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JOÃO MARCELO EHLERT MAIA
A “RÚSSIA AMERICANA”: A TERRA NO
PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO.
.
RIO DE JANEIRO – IUPERJ – 2006
I
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ÍNDICE
RESUMO.............................................................................................................. IV
AGRADECIMENTOS........................................................................................... V
APRESENTAÇÃO ............................................................................................... 1
INTRODUÇÃO..................................................................................................... 4
INTELECTUAIS E PENSAMENTO BRASILEIRO SOCIOLOGIA E HISTÓRIA....... 5
ESPAÇO E TEORIA SOCIAL............................................................................... 15
ESPAÇO E SÍMBOLO ........................................................................................... 18
ESPAÇOS DA IMAGINAÇÃO ............................................................................... 23
CAPÍTULO 1. A METAFÍSICA DA TERRA........................................................ 31
1.1 ALEMANHA, ESTADOS UNIDOS E RÚSSIA................................................ 32
1.2 BRASIL......................................................................................................... 42
1.2.1 O “Paraíso Perdido” e as primeiras versões americanas.................................... 46
1.2.2 Natureza e Romantismo................................................................................ 50
1.2.3 Naturalismo e terra....................................................................................... 53
CAPÍTULO 2. TERRA, AMERICANISMO E MODERNISMO............................ 57
2.1 UM BREVE PANORAMA DA PRIMEIRA REPÚBLICA.................................. 59
2.2 GRAÇA ARANHA – DE CANAÃ AO ESPÍRITO MODERNO ........................... 61
2.3 RONALD DE CARVALHO NAS BÁRBARAS TERRAS AMERICANAS......... 68
2.4 FESTA – CATOLICISMO, MODERNISMO E FORÇA DA TERRA .................. 77
2.5 INTELECTUAIS E EXPERIÊNCIA AMERICANA............................................80
2.6 RÚSSIA, ALEMANHA .................................................................................. 90
CAPÍTULO 3. ENGENHARIA E TERRA............................................................. 94
3.1 ENGENHARIA E MODERNIDADE................................................................ 95
3.2 ENGENHARIA E MODERNIDADE NO BRASIL ............................................ 99
II
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3.2.1 A forma francesa .........................................................................................101
3.2.2 Sonhos americano........................................................................................105
3.3 ENGENHARIA “PERIFÉRICA”: UM AMERICANISMO POSITIVISTA ..........109
3.4 ENGENHARIA, TERRA E ETHOS ................................................................. 128
CAPÍTULO 4. A TERRA EUCLIDIANA.............................................................. 137
4.1 TERRA E CIVILIZAÇÃO ............................................................................... 137
4.2 OS ESCRITOS SOBRE A “AMAZÔNIA ......................................................... 144
4.2.1 O caso russo................................................................................................ 146
4.2.2 Terra, história e espaço................................................................................. 148
4.2.3 Rússia e América......................................................................................... 164
CAPÍTULO 5. VICENTE LICÍNIO E A TERRA.................................................. 170
5.1 UM LIVRO E UMA TEORIA ......................................................................... 172
5.2 O POSITIVISMO........................................................................................... 177
5.3 A TERRA...................................................................................................... 183
5.4 A MÁQUINA................................................................................................. 190
5.5 A TERRA E A MÁQUINA ............................................................................. 192
5.6 AMÉRICA, AMÉRICAS................................................................................. 195
5.6.1 Ford e Rodó ................................................................................................ 198
5.7 RÚSSIA E A FORÇA DA TERRA................................................................... 203
CONCLUSÃO. A RÚSSIA AMERICANA............................................................. 210
O ARGUMENTO................................................................................................... 210
RÚSSIA AMERICANA E INTERPRETAÇÕES DO BRASIL ................................... 215
EPÍLOGO: SOCIOLOGIA DA TERRA E IMAGINAÇÃO PERIFÉRICA................... 224
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................. 227
III
RESUMO
O tema desta tese é a relação entre espaço, teoria social e pensamento brasileiro na Primeira
República. Seu enfoque teórico considera que a mobilização de determinadas “imagens
espaciais” pelos intérpretes analisados não se restringe a uma abordagem geográfica,
constituindo-se numa forma de pensar a modernização nacional a partir da categoria
“terra”. Tomo por objeto os escritos de Euclides da Cunha e Vicente Licínio Cardoso para
sugerir que, nesses autores, a terra se relaciona à construção de uma via “periférica” para o
moderno, e não a uma busca essencialista da identidade nativa, escorada nas propriedades
singulares de um tipo étnico, como o fazem algumas interpretações produzidas no âmbito
do modernismo carioca. Considero também o significado dessas representações espaciais a
partir da inscrição dos seus produtores na vida intelectual e social do período. Ao final,
argumento que a idéia de “Rússia Americana” traduz uma interpretação do Brasil que
articula questão nacional e cosmopolitismo num registro marcado pela inventividade e pelo
pragmatismo da experiência brasileira.
IV
AGRADECIMENTOS
Muito já se disse sobre a natureza paradoxal de uma tese de doutorado. Ao mesmo
tempo em que é empreendimento extremamente solitário, a cargo de um indivíduo que por
vezes parece se alienar do mundo, somente se realiza por intermédio de um artesanato que é
nutrido de conversas, dicas e idéias generosamente compartilhadas. Nesse sentido, nada
menos burocrático do que a lista de agradecimentos aqui apresentada.
Minha orientadora durante a maior parte do doutorado, Maria Alice Rezende de
Carvalho foi quem mais colaborou para que este trabalho tomasse a forma final. Sua
generosidade intelectual e entusiasmo nunca impediram que o seu rigor analítico
esquadrinhasse os textos que lhe eram apresentados de forma implacável. Espero estar à
altura da sua esperança.
Luiz Werneck Vianna orientou-me ao longo do mestrado e durante o início do
doutorado. Seu rigor, sua paixão e seu compromisso com um estilo de atividade intelectual
que resiste ao enquadramento burocrático marcaram-me de forma decisiva.
O IUPERJ proporcionou-me, ao longo de seis anos, ambiente estimulante e
acolhedor. Agradeço, em especial, a Ricardo Benzaquen e César Guimarães, meus
professores nos anos de formação. Nas figuras de José Márcio, Ângela, Bia, Solange e
Valéria concentra-se o que há de melhor no quadro de funcionários da casa. Agradeço a
todos pela amizade, dedicação, desprendimento e competência. Por fim, inúmeros foram os
amigos e colegas que, das mais diferentes maneiras, contribuíram para este trabalho.
Obrigado a Juliano Borges, Cristina Buarque, Alice Soares, Maria Muanis, Fabiana Coelho,
Marcelo Rosa, Darlan Montenegro, Marcelo Lacombe, Christiane Jalles, André, Alexandre
Veronese, Leonardo Andrada e Bárbara Dias. Helga Gahyva – que me auxiliou na revisão –
e Gisele Araújo talvez tenham sido as amigas que mais leram e ouviram esta tese.
No IFCS me graduei em Ciências Sociais, e lá me apaixonei pelo ofício. Devo
muito ao instituto e aos amigos ifcsianos, que me acompanham até hoje. No grupo reunido
V
na “Confraria”, encontrei apoio diário e amizade incondicional. Obrigado a Lia Rocha,
Cecília, Cláudio Araújo, Fábio Chaves, Guilherme José e Gustavo Bezerra, que fazem parte
da minha formação intelectual e humana. José Renato Baptista mostrou-se imprescindível,
tanto na vida intelectual e pessoal, quanto na boemia e na arquibancada.
Christina Penna abriu-me de forma generosa sua casa e permitiu o acesso livre aos
arquivos particulares de Vicente Licínio Cardoso. Carlos Ziller deu-me importantes
informações sobre o tratamento de documentos e fontes primárias, nem sempre seguidas
com a devida correção.
Sérgio Miceli foi interlocutor generoso, sempre disposto a dialogar e incentivar. Os
colegas do GT de Pensamento Brasileiro na SBS em muito me estimularam durante esse
longo processo. Agradeço em especial a Rubem Barboza Filho e André Botelho.
Os professores do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio sempre
proporcionaram ambiente divertido e companheiro. Agradeço, principalmente, a Luiz
Fernando e Sarah Teles. Paulo Jorge foi meu consultor de cultura russa.
Minha família sempre confiou em mim, acreditando que a aventura da Sociologia,
tão misteriosa para ela, fosse gratificante e recompensadora. Minha mãe, Carlota, e meu
pai, Dimitri, sempre estiveram presentes nos momentos de angústia, indecisão e
insegurança. Em minha filha Helena, encontrei um sentido para o que faço.
Ângela esteve comigo em diversos momentos. Hoje, está em definitivo. A ela devo
uma nova vida e o refúgio cotidiano no qual me recompunha nas horas mais difíceis.
Finalmente, agradeço ao CNPQ pelo auxílio, sem o qual esta pesquisa seria
inviável.
VI
APRESENTAÇÃO
Em um texto dedicado à natureza do ensaio como forma literária, o filósofo Gyorgy
Lukács (Lukács, 1980) procura caracterizar o significado mais amplo deste empreendimento,
comum a inúmeros escritores. Ainda fortemente inspirado por um certo neokantismo, Lukács
preocupa-se com a visão integradora da forma, capaz de dar vida a elementos do mundo e agregá-
los num todo vital e orgânico. Nesse sentido, o ensaio não seria meramente um exercício de
crítica destinado a comentar os objetos culturais dados, mas uma atividade construtiva apta a
prefigurar a cultura numa dimensão nova e criativa. Nas suas palavras,
The essayist speaks of a picture or a book, but leaves it again at once – why?
Because, I think, the idea of the picture or book has become predominant in his
mind, because he has forgotten all that is concretely incidental about it, because
he has used it only as a starting-point, a pringboard (Lukács, 1980, p. 15-16).
Um ensaísta, portanto, não escreveria sobre livros e autores, mas os mobilizaria
criticamente para produzir uma interpretação nova sobre o mundo. Essa sugestão lukácsiana
pode, creio eu, ser de extrema valia para o entendimento do que esta tese pretende, ao abrigar-se
no já bem explorado campo do pensamento social brasileiro.
Este trabalho trata da centralidade do tema da terra na imaginação ilustrada brasileira.
Cheguei a esse objeto ao ler, desavisadamente, um texto de Vicente Licínio Cardoso que tratava
de uma questão ordinária para os que estudam a vida intelectual na Primeira República: a forte
presença de argumentos geográficos na escrita dos mais variados “intérpretes do Brasil” no
período. Tomando como fio condutor essa idéia rotineira, já analisada por tantos outros autores –
os mais interessantes dos quais estão presentes nesta tese –, fui percorrendo o caminho tortuoso
de verificar o quanto essa generalidade ganhava riqueza quando provocada por questões novas.
Nessa chave, Vicente Licínio Cardoso, um autor que não costuma excitar a imaginação dos
estudiosos no campo, revelou-se um interessante interlocutor, e não apenas um informante dos
procedimentos comuns a outros intelectuais do mesmo cenário – a despeito de cumprir com
brilho essa função. Interessava-me não apenas a construção de uma idéia geográfica como
símbolo da nação, mas a aproximação que essa idéia permitia entre o Brasil e outras formações
sociais – estranha sociologia comparada que situava o país em uma região fronteiriça à da Rússia,
1
por exemplo. Num momento em que as energias das “democracias ricas do Atlântico Norte”
parecem esgotadas, e o mundo esboça um reordenamento não apenas geopolítico, mas
civilizacional, esse “cosmopolitismo à brasileira” chamou-me a atenção, como a me lembrar que,
antes da Segunda Guerra, variadas cartografias orientavam a cabeça dos intelectuais da periferia.
Ora, por que não desvendar essas cartografias através de uma idéia tão rotineiramente associada a
uma singularidade nacional – o espaço, o sertão, o litoral, a terra?
As pistas estavam – e estão – dadas. O trabalho de Lúcia Lippi Oliveira (Oliveira, 2000)
sobre as relações entre nossas bandeiras e as fronteiras estadunidenses abriu um vasto campo de
investigação, assim como o exaustivo estudo de Nísia Lima (Lima, 1999) sobre a dualidade entre
litoral e sertão na imaginação brasileira. As recentes incursões da historiografia e da teoria
literária sobre as repercussões do romance russo entre nossos escritores e intelectuais
1
parecem
confirmar isso, assim como as pesquisas que buscam comparar os diversos modernismos
americanos
2
.
Por fim, uma recente fornada de pesquisas voltadas para o estudo do pensamento
brasileiro
3
indica a fecundidade produzida não por novos e desconhecidos objetos, mas por
questionamentos teóricos inéditos. Assim, mais do que mero exercício de historiografia das
idéias, a investigação do pensamento social brasileiro vem se mostrando instrumento confiável
para a montagem de abordagens contemporâneas, já marcadas pelo registro da sociologia como
disciplina acadêmica. Exemplo disso é a releitura da obra freyreana feita por Jessé de Souza, a
que se junta uma interessante apropriação da teoria social contemporânea, exemplificada então
por Charles Taylor e Pierre Bourdieu. Assim, superar eventuais lapsos ou abrir novas
perspectivas sobre velhos temas do nosso pensamento social pode servir para a própria renovação
das questões que estruturam as pesquisas sociológicas contemporâneas. Num país em que, como
já apontou Luiz Werneck Vianna (Werneck Vianna, 1997), as mudanças parecem demandar o
1
As obras de Dostoievski vem sendo sistematicamente traduzidas diretamente do russo. Um interessante exemplo de
tese voltada para o paralelismo Brasil – Rússia é a de Bruno Gomide (Gomide, 2004).
2
Sergio Miceli (Miceli, 2004) e Karina Vasquez (Vasquez, 2004) são dois exemplos de projetos de pesquisa que
visam reorganizar, por meio de uma chave comparativa, nosso acervo interpretativo sobre o modernismo paulista.
3
Exemplar dessa abordagem é o trabalho de Ângela Alonso (Alonso, 2002), no qual um tradicional objeto da
historiografia das idéias – a chamada geração de 1870 – é reinterpretado à luz de um enquadramento teórico
tributário da sociologia dos movimentos sociais e da sociologia política.
2
auxílio da tradição para se efetivarem, nada mais esperado do que essa movimentação da
intelligentsia na direção de seus precursores.
Portanto, tomo aqui o chamado pensamento social brasileiro como um campo de estudos
que não se restringe a um exercício de investigação histórica, destinado a reconstruir um universo
fechado em si, entendendo-o, antes, como um modo de mobilizar autores, temas e idéias que
conformam, ainda hoje, uma agenda de preocupações e questionamentos. Ou seja, como um
exercício de permanente fertilização da nossa tradição intelectual por força de seu diálogo com a
teoria sociológica. Penso que essa compreensão levou-me não a escrever sobre livros e autores,
mas, seguindo a sugestão lukácsiana, a mobilizá-los criticamente para produzir uma nova
perspectiva de intervenção no nosso tempo.
Assim sendo, o fio de uma idéia – o argumento geográfico mobilizado por intelectuais na
Primeira República – foi desdobrado a partir de indagações contemporâneas: qual o lugar do
Brasil em um contexto internacional que parece rearrumar as tradicionais geografias que
estruturavam a divisão “centro – periferia” e permitir a emergência da Rússia, da China e da
Índia, para ficarmos apenas em três regiões, até aqui bem pouco incorporadas ao nosso campo de
observação? Em que medida a investigação de uma estranha cartografia intelectual voltada para o
tema da terra pode nos permitir vislumbrar uma configuração civilizatória pautada não pela
“essência irredutível”, mas por uma moldura moral distinta, compartilhada com outras
sociedades? Essas foram as questões que me levaram a estudar um intelectual tido como menor –
Vicente Licínio Cardoso – e outro “gigante”, já esquadrinhado das mais diferentes maneiras –
Euclides da Cunha. Ao final, espero que a idéia da “Rússia Americana” pareça não apenas um
exercício literário, mas uma sugestão interpretativa que nos diga algo sobre o mundo
contemporâneo.
3
INTRODUÇÃO
O problema desta tese é a questão da terra na imaginação ilustrada brasileira. A hipótese
principal é a seguinte: a mobilização da categoria “terra” nos escritos de Vicente Licínio Cardoso
e Euclides da Cunha conduz a uma interpretação da experiência brasileira que a aproxima de
outros processos modernizadores – Rússia e Estados Unidos – e enfatiza a dimensão inventiva e
pragmática da formação nacional, e não a reiteração de uma origem étnica ou cultural perdida. O
que chamo aqui de “Rússia Americana” seria a chave interpretativa dessa experiência. Sustento
também que essa narrativa pode ser compreendida através da análise sociológica da trajetória dos
dois personagens, tomando como eixo a engenharia (formação de ambos), suas relações com o
positivismo e o significado do americanismo no ambiente social que circunscrevia Euclides e
Vicente Licínio. Para tanto, empreendo uma comparação com alguns atores centrais do
modernismo no Rio de Janeiro também atentos para o tema da terra na formação brasileira.
Antes, porém, da exposição mais detalhada desses problemas, algumas questões teóricas deverão
ser enfrentadas.
Inicialmente, é necessário esclarecer o sentido da aproximação entre pensamento
brasileiro e teoria sociológica, apenas esboçado na apresentação. Refiro-me ao equacionamento
de questões suscitadas pelo desvendamento de um objeto que demanda uma interpretação interna
dos textos e uma análise das determinações sociais de seus produtores. Refiro-me, também, à
necessidade de compreender a função simbólica encerrada na mobilização da terra nos escritos
analisados, assim como o lugar dessa imagem espacial específica no contexto do pensamento
social. Trata-se, portanto, de delimitar teoricamente um argumento geral subjacente à tese: a idéia
de que as imagens espaciais analisadas não são meras variáveis científicas emprestadas ao
determinismo geográfico, mas símbolos de experiências sociais, e, por conseguinte, não limitadas
ao cenário físico particular aos quais se referem.
Esta introdução, portanto, parte de questões gerais referentes à estrutura interpretativa da
tese, para então apresentar argumentos teóricos que sustentem o tipo de abordagem escolhido e
delimitem o quadro mais amplo no qual buscarei decifrar o significado das imagens espaciais
analisadas.
4
INTELECTUAIS E PENSAMENTO BRASILEIRO: SOCIOLOGIA E HISTÓRIA.
Na apresentação deste trabalho, referi-me ao reexame da tradição ilustrada brasileira à luz
de questionamentos mobilizados pela teoria sociológica contemporânea. Na seção anterior,
também sustentei a necessidade de delimitar uma abordagem teórica que permita uma análise
interna dos textos e uma investigação do ambiente social em que se moviam seus produtores.
Ambas inquietações remetem ao sempre problemático campo de interseção entre pensamento
brasileiro, história e sociologia. No caso específico da sociologia, essa questão é ainda mais
aguda do que no campo da história intelectual, porque, como disse, a investigação voltada para o
chamado pensamento social no Brasil não se limita a repertoriar tradições, obras, autores e
correntes de idéias. O cruzamento deste campo com a sociologia política contemporânea, por
exemplo, reforça de forma radical a motivação hermenêutica que anima as leituras das linhas
mestras de nossa imaginação. Os textos mobilizados não são operados nem como documentos,
nem como fragmentos de idéias que devem ser reconstruídas tal qual teriam sido concebidas
historicamente, mas como elementos para a produção de teorizações sociais mais largas sobre o
processo modernizador no Brasil. Nesse sentido, o sociólogo contemporâneo que, interessado no
problema da relação entre Estado e sociedade no Brasil, se volta para a obra de Oliveira Vianna,
não está à procura de documentos clássicos sobre o assunto, mas de narrativas que lhe permitam
fundamentar suas próprias questões.
Dito dessa forma, o problema parece simples, mas há que se resolver uma série de
desafios, que, obviamente, têm uma longa história nas Ciências Humanas. Por exemplo, qual o
estatuto do texto estudado, dado que não é visto como um documento que possa ser operado
como evidência para reconstrução historicista? Qual o limite dado para o diálogo entre intérprete
e autor? À guisa de um encaminhamento dessas questões, gostaria de destacar dois importantes
debates, que me parecem resumir os dilemas atuais que envolvem o tipo de investigação aqui
proposto – refiro-me aos debates que opõem historicismo
4
e hermenêutica e internalismo e
externalismo. Longe de apresentar uma exaustiva resenha de todas as posições intervenientes
4
O termo “historicismo” comporta múltiplos significados. Aqui, ele refere-se a uma concepção teórica que vê a
interpretação de textos como exercício de reconstrução dos contextos originários em que estes foram produzidos. Ou
seja, o historicismo implicaria a recuperação das intenções do autor.
5
nessas querelas, pretendo apenas definir melhor a opção assumidas por esta tese e o tipo de
moldura que estrutura, ao fundo, esta investigação.
Sobre a primeira questão, são conhecidos os embates propiciados pela recepção da obra
de Quentin Skinner (Skinner, 1988, 1996), que produziu um campo coeso na área da história
intelectual. Ao incorporar algumas preocupações trazidas pela virada lingüística, destacando a
decifração do universo comunicativo dos autores estudados, e tendo como norte o
estabelecimento de uma intencionalidade discursiva, Skinner estabeleceu as bases de um
contextualismo lingüístico de largo trânsito na área. Nesta perspectiva, a reconstrução historicista
de um universo afastado temporalmente é considerada tarefa fundamental, implicando uma
interpretação de texto atenta ao campo comunicativo específico no qual o autor se insere, em
busca de um esclarecimento conceitual que evitasse uma forte autonomização do texto. Outra é a
perspectiva elaborada pelos defensores de uma investigação tributária da hermenêutica, dos
avanços estruturalistas e de todas as discussões que, dos anos 1960 em diante, culminaram numa
discussão sobre o descentramento do sujeito e a conseqüente “libertação” do texto. Esse esforço
hermenêutico encontra ancoragem segura nas sugestões advindas de outro campo da história
intelectual, em especial da obra de Dominick La Capra (La Capra, 1983). Nela, o tema da
oposição entre texto e contexto ganha outras cores, uma vez que o autor descarta a postulação de
um contexto fixo, anterior à linguagem. Nesse sentido, recupera a noção, hoje banalizada na
história cultural
5
, de que todas as dimensões da vida humana são, de certa forma, “textualizadas”.
Ou seja, a mera identificação de que o contexto deve iluminar o texto joga nas sombras o estatuto
dessa relação, o que não é uma solução, mas um problema. Na perspectiva de La Capra, a simples
afirmação de que um determinado contexto influenciaria um texto não diria muito, uma vez que
os modos como essa relação se dá são objetos constantes de pesquisa, e não pontos de partida
metodológicos. Por exemplo, a tradicional relação que a história das idéias estabelece entre vida e
obra deve defrontar-se com a questão de como a experiência vivida ganha tradução no texto,
dado que não há qualquer mecanismo determinante que prefigure um formato para essa relação.
5
Essa idéia ganhou contornos radicais na obra do antropólogo estadunidense Clifford Geertz. De um modo geral, a
Antropologia aprofundou mais sistematicamente essa noção dos contextos como “textos” que devem ser decifrados
por uma etnografia densa, que se assemelharia a um exercício de crítica literária. Stephen Greenblatt oferece
panorama elucidativo desse movimento de textualização no campo da história cultural (Gallagher & Greenblatt,
2005).
6
A postulação de uma relação dialógica entre intérprete e texto é reforçada por La Capra a
partir da constatação de que a alternativa oferecida por Skinner lhe parece inviável. Afinal, o
historicismo considera que os textos são propriedade de seus autores, emanações diretas de suas
respectivas consciências. Isso exigiria a identificação da intencionalidade do autor (Para quem
escrevia? Com que objetivo?), tarefa que, para La Capra, estaria longe de ser garantida.
Diferentemente, na perspectiva hermenêutica o tema da intenção se encontraria encapsulado na
percepção da tradição como força que diluiria o tema da propriedade individual. Nesses termos, é
como se o contextualismo lingüístico tivesse recuperado o “linguistic turn”, mas deixado de lado
suas possíveis implicações intersubjetivas, uma vez que desconsidera o fato de que a própria
centralidade emprestada à linguagem constitui, em si, mais uma etapa no processo de
desconstrução da noção de um indivíduo autocentrado, cartesiano, que teria sua identidade
delimitada pela emanação de sua consciência particular. Essa postulação encontrou uma de suas
principais fundamentações teóricas na obra Investigações Filosóficas, de Ludwig Wittgenstein
(Wittgenstein, 1975). Nela, a linguagem é entendida a partir da categoria “jogo”, e sua condição
de fonte privilegiada de acesso às representações mentais individuais e privadas de um indivíduo
é questionada. O filósofo questiona radicalmente o pressuposto cartesiano de que a linguagem
seria emanação imediata e compreensível de estados mentais anteriores ao ato interativo,
considerando-a, antes, uma prática comunicativa regulada pelo uso. Aplicando essa reorientação
filosófica aos termos da história intelectual, fica difícil sustentar que o objeto da mesma deva ser
a recuperação da intenção do autor, pois o texto estaria enredado nesse processo intersubjetivo de
formação de consciência. Se o próprio autor não teria mais uma relação transparente e imediata
com seus estados mentais, como seu texto poderia ser uma emanação de sua intenção?
Creio que esta conceituação é extremamente rica para uma abordagem do pensamento
social que não se esgote na reconstrução historicista do par autor-obra. Afinal, a percepção de que
o texto teria propriedades não meramente “reprodutoras” denotaria que a escritura não se esgota
no seu aspecto documental, como simples evidência de época, mas guarda componentes
imaginativos. La Capra chama essa dimensão do texto de worklike, que é definida da seguinte
forma:
The worklike is critical and transformative, for it deconstructs and reconstructs
the given, in a sense repeating but it also bringing into the world something that
7
did not exist before in that significant variation, alteration, or transformation.
With deceptive simplicity, one might say that while the documentary marks a
difference, the worklik makes a difference – one that engages the reader in
recreative dialogue with the text and the problems it raises (La Capra, 1983, p.
30).
Essa dimensão worklike seria a garantia de uma janela de comunicação entre o autor e o
intérprete, por meio da qual este poderia se aproximar de dimensões não esperadas do texto
daquele. Seria uma garantia lingüística, por assim dizer, da relação entre sociologia e pensamento
social. Nos termos desta tese, a terra, tal como operada pelos autores tratados, não seria apenas
reprodução das “terras realmente existentes”, mas projeção simbólica rica em significados.
Explorarei essa discussão teórica no próximo capítulo.
As formulações até aqui enumeradas não esgotam o repertório de questões que afligem a
relação entre sociologia e história, pois os propósitos investigativos de uma sociologia dos
intelectuais, por exemplo, são distintos daqueles alimentados por historiadores que viessem a
recorrer à obra de La Capra, já que sociólogos não explicam apenas textos, mas buscam
compreender a dinâmica das relações sociais que conformam atores e processos informados por
esses textos. Nesse sentido, faz-se necessário enfrentar o dilema entre externalismo e
internalismo com os apetrechos da sociologia, de forma a melhor encaminhar questões
pertinentes ao campo da história intelectual.
Em texto sobre o tema, Heloísa Pontes (Pontes, 1997) apresenta a diferença entre as duas
perspectivas que norteiam as investigações da sociologia dos intelectuais. De um lado, os que se
propõe a analisar as condições sociais de produção dos textos e a rede de vinculações que
envolveriam autores, instituições e obras. Nesse time, liderado por Pierre Bourdieu, Norbert
Elias, Raymond Williams, Fritz Ringer dentre outros, o texto só poderia ser decifrado em função
das experiências concretas dos seus produtores, variando aí os aspectos que poderiam ser
operacionalizados na pesquisa empírica para traduzir o contexto – classe, gênero, tradições
intelectuais nacionais, campo, etc. De outro lado, a perspectiva abraçada por Lévi-Strauss e
outros autores, que buscam decifrar a lógica interna dos textos e seus significados inscritos na
própria tessitura da escrita. Nesse registro, o texto em si ganha forte autonomia e se projeta como
instância decisiva para a compreensão de idéias e sentidos.
8
Não é preciso dizer que ambas opções têm seus problemas a enfrentar. A recepção desses
autores e tradições no Brasil produziu diversas versões desses problemas, além de criar novas e
interessantes abordagens. Refiro-me, por exemplo, ao trabalho de Sergio Miceli (Miceli 2001).
Ancorado numa leitura da obra de Bourdieu, Miceli construiu uma poderosa marca interpretativa
na sociologia dos intelectuais, lastreada no desvendamento do universo relacional dos produtores
e nas próprias vicissitudes de montagem de um campo intelectual autônomo no Brasil. No
conjunto de sua obra, é evidente a preocupação em decifrar as redes de sociabilidade que
envolvem os autores e suas respectivas inserções no campo em que transitam. Nesta forma de
abordagem, os textos autorais são tratados como indícios, mas não como “propriedade” no
sentido historicista de Skinner, dado que Miceli não está interessado numa reconstrução canônica
de idéias. Os textos seriam, portanto, material expressivo que serviria para o desvendamento das
condições de produção e movimentação social dos intelectuais. O alto rendimento teórico
propiciado por esse procedimento é evidente, a começar pela objetivação das posições relacionais
dos intelectuais, que perdem, assim, a condição de uma intelligentsia, definida como estrato
acima de quaisquer condicionamentos de classe.
Assim sendo, a delimitação das trajetórias possíveis dos intelectuais é operada por meio
da reconstrução de fronteiras que organizariam o espaço permitido para essa movimentação. Mais
do que isso, trata-se de identificar os trunfos e capitais específicos a cada campo que organizam a
rede de relações estabelecidas entre personagens, instituições e demais atores. Em termos
práticos, isso permitiu a Miceli interpretar o fenômeno da adesão de uma grande parte da
intelectualidade da Primeira República ao Estado como decorrência da combinação entre rico
capital cultural e parcos índices de capital econômico. Ou seja, a trajetória desses personagens
seria compreendida a partir do movimento descendente experimentado por suas famílias e por
suas posições desprestigiadas no interior das mesmas. A adesão à carreira cultural, seguida da
busca por empregos públicos, seria evidência da reduzida estruturação de um campo intelectual
autônomo, incapaz de fornecer recompensas simbólicas e materiais satisfatórias.
É nesse registro teórico que se deve entender os estudos de Miceli sobre os modernistas
brasileiros e a relação de dependência destes para com as agências estatais, bem como a polêmica
travada com Daniel Pécaut, ou ainda suas incursões no campo das artes plásticas (Miceli, 1996,
9
2003), em que procura estabelecer relações explicativas possíveis entre o universo plástico do
modernismo paulista e as condições que estruturariam a movimentação social de artistas e
colecionadores. Mas, se é inegável que a obra de Miceli constitui hoje parada obrigatória para os
estudiosos da área, não é menos verdadeiro que produz algumas tensões junto àqueles que se
dedicam às sutilezas do texto e são avessos a formulações sociológicas que dessacralizam de
maneira radical o estatuto da escritura. O que se pode dizer, contudo, é que tal debate produziu
um novo patamar de investigação, que torna inviável uma aproximação ingênua quer do campo,
quer do texto.
Nesse sentido, é digno de registro o trabalho de Ângela Alonso (Alonso, 2002) sobre a
geração de 1870, no qual se observa uma abordagem teórica que evita tomar como matéria prima
as idéias e os discursos doutrinários dos intelectuais, ao mesmo tempo em que recusa a noção de
campo, por considerá-la impertinente ao seu objeto. No registro da autora, tal geração só poderia
ser analisada como uma espécie de movimento político coletivo. Assim, idéias e textos deveriam
ser encarados como peças mobilizadas por atores cuja lógica de movimentação principal seria
dada não pela recepção de doutrinas européias ou pela inscrição em um campo intelectual já
constituído, mas pelas disputas entre grupos e classes no Segundo Reinado. O rendimento
analítico propiciado por um enquadramento mais próximo da sociologia dos movimentos sociais
do que da sociologia da cultura forneceu à autora uma interpretação mais ampla do seu objeto,
evitando uma caracterização escolástica da geração, por demais centrada em biografias
intelectuais e partidos doutrinários diversos. O que não impediu, todavia, algum grau de
ocultamento dos textos produzidos no período, cujas sutilezas e possibilidades interpretativas
terminam soterradas pelo registro teórico por demais sociologizante.
Como disse anteriormente, o recente cruzamento entre pensamento social e sociologia
política não pode prescindir de uma necessária dimensão hermenêutica, que recrie o texto e o
torne um interlocutor das questões contemporâneas. Mas tal recriação não pode ser arbitrária, e
um dos limites que deveria atender deriva da reconstrução sociológica do universo de seu autor.
Nestes termos, não haveria ponto de convergência com o enquadramento canônico da sociologia
dos intelectuais? Creio que esse encontro é possível, desde que algumas ressalvas sejam feitas.
10
Em primeiro lugar, acredito que a livre interpretação de temas e autores do pensamento
brasileiro pode transformar o texto numa mera desculpa teórica, esvaziando o próprio sentido da
investigação. Por isso, a reconstrução da experiência concreta dos produtores é tarefa necessária,
sob risco de transformar a área numa coleção de impressões variadas que utilizam a escritura
como muleta para divagações. Nesse sentido, a idéia de Paul Ricoeur (Ricouer, 1987) sobre a
hipostasiação do “texto absoluto” permanece válida. Ressalte-se, contudo, que a reconstrução
sociológica do universo dos produtores não implica o retorno a um historicismo obcecado por
desvendar a intencionalidade do autor. Afinal, o tratamento sociológico parte não de uma exegese
biográfica, mas da postulação de um universo social específico, no qual a subjetividade dos
autores é produzida no âmbito de suas variadas interações. Num registro sociológico, a
reconstrução do universo social em que se moviam os autores não pode ser traduzido diretamente
pela categoria de intencionalidade
6
, já que essa reconstrução objetiva desvendar uma experiência
social-intelectual que escapa ao pleno controle do sujeito.
A observação anterior conduz a uma segunda ressalva necessária. É comum nos estudos
da área de pensamento brasileiro a confusão entre a reconstrução lógica do texto analisado pelo
intérprete com a própria lógica discursiva do autor. O fato de o texto interpretado se assemelhar a
uma totalidade não deve autorizar a sua plena identificação com seu autor, sob pena de trazermos
de volta o fantasma da intencionalidade. Novamente, a sociologia dos intelectuais tem
instrumentos para controlar esse problema, pois o cerne de sua preocupação é justamente a
explicação do universo social particular dos produtores. Ora, essa reconstrução é, como se sabe,
interessada e guiada pelas questões e interesses mais gerais que guiam a pesquisa e o
ordenamento das evidências
7
. Este é, creio, o ponto chave que permite a associação entre temas
da história intelectual com procedimentos da sociologia. Segundo Ricoeur,
O texto enquanto todo e enquanto totalidade singular pode comparar-se a um
objeto que é possível ver a partir de vários lados, mas nunca de todos os lados ao
mesmo tempo. Por conseguinte, a reconstrução do todo tem um aspecto
6
Com isso não se quer dizer que o significado de um texto é um dado inútil, ou mesmo aleatório, mas que ele não
pode ser atribuído diretamente a uma intenção anterior tida como propriedade singular de um sujeito plenamente
consciente de toda sua ação expressiva.
7
Sobre isso, a referência fundamental ainda é o clássico ensaio de Max Weber (Weber, 2001) sobre a objetividade
das ciências sociais, no qual o sociólogo alemão destaca a impossibilidade de se pensar um quadro de pesquisa que
seja pura reprodução de um mundo social já dado e estabilizado, “disponível” para a captura teórica.
11
perspectivístico semelhante ao de um objeto percebido. É sempre possível
relacionar a mesma frase de modos diferentes a esta ou àquela outra frase
considerada como a pedra angular do texto. No ato de ler, está implícito um tipo
específico de unilateralidade. Tal unilateralidade fundamenta o caráter
conjectural da interpretação (Ricoeur, 1987, p.89).
De acordo com a passagem acima, percebe-se que a validação da interpretação ancora-se
não no conflito entre interpretações rivais, mas na possibilidade de relacioná-la a uma hipótese
sociológica interessada. Ou seja, a leitura de textos sustenta-se numa unilateralidade (no caso
aqui estudado, a mobilização da categoria terra como matriz de interpretação do Brasil) que
encontra ressonância na investigação de determinadas dimensões da experiência social e
intelectual dos produtores. Em assim sendo, as duas dimensões – supostamente “internas” e
“externas” – são unificadas a partir do repertório de questões e problemas que o investigador
levanta. Em outras palavras, não se trata de explicar uma em função da outra, mas de encará-las
como dimensões integradas de uma determinada experiência intelectual só acessível a partir de
uma problematização sociológica interessada.
Esse tipo de abordagem orienta o recorte da categoria “engenheiros”, central para o
argumento desta tese. Não se trata nem de delimitar uma profissão e averiguar suas condições de
institucionalização, ou mesmo suas tradições específicas, nem de reconstruir o campo intelectual
no qual essa atividade emergiria, mas de caracterizar o feixe de vocações, experiências e
interações que pode ser reunido sob essa categoria. No caso, a categoria traduz uma determinada
experiência social e intelectual marcada pelos seguintes fatores: a) formação numa cultura
técnico-científica difusa, que animava vocações americanas numa sociedade não dinamizada pela
fábrica e pela indústria modernas; b) formação de subjetividades orientadas para um forte código
moral de sabor positivista, que dotava seus adeptos de uma constante sensação de estranhamento
diante da vida social da cidade e; c) desapego aos padrões tradicionais-bacharelescos que
estruturariam o cenário urbano-intelectual carioca na Primeira República. Sustento que essa
caracterização sociológica da experiência concreta dos personagens estudados – que caracterizo
no capítulo 3 mediante as categorias de “americanismo positivista” e “engenharia periférica” –
pode revelar o sentido da mobilização simbólica da categoria terra que, como procurarei
demonstrar ao longo do texto, discrepa da classificação romântica de intelectuais em busca de
uma autenticidade perdida. Portanto, essa experiência específica será cotejada com a
12
movimentação social dos homens do alto modernismo carioca, que lidaram de outra forma com o
mesmo tema da terra e de sua “americanidade”.
A abordagem aqui sugerida não é inédita. Em trabalho sobre o engenheiro imperial André
Rebouças, Maria Alice Rezende de Carvalho (Carvalho, 1998) reconstrói a experiência de
Rebouças através da sua inserção profissional e da rede de significados que envolveriam o que se
entende por “engenheiros”. Ou seja, não se trata de identificar um campo profissional no qual
Rebouças seria figura subalterna, mas apresentar o sentido da engenharia na sociedade imperial.
Por sua vez, a questão “engenharia” não é limitada pela decomposição analítica do universo
social em compartimentos (profissão, renda, inserção política etc.), mas se sustenta na eleição de
uma inscrição considerada significativa da experiência intelectual do personagem. No caso, a
moldura da personalidade de Rebouças como engenheiro implica a caracterização de elementos
associados a essa cultura técnica. É o caso do yankismo, por exemplo.
Em outros termos, essa abordagem implica a construção de nexos significativos entre a
engenharia e o sentido das experiências intelectuais que moldaram socialmente o personagem.
Têm-se, desta forma, uma abordagem que contempla sociologia e história intelectual,
possibilitando uma interpretação do pensamento e da trajetória do autor que não termina por
soterrar a primeira na segunda. Isso permite à autora recuperar o americanismo do autor, dar-lhe
dignidade teórica, e analisá-lo à luz de suas preocupações sobre o processo de modernização do
Brasil durante o século XIX. Tem-se, aí, a moldura da sociologia política reclamada neste texto.
Outro exemplo interessante encontra-se no trabalho de Nicolau Sevcenko (Sevcenko,
2003) sobre Euclides da Cunha e Lima Barreto, no qual a apresentação das idéias dos autores foi
acompanhada por uma reconstrução do universo social em que se moviam, destancando-se desse
cenário o que parecia mais significativo para o autor: a experiência social da Primeira República,
fonte de insatisfação e desconforto para personagens que se viam como “intelectuais-
missionários”, para os quais a literatura operaria como ferramenta de intervenção na vida pública.
Ou seja, Sevcenko não decompõe Euclides e Lima Barreto em variáveis abstratas, mas busca
decifrar o espectro de suas atividades a partir da relação entre literatura e mundo social, tomada
como eixo central para a hipótese. No caso, a relação se daria pelo que esses “mosqueteiros
13
intelectuais” identificavam como “arrivismo republicano”. Segundo o historiador paulista, o
engajamento ético desses intelectuais se plasmava a partir da percepção de uma inversão de
posições, por meio da qual os homens das letras desciam na pirâmide social por não encontrarem
lugar numa ordem competitiva pautada por valores burgueses e “argentários”. Explicar-se-ia,
portanto, a produção de personalidades marcadas por fortes compromissos éticos e idealização da
literatura como força progressista. Como se verá no capítulo três, a interpretação desenhada por
Sevcenko para o cenário intelectual da Primeira República será mobilizada para a caracterização
do universo social em que se moviam os personagens estudados nesta tese.
Finalmente, para os propósitos da presente pesquisa, importa destacar a perspectiva
teórica de Raymond Williams (Williams, 2000a), também avessa à dicotomia entre internalismo
e externalismo. Em sua obra sobre as representações do campo e da cidade na literatura inglesa,
Williams mobiliza o conceito de “estruturas de sentimentos” para analisar o modo como essas
representações se transformam e reinterpretam as paisagens da Inglaterra sob o impacto de
transformações produzidas pelo capitalismo. Sem reduzir a relação entre experiências sociais e
narrativas ao conceito de ideologia, Williams
8
evita uma separação estanque entre texto e
contexto, como se o primeiro fosse dedução lógico-abstrata do segundo. Seu objetivo é delimitar
a emergência de novas percepções na própria estrutura formal das obras, muitas vezes semi-
conscientes, acompanhando assim a mudança nos sentidos do bucolismo e a cristalização de
interpretações que não necessariamente refletem um mundo determinado, mas antes o
ressignificam. Esse processo é envolto em tensões, o que autoriza ao intérprete a localização de
choques, sugestões soltas e possibilidades que impediriam a fixação do texto por categorias
abstratas – literatura burguesa, por exemplo
9
. Assim, cidade e campo não poderiam ser
entendidas como imagens fixas que traduziriam paisagens, mas como formas sociais que
propiciariam novas narrativas para as transformações históricas vivenciadas por escritores, poetas
8
Em texto teórico sobre o tema, Williams (Williams, 2000b) escreveu sobre o conceito de ideologia: “Como tal, é de
fato um termo metodológico essencial numa atuante sociologia da cultura. Mas em seus usos mais amplos e
generalizados, pode tornar-se notavelmente semelhante ao “espírito formador” das teorias culturais idealistas, e isso
pode continuar sendo assim quando atribui (mas não inclui nem especifica ) categoria de “última instância” à
economia ou ao modo de produção” (Williams, 2000b, p.28)
9
Na interpretação de Gallagher e Greenblatt (Gallagher e Greenblatt, 2005), expoentes do chamado “novo
historicismo”, essa dimensão da obra de Williams é destacada como exemplar das possibilidades de diálogo entre a
história radical inglesa (representada também pela obra de E.P. Thompson) e o foucaultianismo francês.
14
e intelectuais. Creio que essa sugestão é de importância central para esta tese e, em especial, para
o ponto que passo a desenvolver agora: a relação entre espaço e teoria social.
ESPAÇO E TEORIA SOCIAL
Em boa parte das reflexões oriundas do campo das ciências sociais, o tempo sempre
pareceu ser a categoria determinante. Na imaginação moderna, o espaço parecia antes uma
resistência, uma trincheira da tradição destinada a ser varrida pelos personagens e forças próprias
de novas experiências sociais: o capital, a luta de classes, o capitalismo, o socialismo. Nesse
registro, a economia explicativa da modernidade parecia apontar para a dinâmica temporal como
chave para a decifração dos fenômenos sociais. Se ficarmos apenas em duas linhas mestras da
tradição sociológica, a weberiana e a marxista, perceberemos que conceitos como carisma,
mercado, revolução, luta de classes e outros tantos dizem respeito a processos de transformação
histórica animados por lógicas de conflito que poderiam se desenrolar em quaisquer cenários
geográficos. Trata-se de uma visão do drama moderno centrada no aprofundamento das energias
sociais acumuladas e na sua disseminação – a consciência de classe ou a ética protestante, por
exemplo. O espaço, por sua vez, parecia ficar relegado ao domínio da Geografia como campo de
saber específico, expandindo-se, no máximo, para as fronteiras da historiografia, em especial
aquela animada por Braudel.
Contudo, uma observação mais criteriosa revela que o espaço permaneceu como categoria
relevante na imaginação social ocidental, trabalhada das mais diversas formas. Desde
Montesquieu até os estudos de ecologia urbana produzidos sob a égide da Escola de Chicago, o
tema espacial mostrou-se atraente para inúmeros pensadores, como a nos lembrar que não é corpo
estranho nesta experiência histórica específica.
No século XIX, algumas vertentes do pensamento científico se voltaram para uma
observação mais criteriosa do tema espacial. Refiro-me ao cenário intelectual europeu do século
XIX, marcado pelas reflexões de Ratzel, Taine, Buckle e outros que formataram um discurso
sobre a relevância do espaço como categoria de explicação científica. Esse discurso desaguou na
15
disciplinada Geografia e na produção de uma série de mecanismos teóricos reunidos sobre a
alcunha de “determinismo geográfico”.
A figura do geógrafo Friedrich Ratzel (1844-1904) encarna o propósito de tornar o espaço
uma variável independente, capaz de explicar homens e costumes. Nessa perspectiva, o tema da
diversidade seria capturado pelo esquadrinhamento científico das realidades físicas, que poderiam
exercer influências diretas ou indiretas. Segundo Ellen Semple (Semple, 1911), intérprete
pioneira da obra de Ratzel, essa notação do homem como produto da superfície terrestre
implicaria uma outra visão sobre o processo civilizador, na qual tal processo seria caracterizado
não como pura emancipação do homem em relação à Natureza, mas como um aumento da
sofisticação e da elasticidade dessa conexão. A chamada antropogeografia de Ratzel, entretanto,
não exerceu efeito imediato sobre os intelectuais brasileiros, ao contrário das teorias
deterministas do filósofo francês Hippolyte Taine.
Herdeiro do positivismo francês, erudito de largo reconhecimento no segundo quartel do
século XIX, Taine (1828-1893) notabilizou-se por um pensamento com fortes traços
deterministas. Encastelado numa posição temerosa dos fenômenos da democratização e da
emergência de uma sociedade de massas, e fortemente impressionado com a ruptura introduzida
por Darwin, Taine escreveu uma longa e influente série de estudos sobre a história da França na
qual as categorias de raça e meio exerciam peso decisivo na interpretação. O impacto de sua obra
deveu-se a sua insistência em delimitar um arcabouço interpretativo geográfico para estudar os
fenômenos históricos. Instrumental semelhante serviu de ferramenta para Henry Thomas Buckle
(1821-1863), cujas formulações sobre as relações entre natureza e civilização também
encontraram repercussão em terras brasileiras. Afinal, a primeira seção de História da Literatura
Brasileira, de Sílvio Romero, é constituída, em parte, por um diálogo crítico com Buckle, para
quem as possibilidades de uma vida civil razoável nas Américas encontrariam fortes obstáculos
nas condições geográficas do continente, marcadas pelo gigantismo e pela natureza opressora.
De diferentes maneiras, Taine, Buckle e Ratzel produzem uma física do espaço eivada de
certo determinismo que se apodera da reflexão social e pretende rejeitar formulações metafísicas.
Para esses autores, tratar-se-ia, portanto, de dominar o espaço, encaixá-lo como variável
16
independente nos seus respectivos quadros teóricos e apresentar uma moldura que decifrasse
analiticamente a diversidade do fenômeno moral. O par espaço-moralidade esgotar-se-ia nesse
procedimento.
Um outro exemplar do dito pensamento geográfico nos ajuda a ampliar essa formulação.
Os escritos de Alexander von Humboldt escapam a uma mera “física” do espaço. Segundo Lúcia
Ricotta (Ricotta, 2003), a ciência tal como praticada pelo naturalista alemão constituía um projeto
no qual a estética ocupava papel fundamental. Mais do que classificar e analisar fenômenos, e
dominá-los com o recurso a uma razão instrumental, tratava-se de possibilitar a comunicação da
experiência com a Natureza. É isso que permite à autora apontar para o sentido da linguagem
poética elaborada por Humboldt, que funciona tanto como “realização compensatória”
(produzindo uma forma expressiva que permite a fruição de uma experiência estética com a
Natureza), quanto como “complementaridade”, que possibilita a visualização de dimensões não
percebidas da experiência. Segundo a mesma autora,
Nos dois livros, obras-sínteses de Humboldt, Quadros da Natureza (Ansichten
der Natur), de 1808, e o Cosmos, o principal, a meu ver, é verificar como se
constrói o olhar científico sobre o fenômeno natural. Como, em última instância,
este olhar converte determinada realidade físico-espacial em imagem, i.e, em
realidade visível, estética, paisagística (Ricotta, 2003, p.16).
Esta percepção de que ciência e cientificismo não se confundem, e que o século XIX é
um período rico na exploração de fronteiras entre ciência e cultura não é exclusiva de Ricotta, por
certo, e nem se restringe ao campo do pensamento geográfico de Humboldt. Wolf Lepenies
(Lepenies, 1996), ao analisar a história das disputas entre ciência social e literatura pela primazia
na interpretação da sociedade e dos dilemas humanos, também chega a conclusões aproximadas.
Segundo ele, fica evidente que tal embate foi encaminhado de diferentes formas na França,
Inglaterra e Alemanha, resultando em distintas configurações sociológicas. Assim, enquanto a
França conheceu a especialização universitária da sociologia e o seu enquadramento como uma
ciência especializada e autônoma, a Inglaterra assistiu à apropriação do conhecimento
sociológico pelo movimento reformista e pelas próprias agências estatais. Na Alemanha, a
conhecida problemática que envolvia ciências da cultura e ciências naturais abriu espaço para que
17
problemas próximos ao universo humboldtiano descrito por Ricotta surgissem no âmbito das
ciências sociológicas.
Se voltarmos, agora, à questão da relação entre pensamento ocidental e o tema do espaço,
perceberemos que as sugestões de Ricotta e Lepenies auxiliam a conformação de um
enquadramento mais amplo para a mesma. Neste sentido, a eleição do espaço como categoria
central às ciências humanas significa pensá-lo como imagem carregada de significados que em
muito extrapolam a circunscrição física referente.
Como uma primeira hipótese, sugiro que a mobilização do espaço na produção de
discursos sobre homens, culturas e sociedades guarda duas dimensões: por um lado, o espaço é
variável determinante, como em boa parte do pensamento geográfico do século XIX, preocupado
em classificar os meios físicos que possam produzir tipos específicos. Por outro lado, o tema
espacial pode ser mobilizado por meio de metáforas e analogias, como fonte para a produção de
imagens e comparações sobre o mundo social. Assim, noções como “deserto”, por exemplo, não
significam exatamente um deserto específico, natural, passível de ser delimitado
geograficamente, mas antes uma imagem associada a este tipo de experiência social. As
sugestões de Williams, apresentadas na seção anterior, apontam para essa segunda versão do
tema espacial, mais atenta para a dimensão simbólica da relação entre paisagem e cultura. Faz-se
necessário, entretanto, investigar mais a fundo essa relação.
ESPAÇO E SÍMBOLO.
Sugeri acima que o espaço pode ser pensado simbolicamente. Mas o que isso significa,
em termos teóricos, e que possibilidades analíticas essa abordagem oferece? Para iniciar essa
discussão, creio que uma porta de entrada pode estar em algumas formulações filosóficas a
respeito da natureza do símbolo.
Em obra sobre a natureza das formas simbólicas, Ernst Cassirer (Cassirer, 2001) mobiliza
um arsenal filosófico kantiano para argumentar que as formas que estruturariam os dados
sensíveis e objetivos seriam produções espirituais, organizadas a partir de sistema relacional que
18
não está dado de forma natural no mundo. Nesta chave, haveria uma evidente função simbólica
humana, expressa de forma mais clara na linguagem. Para Cassirer, a linguagem não seria apenas
expressão do sensível, ou uma mera tradução direta do real, mas uma forma que escaparia das
determinações e seria capaz de produzir generalizações. Nos termos do autor, haveria uma dupla
natureza das formas simbólicas. Ele explica,
Em cada “signo” lingüístico, em cada “imagem” mítica ou artística comparece
um conteúdo espiritual, que, em si, transcende o sensorial, convertido à forma
do sensível, audível, visível ou tangível. Surge um modo de configuração
autônomo, uma atividade específica da consciência, que se distingue de todo
dado da sensação ou percepção imediatas, e que no entanto se utiliza deste
mesmo dado como veículo e meio de expressão. Com isso, o simbolismo
“natural”, que, como vimos, se encontra estabelecido no caráter fundamental da
consciência é utilizado e conservado, por um lado, enquanto por outro é
superado e depurado (Cassirer, 2001, p.62-63).
O potencial revelador das palavras (e não meramente reprodutor) foi levado a outros
patamares pela tradição hermenêutica. Ricoeur, brevemente analisado em seção anterior, é um
dos representantes dessa tradição, que dá grande destaque ao problema da interpretação do texto.
No registro hermenêutico, a escritura só pode ser decifrada se a distância entre a produção
original da mesma e suas posteriores leituras for situada como uma mediação central, que
estrutura as próprias possibilidades abertas pela obra em questão. Isso permitiria a aceitação de
uma autonomia semântica do texto, já que este não poderia ser aprisionado dentro dos limites da
intenção original do autor e da situação a partir do qual ele é produzido. Nos termos de Ricoeur,
“Graças à escrita, o homem e só o homem tem um mundo, e não apenas uma situação” (Ricoeur,
1987, p.47). Note-se que o autor refere-se a “um mundo”, e não “ao mundo”, enfatizando com
isso o potencial imaginativo presente na tarefa da interpretação hermenêutica. Com esse
procedimento, ele reforça o potencial criador da leitura, não por esta se apoiar num texto
hipostasiado, mas pelo fato de que o próprio texto cria um mundo que não é limitado às fronteiras
da situação empírica específica que lhe serve de suporte original. Ou seja, o que em Cassirer
parecia ser decorrência da função simbólica do espírito humano, em Ricoeur transforma-se em
produto de um diálogo inevitável entre texto e leitura, a partir do qual esta desvenda horizontes
de experiência que transcenderiam o espaço mental do autor. Para os propósitos desta tese, ambos
ajudam a caracterizar, de forma genérica, a função simbólica da categoria terra. Afinal, nos
termos de Ricoeur,
19
O sentido de um texto não está por detrás do texto, mas à sua frente. Não é algo
de oculto, mas algo de descoberto. O que importa compreender não é a situação
inicial do discurso, mas o que aponta para um mundo possível, graças à
referência não ostensiva do texto. Compreensão tem menos do que nunca a ver
com o autor e a sua situação. Procura apreender as posições de mundo
descortinadas pela referência do texto. Compreender um texto é seguir o seu
movimento do sentido para referência: do que ele diz para aquilo de que fala
(Ricoeur, 1987, p.99).
Mas como pensar a relação entre simbolismo e espaço, tema mais geral desta tese? Michel
Foucault (Foucault, 2001) fornece pistas interessantes para o desenvolvimento dessa discussão.
Em uma conferência proferida em 1967, ele sugeriu que a grande mania do século XIX seria a
História, como se a humanidade pudesse ser pensada como uma seta percorrendo um sentido
preciso. Não à toa, acrescento, aquele século foi o parteiro de todos os tipos de evolucionismo,
desde a antropologia vitoriana inglesa até o darwinismo social, passando pela grande idéia força
do marxismo. Essa prioridade dada à categoria tempo implicava também uma consagração do
modelo civilizatório europeu. Nesta perspectiva, o tempo seria preenchido por uma lógica
homogênea, e seria irredutível ao particular.
Contudo, o espaço resistiu e resiste como categoria de interpretação. Hoje parece por
demais evidente que os lugares não se rendem à lógica uniformizadora que os confiantes homens
dos Oitocentos acreditavam ser inexorável. O predomínio das políticas da “diferença”, a
rotinização do relativismo cultural e a propagação de teorias que ressaltam as singularidades são
atestados da persistência do tema do “local”. Ainda na mesma conferência, Foucault observa que
o século XX seria marcado pela lógica do espaço. Segundo ele,
Estamos em um momento em que o mundo se experimenta, acredito, menos
como uma grande via que se desenvolveria através dos tempos do que como
uma rede que religa pontos e que entrecruza sua trama. Talvez se pudesse dizer
que certos conflitos ideológicos que animam as polêmicas de hoje se
desencadeiam entre os piedosos descendentes do tempo e os habitantes
encarniçados do espaço (Foucault, 2001, p.411).
Continuando seu argumento, Foucault afirma que utopias e heterotopias se combinariam
na caracterização dos espaços. Enquanto as primeiras se refeririam a posicionamentos sem
lugares reais, como projeções inexistentes no cotidiano, estas se encarnariam em lugares
concretos, combinando desejos sociais ainda não realizados e objetos físicos disponíveis. Ou seja,
20
um parque público, concebido sob a égide do Estado, pode combinar referências conhecidas,
refletindo o repertório de imagens à disposição de uma dada sociedade, e mesclá-las com
projeções utópicas sobre o modelo de uma boa sociedade, concebida idealmente por engenheiros
e arquitetos. O espelho seria a metáfora perfeita para ilustrar as heterotopias. Ao mesmo tempo
em que ele refletiria algo real, esse reflexo se projetaria num espaço existente apenas como
virtualidade.
Note-se que o próprio pensamento geográfico incorporou uma percepção simbólica do
tema do espaço, especialmente através do conceito de paisagem. Em artigo sobre o tema, Vera
Melo (Melo, 2001) argumenta que a década de 1970 teria marcado a retomada dos estudos mais
propriamente culturais sobre a paisagem, em especial através de abordagens oriundas da
fenomenologia. Desde então, leituras hermenêuticas e atentas ao caráter discursivo do fenômeno
proliferaram, assim como estudos influenciados pelo marxismo inglês alimentado por Raymond
Williams. Essas interpretações, de um modo geral, voltavam-se para a dimensão simbólica da
paisagem e para sua produção social, passível de ser explicada como uma espécie de código
animado por livros, pinturas, fotos e demais sinais expressivos humanos. É a esse aspecto que
Edvânia Gomes (Gomes, 2001) se refere, ao dizer que “A paisagem é denotada pela morfologia e
conotada pelo conteúdo e processo de captura e representação (...) A paisagem só existe a partir
do indivíduo que a organiza, combina e promove arranjos do conteúdo e forma dos elementos e
processos, num jogo de mosaicos” (Gomes, 2001, p.30).
Mas é na obra de um historiador que essa abordagem simbólica ganha alcance explicativo
e mesmo teórico. Em trabalho sobre as relações entre paisagem e memória, o historiador Simon
Schama (Schama, 1996) mostra como a natureza sempre teria sido moldada culturalmente. Na
contramão de uma ingênua reflexão ecológica que vê o natural como uma entidade primitiva,
supostamente autêntica, que teria sido poluída pelos artefatos mobilizados pelos homens, Schama
argumenta que a natureza estaria relacionada de forma inescapável à cultura. Afinal, “(...) é nossa
percepção transformadora que estabelece a diferença entre matéria bruta e paisagem” (Schama,
1996, p.23).
21
Ao longo de seu livro, o autor mobiliza diversos registros históricos para mostrar como a
paisagem já é produção intelectual humana, que reúne os referentes vislumbrados no cenário
natural e organiza-os em imagens poderosas e metafóricas, que ganham vida e escapam à mera
descrição do existente. Nas suas palavras,
Paisagem é cultura antes de ser natureza; um construto da imaginação projetado
sobre mata, água, rocha. No entanto, cabe também reconhecer que, quando uma
determinada idéia de paisagem, um mito, uma visão, se forma num lugar
concreto, ela mistura categorias, torna-as metáforas mais reais que seus
referentes, torna-se de fato parte do cenário (Schama, 1996, p.70).
Pode-se extrair dessas discussões duas idéias sugestivas para pensar o tema desta tese: o
espaço como metáfora, construção intelectual, e o espaço como agente potencializado, força viva
a moldar a vida humana. Este segundo sentido, que tanta importância terá na obra de um dos
mestres da nossa imaginação espacial, Euclides da Cunha, é evidenciado por Schama na seguinte
passagem, dedicada a personagens que se notabilizaram pela produção de paisagens:
Ao escrever sobre o mundo gelado da Antártica, o escaldante sertão australiano,
a transformação ecológica da Nova Inglaterra ou as guerras pela água no Oeste
americano, autores como Stephen Pyne, William Cronom e Donald Worster
realizaram a proeza de transformar uma topografia inanimada em agentes
históricos com vida própria. Devolvendo à terra e ao clima o tipo de
imprevisibilidade criativa convencionalmente reservada aos atores humanos,
esses escritores criaram histórias nas quais o homem não é tudo. (Schama, 1996,
p.23).
Tais formulações encontram eco num dos clássicos da teoria sociológica. Nos seus
escritos sobre o significado sociológico do espaço, Georg Simmel (Simmel, 1997) argumenta que
este é categoria da imaginação, projetada como forma destinada a dar sentido às experiências
sociais de interação. Fiel a sua sociologia das formas, Simmel sugere que o que importa para a
análise social não é o espaço físico, mas a espacialização de processos sociológicos. Nesse
registro, o espaço é pensado por analogia à obra de arte, como uma atividade humana que, através
do fechamento e da ruptura introduzida entre o objeto e o mundo exterior, produz uma forma
definida
10
. Ao traçar este paralelo entre os limites de uma obra de arte e as fronteiras de um
10
No fundo, as formulações simmelianas devem muito à interpretação alemã da filosofia kantiana e suas postulações
sobre o espaço-tempo como categorias aprioristas do entendimento humano, ou seja, como formas que organizam e
dão sentido à experiência empírica, inacessível como “coisa em si”.
22
espaço, ele afirma que “The boundary is not a spatial fact with sociological consequences, but a
sociological fact that forms itself spatially” (Simmel, 1997, p.143).
Das formulações acima, retiro as seguintes sugestões: o espaço é cenário físico, por certo,
geografia povoada de referentes. Mas é também metáfora ou imagem capaz de dar sentido às
experiências sociais. Ou seja, mesmo quando diretamente referenciada numa realidade física
imediata, uma imagem pode extrapolar essa dimensão e operar como uma idéia que encarne
temas e problemas mais amplos. Não se trata, portanto, de postular apenas a dimensão cultural e
simbólica envolvida na apreensão da paisagem ou do espaço (passo imprescindível para o
encaminhamento do problema), mas de sustentar que esse simbolismo pode mesmo servir não só
à representação de um lugar, mas a uma discussão teórica na qual o espaço se associe a certas
qualidades ou propriedades de fenômenos de outra ordem. Como, então, essa conjunção entre
imaginação simbólica e pensamento social pode ser vislumbrada na prática, e a que serve? Este é
o tema da seção seguinte.
ESPAÇOS DA IMAGINAÇÃO.
Se nas seções anteriores estabeleci o caráter duplo da imaginação espacial, delimitando
uma dimensão mimética e outra simbólica, quero aqui argumentar que essa segunda dimensão
não é gratuita. Ela serve, principalmente, para a discussão de temas caros ao pensamento político
ocidental. Para usar uma recorrente, mas ainda assim, rentável expressão antropológica, o espaço
é “bom para pensar”. Pode-se traçar este percurso na análise de Louis Althusser (Althusser, 1972)
sobre a obra de Montesquieu. É famosa a distinção feita pelo nobre francês entre a planície,
associada ao despotismo, e as regiões montanhosas, propícias ao desenvolvimento de povos
livres. Por dedicar alguns dos capítulos de O Espírito das Leis ao estudo das relações necessárias
entre os climas, solos e temperaturas e os hábitos e costumes dos povos, Montesquieu é por vezes
considerado um dos fundadores da ciência social. Contudo, a análise feita por Althusser
descortina outros aspectos, mais ricos e instigantes, dessa dimensão sociológica do pensamento
do autor de Cartas Persas.
23
No caso das famosas páginas sobre o despotismo, Althusser leva o leitor gradualmente a
perceber este regime com uma “idéia política” que não pode ser circunscrita ao espaço físico real
descrito no texto. Segundo ele, “É o governo das terras extremas, das extensões extremas, sob o
mais ardente dos céus. É o governo – limite e o limite do governo” (Althusser, 1972, p.107).
Pode-se inferir daí que o espaço vazio, condição básica do deserto que se estende pelas planícies
orientais, é um espaço sem lugar, desmedido e infindável, porque privado de condições que
produzam coesão social, ordenamento ou hierarquias. É um deserto inventado, por assim dizer,
pelo déspota – “E o que o despotismo instala nas suas fronteiras é o próprio deserto, queimando
as terras, mesmo as suas, para se isolar do mundo, proteger-se dos contágios e das invasões de
que nada o pode guardar” (Althusser, 1972, p.113).
O deserto, geografia social do despotismo, seria, portanto, uma imagem carregada de
significados, capaz de ser localizada mesmo na França. Um dos mais famosos clássicos do
pensamento sul-americano, o Facundo, de Domingos Faustino Sarmiento, também emprega
imagens espaciais para produzir uma reflexão sobre nossos dilemas. Assim, uma região real, o
pampa gaúcho, povoada por personagens arredios, insolidários e avessos a uma sociabilidade
citadina, ecoa as regiões desérticas e despóticas desenhadas por Montesquieu. Uma leitura
interessante dessa obra é fornecida por Antônio Mitre (Mitre, 2003). Em ensaio intitulado “A
Parábola do Espelho. Identidade e Modernidade no Facundo de Sarmiento”, o autor relativiza a
clássica dicotomia civilização e barbárie que, para muitos, marcaria a reflexão sarmientiana,
apontando que ela não seria propriedade naturalista de regiões específicas. Ou seja, a barbárie
não seria expressão intrínseca de uma ontologia americana, já que a construção epistêmica de
Sarmiento seria racionalista, marcada por um processo introspectivo que buscaria em si mesmo a
chave explicativa. Sua preocupação seria com o dilema moderno genérico, sem se preocupar com
o tema da originalidade americana ou das manifestações fenomênicas da diversidade histórica.
Nas palavras de Mitre, “Sob esta perspectiva, as noções de civilização e barbárie, em vez de
aludir a espaços geográficos ou históricos definidos, representam, pelo contrário, os ingredientes
elementares que, em proporção variada, constituem a substância híbrida de toda modernidade”
(Mitre, 2003, p.46-47).
24
Mitre aponta para a substância racionalista do debate levantado por Sarmiento, que não
pode ser reduzido às geografias particulares mobilizadas na obra. É claro que, com o
aparecimento dos gaúchos, a barbárie se encarna na História e veste personagens específicos e
delimitados regionalmente. Torna-se uma circunstância específica. Mas essa barbárie
Não é a utopia do reino perdido nem o canto de cisne de uma época, e menos
ainda a encarnação do mal. É a linguagem ancestral da consciência sacudida por
um novo tempo. A força terrível e fascinante que a Europa enterrou em suas
cidades populosas mas que, transfigurada ou escondida, aninha-se em toda
aventura civilizatória. (Mitre, 2003, p.59).
Ao aproximarmos as leituras de Althusser sobre Montesquieu e de Mitre sobre Sarmiento,
percebemos que o tema do espaço guarda dimensões para além dos domínios da Geografia.
Como apontei anteriormente, uma dessas dimensões diz respeito à mobilização de imagens
geográficas para a produção de narrativas e interpretações sobre a civilização e seus dilemas. O
pampa gaúcho e as planícies do Oriente são recursos discursivos que permitem aos que os
mobilizam o exercício de comparações cruciais para o refinamento de seus argumentos.
Possibilitam a visualização da experiência humana e a definição de matrizes civilizatórias
distintas, reconhecíveis ainda hoje na linguagem histórica: o “deserto”, a “fronteira” e, no caso
específico do Brasil, o “sertão”. Fenômeno semelhante também pode ser observado no caso da
cidade, tida como imagem espacial por excelência da vida moderna e símbolo das principais
formas de sociabilidade do período
11
. Em texto sobre a vida urbana no pensamento europeu,
Carl Schorske (Schorske, 2000) mostra como as percepções construídas sobre esse meio social
passaram por três fases: a cidade como virtude, a cidade como vício, e a cidade para além do bem
e do mal. Se Voltaire e os iluministas viam a cidade como centro de civilização e local do
refinamento de maneiras e costumes, os poetas ingleses do século XVIII, como Blake, advertiam
os homens sobre a degenerescência que grassava nos centros industriais. Somente após o impacto
de Baudelaire na cultura francesa a cidade teria perdido suas conotações unívocas, passando a ser
narrada como o ambíguo local das multidões, que ofereceria prazer e dor, individualidade e
anonimato, constituindo-se num destino inescapável, que deveria ser experimentado
intensamente. Mais do que um local situado no tempo – seja como um futuro civilizatório (na
11
Em obra já clássica sobre o modernismo, Marshall Berman (Berman, 1986) argumenta que a cidade seria o palco
por excelência do drama moderno – caracterizado pela dialética entre liberdade e perigo – e ocuparia papel central na
imaginação social européia.
25
versão voltaireana), seja como uma traição aos valores do passado (na versão pastoral inglesa) –,
a cidade teria atributos temporais, oferecendo momentos fugazes e instantâneos de experiência.
Note-se, contudo, que a imaginação espacial ganha cores singulares na periferia, onde os
temas clássicos da modernidade européia foram reinterpretados e a experiência urbana sempre foi
vista como uma espécie de “fantasmagoria”. Berman (Berman, 1986), por exemplo, utiliza a
categoria “modernismo do subdesenvolvimento” para decifrar o caminho da modernização russa.
Ao caracterizar a cidade sede do sonho ocidentalizante, Petersburgo, como uma cidade criada
pelo pensamento, sugere que, na Rússia, a vida urbana teria sido introduzida como uma utopia,
um desenho inscrito no real. Esse aspecto teria dotado a modernidade periférica de um aspecto
mais escandaloso e exagerado – porque não dizer, barroco. Angel Rama (Rama, 1985), em sua
obra clássica sobre a América Latina, segue perspectiva aparentada e observa que a cidade nessa
região seria pensada como um ativismo organizador da Idéia, movimento do discurso letrado para
organizar a vida nativa. Na sua interpretação do tema, José Luiz Romero (Romero, 2004) mostra
como as cidades aqui teriam passado por diversas fases, transformando-se sempre sob os influxos
da ocidentalização. Um de seus argumentos interessantes diz respeito à confluência entre uma
dimensão heterônoma da cidade, encarnada no ato de fundação política dessas localidades, e um
ritmo autônomo de desenvolvimento. É dessa tensão constante – entre uma vontade colonial que
inventa sobre o nada e a erupção de grupos e formas de vida subterrâneos – que se nutriria a
cidade na América Latina.
As clássicas narrativas de Sérgio Buarque de Holanda (Holanda, 1995) sobre as distintas
direções colonizadoras de Portugal e Espanha retomam esse ponto, mas lhe dão uma inflexão
distinta. Ao investigar as configurações do urbano nas regiões lusitanas e espanholas, o
historiador paulista argumenta que os portugueses teriam se alimentado de uma mentalidade mais
plástica do que seus vizinhos peninsulares, posto que aberta para a adaptação e avessa ao
fundacionismo geométrico e abstrato que marcaria as vilas espanholas na América. Nesse
registro, o barroquismo que Romero tanto enfatiza como constituinte da mentalidade urbana
americana – capaz de inventar sociedades fidalgas mais nobres e impermeáveis que as européias
26
– talvez fosse “atenuada”
12
em terras portuguesas, sob a batuta de um certo pragmatismo mais
rotineiro e menos especulativo
13
.
