos questionar o conjunto do sistema e fazê-lo explodir. O
subcomandante Marcos, do Ejército Zapatista de Liberación Nacional, expressa a mesma
idéia em seu discurso no filme Zapatista (1998):
O zapatismo não é uma ideologia, não é uma doutrina cabal. É uma
intuição, algo tão aberto e tão flexível que realmente ocorre em todos os
lugares. Quer dizer, o zapatismo obriga, ou melhor, coloca a pergunta: ‘O
que me tem assim? O que me exclui, o que me coloca à margem?’. E a
resposta que se é diferente para os indígenas Mexicanos que, por
exemplo, para os indígenas na América do Norte, para os migrantes na
Europa, ou para o movimento de resistência na Ásia, ou para os negros na
África. Em cada lugar a resposta é diferente. O zapatismo simplesmente faz
a pergunta e adianta que a resposta é plural, que a resposta é inclusiva e
deve ser tolerante. (tradução minha)
Por isso, meu fazer em psicologia é possível pela intensidade do encontro com a
juventude e pelas perguntas que se engendram. Refiro-me à juventude como potência de
vida que não cede ao mundo adulto pois possui algo que resgata incessantemente da
indiferença, opacidade e racionalidade dessa categoria supostamente madura. Contagiar-se e
impregnar-se com uma força que reaja sempre diante da injustiça, que se entristeça com a
desgraça humana e que não possa se calar diante do sofrimento de grande parte de população
mundial. Frente às misérias e calamidades do contemporâneo, o lema salve-se quem puder
não é apenas anti-ético como insuficiente: não soluções individuais para problemas
coletivos. Temos que abrir-nos ao mundo, “não considerar que o desastre está fora, mas que
arde como uma fogueira na própria sala de jantar de nossas casas. É a vida e nossa terra as que
estão em perigo. A solidariedade adquire, então, um lugar decisivo neste mundo acéfalo que
exclui os diferentes” (SABATO, 2004, p. 85, tradução minha).
O discurso intelectualizado não pode servir para esconder-nos e livrar-nos de tomar
posições, como se existíssemos em um universo diferente ao dos demais. As escolhas
políticas que fazemos não são aleatórias, elas apontam em uma direção, u-topos onde não se
chega nunca mas que serve como horizonte a inventar. A vida sempre termina antes, sabemos,
mas nosso percurso se deu rumo a uma direção ou a outra. E nunca produzem os mesmos
efeitos uma que outra. Quando a maioria das práticas se dirigem ao sem sentido da
mercantilização da vida, faz toda a diferença se nos associamos a essa lógica ou não.
A dinâmica da meritocracia válida tanto para recompensas como para punições – faz
com que os fenômenos coletivos sejam entendidos como eventos isolados e atribuíveis a um ser em
particular, ao invés de considerá-los como uma produção datada historicamente e que nos mostra uma
forma de funcionamento social. Quais os efeitos dessa postura sobre as políticas criadas nas últimas
décadas para lidar com a miséria, o desemprego, a marginalização dos guetos, a imigração, a infração
juvenil? O que observamos, tanto nas grandes metrópoles como nos pequenos vilarejos globalizados, é
um movimento de segregação através da criminalização de porções cada vez maiores da população.
Conhecer como esse processo vem operando no contemporâneo permite uma postura crítica diante de
suas pequenas micro-manifestações diárias, possibilitando maneiras de enfrentamento mais eficazes.
1.3 – Quando o caminho subverte a meta
Não sei como sobrevive a investigação, se a exigem tanto nas universidades.
(Albert Einstein)
Método, do grego méthodos, vem das raízes metha, que se refere a movimento para além,
mudança, e hodos, que se refere a caminho. todo, então, significa literalmente caminho para chegar
a um fim ou objetivo. Nas atividades tidas por científicas, o aspecto metodológico é dos mais
importantes porque, supõe-se, garantiria uma série de ações pré-definidas para atingir um objetivo,
também pré-definido, da forma mais rápida e eficiente possível. O método daria acesso a uma realidade
ou verdade absolutas, sendo mais importante a meta final do que o caminho.
Mas alguns autores
38
estão propondo uma subversão, pensar em termos de Hodos-meta mais do
que méthodos, o que implica dizer que a meta está determinada pelo caminho, e não ao contrário. Em
sendo um método de orientação do ato de realização, e não um modo de representação ou de busca pela
verdade, o que resulta é uma experiência expressiva do encontro e as relações que aí se constroem. Mas
o fato do próprio caminhar construir a meta não quer dizer que haja um descaso metodológico, existem
princípios para esse caminhar. A idéia da cartografia, então, surge como uma forma possível para
acompanhar algo que não é estanque mas dinâmico e processual. É um método rigoroso que coloca o
tempo inteiro em análise os saberes e as realidades que estão sendo criados com o caminhar.
implicação na construção da meta, o que exige responsabilidade e uma preocupação ético política, uma
38 Discussão proposta por Regina Benevides e Eduardo Passos na disciplina de Metodologia, em 2005.
vez que a cartografia sempre acompanha os efeitos sociais da intervenção.
De acordo com Benevides e Passos (2005), o método se caracteriza por três eixos de
direção e três efeitos desses eixos. Os eixos se referem às dimensões analíticas e ao como
enfrentar a realidade, e os efeitos às desestabilizações geradas a partir do fazer. O primeiro
eixo seria o da analítica institucional: a análise é sempre enfrentamento da realidade, então o
método deve problematizar e decompor a realidade em questão, aparecendo o plano do
instituinte. Isto supõe a análise de implicações e a não neutralidade do sujeito que conhece.
Como efeito deste eixo, rompe-se a noção de campo (LEWIN, 1973), para pensar a noção de
plano de produção da realidade (PASSOS e BENEVIDES, 2000), planos e processos de
subjetivação que rompem a identidade organizadora do mundo.
O segundo eixo é o da análise crítica, que propõe uma atitude de argüição e quebra do
sossego daquilo que está dado. A crise aqui é tanto desestabilização como atitude crítica para
produzir torções e dobras na realidade. O efeito disto é a quebra das dicotomias, pois rompe
com a lógica binária e opositiva e sugere a multiplicidade e indeterminação imanente. O
terceiro e último eixo é o da análise cartográfica, afirmando que para além da crise existem
linhas e processos, não formas nem estados. O acompanhamento de um processo de
germinação e subjetivação fazem emergir novas referências, tendo por efeito a quebra das
molaridades e do espírito de unidade. A realidade deixa de ser vista como um todo
homogêneo para dar passo ao molecular que desestabiliza a dimensão totalitária do que é
dado.
Rolnik (1989) afirma que a prática cartográfica diz respeito às estratégias das
formações do desejo no campo social, ou seja, é um método político que não apenas
acompanha mas produz no campo social. Assim, o todo em si opera, a prática produz e o
modo dessa prática gera efeitos e caminhos possíveis. A proposta desta metodologia é, mais
do que capturar, fabricar o instante do encontro dos movimentos do pesquisador com os
movimentos do território de pesquisa (KIRST et al, 2003). É isso que se registra, e não os
objetos em si, pois eles são secundários ao encontro.
Se, por um lado, não temos um objeto-objetivo a priori, não deixamos de ter uma
direção para nosso fazer, e faz muita diferença qual direção procuramos com nossas ações. A
cartografia implica em fazer escolhas a cada momento de acordo com a própria trajetória e
com o agenciamento que opera nesse momento, e cada escolha será decisiva porque compõe
uma trajetória singular. A tarefa do cartógrafo seria a de dar voz e corpo aos afetos que
pedem passagem (ROLNIK, 1989) naquilo que acompanha, pois sabe que ele mesmo faz parte
da investigação. O que define seu perfil, então, é exclusivamente um tipo de sensibilidade,
que ele se propõe fazer prevalecer, na medida do possível, em seu trabalho.
Mairesse (2003) coloca que é politicamente interessante usar a cartografia como ferramenta para
desencadear novos percursos científicos em favor de uma compreensão daquilo que Nietzsche e
Deleuze chamaram acontecimento, ou seja, o inusitado que inesperadamente se impõe sobre as outras
formas e transforma tudo a seu redor. É politicamente importante porque não busca o mesmo, o que se
repete, lidar com os mesmos objetos reificados do cotidiano, quer engendrar a invenção, o diferente, o
que está irrompendo nas formações sociais a partir dos encontros.
A opção por esse método para trabalhar com jovens autores de infração se deve precisamente à
possibilidade de não pensar em termos de meta ou resultado a ser obtido nos projetos que trabalham
com esse público muitas vezes vemos a busca de uma “cura” do jovem, acreditando que a infração é
uma doença individual –, mas em termos de processo a ser acompanhado e construído conjuntamente.
Isso exige estar disponível e disposto para deixar-se afetar, porque a única forma de transformar a
realidade é nos transformando ao mesmo tempo, nossos preconceitos, nossos medos, nossa rigidez em
formas identitárias fechadas. Usar a cartografia como método é apostar numa forma de trabalhar que
efetivamente constrói outra relação com o jovem e com a vida.
A noção de tempo presente no fazer cartográfico está relacionada com Aion, tempo do
acontecimento e da intensidade, e não com Chronos, tempo cronológico constituído por linearidades e
causalidades (DELEUZE, 1974). Um protocolo fixo poderia perceber objetos fixos e tempo
cronológico, no caso dos jovens perceber se chegou no horário no local, se tem ido aos atendimentos
técnicos e às audiências, quanto falta para cumprir dezoito anos, se tem feito as tarefas do setor
corretamente, etc. O registro cartográfico, por sua vez, seria sensível para a dimensão intensiva do
processo, perceber como o jovem está no projeto, estar atento às falas que possam indicar envolvimento
com nova infração ou desistência do estágio, acompanhar os interesses por procura de emprego ou
cursos, etc. Faz diferença, insisto, como nos aproximamos deste jovem e como criamos o encontro, se a
partir de um formulário a preencher ou a partir de um desenho a inventar.
De acordo com Rolnik, existe apenas uma regra de ouro para o cartógrafo: “é sempre em nome
da vida, e de sua defesa, que se inventam estratégias, por mais estapafúrdias” (ROLNIK, 1989, p.70). A
essa regra soma-se outra que a complementa, a regra da prudência e delicadeza, a qual discrimina
quando há potência e quando há perigo para agir diante de forças que são de destruição e extermínio. O
cartógrafo sempre avalia o quanto as defesas que estão sendo usadas servem ou não para proteger a
vida, para expandi-la. Essa é a direção que seguimos e que exercemos com a prática da cartografia: a
permanência da vida e a criação de novas realidades e existências.
Tendo a cartografia como método, são necessários alguns dispositivos teóricos-técnicos para
tornar essa abordagem possível. Nesse sentido, percebo uma indissociabilidade entre a
proposta cartográfica e o uso do diário de campo
39
como ferramenta de registro dos
acompanhamentos construídos com aquela. Se partimos da idéia de que as realidades se
constroem em processos, sem que haja sujeito ou objeto fora dessa construção, é preciso
inscrever a dimensão temporal do processo, ou seja, dar testemunho dos movimentos que
compuseram determinado caminho no momento em que estavam ocorrendo. Lourau (1993)
fala da necessidade de produzir um conhecimento sobre a temporalidade da pesquisa, essa que
não é a dos resultados, a do texto final, essa que contradiz a temporalidade da produção
institucional ou burocrática.
A prática de pesquisa presente no imaginário social é completamente caricatural, a
cientificidade estando sempre associada a uma assepsia dos produtos finais, sem considerar os
micro-elementos que foram se articulando para chegar a um artigo ou tese. Mas não se faz
sociologia das oito horas ao meio-dia e das catorze às dezoito horas, como afirmou de forma
bem-humorada Lourau, já que o sociólogo está atravessado por seu objeto tanto de dia como à
noite, envolvendo-se em tempo integral com sua prática (HESS, 2004). Daí a importância
dada ao extratexto nas ciências humanas, pois evidencia essa integralidade em nosso fazer.
Esse tipo de registro introduz, no texto acadêmico, a formação de uma idéia ou de um
conceito no dia a dia, os pequenos desvios que vão sendo produzidos na pesquisa por uma
música, uma palestra, uma conversa. Sempre achei impressionante as mudanças que
acontecem em um trabalho a partir de um seminário, um filme ou um encontro casual com
algum colega. No diário de campo podemos ver esses percursos na relação com a pesquisa,
incluindo no produto final o processo de construção e, assim, mostrando um conhecimento
que se fabrica estando imerso no mundo e possuindo caráter provisório e sempre inacabado.
O diário não pretende relatar tudo da vivência de quem o escreve, ele é apenas um
traço feito de notas e experiências que se mantêm longe da linguagem científica, optando por
uma escrita mais literária que permite a expressão de planos difíceis de serem colocados em
uma linguagem técnica ou apenas descritiva. Como não é feito para um leitor, o diário
acompanha a espontaneidade do agenciamento sem deixar-se capturar por uma preocupação
com a produção formal. Por esse motivo, é um registro que traz a intensidade do
acontecimento, captando os elementos da cotidianidade enquanto estes criam novas
configurações. Mas não se pode pensar o diário como uma simples técnica de relatório, pois
não se trata de coletar dados, que estes nunca existem como objetos esperando serem
descobertos. O diário é um produto da pesquisa mas sobretudo um produtor da mesma,
39 Esta prática é comum nas pesquisas etnográficas feitas em sua maior parte por historiadores, antropólogos e
sociólogos.
operando como dispositivo que gera saberes e realidades mais do que os descreve (SOUZA, 2005).
Um aspecto muitas vezes menosprezado, mas importante, é a dimensão eminentemente coletiva
do diário, por estar composto de diversas falas, diálogos informais e correspondências entre os
integrantes de uma equipe seja da intervenção, do grupo de pesquisa ou dos colegas de estudos. O
texto se compõe de uma multiplicidade que excede totalmente aquele que escreve. Há uma co-autoria e
um desejo de partilha imanentes a essa prática-ferramenta, afirmando que além de ser processual, a
produção do conhecimento nunca é individual e sim da ordem de um agenciamento coletivo de
enunciação
40
(DELEUZE e PARNET, 1998).
Expor, ou não, esses atos da pesquisa com o diário é um ato político, assim como o uso da
cartografia como método. Mas a transformação de si e do lugar que ocupamos no mundo não se per
se, não basta o diário como um livreto individual para arquivar nas bibliotecas intelectuais. É preciso
um projeto político que crie estratégias de coletivização das experiências e análises (LOURAU, 1993),
que nossa ação não apenas retire informações de um campo de pesquisa, mas que sirva como
instrumento para reflexões e práticas revolucionárias.
Dizia que o diário de campo é um dos dispositivos para acompanhar a cartografia. O outro,
usado para esta pesquisa, é o grupo dispositivo apresentado por Barros (1994; 1997). Para Deleuze
(1988), o dispositivo é um emaranhado constituído por várias linhas e tem caráter ativo,
movimentando-se no sentido de desfazer o lugar do universal, do invariável. O grupo dispositivo,
então, é uma estratégia privilegiada para colocar em análise os processos de subjetivação dominantes,
funcionando como máquina de decomposição. Mas não é o agrupamento de indivíduos que torna isso
possível, uma vez que este também pode operar como unidade totalizadora. É apenas quando o grupo
passa a ser um dispositivo que ele produz esse efeito:
A noção de dispositivo aponta para algo que faz funcionar, que aciona um processo
de decomposição, que produz novos acontecimentos, que acentua a polivocidade dos
componentes de subjetivação. (BARROS, 1994, p. 152).
Sendo o dispositivo constituído por linhas (DELEUZE, 1988), não previsibilidade quanto às
configurações dessas linhas na formação de paisagens e, por isso, não pré-determinações que
estabeleçam antecipadamente aonde chegar com cada encontro do grupo dispositivo. Os efeitos
disparados ali são imprevisíveis e se estendem muito além do tempo-espaço no qual surgem. As linhas
de subjetivação, como processo que são, se fazem no dispositivo para que ele as mantenha ou as
descarte. Assim, o grupo dispositivo não procura atingir um determinado fim ou objetivo, nem se
propõe uma tarefa específica. Não um sentido a ser revelado, mas vários sentidos a serem criados,
40 De acordo com os autores citados, o agenciamento coletivo de enunciação é uma das faces que compõem o agenciamento
e afirma que toda enunciação é necessariamente uma produção coletiva, não individual.
produzidos no próprio processo do encontro.
Se as questões do grupo são geradas a todo momento e sempre com, nunca por
alguém, o especialista não ocupa mais lugar de destaque, nem funciona com hierarquia sobre
os demais integrantes do coletivo. Sua ação passa a consistir em aliar-se à criação,
acompanhar as linhas e movimentos em uma estratégia cartográfica mais do que arqueológica
(ROLNIK, 1989). Não existe mais um saber hegemônico que venha para determinar e dar
conta do que o grupo precisa, mas uma produção e experimentação conjunta, na qual todos
estão contagiados pelo encontro. O fazer do especialista é colocado em questão na busca de
subverter a lógica na qual ele se sente convocado a dar respostas às perguntas/demandas
apresentadas.
Em um momento histórico no qual impera a lógica individual e o público aparece
esvaziado tanto de presença como de sentido o grupo dispositivo se apresenta como uma
aposta política importante. Essa ferramenta incide justamente onde a linha de subjetivação
indivíduo prevalece, quebrando os lugares instituídos nos quais não possibilidade de
abertura nem de diálogo. O encontro possível nesse espaço tensiona as cristalizações (de falas,
de afetos, de práticas) e convoca a sair dos lugares prêt-a-porter oferecidos pela lógica
capitalística.
Uma das características do contemporâneo é a monotonia e a repetição:
experimentamos a sensação de não saber inventar e de não ter condições de criar algo inédito.
Essa é propriamente a subjetivação capitalística de que fala Guattari (e ROLNIK, 1986), que
se baseia na equivalência como princípio operador, tornando tudo igual e substituível. Mas o
grupo dispositivo se caracteriza por sua capacidade de irrupção naquilo que se encontra
bloqueado de criar, fabricando porosidade onde antes havia muros cimentados. Sua força é
para desfazer-se dos códigos que “procuram explicar dando a tudo o mesmo sentido”
(BARROS, 1997, p. 189), fugindo da homogeneização e sobrecodificação.
O coletivo disparado no grupo cria elementos para que possam emergir singularidades
que escapam às referências rígidas identitárias, desestabilizando os sujeitos em sua forma
indivíduo e convocando a uma construção a partir da multiplicidade. Estar diante de outros
faz experimentar o inesperado, o novo, destituindo o eu de seu lugar emanador e
sobrecodificador:
Experimentar ouvir o outro irradia uma experimentação de ouvir outros
outros modos de existencialização, outros contextos de produção de
subjetividades, outras línguas para outros afetos, outros modos de
experimentar. Impõe, além disso, um deslocamento de espaço de vivência
das angústias, fundamentalmente experimentadas como individuais. Poder
penetrar no campo dos fluxos, acompanhar seus agenciamentos, sempre
coletivos, permite-nos intervir por remetimento a esta ordem coletiva/múltipla e não
aos ‘sujeitos’, seus fantasmas e histórias privadas. Isto vai criando o contato com os
outros-de-si, pré-individualidades ainda informes, vão se abrindo canais de contato
com o coletivo que somos (BARROS, 1997, p. 188-189).
No trabalho com os jovens, a experiência do grupo dispositivo opera tensionando, denunciando
e deslocando o lugar da infração e da violência como único existente e possível para suas vidas.
Permite questionar como funciona o imperativo de massificação no dia a dia dos jovens, e como eles
mesmos acabam reproduzindo e reforçando essa lógica. Estar no grupo é uma espécie de exercício no
plano de forças, onde é possível experimentar outros estatutos que sejam pela vida e pela construção
coletiva de novas realidades para todos, jovens, profissionais e sociedade.
Pode-se observar que o método cartográfico e as ferramentas diário de campo e grupo
dispositivo têm uma mesma linha em comum: insistem na permanente produção do mundo e apontam o
encontro como possibilidade para essa produção. Foi a partir dos próprios jovens, em um momento de
definição do grupo com a psicologia, que passamos a trabalhar com o conceito de encontro: “‘eu acho
que isto são encontros, porque não é aula nem debate... o nome podia ser encontro, né?’. Todos
concordaram, e um comentou, rindo: ‘eu nunca tinha tido um encontro às 8:30 da manhã!’,
evidenciando o caráter afetivo presente no termo escolhido”
41
. Encontrar tem a ver com roubar, um
roubo oposto à imitação (DELEUZE, 1998). Nos encontros com os jovens, as possibilidades outras, em
devir, são roubadas do coletivo propiciado pelo grupo, pela cartografia; são tomadas de empréstimo
porque muitas vezes não as reconhecem em si. Com jovens nos quais o roubo está dado no ato, a aposta
é construir outros roubos plausíveis com essa proposta de intervenção.
Para tanto, é indispensável que sejam feitas algumas análises sobre a infração juvenil no
contemporâneo brasileiro, e que discutamos que práticas são possíveis, junto aos jovens, para subverter
as forças que procuram imobilizar todo e qualquer movimento de transformação. Isso é o que pretende
este trabalho: construir uma cartografia da infração juvenil, uma entre tantas outras possíveis e
necessárias nas circunstâncias que estamos vivendo com relação à juventude, sobretudo à juventude
pobre, de nosso país.
41 Trecho de diário de campo realizado na assessoria ao Programa na CORAG, em 2001.
II – CARTOGRAFIAS DA INFRAÇÃO JUVENIL
São negros, índios, mulatos,
Caboclos e sararás.
Moram na boca do mato,
Na boca do lixo
Sem boca, sem língua, sem voz,
Sem verbo, sem nós,
Os sócios dos urubus,
São os culpados, excomungados,
Judas da nossa cruz.
São caifás, são satanás
Pro clero lá de Goiás
[...]
São preguiçosos, são tão perigosos,
Ruins demais,
Fingem que gemem nas macas,
Que sangram nas facas,
Que morrem.
Tem televisão, qualquer barracão
Da escória desse país,
Com que direitos
Pedem os leitos
Limpos dos meus guris?
(Paulo César Feital e Jorge Simas)
Tendo falado sobre a cartografia no capítulo anterior, gostaria de iniciar este capítulo discutindo
os outros dois termos que compõem o título desta pesquisa. Ao trabalhar com este fenômeno chamado
infração juvenil, tão reificado e naturalizado em nossa sociedade, é preciso seguir a sugestão de
Foucault de aceitar os conjuntos que a história propõe “apenas para questioná-los imediatamente”
(FOUCAULT, 2000, p. 30). Tão acostumados estamos com as notícias permanentemente veiculadas
pela mídia ou presentes nas conversas cotidianas que entramos em uma espécie de anestesia na qual
percebemos a realidade ao redor como algo pronto, imutável e inquestionável. Ao personagem jovem-
autor-de-infração é atribuída uma identidade bem definida, a do pobre, negro e de sexo masculino,
forma que se apresenta como produto final e tenta esconder as forças e práticas que a objetivam e
subjetivam.
Uma série de discursos, dentre eles alguns propostos por determinadas correntes da psicologia,
gerou e reforçou uma forma de pensar que prevalece não apenas entre os diversos profissionais
psicólogos, médicos, psiquiatras, assistentes sociais, pedagogos, jornalistas mas também entre os
pais, familiares e sociedade de modo geral. Dentro dessa perspectiva, percebe-se a infração apenas
enquanto conduta desviante, originada por algum transtorno de personalidade, reduzindo seu autor a
um sujeito com problemas de comportamento que precisa de tratamento.
Ao longo da experiência nas equipes de assessoria aos dois projetos com jovens em
cumprimento de medida sócio-educativa, fomos construindo uma forma singular de abordar a infração,
tomando-a como um fenômeno histórico-social produzido a partir de um conjunto de fatores que
operam em determinado lugar e momento, fazendo emergir uma manifestação social em vez de outra.
Assim, ela não diz respeito apenas a um jovem em particular, mas à forma de funcionar da sociedade de
modo geral e da sociedade brasileira em especial. O ato infracional não é uma ação independente de um
indivíduo privado, mas um efeito dos múltiplos elementos que o atravessam – e que nos atravessam.
Ventura
42
(1994) relata uma história que ilustra muito bem a maneira como costumamos
perceber o que ocorre no mundo, uma fórmula que individualiza ao invés de pensar em termos de
relação social e de produção coletiva. Conta o autor que foi convidado a uma festa na casa de uma
família em Vigário Geral
43
e, em determinado momento, uma senhora mostra uma grande foto colorida
de um rapaz pendurada na parede da sala. Ela passa a contar casos da família e se detém na história
dramática do sobrinho, que vinha a ser o da foto colorida. Ele havia sido assassinado com um tiro
durante um assalto, conta ela com muita dor, complementando que era um garoto fantástico e que até
aquele momento toda a família sofria com a perda. O autor segue narrando:
42 Apesar de discordar da idéia de cidade partida apresentada pelo autor, o livro mencionado possui relatos do cotidiano
que servem ao que proponho discutir.
43 Favela do Rio de Janeiro.
Cristina faz questão de me levar à sala, mostra a foto que eu tinha visto e
em seguida me faz ir a um quarto contíguo, onde está uma placa em
mármore com o nome e a data de nascimento e morte do garoto. Tinha
dezesseis anos.
Faço uma pergunta aparentemente ociosa, mais por solidariedade do que para
me informar:
- Que coisa, hein, foi assaltado?
- Não, ele estava assaltando – Cristina diz naturalmente.
A gafe quase me faz rir, pelo inesperado. (VENTURA, 1994, p. 111)
Temos um modo mecânico de apreender os eventos do cotidiano, modo nada fortuito
nem desinteressado, pelo qual os fatos são reduzidos a um único indivíduo, a uma única fonte.
Assim, remetemos um assalto exclusivamente ao assaltante, como se este fosse o elemento-
origem de onde parte toda ação, e reservamos ao assaltado o respeitável lugar da vítima daí
o riso pelo inesperado no relato transcrito. O mesmo ocorre com a infração juvenil, que
costuma ser atribuída a um sujeito individualmente, e a um tipo muito específico de sujeito,
tornando visível apenas o infrator e não os mecanismos históricos, econômicos e políticos que
o fabricam. Mas esses fenômenos dizem respeito tanto ao autor da infração quanto aos
demais, uma vez que todos nós existimos na mesma sociedade e somos partícipes, em maior
ou menor grau, em seu mecanismo de ter para ser, empurrando milhares de jovens à
ilegalidade como única forma de satisfação das necessidades ditadas pelo capitalismo e como
meio de sobrevivência.
O conceito de agenciamento, apresentado por Deleuze e Parnet (1998), ajuda a pensar
a infração como fenômeno social no qual todos estamos incluídos. Contrariando a dualidade
do esquema sujeito-objeto, os autores dizem que a unidade real mínima não são esses
elementos, mas sim o agenciamento, um plano onde existem linhas e fluxos em movimento
(plano de imanência ou consistência), os quais se cruzam e se interceptam, gerando encontros
entre si. Falar em agenciamento é, então, falar em conexão de componentes heterogêneos que
configuram realidades: nem sujeitos conscientes dos quais partem as ações, nem objetos pré-
concebidos aos quais a ação se dirige. Os próprios sujeitos e objetos não podem ser
considerados entidades em si, prontas e imutáveis, uma vez que o formados por linhas
móveis que os atravessam a todo momento.
O agenciamento, por sua vez, está composto por duas faces, ou duas cabeças. Em
primeiro lugar, se não existe sujeito porque ele é conformado por tantas diversidades
coletivas, somos obrigados a admitir que não é possível que exista um enunciado, pois, ao
falar, o sujeito não o faz como indivíduo, mas como esse conjunto de atravessamentos que o
compõem. Falamos então de um agenciamento coletivo de enunciação. “O enunciado é produto de um
agenciamento, sempre coletivo, que põe em jogo, em nós e fora de nós, populações, multiplicidades,
territórios, devires, afetos, acontecimentos” (DELEUZE e PARNET, 1998, p.65). Em segundo lugar, se
não existe algo de que o enunciado fala, não objeto, existindo apenas estados de coisas, estados
maquínicos, agenciamento maquínico do desejo. Essas duas dimensões do agenciamento o
inseparáveis: “não existe enunciado individual, nunca há. Todo enunciado é o produto de um
agenciamento maquínico, quer dizer, de agentes coletivos de enunciação (por ‘agentes coletivos’ não se
deve entender povos ou sociedades, mas multiplicidades).” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 51). O
real se constrói com ambas as faces do agenciamento, não havendo separação entre desejo e seu objeto.
Além desse primeiro eixo proposto (estados de coisas e enunciações), existe ainda um segundo
eixo, conforme o qual seriam distinguidas as territorialidades ou reterritorializações e os movimentos
de desterritorialização que desencadeiam um agenciamento (DELEUZE, 1994). Dessa forma, além de
produzir mundos e territórios (territorialização), o agenciamento sempre comporta em si pontas de
desterritorialização, ou seja, desestabilizações que abrem para novas configurações territoriais,
infinitamente. “É isso agenciar: estar no meio, sobre a linha de encontro de um mundo interior e de um
mundo exterior. Estar no meio” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 66).
Agenciamento, então, envolve multiplicidade, processualidade e coletividade. Ele permite
“colocar em questão a problemática da enunciação e da subjetividade, isto é, de como se fabrica um
sujeito” (BARROS, 1994b, p. 31). Por isso, tomar a infração como agenciamento – tanto agenciamento
coletivo de enunciação como maquínico de desejo desloca o foco de análise, antes exclusivamente
sobre o jovem, para as configurações que dão lugar à infração, desestabilizando a infração-indivíduo
tão pregada no contemporâneo. Na psicologia, esse deslocamento tem efeitos importantes, porque
significa deixar de lado as correntes tradicionais que atribuem a infração a desvios de conduta e a
transtornos de personalidade e, com isso, quebrar com as práticas que insistem em procurar soluções
individuais para fenômenos sociais. Se a infração é produção social e datada historicamente,
implicação de todos tanto em sua construção quanto em sua manutenção. Não podemos pensar mais em
causalidade única jovem infrator mas em agenciamentos; não podemos pensar mais em cura, ou
adequação de conduta, mas em práticas sociais, em políticas públicas. A infração é, então, um
dispositivo (DELEUZE, 1988) que coloca em análise o funcionamento do contemporâneo: a forma
como lidamos com a pobreza, com o desemprego, com a desigualdade, com a juventude, com o medo,
com a insegurança. Tomar a infração como fenômeno social historicamente produzido sai da lógica
individualista e culpabilizante e convoca a todos para a construção de novos caminhos para aquilo que
aparece como pronto, fechado e imutável.
Da mesma forma que questiono a infração enquanto ação individual, a concepção de
adolescente presente na idéia do “adolescente infrator” precisa ser criticada, pois carrega
consigo a idéia de um objeto natural e universal referente a uma fase pela qual todos
passariam de maneira homogênea. Ouvimos essa nominação inúmeras vezes todos os dias, em
anúncios, conversas, notícias, seguindo a tendência atual ditada pelos teens estadounidenses,
modelo de todo um estilo de vida a ser consumido pelo restante do mundo. A própria
psicologia teve vários pensadores que propagaram essa noção ao decretar as etapas do
desenvolvimento, com seus tempos e atributos específicos, diferenciando sujeitos normais ou
anormais de acordo com o grau de aproximação dos sujeitos às normas estabelecidas por cada
período.
Dentro de uma perspectiva do relativismo cultural, Margaret Mead (1951) mostrou,
com sua experiência em Samoa, que a adolescência nada mais é que um fenômeno cultural e
fabricado socialmente, manifestando-se de formas diferentes e nem sequer existindo em
alguns lugares. Apesar da difusão massiva da figura do adolescente como o grande ícone dos
tempos contemporâneos, aprendemos com Mead que ela é engendrada por movimentos
históricos. De acordo com Lepre (2005), foi no século XVIII que surgiram as primeiras
tentativas de definir, claramente, suas características, e apenas no século XX o adolescente
moderno típico se estabeleceu como modelo ideal.
Em minhas experiências com jovens, tanto na escola particular como nos projetos
voltados aos que cumprem medidas sócio-educativas, embora pudesse haver sujeitos que se
assemelhavam de alguma forma entre si no estilo da vestimenta, na linguagem, na classe
social ou em diversas preferências –, A adolescência seguia sendo uma construção tão
artificial que não dizia respeito a nenhum daqueles sujeitos em especial, não dando espaço
para suas singularidades. No caso dos jovens provenientes de abrigos ou em cumprimento de
medida sócio-educativa, as disparidades com relação ao suposto modelo eram mais evidentes,
pois tinham formas de experienciar a entrada no mundo do trabalho, o início das relações
sexuais e o contato com a morte, por exemplo, que em nada correspondiam com a descrição
tradicional dos teenagers de capas de revista, constituindo uma forma específica de vivência.
Tampouco convence a acepção jurídica da adolescência, pois ela funciona por
prescrição a uma faixa cronológica determinada dos doze aos dezoito anos incompletos, de
acordo com o ECA (BRASIL, 1990). Então, ao completar dezoito anos, arbitrariamente, o
sujeito passaria de um status penal e civil ao seguinte, passando do universal “adolescente” ao
universal “adulto”, com tudo que isso acarreta. Pode-se entender que uma categorização assim
seja necessária para fins penais e civis, mas ela permanece insuficiente para compreender as
variações e multiplicidades envolvidas, enquadrando pessoas em etapas-status padronizados como se a
própria lei fosse efetivamente aplicada de forma igual com todos os que pretende nivelar. Encontramos
a mesma visão desenvolvimentista endossada por parte da psicologia atravessando todo o texto do
ECA:
Art. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à
pessoa humana [...] assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as
oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental,
moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Art. Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se
dirige [...] e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em
desenvolvimento.
Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade
como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos
civis [...]
Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno
desenvolvimento de sua pessoa [...]. (BRASIL, 1990, grifos meus).
44
Embora a implantação do ECA tenha trazido avanços importantes na legislação para a infância e
juventude, é preciso colocar em análise sua concepção desenvolvimentista e os efeitos que produz.
Historicamente, encontra-se vinculada ao pressuposto evolucionista de que os sujeitos progridem em
direção a uma maturação da consciência, aprimorando sua racionalidade e raciocínio de forma a poder
compreender melhor o ambiente no qual vive. Com isso, além de afirmar a primazia da razão sobre os
demais planos do ser humano, assevera a existência de uma identidade-normal-universal à qual todos
chegariam como resultado de seu desenvolvimento pessoal, este sempre privado e condicionado pelas
capacidades de cada indivíduo
45
.
Sem a pretensão de resolver o impasse e dar uma resposta final, preferimos
46
adotar o conceito
de juventude sem referir a uma faixa etária específica
47
nem a uma série de comportamentos
reconhecidos como pertencendo a tal categoria. Adotamos esse conceito para descrever um plano vital
sem início, término ou duração pré-determinados que consiste em uma inquietação com o mundo, um
inconformismo com o status quo e uma força propulsora de mudanças. Tal plano não está atrelado a
uma etapa da vida, tratando-se de uma linha que pode atravessar a todos e qualquer um durante sua
existência e que tem nos atravessado, em especial, no trabalho com os jovens autores de infração,
44 A palavra “desenvolvimento” aparece 14 vezes ao longo do ECA.
45 No artigo de Coimbra, Bocco e Nascimento (2006), discute-se com mais detalhes o conceito de adolescência no
contemporâneo.
46 O plural se refere à equipe de psicologia da UFRGS na qual foi feita essa problematização.
47 Para esta análise, não está sendo considerada a divisão proposta pelas Nações Unidas (UNITED NATIONS, 2002)
mencionada no início do trabalho. A linha da divisão por idade é uma linha molar que coexiste, pela via do paradoxo, com a
linha molecular da juventude enquanto potência; uma não exclui a outra.
talvez pelo caráter de dispositivo analisador que lhe temos atribuído. Então, falar em
juventude é falar de uma intensidade com máxima potência de transformação em todos os
sentidos possíveis, independente de idades e de clichês identitários. Pensar em juventude
pareceu, até agora, a melhor forma de trazer uma intensidade ao invés de uma identidade
quando pensamos no público com quem trabalhamos e em nossos modos de subjetivação.
Com esse deslocamento, ganham relevo as forças mais que as formas, enfatizando processos
onde parecia haver apenas produtos.
No que se refere ao sujeito autor de infração, falamos em jovem ao invés de
adolescente para tentar trazer essa intensidade juvenil no lugar do estereótipo da adolescência,
o qual tende a capturar em atributos padronizados
48
. Talvez pudesse ser objetado que não haja
mudança significativa na passagem de um termo ao outro, sendo os dois referências universais
e totalizantes. Entretanto, a idéia de juventude operou no mesmo sentido em que Deleuze e
Foucault (1979) falam da teoria como caixa de ferramentas: precisa servir, funcionar, colocar
algo em movimento. O conceito-ferramenta juventude produziu sentido no fazer e, por isso,
permanece como questionador da estática com que vemos os sujeitos com os quais
trabalhamos, evocando um agito de identidades e de discursos.
Refiro-me, então, por um lado a uma força-juventude, que não descreve características
presentes nos jovens em particular, mas sim um elemento territorial produzido a partir de
encontros com outros elementos que o coloquem em movimento. Ao trabalhar com jovens em
cumprimento de medida sócio-educativa, e partindo do pressuposto de que produzimos
realidades e sujeitos, optamos por utilizar o conceito de jovem como estratégia de criação
dessa intensidade, tanto neles como em nós.
Partindo das concepções apresentadas sobre a infração juvenil, este capítulo contém
algumas análises acerca de sua produção social no contemporâneo, apontando como temos
lidado com a miséria e as desigualdades de forma penal-punitiva nas sociedades de consumo.
