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JACQUELINE DE CASSIA PINHEIRO LIMA
A pobreza como um problema social:
As ações de Victor Tavares de Moura e Agamenon Magalhães nas favelas
do Rio e nos Mocambos do Recife durante o Estado Novo
Tese apresentada ao Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio
de Janeiro – IUPERJ, como parte
dos requisitos para a obtenção do
título de Doutora em Sociologia.
Orientadora: Profa. Dra. Licia do Prado Valladares
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ
Rio de Janeiro, 24 de abril de 2006
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A Werne e Jair (in memorian) pelos
ensinamentos não acadêmicos
A Franklin e Maria Helena, por terem me
colocado no mundo e a Gilberto por ter me
encontrado nele.
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AGRADECIMENTOS
Estou eu aqui de novo para agradecer a muitas pessoas por mais uma etapa vencida.
Primeiramente devo agradecer a minha Orientadora, Professora Lícia do Prado
Valladares, pelo apoio e o interesse para que esta Tese acontecesse da melhor maneira
possível.
Também devo agradecer à banca examinadora do Projeto de Tese, que muito me
auxiliou. Ao Professor Gilberto Hochman, pelas indicações e cuidados dispensados não só
agora, como desde muito tempo. Penso que é realmente graças a ele que hoje me encontro
aqui. E ao Professor Luiz Antônio Machado pela simpatia e pelas correções precisas.
Ao Professor Antonio Edmilson Martins Rodrigues - meu eterno orientador. Muito
obrigada pela leitura e pela ajuda de sempre!
À Elizabeth Cobra pela revisão e bom humor numa hora de tensão.
Aos professores do IUPERJ que contribuíram com suas aulas, para que melhor nos
formássemos. Em especial, ao Professor José Mauricio Domingues, pelas dicas no
Seminário de Tese.
Aos funcionários da Instituição, em geral: o pessoal da limpeza, da portaria, da
recepção, com sua dedicação e simpatia. A todas da Biblioteca, em especial à Simone, que
nunca nos deixam de atender com um sorriso ou uma palavra amiga, bem como a todos do
Laboratório de Informática. Em especial e de todo coração devo agradecer às Secretárias do
Programa Lia e Valéria, sem vocês realmente...
Agradeço também, a todos os colegas do Instituto pela parceria de muitas horas. Em
especial à turma de Doutorado de 2001, que nas disciplinas foram sempre parceiros mesmo,
sobretudo, Luis Eduardo, Gisele e Jussara, minha companheira até na Bolsa Sandwiche.
Aos funcionários do CPDOC/FGV e da COC/FIOCRUZ, especialmente na primeira
Instituição devo agradecer à Margarete Tavares e à Daniele Amado e na segunda, à Ana
Luce Girão, Maria Marta e Rose Oliveyra, pela atenção dispensada.
Um agradecimento especial vai para a senhora Maria Coeli Moura pelo cuidado e
doação dos documentos de seu pai, Victor Tavares de Moura, sem os quais esta Tese não
teria sentido.
À CAPES um duplo agradecimento. Pelo apoio financeiro durante os anos de 2001
a 2004 e a garantia de minha estada em Paris, na Bolsa Sandwiche (2003/2004). Neste
período, especial agradecimento à competente e atenciosa Jussara Prado, funcionária da
CAPES/COFECUB que me assistiu sempre que precisei.
Por falar em Paris agradeço à equipe do Institut d’Urbanisme de Paris, a começar
pela Secretária do Laboratoire de Vie Urbaine, Anita Becquerell e aos professores Ferrial
Drosso (coordenadora do projeto), Laurent Coudroit de Lille (meu orientador) e Anne
Fournie (diretora do Laboratório), além de todo corpo docente do IUP. Aos professores da
École des Hautes Études de Sciences Sociales, Christian Topalov e Paul-Andre Rosenthal,
que me receberam com muita simpatia em seus cursos. Além de Jorge Santiago, pela
oportunidade de participar do Colóquio organizado pela Universidade de Paris I - Centre de
Recherche d’Histoire de l’Amerique Latine et du Monde Ibérique & Réseau Amérique
Latine (GIS). A contribuição de todos eles foi imprescindível para o andamento da Tese.
Aos amigos que fiz em Paris, Jean, Lílian, Stephanie, Helena, Carlos, Magali,
Aramires. Merci beaucoup!
Ainda agradeço a todos os amigos, que muito ou pouco inseridos na Tese
contribuíram com bibliografia, sorrisos, palavras de apoio, tiradas de casa, incentivos, etc.
Nesta lista estão: Renato, Claudia e meninas, Cláudio, Edinéa e meninos, Aline Fernandes,
Elisangela, Ana Cláudia, Silvia, Vânia Lúcia, Angélica, Teresa Toríbio, Beth, Bela, Lídia
Medeiros e a Carla Imenez pelos dias de “velozes e furiosos”. Cadu e Chris (meus finais de
semana sem vocês poderiam ter sido chatos) e Márcia (meus últimos 13 anos sem você
poderiam ser chatos). Neste clube ainda mora Gisele Sanglard, minha amiga que agüentou
muitas em Paris, quando moramos juntas. A vocês meu obrigada sempre!
Ao pessoal da FEUDUC, alunos e Corpo Docente do Departamento de História, ao
Evandro, sem esquecer o Boneco de Barro. Valeu por tudo!
À Ângela Maria de Sousa Moraes, pela confiança.
A Carlos Henrique e toda sua família. Obrigada!
A minha família: minhas avós, tios, primos, agradeço pelos momentos de relax.
Alessandro (meu irmão e consultor de informática e afins técnicos), Karina, Rafa, vocês são
importantes!
À minha nova família, os Ferreira e companhia, não posso deixar de dizer o quanto
foi formidável ser aceita no momento em questão. Guilherme, nesse sentido, um
agradecimento especialíssimo vai para você!
Assim como em minha Dissertação, aqui também meus pais ficaram por último e,
pelo mesmo motivo: vocês estão em minha vida em primeiro lugar, junto com meu marido,
é claro! Dedicação, carinho, força, amor, crença, não são apenas palavras, mas têm vida
própria e passam pela boca ou por gestos de forma a fazer você crer que o mundo é melhor
e que você vai conseguir tudo o que quiser nele. Assim eu me sinto com vocês por perto.
Pai, mãe, Gilberto, eu os amo muito!
Agradeço a Deus por tudo isso!
Resumo:
O objetivo do meu trabalho é entender como se consolidou a ação social, na
remoção dos mocambos (Recife) e das favelas (Rio de Janeiro) e na criação de novas
alternativas de moradias para a população pobre e como este trabalho de cunho
assistencialista contribuiu para a consolidação das propostas políticas e sociais do
Estado Novo (1937-1945).
Foram escolhidas duas metrópoles, para dar ênfase à análise comparativa entre
dois lugares que traduziam os problemas das habitações populares como um problema
de contexto regional e nacional ao mesmo tempo, como motivo de preocupação desde o
início do século XX. Estas duas metrópoles foram escolhidas por ocuparem lugar de
destaque nas ações governamentais durante os anos 1930 e 1940. Recife, porque seu
interventor deixa os Ministérios do Trabalho e da Justiça para tomar conta da cidade e
erradicar os males que “atravancavam o progresso”. Rio de Janeiro, porque como
capital do país, assumia de primeiro o caráter modernizador que se pretendia para a
nação. São, portanto, duas cidades com características nacionais em suas problemáticas
locais, possuindo elementos que as assemelham e as diferenciam.
Neste sentido, também duas pessoas merecem destaque: em Recife, o interventor
Agamenon Magalhães, com suas políticas contra os mocambos e a criação de Vilas
Operárias e no Rio de Janeiro, a figura pouco conhecida do Dr. Vitor Tavares de Moura,
que é convidado pelo interventor Henrique Dodsworth para trabalhar na remoção das
favelas e criação dos Parques Proletários Provisórios. Estas Vilas e Parques eram uma
nova forma de habitação com a intenção de regular, civilizar e reeducar seus habitantes.
Résumé :
L’objectif du travail est celui de comprendre comment l’action sociale a été
consolidée, pendant le transfert des « mocambos » (Recife) et des « favelas » (Rio de
Janeiro), et dans la création de nouvelles alternatives de logements pour la population
pauvre, et comment cette action d’assistanat a contribué pour la consolidation des
propositions politiques et sociales durant la période politique connue comme « Estado
Novo ».
Deux métropoles ont été choisies pour une analyse comparative car elles
traduisaient à la fois les problèmes de logements populaires dans un contexte régional et
national dès le début du XX siècle. Ces deux métropoles étaient en évidence pendant les
anées 1930-1940. Recife, car son gouverneur laisse ses fonctions aux Ministères du
Travail et de la Justice pour s’occuper de la ville et éradiquer les maux qui
« empêchaient le progrès » ; Rio de Janeiro, comme capitale du pays, prenait en premier
place le caractère modernisateur à lequel la nation se prétendait. Elles sont donc deux
villes avec des caractéristiques nationales dans leurs problématiques locales, en
possédant des éléments qui les rassemblaient et les différencient.
Dans ce contexte, deux personnalités méritent une place d’évidence : au Recife,
le gouverneur Agamenon Magalhães, avec ses politiques contre les « mocambos » et la
création des Villes Ouvrières et à Rio de Janeiro, la figure peu connue de un médicin,
Docteur Vitor Tavares de Moura, qui a été invité par le gouverneur de la ville, Henrique
Dodsworth, pour travailler dans le transfert des favelas et dans la création des Parc
Prolétaires Provisoires. Ces Villes et Parcs étaient une nouvelle forme d’habitation avec
l’intention de régulier, civiliser et rééduquer ses habitants.
SUMÁRIO:
Pg.
INTRODUÇÃO ................................................................................................ 01
CAPÍTULO I: As importantes questões em torno da Habitação Popular
na virada dos século XIX e início do século XX ............................................ 09
I. Considerações Iniciais .................................................................................... 10
II. Pobreza e Assistência como questão: o caso inglês ...................................... 12
III. As Reformas e os Reformadores Sociais: o exemplo francês ..................... 20
IV. O Tema da Raça como Discussão .............................................................. 24
V. Recife e a formação dos Mocambos ............................................................ 33
VI. O Rio de Janeiro na época dos Cortiços: uma visão histórica ................... 44
VII. Considerações Finais ................................................................................ 63
CAPÍTULO II: A Política Social no Primeiro Governo Vargas: ............... 65
I. O Estado Novo: Seus antecedentes e a política de Getulio
Vargas ................................................................................................................ 66
I.I. Getulio Dornelles Vargas: Um político ou uma
política? .............................................................................................................. 69
I.II. A Política do Estado Novo .......................................................................... 81
II. O universo das atuações de Victor Tavares de Moura ................................... 87
II.I. Henrique Dodsworth: o responsável pela Capital Federal durante a
demolição das favelas ......................................................................................... 87
II.III. Agamenon Magalhães: a demolição dos Mocambos e a inspiração
para as Favelas .................................................................................................... 91
III. Considerações Finais .................................................................................... 116
Pg.
CAPÍTULO III: Política e Assistencialismo: a experiência de Victor
Tavares de Moura ......................................................................................... 118
I. Considerações Iniciais ................................................................................. 119
II. Aspectos da Sociabilidade Urbana ............................................................. 122
III. Dr. Victor Tavares de Moura: uma história .............................................. 129
IV. A política das (nas) favelas ....................................................................... 137
V. Considerações finais ................................................................................... 152
CONCLUSÃO ............................................................................................... 155
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................... 162
ANEXOS ........................................................................................................ 174
Anexo 1: Cronologia ....................................................................................... 175
Anexo 2: Fotos ................................................................................................ 181
Anexo 3: Documentos ..................................................................................... 192
Anexo 4: Organogramas................................................................................... 205
Anexo 5: Entrevista com Maria Coeli Moura .................................................. 208
INTRODUÇÃO
A introdução de um trabalho tem como função inserir o leitor no universo
discutido em toda obra. Ainda assim, a tarefa de apresentar as idéias gerais de um
estudo não é fácil. Deste modo, esta apresentação será feita com a intenção de mostrar
os caminhos que levaram esta Tese a ser construída, bem como indicar os temas
discutidos em cada capítulo.
O trabalho em questão teve início com uma tentativa de mudança de foco em
minhas pesquisas. Desde minha Graduação, em História, já vinha trabalhando com a
questão do urbano, tendo o Rio de Janeiro como locus dessa discussão. No Mestrado,
também em História, segui a mesma trilha: se na Graduação trabalhei com o que se
havia demolido na cidade, os cortiços, no Mestrado pensava no que estava construído,
ou seja, prédios como a Biblioteca Nacional, o Theatro Municipal e a Escola Nacional
de Belas Artes, que davam o sentido de civilização e beleza propostos pelo Governo
Municipal. Sendo assim, o Rio de Janeiro continuava a ser o cenário e a Belle Époque o
contexto.
Para o Doutorado, a questão da urbanização ainda era meu interesse, mas sem
“jogar a História fora”. Muito pelo contrário, e tendo a mesma como base, investi na
Sociologia como enfoque e deixei a Belle Époque para trás, transferindo meu olhar para
os anos de 1930 e 1940. Tal investimento era fruto de uma vontade de mudar de área,
misturada ao interesse que me nutriu ao conhecer, pelas mãos de Licia Valladares, que
viria ser minha orientadora, a trajetória de Victor Tavares de Moura, personagem central
de minha Tese e que muito contribuiu com sua vida e obra para a história das habitações
populares na cidade do Rio de Janeiro, então capital federal. O nome deste médico
pernambucano já aparecia nas bibliografias sobre os temas das favelas e parques
proletários, mas de uma forma muito geral, pois toda a documentação que havia sobre o
Dr. Moura estava nas mãos de sua filha, Maria Coeli Moura.
Do encontro entre a futura orientadora e orientanda nasceu a possibilidade de
pesquisar a fundo a documentação do médico, o que não só possibilitou a elaboração
2
desta Tese, bem como uma Dissertação de Mestrado
1
e a doação de toda a
documentação para o Arquivo da Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ
2
.
Deste modo, tive acesso a essa documentação e pude perceber que poderia
escrever sobre o processo de desfavelização no Rio de Janeiro por meio da trajetória de
uma personagem que, não só contribuiu para tal feito, mas que marcou a história da
cidade com suas ações efetivas, de cunho assistencialista e disciplinador, como não
poderia deixar de ser à época em que atuava, a República nova, em especial à ocasião
do Estado Novo (1937-1945). Optei, então, pelo tema das habitações populares e tive
como intenção fazer com que as mesmas se tornassem documentos de uma história
através de uma análise sociológica dos anos 30 e 40 do século XX.
Após ter acesso à documentação de Tavares de Moura e às leituras sobre a época
em questão, percebi que havia uma ligação feita pelo próprio médico entre as cidades do
Rio de Janeiro e Recife. Algumas iniciativas realizadas por Moura no Rio de Janeiro, no
início dos anos de 1940, partiam de idéias programadas para a Recife da década
anterior. Isto não ocorria à toa, mas porque o momento assim pedia: o Brasil de então,
conhecido como Estado Novo, regime político autoritário, liderado pelo Presidente
Getúlio Vargas, tinha como uma de suas metas ações de cunho nacional, mesmo que o
alvo de sua política muitas vezes fossem questões regionais.
Não poderia ser diferente, então, no caso das habitações populares. Os
mocambos de Recife, como as favelas do Rio, deveriam ser destruídos e, em seus
lugares, erguidos novos modelos de habitação. No primeiro caso, com incentivo e total
apoio do interventor Agamenon Magalhães, seriam criadas as Vilas Operárias. No Rio
de Janeiro, apoiado pelo interventor Henrique Dodsworth e levado à frente por Victor
Tavares de Moura, nasceriam os Parques Proletários Provisórios. É destas tentativas de
remodelação urbana com a participação deste médico no Rio de Janeiro, comparadas à
atuação de um programa análogo em Recife, de que trata esta Tese.
1
Lídia Alice Medeiros. Atendimento à Pobreza no Rio de Janeiro durante a Era Vargas - do Albergue da
Boa Vontade aos Parques Proletários Provisórios: a atuação do Dr. Victor Tavares de Moura (1935-
1945). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UERJ, 2002.
2
A doação faz parte do Projeto “Memória da Favela Carioca: médicos, pobreza e reforma social”.
(URBANDATA-BRASIL, COC/FIOCRUZ e IUPERJ, financiado pela FAPERJ), sob a coordenação de
Lícia Valladares.
3
Isto posto, é necessário dizer, também, que se o primeiro passo foi o encontro
com a documentação de Victor Tavares de Moura, outros passos foram dados, tão
importantes quanto. Após as análises da documentação, feitas num primeiro momento
com a senhora Maria Coeli, inclusive uma entrevista sua
3
, e depois nos arquivos da
FIOCRUZ, fui levada a uma nova documentação que se encontrava no CPDOC/FGV.
Estes continham as investidas de Agamenon Magalhães contra a construção dos
mocambos no Recife, e sobre o Governo de Getúlio Vargas. Além disso, as leituras de
textos históricos e sociológicos corroboraram as informações contidas na
documentação.
Foram diversas as fontes consultadas, desde documentos particulares, até
telegramas, fichas, inquéritos, nomeações, reportagens, entre outros
4
, que iam dando
sentido ao quebra-cabeça que se formava sobre a atuação de Victor Tavares de Moura
no primeiro Governo Vargas. Era preciso encontrar, então, qual seria o diferencial da
atuação deste médico, já que as intervenções na urbanização da cidade, via habitações
populares, era algo historicamente observado, como veremos em um dos capítulos.
Além disso, tive a preocupação de identificar as semelhanças com o projeto
pernambucano, bem como a constatação de que tais projetos pertenciam a um período
histórico único, singular, e resultava em um problema sociológico pontual: a pobreza
como uma questão social, que afetava não só os moradores das favelas, vilas,
mocambos, mas que se irradiava para toda a sociedade, atingindo a economia, a política,
a cultura e, principalmente, a ordem social. Isto só fez incentivar o trabalho de médicos,
engenheiros, políticos, jornalistas, religiosos, em seu combate.
Após a análise destas documentações e da leitura dos inúmeros trabalhos já
existentes sobre a época, precisava de algo que tratasse teórica e mais detalhadamente
desta idéia da pobreza como questão social. Foi então que tive a oportunidade de ir para
a França, com uma Bolsa Sanduíche da Capes e ter contato com uma bibliografia
européia que muitas vezes confirmava minhas inquietações sobre a relação entre
3
Tal entrevista, em anexo, faz parte do já citado Projeto “Memória da Favela Carioca: médicos, pobreza e
reforma social”, cujo foi entrevistada por Lídia Medeiros, Jacqueline Lima e Monique Batista e consta do
Inventário Analítico Victor Tavares de Moura da Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ. Rio de Janeiro:
FIOCRUZ, 2005.
4
Alguns documentos encontram-se em anexo nesta Tese.
4
pobreza e ordem social, ao mesmo tempo em que me fazia compreender que tanto
teórica como empiricamente algumas atuações efetivadas no Brasil dos anos 1930 e
1940 já se observavam anteriormente na Europa. Por este motivo, trago na Tese, não só
discussões de autores brasileiros sobre a questão, mas de teóricos que pensam, desde há
muito, a pobreza no mundo. Imagino ser de fundamental importância observarmos
como tais questões foram, e ainda são, discutidas e tratadas em outros países, como os
europeus, por exemplo, que trazem levantamentos sobre essa demanda muito antes que
no Brasil.
A importância de se estar em um dos maiores centros de pesquisa sobre
urbanismo foi de grande valor para o meu trabalho. Não só minha inserção no Institut
d’Urbanisme de Paris (IUP), mas também na École des Hautes Études en Sciences
Sociales (EHESS) e em inúmeras bibliotecas, deram à minha pesquisa um sentido ainda
maior. A oportunidade de me encontrar nestas instituições se revelava na tentativa de
encontrar uma condução teórica dentro da Sociologia e da História para os problemas
sociais existentes no Brasil nas décadas por mim estudadas.
Embora soubesse que meu trabalho fosse específico em cidades brasileiras (Rio
de Janeiro e Recife), sabia também que as análises teóricas seguem modelos ocorridos
mundialmente. Pude perceber que a Europa de anos anteriores ao meu corte temporal
teve preocupações parecidas com suas cidades. Longe de encarar as iniciativas
governamentais brasileiras para o problema social das habitações populares como cópia
das iniciativas européias, posso dizer que houve, sim, uma certa influência, já que as
preocupações muitas vezes eram as mesmas.
Portanto, o maior impacto, a maior relevância de minha ida a Paris, foi
justamente travar contato com especialistas do IUP que me conduziram ao pensamento
sobre as políticas urbanas ocorridas na Europa do final do século XIX e início do século
XX
5
. Além disso, pude assistir a seminários, fazer novas pesquisas bibliográficas, que
5
Tive a oportunidade de participar como ouvinte de um dos maiores programas hoje nas ciências sociais,
chamado « Les Mots de la Ville : Langues techniques et spécialisées de l’urbain », quando fui convidada
por Laurent Coudroy de Lille, que atuou como meu orientador durante a Bolsa Sandwiche, para assistir
uma dessas discussões na cidade de Dunkerque na Journée d’étude à la ville, no Institut des Mers du
Nord.
5
me colocaram frente a idéias ora previamente existentes, ora que trouxeram inovações
ao meu pensamento sobre remodelação urbana.
De volta ao Brasil, havia a dificuldade que me era de alguma forma excitante
porque definiria os rumos da Tese: trabalhar a relação entre as bibliografias brasileira e
européia e dar um rumo a elas para que junto à documentação de Victor Tavares de
Moura, Agamenon Magalhães, Henrique Dodsworth e Getulio Vargas, colocassem em
ordem os problemas e as soluções encontradas para as favelas e os mocambos.
O ponto de partida teórico de minha Tese, então, começou a se colocar no
sentido de estabelecer parâmetros entre a idéia de pobreza que se construía no Brasil e
na Europa, a partir da constatação de que esta significava um problema social. Algo que
colocaria em xeque as apreensões de toda a sociedade e, não mais somente das pessoas
consideradas pobres. Isto, no Brasil, desencadeou noções de interdependência em
diversas áreas, o que fez com que as ações em prol da pobreza se dividissem entre o
chamado sertão e a cidade, entre médicos e eugenistas, entre tradição e modernidade.
Junto a esta concepção, recorremos, inclusive, ao pensamento de Karl Polanyi, que
chega a acreditar que a relação entre o antigo e o novo foi que originou a pobreza e que
acabou gerando um descontrole no mundo do mercado, pois não se deve desconectar a
sociedade de mercado de seu contexto social. (Schwartzman, 2004).
Enfim, se pensava todo tipo de tensões e contradições que pobreza versus
riqueza poderiam oferecer. Mas, podemos ressaltar que a pobreza não era um problema
específico da economia de mercado. Ela é um problema estrutural e tem seu sentido
transformado dependendo da sociedade na qual ela incida.
Outra preocupação que tenho, e que se direciona mais exatamente para os casos
brasileiros discutidos, isto é, a demolição das favelas e dos mocambos, é a questão da
transformação das identidades da população considerada pobre e sua relação com uma
memória e um projeto que dão sentido ao fato do deslocamento físico e às idéias de
transferência e fragmentação da sociedade. Como tais moradores acabam sendo
estigmatizados e que tipos de representações sociais se fazem deles? Como as
autoridades públicas lidam com estas questões quando um problema tópico torna-se um
problema social?
6
A fim de melhor trabalhar estas questões a Tese, então, divide-se em três
capítulos, além da conclusão. O primeiro deles, “As importantes questões em torno
da Habitação Popular na virada do século XIX e início do século XX”, assume a
necessidade de se manter um recuo histórico para se entender as ações de Victor
Tavares de Moura nos anos de 1940. Neste caso trabalharei as similitudes e as
diferenças entre as cidades européias e a brasileira, através do uso de suas literaturas
referentes ao período, no que compete à questão da habitação e sua referência à pobreza
e ao higienismo. Outrossim, apresento as cidades do Rio de Janeiro e Recife. A primeira
com seus cortiços e as ações discutidas e implementadas pelas elites no caso de suas
demolições. A segunda com medidas semelhantes contra a construção de mocambos
advindos muitas vezes de quilombos, e que, portanto ofereciam um ar de ‘atraso’,
justamente o que não se queria para o Brasil da época.
Neste capítulo, então, mostrarei como estas duas cidades se apresentavam antes
dos anos 1930 e 1940, onde os cortiços e os quilombos seriam considerados os
antecedentes das moradias populares em alvo de ataque das políticas públicas de seus
governantes contando com apoio da Medicina Social, Engenharia, Imprensa, empresas
privadas, entre tantos outros no intento de exterminar com tais habitações. Este capítulo
garante em perspectiva o cenário em que as cidades se transformariam mais tarde.
O segundo capítulo, intitulado “A Política Social no Governo Vargas”, traz
mais uma vez um olhar para a História do Brasil antes dos anos de 1937, início do
Estado Novo. É necessário observar o período que antecede o regime proposto por
Vargas para entender as ações deste governante e seus interventores que foram
imperativos ainda no início da República.
Além disso, veremos como se deu a política social do Governo Vargas durante
os anos 1937-1945, onde traçaremos o cenário em que se desenvolveram as idéias do
trabalhismo, educação e saúde. Neste período se destacam as figuras dos interventores
Agamenon Magalhães e Henrique Dodsworth. Agamenon porque junto da elite política
e econômica de Pernambuco desenvolve uma cirurgia urbana para a extinção dos
mocambos, através da criação da Liga Social contra o Mocambo. Também procuramos
analisar sua vida política não só com relação aos mocambos, mas sua estada em dois
Ministérios durante o Governo de Getulio. Já Dodsworth, cuja representação como
7
Interventor da cidade-capital foi de extrema importância para as políticas urbanas e
assistenciais dadas à cidade durante o período, não poupou apoio a Victor Tavares para
a execução das demolições de algumas favelas cariocas, bem como para a criação dos
Parques Proletários.
O terceiro capítulo, “Política e Assistencialismo: o caso de Victor Tavares de
Moura”, mostra a vida de Victor Tavares de Moura e suas realizações na cidade do Rio
de Janeiro recebem especial atenção. Veremos como as origens européias de
preocupação com a habitabilidade da população mais pobre e a inspiração do médico
social em Recife no momento da destruição dos mocambos e na criação das Vilas
Operárias para alocar seus moradores, repercutiu nas questões relativas às favelas.
Minha intenção aqui é apontar algumas atitudes que foram direcionadas às
favelas e seus moradores, mostrando que tais atitudes não se encerravam no espaço
geográfico, mas também estavam direcionadas ao espaço simbólico, já que as favelas se
constituíam como um problema social a ser combatido pelo governo da cidade do Rio
de Janeiro e até mesmo do país. Neste sentido, a criação dos Parques Proletários
Provisórios aparece como alternativa de habitação, que como o próprio nome diz seria
temporário, mas que acabou se constituindo permanente até sua demolição nos anos
1960.
Além dos capítulos já mencionados, a tese também traz uma conclusão na qual
discutirei as representações sociais da pobreza. Sua relação com a memória social, a
busca de uma identidade, no que tange ao processo de exclusão do pobre. Também a
bibliografia utilizada e um anexo com fotos da época e documentos importantes usados
nas demolições e construções aqui já explanadas e uma entrevista com a senhora Maria
Coeli Moura, filha do Dr. Victor que finalizam o trabalho e garantem um melhor
entendimento sobre o tema proposto.
8
CAPÍTULO I:
As importantes questões em torno da
Habitação Popular na virada do século
XIX e início do século XX
“Com a urbanização do País, ganharam
tais antagonismos uma intensidade nova;
o equilíbrio entre os brancos de sobrado
e pretos, caboclos e pardos livres dos
mucambos não seria o mesmo que entre
os brancos das velhas casas-grandes e os
negros das senzalas”.
Gilberto Freyre
“O rumor crescia, o zunzum de todos os
dias acentuava-se; já se não destacavam
vozes dispersas, mas um só ruído
compacto que enchia todo o cortiço.
Começavam a fazer compras na venda;
ensarilhavam-se discussões e restingas;
ouviam-se gargalhadas e pragas; já não
se falava, gritava-se. Sentia-se naquela
fermentação sangüínea, naquela gula
viçosa de plantas rasteiras que
mergulham os pés vigorosos na lama
preta e nutriente da vida, o prazer animal
de existir, a triunfante satisfação de
respirar sobre a terra”.
Aluísio Azevedo
I. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Minha intenção neste capítulo é: a) discutir algumas questões que tiveram
fundamental importância na Europa durante o século XIX, como os debates sobre
higienismo, pobreza e assistência, e suas repercussões no Brasil do século XX; e b)
trazer à tona o debate sobre a cidade e a habitação na virada do século XX em duas
localidades brasileiras, a saber, Rio de Janeiro e Recife, usando o exemplo europeu para
tratar as questões mencionadas acima, além de observar que no caso brasileiro tamm
apareceu como importante contenda o tema da raça. Para tanto, usarei uma discussão
histórico-sociológica dos autores que pensaram tais assuntos no Brasil no fim do século
XIX e início do século XX, considerando as visões de cronistas, médicos, engenheiros,
arquitetos e demais intelectuais e políticos. Para esta discussão será utilizada uma
10
bibliografia nacional e internacional já existente sobre o tema e outras que se
relacionam a ele.
Sabe-se, por meio de vasta literatura, que a política de remoção de habitações
populares do centro das grandes cidades há muito preocupa seus administradores no
Brasil. Um dos objetivos deste capítulo é, então, verificar como tais transformações
urbanas foram feitas ao longo da história das cidades do Rio de Janeiro e Recife, desde
o final do século XIX até o Estado Novo (1937-1945).
Estas duas metrópoles foram escolhidas para dar ênfase à análise comparativa
entre dois lugares que traduziam os problemas das habitações populares como uma
questão de contexto regional e nacional ao mesmo tempo, já que se configuravam
motivos de preocupação desde o início do século. Na literatura isto já acontece. Estas
duas metrópoles foram escolhidas também por ocuparem lugar de destaque nas ações
governamentais durante boa parte da História do Brasil, seja a do século XIX ou a do
XX. São, portanto, duas cidades com características nacionais em suas problemáticas
locais, possuindo elementos que as assemelham e as diferenciam.
Se olharmos para Recife, veremos que se constituiu uma cidade de bastante
importância no cenário agrícola desde a época colonial. Durante o Estado Novo - nosso
foco principal da pesquisa - contou com a importância de seu interventor, Agamenon
Magalhães, que deixa os Ministérios do Trabalho e da Justiça para administrar a cidade
e erradicar os males que atravancavam o progresso. Nesta mesma cidade, intelectuais
como Gilberto Freyre e políticos como o próprio Magalhães e Lima Cavalcanti, fecham
o panorama desta metrópole de extrema importância no que tange às questões urbanas.
Já o Rio de Janeiro, como capital do país, assumia de primeiro o caráter
modernizador que se pretendia para a nação. A presença de intelectuais também era
marcante. Nomes como Lima Barreto, Olavo Bilac, Machado de Assis, João do Rio,
entre tantos outros, estavam, há muito, com seus olhares direcionados à cidade. Não só
os intelectuais, mas também políticos, empenhavam-se a acabar com os problemas
urbanos: seja o prefeito Barata Ribeiro e sua erradicação do Cortiço Cabeça de Porco no
século XIX, Pereira Passos, com a marcha do Rio Civiliza-se!, até a chegada das
11
reformas implementadas por Henrique Dodsworth nos anos de 1930 e 1940. O Rio de
Janeiro foi, por muito tempo, palco de grandes manifestações para e pelo urbano.
Deste modo, estes dois grandes centros que sofreram remodelação urbana
durante o Estado Novo discutiam características da população pobre assistida. Entre elas
estavam suas condições física, ética e moral que, segundo o Estado, deveriam responder
aos anseios propostos pelo novo modelo de governo. Porém, para o estudo da pobreza é
necessário, além de defini-la, relacioná-la com questões como assistência,
pertencimento e vínculo social. Para isso, faremos, agora, uma viagem à Europa, para
entendermos como as ações implementadas no Brasil dos anos de 1930 e 1940 para o
tratamento das questões sobre as favelas e os mocambos, tiveram, no velho continente
do século XIX, sua fonte de inspiração.
II. POBREZA E ASSISTÊNCIA COMO QUESTÃO: O CASO INGLÊS
Temas como assistência e pobreza tornam-se um problema social na Europa a
partir do momento em que o Estado auxilia os pobres para responder à crise dos
princípios liberais (Procacci, 1994). Neste sentido, a relação entre pobreza e assistência
deveria aparecer como característica de entidades públicas e privadas e, não, entre
pessoas mais abastadas que teriam a obrigação moral de assistir os pobres. O ideal do
humanitarismo e dos direitos do homem, sobretudo na Inglaterra, eram elaborados de
modo a que o trabalho deveria ser dado aos pobres pelo benefício da comunidade.
Portanto, é interessante observarmos como se deu tal relação na Europa para que
possamos entendê-la, mais tarde, no Brasil. Lembro que não se trata de uma questão de
imitação ou transferência de um universo para o outro, mas é fato que os intelectuais e
mentores dos projetos relativos às habitações populares brasileiras estiveram na Europa,
como é o caso de Victor Tavares de Moura, antes de atuar nas favelas do Rio de Janeiro,
o que nos leva a crer ter havido um conteúdo de reforma social em seus projetos.
A Inglaterra, além de ter sido o país pioneiro da industrialização, teve sua
agricultura desenvolvida com o cercamento dos campos e a implementação de novas
técnicas de cultivo. O resultado disso foi, entre outras coisas, o nascimento do
“trabalhador livre”, transformado em mão-de-obra não só nos campos, como no meio
12
urbano, nas fábricas. Logo se percebia o nascimento de uma nova população que passou
a peregrinar pelas ruas, como conseqüência do desemprego e do pauperismo, gerado
pelo excesso de procura por um lugar no cenário urbano. Tal situação amedrontava as
elites políticas e econômicas, não só de uma perspectiva de ameaça à paz social, mas
também pela responsabilidade que tinham de auxiliar a esses pobres. A Revolução
Industrial causou, assim, uma desarticulação social e o problema da pobreza era um dos
seus aspectos, refletindo-se no campo econômico.