Nesta imaginação espacial peculiar, além da cidade ganhar significados distintos daqueles
atribuídos por Schorske ao pensamento urbanista europeu, outras imagens foram mobilizadas
para a representação dos dilemas modernos. Percebe-se, portanto, que o problema do espaço na
imaginação periférica demanda a produção de uma cartografia intelectual específica. Mas quais
são as imagens espaciais mais relevantes para a demarcação desse mapa, e como elas podem ser
pensadas no caso brasileiro? Esse tema será discutido no capítulo seguinte, e será desdobrado
através da análise dos personagens tomados como objeto desta tese.
****
Este trabalho tem três movimentos. No primeiro, já realizado nesta introdução, sugeri que
há uma forte relação entre espaço e sociabilidade na imaginação social, e que essa relação
comporta duas dimensões: por um lado, a produção formadora do pensamento geográfico e
científico, que vê o espaço como uma variável independente na explicação de hábitos e costumes
humanos. Neste caso, estamos falando de uma espécie de física social, e de espaços “realmente
existentes”. Por outro lado, parte significativa do pensamento social ocidental referiu o espaço a
imagens e alegorias que dizem respeito a formas de sociabilidade e problemas clássicos da
organização de sociedades, configurando uma espécie de metafísica. Nessas seções iniciais
dediquei-me, então, a apresentar o tema mais geral da relação entre espaço e moldura moral, a
discussão teórica que me permite sustentar o componente simbólico dessa categoria, e o enfoque
específico que me orienta: a terra na imaginação social brasileira. No capítulo 1, aponto,
brevemente, como o tema espacial foi concebido em formações sociais que conheceram
processos modernizadores alternativos em relação ao padrão clássico da Europa Ocidental (além
de Rússia e Estados Unidos, centrais para esta tese, apresento também a Alemanha), de forma a
compor um mapa intelectual que orientaria as diversas associações entre espaço e civilização.
12
A categoria “atenuações plausíveis” ganha tratamento de relevo na obra Visões do Paraíso, que terei a
oportunidade de tratar brevemente mais adiante.
13
Como se verá ao longo desta tese e, em especial, no capítulo final, essa associação entre barroco e pragmatismo
terá importância para o desvendamento da matriz civilizatória apontada pela terra.
27
Não se trata, é claro, de investigar os reais contornos da Geografia enquanto disciplina nessas
sociedades, mas destacar as interpretações que ajudaram a construir uma determinada idéia de
Rússia, de Estados Unidos e de Alemanha. Também mostro, por fim, como a terra e a natureza
teriam sido pensadas ao longo do processo de construção nacional do Brasil. Destaco as primeiras
versões do tema – ainda sob impacto da experiência colonizadora –, a tradição romântica e a
tradição naturalista, ressaltando sempre que não restrinjo o tema da terra ao mundo agrário
brasileiro, entendendo-o como uma imagem que escapa ao seu referente específico. Essas
discussões configuram o capítulo 1 da tese.
Num segundo movimento, exposto nos capítulos 2, 3, 4 e 5, trabalho mais detidamente a
terra a partir do meu objeto específico. Para tanto, investigo não apenas as obras e o contexto
social e intelectual de Euclides da Cunha e de Vicente Licínio Cardoso, mas também algumas
produções centrais para a reflexão modernista sobre o tema. Assim, o capítulo 2 é dedicado a
uma apresentação do universo intelectual formado por Graça Aranha, Ronald de Carvalho e a
revista A Festa, a partir do qual busco avançar uma interpretação sobre o sentido da reflexão
espacial nos domínios do modernismo. Resumindo o argumento, sugiro que a imaginação
espacial desses personagens é ambígua em relação à natureza americana de nossa formação
social, o que pode ser explicado pela própria configuração do universo intelectual em que se
moviam. O capítulo se encerra com uma comparação entre essa “terra modernista” e as outras
idéias espaciais apresentadas no primeiro capítulo. No capítulo 3, apresento minha interpretação
do universo social em que se moviam Euclides e Vicente Licínio, destacando o sentido assumido
pela engenharia nas suas trajetórias, e o rendimento explicativo que essas trajetórias possam ter
sobre o significado que emprestaram à terra em seus escritos. Ao enumerar diversas formas de
articulação entre engenharia e sociedade em outras formações sociais (Estados Unidos, Alemanha
e Itália), meu objetivo é localizar o significado desse específico modernismo nacional, que
apresenta decisivas particularidades em relação ao universo modernista estudado no capítulo 2.
Os capítulos 4 e 5 são dedicados aos escritos de Euclides e Vicente Licínio. Em relação
ao primeiro, apresento inicialmente os dilemas euclidianos que envolvem a terra, a partir das
discussões contemporâneas voltadas para Os Sertões – sua recepção e interpretações – e para o
problema que, do meu ponto de vista, estrutura as reflexões do autor nessa obra: a afirmação da
28
civilização numa sociedade americana. Após argumentar que este problema permanece como
uma tensão, dada a insistência de Euclides em associar a terra a uma ontologia étnico-
essencialista centrada na idéia do mestiço como tipo ideal de nacionalidade, sugiro que seus
textos “amazônicos” possibilitam outra visão sobre o tema, assentada em torno de uma
comparação entre Brasil e Rússia. Em seguida, dedico o quinto capítulo a Vicente Licínio
Cardoso, interpretando os escritos do autor a partir da perspectiva apresentada no terceiro
capítulo. Destaco o sentido aberto que a terra ganha em suas formulações, operando de forma
mais decidida o que havia apenas sido sugerido nos escritos amazônicos de Euclides – a recusa
da essencialização e da busca das origens. Nesse registro é que situo os escritos americanistas do
autor, assim como sua reflexão sobre o problema da máquina na sociedade industrial moderna e
suas perspectivas pedagógicas. Ao final, caracterizo mais precisamente a moldura “Rússia
Americana” que estabeleço no capítulo dedicado a Euclides, e que pode ser estendida para a
própria configuração sociológica do par Euclides-Licínio.
O terceiro movimento centra-se no capítulo 6, no qual trabalho a idéia da Rússia
Americana como chave interpretativa para decifração da moralidade extraída da categoria terra.
Essa noção, explicitada com pioneirismo por Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala, revela
a complexidade do problema da afirmação de uma ordem civilizada numa sociedade tida como
periférica. Creio que essa expressão traduz uma interpretação possível para o andamento do
moderno no Brasil que ressalta não propriamente nosso hibridismo singular, mas nossa inserção
numa certa matriz civilizatória alternativa, marcada pela inventividade, pelo pragmatismo e pelo
caráter processual e aberto de nossa construção nacional. A face russa desse problema traduz a
fragmentação e a anomia social, mas também indica uma forma nova de vida social, marcada por
uma vigorosa energia de seus personagens e pela “juventude” de sua construção moderna.
Mostrarei, nas análises de Licínio e Euclides, que a Rússia não ocupa o Extremo Oriente na
cartografia intelectual destes autores e, portanto, não se reduz ao estigma despótico. A América,
por sua vez, é tradução da possibilidade de invenção aberta à sociabilidade brasileira, pois o
americanismo aqui tratado diz respeito a um ordenamento social dinamizado pela vida prática e
pela ação de homens novos. Como resultado deste composto, abre-se, a partir da leitura dos dois
autores, uma perspectiva civilizacional que afasta a dura dicotomia entre Oriente e Ocidente e
permite a possibilidade de se pensar um código moral distinto, no qual a “barbárie” surge como
29
possibilidade civilizatória desde que regulada e animada por um processo de construção nacional.
A articulação Brasil-Rússia-América implicaria a percepção de uma geografia original no grande
debate intelectual sobre a afirmação do moderno na periferia. Ao mesmo tempo, sugiro que a
“Rússia Americana” encontra tradução sociológica na própria configuração intelectual que
organizava um certo ethos partilhado por Licínio e Euclides.
30
CAPÍTULO 1. A METAFÍSICA DA TERRA.
Este capítulo é dividido em duas seções. Na primeira, apresento brevemente as diversas
narrativas a respeito da terra nos Estados Unidos, na Alemanha e na Rússia. O objetivo é mostrar
como essa imagem espacial foi interpretada em sociedades tidas como periféricas
14
,
freqüentemente aproximadas ao caso brasileiro. Discuto como uma lógica espacializante não
implica uma resistência à modernização, mas aponta para a caracterização de distintas formas de
ajuste social ao capitalismo e ao Ocidente. Em seguida, traço uma breve história da imaginação
espacial brasileira, destacando os temas mais recorrentes e minha perspectiva a respeito do
problema da terra. O que é a terra em formações modernas não-originárias? Qual o seu
significado? Significaria o predomínio de uma visão espacial avessa ao dinamismo temporal do
capital, uma visão recessiva, capaz de transformar o lugar em um ponto de resistência? Nesses
termos, a terra seria lugar de um essencialismo tingido de cores românticas e destinado a ser
empunhado como bandeira particularista?
Sugiro que um exame do significado da imaginação espacial em outras sociedades pode
favorecer a caracterização de uma matriz civilizatória alternativa. Assim, as alegorias espaciais
possuiriam a qualidade de localizar nessas formações personagens e formas de vida dinâmicas
que, diferentemente do cânone liberal, também puderam operar pontos de passagem para a
modernidade. Não se trata, portanto, de ver nessas formas apenas essências desajustadas ao ritmo
do tempo, como se o espaço fosse expressão de uma resistência à uniformização. Para tanto,
analiso os casos alemão, americano, russo e brasileiro. No caso dos três primeiros, valho-me da
apresentação de três personagens modelares na imaginação intelectual dessas sociedades –
Weber, Frederick Turner e Lênin, respectivamente –, tomando-os como representantes
“documentais” que auxiliaram na conformação de narrativas sobre a modernização que tinham a
terra como eixo. Outros analistas, mais próximos do cenário das ciências sociais contemporâneas,
14
A associação dos Estados Unidos à “periferia” pode provocar estranhamento, mas justifica-se quando se quer
delimitar sociedades cujos processos de modernização encontraram outros caminhos quando comparados aos países
da Europa Ocidental – região nativa da vida moderna. Ademais, os Estados Unidos apareciam, nas primeiras décadas
do século XX, como uma região nova aos olhos dos intelectuais aqui estudados.O uso eventual do termo “periferia”
não implica nem a adoção de um modelo interpretativo tributário das teorias do imperialismo, nem a atribuição de
quaisquer juízos de valor aos processos de modernização descritos.
31
são também incorporados. A seção sobre o Brasil segue caminho semelhante, mas com uma
presença mais significativa de estudos contemporâneos.
1.1. ALEMANHA, ESTADOS UNIDOS E RÚSSIA.
O tema da terra na cultura alemã guarda significados e implicações que certamente
escapam ao escopo deste capítulo. Afinal, a Alemanha é o território no qual a associação entre
romantismo, natureza e anticapitalismo ganhou tons mais fortes, ocupando boa parte do
pensamento político nacional ao longo do século XIX e início do XX. Na sua já citada obra,
Schama mostra como a presença da floresta na imaginação alemã é antiga, remontando às
construções que recuperavam o sentido “bárbaro” da mesma, a fim de ressaltar as qualidades de
formação não romana. Posteriormente, a floresta teria passado a ser identificada por seus
habitantes como natural e virtuosa, perdendo sua conotação selvagem. Esse movimento
culminaria na produção de uma etnografia sentimental alemã, cujo expoente no século XVIII
teria sido Herder. Mais tarde, a tensão entre a cultura nacional, entendida como produção
orgânica de uma comunidade assentada num espaço histórico, e a dinâmica temporal da
modernidade ocidental, constituiria um dos grandes problemas da inteligência alemã nos
momentos decisivos da construção nacional dessa sociedade.
É esse dilema entre tempo e espaço, aliás, o problema de Max Weber (Weber, 1958) no
seu “Capitalismo e Questão Agrária na Alemanha”. Nesse ensaio, Weber compara as regiões
ocidentais e orientais da Alemanha, atentando para a compatibilidade entre a emergência de um
moderno capitalismo e as configurações do mundo rural alemão. Nesses termos, o
encaminhamento da questão passaria por um necessário enfrentamento com a metafísica da terra
alemã. Ou seja, haveria que se responder como as relações capitalistas se assentariam no âmbito
de formas de vida moldadas pela sociabilidade Junker. Em que medida o dinamismo das novas
relações representaria o esfacelamento das redes territoriais de poder de uma classe que se
estabilizava por meio de um controle estrito sobre a hierarquia espacial? Na interpretação de
Weber, o capitalismo em sociedades antigas como a alemã teria que lidar com questões desse
tipo, dado o peso exercido pelas classes tradicionais e pelo próprio “fechamento” do território.
Isto é, a dinâmica temporal própria do capitalismo teria efeitos diferentes em sociedades novas
32
(abertas à expansão de fronteiras e sem pesadas camadas de tradição recobrindo o mundo agrário)
e sociedades antigas, nas quais o espaço hierarquizado e regulado representaria uma tendência
cultural oposta. Enfatizando a diferença entre essas duas lógicas, o sociólogo alemão diz:
The old economic order asked: How can I give, on this piece of land, work and
sustance to the greatest possible number of men? Capitalism asks: From this
piece of land how can I produce as many crops as possible for the market with
as few man as possible? (Weber, 1958, p.367).
Nesta chave, a metafísica da terra na Alemanha poderia ser entendida como a resistência
de um espaço tradicional à lógica temporal própria do capitalismo moderno, que incorporaria
quaisquer áreas e regiões. Contudo, o estudo de Weber expressa não uma afirmação definitiva,
mas a percepção de uma tensão constitutiva da experiência alemã. No caso, a terra seria “antiga”,
e o apego da imaginação alemã a ela expressaria a tensão resultante da implantação do
capitalismo em áreas já densamente povoadas e reguladas. A inscrição do sociólogo alemão nos
combates de seu tempo, em especial nas lutas referentes à definição da política do recente Estado
Nacional, evidencia que o problema da relação entre terra e modernização era tema central para a
intelligentsia do período. Num momento posterior à morte de Weber, esse problema ganharia
uma solução radical, configurando uma determinada versão da relação entre espaço e
modernidade.
Em seu trabalho sobre as paradoxais relações dos movimentos de direita alemã com o
Iluminismo, Jeffrey Herf (Herf, 1993) argumenta que o chamado “modernismo reacionário”
alemão teria conciliado ideais românticos com forte apelo à tecnologia e ao progresso científico.
Tratar-se-ia, portanto, de versão truncada do Iluminismo, na qual o natural não representaria
escapismo ou rejeição, mas elemento dinamizador de uma cultura técnica nacional. Os porta-
vozes dessa versão seriam os professores universitários de engenharia e colaboradores de revistas
editadas por associações nacionais de classe, atores responsáveis pelo que Goebels teria
classificado de “romantismo de aço”. Segundo Herf, a associação entre tecnologia e Kultur
implicava uma abordagem da modernidade industrial que repelia o mundo liberal-capitalista,
rejeitava a sociedade de trocas e negava a relação entre técnica e interesses privados. Engenharia,
nesse caso, significaria uma espécie de artesanato orgânico. Analisando a atuação de um desses
personagens, Herf afirma:
33
Engenheiros tais como Hardensett repetiam e repetiam obsessivamente a
afirmação de que a tecnologia era alemã, espiritual, cósmica, completa, total,
permanente, organizada e metódica e, como tal, tinha consigo algo de pré-
capitalista e/ou não capitalista (...) A tecnologia e o homem técnico eram as
forças naturais (Herf, 1993, p.207).
O estudo de Herf ilustra a configuração que terminou por resolver o dilema alemão e,
conseqüentemente, a tensão entre tempo e espaço apresentada no início desta seção. Ao
transformarem a natureza e as qualidades a ela atribuídas em fontes de um modernismo nacional,
os engenheiros e intelectuais alemães de direita descartaram uma versão antitética da relação
entre natureza e modernidade, preferindo estabelecer as bases de uma apropriação seletiva do
Iluminismo. Essa espécie de transformismo é apontada também por Norbert Elias (Elias, 1997),
em obra sobre a dinâmica civilizatória alemã. Ele argumenta que o habitus de sua sociedade teria
passado por profundas mudanças ao longo dos séculos XIX e XX. Se antes o código moral
burguês, sustentado por uma classe média ciosa de seus valores humanistas e fundamentado em
idéias de igualdade social, era mobilizado como arma contra a corte, depois de 1871 o código
guerreiro da aristocracia teria se espraiado nacionalmente, convertendo-se em habitus nacional e
sendo adotado por vastas camadas médias e burguesas. Se o processo civilizador pelo meio do
qual regras aristocráticas progressivamente eram adotadas por estratos inferiores era comum a
outras sociedades européias, na Alemanha ele ganhava conteúdo especifico, dada a configuração
das redes de poder desse país. Ecoando argumento de Weber a respeito da fragilidade da
burguesia alemã diante do predomínio dos junkers, Elias afirma que o compromisso entre rei e
nobreza na Prússia (região que conduziu a unificação alemã) serviu para que a máquina
burocrática operasse como garantidora de privilégios, abrindo-se pouco para os interesses
burgueses. Conforme afirma o autor,
Na Prússia, porém, com suas cidades comparativamente pobres, a proporção de
poder entre a nobreza e a burguesia era relativamente desigual e favorável à
aristocracia, enquanto que a tensão social entre os dois estados permanecia,
como na maior parte da Alemanha, bastante elevada. Assim, o equilíbrio de
tensões entre as três concentrações centrais de poder – rei/nobreza/burguesia –
fixou-se numa figuração que se avizinhou de um compromisso tácito entre a
nobreza e o rei. (Elias, 1997, p.68).
Essa posição favorável, associada a uma constante mobilização militar exigida pelas
conflituosas relações de fronteiras, fez com que o código aristocrático prussiano ganhasse fortes
34
tonalidades guerreiras e, progressivamente, se expandisse por outros estratos sociais. Nesse
sentido, Elias, assim como Herf, narra um processo modernizador no qual as elites nacionais
teriam se valido de suas fontes de poder e significação cultural tradicionais para empreenderem
uma inscrição seletiva na dinâmica temporal do Ocidente. Mobilizando essa interpretação a partir
do quadro apresentado por Weber, pode-se dizer que a tensão entre terra e modernização na
Alemanha não permaneceu balizada pela reiteração de uma antítese própria do romantismo, mas
foi resolvida com a incorporação da primeira como reserva de poder e significado tanto para as
elites tradicionais – os prussianos guerreiros de Elias –, quanto para a inteligência universitária
15
– os engenheiros estudados por Herf.
No caso norte-americano, o problema é exatamente o oposto. Se seguirmos ainda o texto
weberiano, veremos que na sua perspectiva os Estados Unidos representariam melhor que
qualquer outro lugar a imagem de uma sociedade nova, em que a questão da terra não se encontra
encapsulada pela tradição ou pela fixidez do espaço. Nas suas palavras,
The United States dos not yet know such problems. This nation will probably
never encounter some of them. It has no old aristocracy; hence the tensions
caused by the contrast between authoritarian tradition and the purely commercial
character of modern economic conditions do not exist. (Weber, 1958, p.385).
Note-se que a temática espacial ocupa posição de relevo na própria mitologia fundacional
dos Estados Unidos. No registro de Robert Bellah (Bellah, 1992), as categorias de “wilderness” e
“paradise” eram dialeticamente intercambiadas pelos fervorosos protestantes que viam na então
colônia a possibilidade de purificação moral e espiritual. Assim, o espaço vazio que se abria para
o empreendimento civilizatório não seria necessariamente uma vastidão assustadora e tenebrosa,
mas antes um jardim de promissão. Nas suas palavras,
Under the circumstances, wilderness was by no means entirely a negative
concept. It was a place of danger and temptation, but the “eclosed garden” that
the saints were required to build up in the midst of the wilderness was itself a
foretaste of paradise (Bellah, 1992, p.12).
15
O parentesco entre nobres prussianos e engenheiros universitários pode parecer, à primeira vista, algo forçado.
Contudo, o estudo de Fritz Ringer (Ringer, 2000) mostra como a inteligência universitária alemã terminou
encastelando-se numa posição refratária ao mundo dos novos interesses que emergia com a industrialização e
modernização alemãs. Neste sentido, o autor fala de um “mandarinato”, cioso da posição hierárquica superior
supostamente garantida pela defesa de uma Kultur orgânica e qualitativamente diversa do positivismo anglo-saxão.
35
Essa visão religiosa da natureza americana também é destacada por Schama, que em sua
já citada obra, toma como objeto as chamadas “Grandes Árvores” americanas (sequóias e
carvalhos) e as interpreta como documentos simbólicos que evidenciam analogia entre ciclo
vegetal e teologia de sacrifício. A floresta surgiria como uma espécie de doação divina,
encarnação de uma propriedade civilizatória inventiva e nova. Assim, natureza, divindade e
liberdade se associariam numa fabulação que encontraria sua garantia de excepcionalidade nessas
típicas árvores do país. Conforme o próprio afirma, “As florestas, portanto, proclamavam a
constituição natural da América livre, diante da qual um documento elaborado pelo homem não
passava de uma arvorezinha produzida pela invenção filosófica” (Schama, 1996, p.208).
Se a natureza e as florestas foram desde sempre referências fortes do mito fundacional dos
Estados Unidos, foi a fronteira – como símbolo da terra livre – que ocupou posição de destaque
na imaginação estadunidense desde o final do século XIX até boa parte do século XX. Desde a
publicação, em 1893, do clássico de Frederick Jackson Turner, “The Significance of the Frontier
in American History”, essa geografia tornou-se tema obrigatório para a decifração da cultura
daquela sociedade
16
. Nesses debates, invariavelmente se destaca a associação entre espaço
aberto, ativismo empreendedor, capitalismo e democracia, como se a experiência da fronteira
sintetizasse o caráter horizontal, democrático e inventivo que marcaria a sociabilidade dos
pioneiros. Nesse registro, os Estados Unidos representariam a sociedade geográfica por
excelência. No dizer de Oliveira, que recupera a trajetória dessa discussão,
Daí que, para Turner, a democracia nasceu sem sonhos teóricos. O espaço
americano era como terra virgem, uma manifestação direta do estado da
natureza, em oposição à história (...). Não teria sido a Constituição, mas a terra
livre a base necessária à construção do tipo democrático de sociedade na
América. (Oliveira, 2000, p. 133).
16
Para uma história social da fronteira americana em movimento, ver Richard Bartlett (Bartlett, 1974). Segundo o
autor, a historiografia clássica consagrou uma versão triunfante do tema, sem atentar para as sutilezas do processo,
permeado de negociações diplomáticas e arranjos políticos circunstanciais. Ainda de acordo com Bartlett, a figura de
Turner teria sido fundamental para essa consagração, já que “(...)1893 was indeed a fitting time for an historian to
present such a thesis; and for nearly forty years, until the depression of the 1930’s, Turner’s thesis had few critics
and many defenders. Turner was a master teacher: first at the University of Wisconsin and later at Harvard, graduate
students flocked to his seminars; more than a score of his protégés became leading American historians, their
monographs and textbooks so permeated with the Turner thesis that at least two generations of Americans came to
believe that America was different, and better, than the rest of the world because its people had passed through the
forntier experience” (Bartlett, 1974, p.446)
36
Robert Wegner (Wegner, 2000) segue caminho semelhante ao de Oliveira, ao destacar
que o núcleo da tese de Turner diz respeito ao papel das terras livres na formação cultural
americana, e não a um ideário anglo-saxão já pré-formado. Nessa perspectiva, o encontro com o
wilderness (que, segundo o autor, pode significar tanto “deserto” quanto “selvagem”)
representaria o processo de constituição de uma nova nação. Segundo Wegner,
Portanto, os valores norte-americanos são gerados, conjuntamente – e aqui
percebe-se como a tese é permeada por aquele duplo sentido que a palavra
fronteira adquire nos Estados Unidos (e, também, o próprio termo wilderness) –,
pelas novas oportunidades oferecidas pelas terras livres e pelo constante
reencontro com a natureza e o mundo primitivo. (Wegner, 2000, p.98).
Obviamente, essa poderosa imaginação espacial teria que lidar com o problema do
esgotamento das fronteiras. O fim do pioneirismo significaria o próprio esgotamento das energias
democráticas estadunidenses? Como conciliar a imagem de uma democracia agrária jacksoniana
com a emergência de uma complexa vida industrial? Na visão de Oliveira, a fronteira no século
XX teria sido requalificada pelo discurso imperialista de Theodor Roosevelt, que localizou na
expansão sobre as Américas a possibilidade de ampliação contínua de um processo fechado
internamente. Numa perspectiva teórica mais larga, como a desenvolvida por Antonio Negri
(Negri, 2002), esse problema seria estruturante do republicanismo americano, e não encontraria
solução que escapasse à institucionalização do poder. Ou seja, a contínua atividade colonizadora
que teria desbravado o espaço americano e identificado propriedade e liberdade encontraria sua
antítese na regulação constitucional dessa energia radical. Nesses termos, o poder constituído
seria a fronteira final da energia aparentemente infinita do poder constituinte “geográfico” do
período de Jefferson. Impossível, portanto, alimentar uma dinâmica temporal que se nutrisse do
mito de uma democracia de pequenos proprietários. No dizer de Negri,
A democracia jeffersoniana experimenta um destino não menos perverso. Em
seu conceito expansivo da liberdade que se projeta sobre a fronteira, ressoam
inicialmente os grandes ecos de um continente a ser conquistado. A história dos
primeiros tempos do jeffersonianismo é a história da liberação de uma imensa
multidão de homens e mulheres, uma saga inédita de apropriação heróica dos
espaços. Também aqui, porém, a contradição se manifesta: ela está na
descoberta da finitude daquele espaço que se acreditava infinito. (Negri, 2002,
p.273).
37
Como se pode perceber, a metafísica da terra americana guarda sentido oposto ao caso
alemão. Se este localiza no espaço uma projeção do que Weber chama de backwardness, aquela
vê a terra como originalmente espaço livre, propriedade eternamente juvenil destinada a ser
conquistada pelos pioneiros. Mesmo Negri, crítico do edifício constitucional que moderou o
ímpeto revolucionário estadunidense, vislumbra na narrativa que associa espaço e liberdade um
dos pilares do americanismo.
O caso russo talvez seja, até hoje, um dos exemplos mais impactantes de construção de
uma sociedade moderna a partir de uma matriz cultural que se debatia incessantemente sobre sua
própria filiação ao Ocidente. Afinal, a Revolução de Outubro de 1917, conduzida sob a égide de
uma ideologia nascida em sociedades industriais da Europa, prosperou numa formação social
cuja intelectualidade ao longo do século XIX buscou alcançar o melhor da promessa iluminista –
liberdade e progresso – lançando mão de uma afirmação radical da singularidade. Essa estratégia,
consagrada pelo movimento narodnik (o populismo russo) terminou superada durante os
primeiros anos do século XX por um movimento político que usou o atraso como tática
revolucionária, e não valor a ser cultivado. Nesses termos, o encaminhamento da questão agrária
ganhou contornos dramáticos nesse país. Como se resolveu o dilema da terra na Rússia? Para
responder a essa pergunta, faz-se necessário recuperar brevemente certos episódios da história
intelectual russa, tomando como eixo a polêmica entre Lênin e os populistas, ambos intérpretes
por excelência do dilema que opunha terra e modernização naquela sociedade.
No século XIX, as possibilidades revolucionárias abertas nas décadas de 30 e 40 na
Europa seduziam boa parte da intelectualidade russa. Para os ocidentalistas, o caminho para a
afirmação do moderno na Rússia passaria por um choque civilizatório sob o influxo de um
programa ocidentalizante. Tratar-se-ia, portanto, da consolidação de reformas que
constitucionalizassem o país e abolissem a servidão, desviando a Rússia do caminho feudal que
insistia em amarrá-la. A derrota das grandes jornadas européias de 1848 desestabilizou e isolou
esse grupo, que se voltou para as questões internas russas e, sob intensa repressão, buscou
construir uma poderosa vontade moral e política. Segundo Isaiah Berlin (Berlin, 1988), o
nascimento do populismo russo pode ser datado na grande efervescência que se seguiu à morte do
czar Nicolau I e à derrota na Guerra da Criméia. A contrário dos eslavófilos, corrente política que
38
se aferrava à tradição russa como refúgio para uma posição quietista e até reacionária, os
populistas viam nessa mesma tradição elementos que poderiam alimentar uma estratégia para a
construção de um caminho alternativo ao moderno. Na raiz desse problema está a questão
camponesa russa e o tema da terra.
O problema da servidão na Rússia era tido por todos (até por membros da burocracia
czarista) como crucial para o desenvolvimento econômico do país. As dúvidas sobre a forma
como esse problema deveria ser equacionado eram muitas, já que a terra na cultura camponesa
russa era indissociável de quem a cultivava. Dever-se-ia libertar os camponeses e transformá-los
em assalariados, ou preservar a posse da terra na forma de pequenas propriedades rurais? Como
deveria ser feita a emancipação? Esse problema de ordem prática indicava uma questão política
de alcance maior e que alimentava boa parte da reflexão que ficou conhecida como “populista”.
Aferrados cada vez mais ao socialismo, os populistas mostraram-se avessos ao caminho clássico
vivenciado pelo proletariado europeu, e rejeitavam as conseqüências da organização industrial
capitalista. A Rússia lhes parecia oferecer possibilidades de construir uma alternativa socialista
mais humana, que possibilitasse uma entrada menos traumática no reino da liberdade e da
igualdade. A obshina, instituição do mundo rural que organizava as relações sociais e de trabalho
entre os lavradores, assumia uma posição ambígua. Embora estivesse vinculada ao mundo feudal
que organizava as relações entre patrões-servos, parecia também guardar a semente de uma
solidariedade campesina que muito se assemelhava às pregações socialistas originárias. O
populismo nasce desse certo desencanto com a estratégia revolucionária ocidental, cuja vitalidade
parecia esmagada entre as instituições representativas liberais e o complexo mundo das relações
de classe numa ordem industrial. Ao mencionar a trajetória intelectual de Herzen, figura singular
que resumia as mudanças de orientação no seio da intelectualidade russa (de um ocidentalismo-
socialista inspirado no legado “dezembrista” ao populismo narodnik que grassou nos anos 70),
Franco Venturi afirma:
Los puntos fundamentales del populismo russo - la desconfianza ante toda
democracia genérica, la creencia en un posible desarrollo autõnomo del
socialismo en Rusia, la fe en las futuras posibilidades de la obshina, la
necessidad de crear tipos revolucionarios que rompieran individualmente los
lazos com el mundo circundante para dedicarse al pueblo y penetrar en él -, estas
eran las conclusiones que Herzen sacaba de su experiencia de 1848, este era el
fruto que creaba para la nueva geración. (Venturi, 1981, p.140).
39
Percebe-se que o legado desse grupo intelectual foi uma resoluta vontade de chegar ao
Ocidente por um caminho dinamizado pela tradição, localizada no meio agrário. Não se tratava,
certamente, do caminho espacial americano, no qual a terra seria uma fronteira aberta para o
pioneirismo, território a ser organizado por personagens móveis. Também não se identificava
com o caso alemão, no qual o espaço agrário representaria uma geografia reticente à dinamização
temporal do capital, produzindo uma tensão entre o novo e a tradição que só seria resolvida com
recurso a uma incorporação seletiva, própria do modernismo reacionário. A metafísica populista
russa da terra via no espaço uma tradição que serviria de energia revolucionária. A terra não seria
espaço vazio, mas antes expressão de uma profunda relação dos camponeses com suas formas de
vida tradicionais, relação esta que não deveria ser mantida em contradição com o novo, mas
potencializada pela Idéia e pela vontade política.
As versões oficiais da Revolução Russa gostam de demarcar de forma rígida as diferenças
entre os populistas e os bolcheviques. Os embates entre os bolcheviques e os herdeiros do
populismo eram freqüentes, e boa parte dos escritos de Lênin era dedicada à crítica às
formulações desse grupo. O Capítulo I do seu O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia é
intitulado “Os Erros Teóricos dos Economistas Populistas”. Nele, Lênin (Lênin, 1982) investe
contra a visão que esses economistas alimentavam a respeito da expansão do capitalismo na
Rússia, tida por eles como uma ameaça a obshina e às tradições comunais do campesinato. Na
visão leninista, essa expansão era progressista, e contribuía para a formação de um mercado
interno de massas. Além disso, as relações capitalistas já teriam penetrado a geografia social
russa, o que tornaria uma quimera regressista a pregação populista. Vale lembrar ainda que a
estratégia política defendida pelos bolcheviques até 1917 era uma revolução de corte
democrático-radical, que permitisse a completa dinamização da ordem capitalista em território
russo, contando com a direção do proletariado. Esse era um figurino tipicamente ocidental, e era
o coroamento da análise teórica que Lênin fazia das possibilidades de modernização social.
O resultado final de 1917 não foi esse. Sob a ação voluntariosa de agentes políticos, o
tempo revolucionário se comprimiu. Nesse registro, a terra foi atrelada a um dinamismo político
distinto do caminho americano descrito por Lênin, mas também afastada da metafísica
alimentada pelos populistas. Essa, contudo, permaneceu como uma moldura que alimentou
40
sonhos revolucionários em diversos continentes. Afinal, como não ver em Mariátegui e seu
socialismo indigenista o poder dessa visão? De certa forma, como procurarei argumentar em
capítulos subseqüentes, a aproximação entre Brasil e Rússia oferece boas possibilidades de
entendimento da nossa metafísica da terra.
As três metafísicas comentadas nos parágrafos anteriores constituem processos
modernizadores modelares que escapam às suas geografias restritas e podem ser operados como
eixos comparativos. Percebe-se que, em todas, a terra pode ser vislumbrada não como mera
resistência espacial ao dinamismo temporal da modernidade, já que as distintas configurações
analisadas lograram combinar terra e modernização. No caso alemão, a tensão apontada no ensaio
de Weber foi resolvida num arranjo transformista que plasmou uma espécie paradoxal de
modernismo. O caso americano consagrou uma configuração que associou espaço, liberdade e
propriedade, a despeito das inevitáveis tensões advindas com a dinamização do progresso
industrial e o próprio esgotamento material da fronteira. A Rússia representa a ponta
revolucionária da equação terra – modernização, em que a tradição associada ao espaço ganhou
impulso utópico e forjou uma visão intelectual avessa a acomodações. A despeito de suas
diferenças, acredito que os exemplos russo e americano apontam para um campo que guarda
certos elementos convergentes. Afinal, nessas duas formações sociais a terra foi a imagem
principal de fabulações que buscavam um caminho inventivo e aberto para o processo civilizador,
que não repetisse os códigos tradicionais do Velho Mundo e fornecesse aos seus povos a
possibilidade de se recriarem de maneira flexível. É certo que as vivências específicas desses
espaços eram bastante distintas (afinal, o que unificaria um farmer pioneiro na fronteira Oeste da
América, animado pelo puritanismo, e um mujique russo, enredado numa religiosidade
milenarista e fatalista?), mas os intelectuais que se debruçaram sobre essas metafísicas singulares
destacaram o radical potencial inventivo dessas novas geografias, de chegada recente ao mundo
moderno. Em seções posteriores (em especial na conclusão) pretendo explorar melhor esse
estranho universo, delimitado por duas sociedades nos extremos do Ocidente. Faz-se necessário,
agora, esquadrinhar o caso brasileiro.
41
1.2. BRASIL.
Não foram poucos os intérpretes que notaram o simbolismo presente no ato de nomeação
desse território pela dinâmica expansionista lusitana. Ao instituir, em um espaço novo, o signo de
um bem natural – o pau-brasil –, os portugueses teriam, desde então, marcado nosso destino
como uma sociedade em que o tema espacial ganharia predominância. Esse é o argumento de
José Augusto Pádua (Pádua, 1986), um estudioso do pensamento ecológico brasileiro, para quem
esse ato fundador evidenciaria a crueza da exploração predatória que marcaria a formação
político-econômica do território.
Outro analista dedicado ao tema aponta para a relação intrínseca entre sociedades
produzidas pela dinâmica de expansão colonial e construções simbólicas nas quais o espaço é o
eixo estruturador da identidade nacional (Moraes, 2002). Tais sociedades nasceriam sob o signo
do territorialismo, como subprodutos de uma lógica de expansão que privilegiaria a aquisição
constante de novos espaços. Nesse registro, a espacialização da reflexão e da atividade simbólica
estaria vinculada a um projeto estatal ordenador, como se a reificação operada pelo argumento
geográfico permitisse a identificação imediata entre Estado e terra, obscurecendo os personagens
concretos enredados na aventura civilizadora – indígenas, negros e outros subalternos. Assim,
inevitável é a conclusão de tal raciocínio: a dinâmica espacializante guardaria significativo sabor
autoritário, pois encobriria a historicidade das formações sociais e a problemática das identidades
nascidas nesses espaços.
Seguindo por esta vertente interpretativa, chega-se a um julgamento eminentemente
crítico a respeito do tema geográfico no processo de construção nacional, numa forte condenação
de argumentos naturalistas. O mesmo Moraes, ao analisar a difusão desses argumentos no Brasil
a partir do processo de Independência, observa que
Neste quadro de formação social tem-se um território a ocupar e um Estado em
construção, mas a população disponível não se ajusta à identificação de uma
nação conforme os modelos identitários vigentes nos centros hegemônicos. No
conteto, ao abandonar-se o caminho de construção da nacionalidade proposto
por José Bonifácio (cujo eixo repousava na gradativa abolição das relações
escravistas), começa a tomar corpo uma concepção que vai identificar o país não
com sua sociedade, mas com seu território. Isto é. O Brasil não será concebido
42
como um povo e sim como uma porção do espaço terrestre, não uma
comunidade de indivíduos mas como um âmbito espacial (Moraes, 2002, p.115-
116) .
Nessa chave, o Brasil teria sido produzido por uma lógica territorialista, e nossas auto-
interpretações subsumiriam a História à Geografia, como se o espaço suprisse a ausência de uma
tradição cultural consensual. Afinal, o escravismo e o complexo de relações raciais e sociais
excessivamente hierarquizadas tornaria tarefa inglória a formatação de uma totalidade que
pudesse representar a necessária ficção democrática do “povo soberano”. Tal seria a sina das
sociedades periféricas, desde que concebidas como espaços.
Em formulação mais sofisticada, Giovanni Arrighi (Arrighi, 1996) explora a lógica
territorialista e a diferencia da lógica capitalista de poder, enfatizando que, enquanto esta
privilegia a expansão geográfica como meio para a finalidade de acumulação do capital, aquela
vê o espaço como fim em si, objetivo final de sua estrutura de poder e gestão
17
. Nas suas
palavras,
A diferença entre essas duas lógicas também pode ser expressa pela metáfora
que define os Estados como “continentes de poder” (Giddens 1987). Os
governantes territorialistas tendem a aumentar seu poder expandindo as
dimensões de seu “continente”. Os governantes capitalistas, em contraste,
tendem a aumentar seu poder acumulando riqueza dentro de um pequeno
“continente”, e a só aumentar as dimensões deste último se isso for justificável
pelos requisitos de acumulação de capital. (Arrighi, 1996, p.33).
Outra é a interpretação do impacto cultural desta lógica territorialista na formação do
Brasil elaborada por Rubem Barboza Filho (Barboza Filho, 2000). Em sua obra, o barroco é
analisado como o grande código que teria permitido que a aventura colonial ibérica fosse operada
por uma matriz civilizatória alternativa àquela que teria orientado a civilização da Europa
Ocidental. Enquanto esta teria encontrado no individualismo e na racionalização do mundo as
grandes âncoras para o processo de subjetivação que teria surgido na aurora do moderno, a Ibéria
teria se agarrado a formas centralizadoras e comunitaristas, que teriam permitido a sobrevivência
17
Arrighi também evita identificar o territorialismo como uma lógica intrinsecamente autoritária, como parece
argumentar Moraes. Segundo aquele, a antinomia entre territorialismo e capitalismo nada diz sobre a intensidade da
coerção estatal. Como exemplo, escolhe a república veneziana, que, segundo ele, “(...) no auge de seu poder era, ao
mesmo tempo, a mais clara encarnação de uma lógica capitalista do poder e de uma formação estatal intensamente
coercitiva” (Arrighi, 1996, p.34).
43
de sua sociedade como expressão ordenada de uma vontade soberana. Assim, a economia
racionalista do indivíduo protestante teria um contraponto na celebração extática do barroco
ibérico, com seu cortejo de rituais e ordenações que preservariam os diversos “lugares sociais”
sob a guarda de um Estado com vontade própria, não mera expressão contratual animada pela
lógica dos interesses privados. Neste complexo cultural, a América seria o território onde o
barroco teria se encontrado com outras tradições e se transformado no choque com a aventura
liberal e com as identidades nativas.
Para Barboza Filho, o tema espacial na imaginação brasileira deve muito a esse código
civilizatório ibérico, graças ao gosto dos peninsulares – homens formados na soledad – pelo
maravilhoso e pelo incognoscível, que os fazia ver a Natureza como personagem grandioso que
os engolfaria. Como uma civilização que resistia a abandonar suas formas de vida tradicionais e
extinguir seus espaços sociais diante da voracidade temporal do capitalismo racional ocidental, a
Ibéria teria legado aos americanos o apreço pelos “lugares”, rejeitando a visão da natureza como
mero vazio a ser plasmado pela ação humana
18
. Segundo o autor,
Sarmiento não deixará de registrar sociologicamente e lamentar esta eficácia da
natureza, desenhando os habitantes dos pampas argentinos como produtos de
uma natureza que convidava ao ócio e ao asiatismo, ou seja, à improdutividade e
à ausência de história. Num outro registro, Euclides da Cunha revelará aos
atônitos brasileiros de um litoral aparentemente civilizado as profundas e
barrocas vinculações do homem do sertão com seu habitat. Temática semelhante
à de Gallegos com seu Canaima, onde a natureza americana surge como espaço
indomável pelas utopias européias, devendo buscar a sua transformação em
tempo, em história, mandamento redentor que Carpentier cuida de realçar ao
afirmar a necessidade do americano de vencer o espaço –monstro da pura
imensidade – e criar o seu tempo, sua história (...). O Barroco fez da natureza,
madrasta ou mãe generosa, um elemento ativo na formação americana. (Barboza
Filho, 2000, p.405).
18
A idéia que associa americanismo e espacialidade, defendida com ardor por Barboza Filho, encontra guarida nesta
tese. Contudo, a decifração dessa espacialidade pelo recurso exclusivo ao Barroco é aqui vista com reservas, posto
que a própria construção da Natureza americana é resultante de uma espécie de diálogo atlântico (cf. Pratt, 1991), no
qual a visão de viajantes ingleses e alemães (e aqui, a lembrança das viagens americanas de Humboldt é inescapável)
teria sido determinante. O naturalismo que grassou no Brasil no quartel final do XIX paga tributo a essas tradições,
por assim dizer, “alemãs”. Ademais, o primeiro capítulo desta tese já explora a idéia de que a produção de imagens
espaciais como alegorias de sociabilidade humana seria propriedade de uma certa imaginação que não se reduziria à
catedral barroca – Montesquieu seria o exemplo mais claro disso.
44
A versão de Barboza Filho sobre a relação entre barroco e espacialidade na América
encontra correspondência na interpretação de Werneck Vianna (Werneck Vianna, 1997) sobre a
dinâmica do territorialismo brasileiro. Ao destacar as características da revolução passiva, este
último aponta para a importância da razão territorialista na formação do Brasil, que teria
encontrado sua fórmula política na precedência do Estado sobre a sociedade. Diz ele que
Para as elites políticas do novo Estado-Nação a primazia da razão política sobre
outras racionalidades se traduz em outros objetivos: preservação e expansão do
território e controle sobre população. A Ibéria, em sua singularidade, ressurgiria
melhor na América portuguesa do que na hispânica, onde o liberalismo teve
força mais dissolvente por ter sido a ideologia que informou as revoluções
nacional-libertadoras contra o domínio colonial. E a Ibéria é territorialista, como
o será o Estado brasileiro – nisto, inteiramente distante dos demais países da sua
região continental –, predominantemente voltado para a expansão dos seus
domínios e da sua população sobre eles – a economia seria concebida como uma
dimensão instrumental aos seus propósitos políticos. (Werneck Vianna, 1997,
p.14-15).
As formulações acima enfatizam, de distintas maneiras, a centralidade do tema espacial na
formação das sociedades americanas, em especial daquelas situadas no Centro-Sul do continente.
Creio que qualquer investigação sobre temas da nossa imaginação espacial deve atentar para os
nexos entre essa forma de produção simbólica e a condição periférica que marcou nossa aventura
civilizadora. Contudo, não creio que a associação dessa imaginação com o travo do autoritarismo,
tal como explicitada na formulação de Moraes, esgote as interpretações a respeito do tema. Pelo
contrário, tende a obscurecer aspectos relevantes do mesmo. Sigo, portanto, a sugestão de
Barboza Filho e Werneck Vianna, que vêem na nossa lógica territorial uma expressão
civilizatória própria, que merece ser desvendada em sua inteireza. Gostaria de sugerir que o
problema da subsunção da História à Geografia e o predomínio de imagens espaciais nas nossas
narrativas não são propriamente deficiências, mas antes expressões de um pensamento que se
abre para o tema da invenção e da mobilidade.
A sub-seção seguinte se estrutura, pois, como uma breve história do tema espacial na
imaginação social brasileira, que divido em três momentos, correspondentes a diferentes
narrativas: inicialmente, analiso o tema do “Paraíso Perdido”, tal como formulado nos primórdios
da aventura colonizadora e nas primeiras versões sobre o Brasil. Em seguida, destaco a força da
Natureza em interpretações românticas e pós-românticas sobre as possibilidades de uma
45
civilização nos trópicos. Finalmente, destaco a emergência da terra como personagem de
narrativas naturalistas, mas ainda carregadas de certo romantismo. O propósito não é apenas
historiar as representações espaciais do Brasil, mas mostrar o cenário intelectual que permite a
mobilização da terra tanto nas interpretações de Euclides da Cunha e Vicente Licínio Cardoso,
quanto numa determinada “família” do Modernismo, que será tema do capítulo dois.
1.2.1. O “Paraíso Perdido” e as primeiras versões americanas.
As primeiras narrativas que interpretam o Brasil sob o prisma de uma imagem espacial
associada à natureza têm como eixo o tema do Paraíso. Em trabalho clássico sobre o tema, Sérgio
Buarque de Holanda (Holanda, 1996) mostra como as Américas teriam sido formadas
simbolicamente por distintas visões sobre o espaço natural do Novo Mundo. Enquanto ao Norte a
busca dos peregrinos por redenção moral os teria levado a localizar na Natureza a matéria a ser
moldada e racionalizada pela ação social, ao Sul esse mesmo mundo natural teria sido prisioneiro
de concepções mágicas sobre o Éden.
Holanda também argumenta que as versões de Portugal e Castela sobre o maravilhoso
Novo Mundo teriam algumas diferenças, a começar pelo gosto hispânico pelo maravilhoso e
fantástico, que teria alimentado numerosas narrativas lendárias sobre Eldorado, Amazonas, etc.
Os portugueses, por sua vez, mais realistas e econômicos na sua versão sobre o novo, seriam
menos propensos a estas construções da imaginação, embora não escapassem da teologia
medieval que impregnava o imaginário dos colonizadores. Essa teologia postulava uma teoria da
decadência do mundo marcada pelo consumo da Terra e pela imersão dos homens no pecado e no
castigo. Ao mesmo tempo, o Éden descrito no Gênesis não seria propriamente um lugar perdido
no tempo, mas sim no espaço, passível de ser descoberto. Esse tipo de visão orientou a
compreensão da Natureza da América como uma espécie de livro aberto do divino, em que
(...) Cada animal, sem exclusão os malignos, viciosos ou torpes na aparência ou
nos hábitos, mas principalmente os que por este ou aquele motivo parecem fugir
ao comum, é como um artigo do código moral, que a natureza nos propõe, uma
lição à Humanidade, a fim de que siga os caminhos do bem e se aparte dos erros
que só poderia, levar à desdita eterna. (Holanda, 1996, p.198).
46
Assim, a “visão do paraíso” alimentada pelos ibéricos (malgrado as diferenças entre
hispânicos e lusitanos
19
) via a Natureza como uma espécie de personagem viva, repleta de
significados e signos religiosos. Essa perspectiva contrastava com o caminho percorrido pelo
classicismo francês, por exemplo, que teria povoado a Natureza de animais exemplares,
localizando no mundo natural um espaço propício para uma economia moral burguesa,
conferindo lições sobre virtudes, boas e más ações etc. A domesticada natureza de Esopo e La
Fontaine seria distinta, portanto, da natureza maravilhosa da América. Esta seria espaço
insubmisso a uma ação instrumental orientada por uma consciência racionalizadora.
Finalmente, Holanda argumenta que as diferentes “intensidades” de espanhóis e
portugueses no que se refere ao gosto pelo fantástico encontrariam correspondência em duas
formas distintas de colonização. A idéia da Reconquista teria alimentado em Castela uma
vocação imperial profunda que, somada a uma visão fantástica, teria impulsionado o
esquadrinhamento meticuloso do Novo Mundo em busca de riquezas e tesouros escondidos. Em
comparação, a colonização portuguesa teria preferido permanecer no litoral, de forma dispersa e
fragmentada, ao mesmo tempo em que resguardava à Coroa o poder de arbitrar e controlar a
empresa individual. É possível deduzir, portanto, que a crença comum na Natureza americana
como livro divino povoado de signos a serem decifrados não teria implicado uma tentativa
idêntica de conhecer e inquirir por completo este mundo.
Um ponto importante a ser destacado na análise de Holanda diz respeito ao tema da
produção da América pelo imaginário europeu, pois o novo continente só poderia ser concebido
quando enquadrado na cosmologia medieval e nas estruturas mentais do período. Sobre esse
ponto, fundamental para compreender a natureza da América, a referência obrigatória é o
trabalho de Edmundo O’Gorman (O’Gorman, 1992). Nesse livro, publicado em meados do
século XX, o historiador mexicano postula o absurdo encerrado na tese da “descoberta da
América”, afirmando que essa, alternativamente, teria sido inventada. Nesse sentido, as
19
A diferença entre espanhóis de Castela e lusitanos na explicação de Holanda pode ser resumida na categoria
atenuações plausíveis mobilizada pelo autor, que faria os segundos traduzirem o fantástico em linguagem mais
familiar, refreando a produção de narrativas maravilhosas. Segundo o autor, “(...) não se pode afirmar que
participassem então os portugueses, menos do que outros povos, daquela sedução universal. O provável, no entanto,
é que os motivos edênicos facilmente se refrangiam entre eles, privando-se da primeira intensidade para chegarem ao
que se pode chamar sua atenuação plausível “ (Holanda, ibid, p.245-246).
47
navegações de Colombo não o levaram a um continente cujo “ser” estivesse, desde sempre,
pronto para ser revelado. Fiel a uma concepção hegeliana da História, O’Gorman sustenta que a
América seria decorrente de profundas mudanças na estrutura mental dos europeus da época,
produzidas pelo choque de descobertas físicas que desafiavam as concepções que alimentavam a
idéia medieval do mundo. Este era a morada finita do homem, estável e ordenada pela vontade
divina, e assentava-se geograficamente na “Ilha da Terra”.
A questão do novo mundo teria se colocado como grande desafio intelectual e filosófico
para os homens de então. Afinal, aquelas terras eram continentes desconhecidos, fora da
geografia divina conhecida, ou apenas territórios novos, porém partes integrantes da morada
humana? Nessa dualidade constitutiva O’Gorman localiza o “ser” americano – incorporação nova
ao concerto civilizatório humano e contribuição decisiva para o espírito, pois rompia com a idéia
de um mundo estável que encarcerava o homem e lhe conferia um papel ativo e conquistador,
agora incentivado a se assenhorear livremente do mundo. O mundo americano representaria um
novo momento histórico, no qual todos os homens poderiam se afirmar como sujeitos
construtores plenos, já que os limites que os constrangiam a abandonar a “morada divina” teriam
sido quebrados.
Para além do modelo hegeliano que sustenta a pesquisa histórica de O’Gorman, é
necessário reconhecer que o autor consegue localizar a produção histórica de uma ontologia
20
americana, desde sempre contida no seu “Outro”, a Europa. Ora, a realização plena dessa
potência poderia se dar por duas vertentes, como desenha o autor:
Mas de imediato constatam-se alternativas nesse particular, pois o programa se
cumprirá ou adaptando as novas circunstâncias à imagem do modelo,
considerado pois arquétipo, ou adaptando o modelo às novas circunstâncias, isto
é, admitindo-o como ponto de partida de um desenvolvimento histórico
empreendido por conta própria. Têm-se, pois, dois caminhos: o da imitação ou
da originalidade. (O’Gorman 1992, p. 200)
21
.
20
Como já disse, essa ontologia é esvaziada de premissas substancialistas, e para o autor, realiza-se no devir
histórico e no processo de tomada de consciência dos homens.
21
O tema hegeliano-existencialista da “realização autêntica” de um particular que não se reduz ao excepcionalismo,
mas é parte integrante do movimento universal do humano, não é propriedade de O’Gorman, e espalhou-se pela
América Latina entre os anos 50 e 60 do século passado. No Brasil, a melhor tradução dessa problemática pode ser
encontrada no pensamento produzido no ISEB.
48
Se O’Gorman associa o tema americano ao problema da liberdade e do futuro – e,
portanto, da invenção
22
–, e Holanda o vê sob o signo do Paraíso, ambos localizam na América
uma produção do espírito europeu. Note-se, contudo, que há duas dimensões do tema: ou a
América é um Paraíso carregado de significados, uma Natureza simbólica, ou um espaço livre,
cuja essência estaria na própria liberdade. Com se percebe, uma visão mais matizada do que a da
identificação entre fronteira e espaço livre tal como formulada no caso norte-americano visto
anteriormente.
Estas duas versões – complementares, na verdade – das narrativas americanas podem
melhor iluminar o tema espacial na imaginação social brasileira. Em uma, mostra-se como os
primórdios do “descobrimento” foram marcados por um constante processo de encantamento do
mundo natural, visto com espaço povoado e repleto de signos. Em outro, mostra-se como o
espaço americano foi associado ao tema da liberdade e do futuro, justamente pela novidade que
representou.
Na interpretação de Barboza Filho (Barboza Filho, 2000), a fundação espacial americana
é associada a uma transplantação da matriz barroca, que reafirma a lógica ibérica de manutenção
hierárquica de espaços distintos, mas radicaliza o potencial inventivo associado ao exercício do
poder soberano. Ou seja, a persistência de narrativas maravilhosas sobre a vastidão e os mistérios
da natureza americana seria evidência de um barroco particular, que ultrapassa a função
meramente reprodutora da tradição – inexistente, no caso colonial – para se configurar como um
código moderno propício à produção inventiva de novas identidades sociais.
Nos termos do quadro comparativo desenhado em seções anteriores, estaríamos diante de
um caso americano que não se identificaria completamente com a “América” delineada nos
escritos de Weber, Turner e Negri. Ao final deste trabalho, entretanto, será apresentada uma
aproximação entre matrizes americanas tipicamente distintas – pragmatismo e barroco.
22
O’Gorman situa a invenção na América anglo-saxã, e não na ibérica, vista como reprodução do mundo hierárquico
da Península. Com se percebe, visão oposta à tradução do barroco nas Américas alimentada por Barboza Filho.
49
1.2.2. Natureza e Romantismo.
São conhecidas as interpretações que localizam no culto à natureza uma marca
fundamental do romantismo europeu. Quando tratei do caso alemão, trabalhei brevemente esse
ponto, no qual a terra ganha fortes contornos anticapitalistas.
Na perspectiva brasileira, esse quadro parece não ter se repetido. Na visão de um
estudioso do pensamento ecológico, o Romantismo aqui não teria essa marca rebelde, o que teria
feito com que sua construção da Natureza não estivesse informada por uma forte retórica
antiurbana e anticapitalista (Pádua, 1986). Nesse registro, o mundo natural seria território da
melancolia e do sentimentalismo, mas não de um refúgio com colorações utópicas. Em
semelhante linha, José Guilherme Merquior afirma que
O romantismo ocidental foi, como assinalamos, um movimento de crítica da
civilização, de protesto cultural; ao passo que os nossos românticos, vivendo
numa sociedade culturalmente periférica, de estruturas nada idênticas e muito
pouco análogas às da Europa da Revolução Industrial, dificilmente poderiam
explorar as potencialidades da poética romântica num sentido de
aprofundamento da visão crítica do homem e da comunidade. Em conseqüência,
o conjunto da nossa produção romântica permaneceu, filosófica e
psicologicamente, num plano mais superficial, mais conformado às convenções
burguesas: a consciência do nosso romantismo foi, bem mais que crítica, uma
consciência ingênua. (Merquior, 1979, p.56).
Em outra interpretação, Carvalho (Carvalho, 1998) argumenta que o romantismo
brasileiro teria se impregnado com o tema da origem, numa busca constante pela fundação
atemporal de uma civilização nos trópicos. Ao contrário do romantismo europeu, no qual a
afirmação livre de subjetividades criativas e desejantes seria expressão de uma sensibilidade
avessa ao “congelamento”, nosso romantismo seria pautado pela afirmação de um ordenamento
anterior aos indivíduos, que encontraria sua instância fundadora no Estado. Nessa chave, o
romantismo “à brasileira” encontraria na Natureza o espaço por excelência que representaria, de
forma alegórica, a identidade transcendental nacional. No lugar da História como força
transformadora, uma Geografia encantada e “presentista”. Curioso notar que Carvalho já sugere a
importância da cultura barroca nessa formulação, antecipando-se à construção de Barboza Filho.
Nas palavras da autora,
50
Sob o Império, entretanto, o chamado romantismo brasileiro encaminhou-se
para a reedição da cultura medieval da Ibéria – do que o mito do paraíso
terrestre fora um emblema. De modo que, no Brasil do século XIX, se assiste
ainda a persistência da capacidade operatória do mito do paraíso terrestre – já,
agora, atualizado como um tópico literário –, ao qual se superpôs uma agenda
explicitamente política, caracterizada pela exigência de um princípio de ordem,
de uma razão estratégica que encontra na vontade do príncipe ideal sua
possibilidade de materialização em instituições e personagens. (Carvalho, 1998,
p.149).
Essa vinculação entre espaço e origem também é trabalhada por Flora Sussekind
(Sussekind, 1990). Ela sustenta que a prosa de ficção dos anos 30 e 40 do século XIX poderia ser
entendida como uma expressão de uma viagem do narrador a uma fundação distante, que se
pretende natural. Nesses termos, a mobilização das crônicas dos viajantes e de outros relatos
sobre o território nacional por parte desses primeiros ficcionalistas não obedeceria a uma pulsão
revolucionária que partia em busca de uma experiência social mais autêntica e livre, mas sim a
uma tentativa de fixar a identidade nacional como se esta fosse algo sempre presente na nossa
trajetória. Ou seja, se a viagem, tal como concebida no Romantismo europeu, pressupunha a
transformação radical do sujeito-narrador depois de um percurso marcado pela auto-reflexão e
pelo questionamento, as jornadas dos primeiros prosadores brasileiros se assemelharia a uma
espécie de regresso que propiciasse uma origem estável e atemporal. Mesmo a incorporação de
um estilo historiográfico, característico da prosa romântica brasileira na segunda metade do
século XIX (da qual Sussekind acredita ser José de Alencar nosso maior representante), não
implicaria uma desestabilização desse procedimento, dado que a confecção de mapas e
cronologias que configurariam um cenário fixo e avesso à corrosão temporal garantiria o domínio
do narrador sobre o tema da identidade nacional. No registro da autora,
De modo quase programático afirmava-se então uma linha direta com a
Natureza, um primado inconsciente da observação das peculiaridades locais –
com a finalidade de se produzirem obras “brasileiras” e “originais” --, mas ao
mesmo tempo era preciso “não ver” a paisagem. Porque sua razão e seu desenho
já estavam pré-dados.(Sussekind, 1990, p.33).
Incorporando as interpretações de Carvalho e Sussekind à perspectiva desta tese, percebe-
se a predominância da associação entre Natureza e origem na tradição romântica brasileira,
configurando uma poderosa matriz interpretativa da nossa imaginação espacial, assentada numa
51
idéia essencialista. Se as primeiras versões tomavam o mundo natural como encantado, nosso
romantismo reservaria à Natureza papel ordenador, como princípio inquestionável que conferiria
identidade a uma jovem Nação. Em trabalho sobre assunto correlato, Manoel Guimarães
(Guimarães, 1988) argumenta que o principal órgão encarregado dessa tarefa de civilizar o país, o
IHGB, mostrar-se-ia extremamente preocupado com a definição de uma identidade “física” para
o Brasil, o que explicaria a obsessão dos historiadores imperiais com as populações ameríndias.
Nesse sentido, a historiografia imperial estaria desde sempre marcada pelo entrelaçamento entre
História e Geografia.
Contudo, para compreender melhor o estatuto da Natureza nos Oitocentos brasileiros não
basta nos atermos à postulação do nosso “romantismo fraco” e da conformação do mundo natural
numa lógica conservadora e fortemente marcada pelo tema da identidade. Há que se atentar para
a influência dos escritos de Humboldt, que moldaram certa visão do continente americano e de
sua espacialidade, e que tanto influenciaram um dos personagens desta tese - Euclides da Cunha.
Como já foi dito anteriormente, o universo intelectual de Humboldt rejeitava o completo
desencantamento da Natureza e não via na ciência um instrumento meramente objetivo,
responsável pela decomposição analítica do mundo físico e sua classificação metódica. Na
perspectiva do naturalista alemão, a ciência deveria ser capaz de transmitir aos homens a
totalidade da experiência envolvida no conhecimento do mundo resguardando forte componente
estético. Suas viagens pela América foram de grande valia para a mobilização desse instrumental
“romântico-científico” e para a produção de uma América como um território em que o espaço
parecia ganhar perspectivas maravilhosas e exóticas. Em trabalho sobre o tema, Mary Pratt (Pratt,
1991) mostra como a América descrita por Humboldt em Quadros da natureza combinaria a
grandeza da natureza com a ausência de protagonismo histórico de atores reais. Nas palavras da
autora, “Realmente, a ausência de seres humanos torna-se essencial na visão americana de
Humboldt” (Pratt, 1991, p.156). Nessa perspectiva, Pratt interpreta o esforço humboldtiano como
parte integrante de uma estratégia que associa poder e espacialidade para construir um território
no qual o natural ultrapassa e vence o humano. Nesse sentido, o tema histórico seria deslocado
em prol de uma versão hegeliana da América como quadro infantil da Humanidade. Nas palavras
da autora,
52
É a estratégia de apresentar a América como um mundo primitivo da natureza,
um Outro que não é inimigo; um espaço que contém plantas e animais (alguns
humanos), não organizados em sociedades e economias; um espaço cuja única
história é a que está por começar; um espaço sem estrutura para ser representado
em um discurso de acumulações, um catálogo depois estruturado e historiado.
(Pratt, 1991, p.156).
Percebe-se, portanto, a persistência do tema natural na imaginação social brasileira, e a
identificação perpetrada pelo nosso Romantismo entre Império e Natureza. No caso, é flagrante a
diferença para o caso europeu, no qual a temática da Natureza respondia a uma inquietação
crítica diante da emergência do mundo industrial. Como se verá no capítulo seguinte, a
identificação entre terra e tradição, problema central do Romantismo brasileiro, constituirá
questão de difícil equacionamento para boa parte de nossos modernistas. Os autores selecionados
pela presente análise – Graça Aranha, Ronald de Carvalho e o grupo simbolista católico da
revista Festa – se mostrarão dilacerados diante do dilema: adaptar-se a uma geografia americana
bárbara ou superá-la?
1.2.3. Naturalismo e terra
No Brasil, a segunda metade do século XIX foi marcada pela emergência do que se
convencionou chamar de geração de 1870. Esse grupo heterogêneo foi abundantemente
trabalhado na historiografia das idéias nacional como exemplar do olhar cientificista que teria
vincado o debate intelectual durante a crise do Império. Spencer e Comte formariam a dupla
mobilizada por novos personagens avessos à sensibilidade política e estética do Segundo
Reinado. Nesse registro, homens como Silvio Romero, Tobias Barreto, Alberto Salles e outros
aferrar-se-iam às novas tendências científicas que dominavam a Europa, incluindo toda uma
plêiade de autores maiores e menores.
Nesse ambiente, a imaginação espacial ganha novos contornos, dados pelo recurso a
autores europeus que mobilizariam fortemente o argumento geográfico. São constantes no
período as referências às teorias deterministas de Buckle e às formulações de Taine. Na
preocupação determinista que animava a nova intelectualidade brasileira, a recuperação da
influência do meio na conformação moral dos homens atingiu níveis obsessivos. Essa busca pelo
53
domínio científico das variáveis que poderiam explicar os fenômenos sociais certamente se nutria
do positivismo, que já se expandia no Brasil antes mesmo da geração de 1870
23
. Para o que me
interessa, esse “bando de idéias novas” significaria, então, o desencantamento final do tema
espacial no Brasil, e sua submissão aos ditames de uma racionalidade científica que se limitava a
verificar na terra os condicionantes físicos objetivos que pudessem explicar os fenômenos morais.
Depois da Natureza como Paraíso Perdido e origem de uma ontologia brasileira, a Natureza como
ente do mundo físico, apenas.
No plano estético, a melhor expressão desta virada estaria no Naturalismo, feroz incursão
literária no mundo da observação científica e objetiva do mundo, com destaque privilegiado para
a delimitação precisa dos cenários, compreendidos como forças sociais que moldariam
comportamentos. É aqui, contudo, que podemos perceber como o tema espacial permanece, de
certa forma, insubmisso, recusando-se a ser tratado apenas como variável científica. Exemplar
neste ponto é a interpretação que Antonio Cândido (Cândido, 1998) faz da obra de Aluísio
Azevedo, O Cortiço. Ao analisar a estrutura interna do romance, o crítico paulista nota que o
cortiço não seria apenas o meio físico contingente, organizado em torno de leis biológicas que
determinam de forma inelutável a moralidade que ali floresce. Tratar-se-ia, na verdade, de uma
alegoria do Brasil, construída a partir de uma imagem espacial bem delimitada – o cortiço. Esse
argumento vai ao encontro do ponto defendido nesta tese, e pode ser aplicado para o seu objeto
mais específico.
Na nova fase da história da terra na imaginação espacial brasileira, o cenário já é distinto
dos anteriores. Como vimos, a Natureza como Paraíso Perdido correspondia a uma invenção da
América como um “outro” mítico, lugar encantado e imaginado como expressão de refúgio. No
Romantismo, a Natureza é associada a um outro mito de origem assentado na idéia de uma
autenticidade que se deveria fixar. Nesse registro, o espaço é emanação congelada de uma razão
vinculada ao projeto imperial de fundar uma ordem. Em ambos os casos, o mundo natural estava
associado a idéias que remetiam ao passado – seja um passado mítico, informado por visões
23
Segundo um clássico estudioso nacional do tema, a data da grande repercussão do positivismo no Brasil pode ser
delimitada pelo ano de 1850, quando as doutrinas comteanas iniciam sua penetração no meio intelectual do Rio de
Janeiro, encontrando guarida posteriormente no colégio Pedro II, na Escola Politécnica e na Escola Normal (Lins,
1967).
54
religiosas que viam a América como um território novo, mas passível de ser enquadrado no mito
edênico, ou um passado que garantisse uma ontologia cuja expressão legítima fosse o Império.
Ora, sob o naturalismo a terra ganha outros contornos. Ela está associada a questões que dizem
respeito ao lugar do Brasil na civilização e à modernização liberal que varria a Europa. Não se
trata apenas de revelar o sertão em busca da autenticidade, mas de pensar as possibilidades
civilizatórias de uma sociedade periférica. Afinal, como ajustar nosso espaço ao tempo?
Como encarar a metafísica da terra com o recurso aos três paradigmas expostos em seção
anterior, e que dizem respeito a dilemas semelhantes em outras formações sociais? Esse tema será
trabalhado ao longo dos capítulos subseqüentes. Percebe-se, desde já, que a terra brasileira não
teria exatamente uma tradição, estando mais aproximada do espaço livre tal como desenhado na
imaginação estadunidense. Contudo, sua geografia social acossada pelo latifúndio e pela ausência
de uma vertebração civil mínima no mundo agrário nos aproximaria do caso russo. Como
entender essa estranha cartografia intelectual?
O tema da americanidade da nossa formação é constantemente reforçado pelos intérpretes
contemporâneos. Se atentarmos para a já citada comparação feita por Oliveira sobre a construção
de identidades nacionais no Brasil e nos Estados Unidos, perceberemos que a centralidade do
tema espacial não necessariamente conduz nem à formula do “espacialismo autoritário”, nem à
do territorialismo ibérico. Afinal, diz a autora: “Minha hipótese de investigação era a de que
nesses dois países, a geografia teria fornecido o mais forte embasamento para a construção de
modelos de identidade nacional que tiveram maior êxito” (Oliveira, 2000, p.11). Seguindo esta
hipótese, a autora mostra a importância do tema da fronteira na experiência norte-americana e a
tradução deste tema com sabor sertanista na imaginação intelectual brasileira, apontando as
diversas configurações do nosso americanismo. O ponto é exatamente a forte presença de
narrativas geográficas na conformação das identidades nacionais dos respectivos países. Nesta
aproximação, o tema espacial parece ser próprio de sociedades coloniais novas – tema do Novo
Mundo.
Em registro semelhante, Nísia Lima (Lima, 1999) procura decifrar o conteúdo da
oposição geográfica que seria a marca determinante do pensamento social no Brasil, centrada nos
55
pólos sertão e litoral. Ao fazê-lo, argumenta que o sertão seria associado a um tipo de experiência
americana que caracterizaria a sociedade brasileira autêntica, enquanto que o litoral expressaria
nossa fronteira européia. O sertão seria uma expressão ambígua, oscilando entre lugar de
desespero e abandono a ser incorporado e expressão máxima de nossa autenticidade.
Ou seja, Lima sustenta, juntamente com Oliveira, que o tema espacial no Brasil estaria
vinculado a ambíguas narrativas em torno de nossas origens, pensadas ora em registro positivo,
ora em negativo. Nesses termos, o sertão seria a idéia básica perseguida por inúmeros escritores,
sertanistas, engenheiros e higienistas da Primeira República, que se voltaram para a “redescoberta
do Brasil” num movimento típico de uma intelligentsia internamente desenraizada.
Como se pode ver, boa parte dos estudos voltados para a decifração dos significados das
“imagens espaciais” no pensamento brasileiro se voltam para o sertão e para sua relação com
certa americanidade de nossa formação. Todavia, essa relação é geralmente pensada a partir do
tema da autenticidade, restringindo as possibilidades comparativas delineadas pelos próprios
intérpretes. A fixação do sertão como alegoria por excelência do Brasil limita o desvendamento
mais criterioso de outras representações espaciais, como a sugerida nesta tese e apresentada na
sua introdução. Faz-se necessário, portanto, investigar o problema da terra na imaginação
ilustrada brasileira tendo como referência o mapa construído ao longo deste capítulo. Inicio esse
caminho com uma análise sobre os dilemas enfrentados por alguns modernistas diante desse
mapa e, posteriormente, investigo que espécie de “Rússia Americana” pode ser vislumbrada nos
escritos de Euclides da Cunha e Vicente Licínio Cardoso, e em que medida essa perspectiva
escapa à busca por uma essência nacional tida como autêntica e fixa (seja ela identificada com
tipos étnicos ou com traços culturais particulares). Assim, trata-se de refletir criticamente sobre a
história do espaço na imaginação brasileira acima delineada.
56
CAPÍTULO 2. TERRA, AMERICANISMO E MODERNISMO.