Também apresenta uma historicização do conceito de “menoridade” e sua presença como
objeto de ações estatais no Brasil, problematizando os processos de criminalização,
militarização e rentabilização da pobreza, em especial da juventude pobre, como movimento
globalizado nas sociedades capitalísticas. Por último, discute o papel dos meios de
comunicação em sua parceria com o projeto neoliberal de diabolização dos jovens das
“classes perigosas”.
48 As características padrão que costumam ser associadas à adolescência são rebeldia, desinteresse, crise,
instabilidade afetiva, descontentamento, melancolia, agressividade, impulsividade, entusiasmo, timidez e
introspecção, entre outras (COIMBRA, BOCCO e NASCIMENTO, 2006).
2.1 – Ordem e progresso na sociedade de consumo
Jovem descartável, a quem interessa? Propriedade privada, isso sim é o que importa.
Protejamos, cerquemos, sacrifiquemos nossas vidas por objetos, que valem como seres, que
valem como objetos.
BASTA JÁ! Diz a consigna zapatista. Basta de caminhar como cordeiros um caminho letal,
como se fosse o único. Basta da indiferença, de ver os jovens pagando pela loucura do
mundo de consumo, por estarem fora, fora, fora do acesso aos valores, ao tênis, à roupa, ao
som. Basta da sonolência em que nos coloca a televisão, basta desse mundo fabricado que
nos ensina a ter medo do menino pobre, a ter medo do jovem negro, a ter medo, a ter medo.
Chega de justificar as mortes juvenis por dizer que são eles a maior causa da violência e
pânico nacionais. Até quando podemos observar o genocídio cotidiano contra os jovens,
principalmente negros e de baixa renda? Mas sim, protejamos, protejamos a propriedade
privada, é ela que merece nossa luta. Sigamos a religião do consumo, ganhemos muito para
ter muito, pois é isso que nos torna algo que vale a pena. Sejamos duros, apliquemos a
punição adequada àqueles que não podem comprar e são uma ameaça ao nosso modo de
vida.
(Diário de campo II, 4 de outubro 2004)
Desde que existe vida no planeta, os seres vivos podem ser considerados consumidores de
alimento, de água, de algum tipo de moradia, por exemplo. O que significa, então, a afirmação de que
estamos vivendo em uma sociedade de consumo? Bauman (1999) explica que, na fase industrial do
capitalismo, existia uma sociedade de produtores, ou seja, a sociedade moderna engajava seus membros
primordialmente como produtores, e estes eram reconhecidos por sua capacidade em desempenhar tal
papel. No momento que vivemos atualmente, no qual não mais espaço ou necessidade de uma mão
de obra industrial produtora, os sujeitos se inserem no socius pela condição de consumidores, devendo
exercer, compulsoriamente, esse papel. Todos passam a ser medidos e legitimados por sua habilidade e
vontade de cumprir com esse mandato.
Nesse esquema, os sujeitos valem e acedem ao mundo do valor pelo que possuem e pelo poder
aquisitivo de vir a ter objetos de consumo, estes abrangendo desde roupas, comidas, carros, cosméticos
até sensações, experiências, velocidades. A riqueza se torna objeto de adoração tanto dos que a
possuem como dos que a desejam, uma vez que vivem, todos, em uma mesma sociedade ideada por e
para os primeiros. O consumo abundante é a marca do sucesso “e a estrada que conduz
diretamente ao aplauso público e à fama. Eles [os pobres] também aprendem que possuir e
consumir determinados objetos, e adotar certos estilos de vida, é a condição necessária para a
felicidade, talvez até para a dignidade humana” (BAUMAN, 1998, p. 55-56).
Podemos imaginar, e facilmente constatar, os efeitos de tal idolatria em um país como
o Brasil, no qual 53,9 milhões de pobres, 21,9 milhões de muito pobres ou indigentes e
uma distribuição de renda igualmente absurda (IPEA, 2005). Os dados da recente publicação
da UNESCO (ABRAMOVAY e CASTRO, 2004) mostram que 20% do total da população
brasileira é formada por jovens entre 15 a 24 anos. Para se ter uma idéia, essa porcentagem
equivale a uma soma de 34 milhões de pessoas e corresponde a 50% da juventude latino-
americana. Desses 34 milhões de jovens, nada menos que 31 milhões vivem em famílias com
renda per capita de até um salário mínimo, ou seja, essencialmente em condições de pobreza.
Entre a população total, e particularmente entre essa faixa etária, apenas uma minoria possui
meios para participar ativamente na sociedade de consumo, enquanto uma gritante maioria se
impossibilitada dessa empreitada, apesar de ser incitada a jogar o mesmo jogo como se as
cartas distribuídas a uns e outros fossem as mesmas.
MV Bill e Celso Athayde relatam, a partir do contato com jovens de bairros
marginalizados em todo o país, que estes parecem “estar bem alinhados com a moda. Aliás, o
que os jovens das comunidades mais querem é ser iguais aos que vivem fora dela”, (SOARES,
BILL e ATHAYDE, 2005, p. 40). Também em nossa experiência constatamos esse desejo:
Perguntamos a Daniel
49
quanto custava o nis que estava usando, “uns
duzentos reais”, ele disse. Alberto perguntou se esse que ele usava era um
Nike original ou era cópia, é original!”, responde, complementando que
tênis compra de marca, “roupa até pode cópia, mas tênis tem que ser de
marca”
50
. Alberto continuou “e tu não podes ser assaltado por causa
disso?”, “sim, mas vai ser difícil de levarem!”. (Diário de campo II, 29 de
julho 2005).
Estamos todos atravessados, em maior ou menor grau, pelo incansável apelo ao
consumo, mas é sobre a juventude pobre que tal imperativo exerce maior devastação, uma vez
49 Os nomes dos jovens foram alterados para evitar a identificação das falas.
50 As falas dos jovens sobre a importância da marca recordam o poema Eu etiqueta, de Carlos Drummond de
Andrade “[...] Meu tênis é proclama colorido, De alguma coisa não provada, Por este provador de longa-idade
[...] Desde a cabeça ao bico dos sapatos, São mensagens, Letras falantes, Gritos visuais, Ordens de uso, abuso,
reincidências, Costume, hábito, premência, Indispensabilidade, E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
Escravo da matéria anunciada [...] Não sou anúncio contratado. Eu é que mimosamente pago, Para
anunciar, para vender [...] Sou gravado de forma universal, Saio da estamparia, não de casa, Da vitrine me tiram,
recolocam, Objeto pulsante mas objeto Que se oferece como signo de outros Objetos estáticos, tarifados. Por me
ostentar assim, tão orgulhoso De ser não eu, mas artigo industrial, Peço que meu nome retifiquem. não me
convém o título de homem. Meu nome novo é Coisa. Eu sou a Coisa, coisamente” (ANDRADE, 1984).
que suas chances de acesso ao emprego formal são praticamente, e cada vez mais, inexistentes.
Forrester descreve com precisão a realidade desses jovens: “marginais pela sua condição,
geograficamente definidos antes mesmo de nascer, reprovados de imediato, eles são os excluídos por
excelência” (FORRESTER, 1997, p. 57-58), os mais duramente punidos pela lógica da sociedade de
consumo.
Partindo dessa evidência, não se pode seguir insistindo na teoria dos componentes psicológicos
como causa mor da infração juvenil. Na marginalidade de uma sociedade é onde podemos ler, mais do
que um laudo pessoal, os pontos de ruptura das estruturas sociais e os traços das novas problemáticas
no campo da economia desejante coletiva. Para isso, é preciso analisar o marginal não como “uma
manifestação psicopatológica, mas como a parte mais viva, a mais móvel das coletividades humanas
nas suas tentativas de encontrar respostas às mudanças nas estruturas sociais e materiais
(GUATTARI, 1981, p. 46). Vejamos, então, como se relacionam a sociedade contemporânea de
consumo e a infração juvenil.
Durante muito tempo, e ainda hoje, ouvimos o discurso de que a criminalidade seria um produto
do mau funcionamento da sociedade, uma espécie de erro de planejamento dos governantes. Mais
apropriado seria dizer que a criminalidade crescente é o próprio produto da sociedade de consumidores,
uma vez que, “quanto mais elevada a ‘procura de consumidor’ [...], mais a sociedade de consumidores
é segura e próspera. Todavia, simultaneamente, mais amplo e mais profundo é o hiato entre os que
desejam e os que podem satisfazer os seus desejos [...]” (BAUMAN, 1998, p. 56).
O grande ideal contemporâneo é uma sociedade na qual se possa consumir livremente, sem
impedimentos ou ameaças de qualquer tipo. Para tanto, é prioritário colocar, acima de tudo, a defesa da
lei e da ordem, combatendo ostensivamente as insubordinações a esses totens (acrescentaria um
terceiro, que seria o da limpeza e pureza dos espaços, dos sujeitos, etc). Bauman (1998) afirma que
cada sociedade produz seus fenômenos singulares, seus estranhos. Os estranhos de hoje seriam, por
definição, aqueles que se recusam à ordem, que não se ajustam a ela e que a tornam tão ansiada quanto
inatingível.
Temos, então: a sociedade de consumo que admite os sujeitos por seu poder aquisitivo; alguns
ávidos compradores que possuem os meios para exercer esse poder, exigindo garantias de segurança e
de ordem para poder desfrutar de suas aquisições sem interferências desagradáveis; milhares de pessoas
sem as mínimas condições econômicas para sobrevivência, quanto mais para manter em movimento um
socius pautado pela capacidade de consumir. A matemática dessa equação deixa bastante claro que a
descomunal preocupação com a ordem e a segurança que vemos espalhada por todo o globo nada mais
é que uma necessidade imanente a um modo de funcionamento social. Os estranhos de nossa sociedade,
os marginalizados, não poderiam ser outros senão aqueles que estão impossibilitados de
comprar e, por isso, constituem uma ameaça à ordem vigente ordem que é muito mais
monetária do que política, como gostariam que acreditássemos. Na sociedade de consumo, o
crime maior cometido pelos chamados marginais, delinqüentes, infratores, nada mais é que
sua imponente pobreza.
Tendo o inimigo identificado, não é difícil arquitetar programas destinados à
manutenção da ordem e do progresso, basta impor as regras mais duras a todos aqueles que se
enquadrarem no perfil pobres, de preferência negros e do sexo masculino. Para uma maior
eficácia nesse sentido, as ações não se limitam àqueles que quebram, de acordo com os
critérios dos governantes, o contrato social, elas se voltam também para os que poderiam criar
problemas, agindo preventivamente para assegurar o futuro da nação. Crianças
“desobedientes”, jovens “violentos”, “menores abandonados” passam a ser os atores
preferidos para receber esse tratamento, encarnando os maiores medos dos “cidadãos de bem”
(RIZZINI e PILLOTI, 1995; RIZZINI, 1997).
Essa vigilância sobre o que poderia acontecer corresponde ao que Foucault (1996a)
chama de periculosidade, idéia que surge no final do século XIX e significa que o indivíduo
deve ser considerado pela sociedade não apenas por seus atos, mas ao nível de suas
virtualidades: “não ao nível das infrações efetivas a uma lei também efetiva mas sim das
virtualidades de comportamento que elas representam” (FOUCAULT, 1996a, p. 88). Instaura-
se um plano de controle do comportamento que caracteriza a sociedade como disciplinar,
controle penal punitivo que precisa de uma série de poderes paralelos à justiça para poder
operar, tais como a polícia para vigiar, e as instituições psicológicas, psiquiátricas, médicas,
criminológicas e pedagógicas para corrigir. É o início do que o autor chama de idade de
ortopedia social, a qual encontramos plenamente vigente no século XXI.
Coimbra e Nascimento (2003) mostram que, em um país com a herança de mais de
trezentos anos de escravidão, e com dois períodos ditatoriais, o controle das virtualidades
exerce um papel fundamental na constituição de nossas percepções e subjetividades sobre a
pobreza. Com as teorias racistas e eugênicas surgidas em todo o mundo a partir de Darwin, e
com o movimento higienista no Brasil no início do século XX, estabeleceu-se uma relação
entre a pobreza e os diversos vícios, doenças e degenerescências, entre a ociosidade e a
delinqüência, transformando em criminoso potencial todo aquele que não estiver inserido no
mercado de trabalho capitalista. Assim, os pobres passam a representar um perigo social a ser
combatido, exigindo medidas coercitivas sobre essa população. Sendo as crianças e os jovens
os “futuros homens de bem”, suas virtualidades precisavam ser especialmente controladas
para evitar que se tornassem as novas classes perigosas, recaindo sobre eles o grande foco das
intervenções ditas preventivas.
Devido a essa trajetória histórica, passamos a considerar, como se fosse algo natural,
determinados segmentos sociais como inferiores, menos humanos (COIMBRA, 2001; 2004), passíveis
de tratamentos invasivos e dolorosos e sem qualquer direito a protestar. Reunindo ambas condições, a
de pobreza e a de cidadãos do futuro, e recebendo ainda uma terceira, a de delinqüente convicto, o
jovem autor de infração ocupa à perfeição o lugar do estranho em nosso país. Criado de acordo com as
normativas da sociedade, para ele voltamos nossa preocupação e atenção constantes como se fosse o
maior perigo dos últimos tempos.
Muito útil para privatizar uma crise cuja trama é eminentemente social e desviar a atenção das
causas reais da insegurança para culpabilizar individualmente. Tão útil que deveríamos duvidar do
surgimento da infração juvenil como fenômeno que se pretende espontâneo e casual em um momento
no qual a imposição da ordem precisa ser aprovada por todos para manter o status quo. A veracidade
dessa coincidência é tão questionável que alguns de nós temos certeza de que, se não existisse um
personagem tão adequado ao papel, o inventaríamos:
Mas e se, de acordo com as novas técnicas, atingir um “modelo ideal do delinqüente”
para esta sociedade concreta fosse apenas o resultado de um esforço de racionalização
política? Uma sociedade que se preze, por que não deveria fabricar um “tipo” de
delinqüente perfeitamente controlável, rentável e útil, ao invés de deixar ao bom
acaso essas coisas?
[...] O “modelo ideal” é representado pela delinqüência de jovens, a qual reúne três
características ideais: máxima precocidade, máxima vulnerabilidade e máxima
aversividade. Máxima precocidade, se possível desde a mais tenra infância, para que
a identificação com a ingênua colaboração de assistentes sociais, psicólogos,
educadores de rua, etc seja perfeita. Máxima indefinição, tipo heroinômano, para
que em nenhum momento seu controle possa fugir das mãos e, já que estamos, para
que se preste a qualquer serviço mais ou menos rasteiro. E, isso sim, também máxima
aversividade, rapazes de quinze anos com facas, por exemplo, para que origine um
barulhento alarme e legitime todas as “operações primavera”, verão, outono e inverno
[...]. (REGUERA, 2002, p. 163-164, tradução e grifo meus)
Não é de hoje que a infância e juventude pobres se prestam para o “modelo ideal do
delinqüente”, nem é de hoje que os governantes brasileiros anseiam pela instauração e manutenção da
ordem, às custas de uma grande parte da população. Se durante o início do Brasil colonial a força do
chicote investiu sobre o corpo dos escravos negros, com a abolição da escravatura, em 1888, o rápido
crescimento de mão de obra assalariada, a chegada de grandes contingentes de imigrantes, a
conseqüente saturação do mercado de trabalho e o crescimento demográfico das cidades suscitou
preocupações com a gestão e a tutela desses setores empobrecidos, uma vez que o número de
desocupados e miseráveis havia aumentado de forma considerável.
É nesse momento que a noção de periculosidade começa a circular no país e surge a
necessidade da vigilância permanente sobre os novos atores sociais escravos libertos,
desempregados, os considerados malandros e sobre crianças e jovens pobres, vigilância
baseada no sistema positivista e em idéias higienistas e eugenistas. Com isso, as práticas
preventivas passaram a ser prioritárias na incipiente República, gerando uma série de saberes
acerca de maneiras para melhor efetivá-las. A medicina, aliada ao poder do Estado,
impulsionou campanhas sanitaristas que incidiam majoritariamente nos hábitos das famílias
pobres, levando a elas um novo modelo de família: higiênica, intimista e privativa (BULCÃO,
2002). Começaram também a intervir os juristas, preocupados com as crianças que
perambulavam pelas ruas e com as violações das leis e desordens que eles cometiam.
O termo “menor difundiu-se dentro desse contexto, usado para designar
exclusivamente as crianças pobres, evidenciando a disparidade do tratamento jurídico
conferido às diferentes classes sociais. Enquanto o menor relativo à infância pobre é
considerado perigoso, a criança referente à infância abastada - deve ser protegida e
resguardada das ameaças das ruas. Podemos notar que o tipo de atenção à infância e juventude
durante todo o Brasil colônia estava estreitamente ligada às preocupações das camadas
abastadas com sua segurança e com a ordem social. Uma vez que os escravos libertos e seus
filhos eram considerados fonte principal de ameaça, ligou-se rapidamente a situação de
pobreza a comportamentos tidos como perigosos.
Tanta era a importância atribuída à ordem que a primeira medida tomada após a
proclamação da República, em 1889, foi a promulgação de nosso primeiro Código Penal, em
1890, ficando apenas para 1916 a criação do Código Civil Brasileiro. No fim do Império e
início da República, o pensamento higienista seguia ditando fortemente as ações do Estado, e
suas políticas de saneamento e de reforma urbana nesse período foram tão intensas que
terminaram por revoltar a população pobre do Rio de Janeiro. O governo promoveu uma
campanha sanitarista de forma violenta e intrusiva, invadindo e vasculhando as casas em
busca de utensílios em condições precárias para confiscá-los e, assim, eliminar possíveis
fontes de enfermidades. Como resposta à prepotência dos governantes e aliados, em 1904 teve
lugar a chamada Revolta da Vacina, no momento em que era aprovada a lei que tornava a
vacinação obrigatória. Ficava claro, desde então, que as preocupações do governo
consistiam em “limpar” a sociedade e eliminar as presumíveis causas da desordem,
considerando a pobreza como a principal delas.
A legislação específica para a infância e juventude aparece tingida pelas mesmas
diretrizes, e seu pioneirismo é indicativo da urgência concedida às intervenções sobre esse grupo para
impor a disciplina urbana: nosso Juizado de Menores, criado em 1923, foi nada menos que o primeiro
de toda a América Latina. O primeiro Código de Menores, também conhecido por Código de Mello
Mattos, veio pouco depois, em 1927, e instituiu a vigilância das autoridades públicas sobre as famílias
pobres, fortalecendo a percepção da pobreza e do abandono como elementos patogênicos. Neste
período, acentuou-se ainda mais a divisão entre os “menores” e as crianças, estas últimas inseridas nas
famílias de classe média, consideradas estruturadas.
Já no primeiro processo julgado pelo juiz Mello Mattos, em janeiro de 1924, encontramos o que
será a tônica do trabalho do juizado: “analisar jovens, negros e pobres acusados de crimes contra a
propriedade (BATISTA, V., 2003a, p. 70). A sentença do juiz, como aponta a autora no parágrafo
seguinte, é padrão: É maior de 16 anos e menor de 18 e se trata de indivíduo perigoso pelo seu estado
de corrupção moral. Julgo procedente a acusação e condeno a dois anos de prisão celular” na Seção de
Menores da Casa de Detenção.
O passo seguinte foi criar um órgão para dar conta desses menores, e em 1941 fundou-se o
Serviço de Atendimento ao Menor, SAM, baseado em um modelo correcional-repressivo com estrutura
e funcionamento análogos aos do sistema penitenciário. A implementação desse serviço respondeu a
uma crescente preocupação do governo com a instituição de uma nova ordem social, instaurada a partir
do início do Estado Novo na década anterior (MARTINS e BRITO, 2001). Apesar de inúmeras críticas
e denúncias de maus-tratos, torturas e humilhações, o sistema SAM continuou funcionando até
dezembro de 1964, quando foi extinto e substituído pela Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, a
FUNABEM. Esta teve por finalidade criar uma Política Nacional do Bem-Estar do Menor e modelar a
construção posterior das Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor, as FEBEMs, estrutura ainda
existente na maioria dos estados do país.
É fundamental, para entender o modelo de atendimento consolidado pelas FEBEMs, lembrar
que estas surgiram no mesmo ano do golpe militar, totalmente atravessadas pelos ideais da ditadura.
Isso fica claro ao constatar que a infância e juventude pobres passaram a ser tratadas no âmbito da
Defesa do Estado e da doutrina de Segurança Nacional, cuja matriz brasileira foi a Escola Superior de
Guerra, a qual, por sua vez, teve como matriz estado-unidense o National College of War. Claramente,
o Estado assumiu uma estratégia bélica que deixou marcas importantes na forma de lidar com esse
segmento populacional até hoje (COIMBRA, SILVA e RIBEIRO, 2002).
Um fato pouco conhecido é que houve um importante movimento anterior até que a FUNABEM
realmente se instituísse em 1964. Foi um projeto cultivado desde 1949, durante a 1ª Semana de Estudos
dos Problemas de Menores, encontro que depois teve seguimento nos anos de 1950, 1951, 1952, 1953,
1956, 1957, 1959, 1970, 1971 e 1973 sob o patrocínio do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo, ocorrendo também no Rio de Janeiro a partir de 1955. A idéia de criação da
FUNABEM/FEBEM foi apresentada à Câmara dos Deputados em 1961, terminando por ser
rejeitada e deixada de lado. No entanto, em 1964,
um filho do então ministro da justiça Milton Campos foi barbaramente
assassinado por adolescentes moradores nos morros do Rio de Janeiro, e o
próprio ministro, juntamente com outros juristas do Rio de Janeiro,
convenceram o presidente general Humberto Castelo Branco a criar, por
decreto, a almejada fundação nacional. (SILVA, 2000, p. 120)
Com esta nova organização, os “menores” passaram a figurar em lugar de destaque na
Doutrina da Segurança Nacional, sendo tratados realmente como “problema de ordem
estratégica, saindo da esfera do Poder Judiciário e passando diretamente à esfera do Poder
Executivo” (SILVA, 2000, p. 30). Pode-se dizer que essa modificação colocou a juventude
pobre no estatuto incrível de inimigo social, assunto prioritário da ordem da Segurança
Nacional. Esses jovens deveriam ser vigiados a todo momento, com inspetores, guardas e
monitores em todos os espaços. As reformas pelas quais passou a educação brasileira nessa
época também afetaram as FUNABEM/FEBEM, cujo modelo pedagógico passou a seguir os
preceitos do militarismo com ênfase na segurança, na disciplina e na obediência.
Após quinze anos da criação das FUNABEM/FEBEM, o Código de Menores de 1927
passou por uma reforma e surgiu o Código de Menores de 1979, ou Código Alyrio Cavalieri.
Com esta mudança, a Doutrina do Direito do Menor, até então vigente, deu lugar à Doutrina
da Situação Irregular, construção esta que teve sua origem no Instituto Interamericano Del
Niño, órgão da OEA (Organização dos Estados Americanos). Antes mesmo da formalização
do Código Alyrio Cavalieri, foi a partir do XIV Congresso da Associação Brasileira de Juízes
de Menores, em 1973, que o conceito de situação irregular foi incorporado, pelo fato de que
se tomava conhecimento da problemática da criança a partir do momento em que se
configurasse estar ela em “situação irregular” junto à família. tempos que a infância e
juventude pobres parecem entrar na cena social e nas ações governamentais apenas como
elementos a serem controlados, obstáculos à ordem e ao progresso nacionais.
Em 1985, com o fim da ditadura e início do processo de democratização no Brasil,
houve uma mobilização nacional que reuniu 250 mil assinaturas por uma emenda na
constituição, conseguindo introduzir os princípios de proteção e garantia de direitos da criança
e do adolescente no texto da Constituição de 1988. O artigo 228 estabeleceu que os menores
de 18 anos estariam sujeitos à legislação especial, a qual foi promulgada em 1990 com o nome
de Estatuto da Criança e do Adolescente o ECA (BRASIL, 1990). Embora não haja dúvidas de que o
ECA foi inovador em muitos aspectos Doutrina da Proteção Integral, fim da situação irregular e
tentou envolver mais a sociedade civil nas ações relativas à formulação de políticas públicas nessa área,
ainda nos deparamos com sucessivas violações de direitos na realidade cotidiana das crianças e jovens
pobres no Brasil. Os discursos dominantes seguem referindo-se a eles como “menores”, relegando-os às
instituições de confinamento (abrigos, sistema FEBEM), os centros de internação continuam operando
nos moldes repressivos e retaliativos da época ditatorial e a condição de pobreza permanece
indissociavelmente ligada ao atributo da periculosidade.
Frasseto (2002) chama a atenção para uma peculiaridade de suma importância. Costuma dizer-
se, no direito, que as leis envelhecem, mas a jurisprudência se mantém sempre atual. No âmbito da
infância e juventude, no entanto, encontramos uma interessante exceção: podemos dizer que a lei é
nova, mas a jurisprudência, especialmente a dos tribunais estaduais, está envelhecida, carregada de
pensamentos rançosos construídos ao longo de nossa história
51
. Assim, embora o ECA reconheça
crianças e jovens como sujeitos de direitos, as decisões e práticas diárias contrariam essa diretriz,
reiterando os princípios menoristas dos códigos anteriores. O Estado não apenas conservou sua rotina
de invasão na vida dos indivíduos, mas a envolveu em um discurso que a proclama como direito dos
jovens autores de infração, “algo em seu exclusivo valor instituído, destinado a protegê-lo do mal e de
si mesmo, a tutelá-lo” (FRASSETO, 2002, p. 168). Com esse argumento, os juristas justificam a
aplicação desenfreada da medida de privação de liberdade em casos sem ameaça à vida, infligindo-a
substancialmente sobre os jovens pobres.
A medida de internação, no que eufemisticamente se conveio chamar de “estabelecimento
educacional” (Artigo 112, inciso VI, BRASIL, 1990), poderia ser usada apenas quando a infração fosse
cometida mediante grave ameaça ou violência à pessoa ou por reiteração no cometimento de outras
infrações graves, por um período máximo de três anos, ou por descumprimento reiterado e
injustificável da medida anteriormente imposta, neste caso sendo a internação máxima de três meses
(Artigo 122, ECA). Mas esse tempo máximo de internação costuma ser bastante relativo: no Rio
Grande do Sul, por exemplo, a jurisprudência admite que seja reiniciada a contagem dos 3 anos caso,
no curso de uma medida privativa de liberdade, ocorrer a prática de nova infração (se o jovem fugir ou
realizar infração durante uma saída autorizada). Nesse caso, ele pode ter de cumprir novos 3 anos a
contar do início da nova medida, abstraindo-se quanto tempo tenha cumprido antes. O argumento usado
para justificar essa prática é que, do contrário, se o jovem praticasse nova infração depois de ter
51 Para ver preciosos exemplos de processos e sentenças referentes à infância e juventude ao longo da história do Brasil, ler
o livro de Vera Malaguti Batista (2003a).
cumprido 2 anos e 11 meses, “só poderia ficar preso mais um mês”
52
.
A lei do ECA prevê que a internação não seja aplicada, em nenhuma hipótese, quando
houver outra medida adequada, devendo guiar-se pelo princípio de excepcionalidade e de
brevidade. Mas a jurisprudência arraigada nos pensamentos e ações dos juristas e demais
profissionais toma a privação de liberdade de forma bastante idílica, como uma medida
altamente pedagógica e capaz de “recuperar os jovens criminosos”. Isso quando não é
utilizada de forma explicitamente punitiva, como encontramos com maior freqüência, um
recurso para impor constrangimento físico e psíquico àqueles que perturbam, ou podem vir a
perturbar, a ordem estabelecida. Os jovens com quem temos contato nos projetos costumam
relatar as condições dos “estabelecimentos educativos”:
Marcos comenta que a FASE é uma grande burocracia, estava quase
chegando atrasado porque esqueciam de chamar ele na hora (cada vez que
vai sair ele é chamado da unidade onde está, porque não pode levar perfume,
etc....), tem que dizer onde vai, como, que horas volta, aí se arrumar na outra
unidade e depois sair, e que tudo isso demora tempo. (Diário de campo I, 07
de fevereiro 2003)
Os “brets”, como chamam os quartos, são pequenos, e seguidamente os
meninos são colocados no “castigo”, ou seja, mandados para um quarto
diminuto no qual ficam trancados, saindo apenas por 30 minutos para pegar
sol no tio. Algo parecido a uma solitária, onde cabe uma pessoa mas às
vezes colocam quatro, com um sanitário dentro, do qual sai um cheiro
fortíssimo e obviamente desagradável, e do qual não pra fugir. Além dos
requintes de crueldade como comida estragada e humilhações de todo o
tipo.... Aparentemente o tempo máximo de ficar seria de 15 dias, mas os
jovens ficam mais de mês sem poder fazer nada. (Diário de campo I, 14 de
julho 2003)
“Lá no ICS
53
é tudo podre, fica tudo meio molhado, tem um cheiro forte,
fica um monte de gente amontoada lá. É pra ser 10 dias, mas depende, às
vezes esquecem do cara lá”. [...] Conta que lá dentro não tem nada pra fazer,
a saída ao tio é com tempo contado, a televisão também, e ficam todo o
dia sem fazer nada, nada.
Pergunto se ainda existe a revista íntima
54
, ele diz que sim, “chega e tem
52 Nos demais casos, o prazo de internação é unificado por exemplo, se o jovem está cumprindo uma medida
de internação e continuam chegando sentenças posteriores ao início dessa internação, com novas medidas de
internação, mas por fatos anteriores, considera-se tudo como limitado ao prazo de 3 anos.
53 O Centro de Internação provisória Carlos Santos é a porta de entrada à FASE, local de triagem em Porto
Alegre. Por ali passam os jovens que receberam medida de internação provisória e os que serão, posteriormente,
distribuídos para outras casas de internação a depender da sentença judicial. O período máximo de permanência
no ICS deveria ser de 45 dias, mas é comum encontrarmos jovens que chegam aos quase dois meses no local. A
lotação máxima deveria ser de 30 pessoas, mas à época da visita da Caravana Nacional de Direitos Humanos
(CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2001) havia 143 internos.
54 A revista íntima é realizada pelo pessoal da segurança do estabelecimento prisional, para quem o visitante
deverá despir-se, mostrar suas partes íntimas e fazer flexões para ser examinado a fim de verificar-se se não está
portando objeto de ingresso proibido na prisão (tais como drogas e armas). No Rio Grande do Sul, a partir das
informações coletadas no Relatório da II Caravana Nacional de Direitos Humanos: sistema prisional brasileiro,
no ano de 2000, e de diversos movimentos cuja figura principal foi o Deputado Federal Marcos Rolim (PT/RS),
em agosto de 2001 foi divulgado que tal prática estava sendo gradualmente extinta de todo o sistema
que ficar todo mundo pelado, eles olham tudo, porque tem gente que leva maconha
dentro da boca e chega e vomita. Eles revistam quem vem de fora e quem está
dentro. Mesmo assim, sempre tem droga lá, eles ficam desconfiando que são os que
tem ICPAE
55
, mas na verdade eles usam a jibóia, que é uma corda que jogam pela
janela e volta com faca, maconha, tudo amarrado, daí entra assim”. (Diário de campo
II, 18 de agosto 2006)
Na visita feita pela equipe de psicologia a duas unidades de privação de liberdade em Porto
Alegre, somamos nossas impressões aos relatos dos jovens:
Passamos a porta de entrada, com cadeado, e nos encontramos diante de um saguão,
no qual se mais adiante um portão grande, de metal, com outra porta cadeada. Nos
informam que iremos conhecer as alas, e que depois do portão outro saguão, dali se
divide a unidade em duas partes, cada uma comportando duas alas, num total de 4, nas
quais estão 108 jovens, num local com capacidade para 70. Entramos no segundo
saguão, na direita e na esquerda dois outros portões iguais, também cadeados. A
impressão que se tem é de estar no presídio, os monitores com cara de carcereiro, com
as chaves na mão e a atitude de desconfiança e prepotência. Enquanto estamos por ali,
entram dois jovens algemados, para confirmar a dimensão carcerária da estrutura.
O ritmo da unidade é rápido, as pessoas falam rápido, agem rápido, se movimentam
rápido. Fico pensando em qual será a pressa num local no qual os jovens vêm o dia
passar sem maiores perspectivas, cada segundo durando uma vida. O que mais chama
a atenção é o barulho do cadeado batendo na porta de metal, a cada entrada ou saída a
tranca sobe e desce, fazendo um som que foi suficiente para atordoar na menos de uma
hora que estivemos por ali. Tudo, imagens, sons, cheiros, tudo em excesso, tudo
saturado, tudo embotando os sentidos.
Os quartos são escuros, úmidos, alguns deles duplos, isso sem contar os outros que
precisam ter mais um colchão acrescentado para dar conta do excesso de meninos.
Conhecemos também a sala de isolamento, que fica ao lado de uma enfermaria para os
casos de algum “acidente” ou “doença que o jovem tenha que ficar por ali.
Não consigo nem imaginar permanecer ali mais de algumas horas, quanto mais dias,
semanas, meses, até três anos!
Marcos diz que a pior coisa de estar é estar entre quatro paredes... a comida é
péssima, o convívio é complicado, os cheiros são insuportáveis, “mas o pior mesmo é
estar trancado, saber que aquele espaço ali é o que está reservado pra ti”... Fiquei
pensando o quanto mais que um corpo é confinado ali... (Diário de campo I, 28 de
abril 2003)
Se cada sociedade produz seu estranho, o estranho-padrão desta sociedade de consumo é todo
aquele que possui uma condição fundamental: estar desprovido de trabalho e, por isso, dos meios
econômicos para participar na sociedade através do consumo. Quem melhor preenche essa condição
são os imigrantes, nos Estados Unidos e países europeus ocidentais, a população indígena no México,
penitenciário do estado. Atualmente, ainda permanece nas unidades sob administração da Força Tarefa da Brigada Militar,
como o Presídio Central de Porto Alegre, onde é feito um sorteio aleatório a cada cinco ou seis visitantes para submeter-se à
revista íntima. Nas unidades de privação de liberdade de jovens da FASE, no entanto, não houve qualquer movimento no
sentido de eliminar essa prática invasiva e humilhante, apesar de sua comprovada ineficiência para o objetivo a que diz
propor-se.
55 Internação Com Possibilidade de Atividade Externa, medida que permite aos jovens em privação de liberdade saírem
para ir à escola, estágios, cursos, etc.
na América Central e Colômbia, e a juventude miserável no Brasil. Todos esses grupos são
transformados, automaticamente, em inimigos públicos, justificando os excessos usados para
puni-los, uma vez que “sob a integridade do ouro, o único pecado mortal é carecer de
liquidez” (REGUERA, 2001, p. 22). Quanto mais ofertas e produtos, mais a sociedade de
consumidores precisa ser segura, e com mais violência o Estado se atribui essa tarefa. Em
tempos de ordem e progresso, podemos advertir as perigosas relações que vão surgindo entre
o mundo das crianças e jovens marginalizados e a nova ordem política que se pretende
instaurar. Sobre essa ordem política quero falar a seguir.
2.2 – Pobreza em três tempos: criminalização, militarização e rentabilização
E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se calcularam o
número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho
desproporcionado, à desmoralização, à infância, à ignorância crapulosa, à
desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?
(Almeida Garret)
Pensemos na seguinte situação que nos apresenta Reguera (2005b): se uma indústria
quer fabricar parafusos e, ao longo de 50 anos, toda produção é de pregos, a indústria está,
evidentemente, vivendo dos pregos, e não dos parafusos. Da mesma forma, se as diversas
instituições carcerárias passaram 50 anos produzindo o que elas mesmas definem como
criminosos pelo menos 70% de sua produção –, e não “recuperando” os sujeitos, como
alegam propor-se inicialmente, nem passando por nenhuma transformação nesse período, é
porque o interesse efetivamente é outro. Vamos ver como a pobreza, em suas três
categorizações enquanto criminosa, enquanto inimiga da nação e enquanto mercadoria de
consumo tornou-se matéria prima essencial para os propósitos do capitalismo neoliberal
contemporâneo.
Wacquant (2001a) mostra como a prisão cresceu de forma massiva nos últimos
tempos, quando apenas vinte e cinco anos atrás todos diziam que estava a ponto de
desaparecer, e alerta que essa expansão não se relaciona aos delitos em si, uma vez que nos
Estados Unidos a população carcerária quadriplicou-se enquanto o índice de delitos se
mantinha estável e depois diminuía. Wacquant (2004) afirma que, embora os especialistas da
hora defendam que o encarceramento em série tenha reduzido a criminalidade, os dois fatores não m
qualquer relação. A política penal tornou-se autônoma, seu discurso desvinculou-se da questão do
crime para funcionar como instrumento de regulação do mercado, da mão-de-obra desqualificada, e de
cunho ideológico, simbólico, reforçando a discriminação contra os pobres e os negros, fazendo-os crer
que estão em situação social inferior por conta de sua própria incapacidade (WACQUANT, 2004).
Vemos que um interesse que não tem a ver com a contenção do crime, mas sim com uma
mudança de atitude para com aqueles considerados criminosos a saber, os pobres e desprovidos de
acesso ao trabalho. É à pobreza que se destina esse design globalizado, escondendo sob o pretexto da
promoção da paz os interesses econômicos que realmente determinam as políticas governamentais. A
pretensa escalada do crime e da violência urbana é, sobretudo, uma “temática político-midiática
visando facilitar a redefinição dos problemas sociais em termos de segurança” (WACQUANT, 2001a,
p. 72) e a promoção da punição dos pobres como nova tecnologia de gestão da miséria em todo o
mundo.