Lembremos que a Lei dos Pobres foi criada durante o ano de 1640
1
, quando a
Inglaterra era predominantemente rural. Num segundo momento, em 1834, esta
legislação já se aplicava no contexto urbano e teve que ser revista a fim de patrocinar o
auxílio público aos desvalidos. Por haver se tornado cada vez mais restritiva e
repressora, e por ser incompatível com o desenvolvimento do capitalismo, pouco a
pouco a “lei dos pobres” foi sendo combatida até ser completamente abolida.
Um pouco diferente da Inglaterra, na França a análise da pobreza por meio do
elemento moral se deu por intermédio da filantropia como uma questão de
“responsabilidade subjetiva pelos pobres”, pois a pobreza é assumida pela sociedade
como um dever moral, e não econômico, durante o século XIX. A filantropia faz da
moral a chave para a interpretação da pobreza como problema geral da sociedade,
tornando possível a intervenção de um agente coletivo (Procacci citado em Merrien,
1994:36).
Veremos, a seguir, dois diagramas que explicitam as idéias acima: o primeiro
representa a pobreza:
1
Vale lembrar que na Primeira Lei dos Pobres as municipalidades tiveram que criar centros, conseguir
empregos, asilos e punir a vadiagem. Tal lei, em vez de acabar com a pobreza, fomentou-a ainda mais por
ter uma política assistencialista ineficiente, que, segundo alguns autores, só conseguiu melhorar com sua
Emenda de 1834.
13
POBRES
Século XIX, Após 1918, vistos
vistos como indivíduos como corpo social
Preocupação moral Preocupação econômica
(relação capital/trabalho)
O segundo representa a assistência:
ASSISTÊNCIA
Sentimento subjetivo de caridade Sistema objetivo de leis e de
justiça social
Sociedade Comum Ciências Sociais
Dever Moral Dever Social
Vemos, então, que na Europa do século XIX o pauperismo é encarado como
uma questão moral e que deve ser combatido por meio da idéia de socialização.
Segundo Procacci (1994), o controle do espaço em torno do indivíduo é tendência dos
economistas sociais, que encaram a pobreza como uma “patologia social”. “Eles se
apóiam sobre a convicção dos iluministas segundo a qual o elemento físico tem uma
14
influência sobre a moral” (Procacci citado em Merrien, 1994:37). Nesse momento,
pobreza/doença, saúde/ordem, imoralidade/contágio se confundem.
Esta tal moralidade é, então, observada também mediante o papel do Estado.
Que papel seria esse? A assistência seria seu dever ou sua virtude? Estas perguntas são
por nós também colocadas ao estudarmos nosso objeto. Qual o papel do Estado Novo
nas políticas assistencialistas às camadas populares? A troca de lugares no que tange às
habitações populares é feita como valor de dever ou de virtude? Como são feitas tais
transferências, e como elas mexem com o sentido de pertencimento dessa população? É
o que tentaremos responder mais adiante.
O crescimento econômico britânico mostrou que a sociedade inglesa do século XIX se
revelou um ponto de partida no isolamento da atividade econômica e motivação para
uma economia distinta. E esta sociedade é, a partir daí, incluída no mecanismo de
mercado e subordinada às suas leis, donde se conclui que trabalho, terra e dinheiro
passam a ser elementos essenciais da indústria, mas estes não são, ainda, mercadorias,
pois são definidos por Polanyi (1980) como objetos produzidos para a venda no
mercado. Trabalho é apenas sinônimo de atividade humana que acompanha a vida;
terra, sinônimo de natureza e dinheiro, símbolo do poder de compra. Nenhum deles,
portanto, é produzido para venda. Suas descrições como mercadorias são inteiramente
fictícias. E é a partir desta ficção que são organizados seus negócios reais, o que é
essencial para uma economia de mercado aos poucos ir minando a própria sociedade
que lhe deu condições para se desenvolver.
Porém, com a ampliação do mecanismo de mercado ao trabalho, terra e dinheiro,
foi conseqüência inevitável da introdução do sistema fabril numa sociedade comercial
que os transformaram em mercadorias. A “sociedade humana tornara-se um acessório
do sistema econômico” (Polanyi, 1980:87).
Neste sentido, podemos observar que no capitalismo são as relações econômicas
que definem as relações sociais. Desde a Revolução Industrial, eliminando antigos
padrões sociais e colocando novos, o sentido de reciprocidade, redistribuição e
obrigações para a comunidade foram deslocadas. Tanto a burguesia mercantil, como o
15
Estado, consolidou forças por meio do uso do poder a fim de garantir a segurança da
formação desta classe. O mercado passa, então, a ser utilizado de forma tal que o ganho
e o lucro tomassem conta da cena (Polanyi, 1980). O século XIX tem um papel
preponderante nas relações de mercado, porque é a partir desta data que a economia
começa a ser inteiramente regulada por ele.
Porém, alguns estudos têm mostrado que o fato de se estar atrelado à economia
não diz respeito somente à posse de bens, mas, sim, ao que isto vem a trazer de
benefício à vida social, isto é, o econômico, ele mesmo, não vive por si só, mas está
relacionado à vida social do indivíduo, aos seus interesses e, muitas vezes, recai sobre a
teoria da dádiva, na qual “retribuir” e “redistribuir” tornam-se fundamentais.
Desta forma, alguns autores apontam que a permuta, a barganha e a troca
constituem um princípio de comportamento econômico que depende do padrão de
mercado, criado, dentro desse contexto, como uma instituição. E, assim, em vez de o
sistema econômico estar embutido nas relações sociais, são estas que estão embutidas
no sistema econômico, pois uma economia de mercado só pode funcionar numa
sociedade de mercado.
A reciprocidade, assim, sem sentido mercantil, aparece como troca que envolve
seres sociais: quando alguém recebe, tem-se uma dívida social com o outro. Mas, o que
torna importante a obra do sociólogo é que tais questões podem ser, segundo ele
próprio, também observadas no mundo moderno, diferente do que se pensava.
Na Europa, principalmente, na França e na Inglaterra os negócios e o comércio
se espalharam e é justamente nesta situação que se origina a política comercial interna
do mercantilismo que se tornou a resposta a vários desafios da sociedade moderna,
inclusive a de “libertar” o comércio do particularismo, ampliando seu espaço de
regulamentação. Com a chegada da Revolução Industrial há uma tentativa de
estabelecer um grande mercado auto-regulável, isto é, toda a produção passa a ser para
venda no mercado e todos os rendimentos são derivados destas vendas (Polanyi, 1980).
Muitos pensadores do século XVIII e XIX, entre estes Malthus, concordam ao
dizer que o pauperismo era inseparável do progresso. Sociólogo e economista inglês,
16
Malthus, em sua obra Ensaio sobre a População, tratou do aumento populacional como
sendo sempre maior que os meios de subsistência, e chamou a atenção dos economistas
para o problema da demografia. Ricardo, também economista inglês, influenciado por
Adam Smith, discutiu em sua obra Princípios de Economia Política e Tributação o
problema do restabelecimento dos pagamentos em moeda, observando que os lucros
aumentavam com a diminuição dos salários e vice-versa.
Com a ascensão do comércio e da produção observou-se um aumento da miséria.
O pauperismo, assim, começa a tomar os rumos de uma concepção filosófica, não mais
somente religiosa. A idéia de que o pauperismo era um problema, ou que poderia ser
rentável, dá exemplo de como este fato tomou conta do pensamento e criou divergências
desde o século XVII entre os pensadores do problema da pobreza. Entre estes estava o
utilitarista Jeremy Bentham, que argumentava que o homem era o melhor juiz de seus
próprios lucros, além de desprezar a igualdade, inclinando-se ao laissez-faire. Robert
Owen, socialista utópico galês, também foi outro pensador que se empenhou em
campanhas para melhorias das condições trabalhistas e implementou projetos de
cooperativas. Acreditava na igualdade dos homens e nos seus direitos naturais (Polanyi,
1980).
A descoberta do significado da pobreza preparava o cenário para a entrada do
século XIX e apontava a questão da fome como algo que ligava, ou melhor, incentivava
o homem ao trabalho, como quando da chegada do século XX, com a questão do
mercado auto-regulável não mais conseguindo se sustentar. Primeiro nos anos 20, no
qual o liberalismo econômico estava no seu auge; depois nos anos 30, quando ele já
começa a ser questionado e, nos anos 40, o liberalismo econômico tem a sua derrocada
ainda maior: “O espírito que o Iluminismo havia alcançado fora derrotado pelas forças
do egoísmo” (Polanyi, 1980:149). Nem os adeptos do liberalismo econômico fugiram
da regra de reconhecer o laissez-faire como impraticável nas condições industriais
avançadas.
Neste sentido, a obra de Polanyi destaca que durante o século XIX se
consolidaram as instituições capitalistas, por meio da auto-regulação com base no
sistema de mercados, de preços e do trabalho, lembrando que não se pode reduzir este
último item a uma simples mercadoria. O autor trata a revolução liberal como uma
17
grande transformação, característica do século XIX, pois como mostrou, nem tinha
raízes no passado, nem conseguiu se sustentar no século XX.
Isto mostra que o Estado só se ocuparia de necessidades gerais e mais urgentes, e
tais necessidades dependem de um contexto específico. É imprescindível identificar o
que é indispensável e imediato. E nesse momento, combater a pobreza era imperativo, já
que naquele momento a assistência privada se ocupava dos pobres E não da pobreza
(Simmel, 1998). Esta idéia se resume no esquema abaixo:
ASSISTÊNCIA DA SOCIEDADE ASSISTÊNCIA DO ESTADO
INDIVIDUAL COLETIVA
TELEOLÓGICO CAUSAL
AUTODEFESA
ALVO = POBRE ALVO = POBREZA
“RECUPERAÇÃO DOS FRUTOS DE SUA DOAÇÃO”
O importante aqui não é contrapor os pobres à pobreza, mas entender as formas
sociais que eles adquirem num determinado momento de sua história; identificar quais
são seus vínculos sociais e perceber o papel da assistência como sinônimo de
autoproteção e autodefesa, pois, o que era para ser um direito do indivíduo como
cidadão, se confunde, muitas vezes, com a estigmatização do pobre. O indivíduo
categorizado como pobre adquire o direito de ser ajudado, e ainda há o dever dos “não
pobres” de ajudá-los. Cria-se uma espécie de salvação ao excluir determinadas pessoas
de seus direitos porque foram caracterizadas, estigmatizadas e muitas vezes excluídas,
18
embora saibamos que esta noção de exclusão se relativiza e varia de acordo com as
épocas e os lugares, ou seja, torna-se historicizável. Pois,
“Não somente esta forma de exclusão é relativa, mas ela se revela, sobretudo,
nela mesma, das relações de interdependência entre as partes constitutivas de
uma larga estrutura social [...]. A exclusão singular a qual os pobres são
sujeitados pela comunidade que os assiste é característica da função que eles
preenchem na sociedade como membros dela numa situação particular”.
(Simmel, 1998:16)
Querer definir o excluído em função de critérios únicos é fugir de um contexto
específico de cada sociedade. Neste caso, todos os autores que trabalham com o tema da
exclusão adotaram a perspectiva de considerá-la como integração ou identidade, onde
podemos observar que:
“[...] a exclusão não designa um estado ou uma categoria de pessoas, mas um
processo. Existem numerosas maneiras de ser ‘incluso’ ou ‘excluso’. A
sociedade moderna se caracteriza pela multiplicidade e a fluidez dos papéis e
das participações”. (Schnapper, 1996:27)
Ao trabalharmos com a noção de exclusão, estamos trabalhando também com a
questão da inclusão num movimento dialético, sendo que de uma certa maneira este
fator de integração é responsabilidade do Estado. Aquele que é excluído, portanto
colocado à margem da sociedade, usado sempre como sinônimo de vagabundagem e
criminalidade, pode ser considerado mais vulnerável. Seja a problemas de saúde, seja
ideologicamente (Castels, 1996:37). Embora marginalidade não seja, exatamente,
sinônimo de pobreza, tanto o pobre quanto o marginal nunca estarão totalmente
inseridos na sociedade e sempre, de uma forma ou de outra, serão estigmatizados.
19
III. AS REFORMAS E OS REFORMADORES SOCIAIS: O EXEMPLO
FRANCÊS
Na Europa dos séculos XIX e XX a vida social e econômica se funde, o que faz
perceber a necessidade de um olhar múltiplo sobre a cidade. Médicos, engenheiros,
arquitetos, políticos, todos observavam e agiam na cidade que também era múltipla.
Neste sentido, o problema das habitações populares e da falta de salubridade , na
França, acabou levando, em 1902, à criação de uma lei que regulava a higiene pública.
Era necessário, então, criar novas alternativas para a construção de habitações sadias e
confortáveis para as famílias.
A Revolução Industrial foi uma grande incentivadora das mudanças sociais na e
para a cidade, fazendo do ambiente urbano o ambiente industrial por excelência. Neste
sentido, as cidades européias, começaram a se preocupar com os problemas físicos e
sociais que foram aparecendo, principalmente com relação à classe operária. Daí a
necessidade de novos valores e um novo ordenamento social, que também se viu no
Brasil anos depois.
Duas correntes de organização social para a cidade se afirmavam: a
progressista, baseada em princípios individualistas e racionalistas, tendo como
principal foco a higiene, e a culturalista, cujo maior representante foi Ebenezer Howard
e sua Cidade Jardim.
O inglês Ebenezer Howard pensou a forma da Cidade Jardim para unir campo e
cidade a fim de resolver os problemas de insalubridade e pobreza. Via nessa dobradinha
cidade/campo, uma oportunidade de unir o acesso da cidade à beleza do campo. Para
Howard, as cidades-jardim garantiriam uma vida comunitária e livre. Neste sentido,
empresários ingleses encontraram nas cidades-jardim a saída para uma vida melhor e
mais saudável para seus empregados, o que repercutiria positivamente no trabalho deles.
A primeira cidade-jardim data de 1903, a segunda de 1920 e foram pensadas em
função do desenvolvimento urbano. O que fica claro é que era um movimento
controlador do espaço público, do número de habitantes, assim como as formas
pensadas no Brasil dos anos de 1930 e 1940.
20
Nasceram, a partir de então, várias possibilidades de construir uma cidade mais
bela e mais habitável para os trabalhadores. Os valores de beleza, salubridade e
habitabilidade não eram um pensamento particular da Europa. No Brasil, a reforma
urbana de Pereira Passos no centro da Cidade do Rio de Janeiro já mostrava tal
preocupação, claramente calcada no modelo europeu.
Assim como ele, muitos administradores, intelectuais e médicos de sua época
viram as reformas realizadas em várias capitais, como Viena, Londres e Paris, esta
última que teve em Eugène Haussmann seu principal idealizador.
Na segunda metade do século XIX, Napoleão III tornou-se imperador da França
e, dentre outras medidas, contratou Haussmann como prefeito da cidade de Paris. O
principal feito de Haussmann foram as obras de modernização e higienização da cidade,
que duraram 17 anos (1853-1870). Criou e demoliu ruas, espaços culturais e ordenou
física e socialmente a cidade, projetando junto com grandes engenheiros e arquitetos as
melhorias de Paris.
Segundo Christian Topalov (1999), no final do século XIX se percebia a
necessidade de mudança numa sociedade conservadora. Tradição e modernidade
andavam juntas e só uma reforma social, conseguida aos poucos, resolveria o problema
francês e caberia a todos os setores sociais, imbuídos da transformação da sociedade,
pregando condições de saúde, habitabilidade, higiene, etc. Não só a corrente culturalista
era chamada às falas, mas a progressista também.
A Paris do final do século XIX
2
começou a perceber a necessidade de se pensar
duas questões importantes: para quem a assistência pública se destina? Quem deve ser
beneficiado com a filantropia? A resposta, respectivamente estava para aqueles que não
trabalhavam por não terem e para aqueles que não tinham emprego. Ou seja, a resposta
estava na condição do trabalhador.
Para que todas as ações fossem levadas a efeito, e todos conseguissem receber os
auxílios, adotou-se uma idéia de cooperação entre os setores público e o privado. A
2
1880 a 1914 foi um período ímpar na França quando se fala de reformas sociais.
21
obrigatoriedade das políticas públicas ficaria direcionada aos pobres e indigentes, que
não tinham acesso ao trabalho, enquanto ao setor privado caberia a responsabilidade de
assistir os desempregados.
Para Topalov (1999), a reforma se constitui num investimento do Estado e dos
homens da elite política, dos quais os velhos políticos eram o primeiro exemplo. Vários
investimentos são feitos tendo em vista o bem-estar da sociedade e a melhoria da
higiene, por exemplo. É o que o autor chama de “campo reformador” e teria aparecido,
segundo ele, no ano 1889. Este “campo” teria o poder de avaliar, observar e questionar
as políticas públicas.
Fazer filantropia era, também, uma forma de homens ambiciosos conseguirem
acesso ao poder. Outro setor da sociedade que também emerge vem de jovens sem
nobreza ou dinheiro, mas que se tornam funcionários da filantropia como uma forma de
ter a reforma social como opção de vida.
Durante o século XIX, grupos se formaram a fim de fazer funcionar, entre o
setor público e o privado, uma cumplicidade no pensamento social francês. Estes grupos
auxiliariam os mais necessitados sem que se configurar uma ajuda individual, embora
também não se caracterizassem essencialmente como instituições públicas. São os casos
do Musée Social, criado em 1894, local destinado a reuniões de intelectuais que
pensavam a situação social francesa, e das Habitations a Bon Marché, política
governamental implementada a partir de 1889, criada por um grupo de reformadores
sociais muito preocupados com a questão da pobreza.
Ao final do século XIX, então, os chamados reformadores sociais urbanos
pensaram os problemas e as soluções ocorridos na Europa durante o processo de
industrialização. Segundo Margareth Pereira (2000), para Topalov a idéia de reforma
não pode ser vista como um conceito somente, mas como um conjunto de relações, de
redes que fazem da cidade um lugar planejado, mas em constante movimento.
A imprensa também se constituía um campo importante à época. Em 1919 foi
criada a Revista La Vie Urbaine, que tinha como objetivo tratar de temas centrais da
cidade, particularmente a cidade de Paris. Isso mostra que durante as primeiras décadas
22
do século XX a imprensa francesa não poupou esforços para que se tornassem públicas
as preocupações com as cidades nas quais as questões levantadas sobre urbanização,
remanejamento e saneamento tornar-se-iam indissociáveis. Em 1913, numa tentativa de
compreender a cidade e suas questões criou-se o Congrès International des Villes, para
pensar uma saída para as habitações populares. Outro movimento importante foi a
criação, em 1922, da École des Hautes Études Urbaines.
Neste contexto, aparecem, então, preocupações da burguesia do século XIX com
casas de baixo custo, tendo em mente a política higienista. A inquietação com as classes
mais pobres se deu quando estas passaram a ser encaradas tamm como “classes
perigosas”. Era necessário, a partir de então, dar uma vida mais decente à população
pobre da cidade. Havia, deste modo, a intenção de se criar espaços próprios para que os
operários ali vivessem e se sociabilizassem. As casas seriam construídas pela iniciativa
privada e depois vendidas aos operários, pouco a pouco.
De início, estas habitações tinham características individualizadas, mas depois
passaram à coletividade do trabalhador. O pensamento no coletivo, a possibilidade de
uma vida mais higiênica, saudável e em lugares mais bonitos para se viver, possibilitava
aos trabalhadores uma melhor condição de vida e, aos governantes, um maior controle
daquele segmento da sociedade.
Ao observar como a cidade era entendida pelo imaginário de seus
administradores e transeuntes, vemos que se as ações foram semelhantes na Europa e no
Brasil, as reações à pobreza foram distintas: do espanto à indignação, da solidariedade à
repulsa, a ação desses administradores apóia-se, na maioria das vezes, no controle
social. Isto porque tal movimento agora não mais pertencia a um ramo da sociedade,
mas à sociedade como um todo. O fato de dela fazerem parte os que trabalham e os
considerados vagabundos é uma marca do desconforto que a pobreza traz à sociedade.
Guardando as devidas proporções, no Brasil do século XX há sempre um
momento em que estas elites se vêem ligadas às camadas populares. Isso não se dá em
virtude de um olhar “bondoso” para com a população, ou uma preocupação com as
condições físicas e morais dessa parcela da sociedade, mas por medo. Medo de uma
23
instabilidade política, de ameaças sociais, de graves doenças, o que faz com que se
mobilizem em função de reduzir de alguma forma a pobreza.
Ao trazer estas questões para o Brasil de 1930 e 1940, para analisar as causas e
conseqüências que a pobreza apresenta no que tange às habitações populares, se faz
necessário, num primeiro momento, mapear os processos de demolições/construções
que ocorreram até 1937, com o intuito de observarmos não só as mudanças que
incidiram nas cidades, mas como estas intervenções se deram e se caracterizaram para a
parte mais pobre da população, já que nosso objeto são algumas favelas e mocambos
que se formaram durante este período e foram demolidos no limiar dos anos de 1930 e
1940. Neste sentido, utilizamos uma vasta bibliografia e algumas fontes, como projetos
e relatórios municipais, para mostrar como se deram as remodelações, e as tentativas de
fazê-las, até a chegada destes anos.
Porém, antes de entrarmos nesta discussão somos obrigados a levar em
consideração um aspecto específico do caso brasileiro, que aparece como tema
fundamental para se entender a situação de hoje e os períodos antecedentes: a questão
da raça.
IV. O TEMA DA RAÇA COMO DISCUSSÃO
3
Durante o século XIX já se inaugura uma ideologia da “arianização progressiva”
do povo brasileiro, em que o processo de urbanização dificultava a identificação da
origem e composição deste povo (Lira, 1999:61). Com a imigração européia,
intelectuais como Oliveira Vianna produziam valores raciais que contribuíram para o
sentimento de arianização do povo brasileiro. Observemos esta passagem:
“Esse admirável movimento imigratório não concorre apenas para aumentar
rapidamente, em nosso país, o coeficiente da massa ariana pura; mas também,
cruzando-se e recruzando-se com a população mestiça, contribui para elevar
3
Parte desta discussão foi publicada em artigo recentemente escrito nos Cadernos de Educação 5:
Educação, Ética e Conhecimento: mediações possíveis. Duque de Caxias: UNIGRANRIO Editora, 2005,
sob o título “Raça x Civilização: a questão da identidade nacional na passagem do século XIX e início do
século XX”, em co-autoria com Gilberto Ferreira e Oséas Luz.
24
com igual rapidez, o teor ariano do nosso sangue”. (Vianna, 1933:105 apud
Lira,1999:62).
Para discutirmos a problemática da raça como indicadora da identidade nacional,
é necessário recorrermos a alguns teóricos da época, bem como dos dias de hoje, para
fundamentarmos tal discussão. No entanto, é também de total importância a leitura de
alguns romances que discorrem sobre o tema, pois, como mostra Edward Said em
Cultura e Imperialismo, o romance é uma forma de representação da cultura moderna, é
a referência para se pensar a história, já que denota um princípio, meio e fim; além
disso, a própria cultura já se mostra, aí, como lugar de representação. O romance traz a
importância de experiências vividas, onde a própria narrativa aparece como ligação
entre a cultura e o imperialismo. Assegura Said:
“[...] minha tese básica é a de que as histórias estão no cerne daquilo que
dizem os exploradores e os romancistas acerca das regiões estranhas do
mundo (...) essas questões foram pensadas, discutidas e (...) decididas
pela narrativa. (...) as próprias nações são narrativas”. (Said, 1995:13).
Antes de aprofundarmos o ponto principal da questão, isto é, o problema racial
como fator de identidade nacional, torna-se necessário destacar as linhas teóricas com as
quais iremos trabalhar. Primeiramente conceberemos a idéia conferida por Benedict
Anderson, da Nação como Comunidade Imaginada, observando, a priori, seus
respectivos paradoxos: primeiro, o problema da antiguidade e da novidade das nações,
quando se fala de um conceito novo, porém com uma realidade antiga. É o que
argumenta Nadir Domingues Mendonça (1983:168), quando mostra a questão das
nacionalidades sendo configuradas historicamente na Europa somente no século XIX,
quando aparecem as idéias progressistas. A autora mostra, ainda, que o fato nacional
não se define por si mesmo, sendo um fenômeno que assume diferentes formas espaço-
temporais.
Em segundo lugar, aparece a questão da historiografia e da teoria, onde se
observa pouca produção de conhecimento teórico, pensando a nação como um problema
“natural”. O terceiro ponto trata da universalidade e da particularidade: há, em todas
as sociedades, uma reivindicação da possibilidade de se tornar uma nação, daí uma
25
nação não poder almejar constituir-se como um elemento universal como é, por
exemplo, a religião. A nação deve preservar uma certa “limitação”, que origina a
identidade nacional.
Sendo assim, a nação deve ser considerada, para Anderson, como comunidade
imaginada limitada e soberana. “Dentro de um espírito antropológico, proponho,
então, a seguinte definição para nação: ela é uma comunidade política imaginada - e
imaginada como implicitamente limitada e soberana” (1989:14). É Comunidade porque
traz em si um modelo horizontal de sociedade ocasionando, portanto, a idéia de
simultaneidade, logo, de pertencimento, pois mesmo que desigualmente considerada, é
concebida como uma forma de companheirismo. Esta noção de pertencimento também é
encontrada na análise weberiana que, segundo Giralda Seyfert, privilegia esse conteúdo
político do conceito de nação, isto é, sua definição através do habitus.
É imaginada, não por um caráter enganoso, mas no sentido da representação, de
uma imaginação que será expressa pela arte, história e literatura, como veremos nos
romances brasileiros da época. É Limitada por possuir fronteiras que esbarram em
outras nações e, por fim, é soberana porque ao se comparar com o Antigo Regime vê-
se esta soberania nas mãos da comunidade, e não mais nas mãos do Rei. Anderson
mostra uma grande dificuldade em definir e analisar as questões nacionais, por haver
múltiplas significações.
Outro autor que escreve sobre a idéia de nacionalidade é Eric Hobsbawm. Este
também observa que até 1880 não havia uma preocupação teórica com elementos
constitutivos de uma nação, pois a etnia, a língua, a religião, etc., ainda não competiam
politicamente em importância; mas é exatamente a partir desta data que as idéias de raça
e nação começam a se confundir.
Hobsbawm alerta para o cuidado que se deve ter em pensar a nação calcada em
objetivismos e subjetivismos, já que estes são ambíguos. Para se definir um caráter
objetivo de uma nação é preciso um caráter subjetivo, ou seja, a tentativa de se definir a
nação pela consciência que têm seus membros de a ela pertencer, mais uma vez
esbarrando na visão de Anderson. Sendo assim, não se pode reduzir a nacionalidade a
uma dimensão única.
26
Em outros pontos podemos enxergar semelhanças entre os dois autores citados.
Primeiro, a identidade como limitadora e restritiva a singularidades; depois, a nação
como artefato, quando deve ser entendida como um produto de conjunturas históricas
particulares, como uma interseção de transformações sociais (revoluções burguesas,
advento do capitalismo), políticas (Estados Liberais e Nacionais, em que se tem a idéia
de participação do cidadão) e tecnológica (avanço da comunicação). Por sua vez,
Hobsbawm também sente dificuldades em definir de pronto o que é uma nação. Porém,
este autor chama a atenção para pontos que se deve considerar quanto ao conceito de
nação: 1) o termo “nacionalismo” deve significar uma unidade política e nacional
congruentes; 2) nação não deve ser percebida como uma entidade social originária e
imutável, mas no sentido de artefato e construção e relacionada com o período da
consolidação do Estado nação; 3) as nações devem representar as funções do Estado
territorial, bem como se estabelecer em todos os contextos; 4) deve ser um fenômeno
dual, constituindo os interesses dos “de baixo” e dos que estão no “alto”.
De posse dessas noções teóricas, podemos, então, indagar: como estaria sendo
visto este problema na virada do século XIX, em especial no Brasil?
A necessidade de se forjar uma identidade nacional em fins dos 1800 e início
dos 1900 no Brasil foi, por um lado, o comprometimento dos intelectuais brasileiros em
se aproximar dos ideais das nações européias e, por outro lado (agravado pelo primeiro),
uma grande confusão entre eles que, além de possuírem modelos diferentes de se
entender a Nação, tinham problemas ao tentar construí-la, pois como construir a
imagem de uma nação em um território habitado por negros e índios, que por sua vez
eram considerados raças inferiores? Como poderiam conceber tal fato, se o ideal da
nacionalidade deveria representar o progresso, e nada mais “atrasado” do que um lugar
habitado por “raças inferiores”, que representavam a ignorância e a preguiça? Como
ressalta John Manuel Monteiro: “Pela sua pequena capacidade craniana, os Botocudos
(...) são, com efeito, muito limitados e difícil é fazê-los entrar no caminho da
civilização.” (Monteiro apud Maio, 1996).
A questão da nacionalidade, então vinculada à questão racial, coloca-se,
sobretudo, na perspectiva do entendimento do “mesmo” e do “outro”, do “antigo” e do
“novo”, do “puro” e do “misto”; com isso, a solução encontrada para a questão racial
27
seria tornar o “outro”, o “mesmo”. Aparecerá, então, a teoria do branqueamento, com a
incorporação do imigrante europeu, que irá contribuir para a solução do problema,
criando o que se entendia por tipo nacional.
Este era um momento da história do Brasil em que o princípio da Nação fora
substituído pelo princípio etnográfico, o que representava um grande perigo para o
progresso. A idéia de progresso era orientadora das políticas de colonização brasileira,
aliada a pressupostos de hierarquização, que se baseavam em princípios raciais. Desta
perspectiva, observa Giralda Seyfert:
“A identificação das nações fundamentada na idéia de raça, assim
suplantou, ao final do século XIX, o nacionalismo cultural elaborado
pelo romantismo, no qual a língua nacional era o elemento fundamental,
juntamente com o folclore demarcador das ‘tradições culturais’”.
(Seyfert apud Maio, 1996).
Já durante o Império, ter-se-ia a necessidade de estabelecer colônias
homogêneas, com imigrantes somente europeus, pois negros, índios e mestiços eram
considerados incapazes de agirem sozinhos. Contudo, até 1850, a escravidão e o
problema da grande propriedade tornavam-se obstáculos à imigração.
Com o advento da República e a necessidade de se criar um tipo nacional,
incrementou-se uma política de imigração para se atingir o ideal do branqueamento da
raça, entre outros fatores, como o trabalho. A contribuição desses imigrantes europeus
deu-se pelo processo de assimilação - palavra-chave para os ideais nacionalistas. Para
tal, esses imigrantes deveriam ser, de preferência, de origem latina, como pensava Silvio
Romero.
A nação brasileira precisava, então, “produzir” sua própria raça e sua própria
civilização. O Brasil do fim do século XIX ainda tentava se constituir como nação, mas,
como já foi dito, tinha o grande problema da estigmatização do atraso. Havia a
necessidade de o brasileiro buscar sua originalidade e desvencilhar-se do
deslumbramento com a Europa que, como mostra Silviano Santiago (1991), o sufocava.
28
Segundo Edward Said (1995), as práticas culturais deveriam manter certa
autonomia do mundo material e, sem dúvida, a cultura era encarada como refinamento,
prevalecendo a diferença entre o “eles” e o “nós”, representados respectivamente pelos
países periféricos latino-americanos e os orientais, e a “poderosa” Europa. Said mostra
que mesmo num caráter de dominação ocidental, tais países tentaram afirmar sua
identidade por meio de resistências culturais, que ele não enxergou no Oriente.
A intelectualidade brasileira tinha em mente a superioridade da Europa, o que
será notado com a política de imigração, como veremos a seguir. Havia no Brasil uma
cultura que se desenvolvia à semelhança do modelo europeu, que embora havendo um
sentido de cultura reflexa, hierarquização entre os continentes, não poderia ser
entendida como cópia, já que se tratam de lugares com características físicas, morais e
culturais diferentes.
Ainda assim, alguns pensadores entendiam este fato como uma imitação, e como
tal, tinha um sentido negativo. Porém, é válido lembrar que esta imitação era própria da
elite, pois os mestiços, negros e índios, não eram capazes de imitar, não eram criativos,
como antecipa Silvio Romero ao dizer que a cópia é o que marca a distância entre a
cultura do “povo” e a cultura da elite. Antes da Independência a imitação ainda não
possuía um caráter negativo, mas a partir dali qualquer resíduo da herança colonial
deveria ser superado, embora para alguns isto constituísse uma autenticidade que
deveria ser preservada como forma de identidade brasileira.
Estas idéias de uma inadequação no Brasil à cultura ocidental se mantiveram até
que Oswald de Andrade, anos depois, através de suas obra e postura irreverentes,
tentaria tirar do brasileiro o seu sentimento de inferioridade.
Mas, quem eram e o que propunham os pensadores da época? Para alguns deles,
conhecidos como reducionistas, caso não fossem europeus os indivíduos não
contribuiriam para a história moderna, pois estes, valorizando o etnocentrismo,
condenavam a todos que pudessem vir a contaminar a pureza ocidental, como nos
mostra Silviano Santiago (1991).
29
A geração de 70 do século XIX, como mostra Maria Aparecida Mota (1992),
primava por definir um caráter identitário para o Brasil: enquanto uns pensavam numa
identificação com o mundo, outros pensavam numa singularidade. Enquanto uns tinham
uma visão pessimista da população brasileira e lutassem por seu melhoramento, outros a
olhavam com admiração.
O Brasil possuía um tronco racial bastante diverso, mas era encarado como uma
cultura inferior, não só pelos próprios europeus, como também por uma gama de
brasileiros que objetivavam à formação de uma raça que representasse a nação, como a
dos mestiços, formados pelo cruzamento das três raças: indígena, negra e branca, no
qual esta última deveria “limpar as impurezas” das outras duas raças. Esta política de
mestiçagem era orientada para se chegar ao branqueamento total, para que a civilização
brasileira pudesse ser definitivamente “pura” e qualificada para o progresso. As raças
eram, então, observadas de modo qualitativo, através de teorias racistas, como as de
Gobineau, que falava numa superioridade morfológica da raça branca, pois esta era
superior em beleza, inteligência e força, segundo o autor.