A Primeira República foi pródiga em fabulações que procuravam rearticular os temas da
terra e da construção da nacionalidade. Dois livros, escritos no mesmo ano, pareciam funcionar
como “portas de entrada” para a discussão sobre a natureza de nossa geografia americana e o seu
papel na invenção de uma sociedade moderna, inscrita na dinâmica temporal do Ocidente: Canaã
, de Graça Aranha, e Os Sertões, de Euclides da Cunha. A despeito da fortuna crítica dessas duas
obras ter sido muito diversa nos decênios posteriores, é inegável que os dois autores exerceram
forte impacto tanto sobre seus contemporâneos quanto sobre gerações mais novas, representando,
por assim dizer, forças intelectuais constitutivas do modernismo brasileiro
24
.
Este capítulo pretende interpretar um determinado veio nessa tradição, representado, de
um lado, por Graça Aranha e por um de seus “discípulos”, o poeta e ensaísta Ronald de Carvalho,
e de outro, pelo grupo simbolista católico organizado em torno da revista Festa. A escolha dos
personagens não é gratuita. Os dois primeiros foram figuras importantes nos anos 20, quando
diversas produções tributárias da ruptura moderna floresceram. Graça Aranha foi um dos
principais membros da “velha geração” – integrante da Academia Brasileira de Letras, escritor
reconhecido ainda nas primeiras décadas do século – a avalizar a Semana de 22, tendo escrito um
livro – A Estética da Vida – que, na visão de alguns intérpretes, constitui escrito seminal para a
decifração daquele momento. Ronald de Carvalho era figura de proa entre os modernistas
cariocas, tendo representando o espírito de um grupo que teria feito a ponte entre o simbolismo e
a estética dos anos 20 (Botelho, 2002). Já o grupo simbolista-católico, organizado por Andrade
Murici e Tasso da Silveira, representava ramificação peculiar, mas importante do modernismo
carioca, pois encarnava a “reação espiritualista” encarnada por Jackson de Figueiredo e outros.
Interessa-me aqui não uma apresentação do perfil intelectual desses personagens, mas uma
interpretação do tema do qual esta tese se ocupa no seio de uma produção intelectual oposta ao
que se convencionou chamar de naturalismo. Em tudo diferentes dos sertanistas, higienistas e
engenheiros que varreram os sertões republicanos, Graça Aranha, Ronald de Carvalho e os
24
Não me refiro aqui apenas ao movimento literário cuja delimitação de origem estaria na Semana de 22, mas a um
conjunto global de obras, interpretações, escritos e análises sobre o fenômeno da modernidade no Brasil. Nesse
sentido, a Semana e seus personagens centrais seriam partes centrais desse processo, mas de modo nenhum o
limitariam. A produção historiográfica mais recente sobre o tema parece cada vez mais problematizar o conceito de
“pré-modernismo”. Sobre isso, ver a obra de Ângela Castro Gomes (Gomes, 1999).
57
modernos católicos trabalharam reflexões sobre a natureza de nossa terra, incorporando-as a
preocupações sobre o problema da afirmação da civilização numa sociedade cujas tradições
pareciam refratárias ao ritmo moderno. Qual o sentido da terra nessa ampla tradição?
A presença desse tema na obra dos autores citados revela: 1) o reconhecimento de uma
dimensão americana da formação brasileira, que nos asseguraria uma tradição específica,
freqüentemente associada a uma ontologia étnica singular; 2) a ambigüidade com a qual essa
dimensão americana é avaliada, uma vez que os personagens que a identificavam possuíam uma
inscrição na vida intelectual brasileira ainda tributária de padrões europeizantes. Essa inscrição
conformava certo ethos próprio dos salões literários do período que, por vezes, incompatibilizava
seus personagens com o que acreditavam ser uma tradição americana “melancólica”.
Como sustentei anteriormente, alguns intérpretes associam a forma “sertão” à delimitação
de uma experiência americana, movimento próprio do nosso pensamento social na Primeira
República, e interpretam essa associação como uma busca por autenticidade. Longe de contestar
essa afirmação – que reputo correta, mas limitada –, gostaria de explorar a idéia de que a terra
pode comportar distintas visões sobre a natureza dessa “americanidade”. Argumento que há,
nesse universo referido, uma constante tensão entre a postulação de uma ontologia nacional –
temática tributária do nosso Romantismo “espacial”, apresentado brevemente no capítulo anterior
–, assentada num discurso sobre a fundação étnica do país, que configuraria uma espécie de
tradição, e a necessidade de incorporar o Brasil ao reino das civilizações modernas. Segue daí um
dilema que envolve a superação ou a integração dessa matriz, que é, vale lembrar, o dilema de
outras civilizações que enfrentaram problemas correlatos. Afinal, se essa natureza é americana,
seria ela expressão de uma propriedade democratizante nova, aberta para invenção e criação? Ou
seria uma tradução de uma geografia bárbara e pouco afeita à organização da vida civil? Quais os
sentidos conferidos a essa americanidade, e como eles se relacionam com a construção de uma
Nação moderna? Ao final do capítulo, mostro como essa tensão não resolvida pode ser explicada
com recurso ao desvendamento das experiências sociais e intelectuais concretas desses
personagens na Primeira República. Analiso, portanto, a construção desses agentes como
intelectuais e situo o problema “intelectuais-terra” à luz do quadro comparativo desenhado no
capítulo anterior. O objetivo é entender essa relação para além do bordão da “busca por
58
autenticidade”, apresentando a discussão sobre nossa terra americana como uma forma, entre
outras, de pensar a modernização em sociedades pautadas por uma imaginação espacial.
2.1. UM BREVE PANORAMA DA PRIMEIRA REPÚBLICA
Não é simples o panorama intelectual da Primeira República, em especial no que se refere
à distinção entre os diversos projetos nacionalistas que então pululavam no cenário. Em tese
sobre o assunto, Oliveira (Oliveira, 1986) mostra como o próprio sentido da tradição – elemento
tão central para qualquer nacionalismo – era ponto de discórdia. Afinal, em que se assemelhavam
o nacionalismo antiamericanista e monárquico de Eduardo Prado, tão cioso da junção entre
Estado imperial e catolicismo, e o nacionalismo jacobino e antilusitano inspirado pelo
florianismo, que via com desconfiança essa mesma fórmula? Segundo a autora, entretanto, seria
possível notar a presença de um ideário católico, tributário do pensamento conservador francês,
que buscaria reabilitar religião e modernidade, organizando uma versão da Nação que recebesse
de forma mais generosa o tema da tradição. Oliveira argumenta que teria havido uma progressiva
associação entre catolicismo e nacionalismo, representada por duas vertentes: uma ligada a
Jackson de Figueiredo e outra denominada Ação Social Nacionalista. Enquanto esta, capitaneada
pelo Conde Afonso Celso, filiar-se-ia a certas concepções fascistas, aquela conheceria
desenvolvimento na linhagem de um Alceu de Amoroso Lima, por exemplo. O tema desse
nacionalismo seria a “renovação espiritual”, e a percepção crítica de que o século XX,
representando pelas emergentes sociedades americanas e russas, seria o século do materialismo e
do pragmatismo. Não haveria lugar para entusiasmados arroubos americanistas, mas para uma
tentativa de reclamar o Império como força constitutiva da nacionalidade e como forma de impor
um dique ao avanço do mundo dos interesses
25
.
Ao lado desse movimento, associações impregnadas de nativismo e entusiasmo
reformador buscavam no civismo a força capaz de organizar e dar substância a uma República
que parecia anêmica. De Olavo Bilac a Álvaro Bomilcar, o tema era a salvação do Brasil pelo
25
O caldo cultural que informava esse nacionalismo era dado, fundamentalmente, por De Maistre, afinal o
pensamento católico francês vivia, desde a década de 90 do século XIX, momento de aproximação com a República.
59
recurso a ferramentas modernas: educação e saúde. A Primeira Guerra, é claro, tem grande
impacto sobre esses movimentos republicanos. No dizer de Oliveira,
Após a Primeira Guerra, novos modelos de identidade nacional passam a existir
e competir entre si. No Rio de Janeiro, o nacionalismo defendido e proposto por
Álvaro Bomílcar e pelo movimento Propaganda Nativista faz renascer o ideário
jacobino dos republicanos. O antilusitanismo, a pregação contra a Europa
decadente e a revalorização do americanismo marcam presença no cenário
intelectual. (Oliveira, 1986, p.250).
Em outro trabalho, Gomes (Gomes, 1999) argumenta que o catolicismo militante era uma
marca forte do cenário intelectual carioca no período, e que teria formado, ao lado da herança
simbolista, uma tradição a ser interpretada pelos modernos da cidade. A despeito de catolicismo e
simbolismo não se confundirem, a autora afirma que
Essa tradição, mística e espiritualista, contudo, não pode ser mecanicamente
associada ao boom de militância católica que então começa a se desenvolver.
Entretanto, seria impossível não assinalar a convergência, bem como os laços
que passam a unir as trajetórias de alguns intelectuais simbolistas e de algumas
das mais importantes lideranças leigas da militância católica de então. São tais
conexões que nos permitem transitar do catolicismo ao modernismo. (Gomes,
1999, p.39).
Esse confuso ambiente, povoado de católicos renovados, republicanos em batalha contra
tradições reais e inventadas, modernos que se valiam da herança simbolista e um fundo embate
em torno da natureza americana de nossa formação social, prepara a chegada dos anos 20.
Interessante destacar, nessa breve seção, alguns aspectos que serão retomados mais adiantes no
presente capítulo: a existência de um nacionalismo católico renovado, disposto a entrar no mundo
moderno e a travar o combate no seu interior; as diversas vertentes do nacionalismo, que passam
tanto por Alberto Torres quando por Jackson de Figueiredo; a delimitação de um modernismo
carioca que remetia à herança simbolista e que não se enquadrava nos limites das vanguardas
paulistas dinamizadas pela Semana de 22. Soma-se a isso a presença no Rio de Janeiro da ABL,
com seus personagens organizadores da vida intelectual local, e os inúmeros espaços de
sociabilidade boêmia que aglutinavam escritores, cronistas, literatos, aspirantes e jornalistas.
Essas diversas dimensões organizavam o que Gomes chamará de “tradições intelectuais”, que
estruturariam o universo intelectual no qual as reflexões aqui analisadas foram geradas. É nessa
60
cidade que transita Graça Aranha, figura de destaque nas letras na Primeira República, e autor de
obras e escritos que interessam diretamente ao tema trabalhado nesta tese. Também nela, mais
especificamente nos salões simbolistas, Ronald de Carvalho atuará como importante elo do
modernismo. Veremos, portanto, como um personagem enredado nas tramas e discussões que
emolduravam o confuso cenário moderno carioca pensava a relação entre terra e modernidade,
para depois voltar ao cenário intelectual aqui apresentado.
2.2. GRAÇA ARANHA – DE CANAÃ AO ESPÍRITO MODERNO.
Em 1902, Graça Aranha lançava um livro que exerceria grande impacto na imaginação
brasileira, e que ocupa até hoje a função de marco. Canaã trabalhava, por meio de uma história
de imigração, preconceito e amor, temas caros a essa imaginação, e que interessam diretamente à
tese: o problema da identidade do Brasil e de sua relação com o mundo, o tema novomundista do
meio e sua ação criadora sobre os homens, e a discussão em torno da mestiçagem. Por esse
motivo, muitos classificam Canaã como um “romance de idéias”, novidade no Brasil de então,
desacostumado a ler uma criação romancesca que utilizasse a matéria prima literária com o
intuito de discutir temas filosóficos mais amplos.
A história é razoavelmente simples e algo esquemática
26
. Numa localidade do Sul do
Brasil, dois imigrantes alemães, Milkau e Lenz, chegam como imigrantes em busca de um
recomeço de vida numa terra estrangeira. Diversos em temperamentos e espírito, envolvem-se de
forma diferenciada com a vida local, e no conflito eminentemente dialógico estruturado pelo
autor, evidenciam concepções diversas sobre as possibilidades civilizatórias do novo país.
Milkau, mais otimista, vê no Brasil uma chance de redenção para uma Humanidade cansada da
velha Europa, já que o encontro entre povos e civilizações poderia representar uma oportunidade
de superação da longa história de tragédias que teria marcado o gênero humano. Graça Aranha
“fala” por meio de Milkau, e é possível detectar nos longos discursos do personagem ecos de
concepções filosóficas que ganhariam tratamento completo em A Estética da Vida, de 1921. Lenz
26
A despeito de sua importância, não são muitas as opiniões críticas que julgam favoravelmente as qualidades
literárias da obra. Ao comentar as tensões e dualidades que terminariam por enfraquecer Canaã, Alfredo Bosi
comenta que “A dualidade, não resolvida por um poderoso talento artístico, criou graves desequilíbrios na estrutura
da obra, cujo valor, enquanto romance, é ainda hoje posto em dúvida por mais de um crítico respeitável (Bosi s/d,
p.367).
61
é o cético, o agressivo alemão que encarna o espírito patriota e guerreiro de sua gente – tal como
visto por Graça Aranha, é claro – e que vê com pessimismo a mestiçagem e os tipos étnicos
brasileiros. Os demais personagens apresentados ao longo do texto do autor seguem essa
modelagem básica e expressam, quase que didaticamente, as principais obsessões intelectuais
nacionais no período. Logo na primeira parte do livro, Milkau tece o seguinte comentário,
referente ao impacto causado pela Natureza brasileira sobre seu espírito:
Aqui o espírito é esmagado pela estupenda majestade da natureza...Nós nos
dissolvemos na contemplação. E, afinal, aquele que se perde na adoração é o
escravo de uma hipnose: a personalidade se escapa para difundir na alma do
Todo. A floresta no Brasil é sombria e trágica. Ela tem em si o tédio das coisas
eternas. (Graça Aranha, 1949, p.40).
Nessa breve passagem, Graça Aranha–Milkau expõe de forma resumida um tema
recorrente na obra do modernista: a “metafísica do Horror” que caracterizaria a relação entre
homem e Natureza no Brasil. Nesse registro, a imaginação brasileira seria incapaz de controlar,
organizar e superar o assombro da imensidão produzido nos trópicos, e permaneceria de certa
forma eternamente encantada. O tema, que surgirá de forma mais trabalhada nos seus escritos
posteriores, retomava tradicionais idéias sobre o poder opressor da Natureza luxuriante tropical, e
a enquadrava numa moldura filosófica que tinha como eixo a possibilidade de ligação entre os
indivíduos e o Todo. Seguindo no texto, poucas linhas depois vemos o estabelecimento de uma
questão crucial:
Passado algum tempo, Lentz exprimiu alto o que estava pensando:
-Não é possível haver civilização neste país. A terra por si, com esta violência,
esta exuberância, é um embaraço imenso...
-Ora, interrompeu Milkau, tu sabes bem como se tem vencido aqui a natureza,
como o homem vai triunfando...
-Mas o que se tem feito é quase nada, e ainda assim é o esforço do europeu. O
homem brasileiro não é um fator do progresso: é um híbrido. E a civilização não
se dará jamais nas raças inferiores. Vê, a história... (id, ibid, p.41).
No diálogo acima, evidencia-se o debate em torno da civilização no meio tropical. Para
Milkau, os brasileiros estariam conseguindo vencer o assombro e organizar uma vida ativa,
enquanto Lenz fixava-se na composição étnica nacional, supostamente improdutiva para a
civilização. Como se vê, o tema se estrutura literariamente em torno do par Natureza – raça, que
62
ganha conotações ambíguas no pensamento do autor. Num diálogo subseqüente, Milkau afirma
que “Um dos erros dos intérpretes da história está no preconceito aristocrático com que
concebem a idéia de raça. Ninguém, até hoje, soube definir a raça e ainda menos como se
distinguem umas das outras (...)” (Graça Aranha, 1949, p.41). Contudo, diante da recusa de Lenz
em abandonar suas idéias sobre hierarquia racial, Graça Aranha-Milkau se lança numa discussão
sobre as virtudes dos encontros entre raças “selvagens, virgens” com os “povos superiores”,
enfatizando o potencial democratizador desses encontros. Como se percebe, o tema raça
permanece como um incômodo, ora ganhando contornos negativos, ora positivos
27
. O “encontro
de povos”, este sim, tem uma conotação positiva, equivalendo-se, na formulação do autor, à
própria caminhada da Humanidade na direção de uma evolução cultural mais harmoniosa.
28
Diálogos como esses, freqüentes no livro, são invariavelmente operados a partir da dupla
chave de entendimento Natureza-raça. A primeira, por sinal, é praticamente um personagem do
romance, merecendo descrições que buscam o que haveria de telúrico na paisagem brasileira e,
portanto, escapariam a uma economia naturalista na composição
29
. Perseguindo ponto
semelhante, Alfredo Bosi (Bosi, s/d) associa tal naturalismo impressionista à própria experiência
de Graça Aranha em Porto do Cachoeiro (localidade que teria servido de laboratório para Vila
Feliz). No seu registro,
A observação da vida local, com seus patentes contrastes entre selva e cultura,
trópico e mente germânica, era bem de molde a tentar um espírito propenso ao
jogo das idéias e, ao mesmo tempo, sensível às formas e às cores da paisagem.
27
Note-se que a raça não é necessariamente descrita segundo o modelo biologizante. Trata-se, aqui, de uma
discussão sobre propriedades culturais. Uma confusão recorrente nos estudos de pensamento brasileiro é tomar essa
categoria segundo os parâmetros que se acredita que organizariam uma discussão “determinista” e “cientifizante”.
Assim como esta tese argumenta que a terra escapa aos limites de uma mera variável científica própria do arsenal da
ciência geográfica do século XIX, poderíamos arriscar o mesmo a respeito da raça. Um tratamento breve desse tema,
ainda na forma de sugestão a ser desenvolvida, encontra-se no trabalho de Helga Gahyva (Gahyva, 2001) sobre as
correspondências entre Alexis de Tocqueville e Arthur de Gobineaux.
28
Note-se que a categoria de “mestiçagem” não é usada de forma recorrente.
29
Logo na situação que abre o livro, dedicada à chegada dos dois imigrantes, a cavalo, nas imediações da localidade
na qual a ação se desenrola, podemos ler: “Absorto na contemplação, Milkau deixava o cavalo tomar um passo
indolente e desencontrado: a rédea caía frouxa sobre o pescoço do animal, que balançava moroso a cabeça, baixando
de quando em quando as pálpebras pesadas e longas sobre os olhos viscosos.Tudo era um abandono preguiçoso, um
arrastar lânguido por entre a tranqüilidade da paisagem. Os humildes ruídos da natureza contribuíam para uma
voluptuosa sensação de silêncio. A aragem mansa, o sussuro do rio, as vozezinhas dos pequeninos insetos ainda
tornavam mais sedativa e profunda a inquebrantável imobilidade das coisas. Interrompia-se ali o ruído incessante da
vida, o movimento perturbador que cria e destrói (...)” (Graça Aranha, 1949,p.6)
63
Assim nasceu Canaã, retrato de algumas teses em choque e deleitação
romântico-naturalista das realidades vitais. (Bosi, s/d, p.367).
Mais adiante, Bosi comenta o quanto esse naturalismo escaparia à secura naturalista e se
aproximaria de um tratamento estético refratário à mera reprodução fotográfica de um cenário
dominado por um olhar científico. Ou seja, “As formas, as cores e os próprios aspectos luminosos
do ambiente animam-se em torno da criatura que os recebe como impressões pejadas de sentido
emocional” (Bosi, s/d, p.369). Outro intérprete da obra associa o estilo de Graça Aranha a uma
espécie de art nouveau literário, no qual o ornamento e as tinturas impressionistas usadas na
descrição dos cenários não seriam apenas decorativos, ocupando função central na composição
das idéias da obra. José Paulo Paes (Paes, 1992) argumenta em torno da mediação exercida pelo
autor entre ornamento e interioridade dos personagens. Nesse registro,
As descrições de paisagem, reiterativas em Canaã, ainda que nada acrescentem
ao progresso de enredo ou à caracterização dos personagens, servem para
instituir, em nível ornamental, uma mediação simbólica entre a natureza
brasileira e o projeto utópico de Milkau, protagonista do romance. (Paes, 1992,
p.22).
Interessante notar a perspectiva de Paes sobre as idéias desenvolvidas no romance. Além
da costumeira caracterização da influência da Escola do Recife e de sua peculiar recepção das
idéias de Schopenhauer e de Haeckel, o autor aponta para o influxo de idéias nietzschianas e
tolstóianas que marcavam a cena literária carioca no início de século. A pregação de Milkau em
torno do amor e sua utópica visão a respeito de um novo futuro da Humanidade se conjugariam à
perspectiva de Graça Aranha a respeito das possibilidades da civilização nos trópicos. A
Natureza, assim, não é vista meramente como uma força a ser controlada e superada, mas é
incorporada num projeto reflexivo que a associa ao mundo trazido pela máquina e pelo ritmo
moderno. Segundo Paes, poder-se-ia falar de uma “utopia-solar-fraterna”, de alguma forma
aproximada ao projeto andradiano desenhado em Macunaíma. A proximidade se daria pela busca
comum pelas forças vivas e bárbaras que fundamentariam a experiência brasileira, associadas ao
protagonismo da nossa terra. Ainda segundo o autor, Canaã encerraria uma forte percepção de
uma dimensão pré-lógica dessa experiência, numa interpretação positiva da Natureza.
Novamente, creio que é importante ressaltar a imagem produzida nessa literatura sobre o mundo
natural, que escapa a uma economia descritiva do mesmo e se constitui num desenho simbólico
64
do que seria a singularidade de uma formação tropical trazida ao mundo em marcos distintos
daqueles da Europa Ocidental.
A associação entre as idéias de Graça Aranha e o projeto modernista dos anos 20 não é
exclusiva de Paes, mas é encampada também por Eduardo Jardim de Moraes (Moraes, 1978) que,
no entanto, se escora em outros escritos do autor. Torna-se necessário, portanto, analisar mais
detidamente os textos posteriores de Graça Aranha, nos quais suas concepções sobre a Natureza e
sua relação com um projeto moderno se alteram.
O livro A Estética da Vida marcou a moderna reflexão brasileira, e inspirou inúmeros
intelectuais envolvidos na busca por uma nova concepção filosófica que fornecesse um acesso ao
problema da identidade nacional e da relação do Brasil com as transformações que alteravam o
cenário intelectual do Ocidente. Moraes argumenta que é impossível compreender o “surto de
brasilidade de 1924” sem entender o papel central de Graça Aranha na história cultural do país.
Para Jardim, a filosofia vitalista de Graça representaria o quadro filosófico que teria possibilitado
o debate dos anos 20 sobre a identidade brasileira, seu conteúdo e suas relações com a
universalidade. Nesses termos, a discussão sobre a brasilidade não poderia ser compreendida
como um raio no céu azul, mas antes como um desdobramento de uma discussão mais longa.
Segundo Moraes, a formação de Graça passa pela influência da Escola de Recife e de seu
monismo filosófico. Ou seja, a crítica dessa Escola à fragmentação produzida pela ciência, que
decompõe e analisa o real, seria responsável por uma cisão entre Homem e Todo, constituindo aí
uma dualidade que originaria o terror de que Graça irá falar posteriormente. Nesses termos, duas
categorias fundamentais para a compreensão da abordagem filosófica presente em A Estética da
Vida seriam a “intuição” e a “integração”. A primeira seria responsável pelo contato estético com
o Todo, somente possível por essa ferramenta da ordem da sensibilidade. Descarta-se, assim, o
exercício de um domínio racional técnico sobre o Mundo como pré-condição para a possibilidade
de atividade intelectual humana. A “integração” diria respeito à comunhão do eu com o Todo, ou
com o cosmo, momento responsável pela resolução da cisão apontada anteriormente. A
“integração” era a grande preocupação de Graça Aranha, e, segundo Moraes, orientava sua
concepção filosófica. Ora, mas qual o lugar da Natureza e da terra nessas formulações?
65
No próprio livro de Graça Aranha há uma concepção espiritualista da terra. Esta seria o
“centro espiritual de nossa atividade” (Graça Aranha, 1968, p.597), a qual deveríamos nos
integrar de forma harmoniosa. No caso, a terra representaria a possibilidade de comunhão dos
homens com sua cultura, desde que estes conseguissem romper a cisão que caracterizaria a época
moderna e encontrassem um sentido (a expressão é minha) total, para além das suas vidas
imediatas. Não poderia ser mais claro:
Aquele que se resigna à fatalidade cósmica, que se incorpora à Terra e aí busca a
longínqua e perene raiz de nossa vida; aquele que se liga docemente aos outros
seres, seus fugazes companheiros na ilusão universal, que se vão todos
abismando no Nada, vive na perpétua alegria. (id, ibid, p.598).
Como enquadrar o Brasil nesse desenho vitalista? Segundo Graça Aranha, o problema
brasileiro estaria na relação entre Homem e Natureza. De um lado, teríamos uma formação
cultural marcada pelo “encontro das melancolias”
30
, na qual lusos – “os mais bisonhos dos
bárbaros latinos” (id, ibid, p.620) –, negros – “como que permanecem em perpétua infantilidade”
(id, ibid, p.620) – e indígenas – associados ao “pavor cósmico” e à “metafísica do Horror” – se
amalgamariam para produzir um povo apartado do seu meio. Isso porque
A Natureza é uma prodigiosa magia. E no Brasil ela manteve nas almas um
perpétuo estado de deslumbramento e êxtase (...). No Brasil, o espírito do
homem rude, que é o mais significativo, é a passagem moral, o reflexo da
esplêndida e desordenada mata tropical. (id, ibid, p.621).
Percebe-se, portanto, que no lugar da comunhão entre homem e Todo, há o assombro – ou
melhor, o “Horror” – dos brasileiros diante da vastidão de uma Natureza incompreensível. Essa é
a tarefa que deveria ser vencida, para que a acomodação fosse possível. Há nesse ponto uma
retomada do tema clássico da Natureza opressora, comum nas interpretações sobre o Novo
Mundo e suas possibilidades civilizatórias. Sobre a natureza da experiência americana, Graça
Aranha tem interessante visão: recusando-se a opor a “civilização de qualidade” (Europa) à
“civilização de quantidade” (América), e apontando para a necessária presença simultânea dessas
duas dimensões, argumenta que a visão da civilização americana como mera expressão de
materialismo seria simplista. No caso, o Brasil deveria se esforçar para a conciliação entre a
30
O tema das “três raças tristes” é clássico no pensamento brasileiro, em especial nas primeiras décadas do século
XX. Está incorporado tanto em Ronald de Carvalho quanto em Paulo Prado.
66
“vibração” do seu espírito americano e as formas européias que alimentariam nossa inteligência.
Não há lugar, assim, para a reiteração essencialista de um americanismo particular oposto ao
legado europeu. Essa perspectiva, como mostrarei mais adiante, era expressão dos esforços do
modernista maranhense para incorporar as inúmeras discussões sobre a latinidade da experiência
brasileira, que eram populares na Primeira República.
A interpretação de Moraes sugere que os elementos que configurariam a “alma brasileira”
não seriam destinados à superação, mas à transformação. Ou seja, a resolução da “metafísica do
horror” não implicaria uma rejeição simples, mas uma acomodação estética, passível de ser
produzida pela arte. Essa interpretação volta-se para a sustentação de um argumento também
defendido por Paes sobre Canaã, e que diz respeito à proximidade dessa reflexão com o projeto
modernista da Antropofagia. A idéia de que a afirmação moderna do Brasil mobilizaria recursos
próprios da nossa experiência tropical e bárbara encontraria ressonância na sugestão de Graça
Aranha a respeito da integração com o Todo após a “tomada de consciência” a respeito da
Natureza. Note-se, contudo, que Paes não subscreve essa idéia de Moraes, argumentando que A
Estética da Vida desenvolve argumentos opostos àqueles de Canaã. Na verdade, creio que os
textos posteriores do escritor radicalizam a necessidade de superação da “metafísica do Horror”,
mas não implicam um descarte definitivo do que seria a experiência original traduzida pela idéia
de Natureza. Possivelmente a mobilização do autor para um combate mais veemente ao lado das
hostes modernistas representou uma radicalização estratégica de suas visões sobre a construção
moderna do país
31
, mas não significou uma definitiva resolução da tensão entre civilização
moderna e “utopia tropical”. No lugar da passagem da “integração” para “superação”, vejo uma
tensão constitutiva, nunca claramente resolvida e explicável pelas experiências intelectuais e
sociais concretas do autor.
Por um lado, o chamado “objetivismo dinâmico” defendido por Graça Aranha significaria
um decidido ataque a nossa tradição romântica e lírica, e uma postura intelectual voltada para a
defesa da experiência moderna e de seu repertório de criações e objetos. Assim, as páginas de O
31
Importante ressaltar que as conferências de O Espírito Moderno foram produzidas por um acadêmico da ABL,
discursando dentro da própria Academia, numa derradeira tentativa de arrastá-la para o “bom combate”. No caso, a
estratégia retórica não pode ser minimizada. A conferência, como se sabe, terminou de forma confusa, com apupos,
apartes e jovens carregando o escritor maranhense nos braços após a mesma.
67
Espírito Moderno estão povoadas de referências à “superação da Natureza” e à necessidade de
encontrarmos um panteísmo que descartasse esse elemento. Nestes termos, realizar o espírito
moderno implicaria subjugar o mundo natural de forma definitiva. Por outro, passagens como as
seguintes parecem exprimir a necessidade desse processo de “superação” ser realizado a partir
das próprias marcas deixadas pela nossa experiência originária: “A cultura européia deve servir
não para prolongar a Europa, não para obra de imitação, sim como instrumento para criar coisa
nova com os elementos, que vêm da terra, das gentes, da própria selvageria inicial e persistente”
(Graça Aranha 1968, p.750). Ou ainda
Subjugaremos a Natureza, para impor-lhe o nosso ritmo haurido nela própria.
Não se trata somente de criação material, de um tipo de civilização exterior.
Aspira-se à criação interior, espiritual e física, de que a civilização exterior das
arquiteturas, dos maquinismos, das industriais, dos trabalhos e de toda a vida
prática seja o reflexo. (id, ibid, p.751).
Como se percebe, o tema da superação da nossa experiência e da incorporação do Brasil
ao ritmo do tempo não descarta, de forma definitiva, os “ritmos da terra”. O problema parece ser
o paradoxo criado pela postulação de uma reinvenção do Brasil e a percepção, cada vez mais
forte, da singularidade de nossa experiência, exemplificada pela própria dificuldade de se
desconstruir o par Natureza-raça. No caso, a mobilização dessa imagem espacial nos escritos de
Graça Aranha serve como expressão de uma ontologia brasileira que encontra dificuldade para
ser traduzida na vida moderna. Afinal, o mesmo autor que faz o elogio dos venturosos
portugueses aponta a raiz melancólica e assombrada da nossa fundação étnica e proclama a
necessidade de seguirmos o ritmo da terra para subjugarmos a Natureza! Ao que parece, uma
dúbia relação com nossa tradição americana se apresenta, uma vez que esta ora é vista como
fonte de renovação civilizatória, ora como expressão de nosso assombro e incapacidade de
organização moderna. Creio que esse veio deve ser mais bem explorado, por meio do recurso à
obra de outro modernista carioca, Ronald de Carvalho.
2.3. RONALD DE CARVALHO NAS BÁRBARAS TERRAS AMERICANAS.
Num dos poemas que compõe seu livro Toda América, publicado em 1926, Ronald de
Carvalho escreve:
68
Eu ouço a terra que estala no ventre quente do nordeste, a terra que ferve na
planta do pé de bronze do cangaceiro, a terra que se esboroa e rola em surdas
bolas pelas estradas do Juazeiro, e quebra-se em crostas secas, esturricadas no
Crato Chato (Carvalho, 2001, p.36/37).
Num texto editado anos antes, em 1919, presente na obra Pequena História da Literatura
Brasileira, o poeta e diplomata carioca caracteriza da seguinte maneira a civilização moderna: “A
civilização moderna é a civilização da máquina
32
, a civilização do aço, do carvão, do petróleo e
do ferro” (Carvalho, 1929, p. 412).
As frases acima parecem proferidas por personagens distintos, mas ambas foram escritas
pelo mesmo personagem – Ronald de Carvalho. A primeira, um verso presente no poema
“Advertência”, evoca uma concepção naturalista-romântica da Natureza brasileira, na qual a terra
ganha contornos vivos e se assemelha a uma entidade vital que seria expressão da formação
cultural brasileira. Estaríamos diante da visão positiva da barbárie, se a entendermos como essa
espécie de energia social associada ao poder do mundo natural tropical. A outra, presente nas
considerações finais de Ronald a respeito do caráter que a arte moderna no Brasil deveria
assumir, indica uma veemente adesão aos valores industriais que organizariam a modernidade
capitalista, o que aproximaria o autor de uma espécie de futurismo yankee. Se o tema da Natureza
em Graça Aranha estrutura-se numa tensa combinação entre “integração” e “superação”, o
problema da terra em Ronald parece também não escapar a destino semelhante.Vejamos,
primeiro, as formulações iniciais do autor sobre o tema
33
.
Ronald de Carvalho foi um historiador da literatura que via sua tarefa como a forma, por
excelência, de autocompreensão de uma sociedade, e não apenas um ofício direcionado para a
estética em si. Ele retomava uma tradição que vinha de Silvio Romero, outro obcecado por essa
hermenêutica do nacional. Na mesma linha do polêmico intelectual pernambucano, sua Pequena
História da Literatura Brasileira iniciava-se com uma discussão sobre a natureza das terras nas
quais nossa literatura teria surgido. Trabalha, portanto, com as clássicas discussões sobre a
32
Todas as citações de Ronald de Carvalho e Vicente Licínio Cardoso seguem as regras ortográficas atuais. A opção
adotada visa facilitar a leitura do trabalho.
33
Não trato aqui da produção poética do autor anterior a esse período.
69
influência do meio na cultura, trazendo para seu texto inúmeros estudos sobre geografia e
geologia, entre os quais se situava o já então polêmico estudo de Buckle sobre a história da
Inglaterra, combatido por Silvio Romero. Após criticar a ênfase excessiva dada por alguns
intérpretes à Geografia, sugerindo que se levasse em conta fatores “étnicos históricos”, Ronald
abandona uma apresentação científica das diversas teorias sobre a terra americana para postular
uma narrativa sobre a formação nacional na qual o tema das raças surge com força – tema que,
aliás, nunca abandonará –, num registro mais literário do que científico
34
. Nos seus termos,
A raça mais ousada do velho continente, aquela que, pela força dos músculos,
pela audácia cavalheirosa e sagacidade política, dominou os mares e varou as
landes ignoradas, enquanto, na Itália e na França os homens se entretinham em
serões galantes ou em pequenas intrigas venenosas, trouxe para o mundo novo o
ultimo raio de seu resplendor, prestes a desaparecer.(Carvalho, 1929, p.36).
Como já disse, os temas do encontro das raças e da identificação do lusitanismo com o
signo da aventura marcarão virtualmente toda as formulações do autor. A teoria clássica de Taine
sobre o meio como chave de explicação dos fenômenos sociais (na conhecida fórmula “raça”,
“meio”, “momento”) também ganha contornos mais largos na reflexão de Ronald. Nas suas
palavras,
Aquelas célebres fronteiras da “lei do meio”, de Taine, devem ser dilatadas,
porque, na verdade, são muito mais largas do que parecem. O meio não é apenas
o ambiente, o momento e a raça. O meio é toda civilização, é a humanidade
inteira, são todas as reações estéticas e sociais, todas as aspirações, todas as
duvidas e todos os enganos, todas as verdades e todos os erros, o meio é o
Universo. (Carvalho, 1929, p.42).
Nessa passagem, o poeta carioca incorpora, de certo modo, a concepção de Graça Aranha
a respeito da terra, algo mística e identificada com o cosmos, como uma representação da
possibilidade de identificação do homem com o Todo. Contudo, nas seções finais da obra, Ronald
de Carvalho recupera o clássico tema da relação entre Natureza e homem no Brasil, também
tratado por Graça em A Estética da Vida
35
. E é no capítulo 11, dedicado à análise das tendências
modernas, que o autor de Toda América mostra-se mais firme na postulação de uma superação
34
Interessante notar como a discussão brasileira sobre “raça” escapa à configuração biológico-cientificista em que
muitos gostariam de enquadrá-la, assemelhando-se mais a uma espécie de narrativa fundacional em que se discutem
propriedades civilizacionais de distintas culturas.
35
Note-se que este livro de Ronald é anterior em três anos à Estética da Vida, mas boa parte das idéias de Graça já se
encontrava, de alguma forma, em Canaã.
70
completa da “metafísica do Horror” trabalhada pelo modernista maranhense. Se na introdução
Ronald de Carvalho elogia o caráter aventureiro e idealista do português, agora parece considerar
outros caminhos para sua narrativa “fundacional”. Ao comentar os trabalhos e reflexões de
escritores e intelectuais ainda marcados por essa tradição, associa a “voz da terra” a uma
qualidade melancólica que se refletiria no pensamento do brasileiro.
A melancolia ilustra sua visão sobre o Romantismo no Brasil, exemplificada, segundo ele,
pelos escritos de Nabuco sobre Massangana
36
. Esses escritos seriam produto dessa gente “(...)
rude, mística e fundamentalmente conservadora do campo” (Carvalho, 1929, p.408), em tudo
diversa dos personagens que seriam trazidos pelo avanço da industrialização e da urbanização do
Brasil, em especial os imigrantes. Assim, permite-se falar de um “povo em gestação”, mais afeito
ao ritmo da vida moderna e de seus elementos. Esteticamente, esse novo momento poderia ser
exemplificado pela conjugação entre arte e máquina, esta última entendida enquanto síntese da
capacidade moderna de criação, arrumação de forças e organização de energias. A missão final,
em última instância, seria “Vencer a natureza pela disciplina na inteligência, eis a primeira lei que
a realidade brasileira impõe ao homem moderno. Ele está farto do artifício da nossa existência
social” (id, ibid, p.410).
Ou seja, percebe-se uma tensão entre uma visão positiva da nossa fundação étnica e uma
perspectiva que postule a superação dessa fundação como tarefa dos modernos. Se, em Graça
Aranha, a superação da “metafísica do Horror” implicaria algum tipo de domínio sobre a
Natureza, essas passagens finais do seu discípulo Ronald de Carvalho indicam uma radicalização
dessa formulação, e uma verdadeira tomada de posição em favor da civilização moderna, definida
nos moldes da segunda citação desta seção. Como procurei mostrar no segmento anterior, a
perspectiva integradora desenvolvida pelo autor de Canaã parece abordar essa questão com mais
cuidado, destacando a presença de elementos fundantes que deveriam ser incorporados na
produção de um modernismo brasileiro
37
. Exemplar disso é a sua tentativa de conciliar a
36
Ronald se refere ao capítulo intitulado “Massangana”, um dos mais célebres de Minha Formação”.
37
É por isso que Moraes (Moraes, 1978) busca destacar a presença intelectual central de Graça Aranha para os
desdobramentos do modernismo nacional, incluindo os paulistas e toda a discussão de “brasilidade” que produziu
inúmeros Manifestos e revistas (Pau Brasil, Manifesto Antropofágico, Anta, etc.)
71
“vibração” do nosso espírito americano com a grande tradição européia, que Ronald parece
querer jogar por terra.
Seguindo o raciocínio acima, parece que, de Graça Aranha a Ronald de Carvalho
presenciaríamos uma certa racionalização da Natureza, e seu progressivo desencantamento total.
Ou, dito de outra forma, a negação de algo que pudesse ser caracterizado como nossa tradição, se
a entendermos como uma ontologia étnica tributária do par terra-raça. Mas a questão não é tão
simples assim.
Em 1922, Ronald de Carvalho publicava um livro intitulado Espelho de Ariel. Nele, a
referência clássica à figura do Espírito era evocada para nomear um conjunto de ensaios nos
quais a crítica estética ocupava lugar central. E, como se sabe, a estética não era um reino
divorciado da política e da produção de interpretações sobre o sentido da experiência civilizatória
brasileira. No caso de Espelho de Ariel, essa conjunção é marcante. Comecemos, pois, por um
belo e curto ensaio intitulado “As Vozes da Terra”, no qual o poeta escreve:
Para exprimir o que somos, é mister uma série de requintes que um ocidental da
Europa não compreenderia facilmente. Estamos em contato com um ambiente
singular. O caráter da civilização que vamos formando é, por enquanto,
contraditório e especioso. Sua complexidade, contudo, não lhe esconde a marca
profunda, que é o instinto da terra. Nossa arte, nosso pensamento, nossas
maneiras, nossos costumes estão intimamente ligados à terra em que pisamos.
Não somos nem seremos uma sociedade de salões, de intrigas amáveis, de
solertes disfarces. Quem foram os nossos mais puros fidalgos, os que fundaram
a nacionalidade? Antes do mais, homens de ação, idealistas é certo, mas cheios
de belos entusiasmo que só os horizontes vastos da terra sabem despertar
(Carvalho, 1976, p.137).
Qual é a natureza desse “instinto da terra”? Para entendê-la, creio ser necessário decifrar o
sentido mais geral da reflexão do autor sobre problemas clássicos da vida cultural no Ocidente.
Essa perspectiva integradora, que organiza os diversos ensaios que compõem o livro, é analisada
por André Botelho (Botelho, 2002). Segundo ele, os juízos críticos e filosóficos de Ronald de
Carvalho podem ser compreendidos a partir de uma certa matriz cética, desconfiada das
promessas racionalistas do Iluminista e tributária de um espiritualismo refratário ao mundo
organizado de acordo com a razão liberal. A visada cultural partilhada pelo simbolista carioca
veria na produção estética a arma para o alargamento da inteligência e para a dinamização dos
72
sentidos e da vida do espírito. Não à toa, um dos heróis filosóficos do modernista carioca era o
filósofo francês Henri Bergson, que desfiava o primado positivista com uma ardorosa defesa da
intuição como chave de acesso ao real. Nesses termos,
A experiência intuitiva concorreria de modo loquaz tanto para o reconhecimento
dos limites do racionalismo científico quanto para a aproximação da imaginação
poética à experiência mística, tão importantes para o ideário estético e
ideológico simbolista e para a obra dos anos 20 de Ronald de Carvalho.
(Botelho, 2002, p.159).
Interessante notar que a perspectiva de Ronald de Carvalho não implica uma atitude
essencialmente conservadora. Seu ceticismo diante do avanço da racionalidade sobre o mundo e
sobre as formas estéticas não o leva para uma glorificação do que se perdeu, mas antes para uma
busca por uma vitalidade que seria própria da civilização ocidental. No ensaio “A Lógica dos
Vencidos”, o poeta analisa a herança grega e busca ressaltar a dimensão dos sentidos. Nos seus
termos, “A Grécia não é, pois, unicamente Platão, é ainda Anacreonte, não é apenas o luminoso
banquete da razão é também a festa deliciosa dos sentidos” (Carvalho, 1976, p.41). O poeta busca
se filiar a essa matriz da civilização latina, a mesma, por sinal, que o uruguaio José Enrique Rodó
identifica com o espírito de Ariel.
Tal é a moldura intelectual que vai organizar sua reflexão sobre o fenômeno do
americanismo e, mais especificamente, sobre o caráter do “instinto de terra” de que fala o ensaio
acima mencionado. Vejamos o ensaio intitulado “Aurora de Castro Alves”, dedicado à análise da
produção e do sucesso literário do poeta baiano. Nele, Ronald de Carvalho destaca a capacidade
demonstrada por Castro Alves na composição de uma obra que mobiliza a dimensão bárbara de
nossa experiência americana. Ou seja, a poética que nos seria própria deveria seguir guias outros
que não os do equilíbrio e da frieza racional. Sua visão sobre o caráter “desmedido” da nossa
Natureza surge por meio da constatação de que o americanismo se pautaria por um barbarismo
avesso à economia moral do Velho Mundo. Nas suas palavras,
Poesia, para nós, quer dizer eloqüência (...). A própria natureza que nos rodeia,
banhada nos fulgores da luz tropical, é uma festa perene de claridades
excitantes. As coisas se mostram aqui em toda sua nitidez (...). Diante da nossa
Natureza, para não ficar diminuído como o encontrou Buckle, o homem procura
sobrelevar-se a si mesmo, atingir a mais alta expressão de seu poder criador.
73
Não podemos ser discretos e sóbrios como os gregos. A terra em que pisamos é
aclivosa e áspera, e, como a terra, o homem aqui não conhece aquela justa
medida tão louvada pelos antigos. (Carvalho, 1976, p.93).
Novamente, o tema da terra. Nessa passagem, ele ganha um sinal positivo, associado ao
que seria a marca profunda de nossa civilização, e que teria grande impacto sobre nossa produção
estética e intelectual. No lugar da cultura e da civilidade “de salão”, teríamos um repertório
valorativo animado pelo tema da ação e do despreendimento dado por esse “instinto da terra”. A
presença confessa nesta reflexão é a de Graça Aranha – “Esse problema fundamental que, entre
outros, o Sr. Graça Aranha apontou integralmente no seu ensaio intitulado Metafísica Brasileira
(Carvalho, 1976, p.137) –, mas a notação de um ativismo característico da formação nacional
parece levar para um lugar distante das reflexões analisadas na seção anterior. Afinal, o tema da
Natureza em Graça Aranha está relacionado a uma concepção crítica sobre a cisão entre homens
e Todo, que seria representada, no caso brasileiro, pelo assombro mágico dos personagens
nativos diante da vastidão e do descontrole da vida natural. Como procurei mostrar, esse
tratamento da questão produz uma espécie de concepção “letárgica” da nossa experiência em
tudo distante dessa vitalidade quase juvenil apontada por Ronald de Carvalho. As matizes
expressam a própria natureza dúbia do americanismo dos personagens estudados, que transitam
entre o entusiasmo pela energia bárbara e jovem de nossa sociedade e a visão negativa do que
seria uma vida social pouco afeita à modernidade.
Essa posição poderia ser enfatizada pelo recurso ao tema do “barbarismo”, lido numa
chave positiva e em associação com o “instinto da terra”. Como na seguinte passagem:
A nossa paisagem pede uma rapsódia, mas uma rapsódia entrecortada de
inflexões bárbaras e sutis, em que, ao clangor dos instrumentos selvagens, das
tubas, dos maracás e dos borés, se misturasse o canto melodioso da harpa, do
órgão e do violino (Carvalho, 1976, p.136).
Contudo, Ronald de Carvalho segue as interpretações de Graça Aranha sobre nosso
“terror cósmico”, dando-lhe novo colorido:
Ensina a experiência, confirmada pela história, que os povos habitantes de largas
porções de terra são, geralmente, melancólicos. A Índia, a China, a Rússia
ilustram à saciedade essa tese. Nossa melancolia não é somente fruto do “terror
74
cósmico”, segundo a profunda ponderação do Sr. Graça Aranha, mas, por igual,
do sentimento obscuro e instintivo do destino imenso e complexo que a
enormidade do meio sugere. Decorre daí o culto exagerado e irrefreável da
imaginação, o transbordamento das qualidades afetivas sobre as racionais. Ao
invés de dominar a terra é o homem absorvido por ela. (Carvalho, 1976, p.138)
Na passagem acima, a retomada clara do pensamento de Graça Aranha sobre a relação
algo encantada entre homens e Natureza situa Ronald de Carvalho na mesma linhagem, com a
interessante adição de uma perspectiva comparada. No caso, a inserção do Brasil num conjunto
de sociedades em que o tema espacial exerce efeito semelhante, produzindo um sentimento
melancólico próprio de povos que não conseguem domar a Natureza. Tem-se, portanto, uma
espécie de orientalismo (que evoca o clássico ponto de Montesquieu sobre a geografia do
despotismo) que se casa com o entusiasmo americanista.
Não obstante, o ardor americano do escritor carioca não o leva a caracterizar a sociedade
brasileira apenas pelo recurso ao “novo”, já que uma preocupação constante de sua obra é a busca
de uma espécie de ontologia do país, que não poderia prescindir de alguma idéia de tradição. Tal
busca estaria vinculada às próprias matrizes intelectuais do seu pensamento, como afirma
Botelho:
Não se deve perder de vista, contudo, que a tendência de concentrar os juízos
históricos na representação individual subjetivada está diretamente relacionada,
no seu caso, a sua socialização estética e intelectual nos ideários simbolista,
espiritualista e historicista, os quais, como estou sugerindo, encontram unidade
intelectual na premissa metafísica de uma origem ontológica da nacionalidade
brasileira que fundamenta sua obra (Botelho, 2002, p.42).
Ou seja, as reflexões americanistas do autor não estão dissociadas de uma concepção
historicista da cultura nacional, que abre importante porta para o tema ontológico do “encontro de
raças tristes”. Como afirma Botelho, o tema da cultura em Ronald de Carvalho tem contornos
políticos que envolvem a delimitação de uma tradição passível de ser empenhada no processo de
afirmação moderna do Brasil. Nesses termos, a corrente espiritualista, que organizava uma parte
significativa do campo moderno carioca no período, tinha preocupação especial com o problema
da formação de elites capazes de conduzir esse processo e mobilizar essa espécie de “reserva
civilizacional”. O “instinto da terra” diria respeito a uma experiência de corte americano –
75
bárbara, desmedida e pouco afeita aos padrões do refinamento que organizariam a sociabilidade
européia –, mas também abriria espaço para o reconhecimento de uma tradição a ser valorizada.
Tem-se aqui uma questão assemelhada àquela apontada como uma tensão no pensamento
de Graça Aranha. Ronald de Carvalho não abandona o “ardor americanista” pela terra: ela é
delineada como expressão de uma fundação distinta daquela que marcaria o Velho Continente. Se
encararmos Castro Alves como um tipo americano, entenderemos que esse tipo não se pauta pela
autocontenção e pela economia moral própria do sujeito por excelência do Iluminismo. Nesses
termos, o americanismo casa-se com a crítica do intelectual carioca aos limites do racionalismo –
o “ceticismo” de que fala Botelho – e se constitui numa espécie de forma alternativa de Ocidente.
Todavia, a ontologia étnica que lastreia as suas narrativas é, para dizer o mínimo, ambígua.
Afinal, o “encontro das raças tristes” parece configurar uma forma de sociabilidade desajustada
ao ritmo moderno. É nesse sentido que se poderia entender a pregação já citada do autor contra as
“vozes da Terra”, exemplificadas por personagens melancólicos e refratários à “civilização da
máquina”. O que, portanto, deveríamos resgatar da nossa experiência americana, e qual a
conjugação possível dela com a vida moderna? A terra e suas vozes são entraves ou forças a
serem mobilizadas?
Segundo Botelho, o projeto de Ronald de Carvalho envolvia um ideário antiliberal, de
inspiração conservadora, que olhava para a fundação brasileira em busca das matrizes da nossa
experiência que deveriam ser compreendidas para a construção cultural e política moderna do
país. Não creio, contudo, que esse projeto encontre resolução tão segura, dada a dificuldade de
lidar com a tensão produzida pela “voz da Terra”. Afinal, o próprio legado ibérico – aventura
portuguesa – é desafiado por Ronald, diante da percepção da emergência de novos grupos étnicos
mais afeitos ao “carvão e ao aço”. Novamente, a associação da imagem espacial a uma narrativa
com tintas étnico-culturalistas produz uma tensão entre o ritmo do tempo e uma ontologia que
exige solução: preservação, descarte ou reinvenção?
A despeito da centralidade da figura de Ronald de Carvalho, suas formulações não foram
as únicas a exprimir esse peculiar veio simbolista-moderno do Rio de Janeiro. Outros grupos,
76
mais próximos ainda do catolicismo, deram outras versões do problema da terra. Vejamos um
deles.
2.4. FESTA – CATOLICISMO, MODERNISMO E “FORÇA DA TERRA”.
O grupo reunido em torno da revista Festa tinha já alguma história na cena intelectual do
Rio de Janeiro. Andrade Murici e Tasso da Silveira estiveram envolvidos em outros projetos,
como a revista América Latina, marcados pela influência filosófica de Jackson de Figueiredo.
Mobilizados pela tradição do simbolismo carioca – com as peculiaridades já apontadas –, esses
dois personagens foram centrais na confecção de um certo “modernismo” (se é que se pode
chamá-lo assim) distinto tanto das vanguardas paulistas quanto das fabulações de Graça Aranha,
por demais comprometidas com um combate radical. Na versão de uma intérprete do
modernismo carioca,
Certamente não se trata de falar de um modernismo, mas de assinalar uma
inflexão no pensamento social e artístico que articula nacionalismo, na vertente
conservadora capitaneada por Alberto Torres, com espiritualismo católico, cujo
expoente é Jackson de Figueiredo, e cujo objetivo é inovar e reformar, sem
abandonar as tradições, sobretudo a da literatura simbolista, mas não apenas dela
(Gomes, 1999, p. 47-48).
Sobre Festa, que combinava inovações gráficas que a aproximavam de experimentos mais
afinados com o modernismo, como a revista Klaxon, e conteúdo diverso do radicalismo que
animaria os paulistas, a mesma intérprete afirma:
Trata-se de ser moderno e nacionalista, mas de forma distinta de outros
nacionalismos modernistas e, em especial, dos paulistas. Estes, sobretudo na
versão da antropofagia, são considerados muito radicais e tão somente
destruidores. São pouco sérios e por demais materialistas, derivando dos
naturalistas e realistas do século XIX. Por contraste, o grupo de Festa assume o
espiritualismo e o universalismo na arte, não renegando o epíteto de novos
simbolistas e procurando capitalizar a tradição que vinha do romantismo.
Nacionalistas – leitores-admiradores de Alberto Torres e Euclides da Cunha – e
universalistas; subjetivistas que, sob sugestão de Proust, trabalhavam o
objetivismo; modernos e tradicionalistas; enfim, “modernistas espiritualistas”
como se designavam, para demarcar o seu espaço (Gomes, 1999, p.60).
77
Neusa Caccese (Caccese, 1971), uma estudiosa da revista A Festa
38
, mostra como o
diagnóstico de uma crise espiritual pautada pela desumanização e pela máquina encontraria na
expressão “força da terra” um dos caminhos da salvação para a nacionalidade brasileira. Segundo
a autora, a crítica ao materialismo moderno, exemplificado por sociedades como a Rússia e os
Estados Unidos, seria acompanhada de uma pregação espiritualista pela renovação brasileira. Se
a redescoberta da alegria divina era um caminho óbvio, o outro seria
(...) o do respeito à “verdadeira Tradição” e “força da Terra”. Festa relaciona
sempre a tradição de um povo com os valores do espírito, inclusive em termos
de Eternidade, já que uma das manifestações do Eterno é a corrente que se
estabelece entre a atuação do homem de hoje e a de seus sucessores. Os
conceitos de Tradição, Terra, Raça estão intimamente ligados, sobretudo quando
a Revista analisa os problemas no âmbito puramente nacional (...) Lembrando
que da Terra nasceu o mundo latino, que na Terra Prometida Israel viu a
salvação de sua gente, a Revista sente, na “força da Terra”, a possibilidade de
renascimento do Espírito no Brasil, através do Indianismo, por exemplo, uma da
formas pela qual ela aqui se manifesta (Caccese, 1971, p.37-38).
Como se percebe, a entrada do grupo de Festa no modernismo carioca está ancorada no
espiritualismo e na estética simbolista, com forte referência em Cruz e Sousa. Segundo a autora,
esse grupo rejeitava o lado clown do modernismo paulista e tinha como heróis no seu panteão
literário nomes como Maeterlinck, Tagore, Ruskin, Maritain e Whitman – esse último, poeta da
predileção de Ronald de Carvalho.
Nota-se, nas interpretações acima, a forte presença de um nacionalismo de corte católico,
que tinha grande publicidade no Rio de Janeiro da Primeira República. Curiosa, portanto, a
filiação modernista da Revista, a despeito da trajetória simbolista de seus principais articuladores.
Creio que o ponto a ser destacado diz respeito à percepção de que a busca por elementos que
configurassem um obstáculo ao primado do materialismo não se traduzia apenas na pregação da
tradição per se. A “força da terra”, por assim dizer, não representaria apenas um conteúdo
essencialista a ser empunhado como uma barreira particularista, mas antes a expressão de formas
38
Segundo a autora, a revista foi publicada em duas fases. Na primeira, de outubro de 1927 a setembro de 1928. A
segunda, de julho de 1934 a agosto de 1925. Festa tentava se colocar como uma “terceira tendência” no modernismo,
distinta tanto do grupo paulista, quanto do campo inspirado por Graça Aranha e seu “dinamismo objetivista”. Entre
os nomes principais do grupo, a autora destaca Andrade Murici e Tasso Silveira. Bosi (Bosi, s/d) parece concordar
com essa idéia, falando de um nacionalismo místico, distinto tanto das vanguardas futuristas, quanto das formulações
ancoradas no primitivismo, e cita o grupo Festa como um grupo “à parte”.
78
espirituais que deveriam nortear a moderna construção do Brasil. Essa reação espiritualista era,
como disse, destinada ao combate no espírito do tempo. Vejamos, então, um artigo-manifesto
escrito por Tasso da Silveira para a revista em 1927, publicado quatro anos depois no seu
Definição do Modernismo Brasileiro:
Só há duas genuínas espécies de romance. O romance do homem e da cidade. O
romance do homem ainda em profunda comunhão com a terra. No primeiro
caso, a luta da inteligência que se isolou de Deus para erguer as suas audazes
construções. E por isso sente mais forte o sopro rijo das tremendas agonias. No
segundo caso, a pulsação viva das forças primordiais envolvendo ainda o
espírito. A grande voz da terra que se insinua na dos homens. Que se funde na
dos homens. Que vence, quase, a dos homens. (Silveira, 1932, 96).
Após delimitar os principais intérpretes e escritores associados a essas duas famílias de
romances, o literato paranaense destaca a necessidade de se encontrarem vozes que interpelem a
terra. Afinal,
Porque, não obstante as suas duas ou três cidades grandes, e as suas vinte ou
trinta cidades que vão crescendo, e as suas cinqüenta cidades mortas e as suas
novecentas cidades crianças, - o Brasil é ainda a terra ardente e prodigiosa que
magnetiza e domina o homem, dando-lhe a voz com que ele fala e inoculando-
lhe no espírito e no sangue o sonho obscuro e atormentado das suas prodigiosas
forças elementares (id, ibid, 97-98).
O texto conclui destacando que os intérpretes da terra podem se encontrados no grupo
modernista de que participa – a terceira corrente do movimento –, único capaz de identificar essa
geografia singular às forças da tradição. Como afirma Tasso,
(...) os espiritualistas querem, também, a expressão virgem e luminosa de nossa
alma profunda, afirmada perante os outros povos como uma realidade digna de
existir. Mas as indicações mais altas das virtualidades íntimas dessa alma,
pretendem eles bebê-las na fonte viva da tradição. E além disso consideram a
realidade brasileira integrada na realidade universal, co participando dessa
perene permuta de forças interiores entre os povos, que faz a complexa grandeza
do mundo de nossos dias (id , ibid, 122).
Note-se que a temática desse grupo combinava um interesse pela americanidade da
formação brasileira aliado a uma preocupação com a integração nos quadros espirituais da
civilização ocidental. Interessante destacar também como a delimitação das civilizações
“materialistas” – Rússia e Estados Unidos – era acompanhada de uma argumentação que
79
incorporava o tema da “força da terra”, expressão com forte lastro na cultura e nas letras russas.
O ponto de conexão entre Festa e o modernismo russo foi trabalhado por Yuri Guirín (Guirín,
2004), estudioso do assunto, e pretendo retomá-lo mais adiante. Deixo apontada, entretanto, a
postulação de uma “força da terra” que se identifica mais claramente com as noções de raça e
tradição, ganhando, portanto, um conteúdo claro. Se, em Graça Aranha e Ronald de Carvalho, a
tensão produzida pela mobilização da terra era muito acentuada, no caso dos espiritualistas de
Festa ela não gerava tanta ambigüidade. Por outro lado, permitia pouco espaço para a
incorporação do Brasil ao reino das civilizações modernas, enfatizando em demasia a pregação
antimaterialista. Faz-se necessário, então, desvendar as experiências que moldaram essas visões
sobre a terra.
2.5. INTELECTUAIS E EXPERIÊNCIA AMERICANA.
Em 1924, Tristão de Athayde (pseudônimo de Alceu de Amoroso Lima) escrevia um
ensaio intitulado “Política e Letras”, presente no célebre À Margem da História da República,
organizado por Vicente Licínio Cardoso. Tristão estuda o significado do americanismo na
experiência intelectual brasileira e seu impacto sobre a cultura e sobre a política, além de
comparar os “tempos” da História brasileira – Império e República. Ao analisar alguns
personagens da nossa vida republicana, o autor compara Ruy Barbosa – nosso “europeu” – ao
senador Pinheiro Machado, representante do “espírito americano”. Ao idealismo de Ruy,
contrapõe
(...) a intuição de homens, a razão da experiência, a paixão nativa da liberdade
como instinto – mas a necessidade humana da autoridade, e daí a força, os
golpes políticos maquiavélicos, o espírito realista da formação brasileira
(Athayde, 1924, p.258).
A aguçada percepção do intelectual católico desvenda duas formas distintas de
modelagem intelectual na Primeira República, e que exemplificam a dificuldade de lidar com
nossa “americanidade”, tão proclamada e sempre assumida, como vimos nas seções anteriores. O
que seriam, exatamente, “homens americanos”, como se quer Ronald de Carvalho, e, em menor
escala, Graça Aranha? Indivíduos viscerais, pouco afeitos ao jogo cortesão da intelectualidade
brasileira, homens despreendidos, “bárbaros” em alguma medida, e que cultivam o espírito da
80
liberdade? Nesse sentido, estariam identificados com a terra americana desenhada pelo poeta
carioca em ensaio analisado neste texto, configurando, portanto, uma marca da nossa formação e,
por que não dizer, da nossa tradição. Ora, mas é esse mesmo Ronald de Carvalho que recusa os
personagens – românticos, líricos, melancólicos – paridos por essa terra tão americana, e que
prega por uma nova floração intelectual, mais afeita ao mundo das máquinas e da civilização
industrial. Já Graça Aranha dedicou um pequeno livro a Machado de Assis e Joaquim Nabuco –
homens tão pouco americanos –, e suas relações de amizade e sociabilidade passavam por lugares
como a ABL e o Itamaraty. Sugiro que, no desvendamento das experiências sociais e intelectuais
que moldaram Ronald e Graça está uma chave de entendimento para a decifração da tensão
existente nas suas reflexões sobre a terra e sua americanidade. A questão central é o modo
problemático como ambos lidam com o que entenderiam como a tradição presente na experiência
brasileira.
Valho-me aqui de sugestões desenvolvidas por Raymond Williams (Williams, 2000a) no
seu já citado trabalho sobre o campo e a cidade na imaginação inglesa. O autor disseca as
representações literárias produzidas na sociedade inglesa ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX,
mostrando como as imagens espaciais do campo e da cidade seriam forjadas num ambiente
marcado pelo desenvolvimento do capitalismo e pela subordinação do meio rural ao urbano.
Neste registro, a imagem idílica e bucólica do campo, mobilizada pela gentry inglesa,
representaria uma estrutura de sentimentos pautada pela percepção de uma tradição quase
clássica que sobreviveria de forma nostálgica nos personagens assustados com a vida urbana, mas
que não identificavam a dimensão espoliadora presente no trabalho rural. O campo era uma
imagem trabalhada a partir de novas sensibilidades que buscavam ordenar o sentido da
experiência histórica inglesa diante do desafio da modernização capitalista. No dizer de Williams,
Em todas essas relações sociais concretas e formas de consciência, concepções
do campo e da cidade, muitas vezes de um tipo mais antigo, continuam a atuar
como intérpretes parciais. Mas nem sempre percebemos que, em seu
direcionamento geral, elas representam posicionamentos em relação a um
sistema social global. Particularmente a partir da Revolução Industrial, mas a
meu ver já desde os primórdios do modo capitalista de produção agrícola, as
poderosas imagens que temos da cidade e do campo constituem maneiras de nos
colocarmos diante de todo um desenvolvimento social (Williams, 2000a, p.397).
81
Nos termos trabalhados nesta tese, a terra e a Natureza eram as imagens espaciais
associadas a uma dúbia tradição americana, que desafiava personagens oriundos de seguras
posições nos figurinos da vida urbana carioca, e que se viam desafiados pelo problema do
modernismo. Deste modo, torna-se imprescindível analisar, mesmo que brevemente, as
experiências intelectuais e sociais desses agentes, como forma de decifrar o sentido dessa dúbia
relação com a nossa terra americana. Não se trata, portanto, de postular uma mecânica explicação
externalista para a questão, mas de destacar como o americanismo não se restringia a um
problema de ordem teórico-conceitual, configurando-se numa forma de vivência almejada.
Graça Aranha era um maranhense criado no seio de uma família abastada de São Luís, o
que, desde já, teria lhe propiciado oportunidades escolares, intelectuais e sociais mais amplas.
Evidências disso são suas constantes viagens para a Europa, sua precoce amizade com Joaquim
Nabuco e sua entrada para a ABL, secundada pelo conhecido amigo. Sobre esse fato, seu amigo
de geração, Alceu Amoroso Lima, é taxativo: “Graça Aranha entrou para a Academia sem obra,
por pressão de Joaquim Nabuco, seu grande amigo e chefe em missões diplomáticas. Vinha do
Maranhão” (Lima, 2000, p.112). Essa capacidade de circulação pelas principais agências que
organizavam a vida intelectual carioca é atestada por Alceu, que não economiza críticas a
respeito da capacidade do escritor
39
. Segundo ele,
Ao regressar da Europa, em 1921, Graça trouxe em sua bagagem o seu livro A
Estética da Vida, onde desenvolvia o panteísmo e a sua “concepção espetacular
do universo”. Publicado no ano seguinte, discordei radicalmente, através das
colunas de O Jornal, das teses por ele defendidas nessa sua obra, fraca como
tudo quanto escreveu sobre estética e filosofia. Graça não era um homem de
gabinete, nem tampouco dado a muitas leituras. Certa vez disse-me que só leu
muito quando promotor público no interior do Maranhão. Teria então lido por
toda a vida. Era antes um intuitivo, um improvisador. (Lima, 2000, p.113).
39
Essa percepção crítica é também anotada por um estudioso do modernismo. Ao destacar a reação da opinião
paulista à presença de Graça Aranha na Semana de 1922, Afrânio Coutinho afirma: “Sugeriu-se, na ocasião, que a
presença de Graça Aranha na Semana de Arte Moderna, deveu-se, sobretudo, a negócios que ele e Paulo Prado, da
firma comissionaria “Prado, Chaves e Cia”, tinham em comum, referente ao café retido em Hamburgo durante a
guerra.” (Coutinho, 1959, p.455). O registro dessa maledicência atesta duas coisas: a disseminação de uma visão
negativa a respeito das reais capacidades literárias do escritor maranhense e a força de sua rede de relações nos
círculos mais abastados de São Paulo (no caso, a família Prado).
82
Impressão semelhante revela Gilberto Amado em seu volume de memórias (Amado
1956). Ao mesmo tempo em que atesta o papel catalisador que Graça Aranha exercia sobre os
jovens literatos brasileiros, graças ao seu livro de estréia, a sua desenvoltura no trato com figuras
de renome e às suas constantes viagens européias, Amado afirma:
Graça Aranha conservou no seu espírito novidadeiro muito do estreante das
letras de que no fundo nunca passou. Suas admirações e leituras variavam ao
sabor da moda; refletiam as ondulações da crítica. Seu contato, porém, era
estimulante. Sobre Joaquim Nabuco, seu modelo social, sombra que o perseguia,
nada me disse de interessante, pois sua capacidade de olhar para dentro das
pessoas – como assinalei no Minha Formação em Recife – era nula. Suas
manifestações não passavam do entusiasmo e da exclamação: “Oh, Nabuco!”
(Amado, 1956, p.300-301).
Seu curso de Direito – opção preferencial para a maioria dos segmentos de elite no
período – foi feito no Recife, sob influência de Tobias Barreto, e sua trajetória profissional
alternou-se entre o trabalho jurídico e a carreira diplomática. Nesse universo, comum a outros
membros possuidores das necessárias credenciais para esse trânsito “leve” entre cargos na alta
burocracia, produção literária e mundanismo, o cosmopolitismo era uma experiência acessível e
quase natural. Destarte, as constantes viagens de Graça Aranha para a Europa o puseram em
contato constante com as novas tendências nos campos da filosofia e das artes em geral,
possibilitando que ele retornasse ao Brasil, já na efervescência moderna, com o necessário
estoque que o legitimasse diante dos jovens. Segundo o mesmo Alceu, o escritor de Canaã já o
provocava, em 1913, a respeito da necessidade de se renovar o cenário das letras no Brasil.
Ademais, sua produção literária datada do início do século, tida como inovadora na forma e na
temática, já o credenciava como um “renovador”. Entende-se assim a posição que alcança
durante o início dos anos de 1920, e que o catapulta para um posto de liderança na chamada
Semana de 22, a despeito dos inúmeros atritos que teria com os jovens modernistas nos anos
subseqüentes.
Como se vê, a construção da personagem “Graça Aranha” foi animada por diversos
“espíritos”, para usar a expressão fornecida por Tristão de Athayde. Ao mesmo tempo em que se
encantava com a possibilidade de se enredar socialmente pelos ambientes da vida acadêmica
estabelecida no Rio, graças a sua forte amizade com José Veríssimo, mostrava-se fascinado pelo
83
espírito rebelde e inquieto dos homens da Escola do Recife, outsiders e polemistas ao melhor
estilo “Silvio Romero”. No dizer de uma biógrafa,
Josué Montello assinalou com propriedade que a vida e a obra de Graça Aranha
oscilaram entre dois mundos, no plano de valores intelectuais, desde a sua
juventude, quando estudou no Recife, e dali trouxe a fascinação pela rebeldia de
Tobias Barreto, e quando ingressou na carreira diplomática, ajustando-se ao
equilibro exemplar de Joaquim Nabuco (Azevedo, 2002, p.XV-XVI).
Interessante retomar aqui a abordagem de Roberto Ventura (Ventura, 1991) sobre o estilo
de atuação intelectual de Silvio Romero. Em seu trabalho, ele usa a categoria “estilo tropical”
para associar as formulações intelectuais de Romero ao seu desempenho na arena dos embates
intelectuais do período, na qual o intelectual pernambucano procurava se sobressair manejando a
polêmica, a virulência e o sarcasmo destemperado. Não se pautaria, portanto, pelas sutilezas de
um jogo intelectual que identificava a “Rua do Ouvidor” – metonímia romeriana do Brasil
“oficial” – como eixo estruturador dos salões literários do período. Nestes termos, a postulação
de um Brasil outro, assentado numa experiência americana da qual acreditava ser o hermeneuta
por excelência, passaria pela modelagem de homens intelectuais de outro tipo. Assim, poder-se-ia
dizer que essa modelagem era o desafio colocado diante de Graça Aranha.