No Brasil, assim como nos Estados Unidos, o peso maior dessa manobra recai sobre os jovens,
pobres e negros: um homem negro a cada dez, e um jovem negro a cada três está neste momento sob
autoridade penal nos Estados Unidos (WACQUANT, 2006a), e mais da metade dos presos do Brasil,
de um total de 340 mil em 2004, têm menos de trinta anos, 95% são pobres e 95% são do sexo
masculino (HUMAN RIGTHS WATCH, 2006). Se a esses dados somarmos a população do sistema
FEBEM, também referente ao ano de 2004, temos mais 39.578 jovens privados de liberdade, dos quais
18.618 em Liberdade Assistida, 9.591 em internação, 7.471 em Prestação de Serviço à Comunidade,
2.807 em internação provisória e 1.091 cumprindo a medida de Semi-Liberdade (BRASIL, 2005).
Wacquant (2001a; 2001b) aponta que a descomunal expansão do Estado penal é a contra-partida
lógica e necessária à retração do Estado social por todo o mundo. Depois da década de 1960 e 1970,
momento em que o Estado de bem-estar social (welfare state) era o modelo de funcionamento estatal
nos países do capitalismo central, nos anos 1980 o neoliberalismo vence e o Estado se converte à
ideologia do mercado, diminuindo suas prerrogativas nas áreas econômicas e sociais e, precisamente
por isso, aumentando e reforçando suas intervenções nos âmbitos da “segurança”, agora reduzida à
dimensão criminal. Esse é o paradoxo com o qual nos encontramos no contemporâneo:
a penalidade neoliberal [...] se propõe a desenvolver “mais estado” nas áreas policial,
de tribunais criminais e de prisões para solucionar o aumento generalizado da
insegurança objetiva e subjetiva que é, ela mesma, causada por um “menos estado” no
fronte econômico e social. (WACQUANT, 2006b, no prelo)
Com o Estado liberal, os auxílios estatais são retirados por acreditar que a pobreza e o crime não
são responsabilidade social ou governamental, e sim do próprio pobre, o qual é plenamente
responsável por encontrar-se nessa condição (BAUMAN, 1998). Essa lógica defendida e
apresentada pelos pensadores do Estado penal evidencia o caráter mercantilista e
meritocrático do capitalismo neoliberal, procurando ocultar os vínculos entre a “delinqüência”
e o desemprego, as desigualdades, e o racismo, como nos mostra Wacquant:
Se a pobreza se deve principalmente ao comportamento dos pobres antes do
que às barreiras sociais, então é o comportamento que deve mudar, mais do
que a sociedade.
[...] A melhor resposta à pobreza não é subvencionar as pessoas ou
abandoná-las: é dirigir sua vida. (WACQUANT, 2001a, p.48)
[...] Nenhuma reforma estrutural da sociedade pode alterar essas
identidades, pois na nova política atual é a personalidade, e não a renda ou a
classe, que representa a qualidade determinante de uma pessoa.
(WACQUANT, 2001a, p. 49)
[...] Não se deve confundir a sociologia e o direito. Cada um permanece
responsável por seus atos. Enquanto aceitarmos desculpas sociológicas e
não colocarmos em questão a responsabilidade individual, não resolveremos
esses problemas.
[...] Devemos erguer a voz e corrigir uma tendência insidiosa a tendência
que consiste em imputar o crime antes à sociedade do que ao indivíduo. [...]
não é a sociedade em si que é responsável pelo crime; são os criminosos que
são os responsáveis pelo crime. (WACQUANT, 2001a, p.62)
Em um momento no qual o Estado privatiza todas suas funções sociais e as coloca nas
mãos de ONGs e de instituições privadas, o lugar que lhe resta é o de assumir uma função
estritamente policial, assegurando a ordem que garanta um mercado estável, com
consumidores seguros e confiantes. A doutrina da tolerância zero, que prega o combate às
pequenas infrações tais como jogar lixo na rua e insultar, por exemplo como forma de
impedir comportamentos criminosos mais graves, se difunde em todo o mundo como arma
eficaz para a “guerra ao crime”, oficializando o perfil punitivo do Estado e buscando isentá-lo
de sua participação na gênese do fenômeno que pretende eliminar.
No Brasil, o primeiro a anunciar a adoção da política de tolerância zero foi o então
governador de Brasília, em 1999, após a visita de dois altos funcionários da polícia de Nova
Iorque (WACQUANT, 2001a). Procurando manter-se a par das correntes internacionais, o
discurso da tolerância zero se espalhou pelo país rapidamente, seja como política explícita ou
como princípio ideológico, encontrando nos governantes e nas elites nacionais eco às suas
preocupações com a insubordinação dos pobres nas mais diversas esferas. Eis o primeiro
tempo da pobreza, sua criminalização, fenômeno produzido e mantido de longa data em nossa
trajetória histórica, cada vez mais legitimado pelos discursos dominantes.
Mas em nosso país nunca chegou a existir o Estado de bem-estar de forma sólida, pois enquanto
os países do capitalismo central cresciam em auxílios e assistências, nos encontrávamos em anos de
ditadura militar, saindo desta no momento em que o neoliberalismo, guiado pelas mãos fortes de
Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e Margaret Tatcher, na Inglaterra, já impunha sua própria ditadura
sobre os pobres. Isso significa que o Brasil entrou na onda do Estado penal recém saído de vinte anos
de autoritarismo, nos quais foram exaltados e instigados os racismos, ódios e discriminações
acumulados durante os mais de trezentos anos de escravidão contra os pobres e negros.
A essa realidade, podemos adicionar nossa desigualdade social abismal, os serviços públicos
deficientes ou inexistentes, a repressão policial que faz aumentar a violência e insegurança, o estado
pavoroso das prisões no país e o extremo desemprego e subemprego “no contexto de uma economia
urbana polarizante e de um sistema de justiça corrupto” (WACQUANT, 2006b, no prelo) e teremos um
verdadeiro campo de concentração massivo e constante para os despossuídos (AGAMBEM, 2002). A
aplicação das idéias trazidas do exterior para lidar com as questões sociais promete produzir, no Brasil,
uma catástrofe ainda maior que nos países onde tais idéias foram gestadas. A afirmação feita por
Wacquant deveria servir como alerta preocupante:
Eu acho que a periferia do capitalismo é a verdade das tendências do capitalismo do
centro. O Brasil mostra a direção dos Estados Unidos por exemplo no que se refere à
prisão, a tendência de militarizar a contenção punitiva dos pobres nas favelas é o
futuro dos Estados Unidos e não o contrário. (WACQUANT, 2006c, no prelo, grifos
meus)
Essa tendência constitui o segundo tempo da pobreza, made in Brazil: a militarização dos
modos como o Estado penal incide sobre ela. Uma vez criminalizadas as massas miseráveis do país,
estabeleceu-se um clima de tensão nacional baseada em um sentimento comum: o medo. Esse fator tem
sido utilizado como estratégia de preferência para disciplinar e controlar a população, especialmente
seu setor mais empobrecido (BATISTA, V., 2003b). Uma sociedade com medo é muito mais fácil de
governar que uma população solidária e atenta aos processos coletivos. O medo do caos, da desordem,
da bagunça, é um fator importante nas tomadas de decisão econômicas, políticas e sociais, pois paralisa
de forma que não se questiona “a violência de uma sociedade tão desigual e tão rigidamente
hierarquizada, mas proclama-se por mais pena, mais dureza e menos garantias no combate ao que
ameaça” (BATISTA, V., 2005, p. 370). Os detentores do poder adotam a criação, intensificação e
difusão do medo como justificador de políticas autoritárias de repressão e controle social, e para isso
contam com uma tática que consiste em nomear temores específicos e fundamentais para expandir seu
projeto de domínio. Dessa forma, “contra o medo deste mundo portador do caos e da desordem o
estado brasileiro vai impor sua arquitetura penal prisional” (BATISTA, V., 2005, p. 376).
Tal arquitetura se estende sobre a população em geral, enquanto mecanismo regulador
das relações sociais, mas se impõe duramente sobre uma parcela muito bem definida. O medo
de uns convoca e legitima o terror sobre outros, contando com os aparelhos do Estado para
concretizar essa operação, como vemos em alguns titulares nos jornais: “Exército brasileiro
está elaborando um Manual de guerra urbana com normas para treinar militares no combate ao
crime organizado” (O GLOBO, 2003). O BOPE do Rio de Janeiro (Batalhão de Operações
Policiais Especiais), corpo pertencente à Polícia Militar, pode ser considerado o símbolo e
instrumento mais aperfeiçoado na estratégia de militarizar as ações sobre a pobreza
56
. Criado
em 1978, nos anos mais duros da ditadura, tem se encarregado de gerar verdadeiro pânico
naqueles a quem se dirige: moradores, pobres, de zonas consideradas “de risco”.
Em princípio, sua atuação estava prevista em
operações policiais militares não convencionais, em missões de
contraguerrilha urbana ou rural e, na condução de missões que venham a
exigir, além de pessoal altamente especializado e com grande preparo
técnico, tático e psicológico, o emprego de armamento e equipamentos
especiais; não devendo ser empregado em quaisquer modalidades de
policiamento ostensivo preventivo e em missões de rotina policial militar.
(BOPE, 2006, grifos meus)
Mas o BOPE tem atuado cada vez com maior freqüência – e violência – para lidar com
situações que nada têm de contraguerrilha, servindo apenas enquanto desculpa para o
policiamento ostensivo e invasivo nas vidas dos moradores das favelas. Com seu veículo
típico, um carro blindado sugestivamente batizado de Caveirão o qual tem o desenho de
uma caveira com duas pistolas cruzadas e uma faca enfiada na cabeça, simbolizando “vitória
sobre a morte” o BOPE “entra nas favelas do Rio de Janeiro todos os dias com um alto-
falante que faz ameaças aos moradores: ‘Sai da rua’; ‘Vai dormir’; ‘Vim buscar sua alma’.
Quem é pego de surpresa, precisa encarar ou pode ser morto na tentativa de se esconder”
(GASPAR, 2006).
É evidente que existem interesses em manter um controle total e absoluto sobre os
ditos perigosos, e também fica claro que o interesse vai muito além da “punição ao crime”,
aproximando-se mais da punição dos pobres criminalizados. Apesar da movimentação
nacional e internacional contra as práticas bélicas do BOPE, o tenente coronel Aristeu
Leonardo Tavares, chefe do setor de Relações Públicas da Polícia Militar do Rio de Janeiro,
56 A provocativa análise feita por Matozinhos (2002) sobre a figura do Robocop como modelo do agente
policial ideal para lidar com as desordens urbanas descritas no filme futurista de mesmo nome é muito
esclarecedora para pensar nas ações e estratégias do BOPE.
afirmou que “a experiência possui resultados tão compensatórios que policiais militares de outro
estados buscam implementar o sistema” (GASPAR, 2006). Lamentavelmente, em outubro de 2005 “o
sistema” foi reproduzido em Santa Catarina, como resultado de uma curiosa parceria entre a Secretaria
de Segurança Pública e Defesa do Cidadão, empresários e Associação Empresarial da Região
Metropolitana de Florianópolis e Câmara de Dirigentes Lojistas de São José, SESI (Serviço Social da
Indústria) e Prefeitura Municipal de São José (JORNAL METROPOLITANO, 2006). A defesa da
cidadania aliada aos empresários e lojistas deixa bastante claro as preocupações pouco sociais na
implementação de um corpo essencialmente bélico para lidar com os problemas de segurança pública –
ou melhor, de propriedade privada.
Não surpreende, se pensarmos nos corpos mirados por esse processo de militarização, que as
elites brasileiras, ciosas dos discursos que as legitimam aos olhos do mundo, aceitem os métodos do
BOPE sem restrições. Nesta situação, que os discursos midiáticos têm se obstinado em chamar de
“guerra civil”
57
, o inimigo tem cor e endereço determinados e não parece ser suficientemente humano
para perturbar o sono tranqüilo das classes dominantes. A ofensiva do BOPE é “a tentativa de suprimir,
varrer e matar tudo aquilo do conteúdo social que não cabe mais nas formas da sociedade brasileira,
formas estas delimitadas a partir da direção autoritária de uma classe dominante cada vez mais cruel e
sem legitimidade” (MENEGATI, 2005, p. 60).
O desprezo acumulado nos anos de escravidão e fortalecido durante a ditadura nem tenta ser
dissimulado nas falas dos oficiais desse corpo militar: “ver os olhos do inimigo é importante, porém
devemos estar preparados para fazê-los fecharem-se”, diz o Tenente Coronel Fernando Principe
Martins, comandante do BOPE do Rio de Janeiro (BOPE, 2006). Apesar de um pseudo-discurso geral,
pouco convincente, pró paz e segurança, a violência policial e militar supera, com excessos, qualquer
outra violência que proclame combater. Além das represálias físicas ostentadas pelos policiais do
BOPE, sua tática inclui a propaganda do desprezo pelos pobres, o emparelhamento bandido-favelado, e
a glorificação da militarização como única forma capaz de eliminar os inimigos:
Os gritos cantados pelo pelotão de elite da Polícia Militar, em seus exercícios matinais
nas proximidades do Parque Guinle, descrevem os procedimentos e princípios que
norteiam sua ação:
“Esse sangue é muito bom
Já provei não tem perigo
É melhor do que café
É o sangue do inimigo”;
57 Embora exista uma estratégia estatal de caráter combatente, Cecília Coimbra (2001; 2006a; 2006b) denuncia o uso da
terminologia bélica “guerra civil”, “guerra contra o tráfico” para referir-se à situação brasileira, sobretudo à do Rio de
Janeiro, como forma de justificar perseguições, violações e o domínio de certos grupos sobre outros, naturalizando a adoção
de medidas de exceção que ferem os mais elementares direitos. A própria afirmação da existência de um estado de guerra
faz crescer o terror, o pânico e a insegurança que pretende eliminar, produzindo uma demanda social por maior repressão e
controle.
“O interrogatório é muito fácil de fazer
Pega o favelado e dá porrada até doer
O interrogatório é muito fácil de acabar
Pega o bandido e dá porrada até matar
[...] Bandido favelado não se varre com vassoura
Se varre com granada, com fuzil, metralhadora” (THEOPHILO e ARAÚJO,
2003, s/p)
Não nos enganemos: a existência do BOPE o é, como muitos apontam, um símbolo
das falhas das políticas públicas de segurança, nem uma mostra da incompetência do Estado
para controlar a desordem que diagnostica na sociedade brasileira. Aprendemos, com Foucault
(1999), que o poder não impede, não reprime, ele produz. Portanto, o uso da polícia militar ou
do exército não é um último recurso para enfrentar a situação, nem resultado da
administração, mas A estratégia política manufaturada pela classe dominante para manter o
status quo. A proclamação do genocídio como marco do sistema de controle social, a
oposição entre uma ordem pública virtuosa e o caos infracional, a matriz do combate ao crime
feito como cruzada, o extermínio como método, a tortura como princípio, o elogio da delação
e a execução como espetáculo (BATISTA, V., 2003b) são as próprias diretrizes da
militarização da relação com a pobreza.
O tratamento dos pequenos delitos como assunto de segurança nacional, e de seus
autores como inimigos de guerra, se faz notar especialmente sobre a juventude marginalizada,
massacrada sem ressalvas tanto nas ações dos “agentes da lei” como pelo sistema judiciário e
pelos centros de internação. No entanto, se considerarmos os dados quantitativos sobre as
infrações cometidas no Rio Grande do Sul, por exemplo, não encontramos justificativa
alguma para o endurecimento das forças da lei: 62,83% de todas as infrações no estado são
contra o patrimônio (sendo os maiores índices 53% de roubos e 7,63% de furtos) (FASE,
2006). Também em São Paulo, capital com maior número de jovens cumprindo medida sócio-
educativa, os números indicam que, em outubro de 2003, dos 6.705 internos, 8,5% praticaram
homicídio e 3,2% latrocínio. A maioria dos jovens internados, quase 90%, cometeram outros
delitos, principalmente o roubo e o furto (PTALESP, 2004).
Essas proporções não são exclusividade do Brasil. Mesmo os dados coletados por Belt
Ibérica
58
, na Espanha, em 2003, mostram que, das 28.025 detenções de jovens, 74% são
referentes a crimes contra o patrimônio, com apenas 3,9% sendo por danos corporais e 0,25%
por homicídios (BELT IBÉRICA, 2006). No entanto, seguindo uma tendência global de
58 Empresa formada pelos “Profissionais de Segurança” de todo o país, “líder em serviços profissionais no setor
da Segurança Global e das Emergências na Espanha, cuja missão é assessorar a Alta Direção no planejamento e
estabelecimento das políticas e técnicas que protejam as pessoas, bens, informações, conhecimento e imagem
diante de todo tipo de riscos” (BELT IBÉRICA, 2006).
manipulação tendenciosa das informações, esses índices foram divulgados em uma notícia com a
manchete Grave aumento de los delitos violentos cometidos por jóvenes”, apelando por e justificando
medidas mais duras para os infratores, apesar da insignificância estatística apresentada quanto aos
delitos cometidos contra a vida.
Tanto ouvimos falar em “delitos violentos” e afins que pareceria ser a violência um objeto
natural ex nihilis e um adjetivo praticamente inerente às camadas empobrecidas da população. Mas a
violência, enquanto fenômeno social que é, precisa ser entendida em sua relação com a natureza
excludente
59
do modelo e proposta neoliberais, com o processo de globalização econômica, com a crise
dos paradigmas da modernidade e com a conseqüente fragmentação social e cultural das sociedades
contemporâneas (DORNELES, 2002). A violência se alimenta das desigualdades, e não há campo mais
desigual que o formado pela mundialização econômica neoliberal, pela individualização que esta
provoca, e pela abstenção do Estado de sua responsabilidade pública social diante desse quadro.
A idéia generalizada de que a violência existe no interior dos sujeitos “perigosos”, idéia
fomentada pelos interesses dominantes, provocou uma hipervisibilização dos pobres, ou seja, uma
atenção, monitoramento e controle exacerbados sobre suas vidas, tornadas públicas nos mais ínfimos
detalhes, seja nos programas tipo Linha Direta ou nos telejornais diários. Tal mecanismo não apenas
acompanha, mas provoca e torna possível os movimentos de criminalização e de militarização da
pobreza, uma vez que todos os olhos estão pendentes do que ocorre na favela e na periferia, atentos à
manchete do dia seguinte para sentir-se justificados em suas “visões hiperbólicas sobre as classes
perigosas” (NEDER, 1997, p. 107).
A infração juvenil se insere na rede dessas forças e processos locais e globais que pregam a
crença da meritocracia individual, tanto para os sucessos como para os fracassos, e a defesa de métodos
duramente punitivos para aqueles que não conseguem se inserir nem através do consumo, nem através
do trabalho. Além disso, através da intervenção sobre as crianças e os jovens considerados de/em risco
é possível controlar as famílias e os bairros, lançando uma teia de fiscalização sobre toda a população
explorada. Para os que duvidam da veracidade ou precisão dessa afirmação, basta olhar algumas
imagens divulgadas em março de 2006 pelos jornais do Rio de Janeiro (ANEXO II), nas quais
aparecem soldados do exército ocupando o morro da Providência
60
: alegando estar à procura de
59 Utilizo a idéia de exclusão a partir de Foucault (1996), pensando a inclusão de certos grupos pela exclusão típica das
sociedades disciplinares, "que tem por função ligar os indivíduos aos aparelhos de produção, formação, reformação ou
correção de produtores" (Foucault, 1996, p. 114).
60 No dia 04 de março de 2006, trezentos policiais do Exército ocuparam mais de dez morros e favelas do complexo do
Alemão, em Ramos, na capital fluminense, em busca de dez fuzis e uma pistola roubados, pela manhã, do quartel em São
Cristóvão pela manhã, mantendo-se nos morros durante mais de quinze dias, ao longo dos quais usaram seu poder de fogo
contra os moradores do local sob o pretexto de querer recuperar o material roubado. O fato de um dos suspeitos do roubo
ser um ex-cabo do próprio exército, residente nas proximidades do complexo do Alemão, foi o bastante para que o exército
fosse autorizado a invadir toda a região, alegando envolvimento “do tráfico”. As imagens publicadas do exército nas ruas
traficantes em sua maioria jovens supostamente envolvidos em um roubo, pelotões
inteiros invadem as ruas de zonas marginalizadas da cidade, exercendo um controle absoluto
sobre todos seus habitantes.
O surrealismo da cena parece passar desapercebido para a grande maioria, que lê,
entusiasmada, sobre “o dia no campo de batalha”, como estampa na capa o jornal O Dia
Online (2006), e concorda com a manchete secundária que afirma que “parece Bagdá”,
reforçando a lógica marcial fabricada nos últimos tempos e utilizada para legitimar o vale-
tudo contra as “classes perigosas”. Pouco importa que os moradores se revoltem com a
atuação do exército e afirmem que os militares atiraram a esmo (VICTOR e BORGES, 2006),
pois, como cúmplices do inimigo, não serão escutados sob pretexto de que seu protesto foi
manipulado pelo tráfico; também os pedidos de vários procuradores para cessar as buscas
serão negados pela Justiça (O DIA ONLINE, 2006).
Um dos leitores do jornal deixa sua opinião no fórum, respondendo à pergunta “qual
sua opinião sobre a ocupação do morro pelo exército?”:
Acho que deveria ser permanente e aproveitar a oportunidade para
implementar um plano nacional de segurança pública em resposta ao
processo de caos na ordem pública. Isso deveria ser prioridade máxima para
o governo federal que deveria investir mais nas políticas de segurança
pública e nas forças armadas. Acho que os fatos recentes foram
importantes, pois, demonstram a importância dos nossos militares e o
quanto eles podem contribuir para eliminar completamente este caos da
segurança pública. (O DIA ONLINE, 2006, grifos meus)
A militarização, segundo tempo com a pobreza, é possível porque existe a idéia de
que os problemas econômico-sociais são de ordem criminal-policial, exigindo, para tanto, a
força máxima em termos de intervenção repressora. A fala do leitor mostra a rápida
naturalização do uso do exército para lidar com questões que, por definição, estão
completamente fora de sua alçada “de defesa da pátria e das faixas de fronteira”, e de
“atividades subsidiárias de cunho social e pacífico, como levar alimentos e serviços médicos a
pontos isolados, participar e coordenar campanhas sociais e pesquisas científicas”, como
prevê seu regulamento. Mas o “caos na ordem pública” parece ter se transformado no maior
adversário da nação, passando dos cuidados do Ministério da Justiça, com sua Secretaria
Nacional de Segurança Pública, ao braço forte e mão pouco amiga do Ministério da
Defesa. As políticas de segurança pública tornaram-se, agora, responsabilidade nada menos
que das forças armadas, como se a insegurança generalizada fosse causada pelo tráfico, pela
têm uma impressionante semelhança com os tempos de ditadura, com a diferença de que a ditadura brasileira
contemporânea se exerce sobre renda, cor e endereço bem definidos.
infração juvenil e pelos pequenos delitos de rua, e não pelas condições econômico-sociais nas quais nos
encontramos.
Wacquant (2006c) mostra como se deu essa transição de um Estado Social, ancorado em
políticas assistencialistas desenvolvidas para redistribuir alguma renda com o objetivo de estabilizar a
vida das pessoas, além de agir como um mecanismo contra-cíclico contra os ciclos de depressão da
economia industrial, a um Estado Penal, fundamentado em ações repressoras e de controle. Nas décadas
de 1945 a 1975/1980 se pensava que, para combater a pobreza, era necessário oferecer mais empregos,
sendo o trabalho o remédio para toda a miséria. Mas desde a chamada flexibilização do trabalho, o
próprio trabalho é algo inseguro sub-emprego, sub-salários, trabalhos temporários ou sem nenhum
tipo de segurança empregatícia, tem-se um trabalho hoje mas não sabe se terá um trabalho no próximo
mês ou no próximo ano. O trabalho fragmentado, em si mesmo, tornou-se um vetor de pobreza e de
insegurança.
Se, no período mencionado, o Estado estava presente para proteger das oscilações e riscos da
economia, desde o final dos anos 1970 e início dos 1980 as sociedades do capitalismo central se
organizaram para que o Estado não mais protegesse a população das mudanças no mercado, mas, pelo
contrário, a empurrasse em direção a ele (a chamada “terceira via” de Blair). O Estado assume a função
de capacitador, ou seja, ele deve equipar as pessoas para que estas possam competir no mercado, mas
essa tarefa ocorre de forma extremamente desigual entre as diferentes camadas sociais, criando uma
insegurança e instabilidade atomizadas na vida das pessoas.
Temos, então, um duplo sentimento de insegurança. Por um lado, o que Wacquant (2006c)
chama de insegurança social objetiva, causada pela des-socialização do trabalho e pela ausência do
Estado como protetor das oscilações no mercado. Por outro, e imanente à anterior, existe uma
insegurança mental provocada pela impossibilidade de projetar-se no futuro, que, mesmo tendo um
diploma universitário não garantia de encontrar um emprego, mesmo tendo um emprego não
garantia de ter um bom salário, e mesmo que se consiga um bom emprego e um bom salário, não
garantias de que o emprego seguirá por muito tempo. Em resumo, a classe média não tem mais garantia
de seguir sendo classe média, o que desestabiliza e cria um grande sentimento de ansiedade
generalizada que não é percebida em suas relações com a insegurança do trabalho e com a não vontade
do Estado de proteger dessa insegurança. Diante desse quadro, a população demanda por mais
estabilidade de vida, e a resposta do Estado a essa demanda é fornecer mais polícia e políticas penais,
ou seja, ante o pedido de segurança social, o que se oferece é segurança criminal (WACQUANT,
2006c), alimentando o ciclo que levará a um aumento ainda maior na demanda por políticas
repressivas. Com esse panorama, estão dadas as condições para o desenvolvimento e expansão do
Estado penal por todo o mundo, com o sistema penitenciário constituindo sua intervenção
“social” por excelência, apesar das incontestáveis evidências de sua ineficácia para o que diz
almejar, o combate ao crime
61
.
Paralelamente aos movimentos de criminalização e de militarização, existe um terceiro
tempo da pobreza, o qual é fundamental para entender a promoção do Estado penal máximo
como aliado perfeito do modelo neoliberal. Trata-se da rentabilização das camadas miseráveis
que, apreendidas em uma ótica rigorosamente financeira, precisam ser re-industrializadas para
seu aproveitamento máximo em termos econômicos, através da criação de uma imensa malha
de serviços e instituições voltados ao atendimento não mais de uma população apenas pobre,
mas já criminalizada, que precisa, em nome da ordem pública, ser contida.
Para termos uma idéia da quantidade de dinheiro envolvido, o sistema penitenciário
dos Estados Unidos contava com mais de 600.000 empregados em 1993, ocupando o posto de
terceiro maior empregador do país, atrás apenas da General Motors e da rede de
supermercados Wal-Mart (WACQUANT, 2001b). A privatização dos presídios mostra ser um
dos maiores negócios do momento, com sete entre as quinze maiores gestoras de
estabelecimentos de detenção dos Estados Unidos possuindo cotações na bolsa de Nasdaq.
Para intensificar seus rendimentos, as prisões com fins lucrativos usam todos os meios
disponíveis: além de receber recursos públicos para seu funcionamento, e além dos convênios
com empresas como a IBM, entre outras, para utilização das instalações prisionais como
fábrica a baixo custo, as casas correcionais repassam as despesas do encarceramento aos
familiares e ao próprio preso, cobrando os serviços de enfermaria e lavanderia, a alimentação
e a própria ocupação da cela e superfaturando serviços extras, como o custo das ligações de
telefones públicos colocados no interior da prisão (WACQUANT, 2001b; COMFORT, 2006)
No Brasil, embora não constatemos o mesmo quadro, foram inauguradas três
experiências de terceirização de alguns setores ou tarefas em presídios no Paraná, Bahia e
Ceará –, e o Rio Grande do Sul estava em vias de aprovar um projeto, denominado Parceria
Público-Privada Prisional (PPP Prisional), para terceirizar seus presídios em 2004
62
, dando
direito à administração das atuais casas de detenção e à construção de novos presídios a
empresas privadas, em troca de repasses mensais do tesouro, durante períodos de até 30 anos.
Entre as propostas para a forma de pagamento por parte do Estado estão a remuneração das
empresas em moeda corrente, em títulos e em incentivos ou isenções fiscais de ICMS ou
IPVA, por exemplo. Outra possibilidade de pagamento também prevista no projeto de PPP
61 Sobre o assunto, ver a detalhada análise apresentada por Wacquant (2004) sobre as aberrações do sistema
carcerário.
62 O projeto segue em trâmite.
nacional da União – deveria deixar todos de sobreaviso: a transferência de ações de companhias estatais
ou controladas pelo poder público (NETTO, 2004). Ou seja, além do negócio, por si só, beneficiar as
empresas que passariam a administrar o cárcere, o Estado ainda pode, como forma de pagamento,
transferir ações de suas companhias públicas. Dupla rentabilidade para a parte privada.
No que diz respeito ao sistema FEBEM, a possibilidade de terceirização e privatização das
unidades de internação foi questionada no anteprojeto de lei que regulamentará as medidas sócio-
educativas. As diversas entidades reunidas para debater a proposta consideraram que as insuficiências
do Estado no desempenho de suas responsabilidades não justificariam a transferência da execução da
privação de liberdade dos jovens para entidades particulares, defendendo que a Justiça deveria estar
acima de interesses particulares “para garantir suficientemente o controle político das atividades
repressoras do Estado” (ILANUD, 2004).
Mas sabemos que, em épocas ditadas pelo mercado, não tardará muito para que as “experiências
piloto” de privatização dos centros de internação comecem a surgir como solução para as rebeliões e
para a falta de pessoal e de recursos, como tem ocorrido por todos os lados. Assim aconteceu na
Espanha, como denuncia a associação Coordinadora de Barrios em um de seus informes. Adotando o
modelo estado-unidense na doma de suas crianças e jovens “problemáticos”, o país começou a delegar
às instituições privadas o controle da população “não adaptada” e “perigosa”: atualmente, 85% dos
centros de menores é privado, funcionando o encarceramento de milhares de sujeitos como uma
empresa de serviços, como se fosse contratada uma empresa de limpeza do lixo (SIMON, 2001).
O modelo de privatização do sistema prisional, além de ser lucrativo para as empresas gestoras,
é econômico em dois aspectos para o Estado. Por um lado, financeiramente, uma vez que um jovem
atendido em entidade privada gera custos de pessoal dez vezes menor que se residisse em um centro
público. Por outro, legalmente, uma vez que fica eximido da responsabilidade por quaisquer eventos
ocorridos no interior das instalações leia-se a ampla gama de violação dos direitos humanos de que
temos notícias nesses lugares, desde as condições insalubres dos locais até as torturas cotidianas
63
.
Assim, tudo que ocorre nos “centros educativos” fica no silêncio dos diretores, dos diversos
profissionais e monitores do local, e no corpo escondido dos jovens, impedidos de serem vistos por
familiares e mesmo pelos advogados, o que constitui, em si, uma violação de seu direito
constitucional básico.
Sem qualquer tipo de supervisão ou controle públicos, as gestoras privadas têm carta branca
para as mais variadas práticas, desde os regulamentos internos absurdos até as infrações administrativas
63 Para conhecer melhor o funcionamento do sistema FEBEM e ouvir, na voz dos próprios internos, acerca dos maus-tratos,
humilhações e espancamentos recorrentes, ler a tese de Maria Cristina Vicentin (2002).
das mais graves. Na Espanha
64
, a Fundação O´Belén, por exemplo, pune com afastamento dos
demais se um jovem arrota ou se diz algum palavrão; se um deles beijar ou abraçar a um
amigo excessivamente, receberá uma advertência e, caso o comportamento se repita, o
“agressor” será trancado no banheiro. A Fundação Diagrama, uma das maiores ONG-
empresas internacionais que administra os centros de internação no mesmo país com
sucursais também no Paraguai, El Salvador, Honduras, África Sub-sahariana e Magreb
considera, em seu regulamento, falta passível de punição o fato de “chamar os amigos pelo
apelido”, “tomar banho sem sabão”, “não lavar as mãos antes das refeições”, “chamar o
educador sem motivo justificado depois de deitar à noite”, “falar com os que estão no
isolamento”, “negar-se a realizar as atividades programadas” e “falar gritando”, entre uma
longa lista de comportamentos claramente imbuídos dos princípios da tolerância zero, os
quais vêm sendo sistematicamente denunciados por Coordinadora de Barrios às instâncias
administrativas correspondentes (SIMON, 2001). Além dessas, outras fundações que
disputam o valioso mercado europeu são Fundação Meridianos, GINSO, Grupo Norte,
Cicerón, Respuesta Social Siglo XXI, e Fundação IDEO. Estejamos bem atentos a esses
nomes que, com discursos humanitários e educativos, tentam esconder seu caráter
eminentemente empresarial.
Não apenas os cárceres gozam de boa saúde monetária com a criminalização e
militarização da pobreza. Existe toda uma indústria de segurança pública montada para dar
conta da insegurança social atribuída às classes perigosas, oferecendo produtos de ponta em
termos de vigilância, de sistemas de eletrificação de cercas, de pessoal especializado, de
alarmes e de um sem fim de outras mercadorias. Estamos falando de uma cifra bem elevada
nesse negócio:
Uma simples porta de segurança para uma casa custa bastante dinheiro:
quantas portas, fechaduras, gradeados se instalaram neste país de um tempo
para cá? [...] Quantas entidades bancárias, comércios, lojas, grandes
armazéns, edifícios públicos, instalaram vidros à prova de balas, sistemas
acústicos de alarme, circuitos internos de televisão? E a indústria de
veículos blindados para transportar bens? É necessário que
multipliquemos muitos milhares por milhões para começar a imaginar
o assunto. (REGUERA, 2001, p. 38, tradução minha).
64 O contato com as práticas do coletivo Coordinadora de Barrios, de Madri, e a proximidade com os escritos e
com o trabalho de Enrique Martínez Reguera, seu principal fundador, suscitaram as análises que se seguem e
provocaram o debate sobre a realidade da Espanha no tocante à situação da infância e juventude marginalizadas.
Apesar das evidentes diferenças entre a realidade desse país e a realidade brasileira, foi possível constatar uma
grande semelhança nas formas como o Estado tem lidado com a pobreza e com as populações estigmatizadas, o
que aponta para a existência de um movimento mundial em direção a controles e punições cada vez mais
violentos e absurdos.
Assim, a “marginalidade” não é mais esse mal que afeta os ociosos, mas também algo que
beneficia a não poucos trabalhadores. Não se trata mais que o desemprego origine “grupos de risco”,
mas esses “grupos de risco” estão colocando comida na mesa de muita gente, entre policiais, guardas,
criminologistas, agentes judiciais, guarda-costas, políticos, jornalistas, publicitários, psicólogos,
economistas, sociólogos, pedagogos, assistentes sociais, educadores de fim de semana, monitores,
professores acadêmicos e um longo etcétera que inclui até cineastas e escritores. Criou-se, dentro da
sociedade de consumo, o que Reguera (2001) chama de sociedade de consumidos, constituída pela
população pobre transformada em matéria de consumo para a sobrevivência das classes média e alta
65
.
Constatamos, tristemente, que a liberdade e a vida de nossas crianças e jovens pobres se converteram
em uma nova fonte de negócio para as diversas fundações e ONG “sem ânimo de lucro”.
Portanto, não é que os pobres estejam sendo punidos pelo Estado penal por não ter um lugar no
mercado, pois, como indica Chossudovsky (1999), a globalização econômica neoliberal promove a
estagnação da produção de bens e serviços de primeira necessidade e redireciona o sistema econômico
para o consumidor de alto padrão aquisitivo, menos de 15% da população mundial, prescindindo dos
demais 85% da humanidade param manter o mercado operando (CHOSSUDOVSKY, 1999). A
punição, o controle e o extermínio exercidos sobre os pobres são, precisamente, a forma como eles
participam no mercado, movimentando quantias astronômicas por todo o mundo.
No Brasil, o número de organizações voltadas à proteção da criança e do adolescente chega aos
225, segundo o cadastro de 1998 da Associação Brasileira das Organizações Não-Governamentais
ABONG (BUARQUE e VAINSENCHER, 2001), isso sem considerar as tantas outras que não estão
cadastradas nessa associação. É de se pensar por que, com tantas pessoas envolvidas em trabalhos nessa
área, o panorama geral da infância e juventude siga inalterado em seus sofrimentos cotidianos.
Reguera (2001) relata o caso de um menino de apenas cinco anos com um expediente de 192
páginas, nas quais constam, apenas nas 40 primeiras, nada menos que 29 serviços-instituições-
empresas-ONGs, e mais de uma centena de profissionais, toda uma estrutura de especialistas em
investigar as fragilidades de certos setores da população. Se calculássemos o valor do expediente da
criatura de cinco anos em horas de trabalho, a grosso modo, não seria exagerado afirmar que se trata de
um expediente milionário. E estamos falando apenas de uma criança, imaginemos os valores em se
tratando de uma unidade de internação, ou de todo o sistema de privação de liberdade.
Mais um exemplo de como a classe média passou a viver da classe pobre através da invenção
das classes perigosas e em situação de risco e da necessidade de catalogar e controlar esses grupos
65 O filme “Quanto vale ou é por quilo” (2005) expõe muito bem como a miséria é o novo combustível do mercado
chamado Terceiro Setor. No entanto, é importante ressalvar que nem todas as práticas se dão de forma homogênea, existindo
muitos trabalhos que conseguem funcionar fora dessa lógica mercantilista.
através de ONGs e afins: em um centro de internação da Espanha, que possui 40 vagas para
jovens, mas preencheu apenas 30 durante o ano de 2001, havia na folha de pagamento 33
educadores, 4 monitores, 1 monitor-chefe, 3 coordenadores, 1 jurista, 1 psicóloga, 1 assistente
social, 2 médicos, 2 técnicos em enfermagem, 1 professor de jardinaria, 1 professor de
marcenaria, 1 professor de informática, 2 auxiliares de cozinha, 2 cozinheiras e 2 pessoas de
limpeza (REGUERA, 2005c). Ou seja, em um estabelecimento relativamente pequeno, se
comparado aos que temos no Brasil, 30 jovens explicando o salário de 57 empregados.