Segundo o Conde Afonso Celso, “reconhecereis que o Brasil oferece imensas
vantagens à economia geral do gênero humano (...) nunca impedir a predestinação do
Brasil a grandes coisas” (apud Mota, 1992). Enquanto o Conde Afonso Celso enxergava
o Brasil de modo elogioso, isto é, baseava-se em seu ufanismo para retratar o Brasil pela
sua beleza natural, seu clima e não mostrá-lo de maneira alguma inferior, outros
tendiam a ver o desequilíbrio racial como forma de inferioridade e disputa de poderes,
como logo veremos nos romances analisados.
Silvio Romero foi um intelectual que via no Brasil aqueles que serviam para
governar e os que serviam para obedecer. Sua crença era numa literatura que deveria
produzir-se por si só, deveria preparar-se para uma autonomia em relação a Portugal,
negava qualquer forma de cópia, enquanto outros pensadores, como Miguel Lemos,
apostavam na continuidade de uma origem portuguesa. Euclides da Cunha, por sua vez,
acreditava numa adesão do Brasil-Sertão ao Brasil-Litoral para o ideal de civilização.
Ou seja, as imagens do Brasil feitas pelos letrados entre esperança e pessimismo,
traziam uma visão dúbia para uma sociedade tão complexa e dividida como o Brasil.
30
Essa visão pessimista, por causa do “atraso da nação”, era liderada por Silvio
Romero, que criticava a imitação das reformas urbanas levadas a efeito na Europa e
implementadas aqui por Pereira Passos, no Rio de Janeiro. No entanto, preocupava-se
em estudar as origens do país. Romero criticava quem somente descrevia as raças, e os
positivistas que não falavam nunca das características que considerava original de cada
povo. Acreditava ser o meio físico o fator determinante para a construção da nação; o
clima seria responsável pela fisionomia racial. Além de tudo, era um dos principais
defensores da vinda da raça ariana para o país, pois estes sim, eram considerados por ele
e por outros como a raça pura.
O “povo” brasileiro deveria ser definido pela raça, mas este caráter brasileiro
ainda estava em vias de formação: índios e negros tendiam ao desaparecimento e a
imigração européia deveria aumentar, assim o homem brasileiro, de mestiço, iria passar
logo a tender ao branqueamento, segundo Romero.
Isto se dá não por motivos biológicos ou deterministas, mas pelo sentido da
imigração, da diversificação agrícola, além do próprio fim da escravidão. Podemos
observar uma diminuição da população negra na capital da República, o Rio de Janeiro,
no período que vai de 1872 a 1940. Vejamos:
Tabela 1
Estatística da População Branca, Mulata e Negra entre 1872 e 1940
ANOS BRANCOS MULATOS NEGROS %
1872-90 4,3 4,6 -0,2
1890-06 3,0 2,1 2,6
1906-20 2,8 1,8 2,4
1920-40 2,4 1,3 1,9
Fonte:
ADAMO, Sam C. The Broken Promise: Race, Health and Justice in Rio de Janeiro, 1890-1940, Novo México, 1983, 7.
Tese apresentada à Universidade do Novo México para obtenção do Grau de Doutor em História. Mimeo.
apud DAMAZIO,
Sylvia F. Retrato Social do Rio de Janeiro na Virada do Século. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.
Foi essa idéia de caráter étnico ainda em formação e da teoria do
embranquecimento que Silvio Romero usou como justificativa para explicar que o país
possuía um modelo étnico ocidental. Embora para o autor o Brasil não estivesse numa
31
situação ideal, tinha esperança num futuro melhoramento do país, mas para isso era
necessário não só a mudança da cor da pele, mas também uma educação nos moldes
anglo-saxões. Estes eram seus projetos reformistas de superação do atraso brasileiro,
que seria apagado com o nascimento de um “novo tipo”.
Outro intelectual de extrema importância na época era Aberto Torres (Lemos,
1995). Enquanto Silvio Romero amadurecia as idéias de Tobias Barreto, depois tomou o
rumo do evolucionismo spenseriano e logo o darwinista, Alberto Torres caminhou do
darwinismo social para o positivismo, fundamentando suas idéias sobre os problemas
do Brasil nas correntes científicas e filosóficas.
Segundo Lemos, Alberto Torres anulava sua influência gobineauriana,
descartando, segundo ele próprio, abordagens racistas. Por outro lado, criticava o jeito
preguiçoso e indolente do brasileiro e a sua ociosidade. Sua visão preconceituosa
dirigia-se à cultura, e não à raça, pois via os europeus do Mediterrâneo e os brasileiros
como culturalmente inferiores aos europeus do Norte.
De acordo com a análise da autora, a política eugênica de Torres era a seguinte:
não havia raça superior; a explicação da diferença racial era de caráter climático. Havia
sim, uma necessidade do melhoramento das raças, mas por causa de doenças graves e
para o favorecimento de qualidades físicas e psíquicas; sua seleção natural privilegiaria
a sobrevivência dos mais aptos. Apesar de negar o racismo, suas idéias vão por este
caminho.
O problema que enxergava nos brasileiros era a sua desorganização, com a
distribuição territorial, que entendia ser estrutural. Por outro lado, o maior obstáculo à
consciência nacional seria nossa submissão às sociedades estrangeiras, e, por isso
rejeita, segundo a autora, a política de imigração.
Embora estejamos tratando do problema racial como formação da cultura e da
identidade brasileiras, creio que devemos saber que também havia um grupo de
intelectuais, no início da República, ligados à campanha do saneamento, que criticavam
o determinismo racial que entendiam como versão fatalista, e a ufanista, de exaltação ao
32
Brasil. A reforma do país, por considerarem abandonado e doente, teria que ser feito
não por “melhorias” raciais, mas pela sua higienização, como já vínhamos discutindo.
Com a chegada dos anos 1930 pensava-se não mais no branqueamento
biológico, mas em outras características disciplinadoras, como a educação e a higiene,
como proporia Artur Ramos. Acreditava-se que “a profilaxia social era a tarefa que
integralizava a educação e a saúde” (Cunha, 1999: 264). Em 1938, quando se
comemoravam os 50 anos da abolição, houve uma festividade para a comemoração e a
perspectiva de inclusão social do negro. Esta era uma das raças “constitutivas da
nacionalidade” (ibidem: 262).
Podemos perceber que a questão da raça e sua ligação com o branqueamento
relacionado a políticas públicas de higiene, saúde e educação marcam a atuação de
administradores como Agamenon Magalhães, na Recife dos anos 40 do século XX, mas
também nesta e em outras regiões em outros períodos. É neste sentido, que nascem as
propostas de reforma social que teve no Brasil várias épocas e direções, mas que
também teve na Europa sua inspiração. É o que veremos a partir de agora.
V. RECIFE E A FORMAÇÃO DOS MOCAMBOS
De acordo com Marcus Mello (1982), desde a sua formação econômica, no
século XVII, Pernambuco configurou-se por suas atividades no campo do açúcar e do
algodão, tendo havido, inclusive, um enorme crescimento deste último produto à época
da Guerra de Independência das 13 Colônias Norte-Americanas no século XVIII. Com a
chegada do século XIX, a modernização gerou um crescimento industrial com o
estabelecimento das usinas de cana de açúcar.
Neste contexto, Mello revela que Recife foi se formando como locus do capital
comercial. Tal situação era garantida, primeiro porque era uma cidade portuária;
segundo, pelo seu sistema ferroviário. E assim, não só algodão e açúcar eram
exportados – embora estes fosses os principais produtos -, mas também frutos, carne
seca, farinha de trigo, porcelana, cabelo, cristal, entre outros tantos produtos
(ibidem:206).
33
Quanto ao seu desenvolvimento demográfico, Recife também apresentou um
crescimento significativo. Para se ter uma idéia, em 1882, a população da cidade era de
34 mil pessoas e, em 1940, já havia 348.410 (ibidem:209). Tal expansão urbana trazia
benefícios, como o investimento em novos equipamentos, mas também trazia um
inchaço populacional, que logo se manifestaria no chamado problema habitacional, e a
insalubridade.
José Tavares Correia de Lira (1999) lembra que assim como na capital do país –
Rio de Janeiro –, em Pernambuco a preocupação com as doenças trazidas pela
insalubridade é a tônica do pensamento político, a partir do final do século XIX. O
interesse pela cidade não era só em função de seu saneamento, mas também pelo ideal
de embelezamento, que andavam pari passu.
Essa é uma época em que o higienismo no Brasil aparece como uma formação
de ampliação do saber e poder médico. Este profissional agora não só controlava as
doenças, mas participava da formulação dos espaços urbanos. Médicos, engenheiros,
arquitetos, eram profissionais preocupados com a função que estabelecia a casa popular.
No Recife, já nos anos de 1910, havia um olhar específico para as reformas na saúde
pública, que se estendeu pelos anos 1920 e 1930.
Com a emergência do capitalismo, trabalho e capital foram duas questões
importantes para se pensar a saúde – ou a falta dela –, bem como a insalubridade. Isto
porque era necessário empregar as pessoas para que tivessem condições e fossem
controladas ao máximo nas questões acima, pois sem trabalho a pobreza se confirmaria
cada vez mais. E a fome, as doenças e o desemprego tornaram-se graves ameaças não só
para a população pobre, mas também para as elites, já que se tornara um problema
social.
E é na questão do desemprego que observamos que a modernidade trazia não só
benefícios, como problemas. A questão do trabalho e a divisão social que provoca é um
deles. No século XVIII Adam Smith
4
já observava as relações dessa categoria e dizia
4
Smith, economista inglês, em A Riqueza das Nações mostra que o trabalho de uma nação é a sua
principal fonte geradora de bens, e que o aumento da produtividade do trabalho depende de sua divisão,
34
que o segredo do progresso estava na divisão do trabalho por ser nela que residia o
segredo da produtividade (Labrens,1978:23)
5
.
Quanto à cidade de Recife podemos, então, salientar algumas especificidades
dos mocambos (demolidos durante o Estado Novo), já marcados por sinais expressivos
de uma história que tem início na formação de alguns quilombos.
Durante os últimos anos do século XIX e os primeiros do século XX a
intervenção pública no espaço urbano em Recife, principalmente no porto, concomitante
com as reformas que tinham o sentido de urbanizar o porto no Rio de Janeiro, mostrava
que este era um projeto para uma larga extensão do território brasileiro, de cunho
político, econômico e social (Lubambo, 1991).
Neste sentido, havia um interesse em captar investimentos privados e até mesmo
estrangeiros para que tais reformas acontecessem. A valorização da urbe no início do
século XX trazia a inspiração européia ocidental para delimitar fronteiras políticas,
econômicas e culturais. Beleza e salubridade se colocavam lado a lado para pensar as
cidades e, portanto, o que deveria ser demolido ou construído nelas.
Gilberto Freyre, em sua obra Sobrados e Mucambos (2000), preocupou-se em
mostrar a formação do povo brasileiro, com base, num primeiro momento, na
subordinação e acomodação durante o desenvolvimento urbano nos fins do século
XVIII. Estas características já estavam postas em suas obras anteriores, nas quais mostra
que mulheres, escravos e filhos acomodavam-se às posturas tomadas pelos senhores.
Subordinação esta que o autor aponta sempre de uma classe a outra, assinalando
ou seja, o trabalho é a medida de valor de todas as mercadorias, e o lucro e a renda seriam uma dedução
do produto criado por ele.
5
Logo depois se descobriu ser uma visão bastante otimista, pois tal divisão tornaria o trabalho mais
rápido, porém de menor qualidade. Além disso, com o crescimento industrial, esta divisão iria requerer
mais mão-de-obra, mais empregados e, de algum modo, mais problemas. Smith viu uma relação entre as
duas partes do capital, mas não previu uma mudança dessas relações a partir do momento em que sofresse
o processo de acumulação. Não só Adam Smith, mas também David Ricardo e Karl Marx advertiam que
a acumulação de capital não requer maiores investimentos nos operários, mas nas máquinas. A indústria
mecânica, por exemplo, só prosperaria se o trabalhador fosse colocado em disponibilidade. Alguns
operários mandados embora, outros saindo de seus empregos, mas um sem-número de pessoas aceitaria
qualquer tipo de salário. Um século depois essas pessoas serão as chamadas “classes perigosas”, que
dentre outros tipos de moradias, estariam habitando, no Brasil, o mocambo.
35
diferenças raciais, em que a possibilidade de ascensão social se dá num nível quase
nulo.
Com a urbanização, este tipo de acomodação foi, de certo modo, quebrada, para
dar lugar a uma subordinação que cria novas distâncias sociais. Diferenciação que se
apresenta também entre a casa e a rua. A rua aparece como “zona de confraternização”
num novo sistema de relações sociais. É nesse locus que nascem as “casas grandes”
urbanas, isto é, os sobrados, que segundo Freyre crescem com a mesma arrogância do
modelo antigo de habitação. Tal arrogância passava pela questão da dominação, que
como aponta o autor, a “própria arquitetura do sobrado se desenvolve fazendo da rua
uma serva” (Freyre, 2000:14).
Tal entendimento desta passagem da obra de Gilberto Freyre nos serve para
observarmos que é neste contexto que também se desenvolvem as Posturas Municipais
que têm o objetivo justamente de conter certos limites entre a casa e a rua. Como
exemplo concreto, às moradoras dos mocambos foram impostas algumas regras sociais
que mexiam com seus trabalhos cotidianos, como era o caso da lavagem de roupa nas
bicas do centro das cidades, feitas pelas mulheres.
A rua, as praças e as festas populares, como o entrudo, por exemplo, faziam com
que fossem amenizadas as diferenças sociais e que houvesse algum tipo de
confraternização, ou, pelo menos, como nas palavras de Freyre, que houvesse uma
comunicação entre as classes, já que os tipos sociais humanos, formados
antagonicamente entre o homem do sobrado e o homem do mocambo, decodificavam
não só a diversidade sócio-cultural, mas também a diferenciação dada pela própria
habitação, pois a casa tinha, para a população nordestina, uma importância fundamental
por conta de uma herança patriarcal privada, que era ainda muito cultivada.
Com o passar dos tempos, principalmente após a chegada de D. João ao Brasil, à
Colônia portuguesa dedicou-se um melhor tratamento. A vinda da família real provocou
uma centralização do poder, o que fazia com que fosse tirada a pouca autonomia que
possuíam os senhores de engenho mineiros e paulistas. E Recife foi se desenvolvendo
como uma das melhores cidades da Colônia, possuindo uma urbanização que Gilberto
Freyre chamaria de vertical: lojas, indústrias, palácios, sobrados, etc., ao mesmo tempo
36
em que palhoças, casebres e mocambos também figuravam neste cenário brasileiro
desde o século XVI.
Mais uma vez, na tentativa de integração entre a casa e a rua, fazia-se necessário
que no lado de dentro fosse construída a fortaleza que não aparecia do lado de fora. Nas
ruas, as doenças e a falta de saneamento sobressaíam, como resquícios do período rural.
A questão do saneamento dos mocambos e até nos sobrados era completamente
discutível. Como se sabe, o “tigre”, barril em que eram depositados os dejetos, não se
configurava a forma mais higiênica que se conhece em relação ao saneamento urbano.
E é nesse mesmo panorama que começa a se desenvolver um grau de
solidariedade e sociabilidade que culmina na idéia de assistência social, aqui
representada por hospitais, igrejas, confrarias, entre outros meios. Neste sentido,
podemos destacar que também havia um sentimento de solidariedade e sociabilidade
nos quilombos. Como meio de se conseguir uma autonomia outrora não vista, os
quilombos, futuros formadores de muitos mocambos, foram também formando um
vínculo social entre os negros sob a forma dos significados de etnia e classe, o que
passou mais tarde a se configurar nos mocambos.
Este sentimento, que traduzia uma noção de comunidade, fez com que durante
muito tempo houvesse a resistência à economia patriarcal escrava. E assim, as regiões
dos mocambos foram as primeiras a se levantarem contra o engenho, ao mesmo tempo
em que as cidades e seus luxos iam crescendo no limiar do século XIX.
Em sua obra Alagados, Mocambos e Mocambeiros (1965), Daniel Uchoa
Cavalcanti Bezerra, retrata a história do Recife como uma sociedade do açúcar. A
economia estava sempre ligada a este produto e a sociedade também, já que seus grupos
se dividiam entre senhores e plantadores. Devido a essa formação patriarcal, Recife
congregou uma formação social bastante desigual.
Com relação aos mocambos, sabemos que é a partir do século XIX que este tipo
de habitação se espalha cada vez mais pelas “zonas desprezadas da cidade”. E nessa
nova configuração urbana a convivência entre negros e brancos se acentua. Tal
convivência se mostrava nas próprias relações e comparações que podem ser feitas,
37
principalmente de acordo com a educação, as posturas e os hábitos de um e de outro. A
convivência, na verdade, os afastava (Freyre, 2000).
Os negros eram “o terror da burguesia dos sobrados”, pois habitavam as casas
populares da cidade, os mocambos. Vale lembrar que à época da libertação dos
escravos, em 1888, eles não tiveram, a princípio, um gosto pela liberdade. Muitos
ficaram sem emprego e as condições de habitabilidade em que se encontravam era
muito precária. Eram, em sua maioria mocambos, embora muitos tivessem se alocado
em cortiços.
Então, como viviam estas pessoas? Em que condições? Toda vez que se iria
retratar a realidade de tais moradias, os materiais de construção dos mocambos não
eram mencionados por suas qualidades, mas somente julgados por seus defeitos. Porém,
o caráter considerado primitivo não estava somente em seu lado material, mas na
própria paisagem social. A idéia de refugo e de local de habitação de negros e pardos
dava esse ar de habitação primária comparada às habitações dos primeiros anos da
Colônia.
Os mocambos mantinham a intenção de reinventar os estilos de habitação e
convivência africanos. Havia um misto de culturas que os próprios negros abarcaram
dos europeus cristãos. Nos mocambos, então, havia a configuração de um espaço misto
em sua própria estrutura. A diversidade cultural de negros com suas características e
com as características dos brancos, se misturavam. Hábitos que ocorriam na frente das
casas grandes se perpetuavam nos mocambos, como, por exemplo, cenas das senhoras
que catavam piolho de suas filhas na porta da casa.
Bezerra (1965) mostra ainda que no que compete às habitações populares, no
final do século XIX os alagados também foram sendo cada vez mais substituídos pelos
mocambos, que tinham sua ocupação completamente desordenada, se assemelhando,
neste ponto, com as favelas.
O trabalho de José Tavares Correia de Lira, Mots Cachés: les lieux du mocambo
à Recife (1998), procura desvendar a história da palavra mocambo, mostrando que há
muito ela é estudada em suas significações diversas, já que seu sentido é manipulado
38
conforme as visões que recebe ao longo do tempo. Segundo o autor, a palavra
mocambo, além de associada ao quilombo, como mostrou Gilberto Freyre (1937),
representado local de esconderijo e resistência dos escravos, também é associada ao
local destinado aos negros, aos marginalizados socialmente, à sua dimensão ecológica,
às atividades agrícolas, à insalubridade e ao atraso cultural, sendo inclusive, comparados
às favelas da cidade do Rio de Janeiro.
Como mostra Lira, no fim do século XIX Recife era a principal zona de cultivo e
de exportação de cana-de-açúcar, além de se constituir como pólo regional e possuir
muitos trabalhadores, além dos escravos. E por causa da aglomeração de trabalhadores
na cidade a representação do mocambo não mais era associada somente aos quilombos,
mas aos pobres de uma maneira geral.
Já em 1919, na cidade de Recife foi proibida a construção de mocambos em sua
região central. Nos anos 20 do mesmo século, os mocambos eram entendidos como
sinônimo de diversidade da arquitetura e da cultura popular do Nordeste brasileiro, além
de ser encarado como “habitação miserável”, sinônimo de cortiço, embora alguns
autores defendessem a idéia de que os mocambos ainda tivessem melhores condições do
que este último (Lira, 1998). Mesmo assim, eram considerados a marca dos problemas
sociais da cidade de Recife. A falta de higiene e a necessidade de um olhar mais atento
das autoridades pernambucanas também era a preocupação de alguns intelectuais
(Freyre, 1937:81).
A substituição dos mocambos por outro tipo de casas populares na verdade se
mostrou como uma substituição somente cenográfica, na visão de Freyre. Este entende
que a higiene e a adaptação ao clima pernambucano se fazem sentir mais com os
mocambos do que as construções de alvenaria. Este autor observa que o problema dos
mocambos deveria ser visto mais como um problema social do que urbanístico, e sua
apreensão por parte dos governantes apresentava um certo teor demagógico.
No período da Segunda Guerra houve um considerável crescimento populacional
no Recife
6
. Neste meio, disputas pelos aforamentos como os mocambos apareceram
6
Como mostra o Censo de 1940, o cálculo da população de Recife era de 348.410 pessoas.
39
como um modo de fazer fonte de renda e tributos. Era o fomento de uma briga entre os
administradores da cidade e os donos de mocambos que, pressionados, como enfatiza
Daniel Bezerra (1965), criaram sociedades para defender seus interesses. Um grande
exemplo aparece no final dos anos 1920: a “Sociedade a Bem de Nossa Defesa”, uma
das primeiras associações que deu origem a tantas outras até os anos de 1940 e 1950,
como veremos mais tarde. Nessas associações já se mostrava um caráter educador e
integrador que se queria durante o Governo Vargas (Bezerra, 1965).
Em pleno Estado Novo a demolição dos mocambos no centro de Recife ainda
representava resquícios dessa mentalidade interventora e dissidente, pois “as
transformações por que passaram os velhos centros de Salvador ou Recife são
exemplares deste elo entre intervenção urbana e identidade regional” (Lira, 1999:56).
Tal problema era, então, minimizado com atitudes como exclusão social por um
lado e afirmação cultural por outro, já que “[...] houve momentos em que fazia sentido
imediato pensar a cidade em referência à raça, à cultura e à nação” (ibidem:57). Isto
mostra que o processo de urbanização do Brasil nas décadas de 20 e 30 do século XX
garantiu um sem-número de interpretações. Um dos exemplos era o pensamento de
Oliveira Vianna, que defendia um culto ao passado para o êxito do nacionalismo
brasileiro: “os últimos tempos do Império e, principalmente, os três decênios
republicanos representam [...] uma fase de consideráveis alterações na estrutura da
nossa população” (Vianna, 1933:105 apud Lira, 1999:60).
Comparada muitas vezes ao mocambo, as favelas do Rio eram, também,
consideradas vergonha nacional, lugar da malandragem e de moradia do negro,
considerado como raça inferior, como relatava José Mariano Filho. Em suas palavras:
“O retorno à vida primária permite aos negros a satisfação de suas tendências
raciais, as práticas fetichistas, as danças, as macumbas, etc. As favelas do Rio
de Janeiro como os Mocambos do Recife, são puras sobrevivências africanas
como o foram os Quilombos dos Palmares no século XVII”. (Mariano Filho,
1943:20 apud Lira, 1999:63).
40
Na opinião de Mariano Filho, em lugar dos mocambos deveriam ser erguidas
“cidades-jardins” a fim de acabar com a insalubridade, a promiscuidade e a indisciplina
que lhes eram comuns. Estas cidades, ou bairros-jardins, deveriam, entretanto, ser
separados dos bairros nobres, como forma de estabelecer uma hierarquia. Mais uma vez,
vê-se como as reformas urbanas estavam ligadas, de algum modo, ao debate racial da
época.
Tanto as favelas como os mocambos precisariam ser erradicados, no entender de
muitos intelectuais e políticos da época, e seus habitantes deveriam trabalhar o mais
longe possível do restante da sociedade. Afinal, a se manter esta situação, “a
‘integridade higiênica’ da cidade estava ameaçada” (Lira, 1999:64).
É importante, ainda, salientar o fluxo imigratório europeu nas cidades
brasileiras, mostrado por Lira, em que grande parte da população do Brasil descendeu
destes imigrantes em algum momento. Embora negros e índios contribuíssem também
para essa genealogia, pensadores como Oliveira Vianna viam nos brancos europeus a
salvação da nação brasileira, como comentado anteriormente. No exemplo dado pelo
autor sobre a cidade de São Paulo, “a miscigenação foi tanto mais rara, quanto mais
forte os obstáculos à infiltração de indivíduos de cor na classe superior” (ibidem:65).
Era como se Recife fosse etnicamente dividida em várias cidades, já que
podemos observar a variedade de culturas que nela existia, e a dificuldade de adaptação
da sociedade a esta variedade.
“[...] Recife, cidade vista ao mesmo tempo como símbolo de uma civilização
luso-afro-brasileira bem-sucedida, e em que a faculdade de adaptação e
hibridização entre raças e culturas e delas com o meio tropical é significativa.”
(ibidem:68-69).
Mas, o interessante é que o debate acadêmico acaba gerando, no final da década
de 1920, uma discussão pela valorização dos dois lados de Recife. Ora pela
característica lusitana, defendida por pensadores como Oliveira Vianna, ora pela
africana. Isto se dá porque alguns intelectuais, como Gilberto Freyre, vêem na
41
urbanização da cidade alguns limites. Embora se ansiasse por uma urbanização, fazia-
se, ao mesmo tempo, a “apologia das velhas ruas estreitas do Nordeste”, pois, para
Freyre, o que algumas capitais pretendiam, dentre elas o próprio Rio de Janeiro, era
imitar as cidades européias e, segundo ele, Recife não deveria tamm fazê-lo.
(ibidem:71):
“O Rio no conjunto de suas avenidas novas e dos seus palácios cosmopolitas,
não passará dum amontoado inexpressivo de construções: imitá-lo será para o
Recife o sacrifício de personalidade própria a um modelo que já em si é
incolor, indistinto, inexpressivo”. (Freyre, 1924 apud Lira, 1999:72).
Deste modo, podemos perceber que para Gilberto Freyre a uniformização dada
pelas reformas urbanas não combinava com o estilo e a identidade da cidade do Recife e
é em favor desse regionalismo que Freyre será o porta-voz dos que o acompanham nesta
idéia. Neste contexto, os mocambos produzem um interesse diferente, seja por uma
curiosidade social, ou por suas características estéticas. Pintores, desenhistas e escritores
vêem no mocambo uma forma de se chegar à cultura popular. Gilberto Freyre procura
entender os fatores de resistência cultural e ver nos mocambos uma forma de identidade
regional que leva à nacional. Um exemplo é a obra Mucambos do Nordeste, ensaio de
G. Freyre, que “ (...) visava pesquisar as constantes e as inovações em matéria de casa
popular. O autor aí falava em causa da região, dos trópicos e da mestiçagem como
fatores de resistência à uniformização da cultura” (Lira,1999:100).
A preocupação de Gilberto Freyre estava, como indica Lira, em reabilitar o
mocambo, considerado por ele uma casa ecologicamente saudável numa época em que a
discussão estava em torno de sua erradicação, pois não se encontrava nada de bom neste
tipo de moradia. Tal reabilitação ensejada por Freyre teria a ver com a preocupação de
reconstruir a memória nacional, as raízes culturais da mestiçagem entre brancos, negros
e índios.
Outro autor que também vê um certo encantamento nos mocambos é Josué de
Castro (1992), que percebia um sentido estético e cultural num mundo de singularidades
42
e de moral próprias. Estes dois autores representam o que Lira chama de
“romantização” deste tipo de habitação (Lira, 1994).
Mas, se o debate andava pelos corredores acadêmicos, pelas empreitadas
políticas, como a população do Recife via o papel dos mocambos? O modo como as
pessoas encaravam os mocambos era como verdadeiros inimigos da cidade e da
população, já que as suas condições de habitabilidade e as noções de raça e etnia da
época depunham contra a imagem de progresso para o Recife. Nascia, então, a
“Sociedade dos Inimigos do Mocambo”, em 1929. Suas propostas eram o
“melhoramento da raça” daquela população e uma especial atenção à saúde das pessoas,
o que gerou a idéia de extinção dos mocambos a fim de cortar os males pela raiz. Esta
idéia ia de encontro às empreitadas políticas. (Lira, 1998:94).
Para o discurso implementado pelos políticos, substituir os mocambos por
cortiços denotava um interesse de intervenção do Estado. E é a partir de então, anos de
1920, que aparecem os primeiros olhares para os mocambos como um lugar anti-
higiênico, feio, inabitável.
O Departamento de Saúde e Assistência de Pernambuco, na pessoa do médico
Amaury de Medeiros, idealiza e cria em 1924, a “Fundação A Casa Operária”, incisiva
nos questionamentos sobre as habitações populares. É o início de um projeto
assistencialista, embora o trabalho efetivo do governo frente a esse problema só viesse
nos anos 1930.
Deste modo, percebemos como o mocambo foi objeto de um debate político
intenso desde o final do século XIX, envolvendo políticos, engenheiros, urbanistas,
artistas, intelectuais, bem como toda a população. De um lado, os que não queriam
esquecer que este tipo de habitação foi uma marca cultural importante para a cidade de
Recife, de outro, os que procuravam dar um novo rumo à cidade, tentando apagar as
marcas deixadas pelos mocambos.
É, então, nessa perspectiva que nos anos de 1920 e 1930 os empresários
pernambucanos também dão as mãos aos políticos e começam a pensar na higienização
da população menos favorecida e ter como preocupação a construção das vilas
43
operárias. Chegava, então, o Estado Novo, e com ele a configuração da luta contra o
mocambo tendo como líder o interventor Agamenon Magalhães, como veremos no
próximo capítulo. Era uma luta não só contra os mocambos e seus habitantes, mas
contra todas as ameaças, entre elas, a que parecia mais grave, o comunismo
7
, e para isso
era necessário a ajuda de todas as esferas da população, inclusive da imprensa, pois este
era um órgão de tamanha influência na mudança de hábitos num processo de
organização e reeducação da sociedade, como era o plano do governo. É o que veremos
nos próximos capítulos.
VI. O RIO DE JANEIRO NA ÉPOCA DOS CORTIÇOS: UMA VISÃO
HISTÓRICA
Até aqui nos detivemos na cidade de Recife, abordando, em alguns momentos, a
situação na capital federal, o Rio de Janeiro. Mas, realmente, como estava esta cidade na
virada do século XIX para o XX?
No final do século XIX, e mais especificamente nos primeiros anos do século
XX, atitudes como o “Bota-Abaixo” do Prefeito Francisco Pereira Passos (1902-1906),
tornaram-se a grande questão do momento. Como afirmam Jayme Benchimol, Jeffrey
Needell, entre tantos outros autores, este era um tempo em que a insatisfação com a
situação física e sanitária das casas populares era recorrente e a preocupação se limitava
em sanear a cidade para torná-la civilizada. Essa preocupação fazia com que cortiços e
casas de pensões fossem eliminados do centro da cidade e seus moradores fossem
transferidos para a periferia, ficando cada vez mais longe de seus locais de trabalho.
(Benchimol, 1982).
Neste mesmo período, o Rio de Janeiro era um grande centro financeiro:
atividade comercial dominante, estrada de ferro, máquinas a vapor, trabalho livre. A
urbanização tomava conta da cena. Nas últimas décadas do século XIX, a população
carioca aumentou consideravelmente: de 1872 a 1890, 95%, e de 1890 a 1906, 56,30%.
7
Veremos, no segundo capítulo, como o comunismo revelou-se uma grande ameaça, incluindo
perseguições a intelectuais e políticos ligados aos mocambos, como Gilberto Freyre e o interventor Carlos
de Lima Cavalcanti.
44
Na cidade, então, misturavam-se pessoas, fábricas, animais, cortiços, sujeira, o que
anunciava uma grande crise (Damazio, 1996).
O Rio de Janeiro vivia economicamente da agricultura, da pecuária, do
movimento do porto e de serviços públicos. Tinha também uma variedade de profissões
ambulantes (estivadores, vendedores de orações, caçadores de ratos etc.). A cidade
estava lotada de ex-escravos e vendedores de vários países; a entrada de imigrantes e a
disputa pelo mercado nas ruas faziam do Rio de Janeiro um espaço confuso. Na mesma
época, apareceram doenças epidêmicas como febre amarela, cólera, varíola, entre
outras.
A relação saúde/doença começou a ser pensada como um problema a partir da
inclusão dos imigrantes com os habitantes “originais” da cidade. A questão da qualidade
de vida de muitos, que era precária já em torno dos anos de 1920, começava a preocupar
as autoridades no sentido de se tratar desse tipo de questão (Hochman, 1998). Era uma
forma de entender como no período de 1920 a 1930, houve transformações de algumas
demandas que antes eram tidas como inatingíveis, como o projeto das habitações
populares, e que agora passam a ser um bem público que deveria fazer parte da
formação do Estado brasileiro.
A partir de 1870, a população se expande aceleradamente e a facilidade de
locomoção proporcionada pelos bondes puxados por burros e pelos trens - que foram de
grande importância para o crescimento dos subúrbios -, legitimam o que Maurício
Abreu chama de “uma dicotomia núcleo-periferia” (Abreu, 1988:44), começando,
então, a haver uma separação das classes econômicas e uma segregação espacial forte.
Os novos meios de transporte e a necessidade de morar perto dos empregos,
paradoxalmente faziam com que a população mais pobre superlotasse o centro da
cidade, enquanto os de melhores condições econômicas iam se distanciando dele.
Junto do crescimento populacional havia, também, o aparecimento das
indústrias, que cresciam em grande proporção na segunda metade do século XIX. Tais
indústrias possuíam ainda poucos recursos, mas estavam se expandindo principalmente
no centro da cidade (em especial as indústrias têxteis), o que aumentava
consideravelmente o número de habitantes próximos a essas localidades.
45
O refazer da cidade ao mesmo tempo em que tentava se aproximar da renovação
urbana dependeu muitas vezes da destruição de alguns outros ambientes e da construção
de moradias, como os cortiços que, conseqüentemente, aumentavam as epidemias pela
falta de higiene e aglomeração de pessoas num pequeno espaço. Cabia ao governo a
tomada de posição para se construir novas moradias que melhorassem as condições de
habitabilidade da população menos abastada da sociedade.
Somado a isso, o século XIX era o século da preocupação da medicina com o
social, já que:
“A constituição da medicina científica do século XIX delineou a problemática
da saúde nos registros individual e social. O saber médico configura-se, assim,
como clínica e como prática médica, discurso sobre o corpo singular e discurso
sanitário sobre o espaço social [...]”. (Birman, 1991:7).