O famoso episódio da conferência sobre o modernismo, proferida em 1924 na ABL é
atestado dessa modelagem. Ao atacar, em O Espírito Moderno, o passadismo da Academia e
pregar uma renovação imediata do quadro de referência da literatura brasileira, Graça Aranha
grande tumulto na assistência. Ao final, foi ovacionado pelos jovens literatos presentes, sendo
carregado nos braços numa mini-passeata. O ano de 1924 marcou também a cisão definitiva entre
o maranhense e outros grupos modernistas, em especial os paulistas. Restringiu-se ao seu círculo
mais íntimo, composto por Ronald de Carvalho e Renato Teixeira, principalmente. A seqüência
ilustra bem essa dupla face, que combinava um irrequieto “espírito americano” – propenso a
polêmicas e disputas que reorganizassem o cenário nacional – com uma consolidada posição nos
meios mais consagrados nos quais essas mesmas disputas se travavam. Dito de outra maneira, é
como se essas batalhas só funcionassem graças à capacidade de Graça Aranha em circular com
desenvoltura nas redes de sociabilidades modernistas que ecoavam sua posição segura. O
exercício de uma liderança natural no movimento por parte de um personagem sobre o qual
84
sobravam dúvidas a respeito de seu potencial literário é evidência justamente desse largo espaço
de movimentação social. Sobre a relação entre Graça e o modernismo, Afrânio Coutinho afirma:
De qualquer modo, mesmo não compartilhando, de todo, do seu pensamento,
Graça Aranha era um espírito inquieto, tinha prestígio nos melhores círculos
intelectuais, vinha da diplomacia, pertencia à Academia Brasileira de Letras, e,
sobretudo, estava ansioso por agitar o ambiente culto do país (Coutinho, op.cit,
p.449)
As investidas políticas de Graça Aranha limitaram-se a um arranjo com um grupo
oligárquico de origem manharense, que combatia Pinheiro Machado, identificado pelo escritor
maranhense como o representante por excelência do caudilhismo sul-americano, das forças
destrutivas etc. Por mais que seja tentador identificar essa recusa do “espírito americano” como
uma mera concessão episódica, um constrangedor momento de “aluguel da pena”, outras
evidências sugerem uma extrema dificuldade para lidar com o seu pertencimento a uma tradição
brasileiro-americana. Sua insistência em combinar latinidade e americanismo é apontada por
Azevedo, que mostra como o elogio ao legado ibérico – “O domínio português torna-se o aval do
nosso parentesco com a raça e a espiritualidade latina” (Graça Aranha apud Azevedo, 2002,
p.226-227) – convivia com a pregação pela combinação da “latinidade” com o que chamava de
“civilização da quantidade” – os Estados Unidos.
Seguindo a sugestão de Raymond Williams, para o qual as imagens e categorias
simbólicas expressam estruturas de sentimento concretas vivenciadas por intelectuais e literatos,
pode-se dizer que a relação de Graça Aranha com a Natureza – expressão do nosso horror e da
nossa “metafísica” – exprimia sua trajetória segura na vida intelectual do período, mas ao mesmo
tempo sequiosa de “rebeldia”. Em tudo distante da terra, e do que se poderia considerar como
fundamentos da nossa experiência, vislumbrava nela uma centelha que lhe parecia inspirar, mas
que ao mesmo tempo lhe parecia assustadora e pouco “civilizada”. Desta forma, pode-se entender
a seguinte afirmação de sua biógrafa: “É sugestivo notar como o escritor empresta ao brasileiro
um traço que considera característico dele próprio, a imaginação excessiva” (Azevedo, 2002, p.
183).
85
Já argumentei acima a respeito da filiação simbolista de Ronald de Carvalho. Se, de
acordo com Gomes, a geração de intelectuais cariocas nos anos 20 era marcada por uma forte
herança simbolista (que remontava ao início do século XX) que estava sendo reprocessada, o
autor de Toda América era figura central nesse grupo. Essa centralidade é destaca por Botelho,
que comenta sobre a forte presença do poeta no movimento modernista:
Até naquele momento, as principais relações entre simbolismo e modernismo,
bem como entre modernistas estabelecidos no Rio de Janeiro e os de São Paulo,
foram mediadas por Ronald de Carvalho. Não por acaso, já que como vimos nos
capítulos anteriores, ele podia mobilizar os elementos que o destacavam no seu
círculo intelectual e o valorizavam frente aos outros membros: sua formação
humanista, seus contatos pessoais, sua prolixa participação na imprensa, sua
experiência com as vanguardas européias, sua posição no Itamarati etc. (Botelho
2002, p.120-121).
O mesmo intérprete não tem muitas dificuldades em desenhar o perfil antiliberal de
Ronald e sua vocação para um programa político-intelectual escorado numa concepção
culturalista da História, que via o projeto moderno como um programa de “cultura política”.
Tratar-se-ia, portanto, de organizar uma Nação com base numa construção, e não numa mera
reiteração de uma suposta tradição. Daí o acerto de contas com o legado ibérico – a “voz da
Terra” –, e a dubiedade diante dessa nossa terra “desmedida” – por um lado, ardor americanista,
por outro, pregação pelo domínio disciplinado da mesma. Ora, mas sua versão sobre a fundação
da experiência brasileira é ambígua. Se o grande idealismo ibérico é associado ao tema da
aventura e do desprendimento, elementos incorporados à poética modernista encampada por
Ronald de Carvalho – que se nutria também fortemente de Whitman –, e o “instinto da terra” nos
levaria para uma estética generosa e próxima de uma sensibilidade não regulada pelos protocolos
de cortesãos, a fabulação sobre as raças melancólicas evidencia como é difícil operar a
dissociação terra-raça, na qual essa última ainda surge como problema. Nesses termos, a terra é
elemento a ser disciplinado na civilização da máquina pelos novos personagens produzidos no
Brasil moderno, como nas passagens finais de seu estudo sobre a história da literatura brasileira.
Botelho percebe bem a questão, ao afirmar que
Nesse sentido, penso ser possível falar em “programa intelectual politicamente
relevante” em relação à obra de Ronald de Carvalho dos anos 20 não apenas
porque o autor formula um diagnóstico da sociedade, propõe um prognóstico
86
político e define os seus atores sociais de modo relativamente integrado, mas
também pelos problemas suscitados por seu esforço. De fato, assim procedendo,
Ronald de Carvalho coloca, observados do ponto de vista sociológico, alguns
problemas centrais – e ainda não completamente equacionados – não apenas da
teoria social, como da própria sociedade brasileira. Penso, em primeiro lugar, na
tensão entre as formas de solidariedade particulares, de que parece necessitar a
afirmação da nacionalidade, e as relações sociais indeterminadas, individuais e
competitivas associadas à modernidade (Botelho, 2002, p.290).
Ou seja, novamente reaparece a questão de como lidar com o “espírito americano”. O
poeta carioca, cujo salão era um dos epicentros da intelectualidade carioca do período, era, por
assim dizer, um homem marcado pelos ritos próprios a um homem da sua formação: bacharel em
Direito, viagens à Europa, circulação na alta esfera da vida cultural etc. Sobre a inscrição de
Ronald do ambiente cultural da cidade, seu amigo Alceu Amoroso Lima afirma:
Ronald de Carvalho, desde cedo, mostrou-se possuído de grande ambição,
desejando brûler lês étapes; com uma grande vocação conservadora em matéria
de vida literária, visou desde cedo a Academia Brasileira de Letras. A Pequena
História da Literatura Brasileira, escrita por ele a galope, é dotada de inegável
brilho e senso estético. Mas quando examinamos a terceira edição dessa obra
verificamos que aí já não figuram os nomes de muitos acadêmicos citados por
ele na primeira. É contudo inegável que Ronald de Carvalho era uma vocação
poética (Lima, 2000, p.137-138).
Ronald de Carvalho compunha com Graça Aranha uma dupla de prestígio no modernismo
carioca, pois combinavam algumas credenciais literárias com uma vasta de rede de contatos e
conhecimentos que lhes permitia circular entre os diversos grupos, tanto no Rio de Janeiro,
quanto em São Paulo. Ambos tinham uma produção relevante antes dos anos de 1920, em
especial o poeta carioca. Afrânio Coutinho (Coutinho, op. cit) identifica-o como um dos
principais poetas do chamado “penumbrismo”, estilo de transição, marcada pela recuperação da
tradição simbolista e por um forte tom intimista. Interessante notar que Alceu, amigo íntimo de
ambos, percebe a estranha liderança exercida pela dupla, ao ressaltar que tanto um quanto outro
não eram propriamente escritores modernistas. Entretanto, desde sua estréia em 1913, com Luz
Gloriosa, Ronald de Carvalho vinha conseguindo notoriedade e consagração. Seu Poemas e
Sonetos recebeu um prêmio da ABL, e aos 27 anos já conseguia circular nas rodas literárias de
Brasil e Portugal, além de trabalhar no Itamaraty e ostentar a láurea de poeta premiado.
87
Em certo sentido, Ronald de Carvalho era um dos homens com espírito cortesão, tão
distante do modelo “Castro Alves” por ele elaborado. Se há um genuíno interesse pela
americanidade, que se expande pela sua obra poética – o livro Toda América, de 1926, é
exemplar disso –, o universo social e intelectual no qual se movia com leveza e naturalidade não
propiciava muitos figurinos “americanos”. A própria compreensão do que seria nossa tradição
americana parecia algo complicado, dada a necessidade de narrar uma fundação ontológica que
levasse em conta nossas raças e suas características – ou melhor, as propriedades civilizacionais
associadas a elas. Ao poeta carioca, a terra parecia uma imagem espacial por demais povoada,
difícil de ser acessada facilmente por um espírito moderno simbolista, tão próximo da “reação
espiritualista” dos anos 20, e que não poderia admitir um protagonismo dos personagens gerados
por essa geografia social.
A resolução encontrada por Ronald de Carvalho foi, como se sabe, o Estado, mais
exatamente a chefia da Casa Civil de Getúlio Vargas, que ocupou até 1935, quando faleceu em
acidente de automóvel. Na experiência de 30, ele parece ter encontrado a melhor forma de
encaminhar seu projeto político-cultural de reorganizar a Nação, em moldes avessos à
fundamentação racionalista-liberal e com o controle exato sobre o barbarismo da nossa
americanidade. Curiosamente, as “vozes da terra” estavam sob controle de elites estranhas ao
mundo da civilização “do ferro e do aço”, nesse estranho amálgama que foi a Revolução de 30.
Note-se, também, que outro figurino americano não parecia atrair tanto esses personagens.
Refiro-me ao alargamento do cenário intelectual carioca ocorrido ao longo da Primeira
República, em especial nos anos 20. Em trabalho sobre o tema, Sérgio Miceli (Miceli, 2001)
mostra como o mercado editorial se ampliava, assim como as funções mais especializadas
demandas pelo trabalho na cultura conheciam grande crescimento. Nesse panorama
americanizado animado pela formação de novas instâncias de produção e difusão de bens
culturais, as opções de colocação multiplicavam-se para os novos especialistas que lentamente
adentravam jornais, revistas e editoras. A “civilização da quantidade”, descrita por Graça Aranha,
ameaçava assim a tradicional estruturação da vida intelectual nativa, na qual os personagens
analisados trafegavam com naturalidade. Não seria essa a tradução cultural da nova floração da
“civilização das máquinas” proclamada por Ronald? Não me parece, contudo, que esse novo
88
território – que iria florescer nos anos 30, mas já sob a égide estatal – tenha empolgado nem um,
nem outro. E quanto aos espiritualistas de Festa ?
Tasso da Silveira e Andrade Muricy eram os principais responsáveis pela edição de Festa,
e ocupavam posição de liderança no grupo que se organizava pela revista. Segundo Gomes (op.
cit), mais de 40% dos artigos eram assinados pela dupla, responsável também por outros
empreendimentos literários no Rio de Janeiro, como América Latina (editada em 1919), Árvore
Nova (1922) e Terra de Sol (1924). Assim como Graça Aranha, os dois escritores espiritualistas
eram originários de cenas literárias periféricas. No caso, eram filhos diletos da elite intelectual
paranaense, reunida no famoso grupo Cenáculo (revista que foi editada durante três anos em
Curitiba), sob orientação do crítico Nestor Vitor
40
. A progressiva chegada desses personagens ao
Rio deu-se forma razoavelmente segura, a se confiar na afirmação de Gomes:
Tasso iria trabalhar nos telégrafos e na política, fundando com Muricy, em
1924, a Federação Cultural Brasileira. Muricy viveria como crítica de música
(no Jornal do Commercio, desde 1917, onde escreve mais de 1200 textos).e de
literatura, tendo herdado de Nestor Vitor, morto em 1932, a missão de guardião
da memória do simbolismo brasileiro (Gomes, op.cit, p.41).
Essa ancoragem no campo da política e na grande imprensa não franqueou a dupla espaço
garantido e mesmo prestígio imediato. Tasso sofreu com dificuldades financeiras, e as revistas
que editou em conjunto com o amigo de infância nunca prescindiram de forte mecenato
41
.
Percebe-se, portanto, que a patronagem exercida por Nestor Vitor e apropria ligação da dupla
com Jackson de Figueiredo
42
e seu grupo contribuíram para uma inscrição razoavelmente
confortável no cenário carioca. A frenética atividade da dupla – atestada pelas constantes
iniciativas editoriais – evidencia essa busca por um lugar reconhecido na cidade, assim como suas
40
Tanto Tasso quanto Muricy eram filhos de escritores paranaenses (o primeiro já trabalhava na imprensa local com
14 anos), e passaram pelos mesmos bancos da Faculdade de Direito.
41
Sobre o fato, Gomes afirma: “As subscrições dos proprietários não eram relevantes e a renda recolhida com
anúncios nunca chegou a ter um peso real. Entre os anunciantes estava a Casa Guimarães (lotérica), Manteiga
Passos, as lâmpadas Edison e a casa de objetos de arte Ao Grão Turco, pertencente ao pai de Adelino Magalhães,
membro do grupo, e local onde se faziam freqüentes reuniões” (Gomes, op.cit, p.58). A revista, segundo a autora,
sobreviveu graças ao mecenato do médico paranaense Moyses Marcondes, amigo de Nestor Vitor.
42
Foi nas páginas de América Latina que Jackson publicou o famoso ensaio “Pascal e a inquietação moderna”
89
próprias produções posteriores
43
. Em 1931 Tasso da Silveira edita seu já citado Definição do
Modernismo Brasileiro, coletânea de artigos publicados ao longo de 1927 na revista Festa, em
que procura legitimar sua “terceira corrente”, diferenciada tanto dos dinamistas (Graça Aranha e
seus colegas), quanto dos primitivistas paulistas. A edição da obra é mais um passo nessa
tentativa de enraizar no solo da tradição literária do Rio de Janeiro a produção cultural da dupla e
do grupo a ela associado.
Como mostrei anteriormente, o tema americano estava fortemente presente na produção
cultural associada à dupla, relacionado à “terra”. Entretanto, isso não implicava a incorporação de
um modelo de atuação intelectual que significasse uma reorganização do tradicional ethos que
marcava os literatos estabelecidos do Rio de Janeiro. A ligação de Tasso da Silveira e Andrade
Muricy a personagens como Jackson de Figueiredo e Ronald de Carvalho, assim como as
constantes tentativas de organizar um grupo legatário do movimento simbolista, evidenciam a
recusa desses estranhos modernistas de se pensarem se não como uma vanguarda, ao menos
como uma intelligentsia de novo tipo. Permaneceram, assim como Ronald e Graça Aranha, na
condição de homens encantados com o americanismo, mas alheios às possibilidades que a
vivência concreta desse conceito poderia oferecer. Nos termos de Raymond Williams, a produção
simbólica da terra expressou exatamente essa estrutura de sentimentos, marcada pelo desejo de
inscrição segura nas agências e instituições que organizam o cenário literário carioca.
2.6. RÚSSIA, ALEMANHA.
No capítulo anterior, destaquei o modo como a imagem espacial é tratada na experiência
americana. Ela surge pelo tema da fronteira, e desconhece lugares sociais, ordenações e encontros
de raças que produzam uma essência estranha ao agir livre dos homens que desbravam o
hinterland. A tradição, por sua vez, encontra a terra na Rússia e na Alemanha, e ganha distintas
formulações. No caso dos personagens aqui trabalhados, nossa terra americana parece distante
desse paradigma de liberdade e prosperidade que pautaria a experiência dos yankees, encerrando-
43
Décadas depois (mais exatamente em 1952), Andrade Muricy iria publicar “Panorama do Movimento Simbolista
Brasileiro”, finalizando o processo de transmissão de posto do “guardião” do simbolismo.
90
se numa espécie de tradição que, inicialmente, parece guardar semelhança com o caso russo. No
dizer de um estudioso estrangeiro do modernismo brasileiro,
De extrapolar la conocida antinomia rusa “eslavófilos” vs. “occidentalistas” (e
na la cultura hispanoamericana: americanismo – europeísmo) sobre el caso
brasileño, observamos que prevaleció la tendencia etnocentrista en su
manifestación ultratelúrica, casi biolõgica(...) La dolorosa sensación de falta de
entidad, carácter e integridad plasmados en la imagen de Macunaíma, “herói
sem nenhum caráter”, exigía imperantemente autoidentificación masiva con una
superimagen o un mitologema etnocultural que tuviese carácter integro, total e
comúnmente válido. El ansia de la totalización nacional, de la autoexpresión
íntegra y terminante suponía, segundo se puede juzgar por las publicaciones de
la revista Festa relativas al 1928, apelación a “verdadeira Tradição” y “força da
Terra”, con la particularidad de que los conceptos de Tradición, Tierra e Raza
aparecían íntimamente ligados (Guírin, 2004, p.17).
Guírim, ciente das aproximações entre Brasil e Rússia, não hesita em comparar os dois
projetos modernistas pela chave de sua “radicalidade”. No seu registro, ambas sociedades seriam
marcadas pelo caráter “periférico” de suas civilizações, pelas suas enormes populações
camponesas com vocação utópica-milenarista e pelo predomínio de largos espaços geográficos
não controlados ou racionalizados administrativamente. Lugares da “força da terra”, pode-se
acrescentar. Lugares nos quais a tensão resultante da percepção do processo civilizador moderno
e da busca por uma afirmação nacional que lide, de alguma forma, com as matrizes originais
dessas sociedades levou a uma mobilização do espaço como forma de reflexão. No caso
brasileiro, o tema da Natureza ou do “instinto da terra” impregnou nossa imaginação republicana,
sequiosa de formas que pudessem alicerçar alguma tradição e sustentar um projeto de renovação
que produziria nossa integração nacional e nossa própria comunhão com o humano.
Invariavelmente, o tema da raça também foi mobilizado em fina sintonia com o problema da
terra, evidenciando a ânsia por uma ontologia étnica que nos desse uma origem. A referência aqui
é o Romantismo de corte nativo, analisado brevemente no capítulo 1.
Ao mesmo tempo, os homens que sustentaram essa fórmula – aqui representados por
Graça Aranha e Ronald de Carvalho, além do grupo católico de Festa – organizaram suas
experiências intelectuais em moldes diversos daqueles que orientaram a intelligentsia do século
XIX, e os próprios revolucionários do XX. Suas redes de sociabilidade, o repertório de figurinos
intelectuais disponíveis, as narrativas que os inspiravam, tudo os impedia de empenhar uma
91
espécie de “ida ao povo” na qual cortassem seus vínculos com a vida social mundana. Isso fazia
com que a “terra” fosse pensada como uma tradição difícil, assim como a própria natureza da
experiência americana. No caso dos católicos espiritualistas, a questão parecia ganhar contornos
mais simples. Afinal, tanto o universo simbolista no qual transitavam Tasso da Silveira e
Andrade Murici, quanto suas posições “periféricas” no caldo de radicalização que varreu o
movimento moderno nos seus primeiros anos, parecem ter jogado esse grupo para versões
refratárias ao mundo da máquina e do aço, para usar as expressões de Ronald de Carvalho. É
certo que as principais versões do chamado populismo russo também nutriam forte aversão pelo
clássico caminho percorrido pela Europa Ocidental, marcado pelas patologias da vida urbano-
fabril. Contudo, a disposição desses intelectuais não era meramente renovadora, mas
profundamente utópica. No caso aqui analisado, a “força da terra”, a despeito de sua filiação
“russa”, permanecia como uma energia espiritual por demais vinculada à tradição, e não se abria
como instrumento de energia revolucionária
44
.
Não estamos, portanto, na geografia intelectual do populismo russo, na qual a terra é
pensada como energia revolucionária, tradição a ser projetada como fonte de ruptura e alimento
para utopia. Os seus atores, como se sabe, incorporaram o figurino de uma intelligentsia que
rejeitava a acomodação nos quadros da vida funcional moderna – salões, academia –, preferindo
o ambiente claustrofóbico dos círculos conspiratórios e dos grupos de ação direta. No caso dos
personagens apresentados neste capítulo, estamos mais próximos da geografia da terra como
tensão – caso alemão. A “reação espiritualista” encontraria seus próprios caminhos no Estado de
Vargas, e a expressão “via prussiana” talvez exemplifique, de forma simples, o significado da
terra nessa tradição intelectual. Uma tradição encapsulada, e lentamente dinamizada sob o ritmo
passivo de uma revolução que se fazia pela ação do Estado e de suas elites “não-americanas”.
Nesse sentido, a trajetória de Ronald de Carvalho torna-se compreensível, assim como a
progressiva acomodação de setores da Igreja ao tipo de modernismo encampado na década
44
Interessante notar que um dos intelectuais modernistas mais dispostos a empunhar a categoria “Revolução”,
mesmo que de forma retórica, era Paulo Prado, um dileto filho da aristocracia paulista do café. Sua obra mais
consagrada, Retrato do Brasil [1928] (Prado, 1981), é permeada por uma visão extremamente negativa da Natureza
americana, identificada à degradação que teria atingido os personagens aventureiros que colonizaram o país,
originalmente animados pela chama da aventura renascentista. Nesses termos, luxúria, cobiça, melancolia e
barbarismo bandeirante seriam os eixos estruturadores da sociabilidade ditada por essa terra, passíveis de superação
apenas pela “Revolução” completa, como consta no Post Scriptum da obra.
92
seguinte – compromisso cujo melhor exemplo estava na reforma educacional de Francisco
Campos.
Percebe-se, portanto, a presença de uma versão do tema terra-americanismo. Graça
Aranha, Ronald de Carvalho e o grupo dos simbolistas católicos identificavam a relação entre
espaço e americanidade na nossa formação social, extraindo, contudo, conclusões dúbias sobre
esse fato. Ora a nossa América lhes parecia uma terra criativamente bárbara e fonte de renovação
da civilização ocidental, ora era identificada a uma tradição metafísica associada a símbolos
negativos – melancolia, horror etc – e, portanto, desequipada para a civilização da máquina. O
que procurei mostrar aqui foi a persistência de uma perspectiva étnico-essencialista nessa versão,
que faz com que o par terra-americanidade seja freqüentemente localizado numa ontologia
brasileira – por exemplo, o “encontro das raças tristes”, fabulado pelo literato carioca. Sugeri que
essa tensão entre modernidade e tradição nacional pode ser explicada pela própria inscrição dos
personagens na vida social carioca do período, uma vez que a acomodação nas funções e papéis
intelectuais então existentes lhes impedia a assunção de uma versão mais democratizante desse
americanismo.
Contudo, um outro veio há que ser explorado: o tema da terra passa por outras
formulações, e é encampado por personagens moldados em outras experiências sociais e
intelectuais. Nesse registro, a terra escapa ao problema de uma tradição escorada na idéia de uma
essência e ganha contornos outros, mais próximos do tema da invenção. Essa perspectiva tem
sua origem também no ano de 1902, com a obra magna de Euclides da Cunha – Os Sertões –,
radicaliza-se com os escritos euclidianos sobre a Amazônia – publicados no final da primeira
década do século XX –, e encontra sua rotinização e divulgação nos anos 20, sob a guarda de
Vicente Licínio Cardoso, entre outros. Ao abrirmos essa tradição intelectual, encontraremos um
outro caminho, que nos aproxima do tema da “Rússia Americana”.
93
CAPÍTULO 3. ENGENHARIA E TERRA.
Este capítulo é dedicado a investigar o sentido da experiência intelectual de engenheiros
que se voltaram para a “terra”. Sugiro que é possível desvendar aspectos significativos de uma
imaginação geográfica fazendo recurso à inscrição sociológica de personagens formados numa
cultura técnica que lhes propiciava uma entrada singular no universo social da Primeira
República. Nesse sentido, o significado da engenharia nesse universo pode iluminar as tensões
produzidas pela combinação entre ciência, positivismo e uma sociedade desorganizada pela
dinâmica dos interesses libertada pelo movimento de 1889. Como afirmei na introdução, não se
trata de empreender uma análise da profissão, mas de decifrar uma determinada experiência
social marcada pela combinação entre formação científica, positivismo como código moral e
necessidade de “interpretação do Brasil”. Assim, a análise que faço a seguir da engenharia no
Brasil e dos diferentes padrões de organização intelectual associados a ela no cenário moderno
ocidental tem por objetivo ajudar na composição do cenário no qual Euclides da Cunha e Vicente
Licínio realizaram suas trajetórias. A hipótese trabalhada diz respeito à formação de um ethos
marcado pelo que chamo de “americanismo positivista”
45
, que conduziu a uma outra fabulação a
respeito do tema da terra, distinta daquela analisada no capítulo anterior – embora nutra-se de
certo diálogo crítico com a mesma.
Segundo Simon Schwartzman (Schwartzman, 1997), há uma certa forma de imaginação
social própria da engenharia brasileira, que ressaltaria a prioridade da ciência na reorganização da
vida social e a produção de mecanismos sociais capazes de controlar aspectos do comportamento
humano. Os seus maiores representantes seriam os politécnicos, ciosos de suas próprias vocações
e assentados numa sólida cultura científica geral. Como entender personagens nutridos dessa
forte cultura técnica, mas que se voltavam constantemente para um espaço povoado de
referências alheias ao mundo industrial-urbano? Como compreender a inscrição sociológica de
personagens que transitaram da engenharia para a literatura ensaística, eternamente em batalha
contra seus próprios destinos dados pela ciência? O que significa exatamente esse caldo
intelectual que combinava positivismo, crença na organização científica da vida, e atração por um
45
Devo essa interpretação do positivismo como um código moral da intelectualidade brasileira republicana a uma
sugestão de Werneck Vianna (Werneck Vianna, 2005).
94
espaço povoado de outros tipos de referência? O que significa essa “engenharia da terra”? E em
que medida ela produz uma determinada forma de apropriação da temática espacial na
imaginação brasileira? Nesta seção pretendo responder a tais questionamentos.
Inicialmente, monto um quadro comparativo da relação entre engenheiros, cultura técnica
e vida social em outras sociedades, procurando destacar distintas configurações para a inscrição
sociológica desses personagens. Depois, analisando o caso brasileiro, destaco os problemas para a
afirmação dos engenheiros nacionais como “funcionários da produção” e a presença constante do
modelo politécnico. Posteriormente, analiso as trajetórias de Euclides da Cunha e Vicente Licínio
como forma de identificar o sentido da experiência intelectual investigada nesta tese e o impacto
dessa experiência na produção de uma certa linhagem no pensamento brasileiro dedicada ao tema
da terra.
3.1. ENGENHARIA E MODERNIDADE.
Se há uma profissão profundamente ligada à emergência de uma civilização marcada pela
técnica e pela vida fabril, é a engenharia. Personagens moldados para a construção e para a
mobilização da ciência moderna, os engenheiros encontraram seus lugares em fábricas,
laboratórios e institutos tecnológicos. Seriam, por assim dizer, os heróis do capitalismo, já que o
espírito prático e o domínio da técnica os credenciariam a liderar o processo de afirmação de uma
ordem marcada pela produção em massa. No seu ensaio sobre o fordismo, Antônio Gramsci
(Gramsci, 2001) argumenta que o americanismo representaria uma outra matriz civilizatória, na
qual a vida material e os interesses a ela ligados configurariam uma estrutura mais simples,
despojada dos complexos arranjos políticos que marcariam a Europa. Nessa perspectiva, a fábrica
seria o cenário para uma nova eticidade, na qual não haveria lugar para classes “parasitárias”,
desvinculadas da produção. Se seguirmos a sugestão de Werneck Vianna (Werneck Vianna,
1997), para quem o americanismo não seria uma delimitação circunscrita à geografia, mas uma
possibilidade de afirmação do moderno, seria possível localizar nos engenheiros os personagens
desse mundo da técnica e da organização da vida material. Eles seriam, para continuar na
terminologia gramsciana, intelectuais orgânicos, posto que surgidos no próprio desenvolvimento
de uma camada social vinculada à economia capitalista, e não possuidores de credenciais da
95
tradição. Os intelectuais próprios do “europeísmo” seriam, nessa chave, intérpretes da cultura
num sentido geral, legitimados por sua posição estamental numa ordem ainda refratária ao
nivelamento produzido pela cultura técnica.
Essa posição dos engenheiros como intelectuais de “novo tipo” encontraria eco na paixão
com a qual os modernistas se voltaram para o fenômeno da técnica industrial. Jeffrey Schnapp,
um estudioso da relação engenharia-modernismo, segue esse caminho no seu trabalho sobre o
fascismo italiano. Segundo ele,
Invoked as the emblem of a dreamed-o immediate linkage between art and life,
as embodying the new norm to be followed by less technically grounded
practitioners of thought or art, and as as idealized agent of orderly
democratization, the engineer hovers at the center of the revolutionary fantasies
of the avant-garde (Schnapp, 1995, p.117).
O exemplo mais acabado dessa conjugação estaria no futurismo italiano e na busca de um
registro poético capaz de captar a velocidade das máquinas e a nova temporalidade moderna, mas
se poderia citar também a arquitetura de Le Corbuisier e a escola de Bauhaus. Na perspectiva das
vanguardas européias, o engenheiro seria o personagem que melhor representaria a afirmação de
um homem mobilizado pela ciência, pela técnica e pelo desejo de inventar. Nesses termos, não
seria meramente um homem ordinário, confinado à mera operação de dispositivos, mas uma
espécie de artesão contemporâneo. Novamente, é Schnapp que situa a questão de maneira clara:
The modern movement consecrated the engineer’s passage –carried out during
the second half of the nineteenth century –from the periphery to the center of the
industrial world, from the status as a mere technician, the passive implementer
of visions of others (poets, politicians, generals, social reformers) to that of
socio-political visionary, at once creator and protagonist of modern time ( id,
ibid, p.118).
Esse padrão de inscrição sociológica dos engenheiros ganha cores fortes nos casos alemão
e italiano. Neste, analisado por Schnapp através de uma biografia histórico-sociológica do
engenheiro Gaetano Ciocca, fica evidente o dilema vivido pelos engenheiros italianos: como
conciliar civilização e cultura? Ou melhor, como incorporar o desenvolvimento material
proporcionado pela modernização econômica com o cultivo espiritual, ameaçado pelo
materialismo avassalador do século XX? Schnapp mostra como a imaginação técnica de Ciocca é
96
pensada num triângulo, em que Rússia e Estados Unidos ocupam duas pontas, representando as
possibilidades de conjugação entre técnica e organização política – Estado de capitalistas versus
capitalismo de Estado. Assim, o terceiro caminho italiano evitaria tanto Moscou quanto Nova
Iorque, recorrendo a um modelo de estado corporativo animado por um regime de massas cujo
cenário seria a grandiosa arquitetura fascista. Nesse sentido, a imaginação de Ciocca estaria
distante da visão da engenharia como uma funcionária da produção. Ela seria antes um spiritual-
technical eye (id, ibid, p. 145) mobilizado por esses “políticos da prática”.
O caso alemão seria ainda mais complexo. Um de seus melhores intérpretes, Herf (Op
cit.) argumenta que o nazismo não significaria a vitória de uma filosofia romântica e
antiiluminista que rejeitaria completamente a técnica e os valores da civilização industrial.
Segundo o autor, os engenheiros alemães exemplificariam melhor do que quaisquer outros grupos
a adoção seletiva da cultura técnica ocidental. Nessa espécie de “modernismo reacionário”, a
tecnologia seria vista como uma forma de expressividade, emanação material do cultivo que
formataria a personalidade alemã. Em assim sendo, o ofício do engenheiro seria próprio de
mentes marcadas pela vontade e pela imaginação criadora, distanciando-se do modelo do
engenheiro como mero técnico. Essa poderosa idéia teórica afastaria a engenharia do mundo dos
interesses e a envolveria no manto de um anticapitalismo distante do romantismo bucólico.
Percebe-se, portanto, que a versão alemã da relação entre engenharia e modernidade é oposta
àquela alimentada pelo fordismo americano, e dava aos seus praticantes papéis sociais diversos.
Para esses engenheiros, apóstolos do modernismo reacionário, os exemplos a serem evitados
seriam os Estados Unidos e a Rússia, paradigmas do materialismo grosseiro. Como para Ciocca,
no caso italiano.
Pode-se falar também de uma terceira versão para se entender o problema. As reformas
urbanas que remodelaram grandes capitais européias no século XIX (Paris e Viena, em especial)
evidenciaram um outro padrão de atuação dos engenheiros como personagens da vida moderna.
Distantes da imagem de “funcionários da produção”, esses atores foram convocados para a vida
pública como agentes da civilização. Seu lócus de atuação não foi a fábrica, mas o Estado e sua
burocracia, num amálgama entre capital e racionalidade estatal que afastaria a engenharia da
América e a jogaria na França. Neste registro, a grande reforma operada por Haussman na Paris
97
pós-Comuna encontrava seu significado não apenas na abertura de espaço para a livre circulação
de mercadorias, mas no redesenho da malha urbana a partir de uma razão abstrata que buscava
ordenar e higienizar o mundo das multidões. Ou seja, a relação entre engenharia e controle social,
presente também para os engenheiros fordistas, ganha contornos distintos daqueles do
americanismo. Enquanto neste a expansão da vida fabril e de uma ordem fundada na disciplina
moderna do operário garantiria a produção de um indivíduo moralizado a partir de sua inscrição
sociológica na fábrica, no “padrão Haussman” o controle era produzido a partir de uma
radicalização do pressuposto iluminista e na entronização dos engenheiros como funcionários do
“universal”, se entendermos este como expressão de civilidade. Essa diferenciação permite a um
autor como Richard Sennett (Sennett, 1997) caracterizar a Paris de Haussman como uma cidade
das multidões, e não de indivíduos mobilizados pelo interesse econômico. Na suas palavras,
A cidade ocupava o centro do poder governamental, mas sua economia era
dependente de mil e uma futilidades que só interessavam à burocracia. Portanto,
ao sentir a dor da desigualdade, o povo foi buscar alívio não na circulação de
trabalho e capital, mas junto ao governo, única fonte de estabilidade visível
(Sennett, 1997, p.232).
Análise semelhante é aquela delineada por Carl Schorske (Schorske, 1988) a propósito da
reforma de Viena e da criação da Ringstrasse. Segundo esse autor, a tensão entre arquitetos
historicistas e modernistas na Viena fin-de-siècle expressaria o próprio caráter da ascensão
burguesa na Áustria. Quer dizer, as constantes batalhas intelectuais que localizavam o urbano
como cenário expressivo de relações sociais seriam exemplos do padrão transformista da
burguesia vienense, sequiosa de uma tradição aristocrática que não conseguia descartar.
Temos, portanto, distintas versões da relação entre engenheiros e modernidade. Em uma
delas, os engenheiros seriam os personagens de um regime do “homem comum”, treinados na
técnica e encontrando seu lugar na fábrica capitalista. Eles seriam intelectuais orgânicos, cuja
posição não estaria garantida por virtudes escolásticas, mas pela sua capacidade de mobilização
da ciência na organização e na direção de coletividades. O ponto seria a sua funcionalidade. Em
outra versão, a perspectiva modernista pode atribuir aos engenheiros tarefas mais próprias de uma
ética missionária, como se a engenharia se assemelhasse a um artesanato cultural denso. Nessa
perspectiva, os engenheiros teriam uma função que transcenderia os interesses e se organizaria no
98
culto da tecnologia como uma forma de Bildung. Finalmente, a engenharia que organizou as
grandes reformas urbanas da Europa do século XIX se constituiu como um campo de intervenção
da razão estatal sobre corpos e ruas. Nessa perspectiva, os engenheiros se aproximariam de uma
burocracia ilustrada, mobilizada a partir de uma aliança “por cima” entre Estado e grande capital.
Não são, por certo, dimensões opostas de todo, mas apontam para caminhos diferentes no que diz
respeito à inserção desses personagens na vida moderna.
As tensões ganham contornos ainda mais nítidos e dilacerantes em sociedades nas quais a
afirmação da moderna vida capitalista se faz numa geografia marcada por outras lógicas de
operação. Qual é, por assim dizer, o lugar dos engenheiros? Como pensar essa nova camada,
legitimada pela mobilização da técnica, num tecido social ainda marcado por travos hierárquicos
fortes, ou em sociedades nas quais o trabalho prático guarda o estigma da subalternidade? Faz-se
necessário, portanto, desvendar o caso brasileiro, mobilizando o quadro comparativo aqui
apresentado.
3.2. ENGENHARIA E MODERNIDADE NO BRASIL.
No Brasil, o tema da engenharia é geralmente interpretado com recurso ao pano de fundo
de uma cultura bacharelesca avessa aos personagens e práticas da vida técnica. Este cenário
organiza certa interpretação comum a respeito da vida intelectual brasileira entre o Segundo
Reinado e a República de 30, que invariavelmente destaca a ausência de real expressão
ideológica e um ecletismo pouco produtivo. Essa leitura permite a Sérgio Buarque de Holanda
(Holanda, 1995) tecer fortes críticas à intelectualidade nativa pelo seu suposto apego ao retórico e
ao ornamental, que implicaria um total desprezo pela ética de trabalho metódico que animaria o
especialista científico. Não à toa, o julgamento desse autor a respeito da linhagem americanista
presente na cultura brasileira não é positivo. Segundo ele,
Se a forma de nossa cultura ainda permanece largamente ibérica e lusitana, deve
atribuir-se tal fato sobretudo às insuficiências do “americanismo”, que se resume
até agora, em grande parte, numa sorte de exacerbamento de manifestações
estranhas, de decisões impostas de fora, exteriores à terra. O americanismo ainda
é interiormente inexistente (Holanda, 1995, p.172).
99
Na formulação acima há uma notação pouco generosa da atividade intelectual no país, em
especial se pensarmos que Raízes do Brasil foi uma obra escrita depois dos anos 20, momento de
grande energia e de profundas transformações na cultura nacional. No registro de Holanda, o
intelectual brasileiro ainda encontraria seu tipo no bacharel de direito, mestre da oratória e
detentor de uma erudição “de floreios verbais”. Note-se que essa visão contaminou até mesmo
boa parte das interpretações sobre o fenômeno do positivismo no Brasil, a julgar pela opinião de
João Cruz Costa (Cruz Costa, 1956) em seu conhecido estudo sobre a Primeira República. Mas
não são poucos os autores que localizam a emergência de uma nova floração intelectual que
cresce com a República, e que estaria longe desse desenho “fora de lugar” que representaria os
nossos “americanos”. Em geral, toma-se a criação da Escola Politécnica, em 1874, como
momento chave para compreender a emergência de um novo estrato social no Segundo Reinado,
supostamente mais propenso à atividade científica e à adoção de novas formas de interpretar e
organizar o país.
46
Nesse registro, o surgimento progressivo de engenheiros e outros personagens
formados na cultura técnica eivada de positivismo que marcava o cenário brasileiro encontraria
ressonância no surgimento da geração de 1870. Os politécnicos seriam, portanto, figuras chaves
na alteração da relação entre intelectuais e Nação. Se a cultura romântica via na busca de uma
origem mítica a chave para a localização da identidade atemporal brasileira, os engenheiros
seriam os apóstolos do progresso, mobilizados pela idéia de adequar o Brasil ao ritmo da
civilização.
Ora, mas esse não é o único cenário da engenharia brasileira no Império. Carvalho
(Carvalho, 1998) mostra de que forma um americanista como Rebouças teria se chocado com a
máquina burocrática saquarema, que operava a partir de uma razão estratégica cujo lócus
principal era o Estado. Para a autora, a engenharia imperial se organizaria a partir da confluência
dos profissionais para a burocracia pública, afastando-os do mundo dos interesses e da dinâmica
da vida civil. A associação direta da geração de 1870 e dos engenheiros com uma contra-elite
imperial pode não ser incorreta, mas obscurece aspectos significativos do fenômeno. Afinal, os
primeiros anos republicanos são marcados pela atuação do Clube de Engenharia, que não
representa exatamente uma quebra com o padrão burocrático de atuação dos engenheiros
46
Essa posição de “vanguarda” dos engenheiros nos estertores do Segundo Reinado levou alguns autores a falarem
desse grupo como uma espécie de “contra elite imperial”. Sobre isso, ver Ângela Alonso (Alonso, 1996).
100
imperiais. Some-se a isso o próprio fato de que a Politécnica não era uma escola voltada para a
vida fabril ou moderna dos engenheiros. De acordo com Isidoro Alves (Alves, 1996), o modelo
francês que lhe dava sustentação privilegiava uma formação completa, com forte ênfase nas
ciências básicas e na aquisição de uma sólida base científica geral, o que permitiria falar em
“engenheiros enciclopédicos”. Mesmo a Escola de Minas de Ouro Preto, que sempre buscou se
caracterizar como um centro formador de especialistas, não encontrava forte respaldo na
dinâmica de interesses do mundo econômico. Segundo José Murilo de Carvalho (Carvalho,
2002), os “engenheiros de minas” encontravam dificuldades para colocação no mercado, dado
que a própria escola teria sido pensada a partir de uma lógica estratégica estatal. Percebe-se que
investigar as possíveis inscrições sociológicas dos engenheiros na vida social brasileira do
período por meio do quadro comparativo desenhado na seção acima é tarefa fundamental, pois só
assim será possível delimitar os sentidos da engenharia enquanto experiência intelectual
significativa para um segmento de jovens de camadas médias urbanas.
3.2.1 A forma francesa.
A criação da Escola Politécnica é considerada um marco na história científica do país.
Criada a partir da Escola Central, que por sua vez havia sido gerada da Escola Militar, a
Politécnica organizou-se com base no modelo francês, que privilegiava a formação enciclopédica
dos engenheiros. Nessa chave, os politécnicos não seriam especialistas, mas membros de uma
elite científica com capacidade para operar em várias frentes e assumir distintos papéis na vida
pública. No dizer de Alves,
É dessa forma que o espírito de corpo e o sentimento politécnico acionam tanto
o ideário cientificista como o grau conferido pelo Estado. É interessante destacar
ainda que a distinção entre especialistas e enciclopédicos tem a ver também com
aquele sentimento, pois se os politécnicos se definiam pela condição de
engenheiros, faziam-no também enquanto capazes de um ‘polimorfismo’ pronto
a levá-los a diferentes atividades, inclusive no exercício de cargos públicos
(Alves, 1996, p.69).
Como personagens da ciência, os politécnicos construíram uma identidade fortemente
lastreada nas idéias chaves do positivismo. A relação entre conhecimento e intervenção social é
direta, sem a mediação dos interesses civis e de outros grupos sociais. Segundo Luiz Ferreira
101
(Ferreira, 1989), essa moldura privilegiaria o tema da reorganização social, entendida enquanto
intervenção dos cientistas nas patologias do moderno e na reordenação da sociedade a partir de
parâmetros fornecidos pela ciência positiva. Não há lugar aqui para a figura do engenheiro como
intelectual orgânico da fábrica e dos estratos sociais a ela ligados. Ainda segundo Alves,
Na medida em que o Estado passa a atuar como força dirigente na remodelação
física dos centros urbanos emergentes, os engenheiros logo exerceriam o seu
papel no boom experimentado pela engenharia nacional nas últimas décadas do
século XIX. Para além de um engenheiro, tratava-se de formar um politécnico,
ou seja, tratava-se de construir uma categoria sociologicamente consistente e
que pudesse servir como instância identificadora (Alves, 1996, p. 68).
Essa moldura francesa parece se repetir naquela instituição que se tornou paradigmática
da atuação dos engenheiros nos primeiros anos republicanos: o Clube de Engenharia. Criado nos
estertores do Império – mais exatamente em 1880 –, o Clube notabilizou-se por congregar a elite
da engenharia carioca e nacional numa instituição civil com grande capilaridade na vida pública.
O padrão de atuação da instituição caracterizava-se pelas funções de consultoria,
aconselhamento, pareceres e execução de grandes obras, sempre a partir da convocação do
Estado. Foi assim que a grande reforma de Pereira Passos foi conduzida, durante a presidência
institucional de Paulo de Frontin, que permaneceu no cargo até 1933. Para alguns intérpretes, isso
permitiria o entendimento da atuação dos engenheiros como uma ação animada pelos interesses
do grande capital. É essa, por exemplo, a perspectiva de Jayme Benchimol (Benchimol, 1992),
para quem o discurso civilizador desses personagens operaria como cortina de fumaça para uma
lógica que buscava reordenar o espaço para melhorar a circulação de mercadorias. Outros
analistas, como Simone Kropf (Kropf, 1995), preferem ver no Clube a encarnação de uma
espécie de intelligentsia animada por uma vocação iluminista de intervenção na vida pública. Na
segunda perspectiva, que me parece mais apropriada, o significado da engenharia não residiria no
atendimento direto das demandas produzidas livremente no mercado – como se os engenheiros
fossem intelectuais orgânicos da grande burguesia –, mas antes numa combinação entre elites
científicas e vida pública cuja chancela fosse dada pelo Estado. Nesses termos, o sentido
principal da ação desses personagens estaria na busca de uma sociabilidade civilizada, própria a
uma nação desejosa de se integrar ao ritmo do tempo.
102
Creio que uma melhor compreensão desse dilema está na comparação com o modelo de
Haussman, no qual uma elite técnica é convocada pelo Estado para reordenar uma cidade
convulsionada e avessa à regulação burguesa. Nesse ordenamento, os engenheiros operariam
como intérpretes de uma vontade reformadora, mas infensa aos interesses subalternos. Seu
espaço por excelência seria a cidade, e não a fábrica, e a sua vinculação com o capital se faria
com a intermediação do aparato burocrático, numa espécie de modernização “por cima”.
47
Esse
perfil, por sinal, parece encontrar sustentação no padrão de formação da Politécnica.
Schwartzman percebe essa armação, e afirma que
A Politécnica também produziu empresários. O capitalismo brasileiro em São
Paulo deriva principalmente da combinação do dinheiro das plantações de café
com o impulso trazido pelos imigrantes europeus. O engenheiro oriundo da
Politécnica do Rio de Janeiro vinha de outra linhagem. Tinha competência para
saber onde encontrar as riquezas minerais do país ou que tipos de grandes
projetos o governo poderia se interessar em empreender. Sabia francês, às vezes
alemão e inglês, e era capaz de lidar com capitalistas e governos estrangeiros(...)
Este tipo de empresário era, decididamente, um defensor da iniciativa privada,
mas só tinha condições de se desenvolver à sombra do Estado (Schwartzman,
1997, p.105).
Deve-se ressaltar que a identificação entre ciência e cidade guardava outras facetas, que
não se reduzem à identificação entre Clube de Engenharia e Haussman. Em trabalho sobre
ciência e vida pública nos Estados Unidos, Thomas Bender (Bender, 1993) mostra como se
poderia falar de um “profissionalismo cívico” que teria grassado em cidades desprovidas de
sólidas instituições acadêmicas, representado por agremiações, clubes e outras associações
voltadas para temas comuns e para um público extra-acadêmico, delimitado pelas fronteiras da
vida urbana educada. Nessa tradição, não haveria lugar para uma comunidade mertoniana
propriamente dita, já que os atores da ciência não estariam dialogando entre pares, mas sim para
os cidadãos. Embora Bender esteja falando da cultura científica dos Estados Unidos no século
XIX, pode-se dizer que o Clube de Engenharia aproxima-se, em alguns aspectos, desse molde, o
que suavizaria sua concepção iluminista haussmaniana. Afinal, era um órgão que buscava
congregar cientistas e empresários, e mobilizava-se por questões surgidas no diálogo público.
47
Interessante notar que Oswaldo Porto Rocha (Porto Rocha, 1995), outra referência para o estudo das grandes
reformas urbanas no Rio da belle époque, argumenta que não era tão significativa a presença de elementos do mundo
industrial nesses “arranjos haussmanianos” que organizaram a intervenção dos engenheiros. Segundo ele,
predominavam interesses ligados ao comércio, construção civil, transportes e especulação imobiliária.
103
Era, por assim dizer, um Clube dinamizado pela cultura urbana do período e pela constante
tentativa de erigir um bloco burguês de novo tipo. Contudo, a configuração sociológica do Rio de
Janeiro parecia se constituir numa geografia avessa à consolidação dessa moldura. A pujança de
uma vida popular em tudo distinta das concepções civilizadoras dos engenheiros e a inoperância
dos mecanismos de mercado transformavam a cidade num tema particular, incapaz de incorporar
os sujeitos subalternos. Nesse registro, o “profissionalismo cívico” do Clube encontrava sérias
barreiras para se entranhar na vida social, permanecendo com forte marca intervencionista. A
persistência da identificação de uma engenharia reformadora como intelligentsia encontraria
caminhos outros na própria burocratização dos corpos técnicos citadinos na década de 20, 30 e
40, acompanhando o movimento da própria cidade, constantemente dilacerada entre vida urbana
popular e instituições locais.
O tema da cidade na atuação da engenharia guarda outros contornos que merecem ser
analisados. Como procurei mostrar no capítulo anterior, a vida urbana é o espaço por excelência
da reflexão moderna sobre a civilização. A recuperação desse tema numa cidade marca uma
reflexão sobre as condições para a afirmação de uma ordem civilizada numa sociedade periférica.
Como bem notou Kropf (Op.cit), o discurso dessa intelligentsia técnica ressaltava o andamento
sociológico da modernização, se a entendermos como incremento tecnológico e aprimoramento
da relação espaço-moralidade. Assim, os temas da reforma política e da alteração das relações
sociais pelo recurso a uma vontade animada por temas da comunidade política – direitos,
liberdade, justiça – parecia perder lugar. Na passagem da política para a sociologia estaria a
chave para a compreensão do significado da derrocada intelectual do Império. Em texto sobre a
emergência de uma nova linguagem no cenário francês, Robert Wokler (Wokler, 1990) mostra
como a sociologia teria ganhado espaço diante da política a partir do momento em que as
formulações e os diagnósticos deixaram de lado considerações normativas sobre a experiência do
indivíduo e sobre suas formas de ação no mundo para incorporar investigações sobre o controle
social. A passagem para uma sensibilidade sociológica encontraria correspondência discursiva no
predomínio de visões sobre a influência do meio físico e sobre os constrangimentos (geográficos,
públicos, coletivos, etc) que produziriam determinadas formas de sociabilidade. Nesse sentido,
pode-se falar de um argumento sociológico especialmente caro aos engenheiros, que localizaria
na “física” do espaço a força por excelência que poderia explicar comportamentos e costumes.
104
Segundo Lima (Op.cit), a geração de 1870 teria contribuído para soterrar o individualismo
metodológico que operaria como modelo teórico genérico da cultura intelectual do Império.
Sugiro que os engenheiros precisaram melhor esse movimento, ao mobilizarem um argumento
sociológico espacial na chave descrita por Wokler.
Esse padrão intelectual da engenharia encontraria na cidade civilizada seu espaço
correspondente, ou seja, sua idéia força. E seus principais personagens moviam-se nos novos
lugares de sociabilidade do Rio, sentindo-se perfeitamente à vontade nesse tecido mundano. O
trabalho de Jeffrey Needell (Needell, 1987) evidencia a inscrição desses engenheiros nos salões e
clubes que organizavam a dinâmica social da elite carioca na belle époque. Nessa perspectiva,
pode-se entender a imaginação espacial dos personagens firmemente assentada na idéia de cidade
civilizada a partir de suas próprias experiências pessoas, moldadas pela polidez e pela
europeização refinada de hábitos e costumes. Se os salões cariocas tinham sido o espaço por
excelência de uma oligarquia rural que habitava o campo e movia-se pela vida urbana da Corte,
com o fim do Segundo Reinado eles se tornariam o lugar por excelência dos homens urbanos
educados. Isto é, esses engenheiros, produtos dessa nova ordem citadina, não seriam “flores de
estufa”, ou membros de exóticas elites em tudo descoladas do mundo real, mas legítimos
representantes da malha de sociabilidade carioca no período. Não é preciso reforçar o quanto essa
imaginação espacial estava, por assim dizer, bem distante da terra.
3.2.2. Sonhos americanos
Mas seria o modelo politécnico–Clube de Engenharia o único caminho possível para a
afirmação da relação entre ciência, engenharia e sociedade? Creio que uma visão alternativa
desse processo esteja na obra clássica de Gilberto Freyre (Freyre, 2000), Sobrados e Mucambos,
na qual a análise do processo de desagregação do composto casa grande–senzala é encaminhada a
partir da descrição da “reeuropeização” do país no século XIX, processo exemplificado pelas
profundas transformações na vida urbana. A investigação conduzida por Freyre reconstrói o
universo de sociabilidade citadina e mostra como os novos hábitos de consumo, vestuário e
decoração que eram introduzidos no Brasil representavam a emergência de novos tipos sociais.
Entre estes, além dos “bacharéis afrancesados”, estariam os mulatos, essa “meia raça” que se
105
imiscuía na malha de serviços e tarefas própria da vida urbana Para o autor, o problema da
técnica e da máquina ganhava resolução em figuras liminares, que representariam a
democratização da sociedade e a valorização de estratos sociais legitimados pela inteligência e
pela capacidade operativa. Estaria aí, então, uma linhagem possivelmente americana que poderia
dar sustentação a personagens animados pela produção e pelos interesses?
Ora, certamente o cenário imperial não se mostrava propício para essa associação. Como
afirmei anteriormente, o trabalho de Carvalho (Carvalho, 1998) mostra que o destino de uma
vocação yankee na engenharia brasileira estaria fadado a ser frustrado, dada a sólida configuração
do arranjo burocrático saquarema. A República, por sua vez, poderia ser o regime ideal para esse
florescimento. Inês Turazzi (Turazzi, 1989), em seu trabalho sobre as relações entre engenheiros
e industriais na virada do século, mostra como a aliança entre saber técnico e capital teria
ensejado a combinação entre taylorismo e positivismo, e de que forma essa combinação se
nutriria de um liberalismo fordista que buscava controlar o operário por meio da disciplina fabril.
Segundo essa autora,
O que se constata nos relatórios industriais é que a figura do engenheiro, vindo
do exterior ou formado na Politécnica do Rio de Janeiro, tornava-se cada vez
mais freqüente, a partir de fins do século passado, na direção e administração de
empresas industriais e de serviços. Esse processo estava intimamente
relacionado com o próprio crescimento industrial do país e do Rio de Janeiro em
particular (id, ibid, p.88).
A formação de um fordismo brasileiro, que garantisse novos papéis para os personagens
oriundos da vida técnica, também é apontada por Werneck Vianna (Werneck Vianna, 1999), que
localiza nos anos 20 a consolidação de um bloco industrial (radicado principalmente em São
Paulo) alimentado por tenaz ideologia liberal e reticente a quaisquer intervenções estatais nas
relações de trabalho. Não teria aí o engenheiro um espaço significativo para o exercício de um
papel americano, mais próximo do mundo da produção e da fábrica?
Ao mesmo tempo, a incorporação dos engenheiros na administração pública caminhava
lentamente no início da era republicana. De acordo com Gomes (Gomes, 1994), durante boa parte
do Império o mais freqüente era a encomenda por parte do Estado de grandes obras, muitas vezes
realizadas sem a presença majoritária de técnicos brasileiros. Em 1909 foram criados o Ministério
106
de Viação e Obras Públicas e o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, cujos órgãos
subordinados vão progressivamente incorporando engenheiros nas tarefas de fiscalização e gestão
de obras civis de infra-estrutura. Nesse caso, uma seção administrativa que sempre contou com
esses personagens foi a Estrada de Ferro Central do Brasil, comandada por nomes de prestígio
como Aarão Reis e Paulo de Frontin. Um dado interessante apontado pela autora é a forte
conexão dos engenheiros com o Serviço Geológico e Mineralógico, criado em 1907, que
consolidava a ligação deste com a Escola de Minas de Ouro Preto. Haveria, por assim dizer, uma
tradição desse ramo da engenharia nacional, voltada para o aproveitamento dos recursos minerais
e o conseqüente esquadrinhamento do território. Em seu já citado trabalho, Carvalho (Carvalho,
2002) mostra como a fundação da Escola de Minas de Ouro Preto, durante o Segundo Reinado,
não encontraria eco em fortes interesses capitalistas, e se explicaria por uma resoluta vontade
política. Ou seja, a engenharia de minas nacional se caracterizaria, antes, por um projeto animado
politicamente, produzindo um corpo de técnicos que não seriam propriamente funcionários da
produção, mas desbravadores e cientistas da Nação.
Gomes argumenta, entretanto, que a formação de um corpo fixo e estável de engenheiros
públicos só seria tarefa alcançada depois de 1930. Na cidade do Rio, o processo foi se
consolidando desde o Plano Agache, e culminaria na expansão de uma elite burocrática treinada,
não mais dependente de esporádicas encomendas estatais. Segundo Lúcia Pereira da Silva
(Pereira da Silva, 1995), o período entre 1920 e 1945 compreenderia o momento histórico de
formação de uma burocracia urbanista, inserida na máquina administrativa e voltada para o tema
do urbanismo, o que, segundo a autora, implicaria o abandono da matriz higienista que nutriria a
reflexão dos antigos engenheiros. A partir daí, os engenheiros definitivamente teriam se voltado
para um padrão de atuação técnico-burocrático, não mais dependente do grande arranjo
haussmaniano.
No caso de São Paulo, a engenharia politécnica parece ter encontrado outros caminhos. A
figura de Roberto Simonsen exemplifica uma trajetória que logrou forte participação na vida
pública aliada a uma sólida vinculação com os interesses do mundo fabril. Em tese sobre o tema,
Fábio Maza (Maza, 2004) mostra como Simonsen, ainda na década de 10, trabalhou em funções
que reproduziam a estrutura das grandes obras que marcavam a atuação dos engenheiros do
107
período, como no seu período à frente da Comissão de Melhoramentos do Município de Santos.
Posteriormente, contudo, sua atuação teria se voltado de forma muito mais decidida para o
mundo da fábrica e para as técnicas de organização do trabalho, escrevendo e promovendo
conferências sobre o taylorismo e, posteriormente, fordismo. Interessante notar que, segundo
Maza, o próprio Simonsen reconhecia a parca presença de engenheiros nas atividades fabris, já
que esses personagens prefeririam se concentrar no serviço público e na construção civil, funções
mais nobres que aquelas encontradas na indústria. Nas suas palavras,
Os nossos engenheiros, em sua maioria com elevada cultura técnica, capazes de
serem eficientemente aproveitados em núcleos de alta civilização, sentem-se
deslocados neste meio, e acorre, por isso, em grande parte, para o funcionalismo
ou para as empresas concessionárias de serviços públicos. A incompreensão dos
fenômenos econômicos torna-os ainda queixosos dos poderes públicos, que não
lhes proporcionam honorários em harmonia com suas aptidões técnicas (
Simonsen apud Maza, 2004, p.166-167).
Corroborando o diagnóstico do engenheiro-industrial Simonsen – que vai de encontro à
observação de Turazzi –, um grupo de engenheiros cariocas não encontraria na fábrica seus novos
papéis modernos. Para homens como Heitor Lyra, Everardo Backheuser e Vicente Licínio
Cardoso, os bancos da Politécnica encontrariam sua continuação nas cadeiras escolares. É
conhecida essa movimentação dos engenheiros para o campo dos estudos sociais nos anos 20, em
especial para a educação e da pedagogia. Segundo Sergio Miceli,
A presença dos engenheiros nas áreas de estudos sociais, do pensamento
político, da produção de obras pedagógicas, no exercício de cargos
administrativos em instituições escolares ou entidades e associações
corporativas ou, então, assumindo o trabalho executivo de implementar as
reformas da instrução em curso explica-se, de um lado, pela formação humanista
e, de outro, pelas transformações por que passava o mercado de postos
destinados aos detentores de diplomas superiores. Ante as resistências que
vinham encontrando os projetos que visavam introduzir as ciências sociais no
currículo de cursos jurídicos, os engenheiros dispunham de um mínimo de
aptidões culturais para se lançar em novas especializações do trabalho
intelectual, tidas como carreiras subalternas, incapazes de atrair os bacharéis em
direito e desviá-los das carreiras tradicionais (a representação parlamentar, a
magistratura, o magistério superior, o jornalismo) (Miceli, 2001, p.118).
A explicação acima parte de um diagnóstico do “mercado de diplomas” do período, o que
permite a compreensão da existência de um lugar para esses engenheiros, produzido pela
108
dinamização da atividade cultural e pela produção de postos técnicos, que demandariam um perfil
intelectual metódico e treinado na pesquisa científica. Nesse espaço não coberto pelos bacharéis,
os engenheiros teriam conseguido ocupar um nicho.
A explicação de Miceli desvenda com precisão o mecanismo que permitiu a entrada dos
engenheiros nessa área, mas não diz muito sobre o porquê desse movimento. Creio que essa
resposta pode ser buscada por meio de uma associação entre o quadro que tracei acima sobre os
padrões da engenharia brasileira e as trajetórias de Vicente Licínio Cardoso e Euclides da Cunha.
Este movimento teórico permite compreender não apenas o nexo acima, como as próprias
formulações dos autores. Interessa entender, portanto, como uma cultura técnica forjada pelo
positivismo politécnico encontra-se com uma forte atração intelectual pelo tema da “terra nova” e
por um americanismo que, no resto da América Latina, foi terreno espiritualista guarnecido por
personagens fortemente refratários ao comtismo.
48
3.3 “ENGENHARIA PERIFÉRICA”: UM AMERICANISMO POSITIVISTA.
Vicente Licínio nasceu em berço positivista, em 1889. Seu pai, Licínio Atanásio, era um
engenheiro que ascendeu socialmente mobilizando os trunfos de uma cultura técnica fortemente
marcada pela interpretação comteana. Oriundo de família pobre de Vila das Lavras, província de
São Pedro do Rio Grande do Sul, ele cursou escola pública e trabalhou como pedreiro, o que o
aproximaria da modelagem de um “self made man”. No Rio, fez o clássico trajeto para jovens de
sua extração social, matriculando-se na Escola Militar em 1873 e formando-se pouco antes em
1880. Sua consagração foi o concurso prestado para a cadeira de Mecânica Racional da
Politécnica, em 1887, quando derrotou seis outros candidatos, um deles afilhado da Princesa
Isabel.
49
Seus irmãos, Aníbal e Saturnino, também se formaram como engenheiros. Matemático
de renome
50
, Licínio Atanásio exemplificou um estrato social urbano, de origem popular, que foi
a clientela preferencial para as carreiras vinculadas à engenharia militar, ou apenas à engenharia.
48
Sobre o modo como as formulações americanistas se constituíam como respostas ao ideário positivista latino-
americano, ver especialmente o caso mexicano descrito por Leopoldo Zéa (Zéa, 1976).
49
O episódio é lembrado com entusiasmo pelo cunhado e biógrafo de Vicente Licínio, Castilhos Goycochea
(Goycochea, 1934), que ressalta a decisão da Princesa de nomear Licínio Atanásio mesmo diante de candidatos tão
“apadrinhados”.
50
Licínio Atanásio ficou marcado na historiografia da ciência como um dos matemáticos brasileiros que se insurgiu
contra as novas teorias de Einstein, que em tudo se chocavam com a matemática cultivada pelos politécnicos.
109
Segundo s biógrafos
51
, o jovem Vicente demonstrava inclinações literárias e estéticas na escola,
mas seu pai praticamente forçou a sua matrícula na Politécnica, esperançoso de que a forte base
matemática e científica da escola produzisse um espírito mais disciplinado
52
. Nos termos
micelianos, poder-se-ia dizer que Licínio pai internalizou as expectativas possíveis para seu filho,
que não poderia e não deveria ser um bacharel, disputando espaço com filhos de nobres famílias
oligárquicas. Note-se que a estabilidade lograda pela família foi notável, terminando por
constituir os Licínio Cardoso num clã prestigioso do bairro de Botafogo e da cidade do Rio de
Janeiro, embora distante do circuito alto da vida mundana da cidade.
A Escola Politécnica, criada pelo decreto 5.600 de 25 de abril de 1874, caracterizava-se
desde sua fundação, pela ênfase na formação científica, e não na qualificação de profissionais
especializados. Único centro superior do país dedicado à formação de engenheiros até 1894, a
Escola notabilizou-se por produzir um certo perfil de homens públicos, que combinavam atuação
na burocracia estatal e participação em grandes negócios e companhias. Mário Barata (Barata
1973) enumera as trajetórias de personagens como Francisco Bicalho e Pereira Passos, ambas
marcadas pela quase obrigatória passagem pela Estrada de Ferro Pedro II e pela ocupação de
inúmeros cargos de prestígio, tais como a Inspetoria Geral de Obras Públicas (chefiada por
Bicalho entre 1901 e 1903) e a direção da companhia de bondes da capital. Esse “período de
ouro” da Escola durou, segundo Barata, até o início do século XX, quando a concorrência de
novas escolas surgidas com República (Politécnicas de São Paulo e Porto Alegre) e a própria
diminuição da expansão econômica teriam reduzido o número de alunos
53
. Foi durante esse
período, delimitado entre 1902 e 1914, que Vicente Licínio lá estudou e progressivamente se
51
Essa interpretação é partilhada tanto por Sydney dos Santos (Santos, 198-), quanto por Goycochea (op.cit), que se
constituem nas principais fontes de informação biográfica sobre Vicente Licínio Cardoso.
52
Nas palavras de Goycochea, “Entendendo, porém, que, para o estudo consciencioso das matérias componentes do
curso exigido para o exercício de qualquer profissão – Medicina ou Direito --, é imprescindível uma preparação
fundamental séria, quis que Vicente completasse o seu curso de humanidades com o curso geral da Escola
Politécnica.”(Goycochea, ibid, p.29).
53
Segundo Barata, “As turmas de engenheiros, sobretudo civis, foram crescendo – mesmo relativamente à população
– na Escola Politécnica, que em 1875, 1876, 1878 formou respectivamente 25, 37 e 40 alunos nesta qualificação,
número expressivo para a época, mantendo-se após, aproximadamente, nessa média, excetuando no período entre
1902 e 1914. Aí diminuiu, possivelmente devido à expansão de estabelecimentos congêneres, em vários Estados.
Mas logo depois a Politécnica correspondeu ao necessário surto das exigências de expansão e produção nacionais,
em parte coincidente com as dificuldades oriundas da primeira Guerra Mundial, quando o número de engenheiros
civis e de outras especialidades subiu progressivamente. Dos primeiros, as turmas de 1917, 1918 e 1919 formaram
respectivamente 57, 74 e 86 alunos; Daí em diante as classes mantiveram-se grandes, em comparação com o
Passado” (Barata, 1973, p.80)
110
resignou à escolha paterna, completando seu curso na Politécnica e formando-se como
Engenheiro Geógrafo no terceiro ano, e Engenheiro Civil no quinto. Foi aluno exemplar,
graduando-se com distinção e mostrando, desde então, uma personalidade retraída e contida,
ressaltada por praticamente todos os que privaram de sua amizade. Se durante sua estadia na
faculdade evitava assinar “Licínio Cardoso”, na formatura retornaria ao sobrenome famoso – seu
pai já era emérito professor da casa –. Em 1926, escreveu uma monografia sobre o pai, intitulada
somente “Licínio Cardoso”. Não fugiu, diga-se de passagem, do destino comum de outros filhos
clássicos da inteligência brasileira, como Nabuco e Rebouças, ambos tributários de pais com forte
ascendência e destaque no cenário intelectual. No seu retorno à Politécnica, em 1927, proferiu
discurso no qual destacava não exatamente sua experiência profissional na área, mas sim o tipo
de formação intelectual que ali recebeu. Ao dizer que a tarefa pedagógica principal era formar
novos homens para a construção do Brasil, afirmou: “Demais, sendo nesta Escola a frieza lógica
da matemática uma diluidora energicamente benéfica do tropicalismo verbal contumaz de nossas
gentes, creio bem que a empreitada seja aqui mais fácil do que alhures” (Cardoso discurso de
posse, 1927, p.3: arquivo particular ). Internalizou, portanto, o mandamento paterno a respeito do
tipo de formação intelectual que a Politécnica lhe propiciaria. Parece, também, ter adotado o
ethos típico dos politécnicos positivistas, traduzido de forma exemplar em seu pai. Em seu
Memórias da Politécnica, Paulo Pardal (Pardal, 1984) recolhe textos, poemas, discursos e casos
que o ajudam a reconstruir o universo de sociabilidade característico daquela instituição. Como
professor “vilão” de toda uma geração, pontificava Licínio Cardoso, lente responsável por
inúmeras reprovações e guardião da doutrina comtiana. Lima Barreto, escritor que cursou durante
certo tempo a Escola por pressão familiar, situava o sisudo professor em oposição ao mestre
admirado por todos, Oto de Alencar. Este, dono de grande cultura e erudição, parecia seduzir os
jovens discípulos na mesma proporção que Licínio os reprovava e angariava antipatias. No
depoimento escrito colhido por Pardal, Barreto afirma que
O caturra Licínio Cardoso era o oposto de Oto de Alencar. Positivista de quatro
costados, não admitia nada que contrariasse o esquema comtiano. Como
professor, celebrizou-se pelo rigor com que julgava os discípulos. Tinha mesmo
um certo orgulho nisso. Considerava-se, ele próprio, uma barreira. Reprovou
muita gente (Barreto apud Pardal 1984: 86)
111
Essa conduta austera e rigorosa, avessa ao trato cordial e aos valores que organizavam o
universo estudantil, marcou profundamente seu filho Vicente, também adepto dessa auto-
modelagem intelectual que transformava o positivismo numa espécie de estilo de vida monástico.
O famoso saguão da Escola, ambiente propício tanto para a camaradagem de alunos, quanto para
as pilhérias e troças que animavam os estudantes, não parece ter exercido atração nenhuma sobre
o filho do “caturra” professor, que se manteve, durante sua vida acadêmica, alheio a essa
dimensão da vida universitária. A esse respeito, artigo anônimo intitulado “Às Sextas Feiras” e
publicado no Jornal do Comercio em 12 de junho de 1931, quando da ocasião da morte de
Vicente Licínio, é sintomático:
Não teve, como a generalidade dos jovens, uma mocidade alegre, expansiva,
despreocupada: Na Escola Politécnica, durante o curso acadêmico, alheou-se por
completo do meio ambiente, em que por forças das circunstâncias deveria ter-se
integrado, para dedicar-se tão apenas ao cumprimento dos seus deveres de
estudante (Artigo anônimo, Jornal do Comércio, 1931: arquivo particular).
Curiosamente, a Politécnica combinava recrutamento rígido (o vestibular era muito
concorrido) e exames severos com uma formação parcamente especializada, que não produzia
jovens engenheiros aptos a procedimentos rotineiros da atividade. O resultado era um ambiente
em que pontificavam estudantes sem vocação para área – os exemplos notórios são o cartunista e
humorista Bastos Tigres e o já citado Lima Barreto, figuras lendárias no “saguão”, mas
conhecidos por seguidas reprovações – e um forte sentimento de superioridade intelectual.
Eugênio Gudin, ex-aluno da Escola, afirma que o extremo rigor na seleção se perdia na
ineficiência do ensino, gerando turmas de formandos pouco numerosas. Se, como ele diz, “(...) a
verdade é que não se recebia muita instrução técnica. Os rapazes, por exemplo, não eram capazes
de fazer um projeto de cálculo de uma obra de engenharia qualquer, porque nunca tinham feito,
nunca tinham aprendido” (Gudin apud Pardal 1984, p.101), por outro lado
Nós tínhamos um certo orgulho, uma certa vaidade, às vezes sem a menor
codificação, quando nos julgávamos, por exemplo, infinitamente superiores aos
estudantes de direito daquele tempo(...) e nos habituávamos a usar palavras com
mais parcimônia, a não falar sem pensar bem e tratar com bases de sentido
filosófico e com muito entusiasmo” (id, ibid, p.101)
112
Graças ao seu desempenho, após sua formatura em 1912 o Clube de Engenharia lhe
ofereceu uma bolsa para uma viagem ao exterior. Seu destino foram os Estados Unidos e o II
Congresso Científico Pan-Americano, na primeira dentre muitas jornadas que faria, e que tanto
impacto exerceriam sobre sua sensibilidade. A prestação de contas do Congresso originou um
texto sobre a arquitetura norte-americana, apresentado à Congregação do Clube apenas em 1916,
que confirma a atração do autor pela arquitetura e serve como evidência de sua curiosa
combinação entre positivismo e americanismo. A vida profissional de Vicente Licínio, contudo,
não se mostrou tão recompensadora. Segundo Goycochea, em 1913 ele ingressou na
administração pública, como auxiliar técnico na prefeitura do Distrito Federal, tarefa que lhe
ocupou por exatos nove dias e logo foi abandonada, diante de incompatibilidades administrativas.