Razão tinha Marcos, um dos jovens que conheci no projeto Abrindo Caminhos,
quando propôs: “ô, dona, eu tenho uma idéia: quando a senhora se formar, a senhora volta
aqui pra conversar comigo, daí a senhora a metade do seu salário” (Diário de campo I, 21
de março 2003), aludindo ao fato de que tanto a aprendizagem como o futuro exercício
profissional se davam às suas custas. Se repassássemos aos jovens os R$ 1.898,00 a R$
7.426,00 que o governo gasta, ao mês, para manter cada um em privação de liberdade no
Brasil (UNICEF, 2006), ou os mais de 6.500 euros mensais repassados pela Comunidade de
Andalucía, na Espanha, a uma Fundação “sem fins lucrativos” por cada jovem cálculo feito
considerando as vinte vagas da instituição, das quais apenas cinco estavam preenchidas no
momento considerado (REGUERA, 2001) –, com certeza as condições nas quais eles e suas
famílias se encontram mudariam consideravelmente. Mas isso deixaria desempregados todos
os profissionais que se beneficiam com a existência de “inadaptados”, “agressivos”,
“hiperativos”, “difíceis”, “psicóticos”, “violentos”, “delinqüentes”, “psicopatas”,
“criminosos”, “com transtorno de personalidade”, “com problemas de aprendizagem”, entre
tantas outras produções agora mercadorias que bem conhecemos. Mais importante ainda,
com o fim desse controle especializado ficariam livres as virtualidades dos sujeitos antes
demarcados pela periculosidade, tornando inútil toda a vantajosa empresa de diagnóstico e
prevenção.
A eficiente administração da miséria alheia, que tem feito proliferar uma enorme
constelação de fundações, empresas “sem fins lucrativos” e ONGs, consome mais de 45% dos
fundos que poderiam beneficiar as famílias em ajudas diretas na inversão de pessoal mediador
(REGUERA, 2005c). Para entendermos como isso ocorre, imaginemos a rede institucional
montada para a gerência dos recursos: os governos municipais, estaduais ou federais assinam
um convênio ou Parceria Público-Privada (PPP) com uma ONG para que ela se encarregue de
atender as crianças e jovens “em situação de risco”, por exemplo, reservando uma parte
necessária para os gastos de gestão desse trâmite. A ONG, por sua parte, não coloca as
crianças e jovens em suas salas bem mobiliadas nas zonas nobres, mas encaminha a
subvenção a uma instituição religiosa ou comunitária para que estes assumam o trabalho, menos a parte
que lhe toca pela administração dos recursos. Depois de tudo isso, a instituição, que não tem como
assumir o trabalho cotidiano com os sujeitos-fim das verbas estatais, os encarrega a estudantes e
voluntários que, em troca de uma pequena gratificação ou de casa e comida, finalmente irão se ocupar
das crianças e jovens.
Diante dos três tempos da miséria apresentados, a criminalização, militarização e rentabilização,
percebemos uma clara direção e intenção do Estado Penal fabricado no contemporâneo – que nada mais
é que a nova face do poder público para servir, plenamente, aos interesses do mercado. Todas as
preocupações econômico-políticas que deveríamos ter e compartilhar coletivamente são desativadas e
substituídas por preocupações individualizadas contra as pessoas e grupos considerados de risco. Com
isso, tenta-se ocultar as verdadeiras causas da instabilidade e medo generalizados, a saber, a
desestruturação do trabalho e a omissão do Estado nas questões sociais, e travestir seus verdadeiros
propósitos, que poderiam ser resumidas, em pinceladas gerais, nos seguintes pontos: 1) controle da
população pobre e “perigosa”; 2) uso do medo como justificativa para recrudescer as medidas
repressivas sobre toda a população; 3) extração de lucros da pobreza, pela privatização do sistema
carcerário e pela transformação dos pobres em consumidos, e; 4) rentabilização ideológica e política em
um momento no qual o Estado não tem mais nada a oferecer à população em termos de empregos ou
assistência social, ganhando os políticos legitimidade eleitoral pela oferta de mais polícia, justiça
criminal e prisões diante de uma demanda de mais segurança pública.
Esta ordem política usa, predominantemente, as crianças e jovens pobres nesse processo de
depuração e captura social através de sua incessante demonização e perseguição. Eles foram
transformados em carne para canhão para a imposição dos interesses dominantes, e a sociedade, de
modo geral, parece aceitar sem questionamentos essa transação, ávida por soluções rápidas para os
impasses do contemporâneo. Mas essa hipnotização coletiva é possível porque o neoliberalismo
conta com um plano de aparência higiênica e técnica amparado, dentre outros, no discurso totalizante
da mídia, como veremos a seguir.
2.3 – Judiciário, Legislativo e Executivo: a mídia para além do quarto poder
Leo que hubo masacre y recompensa
Que retocan la muerte, el egoísmo
Reviso pues la fecha de la prensa
Me pareció que ayer decía lo mismo.
(Silvio Rodríguez)
Através do instrumento tão poderoso quanto parcial que são os meios de comunicação
em massa, o capitalismo tem se empenhado em encobrir sua coreografia financeira e
corporativa, criando, para tanto, inimigos ideais sobre os quais cairá toda a responsabilidade
pelo medo e a insegurança contemporâneos. na década de 1970, Deleuze (1992) apontava
que, na sociedade de controle em que vivemos, o marketing passa a ser o novo instrumento de
controle social, ditando normas e pensamentos a serem seguidos e criando estereótipos a
serem temidos. Essa relação entre o neoliberalismo e a mídia é tão íntima e simbiótica que
Gilberto Vasconcellos (2006) cunhou o conceito de capital videofinanceiro para nomeá-la. O
sociólogo afirma que existe uma forte junção entre o banco e a mídia,
[...] sendo que no Brasil o vídeo estrutura o capitalismo bancário, no
seguinte sentido: a televisão é um órgão, é uma ponta-de-lança do capital
financeiro, dos interesses internacionais. Então, nós estamos vivendo num
país específico, pois em todo lugar você tem a televisão e o banco. Mas, no
Brasil, o peso do vídeo é absolutamente determinante. Por quê? Porque
somos uma sociedade ágrafa, ou seja, a população não conhece as Letras, e
todo mundo televisão. De modo que a televisão é um agente que es na
infraestrutura econômica. Não é mais aquela superestrutura ideológica que
se pensava antigamente. Não. A televisão é um componente fundamental do
processo político. A televisão faz o Estado; a televisão determina o rumo da
consciência. A televisão determina a atitude da nossa vida. Isso tudo está
estruturado nessa fusão com o banco, com o capital financeiro, sobretudo o
internacional, que é quem banca a mídia. (VASCONCELLOS, 2006, p. 4)
Esse emparelhamento mídia-neoliberalismo-mercado não deixa dúvidas quanto ao que
podemos esperar ver nos telejornais ou nos meios impressos. Toda a programação da televisão
brasileira, desde os noticiários até as novelas, passando pelos programas de auditório, de
variedades especialmente o Linha direta e o Você decide
66
e até mesmo de esportes, está
atravessada por essa aliança. Nilo Batista (2002) mostra como a reportagem esportiva
colabora, sutilmente, para a disseminação das idéias de que quanto mais severas as penas,
melhor é um juiz, constituindo as sanções o instrumento mais adequado para manter a ordem
em campo, e sinaliza o quanto os programas de variedades, além de ocuparem tempo que
poderia ser empregado para outras coisas, adotam cada vez mais formas judiciais (basta ver
66 Programas exibidos pela Rede Globo nos quais participação da audiência, através de ligações telefônicas
para decidir o final, em Você Decide, e através de denúncias por telefone ou internet no caso de Linha Direta.
um programa do Ratinho
67
para entender como funciona), ocupando todos os espaços de entretenimento
com tramas policial-novelescas que vão formando a opinião dos telespectadores.
Baratta (1992), referindo-se à atual política anti-drogas, indica que a criminalização de
determinadas substâncias ou pessoas precede o aparecimento do problema social, e não o inverso.
Da mesma forma, as notícias veiculadas pela mídia não têm por função comunicar os fatos, mas sim
produzir os mesmos, consoante às diretrizes das classes dominantes. Portanto, deveríamos suspeitar da
repentina explosão de notícias que temos presenciado nos últimos anos, nas quais a morte e a violência
se associam, sistematicamente, às crianças e jovens “de/em risco”. Salta aos olhos que existe uma
intencionalidade com a saturação de notícias nessa direção, como aponta Reguera (2001):
Em qualquer época e lugar pode ocorrer o excepcional, por indesejável que seja, mas
essa ânsia por acumular notícias de “menores perigosos” ou “em perigo” não ocorre
por acaso. Novamente, a morte por utilidade. A alguém interessa que desconfiemos
dos jovens e, sobretudo, que sejam eles quem desconfiem de si mesmos.(REGUERA,
2001, p. 12, tradução e grifos meus)
Foi depois, e não antes, da avalanche de notícias atribuindo aos jovens o protagonismo da
delinqüência nacional, no final da década de 1970 na Espanha, que os temores suscitados começaram a
adquirir fundamento e consistência como fato (REGUERA, 1982). A partir de então, teve início a
caçada policial, enquanto os meios de comunicação seguiam enchendo páginas com histórias de jovens
“criminosos” de apenas 15 ou 12 anos, ou de crianças com 7 anos, mostrando sua longa ficha de
encarceramentos como um troféu aos leitores-juízes. O poder “clarividente” da mídia pode ser
encontrado em inúmeras notícias semelhantes a esta, publicada no jornal Zero Hora:
“Do jeito que as coisas andam, está garantida a nova safra de bandidos para os
próximos anos”. A frase, proferida pelo conselheiro tutelar Vitor Alexandre
Bergahann [...] é um reflexo da participação cada vez maior de crianças no mundo do
crime. (ETCHICHURY, 2003, p. 48, grifos meus).
Reflexo? Ou profecia que se auto-cumpre? Nilo Batista (2002) inclui as agências de
comunicação dentro do rol de agências do sistema penal, pois elas ultrapassam uma mera função
comunicativa para assumir o que o autor chama de uma executivização, desempenhando funções muito
mais policialescas do que informativas. Um caso exemplar, relatado pelo autor, é o do Globo Repórter
68
de 30 de março de 2001, no qual o assunto abordado era “os limites entre a paquera e o assédio sexual”.
67 Programa exibido pela rede de televisão SBT, de estilo circense, no qual são levados casos “reais” com o objetivo de
confrontar as partes em forma de espetáculo, contando com o público para opinar e julgar a situação.
68 Programa estilo documentário, emitido pela Rede Globo, que se propõe discutir temas contemporâneos de maneira
pretensamente científica.
Depois de um programa inteiro com imagens, relatos e depoimentos falando do
“constrangimento e muita dor” causados pelo assédio, a repórter sentencia: “a lei ainda está
por vir”. Efetivamente, um mês e meio depois da matéria, a lei 10.224, de 15 de maio de
2001, viria criminalizar o assédio sexual. Um caso, entre tantos outros, de um procedimento
cada vez mais recorrente chamado de criminalização provedora (BATISTA, N., 2002), pelo
qual se determina e classifica como crime comportamentos que não estão previstos em lei.
Seria consideravelmente mais difícil para o empreendimento neoliberal controlar
determinados contingentes humanos sem esse providencial auxílio dos meios de
comunicação, os quais tornam possível que o poder punitivo seja onipresente e capilarizado.
Mas não parece haver dificuldades no projeto conservador: as classes dominantes contam com
os aliados que legitimam, incondicionalmente, seu discurso oficial através de uma “constante
alavancagem de algumas crenças, e um silêncio sorridente sobre informações que as
desmintam” (BATISTA, N., 2002, p. 273). O credo criminológico central da mídia, neste
momento, é a idéia da pena como rito sagrado de solução de todos os conflitos.
No caso da infração juvenil, uma das crenças mais amplamente divulgadas se refere à
redução da idade penal como solução indiscutível para a violência do contemporâneo, usando
de forma eficiente a narrativa de estilo novelesco para fazer prevalecer a opinião das elites
sobre o assunto. Assim, tal como em 1964 um fato pessoal ocorrido com o então ministro da
justiça levou à implementação da FUNABEM/FEBEM, foi com o assassinato do casal Liana
Friedenbach, de 16 anos, e Felipe Caffé, de 19 anos, em novembro de 2003, que a discussão
sobre a idade para imputabilidade penal se reacendeu com força total
69
.
O acusado, um jovem de 16 anos pobre e morador da periferia do Embu, interior de
São Paulo supostamente liderava a quadrilha constituída por mais dois ou três adultos que
participaram na ocorrência, e, portanto, foi responsabilizado pelas duas mortes. Mas o que
realmente provocou rebuliço em torno do assassinato, além desse rapaz ser pobre e ter menos
de 18 anos, foi que Liana pertencia à classe alta da comunidade judaica paulista, razão pela
qual seu pai, o advogado Ari Friedenbach, teve à disposição todos os veículos imagináveis
para encabeçar uma campanha fulminante em defesa da redução da idade penal
70
. Entre outras
coisas, reuniu-se com o Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, para discutir a questão e
pressionar mudanças no Estatuto da Criança e Adolescente quanto às medidas sócio-
69 Para uma análise mais extensa sobre o caso Friedenbach, suas repercussões e o papel da mídia em sua difusão,
ver os artigos de Grassini (2006) e Felinto (2003).
70 Não tenciono diminuir nem desconsiderar o sofrimento dos amigos e familiares dos jovens mortos; a perda de
uma vida é, em todas as circunstâncias, triste e dolorosa. Procuro, apenas, questionar que esses eventos
costumam gerar clamor por punições cada vez mais severas ao invés de levar a uma análise sobre a produção e
exacerbação da violência no contemporâneo.
educativas. O teor das conversas e o espírito de represália aparecem nas entrevistas feitas ao advogado,
veiculadas incessantemente por todos os meios de comunicação durante meses:
O advogado comentou também seu encontro com deputados no Congresso Nacional e
falou ao Terra sobre a proposta de emenda constitucional que criminaliza jovens
infratores a partir dos 13 anos de idade. "Acho que a proposta tem que ser discutida.
Não sei se 13 anos é a idade adequada, mas temos que debater", explicou Ari.
(entrevista ao Jornal do Terra, 26 de novembro de 2003).
"A vida da minha filha tem que ter valido alguma coisa”, afirma. chegada a hora de
tentar fazer desse País um lugar habitável".
Em sua opinião, todo assassino deve cumprir pena em presídio comum, independente
da idade. (...) "Uma criança de sete anos que sabe pegar uma arma e matar tem de saber
cumprir pena. Isso não é loteria. Por que 16 anos? De onde tiraram 16 anos? Se tiver
sete anos e matou tem de pagar por isso", diz Friedenbach.
O menor R.A.A.C., de 16 anos, acusado de matar Liana, deve ser encaminhado à
Febem. A permanência máxima na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor é de três
anos, mas pode ser ampliada quando laudos comprovam que o jovem representa um
risco à sociedade. "Ele não é um adolescente. É um monstro maduro e deve pagar pelo
que fez", afirma Ari Friedenbach. "O mínimo que se espera é prisão perpétua". (Jornal
do Terra, 14 de novembro de 2003).
Nesse discurso, podemos ver perfeitamente as matrizes da mentalidade que tem guiado as
discussões sobre o tema da juventude algum tempo no Brasil, contando com a mídia como grande
incentivadora do pânico irracional com relação aos jovens pobres. Pouco se divulgam os dados da
pesquisa realizada pelo ILANUD (MATTAR, 2003), os quais mostram que menos de 10% do total de
crimes cometidos no país são cometidos por jovens e, desses, a proporção dos que cometem crimes
contra a vida ou hediondos também é pequena. Apesar desses índices, toda vez que algum jovem é
autor de um crime que choca a população, a mídia ampla cobertura e aumenta a impressão de que
eles são as próprias encarnações do mal e autores de número expressivo de delitos. Com isso, a
audiência é direcionada a reagir a essas notícias com veemente repúdio à juventude pobre, clamando
por ações mais duras por parte do Estado.
Não por acaso, no mesmo mês em que ocorreu o assassinato da jovem Liana, a opinião pública
atenta às divulgações dos meios de comunicação respondeu à pesquisa encomendada pela Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB) Nacional: 89% dos entrevistados foram favoráveis à redução da idade
penal, e 52% das pessoas consultadas também concordaram com a pena de morte para crimes
hediondos (MATTAR, 2003). O fato de praticamente nove em cada dez pessoas serem favoráveis à
diminuição da idade para responsabilização penal mostra, por um lado, que o ECA ainda não conseguiu
mudar a lógica existente em mais de 400 anos de história jurídico-político-social do Brasil e, por outro,
que o capital videofinanceiro é poderoso e eficiente na manutenção dessa lógica que impera em nosso
país. Ele conseguiu tal naturalização da equação jovem-pobre-é-igual-a-criminoso que a
constante presença da juventude pobre relacionada sempre à criminalidade nos noticiários
parece o mais nos surpreender. Nos acostumamos a ela, e mais: esperamos encontrá-la
exatamente ali, nas seções policiais.
Para atestar a veracidade das teorias inventadas pelos jornalistas, inúmeros
especialistas são chamados a opinar sobre o assunto, o que acaba por repercutir no teor das
produções universitárias, “remuneradas em seu desfecho por consagradora divulgação, que
revela as múltiplas coincidências que as viabilizaram” (BATISTA, N., 2002, p. 275).
Wacquant (2001a; 2001b) também aponta o peso dos think tanks, patrocinados pelos
detentores do poder, na invenção de teorias para justificar e dar ares científicos às ações
totalmente descabidas e indemonstráveis do Estado penal. Todos os conflitos sociais, através
desse esquema, passam a ser lidos pela chave infracional, com os argumentos a favor
sustentados pelos solícitos especialistas de plantão. A estes, Bourdieu (apud BATISTA, N.,
2002) deu o nome de fast-thinkers
71
, pensadores-rápidos que oferecem fast-food cultural,
alimento cultural pré-digerido e pré-pensado.
Com o decidido propósito de setorializar e demarcar os problemas do Brasil, existe
uma fórmula aplicada a todas as notícias: “não existe delito cometido ou por cometer,
descoberto ou por descobrir, que previamente não tenha sido qualificado como ‘juvenil’”
(REGUERA, 1982, p. 13). Com tanta insistência é feita essa associação, que depois de um
tempo provocará o mesmo terror dizer delinqüência que dizer juventude pobre. Tal
demonização da juventude pobre é uma peça essencial na campanha de atemorização pública,
pois cria o fenômeno que pretende relatar através do convencimento da classe média de que
precisa proteger-se e manter as classes perigosas afastadas. Nessa escalada de medo e
repressão, novas leis parecem tornar-se necessárias, e, não por acaso, vamos encontrar mais de
56 propostas de alteração do ECA tramitando no Congresso Nacional (DE GOIÁS e
REBOUÇAS, 2006), grande parte delas surgidas em 2003 e 2004, após o famoso caso
Friedenbach.
A culpabilização sobre o fenômeno da infração e sobre toda a problemática social
recai, invariavelmente, sobre os próprios jovens “criminosos”, e não sobre os processos que
engendram o surgimento do fenômeno. Diante de tantas manipulações tendenciosas, não é de
se estranhar que as preocupações da sociedade girem em torno do questionamento de que
faltam cárceres, e não de que sobram presos, buscando soluções de acordo com esse
raciocínio:
71 O termo vem por analogia aos fast-foods,que oferecem comida rápida e de pouco valor nutritivo sob um
envoltório atraente e respeitável.
Cinco jovens, com idades entre 18 e 21 anos, fugiram na manhã de ontem no Instituto
Padre Cacique, na Capital [...]. “Com ou sem recursos do Estado, começaremos hoje a
colocação de uma cerca com três metros de altura para que essas situações não se
repitam”, frisou Duarte [então presidente da FASE, antiga FEBEM-RS]. (CORREIO
DO POVO, 2003, p. 16, comentário meu).
Me faz lembrar de nossa ida ao Presídio Central de Porto Alegre para visitar Matias, um dos
jovens que havia participado no Abrindo Caminhos
72
. Ele se envolveu em um assalto à mão armada que
foi intensamente divulgado em todos os meios de comunicação do Rio Grande do Sul, no início de
2005, exagerado em seus mínimos detalhes para transformar o jovem, a quem conhecíamos de nossa
convivência na Procuradoria da República no Rio Grande do Sul, em um criminoso a mais para
preencher a capa dos jornais
73
. Com 18 anos, foi condenado a 36 anos e três meses de reclusão, entre
outras coisas porque, graças à difusão maciça de sua imagem, foi “identificado” por outras pessoas
como autor de outros assaltos, e também porque sua história precisava servir de exemplo para todos os
demais, tanto para mérito da então juíza da 11ª Vara Criminal de Porto Alegre como para glória da
eficácia da mídia em sua tarefa de executivização do sistema penal.
No encontro com o jovem, constatamos a estratégia de culpabilização individual usada pelo
sistema carcerário para desviar a atenção das condições que realmente precisariam ser questionadas:
Conversamos com o capitão que nos recebe, parece não entrar em ressonância com
nosso momento mais introspectivo, curioso, algo preocupado pela conversa que
teremos depois. Em sua lógica policial, sentencia: “existe uma verdade muito profunda
aqui no presídio: preso é preso. Não interessa o que ele foi antes, ou o que ele fez,
aqui dentro é preso e vai ser tratado assim, igual que todos”. Anulação total dos
sujeitos, das diferenças, das histórias, das vidas, dos mundos, ali preso é preso e não
tem conversa. E nós que acompanhamos tantos momentos de Matias, quanto dói ouvir
isso!
Vamos para a sala onde nos encontraremos, uma sala pequena de um dos técnicos.
Nos avisam que um alarme ao lado da mesa por qualquer coisa, que a porta
permanece aberta todo o tempo e que não podemos ter nenhum tipo de contato com o
“apenado”. Tínhamos levado duas mensagens do setor onde fez estágio na PR/RS,
com escrita dos servidores mandando abraços e muito carinho, que lembravam sempre
dele. “Não podem entregar”, avisa o capitão. Podemos ler?”, ainda tentamos. “Não
podem ler nem mostrar. A gente nunca sabe se o apenado vai ter uma reação com
isso, ficar mal, entrar em surto. Não podem ler”. Indignadas mas impotentes,
dobramos os papéis e deixamos por ali antes de sair. Caminhamos lentas pelo
corredor, imaginando como estará, como nos sentiremos, como se sentirá, como será a
conversa. Nos sentamos nas cadeiras designadas, a uma boa distância da mesa que nos
separa da outra cadeira. As três, automaticamente, aproximamos as cadeiras da
72 A idéia de ver Matias surgiu a partir dos contatos feitos com os egressos do projeto para a realização do vídeo para esta
pesquisa. Desde a notícia de sua prisão a equipe havia levantado essa possibilidade, mas foi o acompanhamento dos
egressos que criou a oportunidade de contatar o presídio com uma proposta formal para realizar a visita. Fomos ao presídio
a prof. Gislei Lazzarotto, a então aluna de graduação Daniela Lindenmeyer, e eu.
73 Nos deparamos com um dos grandes paradoxos no trabalho com jovens privados de liberdade: um jovem que cantou,
criou músicas, construiu relações de afeto e pertencimento dentro do Abrindo Caminhos, ao mesmo tempo habita forças de
morte e é tomado na formação social como forma-indivíduo-criminoso, o que nos toma também como equipe, levando a um
dos servidores, até então participando ativamente, a afastar-se.
mesa.... logo depois entra Matias, mãos para trás com algemas, roupas novas
pra nos receber, rosto entre a seriedade e o sorriso, ainda sem saber como
reagir. Olhos que se encontram, acho que os quatro nos reconhecemos em
tantas coisas, vidas e mundos se cruzando num instante, quanta coisa dita
sem falar! (Diário de campo II, 31 de agosto 2005).
Em meio a todas as mudanças drásticas de vida que implica um encarceramento,
privado de liberdade, com a distância dos familiares, com uma condena estipulada no dobro
de anos que viveu, em uma ala com janelas tapadas apenas com papelões para tentar
impedir a entrada do duro frio do inverno gaúcho, vivendo nas condições totalmente
insalubres do presídio, a equipe de psicologia é proibida de entregar ou ler uma mensagem de
afeto e de apoio porque “a gente nunca sabe se o apenado vai ter uma reação com isso, ficar
mal, entrar em surto”. Como se a carta fosse detonar uma “reação”, um “surto”, e não a brutal
realidade na qual vive há alguns meses, na prisão, ou todas as explorações a que foi submetido
antes, em sua trajetória de vida. Sim, a produção da histeria punitiva funciona: uma sociedade
assustada se torna ofensiva e, a seguir, repressiva contra aquilo que a atemoriza (REGUERA,
1982). Bastará exacerbar a história de alguns jovens determinados para invadir os espaços
com repressões mais ou menos sutis.
Visionário dessa lógica imperialista do capital videofinanceiro foi um estadista do
século XX, o qual afirmou que “quando a propaganda conquistou uma nação inteira para
uma idéia, surge o momento asado para a organização, com um punhado de homens, retirar as
conseqüências práticas” (apud BATISTA, N., 2002). Tal frase, que bem poderia ter sido dita
por qualquer dirigente de uma grande empresa de comunicação, foi proferida por Adolf Hitler,
mostrando que pouco deixa a desejar o Estado penal em que vivemos aos regimes totalitários
de décadas anteriores, tanto no autoritarismo em que se baseia quanto no número de mortos
que deixa em seu caminho.
Não evidência alguma de que tenha havido aumento da violência na infração
juvenil, nem evidência de que as penas sejam efetivas para reduzir os supostos crimes,
muito menos de que a redução da idade penal sirva para alguma coisa, a não ser para
encarcerar cada vez mais jovens e crianças pobres (OLIVEIRA, 2001). Por que, mesmo assim,
movidos pelo medo e pela insegurança laboral, aceitamos pagar uma ordem política com as
vidas de crianças e jovens cujo principal erro parece ser o de nascer em bairros
estigmatizados? Será essa a única forma que temos de enfrentar as incongruências e
sofrimentos impostos pelo modelo neoliberal? Existem inúmeros movimentos e pessoas, por
todo o mundo, que apostam pelo NÃO a essa pergunta, mostrando outras possibilidades que
não a militarização das relações sociais. Não está tudo dominado, como nos querem fazer
pensar. A psicologia, e qualquer outro espaço que se proponha a tal, tem força suficiente para gerar um
processo de quebra na aparente univocidade do mundo e dos sujeitos, e o trabalho junto a jovens
autores de infração pode e precisa ser feito de modo a co-produzir essa ruptura. Sobre uma
experiência de encontro da psicologia com a juventude em cumprimento de medidas sócio-educativas
nessa perspectiva falarei no próximo capítulo.
III – EU ACREDITO É NA RAPAZIADA
Eu acredito é na rapaziada
que segue em frente e segura o rojão
Eu ponho fé é na fé da moçada
que não foge da fera e enfrenta o leão
Eu vou à luta com essa juventude
que não corre da raia a troco de nada
Eu vou no bloco dessa mocidade
que não tá na saudade e constrói
a manhã desejada
Aquele que sabe que é negro
o coro da gente
E segura a batida da vida
o ano inteiro.
(Gonzaguinha)
A discussão sobre a juventude criminalizada diz respeito ao modo de subjetivação do
contemporâneo e tem maior gravidade do que possamos perceber. Falar da infração juvenil não é falar
de um fato isolado, muito pelo contrário. É analisar como funcionamos enquanto sociedade, como
produzimos infâncias e juventudes desiguais, como criminalizamos os pobres, como organizamos o
mundo do trabalho, do ensino, da cultura, como judicializamos as relações entre pais e filhos, homens e
mulheres, vizinhos e colegas, e também pensar como podemos construir redes solidárias que somem
esforços para lidar com os tensionamentos que o projeto neoliberal nos coloca. Reconhecer que a
infração é fabricada socialmente nos leva a implicar-nos de forma efetiva com uma não reprodução
desse modelo e com a criação de outras realidades e sujeitos. Uma clínica
74
da infração juvenil,
portanto, não se limita a uma intervenção com jovens privados de liberdade, ela opera como prática de
enfrentamento das forças de imobilização e captura que nos atravessam a todo momento.
A construção desta clínica-política
75
precisa tomar em conta os atravessamentos analisados no
capítulo anterior, considerando-os inseparáveis da produção da infração juvenil e, portanto,
inseparáveis do trabalho com os jovens em cumprimento de medida sócio-educativa. Essa
inseparabilidade está baseada na diferenciação que Guattari (e ROLNIK, 1986) estabelece entre
indivíduo e subjetividade, afirmando que o modo de ser indivíduo é apenas um dos modos de
subjetivação possíveis, cabendo a cada época e sociedade colocar em funcionamento alguns desses
modos ao invés de outros. Dessa forma, a subjetividade “não é passível de totalização ou de
centralização no indivíduo. [...] a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do
social” (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 31). A subjetivação, ou produção de subjetividade, é um
processo permanente e interminável, ocorrendo não apenas no campo individual, mas no campo social
e material, fazendo com que seja impossível tomar por separado um sujeito ou um fenômeno dos
componentes sociais que o atravessam e revestem.
Entendida assim, a subjetividade refere-se ao “conjunto das condições que tornam possível que
instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-
referencial” (GUATTARI, 1990b, p. 7), estando composta por uma série de elementos individuais,
coletivos e institucionais que se cruzam nesse ponto que forma a interioridade. Isso não significa que
não haja algo que seja da ordem do sujeito, de seu corpo. Não apenas história, contexto, sócius,
senão seríamos apenas determinados pelo ambiente e não haveria a possibilidade de inventar a partir
disso. Existe, também, o que Deleuze e Guattari (1996) chamam de uma pequena máquina privada, ou
74 Clínica clinamen, enquanto acolhimento e produção de desvios, como referido no primeiro capítulo.
75 A proposta dessa clínica-política se aproxima do que Guattari chama de ecosofia ético-político-estética, “um movimento
de múltiplas facetas que instaura instâncias e dispositivos ao mesmo tempo analíticos e produtores de subjetividade”
(GUATTARI, 1990a, p. 76-77, tradução minha).
seja, aquilo que contorno ao processo de subjetivação e que fala de uma história singular,
de uma ontologia. Se caíssemos no extremo de afirmar que a infração ocorre exatamente da
mesma maneira para todos, ou que ela tem o mesmo sentido, estaríamos achatando todas as
diferenças que configuram cada vida como singular, cada evento como acontecimento. Esse é
um mecanismo recorrente entre os que lidam com estes jovens, um movimento de patrolar a
diversidade – “temos a tendência de achar que os jovens são todos meio parecidos, como se as
histórias fossem as mesmas” (Diário de campo II, 20 de julho 2005).
O conceito de subjetivação é central para esta clínica porque introduz uma ruptura com
o pensamento predominante na psicologia de lidar com interioridades, essências, estruturas.
Quando pensamos no jovem infrator no contemporâneo a partir dessa concepção de sujeito,
temos de reconhecer que não se trata de um fenômeno isolado e atribuível a um ser individual,
mas sim de uma produção datada historicamente e que nos mostra uma forma de organização
e funcionamento sociais. Vendo além do esquema jovem-indivíduo, percebemos o jovem não
como identidade fixa, mas como inúmeras linhas (históricas, midiáticas, econômicas,
tecnológicas, ecológicas, entre outras) que se entrecruzam e fazem emergir um território
existencial. O jovem não é, então, apenas infração, embora essa linha esteja presente nele e
faça parte de sua história. Não se trata de negar esse elemento, em uma tentativa higienista de
retocar sua trajetória, mas de reconhecer que o jovem comporta, também, muitas outras forças
em si, forças de afeto, de vida. É na produção de outros territórios, a partir dessas forças, que
apostamos como intervenção, trabalhando para “a criação, a invenção de novos universos de
referência” (GUATTARI, 1990b, p. 5), ou para a subjetividade maquínica
76
, tudo o que
contribua para a criação de uma relação autêntica com o outro. Essa prática clínica, enquanto
ruptura molecular, torna-se política e constitui uma prática de enfrentamento porque produz
bifurcações imperceptíveis mas capazes “de subverter a trama das redundâncias dominantes, a
organização do ‘já classificado’”, incidindo na “degenerescência do tecido das solidariedades
sociais e dos modos de vida psíquica que convém literalmente re-inventar” (GUATTARI,
1990b, p. 16).
Quando falo nesta clínica-política não estou propondo seu exercício para os
profissionais-especialistas ou para os autorizados pelos órgãos oficiais para exercer uma
“atividade clínica” ou “terapêutica”, muito pelo contrário
77
. A “interpretação” não é da alçada
de uma pessoa ou de um grupo, ela pode ser feita por qualquer um que esteja “em condições
76 Ver Guattari (1993a).
77 Tosquelles fala da importância da mistura dos usuários de serviços psiquiátricos com todo tipo de pessoa, não
apenas com os especialistas. Ele defende a participação, na equipe, de padres, camponeses, artistas, etc, pois
estas pessoas mostram “uma posição ingênua perante o doente, ao contrário das que passaram por uma
deformação profissional” (GALLIO e CONSTANTINO, 1994, p. 99 ).
de reivindicar, num dado momento, por exemplo, que se organize um jogo de amarelinha, justo quando
tal significante se tornará operatório ao nível do conjunto da estrutura” (GUATTARI, 1981, P. 95),
sendo conveniente livrar a escuta de todo preconceito psicológico, sociológico, pedagógico ou mesmo
terapêutico. Guattari e Rolnik (1986) afirmam que absolutamente todos trabalhamos na produção social
de subjetividade, não apenas os chamados trabalhadores sociais. São as misturas e intercessões entre
sujeitos e saberes que podem produzir a diferença, e todos os que trabalham com os jovens podem
operar nesse sentido. A presença da psicologia deve servir como dispositivo para fazer a palavra e os
conhecimentos circularem de modo que a equipe que convive com o jovem possa se apropriar desse
papel subjetivador que, inevitavelmente, ocupa.
Em uma correspondência entre dois servidores participantes no Projeto Abrindo Caminhos, na
qual discutiam sobre o funcionamento das oficinas
78
, podemos ver a invenção dessas intercessões em
pleno processo:
Onde está o teu espírito pós-moderno???!!! A onda agora é a tal
transdisciplinariedade, uma tal salada de fruta que leva, segundo dizem, a algum lugar.
Qual o problema de uma pitada de poesia na física quântica, ou então dois tabletes e
meio de tragédia grega na lei dos fluidos??!! É a revolução, companheiro!!!!
P.S. O que diz mesmo aquele tal de Guattari??? Essa pergunta é para as gurias da
psicologia. (Diário de campo I, 05 de fevereiro 2004)
Nossa implicação enquanto vetor de subjetivação heterogenético é necessária porque a
subjetivação capitalística
79
foi manufaturada para proteger contra qualquer intromissão que possa
perturbar a opinião dominante, procurando evitar ou gestionar qualquer processo de singularização e de
produção de diferença. Essa subjetivação insiste em individualizar, culpabilizar, reduzir tudo e todos a
um denominador comum, de acordo com o princípio de equivalência do capitalismo, e também procura
situar o conjunto das relações sociais sob o domínio das máquinas policiais e militares (GUATTARI,
1990a), transformando todos em guardiães e delatores em nome do poder instituído. A própria
psicologia é permanentemente convocada a ocupar esse lugar no continuum psi-jurídico, como
podemos ver no trecho da entrevista ao deputado federal (PMDB-DF) e coronel da PM reformado,
Alberto Fraga:
Zero Hora: Quais alterações o senhor defende (para o ECA)?
Alberto Fraga: O ponto da inimputabilidade. Ela está muito acentuada e motiva o
adolescente a praticar delitos. Sou contra a questão do limite de idade. Se uma pessoa
78 Naquela período, as oficinas consistiam em aulas de reforço de matérias escolares, a pedido dos jovens que estavam no
projeto naquele momento. Diversos servidores da PR/RS manifestaram interesse em participar dessa forma, e formou-se um
grupo semanal opcional para os jovens.
79 Termo proposto por Guattari (1990a).
cometer um crime e for constatado que tinha conhecimento, não tem porque
não ser julgada.
ZH: Mesmo crianças?
AF: Mesmo menores de 12 anos.
ZH: Mas elas poderiam vir a cumprir pena?
AF: Sim, poderiam.
Que profissionais formariam essa junta?
AF: Psicólogos, pedagogos, psiquiatras, assistentes sociais, promotores da
infância. (Zero Hora, 16 de março de 2003)
Suficientes agentes oficiais existem para esquadrinhar a população, para manter
camadas inteiras sob controle e insistir na punição como ação de primeira escolha, como para
que ainda nos somemos e eles. Será que, desde a psicologia, o que temos a oferecer é uma
repetição incessante da normatização jurídica? Não haveria algo de singular em nossa
intervenção, embora não exclusivo dela, no trabalho com estes jovens? Por que deveríamos
seguir o paradigma da avaliação, acusação, medo, desconfiança, ocupar o lugar de
psicotiras
80
? Não caberia à psicologia um acolhimento para gerar espaços coletivos de análise?
“Julgar é a profissão de muita gente e não é uma boa profissão”, nos alertam Deleuze e Parnet
(1998).
