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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
KATIUSCIA MARIA LAZARIN
FANÁTICOS, REBELDES E CABOCLOS
:
DISCURSOS E INVENÇÕES SOBRE DIFERENTES SUJEITOS
NA HISTORIOGRAFIA DO CONTESTADO.
(1916
-
2003)
FLORIANÓPOLIS, MARÇO DE 2005
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2
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
KATIUSCIA MARIA LAZARIN
FANÁTICOS, REBELDES E CABOCLOS
:
DISCURSOS E INVENÇ
ÕES SOBRE DIFERENTES SUJEITOS
NA HISTORIOGRAFIA DO CONTESTADO. (1916
-
2003)
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em História do
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Federal de Santa
Catarina, para obtenção do título
de
Mestre em História Cultural, sob a
orientação da Professora Dra. Cristina
Scheibe Wolff e co-orientação do
Professor Dr. Paulo Pinheiro Machado
.
FLORIANÓPOLIS, MARÇO DE 2005
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FANÁTICOS, REBELDES E CABOCLOS
:
DISCURSOS E INVENÇÕES SOBRE DIFERENTES S
UJEITOS
NA HISTORIOGRAFIA DO CONTESTADO. (1916
-
2003)
KATIUSCIA MARIA LAZARIN
Esta dissertação foi julgada e aprovada em sua forma final para obtenção do título de
MESTRE EM HISTÓRIA CULTURAL
Banca Examinadora
Prof. Dr. Paulo Pinheiro Machado
co
-orientador
UFSC
Profª. Drª. Márcia Regina Capelari Naxara
UNESP
Prof. Dr. Luiz Felipe Falcão
UDESC
Profª. Drª. Maria de Fátima Fontes Piazza
suplente
UFSC
Profª. Drª. Cynthia Machado Campos
Coordenadora do PPGH/UFSC
Florianópo
lis, 22 de março de 2005.
4
Sou contra todas as sintaxes: palavras
em liberdade, cores em liberdade,
homens em liberdade... em torno de
mim falava-se demais. A voz das
verdades absolutas. Da sintaxe
perfeita. O silêncio foi o meu jeito de
falar, protestar. Com o silêncio
desarticulo, é minha arma... eu fazia
os meus versinhos no escondido,
ninguém os lia, nem eu. Deuses e
semideuses em torno de mim:
capitães de indústria, escritores que
vendem milhares e milhões de
exemplares num ano só. Um mar de
palavr
as sem nenhuma verdade. A
verdade está nos meus versos, que
esqueci e que não leio...
SCHÜLER, Donaldo.
Império Caboclo
5
Sumário
Resumo
06
Abstract
07
Agradecimentos
08
Introdução
09
1. No calor da hora
Os testemunhos oculares
19
1.1.
Os militares
19
1.1.1. A essência e a verdade na busca por uma gênese
22
1.1.2.
O ideal civilizador
31
1.1.3.
As representações do
Sertão
e de seus habitantes
38
1.2.
Os Franciscanos
48
2. A redescoberta da Guerra Sertaneja do Contestado entre
hi
stórias e relações sociais
55
2.1. O silêncio e o retorno do recalcado histórico
55
2.2.
Ecos em Santa Catarina: Aujor Ávila da Luz e Oswaldo Rodrigues
Cabral
uma disputa disciplinar
59
2.3.
A visão sociológica: messianismo e milenarismo
72
3. A visibilização do fato histórico entre transformações e
permanências
as décadas de 1980 e 1990
85
3.1. As diversas imagens produzidas sobre o Contestado criando
sujeitos múltiplos.
85
3.1.1.
O caboclo
89
3.1.2.
O fanático e o jagunço
95
3.1.3.
As víti
mas e os heróis
103
3.1.4. A invenção do Homem do Contestado
106
3.1.5. Os trabalhadores e os sem terra
111
3.2. Os vencidos e excluídos são postos a lembrar e falar: as novas
tendências historiográficas
118
Considerações Finais
132
Fontes
135
Bibliografia geral
141
6
Resumo
Este trabalho não pretende ser apenas mais um estudo sobre a Guerra Sertaneja do
Contestado; o é intenção, de modo algum, acrescentar mais uma interpretação ao
acontecido ou oferecer uma análise de algum aspecto que passou despercebido a
estudos anteriores. A intenção é utilizar os trabalhos, pesquisas e publicações sobre
este acontecimento histórico como fontes para investigar as representações forjadas
sobre os sertanejos que participaram da Guerra. Esta investigação procura perceber
em que medida essas representações receberam novos significados e foram utilizadas,
ao longo do século, pelos discursos presentes nesses textos para construir e fortalecer
todo um imaginário social sobre a Guerra e sobre aqueles que dela participaram
combatendo as Forças Legais.
Palavras
-
chave: Contestado, discursos, sujeitos.
7
Abstract
This work does not intend to be only plus a study on the
Sertaneja
War of the
Contestado
; it is not intention, by no means, to add plus an interpretation to the
happened or to offer an analysis of some aspect that passed unobserved the previous
studies. The intention is to use the works, research and publications on this historical
event as sources to investigate the representations forged on the sertanejos that had
participated of the War. This inquiry looks for to perceive where measured these
representations has received news significations and has been used, to the long one of
the century, for the speeches present in these texts to construct and to fortify a social
imaginary on the War and whoever had participated fighting the Legal Forces.
Key
-
words: Contestado, dicourses, subject.
8
Agradecimentos
Inúmeras são as pessoas que passaram pela minha vida neste úl
timos anos e de algum
modo contribuíram para a realização deste trabalho. Nomeá-las, uma a uma, seria
inviável e mais, injusto, devido aos prováveis esquecimentos da memória. Portanto se
alguém não for citado aqui sinta-
se, mesmo assim, homenageado.
Agrad
eço primeiramente a Cristina Scheibe Wolff, orientadora e amiga, que
comprou minhas idéias e acreditou em meu potencial me incentivando
incansavelmente mesmo de longe.
Ao Paulo Pinheiro Machado por aceitar a co-orientação deste trabalho, pelas
conversas
sempre instigantes e esclarecedoras e, claro, pela paciência.
Aos professores que aceitaram compor as bancas de qualificação e de defesa, Luis
Felipe Falcão, Maria de Fátima F. Piazza e Márcia Regina C. Naxara, pelas
orientações e sugestões sempre bem
-
vind
as.
À CAPES por proporcionar a bolsa integral que permitiu a dedicação exclusiva à
pesquisa.
Ao Programa de Pós
-
Graduação em História.
Aos amigos que deixei em Curitiba pela emoção sempre revigorante dos reencontros
e aos colegas da graduação e do mestrado que dividiram comigo suas angústias e
conhecimentos.
À Susana Cesco, doutoranda batalhadora por sempre me lembrar que
companheirismo e amizade não é dividir momentos felizes. A minha gratidão será
sempre eterna por tudo.
À minha família pelo amor, pela imensa paciência, pelo apoio moral e financeiro e
sobretudo por entender as mudanças radicais que me fizeram abraçar a História e
estar aqui hoje. E claro ao Tito!
À Virgínia por ser uma sogra fora dos padrões e pela hospedagem nos finais de
semana
!
Ao João por todo amor, cumplicidade, amizade e incentivo nos momentos mais
difíceis, esta dissertação é dedicada a ele.
9
Introdução
Entre os anos de 1912 e 1916, para usar uma periodização oficial, aconteceu o
movimento social que ficou conhecido como a Guerra do Contestado . Foi assim
chamado por estar a população envolvida ocupando uma região que, na mesma
época, vinha sendo disputada judicialmente pelos estados do Paraná e Santa Catarina.
A questão de limites entre os dois estados desenrol
ava
-se desde a segunda
metade do século XIX quando a Província do Paraná foi desmembrada da Província
de São Paulo em 1853 e achava-se com direito à região. A Guerra do Contestado ,
contudo, não foi causada diretamente pela deflagração do combate entre as forças
militares dos dois estados pela posse da área. Foi, antes, como mencionado, um
movimento social, no qual a população sertaneja
1
da região rebelou
-
se contra a ordem
vigente, no interior de um complexo contexto social, econômico e político que deu
margem às mais variadas leituras e interpretações.
2
Considero, portanto, mais
adequado utilizar a expressão Guerra Sertaneja do Contestado .
3
Vários são os motivos atribuídos à eclosão da Guerra Sertaneja do Contestado.
Alguns consideram, simplesmente, que tudo aconteceu em virtude da questão de
limites entre os estados do Paraná e Santa Catarina e do fanatismo dos moradores do
local, muitas vezes explicado como sendo resultante da composição étnica e da
1
Estou considerando, neste trabalho, que a população sertaneja da região era constituída de indivíduos
os quais era
m chamados na época de
caboclos.
Essa denominação, aparentemente, exclui os imigrantes
europeus e seus descendentes que, mesmo em número reduzido, também escolheram viver nas
Cidades
Santas
e foram, juntamente com os
caboclos,
alvos de preconceitos e julgamentos. Dizia-se que se
acaboclizaram
. Portanto, utilizo o termo
sertanejo
numa tentativa de considerar, neste estudo
não
importando a etnia
-
todos os habitantes da região que participaram desse movimento social.
2
SERPA, Élio Cantalício. A guerra do Contestado (1912
1916). Florianópolis: Ed. da UFSC, 1999,
p. 11
3
Considero esta expressão, como foi empregada por Maurício Vinhas de Queiroz, mais adequada por
indiretamente fazer referência a outras guerras e movimentos sertanejos como Pedra Bonita, Muck
ers,
Canudos, Caldeirão, onde as esperanças místicas, os problemas em relação à posse de terras e a
resistência aos representantes do poder local, também precipitaram movimentos sociais de semelhante
natureza. QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do
Contestado, 1912
-1916
. 3.ed. São Paulo: Ática, 1981.
10
ignorância de boa parte da população. Para outros, no entanto, a guerra é expressão
de múltiplos fatores dentre os quais se destaca a penetração das relações capitalistas
no campo, com a construção da Estrada de Ferro São Paulo
Rio Grande do Sul por
empresas norte-americanas e conseqüentes concessões de terras ao longo da ferrovia
feitas pelo Governo brasileiro para que essas empresas explorassem a madeira e
posteriormente realizassem a colonização das áreas desmatadas. O que resultou na
expulsão de inúmeras famílias de posseiros que ocupavam a região, bem como a
diminuição do poder local dos coronéis. Essa nova realidade provocou uma
reordenação das relações sociais gerando um clima de tensão e produzindo uma
sensação de estranhamento e desorientação entre a população. Isso tudo foi somado a
antigas disputas políticas dos chefetes locais, à exploração econômica tradicional e à
relativa ausência da Igreja que permitiu ao catolicismo popular crescer e assumir
papel primordial na vida religiosa daquelas pessoas.
Seja quais forem as causas e seja qual for o significado atribuído ao
movimento, se sabe que na região contestada, durante quatro anos, aproximadamente
20 mil pessoas se rebelaram contra a ordem vigente e 6 mil homens das tropas legais
do governo foram deslocados à região. Segundo fontes oficiais do exército 3 mil
vidas foram perdidas, número que apesar de discutível
chega
-
se a cogitar em 12 mil
mortos
serve para nos dar uma idéia da magnitude do acontecimento. Números que
serviram a Ivone Gallo de justificativa inicial para a inclusão de mais uma, entre as
incontáveis interpretações da guerra, pois, quanto mais se diz sobre os
acontecimentos naqueles sertões, mais falta, ainda, ser dito
.
4
A grandiosidade do movimento, os protagonistas, os diversos sentidos
expressos na luta, dão a este fato sua significação e importância histórica. Isso tudo
contribui para que cada vez mais pesquisadores, amadores ou acadêmicos, se
debrucem sobre os documentos e busquem novas interpretações e novos enfoques;
escritores e romancistas escolham o Contestado como cená
rio e tema de suas obras.
É preciso deixar claro que este trabalho não pretende ser apenas mais um
estudo sobre a Guerra Sertaneja do Contestado; não é minha intenção, de modo
4
GALLO, Ivone C. D Avila. O Contestado, o sonho do milênio igualitário. Campinas: Ed. da
UNICAMP, 1999, p. 11
11
algum, acrescentar mais uma interpretação ao acontecido ou oferecer uma anális
e
de algum aspecto que tenha passado despercebido a estudos anteriores. O que
pretendo é utilizar os trabalhos, pesquisas e publicações sobre este acontecimento
histórico como fontes para investigar as representações forjadas sobre os sertanejos
que participaram da Guerra. Esta investigação procura perceber em que medida estas
representações foram resignificadas e utilizadas, ao longo do século, pelos discursos
presentes nestas obras para construir e fortalecer todo um imaginário social sobre a
Guerra e sobre aqueles que dela participaram. De acordo com o folclorista Euclides
Felippe:
Extensa é a bibliografia que versa sobre o MOVIMENTO DO
CONTESTADO e diversas são as óticas pelas quais é
examinado: desde a fantasiosa que afirma serem os
jagunços ingênuos como crianças, fanáticos obstinados,
selvagens e rudes como animais, até a formal acusação de
puro banditismo.
No começo, nada disso... e no fim, de tudo
um pouco.
5
Esta última frase retrata bem o imaginário criado em torno dos atores sociais
da Guerra Sertaneja do Contestado. Em cada um dos textos escritos sobre o assunto
os sertanejos foram marcados com epítetos que criaram diversos sujeitos. Esta
multiplicidade de marcas encontra-se misturada em várias das obras mais recentes, e
aquele sertanejo, hoje, como sujeito retórico, parece carregar em si um pouco de
todas elas. Estas marcas auxiliam a perpetuar no imaginário social catarinense e
nacional, principalmente entre os habitantes da região que foi palco dos
acontecimentos em questão, uma certa representação preconceituosa dos indivíduos
os quais se convenciona denominar caboclos . Afinal é a origem étnica da maioria
daquelas pessoas, senão a característica mais utilizada para descrevê-los, a que
5
FELIPPE, Euclides J. O último Jagunço: folclore na história do Contestado. Curitibanos
:
Universidade do Contestado, 1995, p. 09
12
aparece na maioria das vezes para explicar a presença das outras. Na concepção de
alguns autores, mesmo atualmente, os sertanejos são descritos como aqueles que
tendiam facilmente para o fanatismo e para a loucura porque eram mestiços. Um
preconceito racial que insiste em inscrever as marcas das diferenças sociais e
culturais no corpo dos indivíduos naturalizando-as e tornando-as a-históricas. Assim,
caboclo no interior do Estado de Santa Catarina deixou de ser somente um
indicativo de que uma pessoa é descendente de índios e brancos para assumir uma
conot
ação muito mais complexa.
A colonização do interior incentivada pela elite política do Estado acentuou a
definição de identidades étnicas num processo onde os antigos posseiros foram
progressivamente empurrados tanto para locais mais distantes e isolados quanto
para determinados lugares sociais. Estes lugares, com freqüência, inferiores na
hierarquia das novas relações capitalistas que passam a predominar nas áreas
colonizadas. Estes posseiros são nomeados pelos colonos de origem (assim se auto-
identif
icam os europeus ou seus descendentes) de caboclos e esta palavra além de
indicar a divisão do trabalho, marca todo um modo de vida tradicional estigmatizado
por falta de higiene, promiscuidade, casamentos e separações freqüentes, o mau uso
do dinheiro, etc. Os membros deste grupo, por sua vez, acabam por construir sua
identidade étnica em oposição aos gringos e se auto-identificam como brasileiros
por considerarem uma forma respeitável de ser tratado. Com o passar do tempo,
alguns membros de origem acabam se voltando para os ofícios considerados de
caboclo ou não prosperam como deveriam. Quando isso acontece, eles também
acabam excluídos do grupo por terem se acaboclado . É quando o estigma sobre os
brasileiros cresce, pois as designações passam para os caboclos, mas caboclos
mesmo , chegando ao extremo da desqualificação com o rótulo de índio ou
negro .
6
Além disso, caboclo ainda é sinônimo de preguiça, pobreza, pessoa
6
Arlene Renk mostra como esta construção étnica ocorreu no processo de colonização do Oeste
catarinense, privilegiando na análise as relações entre os colonos italianos e os ervateiros que
ocuparam a área que abrange os municípios de Vargeão e Ponte Serrada. Mas não porque não
estender esta realidade para todas as regiões do estado onde as Companhias Colonizadoras
estabeleceram as colônias, ignorando as posses estabelecidas pelos brasileiros , o que resultou na
expropriação dessa população, dispersando-a e desestruturando seu modo de vida tradicional. Ver:
RENK, Arlene.
A luta da erva: um único ofício étnico no oeste catarinense
.
Chapecó: Grifos, 1997.
13
pouco confiável, arredio, bicho do mato , e quando se utiliza o nome como
xingamento é a suposta herança da natureza indígena ou negra que sobressai.
A carga de preconceito sobre a designação caboclo , numa área próxima a
cidade catarinense de Lages, foi estudada pelo antropólogo Geraldo Locks.
7
Ele
procurou identificar e caracterizar sócio-culturalmente os agricultores familiares do
município de São José do Cerrito no Planalto Serrano Catarinense denominados de
caboclos ou brasileiros . Locks apresenta uma reflexão em torno da identidade
social destes brasileiros através da expressão étnica, e seu trabalho é interessante por
mostrar que ao mesmo tempo em que esses indivíduos se reconhecem como mestiços
há uma veemente recusa da categoria caboclo e toda sua carga de significados.
A recusa da categoria caboclo não surpreende quando percebemos que
associada a ela aparecem designações como ignorantes , preguiçosos , fanáticos ,
loucos , jagunços , criminosos , facínoras , desajustados sociais , marginais .
Designações que infestam as páginas e páginas dos escritos sobre a Guerra Sertaneja
do Contestado e que constróem sujeitos abjetos, cuja imagem é utilizada para marcar
posições sociais de determinados indivíduos até a atualidade de modo eficaz e
indiscutível porque naturalizada.
Quando o termo não é recusad
o, é, no entanto, alvo de resignificações. Em um
vídeo realizado pela equipe do LÁPIS,
8
sobre o trabalhador lageano, os entrevistados
se dizem caboclos porque miscigenados, mas ao definir o que seria um caboclo
marcam seu caráter de trabalhador, daquele que não recusa trabalho , faz de tudo
para sobreviver e suja suas mãos no lugar dos almofadinhas . Ou então a designação
começa a ser assumida por alguns de maneira a demonstrar orgulho do que se é,
caboclo é valente , não desiste nunca da luta , mostrando assim as tentativas em
redefinir novas identidades utilizando os mesmos discursos que os excluem, ou
tentam submetê
-
los a um lugar social qualquer.
7
LOCKS, Geraldo. Identidade dos agricultores familiares brasileiros de São José do Cerrito
SC
.
Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social. Florianópolis: UFSC,
1998.
8
Vídeo: Vida Laboriada , produzida pela equipe do LAPIS
Laboratório de Pesquisa da Imagem e
do Som da Universidade Federal de Santa Catarina,
14
Este trabalho é uma tentativa de historicizar estes conceitos que, por um
lado, empurram determinado
s sujeitos e modos de vida para as margens da sociedade,
condenados indefinidamente a serem educados e formados para corresponder ao que
deles se espera. Por outro lado, estes mesmos conceitos são resignificados e
apropriados em novas táticas e estratégias de luta por mudanças e na conquista de
melhores condições de vida. Em suma, é a historicização de todo um imaginário que
se constrói em torno da diferença, que se sustenta na própria leitura das sociedades e
das culturas.
9
Para tanto, tomarei estas representações como matrizes dos discursos e
de práticas
10
que até hoje constróem hierarquias, estereótipos e preconceitos, que
forjam uma memória de exclusão e auxiliam a legitimar, de certa maneira, lugares
sociais destinados aos que até hoje são chamados caboclos , seja por sua origem
étnica, seja por seu modo de vida. Esses discursos sobre os caboclos são tomados
aqui também como práticas, procedimentos de poder e de exclusão, pois como afirma
Foucault,
(...) o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os
sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos
queremos apoderar
.
11
Por se tratar de tema complexo que traz à discussão diversos conceitos e a
necessidade de diversas categorias de análise, escolhi, para facilitar não só a
compreensão da discussão como também tornar viável sua construção, utilizar uma
divisão cronológica dos capítulos para orientar meu trabalho. Separei a produção
historiográfica sobre o Contestado em três fases : a primeira compreende as obras
publicadas entre 1916 e 1950; a segunda as obras publicadas entre 1950 e 1974; e por
fim a terceira fase compreende as obras publicadas entre os anos de 1980 e 2003. Um
risco assumido na medida em que as obras escritas em cada uma delas nem sempre
seguem a mesma orientação metodológica e teórica. Exemplo significativo é a obra
de Duglas Teixeira Monteiro que embora publicada em 1974 poderia ser analisada
9
MONTES, Maria Lúcia. Raça e Identidade: entre o espelho, a invenção e a ideologia. In:
SCHWARCZ, Lilia e QUEIROZ, Renato da Silva (orgs).
Raça e diversidade
. São Paulo: Edusp, 19
96.
P.53
10
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, Rio de
Janeiro: Bertrand, s/d, p. 18
11
FOUCAULT, Michel.
A ordem do discurso
. 5.ed. São Paulo: Loyola, 1999, p.10
15
entre as obras mais recentes produzidas pela academia. Contudo, os riscos
proporcionaram justamente a possibilidade de perceber como na História as idéias
não evoluem de forma tão linear e progressiva, sendo constante os retornos, as
permanências e o jogo ativo do diálogo entre o passado e o presente.
O primeiro capítulo apresenta os discursos produzidos sobre a Guerra
Sertaneja do Contestado por contemporâneos, dentre estes serão utilizados os escritos
dos militares e dos freis franciscanos que participaram ativamente dos
acontecimentos. Nessa discussão será possível perceber que os sertanejos são
predominantemente construídos como sujeitos que precisam ser urgentemente
tutelados pelos poderes públicos, isso dentro do ideal civilizador e progressista do
exército e dentro do plano catequizador da Igreja Católica. Os discursos em questão
também são fortemente marcados por uma ambigüidade que permite a seus autores
criticar as relações sociais injustas que presenciam ao mesmo tempo em que
estigmatizam aqueles pobres ignorantes abandonados pelo Estado também como
bárbaros , criminosos , fanáticos , legitimando as ações de força tomadas para
acabar com os redutos .
No segundo capítulo se encontra, depois de um relativo esquecimento e
silêncio de quase trinta anos, os livros publicados nas décadas de 1950 e 1960 por
dois membros do Instituto Histórico e Geográfico Catarinense. Aujor Ávila da Luz e
Oswaldo Rodrigues Cabral travaram uma verdadeira disputa por espaço dentro do
cenário intelectual e cultural do Estado e os discursos que cada qual produziu sobre a
Guerra Sertaneja do Contestado foram sendo utilizados como argumentos para um
debate onde se digladiaram visões de mundo e disciplinas. Surgiram desta disputa
sujeitos pintados com outras cores que aquelas dos contemporâneos, sujeitos
marcados para novos lugares sociais dentro do cotidiano vivido pelos autores em
questão. Ainda neste capítulo serão utilizados trabalhos de sociólogos, publicados
durante as décadas de 1950 e 1970, os quais estavam imbuídos da necessidade em dar
a devida importância ao acontecimento que consideravam esquecido e subest
imado
pela História do país. São trabalhos que, mesmo privilegiando o coletivo e deixando
em segundo plano os indivíduos, reacenderam o interesse, a vel nacional, sobre a
Guerra Sertaneja do Contestado, e deflagraram uma ampla discussão em torno deste
16
acontecimento, da sua relação com a sociedade e com os demais movimentos
sociais no Brasil. Por fim, estes trabalhos mesmo sendo produzidos na área da
sociologia
e sobretudo por esta razão
fornecem material de valor incontestável
para a historiografia dos movimentos sociais no Brasil, principalmente sobre o
Contestado e, por esse motivo, são até hoje analisados e utilizados como fontes
imprescindíveis por aqueles que escrevem sobre o assunto.
O terceiro capítulo, por fim, traz os trabalhos que tomaram forma no início da
década de 1980 até os dias de hoje. A análise destes trabalhos mostra, em primeiro
lugar, as maneiras pelas quais foi possível a construção de um sujeito multifacetado
e paradoxal que assumiu em algumas obras várias das designações const
ruídas
anteriormente e outras novas que foram surgindo com o passar dos anos, seja devido
a influência de novos atores sociais como os sem-terra , seja pela influência de
campanhas políticas como aquela lançada por Esperidião Amim em 1982.
12
Em
segundo lugar, foi possível constatar as transformações ocorridas nas visões sobre a
Guerra Sertaneja do Contestado e dos que dela participaram a partir da influência das
mudanças epistemológicas ocorridas no interior das disciplinas acadêmicas nas duas
últimas décadas do século XX. Esses trabalhos vêm apontar novos rumos para a
compreensão do passado e de nossa sociedade.
Fontes
Procurei analisar o maior número possível de obras publicadas sobre a guerra
do Contestado durante o século XX e primeiros anos desse século, inclusive as
literárias. A intenção de trabalhar com todo o período serve para formar um quadro
geral das permanências e das mudanças que ocorreram na maneira de descrever os
habitantes da região contestada que participaram do Movimento.
12
Na sua Carta dos catarinenses , Esperidião Amim Helou Filho tinha como proposta para a Cultura
em seu governo do Estado (1983
1986), o compromisso de preservar a Identidade Catarinense .
Uma das coisas a se fazer era preservar a memória cultural , sendo que para isso, colocava-se como
alguns d
os itens a realizar
-se implantar o Museu do Contestado e Apoiar a pesquisa, a divulgação de
livros e as manifestações folclóricas que digam respeito `aquele episódio . CADERNOS DA C
ULTURA
C
ATARINENSE
.
Aspectos do Contestado.
Florianópolis. Ano I, n.00,
jul./set., 1984, p.02
17
Entretanto,
a análise completa e aprofundada no grande número de estudos e
publicações sobre a Guerra Sertaneja do Contestado tornaria inviável esta pesquisa
pois demandaria um tempo maior que aquele estipulado pelos programas de pós-
graduação para sua execução. No entanto, acredito que para os objetivos propostos
será suficiente uma escolha dos títulos que mais sobressaíram em cada época, escolha
que seguiu os seguintes critérios: 1. As obras mais citadas em publicações
posteriores, o que permitirá perceber as influências, permanências, apropriações de
determinados enfoques e abordagens até a atualidade; 2. Obras de fácil localização,
disponíveis nas escolas e bibliotecas públicas ao alcance do público leitor comum; 3.
Obras não tão conhecidas mas que porventura apresentem alguma abordagem
diferente ou inovadora. Os demais títulos localizados mesmo não recebendo um
estudo mais detalhado serão utilizados para construir um panorama das influências e
das abordagens mais utilizadas ou reproduzidas.
Este é um trabalho de crítica historiográfica e deve, antes de ter um fim,
oferecer novos caminhos de investigação, nos quais ele mesmo será, posteriormente
alvo de análise. É uma tentativa de realizar o que Michel de Certeau considera
o
estudo da escrita como prática histórica
.
13
Este historiador considera que a moderna
historiografia apresenta um aspecto de fabricação e não mais de leitura ou de
interpretação, ponto de vista que permitiu perceber que os procedimentos próprios ao
fazer história são um problema político e traze
r à tona a questão do sujeito até então
reprimida ao nível da ficção ou do silêncio pela lei de uma escrita científica .
14
Arrisco ir além deste ponto de vista e considerar que os atos de ler e
interpretar são parte constituinte do ato de fabricar. Neste estudo específico,
considero que as preocupações com o ato da leitura são absolutamente relevantes a
partir do momento em que me posiciono como leitora das publicações sobre o
Contestado sobretudo quando considero essas obras, em parte, resultado das leitur
as
feitas em relação a uma construção realizada pelos contemporâneos e participantes do
que aconteceu nos sertões de Santa Catarina na época. Leituras que com o passar dos
13
CERTEAU, Michel de
. A escrita da história.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p.10.
14
CERTEAU, Michel de. Op. cit., p.11
18
anos reproduzem antigos olhares mas também os resignificam e constróem novos
vieses
interpretativos.
As preocupações com minha posição inicial de leitora de leituras de outros me
levaram a pensar o problema da tensão existente entre a constatação atual de que as
leituras são plurais ;
15
ou seja, constróem diferentes sentidos dos textos. Fato que
leva à procura infindável e inglória por uma interpretação supostamente correta do
texto. Esta procura sem fim pode, muitas vezes, impor uma certa interpretação ou
uma determinada maneira de ler que terminam sendo consideradas as únicas corretas.
Portanto, tento não cair na ilusão de defender a minha interpretação como a única
possível. Ilusão esta que Roger Chartier denomina de projeção universalista do ato
de leitura ,
16
procurando assim ter consciência de que as situações de leitura variam
histor
icamente, do mesmo modo como a minha leitura é, nas palavras de Bourdieu,
produto das circunstâncias nas quais tenho sido produzido enquanto leitor
.
17
15
CHARTIER, Roger & BOURDIEU, Pierre. A LEITURA: Uma prática cultural . Debate entre
Pierre Bourdieu e Roger Chartier. In: CHARTIER, Roger (org.). Práticas da leitura.o Paulo:
Estação Liberdade, 2001, p.242
16
CHARTIER, Roger & BOURDIEU, Pierre. In: CHARTIER, Roger (org.). Op. cit., p.233
17
CHARTIER, Roger & BOURDIEU, Pierre. In: CHARTIER, Roger (org.
). Op. cit., p.234
19
1.
No calor da hora
Os testemunhos oculares.
1.1.
Os militares.
Em 1913, um ano após o fatídico combate nos campos do Irani
no qual se
enfrentaram o grupo de seguidores do monge José Maria e um destacamento das
forças policiais do Paraná chefiado pelo Coronel João Gualberto ocasionando a morte
tanto do monge, quanto do Coronel
um grupo de sertanejos, tendo a frente Manoel
Alves de Assumpção Rocha, Eusébio Ferreira dos Santos e sua esposa Querubina,
voltaram a se reunir na região de Taquaruçu em local próximo ao que haviam
celebrado a Festa de Bom Jesus do Taquaruçu no ano anterior. É du
rante este período
de um ano transcorrido entre a morte de José Maria no Irani e o novo ajuntamento em
Taquaruçu que ocorre o que Duglas Teixeira Monteiro denomina de processo de
reencantamento do mundo . Ou seja, a construção de uma comunidade que vive,
se
organiza e luta contra seus adversários dentro de um universo mítico, adotando as
condutas ritualizadas correspondentes.
18
Este reencantamento aconteceu em
resposta a um desencantamento dos sertanejos frente a realidade em que viviam nos
últimos anos, e para a qual procuravam uma saída. O avanço gradual da
Brazil
Lumber and Colonization, através do desmatamento de toda região por onde passava
a nova estrada de ferro que ligava o estado de São Paulo ao Rio Grande do Sul,
seguido pela demarcação das áreas desmatadas para ocupá-las com imigrantes
europeus e seus descendentes; o progressivo cercamento dos ervais, a transformação
das relações de compadrio entre sertanejos e coronéis, visto que estes perdiam parte
de sua influência frente ao avanço das re
lações capitalistas; foram algumas das causas
que desestruturaram o mundo em que viviam os habitantes da região. Segundo Paulo
Pinheiro Machado,
O processo de reelaboração social da memória, que incide
criativamente sobre a rápida passagem de José Maria,
pode
ser compreendido se considerarmos que nada do quadro de
18
MONTEIRO, Duglas Teixeira. Os errantes do novo século: um estudo sobre o surto milenarista do
contestado.
São Paulo: Duas Cidades, 1974, p. 103 a 167.
20
crise social e política da região havia mudado com a morte
do monge. Permaneciam os agricultores expulsos de suas
posses ao longo dos ramais da ferrovia, continuavam Vilas
inteiras a assistir o revezamento de autoridades paranaenses
e catarinenses, persistia a arrogância dos Coronéis
Superintendentes sobre seus opositores políticos ou sobre
aqueles que não submetiam
-
se a sua vontade
.
19
Animados, portanto, com as supostas aparições do Monge José Maria para a
menina Teodora de 11 anos, neta de Eusébio, e convencidos de que as instruções e
promessas do monge repassadas pela menina os auxiliariam numa nova vida, os
sertanejos iniciaram a construção de uma pequena cidadela. Neste novo ajuntamento
agua
rdariam o tão prometido retorno do monge que viria acompanhado do Exército
Encantado de São Sebastião .
20
Para ali, onde todos as posses e os frutos do trabalho
eram destinados ao bem comum, onde todos se reuniam para rezar e louvar a Deus e
ao monge, onde se criou um clima de companheirismo, de intensa religiosidade e
aparente segurança material, começaram a migrar muitas famílias de posseiros que,
obrigadas a deixar as terras que ocupavam, passaram a ver aquele lugar como boa
alternativa para iniciar vida
nova.
A alternativa oferecida pelos seguidores do monge se tornava cada vez mais
atraente a ponto de fazer com que até mesmo alguns pequenos fazendeiros,
comerciantes e profissionais liberais das vilas próximas abandonassem suas
propriedades e partissem com sua família levando apenas pertences pessoais,
alimentos e os animais que possuíam para morar na então cidade-santa de
Taquaruçu. O pequeno agrupamento cresceu de modo assustador para os habitantes
das vilas próximas e para o então Superintendente de Curitibanos, Coronel
Albuquerque, o mesmo que dera o alarme na época do primeiro agrupamento e que
levou José Maria a dispersar o povo e partir para os campos do Irani. Os
destacamentos formados por policiais locais, peões dos coronéis aliados de
19
MACHADO, Paulo Pinheiro, Lideranças do Contestado: a formação e a atuação das chef
ias
caboclas (1912
1916). Campinas: Ed. da UNICAMP, 2004, p. 191
20
O culto a São Sebastião no Brasil assume diversas facetas de acordo com a região do país, para saber
o que a figura deste santo representava na região contestada ver ESPIG, Márcia Janete.
A presença da
Gesta Carolíngia no movimento do Contestado. Porto Alegre. Dissertação de Mestrado em História,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998.
21
Albuquer
que e por policiais enviados pelo Governador do Estado não obtiveram
êxito frente aos sertanejos armados com espadas de pau e suas táticas de luta na mata.
Estas vitórias iniciais dos integrantes da cidade-santa aumentaram a confiança que
estes tinham no poder protetor do monge, elevando o ânimo e atraindo mais e mais
pessoas e famílias inteiras para o local que passou a ser denominado por quem estava
fora de o reduto dos fanáticos seguidores do monge José Maria .
O movimento assume tamanha proporção que obriga o governador de Santa
Catarina a pedir auxílio ao Governo Federal, o qual destaca o Exército Brasileiro para
combater este novo movimento visto como semelhante ao que ocorrera há 15 anos no
sertão baiano e que ficou conhecido como a Guerra de Ca
nudos. As ações do Exército
na região contestada pelos Estados do Paraná e Santa Catarina contra os redutos de
fanáticos foram registradas em relatórios e diários pessoais de oficiais das Forças
Legais. Alguns relatórios foram publicados pela Imprensa Militar como é o caso do
livro do General Fernando Setembrino de Carvalho
21
e outros através de Imprensas
Oficiais Estaduais. José Herculano Teixeira D Assumpção,
22
por exemplo, publicou
seu livro pelo Estado de Minas Gerais. ainda, os que foram publicados em forma
de artigos nos jornais da época por alguns oficiais ou transformadas posteriormente
em memórias, como é o caso do General José Vieira da Rosa,
23
ou em livros, como é
o caso de Demerval Peixoto.
24
São estes os textos dos militares que são utilizados
neste trabalho, no entanto foram privilegiados na análise os textos de Setembrino de
Carvalho e de Demerval Peixoto por serem os mais citados pela historiografia do
Contestado assumindo assim maior importância dentro dos objetivos dessa
pesquisa.
25
21
CARVALHO, Fernando Setembrino de. Relatório apresentado ao General de Divisão
José
Caetano
de Faria, Ministro de Guerra pelo General de Brigada Fernando Setembrino de Carvalho,
Comandante das Forças em Operações de Guerra no Contestado. Rio de Janeiro: Imprensa Militar,
1915.
22
D ASSUMPÇÃO, Herculano Teixeira. A campanha do Contestado. (As operações da Columna
Sul).V.1. Bello Horizonte: Imprensa Official do Estado de Minas Gerais, 1917
23
VIEIRA DA ROSA, José. Depoimento datilografado, s.d., assinado pelo Gen. Vieira da Rosa, sobre
a Campanha do Contestado. Pasta pessoal do General no Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico
de Santa Catarina.
24
PEIXOTO, Demerval, Campanha do Contestado. 3 V. Curitiba: Fundação Cultural, Farol do Saber,
1995. (Primeira edição de 1920)
22
1.1.1.
A essên
cia e a verdade na busca por uma gênese.
Os textos produzidos pelos militares sobre a Guerra Sertaneja do Contestado,
principalmente os relatórios escritos para o Comando Geral do Exército no Rio de
Janeiro, ou seja, discursos produzidos no interior de uma instituição fortemente
assentada em regras e modelos rígidos, possuem as características dos discursos que
assumem estatuto de verdade e, assim legitimados, classificam e excluem os outros
discursos que não respondem ao seu verdadeiro . Afinal, é através das instituições e
apoiada em um saber disciplinar que uma determinada vontade de verdade tende
a exercer sobre os outros discursos uma espécie de pressão e como que um poder de
coerção, conseguindo assim sua justificação e legitimação perante a nossa sociedade.