A falta de traquejo para cargos públicos foi constante na sua carreira. Ao regressar dos Estados
Unidos, ocupou o posto de prefeito de São Gonçalo, por apenas seis meses, tempo suficiente para
“conhecer a realidade interna de uma municipalidade”
54
. Sua própria atuação no campo da
educação, que o tornou figura conhecida nos anos 20, foi exemplo disso, em especial quando
analisamos seu rompimento com a Associação Brasileira de Educação (ABE), da qual foi
presidente. Os rendimentos regulares de Vicente Licínio provinham da arquitetura e da
construção civil, graças a um escritório que operou entre 1913 e 1921
55
, e que lhe possibilitou a
criação de vários projetos durante esse tempo. Outro insucesso, entretanto, o afastou
definitivamente da arquitetura: a rejeição de um projeto seu para o Palácio de Curitiba. Sobre tal
fato, o próprio Licínio afirmou, em seu já citado discurso de posse da cadeira da Politécnica, em
1927:
Todavia, ao findar o ano de 1921, retirei-me voluntariamente aposentado, das
lutas profissionais. Circunstâncias várias assim o legitimaram e exigiram. A gota
d’água no caso original foi o resultado de um concurso publico a que concorrera
e que acreditei sempre haver sido mal julgado (Cardoso Discurso de posse,
1927, p.1: arquivo particular).
54
O vaticínio de Goycochea é sucinto: “O primeiro cargo público Vicente Licínio exerceu-o pelo espaço de 9 dias: o
segundo pelo de 6 meses; o terceiro e ultimo não chegou a desempenhá-lo durante 4 meses completos. Foi esse o de
Sub-Diretor técnico da Diretoria de Instrução Pública do Distrito Federal” (Goycochea, 1934, p.113)
55
Em 1917 Vicente Licínio, juntamente com um amigo, montou a firma “Mendes de Moraes e Cardoso”. Essa
estratégia lhe ocorreu após malogrado concurso público realizado neste mesmo ano, que inviabilizou seu ingresso no
magistério.
113
O grande objetivo de Vicente Licínio parecia ser a aquisição de um posto no ensino
superior, no qual talvez pudesse se dedicar a atividades intelectuais que seriam supostamente
condizentes com sua suposta vocação escolar. Participou de um concurso na Politécnica em 1915,
que teve desfecho confuso e foi anulado, mantendo-lhe afastado desse propósito até 1927, quando
foi convidado a ocupar a cadeira de “Arquitetura Civil–Higiene dos edifícios–Saneamento das
Cidades” na mesma instituição. A despeito disso, Licínio parece ter encontrado na formação
politécnica uma inscrição no mundo social pautada por cultivo científico, rigor nos estudos e
contato com os temas “materiais” que lhe pareciam urgentes na vida moderna. Ou seja, mais do
que uma profissão, a engenharia se oferecia como uma espécie de combinação entre um difuso
saber científico e um padrão de atuação no mundo marcado pela disciplina meritocrática. Entre os
variados escritos e documentos existentes em seu arquivo particular, são raros aqueles destinados
à literatura específica da engenharia (com exceção das inúmeras anotações relacionadas à
arquitetura, abundantes no período que vai até 1918, quando finaliza o estudo presente em
Filosofia da Arte), mas abundam aqueles relacionados aos problemas clássicos da cultura
material capitalista – recursos naturais, organização racional do trabalho, etc. Se os engenheiros
do Clube da Engenharia, aproximados da sofisticada discussão urbanística francesa, voltavam-se
para a cidade como uma forma social específica, Vicente Licínio abordava o tema de forma
apenas secundária. Seus arquivos particulares revelam poucas resenhas e anotações sobre tratados
e obras de urbanismo
56
– com exceção da L’étude pratique des Plans de Villes, escrita por
Raymond Urwinn –, e suas pouquíssimas reflexões próprias vêem a cidade como um tema
subordinado ao problema da Nação.
57
As viagens, por sua vez, ocuparam importante papel em sua vida. Em plena Primeira
Guerra, conheceu os Estados Unidos, e, posteriormente, a Alemanha. Em 1921 partiu para uma
longa jornada pelo caminho do Rio São Francisco, empresa que lhe parecia ser espécie de
exigência para os que se voltavam para o estudo do Brasil. De todos os seus destinos, trouxe
documentos ou anotações permeadas por um registro científico, avesso ao impressionismo
56
De forma oposta, são numerosas as pesquisas e resenhas feitas por Licínio a respeito dos grandes clássicos e
historiadores da aventura civilizatória brasileira. João Ribeiro, Tavares Bastos, Capistrano de Abreu, Euclides, todos
merecem cuidadosas leituras e notas.
57
Um dos raros textos dedicados ao assunto, e não publicado, foi “Psicologia Urbana”(Cardoso manuscrito, 1926:
arquivo particular), de 1926, onde busca investigar o “espírito” das cidades de acordo com as características do país
que lhes abriga. Assim, se Paris lhe parece uma perfeita ilustração da centralização francesa, o Rio se assemelharia a
um Brasil descoordenado, antes uma sucessão de pequenas comunidades do que uma forma social unificada.
114
estético que parecia a marca principal desse tipo de produção dos intelectuais brasileiros. Sua
opção por um estudo arquitetônico nos Estados Unidos, antes dessa Nação se firmar como
geografia afetiva central dos personagens “periféricos”, já é indício de uma outra percepção sobre
o seu lugar no mundo, e o tipo de inscrição que desejava. Seus problemas físicos e emocionais
(especialmente os últimos) minimizavam-se quando viajava, e lhe acometiam novamente quando
do seu retorno, como seu as origens dos seus males fosse sua própria sociedade. No dizer de
Goycochea,
O ânimo que trazia ao regressar (sic), era ainda uma prova da paixão pelas
viagens. Voltava quase triste. Serenadas as primeiras emoções do contacto com
a terra e com a gente, caía numa espécie de abatimento moral, numa tristeza que
só cedia lugar ao mau humor que só ia tomá-lo aos regressos (sic) (Goycochea,
1934, p.58).
De uma maneira geral, a trajetória de Licínio pode ser dividida em três períodos: no
primeiro, formação politécnica, viagem americana e a publicação de Filosofia da Arte, em 1918;
o seguinte inicia-se com as viagens para o São Francisco e para a Europa, culminando com o
retorno ao Brasil e a publicação de uma série de estudos ensaísticos, época que vai até 1926;
finalmente, a última seção de sua vida compreende o período que se dedicou à causa da
educação, através da ABE e dos “raids cívicos”
58
que protagonizou em 1929. Em todas elas,
acompanhava-o uma frenética busca de engajamento ético e um choque constante diante dos
imperativos da vida intelectual e profissional nacional. Se real ou fabulado, esse senso de
inadequação missionário foi fundamental para moldar um ethos disciplinado, enérgico, que se
poderia até chamar de “puritano”, não fosse a total ausência de uma real vocação que organizasse
esse ativismo constante. O positivismo o animava para o compromisso com os temas da vida
pública, e sua admiração por tipos e personagens americanos esbarrava nos limites dados pela
própria configuração da vida social e econômica nativa. Essa América, como se verá, não se
realizaria pelo registro da produção econômica, mas pelo signo das letras e de uma conduta
voltada para um certo salvacionismo mais próximo de uma intelligentsia.
58
Os raids eram campanhas nacionais em prol da educação, e implicavam a organização de conferências e debates
sobre o tema em diversas cidades das regiões brasileiras.Vicente Licínio fez seu primeiro raid ao Sul, em companhia
de seu amigo Inácio Azevedo Amaral. Posteriormente, lançou-se sozinho ao Nordeste.
115
Como veremos adiante, enquanto Euclides, precocemente morto, enredara-se no
repertório de perfis intelectuais fornecidos pela belle époque – tendo alcançado inclusive posição
de destaque na ABL –, Vicente Licínio se bandeou para o campo da educação, num movimento
que, como já se disse, encontrou ressonância em outros engenheiros. Mas qual o sentido dessa
aventura intelectual?
O primeiro ponto a se destacar é que não existiam propriamente pedagogos ou educadores
em 1920. Esse campo atraiu indivíduos das mais variadas extrações sociais e perfis intelectuais.
Chama a atenção o modo como a educação galvanizou o interesse intelectual de tantos
personagens diversos, e mais ainda, como foi o cenário para a entrada de um forte pensamento
modernista de origem americana. Creio que a grande questão sobre a qual historiadores e
sociólogos da educação devam se debruçar diz respeito ao problema de como entender a absorção
tão polissêmica de um ideário pedagógico “progressista”, que se convencionou chamar, no Brasil,
de “Escola Nova”.
Acrescento a hipótese de que a educação foi o espaço por excelência para a realização de
um americanismo nativo, e que por isso atraiu tantos engenheiros. No caso de Vicente Licínio, a
confusa relação entre positivismo, cultura técnica e vocação literária desaguou de forma
adequada nesta área, território ainda não controlado pelos setores dominantes da Primeira
República. As tarefas de uma “engenharia periférica” não encontraram estímulo na fábrica, mas
antes na produção de uma vontade política “educada”. A tarefa de destravar a sociedade e
permitir a emergência de uma ordem marcada pelo preparo técnico e pela democratização só
poderia ser realizada nesse espaço.
Na interpretação de Marta Chagas de Carvalho (Chagas de Carvalho, 1998) uma estudiosa
do pensamento de Vicente Licínio e de suas implicações na configuração do nascente campo
educacional dos anos 20, essa relação entre engenharia e educação se explicaria pela perspectiva
disciplinadora que teria alimentado os pioneiros das reformas escolares. Nesse registro, as visões
que estariam sustentando o nascimento da ABE privilegiariam os temas da organização do
trabalho, da higiene e do controle social, pois aos educadores caberia a tarefa de moldar de forma
adequada o civismo de uma população que se acreditava inerte. No seu registro,
116
A exigência de uma ‘política nacional de educação’ esteve articulada, na década
de 20, a projetos de homogeneização cultural e moral aos quais não foi estranho
o arsenal autoritário referido (...) O autoritarismo desse projeto não tem sido
registrado nos estudos de história da educação. Colocado neste âmbito, o
movimento educacional foi sem dúvida uma das instâncias de elaboração e
disseminação da ideologia autoritária dos anos 20. Nele foram repropostas
representações do ‘povo brasileiro’ como carência, passividade e amorfia
(Chagas de Carvalho, 1998, p.44).
Visão mais generosa do mesmo processo é defendida por Marlos Rocha (Rocha, 2004),
que argumenta que o caldo de crítica social que alimentava o pensamento social dos anos 20 teria
um forte componente republicano. Tratar-se-iam de intelectuais engajados na produção política
de um demos em condições de se expressar e de realizar o potencial emancipador trazido pelo
novo regime. Ou seja, a mobilização de uma linguagem marcada por temas fabris não seria
indício de uma proposta pedagógica disciplinadora, mas de uma formulação política republicana,
que enfatizava a ação e a organização de uma comunidade vigorosa.
A interpretação de Rocha dialoga mais diretamente com os temas que animavam os
intelectuais na década de 20, iluminando de forma mais adequada o sentido da experiência
escolanovista no Brasil. Afinal, a visão liciniana sobre o trabalho não implica necessariamente
apenas a preparação para a disciplina da fábrica, mas antes a difusão de uma forma de
escolarização pautada pela ação prática e pela experimentação. As anotações encontradas em seu
arquivo sob a rubrica Ensino profissionalizante. Notas para a conferência realizada a 5/12/1929
(Cardoso manuscrito, 1929, p.1: arquivo particular) evidenciam tanto uma grande preocupação
com a criação de novas instituições escolares voltadas para a formação de técnicos, quanto uma
concepção que abria espaço para a nova pedagogia e para a centralidade da formação de homens.
A atuação de Licínio no campo educacional serve como mais uma evidência de um
padrão de conduta marcado por uma forte ética da convicção e pela dificuldade de lidar com os
acordos e concessões que limitam a atuação pública. Chagas de Carvalho (Op.cit) apresenta
adequadamente a cisão ocorrida dentro da ABE em 1929. Segundo ela, enquanto Vicente Licínio
117
lançava-se pelo país nos “raids educacionais”
59
, o Conselho Diretor da entidade mostrava-se
insatisfeito com o que julgava ser um excessivo personalismo. Obviamente, para quem se
creditava como um “soldado-cidadão”, empenhado numa verdadeira cruzada nacional, isso lhe
parecia problema menor, resultado de jogos de vaidades e briga de egos. Some-se a isso a decisão
de Licínio de organizar seções regionais da ABE, de forma a nacionalizar a instituição – fato que
também gerou incômodo no Conselho Diretor. A fundação da FNSE reforçou essa dimensão
irascível da personalidade pública de Licínio. Esse voluntarismo ético, que parecia encontrar
sentido apenas na entrega sem concessões a uma idéia de Nação, pode ser ilustrada por um
pequeno manuscrito encontrado em seu arquivo, intitulado Prenúncios Claros da Borrasca
(Palavras Velhas Reeditadas), no qual o autor se identifica da seguinte maneira: “Vicente Licínio
Cardoso (livre atirador sem ligações com partidos políticos; representante sem delegação das
massas analfabetas brasileiras)”(Cardoso manuscrito, s/d, p.1: arquivo particular)
60
De modo geral, pode-se dizer que esse modelo de atuação pública constituía uma espécie
de ethos marcado por disciplina, senso moral forte, aversão aos procedimentos característicos da
vida intelectual carioca e inscrição na vida pública avessa a mediações partidárias ou mesmo
organizacionais. Mais do que um traço singular, o ethos “espartano” de Vicente Licínio era
expressão de uma determinada forma de conduta, passível de ser desvendada sociologicamente.
Sua trágica morte, em junho de 1931, constitui evidência interessante. Depois de tentar pela
primeira vez o suicídio, em 27 de dezembro de 1930, Vicente dá um tiro no peito quase seis
meses depois, numa suíte do Hotel Paysandu, no Flamengo. Ao que tudo indica, sofria de um
quadro de depressão (a imprensa na época fala em personagem “neurastênico”), que já se
manifestava há tempos. Ele acreditava, além disso, sofrer também de um mal físico,
supostamente contraído durante sua expedição ao Rio São Francisco em 1921
61
. As sete cartas
que deixou, escritas para o cunhado e amigos próximos, evidenciam uma constante tentativa de
analisar e dominar racionalmente o tumulto emocional que sofria, além de uma profunda
59
A idéia era ampliar os filiados da Federação Nacional de Sociedades de Educação, espécie de dissidência da ABE
fundada em 11 de agosto de 1929.
60
A expressão foi riscada de punho próprio. Vale lembrar que, em 1927, Licínio foi sondado pelo partido
Democrático do Distrito Federal, tendo recusado os convites.
61
Sobre isso, o próprio escreveu, à margem de uma das cartas: “Fui mordido por uma ninfa de “barbeiro” (inseto não
adulto) em 1921 no sertão da Bahia. Foi talvez uma infecção de que fui vítima (seria moléstia de Chagas). Creio,
todavia que, mesmo sem essa hipótese, a m/ (sic) saúde sempre foi precária. Não contei aos médicos. Só relatei agora
ao Amaral” (Cardoso carta de suicídio, 1931, p.4: arquivo particular)
118
decepção diante da incapacidade de trabalhar. Há nas cartas um certo senso de auto-sacrifício
imposto pela falência intelectual e pelo esgotamento da capacidade de continuar seu engajamento
na causa educacional. Para o cunhado Luís Castilho Goycochêa, Licínio escreveu:
O suicídio entre nós é muitas vezes uma fuga á vida conseqüente e um ato mal
praticado. De nenhum modo meu caso, cujos exemplos serão os da antiguidade
greco-romana ou os do Japão moderno. É um ato de razão de quem domina a
vida em respeito à dignidade da própria vida vivida. (Cardoso carta de suicídio,
1931, p.1: arquivo particular ).
Ou ainda:
Não houve em mi (sic) idéia fixa – nenhuma – muito ao contrário foi por esforço
pertinaz da razão que procurei fixar essa idéia de fim violento como salvação
única possível. Sem qualquer fobia, sem insânia, racionalizando sem
perturbações (a queda do raciocínio é na lentidão e na conseqüência da grande
perda do arquivo da memória antiga e recente) eu analiso o meu caso como se
fosse observador (Cardoso carta de suicídio, 1931, p.2: arquivo particular)
Invariavelmente, os artigos escritos em sua memória logo após sua morte reforçam a
percepção pública de Vicente Licínio como um personagem quase “religioso”, totalmente voltado
para o civismo e para o Brasil. Pouquíssimos escritos mencionam episódios curiosos, carinhosos,
etc. Francisco Azzi, seu amigo, escreveu na Revista Brasileira, dez anos depois de sua morte:
“Nunca lhe ouvi o casquinar de uma gargalhada ruidosa ou a explosão de uma impaciência
exasperada; nem nunca vi, nos traços impassíveis de sua fisionomia, os vincos sombrios de uma
tristeza mal-sapetada (sic)” (Azzi, 1941, p.7: arquivo particular). Outros, como Fernando
Azevedo, preferiram destacar o desajuste entre esse self eticamente orientado, contido e
disciplinado, e o mundo das injunções políticas do Rio de Janeiro:
O contraste entre a delicadeza de sua sensibilidade e a brutalidade dos fatos,
com que se desconcertavam seus planos mais altos, trouxe-lhe a desconfiança de
si mesmo, e, com ela, a duvida mortal sobre a utilidade de sua vida e de seus
esforços (Azevedo, 1931, p.1: arquivo particular).
O outro personagem aqui estudado também teve morte trágica. Embora tivesse traços de
personalidade distintos dos de Vicente Licínio, Euclides da Cunha experimentou uma série de
episódios semelhantes, e teve uma inscrição no mundo organizada por pressupostos análogos.
119
Como se verá, são personagens que partilham um mesmo ethos, característico de um tipo de
atividade intelectual e social que ganhará maior clareza no capítulo final desta tese.
* * *
A família de Euclides tinha posição estável na cidade interiorana de Cantagalo. Segundo
Olimpio Andrade (Andrade, 2002), um de seus mais importantes biógrafos, a paisagem do Vale
do Paraíba teria marcado profundamente a formação do escritor. O mundo da decadência dos
cafezais e da vida simples do campo teria impregnado Euclides de um forte sentimento de
aversão ao luxo e à ostentação, dotando-o de um permanente sentimento de inadequação. Como a
prefigurar duas molduras sociológicas distintas relacionadas ao ambiente urbano brasileiro,
afirma o biógrafo: “(...) não tinha o tato apurado, a maleabilidade discreta com que, por exemplo,
o menino Machado de Assis venceu, junto à madrasta, a insatisfação criada pela ausência da mãe,
tato e prudência que Barreto Filho no-lo mostra aplicando mais tarde na vida” (Andrade, 2002,
p.23)
Ao longo de toda a obra, Andrade ressalta a pouca flexibilidade do caráter de Euclides e
sua permanente sensação de desajuste ou de desconforto, aliada a um forte comprometimento
com a atividade profissional. Nesse amálgama de retraimento e desprendimento surgiria um
personagem que mobilizava o positivismo não como doutrina filosófica, mas como forma de
atuação no mundo e guia organizador da ação pública. A perspectiva do positivismo como uma
espécie de código moral é reforçada por algumas sugestões de Andrade. Segundo ele,
Euclides, inegavelmente, não se deixou prender neste círculo de ferro, o que
não quer dizer que da sua relativa permanência ali não tivesse levado influências
pela vida afora, em termos de moralidade, de amor à ordem e ao progresso, de
queda acentuada para o “social”, em outros termos submetidos, entretanto, por
ele a um processo pessoal de polimento (Andrade, 2002, p.35-36).
Esse padrão acompanharia Euclides ao longo de sua trajetória, e explica, por exemplo, a
relação difícil que estabeleceu com a política e com o mundo público. Afinal, um código pautado
por uma forte ética da convicção não parecia ser o mais adequado para o ambiente de acordos e
concessões que sustentam a prática política. Nos dizeres de Andrade,
120
A vida pública que almejava era meio imaginária, um bocado irreal, sem
transigências e conformismos, capaz de grandes estouros, sendo difícil, assim,
imaginá-lo político aposentado, como o fez um observador em trecho de estudo
que é, não obstante, justo ao apontá-lo no firme propósito de só entregar-se
inteiramente às decisões que o levassem a grandes destinos (Andrade, 2002,
p.81).
O ingresso na Escola Militar do Rio de Janeiro, em fevereiro de 1886, só serviu para
reforçar essas matrizes. Lá ele teria oportunidade de estudar com lideranças positivistas –
Benjamin Constant, por exemplo –, o que não parece ter-lhe afetado tanto em conteúdo, quanto
em padrões de ação e conduta. Apoiada em estudo sobre militares republicanos, outra estudiosa
da trajetória de Euclides afirma:
Aquisição de armas científicas e ascensão social pelo talento e mérito seriam
dois componentes fundamentais da Escola Militar ao tempo em que Euclides
ingressou como aluno, tendo sido estruturantes para sua formação. Castro aponta
como o cientificismo foi utilizado enquanto elemento constitutivo da identidade
social da geração de Euclides na Escola Militar. Da posse de um cabedal
científico, esse grupo compartilhava de um sentimento de superioridade
intelectual, considerando-se produtos de um estágio mais adiantado da
humanidade. Esse sentimento de superioridade seria crucial no caso de Euclides
da Cunha, jovem sem qualquer outro referencial capaz de lhe fomentar a auto-
estima necessária para o desempenho profissional (Abreu, 1998, p.72).
Celso Castro (Castro 1995) argumenta que é possível delimitar a formação de um grupo
jovem dentro da Escola, entre 1874 e 1889. A chamada “mocidade militar” partilhava um
conjunto de valores e práticas que implicavam uma forte coesão interna do grupo aliada a uma
vocação para a intervenção pública. Seu estudo demonstra como, dentro da instituição, os alunos
desenvolviam inúmeras atividades que procuravam estabelecer um ethos de coleguismo que
combatesse a dupla marginalização que esses personagens vivenciavam,
(...)como parte do Exército dentro da ordem monárquica dominada pelos
bacharéis em direito e como um grupo de oficiais com estudos superiores dentro
de um Exército que não se modernizava. O isolamento e o ressentimento daí
resultantes possibilitariam o desenvolvimento de características ideológicas
distintas e em grande parte contrárias às da elite civil (Castro 1995: 20).
Dentro do Tabernáculo da Ciência – nome dado pelos alunos à Escola – os jovens
criavam jornais, grêmios e associações, além de organizarem passeios no tempo livre. A essas
121
práticas somava-se o difuso positivismo que, sob a batuta de Benjamin Constant, grassava na
instituição e combinava-se a uma ideologia de mérito pessoal, que produzia espíritos irrequietos e
propensos à ação política. A combinação entre meritocracia e senso “missionário” se revelaria de
forma explosiva no episódio ocorrido em novembro de 1888, quando Euclides teria jogado seu
sabre no chão diante do comandante da Escola – general José Clarindo de Queirós –, quando da
visita do ministro da Guerra, conselheiro Tomás Coelho. Interessa-me aqui menos o “realmente
ocorrido” (ato de insubordinação republicana ou protesto por não ter sido promovido a alferes-
aluno?) do que a explicitação de uma conduta que, embora disciplinada pelo positivismo como
código moral, mostrava-se fortemente animada para a ação e para a intempestividade. Ou seja,
não se trata de um personagem sóbrio e austero apenas, como um blend fraco de puritanismo à
brasileira, mas de uma personalidade voltada para a atividade irrequieta e estridente. Esse padrão
marcaria a vida de Euclides, e seu próprio estilo de trabalho – concentrado e dedicado, mas com
alto nível de intensidade e obsessão. É de Gilberto Freyre a caracterização de Euclides como um
“homem incompleto”, espécie de pensador não disciplinado e com precária saúde emocional.
Segundo Freyre, “Euclides quase nada teve desses homens completos, bem equilibrados e
saudáveis, de que Nabuco foi, no Brasil, uma expressão magnífica” (Freyre, 1987, p. 39).
Voltando a Andrade, esse afirma que
Era como trabalhava. Encastelado na sua maneira de ser e de dizer, até hostil a
tudo o que pudesse traduzir interferência indébita na sua obra; sempre
incansável na procura do termo exato, não resistindo à sugestão da palavra que,
a seu ver, caísse justa, como, aliás, já vimos ao tratar de suas relações com
Teodoro Sampaio (...) O que importava era ser sincero consigo mesmo
(Andrade, 2002, p.258).
Os estudiosos divergem sobre as aspirações profissionais de Euclides. Segundo Roberto
Ventura (Ventura, 2003), outro importante biógrafo, o autor de Os Sertões considerava a
engenharia um ofício rude e inadequado, que lhe tolhia a imaginação e impedia-o de se dedicar
ao exercício literário, ou, ao menos, à atividade de docência. Nessa perspectiva, pode-se dizer que
Euclides se auto-atribuía uma vocação estética forte, que teria dificuldades em ser viabilizada no
ambiente da “sociedade de corte” que organizava a vida intelectual na capital no período. Já para
Abreu,
122
(...) a engenharia foi fundamental na vida de Euclides. Ao identificar-se com
essa profissão, ele se identificou com o que havia de mais moderno na época e,
fundamentalmente, com uma profissão em que era necessário um instrumental
científico e um conhecimento técnico, o que muito prezava (Abreu, 1998,
p.100).
Note-se que Castro argumenta que a Escola Militar em que Euclides estudou não produzia
reais vocações militares, mas permitia a ascensão social de estratos médios e populares, que se
viam como uma espécie de “contra-elite” republicana
62
. As ferramentas que a instituição dava
aos alunos – ideologia do mérito, espírito de corpo, positivismo e culto à ciência – operavam
como credenciais para que os mesmos galgassem postos na elite intelectual do país. Dada a
reserva existente nos cursos de Medicina e Direito, a engenharia se assemelhava a uma ofício
adequado para jovens como Euclides, como espaço adequado para a realização dessas
potencialidades auto-atribuídas.
O período em São José do Rio Pardo, quando se dividia entre a vida social provinciana
do lugar – marcada pelas tertúlias literárias com os “homens cultos” da cidade –, os trabalhos de
construção e posterior restauração de uma ponte sobre o rio e os escritos relativos a Canudos
evidencia a dificuldade de conciliar suas vocações. Ventura também destaca a instabilidade
financeira e profissional do escritor-engenheiro, que se mostrava ansioso pela obtenção de uma
cadeira universitária na Escola Politécnica que se almejava criar no estado de São Paulo. Em
1893 Euclides fez numerosos esforços para integrar os quadro da recém-criada Escola, mas os
resultados lhe foram adversos, e a sombra de orientação política pairou sobre o concurso. Note-se
que Euclides havia criticado em artigos de jornal o projeto original de criação da Escola, fato que
provavelmente o atrapalhou em seus planos. Sua insistência em fazer o concurso diz tanto sobre
sua forte convicção meritocrática interna quanto sobre sua disposição para a estabilização
profissional numa posição de destaque. Sobre o episódio, outro estudioso do engenheiro Euclides
afirma que
O Euclides da Cunha que em 1893 alimentou esperanças de integrar os quadros
da Escola Politécnica de São Paulo, na cadeira de astronomia, era um jovem
engenheiro que expressava destemida e desabridamente as suas idéias sobre
62
Segundo Castro, “Na falta de perspectivas consideradas atraentes para a ascensão profissional dentro do Exército,
os jovens “científicos” passavam a interessar-se menos pela profissão militar (muitas vezes a falta de vocação era
assumida) e mais por seu pertencimento à elite intelectual da sociedade” (Castro, 1995, p.50-51).
123
política e ciências em artigos publicados em jornais, e, acima de tudo, alguém
que buscava uma solução civil e estável para livrá-lo de uma vez da farda de
oficial do exército que já o incomodava (Santana, 2001, p.73).
Voltando ao tema que organiza as preocupações deste capítulo, pode-se dizer que a
engenharia euclidiana não se pautava pelos padrões franceses que estruturariam a vida
profissional do Rio de Janeiro no período. Segundo Abreu,
Havia também divergências importantes com relação ao significado e ao sentido
da engenharia para uns e outros. Euclides da Cunha, como Rondon, privilegiava
o trabalho das comissões pelo interior do país por acreditar que nesse trabalho
estavam as reformas de base necessárias, sendo absolutamente cético com
relação às reformas urbanas que se multiplicaram na virada do século. No seu
entender, essas reformas eram superficiais, “reformas pelas cimalhas”, e o país
precisava de trabalho mais amplo, que interligasse todo o território nacional e
incorporasse o conjunto das populações dispersas no todo nacional (Abreu,
1998, p.92).
Abreu atribui essas percepções distintas ao ethos próprios dos engenheiros militares, que
se diferenciariam de seus pares civis
63
. A análise do epistolário euclidiano
64
que trata do tema
mostra que Euclides mostrava-se insatisfeito não propriamente com sua profissão, mas com as
condições de exercício da mesma. Uma evidência de tal disposição encontra-se numa carta de
setembro de 1895, endereçada ao Dr. Brandão:
(...)acabo de alterar mais uma vez a orientação da minha vida. Reconheci que
não poderia suportar a vida da roça e, com a aprovação do meu velho, resolvi
abraçar a minha profissão de engenheiro aqui em São Paulo – aonde estou com a
família (...) Acho-me empregado – como engenheiro ajudante nas obras Públicas
daqui; não tenho entretanto desejo de ser por muito tempo empregado público;
aproveitarei a primeira oportunidade que tiver para exercer a minha profissão
mais dignamente. (Cunha, 1995, p.636).
A passagem evidencia que a questão que afligia Euclides era sua condição de empregado
público, e não a adesão à engenharia como opção profissional. No mesmo mês, carta a João Luís
63
É outra a visão de Santana (Santana, 2001), que destaca a constante insatisfação de Euclides com as obrigações da
“farda”.
64
Todas as cartas de Euclides citadas no corpo desta tese estão reunidas em suas Obras Completas, editadas pela
Nova Aguilar (Cunha 1995). As referências, portanto, serão feitas a essa edição.
124
Alves é a evidência mais forte a reforçar a tese de Abreu, já que Euclides mostra-se entusiasmado
com seus compêndios e suas novas funções técnicas. Nela, Euclides escreve
A vida ativa de engenheiro, mas de engenheiro a braços com questões e não
cuidando de emboços e rebocos em velhos pardieiros – veio convencer-me que
tinha muito a aprender e que não estava sequer no primeiro degrau de minha
profissão. Por aí já vês que a minha atividade intelectual agora converge toda
par aos livros práticos – deixando provisoriamente de lado os filósofos, o
Comte, o Spencer, o Huxley, etc – magníficos amigos por certo mas que afinal
não nos ajudam, eficazmente, a atravessar esta vida cheia de tropeços e
dominada quase que inteiramente pelo mais ferrenho empirismo. Infelizmente é
uma verdade: as páginas ásperas dos Aide-Memoires ou dos Enginer’ s
pocketbooks são mais eloqüentes, neste fim de século, do que a mais luminosa
página do nosso mais admirado pensador. (Cunha, 1995, p.637).
A busca de estabilidade e segurança estava relacionada à própria desconfiança que o
escritor nutria a respeito do meio social em que transitava. Em carta ao amigo Francisco Escobar,
de maio de 1902, Euclides mostra insatisfação diante dos personagens que o cercavam, e afirma:
É possível que tome, afinal, a resolução de ir para a Politécnica, onde há bons
companheiros e poderei encontrar os elementos de vida que faltam nesta
convivência estúpida com as dezenas de empreiteiros que me rodeiam (Cunha,
op. cit, p.649)
O progressivo sucesso de Euclides com a publicação de Os Sertões (atestado pelas boas
recepções de José Veríssimo e Araripe Jr.) vão tornando o escritor impaciente com sua inscrição
profissional, que não lhe permitia estabelecer-se de forma definitiva como um homem de letras.
Em carta a Max Fleiuss, datada de março de 1904, Euclides afirma “Aqui estou às voltas com o
meu triste ofício de engenheiro. Quer isto dizer que bem pouco tempo me sobra para cuidar de
coisas mais altas” (Cunha, op. cit, p.677). Entretanto, em abril do mesmo ano viaja para o Rio de
Janeiro em busca de uma colocação afinada ao seu “triste ofício”, e escreve carta a Coelho Neto
relatando o fracasso de suas tentativas. Sua visita ao então ministro da Viação e Obras Públicas
Lauro Muller, antigo colega de Escola Militar, resulta em decepção, dada “(...) a legião
inumerável de engenheiros desempregados, que entope as escadas das secretarias” (Cunha op. cit:
678). Francamente desconfortável diante da situação de anonimato em que se encontrava,
Euclides logra ser recebido, e até recebe promessas de emprego, que o animam
125
momentaneamente. Dias depois, contudo, escreve ao amigo Vicente de Carvalho, já do Guarujá,
e afirma que:
Estive no Rio. Fui cativamente (sic) recebido pelo Lauro Muller; e voltei cheio
de esperanças. Considerando, porém, o doloroso estado em que encontrei ali a
pobre engenharia – torpemente jogada na calaçaria estéril da Rua do Ouvidor ou
entupindo as escadas da Secretaria – creio bem que todas as esperanças são vãs.
Que poderão arranjar-me? (Cunha op.cit :679).
Essa seqüência de correspondências atestam a dúbia relação que Euclides nutria com a
engenharia. Por vezes, esta lhe parecia uma profissão nobre, afeita ao ritmo da vida moderna e ao
novo século que se abria, mas a possibilidade de se firmar como um homem de letras no Rio de
Janeiro surgia como um futuro tentador e possível. Sua formação na Escola Militar e seu treino
técnico lhe pareciam constituir um interessante capital, mas os parcos caminhos oferecidos aos
engenheiros numa sociedade fracamente americanizada eram obstáculos a uma carreira sólida e
estável. Ao mesmo tempo, os interesses e personagens que rodeavam sua atividade (como os
empreiteiros) eram percebidos como fatores desestimulantes, como que o lembrando da rotina
medíocre e estafante que marcava a engenharia brasileira. Na mesma carta a Vicente de Carvalho
acima citada, Euclides desabafa:
Doloroso é isto: tenho doze anos de carreira fatigante, abnegada, honestíssima,
elogiada, traçada retilineamente; passei-os como uma asceta, com a máxima
parcimônia, sem uma hora de festa dispendiosa, e chego ao fim desta reta tão
firme, inteiramente desaparelhado! Nada caracteriza melhor as deploráveis
condições deste país, para os trabalhadores verdadeiramente dignos de nome.
(Cunha, op.cit, p.679-680).
Creio que se pode entender melhor essa disposição pelo recurso à própria moldura da
personalidade euclidiana, delimitada pelo positivismo como código moral e pela ética de
convicção que o animava. Nesses termos, a engenharia significaria menos uma profissão do que a
possibilidade de realização de uma vocação estranha aos códigos e comportamentos que
estruturariam o acesso à “sociedade de corte” carioca
65
. Esse é o sentido também da adesão ao
65
Não à toa, Abreu argumenta que Euclides se aproximaria progressivamente dos paulistas. Nas suas palavras, “Na
verdade, sua trajetória sinaliza aprofundamento cada vez maior dos laços com os paulistas não apenas por meio de
sua colaboração com O Estado de São Paulo, mas também por sua atividade contínua de engenheiro em pequenas
cidades do interior do estado” (Abreu, 1988, p.125).
126
princípio meritocrático e à formação científica dada pela Escola Militar. Afinal, se biógrafos e
estudiosos divergem sobre a vocação de Euclides para a engenharia e a respeito de suas relações
com as tarefas militares, concordam em apontar essa ética da convicção como poderoso motor
interno que dinamizava a conduta do escritor-engenheiro. Nesses termos, a “engenharia
periférica” significa uma mirada profissional e afetiva para fora do mundo urbano e a procura por
uma vocação americana possível para um personagem refratário ao ambiente da “sociedade de
corte” e sequioso das suas auto percebidas vocações estéticas. Como afirma o autor de Os Sertões
em outubro de 1902, em carta endereçada ao amigo Vicente de Carvalho, “É que – homem
prático, massudo enrijecido nessa engenharia rude, - não avalio as grandes abstrações dos
sonhadores as promessas enganadoras dos poetas” (Cunha, 1995, p.651). Esse personagem
enrijecido pela rudeza da engenharia não se inseria de forma natural no ambiente social que
organizava sua vida profissional. Em carta de 1895 ao amigo João Luís Alves, escrita de São
Paulo, Euclides dizia:
Deves saber que a minha índole é contraposta ao meio tumultuoso em que estou,
aonda a luta pela vida lembra, pela ferocidade e pelo bárbaro egoísmo – a
agitação da idade das Cavernas. Estou entre trogloditas que vestem sobrecasaca,
usam cartola e lêem Stuart Mill e Spencer – com a agravante de usarem armas
mais perigosas e cortantes que os machados de sílex ou rudes punhais de pedra
lascada. Imagina agora que milagres tenho feito, vou bem entre eles! Não me
devoraram ainda e – fato singular! – não precisei para isto despir-me da rude
simplicidade espartana que desgraçadamente tenho (Cunha, op. cit, p.638).
Sua estabilização literária, como se sabe, foi conseguida de forma inesperada, graças a
uma progressiva consagração da crítica, em especial de Araripe Júnior e José Veríssimo,
consagração esta que o levou à ABL. Na interpretação de Abreu,
A eleição de Euclides para a Academia Brasileira de Letras revelava outro
aspecto decorrente da consagração de Os Sertões. Vencendo sua candidatura,
vencia a sociedade do talento e do mérito. Um engenheiro transformava-se,
repentinamente, em escritor, sem padrinhos, apenas com a arma do talento e do
mérito (Abreu, 1998, p. 233).
127
Na interpretação da autora, essa trajetória teria servido para consagrar o grupo dos
intelectuais “sertanejos”
66
, que tinham como alvo o padrão de sociabilidade e atividade que
acreditavam ser ditado por Machado de Assis.
Euclides consegue adentrar os altos círculos da Capital Federal ao ser recrutado para o
Itamaraty. Contudo, longe de significar uma estratégia para o relaxamento e para a consagração
fácil, essa inscrição diplomática lançou-o a uma nova viagem, desta vez ao Amazonas.
Continuava, portanto, a saga de um personagem convencido de sua “missão”, e ainda mobilizado
por um sentimento de inadequação, que via no “deserto” uma espécie de lugar social mais afeito
a uma boa vida.
3.4. ENGENHARIA, TERRA E ETHOS.
A aproximação entre Vicente Licínio e Euclides da Cunha foi percebida por alguns
que conviveram temporalmente com os personagens
67
. Em 1931, ano da morte de Licínio, Ítalo
Savelli escrevia um artigo no “Correio de São Carlos”, no qual afirmava que os dois pensadores
se caracterizariam pelo choque com o meio “medíocre” que circundaria ambos. No entender de
Savelli, “Aqui todo intelectual é um fracassado, porque sente em torno de si a sensação do
vácuo” (Savelli, 1931, p.1: arquivo particular). Percebe-se, portanto, a persistência dessa
percepção, para a qual Licínio e Euclides certamente colaboraram. Interessa-me destacar aqui o
significado dessa estranha engenharia que marcou a inscrição desses homens na vida brasileira na
Primeira República. Como afirmei anteriormente, mais do que uma profissão, a engenharia surgia
como uma modelagem específica de intelectuais, que não viam nos padrões hegemônicos da
intelectualidade nacional espaço para suas vocações “americanas”. Esses homens animados pela
66
Silvio Romero fez o discurso de recepção de Elucides, no qual enfatizou justamente sua preocupação com as
“questões sociais” e sua literatura “real”, em tudo distante do “Brasil da politicagem”.
67
No seu já referido ensaio sobre o perfil de Euclides da Cunha, Gilberto Freyre tece a seguinte caracterização, tão
próxima da figura de Vicente Licínio como rememorada pelos que o conheceram: “Ele foi o ‘celta’, o brasileiro, o
baiano raro que não riu: ou riu tão raramente que nunca o imaginamos rindo nem mesmo sorrindo. Ao contrário do
brasileiro típico – isto é, o típico em cuja composição entrasse a quase totalidade dos subtipos regionais – não foi
nenhum ‘homem cordial’, de riso fácil e gestos camaradescos; nem nenhum guloso de mulheres bonitas ou
simplesmente de mulheres, do gênero que se extremou em Maciel Monteiro e se vulgarizou em Pedro I, a quem as
próprias molecas interessavam. Nem mesmo um simples guloso de doces, de bons-bocados, de quitutes feitos em
casa. Varnhagen cozinheiro e Rio Branco regalão, curvados em mangas de camisa sobre alguma peixada à brasileira,
devem ter lhe parecido ridículos. Varnhagen quituteiro – ridículo e até desprezível para a sua masculinidade
convencional de he-man e para a sua temperança de caboclo ou ‘tapuio’ “ (Freyre, 1987, p.40)
128
cultura técnica, oriundos ou de setores médios interioranos, ou de segmentos urbanos
ascendentes, viram no positivismo característico da engenharia politécnica menos uma doutrina
do que uma forma de atuar no mundo. Nesse registro, sugeri que o positivismo operou como uma
espécie de código moral, capaz de animar personagens disciplinados, austeros e obstinados para o
tema da reforma e do engajamento ético-existencial. Tanto a Politécnica quanto a Escola Militar
operavam como agências de socialização afetiva e intelectual, contribuindo para a formação de
jovens que se acreditavam intelectuais de novo tipo. A engenharia, nesses casos, não era
exatamente um ofício especializado, mas o caminho possível para a inscrição desses personagens
na vida social da cidade.
O Rio de Janeiro da Primeira República possuía um padrão de arranjo intelectual que não
deixava grandes alternativas para esses “engenheiros tortos”. Jovens talentosos, e profundamente
imbuídos de uma formação positivista que os dotava de uma espécie de “senso de missão”,
tampouco familiarizados com o jogo oligárquico que envolvia em frivolidade e beletrismo o
mundo dos literatos, esses personagens também não pareciam encontrar espaço no modelo
“francês” de engenharia – representado pelo Clube de Engenharia.
Nicolau Sevcenko (Sevcenko, 2003) fornece boa análise desse período e trata de questões
convergentes, em especial no que se refere a Euclides. Em sua interpretação, as primeiras décadas
da República teriam sido marcadas pela emergência de padrões morais e econômicos mais
dissolutos, que teriam permeado o jogo intelectual e político com o signo do interesse e da
especulação desenfreada. Esse ambiente seria visto por Euclides como resultante de um processo
de degeneração que afastava os homens da ciência e do talento intelectual e premiava os
medíocres e os frívolos. Ao mesmo tempo, o Rio não se configurava como uma forte cidade
industrial, assentada na fábrica e nos seus valores. Espremido entre uma engenharia “nobre” e
uma vida intelectual “corrompida”, Euclides construía sua identidade a partir dessa tensão,
aliando sentimento de exclusão e vocação “missionária”. O tema da ciência como “missão” de
personagens exemplares que deveriam retirar a República da “lama liberal-oligárquica” que a
corrompia é também tratada por Sevcenko, assim como a relação entre esse mal estar social e a
imaginação espacial euclidiana. Nas palavras do autor,“Era a amplitude das paragens sertanejas
que lhe impressionava mais fundamente a sensibilidade, reforçada por um certo mal estar que o
129
tomava nos ambientes urbanos” (Sevcenko, 2003, p.164). Esse diagnóstico do historiador paulista
é confirmado por uma carta escrita por Euclides a Coelho Neto, em março de 1905, enviada da
cidade de Manaus. Enquanto esperava, impacientemente, a partida para uma expedição
organizada pelo Itamaraty pelo Jurá e pela fronteira peruana amazônica, afirmava
Não te direi os dias que aqui passo, a aguardar o meu deserto, o meu deserto
bravio e salvador onde pretendo entrar com os arremeços britânicos de
Livingstone e a desesperança italiana de um Lara, em busca de um capítulo novo
do romance mal arranjado desta minha vida. E eu já devia estar dominando as
cabeceiras do rio suntuoso, exausto nos primeiros boléus dos Andes ondulados.”
(Cunha, 1995, p.696-697).
Licínio também não parecia atraído pelo tema da cidade, e menos ainda pelo Rio de
Janeiro e pelos principais círculos intelectuais que o estruturavam. Boa parte de seus artigos era
publicada em jornais de São Paulo, e mantinha amizades e contatos nessa cidade – que classifica
como “a expressão urbana da democracia”. No já citado texto sobre psicologia das cidades –
“Psicologia Urbana” –, afirmou:
Rio de Janeiro é a expressão urbana da evolução do Brasil como Nação, através
de seu passado histórico. São Paulo é, ao contrario, uma antecipação do futuro,
expressão que é de um novo Brasil, vitalizado pela continuidade da imigração
do braço europeu, implantando, na agricultura e na industria, processos
evolutivos mais enérgicos e mais ousados, ora espontaneamente aclimatados,
ora vitoriosamente coordenados e dirigidos pela audácia criadora dos
descendentes dos bandeirantes (Cardoso manuscrito, 1926, p.3: arquivo
particular).
A análise de Sevcenko ilustra o sentido do desencanto que afligia parte da geração
republicana. Esse sentimento juntava-se à percepção de que o advento da República teria
sepultado quaisquer ordenamentos estáveis que produzissem estabilidade social e uma hierarquia
de papéis que pudessem ser exercidos por esses “republicanos marginais”. Não à toa, a releitura
do Império empreendida por muitos desses personagens nos anos 20 exaltaria justamente a
tradição centralizadora que conferia àquela ordem social uma organicidade inexistente na
Primeira República. Pode-se dizer que esses personagens alimentavam uma espécie de nostalgia
da tradição, alimentada pela sensação de que a dinâmica dos interesses libertada pelo movimento
de 89 teria contribuído para a mediocrização e leviandade. A direção dessa floração republicana
estaria, desde então, fadada a vasculhar a formação brasileira em busca de algo que pudesse
130
sustentar uma República orgânica, que não sucumbisse à maré niveladora e privatizante. Não é
difícil localizar nesse conjunto de atitudes e sentimentos um certo diagnóstico tocquevilleano,
que pretendo explorar no capítulo subseqüente, e que permite compreender a experiência
intelectual específica vivenciada pela geração de Vicente Licínio Cardoso e consubstanciada na
obra clássica À Margem da História da República. Nesta, pode-se localizar os diversos dilemas
que envolviam essa busca por uma tradição “desmontada”: os ecos das discussões raciais, o
apego a narrativas formadoras que apreendessem o nosso “espírito nacional” e a predileção por
uma certa filosofia espiritualista que fornecesse uma Idéia capaz de organizar a dispersão
republicana.
Mobilizando esse panorama interpretativo para o caso dos engenheiros, pode-se dizer que
a formação politécnica e o treinamento científico dado pela Escola Militar facultavam aos jovens
egressos das camadas médias, ascendentes ou populares aspirações que não encontravam guarida
nos circuitos hegemônicos da vida intelectual do Rio de Janeiro. Se a cultura científica adquirida
os animava a pleitear uma posição de destaque na reorganização social, os postos técnicos não se
multiplicavam na vida produtiva – causando as filas nas escadarias da secretaria, cena descrita
por Euclides – , o que emperrava o exercício de vocações mais industriais, características da
engenharia americana descrita em seção anterior. Ao mesmo tempo, a sensação de que a fábrica
não era o espaço por excelência dos “politécnicos” – dado que toda sua formação enfatizava um
difuso positivismo que supostamente os credenciava a operarem como elites estatais – movia-os
para caminhos outros, talvez mais periféricos. Não à toa, Euclides e Vicente Licínio foram
posteriormente identificados com o grupo dos “republicanos críticos”, composto por homens
nascidos ou formados no alvorecer da República, mas que alimentaram forte sentimento de
decepção e desencanto. Ao mesmo tempo, suas trajetórias indisciplinadas na engenharia
evidenciavam a tensão que envolvia a combinação entre uma formação técnica e aberta para
temas do “moderno” – ciência, fábrica, máquina – e vocações reprimidas que desaguaram em
outros campos, mas que trouxeram ainda suas marcas de origem. No caso, esse desencanto vivido
por inúmeros personagens republicanos ganhava tonalidades mais fortes na medida em que os
engenheiros seriam os portadores por excelência dos novos valores da vida moderna –técnica,
especialização e conhecimento de assuntos próprios à organização material da sociedade. Essa
idéia de “novos homens” assentava-se também no próprio conjunto de disposições e atitudes que
131
configuravam o ethos positivista dos personagens. Mais do que homens práticos eram homens
“sinceros” e austeros, que tinham como modelo intelectual a figura do “soldado-cidadão”
68
.
Euclides e Vicente Licínio poderiam ser, portanto, classificados como representantes de
uma “engenharia periférica”, que não era de modo algum exclusividade do cenário intelectual
brasileiro. Não se trata aqui, de sustentar uma marginalização desses personagens, mas de apontar
uma determinada forma de inscrição no mundo que encontrou guarida na engenharia, e que se
realizava mais como um determinado ethos do que propriamente uma profissão. No caso, ser
engenheiro servia como uma válvula de escape para personagens que acreditavam não se
enquadrar nos figurinos disponíveis até então para as atividades intelectuais – figurinos aos quais
os personagens estudados no capítulo 2 se ajustaram com perfeição. Com um forte senso de
missão, obstinação e celebração do trabalho e da atividade produtiva, esses homens não eram
propriamente profissionais da engenharia no sentido estrito, mas tinha em comum um código
moral que lhes dava disciplina. O dilema que envolvia a inscrição de jovens de origens médias ou
populares, dotados de uma formação técnica, em sociedades cujos processos de modernização
restringiam a entronização dos engenheiros como funcionários “ordinários” estava presente
também em outras sociedades, como a russa, que tanta curiosidade despertava em Euclides e
Vicente Licínio. Dostoievski, figura literária admirada por ambos, era ele próprio um jovem com
vocações literárias que foi mandado pelo pai para Academia Militar de São Petersburgo em 1836,
onde experimentou a sensação de não pertencer à nobreza técnica que ali transitava.Segundo
Joseph Frank (Frank, 1999), um de seus melhores biógrafos, a ingratidão e o ressentimento
seriam sentimentos básicos na formação da personalidade de Dostoievski. Aliás, a construção de
personalidades “humilhadas e ofendidas” é tema recorrente na literatura russa, e expressa um
certo “mal estar urbano” que acossava especialmente jovens talentos, com fortes vocações
intelectuais (reais ou imaginadas), que se chocavam diariamente com uma sociedade rigidamente
estratificada e ainda corroída por negocistas, aproveitadores, oportunistas, medíocres e toda a
fauna humana produzida pela modernização capitalista.
69
Um estudioso da história da ciência na
Rússia mostra como a formação de uma inteligência técnica nesse país era uma criação estatal, e
68
Benjamin Constant era uma liderança admirada por ambos
69
Não é por acaso que Vicente Licínio Cardoso dedica um ensaio em três partes para esse escritor russo. Nesse
ensaio, Vicente não mostra admiração pela composição literária de Dostoievski (provavelmente “chocante” para
cariocas que cresceram tendo como referência a literatura francesa), mas sim pela sua capacidade expressiva e pela
sua coragem de lidar com temas sombrios e extremos. Voltarei ao tema nos capítulos 5 e 6 desta tese.
132
as instituições educacionais que produziam os integrantes desse grupo recrutavam,
principalmente, entre os filhos da nobreza. Segundo o autor,
This created a corporate and caste-like mentality, a residue of which remained
strong in the years after 1917, and became an issue of some importance(...)
technical work directly in production was considered the province of the lower
orders (Bailes, 1978, p. 25-26).
A posterior incorporação de estratos médios nesse cenário certamente agravaria a tensão
entre cultura técnica e uma ordem social fechada, fortemente controlada pelo czar. Embora
distante do cenário da Primeira República, esse quadro também envolvia um choque entre a
emergência de estratos médios pela via da ciência moderna e a persistência de padrões sociais
que pareciam extremamente injustos a esses jovens “ressentidos”. Sobre a extensão do
recrutamento dos engenheiros, Bailes afirma que
Even children of the nobility, who attended such institutes far out of proportion
to their numbers in society, were often impoverished or from families of
declining economic status who wanted a promising profession for their children
and lacked the ties or means for others careers (id, ibid, p.29)
A percepção dessa semelhança de experiências intelectuais entre republicanos brasileiros
desencantados e jovens russos ressentidos e sem lugar social não é nova. O próprio Sevcenko
sugere que o que chama de “mosqueteiros intelectuais” da Primeira República – escritores
convencidos de uma missão ética-transformadora – valorizavam a dimensão “utilitária” da
cultura tanto quanto a chamada intelligentsia russa, embora o historiador não explore as
possibilidades dessa comparação.
A experiência de uma “engenharia periférica” deve ser compreendida não apenas como
uma espécie de desvio do campo profissional, como seria de se esperar numa análise marcada por
uma sociologia das profissões. Trata-se aqui de recuperar o sentido intelectual da engenharia e
das marcas que esse sentido teria deixado nos personagens. O que salta aos olhos é a combinação
de uma ética pessoal missionária, forjada através de uma sucessão de insucessos num meio tido
como frívolo, forte apego à ciência e sentimento de inadequação nas malhas da sociabilidade
urbana que organizavam o jogo social na Primeira República. Ou seja, o espaço de Euclides e
133
Vicente Licínio não seria encontrado na engenharia da cidade, assim como as suas respectivas
metafísicas espaciais não se identificariam com o espaço urbano. O choque de uma rápida
modernização liberal que não parecia ampliar o leque de “dirigentes” para jovens egressos de
uma formação politécnica parecia imprimir no pensamento de ambos uma percepção do desvio
desse processo e da necessidade de uma reinterpretação do nexo engenharia-modernidade. Nesses
termos, não é de se estranhar a presença da categoria “terra” nos escritos euclidianos e licinianos,
como que a evidenciar a busca desses personagens por uma interpretação do processo civilizador
brasileiro em outros moldes. Assim, o sentido dessa engenharia não se esgotaria na identificação
de trajetórias tortuosas no indefinido campo intelectual do período, como se a terra representasse
um escape romântico para caminhos pessoais emperrados na cidade da República das Letras.
Afinal, a mobilização da categoria “força da terra” em alguns escritos de Licínio não serve a
propósitos românticos ou essencialistas, mas opera como ferramenta comparativa que lhe permite
aproximar o Brasil de uma cartografia intelectual específica, talvez mais afeita à sua própria
inscrição social. Finalmente, a presença do positivismo como um código moral disponível para
uma intelectualidade desenraizada fornecia figurinos possíveis para personagens que não viam no
ambiente urbano do Rio de Janeiro espaço para vocações “americanas”.
Não se trata aqui, de atribuir uma causalidade para a relação entre engenheiros e terra.
Como o trabalho de Lima (Op. cit), a intelectualidade republicana se mostrou grandemente
animada pelo tema espacial e por narrativas que elegessem o nosso espaço periférico por
excelência – o sertão – como chave principal de interpretação. Esse movimento atingiu não
apenas engenheiros, mas sanitaristas, médicos, higienistas, não por acaso, funções e atividades
relacionadas, de uma forma ou de outra, ao caldo cultural politécnico-positivista. Creio, contudo,
que explicações mais finas sobre motivações podem e devem ser buscadas, atentando para os
matizes que envolviam essa ”ida ao povo”. Seria esse movimento de redescoberta do Brasil
portador de um sentido unívoco para todos os seus participantes e entusiastas? Acredito que não.
Além do mais, a relação da engenharia com esse tema pode guardar características
sociologicamente significativas, na medida em que essa atividade envolve, de maneira mais
direta, a absorção de conhecimentos, práticas e temas próprios do modernismo – como o tema da
máquina, por exemplo. Nesse sentido, a identificação desse nexo específico entre engenharia e
terra pode iluminar problemas da modernização periférica e da produção de um modernismo que
134
possa ser comparado com outras experiências que se defrontaram com tensões similares. Se,
como afirmei inicialmente, a engenharia for um dos campos por excelência para o
desenvolvimento de um imaginário modernista forte, como compreender o impacto de uma
determinada forma de experimentar esse campo e a produção de formulações intelectuais que
encontram seu destino não nos locais por excelência dessa imaginação – fábrica, cidade,
máquinas –, mas em geografias outras, próprias de contextos periféricos, como analisei no
capítulo 1?
Voltamos, portanto, ao quadro teórico inicial, apresentado na introdução e retomado no
início deste capítulo. A engenharia, aqui, não se limita a uma determinada profissão específica,
mas expressa uma forma de inscrição no mundo social da Primeira República que busquei
caracterizar através de três pontos principais: 1) a realização de vocações “americanas”, afeitas à
cultura técnica e aos temas da vida material, e ciosas de condutas e estratégias que não se
enquadrariam nos percursos tradicionais da elite intelectual nacional; 2) presença do positivismo
não como doutrina, mas como código moral galvanizador de um ethos marcado pela disciplina,
ética-existencial missionária e aversão aos padrões de sociabilidade intelectual da vida urbano-
literária carioca; e 3) a expressão de um desenraizamento profissional característico dos padrões
de evolução da engenharia brasileira. Pode-se dizer que os três pontos podem ser visualizados
como dimensões de um “americanismo positivista” próprio desses personagens.
Como procurei mostrar no primeiro capítulo, a metafísica da terra responde a dilemas
próprios de sociedades em contextos de afirmação da ordem moderna e da própria cultura
modernista. No Brasil da Primeira República parte desse dilema envolvia o debate em torno da
nossa experiência americana e da sua relação com nossa tradição perdida. No capítulo anterior,
analisei uma formulação desse problema, centrada num certo entendimento sobre a viabilidade de
nossa “terra americana”. A mobilização do tema da “natureza melancólica” em personagens
como Graça Aranha e Ronald de Carvalho, por exemplo, encontrava sua resolução num registro
espiritualista que destoava da família Euclides-Vicente Licínio, forjada na sociologia materialista
da Politécnica, a despeito de todos se voltarem para a mesma geografia. Enquanto aqueles se
mostravam ambíguos diante da relação entre americanismo-tradição-modernização, estes, dada
sua inscrição distinta na vida social do período e as modelagens intelectuais diversas, engajavam-
135
se mais decisivamente numa variante mais aberta e criativa dessa figuração. Nos capítulos
subseqüentes, procurarei mostrar o sentido da “sociologia política da terra” de Euclides e Vicente
Licínio, assim como suas proximidades e distâncias com o clássico tema da natureza americana
na imaginação brasileira.
136
CAPÍTULO 4. A TERRA EUCLIDIANA.
4.1. TERRA E CIVILIZAÇÃO
A notável fortuna crítica de Os Sertões pode ser atestada pela ainda prolífica produção
destinada a sua exegese e interpretação, consubstanciada em teses, artigos, livros. Desde seu
lançamento, a obra parecia vocacionada a provocar uma enxurrada de escritos críticos, boa parte
deles reunindo dois níveis interpretativos. Por um lado, uma incessante discussão a respeito da
economia interna da obra: análise do estilo, decifração de argumentos, construção do texto etc.
Por outro, uma não menos insistente busca pelo desvendamento da interpretação do Brasil que se
poderia extrair do cipoal barroco tecido por Euclides. Os dois níveis de leitura enquadram as
perguntas que costumam acompanhar os “círculos hermenêuticos” que estruturam as leituras
euclidianistas: seria Os Sertões uma obra eminentemente literária, com o devido tributo ao
cientificismo da época, ou uma peça investigativa que combinaria de forma brilhante questões
científicas e estilo ficcional? Qual é, afinal, o lugar desses “sertões” na teoria mais ampla do
autor sobre a civilização brasileira? O que significaria a “condenação à civilização”? Qual o
estatuto da discussão racial feita na obra, e qual sua relação com a interpretação desenhada?
Uma tese sobre Euclides da Cunha deve enfrentar todos esses problemas, além de lidar
com o vasto repertório interpretativo já produzido sobre o autor e sua obra. No caso deste
trabalho, não se pretende fazer uma densa análise de Os Sertões, nem uma extensa reconstrução
do perfil intelectual do autor. Trata-se de mobilizar alguns temas a partir de uma leitura dos
escritos euclidianos sobre a Amazônia, tendo em perspectiva o ponto que procuro sustentar ao
longo do texto. Ou seja, busco inicialmente discutir o sentido assumido pela categoria “terra” na
obra de Euclides, a partir do enquadramento teórico apresentado no primeiro capítulo. Em
seguida, argumento que Os Sertões apresenta uma profunda tensão (entre outras, diga-se de
passagem) entre o problema analisado da afirmação da civilização numa sociedade marcada por
sua condição periférica e a postulação de uma espécie de ontologia essencialista, obcecada pela
busca de uma origem nacional. Nesse sentido, o dilema euclidiano é extensivo aos euclidianos,
obstinados caçadores dessa originalidade, e aos intérpretes do pensamento brasileiro que tendem
a restringir o tema da terra ou mesmo dos sertões a uma discussão sobre nossa identidade
137
nacional. Finalmente, argumento que uma leitura dos escritos de Euclides sobre a Amazônia pode
iluminar outros aspectos de sua argumentação, com destaque para uma visão da terra não mais
como eixo essencialista, irmã siamesa da raça, mas como forma simbólica associada ao tema da
invenção e da produção aberta de uma matriz civilizatória que não se prenda a uma origem
fundacional. Para tanto, além dos escritos do autor sobre a Amazônia, mobilizo também seus
textos sobre a Rússia e sobre as ferrovias sul-americanas para mostrar como o tema da barbárie
ganha tratamento diverso daquele apresentado em Os Sertões. De um modo geral, o capítulo
segue a perspectiva interpretativa construída ao longo da tese, assentada na idéia de que é
possível extrair uma interpretação do processo de modernização brasileiro a partir de uma leitura
da categoria terra e das interpretações associadas a ela no pensamento social brasileiro, tendo por
objeto a obra dos dois autores aqui estudados.
* * *
É conhecida a estruturação que Euclides constrói em Os Sertões, dividida em três grandes
seções: “Terra”, “Homem”, “Luta”. Longe de serem momentos estanques, as três estão
intimamente relacionadas, já que a primeira não é uma mera apresentação do cenário da tragédia
de Canudos, mas uma análise de um de seus principais atores. Num primeiro momento, pode-se
argumentar que o autor se aproxima do positivismo francês, em especial de Taine, que dá grande
estaque para a influência do meio físico na configuração das sociedades e da ação humana
70
.
Assim, a terra operaria como uma variável científica, substrato que moldaria os temas realmente
relevantes – como o homem sertanejo e seus costumes, por exemplo. Não é essa, contudo, a
posição de seus inúmeros intérpretes. Leopoldo Bernucci afirma que “Quanto à descrição da
geografia do sertão, para muitos de seus intérpretes já não cabem dúvidas, que Euclides se inclina
definitivamente para o lado do imaginário” (Bernucci, 1995, p.21). Bernucci aproxima a
construção tripartite euclidiana da obra histórica de Victor Hugo a respeito da Vendéia, –
“Quatrevingt-treize” –, enfatizando que a construção naturalista de ambos seria permeada por
uma lógica épica própria do romantismo tardio. Fiel a sua formação em crítica literária, o autor
discute o tema tocando nas características da mimese mobilizada por Euclides e Hugo. A
70
Como argumentarei em capítulo subseqüente, essa formulação de sabor positivista também será a porta de entrada
de Vicente Licínio para o tema da terra.
138
economia naturalista das obras ganharia outros contornos nas mãos de autores com essa
formação. Bernucci, inicialmente, afirma que:
Mesmo um escritor, como Victor Hugo, pouco afeito às teorias deterministas de
seus colegas naturalistas não conseguiu escapar da ardilosa e persuasiva força
com que os sisudos doutores das ciências da época, tirando-a do bolso do colete,
anunciavam a fórmula mágica que iria vaticinar a compreensão dos caracteres
humanos. A fórmula era relativamente simples, mas condenada ao fracasso:
“Dize-me de onde vens e eu te direi como és” (id, ibid, p.33).
Em seguida, ele mostra como a absorção dessas teorias opera na escrita dos dois autores,
aproximando-os e destacando a dimensão narrativa que empresta sabor ficcional e imaginativo ao
naturalismo. Nos seus termos,
São a floresta e o deserto os loci que encarnam o mistério, o silêncio, e o
segredo; espaços geográficos diametralmente opostos, e no entanto intimamente
atados pelas lianas inextrincáveis da analogia de Hugo, não deixando sequer que
o nosso discernimento as penetre em busca de uma possível dissociação. A
analogia se constrói à força do pensamento e da linguagem e somos obrigados a
aceitá-la sob pena de ver derruído todo um sistema de sustentação discursiva. A
saber, aquele em que se instala o símile (id, ibid, p.34).
Na passagem acima, fica evidente que a análise do tema segue uma linhagem
interpretativa que destaca a combinação entre ficção e ciência na escrita euclidiana. A decifração
do “naturalismo” do autor é operada a partir de uma crítica literária que mostra os procedimentos
ambíguos do narrador, o que escapa ao enquadramento que busquei apresentar no primeiro
capítulo. Certas idéias, todavia, são semelhantes. Citaria especialmente a idéia de Bernucci de
que os espaços naturais que são descritos nas obras dos dois autores não seriam apenas cenários
físicos específicos, mas elementos de sistemas discursivos que trabalham com comparação.
Tratando novamente da floresta e do deserto, ele afirma que:
Em última análise, esses dois universos se estendem para além de suas fronteiras
nacionais à procura de uma equação, expressa pelo aqui e o , sendo este
segundo termo um proverbial antecedente do sistema comparativo do discurso
dos dois autores. Seria na primitiva África, como poderia ter sido no vetusto
Oriente, onde encontraremos os termos de comparação. (id, ibid, p.34).
139
Como se vê, o autor sugere que a terra desvendada por Euclides escapa a mera
representação física de um lugar, e converte-se em poderosa imagem de cunho comparativo, num
procedimento estilístico que evoca a leitura que Antonio Mitre faz da obra de Sarmiento,
apresentada no primeiro capítulo – aliás, outro autor analisado por Bernucci e comparado a
Euclides, segundo uma argumentação aparentada aos caminhos que venho traçando. Novamente,
pela chave da crítica literária, o intérprete afirma que:
Os estudiosos preocupados com o problema da ontologia representacional do
Facundo e d’ Os Sertões não poderiam deixar passar despercebida a observação
de que a empresa sarmientiana e euclidiana visava muito mais àquilo que
Aristóteles chamou de o “imaginar ser” do que o “ser em si”. (id, ibid, p.44).
Rumo semelhante segue Santana (Santana, 2001). Operando no registro da historiografia
da ciência contemporânea, ele volta-se para a relação entre ciência e arte em busca da solução de
um mistério: como Euclides, engenheiro que lia e dialogava com geólogos, pôde inventar tanto
na seção “A Terra” de Os Sertões, recheada de imprecisões e fantasias, como o “grande planalto
central brasileiro”, que o autor estende por limites impróprios? Diante da possibilidade do erro,
Santana prefere um caminho mais sutil que, assim como Bernucci, ressalta a dimensão
imaginativa da fabulação científica euclidiana. Ou, como afirma o autor,
Assim, acredito que existe nas primeiras páginas de Os Sertões a intenção de
fundar uma geografia e uma paisagem, baseadas inicialmente no diálogo com os
textos preexistentes, que ganham caráter de testemunho do que era conhecido,
mas esta geografia e paisagem guardam em si estreita correspondência com o
que será encontrado ao longo do livro, ainda que seja necessário, para isso, criar
um conceito que revele “sentidos insuspeitados” (Santana, 2001, p.109).
As fantasias geológicas do autor não seriam derivações de erros, mas produções
discursivas destinadas à revelação de dimensões novas da experiência social dos sertões. No caso,
a mobilização da geologia – objeto que organiza as preocupações de Santana – serviria para esse
propósito maior, evidenciado na obsessão com a qual o autor utiliza metáforas geológicas para a
decifração do homem sertanejo. Nos dizeres do estudioso euclidiano
Considero relevante assinalar que, ao se referir ao interior do país, o escritor fez
a opção de se utilizar de processos tectônicos causadores de deformações que
afetam os níveis profundos da crosta terrestre, e que envolvem a propagação de
140
forças internas por meio do substrato rochoso e sobre o qual elas se levantam. O
interior do país assume assim as feições de interior da própria terra (id, ibid,
p.124).
Mas a abordagem de Bernucci sobre a estrutura naturalista de Os Sertões não é a única.
Para outro intérprete, mais atento ao pensamento social euclidiano, o tema da terra deve ser
interpretado à luz dos próprios dilemas interpretativos do autor. Berthold Zilly (Zilly, 1999) situa
o problema do sertão no quadro da afirmação da civilização numa ordem pautada por uma
economia moral estranha aos artífices desse processo. Nesse registro, a obra poderia ser encarada
como uma espécie de ficção fundacional, na qual o desvendamento científico de uma paisagem
específica estaria vinculado à busca de um projeto alternativo de organização do país, no qual o
lugar sertão fosse pensado como imagem de uma nova gênese que reconciliasse Estado e Nação.
Conforme assinala Zilly, “A região marginal se transfigura – transfigurar é um dos verbos
prediletos de Euclides – em região modelar. À centralidade geográfica corresponde uma
centralidade histórica” (Zilly, 1999, p.25).
Assim como Bernucci e Santana
71
, o intérprete alemão também destaca o protagonismo
exercido pelas variáveis naturais adotadas por Euclides, enfatizando certa influência romântica
que envolveria a narrativa fundacional euclidiana no manto da epopéia e da historiografia
comprometida com a ficção. No seu registro,
O que vale para as plantas, vale mais tarde para os homens, evidenciando-se
analogias entre a população vegetal e a população humana do sertão que é um
espaço isolador para fora e unificador para dentro. A exposição científica,
algumas vezes, em oposição com a vertente poética do livro, aqui, como em
tantos outros trechos também, está a serviço de intenções historiográficas e
poéticas, prefigurando a narração da guerra propriamente dita (id, ibid, p.22).
Zilly vai além, mostrando como essa região modelar, o sertão, ganha estatuto dúplice na
obra euclidiana. Por um lado, seria o berço possível de uma civilização nova, mais igualitária e
com uma economia moral alternativa, cuja encarnação física seria o mestiço, na qualidade de
herói romantizado. Por outro, o discurso científico que organiza a obra não abriria espaço para a
valorização desse mestiço, destinado a sucumbir diante das férreas leis evolutivas. Na
71
Vale notar que Zilly, a despeito de associar a estrutura tripartite da obra de Euclides ao modelo de Taine, também
traça uma genealogia americana desse tipo de narrativa, aproximando Sarmiento e Euclides.
141
interpretação do autor, esse estatuto dúplice ganharia resolução no plano estético, o que faria da
obra uma “(...) hagiografia na qual se narra a conversão, o apocalipse, a morte, a redenção e a
ressurreição do sertanejo no imaginário, no céu da nação” (id, ibid, p.38). A terra de Euclides
seria força natural viva, tradução política de uma geografia física, e constituir-se-ia em fonte de
afirmação civilizatória, e não em obstáculo. Permanecem, contudo, três problemas:
primeiramente, o dilema trazido pelos personagens que nela habitam – os sertanejos mestiços –;
em segundo, o desvendamento da relação entre processo civilizador e “barbárie”; e, por fim, a
tradução dessa relação na própria escrita euclidiana. Creio que esses temas ganharão tratamento
mais preciso na obra de Luiz Costa Lima, na qual a articulação entre os dilemas do plano literário
(tratados por Bernucci) e aqueles do plano político-interpretativo (resolvidos por Zilly não pela
própria esfera do pensamento social do autor, mas pelo recurso à estetização operada no texto,
vista como porta de saída para dilemas construídos em outro lugar narrativo) ganha
concatenação.