Fomos vislumbrando uma possibilidade através dos acontecimentos no cotidiano de
nosso trabalho, os quais nos fizeram questionar sobre nosso papel dentro do esquema
desenhado pelo Estado penal:
No fim do dia de ontem, na hora de ir embora me dou conta de que falta
dinheiro na minha carteira. Decido, e combino com Gislei, chamar os três
jovens hoje para conversar, colocar a questão, dizer o que houve e colocar a
discussão na roda. Eles reagem dizendo que não têm nada a ver com isso,
que deveriam levar a polícia e chamar o procurador pra conversar.
Depois da conversa, fico pensando como a forma predominante de se tratar
do roubo é através do inquérito policial, a possibilidade de diálogo e
produção a partir do fato ficam deixadas de lado, porque preferem não
enfrentar o desconforto que acompanha o assunto... "é um assunto
individual", diz o procurador, remetendo a algo do particular e não do
agenciamento... (Diário de campo I, 08 de abril 2003)
Fernanda
Andei pensando no que aconteceu na semana e na reunião que terás com os
jovens e procurador. Penso que é importante refletir sobre o lugar que
estamos ocupando. Analisar o roubo não é uma investigação policial (pelo
menos para nós não é), como parece que eles colocaram (chamar a polícia,
etc), mas pensar neste acontecimento, na própria situação que já ocorreu na
outra semana
81
, e analisar que os efeitos de um fato repercutem para todos.
80 No maio de 68, os “psi” e os trabalhadores sociais em geral eram chamados de tiras, pois ocupavam uma
posição de reforço dos sistemas de produção da subjetividade dominante (GUATTARI e ROLNIK, 1986).
81 Um dos jovens foi desligado do estágio por duas situações de roubo, uma dentro e uma fora da PR, o que
provocou muitas discussões na equipe quanto ao modo de proceder.
A psicologia não tem que analisar culpados, mas sim refletir sobre como este fato
pode repercutir na instituição e em especial para os próprios jovens. Nosso
compromisso é com a possibilidade que este espaço na PR oferece e com o desejo
deste jovem. Se eles se envolveram com situações de roubo, o quanto podem ajudar
a pensar porque isto ocorre, em que momento e como é melhor agir neste tipo de
situação. Que relação de confiança se construiu até aqui para viabilizar esta troca?
Acho que é importante cuidar para não ficarmos na posição de acusação, para
pensarmos numa posição em que todos são responsáveis por este processo.
Gislei. (trocas de e-mail em Diário de campo I, 08 de abril 2003)
Usar os acontecimentos como dispositivos de análise tem se mostrado uma estratégia
importante para escapar ao interrogatório como fórmula ideal de solução de problemas. Mas sabemos
que nem sempre é fácil romper com o automatismo do funcionamento policialesco, especialmente com
estes jovens que costumam suscitar sentimentos de medo e, conseqüentemente, uma atitude
fiscalizadora. Em tempos nos quais as relações estão pautadas pela desconfiança, renunciar ao
tratamento inquisitório é percebido como fraqueza, como erro:
Vítor não veio hoje, a reação foi bastante na lógica da punição, querendo saber por
que o jovem não veio, mas com certo desconforto, se sentindo como usado.
Isto é importante pra se pensar o que gera nas pessoas quando os jovens "desperdiçam
a chance que lhes é dada” (sic)... voltamos às questões do bonito ajudando o feio,
como diziam os jovens na CORAG... quando eles faltam, isto gera um sentimento de
raiva, frustração, "mas eles não querem nada com nada", sentem-se "trouxa" por ter
confiado e acreditado... como trabalhar isto numa outra lógica?? (Diário de campo I,
04 de fevereiro 2003).
Eles disseram que na verdade eles são bem flexíveis com relação às faltas dos jovens,
mas que ficam com sentimento de desconforto, de estar sendo passado para trás, que
o jovem esteja mentindo para ele, “me fazendo de bobo”... (Diário de campo I, 25 de
fevereiro 2003)
Quanto medo temos de emprestar-nos para o contágio com o jovem, como se pudéssemos
perder algo irrecuperável nesse contato. Efeitos da subjetivação capitalística, que condena ao fracasso a
todos os “otários” que se deixem passar para trás e exalta os “espertos” que souberem se proteger.
Como se não nos emprestássemos inúmeras vezes aos amigos, à família, aos companheiros, e como se
isso não fosse fundamental para construir uma relação de confiança e respeito. Por que, então, com os
jovens em cumprimento de medidacio-educativa seria diferente? Por que a eles reservamos a frieza,
o castigo, a distância? São os próprios jovens que nos apontam uma direção, como vemos na fala de
Cíntia
82
em sua visita à PR/RS para um encontro com os estagiários de direito e com o então
procurador-chefe:
82 Participou do Programa na CORAG, em 2001, no grupo que foi ao Quebec. Por sua experiência na viagem, por sua
facilidade para falar em público e pela relação que mantenho com ela desde então, foi convidada para falar da infração
juvenil desde seu ponto de vista.
Ela falou da importância de confiar nos jovens, disse que a confiança faz
diferença, e que essa foi a principal marca do Programa na CORAG e da
viagem ao Quebec. Depois, conversando com ela na sala, completou com
duas coisas que me deixaram pensando até agora:
- que, depois de um tempo, para eles roubar é algo incorporado, fazem às
vezes sem nem se darem conta, só conseguem pensar depois. A frase que ela
disse foi “pra eles, não roubar é difícil, assim como é pra vocês terem eles
na empresa”.... !!!!!! Fiquei pensando nos medos: se nós temos deles, eles
têm muito mais de nós. Poder dimensionar o que é para eles a relação com a
infração ou a droga através dessa medida que me é conhecida, nosso medo,
foi algo que não tinha me ocorrido.
- quando acontecem essas situações de roubo, não lidar de modo punitivo
nem ser acusatória, e sim tentar mostrar ao jovem que ele não precisa
daquilo, que acreditamos e confiamos nele e que ele pode fazer as coisas de
outra forma, não precisa roubar. (Diário de campo I, 14 de julho 2003)
Algo semelhante diz alguém que dedicou trinta anos de sua vida à convivência com
crianças em situação de rua, com jovens autores de infração e com imigrantes ilegalizados:
Enrique [Martínez Reguera] falou que é necessário que nos deixemos ‘usar’,
que a realidade é dura o suficiente e cabe a nós criarmos uma realidade
subjetiva diferente, que possa contrapesar o que existe no mundo. Também
falou da importância da utopia e da fantasia no trabalho com eles. Falou da
importância de estar sempre ao lado dos jovens, incondicionalmente, que
saibam que estamos apoiando, mesmo quando for necessário dar limites.
(Diário de campo II, 26 de julho 2005).
Ele insistiu na importância de trabalhar com os jovens sem servir ao
sistema!!! Que nossas ações sejam sempre com e pelos jovens, e não para as
ideologias dominantes, para o poder, para o hegemônico. Isto faz com que
realmente haja alianças, os jovens percebem quando nosso trabalho é para
avaliar, julgar, condenar, etc, e quando está a seu lado. (Diário de campo II,
29 de julho 2005)
A experiência dos últimos cinco anos tem comprovado que a abertura ao encontro com
os jovens é o que torna possível a produção de novos territórios existenciais, para eles, para
nós, para a psicologia, para a sociedade. Se a lógica policial se preocupa com causas para
calcular os castigos, nós estamos preocupadas com os efeitos, para então compor a
intervenção. Não nos interessa pensar quais motivos ou razões do passado levaram o jovem a
fazer determinada coisa, empreendendo uma interminável busca pela origem para reagir a
partir disso. O que procuramos nos perguntar é que efeitos podemos produzir com nossa ação
diante do encontro com o jovem, que racionalidade queremos instaurar com nosso trabalho, e,
a partir disso, fazer uma escolha política e implicada.
Me dou conta que cada vez me preocupo menos com o passado dos jovens,
não sei a história de nenhum dos que está ali, não conheço nenhum laudo ou relatório
judicial. Não é um esquecimento de que são da FASE no sentido de não ver, também,
a infração como uma das linhas que compõem esta vida. Mas é, como disse Joel no
outro dia, apostar nas outras linhas, escolher, em cada encontro, o que queremos ver
das linhas do agenciamento, e o que produzimos ao escolher apostar em uma e não em
outra. Se a realidade não está dada, como acreditamos, se produzimos constantemente,
se a vida é criação, agenciamento de desejo pra produção do real, que diferenças faz
compor com o jovem de uma forma ou de outra? (Diário de Campo II, 21 de julho
2005)
Não se trata de uma apologia ao crime, nem à violência, muito menos à morte. É uma aposta
pela vida, pela solidariedade, pela cordialidade e, por isso, uma aposta por tantos jovens aos que a
sociedade desqualifica ao sentir-se ameaçada sem saber de onde vem a ameaça. Trata-se de inventar um
caminho diferente na forma de lidar com a infração juvenil, pois demos crédito demais ao caminho
penal nas últimas décadas, e o resultado foi a expansão de sua incidência para os mais diversos
ambientes e a perpetração da criminalização das classes pobres.
Algum especialista, versado em algumas linhas da psicologia e pedagogia, poderia argumentar
que estes jovens precisam de “limites”, pois não introjetaram “a lei” ou não contaram com uma “função
paterna” eficiente e, por isso, seria contraproducente essa aparente permissividade. O problema é que
essa imposição de limites costuma nascer da arbitrariedade de alguém de acordo com seus interesses,
freqüentemente confundindo limite com prisão. As normas devem ser sempre ponto de chegada, e não
de partida. Duvido seriamente que possamos “resolver as sutilezas pedagógicas [e subjetivas, sociais,
históricas, políticas] com portas blindadas” (REGUERA, 2002, p. 194, parêntese e tradução meus).
Apesar da insistência para que assim o pensemos, o jovem criminalizado não é nosso inimigo.
Por isso, eu acredito mesmo é na rapaziada, como canta Gonzaguinha, e acredito na potência
que essa escolha carrega e nos efeitos que produz. Se tivesse de atribuir à psicologia e a todas as
profissões alguma função no contemporâneo, diria que é o de ser utópica
83
, de permitir-se inventar
outras lógicas, de funcionar dentro do paradigma estético que propõe Guattari (1993b), ou seja, o
paradigma da criatividade. Precisamos dessa invenção, e apenas com novas ferramentas podemos criar
novas realidades. Por isso, aos que julguem que a proposta é tendenciosa, respondo afirmativamente:
não conheço nem acredito em alguma prática que não o seja. Como nos canta Sílvio Rodriguez (1978),
é preferível falar das coisas impossíveis, porque do possível se sabe demais.
Existem muitas experiências com jovens em cumprimento de medida sócio-educativa, tanto no
Brasil como pelo mundo, com propostas interessantes sendo feitas de diversas maneiras. O que
proponho neste capítulo não é, nem pretende ser, um modelo único, nem o melhor, nem sequer um
83 Guattari (1993b) também refere a necessidade de refundar e não de reconstruir utopias, com micropolíticas de
intensificação das subjetividades.
modelo. É próprio da subjetivação capitalística apresentar, incessantemente, modelos e
fórmulas a serem seguidas, aplicando-as de forma global e homogênea, sem levar em conta as
diferenças de cada contexto. Deleuze e Guattari nos apontam para o sentido da esquizoanálise:
“faça rizoma, mas você não sabe com o que você pode fazer rizoma, que haste subterrânea irá
fazer efetivamente rizoma, ou fazer devir, fazer população no teu deserto. Experimente.”
(DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 35). O que compartilho neste capítulo é apenas um relato
cartográfico sobre esse povoamento de um deserto, apresentando uma forma de trabalhar que,
com suas sinuosidades pelo caminho, tem mostrado tanta força quanto riqueza e beleza.
3.1 – A vida é a arte do encontro
Para poder iniciar um caminho em comum com uma criança [ou jovem], teremos
de iniciá-lo desde seu ponto de partida, não desde o nosso. Conseguir influir em
sua vida deve iniciar-se em um encontro tal que sua maneira de sentir-se
confortável e a nossa comecem por ser compatíveis.
(Enrique Martínez Reguera)
No contato com jovens autores de infração, muitas vezes tende-se a considerar que, se
algo deve ser mudado, esse algo é o jovem, é ele quem precisa se adaptar e modificar seu
comportamento. Esquecemos que toda e qualquer produção, seja de objetos ou de sujeitos, é
essencialmente relacional, isto é, os termos da relação não existem independente dela, mas são
fundados por ela. Reguera (2002) enfatiza que as eventuais dificuldades no trabalho com os
jovens devem ser vistas, sempre, como relacionais, e não como pertencendo a uns ou a outros
individualmente. Por isso, acredito que para trabalhar de forma a construir, efetivamente, uma
relação com o jovem, e com a vida, é necessário que os envolvidos tenham disponibilidade
para deixar-se afetar, porque a única forma de transformar a realidade é transformando a nós
mesmos, nossos preconceitos, nossa rigidez e formas identitárias fechadas, nossa impaciência,
nossas exigências, nossos medos.
Uma primeira mudança que poderíamos considerar seria não assumirmos o papel
cristalizado nos que têm se instituído os especialistas, buscando exercitar outros tipos de
aproximação. é possível um contato com o jovem quando ele esquece que somos
psicólogos, pedagogos ou assistentes sociais, quando saímos do lugar hierarquicamente
superior de especialista:
Hoje foi nossa primeira entrevista para o vídeo sobre o Abrindo Caminhos
84
, foi muito
bom!!! Íamos fazer na sala de reuniões mesmo, mas surgiu a idéia de ir para o terraço,
e acabamos todos subindo o equipamento, cadeiras, etc, pra fazer em cima. A vista
realmente merece!
Daniel e Roberta foram a primeira equipe, um filmava e o outro entrevistava. Daniel
esteve totalmente solto e à vontade para entrevistar, Roberta também super bem com a
filmadora. Os demais ficamos por perto ajudando no que precisava, tapando o sol,
levando e trazendo coisas, uma equipe e tanto!
No final, sugeri que fizessem algumas imagens de todo o grupo, para colocar em
algum momento do vídeo. Daniel foi apresentando todos um por um, e quando chegou
em mim, disse esta é nossa psicóloga e amiga, Fernanda Bocco”. Achei ótimo! Que
bom poder ocupar esse lugar, e que o afeto seja o que paute nossa relação!!! (Diário de
campo II, 04 de agosto 2005)
Essa amizade de que fala Daniel não consiste em transformar-me em igual e eliminar as
diferenças, nem significa que eu estar de acordo com tudo que partir deles por temor a perder sua
apreciação. Trata-se precisamente de habitar a diferença como modo de relação, sendo a amizade uma
conexão possível não apenas entre um ser e outro, mas principalmente com planos de singularização e
de criação que nos atravessem aos dois. A esse lugar que não é nem pura verticalidade nem simples
horizontalidade Guattari (1981) chamou de transversalidade, constituindo-se de uma comunicação
máxima que se efetua entre os diferentes níveis e nos diferentes sentidos. Quanto maior o coeficiente de
transversalidade, maior passagem entre esses níveis e maior autenticidade na relação.
Para que isso ocorra, é preciso dispor-se a “compartilhar os riscos e assumir o compromisso
direto não burocrático nem institucional de um ‘encontro pessoal’” (REGUERA, 1982, p. 107), o
qual não é privilégio de alguma área em particular e sim possibilidade de todo sujeito que optar por
fazê-lo. Tosquelles (apud GALLIO e CONSTANTINO, 1994) afirma que não muita necessidade de
um alto coeficiente intelectual para fazer parte de uma equipe, mas sim de uma outra qualidade
indispensável: a de saber viver, mudar, poder fazer trocas, comércios com os outros.
Assim como não sujeitos específicos, também não um lugar específico onde o encontro
necessariamente tenha de ocorrer. Todo lugar, pela sua diferenciação, é suscetível de se tornar lugar de
encontro ou lugares, sempre no plural –, e a possibilidade de construir esses espaços juntos é uma
condição indispensável para que haja uma clínica-política. O que o jovem pede, “e que você pode
oferecer é o seu percurso, ou o nosso percurso como equipe, naquilo que chamarei de sabedoria, a
arte de viver” (TOSQUELLES, apud GALLIO e CONSTANTINO, 1994, p. 111).
Para construir espaços em parceria com os jovens privados de liberdade, precisamos deixar de
84 Ver o Anexo I sobre a proposta desse trabalho.
lado o desmesurado poder que detemos sobre ele. Enrique Reguera nos aponta que, na maioria
dos trabalhos com populações marginalizadas, os especialistas costumam “jogar em casa”, ou
seja, preferem atuar no terreno seguro dos espaços que são familiares na PR/RS, na
CORAG, nos edifícios das ONGs, etc. Dessa forma, “eles [os jovens] não estão em seu
território, estão no nosso, então sempre partimos com a vantagem de que o jovem se sinta
inibido em nosso território. Nós seguimos tendo o poder, representando algo mais alto na
hierarquia” (Diário de campo II, 29 de julho 2005), o que termina por demarcar, desde o
princípio, em que moldes a relação pode se dar. Em um primeiro momento, então, o autor
aponta que talvez seja mais importante falar de nós mesmos, oferecer nossa história, do que
realizar um inquérito sobre a vida do outro, o qual se encontra em uma atitude defensiva e
desconfiada pelo possível uso das informações faladas naquele espaço. Partir do que se tem a
compartilhar pode constituir uma via efetiva para que algo se produza entre os dois, pois cria
um território de encontro ao qual o jovem pode ir levando elementos de seu universo.
Ouvimos, com demasiada freqüência, que os sujeitos com quem trabalhamos são
“criminosos” e “irrecuperáveis”. O dizem os próprios técnicos que trabalham com eles, como
se não fosse essa uma declaração explícita de como produzir a irrecuperabilidade. Se
pensamos que o transformação possível, então nada resta a ser feito, e a própria relação
que estabelecemos se encarrega de cumprir com esse diagnóstico-profecia. Mas se, ao
contrário, trabalhamos apostando no que podemos criar, produzimos os dispositivos
necessários para que isso ocorra. Isso porque o que caracteriza um encontro, ao menos no
sentido aqui proposto, é que ele se fora do tempo cronológico, causal, caracterizado pela
sucessão de instantes. O encontro e seus efeitos se situam no tempo Aion (DELEUZE, 1974),
tempo da intensidade e de uma outra temporalidade, na qual o passado e o futuro insistem ou
subsistem no tempo. Nessa lógica, podemos pensar em transformação e criação
independentemente do tempo cronológico de um encontro
85
, constatando efeitos com os
jovens ditos irrecuperáveis em apenas alguns meses de convivência.
O tempo institucional transcorre de forma muito diferente ao tempo da vida,
especialmente ao tempo de vida destes jovens. Se funcionássemos no tempo burocrático, que
é cronológico, deixaríamos passar o tempo da intensidade, do presente, único tempo no qual
podemos intervir, e único tempo no qual pode ocorrer o encontro. Do futuro não se sabe, pois
pode haver progressão da medida e conseqüente volta para casa, às vezes para outras cidades,
os técnicos da FASE podem decidir colocar o jovem no isolamento, ou, como infelizmente
vemos ocorrer, o jovem pode não estar vivo na semana ou no dia seguinte. Portanto, é
85 A experiência da Casa de Inverno (LANCETTI, 1994) também afirma a possibilidade de intervenções
potentes em períodos relativamente curtos e com final previamente determinado.
importante uma presença no presente, habitar esse presente, e não centrar-se no passado ou no futuro.
Mas isso não significa agir no imediatismo nem de forma sobreimplicada (COIMBRA e
NASCIMENTO, 2004), embora esse sentimento muitas vezes nos invada:
Sinto que não dou conta do que estão demandando... por outro lado, tenho que dar
conta? Por que essa sensação de “insuficiência” no sentido de que as coisas parecem
fugir pelas beiradas? Será que é o sentimento do limite? (Diário de campo I, 12 de
março 2003)
Temos de estar muito atentos e medir em que grau estamos contaminados pelos artifícios do
Capitalismo Mundial Integrado
86
, pois o primeiro deles é esse “sentimento de impotência que conduz a
uma espécie de ‘abandonismo’ às suas ‘fatalidades’” (GUATTARI, 1981, p. 224). Quando se trabalha
com situações limite ou com grupos criminalizados ou estigmatizados, tal sentimento costuma ser
muito freqüente, pois nos deparamos com uma série de restrições físicas, espaço-temporais, da rede,
da equipe que se manifestam como angústia por não poder seguir. Se, por um lado, é necessária e
desejável uma afetação com o que fazemos e com os sujeitos com quem trabalhamos, por outro
precisamos transformar isso em potência de luta, senão o sentimento de impotência serve apenas para
amarrar e impedir que vejamos o que efetivamente está sendo feito e que outros caminhos menos
tradicionais podem ser instaurados. No caso do trabalho com a infração juvenil, é tão recorrente esse
abandonismo às fatalidades que costuma haver grande rotatividade de técnicos e demais trabalhadores
envolvidos, engolidos por uma máquina totalitária que insiste em mostrar que nada é, nem será, o
bastante.
Com o referencial da esquizoanálise, no entanto, podemos romper com essa eterna insuficiência,
uma vez que, de acordo com os conceitos propostos, toda a sociedade e todo indivíduo são sempre
atravessados por duas segmentaridades, uma molar, dura, e outra molecular, flexível. Além dessas
duas, existe uma terceira linha, que seriam as linhas de fuga, definidas por descodificação e
desterritorialização, nas quais funciona uma máquina de guerra, ou seja, é sempre sobre uma linha de
fuga que se cria, se traça algo real e se compõe um plano de consistência (DELEUZE e PARNET,
1998). Dessa forma, se todas as linhas que se distinguem mas são inseparáveis – existem e operam ao
mesmo tempo, atravessando-se uma na outra, “o sistema duro não detém o outro: o fluxo continua sob
a linha, perpetuamente mutante, enquanto a linha totaliza” (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 101).
Então, ao mesmo tempo em que as linhas duras não cessam de recapturar, amarrar e obstruir gerando
a sensação de impotência –, as linhas de fuga não param de fluir, irromper, colocar em movimento.
86 Guattari (1981) diz que o capitalismo contemporâneo é mundial e integrado “porque potencialmente colonizou o
conjunto do planeta” (p. 211), inclusive os países ditos socialistas ou comunistas.
Talvez a armadilha que nos prenda na sensação de captura esteja na forma em que
avaliamos o que se consegue: se pensamos em termos de cura, de solução mágica ou de
garantias, possivelmente sigamos sempre atormentados pela impressão de incapacidade e
deficiência. Entretanto, se trabalhamos com a noção de produção no presente e reconhecemos
a potência de dispositivo de cada encontro, saberemos que os resultados não podem ser
medidos, pois eles vão muito além de um tempo ou espaço definidos. Mas não confundamos:
trabalhar no agora não é trabalhar na urgência, é exercitar uma sensibilidade para o que
circula, ainda em forma de sensações, em nós mesmos, na equipe de psicologia, no local de
trabalho, com o jovem:
São muitas coisas para dar conta por aqui, com os jovens, com a equipe,
com os procuradores, com os estagiários do direito e, claro, comigo mesma.
As intensidades parecem se potencializar, o que por um lado é muito bom,
mostra que forças dispostas a quebrar com os instituídos, mas por outro
lado são forças que precisam ser percebidas para que possam operar de
forma construtiva. (Diário de campo I, 12 de março 2003)
Coordinadora de Barrios funciona nessa lógica, agir de acordo com o que
aparece, mas não em uma sobreimplicação que impede a análise do fazer, e
sim numa constante produção de estratégias em função do que se apresenta
como necessário naquele momento. Nenhuma resposta será definitiva,
nenhum manual dirá o que e como fazer. Como assusta saber disso!! Mas ao
mesmo tempo liberta para uma criatividade e autoria-autonomia em cada
momento. E com isso produzimos outras relações. O grupo com os jovens se
torna espaço no qual sabem que estamos construindo juntos, que meu saber
é diferente mas não superior aos seus, que iremos montando e guiando a
ação a partir do caminho. (Diário de campo II, 22 de julho 2005)
Para acompanhar os processos em curso, não podemos esperar em uma sala-
consultório que alguém venha contar os eventos do dia, ou venha pedir atendimento; se o
fizermos, corremos o risco de perder a intensidade dos acontecimentos. Dizer que o encontro
é possível em qualquer lugar significa que temos de produzi-lo em qualquer lugar, circulando
pelos corredores, estando com o jovem fora do espaço instituído com a psicologia ou criando
atividades fora dos prédios onde normalmente ficamos, por exemplo:
Depois de despedir-nos dos demais, sigo com Marcos para fazer a matrícula
na escola, pois ele havia pedido uns dias atrás. Pensando nessa proposta da
matrícula, lembro do que sempre falamos do nosso trabalho neste tipo de
projeto ter um aspecto clínico-pedagógico bastante forte, de fazer junto, de
mostrar como, de se emprestar para o outro, o que às vezes deixa os “psi”
meio sem saber o que fazer, que somos treinados a ficar mais em cima do
muro, ou a ser menos diretivo. Não é surpresa então que poucos estejam
dispostos ou capacitados pra trabalhar com públicos que demandam outras
psicologias que não as acadêmicas formais.
Me sinto feliz com o convite de ir no colégio com ele, outras circulações
além da PR/RS, o que implica em outros lugares subjetivos. tinha percebido isso no
trabalho na CORAG no ano passado, que as circulações concretas realmente provocam
outras circulações e principalmente outras relações, o ambiente da rua é propício para
transversalizar mais as coisas. E realmente, o trajeto no ônibus, o tempo sentados
esperando na escola e a volta dão outro tom às conversas que surgem. (Diário de
campo I, 28 de abril 2003)
Lancetti nos lembra de que os “dispositivos de encontro com esses corpos [...] exigem menos
estandardização e sistematicidade e mais invenção” (LANCETTI, 1989, p. 86). Dessa forma, é possível
construir uma relação com o jovem para além e aquém do estágio em si, afirmando que não estamos
limitados nem por um período de tempo nem de espaço. Um dos efeitos dessa construção é que vários
jovens, após terminado o período oficial de sua permanência, retornam à Procuradoria, para rever os
colegas do setor, a equipe de psicologia, ou os outros jovens que seguem no estágio, ou ligam para dar
notícias, indicando que existe alguma diferença e singularidade possibilitada por um tipo de prática em
psicologia:
E no meio disso tudo, algo afeta o jovem, que volta e segue compondo mesmo depois
do término do estágio, ou mesmo morando 3 horas de viagem de Porto Alegre...
algo dessa psicologia que inventa e se arrisca certo, um espaço se que não o da
morte, da violência, do risco de vida. O jovem que dizem ser "da carreira do crime" é o
jovem que agora volta e mantém sua aliança com o grupo, talvez um esboço de
cuidado consigo e com o outro? (Diário de campo I, 30 de agosto 2005)
Passei pelo setor e me contaram que, uma semana antes de morrer, Marcos esteve
aqui. Foi logo depois daquela situação do assalto ao supermercado, em que Marcos foi
preso um período e depois saiu. Pois parece que saiu e veio diretamente pra cá,
conversar, dizer que ninguém havia tratado ele o bem, que tinha se sentido muito
respeitado e valorizado. Se despediu com um forte abraço, e pouco tempo depois disso
acabou morrendo. Os servidores dizem como isso foi forte, porque mesmo com a
morte posterior do jovem, e de como isso afetou, o que ficou foi uma marca positiva,
de algo ali que se construiu na relação, de como o projeto e o trabalho que estão
fazendo podem fazer diferença na vida desses jovens. (Diário de campo II, 11 de julho
2005)
Fui apenas resolver algumas coisas operacionais, e quando me dei conta havia passado
toda a tarde!! Acabei trabalhando com os jovens por horas a fio. Sempre é assim
quando gostamos da companhia do outro... na despedida me lembrei que Daniel
terminou oficialmente seu estágio, e que era seu primeiro dia “por conta própria”!!
Na saída, me pergunta “eu venho na quinta então?”, “Claro!!!!!! Todas as terças e
quintas conto contigo aqui!!!!!”. Sorriso enorme enquanto se fecha o elevador.
Voltamos pra casa com a certeza de que existe um espaço onde podemos SER!!
(Diário de campo II, 16 de agosto 2005)
Hoje, pela manhã, recebi ligação telefônica do ex-estagiário Matias, dizendo que foi
transferido ao presídio de Charqueadas e está bem, perguntou por todos daqui da
PR/RS que acompanham sua história, mandando abraços a todos.
Fiquei muito feliz e emocionada, perguntei a ele sobre o seu dia a dia e sobre sua
família (mãe), obtive respostas positivas. (e-mail de uma servidora da
PR/RS para a equipe de psicologia, Diário de campo II, 21 de março 2006)
Com outros jovens, no entanto, perdemos contato, e nosso primeiro movimento foi
insistir em procurá-los de todas as formas, sem sucesso. A sensação de que algo escapava
permaneceu por um período, pautada por uma lógica parecida a da hipervisibilização que tudo
examina (NEDER, 1997):
Andava meio desmotivada com esta dificuldade em acessar os jovens
egressos... com certeza isto não é ao acaso, eles parecem evaporar
totalmente!!! Os únicos que conseguimos ter alguma notícia são os que
ainda permanecem, de alguma forma, ligados à rede: Carlos via prefeitura de
Encantado, Ricardo em São Leopoldo... onde andam os outros? Que
sentimento estranho de não poder localizar alguém!! Em plena era de
telefone celular, internet e GPS, como uma vida some??? (Diário de campo
II, 12 de julho 2005)
Não é coincidência que as vidas que conseguimos acompanhar a partir de nossa busca
foram as que estavam submetidas a algum tipo de controle. O que se apresenta como perda
pela dificuldade em acessar os jovens, na verdade é o próprio movimento que procuramos
criar, a desinstitucionalização, a possibilidade de escapar das estratégias de suspeição
generalizada tão características do Estado penal.
Isso chama a atenção para a necessidade de estarmos permanentemente atentos às
nossas práticas, de modo a não produzir o oposto do que queremos na intervenção. Quando se
faz referência às forças de captura e às forças dominantes e homogeneizantes que precisamos
combater no contemporâneo, não se trata de um maniqueísmo que diaboliza instituições ou
sujeitos em particular, e sim de localizar o que Guattari (1981) denominou de fascismos
moleculares, os quais permeiam, em maior ou menor grau, nossas práticas mais insuspeitas.
Dessa forma, a análise deve voltar-se não mais para “o general, mas [para] os oficiais
subalternos, os suboficiais, o soldado em mim” (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 106,
parêntese meu).
Tais fascismos moleculares surgiram com as mudanças introduzidas pelo capitalismo,
quando os sistemas econômicos e subjetivos tornaram-se cada vez mais desterritorializados e
fizeram com que as formas de repressão também se molecularizassem. Uma vez fragmentado,
o fascismo antes restrito aos campos de concentração foi interiorizado pelos sujeitos, dando
lugar a um microfascismo que traspassa todos os planos da existência, inclusive o próprio
desejo de cada um de nós. O papel de uma micropolítica do desejo, portanto, seria “recusar-se
a deixar passar toda e qualquer fórmula de fascismo, seja qual for a escala em que se
manifeste” (GUATTARI, 1981, p. 183), e o encontro com o analista deveria servir para libertar linhas
de fuga, pois, “do ponto de vista da micropolítica, uma sociedade se define por suas linhas de fuga, que
são moleculares” (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 94).
Devemos tomar cuidado, pois as três linhas dura, flexível e de fuga comportam alguns
riscos. A linha de fuga, por ser linha de ruptura, além de poder ser segmentarizada, pode virar linha de
abolição, de destruição de si mesma e dos demais. Com a linha flexível, o risco é que um limiar seja
transposto depressa demais e não seja possível suportar sua intensidade – fenômeno de buraco negro. O
perigo imanente à linha dura é o de sobrecodificação permanente, e a “prudência com a qual devemos
manejar essa linha, as precauções a serem tomadas para amolecê-la, suspendê-la, desviá-la, miná-la,
testemunham um longo trabalho que não se faz apenas contra o Estado e os poderes, mas diretamente
sobre si” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 160, grifos meus), sobre os microfascismos.
Um dos mecanismos microfascistas que pode atravessar nossas práticas, e que precisamos
colocar em análise no coletivo, é certa tendência ao silêncio, mais especificamente a três tipos de
silêncio. O primeiro seria não compartilhar com os jovens os saberes que construímos, enquanto
psicologia, a partir do encontro com eles, reservando as produções para eventos acadêmicos e palestras
para os técnicos:
Quando terminamos de filmar as entrevistas, fomos devolver o material na imprensa.
Lá, estavam editando palestra que eu tinha dado na Justiça Federal na semana anterior.
Daniel viu e perguntou o que era, quando tinha sido, etc. Ficou super interessado em
saber do que estava falando, e eu me questionei (e depois à equipe) por que os jovens
não tinham sido convidados a participar. “Ficou combinado que eles não estariam”, foi
a resposta. POR QUE???? Enfim, fico com a impressão de que ainda existe medo de
falar destas coisas diante dos jovens, de discutir o que diz respeito a eles, de falar o
que, como profissionais, estamos produzindo. Acabamos reforçando o fetichismo do
conhecimento e das pessoas!!! Produtos sem processos, saberes sem encontros e
trocas.... (Diário de campo II, 16 de agosto 2005)
Na oficina semanal dos servidores com os jovens, surgiu a idéia de convidarem
Enrique [Martinez Reguera] para ir na sexta que vem, falar sobre seu trabalho,
experiência etc. Parece ser que todos gostaram muito da idéia, e que os jovens
prontamente propuseram eles aproveitarem para treinar com a filmadora! Vitor vai
filmar, Daniel fará entrevistas com as pessoas que participaram, e João vai tirar fotos.
(Diário de campo II, 22 de julho 2005)
A conversa com os jovens e Enrique foi muito boa!!! Realmente como é diferente
quando alguém fala com eles de igual a igual, e discutindo justamente sua realidade,
sem medo! Noto certa infantilização dos jovens por parte de alguns, falam como se
fossem crianças ou um bichinho engraçadinho, algo a ser acariciado mas quando
incomoda demais trancar no quarto ao lado. Enrique, pelo contrário, fala com eles de
igual a igual, e expõe suas construções teóricas sobre os meninos de rua e também
infratores sem nenhum problema! (Diário de campo II, 29 de julho 2005)
As palavras de Enrique e o modo como ele trabalha e vive me afirmaram a importância
de falar, sim, falar de tudo com os jovens, e como isso provoca efeitos muito
bons!!! Sempre ficamos na dúvida e temos medo de falar com os jovens, que
coisas falar? Podemos falar tudo e sobre tudo? Em que lugares eles podem
estar? O que podem ouvir? Isso passa pela psicologia, pelos técnicos das
unidades, pelos servidores que têm contato diário. Quem nos a fórmula
sobre o que falar e o que não?
Parecemos esquecer que os jovens são sujeitos, como todos!! Qual o medo
em falar, compartilhar? Por que não podemos contar o que vamos
aprendendo de nosso trabalho? Por que não coletivizar o que a psicologia
constrói a partir dos encontros com eles?
Enrique fala, conversa, conta, com muito carinho na voz, mas não priva
nenhum conteúdo dos ouvidos dos jovens. Conta das experiências com
violência com os meninos que moravam em sua casa, como lidou com isso,
conta das aprendizagens que teve. E se ficavam dúvidas quanto aos
resultados disso, a presença dos jovens na livraria semana passada, para o
lançamento do livro de Enrique, é definitiva!! Depois de ouvi-lo pela tarde,
querem seguir ouvindo e compartilhando pela noite, e ficam atentos, atentos,
consumindo tudo o que é falado. (Diário de campo II, 04 de agosto 2005)
Via em seus olhos o interesse em ouvir alguém falando de coisas o
vivenciais para eles, e falando sem nenhum tipo de prepotência ou pretensão
de saber tudo, apenas falando de sua longa experiência. Fiquei pensando em
nossa apresentação na ABRAPSO em 2003, como discutimos se
convidávamos os jovens para assistirem ou não, e no fim não convidamos.
Por que esse receio de falar sobre o que fazemos para aqueles com quem
construímos esse saber? A presença de Enrique confirmou isso, realmente
foi um encontro afetivo entre eles, talvez por ouvirem alguém falando de sua
condição não enquanto diagnóstico, laudo, relatório, mas como vida, como
história. (Diário de campo II, 29 de julho 2005)
O segundo tipo de silêncio que pode se instaurar, provavelmente resquício da
predominância de determinadas linhas psicanalíticas na formação profissional, seria não
admitir que a psicologia, além de escutar, também fala de si, do jovem, do encontro –, ou
seja, não assumir que temos um desejo nessa relação e que ela provoca efeitos também em
nós:
Quantas coisas conseguimos produzir ao compartilhar um medo, uma
angústia, uma esperança com esses jovens? Sempre me perguntei “se eles
soubessem o que geram em nós! Se soubessem quantas lágrimas, quantas
noites sem dormir, quantas dores de cabeça, quantos sorrisos...” bom, e por
que não dizer-lhes? Como se produzem afetos quando se diz “nesses dias vi
tal coisa e lembrei de ti...” (Diário de campo I, 18 de setembro 2003)
Saber que nós nos preocupamos, nos interessamos, que o projeto não
termina ali naquele ano de duração cronológica, mas vai muito além!!! Gera
mestrados, doutorados, apresentações em congressos, em salões, conversas
em cafés, milhares de e-mails.... Por que não deixar que os jovens saibam
tudo o que geram em nós?? Faz parte da intervenção, de nossa aposta
metodológica, fazer que isso circule!!! (Diário de campo II, 12 de julho
2005)
Acho que as viagens, as despedidas, a morte de familiares da equipe, a
distância de muitas pessoas queridas têm deixado cada vez mais claro que é preciso
nos relacionarmos como pessoas, mais do que como profissionais, técnicos, etc. Por
que, então, seria diferente com os jovens? A vida (e a morte) colocam em perspectiva
preocupações que antes eram enormes e que depois deixam de ter sentido... como falar
algo, o que os jovens pensarão, o que outro psicólogo faria em tal situação... se ao
invés de nos preocuparmos com isso simplesmente vivêssemos, sentíssemos... que
diferença! Os efeitos nos demais e em nós mesmos se produzem pelo afeto, pela
relação, e não por papéis definidos! (Diário de campo II, 04 de agosto 2005)
No final do último encontro para as entrevistas do vídeo, sentamos todos ao redor da
mesa para ouvir a fita que gravamos da conversa com Matias no presídio. Senti todos
os jovens muito atentos, uma expressão séria no rosto, curiosos e apreensivos ao
mesmo tempo. Perguntaram várias coisas, do funcionamento do presídio, de como ele
estava, etc. Senti que naquele momento se deu uma relação que foi muito além do que
ocorre no grupo, no cotidiano da PR ou nas relações de trabalho, foi um momento de
compartilhar a vida também em seu sofrimento, em uma situação triste mas que ao
mesmo tempo trouxe tanta potência para o projeto e para todos nele. Senti uma
cumplicidade na qual eu já não era psicóloga e eles internos da FASE, mas éramos
todos pessoas atravessadas por diversas histórias de vida, tão diferentes por momentos,
tão parecidas em outros.