Os médicos sentiam-se, portanto, definidores dos parâmetros da higienização da
cidade, até mesmo frente aos funcionários que exerciam cargos de fiscais da saúde, do
governo “[...] o fiscal discordava porque desconhecia os preceitos da ciência da Higiene,
e o doutor ainda fazia o favor de perdoá-lo por sua ignorância”. (Chalhoub, 1996:45).
Algum tempo antes do aparecimento do problema das doenças epidêmicas, a
cidade já se cercava de um outro grande problema, a crise imobiliária. Com esta crise os
cortiços foram formados como alternativa para quem precisava, como muitos, pagar por
sua moradia, mas não tinham condições de pagar caro. Neste caso, os cortiços só
fizeram aumentar a crise que pairava na cidade, pois gerava uma má qualidade de vida
em função da falta de estrutura, de saneamento, em função de abrigar muita gente em
espaço exíguo.
Com o passar dos anos, no final do século XIX o problema das epidemias se
agravou e o governo foi obrigado a tomar providências. O Estado concedeu, então,
meios para a construção de domicílios mais higienizados para os pobres, o que
provocou um desaparecimento, quase que total, dos cortiços. Era crítica a situação da
cidade do ponto de vista sanitário, os portos e os cortiços estavam cada vez mais fora
46
das condições chamadas higiênicas. Como indica Lílian Fessler Vaz (1991), além dos
cortiços, outros tantos tipos de moradias populares existiam, o que aumentava o índice
de insalubridade. Eram eles: os quartos de aluguel, os dormitórios para trabalhadores, as
hospedarias, sótãos, porões, jiraus, chalés e os casebres. Estes últimos, muito
comparados às favelas, que só não ganhavam essa nomenclatura por não haver
ilegalidade e desordem em suas construções, como estas eram caracterizadas (Vaz,
1991:487).
O desenvolvimento industrial, por sua vez, provocou a reestruturação do espaço
urbano e a população de baixa renda que residia em áreas centrais, tanto fisicamente
como estrategicamente, teve que mudar de lugar, ou seja, seria necessário o fim dos
cortiços e de todas as habitações populares. Mas para onde ir?
Vale lembrar que os cortiços eram habitações em que a sua própria estrutura
física, ou seja, a sua arquitetura, não combinava com a paisagem que se queria construir
no início do século XX. Os cortiços possuíam pequenos corredores, sem nenhum tipo de
ventilação, sem luz, com o chão de madeira cheio de buracos, além de paredes rachadas.
Os cortiços eram, então, assim definidos pelo governo: “Habitações populares de
homens desprovidos de fortuna e que por isso, são extravagantes e não têm a mínima
condição física e, muito menos higiênica”
8
.
Ou ainda:
“[...] habitação coletiva, geralmente construída por pequenos quartos de
madeira ou construção ligeira, algumas vezes instalados nos fundos de prédios
[...], sem cozinha, existindo ou não pequeno pátio, [...], com aparelho sanitário
e lavanderia comum”.
9
O engenheiro e educador Everardo Backheuser já indicava que este tipo de
habitação apresentava péssima condição de habitabilidade, sem contar o alto nível de
promiscuidade nela existente. (Backheuser, 1906).
8
Ver Projeto de Posturas Municipais da Cidade do Rio de Janeiro nº 41.3-36 - Arquivo da Cidade do Rio
de Janeiro. 1860.
9
Relatório apresentado ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Dr. J. J. Seabra, Rio de Janeiro,
Imprensa Nacional, 1906, p. 105 apud Carvalho, 1995, p. 134.
47
Dentro dos cortiços misturavam-se homens e animais, criando um ambiente anti-
higiênico, mas que acabavam por criar uma identidade entre as pessoas que lá
habitavam. Em função disso, os cortiços tinham o que José Murilo de Carvalho (1996)
chama de “inimigo externo”, isto é, ou outro cortiço, ou a polícia, pois quando esta lá
entrava significava desmoralização para tais moradores. Na luta contra a polícia
sanitária, os habitantes dos cortiços se uniam contra o inimigo comum.
Esses cortiços eram a maior representação de dependência existente entre a
população pobre e a elite econômica, pois se para o primeiro grupo eles representavam a
única alternativa de habitação, devido à crise imobiliária e à falta de recursos
econômicos, para alguns homens de posse, servia como uma alternativa de lucro. Tanto
que quando se começou a política do “Bota-Abaixo” e, até mesmo antes, quando já se
falava em demoli-los, os proprietários destes prédios se uniram contra tais medidas.
Na verdade, estes proprietários eram pessoas de recursos e podiam fazer obras
de melhoramentos nos cortiços, se assim lhes conviesse. Um ano antes de se entrar no
novo século, 26 imóveis foram condenados por falta de condições mínimas, em sua
maioria, localizados na área central da cidade.
Na tabela a seguir, podemos ver como estavam divididas as populações nos
cortiços no final do século XIX:
48
Tabela 2
Divisão da População dos Cortiços no Fim do Século XIX
1868 1888
PARÓQUIAS CORTIÇOS HABITANTES CORTIÇOS HABITANTES
Santana 154 6.458 329 13.055
Santo Antônio 69 3.558 115 6.269
Santa Rita 50 2.763 66 2.811
Glória 107 2.376 154 5.268
São José 44 2.022 74 3.957
Espírito Santo 65 1.918 158 5.360
Engenho Velho 42 769 72 2.088
Lagoa 45 733 119 2.508
Sacramento 31 693 74 1.818
São Cristóvão 35 639 100 2.250
Candelária - - - -
Fonte: Lia de Aquino, Habitações Populares, Rio de Janeiro, Biblioteca Carioca, 1995, p.141 e 144.
Mas, se podemos dizer que o marco da demolição dos cortiços foi até mesmo
antes da reforma de Pereira Passos, insisto em dizer que a sua constante só tenha sido
neste período. Tal marco se deu com a demolição do cortiço “Cabeça de Porco”, em
1893, o mais conhecido da cidade, tido como o verdadeiro locus dos desordeiros. Para
espanto das autoridades, quando de sua demolição não houve muita baderna, pois houve
a “[...] demolição de tal estalagem na Rua Barão de São Felipe, nº 154 [...] e o exército
tomou parte para evitar uma resistência armada [...] a indenização aos proprietários, foi
de uma exigência de pagamento de 277:545$465 - 1905”
10
.
Sua desocupação fez com que os moradores ficassem sem lugar para morar, pois
foi feita durante todo um dia, entrando pela madrugada. Só deu tempo mesmo dos
moradores pegarem alguns de seus pertences. “A destruição do Cabeça de Porco
marcou o início do fim de uma era, pois dramatizou, como nenhum outro evento, o
processo em andamento de erradicação dos cortiços cariocas [...]” (Chalhoub, 1996:17).
Como também apresenta Lílian Vaz (1986), muitos moradores não tinham nem noção
de para onde iriam. A subida do morro seria uma saída, como veremos adiante.
10
Ver Projetos de Posturas Municipais no Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro - nº 59.1-31.
49
Esta habitação popular foi demolida na gestão do Prefeito Barata Ribeiro,
considerado um déspota por sua personalidade forte. Era, por sua vez, apadrinhado por
Floriano Peixoto, então Presidente do Brasil. Mas esse não era um fato isolado, era
apenas uma das faces da demonstração de poder dos políticos e dos médicos higienistas.
Tirar os cortiços do centro da cidade significava não só ressaltar o “belo”,
retirando a população mais pobre, mas representava um cenário da luta de negros da
Corte contra a escravidão. O tempo dos cortiços foi um tempo de lutas. Com as
campanhas contra os cortiços, os morros da Favella e Santo Antônio, marcam não só a
origem da “favelização”, como começam a chamar a atenção para eles.
Com toda esta situação, quem ficava em pior posição eram os moradores dos
cortiços. São os que Chalhoub (1996) chama de “classes perigosas”, que, em sua
maioria, eram mendigos, prostitutas, malandros, isto é, os chamados indisciplinados,
que “transmitiam pelos ares” as doenças, bem como “contagiavam” a todos com a sua
ociosidade - os dirigentes do governo tinham a preocupação de que seus filhos fossem
“contaminados” por essa “malandragem”. Além dos considerados malandros, aos
habitantes dos cortiços somavam-se os negros alforriados, que permaneceram morando
no centro da cidade e tinham a possibilidade de trabalhar em outros lugares, podendo ter
acesso mais rápido à sua liberdade. “Na verdade, o contexto histórico em que se deu a
adoção do conceito de ‘classes perigosas’ no Brasil fez com que, desde o início, os
negros se tornassem os suspeitos preferenciais” (Chalhoub, 1996:25).
Tal foco nas classes e habitações populares não era de todo novidade. Já nos
princípios da década de 50 do século XIX é montado um projeto de “Regulamento dos
Estalajadeiros”, no qual os donos das habitações coletivas teriam que controlar a entrada
de seus moradores, por meio de uma fiscalização da Secretaria de Polícia da Cidade.
Com isso, ficava proibida a entrada de sujeitos “suspeitos” em tais habitações, o que não
era respeitado. Como observamos,
“Os subdelegados deveriam visitar freqüentemente as habitações coletivas,
certificando-se de que lá não se encontravam vadios, estrangeiros em situação
irregular e pessoas ‘suspeitas’, ou que causassem ‘desconfianças’ e ‘receios’”
[...]”. (ibidem:30).
50
Isto posto, devemos lembrar que mesmo em péssimas condições higiênicas, o
preço nos cortiços era muito além do que as pessoas podiam pagar. E com sua
demolição era necessário que houvesse um novo lugar para a população mais pobre. O
pensamento de demolir os cortiços vem desde a década de 60 do século XIX, mas
embora se tenha iniciado uma tentativa de demolição na gestão de Barata Ribeiro no
ano de 1892, quando se desenvolve um programa sobre a questão sanitária, isso só veio
a se manifestar nos primeiros anos do século XX, com o prefeito Pereira Passos.
A insalubridade era a principal mostra da incapacidade do poder público na
cidade do Rio de Janeiro. Mas, o que isso ocasionava? As respostas a esses problemas
culpavam desde o clima, o solo e baseavam-se em duas teorias desenvolvidas pelos
médicos higienistas: a teoria da infecção ou do miasma, uma teoria defendida pelo saber
médico, de que as doenças epidêmicas do século XIX vinham por “emanações exaladas
por águas estagnadas, cadáveres ou qualquer outra matéria em decomposição” (Santos,
1994:81), como por exemplo, a malária. A outra teoria era a do contágio, em que as
doenças passavam pelo contato entre pessoas doentes com pessoas sadias, mesmo sendo
esse de forma direta ou indireta. Como exemplo desse tipo de doença havia a varíola.
Sendo assim, pessoas eram isoladas por serem consideradas contaminadoras do
ambiente em que viviam.
Com relação a isto, sabemos que a teoria das transmissões por germes caiu por
terra mais tarde; o problema mesmo eram as situações de promiscuidade em que vivia a
população do Rio de Janeiro, onde a sujeira abundava, aumentando a proliferação dos
mosquitos. Em segundo lugar, as pessoas que habitavam os cortiços representavam a
desordem e a ociosidade, trazendo indisciplina para alguns trabalhadores que lá
moravam, coisa que os governantes do Estado e os industriais não queriam. Daí as
concessões para as vilas operárias que, na verdade, eram também difíceis para os
operários pagarem, além de serem menores em número do que a demanda de
trabalhadores.
A política brasileira, de certo modo, dava atenção ao que se entendia por
saneamento básico, mas na dependência deste zelo estavam os interesses estéticos e,
principalmente econômicos; da mesma forma, o saber médico, no tratamento de
doenças até o final do século XIX, deixava a desejar.
51
Neste sentido, sabemos que a construção de novas habitações vinha da
necessidade de se erradicar as doenças epidêmicas que se proliferavam e se
disseminavam pelos cortiços; porém, a preocupação com o bem-estar dos moradores
equivalia a uma preocupação em aumentar as condições de mão-de-obra, como também
manipulá-las. Assim, em Postura Municipal de 1889, dá-se não somente o direito de
demolir cortiços já existentes, como também estava proibida a construção de novos. As
ordens eram: “Estalagens da Freguesia do Engenho Velho que devem ser fechadas e
demolidas: R. São Cristóvão, n.º 158 (demolição); R. Consultório, n.º 11 (fechadas e
demolidas); R. Mello e Souza, n.º 1 (fechadas e demolidas)”
11
.
O Prefeito Pereira Passos queria que as reformas sanitárias ficassem a cargo da
Prefeitura e para isso contou com o auxílio do Dr. Oswaldo Cruz, que fora nomeado
Diretor do Serviço de Saúde Pública, e seus métodos profiláticos aprendidos em Cuba.
O maior desafio criado pelas epidemias existentes era a varíola. Esta doença
vinha desde o período colonial, mas no século XIX se fixava mais nos quartéis. A
obrigatoriedade da vacinação contra esta doença vinha do Império e, desde então esta já
não era cumprida. Esta doença foi a que mais trabalho deu para a política de
erradicação, pois não pôde ser controlada como as outras devido à resistência à
vacinação, o que culminou, mais tarde, no já conhecido episódio da Revolta da Vacina.
Tal revolta foi desencadeada pelo povo, que estava psicologicamente abalado com os
métodos usados para a obrigatoriedade das vacinas, que era um meio de controlar a
saúde dos trabalhadores, como também contavam com o apoio de alguns médicos de
filosofias diferentes das políticas usadas pelo Dr. Oswaldo Cruz e seus companheiros
(Carvalho, 1996; Sevcenko, 1984).
A varíola foi causadora de grandes problemas. Primeiramente, passou por um
processo de inoculação, ou seja, houve a tentativa de cura por meio da aplicação de
material semelhante ao que causava a doença. Tal método era mantido há muito tempo e
por vários povos, de vários continentes. Quando sua vacina foi descoberta por Edward
Jenner, houve um certo receio por ser o produto extraído de vacas, o que gerou a crença
11
Ver Projeto de Posturas Municipais da Cidade do Rio de Janeiro nº 44.2-9 - Arquivo da Cidade do Rio
de Janeiro.
52
popular de crianças nascerem com feições do referido animal. Até mesmo alguns
médicos, a princípio, também se colocaram contra, bem como os religiosos, por
pensarem ser seu método algo diabólico.
Com o objetivo de extinguir as epidemias dos cortiços, seguiu-se uma série de
gestos violentos e disciplinadores, ao sanearem estes espaços. Incitados por grupos de
oposição ao governo, que era parte da elite dominante, a massa popular revoltou-se.
Alguns cortiços não foram demolidos, bem poucos na verdade, mas passaram por um
enorme processo de saneamento, que não agradava aos seus habitantes. Estes,
espantados por verem suas casas demolidas, também se desesperavam com os métodos
utilizados pelos médicos sanitaristas que “invadiam” suas casas para lhes injetarem uma
vacina por causa das doenças que, embora fizessem parte da rotina deles, muitas vezes
não eram por eles percebidas. A população não aceitava a idéia de exporem seus corpos,
principalmente os das mulheres e das crianças, à mostra e, o pior, para serem tocados.
É então armada uma imensa revolta contra esses sanitaristas, quando todas as
pessoas que estavam envolvidas foram chamadas de desordeiras pelas fontes oficiais.
Iniciava-se, em 10 de novembro de 1904, a Revolta da Vacina. Era uma questão de
alteridade, um esvaziamento da “humanidade do outro”, pois sua diferença transforma-
se em ameaça:
“As andarelas do gás, tombadas, atravessavam-se nas ruas; os combustores da
iluminação, partidos, com os portes vergados, estavam emprestáveis: os vidros
fragmentados brilhavam na calçada; paralelepípedos revolvidos, que serviam
de projéteis para essas depredações, coalhavam a via pública; em todos os
pontos destroços de bondes quebrados e incendiados, portas arrancadas,
colchões, latas, montes de pedras, mostravam os vestígios das barricadas feitas
pela multidão agitada [...]. Pela Rua Senhor dos Passos, [...], numeroso grupo,
[...], prorrompendo em gritos hostis à polícia e à vacina obrigatória [...]”
(Sevcenko, 1984:76).
Nas palavras de José Murilo de Carvalho (1996:138), tal revolta se dava “em
nome da legítima defesa dos direitos civis”, pois houve muitas revoltas dentro dela.
Tudo funcionou como se esta fosse a última lágrima de quem queria lutar contra o
53
governo. Esta revolta representou várias que estavam prestes a ocorrer, mas não tiveram
chance...
Como já dissemos, o aumento da população fez com que as demandas por
emprego e habitação aumentassem, e as favelas, como meio de sobrevivência, fossem se
constituindo. Os estudos demonstram que os casebres das primeiras favelas não se
concentravam exageradamente, “havendo espaço livre para a circulação entre elas,
condições gerais que nos parecem bastante superiores às das favelas atuais” (Rocha,
1989:89).
Na política implementada no final do século XIX e início do século XX a
participação da população da cidade era um tanto fragmentada politicamente, ou seja,
nem todos eram engajados numa política oficial. Aliado a isto, os governantes do
Estado e a elite econômica implantavam medidas que não auxiliavam de nenhum modo
a esse povo, pelo menos não de forma intencional, no sentido de preocupação com ele.
Isto é notado por meio do Código de Posturas Municipais de 1890, que se apresentava
de modo extremamente controlador.
Com as demolições, alguns núcleos foram mais beneficiados do que outros, tais
como o comércio, o transporte e o setor imobiliário, bem como as indústrias, que
tiveram, por vezes, seus papéis definidores, no que diz respeito à criação das vilas
operárias e enquanto obtinham lucro, com a “tal modernização”. Nessa mesma época
também seriam modernizados os manicômios, hospitais e penitenciárias. Tudo estava
para ser mudado e a transformação da cidade passava pela transformação da sociedade:
“São grades que se somam às dos parques e jardins urbanos e que se destinam
ao mesmo fim [...]. Não foi a velha cidade que desapareceu; foi uma outra
totalmente nova que foi imposta no meio dela, [...] cujo acesso era vedado aos
membros da comunidade primitiva [...]” (Sevcenko,1984:67).
Do ponto de vista sanitário, a insatisfação era geral, já nas décadas finais do
século XVIII. E no século XIX são dadas as concessões para que os industriais
construíssem casas para os seus operários. A Companhia Evoneas Fluminense saiu na
54
frente. Logo, Vieira Souto conseguia concessão de construir, além de vilas operárias, os
chamados “familistérios”. “[...] Américo Castro, concessionário do decreto nº 3.151,
conseguindo a cooperação de importantes capitalistas, propunha-se a construir casas
denominadas “evoneas” para habitação das classes menos favorecidas da fortuna”.
12
A mais importante vila operária era a Rui Barbosa, no centro da cidade,
construída pela Companhia de Saneamento do Rio de Janeiro, onde não se resumia
apenas em cômodos, mas possuía lavanderia, armazém, latrina, banheiro e cozinha
dependente. Os autores que abordam as características das vilas operárias mostram que
estas funcionavam como um locus de poder controlador e disciplinador de quem lá
trabalhava, pois tinham seus métodos rígidos de lidar com esses trabalhadores: além de
ser abrigo para os operários, funcionava como garantidor da mão-de-obra futura.
(Abreu, 1994; Rocha, 1989; Carvalho,1995).
As indústrias, que significavam progresso e civilização, traziam também em suas
condições físicas, justamente o contrário do que pregavam, pois como nas habitações
populares, questões como arejamento, temperatura, provocavam um grande número de
mortes, principalmente por tuberculose. Essa situação teve uma espécie de resistência
por parte dos trabalhadores, que se formavam em sindicatos e reivindicavam melhores
condições.
Grupos empresariais interessados na desarticulação dos cortiços começaram a
engendrar novas moradias na cidade, na tentativa de erguer construções mais baratas
para a classe operária, fazendo uma apropriação dos discursos dos higienistas para a
legitimação de novos investimentos. A exemplo disso têm-se os engenheiros Carlos
Sampaio e Vieira Souto, como empresários ligados a esses investimentos.
Portanto, o que parecia uma solução tornava-se problema: foi bastante acirrada a
concorrência entre as empresas imobiliárias e os industriais, tendo estes últimos a
preocupação em controlar diretamente seus empregados. Além disso, não houve uma
total eliminação dos cortiços, que ainda tomavam conta da cidade. Foram demolidos do
12
Postura Municipal de 1889 apud Carvalho (1995:147).
55
centro da cidade, em torno de 1.600 prédios, colocando ao desabrigo 20.000 pessoas..
(Rocha, 1995).
Todavia, os habitantes que foram retirados de alguns espaços da cidade, ou
foram morar nos subúrbios e nas vilas operárias, continuaram na área central da cidade,
substituindo as antigas habitações populares pelas favelas, ou seja, os morros passavam
a ser a opção para a população mais pobre, que precisava continuar morando próximo
aos seus trabalhos, mesmo quando “[...] os efêmeros Partidos Operários [...] destacavam
nas suas pautas de reivindicações a construção, por parte do Estado, de habitações
higiênicas para os trabalhadores” (Barbosa, 1992:326).
Segue-se, a tabela do crescimento demográfico da cidade do Rio de Janeiro, com
base no censo de 1906:
Tabela 3
Crescimento Demográfico no Rio de Janeiro
Freguesia 1872 1890 1906
Sacramento 26.909 30.663 24.612
Candelária 9.818 9.701 4.454
São José 20.010 40.017 44.878
Santa Rita 30.865 43.805 45.929
Santana 38.446 67.533 79.315
Fonte: Censo de 1906 apud Oswaldo Porto Rocha (1995:73-74).
Sendo assim, pode-se notar que as freguesias acima sofreram bastante com a
grande reforma por que passou a cidade. Podemos ver que havia, ainda assim, uma
diferença entre as freguesias de Santana, que possui um aumento populacional bem
maior, em função de um maior espaço sem estar ocupado, e a da Candelária, que passou
por um processo de diminuição. Com estas medidas, a população do centro da cidade
encontrou no subúrbio uma nova opção. As freguesias do Espírito Santo, Engenho
56
Velho e São Cristóvão, localizadas fora da região central, foram grandes beneficiadas
pelo movimento do “Bota-Abaixo”, mesmo que algumas pessoas não tivessem mesmo
jeito de se mudarem para fora da área central da cidade, devido à falta de recursos
financeiros.
Há uma questão fundamental que aparece tanto nos relatos dos historiadores,
como também na obra literária de Aluísio Azevedo, que vem a ser um tipo de
cumplicidade, de amizade entre os moradores das habitações coletivas, algo de muito
próximo que os unia. Isto é notado principalmente no largo da Praça Onze, com a
famosa casa da Tia Ciata, que era um grande espaço de sociabilidade das classes
populares. Há, por outro lado, uma guerra de espaços, onde todos querem disputar os
territórios. Isto ocorre porque podemos entender que:
“[...] nesse espaço comum, quotidianamente trilhado, vão sendo construídas
coletivamente fronteiras simbólicas que separam, apaixonam, nivelam,
hierarquizam ou, em uma palavra, ordenam as categorias e os grupos sociais
em suas mútuas relações [...]”. (Arantes, 1994:191)
Portanto, as pessoas que já haviam criado uma identidade, uma proximidade
entre seus vizinhos, como no caso das habitações populares, sejam as estalagens ou os
cortiços, perderam seus centros comuns, seus laços foram desfeitos, com suas
separações ocasionadas pelo ideal de “civilização”. A “grande família” então se desfez.
Não que houvesse acabado a identidade destas pessoas, mas os laços identitários, de
sociabilidade e, mesmo, de solidariedade que os uniam foram rompidos e
transformados. Os cortiços poderiam ser espaços insalubres, mas havia um outro lado,
que não foi pensado pelos reformadores, pois,
“Mais do que territórios bem delimitados, esses ‘contextos’ ou ‘ambientes’
podem ser entendidos como zonas de contato, onde se entrecruzam
moralidades contraditórias [...], aproximam-se mundos que são parte de um
mesmo modo, mas que, assim mesmo, encontram-se irremediavelmente
apartados”. (ibidem:192)
57
Até mesmo a mudança dos habitantes de uma favela para outra, quando as
primeiras são destruídas, não parece ter em tudo uma eficácia. Esta mudança, chamada
por Maurício de Abreu de “dança das favelas”, de nada adiantava, pois só era uma
transferência da mesma situação para um outro locus. E assim, nos anos de 1920 as
favelas só iam se multiplicando, como também se multiplicavam os olhares e os debates
sobre elas. Encantavam cronistas, médicos, engenheiros e poetas (Abreu, 1994).
E as favelas foram, portanto, como já evidenciamos, constituindo uma nova
forma de habitação, a solução encontrada para as pessoas que não tinham como se
deslocar para os subúrbios. Seu início pode ser atribuído a partir da ocupação do morro
da Providência, depois chamado Morro da Favella, embora alguns pesquisadores
entendam que seu aparecimento possa vir até antes da demolição dos cortiços.
A subida aos morros da Providência e de Santo Antônio foi inevitável, mas só a
partir de 1910 que o processo de favelização é visto com mais rigor. Porém, a imagem
da favela só se generaliza nos anos 1920, embora desde o início já seja sinônimo de
atraso e lugar de grande discriminação. A iniciativa privada, ao mesmo tempo em que
não queria tomar conhecimento da favela, se beneficiava com a mão-de-obra que ia nela
se constituindo.
Outra atribuição que se dá ao aparecimento das primeiras favelas é a chegada
dos soldados de Canudos, o que se tornou seu grande mito. A aproximação entre os
morros, e o Arraial de Canudos era freqüente. Valladares examina este mito de origem
da favela e mostra que tratá-los como sertão era, também uma constante na visão dos
cronistas. Tal relação se estabelece em função do referido Arraial possuir um morro
com uma planta chamada favella, da família das afobriáceas. Suas folhas têm um pêlo
que faz coçar e tem um leite em seu caule, que dizem curar as dores de dente, além de
ser bastante resistente à seca. Características logo atribuídas à homônima habitação
popular (Valladares, 2000:44).
A favela era, então, local de trabalhadores e “marginais”, traçado urbano cantado
e desprezado, enfim, a favela passa a ser mais do que nunca vista em sua singularidade.
Um lugar marcado exatamente por seus contrastes.
58
Valladares lembra que os primeiros cronistas que subiram a favela a
identificaram como um sertão na cidade. No livro Vida Vertiginosa, João do Rio, por
exemplo, transmite sua visão sobre o morro Santo Antônio, trazendo à tona, como já era
característica de suas obras, a vida das personagens que habitavam o morro, como os
soldados, os malandros, os seresteiros, os professores etc. Por outro lado, trouxe
também a visão das ruas, das casas e das características físicas gerais do morro:
“O morro era como outro qualquer morro. Um caminho amplo e maltratado,
descobrindo de um lado, em planos que mais e mais se alargavam, a
iluminação da cidade, no admirável noturno de sombras e de luzes, e
apresentando de outro as fachadas dos prédios familiares ou as placas de
edifícios públicos – um hospital, um posto astronômico”. (João do Rio apud
Martins, 1971:52).
Como outros escritores de sua época, João do Rio tamm traçou o perfil do
morro com semelhança no sertão, comparando-o a Canudos. Para ele, o morro era um
arraial, uma cidade dentro da outra. A favela tinha vida própria, mas ao mesmo tempo
estava inserida na cidade, que era ainda maior. Chama o morro de “acampamento de
indolência, livre de todas as leis” (ibidem:52), como se lá fosse realmente uma outra
cidade, com características e funções próprias.
Assim também, segundo Luiz Edmundo, o morro Santo Antônio tinha uma certa
semelhança com o Arraial. Escrevia que suas moradias eram feitas de improviso, de
sobras, onde viviam mendigos, prostitutas e todas aquelas pessoas que eram julgadas
como a escória da população. Tais características serviam para os escritores da época
personificarem todas as personalidades que havia nos morros da cidade e justificar a
miséria que neles existia. Uma outra forma para tal justificativa era a falta de trabalho
que essas pessoas passavam e sempre a miséria humana seria por ele retratada.
Deste modo, como João do Rio, Luiz Edmundo descreveu o morro com seus
encantos e desencantos e lembrou que a miséria já servia, naquela época, como ponto
turístico, pois o “turista de bom tom, a primeira coisa que deseja visitar numa grande
cidade é o bairro da pobreza” (Edmundo, 1938:254). Por outro lado, muito embora o
autor mostre algumas reclamações dos habitantes dos morros, traz, muitas vezes, em sua
59
narrativa que os mesmos são tão conformados com sua situação que eram configurados
como indivíduos preguiçosos. Podemos observar isto melhor no diálogo abaixo:
“ – Vocês não morrem de calor, quando há sol, debaixo desta fornalha de
zinco que é a cobertura? - A gente já estemo habituado, moço. - Ah! E quando
chove? A água deve cair sobre o catre onde as criancinhas dormem. - É, mas a
gente, antão, pega e muda o catre do logá” (ibidem: 258).
Luiz Edmundo passa a escrever não só sobre o morro, mas tamm sobre suas
personagens, tendo na mulher sua principal opção: a prostituta, a lavadeira, a feiticeira,
entre outras. Além da miséria, da descrição física do lugar e de seus habitantes, o autor
trata também da música. Isto porque parece que, segundo as suas análises, esta é uma
forma de o pobre, morador do morro, colocar para fora toda sua resignação e suas
angústias. Era como se a música funcionasse como aproximadora dos dois mundos, das
duas cidades, que já eram, de certo, separadas. Não a música, mas o tipo dela, distinguia
esses dois mundos. O choro, a seresta e suas diversidades eram apontados nestes
mundos tão distantes.
Neste sentido, a questão das habitações populares tomava conta dos estudos e
das ações, no início do século XX, dos cronistas, mas também dos engenheiros e
médicos higienistas. A preocupação com as epidemias, os contágios, faziam com que
estes profissionais se dedicassem inteiramente com o debate sobre tais habitações. E é
neste meio que a favela começa a ganhar espaço nas discussões, incluídas como
habitações populares que necessitavam de intervenções e reformulações. Não somente
as favelas, mas a cidade, vai sendo vista como um “corpo urbano”, que precisava ser
tratado (Valladares, 2000:14).
Durante os anos de 1920, o Rio de Janeiro torna-se a capital cultural e
inauguram-se novos estabelecimentos, como o Aeroporto Santos Dumont, há inovações
tecnológicas, o crescimento dos subúrbios e a demolição do Morro do Castelo. Além
disso, há um crescimento populacional para os bairros das zonas Norte e Sul, o que faz
com que haja um aumento do meio de transporte ferroviário.
A mudança física, então, gerava a mudança de valores. Se, antes, ir para as
praias de Ipanema e Copacabana era uma forma de curar doenças, nos anos 1920
60
passava a ser elegante. As auto-estradas também ganhavam destaque em virtude do
maior uso de automóveis. E, assim, com tantos atrativos, os investimentos na zona Sul
foram se tornando maiores que na zona Norte, o que a enfraqueceu.
Se a população mais abastada tratava da querela entre que clube freqüentar, o
Jockey ou o Derby, a população mais pobre tinha outro problema a enfrentar. Quê tipo
de moradia seria sua melhor opção: a casa de cômodo, o loteamento, ou a favela?
(Conniff, 1981).
Se durante a primeira década do século XX, a reforma do Prefeito Pereira Passos
teve como tarefa primordial a ação reformuladora nos cortiços, mais ou menos 20 anos
depois, o médico sanitarista e empresário Mattos Pimenta, empreendeu uma grande
campanha contra as favelas cariocas. “Mattos Pimenta projeta na favela suas
preocupações de reformista, de sanitarista, mas também de alguém que está preocupado
com o lado estético e arquitetônico da cidade [...]” (Valladares, 2000:15).
Logo depois, mais exatamente em 1927, chega ao Rio de Janeiro, convidado
pelo então prefeito Antonio Prado Junior, o urbanista francês Alfredo Agache. Tendo
seu projeto urbanístico arquivado três anos depois, Agache entra em cena com o
objetivo de colocar em prática o novo “Plano de Remodelação da Cidade”.
A chegada de Agache teve sua importância não só para a remodelação, mas para
a reeducação da cidade. As mudanças ocorreram concomitantemente nas fachadas dos
prédios, no trânsito, nas ruas, nas favelas. Mas, o “Plano”, que teria soluções técnicas
para a cidade, foi motivo de protestos pela população por meio do Carnaval, e foi
ignorado pelos governantes populistas (Conniff, 1981).
Como não poderia deixar de ser, a favela também foi objeto do interesse do
urbanista. Assim, como Mattos Pimenta, Agache também partilhava do olhar estético e
higienista para o problema das favelas. O urbanista achava que os moradores das favelas
deveriam ter condições de conseguir novas moradias para que o problema não fosse
apenas transferido de um lugar ao outro. Porém, o reconhecimento mesmo da favela,
como um problema social só se deu a partir dos anos de 1930 (Valladares, 2000).
61
Como aponta Mauricio Abreu (1988), o Plano Agache, no que diz respeito às
favelas, via como única solução sua total erradicação. Embora soubesse que seu
problema era de responsabilidade pública, e que seu crescimento se dá por causa da
tentativa de os trabalhadores morarem mais perto de seus empregos, via este tipo de
habitação como uma ameaça estética e social, pois “[a sua destruição é importante] não
só sob o ponto de vista da ordem social e da segurança, como sob o ponto de vista da
hygiene geral da cidade, sem falar da esthetica”. (Prefeitura do Distrito Federal, p.190
apud Abreu, 1988: 89).
Ainda nas palavras de Abreu, vemos que:
“Paradoxalmente, a fórmula apresentada por Agache para a resolução dos
problemas da República Velha – ou seja, a intervenção do Estado no processo
de reprodução da força de trabalho urbana – se constituirá na mola mestra do
novo regime que Getulio Vargas implanta no Brasil”. (Abreu, 1988: 91)
Os anos 1920 dão início, então, à tentativa de se apropriar das reformas para
incorporação da população “marginal” à sociedade, seja ele o pobre, o iletrado ou o não-
eleitor. Neste contexto, Conniff mostra uma divisão da sociedade carioca em quatro
classes: elite; classe média; classe trabalhadora e classe pobre. Mostra, também, que as
associações foram criadas para organizar o interesse de tais grupos, como exemplo, a
Associação Comercial do Rio de Janeiro e o Jornal do Commercio.