Luiz Costa Lima (Costa Lima, 1997) procura traçar uma análise crítica de Os Sertões que
não despreze as teorias científicas mobilizadas pelo autor. Ele empreende uma leitura interna dos
argumentos mobilizados por Euclides, não os justificando como anacronismos que supostamente
seriam compensados pela força interpretativa, pelo barroquismo do estilo, ou pelo aspecto
ficcional da obra. Aliás, o ponto que o autor perseguirá com denodo no texto diz respeito
justamente ao modo como a escrita de Euclides, guiada pelas convenções de um narrador
moldado na cultura científica do final do século XIX, termina por travar de variadas maneiras a
possibilidade de uma economia descritiva que fuja das estreitas determinações das teorias
evolucionistas e raciais mobilizadas. Nesses termos, Costa Lima procura mostrar como o aparato
cognitivo que molda o olhar euclidiano transformaria a captura mimética do espaço “sertão”
numa árdua batalha de representatividade, dada a novidade desta paisagem e a insistência de
Euclides em dominá-la expressivamente
72
. Eventualmente, a imaginação escaparia por brechas e
permitiria a confecção de passagens e imagens que extrapolariam os limites dados pelo
instrumental cientificista, como em boa parte da primeira seção da obra
73
, “A Terra”. Poder-se-ia
72
Costa Lima nomeia esse procedimento como um mecanismo de “denegação”.
73
Explica-se assim o título dado por Costa Lima ao seu livro – Terra Ignota - A construção de Os Sertões”. Nas
palavras do autor, “ A experiência de Canudos então o incita a investigar uma terra que permanecera ignota e não só
142
falar, portanto, em uma cena – estruturada por operadores científicos e pela autoridade dessa
economia descritiva – e por uma subcena – uma espécie de “máquina de mimeses” que
condensaria desvios, ornamentos, impasses, tudo que não caberia na cena.
Esse argumento, de ordem literária e voltado para a crítica estilística, encontra-se com
outro ponto desenvolvido pelo autor, e que diz respeito às contradições que envolvem a própria
interpretação do Brasil desenhada por Euclides. Segundo Costa Lima, essa dimensão que
acompanha Os Sertões é dilacerada por dois argumentos que terminam por se chocar. De um
lado, Euclides sustentaria a validade dos vaticínios deterministas das teorias evolutivas que
mobiliza e que, quando aplicadas à realidade periférica do Brasil, terminariam por condenar os
tipos étnicos moldados no sertão ao desaparecimento. De outro, é constante a postulação do
mestiço como a “rocha viva” da nacionalidade, fundamento étnico que configuraria nossa
essência. Como se pode eleger uma essência original que estaria fadada ao desaparecimento
diante do avanço civilizatório? O mesmo problema encontrado no plano estilístico – o
descompasso entre uma paisagem nova e um argumento científico que procura a dissecar sem lhe
permitir uma real expressividade – repetir-se-ia no plano interpretativo mais amplo.
Creio que a interpretação de Costa Lima condensa as grandes questões que surgem dos
problemas levantados por Euclides em Os Sertões, e que dizem respeito ao tema desta tese. Em
especial, o estatuto da terra na obra euclidiana. Em qualquer análise crítica, é consensual a idéia
de que ela nunca se esgota numa mera variável científica, mas se transfigura num personagem
com força expressiva e que produz uma determinada economia moral. As análises de Zilly e
Costa Lima, entretanto, vão além, e inserem o debate sobre a terra no âmbito de uma discussão
sobre o processo civilizador no Brasil. Ou seja: o que significaria pensar esse processo
mobilizando tal categoria? E quais idéias essa imagem pode traduzir?
Parece-me que o trabalho de Costa Lima toca num ponto crucial: a problemática
associação que Euclides faz entre terra e essência – esta última encarnada num tipo étnico. Essa
crítica, além disso, é generosa, por reconhecer na escrita do autor possibilidades abertas para a
desconhecida. Desconhecida seria se apenas ainda não houvesse sido indagada e medida por instrumentos
divulgados. Ignota o é porque necessita moldar seus próprios instrumentos”(Costa Lima, 1997, p.123)
143
superação da contradição apontada acima. Tal superação encontra-se na própria terra, desde que
se permita uma nova forma de apropriação da mesma. Costa Lima vê essa possibilidade
desenvolvida no texto de Euclides sobre a Amazônia. Sigo essa sugestão na próxima seção, tendo
em mente esta questão: haveria, no referido texto e em outros, um tratamento da questão da terra
que consiga superar impasses que são encontrados em Os Sertões? Esse é o sentido do desafio
lançado por Costa Lima, ao sugerir a atitude do investigador diante dos fragmentos deixados por
Euclides:
Diante dessas anotações, duas atitudes são possíveis para o analista: ou ele
lamenta que a primeira parte de À Margem tenha permanecido um esboço ou
chama atenção para o que Euclides, em luta consigo próprio e contra a tendência
de seu tempo, alcançara. O que alcançara não era pouco, tampouco limitado ao
estreito horizonte nacional; era a verificação da existência de objetos, da
dimensão de quase um continente, que se indispunham contra a homogeneidade
pressuposta pelo clássico cálculo científico. Euclides, o denegador
epistemológico, praticamente cumpriu esse exame pelo confronto de como
pensava a Amazônia, em contraste com o modo como pensara o sertão (Costa
Lima, 1997, p.121).
4.2 OS ESCRITOS SOBRE A AMAZÔNIA.
Indubitavelmente, os escritos de Euclides sobre a Amazônia e seus personagens ocupam
lugar menor na recepção do conjunto de sua obra, marcada pelo assombro diante do que seria Os
Sertões. No já citado trabalho, Abreu mostra como a elevação dessa obra à categoria de clássico
teria marcado de forma definitiva a figura de seu autor e as interpretações e perspectivas
associadas a ele. Ou seja, pode-se entender a minuciosa pesquisa de Abreu como uma evidência
de que o pensamento euclidiano foi forjado através de inúmeras leituras e apropriações que se
focavam principalmente para a obra de 1902, erigida a totem de uma nova era da inteligência
nativa. Se a intelectualidade local apresentava-se dilacerada e tensionada, presa pelo aparato
disciplinador descrito por Costa Lima, assim também se mostrariam os euclidianos, debatendo-se
entre o elogio do sertanejo e a denúncia de sua condição.
Já os textos amazônicos constituíram, por assim dizer, um cânon menor, quase
regionalista. Marco Aurélio Paiva (Paiva, 2005) mostra como a produção reunida em À Margem
144
da História, publicada postumamente em 1909, marcou a representação literária da Amazônia.
Nesse sentido, relatos posteriores, produzidos por Alberto Rangel e outros engenheiros e
escritores, teriam que resolver o lugar dessa “pequena obra fundadora” nesse campo comum,
disputando sua significação e sua herança estilística e interpretativa. Nas suas palavras,
Mas a despeito de todas as querelas quanto à atribuição de maior ou menor
importância a autores variados para uma melhor compreensão da realidade
amazônica, foi a figura do autor de À margem da história a comandar e a definir
os desdobramentos literários envolvendo a região (...) logo estabeleceu-se um
divisor de águas: uma Amazônia anterior e uma outra posterior aos escritos de
Euclides da Cunha (Paiva, 2005, p.254).
Esta seção trata não de um resgate, mas de uma releitura. Respondo afirmativamente à
pergunta colocada ao final da seção anterior, e proponho que uma análise desses escritos pode
levar a um outro entendimento sobre o pensamento euclidiano e sobre o próprio estatuto da terra
na sua imaginação. Teríamos, no lugar de uma ontologia essencialista, obcecada pela
identificação de uma fundação étnica que nos desse um mito de origem, uma narrativa na qual o
espaço surge como um eficaz produtor de uma sociabilidade nova e inventiva, estranha a
essências. Sugiro também que essa interpretação deve extrapolar o tema da terra, recorrendo ao
problema euclidiano da “barbárie”. Se em Os Sertões este tema encontra-se fortemente
tensionado, nos textos agora analisados ele ganha outro registro, mais flexível. E, como sustento
a seguir, o paradigma sociológico que permite a Euclides vislumbrar esta abordagem está na
breve análise feita pelo autor a respeito da Rússia.
Antes de analisar mais detidamente o texto de Terra sem História, apresento a perspectiva
euclidiana sobre o caso russo, e o modo como ele pode estruturar uma leitura da Amazônia. Em
seguida, dedico-me ao texto “amazônico” propriamente dito, para em seguida analisar um escrito
do autor voltado para a questão das ferrovias sul-americanas, no qual sugiro que há mais material
para fundamentar a aproximação que faço entre Rússia e Amazônia. Finalmente, concluo
retomando o ponto que sustento desde o início da tese, e insiro o debate euclidiano na cartografia
intelectual que desenhei no primeiro capítulo.
145
4.2.1 O caso russo
“A Rússia é bárbara”: com esta frase simples, Euclides abre o breve texto “A Missão da
Rússia”, sobre a guerra russo-japonesa de 1905
74
. Fiel ao seu estilo narrativo povoado de
antinomias e fechos e aberturas inesperadas, o autor discorre longamente sobre o porquê da
Rússia ser a guardiã da civilização na referida guerra. Ora, segundo a clássica fórmula de
Sarmiento, civilização e barbárie são categorias opostas, expressões de uma dualidade básica no
próprio desenvolvimento da Humanidade. Como pode uma formação social bárbara ser a cabeça
de ponte na contenção da própria barbárie, representada aqui pela “ameaça asiática”? E pode o
seu exemplo encontrar algum paralelo na nossa própria geografia social? As respostas dessas
perguntas serão trabalhadas no capítulo, na expectativa de abrir uma porta para o entendimento
de uma interpretação possível para o Brasil – essa Rússia nas Américas – que escape tanto da
dura dicotomia entre civilização e barbárie, quanto da polarização entre Oriente e Ocidente.
O povo eslavo é definido no texto como um intermediário, portador de uma sociabilidade
que combina o sentimento cortesão próprio da “ritualidade latina” e a rudeza que caracterizaria o
tártaro. Seu espaço específico não seria a Europa, tampouco a Ásia, mas sim “(...) a Eurásia
desmedida, desatando-se, do Báltico ao Pacífico, sobre um terço da superfície da terra e
desenrolando no complanado das estepes o maior palco da história” (Cunha, 1995, p.164).
Percebe-se que Euclides localiza a Rússia numa geografia hesitante, comprimida entre figurações
clássicas do Ocidente e do Oriente. O eslavo seria, por esta definição, um tipo instável, carregado
de antinomias – não por acaso, como o nosso mestiço. Nas palavras do autor,
(...) um intermediário, um povo de vida transbordante e forte e incoerente,
refletindo aqueles dois estágios, sob todas as suas formas, da mais tangível à
mais abstrata, que desde uma arquitetura original, em que passa do bizantino
pesado para o gótico ligeiro e deste para a harmonia retilínea das fachadas
gregas – ao temperamento emocional e franco, a um tempo infantil e robusto,
paciente insofregado, em que se misturam uma incomparável ternura e uma
assombradora crueldade. (id, ibid, p.164).
74
Durante todo o capítulo, usarei uma edição das Obras Completas de Euclides, organizada por Afrânio Coutinho. A
edição tem dois volumes e abriga livros, ensaios, epistolário, juízos críticos e textos biográficos e bibliográficos.
Quando necessário, farei referência às datas em que os textos foram produzidos e/ou editados primeiramente.
146
Euclides aponta para a condição retardatária da Rússia, que teria surgido no cenário
histórico quando a Europa vivia o esplendor histórico da Renascença, guardando consigo sua
marca tártara e rude. Esta marca não tem sinal negativo no texto, pois os russos teriam
conseguido transfigurar essa “barbárie” de origem em energia moderna, graças ao influxo
ocidental. Não se trata, portanto, de uma apologia do singular per se, como se houvesse mérito no
atraso como trincheira de resistência. Se a Rússia ainda vive “uma Longa Idade Média” (id, ibid,
p.164), é essa condição que lhe possibilita “arrancar”. Afinal,
Ninguém pode prever quanto se aventurará um povo que, sem perder a energia
essencial e a coragem física das raças que o constituem, aparelhe a sua
personalidade robusta, impetuosa e primitiva, de bárbaro, com os recursos da
vida contemporânea (id, ibid, p.164)
É neste registro que Euclides analisa o grande florescer artístico russo, representado por
Turgueniev, Dostoievski, Tchekov e Tolstói: embora exemplares dos sentimentos populares, eles
não seriam emanações diretas da organização social do período. Os grandes temas dos romances
russos – infortúnio, solidão, indignação diante do despotismo, idealismo e niilismo – são
interpretados por Euclides como expressões da condição oprimida desta Rússia culta ameaçada
pelo czar. Trata-se, como se percebe, do elogio da regulação da barbárie pelo cultivo artístico e
pelo influxo ocidental. É isso que permite ao autor afirmar que “O seu temperamento bárbaro
será o guarda titânico invencível, não já da sua civilização, mas também de toda a civilização
européia” (id, ibid, p.167).
Interessante notar que a aposta de Euclides na Rússia como bastião civilizatório não se
identifica com o elogio do czarismo, mas com uma Rússia oprimida que não teria ainda
encontrado sua expressão dominante. Não se trata, portanto, de uma apologia conservadora, que
vê no Império Russo a fronteira oriental da Santa Aliança.
O fecho do texto ratifica o argumento: a civilização iria chegar ao Oriente de passagem
pelo Transiberiano, numa aposta no futuro deste “novo mundo do futuro” que se delimitaria pelo
Pacífico. Uma civilização que avançaria graças a um povo que teria dominado a barbárie, mas
que ainda conservaria consigo os seus melhores atributos. Delineia-se a idéia de que haveria um
caminho civilizatório que prescindiria da moldura moral da sociabilidade burguesa clássica,
147
identificada aqui com o ideal cortesão. Afinal, a Rússia encerraria as melhores promessas do
mundo ocidental porque é bárbara, e não a despeito. Vê-se que a polaridade entre civilização e
barbárie é dissolvida em prol de um andamento que integra o segundo pólo como elemento
dinamizador do primeiro. Um argumento da “vantagem do atraso”, mas sem o tema da ruptura, já
que o processo narrado se desenrola em marcha lenta.
4.2.2. Terra, história e espaço.
Nesta seção me dedico à primeira parte de À Margem da História
75
– “Terra sem
História” – texto no qual Euclides analisa o processo de ocupação desta região, destacando a
geografia, a hidrografia, os movimentos migratórios e os embates em torno da organização da
vida social. Segundo seu mais recente biógrafo, Roberto Ventura, Euclides pretendia escrever um
livro exclusivamente sobre a Amazônia, que se chamaria O Paraíso Perdido, referência ao
clássico poema de Milton (Ventura, 2003). A oportunidade teria surgido com o convite feito pelo
Barão de Rio Branco, em 1904, que o queria como chefe da comissão brasileira de
reconhecimento do Alto Purus, destinada a desbravar os caminhos do rio e estabelecer
definitivamente os limites fluviais entre Brasil e Peru. A viagem foi feita em 1905, a partir de
uma escala em Belém. Foi a última grande viagem de Euclides pelo interior brasileiro.
O primeiro ponto a se destacar é o próprio título, que evoca de forma direta o tema mais
geral desta tese. Terra sem História, a Amazônia seria melhor capturada e decifrada pelo recurso
à imaginação espacial que caracteriza o autor, e que parece melhor operar em regiões e áreas
onde o dinamismo da transformação histórica se processa lentamente, num andamento dado pelo
avançar da própria terra. Como mostrarei mais adiante, são vários os trechos em que ela surge
como protagonista, como elemento principal na mobilização do argumento, e não como mero
cenário. Mais do que isso, terra implica uma moldura moral própria. Nas palavras de Ventura,
A imagem do deserto aproxima a floresta tropical da caatinga, do semi-árido, os
sertões baianos dos amazônicos. O deserto traz, para Euclides, as marcas do
75
A obra À Margem da História foi editada postumamente, um mês após a trágica morte de Euclides, em 1909.
Como as provas foram devolvidas em 25 de julho do mesmo ano aos editores Lello & Irmãos, pode-se inferir que
esses escritos representariam a fase final do pensamento euclidiano.
148
isolamento geográfico e da ocupação rarefeita. Terra de ninguém, lugar da
inversão de valores, da barbárie, da incultura (Ventura, 2003, p.237).
Nesta terra sem história, o homem é “um intruso impertinente” (Cunha, 1995, p.49). A
primeira seção do texto é dedicada à descrição geográfica e à fixação do caráter errante e
misterioso da Natureza. Mais do que um rigoroso inventário físico da Amazônia, Euclides parece
preocupado em desvendar o sentido geral desta terra, captar-lhe sua marca constituinte e entender
o sentido de seu movimento. Tarefa inglória, porque se trata de fixar o inacabado, pois “(...) a
natureza é portentosa, mas incompleta. É uma construção estupenda a que falta toda a decoração
interior” (id, ibid, p.250). É freqüente a constatação do autor da incapacidade dos registros
científicos conhecidos de traduzirem com exatidão o caráter singular e movediço da terra
amazônica, por se deixarem levar pela imaginação e pela fantasia. Neste sentido, a aproximação
entre Euclides e Humboldt, negada por alguns especialistas, parece agora fazer sentido. De
acordo com Lúcia Ricotta (Ricotta, 2003), o pensador alemão se caracterizaria por uma
concepção científica impregnada de romantismo, que o levaria a ver a Natureza não como cenário
a ser decomposto analiticamente e meramente explicado, como se fosse um reino desencantado e
acessível meramente pela sua mecânica. Tratar-se-ia de expressar esteticamente o sentido do
cenário natural, e de possibilitar ao público a comunicação efetiva da experiência vivenciada. Se
Ricotta vê Euclides distante deste paradigma, parece-me que o hiato arrefece sensivelmente nos
textos aqui analisados. A Natureza amazônica não é povoada apenas por significados românticos,
mas o próprio instrumental euclidiano mostra-se mais aberto para um objeto que resistira à mera
descrição positiva. Paiva trilha caminho semelhante ao destacar que o cenário fugidio da
Amazônia implicaria uma outra atitude cognitiva. Nas suas palavras,
Não uma natureza estável e previsível nas suas ondulações, mas uma natureza
úmida e ‘movediça’. Era ela, essa natureza ímpar na sua manifestação
desordenada que, em última instância, acabava por determinar e configurar as
distintas ações humanas que se desenrolavam nesse ambiente sempre em
mutação; mutação essa que, ao se desdobrar também para as ações humanas,
acabou por fazer com que Euclides utilizasse de modo recorrente como metáfora
da região a imagem de um quadro emoldurado por uma armação quebrada e
apenas esboçado e repetidamente retocado por um artista insatisfeito (Paiva,
2005, p.55).
Neste ponto, pode-se voltar ao tema proposto por Costa Lima na primeira seção do
capítulo: a relação entre ciência e terra, mal resolvida em Os Sertões, é mais bem equacionada
149
nos escritos amazônicos, graças à abertura do autor para a dignidade dos novos objetos de
conhecimento. Essa hipótese é sustentada por Ventura:
Toda cartografia e interpretação da Amazônia serão sempre tentativas, ensaios
de captação de um objeto em perpétua mutação. O estilo e a cognição giram, em
tais textos, como espirais em torno do inapreensível. A vegetação labiríntica e o
emaranhado dos rios encontram expressão em uma sintaxe igualmente sinuosa
(Ventura, 2003, p.246-247).
A adoção de uma atitude cognitiva mais aberta e flexível, capaz de incorporar uma
dimensão menos tributária da descrição “fixadora”, é evidenciada num texto posterior, escrito em
1907 para o preâmbulo do livro O Inferno Verde, de autoria de seu colega Alberto Rangel. No
texto, Euclides elogia o trabalho quase “estético” do autor, que teria entendido que a Amazônia
demandaria uma escrita nova, capaz de dar conta do “maravilhoso”. Nesse registro, seria
necessário um sujeito cognoscente distinto, capaz de ler os segredos da terra, que seria como uma
última fronteira da História Natural. Segundo Euclides, “Para vê-la deve renunciar-se ao
propósito de descortiná-la” (Cunha, 1995, p.493). Ou ainda: “A geologia dinâmica não se deduz,
vê-se; e a história geológica vai escrevendo-se, dia a dia, ante as vistas encantadas dos que
saibam lê-la” (id, ibid, p.495). A fluidez total da Amazônia não seria obstáculo à apreensão
científica, desde que adotássemos um arsenal interpretativo capaz de dar conta da “(...) terra
moça, a terra infante, a terra em ser, a terra que ainda está crescendo” (id, ibid, p.494).
Voltando à própria investigação desenhada por Euclides, pode-se perceber que o mesmo
já se mostra preocupado em captar aspectos fugidios do objeto, em especial a flexibilidade da
terra. A Amazônia seria um território mutante, que viaja pelo espaço numa velocidade
destruidora, apagando seus próprios vestígios e escapando à investigação científica. Seus rios
movem-se, transformam-se, e todos os seus elementos naturais parecem marcados pelo caráter
errante. Nas palavras de Euclides,
(...) A terra abandona o homem. Vai em busca de outras latitudes. E o
Amazonas, nesse construir o seu verdadeiro delta em zonas tão remotas do outro
hemisfério, traduz, de fato, a viagem incógnita de um território em marcha,
mudando-se pelos tempos adiante, sem parar um segundo, e tornando cada vez
menores, num desgastamento ininterrupto, as largas superfícies que atravessa (
Cunha, 1995, p.254).
150
O primeiro choque civilizatório descrito por Euclides nessa terra não é positivo. Numa
geografia rude e errante, os primeiros assentamentos seriam transfigurados e descaracterizados,
como pequenas insolências destinadas a sucumbir diante da “força da terra”. No registro do autor
Esforços vãos. As partidas demarcadoras, as missões apostólicas, as viagens
governamentais, com as suas frotas de centenas de canoas, e os seus astrônomos
comissários apercebidos de luxuosos instrumentos, e os seus prelados, e os seus
guerreiros, chegavam, intermitentemente, àqueles rincões solitários, e armavam
rapidamente no altiplano das “barreiras” as tendas suntuosas da civilização em
viagem. Regulavam as culturas; poliam as gentes; amorfoseavam a terra (id,
ibid, p.256).
No trecho acima, encontram-se temas caros ao pensamento euclidiano. Em primeiro lugar,
o dilema entre homem e terra. Esta surge, invariavelmente, como ator principal de seus enredos,
elemento-chave no entendimento dos dramas humanos escolhidos como objeto. No argumento
desenvolvido nesta tese, essa seria uma marca da imaginação espacial que mobiliza lugares como
imagens para a reflexão da modernização em condições periféricas. Os homens aqui entram num
segundo momento, como que esmagados pelo peso que a Natureza exerce sobre os sujeitos em
sociedades ainda não plenamente desencantadas pela ciência e pelo domínio do meio físico.
Nesse tipo de argumento sociológico, a economia explicativa é fortemente geográfica. Um outro
tema diz respeito ao problema da afirmação da civilização em lugares marcados por esta “força
da terra”. Na argumentação do autor, a simples transposição de valores e práticas exógenas para
um cenário agressivo e rude invariavelmente redunda em fracasso. A “civilização em viagem”
“polia” e “amorfoseava”, verbos característicos de uma sociabilidade que via o cenário bárbaro
como massa bruta a ser moldada por um código refinado de conduta. O processo civilizador,
nessas paragens, não poderia se pautar por tal economia moral, sob risco de criar uma “(...)
paragem estranha onde as próprias cidades são errantes, como os homens, perpetuamente a
mudarem de sítio, deslocando-se à medida que o chão lhes foge roído das correntezas, ou
tombando nas ‘terras caídas’ das barreiras” (id, ibid, p.256).
Como se viu na Introdução, o historiador Simon Schama (Op.cit) trabalhava o tema da
paisagem segundo uma abordagem na qual a natureza é constantemente trabalhada pela
perspectiva cultural humana, que dá forma à massa bruta e confere camadas de significação ao
cenário natural, imputando-lhe sentidos que se relacionam com a memória de povos e sociedades.
151
Na América, por exemplo, o imaginário construído em torno da floresta (representada
especialmente por sequóias e carvalhos, árvores típicas do país) associaria as noções de divindade
e liberdade, como se aquele glorioso mundo vegetal fosse expressão de um Éden humanizado que
transfiguraria as idéias fundadoras americanas numa representação natural. Em outro registro,
mas tratado de tema correlato, Williams (Williams, 2000a) mostra como as narrativas literárias
inglesas sobre o campo progressivamente o idealizaram enquanto paisagem bucólica, jardim
harmonioso cultivado por homens simples e nobres, ao mesmo tempo em que as relações
capitalistas penetravam de forma irresistível nesse cenário. Se pensarmos o campo inglês,
marcado pela sensibilidade gentry, e a floresta americana, terreno de uma religiosidade que se
acreditava livre e expansiva, perceberemos que a Amazônia euclidiana pode também ser
entendida como expressão de uma poderosa imaginação que imputa ao mundo natural
significados próprios do nosso processo civilizador: a idéia de uma terra sem História, deserto
inculto e rude, exemplo de cenário não catalogado pelo imaginário clássico. Um meio que,
segundo o autor, demandaria outras formas de sociabilidade e outras perspectivas de
decodificação. Para retomar a tese de Costa Lima, tratar-se-ia de reconhecer o “incógnito” e
permitir-lhe a livre expressão. No caso desta tese, trata-se de reconhecer nessa expressividade
chaves possíveis para a afirmação de um caminho modernizador que não implique a mera
transplantação de uma forma civilizadora exógena, mas que reconheça as propriedades da terra.
Como a questão acima é desenvolvida no texto? Repete-se, inicialmente, conhecido ponto
da reflexão euclidiana e da própria imaginação social brasileira
76
: aquela que conflita homens e
Natureza, esta figurando como adversário temido e força irreprimível que oprime os personagens.
Este ponto, como se sabe, ocupa posição de destaque nas nossas narrativas fundadoras, nas quais
o Novo Mundo se assemelha a um lugar encantado com personalidade própria
77
.
O fecho da seção não é animador. Depois de traçar a mecânica da relação homem-terra,
em que o nomadismo estéril daquele se explica pela inconstância desta, Euclides afirma que
“Daí, em grande parte, a paralisia completa das gentes que ali vagam, há três séculos, numa
76
Trabalho mais detidamente o tema da terra na imaginação brasileira ao longo do primeiro capítulo desta tese.
77
Para um registro negativo do tema, o melhor exemplo é Paulo Prado. Em Retrato do Brasil, a terra surge associada
a valores negativos, como a preguiça, a tristeza e a melancolia. Note-se que a relação entre Natureza e melancolia
pode abrigar outros significados, como nos escritos de Ronald de Carvalho, trabalhado em capítulo anterior.
152
agitação tumultuária e estéril” (Cunha, 1995, p.258). Em seguida, a descrição do regime de
trabalho reforça o caráter “infernal” assumido pelo texto. Contratos irreais, exploração de mão-
de-obra e aprisionamento do homem por dívidas compõem o cenário de uma vida social pautada
pelo nomadismo e pela incapacidade do trabalho exercer qualquer efeito moralizador sobre os
personagens.
A longa seção intitulada “Rios em Abandono” retoma o tema da relação homem-meio.
Euclides argumenta que a hidrografia intrincada da região configuraria uma geografia abundante,
mas pouco afeita ao controle econômico racional. Os homens, no lugar de se assenhorearem da
terra por meio da técnica e da ciência, prefeririam a ela se adaptar, vagando continuamente por
terrenos acidentados e tortuosos. O contraste no texto é construído em torno dos rios
“perdulários”, velozes e destruidores, e os personagens que resistiriam a quaisquer
melhoramentos
78
na área. No registro do autor,
Porque os homens que ali mourejam (...) nunca intervêm para melhorar a sua
única e magnífica estrada; passam e repassam nas paragens perigosas; esbarram
mil vezes a canoa num tronco caído há dez anos junto à beira de um canal;
insinuam-se mil vezes com as maiores dificuldades numa ramagem revolta
barrando-lhes de lado a lado o caminho, encalham e arrastam penosamente as
canoas sobre os mesmos “salões” de argila endurecida (...) (id, ibid, p.268).
O tema da vastidão hidrográfica é trabalhado novamente em “Um Clima Caluniado”. A
terra novamente surge como protagonista, e é descrita como “fisionomia singular”, geografia
desmedida e ainda pouco controlada, seja pelo olhar, seja pela ciência. Interessante notar como
Euclides associa essa geografia a uma terra nova, ainda em ser, ou como ele diz: “A terra é,
naturalmente, desgraciosa e triste, porque é nova. Está em ser. Faltam-lhe à vestimenta de matas
os recortes artísticos do trabalho” (id, ibid, p.272). Na contemplação da paisagem vasta e pouco
detalhada, os homens sentiriam nostalgia de formas familiares que pudessem fazer sentido para
suas imaginações. Afinal, a Amazônia não seria uma “paisagem culta”, cenário amigável capaz
de despertar na mente reminiscências e associações com experiências clássicas e ancestrais. Esta
terra, insondável para os olhares cultos, demandaria uma outra forma de apropriação, que não
aquela regulada pela sociabilidade civilizada. Vale a longa citação:
78
O termo “melhoramentos” era característico da linguagem dos engenheiros, e costuma referir-se a um conjunto de
intervenções urbanas que visam promover maior civilidade e controle sobre as condições físicas do meio.
153
Desaparecem as formas topográficas mais associadas à existência humana. Há
alguma coisa extraterrestre naquela natureza anfíbia, misto de águas e de terras,
que se oculta, completamente nivelada, na sua própria grandeza. E sente-se bem
que ela permaneceria para sempre impenetrável se não se desentranhasse em
preciosos produtos adquiridos de pronto sem a constância e a continuidade das
culturas. As gentes que a povoam talham-se pela braveza. Não a cultivam,
amorfoseando-a: domam-na. O cearense, o paraibano, os sertanejos nortistas, em
geral, ali estacionam, cumprindo, sem o saberem, uma das maiores empresas
destes tempos. Estão amansado o deserto. E as suas almas simples, a um tempo
ingênuas e heróicas, disciplinadas pelos reveses, garantem-lhes, mais que os
organismos robustos, o triunfo da campanha formidável (id, ibid, p.273).
Se a primeira notação de Euclides sobre o encontro entre homem e terra na Amazônia
guardava contornos negativos, neste caso o registro muda de figura. Para uma terra não culta e
avessa a formas de regulação refinadas, far-se-ia necessária uma ação firme, de domínio resoluto
de homens “simples”, capazes de “amansarem o deserto”. Homens, de certa maneira, afeitos às
configurações desta própria terra, e não estranhos a ela. A discussão euclidiana ganha nuances
ricas: ao apresentar a ocupação da Amazônica, o autor parece opor duas formas distintas de
condutas dos personagens. A primeira seria marcada por um agir civilizado, alimentado por um
código moral regulado abstratamente. A outra caracterizada por um agir adaptado, próprio de
homens capazes de “domar” a terra, e não meramente de “cultivá-la”. Se pensarmos em
“domínio” e “cultivo” como expressões de formas diferentes da construção de personalidade,
estaremos nos aproximando do ponto desenvolvido no capítulo. Segundo Euclides,
Abra-se qualquer regulamento de higiene colonial. Ressaltam a mais breve
leitura os esforços incomensuráveis das modernas missões e o seu apostolado
complexo que, ao revés das antigas, não visam arrebatar para a civilização a
barbaria transfigurada, senão transplantar, integralmente, a própria civilização
para o seio adverso e rude dos territórios bárbaros (id, ibid, p.275. itálico meu)
Barbaria transfigurada: nem eliminação da barbárie, nem condenação da mesma ao
aniquilamento físico e espiritual, mas transfiguração. No lugar da dicotomia dura entre
civilização e barbárie, a percepção de que o elemento arcaico é mecanismo dinamizador,
expressão passível de ser incorporada no projeto civilizador. Em sociedades marcadas pelo peso
da terra, a civilização não pode ser produzida pela imaginação ou pela política. Ela tem
andamento geográfico e sociológico, mobilizando formas de sociabilidade próprias, gestadas pela
154
própria ação lenta desse personagem especial
79
. Daí um primeiro elogio ao tumultuado processo
de colonização do Acre, evidenciando um caminho distinto para o processo civilizador nacional:
Ora, comparando-se estas colonizações adstritas às cláusulas de rigorosos
estatutos – e de efeitos tão escassos – com o povoamento tumultuário, com a
colonização à gandaia do Acre – de resultados surpreendentes – certo não se faz
mister registrar um só elemento para o acerto de que o regime da região
malsinada não é apenas sobradamente superior ao da maioria dos trechos recém-
abertos à expansão colonizadora, senão também ao da grande maioria dos países
normalmente habitados. (id, ibid, p.275).
Note-se que a barbárie tem dupla dimensão. Ao descrever o povoamento do Acre,
Euclides observa que as formas de vida ali produzidas são rudimentares e pouco animadoras. Os
primeiros povoadores teriam perdido boa parte do tempo em empreitadas inúteis, atividades
solitárias e pouco eficientes, além de se escravizarem ao trabalho. Isolados e abandonados, esses
pioneiros teriam pago o tributo de sua longa viagem em jornadas de trabalho exaustivas, cujos
dividendos seriam diretamente destinados para a liquidação de dívidas que sempre se
avolumavam. Segundo Euclides,
Há um laivo siberiano naquele trabalho. Dostoievski sombrearia as suas páginas
mais lúgubres com esta tortura: a do homem constrangido a calcar durante a
vida inteira a mesma ‘estrada’, de que ele é o único transeunte, trilha
obscurecida, estreitísima e circulante, ao mesmo ponto de partida. (id, ibid,
p.278).
Nesse registro, a barbaria seria escravidão, prisão do homem na terra e formação de uma
vida moral anômala, na qual a vastidão física da terra e sua resistência ao homem associar-se-iam
à degradação moral. Na Amazônia siberiana, a Rússia surge como exemplo de insolidariedade
social e de ausência de vida civil estável.
Contudo, esses estranhos personagens finalmente conseguiriam se estabilizar através de
uma relação adaptativa com a terra. Disciplinados pelos fracassos e pela opressão da terra e do
79
Euclides observa que a relação de “afinidade eletiva” entre a terra e o homem é comum em todo o globo, mas
ganha contornos especiais nos trópicos, onde ela se faz mais aguda
79
. É o fenômeno da aclimação, da seleção
telúrica. A terra opera uma verdadeira seleção sobre os personagens, esmagando os “fracos” e aceitando o domínio
dos perseverantes. Evidente aqui a mobilização de argumento neoevolucionista de cunho darwinista, que enfatiza a
luta e a seleção do meio.
155
trabalho, os heróicos homens simples seriam agora os protagonistas da civilização. Não perfazem
uma raça específica: são jagunços, dotados da “abstinência pastoral e guerreira do árabe”, sírios,
italianos etc. O ponto não é a fixação de um tipo específico, mas a confirmação de que a terra
moldaria moralmente novos homens. E, para além do argumento científico, destaca-se o tema da
“transfiguração da barbárie”. A evolução adaptativa, argumento evolucionista mobilizado por
Euclides, ganha outros contornos quando referido a esta periferia da civilização, na qual a
barbárie é energia dinamizadora e a terra não é paisagem “culta”, mas força ativa que resiste ao
cultivo. A terra está aqui associada a outro código moral, variante no processo de modernização
ocidental,
80
assemelhada ao caso russo analisado por Euclides, no qual a regulação da barbárie
teria garantido uma vantagem civilizatória. “O primeiro explorador vai, afinal, ajustando-se ao
solo sobre o qual pisou durante tanto tempo indiferente” (id, ibid, p.279). Após esse período de
sofrimento, morte e escravização, os homens finalmente lograriam adaptarem-se às novas e
estranhas paragens, marcadas pelo “clima caluniado”. No registro de Euclides,
Em Catiana, em Macapá, como nas demais a montante, até a última, Sobral, com
a minúscula plantação de cafeeiros que lhe bastam ao consumo, nota-se em tudo,
da pequena cultura que se generaliza, aos pomares bem cuidados, o esforço
carinhoso do povoador que amorfoseia a terra para não mais a abandonar. E os
homens são admiráveis (id, ibid, p.280).
O final dessa seção do texto euclidiano é dedicado a mostrar como personagens fortes das
mais diversas origens étnicas teriam conseguido sobreviver, trabalhar e prosperar, numa espécie
de seleção natural exercida pelo clima e pelas terríveis condições naturais. Ao contrário dos
mestiços de Os Sertões, cujas formas de sociabilidade pareciam fixadas num “tempo remoto” que
seria incompatível com a marcha do progresso, os personagens amazônicos seriam afeitos à
racionalização mínima da atividade produtiva. Ou seja, a terra aqui não está associada a um tipo
específico, como o sertanejo de Canudos, a “rocha viva da nacionalidade”, mas surge antes como
uma espécie de força nova (afinal, a Amazônia é “terra sem História”) que educa, moraliza e
inventa. Esse novo meio “Policiou, saneou, moralizou. Elegeu e elege para a vida os mais dignos.
80
A percepção trabalhada no decurso desta tese, segundo a qual a terra é uma moldura moral que transcende a
própria circunscrição física analisada por Euclides, é também sugerida por Ventura. Ao analisar brevemente o tema
do sertão na obra euclidiana, argumenta que a etimologia da palavra vem do português antigo, significando
“desertão, deserto imenso”. Nesse registro, o ponto principal não estaria nas especificidades amazônicas, mas antes
na sua caracterização como uma “terra sem história”, ao largo da escrita e da História. Para esse intérprete, é como se
Euclides estivesse acrescentando mais um elemento no quadro geográfico-civilizatório traçado por Hegel.
156
Eliminou e elimina os incapazes, pela fuga ou pela morte” (id, ibid, p.281). O argumento de sabor
darwinista, assentado na idéia de seleção, abre passagem para a percepção de uma geografia
social marcada pelo trabalho e pela presença de homens que combinariam um fatalismo siberiano
e um ativismo persistente.
Interessante, portanto, notar a dupla face desses sertanejos e seringueiros. São, ao mesmo
tempo, heróis e escravos. Um heroísmo que se afasta das clássicas noções do homem honrado,
galante aventureiro e conquistador (que, no texto de Euclides, será associada ao chamado
caucheiro), pois contempla o personagem medíocre, que passa boa parte do tempo preso no seu
próprio meio. Esse é um dos sentidos da aproximação russa traçada por Euclides e trabalhada
neste capítulo. Vejamos mais do cotidiano destes personagens na seção “Judas-Asvero”, na qual
o autor analisa uma tradicional festa religiosa brasileira na “terra sem história”. Segundo
Euclides, a relação desses homens com a religião seria marcada pelo fatalismo e pela resignação.
Nas suas palavras,
Mas não se rebelam, ou blasfemam. O seringueiro rude, ao revés do italiano
artista, não abusa da bondade de seu deus desmandando-se em convícios. É mais
forte; é mais digno. Resignou-se à desdita. Não murmura. Não reza. (...)
Domina-lhe o critério rudimentar uma convicção talvez demasiado objetiva, ou
ingênua, mas irredutível, a entrar-lhe a todo instante pelos olhos adentro,
assombrando-o: é um excomungado pela própria distância que o afasta dos
homens; e os grandes olhos de Deus não podem descer até àqueles brejais,
manchando-se. (id, ibid, p.293).
Conforme argumentei no primeiro capítulo, a questão camponesa ocupou boa parte da
imaginação russa ao longo das últimas décadas do século XIX, sob influência dos chamados
niilistas e dos populistas. De início, a questão foi tratada no âmbito dos embates entre eslavófilos
e ocidentalistas, em que os primeiros viam o mir (organização político-comunal dos camponeses)
como reduto da tradição russa e bastião de uma autenticidade que deveria ser resguardada diante
do processo modernizador. Nesse registro, a tradição seria barreira, resistência. A radicalização
da intelectualidade, propiciada pela forte repressão czarista e pelo próprio intercâmbio com os
movimentos revolucionários ocidentais altera esta percepção regressista do mundo rural. Os
populistas russos viam nas instituições tradicionais um modelo de uma nova forma de
sociabilidade, uma alternativa socialista que abrigaria a tradição, e não uma resistência a ser
157
varrida, muito menos uma relíquia a ser isolada. O debate sobre o camponês e seu modo de vida
dominou a agenda da chamada intelligentzia, e era comum a percepção algo ambígua desse
personagem: filho da terra, a ela preso, isolado em grandes vastidões, mas ainda assim possível
parteiros da nova ordem. A sociologia deste grupo assemelha-se, em muito, a dos nossos
sertanejos desenhados por Euclides. O quietismo e o fatalismo religioso são características
básicas dos personagens rurais analisados pela literatura russa. Em estudo sobre o tema, Wanda
Bannour afirma que
La Russie, terre paysane, se déploie à l’infini, des riches et grans terres des
tchernozions d’Ukraine aux forêts de bouleaux oú gîtent dans les arbres des
moines ascètes et à la taîga (sobrement et fortement évoquée par Korolenko) ou,
dans les Cris des oiseaux sauvages, court le vent. Le paysan russe est um fils de
la terre, cette terre dans laquelle s’enforce lourdement son pied nu, terre qui,
come dans le Sacre du printemps de Stravinsky, impose à sas vie des rythmes
telluriques (Bannour, 1978, p.32).
Tanto na Rússia dos niilistas, quanto na Amazônia de Euclides, a aposta está em homens
fortes, rudes, marcados pelo fatalismo e pelo isolamento social imposto pelas vastidões a que
estão submetidos, mas ainda assim os únicos capazes de “domar o deserto” são os personagens
que conseguem se amoldar a terra, e não sucumbir a ela.
Não se trata, decerto, do elogio ao bárbaro. Numerosas páginas do estudo amazônico de
Euclides são dedicadas ao caucheiros, personagens originários das selvas peruanas
81
que
povoariam com extrema violência a terra estudada. A personalidade do grupo seria moldada à
semelhança de sua atividade extrativa, como a descreve o autor:
O caucheiro é forçadamente um nômade votado ao combate, à destruição e a
uma vida errante ou tumultuária, porque a castiloa elástica, que lhes fornece a
borracha apetecida, não permite, como as heveas brasileiras, uma exploração
estável, pelo renovar periodicamente o suco vital que lhe retiram (Cunha, 1995,
p.283).
81
Os caucheiros eram personagens nômades, que ocupavam a região fronteiriça amazônica em que Euclides estava.
A atuação violenta desses homens, e os próprios choques entre eles e os seringueiros brasileiros eram exemplos do
problema de fronteiras entre Brasil e Peru, terminando por motivar uma ação diplomática mais incisiva por parte do
Itamaraty.
158
O agir dos caucheiros seria caracterizado pela errância de sua própria atividade (a
extração do caucho) e os seus povoados são marcados pela espoliação e pela ausência de
racionalidade. Numa primeira observação, Euclides destaca o aspecto superficial dos vilarejos, os
símbolos de um mínimo de civilidade – jornais, copos de cerveja e demais indicadores de uma
sociabilidade urbana plantada no meio da “terra sem história”. Contudo, logo o autor trata de
desmontar essa impressão, apontando a exploração que envolve o regime de trabalho dos
mestiços e indígenas, e a ausência de regularidade na extração do caucho. Euclides introduz o
paralelo entre caucheiro e bandeirante, como duas formas polares de lidar com a barbárie e com o
deserto.
Os caucheiros seriam, antes de tudo, conquistadores em movimento. Armados com rifles
e carabinas Winchester, varariam o deserto verde em busca de índios para escravizar e locais para
exploração, configurando uma forma civilizatória marcada por irregularidade, superficialidade e
ausência de uma economia moral estável que organize uma vida social produtiva. Se os
caucheiros seriam nômades irrequietos e animados por uma lógica de conquista sobre a terra, os
sertanejos e demais personagens “siberianos” descritos por Euclides lograriam constituírem-se
em homens capazes de atividades rotinizadas (e, portanto, racionalizadas), organizando seus
comportamentos por uma lógica do trabalho amoldada à terra. Se ambos possuiriam uma
dimensão “bárbara” e não civilizada, aqueles representariam uma variante instável e pouco afeita
a uma regulação civil, enquanto estes a transformariam numa energia produtiva. É constante em
Euclides a percepção da ausência de homogeneidade moral nos caucheiros:
Realmente, o caucheiro não é apenas um tipo inédito na história. É, sobretudo,
antinômico e paradoxal. No mais pormenorizado quadro etnográfico não há
lugar para ele. A princípio figura-se-nos um caso vulgar de civilizado que se
barbariza, num recuo espantoso em que lhe apagam os caracteres superiores das
formas primitivas da atividade (id, ibid, p.288).
O caucheiro combinaria, na mesma figura, a civilização e a barbárie, mas sem uma
resolução sintética que permitisse uma modelagem homogênea de personalidade. Seria um caso
de dualidade moral
82
, em que o mesmo personagem aventureiro e conquistador mostrar-se-ia
82
A obra de Max Weber constitui-se numa das mais frutíferas tentativas de entender o processo de racionalização
que caracterizaria o Ocidente, e que seria justamente responsável pela formatação de uma ética única, animada por
poderoso código moral. A persistência de éticas dúplices, pouco propensas à formação de personalidades
159
capaz de inúmeras torpezas no trato com seus subordinados e com sua própria atividade. De
acordo com Euclides, “É um caso de mimetismo psíquico de homem que se finge bárbaro para
vencer o bárbaro. É Caballero e selvagem, consoante as circunstâncias” (id, ibid, p.288). Dizendo
de outra forma, “A selvageria é uma máscara que ele põe e retira à vontade” (id, ibid, p.289).
Nesse ponto do texto, Euclides introduz outra figura nessa tipologia de “homens da terra”:
o bandeirante, que será explorado em ensaios posteriores, e que representaria o caso típico dessa
possibilidade de dominar o deserto de forma racional e lógica. No lugar do “aventureiro”, o “(...)
super-homem do deserto” (id, ibid, p.289). Sua atividade conquistadora não seria marcada pelo
nomadismo e pela ausência de regularidade que caracterizariam o caucheiro. O heroísmo do
bandeirante é “ (...) brutal, maciço, sem frinchas, sem dobras, sem disfarces” (id, ibid, p.289). De
certa maneira, o caucheiro que sai das páginas de Euclides assemelha-se aos seguidores dos
caudilhos gaúchos descritos por Sarmiento. Dotado de um individualismo bárbaro e nômade,
mostra-se incapaz de criar qualquer vida social regular e civilizada, optando sempre pela eterna
conquista efêmera. Até seus valores os aproximam dos personagens meridionais do drama
argentino: “O caucheiro é irritantemente absurdo na sua brutalidade elegante, na sua galanteria
sanguinolenta e no seu heroísmo à gandaia. É o homúnculo da civilização” (id, ibid, p.289).
De um modo geral, o texto euclidiano apresenta dois personagens principais: o caucheiro
e o seringueiro. O bandeirante representaria um tipo extremo de relação homem-terra, talvez um
horizonte para o próprio ativismo dos seringueiros, um personagem exemplar que será retomado
pelo autor em outras passagens. As questões relevantes residem nas distintas maneiras como a
barbárie é regulada, assim como a relação entre homem e terra. O caucheiro seria o nômade
belicoso, herói galante e sequioso de glórias e riqueza, mas incapaz de edificar qualquer ordem
social válida sobre esses valores
83
. Um Caballero que, por vezes, vestiria a máscara da barbárie.
Já o seringueiro seria marcado pelo quietismo e pelo fatalismo. Personagens isolados e
homogêneas e voltadas para o agir rotinizado no mundo, seria própria de tipos “aventureiros” – como os caucheiros.
Contudo, a interpretação weberiana é indissociável de sua Sociologia da Religião. No caso de Euclides, trata-se de
um processo movido pela força da “terra”, e percebido e interpretado pela linguagem da imaginação espacial sobre a
qual esta tese se debruça. Um autor que trabalhou de forma interessante a ausência de idéias morais fortes na
modernização brasileira foi Jessé Souza (Souza, 2003). Segundo ele, esse processo mover-se-ia antes pela expansão
das instituições modernas – Estado e mercado – sem um arcabouço moralizador comum, o que lhe permite construir
a idéia de uma “modernização seletiva”. Voltarei a este ponto no capítulo 6 da tese.
83
Para uma discussão com registro negativo da fidalguia ibérica, que em muito se assemelha ao que Euclides aqui
apresenta, ver os capítulos iniciais de “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda.
160
estacionários, por vezes assemelhados a figuras de Dostoievski, ao mesmo tempo são os que
conseguiram “domar o deserto”, criando pela força de sua persistência as condições mínimas para
uma vida civilizada. São os que conseguiram “transfigurar a barbárie”, e não preservá-la intacta
como uma arma eventual na submissão do Outro. Se o caucheiro
84
é um civilizado que chafurda
na barbárie, o sertanejo nortista é o homem que conseguiu regulá-la, num lento processo de
aclimatação à própria terra sem história. Não são personagens conquistadores que submetem de
forma irracional o mundo seu redor, mas antes “domadores” aptos a viver numa paisagem
“inculta”.
Interessante notar que o tema dos civilizados que se perdem na barbárie é um dos
principais temas de “Os Sertões”, obra na qual o enredo se desenrola tal qual uma tragédia, dada
a percepção da inexorabilidade da marcha civilizatória e seu desenlace brutal. Euclides parece
afirmar que, se a civilização é um processo fatal, ao qual estamos condenados, o drama de
Canudos é por sua vez erro trágico, no qual as tropas republicanas agem como bárbaros violentos.
Nesse sentido, os agentes do moderno se assemelham aos caucheiros, vestindo as máscaras da
barbárie sob o impulso de um comportamento pouco racionalizado.
A ambigüidade de que fala Costa Lima em sua rigorosa crítica a Euclides parece se
resolver, ao menos parcialmente, nos textos amazônicos do autor. Afinal, no livro de 1902 a
polaridade entre civilização e barbárie é desmontada, mas sem que se aponte um caminho
alternativo à tragédia para o encaminhamento do dilema. A percepção de que estaríamos
“condenados à civilização” paga tributo às concepções evolucionistas do autor, mas não abre
espaço para a visualização de uma alternativa menos inflexível para a afirmação da civilização.
Ou seja, a fixação do mestiço como “rocha da nacionalidade” choca-se com o diagnóstico de
avanço da civilização, como se esse segundo processo fosse incompatível com as formas de vida
que representariam nossa nacionalidade Nos escritos aqui trabalhados, a alternativa pode ser
vislumbrada pelo recurso ao paradigma russo, que o autor vislumbrou, mas não desenvolveu
completamente: a regulação da barbárie e sua mobilização como recurso modernizador. Para
84
Se entendermos o caucheiro não apenas como um tipo étnico particular, mas como um tipo social mais geral, é
possível aproximá-lo da fabulação de Paulo Prado a respeito dos personagens que teriam povoado o Brasil e formado
a Nação. Afinal, luxúria, cobiça, predação e Romantismo poderiam ser chaves de entendimento tanto para os
peruanos quanto para o “povo triste” que vive numa “terra radiosa”.
161
reforçar este ponto, utilizo neste final de capítulo, algumas breves observações de Euclides sobre
as diferenças nos processos civilizadores de Brasil e Argentina, por considerar que constituem
pistas importantes para o tema aqui trabalhado.
Na segunda parte de Contrastes e Confrontos
85
, intitulada “Vários Estudos”, há uma
seção sobre a Viação Sul-Americana, na qual Euclides traça paralelos entre o progresso
ferroviário dos dois países, e termina por conceber duas formas diferentes de lidar com o tema da
civilização. Vejamos o que o autor diz inicialmente: “(...) não seria difícil demonstrar que é para
os argentinos uma causa o que é para nós um efeito; o progresso atual advém-lhes, antes de tudo,
de suas estradas de ferro; as nossas estradas de ferro resultam, antes de tudo, do nosso progresso”
( Cunha, 1995, p.321)
A fórmula expressiva polar, tão ao gosto do estilo euclidiano, é a porta de entrada para
uma breve reflexão sobre a forma como o Brasil conseguiu se civilizar por um processo de
regulação do bárbaro. Nas palavras de Euclides,
Atentos os empeços naturais, que a dois passos da costa nos repeliam, era-nos
impossível o avançar pelos sertões em fora, levando a civilização no limpa-
trilhos. Para vencermos a terra houvemos que formar até o homem capaz de a
combater – criando-se à imagem dela, com as suas rudezas e as suas energias
revoltas – por maneira a talhar-se no tipo mestiço e, inteiramente novo, do
“bandeirante”, a figura excepcional do homem que se faz bárbaro para estradar o
deserto, abrindo as primeiras trilhas ao progresso (id, ibid, p. 321 - 322).
Surge a figura do bandeirante, a quem Euclides refere-se sempre com admiração.
86
Ele
não chafurdaria na barbárie, como as tropas republicanas em Canudos, mas a mobilizaria para
“estradar o deserto”, assim como os sertanejos nortistas o domam. Reitera-se a negação tanto da
versão romântica da barbárie americana, cujo melhor exemplo estaria no elogio da mestiçagem
em José Martí e no mais recente indianismo revolucionário de Retamar, quanto da versão
85
A obra Contrastes e Confrontos foi editada inicialmente em 1907. Na edição que uso, é parte do volume I das
obras completas. A seqüência argumentativa aqui adotada não pode, portanto, ser confundida com seqüência
cronológica.
86
Um dos melhores “euclidianistas” nacionais atesta o interesse intelectual do autor pelas epopéias bandeirantes,
tema que se consagraria definitivamente no pensamento brasileiro ao longo das décadas de 30 e 40. Sobre os
indefinidos tempos de Euclides na localidade de Campanha em 1895, Ventura afirma que “Lia cronistas da época
colonial, sobretudo dos séculos XVII e XVIII, interessando-se pelas excursões dos bandeirantes, pela antiga São
Vicente e pela fundação de São Paulo” (Ventura, 2003, p.135-136).
162
“sarmientiana” do mesmo tema. Não à toa, a comparação se faz com a Argentina, país em que
segundo Euclides
(...) o processo se inverteu. A civilização transplantada àquelas terras não
carecia ter, como aqui, um período de estacionamento obrigatório, para o
adaptar-se das raças que se transformam, ou se apuram, criando-se novos
atributos de resistência, uma nova alma, e até um novo organismo para viverem
em seu meio. Mudou de hemisfério, sem mudar de latitudes (id, ibid, p.322).
Na Argentina, ele apontava “(...) a cultura européia estirando-se pelo nível dos mares, e
prosseguindo, sem tropeçar num cerro, pelo complanado dos pampas” (id, ibid, p.322). Nesse
caso especial de processo civilizador, a ferrovia platense surge como expressão física do avançar
retilíneo de uma cultura sobre uma terra estranha, como que a controlando de forma unilateral. O
herói intelectual desta empreitada seria, obviamente, Sarmiento, em quem Euclides reconhece a
capacidade de expressar esse avanço reto e implacável, destinado a ceifar a tirania caudilhesca.
Como um resumo sintético dessa sociologia comparada sul-americana, Euclides afirma:
Leia-se a história da Confederação Argentina, depois da fase tumultuária da
Independência e ressaltará, em nítido relevo, este contraste com a nossa: nós
tivemos que formar num longo esforço, até de seleção telúrica, o homem, para
vencermos a terra; ela teve que transformar e aviventar a terra, para vencer o
homem (id, ibid, p.322).
Com esse fecho, o movimento do capítulo está (quase) terminado. A civilização no Brasil
afirmar-se-ia pelo protagonismo da “terra”, se a entendermos como uma moldura moral que não
apenas constrange os homens, mas os forma numa direção específica dada pela regulação da
barbárie, pela sua rotinização e racionalização, e não pela simples eliminação da mesma. Neste
registro, a imaginação espacial euclidiana mobiliza a terra não apenas como cenário, mas como
expressão de uma matriz civilizatória própria.
Mas que matriz seria essa? Até aqui, os escritos euclidianos parecem limitar-se a uma
aproximação com a Rússia e sua configuração cultural, marcada pelo predomínio da questão
agrária e por personagens “bárbaros”, tais quais os bandeirantes ou os sertanejos nortistas. Creio,
163
contudo, que essa matriz pode ser mais bem compreendida pelo recurso à formula da Rússia
Americana.
4.2.3. Rússia e América.
Num primeiro momento, a interpretação aqui defendida dos escritos amazônicos de
Euclides aproxima o Brasil da Rússia – fatalismo, “laivo siberiano”, personagens de Dostoievski.
Contudo, sustento nesta seção final que é possível vislumbrar nos mesmos escritos uma notação
de um caminho americano para a afirmação do nosso processo civilizador, se entendermos a
expressão “americano” a partir do desenho delineado no primeiro capítulo, isto é, como uma
forma possível de interpretar o problema da terra em formações sociais que adentraram o
moderno por rotas outras que não a cidade.
Nesta seção dedico-me a comparar a alternativa civilizatória vislumbrada por Euclides
com as possibilidades desenhadas por Lênin para o caso russo em 1905 e com os debates
envolvendo o chamado populismo russo. Além disso, mobilizo brevemente sa discussões que
envolviam o americanismo no mesmo período. Argumento que os textos amazônicos euclidianos
não se encerram em nenhuma dessas matrizes, ao mesmo tempo em que incorporam dimensões
importantes das mesmas e as aproximam.
Em seu famoso prefácio à segunda edição de O Desenvolvimento do Capitalismo na
Rússia, Lênin discute as duas possíveis vias para a resolução da questão agrária russa
87
e,
conseqüentemente, para a própria afirmação da modernização naquele cenário. Contrariamente
aos chamados populistas, que insistiam em ver o capitalismo como uma ordem passível de ser
rejeitada politicamente em prol de um salto utópico para o socialismo, Lênin afirmava que as
relações sociais capitalistas já haviam penetrado em todo o território, e nas próprias áreas rurais.
A despeito da estrutura interna russa ainda guardar resquícios da economia baseada na corvéia, a
opção populista lhe parecia uma insanidade, por desconhecer o processo histórico que regulava a
87
O tema agrário é um dos temas clássicos no pensamento social russo, e marcou profundamente tanto os embates
entre ocidentalistas e eslavófilos nos 40, quanto as formulações socialistas radicais dos populistas nos anos 60 e 70.
Sobre o tema, ver Isaiah Berlin(Berlin, 1988), Joseph Frank (Frank, 1992) e Franco Venturi (Venturi,1981).
164
formação do capital como relação dominante. Contudo, o cenário russo permaneceria aberto.
Escreve Lênin:
Na atual base econômica da revolução russa, duas vias fundamentais são
objetivamente possíveis para o seu desenvolvimento e desfecho: ou a antiga
propriedade fundiária privada, ligada por milhares de laços à servidão, se
conserva e se transforma lentamente em estabelecimento capitalista, do tipo
junker. Nesse caso, a base da passagem definitiva do sistema de pagamento em
trabalho para o capitalismo é a transformação interna da propriedade fundiária
baseada na servidão; toda a estrutura agrária do Estado se torna capitalista,
conservando por muito tempo traços feudais; ou o antigo latifúndio é destruído
pela revolução, que liquida com todos os vestígios da servidão, especialmente o
regime da grande propriedade fundiária. Nesse caso, a base da passagem
definitiva do sistema de pagamento em trabalho para o capitalismo é o livre
desenvolvimento da pequena propriedade camponesa, que recebe grande
impulso com a expropriação dos latifúndios em benefício dos camponeses
(Lênin,1982, p.10)
A passagem acima expressa a crença dos revolucionários bolcheviques na possibilidade
de um caminho quase americano, com a expansão de um regime baseado na libertação do
trabalho e na dinamização da pequena propriedade rural. Não há vestígio de conservação ou de
recurso à tradição, mas sim de uma grande abertura para uma geografia americana. O moderno
seria alcançado pela própria dinamização estrutural do capitalismo na Rússia, e não pela rejeição
desse processo. A terra se americanizaria. Nesse formato, o processo de transformação assumiria
o figurino de uma revolução democrático-popular de cunho burguês. Como se sabe, a preferência
de Lênin por um andamento clássico para o caso russo durou até às vésperas da crise final de
1917, quando a resolução se encaminhou para uma ruptura mais próxima dos sonhos populistas,
com a aceleração do socialismo por meio de um dinamismo político constante
88
.
A geografia social revelada por Euclides por meio da categoria terra encontrou
ressonância no caso russo, pelo menos como imaginado pelo autor. Numa paisagem inculta,
personagens oprimidos num regime servil buscam desesperadamente edificar alguma forma
mínima de vida social. Ora, é sabido que esse problema na imaginação social russa tinha que
88
Sobre isso, afirma Frank: “É uma das muitas ironias da história moderna da Rússia que, embora os marxistas
tenham vencido a guerra ideológica travada contra os populistas tornando-se os líderes da esquerda radical da Rússia
na virada do século, fio finalmente a visão dos jacobinos russos que prevaleceu quando se definiram os problemas.
Lênin e os bolcheviques tomaram o poder quando tiveram a chance e aceitaram na prática a visão jacobina de que
uma revolução comunista russa poderia e deveria acontecer antes que um capitalismo desenvolvido tivesse criado
raízes” (Frank, 1992, p.97).
165
lidar com um elemento fundamental, ausente no caso brasileiro: a existência da obshina,
comunidade rural tradicional que agregava os camponeses. Ele era, por assim dizer, um
componente vivo da tradição que tinha que ser levado em conta pelos pensadores que lidavam
com o tema da civilização naquela sociedade. Nesse aspecto, de não pouca importância, a Rússia
euclidiana ganha outros contornos.
Na perspectiva leninista, a obshina não é força a ser preservada, muito pelo contrário. A
incorporação da mesma no processo de modernização dá-se na chave da via prussiana, resolução
autoritária e conservadora que lê a tradição pelo registro do latifúndio. Essa resposta, como se
sabe, é distinta das formulações populistas. Embora seja arriscado falar em populismo russo
como um complexo cultural unitário e homogêneo, pode-se dizer que, na versão dos pensadores
da década de 60 e 70 do século XIX, a obshina é vista como uma espécie de modelo para a futura
sociedade socialista, pelas suas características comunitárias e supostamente igualitárias. Venturi
(Venturi, 1981), em sua obra magna sobre o movimento narodnik, mostra como a chamada
intelligentsia russa debateu-se incessantemente em torno dessa questão. O debate da década de 40
opusera eslavófilos e ocidentalistas, com os primeiros empunhando a bandeira das comunas
camponesas como símbolos da tradição e da singularidade cultural russa, que não deveria ser
ameaçada pelos valores iluministas ou ocidentais. Nessa chave, o tema da excepcionalidade é
interpretado como uma resistência ao moderno, trincheira de uma aristocracia empenhada na
defesa dos valores imperiais. Ora, após a cisão do campo ocidentalista, essa disputa muda de
configuração. Para os populistas radicais, a comuna seria elemento a ser preservado não pelo seu
papel integrador na manutenção do status quo, mas como força dinamizadora que levaria a
Rússia diretamente para o socialismo, sem os sofrimentos produzidos pelo capitalismo e seu
repertório de patologias: anomia, individualismo, materialismo etc. Segundo Joseph Frank
(Frank, 1992), essa visão teria terminado por englobar distintas perspectivas políticas, incluindo
membros da geração de 1860, como Nikolai Tchernichévski, típico representante desses “radicais
iluministas”.
89
89
Ainda segundo o mesmo autor, “(...) é muito curioso observar, nos dois lados do espectro político russo, a mesma
procura por alguma definição da “singularidade” sociocultural da Rússia em relação à Europa” (Frank, 1992, p.75).
166
Como se percebe, o tema dos “privilégios do atraso” não é propriedade exclusiva de
Trotsky, e tem longa trajetória no pensamento russo. Mas no caso brasileiro, tal como analisado
por Euclides, onde estaria a vantagem? Como vimos, a terra é categoria que nos aproximaria da
geografia russa, mas nela não há o peso da tradição camponesa, que para Euclides é inexistente
ou não propriamente relevante. A paisagem inculta amazônica é, por assim dizer, mais desértica
do que a russa. Na ausência de uma instituição como a obshina, o que pode sustentar o processo
de regulação da barbárie?
A ausência de uma tradição é o problema central enfrentado não apenas por Euclides, mas
pelos seus contemporâneos e seguidores (como Vicente Licínio Cardoso). Afinal, o Império
havia sido derrubado. Mas reside aí, talvez a força da terra na Rússia brasileira. A Amazônica é a
terra sem história, geografia captada pela imaginação espacial e estranha aos olhares treinados na
clássica tradição histórica ocidental. Nesse lugar em que a Natureza parece ser a principal
protagonista, a ausência é precisamente a força capaz de domar o deserto. Sertanejos nortistas,
bandeirantes e demais personagens que ali chegam não são “originários”, e embora possam ficar
aprisionados num regime de trabalho servil, não se pareceriam neste aspecto com os mujiques,
que vêem a terra como expressão de suas próprias existências camponesas, tal como ficou
evidente na citação de Bannour apresentada em trecho anterior. Nômades e aventureiros, os
personagens que realizam a aventura amazônica são, de certa maneira, pioneiros. São
americanos. Homens fortes, capazes de domar as “paisagens incultas” e racionalizá-las. Figuras
surgidas do movimento, da adaptação, e não da tradição
90
. Nesse sentido, nosso caminho “russo”
para a civilização técnica seria permeado de personagens americanos. Mas que América seria
essa?
A meta no projeto euclidiano era, sem dúvida, a civilização. A visão matizada que
Euclides alimenta do fenômeno da barbárie impede que a mesma seja vista como expressão de
90
Sobre essa tradição americana associada ao movimento, destaco a seguinte passagem de uma conferência emitida
por Werneck Vianna: “(...) e me ponho em linha de continuidade com a tradição que vêm de Gilberto Freyre a Darcy
Ribeiro, que jamais perdeu de vista o que havia em nós de Rússia e de América – Gilberto, como se sabe, em Casa
Grande e Senzala chegou a nos designar como a Rússia Americana. Não somos, é claro, filhos do pensamento,
como tantos dizem da Alemanha de inícios do século XVIII, e não se pode entender o Brasil sem a dimensão do agir,
embora de um agir muito fragmentado, difuso e disperso, como o que se fez presente na conquista do Oeste, de
Sérgio Buarque de Holanda. Também “andando”, freqüentemente apenas “andando”, fizemos o Brasil” (Werneck
Vianna, 2001, p.35-36)-
167
uma autenticidade irredutível, valor a ser cultivado por si só. Importante lembrar aqui que o
pensamento latino-americano do período (final do século XIX e início do século XX), em
especial aquele inspirado pelo cubano José Martí, relacionava mais diretamente o tema americano
à singularidade, apostando no elogio da mestiçagem e das características culturais tidas
anteriormente como bárbaras, agora vislumbradas como chave de afirmação. Essa tradição
encontrou ressonância no radicalismo de Roberto Retamar, que relê a clássica metáfora
shakesperiana de outra maneira, fazendo o elogio de Caliban e reinterpretando o pensador
uruguaio José Enrique Rodó
91
numa chave antiimperialista. Se, para o pensador uruguaio, o
símbolo da América seria Ariel, o “espírito”, a criatura que simbolizaria a filiação greco-latina da
América do Sul e sua diferença em relação ao utilitarismo estadunidense, para Retamar a
condição dessa mesma região seria mais bem traduzida pela imagem do “Caliban”, criatura
selvagem e nativa da terra, envolvida numa dialética da colonização européia. Nesses termos, a
identidade americana repousaria no particularismo étnico dos homens mestiços, tomados como
representantes dos povos americanos. Não é essa, decerto, a família euclidiana. A sua América
era aquela da racionalização técnica, com a engenharia operando como ciência construtora e
instrumento de condução do moderno. Não há, em Euclides, aversão ao mundo da civilização
ocidental central, mas desconfiança da tradução “litorânea” que ela ganhou no Brasil. A terra
opera como alternativa metodológica, expressão de uma matriz capaz de mobilizar a barbárie não
como bandeira de autenticidade, mas sim como forma civilizatória. Sua América, portanto,
estaria distante tanto do elogio puro a Caliban, quanto de sua negação. Não estaria na celebração
da diferença e da postulação do Sul como trincheira de resistência aos valores das sociedades
originárias, mas na percepção da relação entre homem e apropriação do espaço, dinamizada pela
própria regulação da barbárie.
91
Em 1900, Rodó publicou um livro intitulado Ariel, no qual utilizava os personagens da obra de Shakespeare –
Caliban, o selvagem; Ariel, o “espírito”; Próspero, o viajante náufrago e colonizador – para traçar um painel sobre a
condição do americanismo. Rodó foi um dos principais personagens desse singular modernismo que varreu as letras
hispano-americanas entre os anos 80 do século XIX e os anos 20 do século XX, e essa obra específica exerceu
considerável impacto sobre muitos intelectuais.Um deles foi o cubano Roberto Retamar, que já nos anos posteriores
a Revolução Cubana de 1959 entusiasmou-se pela temática americana e deu-lhe conteúdo revolucionário e
antiimperialista.
168
A relação entre americanismo e apropriação do espaço remete ao tema da fronteira, tão
detidamente tratado pelos intérpretes contemporâneos do pensamento social brasileiro
92
. Neste
registro, a fronteira representaria um agir livre, orientado pela relação entre propriedade e
movimento. Ora, decerto que Euclides não vislumbra a relação entre homem e terra amazônica da
mesma forma, mas a relação inventiva do homem com o espaço está presente, assim como a
visualização de uma matriz civilizatória. Os limites descortinados pela reflexão euclidiana estão
na própria configuração russa desse espaço social, tema ausente no imaginário americano. Para
Euclides não há pura invenção e ativismo livre dos personagens americanos, dado que o autor
valoriza a própria racionalização do agir e a rotinização de condutas, programa que certamente
não encontra guarida na versão libertária que se construiu da fronteira americana. Essa visão
encontra ressonância na própria trajetória do escritor, analisada no capítulo anterior. Afinal, os
seringueiros lograram amansar o deserto e se constituírem como personagens de um espaço
associado ao movimento, realizando a busca do escritor por uma geografia social que abrisse
espaço para tipos que não se encaixavam na nova ordem republicana. O “americanismo russo”
desses bandeirantes nortistas foi, portanto, expressão literária de inquietações que assolavam o
mundo da engenharia periférica, marcado pela sensação de inadequação de homens que não viam
espaço para suas vocações no ambiente carioca. Há que se voltar, assim, ao problema da Rússia
Americana. A isso me dedico nos dois próximos capítulos, nos quais pretendo argumentar que
essa versão não essencialista da terra ganha cores mais fortes, radicalizando um tema que está
ainda apenas sugerido em Euclides. A ausência de uma associação robusta entre terra e tradição,
que parece um exotismo tanto diante do americanismo mestiço, quanto diante da tradição
populista russa, ganha um registro positivo, como se verá.
92
A esse respeito, ver os já citados estudos de Nísia Lima sobre litoral e sertão e os textos de Lippi Oliveira sobre
bandeirantes e pioneiro.
169
CAPÍTULO 5. VICENTE LICÍNIO E A TERRA.
Os caminhos abertos pela leitura euclidiana da terra não se esgotaram na imaginação do
próprio Euclides. O impacto produzido pelos seus escritos só fez aumentar ao longo das décadas
de 1910 e 1920, transformando sua obra magna praticamente num “romance de fundação”, ao
mesmo tempo em que suas interpretações seriam progressivamente formatadas num universo
específico do pensamento social brasileiro. A partir de então, as reflexões sobre as peculiaridades
da experiência brasileira passariam, quase que obrigatoriamente, pelos sertões euclidianos e pelos
signos associados a ele. A “imaginação espacial” ganhara um autor de referência.