Segundo Michel Foucault, a própria palavra da lei (em nossa sociedade) é
autorizada por um discurso de verdade. O sistema penal, por exemplo, procura seu
suporte, sua justificação, primeiramente numa teoria do direito e mais tarde, a partir
do século XIX, em um
saber
sociológico, psicológico, psiquiátrico. Portanto, se faz
necessário verificar quando e de que formas as instituições fomentam, através de seus
membros, o jogo do verdadeiro , dessa verdade que não é riqueza, fecundidade,
fo
rça doce e universal , mas, também, prodigiosa maquinaria destinada a excluir
todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa história, procuram contornar essa
vontade de verdade e recolocá-
la em questão contra a [própria] verdade
,(...) .
26
O Exército Brasileiro nas primeiras décadas da República recebia, em parte,
influência da doutrina positivista de Comte, a qual penetrou nos seus círculos durante
os anos finais do Império através da atuação de Benjamim Constant como professor
da Escola Militar no Rio de Janeiro. Luís Roberto Soares nos fala sobre a influência
da Escola Militar do Rio de Janeiro na formação das elites dirigentes do país ao
apresentar a reedição do livro Campanha do Contestado de Demerval Peixoto em
1995.
27
Esta escola, criada no início do Século XIX, formava as vanguardas e elites
dirigentes do país, inegavelmente modernizadoras, e que foram de importância
25
Além dos textos citados acima há também as publicações de ANTUNES, Ezequiel (Médico da
Expedição).
O Contestado entre Paraná e Santa Catarina. Belém: Imprensa Oficial do Estado, 1918;
SOARES, J. Pinto.
Guerra em Sertões Brasileiros. Rio de Janeiro: Papelaria Velho, 1931.
26
FOUCAULT, Michel. (1999). O
p. cit
. p. 20
27
SOARES, Luí
s Roberto. Apresentação . In: PEIXOTO, Demerval.
Op. cit.,
p. 07.
23
fundamental na construção do Estado Nacional. Segundo José Murilo de Carvalho,
esta escola produzia na verdade bacharéis fardados numa competição com os
bacharéis sem farda das escolas de Direito e Medicina, oficiais que gostavam de ser
chamados, mesmo dentro do exército, de doutores. Estava aí criado o perfeito
ambiente para a aceitação da idéia do soldado-cidadão que desde a proclamação da
República passou a pertencer à ideologia das intervenções militares no Brasil .
28
A concepção de história positivista que circulava no âmbito do Exército
Brasileiro pode ser exemplificada por estas palavras do médico militar Ezequiel
Antunes: A história parece não exigir grande literatura nem muita ciência. Antes,
ela determina, imperativamente, na análise e registro dos fatos, sobretudo, a
expressão nítida da verdade .
29
É o estatuto da verdade partindo do interior da
instituição permitindo que se legitimem as idéias pronunciadas por seus membros,
sem dar espaço para outras versões e visões que porventura pudessem surgir.
Além da formação da Escola Militar, alguns oficiais são membros do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro [IHGB],
30
e receberam também a influência das
idéias sobre como escrever a história nacional que circulavam no interior do Instituto
e suas versões regionais.
31
No início do Século XX os membros do Instituto ainda
28
CARVALHO, José Murilo de. As Forças Armadas na Primeira República: o poder
desestabilizador . In: FAUSTO, Boris (org). História da Civilização Brasileira: o Brasil Republicano
.
T.3, v.
2, 4ªed.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 196
29
ANTUNES, Ezequiel citado por RODRIGUES, Rogério Rosa. Os sertões catarinenses: embates e
conflitos envolvendo a atuação militar na Guerra do Contestado. Dissertação de Mestrado em
História. UFSC. Florianópolis, 2001., p. 31
30
É o caso de Herculano Teixeira D Assumpção. Este militar, que participou do conflito entre os anos
de 1914 e 1915 tomando parte da chamada Coluna Sul das forças legais, quando publica a sua obra em
1918 é membro efetivo do Instit
uto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e membro da Comissão de
Arqueologia, etnografia e língua dos indígenas. Outro aspecto do texto de D Assumpção que
influenciou muito a sua escrita foi o fato de que este Oficial parece ter como um de seus objetivos
fazer uma espécie de defesa da atuação do Cel. Estilac Leal que chefiou a Coluna Sul no ataque ao
reduto de Santa Maria e foi alvo da críticas de alguns Oficiais do Exército por considerarem que a
Coluna não correspondeu aos objetivos das ações.
31
Criado em 1838, O IHGB tinha por função definir um projeto de nacionalização do país, além de
defender a Monarquia e fazer a apologia da centralização e do catolicismo. Com o advento da
República, apesar da resistência de alguns em aceitar o novo governo, aos poucos, algumas idéias
republicanas começaram a ser apropriadas pelos Institutos e o projeto de Nação passou a assumir um
caráter de exercício de cidadania. Ver ampla discussão sobre a visão historiográfica dos Institutos em:
CALLAR, Claudia Regina. Os Institutos Históricos: do Patronato de D. Pedro II à construção do
Tiradentes . In:
Revista Brasileira de História
. São Paulo, v.21, nº40, 2001, pp. 59
-
83; GUIMARÃES,
Manoel Luís Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico
Bra
sileiro e o Projeto de uma História Nacional . In:
Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, n.1, 1988,
24
tinham entre suas atribuições recolher toda a documentação existente e acessível
para que outros no futuro pudessem analisá-la. Tudo para evitar que o historiador se
envolvesse com questões contemporâneas num propósito de neutralidade e
distanciamento vistos como necessários ao discurso historiográfico. É possível
observar essa característica no livro de Herculano D Assumpção quando ele afirma
repetidas vezes a sua preocupação em dar um testemunho imparcial e objetivo
tentando, de certa forma, legitimar seu relato:
Documentarei o presente trabalho para que bem claro fique,
sem possíveis sophismas, que nos sertões do sul, (...), habita
uma população numerosa, sem o mínimo resquício de
sentimento humano... E para dizer verdades tais, preciso
appelar, com energia, para a serenidade imparcial de relator,
calcando, constrangido, no âmago da minha alma de patriota
crente e convencido, o orgulho nacional.
32
Por outro lado, outras vozes ecoavam vindas do interior do próprio exército
para negar o que vinha sendo escrito e divulgado pelos contemporâneos sobre a
Guerra. E a noção de verdadeiro era novamente usada então para legitimar outra
visão: Não, e o que há por ahi publicado peca pela parcialidade e pelas inverdades,
(...). Eu também procurarei não almejar celebridade, mas não escrevo senão
verdades, referentes ao sector q
ue occupei e limpei .
33
Estas noções do verdadeiro que permeavam os discursos dos militares, seus
ideais em construir relatos objetivos, nos quais clareza, neutralidade e imparcialidade
deveriam ser as características primordiais, estão inseridos dentro de uma tradição de
pensamento que se caracteriza, principalmente, pelo debate do problema da unidade e
da diversidade humanas. Embora no Brasil de início de século XX as preocupações
intelectuais já estivessem, progressivamente, sendo pautadas pelo estudo do
particular, o etnocentrismo
que é um dos elementos característicos da concepção
pp.5
-27; e ainda SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão
racial no Brasil
1870
-1930
. São Paulo: Companhia das L
etras, 1993, p. 99 e DIEHL, Astor Antônio.
A cultura historiográfica brasileira: do IHGB aos anos 1930
. Passo Fundo: Ediupf, 1998
32
D ASSUMPÇÃO, Herculano Teixeira.
Op .cit.,
p.I
33
VIEIRA DA ROSA, Gen. José.
Op. cit
., p. 24
25
universalista do mundo
continuava a influenciar boa parte dos estudos brasileiros.
Segundo Todorov,
34
o etnocêntrico é aquele que crê que seus valores são os valores
e
isso
lhe basta, nunca busca verdadeiramente prová
-
lo; o etnocentrismo faz ver o que é
do outro, o que é diferente de sua cultura como estranho.
Assim, para o racionalismo de fins do século XIX e início do XX os surtos
constantes de fenômenos como o milenarismo e o messianismo se revestem de um
mistério assustador.
35
Entre os acontecimentos que assumiram maiores proporções é
possível citar a revolta dos Muckers que ocorreu entre 1868 e 1874 no Rio Grande do
Sul e envolveu colonos alemães protestantes, a Guerra de Canudos (1896-1897) na
Bahia e os incidentes ocorridos em Juazeiro no Ceará através da atuação do Padre
Cícero (1890
-
1934). Estes fenômenos representavam, para as elites e o Governo, uma
ameaça à ordem social e suas origens pareciam insondáveis, perdidas que estavam
num horizonte sombrio. Numa tentativa de racionalizar este temor se torna comum a
proliferação de discussões em torno da gênese desses fenômenos. Para alguns, havia
uma necessidade em explicar por qual razão movimentos cujas origens se perdi
am em
épocas remotas irromperam no mundo civilizado. As páginas dos jornais da época
eram utilizadas, freqüentemente, por quem queria tecer seus comentários sobre o
tema que tanto afligia o pensamento:
É bem conhecida a gênesis de tais bandos fanatizados
dentre
os quais foi o de Canudos o que maiores prejuízos de vida e
dinheiro nos causou, chegando a influir desastrosamente na
política geral da república.
De ordinário é a mania religiosa
um misto de catolicismo
rústico e de fetichismo africano
que inicia o congregamento
em torno de um certo indivíduo, das gentes ignorantes e
crendeiras das regiões sertanejas.
36
[grifo meu]
34
TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993, pp. 21
-49
35
Os movimentos milenaristas têm por característica principal a crença na chegada de um novo tempo,
uma idade de ouro na qual o reino de Deus será realizado. No caso dos movimentos messiânicos,
haverá ainda o comando de um representante divino ou de uma divindade encarnada, a garantir o
fechamento do milênio. Sobre os conceitos de messianismo e milenarismo, consultar QUEIROZ,
Maria Isaura Pereira de. O messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1977. p. 25-
46.
36
TIGRE, Bastos. Canudos e Irani , Correio da Manhã, 29/10/1912. Apud: GALLO, I.
Op.
Cit
. p.
16.
26
E, mesmo quando se admite que
da religiosidade primitiva à questão de
limites
as causas são puras conjecturas,
37
não é possível para o pensamento da
época fugir a tentação de eleger um motivo principal: Mas é certo que, entre tantos
motivos invocados, o verdadeiro pretexto está na politicagem, que separa por
interesses opostos, os cabos eleitoraes de taes sertões .
38
[grifo meu]
Essa preocupação dos racionalistas em estabelecer um ponto de partida para
tais fenômenos, a busca por uma origem
a
genesis
parece representar um esforço,
como argumentava Foucault, em
...recolher nela a essência exata da coisa, sua mais pura
possibilid
ade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si
mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo,
acidental, sucessivo. Procurar uma tal origem é tentar
reencontrar o que era imediatamente , o aquilo mesmo de
uma imagem exatamente adequada a si; é tomar por
acidental todas as peripécias que puderam ter acontecido,
todas as astúcias, todos os disfarces; é querer tirar todas as
máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira.
39
Para os contemporâneos dos conflitos, a origem que sobressai para explicar
esses movimentos é a barbárie cujos males
ignorância e fanatismo
afligiam certa
parcela da população que habitava os distantes sertões brasileiros. Todavia, uma
leitura mais atenta pode revelar as contradições desta visão generalizante frente a
realidade que foi observada em loco pelos militares. Leitura bem atenta, pois, mesmo
se referindo às intrigas sobre o litígio do território contestado como as principais
causadoras da anormalidade dos sertões, o Primeiro Tenente Herculano
D´Assumpção
, por exemplo, faz isso somente após 200 páginas nas quais explora as
condições de incivilidade de seus habitantes. Essas contradições produzem um
discurso ambíguo, fortemente marcado por oposições como campo/cidade,
37
CARVALHO, Gen. Fernando Setembrino.
Op. cit
., p. 03
38
CARVALHO, Gen. Fernando Setembrin
o.
Op. cit
., p. 03
39
FOUCAULT, Michel
.
Nietzsche, a genealogia e a história . In: Microfísica do Poder, 11. ed. Rio
de Janeiro: Graal, 1993, p. 17
27
natureza/cultura, mas que não pode deixar de dar conta de determinados aspectos
da realidade que se devidamente explorados viriam a desestabilizar os cânones do
pensamento racionalista da época ou, pelo menos, levariam a rever certas posturas
frente a realidade observada. Talvez seja exatamente por isso que certos
acontecimentos são apenas citados por D Assumpção brevemente, de passagem, e
ficam perdidos em meio a tantas definições constantemente repetidas a exaustão. É
possível, até mesmo, encontrar trechos em que ele critica, rapidamente, dete
rminados
setores das autoridades da região e até mesmo dos governos estaduais envolvidos,
pelo quadro de ignorância e pobreza que contempla. No entanto, estes trechos se
perdem em meio à desmoralização que o autor desencadeia sobre os sertanejos e o
quadro
de miséria que ele atribui à presença do elemento indígena na formação da
maior parte daquela população.
O historiador Rogério Rosa Rodrigues que tem como uma de suas propostas
refletir sobre os projetos não concretizados desses militares, que por esse motivo são
desconsiderados ou esquecidos pela historiografia e figuram como desejos que não
vingaram mas que compuseram a constelação de possibilidades para dar fim a Guerra
do Contestado, considera que,
Se por um lado pode-se afirmar que seus relatos est
ão
comprometidos com o lugar social do qual falavam, tendo por
princípio a obediência, a hierarquia, o culto exacerbado de
um patriotismo ao qual se viam como os maiores defensores,
por outro lado compartilham uma certa crítica à politicagem
comprometida com fraudes eleitorais, desmandos
administrativos e perpetuação da ignorância em todo o país.
Tais críticas estavam relacionadas à visão de que os
elementos citados bloqueavam o progresso e desenvolvimento
do país.
40
Por isso mesmo é possível encontrar exemplos que diferem em alguns
aspectos da visão influenciada pelos determinismos e conceitos universais do
racionalismo científico. Sensibilizados, talvez, pelos dramas presenciados, ou
detentores de uma visão de mundo mais flexível, conseguiram apresentar um quadro
40
RODRIGUES, Rogério Rosa.
Op. cit
. p. 49
28
mais amplo e complexo do que presenciavam. O General Fernando Setembrino de
Carvalho enfoca, principalmente, as relações entre fazendeiros e agregados, as quais,
a seu ver, eram muito semelhantes às que existiam entre senhores e escravos. Para
este
militar, os fazendeiros eram prepotentes e politiqueiros sanhudos que por
motivos futilíssimos era comum realizarem mortíferas entradas contra o
aborígene rarescente na região .
41
Outro exemplo, é o texto do General José Vieira
da Rosa, dono de um senso crítico aguçado, de um discurso mordaz, ele deixou bem
clara sua indignação frente às injustiças que presenciou durante toda a campanha.
Criticou tenazmente aqueles que por indecorosas concessões de terras, expoliam o
brasileiro em proveito do estran
geiro
. Criticou o desrespeito ao uso capião e o
abandono em que viviam os sertanejos sem acesso a educação e serviços de saúde.
42
ainda, o texto produzido por Demerval Peixoto que combateu no
Contestado entre setembro de 1914 e final de 1915, sua narrativa também leva em
consideração as relações sociais que marcavam a região e seus habitantes, não
ficando apenas na caracterização maniqueísta do conflito como a eterna luta entre o
bem e o mal. Para ele
(...), a região contestada esteve sempre e se eterni
zará
entregue ao despotismo dos chefetes locais, ao desvario de
uma sorte inumerável de crimes mal apurados e ao desmando
de caudilhos temíveis, homiziados, fora da alçada da justiça
das cidades; e tais têm sido os propulsores morais das causas
que levaram à rebeldia, como recurso de defesa, os
sertanejos ignorantes e espoliados pelos prepotentes.
43
Demerval Peixoto se preocupa, desde o início, em esclarecer que uma das
características da região era a existência de bandos de jagunços e agrupamentos
armado
s, geralmente formados e mantidos pelos chefetes locais, coronéis da roça ,
preocupados que estavam em dilatar suas terras e aumentar suas criações. Além desse
interesse, outros fatores contribuíam para a existência desses grupos: desavenças e
intrigas alimentadas pela disputa do território entre Santa Catarina e Paraná; disputas
41
CARVALHO, Gen. Fernando Setembrino.
Op. cit.,
p. 03
42
VIEIRA DA
ROSA, Gen. José.
Op. cit
., p. 25
43
PEIXOTO, Demerval.
Op. cit
., p. 18
29
insufladas pelas empresas madeireiras e construtoras de estrada de ferro, as quais
mantinham também seus próprios agrupamentos armados acautelando interesses.
Essa realidade, segundo Peixoto, fez com que o sistema de pequenos grupos
aguerridos, espalhados pela região com o pretexto de garantir interesses, se alastrasse
e avolumasse. Fato que, para o autor, poderia esclarecer, em grande parte, as razões
porque aquele modesto acampamento de fanáticos , desarmados e inofensivos nos
pinheirais dos Curitibanos ao princípio, depois nos faxinais do Irany, se transformou
em valhacouto de bandidos que estavam, por fim, disseminados pela região
inteira
.
44
Através das inúmeras injustiças sofridas é possível explicar porque o
movimento cresceu e ficou cada vez mais forte, tanto, que atraiu para seu interior
espertalhões e bandidos que viram nele um móvel para suas ações. Mas a necessidade
em indicar uma origem acaba levando Peixoto a contradições pois a percepção que
teve das complexidades das relações sociais em jogo não impediu que ele atribuísse a
gênese do movimento finalmente ao fanatismo religioso dos sertanejos: Está ao
alcance de todos que têm acompanhado a questão do Contestado que a sua origem
fundamental reside realmente no fanatismo
.
45
É no interior desta discussão que podemos vislumbrar o que representou o
movimento do Contestado, no seu tempo. Como Ivonne Gallo bem nos mostra, ao
deixar falar a imprensa da época, havia uma grande preocupação política quanto às
simpatias por práticas místicas e religiosas até mesmo por parte das elites e camadas
urbanas da sociedade brasileira.
É uma coisa impressionante o desenvolvimento que tem
tomado, nos últimos anos, essa doença que chamaremos a
feitiçaria civilizada e que outros chamam a sedução do
maravilhoso . Os ocultistas, theosofistas, espiritualistas
científicos , espiritualistas e mais adoradores das forças
misteriosas que governam o mundo , constituem hoje uma
legião imensa. Se s
e alistassem eleitores, com a firme idéia de
participar do governo da nação, podiam formar o partido
44
PEIXOTO, Demerval.
Op. cit
., p. 29
45
PEIXOTO, Demerval.
Op. cit
., p.52
30
mais numeroso das nossas grandes cidades, fazer
senadores, deputados, e quem sabe até o presidente da
República (...).
46
O temor republicano de perder o poder muito recentemente adquirido e a
fragilidade dos alicerces da nova realidade política era tal, que via em tudo uma
constante ameaça a sua posição. Foi o que aconteceu também em relação ao
movimento de Canudos. Mas o apego da elite urbana, ilustrada ou não, à simbologia
religiosa é marcado por uma diferença fundamental em relação à religiosidade dos
sertanejos. Segundo Claudine Haroche, pouco a pouco a exigência da unidade de
culto presente no discurso religioso vai dar lugar à liberdade de culto desde que se
respeite o culto à outra unidade que é representada pelo amor à pátria .
47
Portanto,
seja místico ou agnóstico, judeu ou cristão, não importa, mas todos devem cultuar a
nação. Para a sociedade urbana e elitizada esse apego não poderia passar de um uso
individual, com a perspectiva mística ou puramente mágica, um gosto pelo exótico e
pitoresco para colorir sua existência. Para os sertanejos, ao contrário, esse misto de
catolicismo de práticas exóticas e de fetichismo africano compreende um modo
de
vida, uma lente, através da qual se pode ver e compreender a história e explicar ou
estabelecer determinadas relações sociais e com a natureza
.
48
Essa diferença explicaria o porquê de, nos momentos em que essa forma
sincrética de apelo ao sagrado atinge dimensões coletivas e políticas, a elite se
apavorar e atribuir a isso o nome de fanatismo. É a racionalidade fazendo uso desta
noção para justificar os genocídios que ocorrem por aí. É o fanatismo encobrindo
todas as contradições e injustiças presentes no cotidiano e fornecendo justificativas
para a repressão pela força, sem que haja necessidade de se aprofundar na explicação
e entendimento do fenômeno. Esta parece ser a tônica dos relatos escritos na época
sobre o conflito, quando é preciso definir uma essência a escolha recai sobre
conceitos e idéias indiscutíveis no sistema de pensamento da época.
46
Feitiçaria , O Estado de São Paulo, 2/1/1917.
In: GALLO, I.
Op. cit
., p. 18
47
HAROCHE, Claudine.
Fazer Dizer,
Querer Dizer
. São Paulo: Hucitec, 1992, p. 216
48
GALLO, I.
Op. cit
. p. 21
31
1.1.2.
O ideal civilizador.
A guerra Sertaneja do Contestado ocorreu num tempo em que se respiravam,
ainda, ares saturados das contradições um tanto quanto caóticas das duas primeiras
décadas da República brasileira. Nesse período, O Exército Brasileiro estava imbuído
do ideal nacionalista, civilizador e modernizante. Segundo Angel Rama,
quem levou adiante o projeto modernizador e pôde fazê-
lo
viável foi o exército, sendo possível entendê-lo de outro
modo: a força repressiva de que dispunha o exército era
capaz de impor o modelo modernizador, que ele implicava
uma reestruturação econômica e social que castigaria
ingentes populações rurais, forçando-as a uma rebelião
desesperada.
49
Assim, era freqüente os militares, através de suas narrativas, chamarem a
atenção dos políticos e governantes para o problema que era a condição de barbárie
em que, para eles, vivia a população do interior do país. Herculano Teixeira
D Assumpção defendia, por exemplo, que não bastava vencer os bandidos do sul,
pois que o mal medrará novamente em tão propício meio , precisando, deste modo,
modificá-lo moralmente
com a relativa educação do povo sertanejo
.
50
Eram visões ambíguas, marcadas, ao mesmo tempo, pela preocupação com a
condição, a seus olhos deplorável, daqueles miseráveis ignorantes , e pela
caracterização pejorativa com que freqüentemente se referiam àquelas pessoas,
justificando as ações mais violentas que porventura viessem a ser tomadas pelo
exército. A tensão existente entre a consciência de que eram necessárias medidas
urgentes mas de outra ordem que a ação punitiva e a crença de que aqueles míseros
estavam condenados a um estado de barbárie tal, que a única solução possível em
curto prazo era o uso da força mesmo que isso também resultasse em atos violentos e
cruéis, fazia com que os oficiais produzissem relatos em que se confundiam a
condenação e a misericórdia. A maior marca da ambigüidade que caraterizava o
49
RAMA, Angel. La crítica de la cultura en América Latina , p. 350. Citado por Luís Roberto
SOARES na apresentação do livro de PEIXOTO, Demerval.
Op.cit
., p. 07
50
D ASSUMPÇÃO, He
rculano Teixeira.
Op. cit
., p. II
32
pensa
mento dos militares era a crença de si mesmos como aqueles capazes, através
de testemunhos imparciais, de produzir relatos verdadeiros, baseados firmemente em
neutralidade e objetividade, conceitos tão caros ao pensamento intelectual da época
que procurava
a todo custo legitimar ou tornar científico seu conhecimento.
Esta pretensa imparcialidade era de tal feitio que em seus relatórios oficiais
era comum enaltecerem o Exército Brasileiro, afinal do outro lado da batalha estão os
soldados tendo a sinceridade como penhor da nobreza das suas ações... .
51
E
D Assumpção, por exemplo, como bom oficial não perde a oportunidade para elogiar
e abençoar estes homens dignos, imbuídos de acção civilizadora e descrever as
dificuldades, sacrifícios e duras provações pelas quais passariam estes bravos ,
abnegados exploradores , cidadãos brasileiros que marchavam heroicamente para
extirpar a chaga do fanatismo que corroía os sertões do sul do Brasil.
Outra característica do ideal civilizador era sua forte marca excludente, afinal
índios e negros não seriam portadores da noção de civilização, portanto carregariam
em si os sinais do atraso e da barbárie e estariam condenados a não fazer parte da
construção da nacionalidade brasileira. Como então levar adiante o projeto c
ivilizador
entre uma população composta em sua maioria por descendentes de brancos, mas
também de índios e negros, ou seja de mestiços ? Esta questão não resolvida que
vinha se formulando desde meados do século XIX
52
pairava como um espectro sobre
o pensamento intelectual brasileiro da Primeira República. Neste momento, a
mestiçagem para os intelectuais se caracteriza apenas como mistura racial, muito
bem representada pela metáfora do cadinho, se tornando corrente a afirmação de que
o Brasil era resultado da fusão de três raças: o branco, o negro e o índio. Dentro do
quadro do evolucionismo, no entanto, a mestiçagem era vista como um problema,
um verdadeiro entrave ao progresso da nação e à civilização nos moldes europeus.
51
D ASSUMPÇÃO, Herculano Teixeira.
Op. cit
., p. 25
52
Em 1840, Januário da Cunha Barbosa lança um prêmio para o trabalho que melhor elaborasse um
plano para se escrever a história do Brasil. Em 1847 é premiado um texto de um cientista alemão de
nome von Martius. (MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von. Como se deve escrever a História do
Brasil . In:
Revista do IHGB
. Rio de janeiro, 6(24): 381
-
403. Jan. 1845). Segundo Manoel Guimarães:
No artigo, von Martius define as linhas mestras de um projeto historiográfico capaz de garantir uma
identidade especificidade [sic] à Nação em processo de construção. Esta identidade estaria
assegurada, no seu entender, se o historiador fosse capaz de mostrar a missão específica reservada ao
33
Para Renato Ortiz o dilema dos intelectuais desta época é compreender a
defasagem entre teoria e realidade, o que se consubstancia na construção de uma
identidade nacional .
53
Assim dentro do referencial teórico em voga na época
o
positivismo de Comte, o darwinismo social, o evolucionismo de Spencer
estavam
eles em meio ao paradoxo que constituiu o tema racial na época, afinal, se por um
lado esses modelos pareciam justificar cientificamente as hierarquias tradicionais, por
outro o estigma da mestiçagem inviabilizava o projeto nacional que se pretendia
iniciar. Mas é justamente na brecha deste paradoxo que se pode encontrar a saída
original dos homens de ciência do país ao acomodar modelos teóricos tão diversos:
do darwinismo social foi adotado o suposto da diferença entre as raças e sua natural
hierarquia, sem que se problematizassem as implicações negativas da miscigenação;
das máximas do evolucionismo social foi utilizada a noção de que as raças humanas
não permaneciam estacionadas, mas em constante evolução e aperfeiçoamento , s
e
obliterando a idéia de que a humanidade era una.
54
Assim, foi a partir da própria
realidade da mestiçagem da população que os intelectuais brasileiros tentaram
elaborar uma identidade nacional. Eles vão defender a idéia de uma aclimatação
55
da civilização européia nos trópicos através de uma mestiçagem moral e étnica . E
era através desta experiência aclimatadora que eles percebiam a possibilidade de
caracterizar uma cultura brasileira distinta da européia. Portanto, esta idéia
representava, basicamente, uma solução ao dilema vivido pelos intelectuais: como
construir a identidade nacional, um sentido de nação para o Brasil sem desconsiderar
sua especificidade, a mestiçagem , considerada pela visão etnocêntrica um entrave à
civilização? Para Renato Ortiz, Na verdade, as Ciências Sociais da época
Brasil enquanto Nação: realizar a idéia da mescla das três raças, lançando os alicerces para a
construção do nosso mito da democracia racial
.
GUIMARÃES,
Manoel Luís Salgado.
Op. cit., p. 18
53
ORTIZ, Renato.
Cultura brasileira e identidade nacional
. 2 ed. S
ão Paulo: Brasiliense, 1986, p.15.
54
Buscavam-se, portanto, em teorias formalmente excludentes, usos e decorrências inusitados e
paralelos, transformando modelos de difícil aceitação local em teorias de sucesso. SCHWARCZ, Lilia
Moritz. Op. cit.,
(1993), p
.118
55
essa idéia de aclimatação é retomada pelos intelectuais da época a partir das reflexões de Couto
Magalhães em relação aos indígenas, segundo a qual a raça branca se aclimata nos trópicos,
diferenciando
-se dos europeus. De acordo com Renato Ortiz esse fator é essencial para tomarmos a
temática da mestiçagem no período como real e também simbólica. Real no sentido em que refere-
se
ao amálgama étnico brasileiro e, simbolicamente conota as aspirações nacionalistas e construção de
uma identidade. Ver disc
ussão em ORTIZ, Renato.
Op. cit., p. 21.
34
reproduzem, no nível do discurso, as contradições reais da sociedade como um
todo. A inferioridade racial explica o porquê do atraso brasileiro, mas a noção de
mestiçagem aponta para a formação de uma possível
unidade racial
.
56
No entanto, o que poderia indicar, num primeiro momento, um caminho de
valorização da mestiçagem acabou sendo utilizado para fomentar a imigração de
trabalhadores europeus em plena crise da instituição escravagista. Sidney Chalhoub,
por
exemplo, constata que na década de 1860
a maioria dos médicos da Corte via na
afirmação da viabilidade da aclimatação dos europeus em países quentes a própria
construção de uma nação civilizada nos trópicos ,
57
idéia que se tornou a posição
oficial do Gov
erno Imperial.
No caso dos militares que trataram de escrever sobre a Guerra Sertaneja do
Contestado, a questão da mestiçagem não é enfocada diretamente, esse é um
problema da empreitada da civilização que não parece, a princípio, os preocupar. No
entant
o, é possível apreciar alguns elementos discursivos que podem indicar
possibilidades para que a questão da mestiçagem seja desconsiderada ou como
veremos camuflada. D Assumpção, por exemplo, ao relatar o deslocamento das
tropas de Itajaí até a localidade de Pouso Redondo, quase no Planalto Serrano, marca
diferenças entre áreas de colonização alemã e áreas ocupadas por indígenas e seus
descendentes. Apesar dele não se referir aos descendentes dos indígenas como
mestiços, é a presença destes que quer marcar. Mas qual a razão para não fazer isso
abertamente, como fez Euclides da Cunha em Os Sertões?
58
Obra que D Assumpção
cita justamente para introduzir o tema dos costumes e hábitos do sertão que vai passar
a tratar? Arrisco a considerar que para um oficial ufanista, como visto, da instituição
da qual faz parte, que assume como tarefa escrever a memória da atuação do exército,
justificando
-a e glorificando-a para a posteridade, tratar do tema da mestiçagem
seria ter que considerar o perfil da grande maioria dos soldados, cuja imagem ele
56
ORTIZ, Renato.
Op. cit.,
p. 34
57
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: Cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996, p. 84
58
Euclides da Cunha dedica uma parte de seu livro para descrever o elemento humano do cenário, o
sertanejo, e realiza uma ampla discussão sobre a constituição étnica do povo brasileiro. CUNHA,
Euclides da.
Os Sertões: campanha de Canudos.
35ª.ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1991.
35
exalta e enobrece. Como questionar as atitudes dos sertanejos levando em conta sua
especificidade racial se os soldados em sua maioria também poderiam ser
adjetivados igualmente por essa mesma especificidade . Quem eram os soldados do
exército brasileiro?
Tradicionalmente, durante o império, o corpo de oficiais era recrutado entre as
elites e os praças entre a população mais pobre
mecanismo com sérias
conseqüências políticas ao possibilitar a identificação entre oficialidade e grupos
políticos dominantes e o gradativo distanciamento entre oficiais e praças. Fato que
começa a se modificar ao longo do Império e República adentro, quando o oficialato
passa a ser recrutado dentro da própria organização, formando assim verdadeira
s
dinastias militares. Com o tempo o Exército passa a recrutar oficiais entre grupos
sociais de renda mais baixa e status menor que nobre, principalmente na classe média.
Mas o recrutamento das praças foi até 1916 feito majoritariamente em classes baixas,
na maior parte das vezes forçado, pois reclamava-se da repugnância da população
para a carreiras das armas e da dificuldade em manter os recrutas nas fileiras.
59
Ainda em 1913 as principais fontes de recrutamento do exército eram: os
nordestinos afugentados pelas secas, os desocupados das grandes cidades que
procuravam o serviço militar como emprego, os criminosos mandados pela polícia, os
inaptos para o trabalho. Segundo José Murilo de Carvalho esse recrutamento se
refletia na composição racial das guarnições da marinha que eram formadas por 50%
de negros, 30% de mulatos, 10% de brancos ou quase brancos.
60
Eram freqüentes nos
quartéis brigas, roubos, bebedeiras, intrigas, perseguições, violações e imoralidades
entre eles. E toda essa indisciplina era castigada fisicamente. Fatos que corroboravam
para um certo desprestigio do Exército junto a algumas parcelas da população que
tentavam burlar o alistamento. O problema do recrutamento passa a ser considerado
como ponto primordial a ser solucionado para melhorar a imagem do exército, mas
diversas campanhas e leis instituindo sorteios e criação de Clubes de tiros para atrair
59
CARVALHO, José Murilo de. As Forças Armadas na Primeira República: o poder
desestabilizador .
In: FAUSTO, Boris.
Op. cit
., p.189
60
Esses números são baseados em levantamento feito por oficial da Marinha. CARVALHO, José
Murilo de. As Forças Armadas na Primeira República: o poder desestabilizador . In: FAUSTO, Boris
(org).
Op. cit.
, p.191
36
jovens de classe média e alta não surtiram efeito desejado no início. Foi preciso
longa campanha e a Guerra Mundial de 1914 para que tivessem
melhor êxito. Figuras
como Olavo Bilac iniciam apoio a campanha para acabar com o divórcio
monstruoso que separa o exército e o povo. Pelo sorteio, diz ele, teremos o
exército que devemos possuir: não uma casta militar, nem uma profissão militar, nem
uma milícia assoldadada, nem um regime militarista, oprimindo o país: mas um
exército nacional, democrático, livre, civil, de defesa e coesão, que seja o próprio
povo e a própria essência da nacionalidade .
61
Daí a necessidade em glorificar e enaltecer os feitos do exército e marcar sua
diferença daquele bando de sicários que ousavam desafiar a nação. Diferença que
na prática não se fazia tão sensível, principalmente se fosse caracterizada por
conceitos baseados em origem social e racial, essa última, como visto anteriormente,
era a preferida para marcar lugares pela intelectualidade da época. Justificar as ações
utilizando o fato dos integrantes do movimento serem na sua maioria mestiços e,
mais, atribuir abertamente à mestiçagem a causa por degenerações e crenças absurdas
poderia abrir caminhos que impossibilitassem a devida exaltação que o exército e
suas ações saneadoras mereciam a seus olhos.
A memória do exército poderia sair manchada pelo estigma racial, assim
D Assumpção prefere fazer alusões à presença dos indígenas sem fazer ligações
claras à heranças biológicas e morais. Para bom entendedor, meia palavra basta.
Veja
-se os recursos que utiliza para descrever o tipo rústico dos sertanejos do
Contestado
afirma que existe o sertanejo de côr clara e o caboclo indígena . O
sertanejo, esse de cor clara , é descrito apenas por seus grandes bigodes caídos (!) e
pela vestimenta (!)
nunca saberemos o que é precisamente esta cor clara , talvez a
condição que indica seu gradual branqueamento, sua he
rança indígena e negra estaria,
portanto, longe no passado, diluída pelo constante caldeamento, fato que representaria
sua aproximação com a civilidade. Esse pensamento pode muito bem conter um
elemento do discurso colonial do qual nos fala Homi Bhabha, é a (...) mímica que
61
BILAC, Olavo. A Defesa Nacional , Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1965, pp. 106, 107,
70. Apud. CARVALHO, José Murilo de. As Forças Armadas na Primeira República: o poder
desestabilizador .
In: F
AUSTO, Boris (org).
Op. cit.
, p.194
37
emerge mais uma vez como uma das estratégias mais ardilosas e eficazes do poder
e do saber coloniais (...), e (...) simboliza o desejo de um Outro reformado,
reconhecível, como sujeito da diferença que é quase a mesma mas não exatamente e
essa diferença é um processo de recusa .
62
É como uma máscara que encobre
características indesejáveis num indivíduo do qual se quer aproximar ou aceitar como
seu próximo, mesmo que seja dentro de certos limites, mantendo uma determinada
hierarquia soc
ial frente a ele. Aceitá
-
lo, esperar sua cooperação, contudo mantê
-
lo em
seu devido lugar. Aquelas características indesejáveis ressurgem explicitamente
quando o caboclo indígena é descrito, dando a entender que a herança indígena
neste tipo seria mais presente. Esse tipo que parece estar sendo descartado
assimilá
-lo talvez seja perda de tempo que em épocas críticas o melhor é cortar o
mal pela raiz
precisa ser excluído terminantemente da condição de civilidade ou
cidadania para que, se necessário for, ações mais enérgicas possam ser tomadas sem
levantar ondas de indignação, auxiliando a legitimá-las. A partir destas considerações
é possível entender o porquê de o caboclo ser descrito, em contrapartida ao tal
sertanejo de cor clara , por seus caracteres físicos e morais: a cor de sua pele, seus
cabelos e barba, olhos vivos, sempre baixos, sem se fixarem no interlocutor, são
atirados de soslaio e nelles se estereotypam a desconfiança nata e o seu instincto
geralmente perverso
.