E, assim, organizações menores foram florescendo nos anos de 1920. O sucesso
ficava não só nas associações, mas nos homens de negócios, como Pereira Carneiro e
sua Companhia de Comércio e Navegação. Os chamados “novos ricos” foram surgindo
com a idéia de que a tradição não era tão importante. No setor médio confirmavam-se
ou a ascensão por meio do casamento, ou a ascensão por intermédio de algumas
profissões: advogados, médicos, engenheiros, entre outras. Os trabalhos manuais
caracterizavam a “classe trabalhadora”, que podia ser também preenchida pelos
estrangeiros (europeus e africanos). Neste sentido, a “classe popular” tinha como
elementos alguns aspectos culturais africanos, como o Carnaval e a religião.
62
Com o raiar dos anos 1930 há uma certa quebra com a tradição das antigas
administrações da Prefeitura do Rio de Janeiro. Há um esforço para a criação de um
governo populista no sentido assistencial, com Pedro Ernesto (Abreu, 1988 e Sarmento,
2001). Com a chegada de Getulio Vargas à Presidência da República, será de grande
importância a valorização da questão social. Vargas criou os Ministérios do Trabalho e
Educação, e estas duas pastas representaram as reformas feitas no Rio de Janeiro.
Pedro Ernesto tinha total liberdade na interventoria do Rio de Janeiro, em troca
de uma grande lealdade a Vargas. Seu carisma era tão fabuloso que era chamado de
“médico bondoso”. Esta “bondade” era também incorporada pelos moradores das
favelas, e o crescimento destas foi uma das preocupações da gerência do interventor.
Favores, em troca de votos, renderam-lhe homenagens até após sua morte. E, assim, o
populismo de Pedro Ernesto foi se implementando e trazendo uma nova cara para o
Brasil.
A reforma social levada a efeito pelo “bondoso” Prefeito teve como ponto
principal a Educação, com o auxílio de Anísio Teixeira. Além dela, a saúde e a política
do bem-estar, também foram muito importantes. Nesta época, além de figuras ilustres
como a do referido educador, vale lembrar que Pedro Ernesto tamm contou com o
apoio do Rotary Club e das Igrejas Católicas e Protestantes em suas investidas, mas é na
interventoria de Henrique Dodsworth, durante o Estado Novo, que a cidade do Rio de
Janeiro sofrerá uma nova remodelação das habitações populares. Não mais os cortiços,
mas as favelas, serão alvos das pranchetas, seringas, picaretas e até mesmo do fogo.
VII. CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Assim, podemos observar que pobreza e assistência, então, tornam-se duas
categorias indissociáveis desde o século XIX. Neste século já se observava uma forte
tendência européia no Brasil, principalmente da Inglaterra e França, em enfrentar o
problema das habitações populares e as chamadas “classes laboriosas”. Isto se deu,
principalmente, pela necessidade de se controlar a ordem estabelecida (Carré e
Revauger,1995).
63
Conclui-se, assim, que a pobreza é um fenômeno sociológico singular, porque
não é só definida como um número de indivíduos que ocupam uma posição orgânica na
sociedade, mas que possuem um papel ratificado por um grupo da sociedade. Na
verdade, a categoria pobre, seja ela favelada e/ou mocambeira, revela uma amplitude da
sua verdadeira significação, pois ao categorizá-las, abre-se um caminho maior para
justificar as ações do governo e até mesmo da sociedade como um todo. É o que
veremos, ainda mais evidenciado, nos capítulos seguintes.
64
CAPÍTULO II:
A Política Social no Primeiro
Governo Vargas
Deus nos deu uma boca e dois ouvidos para ouvirmos o dobro do que falamos
1
“.
Getulio Vargas
Vim para criar a emoção do Estado Novo
Ditadura é bom quando somos o martelo, mas péssimo quando somos o prego
2
Agamenon Magalhães
Neste capítulo, a história da formação da República Velha terá um papel-chave
para o entendimento das articulações implementadas durante o Estado Novo (1937-
1945). Para este propósito, recorreremos à observação de parte do período republicano
que antecede o regime proposto por Vargas e analisaremos a política social de seu
governo nesses anos.
Neste período também se destaca o estudo de duas personalidades que muito
contribuíram, cada um em sua esfera, para que o regime estadonovista se configurasse.
São eles os interventores Agamenon Magalhães, em Pernambuco e Henrique
Dodsworth, no Rio de Janeiro
3
. Estas personalidades serão nosso objeto de análise, pois
o Rio de Janeiro de Henrique Dodsworth aparece como o grande palco para a atuação
de Victor Tavares de Moura, enquanto Agamenon Magalhães é o inspirador deste
grande espetáculo ao fazer, anos antes, uma intervenção bastante parecida, com os
mocambos em Recife.
I. O ESTADO NOVO: SEUS ANTECEDENTES E A POLÍTICA DE GETULIO
VARGAS
A República foi fundamentada, em sua primeira fase, numa sociedade na qual o
Brasil deveria se enquadrar na linha do progresso. Qualquer ação social sobre os
1
Retirado do artigo de Sérgio Buarque de Gusmão para a revista História Viva, Edição Especial
Temática, nº 4, São Paulo: Duetto Editorial, 2004.
2
A primeira frase corresponde à expressão usada no discurso feito na sacada do palácio do governo
quando de sua posse como interventor. A segunda, data de sua saída, em 1945, quando renuncia ao cargo
a pedido de Getúlio Vargas apud Pandolfi (1984:30).
3
É importante lembrar que Dodsworth foi um interventor-Prefeito, pois o interventor do Estado do Rio de
Janeiro era o genro de Getulio, Ernani do Amaral Peixoto.
66
indivíduos em termos de hierarquia e exclusão (sob os interesses dos letrados) era
justificada pela adequação ao moderno. E, assim, o discurso republicano era formulado
por muitos intelectuais, controlando o poder na tentativa de expansão dos ideais de
progresso e civilidade, entendendo que o que nesse momento era compreendido como
moderno era o ideal de unidade nacional.
Nesse contexto, de acordo com José Murilo de Carvalho (1996), enquanto os
coronéis mandavam no Brasil, a população em geral não participava dos acontecimentos
republicanos, parecendo alheios aos fatos políticos. O Estado revelava-se como
paternalista ao considerar-se obrigado a proteger a sociedade, embora cada vez mais a
exclusão popular no governo fosse clara, o que determinava maior participação e
reforço ao poder das oligarquias.
Deste modo, a República Velha (1889-1930) foi caracterizada por uma liderança
política do grupo do café, que se apropriou do ideal liberal para justificar a participação
dos cidadãos no que diz respeito às eleições, desde que fossem homens, maiores de 21
anos e alfabetizados. Cada estado, portanto, lutava para obter maior poder,
principalmente por volta de 1900, no Governo de Campos Salles, época em que foi
estabelecida a “Política dos Governadores”, ou “dos Estados”, como queria o
presidente, isto é, apoiava-se quem era mais forte. Uma “política de exclusão absoluta
das minorias”, já que esta exclusão:
“[...] fortaleceu o espírito caudilhista, a corrupção, a corrupção política, e
contribuiu para que os governos se afastassem cada vez mais do povo e dos que
sonhavam com uma República ideal, democrática, em que houvesse debate de
opiniões e disputas doutrinárias”. (Basbaum, 1981:187)
Os grandes proprietários de terras (especialmente os cafeicultores) governavam
o país ao seu estilo e vontade. Conservavam-se no poder por meio de eleições
sucessivas, nomeando amigos e parentes para os ajudarem a governar os estados. Ali
nasciam, muitas vezes, futuros senadores, deputados e presidentes da República. Com a
consolidação da região Sudeste no poder, as outras regiões sentiram-se preteridas, até
que, em 1898, um novo pacto oligárquico ocorre, criando uma nova verificação de
67
poderes. O Brasil se expande, mas o regime passa por muitas atribulações, até a revisão
constitucional de 1926, que fortalece ainda mais o poder presidencial (Basbaum, 1981).
Problemas como o desequilíbrio financeiro, a falta de verbas e protestos públicos
fazem com que o poder central se torne frágil e que os mais poderosos o liderem. Esse
poder que vem por meio do voto se estabelece pela força e pelos favores que provêm de
bens pessoais, como também do próprio Estado.
Dentre os poderosos, nos primeiros anos do século XX assume a Presidência da
República Rodrigues Alves (1902-1906), que defendia a linha da modernização e a
entrada do país na nova ordem, com grandes feitos na urbanização da Capital Federal, o
Rio de Janeiro
4
. Em 1914, ano em que se inicia a Primeira Guerra Mundial, o ideal de
expansão torna-se um colapso em todo o mundo, aparecendo, logo após, Epitácio
Pessoa (1919-1922) para rearticular o discurso reformador no Brasil: a ordem está no
Estado. E até os anos de 1930 o quadro político republicano brasileiro fora formado,
então, pela chamada “Política do Café-com-Leite”, em que líderes paulistas e mineiros
revezavam-se no poder federal. Algumas preocupações eram comuns nestes anos da
chamada “República Velha”, entre elas: o fortalecimento da industrialização, as
políticas de saneamento e urbanização e o embelezamento da cidade nos moldes de
Pereira Passos, tendo como foco principal a modernização (Carone, 1974; Fausto,
2004).
A década de 1920 já se apresentava recheada de movimentos: a Semana de Arte
Moderna de 1922; a contestação dos proprietários do café; a fundação do Partido
Comunista; a revolta dos Tenentes; e a Crise de 1929, que abalou todo o mundo. As
investidas políticas tornavam-se cada vez mais tradicionais: os eleitores eram cada vez
mais levados a fazer com que o mesmo grupo chegasse ao poder e as eleições tornavam-
se cada vez mais fraudulentas. Em oposição às oligarquias existentes e todas as questões
por ela geradas, nascia a Aliança Liberal, e o presidente do Brasil, Washington Luís, no
ano de 1929, resolve romper com o pacto “Café-com-Leite”, indicando o candidato,
como ele paulista, Júlio Prestes.
4
Assunto discutido no primeiro capítulo desta tese.
68
Podemos dizer que o ano de 1930 iniciava uma nova Era. Candidato à oposição
de Júlio Prestes, Getulio Dornelles Vargas, em outubro do referido ano, promove um
golpe, que seria um misto entre o que articulava como novo, somado à perpetuação de
alguns alicerces políticos do país, como mostra Boris Fausto (2004) que a tomada do
poder, nesse momento, estava composta de uma heterogeneidade social e política no
que tange ao grupo que o acompanhou. A nova proposta era a de um governo
centralizador, promotor da industrialização, ordenador – contava aí com o forte apoio
das Forças Armadas, inclusive na composição do Conselho de Segurança Nacional – e
protetor da classe trabalhadora (patrões e empregados), para que esta centralização e
esta ordem fossem alcançadas. O foco no trabalho era a palavra de ordem. Nele estava o
maior investimento para que se conseguisse a paz e a unidade nacional. Observemos as
palavras de Boris Fausto:
“[...] lembremos que a esporádica atenção ao problema da classe trabalhadora
urbana da década de 1920 deu lugar, no período getulista, a uma política
governamental específica. Isso se anunciou desde novembro de 1930, quando
foi criado o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Seguiram-se leis de
proteção ao trabalhador, de enquadramento de sindicatos pelo Estado, e
criavam-se órgãos para arbitrar conflitos entre patrões e operários – as Juntas
de Conciliação e Julgamento”. (Fausto, 2004:335)
Este governo pode ser separado, assim, em três partes: a primeira, de 1930 a
1934, é denominada de Governo Provisório, comprometido com a idéia de justiça e
cidadania; na segunda parte, que vai de 1934 a 1937, é desenvolvido o governo
democrático do novo Presidente, o chamado Governo Constitucional e, por fim, a
última parte, o autoritário Estado Novo, de 1937 a 1945.
I.I. GETULIO DORNELLES VARGAS. UM POLÍTICO OU UMA POLÍTICA?
Nascido em 1882, embora sempre se imaginasse que fosse um ano mais novo,
Getulio Dornelles Vargas, aos 25 anos, forma-se em Direito, logo passando a ser
promotor público. Sua carreira política inicia-se em 1909, como Deputado Estadual,
sendo novamente eleito em 1913 e 1917.
69
Em 1922 é eleito Deputado Federal. Em 1926 assumiu o cargo de Ministro da
Fazenda; em 1927, governador do Rio Grande do Sul, até que, em 1930, após ter
perdido as eleições para a Presidência da República, consegue lá se colocar por meio de
um golpe militar, num Governo Provisório. Neste mesmo ano, cria os Ministérios do
Trabalho, Indústria e Comércio e o da Educação e Saúde Pública
5
.
Dois anos mais tarde, ocorre a Revolução Constitucionalista; neste mesmo ano,
cria a Previdência Social e a Carteira de Trabalho. Mas, é só em 1934 que é eleito,
indiretamente, Presidente da República, quando em 14 de julho promulga uma nova
Constituição nos moldes da República de Weimar. Deste ano até 1945, período que nos
interessa neste momento, Vargas enfrentou o Levante Comunista de 1935, que tinha
Luis Carlos Prestes como principal líder do movimento. Vargas, então, criou o Estado
Novo, quando dissolveu o Congresso Nacional, aboliu o Poder Legislativo e os partidos
políticos. Neste mesmo ano, 1937, outorgou a nova Constituição brasileira. Em 1943
aprovou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), até ser deposto, dois anos depois e
ser eleito senador e deputado federal, preferindo o primeiro cargo.
Com um caráter manipulador e ardiloso, ao se entregar às massas e, ao mesmo
tempo, optar pelo apoio ora aos regimes nazi-fascistas, ora aos EUA, Vargas, na terceira
fase de seu primeiro mandato, através de sua política, fez com que empresários
extirpassem o mal das greves, e que também a classe média se sentisse protegida por
uma política de bem-estar social.
Ao controlar a legislação trabalhista, a política varguista que regulava a relação
capital/trabalho focava, com maior engajamento, as dimensões coletivas, como por
exemplo, os sindicatos. A criação da legislação sindical
6
permitia um sindicato por
categoria, mas proibia a criação dos mesmos aos trabalhadores rurais e ao
funcionalismo público. Com base em ações assistencialistas, estas, ao mesmo tempo em
que faziam reconhecer os direitos dos trabalhadores, também representavam atitudes
controladoras. Segundo Fausto (2004), a classe dos comerciantes e dos industriais não
gostaram muito das medidas promovidas pelo Estado, principalmente no que competia
5
É importante dizer que a relação que Vargas mantinha com seus Ministros era a de uma ampla confiança
e pessoalidade, assim como com seus interventores, como podemos observar em seu Diário publicado.
6
Decreto-lei 19.770.
70
às férias dos trabalhadores. Do lado oposto, aparecia a Aliança Nacional Libertadora,
influenciada pelo Partido Comunista Brasileiro, que também acabou por alcançar a
classe trabalhadora com suas ações, já que os partidários da esquerda tentaram, sem
sucesso, driblar as ações do Estado.
Segundo Ângela de Castro Gomes (2005), desde 1934 já podemos apontar
medidas centralizadoras que se corroborariam três anos depois. A lei de sindicalização,
criada por Agamenon Magalhães e pelo próprio Getulio Vargas, mostra uma política de
desagrado e o cuidado a ser tomado para que os sindicatos não gerassem problemas.
Antes da chegada do Estado Novo, que combateu os adversários do governo, foi
cuidadoso no sentido de minar todas as manifestações que indicassem sentido contrário
à política de Getulio Vargas. Para que idéias como o comunismo não avançassem, era
preciso maior ligação do Estado com os trabalhadores.
O projeto trabalhista, como indica a autora, manteve relações estreitas com a
repressão engendrada pelo Estado Novo, bem como as leis do mercado de trabalho. Tal
projeto era considerado também um projeto de cidadania, pois todo cidadão é aquele
que trabalha. E se trabalha, deve ser regido pelas leis do Estado. Logo, havia um pacto
entre Estado e trabalhadores que girava em torno de benefícios de um lado, e obediência
do outro. Deste modo, trabalho, benefícios, leis e obediência eram as palavras de ordem
deste período.
Quando tocamos no binômio benefício/obediência tamm se coloca a questão
da reciprocidade, como indica Gomes (2005). Toda troca que acompanha o pacto
travado entre o Estado e os trabalhadores é dimensionada por esse sentido de
reciprocidade, pois sempre encaramos tais relações como uma troca econômica, mas a
autora faz ver que há, acima de tudo, um valor simbólico que gera um sentido de
familiaridade e apreço que justifica a hierarquia social, quando aquele que possui mais
deve auxiliar aquele que possui menos.
Em meio às políticas externas do Estado Novo, ou seja, a entrada na Segunda
Guerra, em 1942, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio mudava de mãos mais
uma vez. Com a saída de Waldemar Falcão, sucessor de Agamenon Magalhães, assume
71
a Pasta Alexandre Marcondes Filho, que mais tarde acumula a Pasta da Justiça, como
ocorrera com Magalhães. Numa tentativa de aliar cada vez mais o Estado e os operários,
Marcondes Filho estreita os laços entre trabalho e governo fazendo com que o trabalho e
a justiça se unam não só porque sua pessoa está à frente dos dois ministérios, mas
porque entende ser de extrema necessidade sua ação em conjunto.
Embora se caracterize como um regime autoritário, o Estado Novo assume
características bastante ecléticas, variadas. Mostrava que o país deveria ver de mais
perto o homem brasileiro, coisa que a República Velha não enxergava. Segundo
Agamenon Magalhães, o que se tinha até então era uma visão do Brasil, mas não do
homem brasileiro, o que foi aparecendo desde a Revolução de 1930. Essa valorização
do homem se dá, sobretudo, no contato entre o povo e as elites que se comunicavam de
maneira expressiva pela primeira vez. A implementação de uma cultura e uma política
nacionais e a condução do país pela figura de um grande chefe de Estado fez das
décadas de 1930 e 1940 um projeto singular para a construção da nacionalidade
brasileira.
O Estado tinha como função promover o bem-estar nacional mediante questões
sociais como saúde, trabalho, habitação etc. Assim, o Estado Novo não deveria fechar
os olhos para a falta de empreendimento neste homem, como fizeram os liberais, e em
sua completa subordinação, como queriam os regimes totalitários, inclusive os
comunistas. Era chegada a hora de uma nova concepção de democracia ocorrida entre
os anos 30 e 40 do século XX, que pretendia um Estado mais humanizado. Para isso, o
homem brasileiro precisava de algo que o construísse nesse cenário e não poderia ser de
outra forma, senão com o trabalho.
A proposta do Estado liberal de democracia pregava uma liberdade e uma
igualdade que não atingia a todos, pois não havia a igualdade de direitos nos problemas
sociais, bandeira do Estado Novo. Deste modo, a falta de autoridade existente no Estado
liberal deu brecha para o excesso dela, mas que garantia um ordenamento na sociedade,
como aponta a autora, e garantia a liberdade individual. É nesse bojo que se constrói a
estrutura estadonovista que coloca o Estado a serviço da sociedade. Não está à margem
da sociedade, assim também como não se constituiu tão perseguidor como os nazi-
fascistas. O Estado Novo de Getulio Vargas era o ponto de equilíbrio entre os liberais e
72
os totalitaristas, em que o mercado e a justiça social eram mantidos, tendo como base o
trabalho.
Já que tudo que era construído em prol da Nação tinha o indivíduo como
elemento formador, era a partir dele, como enfatiza a autora, que se formulavam as
questões nacionais, por isso a necessidade, também, de o Estado lhe garantir o bem-
estar social. Era uma relação cíclica forjada no ideal de reciprocidade que comentamos
anteriormente. Para isso, só se torna necessário expressar essas realizações e ter alguém
que acompanhe isso de perto e realmente as realize. Torna-se necessário um líder, que
como um maestro reja essa sociedade de trabalhadores, de indivíduos socialmente
compreendidos, para que o ideal de democracia, somado à justiça social se estabeleça
eficazmente. Junto ao líder, os sindicatos apareciam mobilizados como órgãos
responsáveis pelos trabalhadores, mas tutelados pelo Estado.
À época do Estado Novo a idéia de liderança era algo importante. Ainda que,
nesse momento, houvesse a valorização do trabalhador, este necessitava de alguém que
o comandasse. Neste sentido, não só a figura do Presidente da República teve
importância como líder da população trabalhadora, mas também ministros e
interventores, como foi o caso de Agamenon Magalhães, Marcondes Filho e Pedro
Ernesto.
A comunicação de Getulio Vargas com os trabalhadores ocorria mais
diretamente no Dia do Trabalho, no Aniversário do Estado Novo e em seu próprio
aniversário, mesmo que neste último ele nunca estivesse fisicamente presente. De todas
as facetas de Vargas a mais importante foi a de “pai dos pobres”. Sua preocupação era
mostrar que a pobreza não era exatamente o problema, mas o desemprego. A falta de
cidadania era vinculada àquele que não tinha emprego e não àquele que era pobre. Para
mostrar que o preconceito não era característica de seu governo, além da preocupação
com a pobreza, Getulio Vargas instituiu o “Dia da Raça” para mostrar que as idéias de
branqueamento e eugenia não faziam parte de seus planos. O trabalhador poderia ser
pobre, mas o pobre não poderia estar desempregado, senão não era visto como cidadão.
Se é só a partir de 1930 que a questão social passa a ter um papel primordial
nessa relação presidente/população, justifica-se ser neste mesmo momento o olhar mais
73
apurado para as habitações e questões populares. Se a grande questão nacional era,
como entende Ângela de Castro Gomes (2005), o pertencimento à nação, o sentido de
nacionalidade se basearia na justiça social; logo, todos os empecilhos a essa justiça
deveriam ser externados. Por outro lado, todas as atitudes em prol delas eram
enaltecidas, inclusive a do próprio presidente, que era a pessoa que mais satisfazia esse
ideal de justiça social com suas ações e suas leis em benefício do trabalhador/cidadão.
Isso quer dizer que as políticas de intervenção por que passavam as favelas e os
mocambos tinham intenção, por um lado, de satisfazer a população com políticas
públicas e assistenciais e, por outro, isentar o Estado da culpa de não fazê-lo. Eram
atitudes interessadas, mas que na verdade se constituíam de um interesse de troca. O
Estado dava e a população recebia e ao receber interagia com a política do contra-dom,
pois respondia aos interesses do Estado com a obediência e a aceitação.
“Esta questão é fundamental, pois a outorga, quando pressupõe o dar e o
receber, pressupõe também o termo que fecha e dá o real sentido ao círculo: o
retribuir. Quem dá cria sempre uma relação de ascendência sobre o
beneficiário, não só porque dá, mas principalmente porque espera o retorno.
Esta expectativa não se esgota em uma possibilidade; ela é um sagrado dever.
Quem recebe cria certo tipo de vínculo, de compromisso, que desemboca
naturalmente no ato de retribuir. A não retribuição significa romper com a
fonte de doação de forma inquestionável”. (Gomes, 2005:228)
Isto posto, entendemos que as ações do Governo Vargas e as políticas públicas
encarnadas por seus interventores não se sobrepõem ao universo utilitarista e à lógica do
mercado somente. Era uma dívida também moral em prol de uma melhora do país. Era,
então, um exercício de cidadania, concedida somente àqueles que compunham a nação,
isto é, os trabalhadores. Só estes poderiam participar deste jogo de trocas.
O problema social tinha sua solução na condição de cidadania que era dada
mediante o trabalho. Porém, onde estaria a raiz desse problema? Muito dela estava na
superpopulação das cidades, que ocorria em função dos problemas nos sertões, na zona
rural. Daí a necessidade de se implementar medidas contra o êxodo rural e de adoção de
uma política pública nas cidades. Deste modo, a medicina social passou a dar ênfase às
74
ações de cura da saúde física, mental e social dos trabalhadores por meio de políticas
sanitárias.
No campo da educação, para não fugir às iniciativas em prol de uma unidade
nacional, foi montado um sistema de ensino unificado de Norte a Sul do país, além de
ter como ênfase o ensino vocacional e profissional. Havia uma proposta de uma
educação nacionalizada em função da extensão da proposta de nacionalização geral do
país. Não se deveria admitir, neste momento, qualquer outro processo que
desencadeasse uma educação nos moldes estrangeiros, mesmo sendo o Brasil um país
de imigrantes. Neste âmbito, era necessária a distinção entre cidadania e nacionalidade,
no que a primeira estava ligada ao trabalho e à produção no país em que estavam, neste
caso, o Brasil. Isto é, havia o compromisso de uma união de interesses entre brasileiros
e estrangeiros para a padronização cultural fosse alcançada. Assim Schwartzman,
Bomeny e Costa (2000:183) discutem:
“[...] o modelo de nacionalismo brasileiro [...] buscava transformar a nação em
um todo orgânico, uma entidade moral, política e econômica cujos fins se
realizariam no Estado. [...] Nação e Estado construiriam a um só tempo a
nacionalidade”.
Quanto ao ensino, este privilegiava principalmente o secundário, a
profissionalização do jovem cidadão, pois o comando da nação deveria estar nas mãos
de uma elite técnica e bem preparada. Esse preparo começaria no ensino secundário e
iria até o superior. Segundo Helena Bomeny (1999), a educação era tida como uma
oportunidade de enquadrar o cidadão nas questões sociais e se figurava uma questão de
segurança nacional. Havia até mesmo um projeto de militarização da sociedade,
principalmente da juventude. Daí, os papéis importantes de disciplinas tais como
Educação Moral e Cívica, e Educação Física.
A preocupação e o compromisso de se pensar a nacionalização da sociedade, já
que, segundo os administradores do país, isso passava pelo ensino, desencadeou
problemas como regionalismos e estrangeirismos que teriam que desaparecer. Nesse
último caso, o maior problema eram os imigrantes alemães que possuíam uma forte
75
característica de nacionalidade que se queria para o brasileiro
7
. Era, então, uma ameaça,
pois se de um lado se sentiam cidadãos brasileiros, nacionalmente se consideravam
alemães, já que como aponta Bomeny (1999), a nacionalidade é herdada, enquanto a
cidadania, adquirida. Era preciso contemplar a vinda dos estrangeiros para o Brasil, mas
não se podia perder de vista o caráter nacional que se pretendia para a época.
Como mostram ainda Schwartzman, Bomeny e Costa (2000), para um país onde
a nação se constituía como principal alvo e a educação seria a norteadora, não
adiantavam reformas no ensino formal que não balizassem a estrutura do que se queria
construir. A reforma era em prol do Brasil e, neste sentido, homens, mulheres e crianças
deveriam ser reeducados nas bases do trabalho, da família e do civismo.
É neste sentido que o Ministério de Gustavo Capanema é criado com uma base
que, por um lado, se sensibilizava com uma estrutura autoritária
8
, de cima para baixo,
mas por outro, tinha nas mãos dos modernistas uma saída para alguns valores nacionais,
como a exaltação do folclore e da preservação do patrimônio histórico, por exemplo. O
Ministério de Capanema, assim como era característico do Estado Novo, tinha uma
situação paradoxal: ao mesmo tempo em que tinha em seu corpo administrativo figuras
de vanguarda como músicos, poetas, modernistas, foi autoritário e perseguidor do
Comunismo.
No Brasil, a formação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SPHAN), data de 1937 e teve como idealizador o modernista Mario de Andrade
9
. A
política do patrimônio era considerada uma política pública que tivesse um sentido de
colaboração entre o Estado e a sociedade. Como a noção de patrimônio depende da
noção do valor que a ele é dado, nos remete tamm à idéia de pertencimento, de
identidade e, portanto, de responsabilidade social e nacional. Como aponta Maria
Cecília Londres Fonseca: “Esse é, lato sensu, o objetivo das políticas de preservação:
garantir o direito à cultura dos cidadãos, entendida a cultura, nesse caso, como aqueles
valores que indicam – e em que se reconhece – a identidade da nação” (Fonseca, 2005:
7
O papel das instituições religiosas igualmente neste caso foi de grande importância, pois o processo de
nacionalização do ensino ia de encontro a algumas escolas confessionais estrangeiras.
8
Boris Fausto, em História do Brasil, lembra que embora de caráter autoritário, a educação brasileira,
mesmo durante do Estado Novo, não teve o que chama de doutrinação fascista (Fausto, 2004:337).
9
O anteprojeto é encomendado por Capanema em 1936, mas o SPHAN só é criado em 1937, pelo
decreto-lei nº 25, de 30 de novembro.
76
39). É o momento em que intelectuais e governo se inserem no mesmo objetivo, sem, no
entanto, estarem obrigatoriamente do mesmo lado, como veremos abaixo.
“Forjar um povo também é traçar uma cultura capaz de assegurar a sua unidade”
(Pécaut, 1990:15). Nesta frase, Daniel Pécaut remete-nos ao pensamento de que os
intelectuais durante o governo Vargas, muito se preocuparam com o problema da
unidade nacional. E, no bojo desta preocupação adicionaram suas decepções com o
sistema oligárquico que até então ocorria e, assim, resolveram assumir postos como
funcionários do governo. De concepções de direita ou de esquerda, modernos ou
conservadores, comunistas ou católicos, os intelectuais brasileiros mostraram-se
dispostos a organizar a sociedade junto com Vargas, pela crença que depositavam na
cultura como meio de se chegar a uma identidade política e cultural.
Tal engajamento se deu pelos idos de 1915, como aponta Pécaut, mas é a partir
dos anos de 1920 que se mostra a filiação de alguns destes intelectuais em partidos
políticos. Porém, é importante ressaltar que as investidas destes intelectuais nos anos do
Estado Novo não representavam que estavam totalmente de acordo com o regime. Por
várias vezes houve rusgas entre estes e o Presidente, mas ambos tinham em mente a
noção de que dependiam um do outro para alcançar os objetivos de “nacionalizar” a
sociedade. Era por meio das políticas culturais, do ensino e da preservação do
patrimônio nacional, que se ia forjar o que costumavam chamar, à época, de “homem
novo”. Assim, observa Daniel Pécaut:
“O projeto do regime pretendia-se mais ‘cultural’ do que mobilizador, e a definição
do ‘cultural’ confundia-se amplamente com a dos intelectuais. Trata-se de construir o
‘sentido da nacionalidade’, de retornar às ‘raízes do Brasil’, de forjar uma ‘unidade
cultural’. É sempre evidente, para os responsáveis pelo assunto no regime que
‘cultura’ e ‘política’ são dois termos inseparáveis e que cabe a eles fundi-los no
quadro do nacionalismo”. (Pécaut, 1990: 69)
É neste momento que também são criados a União Nacional dos Estudantes -
UNE e o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos – INEP, ambos em 1938.
Movimentos como o dos Pioneiros da Escola Nova, de 1932, intensificaram as
77
propostas político-pedagógicas no país, para tentar colocar a Educação como um dos
temas principais da agenda política brasileira. Assinaram esse Manifesto, entre outros,
Fernando de Azevedo, Cecília Meirelles, Afrânio Peixoto. Sob o título de “A
Reconstrução Educacional no Brasil - Ao Povo e Ao Governo”, os “escolanovistas”
afirmavam, dentre outras coisas, em seu Manifesto, o seguinte:
“Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e
gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem
disputar a primazia nos planos de reconstrução nacional. Pois, se a evolução
orgânica do sistema cultural de um país depende de suas condições
econômicas, é impossível desenvolver as forças econômicas ou de produção,
sem o preparo intensivo das forças culturais e o desenvolvimento das aptidões
à invenção e à iniciativa que são os fatores fundamentais do acréscimo de
riqueza de uma sociedade.
[...]
Esse empirismo grosseiro, que tem presidido ao estudo dos problemas
pedagógicos, postos e discutidos numa atmosfera de horizontes estreitos, tem
as suas origens na ausência total de uma cultura universitária e na formação
meramente literária de nossa cultura. Nunca chegamos a possuir uma ‘cultura
própria’, nem mesmo uma ‘cultura geral’ que nos convencesse da ‘existência
de um problema sobre objetivos e fins da educação’.
[...]
À luz dessas verdades e sob a inspiração de novos ideais de educação, é que se
gerou, no Brasil, o movimento de reconstrução educacional, com que, reagindo
contra o empirismo dominante, pretendeu um grupo de educadores, nestes
últimos doze anos, transferir do terreno administrativo para os planos político-
sociais a solução dos problemas escolares.
[...]
Em lugar dessas reformas parciais, que se sucederam, na sua quase totalidade,
na estreiteza crônica de tentativas empíricas, o nosso programa concretiza uma
nova política educacional, que nos preparará, por etapas, a grande reforma, em
que palpitará, com o ritmo acelerado dos organismos novos, o músculo central
da estrutura política e social da nação.
[...]
Mas, do direito de cada indivíduo a sua educação integral, decorre logicamente
para o Estado que o reconhece e o proclama, o dever de considerar a educação,
na variedade de seus graus e manifestações, como uma função social e
eminentemente pública, que ele é chamado a realizar, com a cooperação de
todas as instituições sociais. A educação que é uma das funções de que a
família se vem despojando em proveito da sociedade política, rompeu os
quadros do Comunismo familiar e dos grupos específicos (instituições
privadas), para se incorporar definitivamente entre as funções essenciais e
primordiais do Estado.
[...]
Mas, de todos os deveres que incumbem ao Estado, o que exige maior
capacidade de dedicação e justifica maior soma de sacrifícios; aquele com que
78
não é possível transigir sem a perda irreparável de algumas gerações; aquele
em cujo cumprimento os erros praticados se projetam mais longe nas suas
conseqüências, agravando-se à medida que recuam no tempo; o dever mais
alto, mais penoso e mais grave é, de certo, o da educação que, dando ao povo a
consciência de si mesmo e de seus destinos e a força para afirmar-se e realizá-
los, entretém, cultiva e perpetua a identidade da consciência nacional, na sua
comunhão íntima com a consciência humana” (Manifesto dos Pioneiros da
Escola Nova, 1932).