Foram muitas as interpretações de suas idéias, e diversos caminhos foram desenhados
pelos sucessores de Euclides. Abreu (Abreu, 1988) destaca que uma das leituras mais bem
estabelecidas da obra euclidiana teria sido patrocinada por Cassiano Ricardo, que associou o tema
do sertão e de seu desbravamento físico e intelectual ao problema do bandeirantismo e de seus
heróicos personagens, ressaltando o plot da autenticidade da terra sertaneja. Outra seria a
interpretação de Gilberto Freyre, mais focada no diálogo entre civilização e litoral e na
incorporação da dualidade euclidiana ao seu sistema conceitual, marcado pela noção de
“antagonismos em equilíbrio” – conceito freyreano trabalhado por Ricardo Benzaquen de Araújo
(Araújo, 1994).
Como mostra Abreu, a consagração de seu clássico foi possível graças ao modo como o
autor plasmou idéias e temas que já vinham sendo trabalhados na imaginação brasileira. No
primeiro capítulo, por exemplo, argumentei a respeito da longeva presença da terra na nossa
experiência intelectual. A obra euclidiana dá mais um passo nessa história, ajudando a conformar
mais intensamente tal universo interpretativo. No presente capítulo, analiso como o tema da terra
é trabalhado na obra de Vicente Licínio Cardoso (1889-1931), engenheiro, arquiteto e educador
de grande destaque na Primeira República. Como procurei mostrar em capítulo anterior, ele e
Euclides partilharam uma inscrição social comum na sociedade carioca do período, e isso teria
ajudado a formatar suas “imaginações espaciais”. Trata-se agora de analisar o modo como o
organizador de À Margem da História da República trabalhou o tema da terra e conferiu-lhe
170
sentido mais radical, levando à frente o problema da “desessencialização” a que aludi no capítulo
anterior.
Trabalharei nesta seção a idéia de que a associação entre terra e inventividade, já presente
nos escritos de Euclides sobre a Amazônia, ganha contornos mais decididos na obra de Vicente
Licínio, na qual os temas da máquina, da sociedade industrial e do fordismo surgem com mais
relevo, afastando de forma decisiva quaisquer sugestões de um agrarismo romântico a presidir
sua releitura da terra. Argumentarei como esse tópico do pensamento de Vicente Licínio pode
ilustrar o seu americanismo, e servir ao mesmo tempo para problematizá-lo. Procurarei mostrar,
portanto, como o tema da terra pode ser associado a outros tratados na obra do autor, sem
pretender sugerir que haja uma hierarquia de relevância na argumentação. É esse caminho que
sigo para interpretar o sentido da adesão de Vicente Licínio ao tema da educação moderna e dos
seus impactos na formação da Nação brasileira. Finalmente, mostrarei como o tema da “Rússia
Americana”, já indicado no final do capítulo anterior, pode ser extraído da análise liciniana para
caracterizar uma interpretação da civilização brasileira a partir da inventidade e da novidade
presentes na nossa experiência, sustentada em uma sociabilidade rude, mas pragmática.
Assim como no tratamento dispensado a Euclides, o objetivo aqui não é a reconstrução
histórica do perfil intelectual do personagem, mas a leitura de suas idéias e temas à luz das
preocupações que guiam esta tese e orientam a seleção do tema da terra, ainda que este não seja o
aspecto explicitamente enfatizado por Vicente Licínio
93
.
O capítulo inicia-se com uma análise da experiência geracional e intelectual a qual
Vicente Licínio está associado, com destaque para sua formação positivista e o papel catalisador
exercido pela obra À margem da História da República, editado em 1924. Em seguida, aponto o
papel metodológico da terra em algum de seus escritos centrais, e argumento como a categoria
termina por escapar à geografia, associando-se a uma experiência civilizatória. A seção sobre
máquinas e imaginário técnico expõe o entusiasmo de Vicente Licínio com as possibilidades
93
A produção de Vicente Licínio foi considerável, para um período de tempo tão curto. A maior parte de seus livros
ensaísticos foi publicada em meados dos anos 20 – entre 1924 e 1926. Os ensaios eram, quase todos, curtos, e o
descuido com o estilo e a forma eram gritantes. Há repetições de parágrafos inteiros, assim como de expressões.
Como se viu no capítulo 3, esse “desleixo” era parte integrante do ethos do autor. Como disse, o tema da “terra” não
aparece em todos os escritos, mas ocupa papel importante na sua sociologia comparativa, como se verá.
171
abertas pela vida industrial, tema que, à primeira vista, poderia sugerir uma contradição com a
interpretação que desenho. Contudo, na seção “Terra e máquina” busco argumentar como esse
dois temas se relacionam pela chave da invenção e da criatividade. Ao final, procuro mostrar
como uma releitura da obra de Vicente Licínio pode ajudar a encaminhar de forma mais precisa o
argumento apresentado no início da tese, e inicialmente construído com recurso a uma nova
interpretação dos escritos de Euclides, o outro engenheiro.
5.1 UM LIVRO E UMA TEORIA.
Alguns livros podem funcionar como catalisadores de toda uma geração, ou mesmo de
uma época. O caso de Os Sertões, como já apontado, é exemplar do processo de produção de um
corpo interpretativo e de um universo discursivo comum, ao mesmo tempo em que representou a
cristalização de determinados temas e idéias que já ocupavam a imaginação brasileira. Um livro
síntese, por assim dizer. O caso de À Margem da História da República é mais agudo ainda, dada
sua dimensão testemunhal. A obra, que se pretendia um “inquérito dos escritores nascidos com a
República”, operou, na verdade, como um verdadeiro ajuste de contas da intelectualidade com o
regime que propugnavam, mas com o qual se mostravam desencantados, em virtude dos rumos
que tomara. Trata-se de uma coleção de escritos voltados para intervenção pública, produzida por
personagens que militavam em diferentes campos, mas que partilhavam um corpo minimamente
comum de preocupações, de influências intelectuais e programas. Entre eles estava Vicente
Licínio Cardoso, que comparece com um artigo sobre Benjamin Constant. Apresentar
brevemente o livro significa introduzir um campo intelectual que pode operar como porta de
entrada para o universo de seu organizador. Não se trata, ressalto, de postular um programa
comum a todos esses homens, mas de mobilizar a obra como ferramenta para a compreensão dos
questionamentos e dilemas comuns, que orientavam respostas e sugestões que não
necessariamente seguiam caminhos idênticos. Tal proposição contraria a perspectiva usual de
tomar determinada geração como sujeito coletivo dotado de monolítica personalidade intelectual.
Em oposição, parto de um universo de experiências intelectuais compartilhadas e busco
identificar o sentido geral que organizava o pensamento desses homens, para então apresentar
seus problemas – que eram, por assim dizer, aqueles da própria experiência civilizatória nacional
– e destacar suas tensões, em especial com a “família” Euclides-Licínio, objeto desta tese.
172
O prefácio, provavelmente escrito por Vicente Licínio, é eloqüente a respeito de como
essa geração se percebia coletivamente:
Reunidos, representam porém uma geração de homens; a geração que nasceu
com a República, pouco antes ou pouco depois: não viram o imperador, não
conheceram os escravos, não herdaram títulos, nem cargos, nem comissões.
Conquistaram posições e tomaram atitudes por seus próprios esforços: são pois
republicanos e democratas na verdade acepção do termo: fizeram viver, em
suma, as suas próprias idéias (Cardoso, 1924, p.14)
A passagem acima tem componentes interessantes para caracterizar esse grupo e sua auto-
imagem. O principal é a associação do republicanismo a um estado social próprio de homens
meritocráticos, personagens animados por seus talentos e capacidades, e não a um corpo
doutrinário específico. Ser republicano significaria viver de certa maneira, e não apenas aderir a
um programa político. Ao mesmo tempo, o republicano democrata seria o homem capaz de
vivenciar suas idéias, numa simbiose entre convicções e ações práticas que parece qualificar a
República como uma condição existencial. Mencionei, no terceiro capítulo, o peso que essa ética
da convicção tinha para os engenheiros Euclides e Vicente Licínio. Percebe-se na passagem
referida o testemunho público dessa condição, e a construção de uma auto-imagem fincada numa
trincheira ética: a dos homens justos e capazes.
O “pai espiritual” declarado dessa geração é Alberto Torres, e as matrizes intelectuais
citadas são Spencer, Comte e Darwin. O propósito, contudo, não é o de confeccionar um panteão
intelectual, mas de mostrar o ecletismo de homens cuja missão não era o pensar enquanto
atividade espiritual, destacada do agir. Nesse sentido, a escolha de Alberto Torres não é gratuita,
pois ele era identificado com um pensar próprio à ação, além de ter como um de seus temas
principais o problema da organização nacional. Essa é, por certo, a categoria-chave que confere
alguma unidade às diversas formulações encontradas na coletânea. Todos os autores têm a
preocupação de produzir um diagnóstico e de encontrar caminhos para edificação de um novo
arranjo social que ajuste o relógio político às configurações próprias da vida social nacional. Ou
seja, o pensar é parte integrante de um movimento de auto-consciência da Nação, realizado pelos
seus intelectuais e constitutivo da própria experiência brasileira. Pensar e organizar são faces de
um mesmo processo. Trata-se de entender alguns temas básicos desses personagens para situar
melhor os pontos sustentados por Licínio na primeira metade dos anos 20. Destacarei dois: o
173
estado social republicano e a nostalgia do Império, e o embate entre americanismo e latinidade
(ou iberismo). Essas discussões permitirão o enquadramento da perspectiva de Vicente Licínio e
os matizes existentes dentro dessa geração.
O artigo de Carneiro Leão, intitulado “Os Deveres da Nova Geração Brasileira”, ilumina
um tema que será constante no pensamento de Vicente Licínio: a República como evento de
“desorganização social”. Para Carneiro Leão, o advento republicano teria sido responsável pela
desmontagem do estável sistema social do Imrio, sustentado em torno de uma hierarquia
eficaz, a despeito de injusta. Ou seja, o elogio da experiência imperial é feito através da
valorização do ordenamento das diferenças. A República, por sua vez, seria movida pelos valores
do igualitarismo e do nivelamento, que teriam destronado os tradicionais atores que davam
substância à vida política pré-1889 e aberto caminho para o fenômeno do “arrivismo”. Nos
dizeres do autor,
Assim, de uma parte, a pobreza em que caíram as antigas famílias senhoriais e
os seus escrúpulos em se ombrearem, na vida publica, nas assembléias, nos
parlamentos, com filhos dos seus ex-escravos, produziu o retraimento de um
numero considerável desses ilustres varões e dos seus descendentes, da direção
nacional; da outra, os excessos produzidos em todas as revoluções, aliados ao
próprio espírito de um regime de inteira liberdade e absoluta igualdade de raças
e de classes, deram aos arrivistas o acesso fácil a posições (Carneiro Leão, 1924,
p.21).
Como procurei mostrar no capítulo terceiro, a percepção dessa geração republicana era
fortemente marcada pela experiência frustrante da República, não apenas pelo desencanto com o
regime, mas pelo estado social produzido por ele. Tanto Euclides quanto Vicente Licínio se
sentiam desajustados nesse meio, em especial na vida carioca, e viam com horror o fechamento
das altas posições da vida pública para homens com seus talentos. O positivismo, ao lhes dotar de
uma profunda ética da convicção, contribuía para a formação de uma economia moral estóica,
propícia para o trabalho e para a sobriedade, que se chocava com a suposta frivolidade que
caracterizaria o mundo social da Primeira República. Funcionava, por assim dizer, como um
puritanismo “aristocrático”, pois assentado na convicção de uma superioridade moral que não
podia ser exercitada plenamente diante do avanço do mundo do nivelamento. Vê-se que a
dinâmica intelectual mobilizada por esses intérpretes, que combinava pensamento e ação, era
174
animada por um diagnóstico de cunho eminentemente tocquevilleano. No vocabulário desses
homens, trava-se de combinar republicanismo e meritocracia, igualdade e organização, pares que
traduzem, para nossa experiência civilizatória, o dilema entre igualdade e liberdade desenhado
por Tocqueville.
Outro tema importante no pensamento de Vicente Licínio é o do Brasil como uma
sociedade americana, portanto marcada pelo signo do “novo”. No ensaio “O Ideal Brasileiro
Desenvolvido na República”, de José Antonio Nogueira, há a polarização entre os dois ideais
patrióticos que lutariam para organizar a experiência brasileira. Ou o Brasil era visto como um
prolongamento latino, uma “coisa feita” voltada para o passado e para suas raças formadoras, ou
era pensado como uma novidade, construção do futuro. O partido do autor não é, decerto, o de
Licínio. Enquanto este se volta para o americanismo que marcaria nossa experiência, Nogueira
cerra fileiras com o partido Ariel, pois
O segundo grupo, o mais progressista e não menos zeloso da grandeza e da
integridade da pátria ensina que o Brasil representa, acima de tudo, um
prolongamento da civilização ibérica, apenas modificada pelo trabalho
sociogênico de redução indireta do africano e do aborígene, isto é, por meio de
transitória mestiçagem (Nogueira, 1924, p.94).
O herói desse partido seria Nabuco, enquanto Silvio Romero representaria o apogeu do
partido americano. Numa das passagens que fecha o ensaio, Nogueira não hesita em enfileirar
aliados e adversários nesse embate civilizacional. Afinal,
Somente unidos e conscientes dos mesmos destinos superiores, os povos sul-
americanos poderão opor ao espírito tudesco e às aspirações megalômanas de
Jefferson, de Walt Whitmann e de Monroe intransponíveis barreiras,
continuando com galhardia, como muito bem diz G.Calderón, “a luta da cidade
latina contra os bárbaros, da Renascença contra a Reforma”, do principio da lei
consentida contra os endeusamentos da força (Nogueira, 1924, p.102).
Mais sofisticada é a visão de Tristão de Athayde sobre o tema, no já citado ensaio
“Política e Letras”, no qual o dilema entre latinidade e americanismo traduz-se em diferentes
exigências civilizacionais, expressas pelas idéias de Natureza e Inteligência. Afinal, nós seríamos
marcados pelas energias próprias daquela, enquanto a Europa padeceria do excesso desta. A
grande missão brasileira seria a produção de uma inteligência capaz de assimilar as forças
175
naturais que configurariam nosso ser e dotá-las de um sentido transcendente. O modelo desse
exercício estaria dado pelo Império, cuja produção intelectual granjeou produzir o romantismo,
ferramenta literária que teria fornecido uma Idéia espiritual que asseguraria nossa Unidade. Já a
República, marcada pela dispersão
94
, conheceria sua tradução literária num amálgama entre
regionalismo e cosmopolitismo, incapaz de lidar de forma apropriada com o dilema entre
Natureza e Inteligência. A tradução política desse embate estaria no antagonismo representado
pelas figuras de Ruy Barbosa, homem europeu, e Pinheiro Machado, político aventureiro e
caudilhista, emérito representante do americanismo e de sua paixão irrefreável e algo bárbara
pela liberdade. A crescente cisão entre literatura e política, apontada por Tristão, dificultaria a
retomada do projeto imperial em seus próprios termos, pela unidade entre inteligência e Nação
num tempo só. O que fazer?
Politicamente, portanto, a solução, que o tempo e o bom senso nos trarão, será
por força a assimilação das forças vivas da nacionalidade americana, por
natureza anárquicas e incultas, pelas forças vivas da espiritualidade, tantas vezes
desviadas pela paixão do poder, mas afinal cultivadas pelo idealismo e pela
experiência do ocidente cristão (Athayde, 1924, p.290).
Tristão de Athayde encontra-se em terreno semelhante ao de Nogueira? Não exatamente,
pois “Ser nacional é criar uma nacionalidade e não submeter-se a ela” (id, ibid, p.292). Ou seja,
não haveria espaço para a reiteração da nossa herança, dada a própria necessidade de um novo
movimento da inteligência em busca da autoconsciência e da organização da Nação. Tratar-se-ia,
antes, de produzir uma nova Idéia, assentada na espiritualidade e na transcendência, capaz de dar
sentido ao Brasil novo. Uma combinação interessante, que encontra parentesco com as
formulações analisadas no capítulo 2 desta tese, e que forja uma espécie de família modernista
que resiste à idéia de se entregar de forma radical ao que haveria de mais “americano” em nossa
experiência. No referido capítulo, sustentei que a associação da terra a certas qualidades
americanistas prendia-se à delimitação de um marco étnico originário de nossa autenticidade,
avaliado de forma ambígua. Se homens como Ronald de Carvalho (que também escreve na
coletânea organizada por Licínio) e Graça Aranha parecem hesitar na localização da nossa
94
Note-se que Tristão partilha do diagnóstico de Carneiro Leão a respeito dos efeitos sociais produzidos pela
proclamação da República. Nas suas palavras, “A força nova, que anima desde então a nossa ainda informe
cristalização nacional, já não vem de cima como até então. Doravante, se o problema imediato é a abolição que se
precipita, o problema profundo é a ascensão ao poder da massa consciente, do particular instruído ou ambicioso, que
sente crescer em si o gosto do mando e a força do poder” (Athayde, 1924, p.246)
176
tradição e nas possibilidades de acomodação/superação da mesma, o grupo formado por Tristão e
os modernistas espiritualistas de Festa não hesita em apelar para uma Idéia que sustentasse nosso
processo de autocriação. Em ambos, contudo, estamos distantes da visão sugerida por Euclides da
Cunha nos seus textos amazônicos, e que destaca a invenção propiciada pela “terra em
movimento”.
5.2. O POSITIVISMO.
Vicente Licínio foi, por assim dizer, um positivista tardio. Um personagem interessado
pelas novas produções estéticas nacionais e pelo grande legado do ensaísmo brasileiro,
escrevendo de forma profícua nos anos mais candentes da década de 20 – entre 1924 e 1926.
Ainda assim, um sereno admirador da obra comteana. Trata-se de delimitar as fronteiras dessa
filiação intelectual, enquadrando-a nos marcos do debate intelectual mais geral que a informava.
Para Leopoldo Zéa (Zéa, 1980), o positivismo latino-americano seria marcado pelo tema
da ruptura. Pensando a herança colonial como marco negativo a ser superado, positivistas
mexicanos e argentinos vislumbrariam a educação e o progresso como chaves para a necessária
“emancipação mental” dos povos americanos.Tratar-se-ia, portanto, de elaborar um projeto
civilizador yankee. Segundo Zéa,
El instrumento de que se valdrán los latinoamericanos para realizar este cambio
será el positivismo. Esta es la filosofía en la que ha encarnado el espíritu de los
hombres que han hecho posible la civilización, la filosofia que ha dado sentido
al progreso logrado por la Europa occidental y los Estados Unidos (Zéa, 1980,
p.XII).
Com raras exceções, as mais conhecidas versões a respeito do positivismo brasileiro têm
um registro notadamente negativo. Exemplar dessa perspectiva é a análise de Cruz Costa (Cruz
Costa, 1956), que esposa sem reservas a tese de Sérgio Buarque de Holanda sobre o “secreto
horror à realidade” supostamente alimentado pelos intelectuais animados pela doutrina. Ao se
concentrar basicamente nas lideranças do Apostolado – Miguel Lemos e Teixeira Mendes –, Cruz
Costa enfatiza constantemente a dimensão exótica do positivismo em terras brasileiras. Ao
177
mesmo tempo, ele percebe de forma hábil o peso desse corpo doutrinário na conformação de um
certo hábito de ação que persistiria na vida nacional. Nas suas palavras,
É certo que o comtismo do Apostolado é hoje um movimento de idéias que
parece completamente superado – que talvez já o era pouco depois do seu
advento no Rio de Janeiro. O mesmo talvez não se poderá dizer de uma certa
atitude positivista que, de quando em quando, parece ressurgir sob formas
novas, que contêm, apesar da sua aparente novidade, velhos traços que talvez
são característicos do nosso espírito (Cruz Costa, 1956, p.166).
Outras versões preferem enfatizar o autoritarismo presente no positivismo, que é
localizado como uma espécie de principal obstáculo nativo ao liberalismo. Entre as exceções,
ressalve-se a obra de Ivan Lins (Lins, 1967), que empreende notável pesquisa de arquivos para
localizar os pioneiros do positivismo brasileiro, e o impacto dessa doutrina em diferentes
instituições e grupos da vida intelectual nacional. A despeito de sua inegável simpatia pelo
objeto, o trabalho de Lins tem o mérito de delimitar com alguma precisão as diferentes facções e
famílias em que se dividiu o positivismo nacional. Em todos os autores, entretanto, nota-se que o
período de efervescência do positivismo já teria passado depois da primeira década do século
XX, quando Vicente Licínio se forma intelectualmente.
Todos os seus comentadores são unânimes em apontar sua inicial filiação positivista. A
formação na Escola Politécnica no Rio de Janeiro possibilitou o contato com as doutrinas e idéias
que moldavam a experiência intelectual dos personagens forjados numa cultura técnica de sabor
politécnico. De acordo com Goycochea (Goycochea, 1934), Vicente Licínio teria passado por
dois períodos, bem demarcados: a fase compreendida entre 1917 e 1918, marcada pela obra
Filosofia da Arte, seria expressão pura de seu período Comte-Spencer, enquanto os anos
compreendidos entre 1923 e 1925 seriam decisivos para a configuração de seu humanismo, com
forte influência spinozista (que é explícita na obra Maracás, coleção de aforismos e pensatas).
Difícil precisar, contudo, até que ponto o positivismo tenha sido completamente abandonado.
Segundo Goycochea,
À imposição paterna para o estudo do curso fundamental da Politécnica deveu
ele essa soma larga de conhecimentos imprescindíveis para o exercício de
qualquer atividade mental na sociedade moderna, conhecimentos que são dados
178
pelas ciências quando estudadas seriamente, do pedestal para a cúpula, da
matemática para a Sociologia e a Moral (Goycochea, 1934, p.89).
Note-se que o estudo científico sério, segundo o biógrafo, obedece à hierarquia das
ciências desenhada nas obras de Comte. Porém, o questionamento sobre a natureza do
positivismo na atividade intelectual de Licínio deve se voltar também para sua suposta fase
ortodoxa, ou talvez indagar mesmo sobre em que medida uma suposta ruptura epistemológica
tenha alterado tanto o curso de suas investigações. Como se poderá ver ao longo deste capítulo,
alguns temas permaneceram, a despeito do instrumental escolhido para sustentá-los. Em especial,
o tema da terra e da associação entre americanismo e terra nova. Neste sentido, o positivismo foi,
para Licínio, a porta de entrada teórica – além de código moral – à sugestão da relação homem-
meio, que logo ganhou tons interpretativos maiores do que aqueles sugeridos pela ciência
positiva, assumindo contornos simbólicos. Antes de chegar a esse ponto, todavia, faz-se
necessário retomar a formação do positivismo no autor.
A obra Filosofia da Arte, como já assinalei, é a marca da entrada de Vicente Licínio nos
estudos sociais, e traz fortíssima influência comteana, a despeito de conter um notável esforço de
mobilização crítica dessa teoria, o que talvez tenha conferido ao texto um potencial não
vislumbrado em textos do mesmo corte de outros autores. Para Wilson Martins,
Ideologicamente anacrônico, o livro de Vicente Licínio Cardoso é uma tentativa
de elaborar o sistema filosófico do Positivismo (ele via em Augusto Comte “o
maior filósofo da civilização ocidental”), mas é também a única tentativa de
inquestionável interesse nessa direção. Acrescente-se que, no seu gênero, é a
obra mais importante jamais escrita entre nós, nada inferior, se não superior,
pela erudição, espírito crítico e originalidade, a dezenas de outras, publicadas em
países “estrangeiros” (Martins, 1978, p.107).
Na verdade, Filosofia da Arte
95
foi a tese escrita pelo autor para o concurso de
provimento da cadeira de História da Arte, na Escola Nacional de Belas Artes, em 1917
96
. O
volume contém também o texto “A Arquitetura Norte-Americana”, texto-relatório apresentado,
em 1915, como prestação de contas daquela viagem que lhe fora oferecida pela Politécnica em
95
A primeira edição da obra é de 1918. Uso na tese a segunda edição, de 1935.
96
Esse concurso, como já mencionei o capítulo 3, foi anulado e deu início aos dissabores de Licínio na sua relação
com a vida pública e com os altos postos da vida intelectual no Rio de janeiro.
179
1912. Enquanto o primeiro texto é um largo tratado teórico sobre as possibilidades oferecidas
pela ciência comteana para o tratamento da estética, o segundo é um estudo aplicado, focado no
ramo da arquitetura. Em ambos será possível notar a relação de deteminação entre homem e
meio, e a gestação da visão liciniana sobre a novidade americana, que será depois explorada em
todo seu potencial.
A tese é simples: a arte seria função do desenvolvimento dos organismos sociais, e pelo
estudo estético seria possível decifrar a voz da evolução dos povos. No prefácio, Vicente Licínio
enumera suas três noções básicas, estruturadoras de sua pesquisa: 1) a arte como função do meio;
2) a lei do idealismo, segundo a qual cada arte evolui segundo um certo caminho; e 3) a lei de
espiritualidade, que associa a evolução das artes ao desenvolvimento de cada civilização. As
referências que surgem constantemente no texto são Comte – tratado com reverência, mas não
como único paradigma
97
– e Hegel, tido como expoente máximo da escola metafísica alemã. O
esquema geral de apreciação estética segue o cânone positivista, enfatizando a evolução geral das
obras de arte do imaginário ao real, do simbólico ao positivo, da emoção ao raciocínio. Essa
evolução seria acompanhada pela própria transformação material das suas condições de
produção. Sendo assim, Licínio acreditava que as artes teriam caminhado de um domínio sobre a
linguagem das imagens para o domínio sobre as artes da palavra (prosa e poesia), numa constante
e inexorável libertação da mente humana dos meios materiais de expressividade
98
.
A despeito desse apego a uma forma interpretativa rígida e “ideologicamente anacrônica”,
ele consegue produzir interessantes observações, em especial quando se livra do universalismo
evolucionista de Comte e passa a levar em conta as diferenças entre as culturas e as civilizações.
Licínio, sustenta, por exemplo, a superioridade da cultura árabe sobre a civilização cristã da Idade
97
Vale citar a nota 2, constante nas “Considerações Gerais do autor: “Quando nos referimos a A. Comte é sempre,
exclusivamente, ao matemático profundo e ao grande filósofo, isolando-o sempre, implicitamente, da parte de sua
obra relativa ao positivismo como religião. Mas a mais, reconhecendo nele o maior gênio produzido pela civilização
européia, estamos, no entanto, muito longe de aceitar a totalidade de seus princípios, de suas afirmações, e de seus
ensinamentos, mesmo pondo de lado tudo quanto se refere à religião da humanidade, como acabamos de dizer”
(Cardoso, 1935, p.27). Ou seja, mais do que tomar partido na briga entre os positivistas brasileiros (que se dividiam
entre os que acompanharam a “virada comteana” em direção à Religião da Humanidade e os que recusaram essa
transformação), Licínio acreditava ser necessário uma leitura minimamente crítica daquele que considerava “o maior
gênio produzido na civilização européia”.
98
Não à toa, é fortemente negativa a visão do autor sobre as vanguardas européias das duas primeiras décadas do
século XX, que pareciam contradizer inteiramente sua teoria.
180
Média. Enquanto a última se estruturaria sobre uma massa de analfabetos e, portanto, não
conseguiria abandonar a linguagem das imagens, aquela, animada por população leitora,
produziria portentosas artes “das palavras”, libertando sua expressividade das prisões da
arquitetura. No lugar de Igrejas góticas que traduziriam a função social da religiosidade cristã por
meio de signos gravados em pedra, os árabes teriam logrado alcançar uma vigorosa expressão
escrita de sua cultura e sua religião.
Embora esse longo trabalho possa parecer perdido no seu esquematismo, e condenado ao
mero registro histórico, creio ser notável como forma de evidenciar a peculiar apropriação
positivista empreendida por Vicente Licínio, que deixaria profundas marcas em seu pensamento.
Ressalto, também, o argumento que mais parecia lhe encantar no comtismo, e que nunca seria
abandonado, a despeito das formulações mais sofisticadas que ganharia em obras posteriores: a
relação entre homem e meio, tão comum no discurso científico do século XIX, e que seria
processado pelo autor de forma curiosa, como fica claro, por exemplo, no seu ensaio sobre a
arquitetura norte-americana.
“Arquitetura Norte-Americana” é fundamental para a interpretação do pensamento
liciniano, pois permite um primeiro vislumbre sobre o argumento geográfico do autor, centrado
na idéia da relação homem-meio. Ao mesmo tempo, é possível destacar o modo como ele
transforma esse argumento científico numa idéia força associada ao tema da democratização pela
terra, que traduziria uma propriedade americana.
Nas “Considerações Gerais” que apresentam o texto, Vicente Licínio argumenta que o
surgimento de novos tipos arquitetônicos corresponde a novas necessidades manifestas pelos
organismos sociais. Daí a característica prática e moderna do estilo encontrado nos Estados
Unidos, relacionada ao espírito útil e funcional do povo do país. O melhor exemplo desse estilo
seria o sky-scraper, prédio produzido pelo crescimento econômico vertiginoso e pela valorização
do trabalho. O tema da organização livre e racional do trabalho perseguiria Vicente Licínio por
toda vida, e sempre surge em sua obra vinculado a um elogio à sociedade norte-americana. Na
perspectiva de Licínio, a democracia estaria assentada nesse fenômeno, e não na expansão de
certas idéias configuradas constitucionalmente.
181
Não cabe aqui retomar a história da arquitetura norte-americana tal como descrita por
Licínio, mas sim entender a centralidade que ele confere ao tema espacial. Assim, na seção sobre
os tipos arquitetônicos dos Estados Unidos, a argumentação se inicia com a apresentação das
zonas físicas que conformam o país (área original das treze colônias; Vale do Mississipi; semi-
árido de montanhas até México; Costa Oeste), e que teriam produzido formas estéticas distintas.
O destaque do autor é dado ao Oeste, considerado “tipicamente americano”, pois “(...) a história
do povo, conquistando a terra e estabilizando-se em organismos sociais, ainda não foi escrita,
com a amplitude e o relevo desejáveis (...)” (Cardoso, 1935, p.299). Enquanto o Mississipi seria o
território oficial, loteado e hierarquizado, marcado por um vale largo associado à mesmice, a
costa ocidental do país seria caracterizada pela conquista aventureira e pelo relevo de pequenos
vales, próprios à variação e à diversidade, traduzida no predomínio da pequena propriedade. O
bungalow seria a residência própria dos tipos sociais que empreenderam essa conquista marcada
pela terra democratizada, configurando uma residência funcional, e de pequeno custo, construída
em madeira e com pouca decoração. O Leste, marcado pela centralidade de Nova Iorque, seria o
espaço da reprodução européia, no qual a aristocracia do dinheiro predominaria.
Como se sabe, essa leitura que associa Oeste-espaço e livre-democracia foi recorrente na
imagem construída sobre a natureza da sociedade estadunidense, caracterizando mesmo um mito
de fundação assentado no tema da fronteira. Esse tema, como bem notou Oliveira (Oliveira,
1990), consolidou-se na obra historiográfica de Frederick Turner, e repercutiu imensamente na
imaginação daquele país, com inúmeras ramificações no Brasil. Conforme argumenta a autora,
personagens como Cassiano Ricardo mobilizaram essa idéia e traduziram-na para o caso da nossa
“marcha para o Oeste”, idealmente iniciada pelos bandeirantes e complementada no Estado de
Vargas. Vicente Licínio, contudo, esteve nos Estados Unidos em meados da década de 1910, e
preocupações dessa ordem não ocupavam sua reflexão.
Faz-se necessário averiguar como a relação homem-meio é retomada em trabalhos
posteriores do autor, agora voltados para a investigação do Brasil e menos marcados pelo
comtismo. Como afirmei anteriormente, esse período, iniciado nos anos 20, foi bastante prolífico
para ele, e caracterizou-se por um obstinado esforço interpretativo, traduzido em vários ensaios
182
publicados em diversos jornais. Após inúmeras viagens, Licínio parece ter se decidido pelo
engajamento na dinâmica pensamento-ação de que falei anteriormente, e que redundou na obra
coletiva À Margem da História da República. Vejamos o resultado desse conjunto de escritos.
5.3 A TERRA.
Em 1933, lançava-se postumamente o livro À Margem da História do Brasil, coletânea de
textos e conferências de Vicente Licínio Cardoso. Pelo tamanho e pelo lugar que ocupa dentro
dessa obra, destaca-se o artigo “O Rio São Francisco: Base Física da Unidade do Império”
99
, cujo
foco é justamente a apresentação da história desse rio “sem história”, compreendendido como
central na configuração da unidade nacional sob o Império.
O texto inicia-se com uma significativa frase, atribuída pelo autor a um humilde e
anônimo missionário: “Que eloqüente sermão é por si mesma toda esta terra”. Significativa
porque servirá a Vicente Licínio como uma espécie de bússola metodológica e interpretativa.
Afinal, o fato político da unidade nacional só poderia ser captado com a investigação geográfica,
que apresentaria o São Francisco como uma espécie de mecanismo integrador natural, unindo
Norte e Sul pela navegação e conferindo um sentido unitário ao Brasil. Fiel ao método que o
acompanhou na sua viagem americana, e que foi mobilizado no estudo sobre arquitetura acima
analisado, o autor afirma:
A terra é o esqueleto dos organismos sociais, eis a maior e mais harmoniosa
descoberta sociológica do século passado, só atingida, com sacrifício, depois de
afirmações isoladas ou exageros prejudiciais sobre as raças, os climas e os
alimentos humanos. O São Francisco é a coluna magna de nossa unidade
política, o fundamento basilar que reagiu e venceu todos os imperativos
caracterizadamente centrífugos oferecidos pelo litoral (Cardoso, 1979, p.37)
Ou seja, se o Oeste americano teria propiciado a produção de uma vida social democrática
e laboriosa, sob o influxo da liberdade conferida pelo espaço, o São Francisco teria exercido
eficácia sociológica análoga, configurando uma certa geografia favorável à unidade nacional. Na
99
Resultado de conferência realizada no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (2-8-1925). Segundo o
próprio autor, seria uma forma de homenagear personagens como Azevedo Marques, Eduardo Prado, Teodoro
Sampaio e demais destaques na área de estudos histórico-geográficos.
183
análise de Vicente Licínio, trata-se do “caminho interior” que moldaria a história não oficial do
país, e que fora já desbravado intelectualmente por Capistrano de Abreu em seus Capítulos de
História Colonial. Nesse livro, seu autor troca a narrativa histórica clássica, centrada nos feitos
de homens modelares que produziriam um saber político capaz de orientar outros homens
virtuosos, pela investigação da produção anônima de um país. E, com sua obra, exerceu
considerável impacto sobre seus contemporâneos, com sua idéia de “desvelar” a formação
acidentada de um povo
100
. Ora, mas a referência mobilizada por Licínio ao tratar do “caminho
interior” não foi Capistrano, mas Euclides e sua história “sertaneja”. Como diz o autor,
Continuemos, pois, honestamente, o descobrimento de nossa terra e de suas
gentes interiores em boa hora encetado pelo arremesso atrevido de Euclides da
Cunha. Não, (sic) para aprender com os nossos sertanejos o seu falar estropiado,
o seu cantar sonoro, mas ingênuo, ou as suas fábulas mestiças, espalhando a
mestiçagem violentíssima do próprio homem. Mas, para compreender que
carecemos de educá-los, racionalizá-los, integrá-los, em suma, à nossa própria
civilização do litoral (id, ibid, p.39).
Na passagem acima, destaca-se um ponto interessante que diz respeito ao problema da
terra no pensamento de Vicente Licínio. Como procuro argumentar ao longo desta pesquisa, esse
problema não está associado ao resgate de uma ontologia étnica a ser fixada como eixo autêntico
da nossa nacionalidade. Aliás, não é por acaso que o grande ensaio geográfico do autor seja
centrado num rio
101
, e não nas bandeiras, entradas ou demais movimentos migratórios que sejam
encarnados em personagens específicos. Não há, portanto, privilégio essencialista na
interpretação liciniana, que se inclina para o tema da organização nacional e da formação da
nacionalidade. Nesses termos, o exercício do conhecimento sobre a terra é condição para a
autoconstrução como Nação, e não para uma reiteração romântica que busque uma base de
legitimidade numa comunhão mítica entre Natureza e povo. Ou seja, trata-se de aprender com o
“sermão da terra”, pois nela está a chave para a decifração do sentido de nossa civilização. Nas
palavras de Licínio,
100
Um dos intérpretes do Brasil mais animados pela perspectiva aberta por Capistrano foi, sem dúvida, Paulo Prado.
101
Nos arquivos de Licínio, há um manuscrito de agosto de 1928 dedicado à questão do São Francisco. Nele, copia
uma frase de Romero que ilustra bem sua versão sobre o problem da unidade nacional: “A união brasileira, antes de
ser uma dádiva da história e da política, era já uma exigência da natureza; mas essa unidade não é incompatível com
a variedade” (Cardoso manuscrito, 1928, p.1).
184
Tempo já é chegado de compreendermos que somos aquilo que fatalidades
cósmica e histórica vêm exigindo que sejamos sem remissão escapatória, sem
nenhuma possibilidade de evasiva: americanos e brasileiros: americanos por
não sermos europeus, apesar do desejo mal velado de muitos de quererem ser
europeus bem transplantados...; brasileiros, pela civilização latina com que foi
alimentado histórica e espiritualmente o nosso determinismo cósmico tropical
nesta pátria imensa em que se chocaram, sem repulsão pela primeira vez no
mundo, homens de todas as cores, representantes das raças mais diversas (id,
ibid, p.40).
Como se percebe, o “sermão da terra” nos leva para uma inserção civilizatória específica,
própria de terras americanas. O instrumental positivista mobilizado pelo autor, e apresentado aqui
desde sua gênese, assegura que a terra seria o “grande esqueleto dos organismos sociais”,
variável científica determinante para a compreensão das formações nacionais. Para além dessa
constatação, há a percepção de certo “determinismo cósmico tropical”, aliado a uma defesa de
nossa condição americana. Ao que tudo indica, o “sermão da terra” parece não se esgotar no
argumento geográfico.
No mesmo livro postumamente editado, há um ensaio intitulado “À Margem do Segundo
Reinado”, no qual Vicente Licínio procura desenhar uma história do referido período que não se
prenda às lutas partidárias superficiais, e que se mostre apta a captar a dinâmica mais
propriamente sociológica que organizaria esse processo. Isso significa analisar temas econômicos
e administrativos e, obviamente, voltar ao grande esqueleto dos organismos sociais – a terra. Na
seção nomeada “O homem e o meio”, o autor introduz outras ponderações sobre o tema, que
sugerem perspectivas mais abrangentes para o argumento geográfico. Segundo ele,
As relações de condicionamento recíproco entre o homem e o meio adquirem no
Brasil intensidade ou desfalecimento, desconhecíveis na Europa ocidental, terra
em que primeiro os autores falaram dessas mesmas relações interessantíssimas
compendiadas pela sociologia. Só a Rússia, entre os povos civilizados, lembra o
caso brasileiro. Todavia, o exemplo japonês seria mais útil, mais oportuno, mais
especialmente desejado se pudesse ser repetível no Brasil (id, ibid, p.93).
Não estamos mais no território singular do caminho interior dado pelo Rio São Francisco.
O autor introduz, pelo recurso ao já conhecido argumento geográfico, uma cartografia intelectual
que daria sentido à civilização brasileira. O que antes era um argumento científico – a terra como
variável primordial para a explicação dos organismos – sofre uma alteração de grau, passando a
185
ter um efeito sociológico distinto em determinadas sociedades. Ou seja, Brasil e Rússia não se
aproximariam apenas pelas singularidades de sua geografia, mas por serem regiões em que o
meio produziria resultados até então desconhecidos. É como se o autor estivesse estendendo o
argumento euclidiano a respeito da “terra ignota” para outras paragens, transformando-o em
signo de um conjunto civilizatório. Vicente Licínio parece convencido sobre a que tipo de
geografia essa força nova se refere: “O confronto com a Inglaterra, com a França ou com a
Alemanha é muitas vezes inoportuno ou retórico” (id, ibid, p.93). Qual seria, então, a lição desse
conjunto civilizatório, arrumado sob a lógica da força da terra?
O Japão mostra o valor de um ambiente social na continuidade de uma ação
política bem dirigida: em meio século, realizou um milagre formidável. A
Rússia ilustra a dificuldade com que mesmo um político de gênio vê amortecida
a sua ação social, quando em contato com um ambiente ingrato, sáfaro, rude
pela intensidade. Os Estados Unidos, por não terem rei, corrigem as ilusões de
um e de outro caso, por isso que melhor refletem o valor da opinião social, o
mérito da vontade social anônima, a energia das massas devidamente orientadas
(id, ibid, p94).
Como se verá adiante, o Japão será um caso abandonado nos escritos licinianos, operando
nessa seção do texto como um exemplo de formação nacional assentado numa poderosa
vontade.
102
A Rússia será companhia constante, justamente pela sua proximidade com o tema da
terra. Mas qual o lugar dos Estados Unidos nessa curiosa fenomenalidade geográfica? Na seção
imediatamente posterior do texto, intitulada “A democratização pela terra”, Vicente Licínio
afirma:
A influência sociológica do meio físico é deveras interessante. Só recentemente
estudada, ela começa a trazer explicações sobremodo sensatas à fenomenalidade
histórica dos povos, iluminando meandros obscuros ou ventilando sítios escusos,
não oxiados pela verdade. Não me refiro, é bem de ver, aos estudos tornados
clássicos de geografia social. Reporto-me às observações de modificabilidade
social de um mesmo povo em contato com terras novas. Malthus, espantado com
as proporções exageradas por ele mesmo criadas, atemorizou-se com o efeito
das terras velhas que se superpopulizavam. O século XIX haveria de descobrir o
“fenômeno inverso”: a melhoria das raças velhas em terras novas, o
rejuvenescimento da estirpe, o revigoramento da vitalidade dos povos sob o
estimulante de condições cósmicas propícias. Os Estados Unidos oferecem um
102
Licínio certamente se refere ao processo desencadeado pela chamada Revolução Meiji, e que configura um caso
clássico da sociologia política comparada, estando presente nas obras de Barrington Morre Jr e Reinhartd Bendiz
como ilustrativo de uma “revolução pelo alto”.
186
exemplo notavelmente claro (...) Foram terras novas do Centro reconquistado,
que acabaram de democratizar as massas do Este, que haviam feito a república
de Washington, Jefferson e Franklin; a grande democratização do período
jacksoniano – demonstrou-o recentemente Schlesinger - era a força direta da
terra nova e de seu modo de colonização. (id, ibid, p.98).
Trata-se de uma outra terra, não aparentada da russa – “rude pela imensidade” –, mas
marcada justamente pelo seu efeito democratizador
103
. Contudo, ambas foram mobilizadas para o
desvendamento da natureza da civilização brasileira. Por que? Antes de responder, faz-se
necessário investigar mais a fundo a nossa proximidade com essa “democratização pela terra”.
Afinal, o “sermão da terra” dado pelo humilde missionário nos garantia que nossa natureza é
americana. Sigo, portanto, o argumento do autor.
Se os Estados Unidos são o paradigma de uma sociedade democratizada pela terra
104
, o
Brasil representaria o que Vicente Licínio chama de caso médio na fenomenalidade americana.
Aqui, segundo ele, o café seria o “eleitor máximo” (id, ibid, p.98). A despeito de nossa economia
não ter logrado autonomia, dada a desorganização da mineração e do cultivo de açúcar, a
“normalização” produzida pelo café e pela escravidão teria contribuído para uma estabilidade
mínima do país. Sem esses elementos, diz o autor, não teríamos conseguido produzir civilização,
e cairíamos no republicanismo precoce que teria assolado nossos vizinhos. Percebe-se, portanto,
que a terra refere-se a uma cultura material e econômica, própria do desenvolvimento de uma
determinada sociedade. Nas palavras de Vicente Licínio,
Ser republicano não é, como se pensa geralmente, uma atitude mental; ao
contrário, exige como fundamento uma realidade social perfeitamente orgânica.
103
Note-se que o argumento a respeito da “melhoria das raças em novos meios” não era novo no pensamento
brasileiro. Araripe Jr, crítico literário e ensaísta, mobilizava-o de forma sistemática em seus escritos e nas suas
polêmicas com Silvio Romero. Era elemento central na sua “teoria da obnubilação”, descrita com mais detalhes na
obra de Ventura (Ventura,1991), que afirma que “Araripe explica a diferenciação nacional a partir do impacto da
natureza tropical sobre a mentalidade européia, “obnubilada”, ou seja, ofuscada pela exuberância tropical(...).
Embora fosse uma queda ou regressão psíquica, em que o colonizador assumia características semi-selvagens, a
obnubilação traria vantagens evolutivas, ao tornar possível a transplantação da civilização européia, aclimatada aos
trópicos” (Ventura, 1991, p.89). No caso de Araripe, contudo, essa obnubilação parece se concentrar no elogio de um
certo indigenismo.
104
A caracterização feita por ele dos grandes homens da política americana destaca essa capacidade de ação e de
trabalho. Nos seus arquivos, há anotações reunidas sob a rubrica de “Rev. Americana” que destacam justamente o
papel de George Washington como agricultor e fazendeiro. Segundo Licínio, “Ele foi antes de tudo 1 pioneiro, 1
settler. E o movimento nesse sentido é enorme. Basta ver o mapa de 1783 em que os estados se alongam de N. a S.
Até a margem do Mississipi. Foi pt. 1 grande conquista de terras novas”. (Cardoso manuscrito, s/d, p. 1: arquivo
particular)
187
Isso explica a lentidão do processo evolutivo no Brasil; lenta e lógica, quando
confrontada com os casos americanos. Não poderiam ser republicanos os filhos
de senhores de escravos, nem os filhos de escravos; uns e outros estavam por
demais habituados ao vergar da espinha dorsal no cumprimento ou no castigo
(...) (id, ibid, p.100).
Percebe-se que o tema da terra leva para interpretações que extrapolam a geografia física.
Além de permitir a comparação do Brasil com outras formações sociais marcadas também pelo
peso da terra (força exercida de distintas maneiras), esse tema pode ser traduzido num argumento
econômico ancorado na idéia de “democratização pela terra”. Se esta, por sua vez, tem origem
exemplar nos Estados Unidos, onde conhece sua versão mais livre e vigorosa, aqui ela opera de
maneira “lenta e lógica”. Na verdade, Vicente Licínio está mobilizando a terra na chave da vida
material e do tipo de sociabilidade possibilitado por ela. No caso americano médio que nos
caracterizaria, essa vida teria conhecido um ritmo mais lento e estável, ainda que constantemente
acossado por “ideais platônicos”. Sem a nossa terra, organizada pelo binômio café-escravos, diz
Licínio,
(...) teríamos proximamente feito o que todos os povos hispano-americanos
realizaram: a república prematura e com ela a desorganização da economia
agrícola rudimentar de então com a abolição abrupta dos escravos: dois
trabalhos em suma, duas épocas que não se poderiam interferir sem choques
violentos: uma destruição orgânica rápida sob o influxo de ideais platônicos e,
depois, uma criação orgânica lenta, baseada no desenvolvimento do trabalho
livre estabelecido com o braço branco importado (id, ibid, 100).
Se cotejarmos a passagem acima com as anteriores, é possível depreender uma prescrição
liciniana, referente ao nosso republicanismo, força motriz da modernização brasileira. Trata-se da
necessidade de se seguir a estabilidade dada pela terra, que conduziria a um caminho lento e
lógico, e não sucumbir ao chamado das revoluções abruptas, movidas pelas idéias e
desconectadas da vida material
105
. Esse é, assim, o sentido da categoria “orgânica” mobilizada no
texto, e tão adequada a uma argumentação que se iniciou pela terra. Nesse registro, poder-se-ia
dizer que nossa diferença em relação ao caso exemplar estadunidense seria mais de grau do que
105
Como mostrarei nas seções posteriores, Vicente Licínio vê dois modelos de republicanismo: um, o francês, seria
movido pelas “palavras” e pela produção política abstrata. Outro, o estadunidense, seria mera realização política de
um movimento conduzido pela atividade concreta do trabalho livre e da independência econômica. Como se
perceberá, o dilema do nosso americanismo na perspectiva de Licínio seria justamente conciliar uma marcha
“orgânica” – ou seja, pela terra – com a necessária produção de uma vontade política – desnecessária no caso
americano, dada a pujança da “opinião nacional”.
188
qualidade. Ou seja, se lá a terra nova operou de forma enérgica, mobilizando massas
democratizadas sob o influxo do trabalho livre, aqui essa democratização operou de forma
vagarosa, sob a condução de uma vida material constantemente ameaçada pela dissolução e pela
instabilidade. Nos Estados Unidos, o Mississipi não teria exercido nenhum efeito positivo sobre a
vida do país, pois, como apontei, o vale do Mississipi seria, para Vicente Licínio, geografia da
mesmice. Aqui, o São Francisco surgiria como exemplo de nossa dura luta pela estabilidade,
levada a cabo através de ação anônima dos homens, e não de uma política territorial oficial.
Contudo, não somos de todo alheios à democratização pela terra na sua chave mais
vigorosa, por assim dizer. Em artigo publicado em “O Estado de São Paulo”, em novembro de
1926, ele localiza em São Paulo a região por excelência de tal fenômeno:
O fenômeno da “democratização pela terra” (trabalho livre do colono,
substituição do latifúndio pela pequena propriedade, eficiência ativa do
agricultor como célula viva da depuração política) interessantíssimo e
genuinamente americano, processado nos Estados Unidos durante a primeira
metade do século passado (período Jacksoniano) e na Argentina e Uruguai
durante as ultimas décadas do mesmo século – este fenômeno, dizia, tudo indica
estar tendo agora no Brasil, por sua vez, existência fundamental nas zonas de
maior foco colonizante e, muito especialmente, nas terras do planalto paulista
(Cardoso artigo em jornal, 1926, p. 1: arquivo particular).
Vicente Licínio também reserva a alguns personagens-chaves de nossa história um
protagonismo “americanista” paralelo àquele encontrado na República do Norte, caracterizado
pela inventividade e pela capacidade de ação. Num outro ensaio, intitulado “À Margem do 7 de
Setembro”, dedica as páginas iniciais a José Bonifácio e D.João VI, sobre quem diz:
João VI é um exemplo vivo interessantíssimo do que vale a “força da terra”. Ele
repete, inconscientemente, o caso comum do emigrante inglês saído da prisão
para a Austrália no começo do século XIX, transformado depois num
proprietário austero, exigindo leis de repressão mais severas do que as da
própria metrópole (...) A nova terra, o novo meio despertou e orientou energias
novas em homens velhos, transplantados sem o quererem, em conseqüência da
fuga com que responderam à audácia de Napoleão (Cardoso, 1924 b, p.213).
Na passagem acima, nota-se o uso da expressão “força da terra”, até então ausente nos
trechos que analisei, e que leva o argumento geográfico para um lugar interpretativo mais
189
propriamente simbólico
106
. O nosso caso americano, acima definido como médio, parece ganhar
surpreendente vigor, expressando-se em toda sua potencialidade. Ora, se a terra fosse uma
variável científica apenas, voltada para o domínio de um objeto particular mediante o
delineamento de seus contornos físicos, por que ela se mostraria tão polissêmica? A forte
expressividade que decorre do uso da categoria sugere que a terra, na verdade, transfigura-se
numa forma simbólica que contém as propriedades sociais que desvendam o lugar civilizatório do
Brasil: “terra nova”, “força da terra”, “Brasil-Rússia-Estados Unidos”. Além disso, pode-se
perceber o modo como essa terra ganha outros contornos, diferentes daqueles delineados pela
obra euclidiana. Se a terra operada na escrita de Euclides tem forte conotação literária, sendo
referida a paisagens caudalosas e descritas de forma detalhada e imaginativa, a geografia de
Vicente Licínio é seca, não sendo alvo de descrições “humboldtianas”. Se a paisagem
desconhecida da Amazônia sugere, como sustentei no capítulo anterior, uma sociabilidade nova,
marcada pela regulação moderna da barbárie e pelo advento de personagens americanos, a terra
nova de Vicente Licínio radicaliza essas sugestões, já que prescinde de sujeitos específicos e
associa-se simbolicamente ao tema da vida material, encarada como eixo por excelência para a
dinamização da vida nacional. Não por acaso, Licínio também trabalha o tema do maquinismo, e
encontra relações entre terra e máquina, tal como revelo a seguir.
5.4. A MÁQUINA.
Como disse anteriormente, a mobilização da terra na interpretação liciniana não conduz o
autor ao que se convencionou chamar de agrarismo. Melhor ilustração para esse ponto está no
entusiasmo demonstrado por Vicente Licínio diante das potencialidades encerradas no moderno
mundo da técnica moderna e nos seus equipamentos. São constantes em seus ensaios as
referências positivas ao papel desempenhado por essas variáveis no desenvolvimento da
civilização ocidental e na própria integração nacional brasileira. Além disso, a vitalidade
associada à “força da terra” ganha tradução na pujança e na novidade trazidas por sociedades que
conseguiram organizar suas potencialidades em torno da máquina. No ensaio “Da Liberalidade da
Técnica Alemã”, de 1924, ele argumenta que os alemães teriam logrado alcançar um alto nível de
106
Como ficará evidente em seções posteriores deste capítulo, a expressão é atribuída por Vicente Licínio não à
geografia, mas sim à literatura.
190
inventividade pela via do desenvolvimento tecnológico, num movimento de impulso técnico que
teria influenciado até a democracia americana. Diante do que acredita ser a vitalidade e a abertura
da indústria alemã, o autor afirma que
(...) está num país em que as indústrias estão vivas, gozando os seus produtos de
uma evolução continuada, por tal modo que possa sempre o tipo novo
desbancar, por concorrência, qualquer tipo congênere mais atrasado ou de
evolver menos completo (Cardoso, 1924 a, p.74).
Por vezes, a máquina surge nos escritos de Licínio como equivalente das “forças
econômicas” que o autor insiste em apontar como determinantes para a interpretação das
transformações sociais. É assim, por exemplo, que o avião é associado à progressiva
internacionalização global, no ensaio “Balas de Papel”, também de 1924, e a máquina a vapor é
ligada à emergência de um regime de trabalho livre, no ensaio “O Fio de Uma Meada”, publicado
em 1924 em Pensamentos Brasileiros. Segundo o autor,
Sem esses fundamentos econômicos, nem essas bases concretas, não se pode ter
dos fenômenos históricos senão uma idéia abstrata, falaciosa, sem o lastro,
enfim, de realidades concretas. O que fazia o mal estar dos povos no começo do
século atual na luta formidável em que se digladiavam pela conquista do ferro e
do carvão, correspondem numa escala menor, ao mal estar europeu ao tempo de
Napoleão, quando a Inglaterra queria dominar mundo com o açúcar de suas
colônias. (Cardoso, 1924 c, p.74).
Quando estava na Alemanha, Vicente Licínio sistematizou sua abordagem do tema no
ensaio “Máquinas e Sociedades (Esboço de uma Síntese)”, escrito em 1920 e publicado em
Pensamentos Brasileiros, no qual ele propõe uma espécie de “sociologia material” para a análise
das sociedades, enfatizando o papel crucial das máquinas na produção de novas sociabilidades e
interesses. Do mesmo modo que a terra em sua formulação ultrapassa os limites de uma mera
economia geográfica, a máquina parece ganhar forte carga simbólica, transmutando-se em signo
de uma certa variante civilizatória. Conforme afirma o autor,
A máquina redime o homem. Escraviza o operário ao capital, ainda hoje, mas
depois de o haver libertado do jugo da nobreza secular. Nivela a nobreza ao
povo, mas abre o caminho da vida a audácia dos capazes. Ela cria direitos
novos, implanta liberdades inéditas. Dirige de fato o operário moderno, prezo às
suas engrenagens complexas, mas empresta-lhes forças novas, fazendo com que
191
se internacionalize, pugnando por direitos comuns dentro de nações, de povos e
de raças diferentes (Cardoso, 1924c, p.244).
Em outras palavras, a máquina é ferramenta de ampliação da ação humana e das
capacidades de integração das sociedades. Ela permite a emergência do reino democrático, que
preservaria a diferença num outro registro, mais aberto
107
(“nivela a nobreza ao povo, mas abre o
caminho da vida a audácia dos capazes...”). Assim, Licínio argumenta que o trem de ferro esteve
relacionado aos processos de unificação alemão e italiano. Percebe-se que, assim como a terra, a
máquina também parece configurar uma cartografia própria, organizada em torno de sociedades
periféricas novas, permitindo ao autor introduzir novamente o Brasil nesse campo.
No ensaio “À Margem da Siderurgia”, Vicente Licínio argumenta que o Brasil só poderia
resolver o problema de sua construção nacional se enfrentasse a questão da siderurgia e das novas
fontes de energia. Afinal, as sociedades industriais avançadas estariam se esgotando no consumo
bárbaro do combustível mineral, e o Brasil deveria encontrar um caminho que afirmasse sua
novidade, assim como o Japão (novamente presente). No ensaio, o tema do inacabamento
nacional ganha registro positivo, como a evidenciar a nossa capacidade de invenção. Nas suas
palavras, “Sem o ser ainda, caminhos evidentemente presos a uma nacionalidade nova (...) uma
componente nova entre as forças cansadas da humanidade” (Cardoso, 1924c, p.213). Percebe-se,
portanto, que não há agrarismo no seu pensamento, mas entusiasmo pelas possibilidades
oferecidas pelo regime das máquinas. Politécnico sem vocação, nem por isso Licínio ignora o
tema, e sua dedicação à análise de aspectos quase técnicos do tema evidencia que sua engenharia
periférica lhe deixou marcas intelectuais. Resta saber como máquina e terra podem se associar, e
o que essa associação pode dizer sobre a condição do Brasil.
5.5. A TERRA E A MÁQUINA.
De um lado a “força da terra” e a constatação de que o Brasil seria uma fenomenalidade
média nessa “terra nova” americana. De outro, o elogio da máquina e seu papel integrador e
dinamizador da vida moderna. Como entender uma formulação que reclama terra e máquina,
107
A preocupação de Vicente Licínio em dissociar sua versão da democracia moderna do igualitarismo surge em
outros ensaios, e se relaciona com sua comparação entre as Repúblicas americanas e francesas. Voltarei ao tema em
seção posterior.
192
princípios aparentemente antagônicos? Como tentei mostrar no primeiro capítulo da tese, os
choques entre imaginação espacial, terra e modernidade (se entendermos o “maquinismo” como
uma dimensão chave do modernismo) ganharam contornos diversos em sociedades que tomei
como exemplares na cartografia intelectual do que se convencionou chamar periferia. Se Vicente
Licínio é aqui estudado como um engenheiro periférico, ao lado de Euclides da Cunha, não é
difícil aceitar que a resolução desse tema na sua imaginação abra importantes caminhos para o
tema proposto neste trabalho. Vejamos então.
Em 15 de agosto de 1925, Vicente Licínio pronuncia um discurso junto ao túmulo do
autor de Os Sertões, a convite do “Grêmio Euclides da Cunha”. Publicado em À Margem da
História do Brasil com o título de “In Memoriam”, o texto traça um paralelo entre a ascendência
familiar de Euclides, marcada pela mistura de raças, e a própria configuração do que seria o tipo
brasileiro. Ao invés de desembocar num elogio da mestiçagem, ele concentra-se num argumento
que enfatiza a inteligência prática e “virgem” do povo. Inicialmente, o autor contrapõe a lenta
evolução européia, marcada pela progressiva transmissão geracional e pelo cultivo contínuo e
demorado de gênios ao intelecto oriundo de “mestiçagens inferiores”
108
. O que poderia parecer
uma inferioridade ganha contornos positivos na argumentação de Licínio:
E, se são várias as nossas deficiências nesse tumultuar inconsciente dos
cruzamentos, se são graves os nossos defeitos e perigosos os nossos hiatos,
possuímos em verdade uma qualidade maravilhosa, de que não nos temos
servido ainda como fora de desejar: possuímos, de fato, “a virgindade da
inteligência, placas cerebrais” que não sofreram hereditariamente impressões
espirituais trabalhadas por gerações anteriores; assimilamos, muitas vezes, quero
aqui dizer, a inteligência fecunda e inconscientes da própria terra. (Cardoso,
1979, p.140).
Na passagem acima percebe-se que o autor associa as supostas qualidades intelectuais
nativas às forças inconscientes da terra. Ela é pensada como símbolo da configuração original do
país, que permaneceria ainda em estado latente (“inconsciente”), e estaria relacionada a uma
espécie americana de inteligência, distinta do lento evoluir geracional que marcaria as sociedades
108
Note-se que a descrição do autor dessas mestiçagens não se prende a estigmas raciais, mas destaca a condição
social que teria acompanhado a trajetória dos mesmos. Nas suas palavras, “o colono português geralmente
analfabeto, o índio catequizado às pressas e o negro animalizado pela escravidão” (Cardoso, 1979, p.140).
193
européias. Essa forma especial de habilidade poderia ser verificada, segundo o autor, na relação
dos brasileiros com o maquinismo. Como ele mesmo afirma,
Um inventor, um mecânico hábil europeu é geralmente filho, senão neto, de um
homem que já se ocupava em outras máquinas. No Brasil, ao contrário, os
melhores mecânicos tiveram que ver e aprender tudo sem nenhuma assimilação
ou incitação hereditária paterna. Quase todos os maquinistas de nossos navios
vieram do norte, onde haviam sido marujos tão-somente. Da jangada nordestina
ao transatlântico moderno, quantos séculos haverá, no entanto, de intervalo,
fundidos em duas décadas apenas na vida de um homem só? (Cardoso, 1979,
p.141).
Note-se que o autor escapa do argumento racialista para enfatizar uma espécie de
inteligência prática que marcaria os tipos médios brasileiros, capazes de operar com facilidade
diversos maquinismos modernos. Teríamos, portanto, uma originalidade dada pela nossa própria
condição nova, aberta e não marcada por ancestrais tradições. Procederia do mesmo modo a
inteligência de Euclides da Cunha, o que o credenciaria como “(...) fotógrafo da alvorada da
consciência da nacionalidade de nossa raça”. (id, ibid, p.143).
Esse argumento é bastante semelhante àquele que seria feito, anos depois, por Gilberto
Freyre. Em Sobrados e Macumbos, o intelectual pernambucano delimita uma camada urbana
média no Brasil “reeuropeizado” ao longo do século XIX, formada por mestiços com grande
habilidade para as profissões técnicas. O argumento é semelhante, com a diferença que vem
associado a uma espécie de teoria da obnubilação que destaca a propriedade renovadora ou
criadora da terra, portadora de “inteligência fecunda e inconsciente”.
É nesse registro, acredito, que se deve compreender o entusiasmo de Vicente Licínio pela
educação, partilhado por inúmeros personagens nos anos 20. Assim como terra e máquina se
associam mediante o tema da inventividade, a sua visão pedagógica realça o componente
dinâmico desse princípio, afirmando a relação entre trabalho, ação e instrução pública, na qual
esta última operaria como o veículo de uma verdadeira republicanização, assentada na
democratização dos organismos sociais, e não na confecção de um edifício jurídico-político
específico. Ou seja, a educação seria ferramenta para produção de uma sociabilidade que
194
aproveitasse “(...) energia potencial de nossa terra”. Essa será uma das chaves que permite
aproximar a imaginação espacial liciniana de um certo pragmatismo de extração americana.
5.6. AMÉRICA, AMÉRICAS.
Como procurei mostrar em seção anterior deste capítulo, o “americanismo” era referência
fundamental na Primeira República, signo que representaria tanto a autenticidade, quanto nossa
condição nova. No modernismo carioca, indicado no segundo capítulo, eram constantes as
referências ao tema, que se fazia presente até nos títulos dos periódicos e revistas que circulavam
na cidade – caso da “América Latina”, organizada por Tasso da Silveira e Andrade Murici em
1919. De acordo com Gomes (Gomes, 1994), a diretriz católico-espiritualista, desenvolvida a
partir da matriz simbolista, dava o tom dessas formulações.
109
Ao mesmo tempo, a doutrina do
pan-americanismo, respaldada pelo Itamaraty, exercia grande impacto na América do Sul e no
Brasil, mobilizando discussões sobre a natureza das sociedades americanas, o imperialismo e as
diferenças entre latinos e saxões. A obra de Oliveira Lima (1867-1928), diplomata e escritor
pernambucano, é exemplo dessa preocupação. Seus escritos, moldados na forma de relatos de
viagens e cartas, evidenciam uma constante necessidade de conciliar americanos do norte e do
sul, entendidos como povos de formações diversas e destinados a uma convivência organizada e
produtiva. Suas impressões sobre congressos e eventos científico-culturais do período mostram a
obsessão pelo americanismo, que varria o continente sob o influxo de uma agressiva política
externa estadunidense. É nesse caldo de política e cultura que se deve entender a reflexão
americana de Vicente Licínio. E, para melhor enquadrar criticamente essa reflexão, faz-se
necessário visualizar os aspectos mais gerais do americanismo na imaginação latino-americana.
Em livro-referência sobre o tema, Leopoldo Zéa (Zéa, 1976) argumenta que o pensamento
hispanoamericano
110
seria marcado pela presença de uma espécie de “fantasma”: a herança
ibérica. Nessa perspectiva, o autor sustenta que a dificuldade dos latino-americanos de
construírem sociedades modernas poderia ser explicada pela dificuldade dos mesmos de
109
A revista “Terra do Sol”, fundada em 1924 por Tasso da Silveira e Álvaro Pinto, era exemplar dessa moldura
intelectual. Segundo a autora, tanto Tasso quanto Tristão escreveram sobre americanismo nos números 1 e 3 de
“Terra do Sol”.
110
Zéa também menciona o Brasil e autores brasileiros, mas o foco principal de seus escritos concentra-se no mundo
de colonização espanhola.
195
assimilarem dialeticamente tal herança, permanecendo num estado de eterna presentificação.
Opondo dialética à acumulação, Zéa vê no primeiro movimento a chave para uma afirmação
positiva da relação entre universalidade e concretude – tema hegeliano que é presença constante
nos escritos desse filósofo mexicano –, enquanto que o segundo seria expressão dessa dilacerante
presença ibérica. Incapazes de empreenderem a superação, os latinos oscilariam entre uma
negação radical e revolucionária de suas origens e uma reiteração infecunda da mesma. O
positivismo seria uma das traduções intelectuais da atitude intelectual que gostaria de fazer “terra
arrasada” da colonização, por meio de um vasto esforço racionalista-científico que levasse a
América para caminhos traçados pelos saxões: progresso, educação e civilização. Zéa sustenta
que as duas vertentes distintas do positivismo latino – mexicana e argentina –, a despeito de se
pautarem por métodos e visões diversas (a primeira, centralizadora e autárquica, a segunda mais
próxima de um pensamento liberal), aproximar-se-iam na forte rejeição às origens da vida social
nativa. Representariam, por assim dizer, um positivismo revolucionário e em constante negação
do passado, incapaz de assimilá-lo criticamente.
A obra de Zéa é útil por sua caracterização precisa do dilema intelectual americano:
enredados num jogo insolúvel de afirmação do autêntico e de revolta contra o passado, os latinos
permaneceriam num estado de persistente acumulação, atrasando a entrada do continente na
dialética histórica. Nesses termos, o capítulo 2 da presente tese refere-se à tradução sociológica
desse jogo, representado ali pela dinâmica integração-superação, presente na obra pioneira de
Graça Aranha, e pela atitude de ambigüidade dos intelectuais modernistas diante da própria
natureza americana da sociedade brasileira. Creio que uma interpretação da vertente americanista
de Vicente Licínio (secundada pelos escritos euclidianos) pode ilustrar as perspectivas de uma
interpretação do processo modernizador brasileiro que desmonte a negativa polaridade entre
dialética e acumulação, traçada por Zéa. Vejamos como.
O tema do americanismo na imaginação brasileira não comporta um único significado. No
conhecido ensaio de Werneck Vianna (Werneck Vianna, 1997) sobre a polêmica entre
americanistas e iberistas, aquele partido é identificado com o liberalismo federalista de Tavares
Bastos. Nesse registro, nossos americanos seriam representantes de uma tradição que localizava
nas características absolutistas e centralizadoras do Estado bragantino as raízes de nossos males.
196
Segundo tal versão, o caminho para o moderno passaria pela dinamização da vida material
brasileira e pela emergência livre dos interesses associados a ela. Esse programa, contudo, só
teria encontrado sucesso por um caminho singular, marcado pelo predomínio de elites iberistas na
condução do nation building, como se nossa América só encontrasse sua realização plena pela
chave ibérica. Carvalho (Carvalho, 1998), em outro trabalho, argumentou como André Rebouças,
um herói yankee, terminou por abandonar seu radicalismo originário e por se voltar para o Estado
imperial, visto como único lócus possível de uma transformação que realizasse em nossas terras o
designo americano. Em ambas interpretações, há a notação de um americanismo nativo, traduzido
na formação social brasileira sob os influxos de nossa geografia social específica.
O tema americano guarda aspectos distintos no continente. Voltando à perspectiva de Zéa,
a grande questão sempre presente na formação de um pensamento americanista seria a dialética
entre ocidentalização e particularidade.O processo de incorporação da América ao mundo então
conhecido seria traduzido por uma progressiva autoconsciência que relacionaria a concretude
nativa como elemento chave para a universalização ampliada dos homens. Ou seja, o sentido do
americanismo seria o reconhecimento de sua particularidade ocidental e sua superação dialética.
Nas palavras do filósofo mexicano, “No hay que hacer de lo concreto lo universal; pero hay que
ir a lo universal partiendo de lo concreto” (Zéa, 1976, p.433). Se a fórmula parece simples, a
própria investigação histórica empreendida por Zéa evidencia os inúmeros dilemas enfrentados
pelos americanistas, sempre às voltas com o significado de sua essência: iberismo ou nativismo
indigenista? América saxã, aquela de Alberdi e Echeverria, que viam o interesse e o egoísmo
construtivo como chaves para afirmação do Novo Mundo, ou América latina, marcada por um
essencialismo que via o mestiço – depois o povo – como fonte de uma nova forma social? Ao
norte, o americanismo foi colorido com o tema do excepcionalismo norte-americano e com a
interpretação tocquevilleana da energia democrática estadunidense. São inúmeras as versões do
par “nova América x velha Europa”, mas a formulação desenhada por Gramsci nos anos 20
permanece uma das mais instigantes. Para o americano do sul, o tema foi empunhado como uma
valorização das especificidades da América latina, e os sinais que apontavam para sua “barbárie”
foram invertidos, passando a operar como signos de nossa originalidade. De José Martí a Roberto
Retamar, esse tema conheceu longa formulação. Abordagens distintas do tema americano, como
se percebe, e que se acentuaram com a já citada obra fundadora do uruguaio José Enrique Rodó,
197
Ariel, por meio da qual seu autor construiu uma poderosa peça de argumentação sobre a filiação
greco-romana da América do Sul, e sua posição oposta ao materialismo que organizaria a vida
social na América do Norte. Para ele, o problema da emergência de uma democracia de massas
seria resolvido com o recurso à educação e ao cultivo espiritual, e não com o livre jogo dos
interesses mercantis. Tratar-se-ia, portanto, de temperar o fenômeno democrático com um recurso
clássico, resguardando os valores mais profundos que poderiam ser ameaçados pela maré das
massas. Solução oposta à vislumbrada por Gramsci na América “de cima”, onde a eticidade
nascida da fábrica parecia produzir um novo homem, afeito à vida industrial e ao regime das
máquinas. Um regime próprio ao homem comum, que não demandaria nenhum virtuosismo
aristocrático ou espiritual para sua plena realização.