63
Ou seja, como filhos e netos de indígenas não fogem à regra,
herdaram sua natureza desconfiada e dissimulada, sua habitual perversidade. Em
nenhum momento ele afirma com palavras que este caboclo indígena é o fanático
e o bandido que adere ao movimento, mas a imagem que ele constrói e reafirma a
todo instante da narrativa sobre os integrantes dos redutos confere com esta produzida
sobre os descendentes de indígenas. E, como a não deixar alternativas para outras
possíveis constatações, é taxativo:
É assim no sertão. Os seus homens mais rudes, dominados
pela ignorância que gera superstições que muito concorrem
para os seus continuados desvarios, esses homens são como
os boidios: nem sempre provocam a luta, mas quando uma
62
BHABHA, Homi.
O local da cultura.
Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998, p. 130.
63
D ASSUMPÇÃO, Herculano Teixeira.
Op. cit
., p.199
38
força superior sacode os seus instinctos perve
rsos
,
despertando
-os com vigor, então elles evidenciam toda a sua
maldade inconcebível, tornando-se inimigos terriveis,
sanguinarios, atilados e traiçoeiros
.
64
[grifo meu]
É assim no sertão, a mais pura expressão da verdade. A palavra da História
fundando u
ma memória verdadeira e incontestável.
1.1.3.
As representações do
Sertão
e de seus habitantes.
O imaginário
65
criado sobre o sertão catarinense e seus habitantes pelos
contemporâneos da Guerra Sertaneja do Contestado está eivado de idéias-
imagens
que definem o sertanejo com estereótipos depreciativos, mas portadores de uma
imensa bravura em combate. Coragem e força são expressões que vem
acompanhadas de bandidos e sanguinários . De acordo com Rogério Rosa
Rodrigues
66
que se propôs a analisar o discurso destes memorialistas focalizando a
mobilização de símbolos na demarcação da arena e do papel de civilizados e
bárbaros, isso pode parecer paradoxal a princípio, mas provavelmente quanto maior a
resistência e valentia do adversário, maior o prêmio e a glór
ia por vencê
-
los e também
justificar as perdas sofridas pelo exército em combate. Enquanto que a campanha de
desmoralização moral do outro serve não só para justificar as ações violentas
exercidas no seu combate como para imortalizar uma visão autorizada sobre o
acontecimento. Segundo Baczko, as ações são efetivamente guiadas pelas
representações: não modelam elas os comportamentos; não mobilizam elas as
energias; não legalizam elas as violências
?
67
64
D ASSUMPÇÃO, Herculano Teixeira.
Op. cit
., p.201
65
O imaginário pode ser entendido em nossa discussão como um sistema de idéias-imagens de
representações coletivas que são ao mesmo tempo matriz e efeito das práticas construtoras do mundo
social. O imaginário é visto aqui como um elemento de transformação do real e de atribuição de
sentido ao mundo. Este tema, de acordo com Sandra Jatahy Pesavento, Apresenta-se no bojo de uma
série de constatações relativamente consensuais que caracterizam a nossa contemporaneidade no
apagar das luzes do século XX: a crise dos paradigmas de análise da realidade, o fim da crença nas
verdades absolutas legitimadoras da ordem social e a interdisciplinaridade. PESAVENTO, Sandra
Jatahy. Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário . In:
Revista Brasileira de História
.
São Paulo, v.15, n°29, 1995, p. 09. Ver também BACZKO, Bronislaw. Imaginário Social . In:
Enciclopédia 5
Anthropos
-
Homem
. Einaudi
Lisboa: Impr. Nac.
Casa da Moeda, 1985. p 298
66
RODRIGUES, Rogério Rosa.
Op. cit
., p. 33
67
BACZKO, Bronislaw. Imaginário Social .
In:
op. cit.,
p 298
39
Estes olhares foram compartilhados pelos diversos
rep
resentantes das forças legais: os que detinham o poder de
imortalizar pela palavra. Seus discursos não figuraram como
palavras ao vento, serviram como mais uma dentre as
diversas armas utilizadas para combater os sertanejos. Suas
narrativas não aparecem como um mero repositório de
informações, mas como um trabalho intelectual lapidado com
o objetivo de justificar perdas, glorificar o exército e
imortalizar feitos.
68
Por outro lado, a ambigüidade que caracteriza estes discursos, é fruto também,
como abordado no tópico anterior, das tensões produzidas pela visão de quem se
acredita um observador imparcial, objetivo, e acima de tudo, imbuído de um ideal
civilizador. D Assumpção constrói sua narrativa a partir da viagem de sua guarnição
do Rio de Janeiro por mar até Itajaí em Santa Catarina, seguida da navegação pelo
Rio Itajai
-
açu até a cidade de Blumenau, lugar em que tomam o trem até o planalto. E
a medida que as forças recém chegadas seguem pelos caminhos que penetram nos
distantes e isolados sertões do sul do país , as palavras vão preenchendo as páginas
formando uma imagem pintada com cores fortes como que para calar na mente dos
leitores, não deixando possibilidade de imaginar nada menos que bandos de
semibárbaros em choupanas imundas, que parecem mais furjas para feras do que
habitações para entes humanos . E se põe a descrever essas habitações e seus
habitantes iniciando a frase com imaginae leitor... . E não faltam palavras para
ajudar o leitor a construir um imaginário sobre esta região e seus
habitantes:
Depois de Pouso Redondo, se encontra, por aquele sertão,
a mais desoladora prova do atrazo indígena.
Choupanas de miserável aspecto, cujos moradores eram
mulheres desengonçadas, andrajosas, de cabellos arrepiados,
hirsutos, em completo desalinho, e de rostos macilentos, nos
quaes se estereotypam os vestígios inilludíveis da desventura;
as crianças, nuas, sujas, muito magras, amedrontadas,
olhavam
-nos por entre as grandes frestas das tristes choças...
os homens, madraços habituaes, indolentemente recostados
nas pedras ou nos barrancos próximos, indifferentes ao
68
R
ODRIGUES, Rogério Rosa.
Op. cit
., p. 34
-35
40
aspecto desolador de seu lar, observavam-nos com
curiosidade, espreguiçavam-se ao sol e não pensavam no
trabalho...(sic)
69
Aqui fica claro sob uma leitura mais atenta que o autor, se não foi em busca,
encontrou a prova que confirmou suas idéias formadas sobre os indígenas
brasileiros. Muito significativo para quem era membro da Comissão de arqueologia,
etnografia e língua indígenas do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais,
denotando que seu trabalho é reproduzir os discursos em voga sobre serem os
indígenas e seus descendentes os responsáveis pela barbárie e miséria do interior do
país.
Ao determinismo biológico embutido nesta depreciação da população através
do elemento indígena junta-se o determinismo geográfico. Para D Assumpção a
vastidão do território brasileiro e a disseminação dos seus habitantes é que geraram as
condições de incultura da população sertaneja, mergulhada como está, nas trevas
da ignorância .
70
Estão segregados das benesses da civilização e do progresso pela
falta de vias de comunicação, é esse isolamento que justifica sua rudeza de costumes
e de hábitos.
Urgia, então, para aqueles que tinham essa percepção do interior brasileiro,
que as atenções do poder público se voltassem para estes bárbaros no intuito de
trazê
-los à civilização, para a ordem e o progresso da nação. Enquanto isso não
ocorresse, aqueles habitantes do longínquo sertão, distância geográfica aumentada
pela ignorância, barbárie e miséria, estariam conseqüentemente excluídos da nação.
Essa imagem de sertão também era fruto, em parte, de ideais inspirados nas
correntes racionalistas do pensamento europeu, sobretudo francesas, que
impregnavam o cenário de uma ética bem definida em que conceitos universais com
os de humanidade, nação, verdade, justiça operavam como padrões de referência
básicos.
71
Além do racionalismo, o romantismo alemão também exercia uma não
desprezível influência em boa parte da intelectualidade da época. A qual se perdi
a em
69
D ASSUMPÇÃO, Herculano Teixeira.
Op. cit
., p. 231
70
D ASSUMPÇÃO, Herculano Teixeira.
Op. cit
., p. 175
71
SEVCENKO, Nicolau.
Literatura como missão
. 2ed. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 22
41
meio ao espírito do racionalismo que defendia a cientificidade e o desejo pelo
progresso e civilização e em meio a sentimentos de desencanto da realidade, um
desejo pelo bucólico, a exaltação da natureza. Essa contradição pode ser percebida
concretam
ente nessa visão ambígua de sertão produzida por esses intelectuais.
72
A
imagem mítica do sertão , enquanto elemento fundador de nacionalidade,
autenticidade, e até como uma espécie de paraíso na terra, era a construção discursiva
da literatura romântica que se confrontava com o credo cientificista do qual derivava
o fato de o conceito de sertão ser compreendido da forma mais pejorativa possível,
desqualificando a terra e seus habitantes, reconhecendo neles a impossibilidade de
qualquer desenvolvimento rumo à civilização. Essas imagens produzidas sobre o
sertão
distante como a antítese do litoral, o lugar do vazio, do desconhecido, da
desordem, da barbárie e do diabo, vem desde os séculos XVI e XVII e deriva muito
mais do contraste com a idéia de região colonial como o mundo da ordem ,da Igreja
e do Estado, do que simplesmente uma oposição com o litoral.
73
Toda esta tensão
entre elementos conflitantes esteve presente na construção imagética que Euclides da
Cunha fez dos sertões baianos e seus habitantes ao narrar os acontecimentos de
Canudos em sua obra Os Sertões.
74
E não como esquecer a forte influência da
narrativa de Euclides da Cunha sobre a visão de mundo dos militares.
Euclides da Cunha foi um dos intelectuais deste período que se perderam en
tre
a euforia de ver na república, para ele tão promissora, o modelo ideal para abrir os
caminhos ao país do progresso e da civilização e a desilusão com a realidade do novo
governo. A realidade observada por Euclides da Cunha no interior da Bahia por
exem
plo, em nada correspondia com suas expectativas formadas pelas doutrinas e
teorias que abraçou com todo entusiasmo.
72
Um trabalho singular sobre a questão das visões sobre o
Sertão
é desenvolvido por Nísia Trindade
Lima em Um Sertão Chamado Brasil: Intelectuais, Sertanejos e Imaginação Social. Tese de
Doutorado em Sociologia. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1997.
73
Além desta visão sobre o interior brasileiro, outras foram sendo formadas durante os séculos XIX e
XX, o que não significou o desaparecimento das anteriores. Todas essas visões continuam presentes no
imaginário sobre os sertões do Brasil, fato que contribui para produção de noções ambíguas e
contraditórias sobre o mesmo e seu papel nas interpretações da sociedade brasileira. Para aprofundar
este assunto ver LIMA, Nísia Trindade.
Op. cit.
74
OLIVEIRA, Ricardo de. Euclides da Cunha, Os Sertões e a invenção de um Brasil profundo . In :
Revista
brasileira de História
. São Paulo, V.22, n.44, pp. 511
-
537, 2002.
42
Essa visão de mundo permitiu a Euclides da Cunha assumir uma atitude
combativa de inconformidade com o que presenciava na sociedade, nas decisões
políticas, no interior do governo e dos altos escalões do exército. Embora fizesse isso
dentro dos limites impostos pelas teorias européias que tentavam explicar e resolver
os problemas apresentados pelas sociedades que conheciam e/ou pensavam conhec
er
durante o século XIX, este fato caracteriza sensivelmente sua obra não só pelas
críticas mas também pelas propostas reformistas que apresenta para a sociedade
brasileira nesta fase de transição entre Império e República.
A obra Os Sertões foi divida por Euclides da Cunha em partes
A terra, O
homem, a luta
e é marcada por fortes determinismos geográfico e racial. Os agentes
da natureza também são personagens atuando e influenciando em toda trama. Os
homens são os habitantes do sertão que durante três séculos de intensa
miscigenação e reclusão, estariam maduros para absorver a civilização redentora. A
Guerra Sertaneja do Contestado é considerada por muitos, apressadamente, como
uma repetição de Canudos no interior de Santa Catarina. E mesmo guardadas as
devidas proporções e especificidades, as possíveis ligações entre os dois eventos
acabam levando bom número daqueles que se dedicam a estudar e escrever a História
do Contestado a utilizar Os Sertões como fonte e até considerar esta obra o melhor e
l
egítimo roteiro para a narrativa deste tipo de fato histórico.
Ao descrever o que seria este homem de Canudos , Euclides da Cunha
envereda pela discussão da mestiçagem no Brasil, que para ele é um
intrincado
caldeamento
, de onde estabelece a miragem fugitiva de uma sub-
raça
, o
jagunço . Denominação que servirá para discriminar o homem dos sertões ,
deixando bem claro que esse tipo era inapto para representar as nossas raças
nascentes, pois que essa sub-raça seria, talvez, efêmera, engolida pela ci
vilização
em curso.
75
No entanto, é preciso lembrar, de acordo com Zilly, que entre as visões
inovadoras de Euclides da Cunha deve ser destacada a valorização da mestiçagem ;
embora essa valorização seja ambígua, afinal em alguns momentos eles são
75
CUNHA, Euclides da. Op. cit
., p. 91
43
degenerados , noutros são apenas retrógrados
76
e é na morte que eles se
transfiguram em agentes políticos. Mesmo sendo, portanto, uma valorização ao vel
simbólico ainda mais porque o sertanejo é tragicamente sacrificado, Euclides da
Cunha acaba reconhecendo a mestiçagem - considerada por muitos intelectuais da
época, inclusive pelo próprio autor, um estorvo para o progresso civilizatório
[quando extremada] - como processo fundamental e positivo para a formação da
sociedade sertaneja e brasileira .
77
Apesar do esforço de Euclides da Cunha em tecer de certa forma uma
valorização do sertão e dos sertanejos, esses aspectos do seu discurso não foram
assimilados por alguns. No texto de D´Assumpção, por exemplo, os sertanejos que
adentraram os redutos assumem uma essência homogeneizadora, eles nada mais são
que desorientados por uma crença que ganha o record da imbecilidade e da mais
crassa ignorância , são monstros humanos , malfeitores cujas ações são a prova de
seu idiotismo e incontestável estupidez . E para ele seriam cômicos não fosse
doloroso e confrangesse seu coração dizer estas verdades! São bandoleiros ,
bandidos , sicários .
Ao ler o texto de D Assumpção sobre o Contestado fiquei com a mesma
impressão de Marli Auras ao ler a bibliografia sobre o assunto, pareceu a ela que
os
milhares de caboclos que tinham se rebelado nos sertões contestados eram, nada
mais nada menos, que um bando de fanáticos a perturbar, criminosamente, a
serenidade da ordem pública ,
78
pois são geralmente assim caracterizados. F
ica
-
se
com a impressão de ser esse bando composto por vários indivíduos semelhantes no
seu fanatismo , suas diferenças quase que não aparecem e destes textos parece surgir
um sujeito único, cuja essência era sua ignorância e fanatismo: o fanático do
Co
ntestado , o qual, para Herculano D Assumpção, não possui nenhum sentimento
humano. No entanto é difícil acreditar que tantas famílias, homens, mulheres e
crianças envolvidas no conflito fossem todas compostas por jagunços e marginais
76
ZILLY, Berthold. Uma crítica precoce à "globalização" e uma epopéia da literatura universal:
Os
Sertões
, cem anos depois .
In:
http://www.artnet.com.br/gramsci/arquiv246.htm
77
ZILLY, Berthold.
Op. cit
., [s/p]
78
AURAS, Marli. Guerra do Contestado: A organização da irmandade cabocla. 2.ed. Florianópolis:
ed. da UFSC, 1995, p. 15
44
fanatizados, cujos espectros povoam as páginas desta e de outras obras que narram
ou analisam a Guerra Sertaneja do Contestado.
Se é fácil para D´Assumpção generalizar essas nomeações para todos os que
integravam as cidades-santas , o mesmo não acontece com Demerval Peixoto.
As
contradições no pensamento de Peixoto acabam fornecendo uma visão interessante
tanto do movimento quanto de seus integrantes. Por um lado, para definir uma origem
o fanatismo assume um papel fundamentalmente causal que encerra a discussão e
coloca toda a complexidade das relações econômicas, políticas e sociais no momento
em segundo plano; por outro, para analisar o desenvolver do movimento o
fanatismo aparece principalmente como um disfarce habilmente utilizado por
espertalhões. Peixoto dificilmente confunde os que ele denomina jagunços ,
salteadores e bandoleiros com os fanáticos que considera ingênuos e
matutos : As cidadelas (...) não foram inteiramente destruídas pelos
salteadores
que à sombra dos fanáticos
praticavam façanhas no te
rritório contestado...
79
. [grifo
meu]. Ele via o fanatismo como um móvel para o desenvolvimento do banditismo
habilidoso:
A politicagem, o banditismo, a rapinagem costumeira, um
falado regionalismo, a questão de limites e uma
desequilibrada aspiração restauradora das antigas
instituições embutida na cabeça de alguns matutos, ao final,
surgiram quase que a um tempo, abruptamente, e,
ocultos
nas avançadas do fanatismo que infelizmente ainda existe,
avassalaram a imensidade do campo.
80
[grifo meu
]
É
uma brecha que se abre na visão estanque e definidora fomentada por
muitos adeptos e defensores do racionalismo positivista com seus determinismos.
Pelo menos daqueles que assumem posições extremistas e o admitem visões mais
abrangentes e relativizadas, pois que elas podem vir a dificultar seu entendimento da
realidade, sua visão de mundo baseada na verdade e nas certezas científicas.
79
PEIXOTO,
Demerval. O
p. cit
., p. 38
80
PEIXOTO, Demerval. O
p. cit
., p. 58
45
Além disso, Demerval Peixoto distingue, explicitamente, os sertanejos que
eram adeptos do movimento daqueles que formaram ajuntamentos e foram
contratados e armados pelas expedições militares para reforçar os efetivos, fazer as
avançadas e explorar os terrenos, sustentar fogo e praticar escaramuças. Esses eram
genericamente identificados como vaquenos , ironicamente denominados por
Demerval de jagunços mansos : Era o jagunço manso atirando, habilidosamente,
contra o jagunço transviado .
81
Nesta sua frase é possível perceber que para ele os
dois não deixavam de ser jagunço , os vaqueanos eram mansos pois que
estavam do lado do poder instituído e os demais eram os que se desviaram e se
rebelaram contra a ordem instituída. Demerval também deixava claro que as ações
dos jagunços mansos , todavia, não lhe agradavam e tecia comentários ácidos
contra eles:
... nunca passaram, em regra, de piquetes de civis armados e
municiados, compondo mesnadas
*
que agiam nas vanguardas
como elementos de combates e a título de esclarecedores,
sustentando tiroteios renhidos, sem ordem, sem disciplina de
fogo, sem regras e às vezes transmitindo desânimo aos
soldados, quando não lhes debicavam, e outras vezes,
operando isoladamente, promovendo os saques e as pilhagens
pelos campos e nas vivendas em abandono.
82
No entanto, o que se pode perceber na leitura do texto de Demerval Peixoto é
que os brasileiros envolvidos na contenda, apesar de não serem todos bandoleiros,
eram matutos fanatizados , matutos porque facilmente ludibriados, por quem quer
que seja, e fanatizados , afinal como explicar que pessoas em consciência
pudessem aderir a tais movimentos. Além disso, é preciso ressaltar que quando os
denomina de fanáticos utiliza esta expressão sempre entre aspas, um indício talvez
do fato de considerar a expressão muito carregada de sentido negativo, não sendo
muito apropriada para nomeá-
lo
s devidamente. Talvez para lembrar que existiam
muitos espertalhões nada religiosos se aproveitando do movimento para praticar seus
81
PEIXOTO, Demerval. O
p. cit
., p. 30
*
Mesnada significa porção de soldados assalariados, tropa mercenária
82
PEIXOTO, Demerval,
Op. cit
., p. 148
46
crimes. O uso da expressão, mesmo entre aspas, também é um indício de que o
autor, apesar de talvez não concordar muito com ela, estava como que preso a um
discurso vigente sobre os habitantes do interior do país e nele não encontrava outra
denominação que pudesse utilizar.
Além disso, apesar de, em momentos específicos, fazer uma distinção clara
entre mansos e transviados , em outros, distinguir as inúmeras famílias sertanejas
de certos elementos perigosos, nos momentos em que ele conclui sua argumentação
acabava utilizando o genérico e atribuindo a todos a mesma origem e o mesmo
destino:
... porque o fanatismo era, finalmente, uma arregimentação
armada, forte e sanguinária, capaz das mais arrojadas
empresas, uma vez que seus elementos eram originários do
crime e da desgraça: era, incontestavelmente, uma gente que
havia descoberto no bandoleirismo um dos processos de viver
livre do trabalho e da ordem
.
83
Essa produção de sujeitos abjetos parece servir aos propósitos dos
mecanismos coercitivos de individualização, de isolamento mesmo, impostos pelo
Estado ao indivíduo para fins de poder. E de acordo com Claudine Haroche
84
a lí
ngua
e a psicologia são o lugar desses mecanismos individualizantes. O poder torna visível
o sujeito, atribui a ele características para melhor controlá-lo e manipulá-lo. A
individualização cumpre assim seu papel de auxiliar na instituição de identidades,
pois segundo Pierre Bourdieu, (...) a instituição de uma identidade, que tanto pode
ser um título de nobreza ou um estigma ( você não passa de um... ), é a imposição
de um nome, isto é, de uma essência social. Instituir, atribuir uma essência, uma
competê
ncia, é o mesmo que impor um direito de ser que é também um dever ser (ou
um dever de ser) .
85
É nesse sentido que podemos também afirmar que todas as identidades
funcionam por meio da exclusão, por meio da construção discursiva de um exterior
83
PEIXOTO, Demerval,
Op. cit
., p. 38
84
HAROCHE
, Claudine.
Op. cit.
, p. 21
85
BOURDIEU, Pierre.
A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer
. São Paulo: EDUSP,
1996, p. 100
47
constitutiv
o e da produção de sujeitos abjetos e marginais .
86
Sujeitos que serviam
como modelo daquilo que nenhum indivíduo civilizado poderia pensar em ser, seus
atos não deviam ser repetidos. Foi através da exclusão destes sujeitos que estes
discursos acabaram construindo ao longo do século identidades catarinenses baseadas
em ideais civilizadores e principalmente europeus, pois que estes homens e mulheres
foram antes de tudo denominados primitivos, ignorantes e desumanos. A medida da
incompreensão e do menosprezo das elites com relação aos pobres, que existia
antes da implantação do regime republicano é o conflito entre a racionalidade e o
modo de vida do caboclo, o qual ultrapassa, para Ivonne Gallo
87
a importância da
súbita penetração do capitalismo no sertão.
Esse conflito está expresso nas maneiras como os sertanejos e seu modo de
viver o comparados, por D Assumpção, com os colonos imigrantes europeus e o
modo de vida destes. O colono allemão e seus descendentes, população ordeira,
disciplinada, intelligente e summamente prestativa ,
88
em suas casinhas com jardins
bem cuidados e suas plantações, parecia estar mais distante que os poucos
quilômetros que os separavam da região serrana onde reinava a anarchia, a
miséria, a completa desorganização na vida privada e pública de seus habitantes .
89
O atraso dos sertões chega a causar em D Assumpção dor moral.
Um indício de que nem todos os sertanejos se encaixavam naquela essência
podemos encontrar mesmo no texto de D Assumpção, ele apresenta a titulo de
curiosi
dade , uma carta encontrada no bolso do cadáver de um chefe de piquete dos
pelados como eles próprios se denominavam, contendo instruções para realizar um
ataque a uma vila. Entre as instruções uma recomendação para respeitar muito as
famílias, destruir as casas, mas deixar em algumas para acomodar as famílias, ou
seja uma preocupação em poupar do ataque mulheres e crianças. Um indício de
humanidade? Mas isso não é relevante para o militar, não é considerado, passa
despercebido entre a infinidade de características negativas jogadas sobre os ombros
86
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? . In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e
diferença: a perspectiv
a dos estudos culturais
. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 129.
87
GALLO, Ivone. O
p.cit
., p.22
88
D ASSUMPÇÃO, Herculano Teixeira.
Op. cit
., p.198
89
D ASSUMPÇÃO, Herculano Teixeira.
Op. cit
., p.198
48
daquelas pessoas. A essência ficaria assim ameaçada, e, além disso, D Assumpção
ressalta que nesses assuntos seu escrúpulo não tem limites,
a minha preocupação é a
do historiador: a verdade deve culminar em
tudo
.
90
Ou seja, não é sua intenção
amenizar a realidade que presenciou, portanto não levaria em consideração fatos que
porventura servissem para refutar ou ao menos relativizar a sua verdade sobre a
região e sua população.
E assim executa seu objetivo que é tratar dos costumes e hábitos do sertão e
do banditismo que, colhendo nas suas malhas os ingênuos fanáticos, transformou-
os
nos mais acabados bandoleiros .
91
Na visão de D´Assumpção os ingênuos
fanáticos se metamorfoseiam radicalmente em bandidos, sua concepção radical e
crença na verdade universal e acabada não permite que ele diferencie uns de outros. É
muito mais fácil explicar um acontecimento quando ele se desenvolve linearmente, é
homogêneo e obedece às leis que regem a sociedade.
E, no fim, con
denação e misericórdia se confundem, agora em homenagem:
No sertanejo do Contestado tinha-se assistido a reprodução
da brutalidade da coragem dos caipiras das sertões nortistas
.
Ante as vidas preciosas de oficiais e de soldados do Exército,
ceifadas na guerrilha cruenta, depois da vitória é justo
render
-
se a homenagem merecida:
-
cruéis na luta os infelizes
irmãos das matas, eram dignos de admiração pela ousadia
com que enfrentaram as tropas regulares e, ainda dignos de
piedade pela loucura com que se defendiam, excedendo a
fúria dos javalis, a agilidade dos tigres e a valentia estóica do
rei das feras. Rendamos essa homenagem merecida aos
nossos irmãos enlouquecidos das selvas.
92
1.2.
Os franciscanos
O regime republicano, que tinha na laicização do estado um dos fundamentos
principais para o desenvolvimento da nação, advogava a separação entre Igreja e
Estado.
90
D ASSUMPÇÃO, Herculano Teixeira.
Op. cit
., p.175
91
D ASSUMPÇÃO,
Herculano Teixeira.
Op. cit., p.175
92
PEIXOTO, Demerval.
Op. cit
., p. 155
49
Os conflitos entre a Igreja e o Estado no Brasil do final do
século XIX tinham íntima relação com as alterações surgidas
no interior da própria Igreja. A posição ultramontana
93
se
chocava com o liberalismo e o cientificismo, dominantes na
elite brasileira nos últimos anos do Império. O compromisso
entre a Igreja e o Estado, vigente no Brasil desde a Colônia ,
trazia problemas tanto para esta nova Igreja quanto para os
ideais liberais de uma política laica.
94
Para os republicanos brasileiros a Igreja representava o reacionarismo,
retrocesso, pior, era aliada da monarquia. Viam, assim, a necessidade de restringir o
domínio da Igreja na esfera política. Através do pontificado de Leão XIII (1878-
1903) a Igreja propôs uma reconciliação com o mundo moderno, embora mantivesse
o liberalismo econômico nas relações de trabalho sob estigma condenatório através da
encíclica
Rerum Novarum. Segundo Júlio Maria, a Igreja poderia, livre do estado,
realizar a grande e nobre cruzada contra seu maior inimigo, a ignorância religiosa, sua
arma: a doutrinação
95
. Isto trouxe para a Igreja a necessidade de criar condições
organizacionais para se fazer presente em todas as unidades da federação e se
articular junto ao poder constituído, no sentido de defender seu patrimônio e
conquistar espaços junto ao novo regime.
A Igreja passa então a empreender a criação de novas paróquias e capelas,
principalmente no interior do Brasil, juntamente com inúmeras associações religiosas
para através delas se aproximar dos fiéis. A intenção seria de remodelar condutas e
formar novas práticas devocionais, estas agora calcadas em princípios fundamentais
defendidos pelas elites republicanas tais como: ordem, disciplina, respeito.
96
Desta
forma a Igreja pretendia estabelecer alianças com os setores da sociedade que viam
nos religiosos significados de estagnação e até mesmo retrocesso frente aos ideais
modernistas de civilização, progresso e desenvolvimento científico. Nesse sentido, é
preciso entender a vinda de ordens e congregações religiosas alemãs
as quais
93
O catolicismo ultramontano é a doutrina que se apóia na Cúria Romana e defende a autoridade
absoluta do Papa em matéria de e disciplina. Ver maiores detalhes em OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A
questão nacional na Primeira República
. São Paulo: Brasiliense, 1990
94
OLIVEIRA, Lúcia Lippi.
Op. cit
., p. 160
95
MARIA, Júlio. A Igreja e a República . Brasília: UnB. 1981.(1ªed., 1900). Apud: OLIVEIRA,
Lúcia Lippi.
Op. cit
., p. 164
96
SERPA, Éli
o Cantalício.
Igreja e poder em Santa catarina
. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1997, p. 21
50
tinham objetivos de dar atendimentos aos católicos teuto-
brasileiros
como um
fator de incentivo e fortalecimento da imigração, ou seja, auxiliar no processo de
branqueamento da população, o qual era um dos alicerces do ideal de construção de
uma nação civilizada . Outra atitude foi o combate às manifestações religiosas
populares com intuito de reformular as crenças e práticas religiosas; procurand
o
atingir o imaginário através de mbolos, alegorias, rituais e mitos, buscando
afirmação institucional, junto ao conjunto da sociedade
.
97
Os padres que estavam exercendo seu sacerdócio nas pequenas localidades da
região contestada se encontravam imbuídos dessa missão reformadora, dentre eles
podemos destacar a figura de Frei Rogério Neuhaus, o qual atuou diretamente nos
acontecimentos, entrando em conversações com os monges João Maria e José
Maria. Posteriormente, tentou agir como intermediário nas negociações com líderes
do movimento arriscando sua vida por diversas vezes. As principais fontes utilizadas
neste trabalho, para esta questão, são alguns artigos, na íntegra, publicados na Vozes
de Petrópolis , Revista da Ordem dos Fransciscanos e o livro de Frei Aurélio Stulzer,
que se trata, na verdade de uma compilação de documentos, alguns inéditos. Dentre
eles, é possível citar excertos dos Livros de Crônicas dos conventos franciscanos da
região, um ensaio inédito de Frei Menandro Kamps, as reminiscências de Frei
Rogério Neuhaus retiradas do livro de Frei Pedro Sinzig e trechos dos artigos
publicados na Vozes de Petrópolis , de Frei Cândido Spannagel e Frei Rogério
Neuhaus. Este livro foi publicado com a intenção de dar ao público as fontes
franci
scanas da Guerra, é claro que são trechos selecionados e o que temos é a visão
que Igreja julga ser a que pode vir a público.
As contradições que caracterizam o discurso dos militares também podem ser
observadas na visão que os freis franciscanos nos apresentam do que foi, para eles, a
gênese do movimento, embora, elas sejam motivadas por questões diversas. Para Frei
Rogério Neuhaus, por exemplo, os sertanejos são as vítimas da fanatização produzida
pelo engodo de um sujeito esperto, e começou uma peregrinação dos caboclos
97
SERPA, Élio Cantalício.
(1997).
Op. cit
., p.42
51
sem cabeça ao médico milagroso, libertador da humanidade .
98
São, também,
vítimas das atitudes impensadas do Coronel Albuquerque, pois o Coronel passa a dar
alarmas aos governos do Estado e do país em vez de prender o pequeno grupo ini
cial
de uma só vez. Atitude que, na visão do Frei, teria cortado o mal pela raiz e impedido
a insensatez dos trágicos acontecimentos nos campos de Irani.
Nessa crítica de Frei Rogério à insensatez do Superintendente de Curitibanos
não estão presentes questionamentos quanto às injustiças que afligiam parcela da
população mais pobre da região, nem críticas às novas relações impostas pelo avanço
do capitalismo como a ação implacável das empresas internacionais. Os motivos que
levavam o Frei a se colocar abertamente contra o coronel eram religiosos. Sendo
principais, primeiro, o fato de o Superintendente defender a legalidade e a decência
do casamento civil, mesmo separado da Igreja, pois nem todos em Curitibanos eram
católicos romanos;
99
segundo, o fato de ser
Albuquerque adepto da franco
-
maçonaria,
o que era freqüente entre os políticos republicanos neste período.
100
No entanto, se, em alguns momentos e por determinados motivos, era
impossível compactuar com as atitudes desastradas daqueles que se outorgavam o
papel de defender a ordem e implantar o progresso, na maior parte do tempo a
utilização das noções de fanatismo e vitimização deixava claro a percepção que
os homens da Igreja tinham dos sertanejos e da movimentação em torno de José
Maria. Como fiel servo de Deus e bom pastor de seu rebanho, para Frei Rogério
a
revolução dos fanáticos era um castigo de Deus e Deus poderia acudí-los e salvá-
los
.
101
Pedia aos leitores da Vozes de Petrópolis que rezassem para que Deus
tivesse piedade deles e salvasse seu povo e inspirasse os homens do governo, com
sentimentos de justiça e caridade para castigar os verdadeiros culpados e se
compadecer dos inocentes.
No discurso dos Franciscanos, os sertanejos são antes de tudo, ignorantes
afastados da civilização e facilmente levados pelo fanatismo através das mãos de um
98
NEUHAUS, Frei Rogério. Os fanáticos . In: Vozes de Petrópolis, ano IX, vol. 1, jan./jun., 1915,
pp. 88
99
FELIPPE, E
uclides.
Op. cit.
, p. 71
100
MACHADO, Paulo Pinheiro.
Op. cit
., p. 196
101
NEUHAUS, Frei Rogério. Os fanáticos . In:
op. cit
.,(1915), pp. 88
52
ou outro espertalhão audacioso e exímio propagandista. Frei Rogério Neuhaus, em
correspondência especial para Vozes de Petrópolis , ao contar do novo ajuntamento
de famílias em Taquaruçu, agora sob o comando ou exploração de um tal Eusébio
Ferreira dos Santos , considera os sertanejos uns ingênuos enganados pela falácia de
um neto de Euzébio que se proclamava o enviado por Deus , a quem deveriam
beijar os pés e as mãos e executar e cumprir exatamente todas as suas ordens. O Frei
não poupa as palavras para descrever o enviado por Deus de nome Manoel, o
idiota : Eu para mim creio esse rapaz um perfeito imbecil, de algum modo
mentecapto ou possesso; (...)
.
102
Mas, se no início eles pregavam que se devia ter compaixão com os fanáticos,
pois na sua ignorância podiam ser levados a engano e nem faziam mal a seus
próximos, a não ser que fossem provocados ,
103
com a progressiva entrada nos
redutos de elementos que cogitavam roubos e crimes, isso mudara, e as ações
perpetradas contra eles pelas forças legais poderiam ser aceitas:
Somente á espada e
á bala pode ser suffocado o movimento, (...).
104
Os caboclos passam a portar
armas e como fanáticos continuavam sua horrível tarefa de praticar crueldades .
Não pretendo, de modo algum, negar que muitos dos que adentraram nos
redutos, passaram a cometer atos ilícitos ou cruéis, invadindo as vilas, ateando fogo
nas casas e fazendas, matando quem se recusava a acompanhá-los. É preciso, no
entanto, chamar a atenção para o fato de que os Franciscanos eram extremamente
parciais quando descreviam, em pormenores, as ações dos que eles denominavam
fanáticos e jagunços . As palavras e expressões utilizadas pelos freis denotavam
todo o julgamento negativo e depreciativo frente aos sertanejos, estes cometiam
atrocidades , crimes desumanos . Isso não acontecia, porém, quando os freis
descreviam as ações cometidas pelas forças legais durante os ataques aos redutos e
depois no final da Guerra, como por exemplo, as degolas e fuzilamentos seletivos de
102
NEUHAUS, Frei Rogério. Os fanáticos do sertão. Deploráveis fructos da educação areligiosa . In:
Vozes de Petrópoli
s.
Ano IX, vol.1, jan./jun., 1915, p.72.
103
STULZER, Frei Aurélio. A guerra dos fanáticos (1912-1916): A contribuição dos Franciscanos
.
Petrópolis : Vozes. 1982, p. 55
104
SPANNAGEL, Frei Candido. Os jagunços do Sul . In: Vozes de Petrópolis. Ano IX, vol.1,
jan./jun., 1915, p.47.
53
sertanejos que se escondiam pelos matos e mesmo de alguns grupos que se
apresentavam nas cidades ao Exército. Ações praticadas pelos vaqueanos ,
105
principalmente os grupos liderados por Pedro Ruivo e Colleti, não foram submetidas
a julgamento pelos freis, nem seus praticantes foram denominados por nomes
depreciativos. Esses crimes cometidos, apesar de recriminados e vistos como ações
desnecessárias e infelizes, não eram denominados de atrocidades ou atos
desumanos . A narrativa de Frei Menandro Kamps, transcrita por Frei Stulzer da
Crônica do Convento de Canoinhas, deixa transparecer o modo como os Freis viam
as ações praticadas pelo Exército: quando os soldados atearam fogo na capela de São
Sebastião do Timbozinho onde se refugiaram mulheres e crianças
morrendo todos
queimados
, embora tenham cometido esta
cruel
façanha , fizeram isso no ódio
da luta .
106
Os soldados cumpriam seu dever cívico de defender a República e a nação
e, portanto, suas ações podem ser justificadas e amenizadas. Isso não quer dizer que
os freis não tentaram interceder por estas pessoas timas dos ataques e degolas, as
tentativas de Frei Rogério em salvar vidas eram impedidas pelas maquinações do
médico militar Rabello Pinto, que cheio de ódio à religião lhe tolhia os passos .