Fica claro, principalmente nestas últimas linhas do Manifesto, que a intenção de
uma educação que estabeleça uma unidade nacional e que faça com que a população
realize suas apreensões mediante uma consciência individual e nacional é a pauta deste
grupo de intelectuais e que acabará por gerar uma concentração, por parte do governo,
em fazer com que junto do Trabalho e da Saúde se consiga um maior panorama para a
Educação, mesmo que a partir de então, até o fim do ditatorial Estado Novo, este tripé
seja manipulado a fim de que esta tal consciência não seja usada contra o próprio
governo. Como enfatiza Pécaut: “Enquanto os intelectuais permanecerem fiéis a sua
vocação nacional, terão seu lugar garantido nas fileiras do Estado” (1990:74).
É interessante lembrar que o Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema,
junto com Alceu Amoroso Lima, coordenam a implementação da Universidade do
Brasil, em lugar da Universidade do Rio de Janeiro, com a proposta de vigiar o corpo
docente e discente para que as propostas revolucionárias não os atingissem como
queriam os escolanovistas, que observavam uma falta de novos métodos no ensino e
queriam uma transformação, principalmente na garantia de uma escola pública, gratuita
e sem distinção de gênero.
Neste sentido, o primeiro governo Vargas (1930-1945), modificou estruturas
políticas; formulou leis para o trabalho e organizou instituições. Embora não escreva
especificamente para o Brasil, Angel Rama (1985) mostra que as instituições públicas
sempre foram consideradas locais onde a ordem e o progresso seriam marcas de
distinção entre o senso comum e a elite letrada do país. Assim como as cidades, as
instituições no seu papel social e pelas suas especificidades são consideradas como
cidades muradas. Sendo assim, “as instituições foram os instrumentos obrigatórios para
estabelecer a ordem e para conservá-la [...]” (Rama, 1985:38).
79
Porém, o período em que agora nos detemos está também murado e cercado de
um imenso jogo de poder e de políticas ligadas ao assistencialismo numa perspectiva
em que o auxílio mexia diretamente com a cidadania. O interessante é que ser cidadão
não era algo que movimentava o universo individual, mas algo construído para atingir
setores mais elevados. Ou seja, não estava em jogo o “ser cidadão”, mas como tais
instituições poderiam programá-lo para tal.
A assistência aos pobres da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, neste período
teve uma característica peculiar por abarcar uma população que estava fora dos padrões
do mercado chamado formal. As pessoas não inseridas no mercado de trabalho e, por
isso, entendidas como “desajustados”, ou, ainda, as “classes perigosas”, eram
conseqüentemente alocados em instituições como o Albergue da Boa Vontade e os
futuros Parques Proletários Provisórios, como veremos adiante.
A relação da discussão entre pobreza, trabalho e assistência traz, então, como
enfoque, a questão dos direitos, dos deveres e sua relação direta com a cidadania.
Questões como liberdade e participação não levam rapidamente à resolução dos
problemas sociais, entendendo que a cidadania se desdobrou nas três versões dos
direitos: a) civis (liberdade, igualdade e propriedade); b) políticos (participação da
sociedade no governo); c) sociais (educação, trabalho, saúde, entre outros, que evocam a
justiça social) e a sociedade brasileira não soube e, talvez, não saiba como realmente
utilizá-los (Carvalho, 2001).
Assim, percebemos que não só o sentido de exclusão, como foi visto
anteriormente, mas a idéia de direito também é historicizável, depende de um contexto.
Todo tipo de relação da sociedade com a cidadania tem a ver com o Estado e com o tipo
de sociedade que a estabelece. Por isso, as relações ocorrem de maneiras distintas em
cada lugar, pois a questão da cidadania traz a necessidade de pensar na idéia da
identidade e do pertencimento (idem).
Ainda, observamos que a questão da pobreza, ou melhor, do tratamento que se
dá a ela, passa também pela questão da alienação. Ou seja, algumas pessoas são iludidas
com manifestações ou pequenos auxílios, embora necessitassem de educação, saúde,
80
habitação, bem como projetos culturais. Na verdade, esses direitos sociais não deveriam
ser somente possuídos, mas requeridos e para isso, era preciso saber de sua existência.
No Brasil, estruturalmente temos um arranjo proposto pelas elites políticas e
econômicas dos direitos concedidos à população.
I.II. A POLÍTICA DO ESTADO NOVO
Segundo Maria Celina d’Araújo, o período dos anos de 1920 e 1930 foi marcado
por uma reação, ao mesmo tempo, ao Comunismo e ao Liberalismo
10
. Era o momento
da criação de uma nova sociedade após a Primeira Guerra Mundial, sociedade esta que
necessitava de uma unidade nacional que acabara por caracterizar tanto os totalitaristas,
como os comunistas. Sendo assim, podemos dizer que este período foi de preocupação
com um fortalecimento do Estado. E é neste período, em meio a essas ideologias, que
nasceu o Estado Novo no Brasil. Era preciso alcançar tanto os liberais como os
comunistas com essa “nova” proposta lançada pelo Estado Novo, muito embora esta
característica não fosse encontrada somente no Brasil, mas em muitos países que foram
marcados pela Primeira Guerra.
O “novo” seria, então, a ação direta e radical do Estado sobre a sociedade.
Propostas como as de sociabilidade lançadas pelos teóricos do novo regime, marcavam
uma procura por uma natureza comum que geraria o “novo” governo. A proposta era
manter um Estado, além de novo, forte e propiciador de oportunidades, patrocinado por
um enorme grau de autoritarismo e corporativismo. Neste sentido, tornou-se necessária
a fusão do Estado com a nação através de um líder, com comemorações cívicas e culto a
sua personalidade. Se obediência e civismo eram as marcas deste período, esta não
poderia deixar de ser a do Estado Novo brasileiro e de outros Estados totalitários no
mundo. O Estado deveria, então, diminuir as outras formas de poder.
Para D’Araújo (2000), “o marco decisivo para explicar os acontecimentos de
1937 é o Levante Comunista de novembro de 1935”, liderado por membros da Aliança
Nacional Libertadora, a ANL, ala de esquerda pertencente ao Partido Comunista
Brasileiro, o PCB. Neste período de dois anos, entre o Levante e o Golpe, o Brasil viveu
10
Nas propostas educacionais estava inserida tamm esta questão. Em 1936, Alceu Amoroso Lima faz
uma conferência intitulada “A educação e o comunismo”, no Ministério da Educação e Saúde.
81
praticamente em estado de sítio e os comunistas tornaram-se o inimigo nº 1 do Brasil.
Deste modo, era importante que ações contra os comunistas fossem tomadas, mas a
partir desse momento não só medidas isoladas, ou que fossem em sentido somente dos
partidários. Era preciso ecoar na sociedade a responsabilidade pelo “mal” proposto
pelos comunistas e o “bem” que o governo poderia fazer. Atingir a todos, entendendo o
Comunismo como um problema social, era o interesse desse novo Estado e um plano do
novo líder, Getulio Vargas. Seus planos ideológico, econômico, social e político não
incluíam o Comunismo.
Se era o fim, ou pelo menos, o pretenso fim do Comunismo e das ações de
esquerda no país, era o início de uma centralização do poder em mãos do governo.
Bandeiras estaduais foram queimadas para simbolizar tal centralidade. Nesse jogo, não
só o Comunismo ameaçava, mas também aquela que antes apoiara o golpe de 1937, a
Ação Integralista Brasileira (AIB). Esta organização foi criada no país após a Revolução
de 1932, liderada por Plínio Salgado, de modelo fascista, cujo lema era: “Deus, Pátria e
Família”. Embora oposta ao Comunismo, a AIB possuiu alguns ativistas que passaram
pelo movimento comunista e vice-versa. Isto se deu porque tinham algumas
características em comum, como, por exemplo, a crítica ao liberalismo.
Seguindo um modelo totalizador, a AIB foi atingida com o fechamento dos
partidos e por outros motivos acabou entrando em confronto com o governo
estadonovista. Até mesmo os próprios nazistas, instalados no Brasil durante o Estado
Novo, tiveram uma dose de perseguição, já que o governo resolveu “tomar cuidado”
com ideologias que superassem o pensamento social brasileiro, pois não queriam
problemas para a centralização pretendida para o país e, portanto, diminuir os ideais de
nacionalidade. Seria um pouco a máxima de Maquiavel, de conhecer a todos os
inimigos, mas também os amigos para que o poder seja sustentado.
Todas essas situações faziam do Estado Novo um misto entre mudanças e
continuidades, o que mostra que, embora com características modernizadoras, ainda se
observavam, por exemplo, ações clientelistas. Como mostra D’Araújo, “[...] apesar do
discurso que privilegiava a modernização racional-legal, o Estado Novo conviveu
sempre com formas clientelistas e personalistas, particularmente quando se tratava de
nomeações para cargos de confiança” (D’ARAÚJO, 2000:32-33).
82
E assim, os espaços foram representados de diferentes formas: o Conselho
Federal de Comércio Exterior, de 1934, cuidava do planejamento econômico, inclusive
os industriais. Em 1936, criou-se o Tribunal de Segurança Nacional. O Departamento
Administrativo de Serviço Público (DASP), criado em 1938, cuidava dos orçamentos do
país, sendo inclusive o “braço-direito” dos interventores estaduais. E assim foi surgindo
o Conselho Nacional do Petróleo (1938), o Conselho Nacional de Ferrovias (1941),
entre outros. Porém, não só interessavam a esse “novo” governo as questões
econômicas. Medidas como a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda, o
DIP, mostravam que controle e censura eram suas maiores armas. Em 1943, foi a
criação, da Força Expedicionária Brasileira (FEB).
Campanhas educativas, direcionadas aos jovens, imigrantes e trabalhadores,
foram feitas a fim de socializá-los civicamente. Havia, também, uma preocupação com
a nacionalização do ensino (1938 e 1939) e a ativação das Conferências Nacionais de
Educação e Saúde (a partir de 1941). Percebamos como estas Conferências se
enquadram bem na concepção do novo Estado. Não podemos esquecer que sua primeira
versão teve início justamente no aniversário do Estado Novo. Vejamos as palavras do
Ministro Gustavo Capanema quando da inauguração da Conferência de Saúde:
“Senhores delegados: Meus senhores, 10 de novembro é em nossa história uma
data de vontade, de fé e de fervor. É a data em que o patriotismo nacional
apelou para uma decisão: é a data em que a decisão de um chefe encontrou
resposta e compromisso no coração de um povo. Data simbólica, pois do ideal
e da construção. A inauguração dos trabalhos da Primeira Conferência
Nacional de Saúde em tão propícia data é acontecimento que deve encher o
nosso espírito de esperança. Os problemas da saúde, quer do ponto de vista
sanitário, quer do seu lado assistencial, são, em nosso país, problemas enormes,
que se apresentam difíceis para estudo, dificílimo para solução. São, porém,
problemas fundamentais. É deles que depende a existência, a fecundidade e a
criação. O nosso progresso, a nossa civilização, a nossa cultura, tudo que
representa para nós valor material ou moral, valor de significação histórica,
está na dependência da saúde e deve na saúde basear-se.
Os poderes públicos entre nós já realizaram grandes empreendimentos
sanitários e assistenciais. A obra dos últimos tempos é, sobretudo, digna de
nota. A liquidação da febre amarela, os vigorosos combates contra a malária e
a peste, as grandes iniciativas atinentes à tuberculose, a admirável campanha
contra a lepra, as realizações hospitalares de todo gênero são esforços e
serviços que denunciam o pensamento claro, vontade firme e ação bem
ordenada.
83
Não tem faltado, antes tem sido ampla e profícua, nesses empreendimentos, a
cooperação das instituições particulares.
Tudo mostra assim que os responsáveis pelo destino do país possuem clara
consciência dos problemas da saúde e que para a solução deles existe já uma
obra nacional de grande envergadura.
É preciso prosseguir.
É preciso, por um lado, dar mais profundidade aos estudos realizados, retificar
os planos estabelecidos, coordenar melhor as iniciativas e os esforços, imprimir
uma desejável unidade de concepções e os progressos em tão difícil terreno,
mobilizar, se for possível, mais consideráveis recursos.
É preciso, por lado, fornecer uma viva consciência social da necessidade da
saúde, da saúde não só como base, de modo geral, da riqueza e da cultura do
país, mas também de modo especial, como condição primeira da felicidade de
cada brasileiro, de maneira que por ela não batalhem apenas o governo e as
instituições beneméritas, mas também as famílias na formação e no viver de
seus lares, e, individualmente, as pessoas nos procedimentos, nos hábitos de
cada dia.
Firmemos, vivamente, no coração de todos, o ideal da saúde.
Declarando inaugurados, com estes propósitos e aspirações os trabalhos da
Primeira Conferência Nacional de Saúde, dirijo-vos a cordial saudação do
Governo Federal de envolta com os maiores louros pelos grandes serviços
sanitários e assistenciais que estão sendo realizados pelos governos das
unidades federativas aqui representadas, e com os votos de que, de nossos
trabalhos possa resultar uma mobilização maior de esforços e de meios pela
saúde do povo brasileiro.”
11
A fim de implementar uma política nacional de saúde, o Governo Vargas em
novembro de 1930, cria o Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP)
12
, como já
fora mencionado, mas os trabalhos deste Ministério ganharam maior êxito em 1934,
com a ocupação da pasta pelo Ministro Gustavo Capanema. Tal Ministério teve uma
importância fundamental no governo Vargas em função da educação e saúde serem
representantes de um dos maiores problemas sociais do país. De sua criação até 1934,
com Washington Pires como Ministro, o MESP atuou mais no Distrito Federal. Mas, a
partir deste ano, seus serviços administrativos do foram reorganizados.
Isto mostra que a assistência, que já era objetivo de Vargas, se considerava
também como uma função médico-social. Mas, é em 1937 que ocorre uma maior
execução e fiscalização no país. Coadunado com a reforma política por que passa o
11
“Fala do Ministro”, Diário de Notícias, 11 de novembro de 1941, p. 9.
12
Decreto 19.444, de 1 de novembro de 1930, Coleção Leis do Brasil, 1930.
84
Brasil, o Ministério, agora denominado Ministério da Educação e Saúde (MES), age de
forma mais abrangente para o país como um todo.
Na pauta das resoluções desde a República Velha estavam as questões de saúde
e as de políticas sanitárias. Principalmente a partir dos anos de 1920, época denominada
como “Era do Saneamento” (Hochman, 1998). Tais questões também tomavam conta
do universo pós 1930
13
, com Getulio Vargas, mas se a primeira fase se direcionava ao
sertão brasileiro, a fase getulista inspirava-se no meio urbano. Era necessário que
houvesse uma cidade preocupada com a saúde dos trabalhadores. Vale destacar que a
criação de alguns serviços nacionais de saúde representou um novo emprego mais
urbano e mais específico para esta área. Os centros de saúde, por exemplo, foram
legitimados em 1934, em função da legislação dos direitos sociais (Cunha, 1994 apud
Faria, 2003).
Deste modo, todos estavam inseridos no projeto de seu mentor, Getulio Vargas,
o de reeducar e re-socializar a nação brasileira. O culto à personalidade de Vargas,
quase que santificado, visto como um homem predestinado, que utilizava todo o seu
poder carismático, foi outra importante característica do Estado Novo. É interessante
notar que este tipo de autoridade é socialmente construído, pois vemos aqui que,
sociologicamente, o carisma não está na pessoa, mas em como a sociedade a enxerga
14
.
Tais características não deveriam ser atribuídas somente à pessoa de Vargas, mas
às suas ações perante a uma massa que necessitava de atitudes inovadoras. Fatores
externos à genialidade de Getulio Vargas atingiram, também seu governo. O Brasil
deixava de ser um país excepcionalmente voltado para a agricultura: tornou-se, durante
o período de 1930 e 1945, um país voltado para a industrialização. Outros
acontecimentos também geraram o fervilhamento do processo deste “novo” governo: a
Primeira Guerra Mundial, já mencionada anteriormente, o crack de 1929 e o início da
13
Não se pode negar as importantes criações do período Vargas, como a Fundação Brasil Central (1943),
a Expedição Roncador-Xingu, o Serviço Especial de Saúde Pública, o SESP (1942) e o combate às
endemias rurais.
14
Isto também significa dizer que a autoridade carismática tem um tempo, isto é, permanece até que o
grupo que escolheu o líder estabeleça relações desta liderança e do carisma com ela. Pois do mesmo
modo que é construída, é também derrotada. Este tipo de autoridade só se reconhece como legítima
quando é atribuída. Cf. Norberto Bobbio, Dicionário de Política, 2000, pp. 164-169.
85
Segunda Guerra, que colocou o Brasil numa posição que a historiadora Maria Celina
d’Araújo chamaria de “conveniência diplomática”, ao alinhar-se contra os países do
Eixo. “Dentro desta perspectiva, o Brasil ainda que numa posição assimétrica de força,
soube tirar proveito das ambições e necessidades dos dois blocos de poder representados
por Estados Unidos e Alemanha” (D’ARAUJO, 2000:46).
Durante todos os anos do Governo de Getulio Vargas houve querelas políticas e
administrativas que o ameaçavam e ao mesmo tempo o fortaleciam. A começar pela
Revolta Constitucionalista de 1932, promovida em São Paulo e, como não podia deixar
de ser, o Movimento Comunista, liderado por Luis Carlos Prestes, em 1935, que
conduziram, entre outras coisas, ao repressor modelo do Estado Novo.
Se a Primeira Guerra Mundial tinha sido um fator preponderante para a
sociedade fomentar expectativas para o início de um governo autoritário, assim também
o foi com seu fim. Já o fim da Segunda Guerra Mundial chamava a atenção para um
período de redemocratização, de iniciativas que pusessem abaixo tais governos
autoritários. Com a derrota do Eixo e a entrada do Brasil na Guerra começou-se a criar o
duplo caráter da política de Getulio, apoiando a democracia ao mesmo em tempo que
era ditatorial.
No ano de 1945, dá-se, então, o surgimento dos Partidos: União Democrática
Nacional (UDN); Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido Social Democrático
(PSD). Getulio Vargas deixava, então, o poder. Poder este que retomaria seis anos mais
tarde, eleito pelo voto popular.
Porém, é nesse momento do primeiro governo e, principalmente durante os anos
de 1937 a 1945, que veremos a incorporação de políticas públicas que mudaram a feição
das moradias populares. Para os mocambos do Recife, como para os casebres do Rio, os
anos do Estado Novo foram fundamentais.
86
II. O UNIVERSO DAS ATUAÇÕES DE VICTOR TAVARES DE MOURA
Veremos, a partir de agora, dois exemplos de políticos/empreendedores que
fizeram uma cirurgia urbana nas cidades que estavam sob suas responsabilidades
durante o Estado Novo. Ambos tiveram papel fundamental nas propostas e escolhas;
ambos também representaram, durante este período, vozes ativas nas implementações
tanto em prol das habitações populares, como demais reformas urbanas que fizeram dos
anos 30 e 40 do século XX anos singulares na aceitação de propostas vindas de fora do
Brasil e aqui incorporadas.
II.I. HENRIQUE DODSWORTH: O RESPONSÁVEL PELA CAPITAL
FEDERAL DURANTE A DEMOLIÇÃO DAS FAVELAS
No Rio de Janeiro, embora a atuação no combate às habitações populares tenha
ficado a cargo do médico social Victor Tavares de Moura, não podemos deixar de lado
as intervenções urbanas e as ações políticas do homem que foi escolhido por Vargas
para chefiar a cidade: Henrique Dodsworth.
Do dia 9 para 10 de novembro de 1937, Vargas, com seu poder, fechou o Senado
e a Câmara, mandando prender parlamentares, militares e civis. Nascia o Estado Novo.
Embora Henrique Dodsworth fosse líder de oposição ao Governo Vargas, ele fora
escolhido o novo interventor do Distrito Federal. Dodsworth foi interventor de junho a
novembro de 1937, e Prefeito nomeado em 11 de novembro de 1937 a 31 de outubro de
1945. Porém, este fato possui duas explicações que são no mínimo interessantes de
serem observadas.
Segundo o Diário de Getulio Vargas (1995), a escolha de Dodsworth teria sido
feita antes mesmo da chegada do novo regime. Nos dias 19, 20 e 21 de junho do ano de
1937, Vargas já sondava a substituição do Cônego Olímpio de Melo por Dodsworth.
Assim, Vargas escreve:
87
“Aproveitei esses dias para descansar, ler um pouco e despachar alguns
pequenos serviços [...] encaminhei a solução do caso do Distrito, conversando
com o padre [Olímpio] e o Deputado Dodsworth, para que o primeiro seja
substituído pelo segundo.
[...]
Tratei com o interventor do Distrito de sua substituição pelo deputado
Dodsworth, de comum acordo, evitando que, de início, se formasse um bloco
de resistência passiva contra o novo interventor”. (Vargas, 1995:55-56).
Porém, numa publicação feita em 2001 por Hélio Fernandes, o autor indica que
no mesmo dia 9 de novembro, Lourival Fontes, chefe da Casa Civil do governo,
telefona para Dodsworth, agora ex-deputado, para que estivesse no Palácio do Catete no
dia seguinte. Por mais que estivesse preocupado, ou até mesmo pensando ser um trote,
Dodsworth aceitou o convite e foi ao encontro nem sabia de quem. Ao chegar ao
Palácio e encontrar o responsável pelo telefonema, Dodsworth teve a surpresa de ouvir
de Getulio Vargas as seguintes palavras:
“- Chamei-o aqui para lhe dizer o seguinte. Já assinei um decreto nomeando-o
Prefeito do Distrito Federal. Sai amanhã no Diário Oficial. Como o senhor tem
feito oposição muito eficiente ao meu governo, espero que use da mesma
competência na administração da cidade. Combine com o Lourival Fontes a
forma da posse, se possível amanhã mesmo. Bom dia e felicidade”
15
.
De um jeito ou de outro, era agora Henrique Dodsworth o Prefeito do Distrito
Federal
16
. Fernandes mostra, também, que o prefeito era o “cidadão acima de qualquer
suspeita”, e que tinha como lema governar para a comunidade, sendo responsável pela
abertura de escolas, hospitais, de avenidas, como a Avenida Brasil e a Presidente
Vargas, entre outras obras. Dodsworth administrou a cidade de 1937 a 1945, só saindo
com a derrubada do Estado Novo, quando se tornou Embaixador de Portugal.
(Fernandes, 2001).
15
Cf. “Estado Novo: Uma no cravo, outra na ferradura”. Artigo publicado por Hélio Fernandes na
Tribuna de Imprensa, 4 de julho de 2001.
16
Cf. Inventário Sumário do Fundo Gabinete do Prefeito – DF. Documentos da Administração Henrique
Dodsworth (1937-1945), Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria
Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, O Arquivo, 1996.
88
Seu governo foi marcado pela incumbência de dar cara nova à cidade. Muitos
empregos surgiram pelo incentivo à criação de indústrias, o que gerou um sem-número
de imigrantes para a cidade, além do crescimento das favelas. Com isso, houve um
aumento da construção civil, o que gerou a busca por mão-de-obra não qualificada, que
por não ter outra opção, acabavam habitando as favelas que se estendiam do centro para
as Zonas Sul e Norte do Rio de Janeiro, prática que durou até os anos 1950, fazendo
com que muitas fábricas perdessem seu lugar para as favelas: “A invasão da área pelas
favelas, atraídas pela ocupação fabril do espaço, impediu a instalação de indústrias em
alguns trechos, (notadamente) entre Olaria e Lucas”. (PA 6376, de 10/12/1953, p.131
apud Abreu, 1997: 103).
É importante ressaltar que o governo Vargas de 1930 a 1945 teve como um de
seus lemas um Estado forte, capaz de realizar projetos que transformassem a cara do
país, tanto fisicamente, como na própria idéia de identidade nacional, e para isso
Dodsworth não poupou esforços. Tal fortaleza, como observa Medeiros (2002), se dava
na implementação de um governo que subordinava os estados ao governo federal, que
se colocava como o principal articulador e centralizador das ações. Esta subordinação
era bem marcada na figura do trabalhador, que tinha como características, honestidade,
cidadania, mas, também, sofrimento. Porém, com o passar do tempo, as questões de
pobreza, trabalho e cidadania começaram a ser entendidas como questões de atraso
econômico e cultural para o Brasil. Era preciso, então, a mão do Estado.
A maior atuação do Estado do Rio de Janeiro se deu, então, com a construção da
Avenida Presidente Vargas (sugerida por Alfredo Agache, anos antes). A expulsão dos
moradores do centro da cidade ocorreria mais uma vez. Segundo Mauricio Abreu, foram
demolidos 525 prédios para que a Avenida pudesse ser construída e inaugurada em 7 de
setembro de 1944. A nova Avenida iria simbolizar, junto com a Avenida Rio Branco,
um reduto de novas construções monumentais; porém, o eixo dos negócios continuou
sendo a mais antiga Avenida e a corrida imobiliária se fez para a Zona Sul.
Como vimos nas discussões de diversos autores aqui citados, a pobreza
entendida como um dos focos dos problemas por que o Brasil passava, ameaçava tanto
pela questão estética, como do atraso, como da disseminação de idéias que poderiam
implicar movimentos contra o governo. Para isso, tal governo, na figura de seus
89
interventores, encontrou na valorização do trabalho um novo olhar para a educação que
poderia colocar o Brasil no caminho pretendido. A educação tinha, então, seu valor por
primar pelo gosto pela ordem e pela disciplina.
Neste sentido, como também já vimos anteriormente, Educação e Saúde estavam
na pauta do Governo Federal. O Ministério da Educação e Saúde Pública e, depois, o
Ministério da Educação e Saúde, desenvolveram uma política assistencialista a fim de
velar por todos aqueles que estavam física e moralmente doentes. Já o Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio estava preparado para a criação do cidadão brasileiro,
disciplinado, trabalhador e, portanto, com sua identidade nacional garantida.
Num artigo intitulado Favelas, que Henrique Dodsworth escreve para o jornal A
Noite
17
, o prefeito traz as lembranças de quem já havia observado as favelas no Brasil,
ou seja, o papel dos engenheiros, médicos e arquitetos nesta empreitada. Um dos
episódios lembrados por Dodsworth foi a reforma urbana de Pereira Passos, no início do
século XX, no Rio de Janeiro, com a erradicação de algumas casas populares e os
primeiros indícios de favelas. Segundo Dodsworth, mesmo 40 anos após tal reforma, já
que seu artigo data de 1945, o problema das favelas persistia e agravava cada vez mais
os problemas de assistência hospitalar e alimentação para a população mais pobre do
país. Ele escreve:
“O professor Everardo Backheuser, que durante longo tempo emprestou aos
trabalhos da Prefeitura o concurso da sua competência, escrevia então: ‘O
Prefeito Pereira Passos já tem as suas vistas de arguto administrador voltadas
para as favelas, e em breve providências serão dadas de acordo com as leis
municipais para acabar com esses casebres’.
Mais de quarenta anos decorridos, permanece o problema, e agravado os seus
aspectos urbano e médico-social contribuindo de forma nociva para complicar
outros problemas, como o de assistência hospitalar e o da alimentação”.
(Dodsworth, 1945:1).
Como solução para esses problemas, foram criados os Parques Proletários
Provisórios, na década de 1940, que, nas palavras de Dodsworth, seriam, na época em
que foram construídos, uma espécie de instrutores e assistentes no que tange à medicina
17
Acervo DAD/COC/FIOCRUZ – Fundo Victor Tavares de Moura, VT/PI/19451017.
90
social e à religião para os moradores das favelas que para lá se dirigiam. Teriam um
papel educativo acima de tudo. Ainda o prefeito:
“Os Parques Proletários, entretanto, mesmo com as suas Escolas Primárias,
Pré-escolares, Escolas Profissionais, Escolas noturnas, Centro Social, Socorro
Alimentar, Clubes de operários, Assistência religiosa e policial, possuindo
dependências do S.A.P.S. e da Caixa Econômica, não constituem mais do que
uma experiência feliz, tecnicamente orientada, e jamais de propuseram, aliás, a
constituir a solução, mesmo que precária, do problema”. (Dodsworth, 1945:2)
É o que veremos no próximo capítulo.
II.II. AGAMENON MAGALHÃES: A DEMOLIÇÃO DOS MOCAMBOS E A
INSPIRAÇÃO PARA AS FAVELAS
Dulce Pandolfi, em sua obra, Pernambuco de Agamenon Magalhães.
Consolidação e crise de uma elite política, discute a vida do interventor pernambucano
em suas diversas funções como político. Neste livro, o objetivo da autora é: “entender
os mecanismos que possibilitaram o surgimento, a consolidação e a desagregação de
uma poderosa elite que, assumindo o comando do Estado em 1937, se mantém
continuadamente no poder até 1958” (Pandolfi, 1999:17). Deste modo, sua obra se
caracteriza como um estudo das elites políticas, melhor dizendo, de uma determinada
elite política do país, na qual está inserido Magalhães.
Como disse acima, a interventoria de Agamenon teve fundamental importância
no processo de consolidação das políticas públicas para as habitações populares.
Diferente de Dodsworth, Magalhães pegou com as próprias mãos o compromisso da
erradicação dos mocambos e a criação das Vilas como nova opção para os moradores.
Nascido em 5 de novembro de 1893, em Vila Bela, Agamenon Magalhães ingressou
no Seminário de Olinda, mas logo deixou sua vocação religiosa. Aos 24 anos forma-se
na Faculdade de Direito de Recife e torna-se promotor público. Um ano após é eleito
deputado estadual e ingressa no Partido Republicano Democrata. Ainda em 1923 e em
1927, é novamente eleito como deputado. Professor de Geografia nos anos 1920,
Magalhães escreve obras como O Nordeste Brasileiro, em 1921, e O Estado e a
91
Realidade Contemporânea, em 1933, passando em 1940, a lecionar Teoria Geral do
Estado na Faculdade de Direito do Recife.
Membro da Aliança Liberal ao lado de Carlos de Lima Cavalcanti, interventor de
Pernambuco de 1930 a 1937, Agamenon Magalhães, cria o PSD de Pernambuco.
Agamenon, nesta época, já critica a separação dos Três Poderes e defende o regime
parlamentar e o intervencionismo estatal.
Em 1934, passa a assumir a pasta do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio,
a convite de Getulio Vargas, tendo uma postura centralizadora e anticomunista. Em sua
gestão são criados o salário mínimo, o anteprojeto da Justiça do Trabalho e os Institutos
de Previdências. Em 1937 assume, interinamente também, a pasta do Ministério da
Justiça.
Em 3 de dezembro do mesmo ano, assume a interventoria pernambucana e “realiza
um governo considerado pelo poder central como um modelo a ser seguido pelos
demais estados da federação”, pois “Reprimindo, cooptando e doutrinando, Agamenon
executa o seu projeto no Estado e constrói uma poderosa máquina político-
administrativa” (Pandolfi, 1999:30).
Para começar, a elite pernambucana, liderada por Carlos de Lima Cavalcanti, é
retirada do poder. Diferente do que aconteceu em outros estados, Pernambuco tornou-se
um estado complexo, pois embora Lima Cavalcanti possuísse legitimidade, a partir de
1935 vai perdendo seu prestígio. A alegação de estar conivente com o Comunismo e o
seu posicionamento diante das escolhas para a sucessão presidencial torna a situação de
Lima Cavalcanti cada vez mais problemática. Concomitante a isso, Agamenon
Magalhães vai se tornando um grande nome para Vargas implementar, em Pernambuco,
sua política, e Lima Cavalcanti vai se sentindo traído por seu parceiro político. Diversas
são as investidas que mostram os desafetos e as acusações de Magalhães a Cavalcanti,
fazendo-se chegar a Getulio Vargas.
18
18
Cf. documentação do CPDOC/FGV.
92
À época da sucessão presidencial, Agamenon Magalhães provoca críticas de outros
políticos e até rompe com Carlos de Lima Cavalcanti e, embora este tivesse bastante
legitimidade em Pernambuco, e Agamenon já perdesse as forças junto ao PSD
pernambucano, o primeiro sofre várias acusações e com a chegada do Estado Novo é
afastado do poder. Agamenon Magalhães torna-se, assim, o interventor de Pernambuco.
Em 3 de dezembro de 1937 o político pernambucano assume a interventoria de seu
estado, contando com a mais expressiva colaboração do governo central. Para auxiliá-lo,
escolheu secretários que tivessem um caráter político, e daí as secretarias foram
ocupadas por personalidades locais, além de estabelecer forte vínculo com a Igreja
Católica, que durante o Estado Novo “deveria oferecer ao novo regime uma ideologia
que lhe desse substância e conteúdo moral” (Schwartzman, Bomeny, Costa, 2000: 61)
19
.
Agamenon Magalhães, então, tinha sob seu controle todos os seus auxiliares e não
foi diferente para a escolha dos prefeitos. Pois, “Em pouco tempo de administração,
Agamenon havia alijado a antiga elite política pernambucana, substituindo-a por uma
outra, afinada ideologicamente com o novo governo” (Pandolfi, 1999:51).
20
Como revela Dulce Pandolfi, “Agamenon Magalhães, na sua trajetória de vida
pública, sempre defendeu a maior proteção oficial para as atividades agrícolas do país”
(ibidem:67). O eixo de sua proposta se dividia em seis questões: 1) crítica à
monocultura e defesa da policultura, cuja campanha doutrinadora para o cultivo de
vários gêneros alimentícios era feita através dos meios de comunicação e incentivo aos
industriais e agricultores para que seus trabalhadores tivessem uma melhor alimentação;
2) o ruralismo e a fixação do homem à terra. O interventor também usava os meios de
comunicação para doutrinação e dizia: “Ruralismo não é só a terra. A enxada. O arado.
19
Na verdade, a relação do Estado com a Igreja passou por alguns pontos melindrosos: embora tão
doutrinadora quanto uma escola, a Igreja não poderia ser tão fiscalizada quanto, pois era dada a liberdade
de expressão às religiões; por outro lado, o Estado deveria encontrar meios de produzir uma aproximação
cada vez maior com a Igreja que, afinal, era um espaço onde pessoas se reuniam em torno de um líder que
lhes diziam sempre uma “verdade”, que geralmente eram os valores morais que o Estado queria incutir
nos jovens da nação (Schwartzman, Bomeny e Costa, 2000:176-179).
20
Podemos, neste sentido, lembrar da obra de Raymundo Faoro, Os Donos do Poder e sua tese de que
politicamente no Brasil existiu um permanente Estado patrimonial guiado por um estamento burocrático.