Ford e Rodó seriam, portanto, dois heróis de continentes intelectuais diversos. Como
entender então uma reflexão americanista que reclamava para si esses dois personagens, como a
feita por Vicente Licínio Cardoso? Qual a relação desta reflexão com a sua interpretação do
Brasil? Sustento a hipótese de que essa reflexão só pode ser entendida com recurso ao que chamo
aqui de imaginação espacial do autor, e que encontraria seu cerne na categoria terra. Ao mesmo
tempo, mostro como essa busca de uma ontologia americana se choca com a perspectiva liciniana
que aproxima as configurações sociológicas do Brasil e da Rússia por meio da expressão “força
da terra”. Dessa polissemia da terra, pretendo extrair a singularidade de um americanismo que
busca reclamar uma via para a modernização adequada a uma sociedade ainda “em construção”.
5.6.1. Ford e Rodó.
O grande ensaio fordista de Vicente Licínio intitula-se “Ford: um Operário contra o
Capital” (Cardoso, 1925). Nele, o autor tece vigorosos elogios ao fordismo como modelo da
organização democrática norte-americana. Nessa linha interpretativa, o “regime das máquinas” é
lido numa chave positiva, como expressão de uma sociabilidade nova formatada na experiência
horizontal do trabalho em massa. Fiel a sua aversão ao europeísmo, Vicente Licínio opõe o
espírito fordista aos ideais alimentados pelas sociedades “velhas”, que se agarrariam a
concepções ultrapassadas e decadentes sobre as possibilidades da civilização ocidental.
i
Ele não
compactua, também, com a roupagem fascista envergada pelo tema do moderno na Europa,
198
quando afirma que “(...) Mussolini e Primo de Rivera tomam fantasias de Napoleão fora de
época” (id, ibid, p.131). Não resta dúvida para o autor sobre os termos da luta, e sobre os partidos
que a representam:
O idealismo dos versos opulentos de Whitman e da prosa harmoniosa de
Emerson surge transfigurado de chofre, inopinadamente, na oficina de Ford. A
era mecanizante que tanto amedrontara o espírito europeu de Carlyle começa a
oferecer perspectivas luminosamente esperançosas e, mais ainda do que aquelas
palavras proféticas e pragmáticas a máquina americana afirma de fato que a
humanidade está dividida por dois ideais extremamente diversos (id, ibid,
p.132).
Outro elemento do fordismo que fascina Licínio é o seu caráter supostamente não utópico,
marcado pela preocupação com a praticidade e pela rejeição de grandiosas reformas sociais.
Nesses termos, Ford seria uma espécie de herói comum, e patrões e operários seriam, na verdade,
operários “maiores” ou “menores”.
Ora, forçoso introduzir aqui o célebre argumento gramsciano sobre o fordismo. Em seu
ensaio, o pensador italiano (Gramsci, 2001) argumenta que o americanismo se caracterizaria
como uma nova possibilidade de afirmação do moderno, que surgiria pela dinamização da vida
civil e pela racionalização do trabalho propiciada pelo mundo fabril. Também distante do espírito
europeísta que via com desprezo o regime das máquinas, Gramsci via na sociedade estadunidense
um caminho sociológico, que prescindiria das pesadas estruturas políticas que marcariam a vida
no Velho Continente. Para ele, a democracia viria amparada numa sociabilidade comum, que não
exigiria a animação heróica exigida pela ação revolucionária clássica. Se o marxismo não é o
território de Vicente Licínio, difícil não enxergar nas suas palavras o mesmo entusiasmo pela
afirmação da vida fabril e pela suas possibilidades civilizatórias. Afinal, sua descrença pelos
arroubos revolucionários dos jacobinos e pelo apego dos europeus à arquitetura política poderia
encontrar eco na famosa passagem de Gramsci:
O americanismo, em sua forma mais completa, exige uma condição preliminar,
da qual não se ocuparam os americanos que trataram desse problema, já que na
América ela existe “naturalmente”: esta condição pode ser chamada de uma
“composição demográfica racional”, que consiste no fato de que não existem
classes numerosas sem uma função essencial no mundo produtivo, isto é, classes
absolutamente parasitárias (Gramsci, 2001, p.243).
199
Mas se Vicente cerra fileiras no partido fordista – como, aliás, outros engenheiros do
mesmo período –, como entender seu ensaio vigoroso sobre José Enrique Rodó, esse herói de um
particularismo irredutível à expansão mediocrizadora da modernidade? Na perspectiva liciniana,
a terra de Rodó era a América, continente da ação. O idealismo que marca o arielismo é
trabalhado pelo autor como síntese de uma energia juvenil, própria de uma “consciência
americana”. Nas suas palavras, “Ao contrário desses pensamentos teóricos europeus, o
americanismo tem a característica de um idealismo prático, e nisso, e especialmente por isso,
constitui uma novidade no mundo” (Cardoso, 1937, p.38). Licínio é atraído pela energia juvenil
despertada por Rodó, e associa o pensador uruguaio a um vasto programa de cultivo educacional.
Se a adesão do pensador uruguaio ao fenômeno democrático é cautelosa, Licínio Cardoso vê
nessa espécie de desconfiança uma salutar rejeição das formas extremadas com as quais os
europeus se habituaram. Ou seja, entre “realidade morta da aristocracia de sangue” e “o
comunismo igualitário do trabalho” estaria o território da democracia americana.
Como se percebe, o americanismo que Vicente Licínio lê em Rodó não se traduz num
particularismo espiritualista, mas na expressão de uma energia prática que marcaria os homens
deste continente. Nesse sentido, a figura intelectual do uruguaio exemplificaria um tipo
intelectual americano, um “obreiro social de idéias” animado pelo “culto ao trabalho e à vida”
(id, ibid, p.17), e Rodó se aproximaria de Emerson, ambos portadores dessa juventude prática que
afastaria a América da Europa. Interessante como Vicente Licínio procura extrair da obra do
autor de Ariel uma espécie de tipo intelectual americano, que é identificado ao pragmatismo e à
capacidade de realizar e viver as palavras. Chega a elogiar Rodó não pela sua originalidade, mas
pela sua capacidade de se transformar num “repensador”, ou seja, de traduzir e vivenciar o
melhor do pensamento ocidental como uma obra ativa. Nas suas palavras,
O mérito de Rodó, não residindo numa capacidade elevada de pensador, reside
no entanto na sinceridade com que soube viver, como artista, algumas idéias.
Ele mesmo, aliás, fazendo profissão de fé nesse sentido, só considerava digno da
vida ao obreiro, e em particular exigia que o artista no presente fosse um obreiro
social de idéias (id, ibid, p.25-26).
200
Mas se Ford representa a aposta na modernização radical, animada pelo modelo fabril e
pelos homens operários, a promessa arielista sustentava um moderno temperado, em que a
democracia não representasse nem o igualitarismo avassalador, nem a emergência do interesse
puro e do utilitarismo. O mundo da máquina, tão admirado pelos engenheiros, parecia a Rodó
uma aberração para a qual a juventude das Américas deveria ser alertada. São, a princípio,
continentes diversos, mas aproximados pela imaginação de Vicente Licínio, que vê nas duas
manifestações símbolos da ontologia americana.
Afinal, a sociedade de Ford é aquela mesma marcada pela “democratização da terra”
sobre a qual tratei em seção anterior deste capítulo. É, também, a mesma que conheceu vigoroso
processo de expansão para o Oeste, caracterizado geograficamente por Vicente Licínio nos seus
escritos sobre a arquitetura norte-americana. Como procurei mostrar, o argumento a respeito da
força democratizante da terra nova relaciona-se com a afirmação de que o dinamismo da
República estadunidense é dado pelo vigor de sua vida material e econômica, e não pela
produção abstrata de uma sociedade boa. Nessa perspectiva, não é difícil pensar em Ford, o
operário dos novos maquinismos, como exemplar perfeito de um homem animado por essa
potência material. No mesmo livro Affirmações e Commentarios, Vicente Licínio escreve um
ensaio intitulado “Um Parallelo: 1776 (Estados Unidos) – 1789 (França)”, no qual enfatiza a
superioridade republicana norte americana, por ser expressão de um republicanismo assentado
nas necessidades econômicas das massas trabalhando a terra. Ou, como diz o autor,
Eles não inventaram propriamente, direitos novos criados teoricamente por meio
de decretos. Corporificaram apenas, em seu grande estatuto político, aquelas
condições de igualdade de nascimento e de independência de vida, que existiam
natural e espontaneamente desenvolvidas entre os colonos (Cardoso, 1925,
p.37).
Importante retomar o tema do andamento da terra. Enquanto a República francesa seria
produto do “laboratório de palavras” da Convenção, expressão de uma geografia social marcada
pela apartação entre nobreza parasitária e burguesia laboriosa, a República americana seria a
consolidação política de um movimento cuja base seria sociológica. Se a democracia era definida
pelo autor como “regime de organização do trabalho livre”, Ford seria o personagem exemplar
desse andamento.
201
Mas como entender a apropriação de Rodó? Como já disse, não há vestígio em Vicente
Licínio de um arielismo radical, pensado enquanto oposição espiritualista ao reinado do
maquinismo moderno (do qual o autor é entusiasta, como ficou evidente nas seções anteriores). O
seu Rodó é um “repensador”, homem que seria capaz de reinterpretar as belas idéias e de pô-las
em prática por meio de uma vivência comprometida. Mais do que um gênio singular, ele seria a
encarnação de um estado coletivo, comum ao organismo social uruguaio. E como seria esse
organismo? Em outro ensaio, intitulado “De Artigas a Rodó (Esboço Sintético da Nacionalidade
Uruguaia”, Licínio afirma que
O meio físico, acanhado em sua extensão, em que se desenvolveu o homem
uruguaio através do século XIX, facilita, em verdade, a compreensão dos
movimentos históricos da sociedade em jogo. A homogeneidade da terra se
reflete na homogeneidade dos fenômenos sociais em causa, e a estreiteza do
cenário restringe o desenvolvimento de lances esdrúxulos (Cardoso, 1924c,
p.83).
Como se nota, a associação da terra à “estreiteza” e ao “acanhamento” tem por objetivo
ressaltar a relativa homogeneidade da sociedade uruguaia, bem distribuída e avessa aos “lances
esdrúxulos” que pautariam outras antigas colônias no Sul das Américas. Em passagem posterior,
o autor discorre sobre o campo uruguaio, suas formas de cultivo e suas terras livres, distribuídas e
prósperas. Percebe-se aqui a retomada de um argumento assentado no andamento da terra que, no
entanto, ganha contornos mais rudes e vibrantes nessa outra fenomenalidade. No dizer do autor,
A história uruguaia, sob esse aspecto étnico, não foi ainda suficientemente
estudada, nem, tão pouco, se tem feito intervir na explicação da violência dos
embates dos partidos políticos em luta, o efeito do meio físico, isto é, os
recursos do homem montado em cavalos ligeiros, tendo diante de si planuras
fáceis de serem percorridas em correrias estonteantes. O campo uruguaio
modelou a energia selvagem do homem. A guerra do Paraguai, de outro lado,
apressou a formação da adolescência da nacionalidade (Cardoso, 1924c, p.93).
A passagem acima evidencia que, na percepção do autor, a terra uruguaia é nova e livre,
como toda terra americana, mas marcada por certas condições específicas que a tornam expressão
de um tumulto político não encontrado nos Estados Unidos. Haveria ali um elemento de
“selvageria”, mas que o autor parece atribuir a uma espécie de força jovem. Ainda assim, Rodó,
202
que seria o representante desse organismo social “nascente”, seria um ilustre americano, “(...) a
síntese do pensamento de um povo novo, habitando terras também novas da América” (id, ibid,
p.87).
Sugiro, portanto, que Ford e Rodó seriam ambos personagens modelares desse andamento
da terra, que caracterizaria as sociedades americanas. De certo modo, a terra nova de Vicente
Licínio se assemelha a uma matriz civilizatória específica, própria de sociedades não reguladas
completamente pelo peso de tradições políticas clássicas e territórios abertos para a
experimentação e para a criatividade. Seu recurso à terra indica uma ontologia na qual a política
não surge como organizadora da vida social, se a entendermos na chave do autor: artifício da
imaginação, utopia jacobina. A mobilização de uma imagem espacial não se reduz, assim, a uma
economia explicativa na qual o meio físico opera como variável científica específica. Não
importa a natureza física dessa terra, mas seu conteúdo simbólico, alegoria de uma formação
social em que a civilização não produziu nem camadas profundas de tradição, nem complexos
arranjos políticos. A América, como uma terra nova, seria território aberto.
5.7 RÚSSIA E FORÇA DA TERRA.
Contudo, a terra não aparece associada unicamente a esta ontologia americana. É
recorrente em Vicente Licínio a mobilização da categoria “força da terra”, retirada, segundo ele,
dos romancistas russos do século XIX. Ao falar dessa “energia bruta” no ensaio “O Ambiente do
Romance Russo”, Licínio (Cardoso, 1924a) aproxima Brasil e Rússia como sociedades em que a
relação entre indivíduo e espaço seria marcada pela solidão e pela ausência de uma vida social
orgânica. Logo no início do texto, afirma:
A Rússia constitui uma nação de contrastes violentos, desenvolvida dentro de
uma unidade geográfica imponentíssima. Dum lado a planície que se desdobra
numa monotonia aterradora; a mesmice do cenário que se reproduz ora no estepe
vazio de trabalho e de cultura, ora na floresta sempre igual de seus pinheiros,
ora, finalmente, nas terras arroteadas em que as plantações homogêneas
reproduzem a homogeneidade do solo. De outro lado, contrastando com aquela
unidade cósmica imensa, um caos étnico formidável, em que se amalgamam
elementos sociais os mais díspares, diferenciados pela língua, pela religião e
pelos próprios costumes (Cardoso, 1924a, p.13-14).
203
No trecho acima, percebe-se a notação que transforma a homogeneidade espacial num
símbolo de incultura e de ausência de vida social, ecoando as tradicionais teses de Montesquieu
sobre as planícies e suas formas sociais
111
. No texto ora analisado, as estepes ocupam esse lugar
físico – simbólico associado à “mesmice” e à “monotonia”. A constatação do autor a respeito do
caos étnico é importante, porque o permitirá caracterizar a Rússia como uma “nacionalidade em
ser” – tal qual o Brasil, que também não teria um povo “antigo e etnicamente definido”.
Lugar espremido entre Ocidente europeu e Oriente asiático, a Rússia teria, de acordo com
Licínio, um organismo social assemelhado ao francês. Apartação entre mundos sociais, ausência
de classes médias e presença de uma nobreza sem comando ou programas de ação seriam os
elementos que permitiriam a configuração dessa geografia da “insolidariedade”. Nesse país sem
cidades (ou marcado por cidades inventada), a “força da terra” teria sido a grande protetora do
povo russo, responsável pela mínima estabilidade no centro do país e pela vitória sobre Napoleão.
A abolição do trabalho escravo é um dos temas mais persistentes nos estudos históricos de
Vicente Licínio e, nesse ensaio, é ferramenta constante de comparação Brasil-Rússia,
principalmente por seu impacto na desorganização da economia rural. Segundo o autor, o
problema da abolição da servidão naquele país teria sido sua motivação literária e artificial,
desvinculada de um movimento efetivo na vida material da sociedade. O resultado desse processo
seria a organização de uma indústria artificial, animada por braços libertos abruptamente. É esse
o universo moderno no qual Vicente Licínio insere Dostoievski, visto justamente como a
expressão literária desse mal estar social da segunda metade do século XIX, que teria
transformado as estranhas cidades russas em territórios de personagens perdidos, humilhados e
desenraizados. Ou, como diz o autor, “(...) a miséria anônima das gentes das classes humildes dos
grandes centros urbanos” (id, ibid, p.27). Não se trata, repito, de um agrarismo, mas sim de uma
crítica assentada na idéia apresentada na seção anterior sobre a “democratização da terra”. Como
procurei mostrar, Licínio também vê o problema da emancipação dos escravos no Brasil pela
111
Nos arquivos particulares de Licínio, o mini-dossiê intitulado “Dostoievski” tem inúmeras anotações a respeito da
obra de Leroy-Beulieau (L’empire des tsars). Boa parte dos comentários geográficos feitos por Licínio foi retirada
dessa obra, como esse: “Le principal caractère de la Russie c’est l’unité dans l’ immensité”, tirado da página 14 da
obra de Beulieau. Outros autores mobilizados foram Alexinsky (La Russie et l’Europe), Masaryk (The Spirit of
Rússia) e até mesmo Gorki, com seu “Lenine et le Paysan Russe” (Cardoso anotações “Dostoievski”, s/d: arquivo
particular). Um breve resumo das fontes utilizadas por Licínio encontra-se em Bruno Gomide (Gomide, 2005).
204
chave de uma imaginação republicana abstrata, que teria jogado a vida material do país na
desorganização. Se a afirmação da vida industrial moderna não for produto da vitória progressiva
da máquina ou do próprio andamento da terra, ela tem potencial para transformar-se numa
invenção espiritual sem lastro no mundo.O autor vê processo semelhante na história dos dois
países, onde a intelligentsia teria conduzido a emancipação sob a animação de uma “revolução
espiritual”, produzindo a desorganização do mundo rural.
Note-se como essa visão sobre a modernidade russa encontra eco na obra muito posterior
de Marshall Berman, que mobiliza a categoria de “modernismo do subdesenvolvimento” para
caracterizar uma experiência urbana assolada pela produção fantasmagórica de idéias sem lastro
na vida social concreta. Tomando Petersburgo como exemplo perfeito desse modernismo
periférico, Berman afirma, numa chave próxima a Licínio:
Num pólo, podemos ver o modernismo das nações avançadas, brotando
diretamente da modernização política e econômica e obtendo visão e energia de
uma realidade modernizada – as fábricas e ferrovias de Marx, os bulevares de
Baudelaire –, mesmo quando desafia essa realidade de forma radical. No pólo
oposto, encontramos um modernismo que emerge do atraso e do
subdesenvolvimento. Esse modernismo surgiu pela primeira vez na Rússia, mais
dramaticamente em São Petersburgo, no século XIX; em nossa era, com o
avanço da modernização – porém, geralmente, de uma forma truncada e
desvirtuada como na antiga Rússia-, e expandiu-se por todo o Terceiro Mundo.
O modernismo do subdesenvolvimento é forçado a se construir de fantasias e
sonhos de modernidade, a se nutrir de uma intimidade e luta contra miragens e
fantasmas, Para ser verdadeiro para com a vida da qual emerge, é forçado a ser
estridente, grosseiro e incipiente. Ele se dobra sobre si mesmo e se tortura por
sua incapacidade de, sozinho, fazer a história, ou se lança à tentativa
extravagante de tomar para si toda a carga da história (Berman, 1986, p.260-
261).
Trata-se de uma visão crítica dessa forma de entrada no moderno, e não de uma romântica
crítica ruralista. Pode-se dizer o mesmo de Vicente Licínio. Voltando ao texto, o autor segue com
mais constatações negativas sobre o peso da terra nas geografias dos dois países. Diz ele:
E, bem pensado, não há negar (sic) que as condições diversas ou até mesmo
antagônicas daqueles ambientes cósmicos aqui invocados, determinaram todos
um mesmo resultado comum: a resignação do homem sentindo-se impotente em
face da agressividade da Natureza, seja o sertanejo curtido em vida no sertão
adurto do nosso nordeste, seja o mujique desfibrado pelo inverno rigorosissimo
205
do Septentrião, seja, finalmente o emigrado acovardado e vencido diante da
natureza luxuriante do Amazonas (Cardoso, 1924a, p.37).
Note-se nessa passagem a retomada de um tema clássico da imaginação espacial
brasileira, presente também nos escritos euclidianos sobre a Amazônia: a vastidão da terra e a
solidão do homem. Some-se a esse quadro uma vida social marcada pela “(...) massa amorfa de
analfabetos de letras e de ofícios” (id, ibid, p.39) e pelo cultivo de um legalismo estéril, também
elementos comuns aos dois países. Finalmente, a própria natureza das construções modernas de
Brasil e Rússia é posta em questão por Licínio. Em ambos os países, assegura o autor, trata-se de
produções de teorias políticas. Uma de Comte, outra de Marx, pensadores que o autor associa a
sociedades industrializadas.
Qual seria, portanto, o sentido dessa imensa terra, dilacerada entre uma vida social
inorgânica e dispersa e um mundo político marcado pela invenção abstrata? Pode-se extrair da
sociologia delineada por Vicente Licínio a caracterização de uma sociedade em que a vida
política não teria se apropriado de forma positiva da “força da terra”, originando um processo
modernizador marcado pela desorganização, artificialismo e mal estar social, cuja grande
expressão literária seria Dostoievski. No campo estético, aliás, parece estar a grande lição russa
para nós, pois segundo Licínio, nossa “nacionalidade em ser” precisaria de afirmação literária. O
autor vê em Graça Aranha e no seu Canaã um momento positivo desse empreendimento, embora
lhe aponte limitações. A aposta no romance de 1902 evidencia a centralidade do problema da
terra na perspectiva de Licínio, e o imperativo de encontrarmos uma resolução estética para os
dilemas encerrados nessa categoria. Ao mesmo tempo, percebe-se que sua versão sobre a terra
americana, fortemente lastreada numa visão do americanismo como cultura material, diverge da
fabulação desenvolvida por Graça Aranha.
Essa Rússia Brasileira desenhada por Vicente Licínio parece carregar o tema da terra de
conotações negativas: insolidariedade, fragmentação social e ausência de vida cívica. Contudo, a
expressão “nacionalidade em ser”, associada a uma construção nacional incompleta, ainda por
fazer, encontra-se de forma feliz com a “força da terra”. Em conferência dirigida ao Grêmio
Euclides da Cunha, intitulada “Euclides, o Descobridor”, Licínio afirma:
206
Criaram os russos durante a sua evolução social e histórica do século passado
uma expressão admirável – força da terra—que nenhum povo poderá
compreender com mais justeza do que o nosso, nacionalidade em ser que somos
ainda na trajetória imponente da vida das nações habitantes do planeta. Força da
terra...energia criadora sem consciência definida, força esboçada sem direção
orientada, energia inconsciente da raça em formação caótica, força emergente da
própria terra em procura da consciência sabia de seus guias mentais, de seus
diretores sociais, dos obreiros robustos da nacionalidade incipiente (Cardoso,
1924a, p.111).
A “força da terra”, portanto, representaria o potencial inconsciente, essa energia própria
de uma sociedade ainda não formada, prenhe de desertos e vazios, não organizada de forma
definitiva nem pela tradição, nem pela política. Euclides seria, é claro, o representante estilístico
do movimento de captura dessa força, de expressão estilística dessa potência. Note-se que o
destaque dado por Licínio a alguma espécie de elite – “guias mentais” e “obreiros da
nacionalidade” – não se volta para alguma camada historicamente radicada na sociedade
brasileira. Como disse anteriormente, sua concepção meritocrática do fenômeno democrático
sempre privilegiou a seleção “dos capazes”, como se a necessária reinvenção republicana
demandasse um outro tipo de elite. O caminho, portanto, estaria aberto.
Nas seções anteriores, mostrei como a “força da terra” associa-se, na perspectiva de
Vicente Licínio, a um fenômeno de democratização, de renovação das “velhas estirpes”. Ao
mesmo tempo, o potencial de criatividade e invenção encerrado nessa categoria permite ao autor
vislumbrar uma sociabilidade brasileira marcada pela flexibilidade e pela ausência de rigidez
intelectual. Afinal, terra e máquina associam-se porque ambas são expressões de sociedades
novas. Esse movimento permite-nos aproximar Brasil, Rússia e América, já que a “força da terra”
perde seu registro meramente negativo, associado à insolidariedade e a falta de vertebração
social, e ganha cores americanas, expressando o dinamismo de uma geografia social na qual a
tradição e as estruturas jurídico-políticas não teriam lastro, permitindo a uma “nacionalidade em
ser” expressar-se não pela reiteração de uma essência perdida nos sertões, mas antes pela força de
sua mobilidade.
Longe de constituir um hibridismo paradoxal, uma espécie de “Hércules-Quasímodo” do
pensamento brasileiro, a expressão Rússia Americana permite a postulação de certa matriz
comum, e não de um compósito de contradições. Afinal, diz Vicente Licínio em outro ensaio que
207
Dostoievski acreditava firmemente no homem e, através do amor, na
humanidade, isto é, na renovação dos homens pelo amor. Numa sociedade nova
como a Rússia, nova por não ser velha a sua nacionalidade constituída, o amor
aparece por si como elemento vital de renovação de valores (Cardoso, 1924a,
p.129).
Nesse longo ensaio dedicado a Dostoievski, Licínio vê na Rússia não “força da terra”
como incultura e vastidão monótona, mas como sociedade nova, cuja maior potencialidade
estaria não na racionalidade técnica ou no classicismo, mas no potencial afetivo da mesma. Não é
muito distante de sua visão sobre a terra americana: jovem e democratizadora, marcada pela
praticidade. Afinal, se Ford e Rodó eram “irmãos”, filhos da mesma Atlântida, por que não
aproximá-los de outra parentela, que partilharia com os primeiros a crença na expressividade
afetiva, na vivência pelas palavras e na aversão ao esteticismo vazio e decadente que grassaria no
centro europeu? Diz Licínio:
Dostoievski era eminentemente sincero. O que há de admirável no “Idiota” é a
seriedade com que todas as suas atitudes foram tomadas e todas as suas palavras
foram proferidas. Não ha uma só palavra de escárnio ou de sarcasmo, não ha um
único gesto denunciando um vislumbre sequer de “pose” ou de cabotinismo de
seu autor naquela confissão exteriorizada de acreditar em suma que a bondade e
a virtude de Michkine derivaram dos efeitos de sua própria doença. (id, ibid,
p.144).
No fundo, a visão sobre a obra de Dostoievski retoma o sentido do republicanismo na
geração de Vicente Licínio, já apresentado em seção anterior. Afinal, esse ideal não era visto
como uma doutrina, mas como uma espécie de vivência de homens justos e competentes. Gomide
aponta, com propriedade, a interpretação forçada por Licínio a respeito do significado da obra
dostoievskiana. No seu entender, “A imagem de Dostoievski é bastante forçada.”(Gomide 2005:
126); ou melhor,
O Dostoievski apresentado por Licínio Cardoso vira figura unidimensional,
quase um engenheiro literário (...). Assim, a biografia da filha do escritor serve-
lhe para corroborar a idéia de que se tratava de um “homem visceralmente
honesto e bom” (Cardoso, 1924:11). Contrariamente a todas as evidências,
sugere que a formação universitária de Dostoievski fundamentou, através da
matemática, o seu “método lógico de raciocinar” (Cardoso 1924: 115). Acredita
que o colapso lingüístico de Diévuchkin ao final de Gente Pobre é
compreensível em termos da “própria filosofia prática da vida de Dostoievsky,
qual aquela que ensina que tudo é útil. E, finalmente, vê na trajetória intelectual
208
do escritor a substituição dos terrores do niilismo, experimentados na juventude,
pela tolerância cristã dos anos de maturidade (Gomide, 2005, p.126).
Se Gomide percebe corretamente o anacronismo da interpretação de Licínio (esperada,
dado o afastamento do autor do mundo das letras e dos salões literários), apenas sugere o sentido
dessa desleitura: “A partir do russo, o autor cria um modelo de intelectual que é, em última
análise, similar à descrição que Agripino Grieco fez dos anseios do próprio Licínio Cardoso.”(id,
ibid, p.126). Este me parece ser o ponto sociologicamente mais relevante, e que diz respeito à
conformação de um ethos intelectual marcado pelas idéias de sinceridade, comprometimento
ético e forte senso de moralidade, que dá sentido à expressão “Rússia Americana”
112
. O tom ético
marcava, inclusive, a apropriação do positivismo dos dois “engenheiros periféricos” – Euclides e
Vicente Licínio – e conformava uma economia moral que os afastava do mundo da tradição
intelectual nacional e diferenciava-os dos altos modernistas, personagens dos mundos dos salões
e ambíguos entusiastas da nossa “força da terra”. Essa “energia inconsciente” parecia atraí-los,
pois ambos enxergavam o Brasil como uma forma civilizatória a ser construída, numa
combinação entre pragmatismo, invenção e pedagogia que forjam o núcleo da experiência que,
nesta tese, associo à expressão “Rússia Americana”.
112
A aproximação intelectual parece ter ocorrido ao próprio Licínio. Num dos cadernos encontrados em seu arquivo
particular, há duas anotações, na verdade duas frases, uma disposta acima da outra. Na primeira, escreve: “o h.( sic)
moderno – dizia Kropotkine - deve estar amparado para “fazer o solo, desafiar as estações e o clima”(Cardoso
manuscrito, s/d, p.1: arquivo particular ). Logo embaixo, escreveu: “I will make the most splendid race the sun ever
shove upon. Whitman”(id, ibid).
209
CONCLUSÃO - A RÚSSIA AMERICANA.
O ARGUMENTO.
Esta tese procurou mostrar que duas imagens – Rússia e América – podem ser extraídas
de uma determinada matriz do pensamento social brasileiro e interpretadas como um compósito –
chamado aqui de “Rússia Americana” – que ganha sentido a partir de uma reflexão centrada na
espacialidade. Nesse sentido, a terra foi a porta de entrada para uma interpretação dos escritos de
Euclides da Cunha e Vicente Licínio Cardoso que destacou a visão do Brasil como uma
sociedade em construção, capaz de se auto inventar e de projetar-se sem ter que pagar excessivo
tributo a alguma espécie de ontologia étnica. Procurei, portanto, mostrar como a terra não se
limita a operar como signo de uma autenticidade perdida, mas pode também simbolizar um
processo de construção nacional no qual a invenção e o pragmatismo ganhem força expressiva.
A comparação com os escritos clássicos de Graça Aranha, Ronald de Carvalho e os
modernistas católicos do grupo Festa buscou evidenciar a presença de tensões interpretativas
centradas em torno da reflexão sobre a terra–natureza, entendida como símbolo das matrizes
originais da experiência brasileira. Argumentei que, para esse grupo, a terra simbolizava uma
espécie de tradição americana que impunha um dilema aos modernos empenhados em ajustar
nossa sociedade ao ritmo do tempo ocidental: acomodação e integração com esse legado, ou
superação? Mostrei que esses personagens, dadas as suas próprias trajetórias intelectuais e
sociais, não lograram escapar a uma posição ambígua diante desse dilema, desvelando a presença
forte do tema da tradição nas suas reflexões. A pregação americanista evitava assumir toda a
radicalidade potencial dessa fórmula, e aprisionava-se no dilema clássico de Zéa: acumulação x
dialética. Assim, a terra não teria fugido a uma caracterização essencialista, tributária dos temas
das “raças tristes” ou da “metafísica do Horror”, mesmo quando o registro (positivo ou negativo)
variava. Se aceitarmos a sugestão de Moraes (Moraes, 1978) a respeito da centralidade de Graça
Aranha para o pensamento modernista como um todo (incluindo sua facção paulista),
perceberemos que essas questões impregnaram o imaginário, desaguando em distintas versões
210
que fecharam o tema da identidade nacional nos limites do “encontro racial” e de uma ontologia
do nosso “ser”
113
.
A análise dos escritos de Euclides e Vicente Licínio também esteve associada a uma
investigação das trajetórias dos dois personagens, mas tomando como eixo o significado da
engenharia nas suas formações intelectuais e profissionais. Busquei decifrar o resultado das
experiências sociais de ambos através da expressão “americanismo positivista” – que enfatizava a
presença do positivismo não como doutrina, mas como código moral, e as tensões produzidas
pela percepção de um americanismo que encontrava dificuldades para se afirmar no cenário
urbano do período. Argumentei que a categoria de engenharia periférica poderia expressar o lugar
social e a atividade de personagens moldados por uma cultura técnica difusa e ainda em ascensão,
forte sentimento meritocrático e desconfiança dos lugares tradicionais associados à prática
intelectual no Brasil. Tanto Euclides quanto Vicente Licínio viveram experiências frustrantes
com concursos públicos (ambos aspiravam cadeiras universitárias), assim como desenvolveram
uma relação instrumental com a profissão de engenheiro (especialmente Licínio), embora a
formação politécnica ou militar recebida tivesse gerado intensas marcas intelectuais. A condição
geral de insatisfação era reforçada por um sentimento de desencanto republicano, que só
acentuava o sentido de código moral que o positivismo lhes dava. Não é difícil, portanto,
entender a admiração de Licínio pela obra de Dostoievski e pela suposta recusa do russo de
seguir os padrões tidos como “artificiais” do grande romance europeu, chafurdado em ironia,
requinte ostentatório e ceticismo sobre a natureza humana. Esse seria o significado da “vivência
das palavras” que Licínio veria não só no escritor russo, mas em Rodó e em Henry Ford. Essa é a
chave de entrada que permite a visualização da “Rússia Americana” no que se refere ao problema
dos intelectuais.
Novamente, Rússia e América parecem diferir radicalmente nesse quesito. Afinal, a
primeira seria a pátria por excelência da intelligentsia, enquanto a segunda seria uma sociedade
marcada por intelectuais orgânicos – personagens solidamente enraizados na moderna vida
urbano-fabril e animados pelo tema da reforma social. Se a Rússia seria o território dos
113
Para um registro eminentemente negativo desse tema, creio que Paulo Prado fornece a melhor versão. Em Retrato
do Brasil, a Natureza é interpretada a partir de temais tais como: aventura, cobiça, melancolia e romantismo.
211
intelectuais como grupo revolucionário, apartado da sociedade e voltado contra o Estado – uma
moldura semelhante a dos homens de letras franceses durante o Antigo Regime, tal como descrito
por Tocqueville –, a América conheceria uma floração intelectual mais cívica, orientada para a
agenda da vida civil e acolhida por universidades e agências públicas. Entretanto, a visão de
Licínio sobre Rodó e Dostoievski parece jogar luz sobre uma geografia possível na qual esses
extremos se aproximariam e a moldura moral que animaria os intelectuais ocuparia posição
central. Afinal, tanto russos quanto americanos seriam personagens novos, em tudo distante da
retórica “francesa” que caracterizaria a vida intelectual européia. Homens autênticos, guiados por
suas convicções e por uma genuína vontade de transformar idéias em ação prática. Rodó,
segundo Licínio, seria um “repensador”, um reformista educacional, e não um brilhante erudito.
Do mesmo modo, Dostoievski, herói do romance russo (que Licínio vê como central para o
processo modernizador daquela sociedade, como mostrei no capítulo anterior), não se destacaria
pelo brilho de sua composição estilística, mas por expressar uma nova forma de vivência, mais
sincera e apaixonada. Russos e americanos seriam homens afeitos aos novos tempos. Não por
acaso, o grupo católico-modernista reunido em torno de Festa via Estados Unidos e Rússia com
extrema desconfiança, como exemplares simétricos do materialismo que ameaçaria a civilização
ocidental.
A aproximação traduz não apenas a construção intelectual dos personagens, mas também
suas projeções sobre o sentido da experiência brasileira. Euclides da Cunha vê na Rússia uma
espécie de caso modelar da relação entre barbárie e civilização, no qual essas duas idéias não se
chocam de forma negativa, mas são combinadas numa nova matriz. Seus escritos amazônicos
fogem da essencialização que marcava sua obra clássica – Os Sertões –, e abrem a possibilidade
de se pensar a relação entre uma terra nova e misteriosa – a Amazônia – e um processo
modernizador no qual personagens móveis e não identificados com tipos étnicos estáveis
lograriam produzir uma vida civil mínima. A contraposição entre seringueiros e caucheiros
exemplificaria a visão positiva de Euclides a respeito dos primeiros, a despeito de seu caráter
fatalista, quieto, em eterno desencanto diante do deserto verde. Eles conseguiriam produzir uma
economia moral homogênea, adaptativa, na qual a ausência de grandes idéias formadoras seria
compensada pela simbologia do “deserto amansado”, traduzida de forma ideal típica pelos
bandeirantes. Nesses termos, a Rússia Americana seria a produção de homens que mobilizariam a
212
barbárie como forma civilizatória, e não como energia descontrolada ou essência romantizada, tal
qual numa revisitação do indigenismo. A Amazônia é, vale lembrar, “terra sem História”, lugar
puramente espacial, o que acentua o tema da invenção e da criação, em detrimento da reiteração
da tradição ou da origem – dois elementos que, aliás, o próprio personagem Euclides da Cunha
teve que enfrentar na sua trajetória, forçando seu caminho como um missionário positivista, num
movimento que guarda semelhança com o puritanismo.
Perceba-se que essa “Rússia” de Euclides não se identifica totalmente com a imagem
clássica de uma Rússia bárbara. Em seu ensaio sobre a obra de Dostoievski, Lukács (Lukács,
1968) caracteriza a sociabilidade russa como um entrechoque constante entre indivíduos isolados
e em guerra com o Outro. O universo moral russo, marcado pela insolidariedade e pelo fatalismo,
caracterizar-se-ia, sobretudo, pela violência. Ao analisar as personagens dostoievskianas, Lukács
afirma que elas traduziriam o tema do isolamento, segundo o qual todos os sujeitos se
dissolveriam em prol de uma Idéia fixa que os atormenta
114
. Evidentemente, o melhor exemplo
seria Raskolnikov, o “pequeno Napoleão”. Nesses termos,
Em primeiro lugar, todas são ações de pessoas solitárias: pessoas que na maneira
de sentirem a vida, o seu ambiente e a si mesmos, reduzem-se completamente
aos seus próprios recursos, passando a viver introvertidamente com tal
intensidade que o pensamento alheio transforma-se numa “terra incógnita”. Para
eles, o “outro” existe apenas como uma potência estranha e ameaçadora que ou
os subjuga, ou é por eles subjugado (Lukács, 1968, p.162).
Ora, os fatalistas seringueiros de Euclides poderiam, inicialmente, aproximarem-se desses
tipos marcados pelo individualismo agressivo. O próprio autor sugere essa aproximação, como
afirmei no capítulo 4. Contudo, a rotinização produzida pela terra e pelo trabalho transforma-os
numa espécie fraca de bandeirantes, o que lhes daria uma figuração americana, que será
desenvolvida mais plenamente em Vicente Licínio. Nos escritos amazônicos de Euclides, quem
114
Para outros autores, como Frank (Frank, 1992), essa percepção de Dostoievski era extremamente crítica e
sombria. Nessa perspectiva, a obra do escritor russo seria, em grande medida, uma grande “denúncia” do tipo de
moralidade revolucionária que produziria uma intelligentsia voltada para uma racionalidade fria e afastada de
quaisquer considerações sobre as conseqüências dos atos, aproximando-se de uma espécie de “ética da convicção”
radicalizada. Seria, também, uma poderosa crítica contra o utilitarismo radical dos niilistas. Segundo Frank, “Tais
idéias, com sua crença ingênua no poder da reflexão racional para controlar e dominar todos os potenciais explosivos
da psique humana, parecia a mais pura e perigosa ilusão para o Dostoievski pós-siberiano” (Frank, 1992, p.141)
213
mais se aproximaria desse violento tipo individualista e anárquico de Dostoievski seria
justamente o caucheiro, um tipo caracterizado pela desmedida de seu iberismo aventureiro.
Já Vicente Licínio vê uma matriz organizada em torno do peso da terra que junta Brasil,
Rússia e Estados Unidos. Se, no caso americano, essa terra é simbolicamente associada ao tema
democrático (o agir incessante de personagens novos, o predomínio da pequena propriedade), no
caso russo ela aparece, inicialmente, sob sinal negativo, como símbolo de ausência de
vertebração social. Uma leitura atenta, que recupere a visão liciniana da obra de Euclides, mostra
que o autor vê também na terra uma “energia inconsciente”, signo das propriedades civilizatórias
de uma nacionalidade em ser. Nesse sentido, a postulação de uma América organizada pelo
trabalho livre, pela inventividade e pela racionalidade prática, encontra-se com uma Rússia
pensada como “sociedade nova”, que teria conseguido ajustar sua construção nacional pela
“vivência das palavras” e pela criação literária. Ou seja, ao mesmo tempo em que Vicente Licínio
radicaliza a dessencialização da terra, já sugerida pelos escritos amazônicos de Euclides, ele abre
mais o escopo da nossa matriz civilizatória. A Rússia Americana seria a geografia que combina
invenção, pragmatismo e uma hermenêutica da nacionalidade. Mais uma vez, distante da
reiteração romântica das origens ou do jogo das identidades étnicas. Uma geografia aberta para o
tema do maquinismo e da fábrica, mas não dependente de uma economia moral própria de outras
tradições nacionais. Essa produção simbólica, analisada nos capítulos 4 e 5, foi tomada nesta tese
como expressão de uma experiência social marcada pelo signo da “engenharia periférica”.
Esse foi o caminho percorrido nesta tese. Conforme afirmei no primeiro capítulo, a terra
escapa a uma mera variável física, constituindo-se numa projeção simbólica que permite a
produção de uma fabulação sobre o Brasil. No caso aqui estudado, essa fabulação, fixada a partir
de um diálogo com alguns autores do pensamento nacional, ressaltava a experiência brasileira
como marcada pela ação e pelo dinamismo pragmático da nossa civilização. Ou seja, se o Brasil
seria uma sociedade inventada por uma teoria política – para usar a famosa expressão euclidiana
–, poder-se-ia localizar também, nessa mesma forma civilizatória, uma força da vida material e de
seus atores, uma energia produzida pelo agir e à espera de uma Idéia capaz de organizar a
nacionalidade “em ser”, e que produziria uma configuração que abrigasse Brasil, Rússia e
América. Essa é a “força da terra” de que fala Licíno.
214
RÚSSIA AMERICANA E INTERPRETAÇÕES DO BRASIL
Em meados dos anos de 1970, Otávio Velho (Velho 1976) publicava um livro intitulado
Capitalismo autoritário e campesinato: um estudo comparativo a partir da fronteira em
movimento, originalmente uma tese defendida no Museu Nacional da UFRJ. Seu objeto é a
fronteira brasileira, tomada como região de expansão do capitalismo e pretenso símbolo de uma
cultura política democrática. Ao comparar os casos russo e americano, Velho busca mostrar como
a solução de tensões sociais pela chave da ocupação do espaço livre não necessariamente
implicava o caminho clássico que teria marcado a conquista do Oeste nos Estados Unidos. Isto é,
a fronteira era analisada pelo autor como uma forma que poderia abrigar diversos conteúdos
políticos, como evidenciava o processo histórico da Rússia. Nessa sociedade, a predominância do
“político” no processo de desenvolvimento capitalista teria contribuído para um travo fortemente
autoritário dessa formação social, numa lógica em tudo oposta à expansão de uma geografia
aberta e povoada por pequenos produtores rurais independentes. Ou seja, Rússia e América, no
registro de Velho, evidenciam dois caminhos distintos associados à fronteira e à terra. O Brasil
nessa perspectiva assumia um indisfarçável parentesco eslavo, dada a configuração autoritária do
desenvolvimento capitalista nativo e a impossibilidade de uma rota americana de democratização,
assentada na expansão de sujeitos livres por uma geografia marcada pela pequena propriedade.
Nesse Brasil russificado não haveria América possível, e a realização do moderno na periferia
demandaria uma estratégia revolucionária.
A tese de Velho é exemplar no campo da produção intelectual da década de 70 do século
passado, por combinar uma recepção da sociologia política de Barrington Moore Jr com uma
forte preocupação política com as possibilidades de transformação revolucionária da ordem
capitalista brasileira. Ao analisar uma terra “empírica” – a real geografia rural do Brasil durante a
ditadura –, Velho distancia-se dos procedimentos desta tese, preocupada com a mobilização de
imagens espaciais pela imaginação republicana brasileira. Mas, assim como os personagens
analisados no primeiro capítulo – Weber, Lênin e Turner –, o antropólogo carioca termina por
produzir não apenas um estudo de sociologia política, mas uma fabulação nativa sobre sua
própria sociedade, inspirada pelo debate em torno da modernização na periferia do capitalismo.
Isto é, sua versão do tema da Rússia Americana constitui também uma “metafísica da terra”, que
215
consagra um registro sobre nosso processo civilizador calcado na idéia de ruptura, dada a
constatação objetiva da falência da americanização “por baixo”. Como tal caminho efetivamente
não se realizou
115
, faz-se necessário, portanto, explorar outras possibilidades analíticas do tema
espacial, que articulem o pensamento brasileiro e a teoria social e abram outra rota para o
problema contemporâneo da Rússia Americana.
A princípio, Rússia e América parecem continentes geográficos e intelectuais distintos. Se
a primeira é pensada como lugar oriental, avesso aos padrões culturais clássicos da chamada
modernidade, a segunda representaria a afirmação de um outro Ocidente, mais novo e aberto,
embora originalmente periférico. Se a Rússia é geralmente vista como uma sociedade
indevassável, coberta por uma pesada camada cultural, a América já foi inventada como uma
imagem da liberdade que os homens poderiam alcançar. A despeito disso, a sociologia política
traçou algumas aproximações entre os dois países. No seu livro Construção Nacional e
Cidadania, Reinhard Bendix (Bendix, 1996) mostra como os soviéticos teriam tentado
implementar uma espécie de “americanismo russo”, lançando mão das técnicas do taylorismo e
do trabalho fabril em massa para criar uma disciplina moderna. Na interpretação do autor, o
evidente teor autoritário desse programa traduziria a ausência de um código moral poderoso que
tivesse, séculos antes, preparado os homens comuns para uma ética de trabalho moderna. Na sua
ausência, esse americanismo oriental teria se valido do controle exercido na máquina estatal pelas
organizações partidárias no poder, fenômeno que Bendix caracteriza como “mobilização
política”. Mais recentemente, Carvalho (Carvalho, 2004) acentuou essa possível aproximação
através de uma leitura da sociologia de Gramsci, que, segundo a autora, prefigurava uma nova
sociabilidade moderna assentada na vida fabril. Nas suas palavras,
É certo que, nos anos 30, o que Gramsci vislumbrou como a nova era mundial
do trabalho taylorizado era um horizonte, não uma realidade, e que, dessa
perspectiva, a descoberta teórica de uma vida estatal que emerge da estrutura
configurava-se mais como aposta, do que propriamente como resultado da
observação de uma modernização globalizada. É que, assim como havia
115
A explosão do associativismo agrário dos anos 1980 reafirmou o potencial americano do mundo popular nacional,
confirmado pela proliferação de novos atores e sujeitos políticos no mundo urbano. Mesmo o recente “fechamento”
do mundo agrário pelo avanço incessante do agronegócio não implicou o retorno às formas típicas do capitalismo
autoritário na periferia, embora mecanismos tradicionais de dominação do trabalho continuem a ser verificados.
Creio que essa questão carece não apenas de mais estudos e pesquisas, mas sua própria configuração depende do
desenrolar das lutas travadas atualmente nesse universo.
216
destacado os efeitos da “exportação” da Revolução Francesa no período da
Restauração, Gramsci acreditava que, sob a influência da Revolução de 1917,
poder-se-ia conhecer, por movimentos moleculares de natureza similar, a
universalização de uma nova ordem planetária, derivada da sociabilidade e
eticidade nascidas da fábrica – situação em que a América e a União Soviética,
caso depurada de seus “desvios” estatólatras, freqüentariam uma mesma
geografia (Carvalho, 2004, p.12).
Nas duas interpretações acima delineadas, o território possível em que Rússia e América
se encontrariam seria produzido pelo fordismo e pela eticidade moderna da fábrica. Contudo, a
“Rússia Americana” de que se fala nesta tese não se limitaria a esse território, estendendo-se para
uma geografia delineada pela terra e pelas possibilidades sugeridas pela imaginação espacial.
Neste registro, ressalta-se o tema da invenção e da possibilidade de um processo de construção
nacional distante da sociabilidade artificial que marcaria o cenário europeu. Uma geografia na
qual Dostoievski e Rodó poderiam conviver.
Paralelos entre Brasil e Rússia não eram estranhos à inteligência brasileira nos anos 20.
Em artigo sobre o tema, Bruno Gomide (Gomide, 2005) argumenta que o pano de fundo para as
comparações seria o tema da desordem, que trazia consigo a ameaça de uma solução
bolchevique. Ao mesmo tempo, a resolução estética alcançada pelos russos – traduzida na pujante
literatura que conquistava os intelectuais brasileiros ao longo da Primeira República – parecia
oferecer um futuro desejável, que atraía personagens díspares com Vicente Licínio Cardoso,
Otávio de Faria, Lúcia Miguel Pereira, Gilberto Freyre e Everardo Backheuser. Eles seriam
mobilizados pelo caráter não artificial dessa literatura, por sua dimensão ética universal, e não
necessariamente pelos aspectos formais mais inovadores. Segundo Gomide,
A cesura ideológica provocada pelo surgimento da União Soviética inaugurava
ou intensificava problemas que se estenderiam pelos anos a seguir, com
extensões dramáticas na vida política e cultural brasileira. No entanto, a crítica
literária e o ensaísmo brasileiros continuavam pouco permeados por um dos
resultados da própria revolução russa: a explosão de pesquisas literárias que
apontavam novas direções de linguagem e pensamento. Segundo os autores
examinados, a literatura russa lida com verdades eternas. É o avesso da azáfama
da vida política. Trata-se de uma literatura não artificial, orgânica, pouco
“literária”, contraposto da desordem e do mal-estar supostamente reinantes.
Resguardada, em suma, da vertigem analítica promovida pela multiplicidade das
novas incursões sobre Dostoievski e Tolstoi (Gomide, 2005, p.135).
217
Ao mesmo tempo, paralelismos entre o Brasil e os Estados Unidos sempre perseguiram
nossa imaginação, seja num registro negativo (caso de muitos, como Tavares Bastos e Vianna
Moog), seja numa perspectiva positiva (como na tradução do tema da fronteira pela via do
bandeirantismo). À exceção no cenário é a obra de Gilberto Freyre. Na perspectiva freyreana, a
combinação entre as formas despóticas de controle social e a persistência de relações sociais
flexíveis e suaves seria a marca definidora da experiência brasileira. A interpretação de Ricardo
Benzaquen de Araújo (Araújo, 1994) destaca a categoria de “antagonismos em equilíbro” para
decifrar o significado analítico não só dessa expressão, mas da própria construção teórica de
Freyre. Longe de resolver-se num hibridismo amorfo, esse antagonismo plasmaria a dimensão
tensionada da nossa sociabilidade.
A Rússia Americana, portanto, não é um mero ponto de chegada. Faz-se necessário
enfrentar o diálogo com outros trabalhos de sentido semelhante, ou seja, que abram o Pensamento
Brasileiro com o intuito de produzir interpretações sobre o sentido da experiência nacional. Nesse
campo referido, a obra de Werneck Vianna ocupa papel de relevo. No conjunto de ensaios
agrupado sob o título A Revolução Passiva, ele (Werneck Vianna, 1997) empreende uma leitura
do processo modernizador brasileiro que dá conta da dinâmica conservação-transformação que o
caracterizaria. O protagonismo de elites de extração iberista nesse processo não viria
acompanhado de um programa ibérico clássico, mas antes de um alargamento da nossa dimensão
americana pela dinamização molecular da vida social e pela incorporação de sujeitos subalternos.
Na ausência de uma ruptura clássica, a revolução brasileira ganharia andamento passivo
116
, pelo
qual a emergência do novo viria ao mundo sob a guarda de atores de outra floração, mais afeita
ao predomínio do bem público e resistente à idéia de deixar os interesses mercantis guiarem o
caminho. Nesse sentido, Werneck Vianna nota uma constante ampliação da esfera pública
(mesmo que feita de forma autoritária, como em 1937), num processo em que a nossa
americanização não seria programa revolucionário. Como nota Carvalho no seu prefácio à
recente edição da obra, iberismo e americanismo não representariam mundos valorativos
irredutíveis, mas formas distintas de articulação entre Estado, sociedade e política. Nas suas
palavras,
116
Werneck Vianna extrai o conceito da obra de Antonio Gramsci.
218
(...) o iberismo de que fala Werneck Vianna é uma formalização das práticas e
instituições do Estado ampliado no Brasil. Sua polaridade, portanto, em relação
ao americanismo não se dá no plano da cultura, dos valores, como ideais
civilizatórios alternativos –são, antes, dois modelos distintos de articulação entre
política e sociedade, em que o primeiro indica a estatalização da vida social
mediante o recurso a uma espessa malha de agências intelectuais-burocráticas; e
o segundo, uma formação estatal econômica, já que prescinde de maiores
mediações entre a política e o modo de produção (Carvalho, 2004, p.16-17).
Werneck Vianna analisa o tema do territorialismo ibérico, caro ao problema central desta
tese, compreendendo-o como produto da lógica de organização de territórios por parte de uma
elite enraizada na vida estatal. Nessa forma de ação, a construção nacional seria tributária de uma
razão estatal que se constrói como “mais moderna que a sociedade”. A relação entre iberismo e
territorialidade é retomada por Rubem Barboza Filho (Barboza Filho, 2000), que localiza no
barroco americano a expressão civilizatória que dá grande destaque à organização da vida social
em lugares ordenados pela vontade pública. A espacialidade seria a chave de operação de
sociedades que se pensam como comunidades, e não como uma coleção de sujeitos animados por
uma lógica racional-instrumental. No dizer do próprio autor,
A expansão permanente e a capacidade de organização de espaços gigantescos
constituem atributos típicos da Ibéria, desde o início do processo de
Reconquista. E permanece como sua característica até o começo do século XIX.
Por outro lado, a Ibéria esteve sempre vinculada a uma noção “espacial” do
cosmos e da própria sociedade, como conjunto arquitetônico, orgânico e
harmonicamente disposto (Barboza Filho, 2004, p.47)
Tanto Werneck Vianna quanto Barboza Filho localizam no iberismo americanizado a
matriz formadora de uma lógica espacial, que privilegiaria a estruturação da vida social como um
território a ser regulado e ordenado. Aproximando os argumentos dos dois autores ao ponto
desenvolvido nesta tese, percebe-se um campo comum de diálogo. Tanto para Euclides quanto
para Vicente Licínio, o tema da tradição não é especialmente relevante, em especial se pensavam
seus cenários simbólicos a partir da terra nova. Sugeri exatamente que suas fabulações permitem
o vislumbre de uma visão da terra associada à invenção, e não exatamente a reiteração de uma
essência a ser retomada. Essa idéia, entretanto, converge para a interpretação do iberismo como
um método de operação, e não como um complexo valorativo irredutível ao moderno. É nesse
sentido que Barboza Filho alerta para o papel criativo do barroco americano, destinado não
219
apenas à mera reprodução da sociedade de corte espanhola, mas à produção teatralizada de novas
subjetividades. Nas suas palavras,
Deste modo, nem a tradição nem a religião típicas da Ibéria – elementos que se
alimentavam e reforçavam em Castela e Portugal – puderam ser reeditadas com
a mesma força configurativa na América. Longe de forças hegemônicas,
assumiam a condição de horizontes plásticos ao saque, à negociação, à produção
de acordos imprevistos nas matrizes originais. Assim, a América não pode
dispor do passado, em qualquer de suas formas, para um torturado e trágico
exercício identitário (...) Não desfrutamos de um horizonte axiológico poderoso
o suficiente para invadir o íntimo dos indivíduos, para disciplinar relações
sociais mais reflexivas e universalistas, para organizar uma cultura cívica
centrada em direitos (Barboza Filho 2004, p.49-50).
Do mesmo modo, Werneck Vianna mostra como o iberismo brasileiro teria sido, na
verdade, o grande vetor que conduziu o programa americano, mostrando-se uma matriz dotada de
grande plasticidade. Os setores que organizaram o país durante os anos 30, por exemplo, não
estavam voltados para a conservação pura de formas de vida essenciais da experiência brasileira,
mas para a produção do novo em moldes ajustados às configurações da nossa experiência.
Moldes ajustados à “força da terra”, por que não dizer? É o mesmo tipo de operação que Euclides
vislumbra na Rússia, a civilização bárbara que se civilizou justamente porque regulou sua
barbárie, e não se voltou para sua preservação romântica. De maneira semelhante, a terra nova de
Vicente Licínio, desvinculada de fantasias essencialistas, simboliza a potencialidade inventiva e
eminentemente prática da experiência brasileira, como uma aposta radical nesse vazio criador que
Barboza Filho localiza no barroco americano.
A delimitação do caráter processual do iberismo ganha grande rendimento analítico na
obra de Robert Wegner (Wegner, 2000), que investigou problema familiar ao ponto desta tese.
Em trabalho sobre Sérgio Buarque de Holanda, ele sustentou que a polaridade entre
americanismo e iberismo, tão presente em Raízes do Brasil, ganharia outro tratamento em
escritos posteriores do autor, em especial Caminhos e Fronteiras e Monções. A mobilização da
historiografia voltada para o tema da fronteira teria permitido a Holanda identificar na expansão
bandeirante um caminho modernizador adaptativo, como se o complexo de valores associado a
esses personagens aventureiros e individualistas fosse moldado por um agir americano, próprio
de terras novas e abertas. Nas suas palavras,
220
Nesse sentido, a dinâmica da fronteira aponta, nos dois casos, para uma mesma
direção, que podemos relacionar ao aumento do vínculo da cultura com as
necessidades mais prementes da luta pela vida em um novo ambiente, levando a
uma evolução mais orgânica e autêntica. Daí decorre um disciplinamento colado
com as necessidades e com as mudanças materiais advindas no decorrer da
conquista do Oeste, a qual é também um incentivo à energia e à iniciativa
individual. De certa maneira, é como se a fronteira, que podemos considerar
uma americanização no sentido continental, apontasse em algum grau para os
valores relacionados ao processo de americanização e democratização que
Sérgio Buarque detectava já em Raízes do Brasil (Wegner, 2000, p.209).
Vê-se que Wegner também associa a possibilidade de se desconstruir a polaridade entre
iberismo e americanismo à mobilização da imaginação espacial brasileira. Para ele, esses dois
grupos de valores poderiam encontrar uma forma de ajuste, sem que a passagem da
americanização implicasse ruptura com os signos próprios da cordialidade. É uma argumentação
que encontra eco nas sugestões de Araújo a respeito dos “antagonismos em equilibro”, além de
mobilizar, de forma original, alguns temas que são trabalhados nesta pesquisa.
No argumento aqui discutido, porém, a “força da terra” tem limites precisos, dados
exatamente pelo andamento da nossa terra. Se Vicente Licínio classifica o Brasil como uma
fenomenalidade americana média, é justamente por perceber que nossa experiência não se
identificaria nem com a radical democratização estadunidense, protagonizada por homens livres e
dinamizados pelo trabalho racionalmente organizado, nem pelas explosões revolucionárias sul-
americanas, animadas por um republicanismo revolucionário. Nesse sentido, é possível
aproximar sua visão do tema da “revolução passiva” tal como desenhado por Werneck Vianna. A
aposta liciniana na pedagogia evidenciava a necessidade de produção de sujeitos
“republicanizados” e na incorporação de atores novos sob condução de setores capazes de nos
levarem para o reino americano “completo” – identificado com a organização racional do
trabalho livre. Não se trataria, portanto, da produção de uma vontade revolucionária, voltada para
o “assalto aos céus”, mas de uma vontade educada, conduzida por elites novas. Na Rússia
Americana não haveria lugar nem para a posição clássica da intelligentsia russa, em eterno
confronto ético e existencial com o poder e o Estado, nem para o protagonismo livre do mundo
fabril, enxergado por Gramsci nos ensaios sobre o fordismo. Se o universo fordista é desejável
para Vicente Licínio, como conjugação perfeita entre força da terra e máquina, o caminho que
221
levaria até ele encontraria sua raiz na educação, e não no livre jogo dos interesses. Afinal, nos
lembra o autor, é impossível pensar a América sem atentar para o republicanismo como exercício
de vivência e como vasto esforço pedagógico. Nessa versão, Rodó não é antítese de Ford, mas
seu complemento.
Como se percebe, a formulação encaminhada nos parágrafos anteriores conduz a uma
versão do problema “Rússia Americana” que escapa ao registro da ruptura, fixado por Otávio
Velho na sua obra de 1976. A metafísica da terra que preferi explorar aponta não para o
fechamento autoritário do mundo da tradição brasileira, que demandaria um rompimento radical
com a vida estatal e uma recriação revolucionária do nosso processo civilizador, mas para um
caminho moderno que articule de forma prática um agir americano a um pensar estratégico que
não oponha vida social e política. Nos termos do pragmatismo
117
, a reflexividade se daria
justamente como atividade do sujeito “em situação”, operação marcada pelos problemas práticos
que organizam a investigação. Isto é, se a narrativa de Velho conduz a prescrição de um “assalto
aos céus”, em que a aliança entre os sujeitos subalternos seria guiada por uma estratégia de
captura e remodelamento completo do aparelho estatal, a leitura da terra sustentada nesta tese
leva a uma concepção pragmática do agir político, que articule “idéias” a práticas efetivas de
resolução de problemas. A República de Licínio e Euclides, por exemplo, não se traduz num
artifício político produzido a contrapelo da marcha da vida nacional, mas num processo aberto de
organização que reclama a tradição imperial – a centralização e a lógica territorialista – como um
modus operandi. Ela não seria uma República pensada enquanto artifício político, mas como
ordem social caracterizada por um andamento sociológico calcado numa experiência republicana.
Assim, pode-se entender o sentido da categoria “organização” no pensamento de Vicente Licínio
– e, por que não, na de outros intelectuais que marcaram a Primeira República – para além da sua
costumeira associação com o tecnicismo de corte autoritário. A postulação de uma organização
da vida nacional revelaria certa dimensão pragmática (no sentido forte) que marcaria nossa
117
O estatuto do pensar em John Dewey (Dewey, 1991) difere em muito do sentido da tradição cartesiana, na qual
esse ato é produto de regras gerais, abstraídas das condições concretas nas quais ele se dá. A noção deweyana de
experiência, pensada não como verificação de uma verdade objetiva, que residira num suposto lugar externo e
afastado do conjunto de crenças humanas, mas antes como resolução ativa de problemas, abre as portas para uma
postura filosófica que daria grande valor à ação criativa e a um certo progressivismo aberto. Interessante retomar
aqui a “freyreana” associação feita por Vicente Licínio entre terra e máquina, destacando uma dimensão pragmática
da experiência brasileira.
222
experiência intelectual, ciosa do estabelecimento de uma nova relação entre pensar e agir, mais
condizente com a natureza de nosso americanismo
118
.
A ponte entre barroco, iberismo e pragmatismo, possibilitada pela matriz da Rússia
Americana, permite encarar de forma mais decidida um problema apontado pela interpretação de
Jessé Souza (Souza, 2003) sobre a configuração da modernização seletiva brasileira. Segundo ele,
o processo civilizador nacional teria sido organizado por instituições modernas (Estado e
mercado), e não pela suposta sobrevivência de um algum atavismo culturalista arcaico. Contudo,
as “novas periferias”, categoria na qual o Brasil se incluiria, prescindiam de uma configuração
moral coesa, que desse sentido a esse processo e formasse um fundo básico que permitisse o
reconhecimento universal da cidadania
119
. Tratar-se-ia, portanto, da operação prática de
instituições modernas, sem o necessário enquadramento de valores que sustentassem uma
experiência compartilhada. No dizer do autor,
Uma especificidade importante da modernidade periférica –da “nova periferia”
–parece-me precisamente o fato de que, nestas sociedades, as “práticas”
modernas são anteriores à “idéias” modernas. Assim, quando mercado e Estado,
ainda que de modo paulatino, fragmentário e larvar, são importados de fora para
dentro com a europeização da primeira metade do século XIX, inexiste o
consenso valorativo que acompanha o mesmo processo na Europa e na América
do Norte. Inexistia, por exemplo, o consenso acerca da necessidade de
homogeneização social e generalização do tipo de personalidade e de economia
emocional burguesa a todos os estratos sociais, como aconteceu em todas as
sociedades mais importantes da Europa e da América do Norte. (Souza, 2003,
p.99).
No caminho sugerido por esta tese, a ausência desse código moral mais espraiado – já
que nem mesmo o positivismo constituiu-se no código hegemônico dentro das elites do período –
118
Note-se que a “organização” de Vicente Licínio também o singulariza em relação ao seu “pai espiritual” –
Alberto Torres. Para este, vale lembrar, a Nação seria uma produção marcada pelo artifício, uma construção que
demandaria uma arquitetura jurídico-política adequada ao seu fortalecimento, e, portanto, distante da moldura
liberal-federalista de 1891. Na perspectiva liciniana, a educação seria a grande força dinamizadora de uma
republicanização aberta, cujo sentido seria a produção de uma sociabilidade assentada no trabalho livre, e não o
Direito Constitucional. Ressalte-se, também, a aposta de Alberto Torres numa sociedade marcada por padrões outros
de industrialismo, que valorizasse nossa matriz agrarista, tema que não encontraria guarida no entusiasmo fordista de
Licínio. Ademais, a própria denúncia da espoliação internacional e da divisão internacional do trabalho, central para
o pensamento de Alberto Torres, choca-se com o americanismo “continental” de Vicente Licínio.
119
Esse “fundo moral” básico é tratado a partir de uma leitura criativa das obras de Charles Taylor (de quem Souza
toma emprestado o conceito de “imaginário social”) e de Pierre Bourdieu (de quem toma o conceito de habitus,
estendendo-o para a caracterização da “pluralidade de habitus” que caracterizaria a naturalização da desigualdade nas
“novas periferias”).
223
não constituiria propriamente um problema, dado que a noção de “práticas” ganha força
expressiva maior, se pensada enquanto estratégia de organização de uma “nacionalidade em ser”.
Ou seja, nossa condição americana, pensada não como essência traduzida em tipos, mas como
tipo de ação, daria um potencial de invenção que substituiria esse complexo de valores. No caso,
a ênfase de Licínio na educação e na sua associação com um republicanismo assentado no
trabalho livre significaria a organização de uma experiência civilizadora inventiva, que extrairia
sua força justamente da relação construída entre “força da terra” e pragmatismo. A
“modernização de fora para dentro” teria sentido inverso, à medida que a terra traduziria nosso
potencial de rejuvenescimento. Como vimos, no caso da releitura liciniana de Euclides, esse
potencial não seria garantido por alguma ontologia essencialista, mas pela “virgindade de
inteligência” sustentada na nossa “terra inconsciente”. Nesses termos, o que surge como ausência
em Jessé Souza pode ser convertido em expressão positiva de um potencial moderno de
reorganização criativa.
Como se vê, a “Rússia Americana” revela uma versão da experiência brasileira que
escapa à fixação definitiva de uma identidade originária. O exercício interpretativo permitido pela
análise dos escritos de Vicente Licínio e Euclides da Cunha possibilitou vislumbrar as sugestões
contidas na nossa imaginação espacial, além de evidenciar a formação de uma espécie de
sociologia da terra que não se reduz a um discurso sobre o mundo rural e seus personagens. A
terra é, antes, um modo de pensar. Trata-se, portanto, de saber se essa sociologia permanece
como referência nos quadros da imaginação social contemporânea.
EPÍLOGO: SOCIOLOGIA DA TERRA E IMAGINAÇÃO PERIFÉRICA
É comum interpretar o pensamento brasileiro como um conjunto de discursos, idéias e
fabulações referentes ao clássico problema da construção nacional. Nesses termos, as discussões
sobre a identidade singular do país ou sobre os traços particulares que organizariam nossa
autenticidade são sempre destacadas. Do mesmo modo, a imaginação política brasileira debate-
se, constantemente, em torno da necessidade ou não de ajustar o país ao relógio do Ocidente,
como se a formação nacional e o processo de modernização mundial necessariamente operassem
em disjuntivas distintas. Tratar-se-ia, portanto, de inventariar nossas peculiaridades e de optarmos
224
ou por uma afirmação autônoma, ou por uma inscrição do particular no universal. Este trabalho
debruçou-se sobre o pensamento brasileiro a partir de outra perspectiva.
A expressão “Rússia Americana” não é a tradução de um hibridismo da nossa formação,
mas a sugestão de que o processo de construção do Brasil pode ser pensado a partir da decifração
de um mapa intelectual que transcende as amarras dadas pelas nossas origens. Nos termos desta
tese, Rússia e América são sociedades historicamente determinadas, por certo, mas são, tamm,
imagens simbólicas aproximadas pela mobilização de uma idéia espacial. Neste sentido, indicam
uma certa forma de acesso à modernização, que prescindiria de um repertório de tradições boas e
assentar-se-ia numa dinâmica dada pelo agir pragmático e pela adequação do pensar ao
andamento da ação. As propriedades associadas ao caminho da Rússia Americana estariam
associadas ao registro da invenção, tão bem representada pela sugestão de que certas sociedades
se organizariam a partir da “força da terra”, de uma energia inconsciente e não orientada para
uma arqueologia de um mito de origem. Os personagens dessa imagem – puritanos, seringueiros
ou amargurados literatos russos – representariam uma outra forma de sociabilidade, mais ajustada
às exigências modernas e menos refratária ao mundo da técnica e da organização racional da
vida.
Pode-se dizer que a “Rússia Americana” aproxima-se da forma de uma imaginação
periférica. É certo que a terra como imagem simbólica operou como guia na confecção dessa
cartografia singular, em que americanos e eslavos assemelham-se aos novos homens das
extremidades do mundo, tão distantes do figurino urbano-liberal que condensaria os tipos sociais
característicos da modernidade européia clássica (o burguês, o puritano, o civilizado ou o
cortesão). Contudo, a própria singularidade desse mapa questiona a dicotomia entre Oriente e
Ocidente, central para a delimitação do “centro” e da “periferia”. Assim, pode-se dizer que
estaríamos diante de uma imaginação modernista variante, uma alternativa entre outras, e não
necessariamente um desvio.
Ademais, num momento em que as grandes narrativas que estruturaram a vida nacional
dos países centrais parecem estar em xeque – seja pela globalização ou pelo chamado
“multiculturalismo” –, sociedades novas e organizadas pela matriz da “Rússia Americana”
225
parecem ganhar uma nova chance. Nos Estados Unidos, a fabulação puritana parece ter se
transformado num símbolo de divisão e fracionamento político radical, não mais operando como
o poderoso código moral consensual percebido por Jessé Souza. A visão de Bellah sobre a
religião cívica americana choca-se frontalmente com o desencantado diagnóstico de Richard
Sennett (Sennett, 1988), que vê justamente a corrosão da vida pública e o conseqüente
predomínio da “intimidade” sobre os padrões sociais modernos da América. Na Europa,
pensadores como Habermas parecem inquietos diante das possibilidades de fundar uma ordem
moderna pós-nacional que preserve algum tipo de adesão não meramente instrumental a um
projeto coletivo. Afinal, será que o “patriotismo constitucional” operaria como sucedâneo forte o
suficiente para as velhas tradições nacionais fechadas e auto-referenciadas? Como conciliar uma
esfera última de valores que possa animar a energia democrática de cidadãos cada vez mais
descrentes de uma narrativa unificadora para suas experiências? Esse tipo de questionamento
evidencia a dificuldade dessas sociedades para se ajustarem a uma experiência global em que a
modernidade escapa ao universo cultural que forneceu sua linguagem.
Diante dessas questões, talvez pudéssemos recuperar a velha idéia das “vantagens do
atraso”, transformada agora na “vantagem da ausência”. Afinal, a idéia traduzida pela expressão
“Rússia Americana” parece iluminar uma matriz civilizatória que prescinde de uma economia
moral essencialista, já que se perpetuaria como uma forma não apenas plástica, mas inventiva e
eminentemente prática, protagonizada por personagens não amarrados a um código valorativo
que hoje se encontra em xeque. Na matriz construída a partir de uma sociologia da terra
desenhada por dois peculiares engenheiros estaria uma pista para o reencontro do Brasil com uma
experiência intelectual e política que se abre para o mundo moderno e alarga o universo da
imaginação modernista. Esse parece ser o caminho mais instigante para articular a questão
nacional e os dilemas da civilização contemporânea.
226
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