Ouvimos tudo quase sem respirar, até terminar com a tão pedida música de Matias.
Fico pensando quantas coisas terão passado pelas cabeças deles!! Que efeito teve
ouvir tudo aquilo? Em que os fez pensar? Sentiram medo, tristeza, raiva, indiferença??
Quando a fita parou, ficamos em silêncio. Por um momento pensei em perguntar tudo
isso a eles, tentar entender melhor... mas senti uma imensa necessidade de falar, dizer
coisas que talvez já foram ditas de formas soltas, coisas que eu nunca tinha dito, coisas
que naquele momento precisava dizer, insistir. Falei que para nós tinha sido uma
experiência muito forte, que por momentos os quatro quase choramos, que no início
foi difícil ver um jovem que tinha estado na PR no ambiente do presídio. Falei que,
com toda honestidade, não queria ver nenhum deles naquela situação!! Disse que para
nós o projeto o se resume a um ano deles estarem lá, que depois disso eles seguem
em nossos pensamentos, em nossos sentimentos, que a vida deles nos interessa e passa
a fazer parte também da nossa. Disse que sabia que por momentos as coisas fora
podiam estar difíceis e que talvez se sentissem sozinhos, como Matias se sentiu, mas
que soubessem que existia um lugar onde ir e encontrar uma acolhida. Retomei o que
Gislei falou na fita sobre nós não termos passado pelas mesmas experiências e talvez
não sabermos realmente como é, mas que sabemos que queremos fazer algo, uma
diferença em meio a tudo isso.
Todos ouviram em um silêncio absoluto... acho que nunca tínhamos dito tudo isso a
eles, mostrado o quanto afetam nossas vidas e o quanto o projeto não é algo mecânico
ou automático dentro de nossa forma de fazer psicologia... depois de eu falar nenhum
deles disse nada, mas acho que ficamos todos com a certeza de uma aliança e um
cuidado naquilo que estamos fazendo... (Diário de campo II, 02 de setembro 2005)
Os depoimentos propiciados pela elaboração do vídeo, e a reação de surpresa e interesse por
parte dos jovens diante das falas dos entrevistados, serviram como dispositivo analisador para que nos
indagássemos sobre a importância dos jovens saberem das repercussões geradas a partir do encontro
com eles:
Hoje nos reunimos com os jovens na sala do auditório para montar as perguntas que
vamos fazer aos procuradores na entrevista para o vídeo. Uma delas foi questionar
quais os efeitos do projeto nas vidas pessoais e profissionais dos
procuradores. Os jovens dizem “ah, não fez nenhuma diferença, né? Pra eles
não muda muita coisa...”. “Como assim???”, pensei. Falei então de todos os
efeitos que percebo por ter passado pelo projeto, e de como mudou minha
vida profissional e pessoal. Afirmei que com certeza havia efeitos na vida de
todos, dos jovens aos procuradores!!! Pareceram se surpreender com minha
afirmação, realmente vejo que damos pouco retorno de quanto produzimos a
partir destes encontros!! (Diário de campo II, 16 de agosto 2005)
Efetivamente, em todas as entrevistas realizadas com servidores, procuradores,
equipe de psicologia e jovens –, foi mencionado algo nesse sentido. Respondendo à pergunta
sobre os significados da experiência para a vida pessoal e profissional, um dos procuradores
87
referiu o seguinte:
Como a atividade da Procuradoria é uma atividade voltada para a luta
pelos direitos das pessoas, aqui dentro da instituição [o projeto Abrindo
Caminhos] encontrou um bom espaço para valer a pena. Quando você vai se
envolvendo realmente com o projeto você começa a aprender com as
pessoas, com as pessoas que estão ali atuando junto com os estagiários mas
a aprender muito com os estagiários também, porque essa convivência de
realidades diferentes, vocês jovens e nós adultos, é uma convivência
extremamente importante, de interesses diferentes, de anseios diferentes, de
sonhos diferentes, mas que muitas vezes serve para que a gente possa
entender os nossos próprios anseios, os nossos próprios interesses, os nossos
próprios sonhos. Então muito mais do que problemas a gente trabalha com
soluções para nossa vida cotidiana.
Em minha vida profissional teve um significado muito forte, porque durante
10 anos de procurador sempre trabalhei com direitos humanos, com
dificuldades das pessoas, sempre trabalhei com problemas. De certa forma,
o projeto, você podendo acompanhar de perto, tendo proximidade com as
pessoas, podendo tentar uma coisa que às vezes é difícil na nossa atividade
profissional, podendo tentar resolver algumas questões de forma bem mais
rápida e bem mais próxima, podendo discutir as questões, do ponto de vista
profissional isso pra mim foi muito bom, porque os resultados disso
surgiam. Do ponto de vista pessoal, acho que é o que mais me trouxe
alegrias, porque eu, como é uma questão pessoal eu tenho que me abrir, eu
sou uma pessoa naturalmente fechada, e poder estar me relacionando com
vocês, com os outros estagiários que aqui estiveram, com o pessoal da
psicologia, para mim foi uma possibilidade de abertura. Então essas
possibilidades de aberturas que temos que aproveitar na vida, todos nós
estagiários, psicologia, procuradores e servidores. E eu aproveitei essa
possibilidade e me abri para alguns mundos que eu realmente não conhecia,
e para mim foi muito satisfatório, porque consegui encontrar uma riqueza e
uma beleza que às vezes a gente não encontra tão facilmente em outros
lugares. (Vídeo sobre Abrindo Caminhos, 2005)
O terceiro tipo de silêncio ao qual devemos estar atentos é o que surge diante de uma
situação que suscita suspeita ou desconfiança para com os jovens:
87 Procurador Marcelo Veiga Beckhausen, que ocupou o cargo de chefia da Procuradoria da República no RS
durante um tempo e, antes disso, foi responsável pela coordenação do setor de estagiários da PR/RS.
Parece que sumiram algumas coisas e suspeitas de que um dos jovens esteja
envolvido. Ao mesmo tempo, João tem faltado muito e levou papéis que teriam sido
dados pela escola, mas foi feito contato e aparentemente os papéis não são
verdadeiros, dúvidas se ele está efetivamente matriculado em alguma escola, o que
colocaria em risco sua Liberdade Assistida, pois esse é um dos requisitos impostos
pelo juiz. Diante disso, ninguém conseguiu sentar e conversar com ele. A lógica que
imperou foi a policial investigar, pedir comprovantes, arquivar comprovantes,
desconfiar –, mas não se sentou com ele e perguntou o que houve, por que não tem
ido, como está, etc. Será que houve certa desistência com ele? Situação parecida
acontece com outro jovem, que costuma andar circulando todo o dia mas não se diz
nada a ele pois já es terminando o estágio.
Quanto medo!! Quanto medo em poder conversar, lidar diretamente com as coisas!!
Existe um sentimento muito forte de que as coisas ruins não devem ser faladas, como
se isso fosse proteger o jovem ou o projeto. (Diário de campo II, 09 de agosto 2005)
Se aceitamos calar nessas três situações, estamos colocando barreiras para um encontro efetivo e
para que a análise – do trabalho, dos jovens, da psicologia, do contemporâneo – possa ocorrer com toda
intensidade. Não que o silêncio precise ser sempre preenchido, ou que a palavra seja a via preferencial
de análise, mas silenciar nessas circunstâncias é mais omissão do que movimento criador. Deleuze e
Parnet (1998), ao discutir o que é e para que serve uma conversa, indicam que o diálogo é necessário
para poder fabricar questões, e fazemos isso no encontro, no coletivo, na possibilidade de poder
construir a partir dos saberes, das trajetórias, das confianças e desconfianças, dos medos e dos afetos
um “universo da suavidade [...]. A suavidade é um dado imediato da subjetividade coletiva. Ela pode
consistir em amar o outro em sua diferença, em vez de tolerá-lo ou estabelecer códigos de leis para
conviver com as diferenças de um modo tolerável” (GUATTARI, 1993b, p. 34).
Ponto importante para pensarmos em qualquer trabalho com um público considerado “tutelado”,
“assistido” ou “protegido”: não é tolerância o que temos de construir na relação. Sobre isso, a melhor
exposição que ouvi foi de um senhor
88
que freqüentava um CAP (Centro de Assistência Psicossocial)
no Rio de Janeiro:
“Não queremos tolerância”, dizia o usuário de serviços de saúde mental, queremos ser
tratados como iguais. “Se estamos chatos um dia, que possam nos dizer ‘hoje não es
dando pra te ouvir, fica quieto’, se somos agressivos, que possam nos dizer ‘não estou
conseguindo te agüentar hoje, vou embora’”.
A tolerância pregada pelo modo capitalístico é essa que tenta reduzir o outro, opacar
sua diferença, tudo fica liso, igual, feito de silício. Quando conseguimos não mais ver
um “menor”, o que se produz? Relacionar-se com o sujeito, com o desejo deste, falar e
ouvir como um igual, conseguimos suportar tal proposta? Saberes que não se
sobrepõem, mas que fazem interface, intercessores. Costumamos colocar o jovem em
88 Sua fala foi uma das que estiveram presentes no curso de Extensão “Produzindo Modos de Interferir no Contemporâneo:
Movimentos Sociais e o Sucateamento da Existência”, realizado nos meses de maio, junho e julho de 2005 na UFF, sob
coordenação da professora Claudia Abbês Baeta Neves.
posição de dívida, de agradecimento eterno, daquele que pode receber,
como se não tivesse nada a dar ou a dizer. Como fazemos as alianças?
Chegam a ser alianças? Ou ainda insistimos nas eternas filiações, que
asseguram que tudo na verdade siga como está, que a autonomia e autoria
não sejam possíveis naqueles “menores”, nos sujos, nos pobres, nos doentes,
nos loucos. (Diário de campo II, 21 de julho 2005)
Tampouco queremos uma relação de assistência, na qual ocupamos o lugar de bem-
feitor que obriga o outro a ficar preso em uma eterna dívida. Podemos auxiliar em alguns
aspectos materiais, em circunstâncias pensadas coletivamente e acordadas com os jovens,
desde que isso faça parte do processo de intervenção como um todo e não se configure como a
marca prioritária que o caracterize. A idéia da ajuda através de doações costuma aparecer com
freqüência no início dos trabalhos com as equipes que vão receber os jovens:
Com relação a doações, eu não tinha pensado nisso antes, mas trouxeram
bastante a pergunta se podiam dar roupas, sapatos, etc para os jovens.
Movimento de adoção total, acho que precisamos colocar em análise, por
um lado uma mobilização afetiva, mas por outro pensar por que colocar-se
nessa posição um tanto de dívida, sentir-se responsáveis de dar coisas
materiais. Pensar qual o efeito disso para os jovens, de estarem sempre
ganhando coisas, de quase colocarem os demais nessa obrigação. Por que,
para criar uma relação, teríamos que dar coisas?? (Diário de campo I, 27 de
janeiro 2003)
A questão das doações foi bem interessante, por que temos essa tendência a
agir como benfeitores? Uma forma de não envolver-se efetivamente com a
problemática? Resolver o problema antes que ele se apresente? Voltamos à
velha questão do sentimento de dívida-culpa que este público parece
provocar, como se tivéssemos de responder, imediatamente, por essa
situação na qual se encontram. É importante estarmos atentos para isto e
trabalhar em outra lógica, do coletivo, do impessoal (no sentido
Schereriano
89
), de deixar que as coisas apareçam para trabalhá-las, ao invés
de tentarmos suprir todas as (que nós julgamos) necessidades desse jovem.
(Diário de campo I, 31 de janeiro 2003)
Além das doações de objetos, também é comum o “assistencialismo de salvação”:
Diante da ausência do jovem no projeto, houve sentimento de apreensão,
como se a falta não estivesse permitida para quem recebe um favor. Isto é
importante pra se pensar no que gera nas pessoas quando os jovens
"desperdiçam a chance que lhes é dada”... Voltamos às questões do “bonito
ajudando o feio”, como dizia Cíntia na CORAG. Quando os jovens faltam,
ou não correspondem às expectativas, isto gera um sentimento de raiva, com
frustração, "mas eles não querem nada com nada"... (Diário de campo I, 04
de fevereiro 2003)
Temos de pensar que os jovens estão disciplinados pela norma (cumprindo
medida), então como vão questionar uma possibilidade de estágio que a
FASE oferece (dá)??? Este processo de subjetivação é que pode gerar
89 Referência ao conceito do impessoal apresentado por René Schérer (2000).
exatamente a atitude de vitimização.
Gislei (trocas de e-mail em Diário de campo I, 14 de fevereiro 2003)
O assistencialismo é um ardil atraente porque permite certa distância e não implicação com o
outro, afinal cada um teria feito “sua parte”, como apregoa a rede Globo. No entanto, também é
perigoso, porque não deixa de ser uma forma de controle e de subjugação, mais difícil de recusar ainda
por vir sob o manto da ajuda, favor sempre irrecusável. Essa estética que Cíntia tão bem sintetizou na
frase “o bonito ajudando o feio” está muito presente em nossa cultura redentorista, que, discursando
sobre a igualdade, procura delimitar e conservar cada um em seu devido lugar. O usuário do CAP nos
lembra: não busco tolerância nem beneficência, nem ajuda colonizadora –, quero ser tratado como
igual, um igual dentro da suavidade de que fala Guattari (1993b), na qual se ama o outro em sua
diferença ao invés de procurar normas para conviver com ela de forma tolerável.
Que desafio pode chegar a ser, na área psi, fundar um encontro tal com o outro que seja possível
dizer, também, “hoje não está dando pra te ouvir”, tão incorporadas estão as diretrizes da
imparcialidade e de ser o mais “neutro” possível para permitir a transferência individual. Mas é preciso
assumir que, como em qualquer outro encontro, existe uma mistura de diversos afetos no trabalho com
os jovens:
Na primeira reunião com a equipe local, notei que se falava pouco das impressões
depois da chegada dos jovens. Achei que era importante trabalhar isso, porque
pareciam passar (como muitos de nós) de um medo terrível a uma grande idealização.
Falei que muitas coisas coexistiam no jovem, que era importante não ignorarmos que
tinha essa parte que os levou à FASE, mas que também havia outras coisas. Pudemos
conversar que justamente isso era o difícil neste trabalho, poder lidar com essas duas
coisas aparentemente contraditórias, mas totalmente possíveis na lógica da
multiplicidade, e que aquilo contraditório nos jovens também existia em nós, que nos
sentimos de muitas maneiras com relação a eles: por um lado toda a parte do afeto, por
outra a do medo e desconfiança, e essas coisas coexistem. Eles disseram , a gente
ama os filhos, mas tem horas que quer matar eles..." (Diário de campo I, 20 de
fevereiro 2003)
No início, o medo é o sentimento que mais aparece, agitado pelas imagens arquitetadas nos
meios de comunicação para produzir exatamente isso. Depois de um tempo, esse medo não desaparece,
mas passa a fazer parte do próprio trabalho ao ser incorporado como ferramenta de análise, uma vez
que “as tramas da subjetividade que tencionamos compreender têm início no complexo [...] terreno da
nossa própria subjetividade” (DIÓGENES, 1998, p. 19). Passamos a usar nossos temores como
sinalizações do que circula pela subjetivação capitalística na sociedade, no projeto, na equipe, nos
próprios jovens. Há momentos de desconfiança, de cansaço, de irritação, de marasmo, de
aborrecimento, de desânimo, até mesmo de raiva. Todos esses sentimentos acompanham o
cotidiano, e é uma escolha política não tentar escondê-los nem pretender que tudo funcione às
mil maravilhas o tempo inteiro. Isso seria uma tentativa de higienizar os contatos humanos
sem perceber que a esterilização não mata apenas “microorganismos nocivos”, mas também
qualquer outra forma de vida que possa ali se dar. No encontro com estes jovens de tanta
raiva, tanto carinho, como bem sintetiza Reguera (2005d) a intensidade e o paradoxo
presentes em nosso fazer. Reconhecer as aparentes contradições em nossos afetos permite que
reconheçamos também no jovem essa possibilidade, dando visibilidade à multiplicidade de
elementos que configuram sua subjetividade para além da referência única da infração.
Sobre essa marca em comum dos jovens com os quais trabalhamos, no início da
intervenção no Abrindo Caminhos surgiu uma proposta de incluir, como parte do processo de
seleção, informações sobre a infração cometida por eles. A idéia foi uma tentativa de
tranqüilizar e amenizar as inquietações para se sentirem em condições de trabalhar junto a
alguém que, naquele momento, era visto como potencialmente perigoso. Mas pudemos
colocar em análise a relevância desse dado: acreditávamos que uma sentença pudesse conter –
e contar toda a vida e intensidade dos jovens? Recebê-los com a etiqueta “homicídio”,
“latrocínio”, “seqüestro” seria uma forma garantida de delimitar tanto os sujeitos como as
relações possíveis com eles, obstruindo vias de criação de novas linhas de subjetivação para
todos. Assim, a opção tomada foi de não saber de antemão o que tinha levado o jovem à
privação de liberdade. A experiência nos mostrou que, após algum tempo de convívio, e
quando se constrói uma relação de confiança, o próprio jovem costuma trazer sua história para
contar aos colegas de trabalho, e sua fala é acolhida porque reconhecemos que esse vetor
também o constitui.
Para os que pensam que a violência é a marca mais presente na forma de ser dos
jovens em cumprimento de medida sócio-educativa, nada mais distante da verdade. Entre os
tantos adjetivos que poderia citar, como o humor, a ironia e a sensibilidade para apontar com
acuidade o que está em análise, um que pude comprovar em várias situações, uma espécie
de cuidado com o outro que poderia ser definido como afeto-ternura:
Os jovens foram buscar o lanche
90
no horário, e me dei conta de que Joyce
ainda não estava incluída por ter recém chegado. Subimos um pouco depois
para a copa, para tentar conseguir outro lanche mesmo sem ter avisado, e na
escada encontramos os jovens que desciam. Ninguém disse nada, não houve
um pedido nem comentário, e ao mesmo tempo Daniel deu seu sanduíche e
João seu refrigerante à nova colega, que aceitou com enorme sorriso. Ainda
me surpreendo com os gestos de ternura e espontaneidade que estes jovens
90 Com uma verba específica dada pela Associação de Procuradores, os jovens recebem lanche diariamente.
conseguem preservar, em meio a um ambiente que, constante e insistentemente, tenta
criminalizar seu aspecto, seus gostos, suas idéias e, sobretudo, suas ações. (Diário de
campo II, 16 de agosto 2005)
Fomos na missa de falecimento de Vítor. Marcos e Jean nos acompanharam.
Estivemos todos silenciosos, acompanhando a dor da família diante de uma morte tão
violenta como sem sentido. Achei um gesto bonito Marcos ter vindo, que não se
dava nada bem com Vítor no estágio (aparentemente, este havia dedurado outros
jovens da unidade de Marcos, o que gerou mais tempo de internação para eles) e,
durante o tempo de convívio no Abrindo Caminhos, as poucas palavras que trocavam
eram provocações. Ainda assim Marcos quis estar presente na missa. No final, nos
aproximamos da mãe de tor, mesmo sem saber ao certo o que dizer. Quem tomou a
palavra, nos surpreendendo, foi o próprio Marcos, apresentando-se como um bom
amigo do filho e seguindo com uma série de palavras carinhosas referindo-se a ele.
Dito isso, deu um longo abraço à e de Vítor, quem chorava emocionada pela
presença de algum amigo de seu filho o restante dos presentes eram todos familiares
–, e se colocou à disposição dela para o que precisasse. Acho que poucas vezes na vida
vi uma nobreza dessas num gesto tão simples como reconhecer naquela família um
sofrimento que é de todos... e é essa imagem que tenho de Marcos, dessa contradição
que se encontra em um justiceiro
91
com essa ternura que provoca lágrimas. Fiquei tão
tocada com essa sensibilidade e generosidade que não pude evitar as lágrimas por
tanta morte em vida, e tanta vida em morte. (Diário de campo I, 25 de junho 2003)
Como poderia a psicologia pretender “curar” estes jovens? Cartografar é o que podemos,
caminhar e co-produzir os caminhos junto a eles, não para os jovens mas com eles. Cartografar e
renunciar ao poder do especialista, especialmente o de dominação do outro:
Marcos falou de novo de sua experiência com a psicóloga que "ralou" ele. Mas falou
também de outro psicólogo que foi bem legal, e que ajudou a sair na última audiência.
Ricardo falou que não gostava muito, que uma vez tinha falado com uma e, quando
estavam na audiência com o juiz, ele falou que nunca tinha usado drogas e ela disse
que ele teria dito em um atendimento que tinha experimentado. Ricardo replicou que
jamais disse isso, ficou pensando que ela estava desmentindo ele na frente do juiz,
então ele decidiu dizer que tinha usado mas que tinha parado, que aprendeu com os
advogados que tem que assumir a culpa, é melhor. Disse que a partir de então
passou a contar que usava mas que tinha parado, por isso quando deram Liberdade
Assistida foi sob a condição de que ele fosse nas reuniões de Amor Exigente
92
.
Até que ponto produzimos aquilo que queremos ouvir!! Ele assumiu algo pelo que a
psicóloga afirmou ser verdade e, mentindo, conseguiu que acreditassem em sua
palavra. (Diário de campo I, 14 de fevereiro 2003)
Vemos que não é sem motivo que as áreas psi sejam percebidas como “enroladoras” e
“manipuladoras”, ou que um jovem atendido por Reguera tenha dito: “você pode dizer o que quiser
mas eu prefiro que me controle um carcereiro armado com porrete que um psiquiatra armado de
injeção” (REGUERA, 2001, p. 166). Faz pensar quais classes deveriam ser consideradas mais
91 Justiceiro é aquele encarregado de “acertar contas” com os que forem considerados inimigos ou contrários a seu grupo.
92 O grupo de apoio Amor Exigente se assemelha ao de Alcoólicos Anônimos, recebendo pessoas com envolvimento com
álcool e/ou drogas e seus familiares.
perigosas, pelo poder que detêm.
Na mesma lógica podemos situar as idéias, várias vezes referidas por alguns técnicos
das unidades de internação, de que os jovens querem voltar à FASE em busca de “contenção”
e “limites”, sendo esse o motivo pelo qual reincidiriam. Fico me questionando o que,
exatamente, se escuta e se entende do que os jovens dizem. Podemos ter certeza que se o
sistema FEBEM serve para algo é para inscrever suas marcas sobre os corpos dos que passam
por lá, corpos físicos e corpos subjetivos. Caldeira (2000) fala da ótica vingativo-repressiva
que toma o corpo dos jovens como objeto de punição, afirmando que a marcação do corpo
pela dor é “percebida como uma afirmação mais poderosa do que aquela que meras palavras
poderiam fazer. [...] acham que crianças, adolescentes e mulheres não são totalmente
racionais, da mesma maneira que os pobres e, obviamente, os criminosos” (CALDEIRA,
2000, p. 367). A esse corpo percebido como lócus de punição e justiça, a autora chama de
corpo incircunscrito, um corpo sem barreiras claras, manipulável e desprotegido por direitos
que o delimitariam.
O caso de Maguila, jovem que morreu carbonizado durante a rebelião de 25 de
dezembro de 1998 na UE-17, no Complexo Tatuapé (FEBEM-SP), ilustra o alcance das
marcas no corpo quando os próprios jovens assumem seu caráter incircunscrito como forma
de protesto, único possível quando as demais vozes são abafadas. Vicentin (2002) relata que
Maguila decidiu ficar em meio ao incêndio que se alastrava pelas celas, e incitou os demais a
imitá-lo, para que houvesse uma prova concreta do que havia ocorrido naquele dia: “vamos
morrer aqui para ter a prova que os pirril
93
bateram em nós” (VICENTIN, 2002, p. 123).
Corpo testemunho, marcado pelas inscrições institucionais até o limite da morte.
Também podemos perceber a institucionalização sob formas mais sutis, mas iguais de
temerárias, nos jovens que passam pelos estabelecimentos de privação de liberdade:
Fui conhecer os novos jovens na PR/RS, com quem iria fazer o vídeo. No
setor, me receberam e apresentaram aos jovens, depois ficamos conversando
um pouco e me fizeram um resumo geral deste último ano, falando das
coisas boas e das tristes que foram acontecendo. Falaram que uma grande
diferença entre os jovens daquela época [do início do projeto] e os de agora
é que estes são mais fechados, falam menos, etc.
Também fiquei com essa impressão. Não saberia dizer ao certo, mas achei
eles.... educados demais?!?! Difícil explicar, talvez fiquei esperando
encontrar mais daquele Ricardo com seu sorriso irônico, a um mesmo tempo
dedicado ao trabalho e desafiador que questionava muitas coisas que
aconteciam por lá. (Diário de campo II, 11 de julho 2005)
93 Gíria usada pelos internos para referir-se à guarda externa que, em momentos de tensão interna, como as
rebeliões, invadem a Unidade fazendo uso de violência.
Fez lembrar um laudo psicológico no qual “o brilho no olhar [...] atesta para o especialista em
questão que a periculosidade não havia cessado, o que lhe garante mais um ano de prisão e depois mais
dois anos de liberdade assistida” (BATISTA, V., 2003a, p. 127). O brilho no olhar – ou simplesmente o
fato de olhar nos olhos –, o sorriso desafiador e irônico são percebidos como elementos perigosos,
devendo ser formatados e corrigidos durante o cumprimento da medida sócio-educativa.
Outra forma de produzir o corpo incircunscrito é pela reificação dos jovens, que aparece de
forma explícita em algumas falas dos agentes institucionais:
Me chamou a atenção uma conversa mantida perto de onde estava. Uma das pessoas
falou de um jovem que faz estágio no local, e alguém de uma unidade diz:ah, esse é
meu”. É um comentário ouvido muito freqüentemente, mas desta vez ficou ressoando
em mim. Para começar, dizeresse e não “ele”. Essa coisificação dos jovens inicia lá
na fase policial de seu processo, que não envolve mandado de prisão, mas de busca e
apreensão, como um objeto. E depois, esse sentimento de posse totalmente
naturalizado nas falas, este é meu, aquele é de fulana, etc. [...] Será que o jovem quer
essa relação na qual se apossam deles, fazem propaganda ou castigam de acordo a
expectativas bem definidas de bom comportamento, etc?
Me dei conta também de que temos uma tendência a achar que os jovens são todos
meio parecidos, como se as histórias fossem as mesmas, os contextos, os recursos,
como se sob a marca da infração todos passassem a ser idênticos, equivalentes,
homogêneos. (Diário de campo II, 20 de julho 2005)
Não pretendo desconsiderar que afeto dos técnicos das unidades de internação para com os
jovens, e que essa forma de falar também traz esse carinho. Mas enquanto nos referirmos a pessoas
como “este” e como “meu” ou “de fulana”, remetemos o outro a uma docilização que não reconhece
sua singularidade nem autonomia enquanto sujeito. Foucault (1984) refere a necessidade de abandonar
a vocação de dominação da loucura e dos sujeitos –, a qual denuncia estar presente na psicologia. O
abandono dessa vocação totalitária permite que tenhamos uma aproximação menos medrosa e menos
tecnocrática, liberando novas formas de vida para o jovem e para os que convivem com ele.
Diante de tantas marcas institucionais deixadas nos corpos dessa juventude pobre, não
surpreende que os depoimentos sobre a passagem pelo sistema sócio-educativo sejam bastante
similares:
Quando estávamos indo conhecer as unidades da FASE, junto a alguns jovens do
Abrindo Caminhos que nos acompanharam, o ônibus passou pela frente de uma delas,
e Ricardo conta que nunca mais tinha voltado por depois de ter saído. “É meio
estranho passar aqui na frente.... não quero nem saber de voltar pra cá!!”. (Diário de
campo I, 28 de abril 2003)
Parece que antes de entrar na FASE João participava de pequenos roubos, etc,
perguntei a ele se tinha pensado, antes de tudo isso, se algum dia acabaria na FASE.
“nunca pensei que eu ia cair. Eu visitava meu primo e nunca pensei que ia acabar
igual. Quando me pegaram, me senti um idiota, de ter feito bobagem por causa dos
outros e agora ia ter que ficar lá. Eu me senti que nem a gente se sente
quando a mãe da gente deixa na escola a primeira vez, ela vai embora e a
gente fica lá, se sentindo sozinho, sem saber o que fazer, pra onde ir. E isso
depois continua assim, mesmo passando o tempo a gente continua se
sentindo sozinho mesmo (Diário de campo II, 18 de agosto 2005)
Diria que mais surpreendente, se não soubéssemos que onde poder sempre
resistência (FOUCAULT, 1979), é a criatividade com que os jovens vão engenhando suas
estratégias para escapar dos lugares – físicos e subjetivos – onde tentam colocá-los:
Ricardo começou a questionar por que no crachá deles, no lugar onde diz
“curso” estava escrito FASE, e que aquilo não era curso, que era
constrangedor ter aquilo ali escrito, as pessoas perguntavam o que era,
muitos não sabiam de onde ele vinha, e tinha que ficar explicando. Disse
que respondia é FASE tudo, porque eu faço de tudo aqui no setor”... achei
originalíssima a resposta dele! (Diário de campo I, 28 de fevereiro 2003)
Essa resistência das lutas diárias dos jovens não se restringe a suas existências
individuais ou a interesses particulares. É uma força que, entre outras coisas, coloca em xeque
as relações de poder e a hierarquia no ambiente de trabalho e questiona os lugares de saber, a
produção de verdades e as contradições entre os discursos e as práticas. Se é possível pensar
em uma revolução molecular, ou seja, em “lutas relativas às liberdades, novos
questionamentos da vida cotidiana, do ambiente, do desejo” (GUATTARI, 1981, p. 219), é
precisamente pelo caráter ao mesmo tempo local e global das batalhas empreendidas. Uma
micropolítica que se proponha a subverter a subjetividade “de modo a permitir um
agenciamento de singularidades desejantes deve investir o próprio coração da subjetividade
dominante, produzindo um jogo que a revela, ao invés de denunciá-la” (GUATTARI e
ROLNIK, 1986, p. 30).
Tal micropolítica não está separada da macropolítica, uma vez que não oposição
distintiva entre esses níveis, mas sim uma coextensividade. Assim como não seria possível
pensar em uma revolução que não fosse molecular, “as fugas e os movimentos moleculares
não seriam nada se não repassassem pelas organizações molares e não remanejassem seus
segmentos, suas distribuições binárias de sexos, de classes, de partidos” (DELEUZE e
GUATTARI, 1996, p. 95). A questão é criar um plano de consistência para que essas
microrrevoluções ganhem permanência, sendo essa construção uma política que
necessariamente engaja um coletivo, agenciamentos coletivos, um conjunto de devires sociais.
É a voz dos jovens e a dos loucos, dos indígenas, dos imigrantes aliada a um
coletivo, composto por todos que se sentirem convocados, o que pode fabricar novas
realidades:
Ou a reforma é elaborada por pessoas que se pretendem representativas e que têm
como ocupação falar pelos outros, em nome dos outros, e é uma reorganização do
poder, uma distribuição de poder que se acompanha de uma repressão crescente. Ou é
uma reforma reivindicada, exigida por aqueles a que ela diz respeito, e aí deixa de ser
uma reforma, é uma ação revolucionária que por seu caráter parcial está decidida a
colocar em questão a totalidade do poder e de sua hierarquia. Isto é evidente nas
prisões: a menor, a mais modesta reivindicação dos prisioneiros basta para esvaziar a
pseudo-reforma Pleven
94
. Se as crianças conseguissem que seus protestos, ou
simplesmente suas questões, fossem ouvidos em uma escola maternal, isso seria o
bastante para explodir o conjunto do sistema de ensino. Na verdade, esse sistema que
vivemos nada pode suportar: daí sua fragilidade radical em cada ponto, ao mesmo
tempo que sua força global de repressão (DELEUZE e FOUCAULT, 1979, p. 72,
grifos meus).
Falar em ação revolucionária, ou em revolução molecular, não é o mesmo que dizer o futuro da
revolução, nem o planejamento da revolução. O que nos interessa são os processos que ocorrem
“enquanto se gira em torno de tais questões, [...] devires que operam em silêncio, que são quase
imperceptíveis” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 10), uma vez que as coisas nunca se passam onde se
acredita, nem pelos caminhos que se acredita. Futuro e passado não têm muito sentido para a revolução,
o que conta mesmo é o devir-presente, mais uma geografia que uma história.
Quando trabalhamos na lógica do devir, que não opera por desenvolvimento ou evolução,
estamos situados no entre, no meio, longe das margens, ou seja, em um puro fluxo que não está pautado
pelas regras e normas:
Parece que o projeto está tomando cada vez mais velocidade, imagino que estaremos
no meio da corrente do rio, em pleno rizoma, nada pelas bordas, e sim tudo na
intensidade, velocidade, puro fluxo, puro devir. (Diário de campo I, 12 de março 2003)
Às vezes sinto que o "problema" tem sido precisamente tanta potência, tantas forças,
tantas linhas e tantas intensidades no grupo, que sinto uma velocidade total, acho que
deve ser porque estou no meio? A circulação pelo meio do rizoma? (Diário de campo
I, 28 de fevereiro 2003)
Esse meio não é uma média, “não é um centrismo, nem uma moderação. Trata-se ao contrário,
de uma velocidade absoluta. O que cresce pelo meio é dotado de tal velocidade. [...] o absoluto é a
velocidade do movimento entre os dois, no meio dos dois, e que traça uma linha de fuga” (DELEUZE e
PARNET, 1998, p. 40-41). Quando a intervenção se pelo meio, é velocidade pura, experimentação
que não configura um imediatismo mas uma espécie de “presentismo”. No trabalho com os jovens,
94 Os autores fazem referência ao plano proposto pelo primeiro ministro francês René Pleven, em 1950, para criar um
exército europeu supranacional, a Comunidade Européia de Defesa.
sentimos essa aceleração no corpo como uma espiral de análise que vai girando e perpassando
não apenas os corpos físicos mas também os corpos institucionais e administrativos.
Habitar o meio não é ocupar o centro, como se poderia pensar. Tentar centralizar e
apropriar-se do movimento seria aniquilar precisamente o que caracteriza o devir, insistindo
na privatização e na hierarquia arborescente ao invés da fluidez do rizoma. Cada vez que,
durante a intervenção, de alguma forma nos colocamos no lugar de coordenação, freamos o
processo de análise e algo parece emperrar:
Hoje tem sido um dia algo introspectivo, acho que estou novamente
emprestando o corpo para as intensidades que circulam, e a palavra que
tenho para descrever o dia de hoje é: trancado. Tem algo trancado por aqui,
desconexo, parece que não anda...
Tua mensagem passou uma sensação (sempre os sentidos) que já tive por lá,
uma aparente tranqüilidade de lugares definidos por territórios de poderes
cristalizados. Estes jovens começam a tirar essas fronteiras de lugar, então a
psicologia estaria ali para dar conta destas linhas que se abrem, onde estão
as diferenças, tensionamentos, talvez a loucura. Minha sensação é que o
movimento tende a nos cristalizar também então temos o TRANCADO, é
bom desviar, fazer outras coisas, manter o movimento...
Gislei (trocas de e-mail em Diário de campo I, 12 de fevereiro 2003)
Essa sensação de aprisionamento não é sinal de que precisamos fazer mais. Ela
aparece quando confundimos a velocidade do meio com um imperativo de sobre-atividade e
tentamos monopolizar a análise, a intervenção, as decisões. Se algo tranca, é porque estamos
cristalizados no lugar do saber e do especialista, ocupados em procurar respostas que não
devem ser respondidas por nós, se queremos construir uma análise efetivamente coletiva.
Deixar passar, não obstruir os fluxos das linhas em devir, isso é o que nos aponta o corpo
trancado.