107
No entanto, mesmo ao fazer essa denúncia, ao meu ver muito grave, contra um
membro do corpo de Oficiais do Exército, Frei Rogério não se compromete a ponto
de julgar com rigor a posição do médico, nem de descrevê-lo com nomes fortes.
Rabello Pinto é apenas um médico fazendo maquinações contra os homens de fé,
atrapalhando seu trabalho religioso de socorro às pobres almas iludidas . Assim, as
ações do médico passam quase despercebidas em meio a tantos fanáticos e
jagunços cometendo atrocidades mil.
O que dizer então da discrepância entre as caracterizações feitas de alguns
indivíduos como Augusto Saraiva o Castelhano
e Adeodato, este o último líder do
movimento, em contraposição aos vaqueanos Colleti e Pedro Ruivo, para citar
exemplos. Os primeiros são denominados facínoras , bandidos sem piedade ,
animais para quem não tardava a hora do castigo, os segundos são apenas os
105
Vaqueanos, assim eram chamados os moradores da região que formaram os piquetes civis e lutaram
ao lado das forças legais contra os que eles julgavam serem fanáticos .
106
KAMPS, Menandro. In: STULZER, Frei Aurélio.
Op. cit
., p. 127.
[grifo meu]
107
STULZER, Frei Aurélio.
Op. cit
.,
p. 128
54
vaqueanos ou integrantes dos piquetes civis que fizeram isso ou aquilo. Suas
açõ
es são descritas sem palavras fortes e apelativas, sendo apenas lamentadas. Isso
acaba fazendo com que pareçam mais brandas que as atrocidades cometidas pelos
jagunços acometidos de loucura supersticiosa , ou então pior, sem alma . O caso
de Pedro Ruivo é emblemático, ele foi acusado de ter perseguido aqueles que se
renderam às forças legais e se apresentaram nas cidades, na maioria grupos de
mulheres, crianças e velhos, todos maltrapilhos, famélicos e doentes. Conta-se que
seu bando estuprava as mulheres, matava seus maridos e degolava quem encontrava
pelo caminho, ou quem tinha a sorte de ficar sob sua guarda. Tempos mais tarde,
em Canoinhas, foi aberto processo para apurar os crimes cometidos contra a
população civil. Pedro Ruivo e alguns de seus companheiros foram acusados de
roubo de gado, além das denúncias de alguns depoentes que sobreviveram aos
ataques do grupo. Apesar de todas as acusações eles foram absolvidos e Pedro Ruivo
acabou indo se estabelecer no município de Lapa no Paraná, onde iria fazer a vida de
homem rico.
108
No entanto, os jagunços fanatizados não deixam de ser para os freis todos
irmãos em Cristo , filhos de Deus. Assim foram descritos, numa narrativa de Frei
Cândido Spannagel,
109
contando este que, ao rezar uma missa em uma
pequena
comunidade de nome Campo Belo próxima a Lages, a capela foi invadida por uma
turma de jagunços fanáticos que o atrapalham e depois levam seus dois cavalos.
Durante a narrativa, apesar da impaciência e rispidez com que trata o grupo de
jagunços fanáticos , sempre que descrevia os seus atos colocava entre parênteses:
os jagunços meus queridos irmãos , como que a dizer não os estou julgando pois
eles não sabem o que fazem. O que mostra claramente que para os freis, no interior de
sua doutrina, os s
ertanejos, fazendo o que façam, gostando ou não os freis, são no fim
das contas pobres almas perdidas que precisam ser mais bem orientadas para que
voltem para o caminho que leva a Deus Todo Poderoso.
108
QUEIROZ, Maurício Vinhas de.
Op. cit.
, p. 220
109
SPANNAGEL, Frei Candido. Os jagunços do Sul .
In: Op. cit
.
(1915), pp. 42
-47
55
2.
A Redescoberta da Guerra Sertaneja do Contestado en
tre
histórias e relações sociais.
2.1.
O silêncio e o retorno do recalcado histórico.
Em seu livro sobre a terra catarinense, publicado em 1920, Crispim Mira ao
falar brevemente sobre o que chama a Rebelião Sertaneja , se refere a ela como
espetáculo de obscurantismo .
110
A explicação para o acontecido, segundo ele,
estava no difícil acesso aos sertões brasileiros, deixando claro a oposição e o
distanciamento deste fato em relação à sociedade civilizada e culta do litoral da qual
ele fazia parte.
Depois dos textos escritos pelos militares e padres franciscanos que
testemunharam os acontecimentos daqueles anos no Planalto Catarinense, ainda no
final da década de 1910, é assim, apenas como um breve tópico no interior de alguns
poucos livros sobre a terra e a
gente catarinense que o conflito aparece durante as três
décadas que se seguiram. Com poucas exceções, como uma publicação de J. Pinto
Soares
111
no Rio de Janeiro e artigos esparsos em jornais, esse assunto em Santa
Catarina é praticamente esquecido pelo mundo letrado. Não interesse pelo tema,
na política, na academia, na literatura... silêncio. Desconsiderar, esquecer e mesmo
apagar da história catarinense esta mancha , este espetáculo de obscurantismo
parece ser a regra seguida, o acordo tácito.
Este
silêncio também pode representar o esquecimento deliberado, ou mesmo
o desejo de desconhecer que nos longínquos sertões catarinenses vive um certo
sujeito que foi personificado nacionalmente na figura clássica do Jeca Tatu. A famosa
personagem criada por Monteiro Lobato para sintetizar, juntando e materializando,
idéias que antes se encontravam dispersas, permitiu a elaboração e visualização de
uma imagem estereotipada. Foi esta imagem que catalisou, nas primeiras décadas da
110
MIRA, Crispim.
Terra Catharinense
. Florianópolis: Typ. da Livraria Moder
na, 1920, p. 52
111
SOARES, José Octaviano Pinto.
Guerra em sertões brasileiros. Rio de Janeiro: Papelaria Velho,
1931.
56
República, opiniões que antes não encontravam endereço certo?
112
É esta imagem
que, de acordo com o estudo de Márcia Naxara, forte e cristalizada do brasileiro
enquanto, desqualificado, indolente, vadio, permaneceu como uma marca, um mito,
se generalizando e abrangendo, de certa forma, o povo brasileiro atribuindo-
lhe
características básicas como a preguiça, o conformismo e a idéia de inadequação à
civilização em marcha.
Concomitantemente, os sertões do país se tornavam cada vez mais uma
preocupação para as classes dirigentes do país. Durante a década de 1920 cresce o
interesse em conhecer as regiões interioranas, principalmente as mais distantes, de
acesso precário e que constituíam as fronteiras internacionais do Brasil. Havia uma
urgência em integrar essas regiões e suas populações aos ideais de progresso do país,
nacionalizando e criando sentimentos de pertencimento. Em Santa Catarina essa
preocupação pode ser exemplificada pela viagem do Governador do Estado, Adolfo
Konder, e sua comitiva à região Oeste do Estado no ano de 1929. O objetivo oficial
era conhecer as necessidades da região para integrá-la definitivamente à comunidade
catarinense, abrindo caminhos para o exercício governo estadual sobre as terras do
Oeste. A viagem constituiria, assim, um passo importante em direção ao projeto
nacional mais amplo de interiorização da brasilidade através da eliminação dos
vazios demográficos e da coincidência das fronteiras econômicas, geográficas e
culturais com as fronteiras políticas. No entanto, para garantir a posse e a integração
definitiva da região o governo implementava, desde fins do século XIX, uma política
de povoamento com imigrantes de origem italiana e alemã procedentes do Rio
Grande do Sul. Maria Bernadete Ramos Flores e Élio Cantalício Serpa
113
apontam o
paradoxo que existe no conjunto final dessas ações: como construir uma identidade
brasileira excluindo parcela da população nativa
descendentes de índios, africanos e
portugueses
a qual não correspondia ao ideal de vocação agrícola e de civilização,
ao mesmo tempo em que se povoava a região com habitantes de origem européia? De
112
NAXARA, Márcia Regina Capelari.
Estrangeiro em sua própria terra. Representações do
brasileiro 1870/1920
. São Paulo: Annablume, 1998, p
. 24
113
FLORES, Maria Bernardete Ramos e SERPA, Élio Cantalício. A hermenêutica do vazio: fronteira,
região e brasilidade na viagem do Governador ao Oeste de Santa Catarina . In: Projeto História, São
Paulo, (18), mai / 1999
57
acordo com esses autores,
esse paradoxo não resolvido pelo gesto do Governador,
passou para a historiografia, na procura de uma identidade catarinense, para dar
aos brasileiros a sua parcela de br
asilidade
.
114
A procura de uma identidade
catarinense será um dos projetos políticos de Esperidião Amim em seu governo do
Estado nos anos 1980 e, como será visto no terceiro capítulo deste trabalho, Amim
tentará construir essa identidade justamente com o que outrora deveria ser excluído,
física e culturalmente, ou seja, o fanático do Contestado, representante dos
mestiços que constituíram a maior parte dos pelados do movimento do
Contestado.
Sob os auspícios de uma História positivista que pregava o distanciamento no
tempo entre o sujeito que escreve e seu objeto para a tão sonhada neutralidade e
objetividade, condições pensadas como necessárias para dar à disciplina o estatuto de
ciência, é possível entender, em parte, o esquecimento da Questão do Contestado .
O pouco interesse sobre uma questão de tamanha importância para a História do
Estado e do Brasil justamente numa época de intensa campanha de integração do
interior do país à Nação Brasileira , leva a considerar o fato de que as tentativas e
m
criar unidades nacionais e identidades, em seu significado tradicional, acabam
desconsiderando as especificidades e as diferenças internas ao grupo. Ação que acaba
homogeneizando e unindo todos sob um mesmo signo que de modo algum é natural e
sim construído. Um claro ato de poder que exclui, empurra o excesso para as
margens e estabelece uma violenta hierarquia entre os dois pólos resultantes
homem e mulher, passado e presente.
115
Para Michel de Certeau a própria historiografia ocidental tem por um de seus
postulados a separação entre presente e passado. E cada tempo novo lugar a um
discurso que considera morto aquilo que o precedeu sendo esse corte sempre
voluntário:
No passado, do qual se distingue, ele faz uma triagem entre o
que pode ser compreendido e o que deve ser esquecido
114
FLORES, Maria Bernardete Ramo
s e SERPA, Élio Cantalício.
Op. cit.,
p. 231
115
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? . In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e
diferença: a perspectiva dos estudos culturais
. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 108
58
para obter a representação de uma inteligibilidade
presente. Porém, aquilo que esta nova compreensão do
passado considera como não pertinente
dejeto criado pela
seleção dos materiais, permanece negligenciado por um
a
explicação
apesar de tudo retorna nas franjas do discurso
ou nas suas falhas: resistências , sobrevivências ou
atrasos perturbam, discretamente, a perfeita ordenação de
um progresso ou de um sistema de interpretação.
116
Durante a década de 1920 e depois por todo o período do Estado Novo, os
distúrbios do imenso e desconhecido interior brasileiro precisam se tornar
impensáveis para que uma identidade nova de Brasil pudesse ser pensada, eles foram
recalcados, mas como acredita de Certeau, sempre retornam como fantasmas para
perturbar a pretensa ordem forjada pelos discursos presentes. Não é de admirar, pois,
que o primeiro estudo abordando o Contestado já na década de 1950, do então médico
Aujor Ávila da Luz,
117
tenha sido feito com o intuito de abrir um caminho para a
compreensão de atrasos sociais representados por atitudes de criminosos na sua
época. Entre eles, para dar exemplo, cita um moço de Curitibanos cujos crimes se
prendem à morte de seu pai, Praxedes Gomes Damasceno, comerciante da região
assassinado no início do movimento. Aujor Ávila da Luz se preocupa em defender o
reavivamento desta história pois as constatações do atraso da mentalidade humana em
desacordo com o progresso material presente em sua época era para ele motivo
suficiente para o estudo do assunto. E esse era um dos objetivos de seu trabalho,
fornecer material de reflexão para os estudiosos da Sociologia e da Criminologia, ou
seja, como explicar tendências criminosas e atavismos na população em meio ao
franco escalar do progresso e da modernidade no país? É o recalcado que assombra e
também retorna para, aí então, servir de explicação para os problemas que a própria
negligência das instituições fomentou em seu afã de normatizar a sociedade e criar
ordem e progresso . É o recalcado que assombra nossas crenças num processo
histórico linear e evolutivo, rumo a um futuro sempre melhor, o qual somente
alcançaremos se superarmos todos os atrasos sociais.
116
CERTEAU, Michel de.
Op. Cit
., p. 1
6
117
LUZ, Aujor Ávila da.
Os fanáticos, crimes e aberrações da religiosidade dos nossos caboclos.
2ed.
Florianópolis: Ed. da UFSC, 1999.
59
2.2.
Aujor Ávila da Luz e Oswaldo Rodrigues Cabral
uma
disputa disciplinar em
torno da questão do Contestado.
Durante a década de 1950, Aujor Ávila da Luz e Oswaldo Rodrigues Cabral
produziram cada qual um estudo tendo como tema a Guerra Sertaneja do Contestado.
Eram ambos médicos. Àvila da Luz, por exemplo, exerceu a medicina por
17 anos no
interior do estado, em cidades como Joaçaba e Lages, experiência a que ele atribui
sua identificação com o meio sertanejo: em tão longo convívio e em tão profundo
contato com o povo do planalto catarinense,
[conheci]
as suas características
psi
cológicas, o seu meio físico, moral e social, e os seus contrastes com o homem
litorâneo
.
118
Além disso, os dois médicos tinham em comum o fato de circularem
pelos espaços da cultura catarinense, lugares de legitimação da intelectualidade do
Estado. Ambos foram membros do Instituto Histórico e Geográfico de Santa
Catarina, da Academia Catarinense de Letras e professores do quadro da Faculdade
Catarinense de Filosofia, sendo que Aujor Ávila da Luz foi professor de História da
América e Oswaldo Rodrigues Cabra
l foi professor de Antropologia.
Aujor Ávila da Luz publicou seu estudo sobre a Guerra do Contestado no
início do ano de 1952. Essa publicação provocou um ataque de cólera em Oswaldo
Rodrigues Cabral que tece inúmeras críticas ao livro e as publica em sete artigos no
Jornal a Gazeta de Florianópolis entre abril e maio de 1952. Afinal, Aujor Ávila da
Luz estaria explorando um tema que Cabral desejava fosse seu, pois tinha planos
de se dedicar ao estudo da Guerra do Contestado. Por outro lado, segundo Walt
er
Piazza,
119
as críticas de Cabral contra a obra de Aujor Ávila da Luz também
encobriam a disputa por uma única vaga no quadro da Faculdade de Direito em
Florianópolis para a cadeira de Medicina Legal, sendo que o estudo de Ávila da Luz
sobre o Contestado seria apresentado como monografia na seleção. Nenhum dos dois
ganha a vaga mas, a partir de então, Cabral se põe a escrever João Maria
118
LUZ, Aujor Ávila da.
Op. cit
., p. 11
119
PIAZZA, Walter. Posfácio. In: LUZ, Aujor Ávila da.
Op. cit
, p.295
60
interpretação da campanha do Contestado, o qual seria publicado em 1960 pela
Editora Nacional de São Paulo.
120
Portanto, o livro de Oswaldo Cabral precisa ser lido pelas lentes desta disputa
intelectual. Como teria sido escrito sem a obra de Aujor Ávila da Luz ninguém
saberá, mas suas palavras foram pesadas e medidas para um propósito: diminuir o
valor das palavras do autor de Os fanáticos . Ao iniciarmos a leitura de seu texto
fica palpável sua preocupação em caracterizar o que foi escrito anteriormente,
criticando os observadores do Contestado por não admitirem ou não terem a
preocupação de procurar a intercorrência de outros fatores, na gênese da luta, que
não o religioso ,
121
prevenindo aos leitores que tudo foi visto e observado através
das lentes de um preconceito.
Do outro lado da dessa disputa, Aujor Ávila da Luz afirmava que s
ua
preocupação era defender o
reavivament
o dessa história contra aqueles que a
julgavam sem importância em tempos nos quais a bomba atômica era uma ameaça
real e constante, afinal, as constatações do atraso da mentalidade humana
em
desacordo com o progresso material presente em sua época eram, para ele, motivo
suficiente para o estudo do assunto. Sendo sua maior preocupação a de dar respostas
para a compreensão dos motivos que levam uma pessoa a cometer um crime, ele parte
para o desafio de enquadrar o Movimento do Contestado como resultado do
desequilíbrio mental de parcela da sociedade sertaneja . Desequilíbrio, segundo ele,
produzido pelo surto de fanatismo que teria levado aquelas pessoas ao crime. Ou seja,
todo seu trabalho tem por objetivo constatar como realidade o atraso da
mentalidad
e humana, sendo que as modernas idéias nascidas das ciências positivas,
naturais e experimentais são apanágio de uma pequeníssima elite. Assim, a
civilização universal, encarada do ponto de vista de um aperfeiçoamento material e
mental, é, para o autor, u
ma ilusão.
122
120
Este livro foi publicado em segunda edição no ano de 1979 com outro título: A campanha do
Contestado
121
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. A campanha do Contestado. 2ªed.rev. Florianópolis: Lunardelli,
1979 p. 05
122
Nesse interesse em estudar a criminalidade é possível perceber um comprometimento com o que
era defendido pelo médico baiano Nina Rodrigues em relação ao papel da Medicina na elaboração do
Código Civil Brasileiro, quando da Proclamação da República, em substituição às leis do Império. Para
61
E em seu amédico-científico de entender este atraso Aujor Ávila da
Luz conclui que os principais motivos de que se nutrem os desvios psicopatológicos
sociais são os de natureza religiosa. Portanto, os crimes são vistos por ele como frutos
de uma doença causada por exaltações místicas. Mas, por que justamente estas
pessoas seriam tomadas por estas exaltações? Ver-
se
adiante como o autor acaba
atribuindo as características religiosas da população sertaneja de Santa Catarina ao
problema da mestiçagem da população da região. Assim, Ávila da Luz vai além
de dobrar o delito com toda uma série de comportamentos, de maneiras de ser que, no
discurso do psiquiatra, são apresentadas como a causa, a origem, a motivação, o
ponto de partida do del
ito.
123
Ele naturaliza todos estes comportamentos através do
estigma da raça e coloca, portanto, além da punição das maneiras de ser, a punição da
constituição étnica do indivíduo.
Ao ler o livro de Aujor Ávila da Luz é fácil formar uma imagem de pessoas
imp
ulsionadas por uma espécie de loucura coletiva se tornando criminosas, sendo que
o sujeito que sobressai desta leitura é o fanático . A leitura dos textos militares
parece ter sido decisiva para este autor, em determinado momento de sua narrativa,
D Assumpção, por exemplo, caracteriza o conflito como sendo palco dos
extraordinários esforços do Exército para manter a ordem nos sertões do Sul, região
então subvertida por milhares de homens desorientados por uma crença
aberrante
dos menores vislumbres de razão
.
124
Cabral, por sua vez, é enfaticamente contrário à tese de ser o conflito uma
simples guerra de fanáticos , uma conseqüência por si só da ignorância do sertanejo,
preparada e seduzida pelo desvio psíquico de um monge, sobretudo conseqüências
das aberrações da religiosidade do sertanejo , uma clara assertiva contra a obra de
Aujor Ávila da Luz. Além disso, para Oswaldo Cabral os contemporâneos da Guerra
estavam ainda sob a impressão da obra imperecível de Euclides da Cunha, com as
recordações de Canudos bem vivas, portanto foi fácil ver no Contestado a repetição
Nina Rodrigues o código deveria ser feito por médicos (capacitados para tratar da criminalidade como
doença) e não apenas por advogados e juristas. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Dos males da medida .
Psicologia USP
. 1997, vol.8, no.1, p.33
-
45. Consultado em:
http://www.scielo.com.br
[s/p]
123
FOUCAULT, Michel.
Os anormais
. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 19
124
D´ASSUMPÇÃO, Herculano T.
Op. cit
., prefácio
62
exata e completa dos acontecimentos de sertão Baiano e essa característica dos
textos dos contemporâneos deveria ser vista com cuidado.
Isso porque a influência de Euclides da Cunha também pode ser verificada na
obra de Aujor Ávila da Luz. Meio século depois o texto desse autor segue a mesma
estrutura ao tratar de temas como a terra e o homem, apresentando as personagens e o
cenário para a partir daí encenar a peça. Embora Luz se diferencie por considerar que
no planalto catarinense a história chegou antes do homem. Na sua visão, a terra,
embora conhecida desde o primeiro século da descoberta quando da passagem da
passagem de D. Álvaro Cabeza de Vacca em 1541, permaneceu por muito tempo
despo
voada de gente civilizada e conseguiu fixar o homem mais de dois séculos
depois. Essa visão trai a sua desconsideração dos indígenas como povoação e como
homens , posto que não eram civilizados, e mais, fica claro que para ele os índios
não tem história e tampouco fazem parte da nossa história. Começa a exclusão
destes sujeitos na tese do autor de Os Fanáticos , exclusão que se insere num
movimento maior de desconsideração de certos sujeitos na historiografia catarinense
e que vai contribuir fundamentalmente nas diversas tentativas de construção de
identidades para o estado.
125
Ao descrever o que chama de nosso caboclo serrano , Aujor Ávila da Luz,
chega à conclusão que o grosso da população serrana é uma mistura das três (raças)
com predominância da indígena e da branca .
126
A predominância o ajuda a
considerar que a participação do negro nesta miscigenação foi pouco significativa e
até mesmo insignificante. Mas para Luz a predominância indígena não se deve aos
índios Kaingang e Xokleng que percorriam a região ainda na época do povoamento,
pois eram grupos arredios que ofereceram pequena contribuição para a miscigenação
planaltina por se mostrarem esquivos e incompassíveis aos hábitos sedentários dos
brancos e por isso mesmo teriam sido dizimados ou afugentados. Seu destino era
fugir ou morrer de nostalgia... Portanto, O sangue índio que corre nas veias dos
125
Ver discussão mais detalhada em SERPA, Élio C. A identidade Catarinense nos discursos
do
Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina . In: Revista de Ciências Humanas, Florianópolis,
v.14, n.20, 1996, p. 63
79. [grifo meu]
126
LUZ, Aujor Ávila da.
Op.cit
., p.69
63
nossos caboclos vem dos bandeirantes, dos mamelucos e dos índios mansos de São
Paulo
.
127
Verifica
-se mesmo uma curiosa insistência em afirmar, provar que a mistura
do branco com o índio se fez intensa e exclusivamente durante os séculos XVI e
XVII. Essa recusa em considerar os índios que ocupavam o território catarinense
parece ser uma forma de considerar apenas aquela mestiçagem formadora do pov
o
brasileiro, mas que é lembrada porque está muito distante, no passado colonial do
país. Há uma preocupação em diminuir a importância das populações indígenas,
negras e mestiças na constituição étnica do estado, que estas estariam agora
diluídas e
ntre a população branca de imigrantes europeus. Mas não é essa a impressão
que fica a quem percorre o planalto serrano e o meio-oeste de Santa Catarina. É
comum encontrar indivíduos que não negam a ascendência indígena,
128
nem Aujor
Ávila da Luz pode deixar de se referir a isso, embora tenha escolhido características
depreciativas e degenerativas para ressaltar a presença de mestiços , demonstrando
sua crença nas teorias que consideravam a miscigenação como degeneração da raça.
Chega mesmo a admitir a existência de mestiços recentes (!) com intuito de provar
a veracidade das teorias eugênicas, as quais ele, em plenos anos 50, insistia em
reforçar. A estes mestiços recentes se refere como vadios, impulsivos,
imprevidentes, sugestionáveis e superexcitados sexuais. Intelectualmente, entretanto,
não são inferiores ao branco .
129
Essa assertiva não deixa dúvidas sobre quem é a
referência utilizada quando se carateriza e descreve a população do interior do país, o
127
LUZ, Aujor Ávila da.
Op.cit
., p.66
128
Em pesquisas recentes do Projeto coordenado pela Profª. Dr.ª. Cristina Scheibe Wolff,
intitulado
Índias pegas a laço Mulheres indígenas na construção etnohistórica de Santa Catarina:
em busca de memórias e trajetórias (que teve por proposta geral documentar a memória e a trajetória
de mulheres indígenas incorporadas à sociedade branca em Santa Catarina, discutindo estas
memórias no contexto das representações étnicas regionais e da problemática das relações entre gênero
e etnia na construção de identidades e hierarquias), do qual fiz parte durante os anos finais da minha
graduação, encontramos diversos relatos de famílias que contavam em seus ascendentes diretos e
próximos, algumas vezes até pais, indígenas dos grupos da região que foram aprisionados para
trabalhar nas fazendas do Plana
lto, e que depois montaram sua rocinha em terras que não interessavam
aos pecuaristas, ou foram viver nas proximidades dos núcleos urbanos. Alguns resultados desta
pesquisa podem ser vistos em WOLFF, Cristina Scheibe. Índias e Brancos no sul do Brasil
reflexões sobre a memória e a construção de identidades. In: LEITE, Renato Lopes (org.). Cultura e
poder: Portugal
Brasil no século XX
. Curitiba: Juruá, 2003, pp.37
-
52.
129
LUZ, Aujor Ávila da.
Op.cit
., p.71
64
padrão é sempre a população branca , civilizada e instruída das cidades. E
sejamos otimistas, escreve o autor de Os Fanáticos , os mestiços com o correr do
tempo tendem para a raça branca , já que os caracteres altamente eugênicos
acabam por se fixar e predominando sobre o que há de inferior no me
stiço.
Pode-se dizer que Aujor Ávila da Luz segue os autores que, segundo Carlos
A. M. Lima, ao tratarem o assunto da mestiçagem , são adeptos à idéia de que a
miscigenação pode ocorrer biologicamente , sem, contudo, produzir efeitos sociais.
E no interior desta tendência intelectual, é profundamente influenciado pelo
racialismo de Oliveira Vianna, o qual com sua concepção de embranquecimento
como resultado indelével da miscigenação, também não dava muito lugar à
mestiçagem
.
130
Outra insistência verificada na leitura do livro de Aujor Ávila da Luz é com
relação ao modo como se deu esta mestiçagem , tentando destacar que o mameluco
ou curiboca era o cruzamento do homem branco com a mulher índia.
131
Esta
insistência acompanharia os discursos sobre a constituição da nacionalidade de
intelectuais brasileiros durante o século XX. John Norvell, separa entre outros três
ensaios que teriam moldado as visões sociológicas da nação brasileira e vêm
influenciando textos intelectuais ate hoje, são eles: Retrato de Brasil (1928) de Paulo
Prado, Casa-grande e Senzala (1933) de Gilberto Freire e Raízes do Brasil (1936) de
Sérgio Buarque de Holanda.
132
É interessante observar nestes discursos que definem o Brasil como nação
uma idéia generalizada: a de que o Brasil é uma nação literalmente feita na cama, e
cuja origem estaria situada sempre no passado. As mulheres, neste caso apenas índias
e negras, depois as mestiças, são o receptáculo do homem branco, europeu. Além
disso, segundo Aujor Ávila da Luz é a constante intervenção do homem branco no
130
LIMA, Carlos A. M. Um pai amoroso os espera: sobre mestiçagem e hibridismo nas Américas
Ibéricas.
Mimeo, 2003
131
LUZ, Aujor Ávila da.
Op.cit
., p.69
132
Da análise destes textos o autor conclui que a idéia presente sobre mestiçagem neles impossibilita
dizer brasileiros misturam-se com portugueses ou europeus , O brasileiro é, portanto, um paradoxo
genealógico que, em uma construção lingüística, é uma mescla, um produto de três raças diferentes;
como sujeito gramatical ativo, porém, mistura-se com duas dessas raças, mas não com a terceira, a
européia,
porque há, neste caso, suposta continuidade. NORVELL, John. A brancura desconfortável
65
caldeamento que faz as duas principais subformações (mameluco e mulato)
caminharem para um tipo mais uniforme, mais claro e de melhores atributos .
133
Resulta desta análise que o futuro
fanático
de Ávila da Luz era, em primeiro
lugar, o
caboclo
produto da mestiçagem brasileira. Condição considerada por
muitos na época nada abonadora para esta população dos sertões catarinenses.
Além disso a essa população foram sendo adicionados contingentes fugidos da
revolução republicana rio-
gran
dense conhecida como Farroupilha pelos anos da
década de 1840 e, posteriormente, da Revolução Federalista em 1893. A maioria
dessa gente era considerada indesejável e, para alguns, teriam contribuído para formar
a grande malta de desordeiros e criminosos que infestou a região contestada . Com
o término da construção da estrada de ferro que ligaria os Estados de São Paulo e Rio
Grande do Sul passando pela região contestada, a maior parte dos trabalhadores
teriam permanecido ali
134
e, segundo Ávila da Luz, a maior parte desta gente era da
mais ínfima condição
negros, mulatos, caboclos e brancos degredados. Portanto,
essa era a população que vivia no meio das disputas e intrigas entre chefetes locais
cuja cobiça aumentou com a Estrada de Ferro.
Oswaldo Cabral não discute a formação da população do planalto catarinense
descrita por Aujor Ávila da Luz, para ele também essa formação se dera pelo
acúmulo de refugiados das lutas partidárias, fugitivos das perseguições políticas,
criminosos que buscavam abrigo em região aonde a justiça não os alcançasse. Mas
lembra também da existência de alguns pobres homens, nem criminosos, nem
refugiados, velhos moradores esquecidos, homens com suas famílias a procura de
terras sem dono onde fixar morada, e que a esse contingente humano se somaram os
trabalhadores da Estrada de Ferro. Gente espoliada que a concessão de terras para
grupos poderosos expulsou, gente a quem Oswaldo Cabral denomina de
os párias.
das camadas médias brasileiras . In: MAGGIE, Yvonne e REZENDE, Cláudia B.
Raça como retórica:
a construção da diferença
. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p.
248
133
LUZ, Aujor Ávila da.
Op.cit
., p.71
134
O fato de que maior parte do contingente de trabalhadores seria constituído de homens que teriam
vindo dos grandes centros brasileiros vem sendo questionado por historiadores em pesquisas recentes,
um exemplo é o estudo de Paulo Pinheiro Machado em seu livro sobre a atuação das lideranças do
Contestado, Op. cit
., p. 144
66
Se nisso os dois autores concordam, a diferença está na análise que fazem
do papel do fanatismo no desenrolar do conflito. Para Cabral foi o complexo jogo de
fatores históricos e sociais que levou ao conflito, o fanatismo era apenas o cimento:
Em verdade, a gênese dos acontecimentos deploráveis do
Contestado alicerça-se em fatores sociais bastante
complexos. Começaram de um desajustamento social; teve
início por motivo de infundada desconfiança entre dois
estados; foi alimentada pela política; e terminou num
sacrifício. A religião foi apenas um cimento que uniu aqueles
a quem hoje chamaríamos desajustados, que ligou os grupos
marginais na defesa comum.
135
Enquanto que para Aujor Ávila da Luz o fanatismo religioso é a principal das
causas. Respondendo às críticas de Oswaldo Cabral, ele argumenta que o fanatismo
representou 90 % das causas do conflito.
136
Fanatismo que seria decorrente da maior
parte da população ser mestiça . A tônica da tese de Aujor Ávila da Luz é considerar
a mestiçagem como a maior responsável não somente pelos tipos físicos, mas
também pela psicologia da população e, portanto, também pelo fanatismo religioso.
O caboclo é um ser profundamente místico. E este misticismo herdou-o das três
raças formadoras do brasileiro, mas menos pelo sangue do que pelo contato das
respectivas culturas
.
137
Mostrando como
(...)
a religiosidade do caboclo é forçosamente um produto de
mestiçagem... O catolicismo do português, o animismo do
índio e o fetichismo do negro, fundindo-se na alma do
caboclo, criaram-lhe uma religiosidade que ainda está na
fase de um monoteísmo mal compreendido, muitas vezes
deformadas por heresias terríveis e que está impregnada de
misticismo estúpido, pronto a descambar para o fanatismo.
138
135
CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Os Fanáticos . In:
A Gazeta
, Florianópolis, 20/abr./1952
136
LUZ, Aujor Ávila da. Erros de uma crítica (ainda os Fanáticos) . In: O Estado, Florianópolis,
06/mai./1952, p. 02
137
LUZ, Aujor Ávila da.
Op.cit. (1999), p.111
138
LUZ, Aujor Ávila da.
Op.cit. (1999), p.114
67
E como alguns poderiam contestar este fato citando exemplos da ocorrência
de fanatismo em outros povos, outras culturas, outras realidades sociais, ele mesmo
descreve casos como os Muckers do Rio Grande do Sul e de epidemias de suicídio
coletivo por motivo de misticismo religioso na Rússia, mostrando que nestes casos
mais que fatores raciais e culturais, agiram também fatores psicológicos. Era o
discurso científico na voz de verdade da psiquiatria legitimando teses. Afinal a
psiquiatria é a mesma quer aplicada a um branco eslavo, germânico, anglo-
saxão,
ou latino, quer a um mestiço brasileiro . Essa é mais uma contradição que denuncia
a ambigüidade do pensamento deste autor. Para explicar o fanatismo dos
caboclos
a
psicologia desviante era, determinantemente, fruto da raça, dessa mistura
degenerante ; enquanto que nos outros casos eis que a psicologia desviante
ass
ume o estatuto de causa principal, mas está separada da raça, não é produto desta,
pena que o autor não explique qual seria a causa do desvio psíquico nestes casos.
Como visto, Aujor Ávila da Luz chama os mestiços de caboclos , o que para
Oswaldo Cabral é um uso impróprio da expressão, apesar de ele reconhecer ter
incorrido no mesmo erro. Cabral argumenta que o termo é, na sua acepção mais
rigorosa e científica, aplicado ao indígena. Fora disso é um emprego vulgar,
admissível em obras literárias não em trabalhos científicos, é se deixar influenciar
pelo linguajar popular. Esta crítica na época colocava em cheque a cientificidade da
obra de Aujor Ávila da Luz, consistia no que de mais descredenciador poderia haver,
Cabral não poupou esforços em tornar o trabalho de Aujor Ávila da Luz em
insignificância. E o que fez Cabral então para não utilizar o termo caboclo ? Pelas
páginas de seu livro um esforço considerável para não se referir a caboclo , e
Cabral faz isso tentando mostrar por todos os meios possíveis que a população que
vivia na região contestada era o que se chamaria na década de 50 de marginais e
desajustados , e quando precisa de um termo mais genérico prefere utilizar
simplesmente sertanejos .
Configura-se neste momento o surgimento de um novo sujeito no
Contestado, o marginal , o desajustado . O sujeito que nas obras dos militares e de
Aujor Ávila da Luz é o fanático , se transforma aqui em o desajustado pertencente
68
a grupos marginais.
139
Parte
-
se aqui da premissa que palavras e s
ignificados de uma
época podem tanto permanecer como ser suplantados por outros, mas esta citação de
Cabral vai além e auxilia a perceber claramente como os indivíduos do passado ou
dos quais se fala acabam adquirindo designações do tempo e dos discursos q
ue
circulam quando da construção do texto. Ou seja, em 1952 aqueles brasileiros que
participaram do conflito contra as forças legais, seriam chamados de desajustados ,
marginais .
Para ele foi a omissão do Estado em relação àquela região que a tornou
homizio de criminalidade a qual acabou fornecendo elementos para a
marginalidade. O descaso e mesmo a ignorância do poder público estadual frente aos
problemas sociais é que teriam sido a causa profunda da Guerra do Contestado. O
discurso de Cabral refletia assim a preocupação do projeto nacionalista, com seus
ideais de civilidade e progresso, que visava desde o início do século XX a construção
da brasilidade e do sentimento nacional. Em suma a instituição de uma identidade
brasileira, que através dos Institutos Históricos e Geográficos estaduais também
serviu de incentivo para a instituição de identidades regionais.
Essa disputa que se travou nos bastidores da cultura catarinense entre os dois
médicos fornece elementos importantes para a realização de uma
crítica
historiográfica. Ou seja, possibilita ver a história como um discurso e como uma
prática que acaba por produzir efeitos de poder
140
e, conseqüentemente, criar imagens
que mobilizam outras práticas e configuram uma realidade desejada.
141
O papel do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina nesse processo
precisa ser considerado, pois, como visto, tanto Aujor Ávila da Luz quanto Oswaldo
139
Tudo indica que Cabral esteja aqui sendo influenciado por uma concepção sociológica que teria
derivado do funcionalismo de Darwin e Spencer no qual cada indivíduo de um sistema, assim como
cada órgão de um organismo tem uma função específica a desempenhar. Esta concepção dos sistemas
de um modo geral foi utilizada por Émile Durkheim para construir sua teoria sociológica, na qual
explicar os fatos sociais significa demonstrar a função que eles exercem. Nesta concepção todo aquele
que não exerce sua função determinada, devido muitas vezes a uma ausência de normas ou Anomia
Social , seria considerado desajustado . Ver interessante discussão sobre a obra de Émile Durkheim
em : SELL, Carlos Eduardo. Sociologia clássica: Dürkheim, Weber, Marx. 2.ed. Itajaí: Ed. UNIVALI,
2002, pp. 57
-
92.
140
CERTEAU, Michel de.