Raymundo Faoro desenha, em sua abordagem, um Brasil marcado politicamente por uma hierarquia, uma
escala de poder. Poder este, que historicamente podemos dizer que estava sempre nas mãos de uma
minoria – a elite – que se revezava no controle e na dominação da sociedade complexa que estava se
forjando. Ao mesmo tempo em que possuía um estamento que regulava materialmente a economia do
país.
93
O crédito. É também o hospital. É também o médico. É também meio sanitário propício
[...]” (ibidem:69)
21
. Além disso, achava que se o sertanejo não tivesse boas condições,
era um convite à migração; 3) ressurreição do sertão, que deveria ter obras contra as
secas. “O sertão, região potencialmente rica, estava apenas à espera do homem e da
técnica, afirma publicamente Agamenon Magalhães” (ibidem:70); 4) crítica às
indústrias artificiais, ou seja, “a industrialização deveria ser estimulada, desde que
dirigida essencialmente para as nossas matérias primas” (ibidem:71); 5) a implantação
do sistema de cooperativas, para que o pequeno produtor tivesse mais chances e
redefinisse a agricultura do estado; 6)
combate ao latifúndio, pois se se queria auxiliar
ao pequeno produtor, esbarraria com o latifundiário e para Agamenon, “[...] o direito de
propriedade é entendido como um direito natural, mas não um privilégio de uns contra
outros” (ibidem:72). É neste sentido que, em 1943, Agamenon decreta imposto sobre
terras não cultivadas.
Deste modo, pode-se ressaltar, então, o aspecto inovador do discurso de Agamenon
Magalhães, pois se sua postura não beneficiava o setor industrial diretamente, como
lembra Pandolfi, também não reafirmava a política oligárquica tradicional. Ao pensar
em uma agricultura mais moderna, ligada aos setores oligárquicos, houve, sem dúvida,
uma mudança neste momento que era de transição. A outra preocupação do interventor,
a harmonia social, muito diferente do que pensava seu antecessor, Carlos de Lima
Cavalcanti, que achava que Pernambuco deveria se unir com outros estados do Norte
para fazer frente aos estados do Centro-Sul, Agamenon “advogava uma posição de que
Pernambuco só seria forte na medida em que a nação brasileira estivesse totalmente
integrada” (ibidem:76).
Na fase final do Estado Novo, Agamenon Magalhães elaborou a legislação eleitoral,
criou o Decreto com orientação antitruste e terminou, em outubro de 1945, como chefe
político do PSD, elegendo-se como deputado, até que em 1950 é eleito governador de
Pernambuco. Sua morte foi em 1952.
Neste sentido, ao fazer um esboço da história política pernambucana, estudando o
Partido Social Democrático (PSD), Dulce Pandolfi foi percebendo que para isso deveria
21
Folha da Manhã, (RE) 7/4/1941.
94
remontar ao Estado Novo. Além disso, observou que a personalização dos partidos era
algo consensual, daí a importância do estudo sobre a vida de Agamenon Magalhães,
“figura-chave da política local” (ibidem:18). É deste modo que veremos como
Agamenon Magalhães se tornou uma figura de projeção nacional, tendo ocupado muitos
cargos na vida política brasileira.
Por suas obras e atitudes, Agamenon Magalhães mostra-se identificado com grandes
pensadores considerados autoritários, dentre eles, Alberto Torres, Azevedo Amaral e
Oliveira Vianna. Além disso, o político pernambucano, sempre procurando “popularizar
a ideologia do Estado Novo”, aproveita o jornal Folha da Manhã, de sua propriedade,
para arriscar a cooptação de mais adeptos ao regime (Pandolfi, 1999:32).
Para Agamenon Magalhães “não existe um modelo ideal e acabado de Estado. Este
deveria refletir a própria sociedade transformando-se constantemente, ampliando ou
diminuindo suas funções de acordo com a dinâmica de uma realidade” (ibidem:32). E
não se poderia negar que o modelo de Estado naquele momento tinha características
peculiares como a de dar uma mão e puxar a outra, isto é, do mesmo modo que de viés
assistencialista, era autoritário.
Magalhães criticava, ao mesmo tempo, a concepção de Estado marxista e o Estado
liberal, propondo um Estado intervencionista, caracterizado pela limitação dos poderes e
das liberdades individuais e, embora imaginasse um Estado autoritário, condenava o
totalitarismo. Para Agamenon Magalhães, a Revolução de 1930 foi um marco na
história política do país, rompendo com o liberalismo, economicamente. De acordo com
seu pensamento, a implantação do Estado Novo deu continuidade ao processo de
fortalecimento do Estado Nacional, iniciado em 1930.
Sua mais profunda reforma se deu na nova concepção de trabalho, baseada na
cooperação e assistência. Segundo o interventor, havia “de um lado o operariado, do
outro o patrão, as classes conservadoras. Hoje, as duas classes se dão as mãos”
(ibidem:37)
22
. Ainda, era para Magalhães de extrema importância a justiça social e a
defesa do sindicalismo para que houvesse o progresso industrial.
22
AGM – 39/12/01/1j, CPDOC, FGV.
95
Outro fator importante no pensamento político de Agamenon Magalhães era a
centralização nacional. Para ele, “não há mais problemas de estados ou regiões. Há
problemas nacionais. O território brasileiro é de verdade um só. A sua continuidade
geográfica é hoje também continuidade de interesses e de orientações”.
23
Daí, embora a
figura do interventor de Pernambuco fosse tão importante, importante também o era a
instauração do Estado Novo e a política brasileira que tomava novos rumos. Esta
atuação, que liga a problemática local à nacional, muito era considerada por Getulio
Vargas, que nutria grande admiração pelo político pernambucano.
A chegada dos anos 1930 traz uma política de transferência de valores sócio-
econômicos. O Brasil não mais se apresentava com um modelo agroexportador, mas
também industrial. Neste sentido, a preocupação com uma política urbana, habitacional
e controladora da população citadina, se justificava. Já não mais se podia manifestar um
controle na zona rural do país, se todos os vínculos estavam investidos no setor urbano-
industrial (Melo, 1982).
Deste modo, entre todas as experiências promovidas, os resultados eram sempre
os de remoção e criação de novas alternativas. Assim foi em Recife, com a Liga Social
Contra o Mocambo, em 1939, e, mais tarde, em Porto Alegre, São Paulo e Salvador
24
,
por exemplo, além da grande atuação na cidade do Rio de Janeiro, onde mais de 4 mil
pessoas foram removidas das favelas (ibidem:166).
Já em meados do século XIX são formuladas algumas regulamentações no livro
de Posturas da Câmara Municipal de Recife, as chamadas “Determinações de
Arquitetura, Regularidade e Aforamento da Cidade” (ibidem:222-223). Porém, mesmo
com tantas medidas relacionadas neste Código, os mocambos como alternativa de
moradia da classe mais pobre, ainda eram vistos pela cidade. Vejamos como, em 1907,
eram encarados estes modelos de habitação:
23
Folha da Manhã, (RE) 15/09/1939.
24
Em Porto Alegre foi criada a Companhia de Materiais Pró-Casa Popular, em 1947; em São Paulo, a
Comissão de Estudos do Problema da Habitação Popular, em que foi elaborado o Pleno de Casas
Populares, de 1947 a 1951 e, em 1952, criou-se a Fundação do Lote Popular em Salvador.
96
“[...] constituem infelizmente um dos maiores defeitos desta cidade as
habitações da população proletária. Os mocambos e cortiços são uma ameaça
constante à saúde pública. Sem conforto e sem a mínima observância dos
preceitos higiênicos, a pobre gente que os habita, concorre com avultadíssimo
contingente para o aumento da mortalidade e as suas condições de vida
constituem um perigo sério para a parte da população mais favorecida de
fortuna”. (ibidem:224).
Porém, como também ocorre com o Rio de Janeiro, o olhar para as habitações
populares perpassava sempre pelo médico ou pelo higienista, pois estes eram os que
apresentavam os projetos pró-saneamento da cidade. O Plano de Saneamento de Recife,
criado em 1909, durante a Prefeitura de Moraes Rego, foi o que podemos chamar de
uma espécie de marco, pois foi utilizado e convertido num planejamento urbano, com
normas arquitetônicas, projetos de loteamento, significando um olhar mais atento para a
urbanização (Melo,1982:227), como foi o caso de seu contemporâneo Pereira Passos, no
Rio. Mais do que uma política de melhoramento, Recife, nesta época, recebeu uma
reforma urbana: ruas, porto, tudo passava por uma renovação para ganhar ares de uma
capital financeira. Outra investida como essa só ganharia espaço de 1922 a 1926, na
gestão de Sérgio Loreto (ibidem: 230-231).
Então, se falamos em reformas urbanas, identificamos que as habitações
populares acabam por se colocar como alvo nestas questões. Já em 1908, encontramos
uma cooperativa de pessoas de baixa renda, a chamada Cooperativa Predial dos
Proletários (ibidem:239).
As vilas operárias, surgidas no século XVIII na Europa, se instauraram no Brasil
um século depois. Sua importância foi fundamental para o controle do empresário sobre
seus empregados, já que além de morarem perto da fábrica, suas vidas eram totalmente
estruturadas por ela. Deste modo, quando ela aparece, mostra um total incentivo e
investimento dos proprietários das fábricas, pois o investimento público nas vilas
operárias só se dá com as políticas das Interventorias, como é o caso de Recife com
Agamenon Magalhães. Neste sentido, observamos que,
97
“A Villa Operária de Camaragibe configurou efetivamente um paradigma-
limite, ou tipo-ideal, no sentido weberiano, da especificidade que a relação
Estado-capital-força de trabalho assumiu nas primeiras décadas deste século
[XX], na formação social brasileira”. (ibidem:244)
Nos primeiros anos da década de 1920 foi, também, criada a Diretoria de Saúde
e Assistência, onde havia os Refeitórios Populares. A tal Diretoria também pertenciam o
Escritório de Collocações e a Fundação A Casa Operária. Mesmo assim, com a eficácia
alcançada, ainda não tinha sido a grande jogada do Estado em prol da classe
trabalhadora.
A partir dos anos de 1930, o discurso governamental atinge o setor urbano, mais
exatamente, então, as habitações populares. A história da intervenção urbana em Recife
desta época já ganha passos largos com seu primeiro Interventor, Carlos Lima
Cavalcanti (1930-1934). Aqui já aparece o primeiro esforço de um controle urbano.
Com ele podemos listar duas grandes atitudes: os Planos de Remodelação da Cidade,
em 1932 e 1934, e a intervenção nas habitações da classe trabalhadora, quando admitiu
a redução de aluguéis, culminando numa mobilização contra seu governo por parte dos
proprietários de imóveis (Melo,1982:260).
A história da habitação popular vem sendo, então, desde muito tempo, contada,
observada e debatida por autores que, num momento demonstram interesse pelo assunto
somente como espectador externo, e noutros vivenciam os problemas nelas existentes.
Tais autores comparam, tiram suas conclusões e divergem do pensamento uns dos
outros, ou no que se refere à própria política local, como ocorre com Gilberto Freyre
que se vê acusado de comunista, de subverter a ordem pernambucana no governo dos
anos de 1930, ou quando é notado, mais de 50 anos depois de ter escrito sua obra
Sobrados e Mocambos. Para ilustrar o primeiro momento, observemos a passagem
abaixo.
Em janeiro de 1938, Agamenon Magalhães, interventor de Pernambuco, em
carta ao Ministro Gustavo Capanema, mostra que Gilberto Freyre não poderia ficar no
cargo de Delegado do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, pois,
98
“Embora seja pessoa de reconhecida cultura e capacidade, o senhor Freire teve
aqui papel de relevo na agitação preparatória do movimento comunista de
novembro de 1935, estando por isso prontuariado na Delegacia de Ordem
Política e Social. Ainda há pouco, segundo soube, o professor Freire, preferiu
demitir-se da Universidade do Distrito Federal a fazer uma prelação anti-
comunista ordenada pelo Reitor”.
25
Ainda sobre Freyre, homem que ao mesmo tempo escreve sobre os mocambos e
atua a seu favor, Luiz Antonio de Castro Santos, em O Pensamento Social no Brasil:
Pequenos Estudos, analisa sua obra Sobrados e Mocambos. Para Santos, Freyre exclui,
ao analisar tal habitação popular, a vida social dos mocambos. Segundo Santos, o
conhecimento que se tem da população livre e pobre no que se refere às zonas urbanas
do Nordeste é por demais escassa. O autor, então, pergunta: “Qual era a diferenciação
dessas famílias, vivendo nos mocambos, em termos de hierarquia ou estratificação
internas? Ou em termos de acesso aos favores senhoriais? Ou em termos de divisão de
trabalho?” (Santos, 2003:12).
A crítica feita por Santos é que Freyre não se acerca de uma sociologia da
senzala ou do mocambo, o que para o autor resulta num tipo de sociologia da família e
não da sociedade patriarcal. Para isso, não se deveria dar tanta atenção às famílias das
casas grandes e dos sobrados, e deixar de lado as das senzalas e dos mocambos. Castro
Santos ainda indica que o trabalho de Freyre, no que tange a sua idéia de história, se
molda em termos praticamente culturais, deixando de lado sua preocupação com o
social. Este lado só se manifesta em suas obras quando escreve sobre os grandes
proprietários.
“De modo a dar conta da existência de um regime racial mais fluido, Freyre fez
uso de uma interpretação essencialmente cultural, com base na qual o caráter
do colonizador – transformado em aristocrata rural no Brasil – teria
representado um papel fundamental na moldagem do padrão de relações raciais
em todo o território ocupado pela Coroa e, particularmente, no Nordeste
açucareiro”. (ibidem:29).
25
Carta de Agamenon Magalhães a Gustavo Capanema, em 14 de janeiro de 1938. Acervo CPDOC/FGV.
Arquivo Agamenon Magalhães.
99
Outro autor importante para se discutir as observações sobre a sociedade
pernambucana e os mocambos é José Tavares Correia de Lira. O autor, em O
Urbanismo e o seu Outro: Raça, Cultura e Cidade no Brasil (1920-1945), explora as
relações raciais, culturais e étnicas nas cidades, partindo da hipótese de que a partir dos
anos 1920 o “discurso urbanístico encontra na eugenia e no regionalismo bases
confiáveis ao realinhamento nacionalista de sua intervenção técnica no espaço e na
cultura de cidades complexamente divididas” (Lira, 1999:47).
Segundo o autor, entre as décadas de 1920 e 1940, a formação racial do povo, a
influência do clima, o etnocentrismo, entre outras idéias sobre a diversidade regional
brasileira, vinham à tona na afirmação do saber urbanístico no Brasil. Neste sentido,
Lira trata por intermédio do ponto de vista urbanístico a discussão de raça e cultura no
Brasil. Isto é, as ações urbanísticas, que mexem com saneamento e transformação física
das cidades, estão intimamente ligadas à intenção de aproximar as falas regionais para
uma ação nacional.
Esta era uma época em que a valorização da raça era algo muito importante e o
interesse do Estado e de “setores da burguesia ilustrada” em expedições sanitárias,
pesquisas com a população e campanhas educacionais, foram muito desenvolvidas. Na
visão dos eugenistas, todo o Brasil deveria se proteger das “raças nocivas”. Neste
mesmo momento, a eugenia surge “como força capaz de transformar a nação em um
corpo homogêneo e saudável” (Lira, 1999:49). Era preciso medicalizar a cidade.
Lira lembra, ainda, que grandes intelectuais contribuíram para essas idéias, de
maneiras diferentes. Oliveira Vianna é o principal idealizador do ruralismo contra os
“riscos eugênicos” das cidades; José Mariano Filho, com sua política antiurbana incidirá
contra as habitações populares, onde se encontram negros e mestiços nos cortiços e
casas de pensão; já Gilberto Freyre, preocupado com a contribuição africana à cultura
brasileira, promove uma crítica à urbanização uniforme, que descaracteriza as cidades.
É deste modo que o autor analisa em seu trabalho, estas e outras vertentes sobre a
imagem do Brasil que, segundo ele, tanto influenciaram engenheiros, arquitetos e
urbanistas.
100
Sendo assim, o discurso da doença e saneamento foram marcas que contribuíram
para que o urbanismo tivesse uma função modernizadora. As formas de habitação, o
comércio, e alguns transeuntes encarados como “perigosos”, já eram problemas que
apareciam freqüentemente. E todos esses e demais problemas enfrentados por algumas
cidades brasileiras tiveram um processo de modernização voltado para uma parte da
população: a elite econômica e os turistas. O interessante é que se mexiam e se
reformavam as classes populares para que seus problemas não chegassem aos outros
habitantes das cidades. A partir dos anos de 1930, o que era problema de uns, tornava-se
problema de todos, e este quadro deveria ser revertido.
Enfim, tais colocações sobre os autores que se preocupam com a análise dos
mocambos e com a política sanitária da cidade se fazem necessários para melhor
entendermos o que, já no fim dos anos 1930, se colocava como demanda para a capital
pernambucana. No período em questão, definia-se um regulamento para a construção
dos mocambos, delimitando ainda mais suas fronteiras.
Com a chegada do Estado Novo, Recife sofre uma reforma urbana e os
mocambos são condenados, sendo muitos deles destruídos por intermédio de um grupo
liderado pelo interventor pernambucano, Agamenon Magalhães, denominado Liga
Social Contra o Mocambo:
“A partir de 1937, quando Agamenon Magalhães é nomeado o chefe do
Estado de Pernambuco por Getulio Vargas, as orientações se concretizam em
uma política de habitação inédita. Se organiza imediatamente uma “Cruzada
Social Contra o Mocambo”. (Lira, 1998:94)
A Liga foi formada em julho de 1939, representada pelas forças econômicas de
Pernambuco: industriais, comerciantes, banqueiros entre outros, que resolveram unir
forças contra o que os jornais e políticos da época chamavam de “símbolo da
degradação humana”. É interessante notar que em toda a fala contra o mocambo está a
figura do Comunismo assombrando os moradores da cidade. O mocambo seria uma
“célula de descontentamento” que só teria fim com iniciativas avassaladoras como as de
Agamenon Magalhães, de exterminar uma habitação popular que “proliferou-se” em
101
larga medida pela cidade de Recife. A Liga, então, seria uma “reação organizada contra
o mal” e Agamenon Magalhães o homem que encontrou a solução para este grande
problema. Como mostra o trecho de uma crônica, no Natal de 1939, na Coluna “Cousas
da Cidade”: “A luta contra a pobreza e contra o desajustamento social é também uma
maneira intelligente de desbaratar a propaganda communista. O Natal das famílias
operárias é ao mesmo tempo um acto de repressão branca ao extremismo.”
26
Segundo as colocações da época, a luta contra o Comunismo se dava como uma
reação, uma forma de mostrar a solidariedade das classes sociais pernambucanas. Os
auxílios não partiam de um só, mas até mesmo a própria Diretoria de Reeducação e
Assistência Social chegou a oferecer transporte gratuito para os moradores dos
mocambos que quisessem se transferir para a zona rural de Pernambuco. Neste sentido,
vários setores aderiram às campanhas contra os mocambos, tanto empresas, como a
Standart Oil Company of Brasil, a Anglo-Mexican Petroleum Company, bem como
espetáculos beneficentes, como foi o caso da apresentação de um circo na cidade.
Porém, até mesmo as adesões conseguidas tiveram seus críticos a algumas ações
de Agamenon Magalhães. Foi o caso de uma reportagem feita pelo Diário de
Pernambuco, na qual Assis Chateaubriand mostrava um certo desconforto com o caso
de o Governo propor propriedade das casas aos operários. Sua preocupação era com a
privação dos operários que, para pagarem as amortizações da casa, seriam obrigados a
economizar até mesmo em setores tão essenciais quanto a alimentação. Assim dizia
Chateaubriand:
“Vejo, porém, que o interventor em Pernambuco quer transformar operários em
proprietários e é nesse ponto que desejo manifestar de público minha
divergência consigo.
[...]
Que é que adianta ao operário e a sua família serem donos de um imóvel a
custa de penosos sacrifícios para a sua economia e a sua saúde?”
[...]
O ideal da casa própria impõe ao trabalhador que seja desejo adquirill-a, na
imensa maioria dos casos, severas restrições ao seu orçamento sobretudo o da
alimentação.”
26
“O Natal das famílias operárias”, Diário de Pernambuco, 30/11/1939.
102
E assim, durante todo o tempo em que se estabeleceu a luta contra os mocambos
por parte do governo e setores da sociedade, houve manifestações contra e a favor que
repercutiam diretamente nas ações implementadas pela cidade.
Havia um grande medo de que as notícias sobre o país fossem sempre em
virtude da situação de pobreza por que passava. Era necessário dar suporte para que
mudanças ocorressem e a propaganda fosse feita de modo a ressaltar o bom andamento
não só das interventorias, mas do Governo Vargas. Neste sentido, notícias que
despertassem em todos a importância de personagens como Agamenon Magalhães,
fazia aumentar a propaganda do governo. As políticas de habitação, que antes não
interessavam aos administradores durante o estado liberal, fazia crescer a chamada
“indústria do mocambo”.
Como mostra o inquérito sobre os mocambos, “basta dizer que o rendimento
anual do mucambo de aluguel é de 55,66% do seu valor. Um prédio de alvenaria não
passa de 12%”.
27
Com a implementação das associações contra este tipo de habitação
viu-se a preocupação do Estado Novo em dissolver a pobreza e dar melhores condições
à população. Este inquérito também mostra que aos moradores dos mocambos seria
mais interessante pagar menos e morar nos prédios de alvenaria, mas a falta de
incentivos e propostas do governo anterior a Vargas retardariam tal resolução.
Neste sentido, entendia-se que o governo anterior ao de Vargas primava por
explorar a pobreza, pois mesmo que os moradores dos mocambos muitas vezes tivessem
possibilidade de alugar outro tipo de habitação, como as de alvenaria, acabavam por
incentivar tais construções. Mas, como já foi dito, todas as observações eram pautadas
pela falta de preocupação dos governos anteriores com a questão da mocambaria. O que
salientava a falta de olhar não só para a questão das construções em si, mas sobre a idéia
da exploração da pobreza pela administração pública, somada ao “relaxamento” dos
moradores.
Porém, mais uma observação deve ser feita. Mais do que na situação do
desmonte das favelas no Rio de Janeiro, em Recife a destruição dos mocambos contava
27
“O inquérito sobre os mucambos do Recife”, Diário de Pernambuco, 23/6/1939.
103
com a ação religiosa no afã de um compromisso em auxiliar o outro. Principalmente a
tradição católica era chamada para conversar toda vez que se falava em dar as mãos ao
poder público no combate contra os mocambos. “A campanha contra os mocambos era
também uma campanha cristã”. Assim era publicado na reportagem “Problemas Sociais
do Recife”, de 13 de julho de 1939, no Diário de Pernambuco: “A grande função do
Estado é combater a miséria, porque a miséria é a causa de todas as revoluções. Si o
Estado Novo é christão nos seus princípios [...] sua missão é realizar a essência do
christianismo nas suas relações terrenas”.
Segundo Dulce Pandolfi (1999), um pouco antes da instalação do Estado Novo,
nasceram, por iniciativa de um grupo de católicos, os Centros Educativos Operários,
que orientavam os trabalhadores contra as propagandas comunistas. Com a concepção
da integração dos setores sociais populares, a interventoria pernambucana resolve se
aproximar destes Centros. Era uma espécie de ‘profilaxia da sociedade’.
Assim, vemos que o sentido religioso mexe com o valor moral do indivíduo e de
sua contribuição para a melhoria da sociedade em que vive, bem como com seu próprio
bem-estar, já que se nutre de ações em prol do outro, mas que acaba sendo refletido para
seu próprio bem. Ajudar o próximo é ajudar a Deus e, portanto, garantir suas boas
ações. Não é à toa, então, que o governo usava do sentimento cristão como apelo.
Com relação às formas de apelo, desejamos revelar, também, quão importante
era a imprensa para a legitimação do Estado Novo. Para isso, a imprensa deveria deixar
de ter seu caráter privado para estar mais a serviço do público. Além disso, a “liberdade
de expressão passa a ser vista como prejudicial aos interesses do próprio Estado”
(Pandolfi, 1999:51).
Em Pernambuco, a imprensa aparecia como mediadora entre o Estado e a
população. O próprio interventor tinha um programa na Rádio Clube de Pernambuco,
além de seu jornal A Folha da Manhã, no qual tinha uma coluna em que falava sobre
política, cultura e administração, orientando e doutrinando seus leitores, além de fazer
com que as notícias locais fossem prioridade.
104
Assim, a propaganda das benfeitorias propostas por Agamenon e seus
representantes tomavam conta da cena. Lembra, nas páginas dos jornais, os momentos
de tristeza pelo estado econômico-social dos sertanejos moradores dos mocambos. A
fim de que suas colocações sobre os mocambos da cidade, comparados aos do sertão,
não fossem mal interpretadas, Agamenon Magalhães, embora pensasse nesta construção
como sinônimo de pobreza, dizia que os entendia como um fenômeno de resistência.
N’ A Folha de Pernambuco de 22 de março de 1939, sob o título “Pernambuco
tem um grande Governo”, mostra o quanto a propaganda em prol da extinção dos
mocambos do Recife era feita para que o leitor observasse que toda a população
recifense, inclusive os desalojados, gostariam da intervenção governamental em tais
habitações. Vejamos nesta passagem:
“Os moradores da Ilha do Leite receberam com alegria a notícia que o
gazeteiro trouxe da rua. A princípio não acreditaram. Coisa de gazeteiro que
não merece fé. Mas, o portuguez da venda havia comprado o jornal e
informado também os fregueses. A história era verdadeira. Os mocambos iam
se acabar. Os mocambos e a lama. A Ilha iria ficar uma belleza, toda aterrada,
com habitações hygienicas, casas para gente morar. A novidade espalhou-se
logo, invadiu todos os mocambos, foi assumpto de muitos dias. Os homens
commentaram no trabalho, as mulheres em casa não falavam noutra coisa. Até
as crianças sujas e descalças, jogando foot-ball na beira da maré, de quando em
vez estavam tratando do assumpto. Agora tudo ia ser bom. Mocambo não é
casa pra ninguém morar. O governo ia comprar aquella sujeira toda e botar
abaixo tudo”.
O que gostaria de observar é que a questão da relação entre o governo e a
sociedade com a pobreza se fazia em pólos completamente opostos. Ou seja, enquanto
para a Interventoria todos os passos deveriam ainda ser dados para extirpar o mal da
pobreza, a população do mocambo já não a enxergava mais, pelo fato de se ter um
governo que com eles se preocupassem. Isso fica claro na passagem a seguir: “Estamos
grandemente satisfeitos com o governo do interventor Agamenon Magalhães. A pobreza
tem recebido os maiores benefícios. A vida está melhorando. Já não há tanta falta de
105
trabalho e se acabou a miséria de outrora”.
28
A preocupação com o bem público existia,
mas era nítida a relação de confiança que a classe popular depositava nas autoridades.
A maior propaganda da administração pernambucana era a paz e a harmonia
social. Para isso, toda a sociedade era mobilizada a fim de atender aos interesses da
Interventoria, embora as palavras de Agamenon fossem: “[...] só tive uma preocupação,
do bem público [...]” (Pandolfi, 1999:55)
29
. E em sua luta pelo “bem público”, como
que corroborando o espírito de seu tempo, Agamenon conseguia apoio de diversos
setores da sociedade. Ia dos operários aos industriais.
Neste sentido, a Interventoria pernambucana estreitava cada vez mais os laços
entre o governo e a sociedade, com o intuito de conseguir a paz social. Ainda assim,
Agamenon toma uma série de medidas para o combate ao Comunismo e tinha como
principais aliados a Secretaria de Segurança e o Departamento de Imprensa e
Propaganda, pois “censurando, perseguindo e prendendo, a interventoria propagava o
fim da luta de classes no Estado” (Pandolfi, 1999:57).
Várias decisões foram tomadas: campanhas cívicas; comissões de informação;
propagandas sanitárias; fundação de cooperativas, entre outras. A meta era transformar
Recife num exemplo de moral e civismo, assim como era também observada a
necessidade de disseminar o modelo para outros estados do Nordeste.
É, então, com base em garantir a ordem e trazer melhorias para a sociedade
recifense que a Interventoria pernambucana vê na habitação popular um setor de
prioridade, no qual os mocambos deveriam ser os primeiros a serem tratados. Este plano
assistencial “deveria visar não só o indivíduo, mas o grupo social em que o mesmo está
inserido, [já que] a Diretoria de Assistência e Reeducação Social preocupava-se
prioritariamente com a família operária” (ibidem:59).
Não só a demolição de mocambos, mas a construção de um abrigo para os
mendigos da cidade era meta do Interventor:
28
Folha da Manhã, 22/3/1939.
29
Folha da Manhã, (RE) 04/12/1938.
106
“Moram nos mocambos do Recife dois mil mendigos. Velhos, aleijados, cegos,
doentes crônicos, que não podem trabalhar e pagam muitos deles com esmolas
o aluguel do mocambo. No plano de nossa cruzada social, tivemos, por isto, de
incluir a construção de um abrigo para amparar esses pobres desvalidos,
retirando-os dos mangues e das ruas para a sombra de uma instituição
protetora”
30
.
“Essa obra social é uma das maiores do Brasil. É fruto de uma cruzada
redentora. Da cruzada social contra o mocambo. Foram os mendigos que
encontramos nos mocambos, pagando com o dinheiro das esmolas o aluguel de
trinta mil réis, foi essa miséria, foi esse sofrimento, foram as dores do próximo,
enfim, que nos levaram a realizar esforço tão ingente e tão nobre”
31
.
A sociedade pernambucana muito se alterou devido à migração e, com isso, o
adensamento da população existente. O fluxo migratório de outras cidades nordestinas
para o Recife devido à seca, à guerra, ou pela produtividade da região, fez com que o
crescimento populacional acarretasse uma desordem na questão habitacional e
produzisse uma população muito pobre. Segundo a autora, a partir de 1920, a cada duas
casas construídas, uma era mocambo. Para que esta situação tivesse fim, Agamenon
criou a Cruzada Social Contra o Mocambo, que em 1939, recebe o nome de Liga
Social Contra o Mocambo, “que define como objetivo principal a construção de casas
para a população menos favorecida do Estado” (Pandolfi, 1999:61).
Tal ação gerou, mais tarde, como veremos no capítulo seguinte, a intenção de se
fazer o mesmo com as favelas, sob a direção de Victor Tavares de Moura, como mostra
o trecho da entrevista com Maria Coeli Moura
32
:
“A campanha do mocambo, o trabalho social do tio Agamenon interessou
muito a papai porque era um trabalho muito bonito, mas era diferente porque
mesmo a condição social de Pernambuco era muito diferente da condição
social do Rio de Janeiro. Começa que as casas lá eram dentro de mangue.
[...]
30
“Abrigo Cristo Redentor”, artigo publicado na Folha da Manhã, em 17 de maio de 1941, selecionado
por Nilo Pereira para o livro Idéias e Lutas (1985:17).
31
“O Abrigos dos Mendigos”, artigo publicado na Folha da Manhã, em 8 de junho de 1942, selecionado
por Nilo Pereira, para o livro Idéias e Lutas (1985:18).
32
Estas colocações são baseadas nas informações contidas no currículo do Dr. Victor Tavares de Moura,
situado no Acervo DAD/COC/FIOCRUZ – Fundo Victor Tavares de Moura e na entrevista feita com
Maria Coeli Moura, em 22 de janeiro de 2001, em função do Projeto “Memória da Favela Carioca:
médicos, pobreza e reforma social” (URBANDATA-BRASIL, COC/FIOCRUZ e IUPERJ, financiado
pela FAPERJ), entrevistada por Lídia Medeiros, Jacqueline Lima e Monique Batista. (Em anexo).
107
As casas dentro do manguezal, aquela coisa toda. Então, tio Agamenon
aterrava e lá em Pernambuco não há morro, então nós não temos o problema da
favela no morro. Então tinha aquelas partes pobres. E tio Agamenon fez o
seguinte: ele transformava em vilas, mas ele fez as vilas por profissões – vila
das costureiras, vila das lavadeiras, entendeu? Urbanizou assim, de acordo com
a profissão. E foi esse trabalho do mocambo, dessas casas de palafitas, dessas
coisas que tinha. [...] Só que a parte urbanística da cidade, as condições sociais
de Pernambuco, tudo era diferente das condições do Rio de Janeiro.”
Deste modo, em setembro de 1939 é formada a Liga Social contra o Mocambo.
Grandes forças econômicas aliaram-se ao Interventor Agamenon Magalhães e se
reuniram no Palácio do Governo com a intenção de eliminar as moradias que, segundo
eles, eram um mal não só para Pernambuco, mas para o Brasil.
“Lutar contra o mucambo é lutar contra o Comunismo, porque todo mucambo
é uma célula de descontentamento. Por isso, a luta contra o mucambo precisa
do apoio de quantos sentem a necessidade de defender o organismo social das
investidas dos inimigos do regimem.
Nessa campanha em boa hora iniciada em Pernambuco, ninguém pode ser
indifferente, porque está em jogo o destino de nossa terra e das instituições.”
33
Agamenon Magalhães, ao falar sobre o mocambo, o considera como uma
construção que pertence ao interior. Neste sentido, ao nomear o Prefeito de Recife,
chama para o cargo um agricultor, Novais Filho. O interventor revela em suas palavras
que:
“Já é tempo da questão dos mocambos sair da literatura e dos romances para o
terreno das soluções práticas. Não basta dizer e escrever todos os dias que o
Recife tem 45 mil mocambos. Faz-se mister atacar o problema, sem arruído
nem foguetes”
34
.
O grande objetivo de Agamenon Magalhães ao erradicar os mocambos estava na
volta das famílias para o meio rural; muitas vilas foram construídas nesta zona da
cidade. O pretexto era sempre que nessas áreas a população teria uma condição de vida
33
“Liga Social contra o Mocambo”. Diário de Pernambuco, 9/9/1939.
34
“A Luta contra os Mocambos”, Artigo publicado na Folha da Manhã, em 31 de agosto de 1938,
selecionado por Nilo Pereira, para o livro Idéias e Lutas (1985:195-197).