Deleuze e Guattari (1997) insistem em que o devir é sempre de uma ordem outra que a
da filiação, por isso a tática arborescente-hierárquica não pode servir. O devir é da ordem da
aliança, ele
cessa de ser uma evolução filiativa hereditária para tornar-se antes
comunicativa ou contagiosa. [...] O movimento não se faz mais apenas ou
sobretudo por produções filiativas, mas por comunicações transversais entre
populações heterogêneas. Devir é um rizoma, não é uma árvore
classificatória nem genealógica. Devir não é, certamente, imitar, nem
identificar-se; [...] nem produzir, produzir uma filiação, produzir por
filiação. Devir é um verbo tendo toda sua consistência. (DELEUZE e
GUATTARI, 1997, p. 19)
Por isso, o que precisamos é construir alianças, entre a equipe interventora, com os
jovens, e também com suas famílias, com as comunidades nas quais vivem e com a sociedade na qual
se inserem. A estratégia de maior força para subverter as ordens dominantes consiste nesse contágio
que é próprio da aliança, produzir redes solidárias que tornem possível essa empreitada. Mas não uma
rede homogênea, formada pelos que lutam em seu setor circunscrito uma rede dos que lidam com os
jovens em cumprimento de medida sócio-educativa, outra daqueles que trabalham em saúde mental,
outra dos que se reúnem em torno às questões de gênero. A rede que buscamos deve perpassar todas
essas
95
, possuindo certa descontinuidade geográfica, uma vez que,
se é contra o poder que se luta, então todos aqueles sobre quem o poder se exerce
como abuso, todos aqueles que o reconhecem como intolerável, podem começar a luta
onde se encontram e a partir de sua atividade (ou passividade) própria. E iniciando
essa luta que é a luta deles de que conhecem perfeitamente o alvo e de que podem
determinar o método, eles entram no processo revolucionário. (DELEUZE e
FOUCAULT, 1979, p. 77)
Ao construir estratégias para essa revolução, em nenhum momento devem ser desprezadas as
estruturas e os componentes macro que operam no contemporâneo. Os tópicos apresentados no capítulo
anterior apresentam alguns desses atravessamentos no que diz respeito ao fenômeno da infração
juvenil, e precisam ser considerados ao formularmos nossas análises e ações.
Partindo disso, o desafio que encontramos é o de revestir todos os espaços de uma
micropolítica, ou melhor, de micropolíticas que valham para sair dos modelos instituídos que
determinam, entre outras coisas, o que seja a infração, o infrator, os especialismos, as relações, os
encontros, as linhas de vida e as linhas de morte. Não se trata de buscar uma micropolítica justa, mas
apenas uma micropolítica
96
, a qual se aplique a um determinado agenciamento e nos sirva como tica
para realizar a luta na singularidade em que ela se produz. Apresento, a seguir, um conjunto de
estratégias que configuram uma metodologia singular, criada ao longo das experiências com jovens
autores de infração nos diferentes programas em que participamos
97
.
3.2 – Pistas para uma metodologia possível
95 No filme “This is what democracy looks like” (2000), fica evidente a força e os efeitos de uma luta composta por
diversas frentes – trabalhadores, ambientalistas, mulheres, minorias raciais, estudantes, entre outros.
96 Referindo-se às imagens de Godard, Deleuze e Parnet (1998) afirmam: nada de idéias justas, apenas idéias. “Não se deve
procurar se uma idéia é justa ou verdadeira. Seria preciso procurar uma idéia bem diferente, em outra parte, em outro
domínio [...]” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 17-18).
97 Essa metodologia possui autoria coletiva, criada dentro das ações do atual Projeto de Extensão ESTAÇÃO PSI, do
Departamento de Psicologia Social e Institucional da UFRGS.
As tecnologias psi m um papel histórico a desempenhar nesse processo de
engendramento de novos modos de agir, sentir, pensar, desejar, existir, já que
dispõem de instrumental sutil e legitimado de ação no tecido social. É frente aos
mecanismos sociais de modelização do comportamento, de reprodução de
condutas uniformes e adaptadas ao funcionamento da ordem capitalista, de
naturalização da subjetividade moderna que é possível testar a força e o
compromisso dessas tecnologias. Como formas de intervenção, devem incidir
sobre essas formas de subjetivação que, coladas à noção de identidade individual
e forjadas como dispositivo político de intimização, se disseminam por todo o
campo social naturalizando valores individuais e privados.
(Cláudia Abbês et al)
Foucault, no prefácio à edição estado-unidense do Anti Édipo
98
, afirmou que, se
“devesse fazer desse grande livro um manual ou um guia da vida cotidiana” (FOUCAULT,
1996b, p. 199), seria necessário apresentar alguns princípios
99
essenciais para a arte de viver
contrariamente a todas as formas de fascismo. Também Guattari (1981), em um texto
chamado “Pistas para uma esquizoanálise os oito princípios”, expôs algumas
“recomendações de bom senso, algumas regras simples para a direção da análise do
inconsciente maquínico [...] que, aliás, poderiam ser aplicadas a campos completamente
diferentes, a começar pelo da ‘grande política’” (GUATTARI, 1981, p. 139).
Inspirada nessas produções, e visando analisar não apenas formas de trabalhar mas,
principalmente, estilos de vida que possam ser libertários e não opressores, proponho, de
forma esquemática
100
, algumas ações que temos sistematizado na intervenção com jovens em
cumprimento de medida sócio-educativa. A seguir, apresento algumas pistas para uma
metodologia no trabalho com jovens autores de infração e com as equipes que os
acompanham, sem pretender configurar uma receita unívoca mas apontando um caminho
possível a esse labor, o qual se mostrou potente no trabalho realizado com os jovens no
Abrindo Caminhos, na PR/RS.
98 Livro de Deleuze e Guattari (1976).
99 O texto merece ser lido na íntegra, pois traz, de forma resumida, pontos importantes a serem considerados em
uma intervenção esquizoanalítica. Algumas das indicações mencionadas são que é preciso liberar a ação política
de toda forma de paranóia unitária e totalizante, e que temos de fazer crescer aão, o pensamento e os desejos
por proliferação, justaposição e disjunção, e não por subdivisão e hierarquização. O autor também nos incita a
preferir o que é positivo e múltiplo, a diferença, os fluxos, os agenciamentos, ao invés do negativo e da lei, e nos
alerta para não confundir tristeza com militância, “mesmo se o que se combate é abominável” (FOUCAULT,
1996b, p. 200), pois apenas a ligação do desejo com a realidade possui força revolucionária.
100 A maioria dos itens aqui apresentados foram discutidos ao longo do trabalho, por isso a escolha por uma
apresentação sucinta de alguns pontos-chave neste momento.
Se tivesse de colocar em apenas duas palavras o que sustenta nossa prática, citaria a auto-análise
e a autogestão
101
, como apresentadas pelo movimento da análise institucional (LOURAU, 1975;
LAPASSADE, 1983; BAREMBLITT, 2002). A intenção é que os próprios coletivos com os quais
trabalhamos possam construir e autorizar-se a possuir um saber acerca de si, de suas necessidades,
de seus desejos, de suas forças e estratégias, sem precisar de um experto que venha, de fora, contar ou
impor um conjunto de elementos que ele supõe se tratar das questões fundamentais do coletivo.
Simultâneo ao exercício da auto-análise, deve surgir uma articulação do grupo para organizar-se e
fabricar os dispositivos necessários para conseguir os recursos de que precisa para melhorar sua
condição de vida, ou seja, é necessária também uma autogestão dos meios para dar conta das demandas
levantadas na auto-análise.
Enquanto profissionais, nossa maior preocupação deve ser não atrapalhar, como indica Guattari
(1981), deixar as coisas seguirem seu fluxo, manter-nos nas adjacências dos devires em curso e
desaparecer o mais cedo possível. A psicologia, e qualquer outra profissão que pretenda participar no
engendramento de novos modos de agir, não pode se atribuir a coordenação dos processos em curso;
quanto mais a intervenção reconhecer e tomar por base os saberes do coletivo em questão, melhor. Isso
não significa que se deva prescindir, necessariamente, dos profissionais para os processos de auto-
análise e autogestão: estes podem ser chamados a compor desde que submetam seu saber à crítica do
grupo.
Nossa presença no Abrindo Caminhos, e nos demais programas em que participamos, não aspira
a dar conta de tudo que ocorre, e sim a compor junto aos servidores, procuradores e jovens, no caso da
intervenção na Procuradoria da República no RS, para que haja autoria e autonomia tanto nos
questionamentos como nas estratégias para levar adiante esses questionamentos. Para isso, todos os
espaços de trabalho se revestem do caráter de dispositivos de análise, isto é, os encontros pelos
corredores e as conversas informais
102
compõem a intervenção e exigem uma escuta dos processos em
movimento tanto quanto as reuniões e os grupos com os jovens.
Percebemos que a análise nunca é pontual, ela se em movimentos rizomáticos, podendo
iniciar-se como um estranhamento diante do funcionamento organizacional por parte dos jovens, depois
entrando em jogo o fazer da psicologia, e mais tarde sendo a vida dos jovens e a forma de viver no
101 A auto-gestão tomada como dispositivo e processo, e não como fim em si mesmo.
102 Este ponto também é indicado por Guattari (1981), quando afirma que a melhor posição para se escutar o inconsciente
não consiste, necessariamente, em ficar sentado atrás do divã. Essa tática é menos proveitosa ainda quando lidamos com
jovens, especialmente com jovens nos quais a vivência do tempo e da vida se pautam por outra intensidade. Ainda referindo-
se a algumas práticas em psicanálise, o autor questiona o preceito de que alguma coisa sempre acontece no inconsciente,
mesmo quando nada acontece de forma aparente. Esse preceito serviria para justificar a política do silêncio e das esperas
indefinidas, uma vez que o psicanalista guardaria alguma relação privilegiada com o inconsciente. Mas Guattari afirma que é
muito “raro que realmente aconteça alguma coisa nos agenciamentos de desejo! Aliás, convém guardar todo o relevo de tais
acontecimentos, e toda vitalidade das componentes de passagem que são sua manifestação” (GUATTARI, 1981, p. 139).
contemporâneo o que se em análise. Além disso, uma mesma linha analítica pode
manifestar-se de diversas formas nos diferentes planos o mesmo questionamento pode
aparecer como uma discussão sobre o lanche para os jovens, como uma reunião sobre
financiamento entre os procuradores, e como uma sensação de limite ou impotência para a
psicologia e servidores, por exemplo, todos os planos apontando para uma verticalidade na
forma de gestionar o projeto naquele momento.
Dado esse caráter dinâmico da análise, é fundamental reconhecer que as coisas
importantes quase nunca acontecem onde esperamos, o que impede que se possa programar ou
medir um acontecimento esquizoanalítico, a não ser pela variedade e pelo grau de
heterogeneidade que possa se estabelecer pelas
transferências rizômicas, de maneira que mais nenhuma espécie de
semiologia significante, de hermenêutica universal ou de programação
política poderá pretender traduzi-las, colocá-las em equivalência, teleguiá-
las para finalmente extrair delas um elemento comum facilmente explorável
pelos sistemas capitalísticos. (GUATTARI, 1981, p. 140)
Uma vez mais, trata-se da impossibilidade de centralização, controle ou normatização
do movimento por qualquer especialismo; apenas nos é possível cartografar e co-produzir
trajetórias. uma diferença entre a transferência por identificação personológica pela qual
o acontecimento fica referenciado ao nível individual e a transferência maquínica, que
procede “aquém do significante e das pessoas globais, por integrações diagramáticas a-
significantes e que produzem novos agenciamentos em vez de representar e decalcar
indefinidamente antigas estratificações” (GUATTARI, 1981, p. 141). Não é uma totalização
indivíduo a indivíduo que nos interessa, e sim uma transferência maquínica no encontro com
os jovens.
Seria desastroso tomar para si a tarefa de dar conta de tudo que nos rodeia, por dois
motivos simples: um é que, mesmo se tentássemos, não conseguiríamos realizar esse
empreendimento porque a realidade é muito mais complexa do que nossa capacidade de
abrangê-la. O outro é que nem sempre sabemos ao certo o que fazer, ou como fazê-lo, embora
a psicologia tenha insistido no contrário durante muito tempo, e ainda hoje. Se estamos
implicados em realizar um trabalho sério e ético, assumir essas incertezas deve fazer parte de
nossa prática. Guattari (GUATTARI e ROLNIK, 1986), referindo-se a um atendimento
realizado com um sujeito diagnosticado como esquizofrênico, relata que sua intervenção foi
fazer-lhe uma proposta, partindo da hipótese que ela poderia ser eficaz, de que ele saísse de
sua casa, encontrasse um alojamento e fizesse um mínimo de planos de vida. Não existia
garantia alguma de que não pudesse ocorrer alguma catástrofe, dada a história de vida do sujeito.
Diante disso, o autor refere que
é importante, nesse momento, que eu esteja absolutamente persuadido da realidade
desse risco e que ele [...] não tenha dúvida alguma da minha incerteza. Ao contrário, é
importante que ele saiba muito bem que não estou fazendo nem uma prescrição
terapêutica nem uma interpretação psicanalítica (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p.
242, grifos meus).
O que permitiu que algo ocorresse durante esse trabalho clínico foi justamente que este perdeu
seus traços mágicos e fascinantes, optando por apreciar o que poderiam ser os diferentes modos de
consistência de territórios e os processos maquínicos que poderiam ser postos em funcionamento. O
fato de ter assumido as incertezas que o autor chama de fator de verdade de uma situação foi
indispensável para a análise de tal forma que “se houvesse uma didática possível para esse tipo de
profissão, seria, exatamente, a de ensinar as pessoas a serem capazes de fazer uma espécie de
streaptease de todas suas certezas nesse campo, e de fazê-lo logo de cara” (GUATTARI e ROLNIK,
1986, p. 245). Tal atitude libera os elementos de singularidade para que funcionem como índices de
processos que nos escapam por completo, e que também escapam ao sujeito com quem estamos e de
qualquer descrição razoável e bem informada da situação.
A psicologia precisa abandonar toda tentativa de entender e explicar à exaustão o universo
humano, pois o devir não pode ser capturado por nenhum tipo de exercício racional ou premeditado.
Além do mais, nada é adquirido de uma vez por todas, nada se vence ou supera completamente,
nenhuma situação é garantida, uma vez que objeto algum pode ser designado por identidades fixas.
“Tudo permanece sempre em suspenso, disponível a todos os reempregos, mas também a todas as
degringoladas”, nos adverte Guattari (1981, p. 141), complementando que, em sendo assim, tudo é uma
questão de consistência de agenciamento e reagenciamento. Não haveria um ponto ao qual chegar e no
qual nos instalaríamos como sinal de tarefa cumprida. Se sujeitos, grupos e sociedade são compostos
por linhas, sempre estaremos em processo, em meio a intermináveis diagramas de produção da
realidade. Seria tão falso quanto perigoso, portanto, atribuir-nos certezas absolutas em nossas práticas
cotidianas.
Para que os movimentos de auto-análise e autogestão possam ocorrer de forma efetiva, são
necessárias reuniões sistemáticas da equipe de psicologia com a equipe local
103
, nas quais possam ser
enunciadas as inquietações, idéias, críticas, desconfortos e sugestões para que haja trocas e decisões
103 No caso do Abrindo Caminhos, a equipe local está formada pelos servidores que trabalham com os jovens no setor, os
servidores que realizam as oficinas, o procurador-chefe e a coordenação do setor de estagiários.
coletivas. Podem ser incorporadas discussões teóricas nesse espaço, a partir de temas que
surjam em função dos acontecimentos do cotidiano
104
. Independente disso, leituras semanais
na equipe de psicologia constituem uma ferramenta imprescindível para pensar e direcionar
nossas ações, permitindo também a produção de artigos e apresentações em eventos como
forma de publicizar o trabalho realizado, por um lado, e de abrir espaços de análise sobre a
temática da infração juvenil e das práticas em psicologia em mais ambientes acadêmicos e
não-acadêmicos, incluindo aqui o próprio local onde a intervenção ocorre
105
.
Desde o Programa da CORAG, primeira experiência com os jovens em medida sócio-
educativa, adotamos o uso da lista de discussões virtual como espaço de troca e produção
coletiva entre a equipe de psicologia. Para cada projeto, criamos uma nova lista que vai sendo
renovada periodicamente em função das entradas de novos estagiários da graduação e na qual
podem permanecer os que sentirem desejo de seguir, de alguma forma, participando no
trabalho. Essa tecnologia tem se mostrado imprescindível para acompanhar e criar as
vivências e intensidades de nosso fazer, propiciando um incessante diálogo teórico-prático no
qual analisamos e produzimos a intervenção, o nosso saber e a nós mesmas.
Com relação às atividades realizadas diretamente com os jovens, além de eventuais
acompanhamentos mais próximos de forma individual, se houver desejo por parte deles, nossa
ênfase está colocada no grupo-dispositivo como espaço de experimentação de si e de novas
formas de subjetivação, produzidas na ruptura com a noção de indivíduo como única forma
possível de existência. Embora todos os lugares sejam propícios para o encontro, a
configuração grupal possui uma potência especial como vetor de singularização, pois permite
um exercício quase lúdico no qual podemos arriscar a invenção e a criatividade, irradiando
depois para outros espaços. Mas o grupo enquanto dispositivo não está limitado a um formato
pré-determinado, ele pode ocorrer tanto em alguma sala como na sacada ou em qualquer outro
ambiente. De fato, a circulação pela cidade para alguma atividade fora provoca efeitos muito
visíveis, pois deslocar-se no plano geográfico propicia umarie de deslocamentos subjetivos
e uma relação inusual com a psicologia, uma vez que tanto os jovens como a equipe ocupam
lugares diferentes dos habituais.
O fato da presença da Universidade no Abrindo Caminhos ocorrer através de
estagiários de psicologia no local
106
promove, para os alunos, uma experiência durante a
104 Embora tenhamos discutido alguns textos nessas reuniões, essa prática não foi ainda implementada como
recurso permanente.
105 Essa prática de retornar a produção aos participantes da intervenção é chamada por Lourau (1993) de
restituição.
106 As estagiárias de psicologia realizam todas as atividades no local, mas a prof. Gislei Lazzarotto também
participa em vários momentos presencialmente, além de orientar academicamente e coordenar o trabalho da
equipe pelo projeto de Extensão.
formação profissional que rompe com o lugar do especialista, repercutindo na relação estabelecida com
os servidores, procuradores e jovens de modo que essa ruptura também ocorra para eles. A parceria
com a Universidade constitui uma afirmação de seu lugar enquanto produtora de conhecimentos
implicados com a realidade e enquanto articuladora de diversos outros órgãos, especialmente os
públicos, para a transformação dessa realidade.
Ao lidar com jovens que se encontram cumprindo diferentes tipos de medidas sócio-educativas,
temos contato com estabelecimentos estaduais, pela FASE, responsáveis pelas medidas em meio
fechado
107
, e com estabelecimentos municipais, com a FASC, responsáveis pelas medidas em meio
aberto
108
. Além disso, pela Procuradoria da República ser um órgão federal, também são promovidas
ações dessa ordem, como o contato com o então procurador chefe da República, Dr. Cláudio Fontelles,
que conheceu o trabalho desenvolvido e levantou a idéia de propor iniciativas semelhantes, não
obrigatórias, em nível nacional. O trabalho com tantas instâncias diferentes nos fez pensar na criação de
elos para operacionalizar uma rede efetiva na qual possamos construir, junto aos profissionais
envolvidos, dispositivos de produção de novos sentidos para o trabalho com jovens autores de infração
e para o espaço público. Não seria precisamente essa uma via de formulação de políticas públicas?
Um “simples” grupo de menos de dois meses de duração
109
envolve várias ações da
universidade (mobilização da equipe Estação PSI, busca de filmadora, verbas para
passagens, análise sobre necessidade de sistematização de contato com egressos como
parte da metodologia de trabalho no Abrindo Caminhos), na PR/RS (local de encontro,
verbas para lanches e fitas de vídeo, treinamento para uso da filmadora, análise sobre a
necessidade de um setor de RH para os trabalhadores, análise das oficinas de sexta
110
,
seu sentido e funcionamento), além de visitas a outros locais onde existem projetos
semelhantes, possibilidade de criar intercâmbios com esses locais.... quanta coisa!!!!
Além de tudo que gera para os jovens, para os que estão agora e para os egressos, e
para a equipe os questionamentos sobre nosso modo de trabalhar, sobre a subjetivação
e os processos de criação de mundos, de sujeitos. Como operamos nisso? Com o que
fazemos alianças? (Diário de campo II, 22 de julho 2005).
Às vezes penso que é um trabalho pequeno, são dois meses de encontro em grupo, uma
vez por semana, mas quantas coisas estão sendo mobilizadas com isso!! Quantos
órgãos, entidades, pessoas, fundos, etc são ativados com uma ação aparentemente
pequena! Quando pensamos em políticas públicas, não seria exatamente assim que
deveriam ser agenciadas? A partir de uma ão-dispositivo que provoca uma série de
agenciamentos para dar conta daquilo? (Diário de campo II, 12 de julho 2005).
107 A Fundação de Atendimento Sócio-Educativo FASE é responsável pela execução de medidas de Semi Liberdade e
de Internação (privação total de liberdade).
108 A Fundação de Assistência Social e Cidadania FASC trabalha com jovens em medidas de Liberdade Assistida e
Prestação de Serviço à Comunidade através do Programa Municipal de Execução de Medidas Sócio-Educativas em Meio
Aberto – PEMSE.
109 Refiro-me ao trabalho feito com os jovens para esta pesquisa, conforme o Anexo I, para a construção do vídeo sobre o
Abrindo Caminhos.
110 O trabalho desenvolvido para a produção do vídeo produziu questionamentos sobre as oficinas realizadas com os
servidores nas sextas-feiras e levou a uma nova configuração desse espaço.
Política pública não significa política estatal, pelo contrário, ela precisa ser criada por
aqueles que estão diretamente envolvidos com a temática em questão a partir do
tensionamento provocado no cotidiano. Barros e Passos (2005) discutem a relação entre
Estado e política pública:
Quando estes dois termos não são mais tomados como coincidentes, quando
o domínio do Estado e o do público não mais se justapõem, não podemos
aceitar como dada a relação entre eles. Se o público diz respeito à
experiência concreta dos coletivos, ele está em um plano diferente daquele
do Estado enquanto figura da transcendência moderna. O plano doblico
é aquele construído a partir das experiências de cada homem, na imanência
de uma humanidade que se define não a partir do método-padrão d’o
Homem, mas do que de singular em qualquer um. Tal singularidade não
se opõe ao coletivo, ao contrário é a sua matéria constituinte (BARROS e
PASSOS, 2005, p. 571, grifos meus).
Tem sido uma estratégia da intervenção incitar tensionamentos para que o público se
revista de coletivo e a formulação de políticas públicas possa partir dessa junção. Nossa maior
iniciativa nesse sentido, até o momento, foi o Seminário de Trabalho Educativo: construindo
olhares e ações em políticas para a juventude, realizado durante o ano de 2005 (ANEXO III),
formulado por pessoas dos três locais que tinham projetos semelhantes Procuradoria da
República no Rio Grande do Sul, Justiça Federal de Grau e Tribunal Regional Federal
Região
111
junto aos técnicos das unidades de encaminhamento dos jovens FASE e
PEMSE/FASC e levado adiante como Curso de Extensão da Universidade Federal do Rio
grande do Sul pela equipe do ESTAÇÃO PSI. Além de compartilhar experiências e modos de
trabalho, o seminário permitiu consolidar as relações entre os estabelecimentos e afirmar a
continuidade dessas parcerias. Todos os encontros foram filmados e colocados à disposição
nas redes internas de cada instituição, de forma que os demais que se interessassem pudessem
ter acesso ao que foi discutido. Também foi levantada a idéia de transformar esse material em
uma publicação impressa, permitindo uma circulação mais ampla do que vem sendo feito
nessa área e incentivando locais ou pessoas que queiram trabalhar com os jovens autores de
infração.
A associação Coordinadora de Barrios, de Madri, é um exemplo de produção de
coletivos e de ações públicas que independem do Estado. Um coletivo não se refere a número,
111 Atualmente, o projeto no Tribunal deixou de existir, por decisão da administração desse órgão. Por outro
lado, a Procuradoria da República Regional 4, instância superior à Procuradoria da República no RS, iniciou um
projeto no final de 2005 com um processo de formação dos servidores que receberão os jovens.
nem a formas, mas sim a forças que se agenciam para criar um plano de consistência no qual o desejo
possa produzir realidades. A notícia mais recente sobre suas atividades foi recém publicada na capa do
jornal espanhol El Mundo (ver ANEXO IV): pela primeira vez na história do país conseguiram impedir
que um jovem marroquino fosse deportado de volta a seu país pela Comunidade de Madri. Essa ação
sistemática de repatriação compulsória tem sido a única oferecida pelo Estado para lidar com a situação
dos imigrantes, sendo que neste caso, em especial, o jovem tinha sua situação regularizada, com visto
de residência legalizado, encontrando-se sob tutela da mesma Comunidade que tentava mandá-lo de
volta, infringindo todas as leis e garantias constitucionais. Essa conquista toma proporções ainda
maiores por sentar precedentes para outros casos semelhantes, de modo que um juiz possa reverter a
decisão de deportação tomada pelo governo. Trata-se, sem dúvida, de uma intervenção essencialmente
política, pública e coletiva.
As ações devem ser “minoritárias”
112
no sentido da esquizoanálise, dos devires, devem
ser sempre locais, não universais que tragam a resposta tranqüilizadora a tudo.
Pequenas ações, núcleos, células que se criam em função de agenciamentos
específicos e que trabalham para dar conta disso. Coordinadora de Barrios funciona
nessa lógica: agir de acordo com o que aparece, mas não em uma sobreimplicação que
impede a análise do fazer, e sim numa constante produção de estratégias em função do
que se apresenta como necessário naquele momento. Nenhuma resposta será
definitiva, nenhum manual di o que e como fazer. Como assusta saber disso!! Mas
ao mesmo tempo liberta para uma criatividade e autoria-autonomia em cada momento.
E com isso produzimos outras relações. O grupo com os jovens se torna espaço no
qual sabem que estamos construindo juntos, que meu saber é diferente mas não
superior aos seus, que iremos montando e guiando a ação a partir do caminho. Hodos
meta, cartografia constante, exercício que, para mim, só é possível no encontro com os
jovens, com isso que ocorre e faz com que não saibamos mais de quem foi tal idéia em
tal encontro, porque a produção passa a ser de todos, uma autoria coletiva que
contagia e produz outro jovem, outra psicóloga, outra cidade, outra realidade. (Diário
de campo II, 22 de julho 2005)
Para encerrar a série de delineamentos apresentadas neste capítulo, finalizo com um último
princípio, que na verdade constitui o primeiro: toda idéia de princípio deve sempre ser considerada
suspeita, uma vez que o mais importante de cada intervenção é sua singularidade. O exercício analítico
e a inventividade precisam estar presentes a todo momento, sendo a elaboração teórica “tanto mais
necessária e [...] tanto mais audaciosa quanto o agenciamento esquizoanalítico tomar a medida de seu
112 Guattari (1981) propõe pensar em termos de minoria ao invés de marginalidade, uma vez que o minoritário não se refere
a algo menor, mas se opõe a uma maioria que seria a determinação de um estado ou de um padrão em relação ao qual tantos
as quantidades maiores como as menores são ditas minoritárias (DELEUZE e GUATTARI, 1997). Seria o metro-padrão de
que falam Barros e Passos (2005), um estado de dominação sobre tudo o demais, que está sempre referenciado a ele. O devir
é sempre minoritário, processo que se opõe ao estado de minoria e que é molecular por excelência. O coletivo é
precisamente um campo de agenciamentos a produzir diagramas novos, minoritários.
caráter essencialmente precário” (GUATTARI, 1981, p. 141).
Nesse sentido, e a partir de nossa experiência e das análises construídas, temos
discutido na equipe alguns pontos a serem amplificados ou implementados em nossa prática.
Destacaria, neste momento, três linhas de ação que poderiam ser cartografadas com mais
veemência, pela potência que comportam. A primeira se trata de produzir mais momentos nos
quais todos pensemos o trabalho, ou seja, não apenas fazer reuniões com a equipe, ou com
procuradores, mas assembléias nas quais estejam jovens, psicologia, servidores, procuradores
e todos os que quiserem participar. Seria enriquecedor ter uma presença mais constante dos
jovens que desejassem na gestão do projeto de modo a terem mais voz nas decisões e análises
do Abrindo Caminhos. A segunda consiste em tornar sistemáticas as saídas com os jovens
pela cidade, uma vez que conhecemos os efeitos que se produzem nessa circulação, para eles,
para o projeto e para a cidade. A terceira linha de intensificação da intervenção seria criar ou
acionar redes não institucionais que nos ajudem a pensar e a agir, como por exemplo
associações de mães dos jovens em cumprimento de medida sócio-educativa
113
, associações de
bairro e outras organizações comunitárias que quisessem compor o coletivo.
Para que esta proposta de trabalho seja possível, temos de abandonar a lógica punitiva
que costuma mediar as relações com os autores de infração, abrindo-nos ao encontro e
apostando no que se produz ali. Estar com o jovem enquanto aliado, não enquanto
representante do poder nem em uma proposta de vínculo filiativo. Fazer com que circulem a
palavra e os afetos sem uma preocupação com a verdade ou com a idéia justa, pois não
podemos fechar-nos aos prováveis erros, saltos, bloqueios. Se fracassos entre
agenciamentos, não é devido a sua irredutibilidade de natureza, mas “porque sempre
elementos que não chegam a tempo, ou que chegam quando tudo acabou, tanto que é preciso
passar por neblinas, ou vazios, avanços e atrasos que fazem parte eles próprios do plano de
imanência. Até os fracassos fazem parte do plano” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 41).
A estratégia que pudemos compor é resultado de um caminho no qual a marca mais
importante tem sido a potência da vida, em todas as suas manifestações. Junto a jovens tão
massacrados pela proximidade cotidiana com a morte, encontramos transbordamento de vida,
de desejo e de coragem. Basta sair da opacidade em que nos colocam a inércia, o medo e a
raiva para perceber brilho nos olhares dos jovens e nossos. Somo minha convicção à de
Deleuze quando afirma que
113 O trabalho do grupo Moleque Movimento de Mães pela Garantia dos Direitos dos Adolescentes no
Sistema Sócio-Educativo –, criado em 2003 no Rio de Janeiro, é uma referência nesse sentido. Em julho de
2005, elas lançaram o relatório intitulado O Sistema Socioeducativo na Visão das Mães: Documento Diagnóstico
e Propostas 2005 (Sales e Silva, 2005).
acreditar no mundo é o que mais nos falta; perdemos o mundo; ele nos foi tomado.
Acreditar no mundo é também suscitar acontecimentos, mesmo que pequenos, que
escapem do controle, ou então fazer nascer novos espaço-tempos, mesmo de superfície
e volume reduzidos... É no nível de cada tentativa que são julgadas a capacidade de
resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle. São necessários, ao mesmo
tempo, criação e povo. (DELEUZE, 1990, p. 73)
Discutimos sobre os jovens em cumprimento de medida sócio-educativa mas estamos falando
de todos, indagando que forças da sociedade morrem a cada dia, vão presas, sofrem, são torturadas.
Acreditar na rapaziada, como ensina Gonzaguinha, vai além de um exercício profissional localizado:
constitui um questionamento político acerca das solidariedades, dos cuidados, dos diálogos e dos
encontros que existem e que podem existir entre as pessoas no contemporâneo.
PELAS VOZES QUE NOS FALAM
Há ou não motivo para se revoltar? Deixemos aberta a questão. Insurge-se,
é um fato; é por isso que a subjetividade (não a dos grandes homens, mas a
de qualquer um) se introduz na história e lhe dá seu alento. Um delinqüente
arrisca sua vida contra castigos abusivos; um louco não suporta mais estar
preso e decaído; um povo recusa o regime que o oprime. Isso não torna o
primeiro inocente, não cura o outro, e não garante ao terceiro os dias
prometidos. Ninguém, aliás, é obrigado a ser solidário a eles. Ninguém é
obrigado a achar que aquelas vozes confusas cantam melhor do que as
outras e falam a essência do verdadeiro. Basta que elas existam e tenham
contra elas tudo o que se obstina em fazê-las calar, para que faça sentido
escutá-las e buscar o que elas querem dizer. Questão moral? Talvez.
Questão de realidade, certamente. Todas as desilusões da história de nada
valem: é por existirem tais vozes que o tempo dos homens não tem a forma
da evolução, mas justamente a da história.
(Michel Foucault)
Estamos vivendo em tempos nos quais vemos a desvalorização da vida e a supervalorização do
indivíduo, da propriedade, do egoísmo. Querem nos fazer parecer pequenos demais, fracos demais,
insuficientes demais diante de um bloco tão grande como aparenta ser o capitalismo-neoliberal. Diante
disso, é uma escolha política apostar pelas outras forças que também existem, embora interesses
dominantes tentem invisibilizá-las; apostar nas transformações possíveis através dos micro-processos,
das micro-revoluções diárias, pois é através disso que o real se constrói e desconstrói permanentemente.
Temos a possibilidade e o compromisso ético de intervir no molecular através de nossas práticas e
produções cotidianas.
Embora muitas vezes nos sintamos mutilados e desestimulados em nossas ações, é da
inquietação que a realidade provoca em nós que podemos tirar as forças e a certeza de que a luta vale a
pena, é necessária, e é interminável. Deixar-se abater pelo “está tudo dominado” seria entrar no jogo
que tenta nos convencer que nada é possível, que não lugar nem necessidade de criação. Ao invés
disso, podemos adotar uma espécie de teimosia incondicional que insiste nas linhas vitais, como o faz
Ernesto Sabato:
Devo confessar que durante muito tempo acreditei e afirmei que este era um tempo
final. Por fatos que ocorrem ou por estados de ânimo, às vezes volto a pensamentos
catastróficos que não dão mais lugar à existência humana sobre a terra. Em outros, a
capacidade da vida para encontrar resquícios onde voltar a germinar sua criação me
deixam estupefato, como quem bem compreende que a vida nos excede, e ultrapassa
tudo o que sobre ela possamos pensar (SABATO, 2000, p. 137, tradução minha).
Se pretendemos combater o genocídio da juventude empobrecida, precisamos desenvolver “uma
mentalidade, [...] uma sólida argumentação, mas, como eles mesmos nos ensinam, que se inscreva no
real, na realidade. Uma argumentação com potência de ato” (VICENTIN, 2002, p. 295-296). Em
primeiro lugar, é preciso falar publicamente dos focos de análise, pois isso é uma luta, “não porque
ninguém ainda tivesse tido consciência disso, mas porque falar a esse respeito [...] é uma primeira
inversão de poder, é um primeiro passo para outras lutas contra o poder” (DELEUZE e FOUCAULT,
1979, p. 76). Mas não basta falar, devemos dar outros passos para que essa luta tome consistência e não
deixe espaço para a inércia ou para o descaso. Precisamos construir e exercer uma resistência, aqui
entendida como uma prática que não pretende ser oposição ou reação passiva, mas sim potência de
invenção e produção de realidade. Como afirma o Subcomandante Marcos, “as eleições passam, os
governos passam. A resistência permanece como o que é, uma alternativa mais pela humanidade e
contra o neoliberalismo. Nada mais, mas nada menos” (MARCOS, 2006, s/p, grifos meus).
A infração juvenil é um sinalizador dos modos de subjetivação dominantes no contemporâneo
porque aponta, entre outras coisas, como temos lidado de forma judicial com questões
político-sociais, e como a via do controle e da repressão tem sido preferida sobre as demais
vias, usando a estratégia do medo para ter a sociedade como aliada dessa política penal.
Apreender o fenômeno da infração como produção social coletiva nos coloca no centro da
problemática em questão, e não no lugar passivo de espectador: se foi produzido, pode ser
coletivamente desconstruído. As práticas de resistência se tornam, assim, inevitavelmente
coletivas, pois o capitalismo mundial integrado nos afeta a todos e procura encarcerar cada um
de nós em algum tipo de prisão – especialmente a prisão do medo que nos faz calar. Temos de
entender que a única estratégia que torna possível ao autoritarismo seguir vigente em nossa
sociedade é o fato de contar com toda uma rede de cúmplices, dos mais assumidos aos mais
ingênuos: “a religião do poder só prospera onde encontra devotos crentes” (REGUERA, 1994,
p. 20). Portanto, a única via de enfrentamento do autoritarismo é pela ação coletiva de todos
os sujeitos, através de tantas redes quantas forem criadas com tal propósito.
Se alguma vez chegou a sê-lo, há muito tempo que a vida deixou de ser pessoal, como
sugerem Deleuze e Parnet (1998): não somos indivíduos separados uns dos outros, nem
nada do outro que não diga respeito a mim também. “O outro sou eu”, gritam as mães da
praça de maio
114
, e, após trinta anos de incansável luta pela história dos desaparecidos da
ditadura Argentina, devemos confiar no que elas dizem. É possível fazer as coisas de outras
maneiras, e temos de fazê-lo para evitar tanto sofrimento humano e tanto desperdício de vida.
É possível através do questionamento dos abusos de poder e de nossa cumplicidade ou até
mesmo nossa aliança com ele; é possível através de ações locais e singulares, como nos
ensinam os teóricos do abolicionismo penal (PASSETI et al, 2004); através da produção de
espaços de escuta e de acolhimento aos processos sociais e aos sujeitos; através da
transformação da indignação e dos descontentamentos cotidianos em ação concreta e coletiva;
é possível se nos arriscamos e dispomos à diferença, criando novos sentidos para o público e
novas políticas para a existência. Se uma vocação para a clínica-política, é a de produzir e
acionar novas formas de viver, uma vez que a “única oportunidade dos homens está no devir
revolucionário, o único que pode conjurar a vergonha ou responder ao intolerável”
(DELEUZE, 1992).
Costumamos considerar a pobreza e a criminalização de setores inteiros da população
como questões que nunca serão resolvidas pela natureza e complexidade do assunto, usando
isso como desculpa para postergar qualquer iniciativa nesse sentido. Mas não argumento
mais distante da realidade:
114 Essa e outras manifestações são exibidas no vídeo “Fourth World War” (2003).
O mundo dos marginalizados, sobretudo em se tratando de crianças e de jovens, não é
algo residual; é um mundo intenso, pletórico de vida, de possibilidades, de sofrimentos
certamente, mas também de inimagináveis alegrias. Se está cheio de conflitos sem
resolver é porque se encontra à mercê de múltiplos interesses e também do desprezo,
ignorância ou medo daqueles que o nos consideramos marginalizados (REGUERA,
2006, s/p).