Op.cit
, p. 32
141
FLORES, Bernardete Ramos, SERPA, Élio C. A hermenêutica do vazio: fronteira, região e
brasilidade na viagem do Governador ao Oeste de Santa Catarina .
In:
Op. cit.
, p. 231
69
Cabral eram membros desta instituição cujo propósito foi desde seu início a
construção de toda uma memória que fosse constituindo fatos e heróis fundantes,
mitos de origem que justificassem a existência de uma identidade catarinense .
142
Na
década de 50 é possível considerar que os membros do Instituto ainda estavam
influenciados pela tendência dos anos 40 em ver os orianos como representantes
legítimos da cultura catarinense, preocupação que culminou no Primeiro Congresso
de História Catarinense em 1948 para a comemoração de Segundo Centenário da
Colonização Açoriana. Preocupação que se enquadrava no interior da política de
nacionalização que procurava incorporar etnias como os alemães e italianos ao que se
chamava cultura brasileira.
143
Aujor Ávila da Luz, por exemplo, diferencia seus fanáticos em relação ao
barriga-verde do litoral, a identidade que procura fixar para eles se faz com
características que julga serem opostas às do homem do litoral, assim o homem
litorâneo tem tez clara, é civilizado e industrioso. Fato que não se observa na
narrativa do militar Herculano D Assumpção, estudada no capítulo anter
ior, o qual ao
escrever em 1917, embora dentro da tradição do IHG de Minas Gerais, diferencia,
claramente, os habitantes da serra em relação aos colonos alemães, enaltecendo estes
em detrimento daqueles. Esta construção identitária era fato impensável nos
discursos
do início da década de 50, é preciso lembrar que estavam recém saídos da II Guerra
Mundial, e as lembranças do horror nazista e toda a campanha contra os fascismos e
contra as potências do Eixo aqui no Brasil resultou numa política de proibições que
atingiram todas as comunidades de descendentes alemães, italianos e japoneses.
Nessa época, portanto, era impensável eleger os colonos descendentes dessas etnias
como modelos de conduta e representantes da identidade catarinense.
144
142
SERPA, Élio Cantalício. A identidade Catarinense nos discursos do Instituto Histórico e
Geográfico de Santa Catarina .
Op. cit
., p. 65
143
SERPA, Élio Cantalício. A identidade Catarinense nos discursos do Instituto Histórico e
Geográfico de Santa Catarina .
Op. cit
., pp. 66
-
67
144
O contexto histórico de Santa Catarina durante o período de 1930 a 1945 é marcado pela ascensã
o
de representantes da família Ramos ao poder e destes, Nereu Ramos irá empreender uma política de
nacionalização pela qual etnias como os alemães e italianos sofreram um violento processo de
incorporação àquilo que chamavam de cultura brasileira . SERPA, Élio C. A identidade Catarinense
nos discursos do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina .
Op. cit., p.66
70
A contenda entre os dois médicos da década de 1950 também se insere
dentro de uma disputa disciplinar que anda paralela à disputa intelectual entre eles.
A proposta de Aujor Ávila da Luz ia ao encontro da Psiquiatria Social enquanto
que Cabral se aproximava da Antropologia Social . A História, a Psicologia, a
Antropologia, a Sociologia, surgem como instrumentos de crítica e réplica, são os
campos do saber disputando espaço e legitimidade na academia. Os primeiros
comentários que Cabral faz na sua crítica ao trabalho de Luz são justamente sobre o
que chama de aspectos históricos e sociológicos da obra do debutante . É a fala de
uma autoridade que revestida de capital simbólico
145
pode tecer comentários sobre a
obra de um principiante, alguém que tenta ingressar num terreno que o outro tem
por seu. Cabral nesta crítica aponta a falta de citações das fontes utilizadas por Aujor
Ávila da Luz como o mais grave defeito que encontrou, o que lhe permite classificar
a obra como não-científica e sujeita a sofrer dúvidas sobre a idoneidade das fontes
que o outro utilizou, que não permite que sejam investigadas por outrem. Outra
falha que Cabral aponta é a tese de Luz, se o livro pretende ser uma contribuição à
história e à antropologia o autor não deveria ignorar que crendices e superstições
ocorrem em todos os povos e não é justo considerar as dos sertanejos do planalto
catarinense como aberrações e indícios de loucura coletiva.
Como visto anteriormente, a crítica por empregar expressões consideradas
do linguajar popular somente admissíveis em obras de cunho literário e não em texto
que se pretende científico, marca bem o status, na época, da literatura como texto
menor frente aos produzidos pela ciência . Cabral não perde a oportunidade em tirar
todo mérito de científico, ou seja, tirar toda a legitimidade do texto de Luz,
principalmente pelo fato de que ele seria utilizado como um título ponderável a ser
avaliado pela banca do concurso para a Cadeira de Medicina Legal da Faculdade de
Direito de Florianópolis.
146
145
Capital simbólico é o reconhecimento, institucionalizado ou não, que os agentes recebem de um
grupo: a imposição simbólica, esta espécie de eficácia mágica que a ordem ou a palavra de ordem, e
até mesmo a ameaça ou o insulto pretendem exercer, é dada por condições sociais específicas.
BOURDIEU, Pierre.
Op. cit., p. 59
146
PIAZZA, Walter.
Posfácio . In: LUZ, Aujor Ávila da.
Op. cit
, p.29
5
71
Mas nem tudo eram críticas e o elogio que Cabral procura fazer ao texto de
Aujor Ávila da Luz é ressaltar sua bastante apreciável contribuição ao folclore
catarinense, com suas descrições dos modos de viver do homem do Planalto, embora,
lembre que em matéria de história e sociologia tantos reparos foi obrigado a fazer.
Isso pode, por um lado, ser considerado um elogio na medida em que trabalhos que
levantassem o folclore e a cultura dos catarinenses recebiam incentivos, na época, por
parte do Instituto Histórico e Geográfico Catarinense, mas, por outro, como as
pesquisas sobre o folclore eram vistas como algo menor, sem estatuto de científicas,
as quais geralmente se dedicavam amadores, esse elogio não deixa de ser mais uma
alfinetada no trabalho de Luz.
Como Aujor Ávila da Luz reagiu a críticas tão duras? Apesar de visivelmente
abalado, ele chega mesmo a declarar, em seu artigo de réplica, que as críticas do Egas
pseudônimo de Oswaldo Cabral
desmotivam qualquer um a continuar com seu
trabalho. Ele parte para o c
ontra
-ataque seguindo a mesma linha, ou seja, utilizando a
autoridade das disciplinas como arma. Desconsidera as críticas de Cabral por este
encarar seu livro sob o prisma etnográfico, pois para Luz seu livro seria antes de tudo:
(...) uma contribuição para o estudo da antropo-
sociologia
criminal, o que é cousa bem diferente da antropologia pura e
muito mais da etnografia, pois a antropo-sociologia criminal
é a criminologia nas suas relações com a antropologia e com
a sociologia. Logo não cabe o reparo do
Egas!
147
Ou seja, fica fácil argumentar quando se define o que o livro é, a que
disciplina ele pertence e obedece às regras, não é preciso assim maiores explicações
ou se aprofundar na contenda. Portanto não adianta criticar sob a visão de uma
disciplina que ele foi construído sob os auspícios de outra, basta recusar. Essa
compartimentalização estanque das disciplinas foi apanágio científico por muitos
anos no interior da academia e ainda é utilizada quando não se quer responder
diretamente a críticas.
147
LUZ, Aujor Ávila da. Erros de uma crítica (ainda os Fanáticos) , p.02
72
Al
ém disso, Aujor Ávila da Luz tenta se defender da acusação de
anticientificidade afirmando que apenas quis estudar o movimento dos fanáticos
sob os aspectos antropológicos, sociológicos, psicológicos. E que para isso era
necessário fazer um pouco de história, como que ensaiando um pedido de desculpas
pela intromissão numa área do saber que não era a sua, ainda. Ele via seu trabalho
como uma contribuição para a história no sentido em que se propunha a estudá
-
la, em
seu modo de ver, sob um ângulo até então desconsiderado, o dos fanáticos .
Argumenta também, que gostaria que seu trabalho ficasse conhecido, fosse lembrado
e que de sua leitura ficasse uma impressão, uma emoção, e portanto, era preciso que
fosse no mínimo ameno, ou seja, um tanto quanto literário. Com isso parece que ele
admite que não seguiu como devia as regras do discurso científico mas não perde a
oportunidade de também alfinetar Cabral ao devolver que o Egas, embora médico,
acredita mais na etnografia do que na psiquiatria, pois é emérito folk-lorista .
148
Uma tentativa de diminuir o trabalho de seu crítico e mais uma prova de como as
disciplinas disputavam lugar de destaque e autoridade no mundo acadêmico e
intelectual em meados do século XX. Percebe-se como essas disputas disciplinare
s
influem nas versões que se constróem sobre os fatos do passado, comprovando que
não podem deixar de ser investigadas quando o historiador se propõe a pesquisar
sobre o fato histórico ou sobre a sua historiografia.
2.3.
A visão sociológica: messianismo e mile
narismo.
A partir do final da década de 1950 estes fenômenos até então denominados
como fanatismos ou, na melhor das hipóteses, como misticismos , passam a ser
tema de novos estudos realizados na área da sociologia e da antropologia em âmbito
internaci
onal. Entre esses trabalhos posso citar, a título de exemplo, Rebeldes
Primitivos
de Eric Hobsbawm, Movimenti religiosi di libertá e di salvezza dei popoli
oppressi
, de Vittorio Lanternari e Messianisme et développement économique et
social,
de Roger Basti
de.
149
148
LUZ, Aujor Ávila da. Erros de uma crítica (ainda os Fanáticos) , p.02
149
HOBSBAWM, Eric J. Primitive rebelds. Studies in archaic forms of social movements in the XIX
and XX centu
ry
. Manchester: University Press,1959. LANTERNARI, Vittorio. Movimenti religiosi di
73
Esse novo viés de pesquisas influencia sobremaneira os estudos em ciências
sociais no Brasil, principalmente pela presença de Roger Bastide na USP e suas
teorias de messianismo . Estes estudos pretenderam introduzir, em relação a textos
anteriores, uma ruptura marcada, seja pela apresentação de uma perspectiva
distinta de análise, seja pela crítica e questionamento de fontes de dados até então
utilizadas. O que singulariza tal perspectiva e tal crítica é exatamente a orientação
propriamente sociológica imprimida (sic) a todos esses trabalhos .
150
Todos se
preocupam com as condições sociais de eclosão de movimentos como Contestado,
Juazeiro e Canudos, se referindo à presença de crises nas relações sociais como
explicação e apontando para o caráter reli
gioso dos movimentos.
Esses trabalhos, de um modo geral, utilizaram teorias em voga na época de
messianismo e milenarismo, embora, é preciso concordar com Emerson Giumbelli, a
problematização de vários pontos de suas análises remeta a temas que ultrapassam as
fronteiras do messianismo e dos movimentos religiosos, entre eles é possível citar a
discussão feita em torno do
coronelismo
e também em torno do catolicismo
popular
.
151
Especificamente sobre a Guerra Sertaneja do Contestado os trabalhos de
Maria Isaura Pereira de Queiroz publicado no Brasil em 1957, Maurício Vinhas de
Queiroz publicado em 1966 e Duglas Teixeira Monteiro publicado em 1974. Na
verdade o trabalho de Duglas T. Monteiro representa, por sua vez, um outro momento
da pesquisa sociológica, mais recente. Todo seu arsenal metodológico e teórico o
posiciona no interior das novas perspectivas de análise nas ciências humanas que
vieram a assumir maior relevância a partir dos anos 80 no Brasil e que serão
enfocadas no terceiro capítulo desse trabalho. Sua preocupação com a interpretação
dos acontecimentos e sobretudo do universo simbólico dos sertanejos faz com que
Monteiro, apesar de estar colocado nesse momento muito mais por motivos
libertá i salvezza dei popoli oppressi. Milano: Feltrinelli, 1960 (1977, 2
a
ed. ampliada). BASTIDE,
Roger. " Messianisme et développement économique et social ", In:
Cahier
s Internationaux de
Sociologie
, 31, Paris, 1961, pp. 3
-
14.
150
GIUMBELLI, Emerson. Religião e (Des)Ordem Social: Contestado, Juazeiro e Canudos nos
Estudos Sociológicos sobre Movimentos Religiosos . Revista Dados. 1997, vol.40, no.2. Consultado
em:
http://www.scielo.com.br
151
GIUMBELLI, Emerson.
Op.cit
. (s/p)
74
cronológicos, seja considerado em minha análise como precursor ou inaugurador
dos trabalhos mais recentes sobre o Contestado, produzidos na academia e balizados
tanto pela chamada História Nova, quanto pela Nova História Cultural.
Os trabalhos de Pereira de Queiroz e de Vinhas de Queiroz, basicamente,
podem ser vistos como representativos de uma mudança significativa em relação a
interpretações anteriores, e são, portanto, justificados através da comparação com
estas análises sobre o movimento. Maria Isaura Pereira de Queiroz, por exemplo,
refuta as interpretações
anteriores que utilizaram argumentos biológicos e patológicos
para afirmar a inferioridade física e mental do mestiço e classificar tais movimentos
como fenômenos de loucura coletiva .
152
De acordo com Giumbelli, é justamente
por ser esse um procedimento generalizado entre esses autores que existe toda uma
preocupação de controle com relação às fontes utilizadas, o que justifica consultas a
materiais de arquivo e entrevistas com remanescentes dos movimentos estudados.
153
No entanto, apesar do exame crítico feito por esses sociólogos aos trabalhos
anteriores tentando escapar das visões estereotipadas e redutoras sobre o mundo
social, apesar de todo um esforço em utilizar novos referenciais teóricos no intuito de
trazer à discussão outras questões e temas no sentido de enriquecer o conhecimento
sobre estes movimentos, eles acabam criando novas visões estereotipadas com suas
tipologias e conceitos baseados num estruturalismo muito rígido. Por outro lado,
deve
-se lembrar que cada autor utiliza o vocabulário disponível na época em que
escreve e dos instrumentos teóricos existentes e possíveis no interior das disciplinas e
instituições nas quais recebem sua formação como profissionais. De acordo com
Foucault, para uma proposição pertencer a uma disciplina, é preciso que ela responda
a condições mais restritas e mais complexas do que a simples e pura verdade.
154
Nesse sentido se considera que os discursos não são totalmente livres e isentos do
jogo existente entre linguagem, cultura e poder.
152
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. La Guerre Sainte au Brésil : Le mouvement messianique du
Contestado
. Tese de Doutorado apresentada à Ecole Pratique des Hautes Etudes, Universidade de
Paris, França, 1955, publicada no Boletim nº 187, FFCL, Universidade de S. Paulo, 1957.
P. 275
153
GIUMBELLI, Emerson.
Op.cit
. (s/p)
154
FOUCAULT, Michel. (1999).
Op. cit., p. 31
75
Assim, a anterior oposição litoral/sertão tão explorada e que trazia em si
toda uma carga de significados sacralizados e definidores de ações e reações e que
encontra na divisão civilização/barbárie sua expressão máxima, é apenas substituída
pela oposição rural/urbano. Maria Isaura Pereira de Queiroz tece toda sua teoria dos
movimentos messiânicos brasileiros se baseando nessa oposição. Ela pressupõe que
o meio rural e o meio urbano no Brasil são mundos praticamente isolados um do
outro, quando muito existe um mínimo de relações entre ambos, o que torna possível
considerá
-los realidades quase que autônomas. Essa leitura permite a ela afirmar que
por apresentar uma estrutura social peculiar, a qual denomina "sociedade rústica
nacional , o meio rural é o lugar privilegiado de eclosão dos movimentos
messiânicos, fato que dificilmente ocorreria no meio urbano. Ou seja, é o sertão
brasileiro (neste caso o Nordeste seco e a região serrana de Santa Catarina) lugar por
excelência da sujeição à uma habitual instabilidade social resultado de um caráter
anômico
da sociedade deste meio.
155
Sendo a anomia social
156
um conceito
sociológico para explicar a perda de identidade como conseqüência de
transformações sociais/culturais e econômicas, Pereira de Queiroz acaba fornecendo
um novo nome à patologia da população sertaneja entrando em contradição quando
critica a visão preconceituosa dos primeiros escritos militares. Na leitura que faz
Paulo Pinheiro Machado, a autora de La Guerre Sainte
utiliza
o conceito de
anomia social para explicar a incidência de surtos (expressão que revela
enfermidade, patologia) messiânicos ou milenares.
157
É a tese da anomia social que permite a Maria Isaura concluir que (...) o
messianismo brasileiro não é o resultado da opressão, mas ao contrário, de uma
excessiv
a liberdade que degenera em licença ,
158
ou seja, ele é fruto das tensões
criadas pelo estado de
anomia
da sociedade e não pode ser explicado por
diferenças
155
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de.
Op. cit.,
(1977), p
.318.
156
O conceito de anomia social é tomado de Roger Bastide, seu orientador na tese. Mas não foi
Bastide quem cunhou este conceito, ele o retirou das reflexões de Max Weber, mas tem origem em
Émile Dürkheim. Ver sobre as obras de Weber e Dürkheim em S
ELL, Carlos Eduardo
. Op. cit.
157
MACHADO, Paulo Pinheiro.
Op. cit
., p. 27
158
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Réforme et revolution dans les Societés Traditionelles,
Histoire et Ethnologie des Mouvements Messianiques . Editions Anthropos, Paris, 1969.
Apud.
MONTEIRO, Duglas Teixeira.
Op. cit.,
p. 197
76
de posição política ou social de inferioridade . Os indivíduos ficam encobertos
nesta análise, o que está em jogo são as formas de ordenação da sociedade e sua
desorganização que para a autora é endêmica no sertão brasileiro.
Maurício Vinhas de Queiroz é outro autor que, como Aujor Ávila da Luz,
estranha o fato de acontecimentos de tamanha importância terem sido esquecidos e
não figurarem em boa parte dos compêndios de História do Brasil.
159
A pretensão de
Vinhas de Queiroz ao estudar a Guerra Sertaneja do Contestado era relatar a vida e
a morte do monge José Maria, o qual, segundo julgamento do autor teria sido
encarado como um verdadeiro messias. Além disso, Vinhas de Queiroz visava
analisar os aspectos sociais, econômicos e políticos da região, identificando fatores
que condicionaram o ajuntamento do povo em torno da pessoa de José Maria. De
acordo com Duglas Teixeira Monteiro
160
, o livro de Vinhas de Queiroz é uma
excelente reconstrução histórica dos eventos feita com espírito de historiador, embora
considere seu desenvolvimento da parte interpretativa muito sumário.
Ao descrever o homem da região, Vinhas de Queiroz reproduz noções
consideradas verdades históricas inegáveis: antes da chegada dos conquistadores as
terras entre o Iguaçu e o Uruguai eram habitadas por indígenas Kaingang e Xokleng
que parecem desaparecer num passe de mágica após anos de passagem de
bandeirantes, jesuítas e militares até o estabelecimento de pequenas estâncias ao
longo do Caminho das Tropas que por volta de meados do século XVIII cresce em
importância. Afinal, eles não são levados em consideração como prováveis ancestrais
dos habitantes da região serrana catarinense:
Além desses antigos estancieiros empobrecidos, de origem
paulista e portuguesa, havia, espalhados pelos campos e
matas, ancestrais dos futuros caboclos, eram os forros
carijós administrados , que segundo o governo de então
andam vadios, e não têm casa, nem domicílio certo, nem são
úteis à República , isto é, eram antigos peões e índios
escravos, que viviam fugidos. Toda esta gente dispersa,
estancieiros arruinados, servos foragidos, criminosos e
159
QUEIROZ, Maurício Vinhas de. Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do Contestado,
1912-1916
. 3. ed. São Paulo: Ática, 1981
160
MONTEIRO, Duglas Teixeira.
Op. cit
., p.10
77
provave
lmente antigos camaradas das tropas de burro que
se deixavam ficar pelo caminho, é que Corrêa Pinto pretendia
reunir, pela força mas também pela sua indústria , para
formar a nova povoação.
161
Os ancestrais dos futuros caboclos são os indígenas mansos e
os mamelucos
da Vila da São Paulo, os Kaingang e Xokleng reaparecem apenas quando são
relatados os ataques que sofriam os tropeiros, fazendas e pequenas propriedades, sua
presença vista como entrave ao desenvolvimento da região. Estas considerações são
bas
eadas nos relatos de viajantes estrangeiros, geralmente tidos como as principais
fontes sobre o cotidiano do interior do país nos séculos XVIII e XIX. E é interessante
perceber também que os estancieiros pobres não o referenciados diretamente como
ancestrais , talvez por ser um aspecto óbvio da formação étnica do caboclo , está
implícito na tão conhecida idéia do cadinho da três raças que eles fizeram parte da
mistura . Na análise do discurso, de acordo com Eni Orlandi,
162
a noção de implícito
além de permitir dizer coisas como se não as tivéssemos dito, também permite
justificar o não-dito, a ausência, a falta, assim o silêncio seria o que não precisa ser
dito. Ao silenciar sobre os brancos a intenção é implicitamente ressaltar que foi a
influência indígena que acarretou os traços mais marcantes da população e que estes
seriam os responsáveis pelas características que levariam aquelas pessoas a
participarem do movimento. Essa característica dos discursos acima analisados vai se
repetir em grande parte
dos textos sobre a Guerra Sertaneja do Contestado. Quando se
quer diferenciar os fanáticos do restante da população serrana que não aderiu ao
movimento, ou é ressaltada a ascendência indígena para aqueles, ou a ascendência
européia para estes.
Embora n
ão questione certas verdades da historiografia o autor tece críticas
à maneira como foi e continuava sendo descrito o modo de vida dos caboclos . O
viajante europeu Saint-Hilaire, por exemplo, deixou uma impressão a respeito dos
casebres e plantio dos
caboclos
no planalto paranaense enfatizando aspectos como
161
QUEIROZ, Maurício Vinhas d
e.
Op. cit
., p.25
162
Toda a reflexão que segue baseia-se nos seguintes livros de Eni Pulcinelli ORLANDI: Terra à
vista. Discurso do confronto: velho e novo mundo. São Paulo: Cortez; Campinas: UNICAMP, 1990 e
As formas do silêncio no movimento dos sentidos
. 4.ed. Campinas: UNICAMP, 1997
78
uma triste pobreza atribuída à indolência .
163
Criticando essa visão, Vinhas de
Queiroz lembra que esses aspectos é que iriam se tornar sempre mais ressaltados,
praticamente até o momento em que el
e próprio escrevia, caracterizando uma verdade
absoluta, parte da natureza própria dos caboclos brasileiros. Aspectos que
suplantariam impressões diversas deixadas por outros viajantes como, por exemplo,
Avé
-
Lallemant que, em meados do século XIX, ao atra
vessar muitas roças considerou
que os caboclos eram homens que não queriam submeter-se ao serviço mais ou
menos escravo nas grandes propriedades e por isto enfrentavam os riscos e as
privações de uma existência sem recursos, dentro da floresta .
164
É possív
el observar
na visão desse viajante que ele foi capaz de tecer uma outra compreensão da realidade
observada que não aquelas velhas fórmulas de associar pobreza à indolência,
ignorância ou mesmo à herança racial. Avé-Lallemant foi capaz de perceber que em
muitos casos ser caboclo era o jeito do pobre ser livre, frente à realidade dos
escravos ou de submissão e exploração vivenciada por peões e agregados nas
fazendas espalhadas pelo interior do país. Mas essa percepção nem sempre recebe a
devida importância e, via de regra é descartada ou mesmo desconhecida. Mais um
exemplo de como explicações naturalizantes encontram mais bem acolhida e
permanecem por mais tempo no imaginário social em detrimento de visões mais
voltadas para explicações pautadas em aspectos sociais, culturais e históricos da
realidade observada e até mesmo vivida.
Vinhas de Queiroz demonstra que estava atento para essas ciladas
discursivas que insistem em permanecer no imaginário social dificultando o
surgimento de perspectivas alternativas de análise e compreensão da realidade
histórica. Assim ele se esforça em mostrar outras perspectivas possíveis de análise da
realidade vivida pelos habitantes do interior brasileiro. E faz isso pautando seu estudo
também pelos aspectos sociais e históricos que permitem olhar para os sertanejos
como pessoas que de certa forma tinham autonomia para escolher entre as
alternativas que lhes eram apresentadas. No entanto, em alguns momentos Vinhas de
Queiroz desloca seu olhar e termina por reduzir os sertanejos a meros joguetes nas
163
QUEIROZ, Maurício Vinhas de.
Op. Cit.
, p. 35
164
QUEIROZ, Maurício Vinhas de
.
Op. Cit
., p. 36
79
mãos do destino. Ao falar sobre o avanço das empresas capitalistas e das frentes
colonizatórias, Vinhas de Queiroz utiliza uma frase de Oswaldo Cabral: o caboclo
da região, valente embora humilde, foi ainda vítima de mais uma injusti
ça
.
165
Injustiça esta representada pela expulsão do roceiro de suas terras, fato que segundo o
autor levou muitos deles a se tornarem fanáticos e jagunços . E resta a dúvida, se
tornar ou não fanático e jagunço é uma escolha, ou uma imposição?
Observa
-se também no texto de Vinhas de Queiroz que, apesar do enfoque
sociológico baseado na teoria geral do messianismo e na análise de conjunturas
estruturais de crise social, persistem inúmeras nominações em relação aos habitantes
da região que adentraram no movimento. O autor utiliza sem o devido cuidado, além
de caboclos , expressões como vítimas , fanáticos , jagunços e até
guerrilheiros sem questionar toda a carga de significados que essas múltiplas
nomeações trazem em si. Mas isso não significa que o texto de Vinhas de Queiroz se
perca totalmente em contradições e ambigüidades. Ele resolve
o que talvez para ele
não era um dilema
posicionando seus múltiplos sujeitos em determinados
momentos como que a traçar um caminho, delimitar uma trajetória. Inicia portanto,
com a ligação à ancestralidade indígena e, a seguir, à pobreza, à humildade, à
ignorância (embora apenas implícito na expressão matuto ), passando por fim a
caracterizá
-los como jagunços , guerrilheiros , demônios em fúria .
Eis que entã
o para Vinhas de Queiroz, os sertanejos, de massa desprotegida e
miserável , se transformam em valentes e inventivos guerrilheiros . Sendo que um
dos objetivos de suas indagações é justamente tentar compreender como um
acampamento religioso transformou-se em ninho de guerrilheiros... .
166
É essa
compreensão que permite a ele, ao mesmo tempo em que aprecia e valoriza as táticas
utilizadas pelos sertanejos durante os combates, considerar esse caboclo
primeiramente como um matuto , o qual numa radical transfiguração vem a se
tornar o jagunço , e como jagunço passa a ser um demônio de fúria, coragem,
inventiva e pertinácia
.
165
CABRAL, Oswaldo Rodrigues, citado por QUEIROZ, Maurício Vinhas de.
Op. Cit.
, p. 73
166
QUEIROZ, Maurício Vinhas de.
Op. Cit.
, p.
13
80
A utilização da característica de guerrilheiros é indício claro do tempo da
escrita, o autor certamente está influenciado pela realidade das revoluções e lutas
anti
-ditatoriais por grupos que utilizavam a tática de guerrilha. Além disso, a
abordagem marxista do autor o faz considerar o messianismo como uma forma que
assumem os movimentos insurrecionais de escravos, de camponeses ou de povos
oprimidos, quando se produz uma situação de
deprivation
ou desespero coletivo.
Tratando
-
se sempre de revoltas alienadas, pré
-
políticas, destinadas por isso mesmo ao
fracasso a menos que se transformem em lutas conscientes.
167
Há, portanto, um novo
su
jeito surgindo nas páginas de Vinhas de Queiroz. Um sujeito que, historicamente,
assume múltiplas faces mas é levado a isso devido a imposições do sistema, ou seja, é
o oprimido que por algum tempo prevaleceu nas leituras de viés marxista.
Após estes primeiros estudos sociológicos sobre o messianismo no
Contestado surge uma leitura diferente, o trabalho de Duglas Teixeira Monteiro. Para
este autor a Guerra Sertaneja do Contestado foi a única que tomou, inequivocamente,
um caráter milenarista, pois a monarquia que tanto desejava mais do que uma
instituição política, era percebida como a realização do Reino escatológico ,
168
os
mil anos de paz, fartura e felicidade prometidos após o Juízo Final. Monteiro, em seu
trabalho
Errantes do novo século focaliza o movimento do Contestado
predominantemente do ângulo da sociologia da religião, o que segundo ele o foi
abordado devidamente pelas pesquisas anteriores. Em sua abordagem os aspectos
históricos e etnográficos são secundários, sendo apresentados sempre a serviço da
interpretação.
169
É assim que Monteiro define seu objetivo principal:
Minha intenção é analisar o comportamento social de uma
comunidade humana que, enfrentando uma crise global,
recolocou, dentro dos limites que lhe eram dados, os
problemas fundamentais de sua existência enquanto grupo.
Ao fazê-lo elaborou um universo mítico, adotando as
167
QUEIROZ, Maurício Vinhas de.
Op. Cit.
, p. 253
168
MONTEIRO, Duglas T. Um confronto entre Juazeiro, Canudos e Contestado . (1ªed. 1977) In:
FAUSTO, Boris (org). História da Civilização Brasileira: o Brasil Republicano
.
T.3, v.2, 4ªed. Rio de
Janeiro: Be
rtrand Brasil, 1990, p. 75
169
MONTEIRO, Duglas T. (1974).
Op. cit
., p.10
81
condutas ritualizadas correspondentes. O objetivo
fundamental de investigação é este.
170
Antes de iniciar seu estudo, Monteiro examina certos obstáculos inerentes à
nossa condição peculiar de observadores, entre os quais destaca a posição
etnocêntrica em que nos colocamos e que leva a considerarmos como um enigma a
violência praticada pelo fanático do Contestado. De acordo com Hobsbawm somos
até capazes de simpatizar com bandidos sociais e ver na conduta desses Robin
Hoods elementos de racionalidade.
171
O que nos provoca perplexidade são
comportamentos que constituem a inversão do que se tem por certo, ou que se
apresentam como paródias do que entendemos ser o procedimento normal. Para
Monteiro é um etnocentrismo muito especial que leva as pessoas a compreenderem a
violência quando esta é posta a serviço de suas convicções religiosas, e no entanto,
verem como repulsiva a violência cometida em nome de uma forma que têm
por
invertida de sua própria religião ou de religiões com que não estão familiarizadas.
Através destas considerações o autor deixa claro sua posição em relação ao
modo como olha aqueles que adentraram as Vilas Santas e foram marcados por
estigmas sociais que ainda sobrevivem e fazem alguns o se reconhecerem como
seus descendentes ou silenciarem sobre o passado familiar. Seus agentes não são
primitivos cujos costumes bárbaros ignoramos ou deixamos aos especialistas o
cuidado de desvendar. São seres humanos muito próximos de nós. No caso do
Contestado, vizinhos, empregados e, até mesmo, parentes
.
172
Para Monteiro foi essa perplexidade que orientou explicações que acabaram
por utilizar determinismos geográficos ou biológicos para analisar os fanatismos
religiosos. Recorria-se às condições da terra, ao clima, à composição étnica da
população. Ou à ocorrência de loucuras ou delírios coletivos de modo menos
generalizante. Mais tarde uma mudança nas reflexões sobre a cultura brasileira e
as explicações passam a ser baseadas em tentativas de identificar condições
170
MONTEIRO, Duglas T. (1974).
Op. cit
., p. 11
171
MONTEIRO, Duglas T. (1974). Op. cit., p. 11. Ver: HOBSBAWM, Eric J. Rebeldes primitivos:
Estudos de formas arcaicas de movimentos sociais nos séculos XIX e XX. ed., Trad. Waltensir
Dutra, Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
172
MONTEIRO, Duglas T. (1974).
Op. cit
., p.11
82
históricas, sociais e culturais. Para estes estudos os surtos milenaristas revelariam o
abismo cultural entre o sertão e o litoral: símbolos de duas civilizações e de dois
Brasis . Um apresentado como autêntico e pouco conhecido, o outro postiço e
europeizado. então surgiria uma análise que desloca a ênfase do aspecto cultural
para o sócio-estrutural, mas sem negar a existência do abismo entre litoral e sertão.
Monteiro se refere aqui, certamente, aos estudos sociológicos de Pereira de Queiroz e
Vinhas de Queiroz, nos quais os fenômenos ditos messiânicos passam a ter como
pano de fundo constante o sistema de propriedade, as relações de produção e o
sistema de dominação. Segundo o autor essa passagem das explicações naturalistas
para as explicações históricas e sócio-estruturais em certa medida representou um
progresso. Entretanto, no seu modo de ver, em alguns estudos as descrições das
condições objetivas são tão amplas que se perdem os nexos explicativos concretos.
Em outros casos, o apelo reducionista à identificação de causas subjacentes
recorrendo ao uso de expressões como a luta pela terra , explica pouco ou nada
explica. Conclui, assim, que estas concepções acabaram levando os pesquisadores a
considerarem a dimensão religiosa dos movimentos de rebeldia como simples
epifenômeno, ou seja uma capa que apenas esconde o que seria essencial.
Segundo Monteiro, é uma tradição racionalista que está presente na raiz desta
atitude metodológica e que tende a equacionar a religião com ignorância. Sendo
comum e simples concluir, a partir disto, que escola e práticas sanitárias são medidas
básicas para alcançar, necessariamente, progresso e um mundo cada vez mais
secularizado e asséptico. Essa crítica feita aos trabalhos anteriores sobre o assunto o
conduz a contrapor sua própria metodologia, a qual pode ser resumida na
consideração de que a natureza desses fenômenos apresenta três fases distintas: uma
ordem pretérita, o desencantamento e o reencantamento do mundo. Para o autor é
primordial a análise do antes e depois da crise representada aqui pela fase do
desencantamento, pois foram as respostas dadas pelos
rebeldes
à ruptura da ordem
tradicional em que viviam que permitem compreender a crise e as contradições que
existiam na ordem pretérita. Por isso, defende que um caminho privilegiado de
interpretação da crise é aberto pelo entendimento do universo de significados
83
elaborado pelos que a enfrentam .
173
Dentro desta proposta Duglas Monteiro tira
import
ância da questão étnica no sentido que vinha sendo usada até então, a
composição étnica da população não aparece mais como um dos elementos
explicativos para o conflito.
Desse estudo surge agora um novo sujeito
o rebelde
e sua origem étnica
não influenciava a sua rebeldia mais que as condições sociais e econômicas em que
vivia. Influenciado pelos estudos de Hobsbawm, para o qual esses fenômenos de
rebelião que tomam um caráter religioso não são nem estranhas relíquias do passado,
nem meros precursores, nem formas embrionárias de movimentos sociais modernos,
Monteiro considera esses rebeldes como os agentes de uma vontade inarticulada
ou articulada segundo um código estranho ao nosso
[que] conseguiram, em certos
casos, escapar ao anonimato das ocorrências policiais inexpressivas, irrompendo em
nossa história oficial
como se disse
pela porta dos fundos .
174
Portanto, para
compreendê
-los talvez seja preciso reconhecer nesses movimentos alguma coisa,
que, negativamente, poderia
ser
designada co
mo
marginalidade e que, positivamente,
poderia se qualificada como
autonomia .
175
Por fim, vale ressaltar que, não obstante, o estudo nos moldes sociológicos
privilegie a interpretação da sociedade como um todo em detrimento do indivíduo,
Monteiro deixa falar os seus rebeldes , procura mostrar o resultado de suas ações e
no sentido dos significados que eles atribuíram a uma conjuntura de crise um
possível caminho para a compreensão do movimento. Para Cristina Pompa,
Os Errantes do Novo Século inaugura um novo rumo nos
estudos sobre "messianismo" e, muito mais, na antropologia
da religião pois o autor procura compreender a ideologia
religiosa dos camponeses do Contestado, sendo a "ideologia"
não um epifenômeno superestrutural da base material, mas
173
MONTEIRO, Duglas T. (1974).
Op. cit
., p.15
174
MONTEIRO, Duglas T. Sertão e Civilização: Compassos e descompassos
In: Ana
is do Colóquio
de Estudos Regionais
, comemorativo do 1º centenário de Romário Martins. Curitiba, UFPR, Boletim
do Departamento de História, nº 21, 1974, p. 31
175
MONTEIRO, Duglas T. Sertão e Civilização: Compassos e descompassos .
In:
Op. cit
.
(1974), p.
34
84
um universo simbólico por meio do qual o mundo material
adquire sentido.
176
O novo rumo inaugurado por Monteiro vai abrir caminho para que na década
de 1990 estudos sobre o que ocorreu na região Contestada produzidos no interior da
academia tentem compreender este fenômeno social através do estudo do imaginário
dos rebeldes . Estes estudos podem ser inscritos dentro de uma nova perspectiva
historiográfica que cresceu na última década do século XX no Brasil e vem
modificando o modo de fazer a história. Hoje não é mais possível deixar de lado, ou
considerar como elemento menor os aspectos culturais das realidades estudadas, fazer
isso é correr o risco de permanecer produzindo estudos incompletos, parciais, e
algumas vezes equivocados.
176
POMPA, Cristina. POMPA, Cristina. A construção do fim do mundo. Para uma releitura dos
movimentos sócio
-
religiosos do Brasil "rústico".
Revista de Antropologia
. 1998, vol.41, n.1, p. 185
85
3.
A
visibilização do fato histórico entre transformações e
permanências
as décadas de 1980 e 1990
3.1.
As diversas imagens produzidas sobre o Contestado criando
sujeitos múltiplos.
Além dos trabalhos escritos entre as décadas de 1950 e 1970 que foram
estudados
no capítulo anterior, também o romance de Guido Wilmar Sassi A
geração do deserto ,
177
o primeiro a alcançar expressão no cenário literário nacional.
Sassi pretendeu dar a visão dos vencidos, dar a versão dos marginalizados tentando
transformá
-los em sujeitos da história, no entanto, acabou transformando-os em
vítimas ingênuas, sempre a mercê dos desmandos dos poderosos e do engodo de
espertalhões que utilizavam a crendice do povo em benefício próprio. Apesar disso,
não como não considerar o romance de Sassi como um marco na literatura de
Santa Catarina e do Brasil. Publicado em 1964, sem vida ele representa um
despertar de interesse e fonte de inspiração para diversas pessoas que resolveram se
dedicar ao estudo da Guerra do Contestado. Pode-se afirmar, com certeza, que é a
principal inspiração de outros escritores que escolheram o tema como cenário ou
enredo de seus romances a partir dos anos 1980. O romance de Sassi foi utilizado
também como fonte para o roteiro do filme A Guerra dos pelados do cin
easta Silvio
Back em 1970 que sofreu a censura do Governo Militar em 1971. O censor Roberto
Antônio Coutinho hesita quanto ao real perigo do filme, mas é firme ao escrever que
se tratava de um filme de mensagem duvidosa e conteúdo perigoso, por conter
tor
tura, violência e ainda talvez de fundo subversivo , sem nenhuma solução
pacífica .
178
Nesta década também pode ser observado que, com exceção da dissertação de
Marli Auras,
179
os livros publicados sobre o assunto foram produzidos fora do âmbito
177
SASSI, Guido Wilmar. Geração do deserto. 3.ed. Porto Alegre: Movimento, 2000. (1ªed. 1964).
Antes do romance de Sassi foi publicado o romance Casa Verde de Noel Nascimento tendo como tema
o Contestado, foi publicado no ano de 1963 em São Paulo, pela Editora Martins.
178
ASSIS, Denise. "Filmes que o Brasil não viu". C
op
yright no. 2/02/02. Disponível em:
http://www.no.com.br,
179
AURAS, Marli. Guerra do contestado: a organização da irmandade cabocla. 2. ed. Florianópolis:
Ed. da UFSC, 1995. A dissertação foi defendida em 1983, pela PUC/SP
86
acadêmico por jornalistas e pessoas das mais diversas profissões. Na maioria, gente
que nasceu ou foi morar nas cidades que se desenvolveram na região contestada e em
conversas com os moradores mais antigos travaram conhecimento dos fatos através
da tradição oral.
180
Esses autores vão buscar, principalmente, nas fontes tradicionais
como os artigos de jornal e os textos publicados até então o material para referenciar
as histórias ouvidas nas conversas das rodas de chimarrão, e produzir, cada qual, sua
narrativa sobre a Guerra Sertaneja do Contestado. É como se estivessem desfiando a
trama construída até então e através dos diversos fios tecendo novas texturas. O que
prevalece nas novas narrativas são os velhos elementos que dominam o imaginário
instituído sobre o Contestado. A origem da população; o clima de tensão social
produzido pelo avanço capitalista, a diminuição do poder local e reordenação das
relações sociais, produzindo a sensação de estranhamento e desorientação; as disputas
políticas, a exploração econômica, a i
gnorância de boa parte da população, a presença
de novos modos de vida, etc., estão todos presentes. O trabalho final é sempre
diverso, recebendo novo colorido e novo desenho, os pontos mais frouxos ou mais
tencionados dependendo das mãos e da imaginação do artista, mas os fios parecem
ser sempre os mesmos. Alguns aspectos são mais ressaltados que outros compondo
tramas diversas.
Estas características também estão presentes nos romances escritos durante a
década de 1990, principalmente após o ano de 1994.
181
Mesmo aqueles que
apresentam algumas idéias da chamada Nova História Cultural,
182
continuam
180
CONTESTADO.
Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura e Rio de Janeiro: Fundação
Roberto Marinho, 1987; DERENGOSKI, Paulo Ramos. O desmoronamento do mundo jagunço
.
Florianópolis: FCC, 1986; OLIVEIRA, Beneval de. Planalto de frio e lama: os fanáticos do
Contestado
o meio, o homem, a guerra. Florianópolis: FCC, 1985; THOMÉ, Nilson.
Civilizações
Primitivas do Contestado. Caçador: Impressora Universal, 1981; _________. Guerra Civil em
Caçador
. Caçador: FEARPE, 1984; LEMOS, Zélia de Andrade. Curitibanos na historia do
Contestado
. 2. ed.
rev. e aum. Curitibanos: Impressora Frei Rogério, 1983
181
Cito aqui entre outros, os romances que foram fichados durante esta pesquisa: FORTES, Telmo.
Glória até o fim: Espionagem militar na Guerra do Contestado. Florianópolis: Insular, 1998;
OLIVEIRA NETO
, Godofredo.
O bruxo do Contestado
. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.PRADI,
Cirila de Menezes.
Chica
-Pelega do Taquaruçu. Florianópolis: IOESC, 2000; SCHÜLER, Donaldo.
Império Caboclo. Florianópolis: Ed. UFSC, FCC; Porto Alegre: Ed. Movimento, 1994;
VA
SCONCELLOS, Auro Sanford de. O dragão vermelho do Contestado
. Florianópolis: Insular, 1999;
_______.
Chica Pelega
a guerreira de Taquaruçu
. Florianópolis: Insular, 2000.
182
A Nova História Cultural veio dar conta de uma dinâmica social mais complexa com a entrada em
cena de novos grupos, portadores de novas questões e interesses. Toda uma diversidade que os
87
utilizando todos os termos e conceitos forjados durante o século XX sobre o
Contestado. Para se ter uma idéia de como as visões anteriores são utilizadas todas
para
compor novas narrativas, ao falar das causas remotas e iniciais , um dos
autores, Paulo Derengoski comenta que A Guerra do Contestado foi um
acontecimento multifacélico, complexo, fruto de inúmeras causas
:
183
(...) aberrações sociais, patologia econômica, questões
limítrofes entre Estados, arrocho fiscal, surto messiânico,
fanatismo religioso, disputas políticas provincianas, luta pela
posse de terras, cobiça por pinheirais, açambarcamento de
erva
-mate, avanço de grupos estrangeiros, grilagem,
ignorânc
ia, milenarismo, miséria.
184
Quando se comparam as causas elencadas por quem escreveu anteriormente
com estas, é possível observar que todas as novas visões vão sendo anexadas
àquelas colocadas pelos primeiros textos ainda no final da década de 1910. Todas são
consideradas igualmente mesmo que as mais recentes tenham sido usadas para negar
algumas das anteriores. Isso não é um fato isolado e se repete até hoje, alguns autores
de livros com narrativa histórica e a grande parte dos romancistas que utilizaram o
Contestado como tema e escreveram nos últimos cinco anos do século XX
misturaram as mais diversas concepções sem o menor cuidado com as prováveis
incoerências resultantes. Todas as causas levantadas aparecem, às vezes, misturando
visões conflitantes, o fanatismo se confunde com o messianismo e o milenarismo e
também com reivindicação de propriedade. No fim, acabam embotados, nem um,
nem outro, todos ao mesmo tempo, parece que isso é irrelevante, o importante é
lembrar de um modo novo. Desse modo, nos esclarece Foucault, as palavras remetem
sempre a outras palavras e a outros discursos, e assim, o discurso que vai se tornando
memória retoma o mesmo, mas está sempre sofrendo deslocamentos.
185
As crenças
modelos de análise e paradigmas explicativos da realidade globalizantes não davam mais conta.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural
.
Belo horizonte: Autêntica, 2003, p. 09.
Ver também HUNT, Lynn.(org.).
A nova história cultural
. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
183
DERENGOSKI, Paulo Ramos.
Op. cit
., p. 67
184
DERENGOSKI, Paulo Ramos. Op. cit
., p. 10
185
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? . In: ________. Pintura, música e cinema. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2001. (Coleção Ditos e Escritos, vol. III), p. 284
88
ingênuas, o misticismo feroz, as aberrações católicas, o gnosticismo bronco, entre
outros, forma fatores ideais para o surgimento de lideranças messiânicas .
186
E o
conceito de messianismo, intensamente colocado em discurso pelos sociólogos,
assume agora todas as causas contra as quais, inicialmente, ele fora convocado a
combater.
Nessa miscelânea toda, as personagens acabam tendo o mesmo destino,
assumem todas as máscaras que superpostas impedem, paradoxalmente, se chegue a
uma suposta essência que alguns autores perseguem incansavelmente. Os
sertanejos são caboclos , matutos , inteligentes guerrilheiros , fanáticos ,
loucos , jagunços , humildes , bravos , destemidos , bandidos ,
endemoniados , audaciosos , e, claro, errantes do novo século . A expressão
utilizada por Duglas Monteiro faz muito sucesso, por ser, talvez, poética, o mesmo
não acontece com a outra, rebeldes , utilizada também por ele influenciado pelos
estudos do historiador inglês Eric Hobsbawm. Esta nomeação vai ser utilizada com
mais freqüência nos trabalhos acadêmicos produzidos durante a década de 1990
quando a obra do historiador inglês está consolidada e é considerada uma das
mais importantes da segunda metade do século XX. Segundo Duglas Monteiro, para
Hobsbawm estes fenômenos sociais não são marginais pelo simples fato de que
os
que nele se envolveram pertencem a uma categoria que forma ainda a maioria em
muitos países. E foi esta maioria que, ao adquirir consciência política, fez deste
século o mais revolucionário da história .
187
Portanto, enquanto existia no meio
acadêm
ico uma certa tendência em ver esses fenômenos sociais como sendo
produzidos por indivíduos à margem da sociedade, ou minorias , a idéia de rebeldia
como expressa por Hobsbawm não recebia a atenção devida. Por outro lado, ela é por
demais real , não possui tanto apelo literário, não desperta a imaginação do leitor e
talvez não prenda sua atenção, então ela aparece mas vem dissimulada, acompanhada
por expressões de forte apelo imaginativo.
186
HOMEM. Carlos. Prefácio . In: FELIPPE, Euclides J.
Op. cit
., p.08
187
MONTEIRO, Duglas T. Sertão e Civilização: Compassos e descompassos In: Op. cit., (1974),
p.33
89
Portanto, quando se quer colorir a trama, não se poupa imaginação, e assim
o Exército de São Sebastião será engrossado pela imensa horda molambenta dos
ressuscitados
tropas de mortos-vivos a sair das tumbas.
188
O povaréu das serras parecia ensandecido e aderia em massa
à
rebelião
: eram ervateiros, fazendeiros, po
líticos
provincianos, aventureiros, biscateiros, desempregados,
molambentos, desertores, mandraqueiros, cavaleras,
vagamundos, ratos e homens.
Mas a grande massa (...) era constituída de antigos
lavradores, empobrecidos na falta de terra, da qual não
esper
avam nada mais a não ser a cova.
189
[grifo meu]
Neste universo discursivo de personagens multifacetadas e tramas indefinidas,
os sujeitos são todos em um. E no fim, o caboclo do início não se transfigura
apenas em jagunço fanatizado como quisera perceber Maurício Vinhas de Queiroz,
é também vítima , herói , Homem do Contestado , Árabe , trabalhador
despossuído , sem-terra , vencido , excluído . São estas várias faces que
tentaremos descrever a partir de agora através das tramas discursivas produzi
das
durante as últimas duas décadas do século XX
3.1.1.
O caboclo.
É comum encontrar nas obras escritas sobre o Contestado um capítulo ou
tópico destinado à descrição do que se chama elemento humano do cenário. Vale
lembrar aqui que os autores que escolhem escrever desta maneira freqüentemente
utilizam a metodologia usada por Euclides da Cunha em sua obra Os Sertões,
190
publicada em 1902, na qual ao narrar os acontecimentos do levante sertanejo que
ficou conhecido como a Guerra de Canudos, destina um capítulo para descrever a
terra e outro para descrever o Homem.
188
DERENGOSKI, Paulo Ramos.
Op. cit.
, p. 25
189
DERENGOSKI, Paulo Ramos. Op. cit
., p. 80
190
CUNHA, Euclides da.
Op. cit.,(1991).
90
Ao descrever o que seria este homem de Canudos , Euclides da Cunha
envereda pela discussão da mestiçagem no Brasil, colocando em destaque o que é
para ele a complexidade do problema etnológico do país. O brasileiro, este tipo
abstrato que se procura , poderia surgir de um entrelaçamento consideravelmente
complexo, ainda mais complexo no caso do Brasil devido a grande variação no meio
físico, que contribuiria significativamente para as diferenças q
ue se constatavam entre
os diversos tipos humanos espalhados pelo interior do país.
E o tipo humano escolhido para representar a população da região contestada
foi o caboclo . A centralidade da questão da mestiçagem na maior parte dos textos
sobre o Contestado pode ser atestada pelo fato de que mesmo as obras que não
abordam explicitamente a questão, ou seja, para seus autores ela não é uma
preocupação, nem parece fazer parte de suas teses explicativas, os sertanejos, via de
regra, são denominados caboclos em algum momento da narrativa.
Alguns, ao buscar longe no passado uma origem para estas pessoas acabam
ressaltando a intensa mistura que caracteriza toda a trajetória dos grupos humanos
pela superfície do planeta em busca de sobrevivência e que, antes de ser uma
particularidade de algum grupo específico, é mais uma regra da humanidade. A
própria idéia de mistura trai a crença de que existam raças puras, o que sem dúvida
não deixa de ser uma ilusão, um sonho vão de pertença a alguma essência não
co
rrompida. Essa busca eterna e sem saída só acabaria por força de um querer pessoal
que arbitrariamente estipula uma origem qualquer, de acordo com o interesse
próprio. Caso contrário, aquele que procura corre o risco de se perder em meio a
tantos começos possíveis. Schüller Sobrinho foi à busca de uma origem para o
caboclo da região contestada e, convenientemente, escolheu como ponto de
partida ou de chegada o Árabe. Mas, qual é a origem do povo árabe? E vale
perguntar, qual é a origem da origem? E assim indefinidamente. Além disso é
possível objetar que a origem poderia ser todos os povos dos quais um dado sujeito
descende e utilizar um trecho do próprio Schüller Sobrinho como argumento:
Este homem, o caboclo, no período de 1550 e 1912, (...),
era miscigenado, como veremos, entre árabes, berberes,
91
maragatos, e visigodos da Península Ibérica, visigodos
vindos para o Brasil e outros nascidos na Terra de Santa
Cruz, negros escravos e outros nascidos brasileiros, índios
Carijó, Guarani e, principalmente, Xokleng que habitavam as
terras serranas,(...).
191
Em alguns livros a nomeação caboclo aparece em certos momentos sem o
devido cuidado ou justificativa de seu uso, mesmo quando um esforço em se
referir a eles como sertanejos de modo genérico pois, como se sabe elementos de
outras etnias também se juntaram ao movimento. E, ainda que alguns não concordem
ou considerem isso um exagero, esta nomeação carrega consigo uma enorme carga de
preconceito e estigmas, principalmente por trazer à memória a ascendência negra e,
sobretudo, indígena daquelas pessoas, consideradas, por alguns, ainda hoje, as
principais causadoras de vícios, degenerescências e outros tantos traços negativos na
população brasileira. Além disso, estou considerando que qualquer hierarquia, seja
racial, de classe ou de gênero possui uma dimensão lingüística, pois qualquer arena
social está permeada pelas práticas significantes, e qualquer ação política é sempre
tomada dentro de um horizonte de significados culturais e interpretaçõ
es
.
192
E as
nomeações são elementos discursivos importantes nos contextos das relações
humanas e que funcionam como instrumentos da luta pelo poder dos diferentes
discursos. E essa luta se na subjetividade dos indivíduos, afinal, de acordo com
Foucault
(...) somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar
tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos
verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder .
193
Felizmente, alguns autores, apesar de abordar a miscigenação (principalmente
devido a certas etnias) da população como uma causa ou elemento importante para os
eventos do Contestado, tentam apresentá-la como positiva no decorrer de seus textos.
191
SCHÜLLER SOBRINHO, Octacílio. Taipas: origem do homem do Contestado. Florianópolis:
Let
ras Contemporâneas, 2000, p. 14
192
COSTA, Cláudia de Lima. Sujeitos
ex/cêntricos
: explorando fronteiras das teorias feministas . In:
Fazendo Gênero: Seminário de Estudos sobre a Mulher,
Anais
..., Florianópolis: Ed. da UFSC, 1994,
p.51
193
FOUCAULT, Michel. Soberania e disciplina .
Op. cit
. (1993), p. 180
92
Um exemplo importante a ser citado é do hoje historiador Nilson Thomé
194
que vai
ressaltar em suas obras a contribuição cultural dos indígenas da região, sejam eles
Guarani, Kaingang ou Xokleng. Embora uma ressalva possa ser feita aqui pois
considero, como Eni Orlandi, que reconhecer apenas o cultural é apag
ar o histórico, o
político, e é um dos princípios mais fortes do chamado discurso colonial. E seus
efeitos, que permanecem ahoje, além de nos submeterem ao espirito de colônia,
negam nossa historicidade, afinal nos apontam como seres culturais, não nos dando
outro direito a não ser o de termos particularidades, singularidades, peculiaridades
culturais, nos tornam a-
históricos.
195
É isso que continuamos a fazer com relação aos
índios, negros, e seus descendentes, eles parecem ter o direito de serem apenas
culturais . Eles nunca serão sujeitos históricos enquanto continuarmos a definí-
los
com conceitos etnocêntricos, enquanto apenas lembrarmos de seu legado cultural,
para dar-lhes um lugar na história que o é a deles, numa tentativa clara de desfazer
uma
injustiça ou pedir uma reparação pelas possíveis ofensas sofridas. É preciso sim
manter viva a memória do passado para que situações análogas não se repitam, mas é
preciso cuidar para não reproduzir ou recriar mitos e representações que mantém
indivíduos
à margem da sociedade e os silencia como sujeitos históricos. A intenção
pode ser boa mas o resultado não contribui na prática para transformar a realidade.
Mas não posso ser injusta com a obra de Nilson Thomé pois ele não se
restringe a valorizar a herança cultural dos caboclos da região contestada, ele faz
um esforço desmedido para humanizá-los e retirar da memória da população da
região todo o estigma que pesa sobre seus antepassados. Este autor salienta, em
muitas ocasiões, que o bando de fanáticos que o Exército Brasileiro esperava
desbaratar na região não era só composto de jagunços, bandidos, foragidos da justiça,
194
Nilson Thomé é natural de Caçador, Região do Contestado. Jornalista e professor, licenciado em
História e mestre na área da Educação. É fundador e atualmente diretor do Museu Histórico e
Antropológico da Região do Contestado desde 1974, é professor da Universidade do Contestado
Campus de Caçador. Possui diversas publicações sobre o Contestado o que torna sua obra de grande
relevo na Historiografia catarinense.
195
ORLANDI. Eni P.
Terra à vista. Discurso do confronto: velho e novo mundo. São Paulo: Cortez;
Campinas: UNICAMP, 1990, p. 15
93
mas sim que a maioria era toda uma população denominada por ele de geração
mameluca .
196
Thomé também sente a necessidade de esclarecer o que é para ele o
caboclo . Procura mostrar a existência de várias etnias que se misturando entre si
produzem este tipo humano: o branco, o índio, o negro, o mameluco, o cafuzo, o
mulato. No entanto, para ser o verdadeiro caboclo , o qual Thomé toma a
liberdade
de denominar o caboclo pardo , ele precisa manter características próprias que o
tornariam inconfundível onde quer que se apresente:
É o caboclo o cidadão do Planalto Catarinense, desde o
início do século proletário do campo, do sertão ou da roça, o
sertanejo, o caipira, bastante místico, voz grossa, mas lento
no andar, desconfiado, afeiçoado à caça e à pesca. De pele
pardacenta, nele corre o sangue alegre, afeito, trabalhador,
disposto e justo do negro escravo; do bravo guerreiro
indígena, indolente e sempre temido. Tem dentro de si alto
sentimento de justiça, do bem e do coletivismo dos
desbravadores, colonizadores e povoadores. Assim é o
caboclo da nossa região, o de ontem e o de hoje. Desde seus
primórdios guarda suas virtudes e seus defeitos, é corajoso,
instintivo e violento, ao mesmo tempo em que é franco, leal e
honrado.
197
Essa caracterização se repete na maioria das obras sobre o Estado Catarinense
sempre que se descreve sua gente e seus costumes. Existe uma insistência em tecer
comparaçõ
es com os habitantes do litoral como se as pessoas, tanto do planalto
quanto do litoral e demais regiões, se enquadrassem todas perfeitamente no interior
de uma mesma descrição imutável porque fruto do meio e das características
biológicas de seus ancestra
is.
Assim, apesar de Thomé desejar iniciar uma valorização de parcela da
população regional através da exaltação dos feitos gloriosos e bravos dos sertanejos
do Contestado, acaba caindo na velha armadilha da diferença entre as etnias. A velha
classificaçã
o que mesmo afirmando apenas características supostamente positivas
196
THOMÉ, Nilson.
Guerra Civil em Caçador
. Caçador : FEARPE, 1984, p. 08
197
THOMÉ, Nilson.
Op. cit
.
[1984], p. 09
94
termina reafirmando antigos preconceitos de raça, reproduzindo os estereótipos que
excluem ao invés de promover o sentido de união entre a diversidade, ou mesmo o
sentimento de pertença ao grupo através de um novo elemento comum, o mestiço , o
que parece ser sua intenção. Mas o que seria essa voz grossa que o tornaria
inconfundível? Thomé utiliza características que não são, em hipótese alguma,
distintivas de algum grupo étnico. Esse mestiço que parece tão bem definido, mas
que ninguém consegue, ou quer, nele se reconhecer, termina sempre sendo produto de
um mesmo negro, aquele alegre, trabalhador; de um mesmo indígena, que só lhe cabe
ser guerreiro, indolente e assustador, porque sempre temido, e de um mesmo branco,
o senhor da justiça, do bem e do coletivismo. As etnias negra e indígena como
definidas por Thomé podem ser consideradas particularmente conflitantes, resultando
da sua mistura um sujeito que, por exemplo, é trabalhador e ao mesmo tempo
indolente, sem dúvida o produto acaba sendo totalmente indefinido. Uma cilada
discursiva certamente, mas é preciso estar atento para que os preconceitos não
sobrevivam. Os três
será que posso assim chamar
arquétipos representariam a
essência de cada um de nós, brasileiros, afinal não somos a mistura de todos
aqueles que por aqui andaram? Mas essas características, obviamente, nunca
satisfazem a todos, em todos os momentos, em todas as relações, e acabam servindo
apenas para descrev
er o outro , esse ser tão fácil de ser definido.
É relativamente fácil estabelecer um tipo humano quando não nos
identificamos a ele, mesmo quando a intenção é utilizar sua figura como espelho para
os demais, pois sempre se pode situá-lo e mantê-lo preso num passado transformado
em comum a todos, assim como fez Esperidião Amim. Segundo Amim, o Homem
do Contestado foi um homem que existiu e foi destruído tanto física quanto
culturalmente, e por isso sua memória precisa ser resgatada para que não se perc
a
seu valor e exemplo para a História de Santa Catarina
198
. No entanto, Nilson Tho
não quer apenas restabelecer um tipo perdido no passado, o seu caboclo pardo
diferencia
-
se por ainda existir.
198
A invenção do Homem do Contestado será objeto de discussão no tópico 3.1.4 na seqüência deste
capítulo. HELOU FILHO, Esperidião Amim. O Homem do Contestado . In: C
ADERNOS DA
C
ULTURA
C
ATARINENSE
.
Op. cit.,
(1984), p.02.
95
3.1.2.
O fanático e o jagunço
Como foi visto no primeiro capítulo a utilização da noção de fanatismo para
explicar os fenômenos sociais que estremeciam a ordem pretendida pelas elites
dirigentes do país durante as primeiras décadas da República pode ser pensada a
partir do temor republicano em perder o poder muito recentemente adquirido e a
fragilidade dos alicerces da nova realidade política, o que fazia com que tudo fosse
visto como uma constante ameaça a sua posição. Além disso o fanatismo e a idéia
de loucura que o acompanha fornece justificativas para a repressão pela força sem
que haja necessidade de se aprofundar na explicação do assunto. Estas idéias
permaneceram até a década de 1950 através da utilização feita pelo médico Aujor
Ávila da Luz dentro de uma tradição criminalista em explicar atrasos e atavismos
da população através da loucura. Mas o que faz com que, em plenas décadas de 1980
e 1990, após toda a discussão sociológica produzida sobre estes fenômenos sociais,
persistam visões que insistem em reduzir todo a complexidade das relações sociais a
quest
ões de normalidade/anormalidade? A nominação fanático continua presente
em alguns textos produzidos recentemente e, mesmo acompanhada de tantas outras,
continua marcando uma diferença nas personagens da história contada.
O exemplo mais contundente é um pequeno livro de Walter Tenório
Cavalcanti.
199
Poderão objetar que é um título sem importância, perdido em meio a
tantas obras de maior valor historiográfico e literário. No entanto, o pequeno livro
está nas prateleiras das bibliotecas municipais e quiçá das Escolas espalhadas pelo
Estado. Eu o considero um livro convidativo à pesquisa dos alunos pelo seu tamanho,
o número reduzido de páginas e um subtítulo bem objetivo: Verdade Histórica .
Aqui temos mais um exemplo do que a tradicional concepção de hi
stória
200
pode
gerar um discurso que se outorga verdadeiro e tenta ser definitivo, recusando todas as
outras versões, inclusive as que poderão vir a aparecer futuramente. Seu conteúdo
199
CAVALCANTI, Walter Tenório. Guerra do Contestado: verdade histórica. Florianópolis: Ed. da
UF
SC, 1995. Walter Tenório Cavalcanti é alagoano mas morou no Planalto Serrano catarinense boa
parte de sua vida, advogado foi vereador em Curitibanos e eleito Deputado Estadual em 1951.
200
ver uma breve discussão sobre a concepção de história que podemos chamar de tradicional na
produção historiográfica catarinense no texto de Cristina Scheibe Wolff, Historiografia catarinense:
96
para os menos avisados pode produzir efeitos nefastos no conhecimento hist
órico
que terão sobre este acontecimento, pois seu discurso principal e incansavelmente
repetido por todo o texto consiste em deixar bem claro que tudo o que se produziu até
então sobre o assunto é inverídico e digno de descrédito. Como ele se considera o
autor que, por ser altamente credenciado, pode oferecer a versão verdadeira,
definitiva e isenta de quaisquer interesses escusos ou segundas intenções, tudo o mais
que se diga deve ser, portanto, alvo de desconfiança. Além disso, o livro foi
publicado pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina e apresentado pelo
Historiador e Professor da mesma Universidade Carlos Humberto Corrêa, o qual
justifica a publicação por apresentar novos argumentos sobre a questão. Embora
Corrêa questione a metodologia utilizada por Cavalcanti, considera a publicação
importante por oferecer documentos inéditos, portanto, um material pouco explorado,
qual seja alguns depoimentos feitos ainda na década de 1920 de participantes e
testemunhos dos acontecimentos. O discurso que se vende explicitamente como
verdadeiro recebe, portanto, o aval de uma das instituições mais importantes do meio
intelectual catarinense reforçado pelas palavras de um dos professores mais eméritos
e reconhecidos da disciplina de História no cenário
estadual.
O maior propósito de Cavalcanti é mostrar os equívocos de todos aqueles que,
no lugar de considerar o puro e simples fanatismo na explicação para ter ocorrido a
Guerra do Contestado, acabam inventando outros tantos elementos que ao seu ver
n
ão tiveram nenhum papel importante no desenrolar de todos aqueles acontecimentos.
Sua tese claramente e repetidamente expressa por todo o texto é de que a guerra
teria sido tão somente causada pelo puro e simples fanatismo de caboclos:
lutavam
porque
eram fanáticos, e queriam salvar suas almas , Foi uma Guerra na qual
foram forçados a tomar parte, sertanejos fanatizados por um monge carismático
,
(...) .
201
O autor acaba sendo tão insistente que chega a se desculpar em seus
esclarecimentos preliminares justificando que os argumentos são tão contundentes
e decisivos, derivados de fatos comprovados, que necessitam ser expostos várias
vezes, e ele assim o faz incansavelmente.
uma introdução ao debate . In:
Revista Catarinense de História
, Florianópolis, n.º 2, pp. 5
-
15, 1994
201
CAVALCANTI, Walter Tenóri
o.
Op. cit
., p. 20
97
Em seu discurso estão postas claramente suas opções políticas e utiliza seu
li
vro para atacar o que a seu ver é uma visão ideológica equivocada. Cavalcanti
acredita que outros trabalhos, por pretenderem exaltar os caboclos heróicos, acabam
por lhes emprestar intenções de lutas de classes, ou por terras, ou por direitos. Ele
chega a utilizar a narrativa de versões anteriores para provar que a guerra não foi
feita pelos sertanejos, mas contra eles, que apenas teriam revidado à agressão das
forças policiais. E estando esta premissa provada pelos fatos, segundo o autor cairiam
por terra todas as teorias dos novos historiadores que afirmam que os sertanejos
teriam promovido uma guerra pela terra. Segundo Cavalcanti apenas uma minoria
sofria injustiças, a maioria seria composta de famílias assentadas, de profissões
variadas, pequenos e grandes proprietários, posseiros com suas casas e roças. É uma
tentativa de destituir os sertanejos de toda vontade de luta contra possíveis injustiças
sofridas por parte da população local naquele período, destituí-los de uma certa
autonomia presente em suas ações. Ele reforça isso citando alguns donos de terras
que teriam abandonado tudo e aderido ao movimento por puro fanatismo, mostrando
o desapego por coisas materiais entre os adeptos, além de lembrar que recusavam
utilizar a moeda oficial da República. Argumenta também que as pessoas que
entrevistou confirmam que na época o que mais sobrava era terra devoluta, isso ele
mesmo pode testemunhar, pois mesmo em 1926 quando era funcionário da prefeitura
de Curitibanos o preço era módico e a expedição dos títulos também não era
exorbitante. Segundo ele, o sertanejo poderia comprar dez alqueires com a quarta
parte do milho que colheria num ano. Lutar por terras, naqueles tempos, seria
brigar por água na Amazônia .
202
Defende que eles tinham pouca instrução e continuaram a ter durante várias
décadas após aqueles acontecimentos, que além disso, sofreram sim, privações, mas
que com paciência se conformaram com sua sorte. Sendo comum ouvir: É Deus
quem quis . Para ele os pobres são conformados com a vida que levam, n
unca
lutaram contra o
sistema opressor
,
salvo, naturalmente, nos dias atuais, insuflados
por demagogos e extremistas da esquerda . Sustenta que estes raciocínios que
202
CAVALCANTI, Walter Tenório. Op. cit
., p. 72
98
concebem luta de classe são próprios de poucos comunistas que, ainda hoje,
continuam
com seu sonho
seu fanatismo
no Brasil e em poucos outros
lugares
.
203
Como lutariam eles por terras se um dos motivos que impelem milhões
de pessoas dos campos para a cidade, após venderam ou simplesmente abandonarem
suas pequenas propriedades, é o fato de que eles não gostam do estafante, penoso
trabalho, dependente da enxada!
Seu discurso é contraditório e ambíguo em muitos momentos, tanto que
sustento que suas idéias não suportam uma análise um pouco mais cuidadosa. Ao
mesmo tempo em que defende sua
tese do fanatismo com frases do tipo
Os fanáticos
tiveram essa gloriosa loucura
uma loucura coletiva
exatamente porque eram
fanáticos e acreditavam no auxílio sobrenatural (...)
204
do monge José Maria e do
Exército de São Sebastião; conjectura que os
milhares de caboclos não eram loucos
a ponto de se insurgirem contra todo o resto do país, eles não cometeriam tamanha
estupidez. Tinham pouca instrução, mas eram inteligentes!
O discurso ambíguo de Cavalcanti não é o único a utilizar a expressão
fanáticos , ela é muito utilizada também, nos romances sobre o Contestado, pois a
ficção permite imaginar (e colocar) pensamentos, julgamentos e reações mentais das
personagens históricas frente a determinadas situações. Portanto, boa parte das
personagens que não são seguidoras do monge, expressa julgamentos e condenações
nas quais as expressões estigmatizantes são utilizadas para criar os dramas, as
emoções que caracterizam um bom romance. A utilização das obras literárias neste
momento do trabalho não serve apenas como simples ilustração. A literatura a
ver sensibilidades, perfis, valores. Ela representa o real, ela é fonte privilegiada para
a leitura do imaginário. Porque se fala disto e não daquilo em um Texto? .
205
Portanto, ela conta para o historiador pensar o tempo da escrita, dando pistas sobre a
escolha do tema e de seu enredo, ou sobre as expectativas de uma dada época em
relação à realidade vivenciada.
203
CAVALCANTI, Walter Tenório. Op. cit
., p. 56
204
CAVALCANTI, Walter Tenório. Op. cit
., p. 90
205
PESAVENTO, Sandra Jatahy.
Op. cit
., p. 82
99
Como a maior parte dos romances sobre o Contestado foi publicada na
década de 1990 não é de se estranhar que, apesar da expressão fanáticos ser muito
utilizada, alguns romancistas relativizem o fanatismo. Portanto, é comum que para
algumas personagens os sertanejos sejam temíveis fanáticos , enquanto para outras
eles são os fiéis de José Maria . Em o Bruxo do Contestado de Godofredo de
Oliveira Neto, por exemplo, eles são um grupo de fiéis armados contra os soldados
pecadores e republicanos que não concordavam com o novo reino de justiça , eram
o exército de adeptos convocados pela milícia do reino da justiça .
206
Além dessa
visão geral, algumas personagens possuem uma visão particular dos sertanejos, para
Gerd, eles eram
os que tinham a sorte de ver Deus
.
207
Outra característica comum é a mistura das rias concepções produzidas nas
décadas anteriores o que faz com que surjam idéias como essa em que o Contestado
representa um ideal messiânico louco .
208
Oliveira Neto, por exemplo, acaba
associando messianismo com loucura e nada mais faz que torcer os significados para
manter a conotação de fanat
ismo reduzido à loucura das visões mais tradicionais.
Até a destruição do reduto de Taquaruçu, em fevereiro de 1914, os sertanejos
seguidores do monge José Maria eram chamados apenas de fanáticos pela imprensa
e diferentes setores do governo. Após este evento, com o crescimento dos conflitos e
a militarização dos sertanejos, as denominações de banditismo e jaguncismo
passam a acompanhar o termo fanatismo .
209
Isto também pode ser observado na
maior parte dos livros sobre o assunto, se no início os sertanejos são denominados
caboclos e fanáticos , a partir de certos pontos das narrativas eles passam a ser
denominados também de jagunços , bandidos , facínoras .
Souza Barros ao estudar o messianismo e violência de massa no Brasil
caracteriza o jagun
ço deste modo:
206
OLIVEIRA NETO, Godofredo. O bruxo do Contestado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996,
pp.21
-22
207
OLIVEIRA NETO, Godofredo. Op. cit., p. 23. Gerd é a personagem principal do romance, que
sonha, muitos anos após o fim da Guerra, em ser um seguidor de José Maria.
208
OLIVEIRA NETO, Godofredo.
Op. cit.,
p. 40
209
PINHEIRO MACHADO, Paulo.
Op. cit
., p. 23
100
O jagunço era e continua sendo, em algumas áreas, um
elemento ligado aos donos da terra, que servia e serve sob
seu mando. Tinha e tem ainda hoje uma vida de armas, sem
obrigação com os trabalhos comuns nas propriedades. Havia
casos mistos de jagunços com suas roças, suas ocupações
com gado, mas sempre predispostos a dar uma mãozinha
nas rixas patronais. O hábito do uso de armas e prática de
crimes de morte não eram censuráveis. Admirava-se a
valentia, a disposição para a luta, e tinha-
se
mesmo respeito
ao executor de muitas mortes. Não se permitiam porém, os
crimes contra a propriedade
.
210
Portanto, se, ao escrever sobre a Guerra Sertaneja do Contestado, alguém
escolhesse utilizar a expressão jagunço considerando esta concepção, estaria
mencionando também todos os homens que, a mando dos coronéis, formaram
piquetes civis para ajudar as tropas do Exército e ficaram conhecidos na época como
vaqueanos . Mas na região do Contestado este nome assumiu nova conotação e
passou a ser utilizado, principalmente, para designar os caboclos que foram morar
nos redutos, devido sobretudo aos grupos que foram formados para a defesa das
cidades-santas e passaram a assaltar as fazendas, propriedades e vilas em busca de
mantimentos para os redutos que cresciam assustadoramente e não mais conseguiam
se auto sustentar.
Atualmente, são comuns, na tradição oral da região, as lembranças sobre o
assunto serem expressas com declarações do tipo: no tempo dos redutos ou no
tempo dos jagunços . Mas, estas expressões não se referem aos homens contratados
pelos coronéis para fazer a segurança das propriedades, e muito menos para os
civis que auxiliaram as forças legais. Zélia Lemos, por exemplo, afirma que Maurício
Vinhas de Queiroz não entendeu pontos da antiga organização social da Vila de
Curitibanos pelo fato de ter tratado os poucos defensores da Vila pelo termo
capangas . Ela esclarece que (...) capanga era o camarada-servil que vivia às
custas do amo, como guarda-costas a serviço da violência
211
e, portanto, Vinhas de
Queiroz não deveria utilizar este termo também para os voluntários que acorreram ao
210
BARROS, Souza. Messianismo e violência de massa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira; Brasília: INL, 1986, p. 58
211
LEMOS, Zélia.