Acredito que a melhor forma de aproximar-nos e conhecer o universo dos jovens privados de
liberdade – e o de tantos outros grupos estigmatizados – é através de sua própria voz, do que nos podem
contar, denunciar, compartilhar, questionar. O que cada um de nós faz com essas falas é o que
determina os caminhos possíveis da juventude pobre de nosso país, e, conseqüentemente, os nossos
próprios caminhos de vida, e de morte. Trago, então, alguns trechos das palavras e da história de
Matias, jovem que participou do Abrindo Caminhos e que foi preso algum tempo depois
115
. Fiquemos
com essa voz que nos fala. Que nossos ouvidos não ensurdeçam, que nossos olhos não ceguem e que
nossas mãos não esmoreçam diante da luta que precisamos travar para preservar o que ainda nos
caracteriza enquanto humanidade.
Gislei: Tu falou antes que tu tinhas vergonha de nos receber. Por que? O que tu estás
lembrando lá da PR...
Matias: É que aconteceu muita coisa desde que eu saí de lá. Quando eu saí de eu
sabia que eu tava indo pra liberdade, tava indo pra casa, pra minha família, que é
longe. Mas eu sabia também que eu estava deixando pra trás uma oportunidade que eu
nunca mais ia ter... o cotidiano de fora não é... é bem diferente do cotidiano que eu
aprendi com vocês, dentro do projeto. E.... eu fiz muita coisa errada fora, antes
eu até não tinha feito tanta coisa, antes de eu ter ido pra FASE, mas depois que eu saí
eu me vi numa situação difícil em C., onde minha família morava, mora, e... pessoas
tentaram me matar lá, sabe, aí eu tive que... eu vou explicar mais ou menos como é que
aconteceu. Tentaram me matar lá, porque quando eu fui pra FASE eu deixei
inimigo na rua. Aí quando eu saí de essas pessoas continuaram tentando me matar,
eu tive que deixar minha família, minha mãe também pediu pra mim que eu viesse
pra Porto Alegre, que assim que ela pudesse ela vinha com as crianças, com o resto da
família. eu fiquei morando na casa de uma tia minha [...], que o lugar era no
morro, o morro Santa Teresa, uma favela, não tem muitas condições de vida boa,
ninguém o exemplo, tu não nada de bom, assim. [...] E o crime tava... tava
violento no morro e... eu acabei... eu olhei pro lado e não tinha mais ninguém por mim
[...] Eu vim pra com a intenção de me livrar das broncas que eu tinha com esses
caras e ir atrás de um emprego, continuar os estudos, era o que eu queria pra mim.
Mas... eu acabei me envolvendo com... tu vê coisa ruim,vê morte, um dia sim,
um dia não, acabei me envolvendo no tráfico. E.. isso daí que eu gerei mais inimigos
do que eu tinha, muito mais inimigo do que eu tinha, e inimigos fortes, também
tentaram me matar muitas vezes, eu aprontei... guerra de tráfico... vocês não devem
entender como é que é, mas guerra de tráfico é... e eu acabei me envolvendo com isso
daí, quando eu vi eu tava dominado, não podia estar sem uma arma na cintura,
115 Os diálogos aqui apresentados ocorreram durante a visita que fizemos a Matias no presídio. Com sua autorização, a
conversa foi gravada em áudio para ser levada aos jovens e servidores da PR/RS.
porque aonde eu ia eu tinha inimigo... na verdade eu não podia muito sair do
morro, eu tinha.. ali era meu espaço e eu tinha que ficar ali, tinha que
defender aquele espaço. Eu nunca fui de roubar, nunca fiz assalto nada, daí
um dia me convidaram, e como eu tava no crime, tava por todos, e eu
não tava mais dando valor pra minha vida, eu tava ali não queria saber se
amanhã eu ia estar vivo, se eu ia estar morto, na verdade eu não tava dando
mais valor pra minha vida, queria viver aquele momento ali. [...] Peguei
36 anos de reclusão, sendo que 24 tem que ser integralmente fechado, seria
atrás da porta.. eu fiquei pensando: 36 anos.. eu tenho 18... é o dobro...
não vivi nada, não aproveitei nada... [...] sobre o Projeto é a única coisa boa
que eu posso dizer, eu tive muita coisa boa, mas o fato de aprendizagem, não
de aprender a fazer o trabalho, a realizar o trabalho, mas a pessoa, o
projeto Abrindo Caminhos foi o melhor exemplo de vida que eu tive, e se
daqui pra frente mais jovens forem realizar, que eu acho que vai continuar,
tem que continuar, peço que não sigam esse exemplo de querer ir pro crime
que não vai adiantar nada. [...]
Daniela: Hoje os jovens que estão lá lembram de ti no dia da seleção, lembra
que tu foi fazer uma visita, aí deu teu depoimento...
M.: Ah, os que estão agora? Ahã.. Eu fiz uma visita me chamaram e
estavam fazendo a seleção, né?
G.: Eles falam muito da tua música... Tu estás escrevendo música ainda?
M.: Continuo, continuo escrevendo, isso aí eu não paro nunca.
Fernanda.: Não quer aproveitar e mostrar pra gente um pouco do que tu
andas fazendo?
M.: Não, não.. tô muito... bah...
G.: Não deixa de fazer tua música...
M.: Não, não vou deixar.
G.: Ela continua, ainda é parte de ti.
M.: Faz parte da gente, [...] é um dom.
D.: De que tuas músicas estão falando hoje?
M.: Falam de... eu ainda não comecei, que apesar de... se eu fosse me
inspirar no lugar que eu estou agora, eu faria música violenta, que falaria de
crime, falaria de tudo. Mas eu tenho as músicas que eu fiz fora ainda, [...]
acho que eu estava no projeto ainda, nos últimos dias que eu entrei na FASE
eu fiz mais duas músicas, uma delas fala que eu fiquei isolado, [...] sabe,
nos últimos quinze dias que eu estava me envolvi numa briga na FASE e
fiquei isolado numa cela sozinho e pedi uma caneta e um papel e fui
escrevendo, fiz uma música. [...] Acho que é a mesma que foi gravada na
entrevista pra TVE. ... Não ra, vamos continuar, dignidade é a meta,
vamos conquistar”, esse é o refrão. ... Agora eu aí, né... não tem mais
esperança, não sei... 36 anos não é... não é 36 meses nem 36 horas, é 36 anos
que... que arrumei sem... sem motivo, sem... Se eu tivesse procurado ajuda
de novo mas... parecia que estava distante, eu estava num mundo que
não... ... o crime é louco e eu não sabia... tentei resistir...
(silêncio...)
G.: Então é bom que alguém fique puxando do outro lado. Porque depois a
gente fica em dúvida, quando vocês terminam o estágio, se a gente tem que
ir atrás de vocês, tem que chamar e tal, ou tem que deixar vocês seguirem,
mas isso que tu diz fala muito de alguém que possa ajudar a fazer essa
escolha por outro caminho, alguém que puxe pro outro lado, nessa batalha,
porque é uma batalha
M.: É...
G.: Como tu falaste na música, tu disseste antes também que realmente a
gente não tem noção do que é isso, acho que só...
M.: Só quem vive.
G.: Com certeza. O que a gente tem noção é que a gente quer fazer algo... e
estar com os jovens pra poder criar outro caminho, isso a gente sabe, isso é o que a
gente pode e a gente quer saber. E eu acho que quando tu falas isso fala do quanto é
importante alguém puxando pra ir pro caminho da vida, viver a vida, enfim, pensar
alternativas, insistir.
D.: Esse Matias que a gente conheceu lá...
G.: E que está aqui também, viu Matias, acho que a gente te percebe também com a
música, com a reflexão, com o olhar. Então isso também está em ti... Realmente, eu
acho que 36 anos é... o que a gente vai dizer... mas por isso que eu acho que a vida da
tua música quem sabe seja uma via pra te encontrar...
(silêncio...)
M.: Eu fico pensando no que... [na PR/RS] várias pessoas me conheceram,
mesmo que seja por intermédio dos outros falarem, e agora com essa situação, eu
não sei, o jornal fala muita coisa, vai fazer seis meses que aconteceu isso daí e agora
esta semana saiu uma reportagem no jornal que saiu nossa condenação, que nós
tínhamos sido condenados, e o nosso processo na justiça, a gente está esperando o
resultado da apelação, também, né, é um absurdo, o Elias Maluco pegou 26!! E eu
peguei 36!!! Aí eu fiquei assim... o que as pessoas devem pensar, o Matias estava aqui
com a gente, o que houve, talvez seja isso que vocês estejam tentando entender, por
que eu estou aqui, por que eu fui fazer isso...
G.: ... Acho que não é... quando saiu no jornal a história, dizendo que eras tu que
estavas, teu nome, a gente se reuniu lá, com o pessoal do setor e o Dr. Marcelo, e acho
que... a primeira coisa que a gente pensou assim é que jamais a gente te julgaria,
Matias, nenhum de nós está isento no mundo de alguma coisa, de viver uma situação
que a gente não sabe, a gente não sabe mesmo. Então quando a gente pensou nesse
projeto, e acho que todas as pessoas que vivem o projeto, que levam pra frente lá, elas
têm abertura pra.... estão abertos pra qualquer situação. E acho que nós sofremos,
ficamos tristes, compartilhamos esse teu sofrimento, claro que a gente nunca vai ter o
que tu estás vivendo e o que tu já viveste, e acho que o fato de estar aqui... acho que o
pessoal que lembrou de ti lembra muito de ti, lembra da tua música... mandou recados,
mandou abraço, então isso significa que também é vida, isso também faz parte da tua
vida, então assim, como tu diz, tem coisas boas na tua vida, tem, e tu deixaste também
coisas boas.
D.: ... De alguma forma fez diferença tu estar ali, de alguma forma tua passagem vai
fazer diferença pra o Abrindo Caminhos como fez pra nós.
G.: E também pensamos no que a gente poderia ter feito diferente, entendeu? Então a
gente não sabe... acho que sim, acho que tu fizeste... tu também fizeste uma opção, um
caminho, num determinado momento um caminho por um lado...
M.: Eu fiz a escolha...
G.: Mas também a gente sabe que, bom, como tu disseste, com quem tu podias contar,
como é isso, e isso a gente pensa muito, como que nós, na PR/RS, como que a
sociedade também oferece alguma coisa... então a gente sabe que não é teu, e não é
nosso, é de todos, isso a gente tem bem claro. Todos nós de alguma maneira temos
alguma responsabilidade na forma como a gente vive, então acho que quando tu falas
da tua história, com quem tu podias contar, que tu ficou angustiado, acho que fala
disso. O projeto é isso, a gente quer estar com a vida... poder pensar outros caminhos.
M.: Eu consegui, no projeto eu consegui me desviar, assim, eu tinha um pensamento,
dentro da FASE, de sair pra rua, tinha uns planos, de repente na seleção que eu
consegui, participei lá, fiquei o tempo que eu tinha pra ficar, e o projeto me ajudou,
me ajudou assim [...] eu trabalhei, segui trabalhando, consegui um emprego com meus
familiares, [...], me matriculei, segui estudando na rua, desde... se eu não me engano
foi em abril maio que eu saí de lá, continuei estudando até setembro, foi que
começou essa perseguição desses caras lá, a primeira coisa que eu fiz, que eu já fazia,
foi botar uma arma na cintura e pensar em mim, mas foi tão grave a situação que
minha família eu também botei em risco [...] então eu achei melhor eu vir pra cá.
que aqui eu vim pra cá e o crime daqui é diferente de lá..
G.: É mais pesado... Cada vez fica mais, né?
M.: [...] Até quando eu cheguei no morro ali eu vi aquela favela, eu pensei,
agora vai ser aqui que eu vou botar, eu tenho um projeto de hip hop que eu
fiz pra levar pra C., fiz dentro da FASE o projeto, pra levar pra lá, eu
apresentei pro diretor de uma escola, das escolas municipais, eu tava ainda
em Liberdade Assistida, na FASE, ainda tinha que me apresentar no Foro,
como eu estava cumprindo ainda uma medida, que em liberdade, eles
meio que não aceitaram lá, “ele já foi pra FEBEM”, na realidade eles foram
preconceituosos comigo. Eu s da FEBEM, a cidade é pequena, eles já
sabiam o que eu tinha feito [...] então o tempo que eu fiquei ali eu fiz um
projeto que eu poderia mudar muita coisa, o meu projeto era a nível
municipal, escola municipal, comunidade carente, centro comunitário, eu
queria levar o hip hop pra lá, que não é destacado, aí eles foram
preconceituosos, “não, tu cumprindo essa medida na FASE, depois
quando tu terminar tu volta aqui, a gente vai pra Secretaria de Educação ver
o que a gente pode fazer, se pra levar o projeto”. eu desisti. Mas o
projeto guardadinho lá. E... eu me envolvi assim de uma maneira que...
não tem explicação...
G.: ... É, tem coisas na vida que a gente não explica mesmo. Mesmo a gente
aqui com a psicologia, há coisas que não têm explicação.
D.: A gente não pode dizer que a gente não se perguntou “por que?”.
G.: Todos nós nos perguntamos.
M.: [...] Eu tenho esperança que diminuir essa sentença, se não diminuir,
imagina só, como é que eu vou... vou sair daqui sem nenhuma esperança...
só violência e sofrimento...
[...]
G.: Eu acho que agora está muito próximo do que aconteceu, o momento
que ocorreu, então acho que, sei que é muito difícil, mas ver como
encaminhar isso
116
. Pode ter outras surpresas na tua vida que não sejam
essas. Eu acho que é isso que a gente tem que pensar, acho que o Matias,
assim, tu falas de mostrar o que tu eras, acho que tudo isso também faz parte
de ti, é disso que estamos falando aqui, tu também és o Matias.
M.: Eu não quero que vocês pensem que eu era, simplesmente, ah vou
roubar, [...] não quero que vocês pensem isso porque na realidade não é
assim.
G.: É por isso que a gente es aqui, por isso tudo que tu já foste conosco lá,
e que está aqui também. Se for importante pra ti a gente fazer uma visita,
podemos fazer. Isso que tu está dizendo é importante pro projeto, pros
jovens que estão lá, e pra nós, também, pra equipe, poder saber de ti, fazer
essa comunicação que de outra forma não dá, pra mostrar que tem pessoas
que estão pensando em ti e estão preocupadas contigo.
[...]
G.: E a gente agradece por tu teres nos recebido...
M.: Eu que agradeço, eu que tenho que agradecer.
G.: Se fez bem pra ti, fez bem pra gente também...
F.: E poder levar um pouco da voz do Matias também... (Diário de campo II,
31 de agosto 2005).
116 A possibilidade de sair após cumprimento de um terço da medida.
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No prelo.
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Freitas Bastos/Instituto Carioca de Criminologia, 2001b.
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência IV: Os jovens do Brasil. 2ª. Edição.
Brasília: UNESCO, Instituto Ayrton Senna, Ministério da Justiça/SEDH, 2005.
ZAPATISTA. Nova Iorque: BIG NOISE FILMS, 1998. Videocassete.
ZERO HORA. Seção Polícia, 16 mar. de 2003.
ANEXO I
Traçando e Abrindo Caminhos
Arte para contar histórias possíveis
Parceria inter-institucional para atividade de pesquisa:
Universidade Federal Fluminense – UFF,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS,
Procuradoria da República no Rio Grande do Sul – PR/RS,
Mestranda Fernanda Bocco
Porto Alegre, junho 2005.
Justificativa
A partir do trabalho realizado em 2003 na PR/RS, momento de início o atual projeto Abrindo
Caminhos, surgiram inúmeras questões tanto teóricas como práticas que senti a necessidade de
aprofundar. Em função dessa inquietação, procurei o ambiente acadêmico para continuar estudando e
poder pensar nessa experiência anterior e em futuros trabalhos que lidem com jovens em cumprimento
de medida sócio educativa.
Com o início das atividades no programa de pós-graduação Estudos em Subjetividade, da
Universidade Federal Fluminense (UFF/Niterói), formou-se a idéia de fazer o trabalho de campo na
PR/RS, em função das relações estabelecidas e por ter sido nesse local que as questões do mestrado
foram suscitadas. Acredito que a pesquisa possa trazer contribuições para o local, uma vez que
possibilitaria apreciar os efeitos do Projeto na vida dos jovens, bem como produzir subsídios teórico-
práticos que possam servir à equipe que trabalha atualmente com eles, assim como a outros possíveis
interessados. Além disso, poder continuar desta forma o trabalho que iniciei no MPF-RS seria
extremamente valioso para mim, tanto afetivamente como em minha formação e prática profissionais.
O momento de ida a campo é o ponto principal do mestrado, a partir do qual será feita a escrita
da dissertação. Esta tem como proposta problematizar a infração juvenil e sua relação com as
produções histórico-sociais de nosso país, apontando para a maneira como temos lidado com essa
questão ao longo do tempo.
Podemos observar que a juventude pobre brasileira é cada vez mais alvo de represálias
desmedidas por parte da sociedade e do Estado, que consideram essa população a principal causa da
desordem social e do medo generalizado. Tal percepção equivocada os leva a punir os sujeitos como se
estes fossem individualmente “doentes”, “criminosos natos”, sem considerar o contexto econômico e
social que origina as desigualdades e a miséria, estas sim causadoras de violência.
Pensar na infração juvenil como uma produção social ao invés de atribuí-la a características
pessoais internas exige que se faça uma análise do modo em que a sociedade está funcionando para
que tal fenômeno se produza. Também implica assumir que todos temos participação na criação e
manutenção dessa situação, assim como temos a possibilidade de criar outras referências para que esses
jovens possam fazer outro caminho que não seja pela violência, mas que aposte sempre pela vida.
Objetivos
A realização deste trabalho na PR/RS tem os seguintes objetivos:
Construir, junto aos jovens, uma produção artística (pode ser um mural, uma música,
um videoclipe, um livreto, uma pintura, fotografias, entre outros, a ser definido no
próprio grupo) que resgate a trajetória dos dois anos e meio do Projeto Abrindo
Caminhos. Isto será feito partindo das habilidades dos próprios jovens e da discussão
em grupo para definir que tipo de produção escolher e a forma de realizá-la;
Circular, com os jovens, por alguns espaços da cidade com a intenção de conhecer
outras criações que possam ajudar na escolha;
Operacionalizar a inclusão das trajetórias de vida dos jovens e as interferências/efeitos
a partir do contato com o Projeto Abrindo Caminhos durante o processo de produção
artística;
Acompanhar os efeitos da intervenção do dispositivo grupal neste tipo de proposta
com os jovens;
Oferecer outro espaço aos jovens para produzir novas relações e aprendizagens que
possam subsidiar análises sobre o funcionamento da sociedade brasileira atual em sua
relação com a criminalização juvenil.
Metodologia
A partir de experiências anteriores, percebemos que o trabalho em grupo com este
público é muito proveitoso e fértil. No grupo se cria um espaço coletivo no qual todos podem
vivenciar formas de ser e de pensar diferentes das suas, encontrando novas maneiras de lidar
com a vida. Também podem compartilhar questões que descobrem não serem apenas
individuais, mas dizerem respeito ao grupo como um todo.
Assim, a metodologia proposta:
Os encontros serão semanais e com duração de uma hora e meia (a ser definido), sendo
realizados nas dependências da PR/RS (e em outros locais nos dias de saída pela
cidade). A duração do trabalho é de dois meses;
O horário dos encontros fica a ser definido em função das atividades existentes na
PR/RS, dando prioridade a momentos em que os jovens se encontrem no local para
evitar deslocamentos extras;
A oferta para participação no grupo será feita tanto aos jovens que se encontram
atualmente na PR/RS como aos jovens que saíram mas que mostrem interesse em
retomar contato com o local;
O grupo não terá caráter obrigatório, devendo ficar claro aos jovens (àqueles que estiverem
cumprindo medida sócio-educativa no momento) que não existe qualquer relação entre seu
processo judicial e a atividade proposta nem qualquer tipo de relatório ou avaliação por parte da
psicologia;
Também será explicitado que o trabalho faz parte da uma pesquisa de mestrado e, portanto, é
necessário assinar um consentimento informado no qual se declaram cientes desse fato.
Recursos
Para operacionalizar tais atividades, seriam necessários os seguintes recursos:
Recurso Fontes possíveis
Vale-transporte (no caso dos jovens que não
estejam participando no projeto no momento)
- Procuradoria da República/RS;
- Departamento de Psicologia Social e
Institucional UFRGS;
Passagens (no eventual caso de jovens de fora
de Porto Alegre que queiram participar e que
não estejam no projeto no momento)
- Procuradoria da República/RS;
- Departamento de Psicologia Social e
Institucional UFRGS;
Material usado na produção (pinturas, pincéis,
filme e revelação fotográfica, dependendo da
escolha feita)
- Procuradoria da República/RS;
Material de escritório (caneta esferográfica,
papel, caderno para elaboração do diário)
- Procuradoria da República/RS;
Eventuais fotocópias de material - Procuradoria da República/RS;
Sala para encontro com jovens - Procuradoria da República/RS;
Sala com computador para eventuais pesquisas - Procuradoria da República/RS;
Etapas e cronograma
O planejamento inicial e as datas previstas são conforme abaixo:
Etapa Data prevista
Contato inicial com órgãos envolvidos (PR/RS,
UFRGS)
Novembro-dezembro 2004
Formalização das parcerias (PR/RS, UFRGS,
UFF, FASE)
Janeiro-março 2005
Contato com jovens e oferecimento da proposta Abril 2005
Contato com respectivas equipes FASE e
PEMSE para apresentação da proposta
Maio e junho 2005
Início grupo com jovens 01 julho 2005
Término grupo com jovens 31 agosto 2005
Restituição à PR/RS sobre o trabalho realizado Dezembro 2005
Entrega de cópia da dissertação Julho-Agosto 2006
ANEXO II
Imagens do jornal O Dia Online, 11 março 2006
ANEXO III
Seminário de Trabalho Educativo:
construindo olhares e ações em políticas para a juventude.
Promoção:
Justiça Federal de 1º Grau – Seção Judiciária Rio Grande do Sul
Procuradoria da República no Rio Grande do Sul - PR/RS/MPF
Tribunal Regional Federal 4ª Região - TRF
Fundação de Atendimento Sócio Educativo –FASE
Programa de Execução de Medidas Sócio-Educativas em Meio Aberto - PEMSE/ FASC
Departamento de Psicologia Social e Institucional – ESTAÇÃO PSI- UFRGS
Local: Auditório da Justiça Federal
Rua Otávio Francisco Caruso da Rocha, 600. 9º andar
A Justiça Federal, o Tribunal Regional Federal e a Procuradoria da República no Rio
Grande do Sul vêm desenvolvendo projetos de trabalho educativo para jovens que cumprem
medida sócio-educativa, uma parceria que envolve a Fundação de Atendimento Sócio
Educativo, o Programa de Execução de Medidas Sócio-Educativas em Meio Aberto- FASC e
a Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Neste ano, realizamos encontros das
instituições que integram esta rede visando articular ações para ampliar as relações
interinstitucionais que envolvem os executores das políticas públicas da Infância e da
Adolescência e avançarmos na consolidação destas iniciativas.
Assim, foi elaborada a proposta de Extensão conforme programação que segue tendo
como público as equipes das instituições envolvidas no desenvolvimento de Programas de
Trabalho Educativo.
Temática:
Saúde Pública para Jovens
Data:
08/06/2005
Horário:
14:00 às 17:00
C.H. Prevista:
3 h
Local:
Auditório da Justiça Federal-9º andar
Temática:
A família do adolescente
Data:
06/07/2005
Horário:
14:00 às 17:00
C.H. Prevista:
3 h
Local:
Auditório da Justiça Federal-9º andar
Temática:
Educação para jovens
Data:
03/08/2005
Horário:
14:00 às 17:00
C.H. Prevista:
3 h
Local:
Auditório da Justiça Federal-9º andar
Temática:
Judiciário
Data:
14/09/2005
Horário:
14:00 às 17:00
C.H. Prevista:
3 h
Local:
Auditório da Justiça Federal-9º andar
Temática:
Rede de Trabalho para Jovens
Data:
05/10/2005
Horário:
14:00 às 17:00
C.H. Prevista:
3 h
Local:
Auditório da Justiça Federal-9º andar
Temática:
A Rede de Trabalho Educativo - avaliações e perspectivas
Data:
09/11/2005
Horário:
14:00 às 17:00
C.H. Prevista:
3 h
Local:
Auditório da Justiça Federal-9º andar
ANEXO IV
EL
P
MUNDO
EDICION: NACIONAL
Precio: 1 euro. Con DVD: 3,95 E más. Con Guía de vinos: 4,95 E más
DEL SIGLO VEINTIUNO
VIERNES 7 DE ABRIL DE 2006
Año XVIII. Número: 5.958
FERNANDO GAREA
MADRID.– José Luis Rodríguez Za-
patero dio por hecho ayer que si es
necesario tendrá colaboración de
Naciones Unidas para lograr la paz
en el País Vasco. Lo dijo en una rue-
da de prensa en La Moncloa junto al
secretario general de la ONU, Kofi
Annan, y tras precisar que «no hay
ninguna previsión en esa dirección».
Es decir, que aún no está previsto
que la ONU intervenga como media-
dor, facilitador o garante del proceso
de paz que está a punto de abrirse en
el País Vasco, pero si se plantea en el
futuro no hay inconvenientes.
Fuentes de La Moncloa lo explica-
ron así, a pesar de lo cual Zapatero y
Annan admitieron abiertamente en
su comparecencia que hablaron
ayer del alto el fuego permanente de
ETA y de las posibilidades que se
abren para lograr la paz.
De hecho, el presidente consiguió
ayer que el responsable de la ONU,
sin mediar pregunta alguna, hiciera
un llamamiento a «todos los partidos
políticos e instituciones» para que
colaboren.
Sigue en página 8
Editorial en página 3
Zapatero:laONU«estaríadispuesta»
acolaborareneldiálogoconETA
Antes de que mediara pregunta alguna, Kofi Annan hizo un llamamiento «a todos los partidos políticos e
instituciones para que aprovechen la oportunidad del alto el fuego y se acaben los tiempos de violencia»
MEDIO AMBIENTE / La UE expedienta a España por ocultarle las playas y los ríos más contaminados / 21
El secretario general de la ONU, Kofi Annan, estrecha la mano del presidente Zapatero, ayer en La Moncloa. / ALBERTO CUELLAR
Fainé y Pizarro
negociarán una
salida a la OPA
contra Endesa
La alcaldesa de
Marbella se ofrece
desdelacárcela
colaborar con la
comisión gestora
CARLOS SEGOVIA
MADRID.– El Gobierno y la Caixa
han perfilado ya un intento de
acercamiento a Endesa y al Partido
Popular para intentar solucionar la
crisis abierta tras el lanzamiento
de una Oferta Pública de Adquisi-
ción de acciones (OPA) hostil por
parte de Gas Natural sobre la com-
pañía eléctrica y de una segunda
oferta de compra procedente de la
alemana E.ON. El objetivo, según
las fuentes consultadas, es conse-
guir «una solución española» para
el futuro de la eléctrica Endesa y se
prepara una negociación a dos ni-
veles –el político y el empresarial–
que pueda acercar las posturas dis-
crepantes.
Sigue en página 37
Un juez saca a un menor
del avión en el que iba a
ser e xpulsado a Marruecos
Considera que el Ministerio del Interior vulneró
sus derechos al intentar devolverle a su país
RAFAEL J. ALVAREZ
MADRID.– Cinco de abril. Barajas.
Vuelo Madrid-Rabat. B. E. vio cómo
la azafata hacía las muecas típicas de
la seguridad aérea. El chaval, tutela-
do por la Comunidad de Madrid, vol-
vía a Marruecos rodeado de agentes.
Pero algo pasó. Un juzgado ordenó
la suspensión «cautelarísima» de la
repatriación. Eran las 10.59 horas,
seis minutos antes de la hora de des-
pegue.
Sigue en página 23
HOY VIERNES
La mayoría de los males les vienen a los hombres por no quedarse en casa (Blaise Pascal)
El Congreso aprueba la
Ley de Educación del PSOE
con la abstención de CiU
y el voto en contra del PP
Página 16
Bush dio autorización
al ex jefe de gabinete de
Cheney para que filtrara
información sobre Irak
Página 32
Berlusconi acusa a los jueces
de «maquinar» contra él
en vísperas de las legislativas
de este fin de semana
Página 25
Gerry A dams pide
al presidente por
carta que utilice
su ‘influencia’ y
e xcarcele a Otegi
Blair restablece la autonomía
del Ulster durante seis meses
de prueba
Páginas 8 y 24
El Consejo de Estado sostiene que
no hay plazo suficiente para con-
vocar elecciones y Rajoy pide que
se cambie la ley
Páginas 12 a 14
Hoy,Castilla-LaMancha,
número7delasRutasdelVino
METROPOLI
Lavidaen
parejano
esunjuego ,
según
DavidTrueba
Copia para coordinadoradebarrios ([email protected])
EL MUNDO, VIERNES 7 DE ABRIL DE 2006
ESPAÑA
23
Viene de primera página
El chico, que h abía llegado a Espa-
ña en una patera y llevaba tres
años tutelado por la Comunidad de
Madrid –la misma que ahora le ex-
pulsaba–, ya se veía devuelto a Ma-
rruecos con su permiso de residen-
cia en vigor, detenido de madruga-
da sin posibilidad de llamar a su
abogado, sin ver la orden de repa-
triación y sin que nadie le pregun-
tara si quería regresar a su tierra
de pobreza.
Al chaval, 17 años atribulados,
lo bajaron del avión media hora
más tarde y le devolvieron el móvil
que los policías le habían quitado
cuando lo capturaron en el portal
de su casa. Ayer, un día después de
su no viaje, el Juzgado de lo Con-
tencioso-Administrativo número
14 de Madrid le daba la noticia de
su vida: te quedas en España y ten-
drás un defensor especial por si
tratan de repatriarte.
Porque ese juzgado dictó ayer
un auto histórico que suspende
una repatriación ordenada por la
Delegación de Gobierno y por la
Comunidad de Madrid. Un escrito
que, además, obliga al Ministerio
del Interior a devolver el pasaporte
de B.E. a la Comisión de Tutela del
Menor de la Comunidad para que
lo conserve «a disposición de este
juzgado».
Y que nombra a un «defensor ju-
dicial» para el joven por el «conflic-
to de intereses» detectado entre el
menor y la propia Comunidad. «Yo
le representaré en este asunto para
evitar que le pase como a tantos ni-
ños, porque la Administración les
está quitando la voz y está toman-
do decisiones por ellos», contaba
ayer entre alivios sin disimulo Ig-
nacio de la Mata, uno de los aboga-
dos de la Coordinadora de Barrios,
el colectivo que luchó por B.E. y
que duerme desde anoche con la
victoria de un menor más protegi-
doporlaJusticiayasalvodelaim-
punidad.
Los folios firmados por el juez
Celestino Salgado son un tirón de
orejas al Gobierno central, a la Co-
munidad de Madrid y hasta al Mi-
nisterio Fiscal, «que se mostró con-
forme» con la devolución forzosa,
sostiene el auto. Y son también un
antes y un después en el folletín de
las repatriaciones de menores, en
ese sin sentido legal que permite a
las comunidades autónomas expul-
sar a menores que ellas mismas tie-
nen tutelados.
B.E. lleva al abrigo del Gobierno
de Esperanza Aguirre desde 2003,
aprendiendo en un taller ocupacio-
nal desde 2004 y cuidando como
un tesoro ese permiso de residen-
cia que tiene concedido hasta julio
de 2006. O sea, es legal al menos
hasta este verano.
Sin abogado
El Instituto Madrileño del Menor y
la Familia y la Delegación del Go-
bierno en Madrid decidieron repa-
triar el miércoles a B.E., pero olvi-
daron algunas exigencias de la ley:
no le notificaron la orden de expul-
sión, le denegaron asistencia letra-
da para defender sus derechos fun-
damentales –como exige el infor-
me de 2005 del Defensor del Pue-
blo–, no pidieron i nformes sobre la
situación de su familia en Marrue-
cos y no le permitieron expresar su
consentimiento.
El auto del juez Salgado argu-
menta la suspensión de la repatria-
ción teniendo en cuenta que el jo-
ven «vive en España desde 2003;
tiene permiso de residencia; cuen-
ta con informes educativos favora-
bles, integración educativa y lazos
afectivos con sus educadores, y ha
manifestado su deseo de continuar
en España».
«Dada la celeridad de este Pro-
cedimiento de Derechos Funda-
mentales de la Persona y primando
el interés superior del menor, se
mantiene la suspensión», refleja el
auto de ayer, en referencia a la
«cautelarísima» del miércoles.
«Este auto le pone luz a un pro-
cedimiento habitualmente opaco, a
las repatriaciones que se producen
sin asistencia letrada, sin defensa
de los derechos del menor. Es una
actuación propia de un Estado poli-
cial. Pero hoy le han puesto freno»,
decía De la Mata con la sonrisa de
un chaval resucitado in extremis
clavada en la toga.
Un juez paraliza la repatriación de un menor
seis minutos antes de que despegara el avión
Anula la orden de la Delegación del Gobierno y nombra un «defensor judicial» ante el «conflicto
de intereses» entre el joven y la Comunidad de Madrid, que lo trató de expulsar teniéndolo tutelado
El menor B. E., ayer después de que el Juzgado anulara su repatriación. / CARLOS BARAJAS
SARA SANZ
Corresponsal
MELILLA.– La llegada de meno-
res marroquíes a Melilla está to-
mando un cariz dramático y preo-
cupante que afecta a niños que
hansufridomaltratooapeque-
ños con minusvalías que son
abandonados por sus familiares.
El último caso se produjo hace
apenas tres días. Un menor de 13
años, discapacitado físico y pos-
trado en una silla de ruedas, fue
encontrado solo y desamparado
frente a un centro de disminuidos
psíquicos de Melilla. La consejera
de Bienestar Social, María Anto-
nia Garbín, sólo sabe que fue la
madre, de nacionalidad marro-
quí, la que abandonó a su hijo en
el centro después de pasar la
frontera, enseñando su pasaporte
y el del niño.
El menor permanece en el cen-
tro de acogida de la ciudad que, en
la actualidad, se encuentra satura-
do con la presencia de 300 niños,
la mayoría procedentes de Ma-
rruecos.
Este último caso se suma a los
nueve abandonos de menores
marroquíes que se registraron el
año pasado. De esos nueve, cinco
eran niños con discapacidades fí-
sicas o psíquicas y el resto llegó
con heridas, golpes e, incluso,
abusos sexuales, como el caso de
una niña que entró en Melilla con
su hermano pequeño, embaraza-
da por su propio padrastro.
Otro de los casos que preocu-
pa a las autoridades locales es el
del menor abandonado en no-
viembre del año pasado afectado
del síndrome de huesos de cris-
tal. Previamente, sus padres,
procedentes de Rabat, llevaron a
su hijo al Hospital Comarcal de
Melilla para recibir un diagnósti-
co certero y, al poco tiempo, re-
gresaron otra vez a la Ciudad Au-
tónoma para abandonarlo en la
calle.
El Gobierno de Melilla no ha
podido trasladar al pequeño a la
Península por no existir un cen-
tro especializado para este tipo
de enfermedad.
Ahora, la Consejería de Bienes-
tar Social se ve desbordada de
trabajo, porque a la atención de
los pequeños acogidos se suman
los «cuidados especiales» que ne-
cesitan los menores discapacita-
dos, «y eso supone más recursos
económicos».
Garbín reclama «más medi-
das» de control en la frontera por
parte de la Delegación del Go-
bierno y de la Policía Nacional y
lamenta la «nula» colaboración
del Gobierno marroquí.
Abandona a su hijo discapacitado en Melilla
Cuando B. E. salió de la sala en la
quelehabíadichoaljuezqueque-
ría quedarse en España, la gente
de la Coordinadora de Barrios le
aplaudió.Elchavalsonrió,yquién
sabesifueRonaldinhooEto’opor
un instante, que para eso lleva el
escudodelBarçaenelmóvil.
Elmismoteléfonoquelospoli-
cíasnacionalesdela BrigadaPro-
vincial de Extranjería le arranca-
ronalas6.30horas delmiércoles,
cuando casi le cambian la vida.
«Estaban en el portal. Allí había
cuatroyotrosdos enuncoche.Me
dijeron que me llevaban a Ma-
rruecos. Metí la mano en el bolsi-
lloparallamaraNacho[elaboga-
do] y un policía me dio una torta.
Me quitó el móvil y lo apagó. Los
otros eran amables. Me pusieron
unacuerda en las manos yme lle-
varonalacomisaríadelaeropuer-
to».B.E.cuentaqueallí,sinpoder
hablar con el abogado ni con sus
educadores de Mensajeros por la
Paz,pidióquelequitaranlacuer-
da. «Les dije que me hacía daño,
queiba a serbueno». En esollegó
elembarque.Embarqueconelpa-
saporte en poder de la Policía «y
caducado»,matizaelabogado.
Y cuando B.E., sin un antece-
dente penal, sin un conflicto so-
cialentresañosy«conunasnotas
cojonudas», dice la Coordinado-
ra,sesentóenelavión...«Unpoli-
cía me enseñó una cinta de pegar
en la boca y me dijo: ‘Si te portas
mal,yasabes’».
«Si te portas mal, ya sabes»
Copia para coordinadoradebarrios ([email protected])
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