Op. cit
., p. 124
101
chamado de alerta para defender a Vila dos ataques dos bandos de jagunços .
Portanto, se o nome jagunço serve para denominar um certo tipo social que surge a
partir dos acontecimentos do Contestado, aqueles que anteriormente eram assim
chamados passam a receber somente seu outro nome equivalente, o de capanga .
Esse exemplo demonstra de modo específico como é construída uma diferenciação
de certos sujeitos sociais através de nomes utilizados normalmente, mas que
assumem novos significados.
Essa transfiguração de nomes traduz, em parte, os jogos de linguagem e
poder que atravessam as relações cotidianas fazendo com que o indivíduo que antes
era
tão somente um pobre fanático passe a ser um jagunço temido e perigoso.
Portanto, ao mesmo tempo em que o sujeito recebe toda a carga de significados da
nova nomeação, os significados que o sujeito traz consigo através de suas práticas,
num lance recíproco, passam para o nome. É assim que, nesse jogo intercruzado de
significados o jagunço , um elemento primeiramente produzido pela dinâmica social
de algumas regiões brasileiras, acaba tendo sua origem explicada pelos caracteres
biológicos, como é o caboclo . Mostrando como pode ser persistente o modo de
naturalizar os objetos e tornar o que é muitas vezes uma particularidade em algo
universal, tornando assim, mais fácil a sua assimilação pelos sistemas de pensamento.
Acredita um professor da Universidade do Contestado, por exemplo, que é de
um verdadeiro caldeirão social que surge o jagunço:
Neste amalgamado de pessoas, da mais variada mestiçagem,
vindos de diversos Estados, formaram-se grupos, etnias,
costumes. Assim, com este fator histórico e cu
ltural,
elementos que já haviam sido aculturados em outros
quadrantes, e por isso mesmo traziam novos matizes e novos
valores, emprestaram uma fisionomia de violência
messiânica, vivendo e disputando na sombra das matas, na
fúria dos combates sangrentos, das tocaias e dos ajustes
selvagens.
Surge aí o jagunço.
212
Como foi discutido em capítulo anterior, a mestiçagem da população foi
considerada por autores como Aujor Ávila da Luz a causa maior do fanatismo, ela
212
HOMEM, Carlos. Prefácio . In: FELIPPE, E.
Op. cit
., p. 08
102
agora é por transferência, considerada a origem do jaguncismo . Portanto, o
chamado mestiço continua a constituir um local privilegiado para fenômenos como
o de fanatismo e jaguncismo , pois é certo, para alguns, que vem da mistura a
inconstância, o gosto pela violência, pela vingança. Nada mais surpreendente que
essas noções sejam utilizadas por alguns hoje para virar o jogo, para criar uma
identificação positiva, através de uma memória reconstruída diariamente nas
conversas sobre o passado de forma a valorizá-lo e assim tentar marcar uma posição
social proeminente no presente.
Vaidosos de seu papel de valentes e batendo-se lealmente
pelos mandões que os chefiavam, militarmente
arregimentados, instituíram a desordem no banditismo
disciplinado, matando inocentes, saqueavam fazendas e
vilarej
os. Alugavam muitas vezes sua valentia. A história
destorcendo os fatos, transformou alguns destes episódios em
atos de heroísmo, fazendo com que hoje alguns mal-
informados se orgulhem da sua origem jagunça
.
213
Não há por que considerar como má-
informação
o motivo pelo qual se tenta
criar uma identificação positiva com um fato que hoje vem sendo revisitado e
utilizado por políticos e movimentos sociais como exemplo de luta pela criação de
melhores condições de vida. Além disso, sendo ou não exemplo a ser seguido, não
motivo para recriminar aqueles que sofrem na pele o preconceito por serem
descendentes dos pelados pelo fato de utilizar sua própria condição para criar
estratégias de valorização pessoal e mesmo de grupo virando o jogo. O constante
refaz
er das identidades sociais que se dá justamente pela utilização dessas estratégias,
a primeira vista, paradoxais, mostra como na maioria das vezes criar identidades a
partir do que está em discurso é muito mais viável do que formar todo um novo
referenc
ial de identificação. Ainda mais no caso em questão, quando parte da
historiografia e da literatura ao escrever sobre o Contestado transforma seus
protagonistas em vítimas e depois passa a exaltá
-
los como heróis.
213
HOMEM, Carlos.
Prefácio . In: FELIPPE, E.
Op. cit
., p. 08
103
3.1.3.
As vítimas e os heróis
Antes de serem transformados em Heróis, os sertanejos que combateram o
Exército brasileiro no Contestado foram vistos sob o prisma da vitimização. Esta
visão sobre os fatos não é recente e pode ser percebida nos textos dos
contemporâneos ao acontecimento. Por um lado, os cronistas da época assumiam um
tom destemperado ao apresentar seus adversários como dementes , bandidos , por
outro também utilizavam observações de teor paternalista, como quando criticam o
governo por deixar as gentes do interior do país no mais completo abandono, sem
cuidados de saúde e sem acesso à educação. Os sertanejos passavam, pois, de
bandidos enlouquecidos a vítimas da realidade social em que viviam, meros joguetes
nas mãos da politicagem local.
Essa versão que apresentava aqueles brasileiros como vítimas continuou
presente na maior parte dos discursos produzidos sobre o Contestado até hoje,
assumindo, é claro, diversas roupagens e conotações. Uma certa corrente sociológica
viu neles as vítimas de uma
anomia
social, enquanto estudos influenciados por certa
visão de esquerda os pintou como marginalizados pelo sistema capitalista opressor
que se formava na região.
Os romances deixam bem claro essa visão que descaracteriza todo o
movimento, pois não considera a autonomia e consciência política que porventura os
sertanejos apresentaram. Eles são os
injustiçados, humildes, a pobre gente do sertão,
povo sofredor e esperançosos caboclos... , representações reforçadas por uma
característica da narrativa literária, a qual permite que se produza imagens tétricas,
tais como: E se foi, em procissão, aquele bando de cegos, e aleijados, doentes e
morféticos; gente sem terra, em busca de outras terras; gente sem esperanças, a
renascendo; deserdados, em busca de esperança .
214
No entanto, essa visão faz com que, ao menos, se passe a renunciar a causas,
origens e explicações naturalizantes e se busque no cotidiano das relações sociais as
experiências que porventura possam explicar tais fenômenos: Então o caboclo,
214
SASSI, Guido Wilmar.
Op. cit
., p. 25
104
sentindo
-se alijado, desamparado, perseguido, busca agarrar-se a religiões e
mitos, ao misticismo, transformou-se no que se convencionou chamar fanático .
215
Outra visão que acompanhou de certa forma a de vítimas produziu discursos
que tentaram heroificar os sertanejos. Essa visão também esteve presente nos textos
dos contemporâneos. Rogério Rosa,
216
como foi visto, observou que esta
característica dos militares pode muito bem esconder uma tentativa de tornar a vitória
do Exército mais grandiosa e menos covarde, frente a visões paternalistas. No
en
tanto, seria um erro tirar dos militares a consciência ou a compreensão de que a
ousadia e coragem dos sertanejos realmente os tenha surpreendido. Acreditando que a
experiência de Canudos os tivesse preparado para combater com maior facilidade
mais um bando de ignorantes fanatizados por um desequilibrado qualquer, a
resistência e inventiva daqueles que se denominavam pelados com certeza deve ter
causado em certos momentos não espanto como também admiração. Uma
admiração que pode ter se transformado em respeito, o que deve ter aumentado a
sensação de remorso que alguns deixaram transparecer em seus discursos após o
término dos combates.
O ato de transformar os que antes eram considerados bandidos pelas versões
oficiais em heróis é mais explícito nas obras mais recentes, principalmente após o
crescimento da influência nos estudos históricos brasileiros da chamada História
Nova. Essa tendência historiográfica tem como proposta oferecer a visão histórica
dos que foram considerados vencidos quando transformados em sujeitos da
história, procurando mostrar sua participação e os mecanismos de sua exclusão.
217
Mas, de modo algum essa nova perspectiva do fazer histórico visa simplesmente
heroificar os chamados excluídos da história, mantendo ou mesmo criando novas
hierarquias sociais. Transformar os considerados bandidos em vítimas depois em
heróis pode ser visto como uma forma de resposta primária às novas tendências
215
MIGUEL, Salim. Prefácio.
In: SASSI, Guido Wilmar.
Op. cit
., p. 09
216
RODRIGUES, Rogério Rosa.
Op. cit
., p. 33
217
Sobre a chamada História Nova ou La Nouvelle Histoire ver, principalmente LE GOFF, Jacques;
CHARTIER, Roger e REVEL, Jacques. A história nova. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998; e
também BURKE, Peter.
A escrita da história
. São Paulo: UNESP, 1992.
105
historiográficas, que procuram lançar novos olhares sobre o passado e que revelam
as nova
s preocupações e perspectivas do presente.
A influência dessas novas tendências somada a dificuldade em estabelecer
padrões e julgar atos de personagens do passado, acaba gerando visões ambíguas que
oscilam entre a velha fórmula maniqueísta do bem e do mal, e uma visão mais
relativizante que acaba permitindo uma série de indefinições sem comprometimentos
por parte do autor:
Ambos
[João Maria e José Maria] estacionaram ali,
indefinidamente nas fronteiras oscilantes da loucura, na zona mental onde se
confun
dem facínoras e heróis, reformadores brilhantes e aleijões tacanhos, e se
acotovelam gênios e degenerados .
218
O quanto este espaço de fronteiras oscilantes
é cômodo, é útil, para que se julgue se um indivíduo pode ser considerado facínora ou
herói sem precisar reconhecer o fato de que, às vezes, o espaço social ocupado pelo
indivíduo também ajuda a decidir se ele é culpado ou não. Pode-se lembrar nos
destinos de Adeodato, o último chefe dos pelados e Pedro Ruivo chefe de um grupo
de vaqueanos que auxiliou as tropas do Exército. O primeiro teve sua figura
demonizada , ficou conhecido como o flagelo de Deus , condenado a 30 anos de
reclusão acabou morto em tentativa de fuga;
219
e o segundo que até chegou a ter
processo aberto contra ele, acusado de roubo de gado e de praticar a degola de
prisioneiros e estuprar mulheres, foi absolvido e foi ter uma vida de homem rico na
vila da Lapa no Paraná.
Não se quer aqui comparar, diminuir, aumentar ou igualar os atos praticados
por um e outro, ou mesmo tomar partido de um dos lados. Mas sim mostrar que
algumas vezes os heróis da história são apenas aqueles que estavam do lado do
poder instituído, das elites dirigentes que produzem discursos legítimos e de alto
capital simbólico. E, em outros momentos, aqueles que foram um dia considerados
indivíduos execráveis podem ser transformados em heróis, numa tentativa de reparar
o que se passou a considerar injustiça histórica. É assim que nesse percurso de
transformações percorrido pela história até Adeodato, o flagelo de Deus , acabou
218
HOMEM, Carlos. Prefácio .
In:
Op.
cit
., p. 08
219
Esse incidente está até hoje mal esclarecido.
106
transformado em herói, mesmo que seja assumindo o destino do herói trágico,
incompreendido e martirizado.
220
3.1.4.
A invenção do Homem do Contestado
Início da década de 1980, o Brasil vivia sob a égide do governo militar de
João Figueiredo, a ditadura não era mais sustentável frente a pressões tanto
externas quanto internas da sociedade organizada. Os militares vinham, desde o início
do governo do General Ernesto Geisel em 1974, colocando panos quentes para
apaziguar os ânimos mais exaltados contra a repressão ditatorial através de ações e
discursos prometendo realizar a reabertura política de forma
lenta, gradual, segura
.
Enfim, sinalizaram concretamente nesta direção promovendo eleições diretas para os
governos estaduais no ano 1982.
Surg
em e são organizados, gradativamente, diversos movimentos populares
que avançavam em suas reivindicações, tanto nas cidades como nos meios rurais,
constituindo novas forças sociais (trabalhadores assalariados urbanos, professores,
pequenos produtores agríc
olas, trabalhadores rurais sem terra, mulheres, negros, etc.).
Essa emergência de novos atores no cenário social e político desencadeava novas
relações e obrigava o governo nacional e os estaduais a assumir novos discursos e
compromissos com a sociedade.
221
A campanha de Esperidião Amim Helou Filho para o governo estadual pelo
então recém criado PDS é exemplo contundente dessa nova realidade. Essa
campanha, como visto anteriormente, teve por base a denominada Carta dos
Catarinenses
,
222
na qual Amim expressava
sua tão proclama
opção pelos pequenos
,
nela, Esperidião Amim tinha como proposta para a Cultura em seu governo do Estado
(1983
1986), o compromisso de preservar a Identidade Catarinense . Em 1980,
quando ainda era Secretário Estadual dos Transportes,
Amim foi convidado para ser o
220
SCHÜLER, Donaldo.
Op. cit.,
p. 230
221
AURAS, Marli. Poder oligárquico catarinense: da guerra dos fanáticos a opção pelos
pequenos .
São Paulo. Tese de doutoramento em Educação.
PUC/SP, 1991, p.46.
222
C
ADERNOS DA
C
ULTURA
C
ATARINENSE
.
Op. cit.
, (1984), p.02.
107
patrono de honra do desfile do Contestado na cidade de Irani.
223
Seu discurso neste
evento é indicativo de suas futuras propostas enquanto Governador:
Nós precisamos criar a marca de Santa Catarina. Quando a
gente fala no gaúcho, sabe o que é o gaúcho. Quando se fala
do carioca, também se sabe o que é o carioca. Quando a
gente fala do catarinense, não se sabe bem como representar
o catarinense. Para criar a identidade de Santa Catarina,
para expressar numa única palavra o que é o catarinense,
podemos buscar no Contestado uma alternativa. Nós
podemos ganhar aqui esta palavra, esta palavra é o homem
do Contestado, é o jagunço, é o fanático, enfim, é o homem
que deu a sua vida para conseguir um pouco daquilo que nós
temos de justiça social; para conseguir que o Oeste
Catarinense fosse chão de propriedade de milhares de
famílias. (...) aqui neste local mora a identidade de Santa
Catarina.
224
Nesse contexto publicou-se, no trimestre jul./set. de 1984 a edição n. 00 dos
Cadernos da Cultura Catarinense com o tema Aspectos do Contestado . Nesta
edição o primeiro texto é do Governador Esperidião Amim intitulado O homem do
Contestado
. Nele o então governador do Estado embora reconheça o mosaico (...)
cultural, étnico, econômico se pergunta: quem é catarinense do ponto de vista
cultural? E é com esta preocupação que ele procura mostrar que o Homem do
Contestado é o mais legítimo dos catarinenses
, dizia-
se convencido de que este era o
homem típico catarinense , homem que existiu e foi destruído tanto física quanto
culturalmente. Daí a necessidade urgente de resgatar-lhe a memória, o folclore e a
contribuição social
.
225
O governo passa então a apoiar e incentivar a produção cultural de tudo que
recuperasse e preservasse a memória do Homem do Contestado . Denotando o que
Élio Cantalício Serpa bem colocou ao analisar a Identidade Catarinense nos
discursos do IHGBSC, as propostas de Amim cercam bem o desejo dos homens do
223
Este desfile era integrante de um trabalho que vinha sendo desenvolvido pelo folclorista Vicente
Telles na região do meio
-
oeste no sentido de divulgar o acontecimento histórico tão pouco co
nhecido.
224
AMIM, Esperidião. Em Irani, um desfile recorda a Guerra do Contestado . In: O Estado
,
Florianópolis, 16
-
09
-
80, p.17.
225
AMIM, Esperidião. Em Irani, um desfile recorda a Guerra do Contestado .
In: Op. cit.,
p. 03
108
poder em forjar uma identidade catarinense, num contexto marcado pela
heterogeneidade étnica e cultural . Ou seja, valia-se do passado para conformar o
presente, e a partir dele definia discursos e práticas que engendravam novos sujeitos,
muitas vezes em conformidade com seus interesses políticos .
226
Desta intenção surge, portanto, um novo sujeito, criado para tentar estabelecer
uma identidade cultural para o Estado, uma imagem do que seria o típico catarinense.
E para isso a Guerra Sertaneja do Contestado foi transformada em folclore, a luta
daqueles homens e mulheres foi transformada em espetáculos para serem apreciados
pelo público. Durante o governo de Amim, por exemplo, além do incentivo ao já
existente Museu do Contestado em Caçador, foi restaurado o Cemitério de Irani, foi
erguido um monumento ao Homem do Contestado em Curitibanos, e colocadas
placas comemorativas em praças de diversas cidades da região.
Como sujeito, esse tal Homem do Contestado passou a figurar em vários
livros escritos a partir de então, assim, mais uma nomeação passa a ser utilizada,
co
mo que a representar em essência todas as outras, é um sujeito criado para
carregar todas as marcas, um sujeito multifacetado. Para alguns autores os sertanejos
podem ser ao mesmo tempo caboclos , fanáticos , loucos , jagunços ,
bandidos , guerrilheiros , vítimas , ingênuos , ignorantes , supersticiosos ,
heróis , destemidos e podem ser denominados simplesmente O Homem do
Contestado . Quase como um Homem de Neandertal a representar a origem até
então encontrada de uma espécie, o catarinense. E por falar em origem, ainda
quem no ano 2000 tente buscar uma origem mais distante no tempo para este
Homem do Contestado . Segundo Schüller Sobrinho
227
, dos estudos dos militares e
dos cientistas sociais o Estado passa a conhecer o Homem do Contestado
religioso e guerreiro . Mas, para ele, desse homem não se conhecem as origens
verdadeiras , pois os historiadores e cientistas sociais nunca se dedicaram a esta
pesquisa e, se o fizeram, foram vagos e superficiais não entrando em tese. Assim, ele
se propõe a preencher este vácuo e vai buscar a História desde a Idade Média, mais
226
SERPA, Élio Cantalício. A identidade Catarinense nos discursos do Instituto Histórico e
Geográfico de Santa Catarina .
In:
Op. cit..
, p. 63
-
79
227
SCHÜLLER SOBRINHO, Otacílio. Taipas: origem do Homem do Contestado. Florianópolis:
Letras Contemporâneas, 2000
109
especificamente desde o surgimento de Maomé e a expansão do islamismo pelo
Oriente e pelo norte da África, para reconstruir a saga do Homem do Contestado.
Sim, ele tenta mostrar como aquele árabe que através da expansão do islã vai
migrando até alcançar o norte da África e daí para a Península Ibérica,
transformando
-se no moçarabe , acaba dando com os costados aqui em terras
brasílicas . Não, é claro que isso não corresponde a uma mentira estapafúrdia, a
miscigenação aconteceu sim neste caminho de aproximadamente mil anos, o
problema é a escolha feita em ressaltar uma só das origens. E as pretensões de
Schüller Sobrinho não são pequenas, o texto todo é construído de modo a d
emonstrar
uma verdade, que para o autor é plausível e incontestável e não concorda quem
não quer: a
verdade
é que aquele caboclo , o tal do Homem do Contestado é mouro:
O que se pretende não é recontar a história da Guerra do
Contestado, mas mostrar q
ue foram espanhóis, portugueses e,
principalmente
, mouros miscigenados os atores dessa guerra,
(...).
Sim, foram visigodos, europeus outros, mouros, mamelucos e
cafuzos que provocaram a Guerra do Contestado.
228
Parece ser tão fácil concluir que o árabe do início, este também muito bem
escolhido, foi transformado após intensa miscigenação em caboclo:
Nada mais restou para o
ÁRABE, agora CABOCLO
Ao HOMEM DA COR DO PINHÃO,
Ao HOMEM DO COTESTADO,
Senão ir à luta. E foi...
229
Este exemplo serve para mostrar como é fácil escolher uma das ascendências
para constituir uma identidade comum de grupo, se ela convence ou não aos
interessados é outra história. E, geralmente, quem inventa a identidade está muito
mais interessado nela que os alvos desde processo. Alguns podem objetar que este
228
SCHÜLLER SOBRINHO, Otac
ílio.
Op. cit
., p. 26
229
SCHÜLLER SOBRINHO, Otacílio
.
Op. cit
., p. 218
110
texto, não merece crédito, não merece menção. Não concordo, pois ele foi escrito
e, assim como o livro de Walter Cavalcanti discutido anteriormente, está nas
prateleiras das bibliotecas para que inúmeros desavisados possam utilizá-
lo
como
fonte, referência de trabalhos escolares. E pode ser reproduzido como verdade pois
este é o discurso do autor. Além disso, este livro também foi publicado com o aval de
uma instituição oficial, o próprio Governo de Santa Catarina, sendo publicado pel
a
Imprensa Oficial do Estado e prefaciado pelo então Governador Esperidião Amim. O
que por si só já confere legitimidade e notoriedade suficientes ao livro do autor.
230
Mas, se Schüler Sobrinho vai tão longe em busca das origens do Homem do
Contestado , posso também percorrer este caminho e tentar determinar uma origem
para o Homem do Contestado . No entanto, não precisei ir tão distante no tempo e
no espaço para encontrá-la, pois, possivelmente, a primeira referência a este
homem está num pequeno título de Nilson Thomé publicado em 1981. Nela o autor
define o que é a seu ver o caboclo : uma geração de pessoas prensadas entre o
índio e o branco
que seria
a pedra-
de
-toque portadora das origens e evolução
do
homem do Contestado .
231
Aqui está, possivelmente a primeira utilização dessa
nomeação após Amim ter discursado em Irani, mostrando que Thomé começava a
utilizar o mote do político catarinense, fazendo surgir um novo sujeito retórico na
historiografia do Contestado
232
.
Em 1984 Nilson Thomé publica outro livreto intitulado Guerra Civil do
Contestado , nele seu discurso já está inteiramente posicionado no interior do
programa cultural do Governo do Estado. Esse livreto é, nas palavras de seu autor,
um tijolo na construção da recuperação do pensamento caboclo em busca da
revalorização do homem que derramou seu suor e sangue para a incorporação do
Oeste a Santa Catarina . Sua intenção é preservar a cultura e memória cabocla e
230
Schüler Sobrinho é entre outras coisas membro do Instituto Histórico e Geográfico Catarinense, e
da Academia Catarinense Maçônica de letras, além de ter ocupado diversos cargos de dire
ção nas mais
diversas secretarias, fundações e instituições do Governo do Estado.
231
THOMÉ, Nilson. Civilizações Primitivas do Contestado. Caçador: Impressora Universal, 1981,
p.07. (grifo meu)
232
Não se pode esquecer que Thomé é correligionário de Esperidião Amim, e toma a causa do
homem do Contestado para si. O mesmo é verdade para Schüler Sobrinho que vai buscar no árabe a
origem do homem do Contestado .
111
resgatar os grandes feitos desta maltratada sub-raça do sertão
233
para derrubar
falsos conceitos e estereótipos que refletem a existência de textos inverídicos e
tendenciosos que acabam minimizando a importância do conflito social.
3.1.5.
Os trabalhadores e os sem
-
terra
Durante a década de 1980 um pequeno mas significativo número de teses e
dissertações das ciências humanas publicadas nas Universidades brasileiras
continuavam sendo pautadas por uma concepção que via a história como um processo
contínuo, retilíneo, linear, causal, inteligível por um modo racional.
234
É essa
concepção
de história que até hoje continua a figurar também em alguns livros
didáticos utilizados nas escolas do país. Essa realidade pode, em parte, explicar o
número de publicações nas décadas de 80 e 90 que, não obstante as novas
perspectivas de análise que estavam surgindo, continuavam a utilizar essa visão
historiográfica sobre os acontecimentos do Contestado.
No entanto, é justamente na cada de 80, num processo que iniciou nos anos
70, que a historiografia nacional brasileira passou a ser dominada por uma p
ostura
marxista de entendimento da história. Era o materialismo histórico que desde os
trabalhos de Caio Prado Jr. ou Nelson Werneck Sodré vinha se colocando como o
modelo teórico mais adequado e completo para dar conta das realidades nacional e
internacio
nal. Em menor escala havia os que seguiam a tradição da escola dos
Annales e apoiavam-se em uma vertente econômico-social, trabalhando com marcos
temporais de longa e média duração.
235
Sobre o Contestado foram produzidos alguns trabalhos sob influência da
releitura do marxismo feita por intelectuais como Antônio Gramsci. Um exemplo é a
dissertação de Marli Auras
236
defendida em 1983 e posteriormente transformada em
livro. O trabalho de Auras é baseado na teoria Gramsciniana da ideologia como
visão de mundo normatizadora da ação do homem (como foi o caso da representação
233
THOMÉ, Nilson.
Guerra Civil em Caçador
. Caçador : FEARPE, 1984, p. 05
234
PESAVENTO, Sandra Jatahy.
Op. cit
., p.11
235
PESAVENTO, Sandra Jatahy.
Op. cit
., p.11
236
AURAS, Marli.
Op. cit.
(1995).
112
religiosa trabalhada pelos sertanejos) e do conceito de hegemonia como
capacidade de direção e domínio, toda relação de hegemonia é, necessariamente,
uma relação pedagógica . Tem como fio condutor a organização dos sertanejos que
Marli Auras considera ser a especificidade pedagógica da Guerra do Contestado, ou
seja, o momento de criação da visão de mundo norteadora do movimento rebelde
a construção da irmandade
momento aglutinador de considerável número de
sertanejo
s .
237
O discurso de Auras, evidentemente, traz novos elementos para a
compreensão do movimento dos sertanejos. Esse novo olhar somado a toda
experiência dos sociólogos permite a ela contestar visões anteriores, no entanto,
algumas idéias permanecem, como esta: Toda essa gente passou a compor,
inicialmente, uma massa humana errante, desagregada (pela constituição dos
fechados mecanismos responsáveis pela sua crescente marginalização), (...) .
238
Desta forma é possível a Auras considerar os sertanejos ainda como incapazes de
perceber os mecanismos econômicos, políticos e sociais que estavam transformando
toda a realidade vivenciada por eles e explicar isso como sendo resultado do
isolamento e da indigência material e teórica concretamente vigentes na região.
Assim, mesmo negando as teorias de fanatismo , aberração ou loucura coletiva
Auras mantém a idéia de que os sertanejos eram vítimas do isolamento que os
distanciava de um esclarecimento, uma consciência social que estaria ao alcance
dos que viviam nos grandes centros urbanos, ficando à mercê dos mecanismos que
avançavam pelo interior trazendo desagregação e tragédia.
Todavia, a visão de Auras permite uma mudança de perspectiva sobre o que
aconteceu na região do Contestado, ao considerar que os sertanejos eram vítimas
desagregadas e desorientadas apenas no início, pois que os sertanejos teriam
trabalhado no sentido de construir sua própria visão de mundo
a ideologia segundo
Gramsci
para lutar contra a ordem que os marginalizava, a ordem dos
vencedores .
239
237
AURAS, Marli. (1995).
Op. cit
., contra
-
capa.
238
AURAS, Marli. (1995).
Op. cit
., p. 45
239
AURAS, Marli. (1995).
Op. cit
., p. 16
113
A autora pretende mostrar como a repressão externa do Exército destrói a
irmandade esgotando o movimento justamente na sua capacidade de aglutinar e ir em
frente, impossibilitando a continuidade das relações paternais e igualitárias entre os
sertanejos
práticas consensuais que geravam coesão. É nesse momento, segundo
Auras, que o pedagógico existente na relação entre os sertanejos no interior dos
redutos é suplantado pela coerção.
240
Ela tenta, enfim, reconstruir o q
ue, a seu ver, é a
história dos vencidos através de uma progressão no sentido de organização dos
sertanejos. Ou seja, quis recompor a história de um movimento social que não
descambou para o banditismo como quer a literatura burguesa .
Na área dos estudos históricos não pesquisas que tratem diretamente dos
sertanejos envolvidos na Guerra Sertaneja do Contestado como trabalhadores. No
entanto, há a dissertação de Samir Ribeiro de Jesus que procura compreender a
formação do caboclo do Planalto Serrano como trabalhador, resultado das mudanças
das formas de produção da existência humana. Faz isso percorrendo, primeiro, um
espaço temporal que vai do século XVIII à segunda metade do século XX,
demonstrando a formação do caboclo peão e roceiro numa realidade social marcada
por relações de dominação patrimonialista. Num segundo momento, abrange o
período que vai da década de 1950 à década de 1970 quando o caboclo transforma-
se em trabalhador assalariado nas serrarias, numa realidade social marcada por
relaçõe
s produtivas capitalistas no campo.
(...), os caboclos (...), formaram a grande parte da população
despossuída, isto é, sem os meios de produção (...). essa
população foi, dessa forma, transformada em força de
trabalho, em fator de produção , como instrumento gerador
de riqueza para os detentores da hegemonia, num processo
interessante.
241
Segundo Ribeiro de Jesus, chama-se caboclo serrano ao tipo humano
originariamente habitante da chamada Região Serrana de Santa Catarina. Ele não
240
AURAS, Marli. (1995).
Op. cit
., p. 17
241
JESUS, Samir Ribeiro de. A formação do trabalhador catarinense: o caso do caboclo no Planalto
Serrano
. Dissertação de mestrado, Pós-graduação em História. Florianópolis: Universidade Federal de
Santa Catarina, 1991, p. 14
114
discute o uso deste termo, tanto que o escolhe para designar seu objeto de estudo,
no entanto, tece uma crítica ao modo como o caboclo foi definido por outros
pesquisadores e escritores do Contestado, não apenas como um tipo humano, mas
sobretudo, como um tipo social. Para o autor, os termos empregados para caracterizar
os caboclos são muitas vezes a-históricos e fora do contexto social e acabam se
transformando em manipulações conscientes por parte de políticos espertos e por
acadêmicos caçadores de prestígio e
status
inte
lectual.
Assim, esse trabalhador despossuído torna
-
se muito mais uma
realidade mistificada, abstrata, do que uma construção, um
produto das relações sociais, em seu conjunto.
(...), e fez-se um tipo humano e social analfabeto , iletrado ,
marginal , fatalista , lerdo como boi carreiro e aceitador
passivo das coisas que vinham , sejam elas boas ou más, não
necessariamente por vontade própria, mas por um processo
social e historicamente determinado.
242
Esse
homem trabalhador não encontra, na maioria das vezes, a tão sonhada
estabilidade de emprego ou ocupação. Acaba engrossando as favelas das cidades da
região, vivendo de bicos e trabalhos temporários, aceitam qualquer ocupação e
quando não a encontram acabam se tornando autônomos catadores de lixo. Alguns se
cansam da realidade enfrentada nas periferias e resolvem se filiar aos movimentos
sociais
243
que hoje buscam espaço na sociedade e cada vez mais procuram mostrar
sua força na reivindicação de direitos básicos e reparação de injustiças.
Essa imagem dos sertanejos do Contestado como posseiros espoliados nas
suas terras que imprimiram uma luta contra os mecanismos de opressão havia sido
criada por Matos Costa, oficial do Exército que tentou estabelecer contato com os
sertanejos para compreender os motivos pelos quais aquelas pessoas se uniram
renunciando aos bens materiais e incomodavam tanta gente. Observador atento,
Matos Costa logo percebeu a realidade complexa que se descortinava diante de seus
242
JESUS, Samir Ribeiro de.
O
p. cit.,
p. 10
243
Atualmente existem movimentos como o Movimento dos Sem Terra, Movimento dos Sem Teto e
Movimento dos Atingidos por Barragens, entre outros. Para uma análise da eclosão destes movimentos
no Oeste de Santa Catarina ver POLI, Odilon.
Leituras
em movimentos sociais
. Chapecó: Grifos, 1999
115
olhos. De sua percepção uma frase acabou ficando para a história sendo
constantemente reproduzidas nos textos e utilizada como epígrafe de diversos
trabalhos:
A revolta do Contestado é apenas uma insurreição de
sertanejos espoliados nas suas terras, nos seus direitos e na
sua segurança. A questão do Contestado se desfaz com um
pouco de instrução e o suficiente de justiça, como um duplo
produto que é da violência que revolta e da ignorância que
não sabe outro meio de defende o seu direito
.
244
Essa imagem acabou sendo utilizada na campanha da Amim ao Governo do
Estado em 1982, a luta dos pequenos simbolizando a força dos catarinenses na busca
por justiça e pela defesa do território catarinense. Além disso, uma das preocupações
de Amim e de um grupo de intelectuais ligado à classe dirigente era sem dúvida a
emergê
ncia dos movimentos de luta pela terra desde o final dos anos 70. O abandono
do Estado era, para intelectuais como Peluso Júnior, a principal causa do
agravamento de conflitos no extremo oeste. Era preciso se aproximar destes sujeitos
que principiavam a se
unir em torno de uma luta por objetivos comuns, e a herança do
Contestado foi facilmente imbricada a esse processo. Mas, ironicamente, ela também
foi utilizada pelo MST
Movimento dos Sem Terra
para criar uma identidade que
agregasse a todos aqueles que quisessem integrar o grupo e os motivasse a participar
das atividades de luta.
O paradoxo maior desta utilização da herança do Contestado consiste em que
os camponeses sem terra do Oeste Catarinense
245
eram na sua maioria descendentes
de colonos , ou seja, de imigrantes alemães e italianos. Como então criar a
identificação de descendentes de europeus com a herança da luta realizada por
caboclos , entre outros motivos, contra a crescente valorização da figura do
imigrante como o trabalhador portador de progresso e prosperidade, aquele
considerado mais digno que eles de possuir a terra, os ervais, as serrarias, ou seja, a
244
Matos Costa citado por QUEIROZ, Maurício Vinhas de.
Op. cit., p. 161.
245
O oeste catarinense aparece na história de estruturação do MST como um espaço importante de
gestão da organização dos camponeses sem terra. Foi no Extremo Oeste do Estado em 1980, no
116
propriedade? A realização desta proeza coube aos setores progressistas da Igreja
Católica que em fins dos anos 70 passam a criticar o Governo militar e voltam suas
atenções para os pobres.
Embora a imagem do colono esteja relacionada à vocação pelo trabalho,
progresso, civilização, durante o processo de colonização alguns colonos não
progridem como deveriam e passam a ser denominados maus colonos , sofrendo
gradativamente um processo de exclusão. Mas, em que momento eles revertem essa
situação e passam a lutar por terras? Segundo Schwade é justamente na organização
coletiva do grupo que aparece como fundamental a ação da Igreja Progr
essista.
246
O
que faz com que um camponês passe a militante na luta pela terra ? Primeiro a
existência de uma religiosidade preexistente que aparece como traço delimitador da
comunidade ; em segundo lugar, a própria Igreja apresentou nesta época uma
tran
sformação doutrinária de modo ao religioso servir como um elemento aglutinador
na luta. E a Igreja voltada para os pobres, adotando os preceitos da Teologia da
Libertação é que permitirá a associação da luta pela terra ao exercício da
religiosidade.
247
As concepções da Teologia da Libertação
248
quanto ao uso e direito à terra,
onde se aponta que Deus destinou a terra e tudo o que nela contém para todos os
homens e povos , são veiculadas especialmente através das pastorais da Comissão
Pastoral da Terra (CPT).
249
A CPT, segundo Flores et al., se nutre de um saber
milenar no uso de imagens, rituais, oralidades, o teatro, o canto, a reza, para os
município de Campo Erê que ocorreu a primeira invasão de terras feita autonomamente por um grupo
de camponeses sem
-
terra da região. O MST só viria a ser criado em 1985.
246
SCHWADE, Elisete. A luta pela terra: sentidos da participação. In: Cadernos do CEOM
Centro
de Memória do Oeste de Santa Catarina. Chapecó: Argos; n.09, 1999, p47
247
SCHWADE, Elisete.
In:
Op. cit
., p. 52
248
Ala do cristianismo que tem por princípio conscientizar as populações desfavorecidas de sua
realidade, através de uma ação político-pedagógica. Apregoa a libertação e salvação dos homens aqui
na terra, questionando e denunciando os problema da realidade social. Sobre a Teologia da Libertação
ler entre outros: DELLA CAVA, Ralph. Política do Vaticano 1978
1990
Visão Geral. Revista
Eclesiástica Brasileira. V. 50, fasc. 200, dez/1990, p. 986-992; SOUZA, Marcelo de Barros.
Espiritualidade da Terra.
Revista Eclesiástica Brasileira
. V.48, fasc.190, jun/1988, p.353/367
249
A CPT se define como entidade de serviços, animando outras entidades a assumir a caminhada
dos trabalhadores rurais, prestando-lhes assessoria pastoral, teológica, metodológica, jurídica, política,
sindical e sociológica . FLORES, Maria Bernadete R., SERPA, Élio C., CAMPIGOTO, J
osé Adilson
& SOUZA, Marcos A. de. Imagem e pedagogia, da cruz de cedro renasce uma cidade. In:
Revista
Brasileira de História
, São Paulo, V.16, nº31e32, 1996, p. 210
117
ensinamentos de suas mensagens. Visando alcançar e doutrinar, por isso mesmo,
até populações pouco letradas.
Uma das estratégias pedagógicas-
organizativas,
conscientizadoras e celebrativas da CPT/SC, são as Romarias
da Terra que acontecem a cada ano, reunindo em torno da
luta pela terra, milhares de seguidores. São pequenos
agricultores, trabalhadores sem-terra, agentes pas
torais,
gente de todas as idades, homens e mulheres, católicos, em
sua maioria, gente pobre ou solidária à pobreza, que atendem
ao convite espalhado pelos padres e pastores nas suas
comunidades
.
250
É importante ressaltar o fato de que a primeira Romaria da Terra, em 1986, se
realizou em Taquaruçu, pequena localidade onde aconteceu o primeiro ajuntamento
em Torno do Monge José Maria. Cerca de 20.000 pessoas, segundo a imprensa,
251
se
reuniram para celebrar a caminhada de luta e de do homem do campo e da cida
de,
celebrar a luta dos caboclos do Contestado. A representação, em forma de
via
-
sacra
, era composta por quatro estações cada uma representando episódios da luta do
Contestado e das lutas atuais pela terra. A utilização da memória do Contestado,
evocando
imagens do cristianismo com representações da luta pela terra no campo,
serviu para informar e formar a consciência política dos trabalhadores, reunindo
todos, com base na idéia de identidade em torno de uma referência histórica, tida
como coletiva, dada
pelas condições de vida na terra
.
252
Mas, como visto na introdução desta monografia essa referência histórica
comum é apenas uma pretensão, o trabalho de Arlene Renk mostrou a oposição étnica
entre os de origem e os brasileiros . Essa contradição aparece nos discursos da
Romaria da Terra através da diferença de representação de colonos e caboclos ,
aqueles são tidos como homens reais e presentes, estes como uma categoria mítica.
Os caboclos representariam simbolicamente a luta dos colonos dos anos 80 pelo
direito a terra, assim, como memória e exemplo de luta poderiam os colonos, na sua
grande maioria de origem , se identificar com os brasileiros que um dia lutaram
250
FLORES, Maria Bernadete R., et al. Imagem e pedagogia, da cruz de cedro renasce uma c
idade.
In:
O
p. cit., p.208
251
Jornal
O Estado
, Florianópolis, 16.06.86, p.1
252
FLORES, et. al.
(1996). Op. cit., p. 213
118
até a morte por justiça social. Através do discurso religioso foi possível a
ident
ificação de uma parcela de colonos inseridos num determinado contexto de
desprestígio e exclusão com seus outros . Fato que as Oligarquias também tentaram
realizar com toda a população do Estado e que não alcançou os objetivos pretendidos.
3.2.
Os vencidos
e excluídos são postos a lembrar e falar: as
novas tendências historiográficas.
No início dos anos 90, em meio às visões marxista e da corrente dos Annales
ocorre uma verdadeira virada no âmbito dos estudos historiográficos no Brasil. Foi
nessa época que a chamada crise dos paradigmas explicativos da realidade, a qual
vinha sacudindo as ciências humanas desde a década de 70 no panorama
internacional, leva boa parte dos historiadores brasileiros a questionar as formas de
fazer a história até então usadas no país. Novas tendências de abordar o passado vêm
dar novo fôlego à pesquisa histórica através da chamada Nova História Cultural como
o faz Lynn Hunt.
253
Nova por se diferenciar de uma História da Cultura que se
caracteriza por estudar as grandes correntes de idéias e seus nomes mais expressivos;
Nova por propor uma outra forma de trabalhar a cultura que passa a ser entendida,
pensada como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens
para explicar o mundo
254
. A chamada Nova História Cultural abrange tendências tão
distintas que é difícil definí-la em poucas palavras, no entanto, isso demonstra como
os historiadores estão atentos hoje em dia para a complexidade das experiências
humanas e dos fenômenos sociais e o quanto modelos explicativos globais e
generalizantes não o conta de todas as suas múltiplas perspectivas, das suas
múltiplas vozes, a Heteroglossia de Peter Burke.
255
No Brasil é a partir da década de 80 que começam a aparecer trabalhos
acadêmicos pautados na chamada Nova História Cultural, numa perspectiva que se
preocupa mais com uma análise do que com a simples narrativa de acontecimentos,
253
HUNT, Lynn.(org.).
A nova história cultural
. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
254
PESAVENTO, Sandra Jatahy.
Op. cit
., p. 15
255
BURKE, Peter
.
A Escrita da História. São Paulo: UNESP, 1992. P. 7-37, neste texto Peter Burke
apresenta um esquema para diferenciar a
Nova História
da
História Tradicional.
119
privilegiando a experiência de pessoas comuns, com o uso de fontes as mais
variadas que anteriormente nem sempre eram levadas em considera
ção. Surgem então
trabalhos que procuram mostrar os grupos sociais que quase não aparecem na versão
tradicional dos documentos oficiais, relegados a papéis sem importância no grande
espetáculo do progresso do Capital. Trabalhos que mostram a participação d
estes
grupos na sociedade e como funcionaram e ainda funcionam os mecanismos da sua
exclusão.
A Nova História Cultural não figura sozinha no contexto atual de
modificações epistemológicas, podemos citar também os chamados marxistas não-
ortodoxos que postularam uma crítica tanto a ortodoxia da corrente dos Annales
quanto a postura mecanicista de análise do marxismo. Dentre os marxistas não-
ortodoxos se destacam os trabalhos de Edward P. Thompson, Georges Rudé e
Raymond Williams, cuja postura amplia a análise classista, evidenciando a maior
preocupação daquela que pode ser denominada História Social com os chamados
subalternos, mas com uma série de inovações, que apontavam exatamente para o
resgate dos significados que os homens conferiam a si próprios e ao
mundo
.
256
Não
se pode esquecer também que a própria Nova História Cultural é grande devedora
desta corrente histórica.
Os novos trabalhos que surgem na década de 1990, principalmente no interior
da academia, sobre o Contestado começam a ser influenciados por estas novas
perspectivas historiográficas. De um modo geral, estes trabalhos se diferenciam pelo
cuidado com que seus autores utilizam as expressões que freqüentemente apareciam
nos trabalhos anteriores. Até a nomeação caboclo quando utilizada é justificada e
256
Entre outras inovações importantes na teoria, metodologia e temática da história, E. P. Thom
pson
com o seu clássico A formação da classe trabalhadora na Inglaterra. (3 vol. Rio de Janeiro: Paz e
terra, 1987), alargou o conceito de classe, defendendo que esta categoria deveria ser apreciada no seu
fazer
-se, e este implicava observar modos de vida e valores, implicava entrar nos caminhos da
construção de uma cultura de classe. A contribuição de George Rudé é importante não por seu
recorte classista, mas principalmente por seus estudos sobre a multidão e seu comportamento, ver
RUDÉ, George. A multidão na história: Estudo dos movimentos populares na França e na Inglaterra,
1730-1848. Trad. Waltensir Dutra, Rio de Janeiro: Campus, 1991. Enquanto Raymond Willians pôs
em foco a construção da cultura na Inglaterra, sendo a cultura considerada como fator de mudança
social.
Ver WILLIAMS, Raymond.
Cultura
. São Paulo: Paz e Terra, 1992, _______. O campo e a
cidade
. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
120
considerada no interior de determinados contextos. Roberto Iunskovski,
257
por
exemplo, esclarece o uso da expressão caboclo para identificá-los como
pessoas
oriundas das áreas rurais do planalto serrano catarinense, descendentes de antigos
peões e
índios .
Não estamos desconsiderando que o termo caboclo é
carregado de conotação pejorativa, utilizado para designar
indivíduos e grupos sociais tidos como atrasados, ignorantes
ou matutos do interior
.
(...)
Diante das limitações dos termos optamos por utilizar a
expressão caboclos, pois entendemos que ela pode ser
reafirmada entre essas populações e em toda a sociedade
catarinense, numa referência explícita aos caboclos que
integraram os redutos do Contestado e que, além de muitos
terem sido assassinados, todos tiveram sua memória e
identidade completamente comprometidas
.
258
Além disso, na sua maioria, estes autores, ao procurar dar voz aos sertanejos
utilizam os depoimentos que coletaram durante as pesquisas de campo para compor
suas narrativas através da transcrição de trechos das entrevistas. Assim, os depoentes
figuram não como fontes mas também como co-autores destes trabalhos,
denotando todo o comprometimento dessas novas perspectivas de análise com uma
história feita por todos. As memórias e histórias contadas pelos depoentes acabam
constituindo o principal ponto de partida para novas interpretações e compreensões
sobre o fenômeno social que agitou a região contestada entre os anos de 1912 e 1916.
O livro de Delmir Valentini,
259
por exemplo, é uma investigação histórica
feita com descendentes de sertanejos que estiveram nos redutos e também com alguns
257
IUNSKOVSKI, Roberto. Migrantes caboclos em Florianópolis: trajetória de uma experiência
religiosa
. Flor
ianópolis. Dissertação de mestrado em História. Universidade Federal de Santa Catarina,
2002. Iunskovski teve por objetivo investigar a história religiosa de caboclos que migraram da região
serrana de Santa Catarina para Florianópolis, procurando verificar as ligações da experiência religiosa
dos migrantes com a prática religiosa presente no Contestado. Chegou a conclusão que (...)
os
caboclos migrantes, praticamente ignoram os acontecimentos relativos à guerra e a mobilização
social do Contestado, ou reproduzem a posição oficial, que definia os redutários como fanáticos e
desordeiros
(p. 147).
258
IUNSKOVSKI, Roberto.
Op. cit
., pp. 04
-05
259
VALENTINI, Delmir José. Da Cidade Santa à Corte Celeste: memórias de sertanejos e a Guerra
do Contestado
. Caçador: UnC,
1998
121
remanescentes que vivenciaram o interior dos quadros-santos . O que o move é o
desejo de saber o que essas pessoas lembram e dizem sobre o episódio em que foram
considerados vencidos, objetivando assim dar voz
260
aos sertanejos e ofertar a eles
uma oportunidade de reviver na memória a Guerra do Contestado.
Entender o que dizem (...), ajuda-nos a entender a forma
como o tema foi tratado pela imprensa diária, pela
historiografia, pelo cinema, enfim, pela literatura em geral. A
assimilação feita, especialmente, pelos remanescentes e
descendentes, revela o modo preconceituoso como o tema foi
tratado.
261
No entanto, em certo momento, Valentini se aproxima da visão de Oswaldo
Cabral ao considerar os fatores que delinearam todo um processo histórico peculiar,
aos quais, por fim, foi adicionado o elemento aglutinador
o fator religioso
por
muitos considerado como a única causa da revolta. Assim, é possível afirmar que ele
acaba misturando visões antigas com novos olhares ao considerar a rebelião uma
tentativa de fazer valer direitos que não eram respeitados. Além disso, o trabalho do
historiador com a memória produzida sobre os fatos ocorridos na região cont
estada
revela o quão dinâmica é a relação história-memória, impressa no intenso e constante
processo de reelaboração dos significados do que ocorreu no passado em relação às
novas experiências vivenciadas no presente.
Assim, a partir dos depoimentos atuais é possível perceber uma certa culpa
pelo derramamento de sangue que envolveu a população naquela época. E nessa
culpa, de certa forma, está impressa o quanto de assimilação tiveram as atribuições de
termos como pelados , jagunços , fanáticos , entre outros, que lhes são feitas na
atualidade. Para Valentini estes adjetivos de certa maneira evoluíram, pois os
primeiros escritos sobre a campanha do Contestado denominavam os sertanejos
como incautos , desordeiros , impatrióticos , facínoras , etc .
262
260
O trabalho de Valentini insere-se no que se chama hoje, de Nova História Cultural, observando-
se
fortes influencias das definições de Lynn Hunt.
261
VALENTINI, Delmir José.
Op. cit.,
p. 15
262
VALENTINI, Delmir José.
Op. cit.,
p. 184
122
Al
ém disso e em meio a sentimentos de culpa, também havia muito receio
em externar sua relação de descendência com os jagunços , o que levou muitos
sertanejos a manter silêncio sobre o que sabiam. Poe outro lado, o trabalho de
Valentini mostra como
Hoje, os descendentes não se envergonham de dizer que o
avô foi jagunço. Não se trata de fazer o resgate do sertanejo
enquanto herói, tecendo-lhe uma apologia pelos seus feitos.
Trata
-se, simplesmente, de entendê-lo dentro de determinado
contexto histórico destacando o sentido que tal compreensão
tem para a historiografia.
263
Além deste campo de pesquisa que se abre com a análise da relação entre
história e memória, outros trabalhos são produzidos dentro das novas perspectivas da
História Cultural utilizando um de seus conceitos mais caros, o de Imaginário.
Existem pelo menos dois trabalhos que procuraram lançar novos olhares sobre o tema
do Contestado tentando, pela análise do imaginário popular, produzir novas
interpretações através de aspectos que foram desconsiderados pelos estudos
anteriores.
O primeiro deles é de autoria de Ivone Gallo. A autora defende que é preciso
buscar respostas na tradição judaico-cristã a respeito da idéia de messias e como esta
idéia da vinda do escolhido vinculada com a idéia de revolução se constitui no
imaginário popular. Para ela o conjunto das observações, opiniões, análises,
conceitos e preconceitos em torno da cultura popular, na época do Contestado,
ajuda
-nos a compreender melhor uma das nuanças daquele conflito .
264
Além di
sso,
através do livro blico do Apocalipse, poderia ser resgatada parte importante do
imaginário popular em torno de um mundo diferente e verificar como os rebeldes
aplicaram, na sua realidade, os ensinamentos do livro. Para isso ela procurou se ater
às significações implícitas das palavras, sendo a expressão do pensamento por
metáforas e gestos simbólicos uma característica importante do discurso dessas
pessoas.
263
VALENTINI, Delmi
r José.
Op. cit.,
p. 185
264
GALLO, Ivone
. Op. cit
., p. 22
123
Outro trabalho que explora o imaginário dos sertanejos é o de Márcia
Espig, para ela o imaginário presente no movimento do Contestado é desafiador para
os estudiosos e não é mais suficiente classificá-lo como mera curiosidade ou
aberração e o avanço se faz necessário. Isso aconteceu, por exemplo, com a presença
do livro História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França que embora tenha
sido anotada por grande parte dos escritores que se detiveram sobre o Contestado, o
estranhamento frente a esta aparição motivou comentários que a desconsideravam
enquanto importante manifestação cultural do
grupo d
e rebeldes.
Cumpre
-
nos, agora ,
tentar entender melhor o como e o porquê da aceitação da obra em questão no
imaginário local. Por algum motivo, a História de Carlos Magno criou significações
para aquela população, e veio ao encontro de sua visão de mundo, ajudando a
compor suas opiniões e também sua realidade.
265
Márcia Espig, ao tratar dos significados da leitura daquele livro no imaginário
dos pelados , tenta trazer novos elementos para suplantar certas versões da
historiografia do Contestado e conclui que Grande parte das explicações acerca
deste aspecto segue de perto uma tendência comum a boa parte dos trabalhos que
estudam movimentos messiânicos em geral: a propensão a tratar de maneira
superficial e preconceituosa a subjetividade dos atores sociais, reduzidos tão
somente a fanáticos .
266
A subjetividade surge aqui como elemento importante nas preocupações do
historiador, pois levar em consideração o indivíduo também significa estar atento
para os modos como os grupos humanos aprendem a sentir e a pensar, ou seja, a
traduzir o mundo em razões e sentimentos.
267
Sem esse aspecto qualquer tentativa de
valorizar as ações de todos como agentes sociais da história se torna incompleta. Foi,
em muitos casos, a falta desta perspectiva aliada a um etnocentrismo prec
onceituoso
manifestado por grande parte dos autores, que gerou a dificuldade em respeitar uma
visão de mundo tão distinta de sua própria e teve como conseqüências a
265
ESPIG, Márcia Janete.
A presença da Gesta Carolíngia no movimento do Contestado
. Porto Alegre.
Dissertação de Mestrado em História, UFRGS, 1998, p. 09
266
ESPIG, Márcia Janete.
Op. cit
., p. 22
267
PESA
VENTO, Sandra Jatahy.
Op. cit
., p. 57
124
caracterização dos rebeldes como fanáticos , ignorantes , criminosos ou
mesmo loucos .
No interior da chamada nova História Social produzida pelos historiadores
marxistas não-ortodoxos podemos situar o trabalho do Professor Paulo Pinheiro
Machado que tem como objetivo fazer um levantamento e análise das origens sociais
e da formação e atuação política das lideranças sertanejas na Guerra do Contestado,
principalmente da fase final do conflito (Julho/1914 à Janeiro/1916). A escolha deste
período tem sua explicação por ser possível claramente identificar a emergência de
lideranças de briga no comando geral das Cidades Santas e, da mesma maneira,
uma progressiva diminuição do poder político das virgens e demais lideranças
exclusivamente religiosas.
Para este autor paralelamente ao discurso religioso da Guerra Santa dos
pelados contra os peludos , na defesa da Monarquia Celeste e da Santa
Religião , os sertanejos acabaram demonstrando, tanto por discursos como por atos,
que desenvolveram uma nítida consciência das condições sociais e políticas de sua
marginalização. Ou seja, se tratava de uma guerra entre ricos e pobres, que lutavam
contra o governo que defendia os interesses dos endinheirados, dos Coronéis e dos
estrangeiros. Estas duas faces do movimento do Contestado (a religiosa e a crítico-
social) não foram excludentes, nem mesmo devemos separá-las para efeito
didático
.
268
Como seu objetivo é aprofundar um levantamento e uma avaliação do
pensamento político das lideranças sertanejas considera que o conceito de
messianismo, tal como é empregado por Maria Isaura Pereira de Que
iroz, é pouco útil
para o estudo deste movimento social. Em contra partida o autor parte para o estudo
de movimentos sociais urbanos e rurais em sociedades pré-industriais, através das
importantes contribuições de George Rudé, Eric Hobsbawm e Edward Thompson.
Este trabalho é importante para a historiografia do Contestado por reconhecer
que os pelados desenvolveram uma linguagem própria, entendendo esta como um
conjunto de símbolos e representações que possuíam um significado muito peculiar.
Além do mais, segundo Machado A linguagem sertaneja não se limitava ao
268
MACHADO, Paulo Pinheiro.
Op. Cit
., p. 26
125
vocabulário rebelde de Guerra Santa , mas estava presente nos símbolos
externos (bandeiras, corte de cabelo rente, fitas nos chapéus), nas práticas de
combate (com a valorização do entrevero), nas formas e nos meios de vida dos
Quadros Santos .
269
Esta discussão empreendida pelo autor permite que ele
discorde da avaliação de Vinhas de Queiroz, que defende que o movimento do
Contestado foi uma revolta alienada .
270
Pois se aceitarmos que o movimento do
s
sertanejos identificou, desde o início, a marginalização crescente dos caboclos e da
gente de cor , ao passo que cresciam os privilégios e estímulos à europeização da
região, não há como ver uma recusa do mundo, uma recusa que leva ao alheamento
e isolamento em relação ao restante da sociedade. Para Machado esse tipo de
confusão se devido ao fato de levar em conta na análise as características
milenares e messiânicas como principais, enquanto elas deverão ser consideradas
apenas como alguns dos aspectos a serem avaliados no movimento do Contestado.
Afinal,
As lideranças rebeldes construíram um discurso híbrido, que
envolvia as expectativas milenares e religiosas fundidas ao
descontentamento político e a rebelião social. Um conjunto
de fatores econômicos, sociais e culturais, concorreram para
o desencadeamento deste tipo de revolta e para a formulação
de um corpo próprio do projeto rebelde.
271
Existem também trabalhos recentes produzidos pela antropologia que tem
como objeto não a Guerra Sertaneja do Contestado como acontecimento histórico,
mas sim os grupos humanos profundamente marcados ou pela própria experiência nas
cidades-santas ou por serem identificados com aqueles que formaram os redutos
e/ou viveram neles.
269
O próprio autor esclarece que emprega a definição de linguagem do movimento para avaliar a
especificidade e difusão do grupo rebelde, principalmente sua capacidade de agregar outros grupos
sociais de uma extensa região. Não sendo seu objetivo propor uma discussão acerca da linguagem
política do movimento rebelde, nos mesmos termos que Lynn Hunt fez sobre a Revolução Francesa.
Lynn Hunt, The rhetoric of revolution In
Poli
tics, culture and class in the French Revolution
.
Berkeley : University of California Press, 1984
270
QUEIROZ, Maurício Vinhas de.
Op. Cit
., p. 290.
271
MACHADO, Paulo Pinheiro.
Op. Cit
., p. 335
126
Pedro Martins,
272
por exemplo, faz um resgate etnográfico da comunidade
que hoje se diz cafuza e ocupa uma área no interior da Reserva Indígena José
Boiteux
Santa Catarina. Um grupo de caboclos vindo da perseguição imposta aos
vencidos da Guerra do Contestado embrenha-se no sertão e vivem isolados até a
década de 1940, quando novamente atingidos pelo processo de colonização do Vale
do Itajaí são removidos para a Reserva.
(...) são nascidos de uma crise, da instauração de uma nova
ordem, são fruto de uma violência praticada conscientemente.
Os cafuzos eram os pobres entre os pobres. Uma comunidade
desassistida mas sonhadora, que insistia em sobreviver, (...)
como grupo.
273
O trabalho de Martins é diferente dos demais pelo fato de que, ao descrever a
formação da população do Planalto Serrano e descrever a constituição da população
nas primeiras décadas do século XX, é ressaltada a presença de indígenas e negros.
Segundo ele, muita gente, negros principalmente, teria se embrenhado na floresta
durante o processo de ocupação da região
(...) vivendo com independência em relação às fazendas e aos
patrões. Esse contingente tornou-se sujeito de um modo de
vida próprio, representativo da cultura cabocla. Tinha como
propósito viver em liberdade e o fazia nas condições mais
precárias de existê
ncia.
274
Além disso, ao considerar que o grupo de cafuzos era descendente em sua
maioria de Jesuíno Dias de Oliveira, definido como negro puro e de Antônia
Lotéria de Oliveira, índia pega no mato a cachorro , reafirma que foi muito comum
o apresamento de indígenas nesta região também durante o século XVIII e início do
XIX, considerando, pois, não os guarani mas também os Xokleng e os Kaingang
nesse processo. A constituição étnica desse grupo, curiosamente, pode servir para
272
MARTINS, Pedro.
Anjos de cara suja
. Petrópolis: Vozes, 1995
273
MARTINS, Pedro.
Op. cit
., pp. 11
-
12
274
MARTINS, Pedro.
Op. cit
., p. 22
127
futuras discussões em torno da problemática da construção de identidades ou
identificações. Pois, além da positividade em assumir e tentar valorizar uma
ascendência que costumeiramente é encoberta ou mesmo esquecida, traz à tona a
questão de que grande parte dos sertanejos da região também podem vir a reivindicar
uma origem cafuza e o pouco da terra que lhes cabe dentro da Reserva Indígena. É
o jogo das identidades que não cessa. A cada novo dia, de acordo com a necessidade
e os interesses, ele pode mudar e transformar o que era uma forma de sobreviver de
um pequeno grupo de pessoas
e poderia vir a representar um caminho aberto para a
aceitação das diferenças
em um problema social para uns ou em uma maneira de
conseguir privilégios para outros.
Além desse trabalho de Pedro Martins especificamente sobre a constituição
identitária de um grupo de pessoas sobreviventes da Guerra Sertaneja do Contestado,
o trabalho, citado, do antropólogo Pe. Geraldo Locks que não trata diretamente
da questão mas que faz uma reflexão em torno da identidade social dos agricultores
brasileiros da pequena comunidade de São José do Cerrito, através da expressão
étnica. E é importante para a presente discussão por mostrar que, ao mesmo tempo
em que esses indivíduos se reconhecem como mestiços, uma veemente recusa da
categoria caboclo e toda sua carga de significados, sendo preferida a categoria
nativo no lugar daquela.
entre aqueles agricultores uma prática de redefinir novas identidades para
si próprios utilizando os mesmos discursos que os excluem ou tentam submetê-los a
um lugar social qualquer. São comuns, entre eles, os discursos de autovalorização
através do trabalho, identificando-se como pessoas que fazem de tudo e não recusam
serviço. Um claro exemplo de como as identidades dos chamados caboclos são
constituídas a partir do contato interétnico com os colonizadores, que estes
construíram a sua própria através do trabalho em contraposição ao modo de vida
caboclo , no qual viam preguiça, sujeira, desleixo, desorganização.
275
275
LOCKS, Geraldo. Op. cit., p. 53
128
Ao mesmo tempo em que é fácil para os agricultores brasileiros de São
José do Cerrito definir o que é o caboclo através do trabalho, é difícil pensar em
qual seria sua origem étnica.
Minha origem? [pensativa e séria] como? É brasileira. O
pessoal diz caboclo. Brasileiro é povo simples. Vive do
pesado. Quando a gente vai pra Lages, o pessoal diz: é
aquela caboclada! São lá do sítio. É ignorante, usa roupa que
não é da moda. É pessoa que não compreende. É da roça!
276
Locks mostra como a simples pergunta sobre a origem étnica gera uma
situação de constrangimento, envolta em sentimentos de desconfiança e insegurança.
Afinal nunca tiveram razões para se definirem etnicamente e a maior parte se
descreve com o termo brasileiro . No seu imaginário chamar alguém de caboclo
pode até ser uma ofensa. Por outro lado, Locks observa o que para ele é uma
insistência por parte dos pesquisados: a freqüente referência à ascendência indígena.
Expressões como minha avó foi pega a cachorro ou foi pego a cachorro no mato
são freqüentemente utilizadas para designar a origem indígena de familiares. Para
Locks há neste uso uma patente ambigüidade na autodescrição étnica formulada pelos
informantes. De um lado demarca o espaço geográfico e social ao demonstrar um
sentimento ufanista de apego a terra, de pertencimento ao lugar. De outro, a
expressão denotaria um certo desprezo ou desdenho pela origem étnica, pois
claramente ela insinuaria ser de fora da civilização, situação de expatriamento, de
exclusão social. Para Locks o fato ou a insistência em descrever a própria
descendência como sendo a mistura de índio-bugre com português, ou simplesmente
como raça abugrada , brasileiro , ou eu sou brasileira, é índio com branco , se
deve à presença no imaginário social e coletivo dessa população, do espírito de
resistência e do comportamento hostil e guerreiro do indígena nativo. Segundo o
autor, isso seria um atrativo e serviria como identificação com os grupos de Xokleng
e Kaingang aguerridos que por um bom tempo incomodaram os colonos .
276
LOCKS, Geraldo. Op. cit., p. 65.
Entrevista com Jardelina Maria da Cruz, 58 anos
129
Estas considerações de Locks resultam do fato de que ele aceita uma
versão tradicional da historiografia catarinense segundo a qual não teriam Xokleng e
Kaingang se cruzado com o branco colonizador, e de que os negros entraram na
composição étnica do povo catarinense em escala muito pequena.
277
foi visto no
segundo capítulo desta pesquisa como uma insistência em desconsiderar a
presença de indígenas na composição do povo catarinense. Quanto aos negros, essa
perspectiva praticamente menospreza a sua presença na formação da população
serrana. Essa idéia que vinha sendo reproduzida pelos discursos intelectuais
catarinenses desde o início do século XX, principalmente no interior do Instituto
Histórico e Geográfico Catarinense, continua aparecendo em diversos textos após os
anos 80. felizmente, ela começa a ser questionada.
278
Foi a aceitação dessa perspectiva que não permitiu a Locks perceber para onde
apontavam os depoimentos de seus entrevistados. Onde ele viu um discurso ambíguo
que expressava ao mesmo tempo sentimentos ufanistas de pertencimento ao lugar e
desdenho por sua origem étnica, eu vejo relatos produzidos pela memória familiar
dessas pessoas. Este tipo de memória, minha avó foi pega a cachorro no mato , está
muito presente em relatos que se espalham por todo o interior brasileiro e, segundo
Cristina Scheibe Wolff, essas memórias se encontram numa fronteira entre mito e
história, são representações sociais de que na origem de muitas famílias estariam
mulheres índias
279
. Essas memórias podem ser vistas como realidade cultural,
desconsiderá-las como sendo apenas mito, é continuar desconsiderando indígenas e
negros como sujeitos históricos, capazes de terem sido lembrados em memórias
familiares. E pior, é continuar fechando os caminhos para a investigação das
trajetórias desses sujeitos incorporados à sociedade branca , desvendar quais teriam
277
LOCKS, Geraldo. Op. cit., p. 52
278
Mas esta posição está sendo revista por pesquisas recentes como a de Paulo Pinheiro Machado
que constata um número significativo de pardos e pretos livres no levantamento feito pela Câmara
Municipal de Lages (que então compreendia todo o planalto serrano catarinense) no ano de 1833.
MACHADO, Paulo Pinheiro. Op. cit., p. 65
279
WOLFF. Cristina Scheibe. Índias e Brancos no sul do Brasil
reflexões sobre a memória e a
construção de identidades.
In: Op. cit
., p. 38
130
sido suas estratégias de sobrevivência e como se reapropriaram do espaço
organizado pelas técnicas da produção sociocultural.
280
Após recuperar estas memórias das presença indígena entre
nós, não simplesmente como perigos, entraves, ou como
grupos mantidos em áreas reservadas, mas como ascendentes
de muitos de nós
afinal, diz a história familiar que meus
filhos teriam uma tetravó índia pura, pega a laço, primeira
esposa de um tetravô fazendeiro de Biguaçu
como
interpretar todas as manobras que procuram fazer de Santa
Catarina um lugar europeu , povoado apenas de açorianos,
alemães, italianos, portugueses?
281
Contudo, apesar de alguns equívocos, dos quais ninguém está livre, estes
trabalhos da antropologia auxiliam na percepção de como os indivíduos se auto
definem enquanto grupo, como criam uma identificação em torno de suas
experiências passadas e presentes. Reforçando, assim, a idéia que está norteando todo
este
trabalho e que pretende levantar a discussão sobre as maneiras através das quais
os sujeitos ocupam sim certas posições sociais que são determinadas por discursos e
práticas cotidianas. Mas essa ocupação é transitória, pois essas posições são
constantemen
te recolocadas nos jogos das relações sociais e resignificadas.
Mostrando que apesar do assujeitamento existe também agenciamento .
282
E os
sujeitos mostram sim sua autonomia através das resistências, das revoltas, dos
confrontos, e também através dos jogos discursivos, da resignificação dos símbolos e
das nomeações. Desconsiderar esses aspectos significa deixar passar oportunidades
de descontrução dessas imagens tão arraigadas, que impedem a sociedade de trilhar
os caminhos da melhor convivência com a diferença. Caminhos tão presentes nos
discursos atuais de tolerância, fraternidade e coisas do gênero, mas tão ausente das
práticas e relações cotidianas.
Nas fronteiras entre mito e história já é possível encontrar discursos que
gritam aos quatros ventos que as raças puras são construções culturais tanto quanto
280
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer
. Petrópol
is: Vozes, 1994, p 41
281
WOLFF. Cristina Scheibe. Índias e Brancos no sul do Brasil
reflexões sobre a memória e a
construção de identidades.
In: Op. cit
., p. 48
282
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? .
In: Op. cit
., p. 104
131
criar identidades mestiças e atribuir a elas todos os problemas que a sociedade
não como resolver. É o jogo das identidades que permanece em aberto, alguém
lançou os dados e está esperando o pró
ximo lance.
Quem somos nós?
Semo puros brasilero
Português com africano,
Nosso sangue tem mistura
De alemão com intaiano
Mais de bugre e polonês
Banderante e paulistano
Nosso tino de guerrero
É gaúcho e casteiano
A esperteza e a finura
Vem da praia, o
barrigano,
O pionero, lá do norte
Paraná
curitibano
Cardeamo nossa raça
A chamada de serrano,
Que um dia se espaiará
No continente americano,
Quem durá, há de contá
Bem daqui um pocos ano!
283
283
FELIPPE, Euclid
es.
Op. cit
., p. 13
132
Considerações Finais
Os discursos forjados sobre o Contestado o se sobrepondo, reivindicando
verdades num jogo de poder que permeia a sociedade na sua relação com os
indivíduos. É no meio dessa efervescência discursiva e das disputas disciplinares que
surgem imagens e sujeitos, os quais servem como base para teses do verdadeiro e
fixam exemplos ou não de condutas, mobilizando ações e práticas sociais.
Seja como caboclos , fanáticos , jagunços , facínoras os brasileiros que
protagonizaram a Guerra do Contestado, acabaram sendo constituídos, num primeiro
momento, para servir como modelos que não deviam ser seguidos pelos indivíduos de
uma sociedade civilizada que primava pelo progresso. Surgem como os sujeitos de
discursos normalizadores do exército, e posteriormente das teses de criminologia que
utilizam disciplinas como a psicologia e a criminologia para enquadrá-los em seus
códigos de normas e condutas sociais.
Num outro momento, a partir da influência das teorias sociológicas eles são
vistos como aqueles que não se ajustam ao sistema, não correspondem ao que se
espera deles se tornando marginais sociais. Soma-se a essa visão a tese da
anomia
social
que permite a alguns autores ver o messianismo brasileiro não como resultado
da opressão, mas ao contrário, de uma excessiva liberdade, é a ausência de normas
explicando a revolta. Os indivíduos ficam encobertos nesta análise, o que está em
jogo são as formas de ordenação da sociedade e uma suposta desorganização que
seria endêmica no sertão brasileiro. Para outros a revolta é alienada e os sujeit
os
estão fugindo à realidade que não querem enfrentar. No entanto, outras
interpretações sociológicas modificam o olhar e passam a perceber os sertanejos
como rebeldes , sujeitos com autonomia o suficiente para serem agentes de uma
vontade articulada, sob aspectos particulares, e ir de encontro ao que estava lhes
sendo posto pelas relações cotidianas.
133
Num terceiro momento, acaba surgindo um sujeito multifacetado que
assume todas as máscaras as quais superpostas impedem, paradoxalmente, se chegue
a uma suposta essência incansavelmente perseguida. Os sertanejos o caboclos ,
matutos , fanáticos , loucos , jagunços , bandidos , endemoniados , mas são
também bravos , destemidos , inteligentes guerrilheiros , audaciosos ,
humildes , vítimas , heróis e, claro, errantes do novo século .
Este sujeito sempre nomeado de modo a ser descartado como indeterminado é
resultado, segundo Claudine Haroche, de um mesmo fato político que se encontra
sempre sob formas diferentes: o do desconhecimento deliberado da marginalidade, da
alteridade, do heterogêneo. Atitude que encobre sempre um mesmo fato: ultrapassar
as contradições para responder ao imperativo do sujeito ao poder, qualquer que seja
este.
284
Não se quer com isso negar a existência do sujeito, ao contrário, se quer
afirmar a necessidade de se estar atento para as inúmeras formas pelas quais se tenta
desconsiderar a subjetividade em nome de uma pretensa cientificidade e
conseqüentemente afogar o sujeito na massa . Práticas que conferem a ele um
carát
er passivo, despolitizado, reforçando um sentimento de irresponsabilidade e não
oferecendo outra alternativa que não o controle da sociedade pelo Estado, através de
sistemas educacionais, políticos e sobretudo, jurídicos.
A freqüência com que os confrontos pela terra no país ainda hoje são
interpretados com um misto de intolerância e surpresa e o modo como os que lutam
ainda são alvo de discriminação, são prova da desconsideração e
descomprometimento de boa parte da sociedade brasileira dos problemas socia
is,
econômicos e políticos no campo. É mais fácil, e para alguns mais cômodo, acreditar
que as inúmeras famílias de pequenos agricultores que vendem suas terras e
engrossam as periferias das cidades, o fazem por pura incompetência em administrar
as propriedades ou por pura falta de gosto pelo trabalho com a enxada! Fechar os
olhos frente ao complexo e sutil sistema de exploração fundiária que mistura
para citar os casos mais noticiados
trabalho escravo e expropriação forçada fez a
sociedade brasileira desconhecer as centenas de mortes por questão agrária nas
últimas duas décadas no país.
134
Por fim, este trabalho permitiu ver que todo o percurso percorrido pela
historiografia do Contestado não é, de forma alguma, linear e evolutivo. Nenhuma
das interpretações é melhor ou pior que as outras, seria até mesmo injusto tecer
comparações, cada uma é representativa de uma época, de um sistema de
pensamento. Cada autor leu a Guerra Sertaneja do Contestado com os instrumentos
e conceitos que tinha ao alcance, no interior de determinados lugares sociais, sem
esquecer que eles próprios são ao mesmo tempo produtos e produtores da sociedade
em que vivem. A miscelânea de interpretações e olhares sobre o Contestado durante
as duas últimas décadas e que puderam ser percebidos pela minha leitura mostra que
nem as épocas são homogêneas e que, quando as possibilidades de pesquisa e
publicação se abrem a um número diversificado de pessoas, fica claro o quão
complexas são as relações cotidianas e quantos são os discursos em luta.
Principalmente a ver como o novo e o antigo são requisitados para conquistar,
legitimar e defender lugares sociais, identificações, interesses. Reconhecer que
existem permanências e até mesmo retrocessos é tão importante quanto dar espaço ao
novo. Hierarquizar as interpretações, olhares e leituras é permanecer no jogo
paralizante que sempre acaba condenando alguém ao limbo, à margem. Portanto, foi
feito um esforço, na medida do possível, de considerar todas as versões sobre a
Guerra Sertaneja do Contestado pois todas contribuem, de certa maneira, para a
compreensão do fato histórico.
Reafirmo que este é um trabalho de crítica historiográfica e deve, antes de ter
um fim, oferecer novos caminhos de investigação, nos quais ele mesmo será,
posteriorm
ente alvo de análise.
284
HAROCHE, op.cit., p.215
135
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