108
melhor, mais saudável. Isto é percebido porque a questão da moradia popular no Recife,
como em todo País vinha do problema dos fluxos migratórios (Perea, 1977:96). O
inchaço das cidades era decorrente da busca por uma vida melhor na sonhada cidade
grande, mas que agora, com políticas como essa de Agamenon Magalhães, destruía tais
expectativas.
Agamenon contou, ainda, com a incondicional aprovação do Presidente Getulio
Vargas, como mostra o telegrama abaixo:
“[...] tenho satisfação louvar útil e patriótica campanha vai iniciar liga social
contra os mocambos. Iniciativa pode contar todo apoio moral governo nacional
e da mesma forma amparo material lhe for possível conceder... Felicito-o por
mais esse empreendimento sua operosa e inteligente administração vem
demonstrando decidido empenho elevar nível forças morais e econômicas
Pernambuco, dentro programa renovação nacional Estado Novo”.
35
Tal telegrama teve, entre os pernambucanos, uma grande repercussão. Primeiro,
por ser do próprio Presidente; segundo, por se sentirem importantes com o interesse do
Governo Federal por um assunto que consideravam tão regional, muito embora
soubessem que a raiz do problema, como a questão operária, a insalubridade e a falta de
condições habitacionais para a camada mais pobre da sociedade fosse algo de caráter
nacional.
O Decreto 182, de 17 de setembro de 1939, dizia ser o Interventor Federal do
Estado o responsável, considerando a necessidade de estabelecer um plano nacional,
pela extinção dos mocambos do Recife. Para isso, deveria propor uma comissão
censitária para a elaboração de estudos prévios; estudar a forma de melhores habitações
que pudessem substituí-los e abrir créditos tanto pela Prefeitura de Recife, como pela
Diretoria de Saneamento do Estado
36
.
35
Telegrama de Getulio Vargas a Agamenon Magalhães, em 9/9/1939. Acervo CPDOC/FGV. Arquivo
Agamenon Magalhães.
36
Decreto 182, de 17/09/1939. Acervo CPDOC/FGV. Arquivo Agamenon Magalhães.
109
Neste momento não só a troca de casa era importante, mas também a reeducação
e integração social, com assistências e atividades que os recolocassem na sociedade. A
extinção dos mocambos foi grande e as propagandas contra eles também. As novas
casas que iriam substituí-los deveriam ser unidades que dividissem as pessoas por sua
categoria profissional, além de deixarem os trabalhadores próximos aos seus locais de
trabalho. Havia a preocupação com o melhoramento das condições higiênica e moral, e
fazer justiça social. Em contrapartida, o Estado teria alguns resultados: o
desaparecimento dos ideais comunistas, um novo mercado consumidor e a volta de
algumas famílias ao campo.
Idealizada por Agamenon Magalhães e organizada por industriais da cidade,
nascia a Empresa Construtora de Casas Populares, para que, junto da Interventoria,
vendessem casas a preços baixos e chamasse para si seus principais “inimigos”, os
proprietários dos mocambos, que se revoltaram com idéia de demoli-los. Na larga
empreitada contra os mocambos tal Empresa atuou paralelamente à Liga Social. Toda a
população estava movida pelo problema social do mocambo, até mesmo seus próprios
moradores, pois o discurso moralizador de Magalhães fazia com que a vergonha de se
habitar um deles crescesse e se tornasse um fator psicológico a favor da cruzada.
No dia 9 de fevereiro de 1939, Agamenon Magalhães assinou o ato que
regulamentaria a fundação das casas operárias. O ato continha, entre outras coisas, o
seguinte:
“Considerando que o regulamento para a aquisição de casas da fundação. “A
casa operária, aprovado pelo decreto nº 1.574 de 23 de julho de 1938,
determina no segundo parágrafo do artigo terceiro que feito o pagamento da
última prestação de compra, o adquirente fica obrigado a instituir o imóvel
comprado em bem de família nos termos da legislação civil.”
37
No ano de 1940, em parceria com a Prefeitura de Recife, foi realizado em
Pernambuco um censo geral, que contava com os resultados do Censo dos Mocambos,
com base no decreto 182, de 17 de setembro de 1938. Deste episódio criou-se uma
37
“Aquisição de Casas da Fundação A Casa Operária”, Diário de Pernambuco, 10/2/1939.
110
comissão constituída pelos Drs. Paulo Pimentel, Mário Gouveia e Ivo Familiar, sendo
este o presidente. Tal censo dividia-se em duas partes, tal como aponta o jornal Folha
da Manhã, de 12 de fevereiro de 1939. A primeira, referente à habitação propriamente
dita, e a segunda, aos terrenos. Deste modo, esperava-se que o resultado deste inquérito,
como era chamado, fosse de grande eficiência para o controle futuro de tais habitações.
As observações para o Censo tinham como alvo também os proprietários dos
terrenos, pois, segundo consta nas documentações, muitos se negavam a dar
informações precisas. Isto se comparado à primeira fase das investigações que foram
feitas com os moradores:
“Vale ressaltar, mais uma vez a sympatia com que foram recebidas as turmas
de recenseadores no primeiro inquérito realizado sobre os mucambos
facilitando os seus moradores todos os pontos desejados pela commissão e
ajudando-a mesmo nas pesquisas e então effetuadas.
O resultado foi que num prazo de tempo muito menor do que o previsto,
conseguiu a comissão fazer o censo dos mucambos.
A mesma facilidade, entretanto, não tem sido encontrada agora, embora as
pessoas, oras procuradas, sejam, de nível social mais elevado do que as de
proprietário de terrenos [...]”.
38
De acordo com o documento produzido por Paulo Pimentel e Mário Gouveia,
que mostrava o recenseamento dos mocambos, assim eram estas habitações definidas
39
:
38
Documento pertencente ao Acervo CPDOC/FGV. Arquivo Agamenon Magalhães
39
Acervo CPDOC/FGV. Arquivo Agamenon Magalhães.
111
Tabela 4
Definição de Tipos de Mocambos
Tipo Cobertura Piso
Palha ou capim Terra
Palha ou capim Tijolo
3º* Palha ou capim Cimento
Zinco ou lata Terra
Zinco ou lata Tijolo
6º* Zinco ou lata Cimento
7º Telha Terra
8º Diversos Terra
9º Diversos Tijolo
10º* Diversos Cimento
*Tipos mais raros, segundo o censo.
No Inquérito instaurado pela Comissão Censitária produziram-se dois tipos de
questionários: um, com itens referentes aos mocambos, ao chefe da família e aos
moradores; outro, sobre os terrenos. Foram implantadas por 10 turmas que se dividiram
nas zonas e subzonas da cidade para que a equipe tivesse maior sucesso, além de haver
um fiscal responsável pelas turmas de recenseadores.
Afora isso, foram, ainda, objeto da pesquisa do censo as seguintes
características: classificação do mocambo; quem seria o chefe da família; os habitantes,
os proprietários dos mocambos e dos terrenos, para que deste modo se desenvolvesse
uma classificação quanto à habitação e outra quanto os habitantes
40
.
É então que a política de erradicação toma cada vez mais fôlego, pois, para
Agamenon “a justiça social é o signo do Estado Novo. Onde houver uma exploração ou
um sofrimento, aí a intervenção do Estado se fará sentir”
41
. Um mocambo cujo valor era
de 424$300, atinge 24$800 e 337$600 de renda por mês e por ano, respectivamente. De
40
“O Recenseamento dos Mocambos”, acervo CPDOC/FGV, Arquivo Agamenon Magalhães.
41
“Justiça Social”, artigo publicado na Folha da Manhã, em 10 de junho de 1938, selecionado por Nilo
Pereira, para o livro Idéias e Lutas (1985:23).
112
45.581 mocambos, 3.963 eram próprios e não pagavam pelo chão. Os demais eram
alugados ou os proprietários pagavam pelo chão
42
, o que mostra que a grande maioria
era alugada.
Neste sentido, o plano perpassava pelas seguintes ações: a) fazer casas
(compradas ou alugadas); b) casas para lavadeiras e domésticas (através de uma
fundação); c) não se construir e, sim, demolir os mocambos; d) taxar todos os terrenos
que tenham mocambos; e) aterrar os alagados
43
. Esta era uma outra preocupação do
Interventor. Segundo ele, muito se dizia que a população mocambeira vivia neste tipo
de habitação porque procuravam caranguejos. Agamenon dizia que esta afirmativa não
era verdadeira, pois se as pessoas habitam os mocambos, isto se dá por questão de
necessidade. Para tanto, encerra o ciclo do caranguejo, aterrando os alagados e
pântanos, para comprovar sua afirmação, a partir do ano de 1939.
44
Como alternativa, portanto, apareciam as Vilas Operárias, que tiveram suas
pedras fundamentais lançadas em agosto de 1939, sendo umas das primeiras as Vilas
das Lavadeiras, a dos Contínuos e a dos Serventes do Estado. Tal campanha a favor de
casas salubres e dignas seguia um ritmo acelerado na tentativa de se conseguir
benefícios para as obras.
Ao mencionar a construção da Vila das Lavadeiras, Agamenon revela que
19,47% dos chefes de família estão divididos entre essas profissionais, as engomadeiras
e as domésticas, e todas vivem nos mocambos. Para isso ele escreveria:
“Só vejo uma solução. É o governo construir 400 a 500 casas de três até quatro
contos para as lavadeiras, em terrenos próximos ao rio Capibaribe, na Várzea,
Caxangá ou no Poço da Panela e para as engomadeiras e domésticas, em
terrenos mais próximos do Centro da Cidade. Esses grupos de casas
42
“A Renda dos Mocambos”, artigo publicado na Folha da Manhã, em 23 de junho de 1939, selecionado
por Nilo Pereira, para o livro Idéias e Lutas (1985:198).
43
“Como vamos acabar com os Mocambos”, artigo publicado na Folha da Manhã, em 20 de julho de
1939, selecionado por Nilo Pereira, para o livro Idéias e Lutas (1985:202).
44
“O Ciclo do Caranguejo”, artigo publicado na Folha da Manhã, em 7 de julho de 1939, selecionado por
Nilo Pereira, para o livro Idéias e Lutas (1985:199-200).
113
constituiriam o patrimônio de uma fundação, que irá com o aluguel delas
construindo novas habitações”
45
.
Só a Liga construiu 1.397 habitações, fora as empresas construtoras e os
Institutos. As vilas construídas se dividiam em: Vila dos Servidores do Estado
(contínuos e serventes do estado); Vila do Cordeiro (artesãos e operários); Vila dos
Plantadores de Cana (cozinheiras); Vila dos Transviários (condutores e motorneiros);
Vila das Lavadeiras; Vila dos Estivadores, Vila dos Remédios; Vila dos Bancários; Vila
do Ipiranga; Vila Leão XIII (costureiras); Vila Popular do Pina; Vila Agamenon
Magalhães; Vila Getulio Vargas, entre outras.
Destaque vai também para um tipo especial de vila, as chamadas vilas
particulares, como a do Velho. No dia da inauguração da Vila dos Transviários, estava
Agamenon Magalhães sendo abordado por um senhor de idade que pediu a ele para que
inaugurasse sua vila. Era uma pequena localidade que havia passado por reformas e se
constituído como uma das vilas patrocinadas, mas que havia sido feita pelos próprios
moradores. O Interventor não hesitou e foi até o local fazer a inauguração (Magalhães,
1985:212).
Com uma política muito condicionada à Igreja Católica, não podemos deixar de
mencionar que as vilas levavam nomes de profissionais, na maioria das vezes, porque
Agamenon baseava-se em Leão XIII, que clamou, na Rerum Novarum, de 1891, que o
mundo deveria reconhecer os direitos do trabalhador “como braço, como ser moral,
como pessoa humana”, sendo que “seja do Estado a providência dos trabalhadores”
(ibidem:222).
Um dos bairros que se encontrava em situação precária era o Cabanga. Em “O
Problema da Casa Popular”, na seção “Cousas da Cidade”, do Diário de Pernambuco
do dia 16 de junho de 1939, se escrevia sobre o bairro:
45
“Lavadeiras”. Artigo publicado na Folha da Manhã, em 20 de junho de 1939, selecionado por Nilo
Pereira, para o livro Idéias e Lutas, op.cit., 1985, p.199.
114
“A Cabanga era o bairro sórdido da cidade, a propaganda viva contra
Pernambuco e contra o Brasil. Os forasteiros que passavam pelo Recife, em
busca de algo novo, paravam junto à mucambaria sórdida da Cabanga e batiam
chapas. Meses depois, appareciam as revistas de Paris, Londres e Nova York,
com flagrantes de habitações de nativos de Pernambuco.” (Diário de
Pernambuco, 1939).
Uma semana depois desta reportagem, foi inaugurada, então, a nova Vila de
Cabanga. A mesma seção do jornal então publicava:
“A inauguração hoje da Villa de Cabanga tem uma grande significação na vida
da cidade, porque representa uma vitória decisiva sobre um dos aglomerados
de mucambos mais sórdidos da capital pernambucana”.
Como a Cabanga é o ponto de passagem obrigatório para a Boa Viagem, não
poderia haver propaganda mais degradante para nós.”
46
Todavia, alguns opositores apareceram na época, falando do caráter desumano e
explorador da Liga. Intelectuais como Gilberto Freyre consideraram uma “obra
demagógica com objetivo de enganar aos turistas” (Pandolfi, 1999:65). Porém, no ano
de 1945 a Liga torna-se uma autarquia com o nome de Serviço Social Contra o
Mocambo, que vai enfraquecendo gradualmente sem o caráter repressivo do Estado
Novo e mais voltado ao assistencialismo. Resultado: os mocambos voltam a integrar a
paisagem pernambucana, e em 1960 já eram 100.000.
Havia, deste modo, uma coerência do discurso feito pelo interventor, pois já que
o mocambo era “símbolo da marginalidade, da desagregação social”, a luta para
extingui-lo, faz parte do projeto de paz e harmonia social. “Daí a visão de que, extirpado
o mal – o mocambo –, a população pobre transformaria o seu padrão de vida, o seu
nível de consumo” (ibidem:66) E, embora se soubesse que em outras tentativas de
extinção dos mocambos houve resistências, no governo de Agamenon Magalhães não se
teve notícias disso. Como sua demolição fazia parte tamm do projeto de
embelezamento urbano, começou-se a fazê-la nas áreas centrais e mais valorizadas. A
população contribuía, porque via nesta destruição/contrução uma nova perspectiva de
vida.
46
“A Villa de Cabanga”, Diário de Pernambuco, 24/6/1939.
115
III. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É importante perceber como o trabalhador tinha um papel a desempenhar na
esfera nacional. As relações de trabalho/riqueza e trabalho/cidadania eram claras neste
momento. Como vimos até aqui, com o surgimento da República a pobreza passa a ser
uma ameaça. Neste momento, ao querer se construir uma nação, logo há uma
preocupação com todas as esferas da sociedade. Era necessário, então, a implementação
de políticas de educação, saúde e trabalho, para dar conta deste novo perfil. Como bem
mostraram Gomes (1999; 2005); Bomeny (1999) e Schwartzman, Bomeny e Costa
(2000), deste modo os anos de 1930 não se configuraram diferentes, pois já havia “toda
uma estratégia político-ideológica de combate à ‘pobreza’, que estaria centrada
justamente na promoção do valor do trabalho” (Gomes, 1999:55). Neste momento, ser
rico não era um valor somente individual, mas de construção nacional.
O Governo Vargas não só lançou idéias sobre a política trabalhista, como
incorporou algumas da própria classe trabalhadora como se fossem suas. Isto dava, por
um lado, um controle, mas, por ouro, um sentido de reciprocidade entre o poder público
e a população, inclusive a menos favorecida. Se, como mostra Gomes (1999), 1937 foi o
início de uma série de amparos ao trabalhador
47
, em que progresso e civilização
deveriam vir do trabalho, este levaria à justiça social e seria um aglutinador da nação.
O trabalhador era assistido pelo Estado; deste modo, corpo e mente precisavam
estar bem. É aí que entra a figura do médico social que auxilia física, emocional e
sociologicamente o trabalhador. Este deveria ter garantidas, ao menos, suas
necessidades básicas de alimentação, habitação e educação. Ao trabalhador deveria se
chegar por sua família e se garantir a educação. As condições de habitabilidade,
alimentação e saúde deveriam ser garantidas às famílias e, por sua vez o acesso à
educação seria a base de um trabalhador disciplinado.
É neste espaço que aparece a figura de Victor Tavares de Moura, que
implementa, no Rio de Janeiro dos anos 1940, a maior investida sócio-administrativa
47
É importante lembrar que era necessária uma intervenção não só nos trabalhos urbanos, bem como nos
rurais.
116
nas favelas. Inspirado no modelo europeu de higiene, saneamento e civilidade do século
XIX, e movido pela experiência anterior de Agamenon Magalhães em Recife, o médico
Victor Tavares de Moura se coloca à frente de uma articulação entre governo e
sociedade a fim de elaborar uma saída para ambos os lados, no que tange à política
urbana. É o que veremos a partir de então.
117
CAPÍTULO III:
Política e Assistencialismo: a experiência
de Victor Tavares de Moura
“Até 1930, a favela existe de facto, mas não de
jure. Está, portanto, presente no tecido urbano,
mas ausente das estatísticas e dos mapas da
cidade; não é individualizada pelos
recenseamentos. É considerada como uma
solução habitacional provisória e ilegal, razão
pela qual não faz sentido descrevê-la, estudá-la,
mensurá-la. Para os poderes públicos as favelas
simplesmente não existiam”.
Maurício de Abreu
I. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este capítulo encerra a Tese, embora tenha sido citado e articulado pelos
anteriores. Isto ocorre porque é o capítulo que trata da trajetória do médico Victor
Tavares de Moura, cuja vida e obra muito contribuiu para medicina social fluminense.
A análise de sua documentação mostra como se deram a experiência na demolição das
favelas do Rio de Janeiro nos anos de 1940 e a criação dos Parques Proletários
Provisórios. A proximidade com as políticas implementadas na Europa durante o fim do
século XIX e início do XX, bem como a experiência em Recife dois anos antes da ação
nas favelas, também direcionam a importância de Moura no cenário carioca.
O cenário de contradições e proximidades entre as cidades do Rio de Janeiro e
de Recife colocava-se, então, desde o século XIX. No Rio de Janeiro, capital da
República, enquanto saía da escravidão - um problema que já a marcava há anos - a
cidade tentava se mostrar para as outras capitais que era bela, higiênica e “civilizada”. O
ímpeto de resolver tais problemas era, como aponta Maurício de Abreu, “uma questão
nacional” (1994:35).
Como escreve Thomas Skidmore, “entre 1900 e 1940 o Brasil continuou a
assistir a significativos deslocamentos regionais de sua população” (1998:143). A
crescente imigração em virtude das duas Grandes Guerras criou uma crise habitacional
ainda maior. Com a Primeira Guerra, houve o declínio da exportação do café gerando,
segundo Victor Vincent Valla, um aumento da produção da “incipiente indústria
nacional” (1986:33).
119
Após o término desta Guerra, a inabilidade das indústrias brasileiras em
competir com as estrangeiras fez com que o inverso acontecesse. E mais uma vez se
estimulou a imigração estrangeira para as áreas cafeeiras. O resultado foi que após os
anos de 1920 as grandes cidades, principalmente o Rio de Janeiro, viram crescer sua
população. Quem nelas já estava, continuou, e aqueles que não conseguiam mais
emprego nas zonas do café, para elas vieram. As favelas, assim, iam crescendo cada vez
mais.
É a partir de então que, segundo Lucien Parrise (1969), com a chegada do
Estado Novo e sua política reformadora e organizadora das cidades, por meio de um
programa paternalista, são formuladas tentativas de remoções das habitações populares
que apresentassem falta de higiene e de condições estabelecidas de moradia,
principalmente depois da epidemia de gripe que houve no país. As favelas começavam a
ser alvo de atenção dos administradores. Seus moradores eram integrados à sociedade
por normas hierárquicas e funções específicas de reeducação desta população. Como
identifica Valla, iniciativa privada e Governo deram-se as mãos num controle
permanente da população mais pobre (1986:32).
Lucien Parisse lembra, ainda, que já entre 1920 e 1922 Carlos Sampaio desejava
“limpar” os principais focos de favelas em função da gripe. De 1927 a 1930, Agache
tem seu primeiro plano de “extensão, remodelação e embelezamento” do Rio, como
vimos. Mas, em ambos os casos a favela ainda não ocupava lugar de muita importância
nas apreensões administrativas.
Como mostra Licia Valladares, o interesse pela favela como objeto de estudo e
discussão no início do século XX não era muito freqüente. A pobreza, a miséria e a falta
de recursos sanitários estava muito em voga, mas a favela propriamente dita não atraía
tanto os estudiosos, ficando “à margem do interesse da grande maioria” destes
intelectuais (Valladares, 2000:5).
Anthony e Elizabeth Leeds em seu livro A Sociologia do Brasil Urbano (1978),
mostram que muito embora os temas da pobreza e da habitação popular fossem
preocupações desde o século XIX, as favelas só aparecem, tanto fisicamente quanto
120
como constituição de um problema, mais tarde, nos primeiros anos do século XX, já nas
abordagens de Everardo Beckheuser (1906). Mas, se a pobreza já fora interpretada há
muitos por cronistas, repórteres, etc., só vira um problema político nacional nos anos
1920-1930.
Porém, vemos também que uma dificuldade se coloca. Como definir ou
conceituar a pobreza? Para isso construímos noções e conceitos no plural, para
identificarmos que tal categoria se transforma de acordo com o tempo e o espaço, ou
seja, deve ser contextualizada. De categoria moral, como vítima e marginalizado, a
elemento perigoso, o pobre sofreu classificações sociais diversas. Enquanto isso, os não-
pobres deveriam estar sempre a postos, com sua moral cristã, para auxiliar os que
precisavam.
Historicamente, o homem pobre medieval era somente o contrário do rico. A
passagem para o chamado homem moderno, como explica Sprandel, fazia com que a
pobreza fosse encarada como diferenciação econômica, o que já mostra seu poder de
ameaça quando passa a ser associado à marginalidade. Vale lembrar que também é neste
momento que a pobreza se desenvolve em função do crescimento do mercado. Com o
passar do tempo, a pobreza foi, então, conhecendo considerações e percepções distintas.
Era, portanto, associada ao trabalho, à mestiçagem, à violência, à insalubridade e à
vadiagem.
No Brasil, perigo e marginalidade eram corroborados pelas doenças e
insalubridade. No entanto, as ações em prol da pobreza tinham que se dividir entre o
sertão e a cidade. Durante o século XX, o interior do Brasil muito foi investigado
através de expedições científicas que acabaram por mostrar quão difícil era a vida dos
habitantes do interior, mas, em contrapartida, mostrava-se um ambiente mais saudável
que a cidade. Além disso, foi no interior que os investimentos tecnológicos apareceram
como melhoria para o local e um sentido de ordenamento e progresso.
É nesse contexto que nasce, em 1918, a Liga Pró-Saneamento, que era
constituída por médicos, pesquisadores e pelo Presidente Wenceslau Braz (Lima e
Hochman, 1996). Dois anos depois, a Liga proporcionou a criação do Departamento
Nacional de Saúde Pública (DNSP). Vemos, então, a importância do processo de
121
nacionalização de setores como o da saúde para a implementação da ordem que viria a
ser mais expressa nos anos 1930. Isto mostra que a marca de um novo Estado nos anos
de 1930 e 1940 não foi, em tudo, diferente do que se convencionou chamar de
República Velha. Segundo Sprandel, também fazia parte dessa discussão o discurso
eugênico que tinha como meta o “esforço de se obter uma raça pura” (Sprandel,
2004:53). Nomes como Oliveira Vianna encabeçavam tal movimento, e Josué de
Castro, com sua obra Geografia da Fome, de 1946, indicava que a pobreza nos anos de
1920 a 1940 no Brasil era discutida através dos eixos da doença, da raça e da fome.
Assim, também, a pobreza inserida no contexto da modernidade traz em sua
antítese um elemento para pensá-la. Isto é, pensar pobreza nos remete a pensar também
as suas relações com a riqueza. Ambas fazem parte de uma construção e tecem relações
com todas as esferas da sociedade, pois, como já dissemos, pensar a sociedade é pensar
suas ações e contradições. Ações que Weber (1982) chamaria de interindividuais e que
comporiam a teia da sociedade.
II. ASPECTOS DA SOCIABILIDADE URBANA
Junto ao papel assistencialista de Getulio Vargas, então, faz-se necessário
observar como se deu o pensamento dos administradores das cidades, que o
acompanhavam no que tange à idéia de interdependência social. Para isso, utilizo o
conceito de Gilberto Hochman (1998) que aponta os problemas individuais como
problemas coletivos ao mostrar que há um determinado momento na história do Brasil
em que as elites sociais e políticas começam a pensar em problemas que não os atingem
propriamente, mas que passam a constituir um problema de ordem mais geral. Se há
um indivíduo com problema, este passa a ser comum a todos na tentativa de remediá-lo.
A profilaxia passa a ser uma “obrigação moral e política” (1998:58).
Por mais que haja uma divisão econômico-social, há sempre uma relação a
estabelecer entre os mais pobres e os mais ricos, mesmo que esta venha em forma de
assistência. Por isso é necessário averiguar o contexto em que essas relações aparecem,
já que o fazem de maneiras distintas. Na Alemanha, por exemplo, “a estigmatização das
pessoas dependentes da assistência era tão forte que elas perdiam seus direitos cívicos
(direito de voto) e eram assim relegados ao status de cidadãos de segunda classe”
122
(Simmel, 1998:20-21). Simmel não reduz o fenômeno da assistência à sua dimensão
filantrópica ou humanitária; para ele, a assistência aos pobres era um meio de assegurar
a autoproteção e a autodefesa de quem as praticava (ibidem:24-25).
A partir do século XIX a economia começa a ser inteiramente regulada e se
estabelece alguma conexão entre as sociedades primitivas e sua vida econômica como
algo relevante. O fato de se estar atrelado à economia não interessa somente à posse de
bens, mas sim ao que isto vem a trazer de benefício à vida social (Polanyi, 1944), pois
os fatores econômicos estão relacionados à vida social do indivíduo, aos seus interesses,
em que, muitas vezes, aparece a teoria da dádiva: dar, receber, retribuir e redistribuir
tornam-se fundamentais. Neste sentido, a relação ter e doar tornam-se pares da relação
pobreza e riqueza.
1
.
Se tomarmos como ponto de discussão as ações governamentais no Brasil do
Estado Novo, percebemos que essa relação era mantida num caráter populista que
garantia a proteção do governo contra futuros rebeldes ou ameaçadores da paz pública,
bem como com o restante da sociedade. Entendendo aí o populismo como uma política
capitalista nacional, que se preocupava em reduzir as rivalidades entre as classes, todos
sustentados pelo Estado (Fausto, 2004:387).
Por outro lado, também o direito de todos como cidadãos esbarra num dever
moral da sociedade em ajudar o próximo. O direito, aí, se constitui como um dever
individual. A caridade, além de fazer bem para quem ajuda, ajuda o que a recebe a se
sentir menos humilhado. Neste sentido, Simmel dá o seguinte exemplo: “Logo que
Jesus diz ao jovem homem rico – ‘doe teus bens aos pobres’ – o que parece importar
não são os pobres, mas antes, a alma do homem rico, o sacrifício que só era um meio ou
um símbolo de salvação” (Simmel, 1998:46).
1
Muitos pensadores do século XVIII e XIX concordam ao dizer que o pauperismo era inseparável do
progresso, entre estes Malthus, sociólogo e economista inglês, que em sua obra Ensaio sobre a População
tratou do aumento populacional encarado sempre como maior do que os meios de subsistência, chamando
a atenção dos economistas para o problema da demografia; e Ricardo, também economista inglês que,
influenciado por Adam Smith, discutiu em sua obra, Princípios de Economia Política e Tributação o
problema do restabelecimento dos pagamentos em moeda, observando que os lucros aumentavam com a
diminuição dos salários e vice-versa.
123
A assistência aos pobres tem, então, até mesmo em algumas instituições
públicas, uma característica sociológica singular, sendo completamente pessoal. Isto se
complica, pois faz com que o que deveria ser um direito de todos, passe a ser o dever de
alguns sobre a impossibilidade de outros não conseguirem seus direitos. Colocar os
ricos para doarem aos pobres só reitera a desigualdade e a visão individual.
É neste sentido que Simmel observa que na concepção contemporânea de
assistência aos pobres não mais considera estes pobres como fim em si mesmos. Os
pobres são, assim, elementos pertencentes de modo orgânico ao todo, pois “a
coletividade social recupera indiretamente os frutos de sua doação” (ibidem:57). Não
deveria ser o pobre a ter direito à assistência, mas o homem como membro de uma
sociedade, pois a própria forma como a sociedade o trata é um indicador dessas
transformações.
Se tomarmos nosso objeto como questão, veremos que no Brasil dos anos 1930 e
1940 se observa uma preocupação com as habitações populares por serem locais que
“infestam” de pobreza o restante do país. A assistência que o Estado presta aos
favelados e mocambeiros não está direcionada ao pobre, mas ao que a pobreza pode
gerar ao restante da população, lembrando que na concepção de alguns autores, o pobre
como categoria social não é aquele que sofre privações de qualquer tipo, mas aquele que
recebe assistência.
É, então, neste sentido, que podemos dizer que a pobreza é um fenômeno social
construído, pois se caracteriza como um grupo de indivíduos que ocupa uma posição
orgânica específica no interior do todo, mas é uma posição determinada pelo fato de que
os outros tentam ratificar essa condição (Simmel, 1998).
Verificamos, então, que a relação tanto entre as favelas como entre os mocambos
e as suas respectivas sociedades/cidades se faz o tempo todo numa mistura de
dentro/fora, exclusão/inclusão. Isso torna-se mais característico e mais marcado nos
projetos urbanos feitos pelo governo durante o Estado Novo. E é interessante como se
marca a idéia de inclusão do já incluso, pois pensar o pobre, favelado ou mocambeiro,
in sociedade, é percebê-los de modo orgânico, como membros de uma sociedade, mas
124
com uma exclusão singular, ou seja, é observar estes indivíduos e sua relação com a
sociedade em que vivem.
Mas então, como se configura a intervenção social do Estado face à exclusão?
Quê sentidos ela tem? A ação pública, neste momento, pode ser comparada à idéia de
solidariedade “durkheimeana”, pois há um retorno à ação comunitária (Donzelot, 1996).
A administração pública fará uma valorização do bairro, do grupo, ou de qualquer coisa
em que se estabeleça a noção de pertencimento. Por isso, a criação de habitações
específicas, que representam a identidade de cada morador, como no caso das vilas
operárias do Recife, trará a idéia de um comprometimento do Estado, ao mesmo tempo
em que uma valorização individual e social dos antigos moradores dos mocambos.
Porém, essa relação exclusão/pertencimento e o papel da ação pública só se fará a partir
do entendimento desta historicização da palavra, como foi dito anteriormente. Não são
só sinônimos que estão em jogo, mas a aplicabilidade de seus sentidos. A exclusão não
está só ligada à falta de emprego, ou de moradia, mas às transformações sociais que isso
implica e o que Dubar (1996) chama de não inserção na sociabilidade sócio-familiar.
A exclusão entendida, então, como um fato social que distancia os indivíduos é
uma atitude datada, espacializada, portanto, historicamente delimitada. Tal argumento
pode ser colocado para o bem e para o mal, pois ao mesmo tempo em que se observa as
diferenças entre sociedades, também se coloca a questão segregadora que fecha
microssociedades em guetos, mesmo que tomemos como centro de nossas observações
de que em cada lugar a pobreza urbana se dá de modo distinto: exclusion, na França;
underclass nos Estados Unidos; marginalidad na América Latina (Fassin,1996:263).
Sendo assim, se há um contexto específico para cada noção, cada atitude e até
mesmo nomenclaturas diferentes para o processo de exclusão, há que se entender que
este é um problema estrutural. Não pertence somente à Inglaterra vitoriana, ou ao Brasil
estadonovista. E por que falar de pertencimento ou de identidade? Porque, como aponta
Jean-Manuel de Queiroz (1996), a questão da identidade nunca é colocada no
entendimento do que eu sou, mas do que os outros imaginam que eu seja, isto é,
mostra-se como algo relacional, que depende, portanto, de interação.
125
Isto quer dizer que o indivíduo não recebe sua identidade passivamente, mas se
apropria, interpreta-a e a negocia, pois a identidade social é intrinsecamente ligada a
uma sucessão de deslocamentos num espaço de posições sociais (Queiroz,1996:296).
Assim, o sentido da exclusão não se dá pela identidade pessoal do indivíduo, mas do
grupo social a que ele pertence.
É neste sentido que o pensamento de Alain Touraine também completa este
nosso argumento. Para o autor, a exclusão é um conceito da pós-modernidade, ou o que
se considera como tal:
MODERNIDADE PÓS-MODERNIDADE
SOCIEDADE VERTICAL SOCIEDADE HORIZONTAL
CIMA/BAIXO CENTRO/PERIFERIA
DESIGUALDADE EXCLUSÃO
A sociedade vertical, característica da modernidade integrativa, cede lugar a uma
sociedade horizontal, modelo de uma pós-modernidade que se quer excludente e
dualizante: “Se se quer resumir a tese de Alain Touraine, pode-se dizer que a
descontinuidade e o ordenamento dual do espaço social caracterizam a sociedade pós-
moderna” (Frétigné,1999:90).
Neste sentido, é interessante notar que o processo de segregação, ao mesmo
tempo em que exclui, favorece a constituição de uma solidariedade entre estes grupos
em virtude de um sentimento de pertencimento e proximidade de um lado, mas da
segregação espacial do outro. Se tomarmos a experiência das favelas e dos mocambos
nos anos de 1940, percebemos um processo semelhante de segregação nos Parques
126
Proletários e nas Vilas Operárias. A particularidade de nosso caso está na transferência
das favelas aos Parques Proletários; dos mocambos às Vilas Operárias.
O interessante, então, está justamente em pensar que não se pode confundir que
o processo de exclusão seja somente o ato de retirar alguém ou um grupo de um lugar
social, sem qualquer espécie de contato, ou de retorno. A intenção de isolar totalmente
um grupo não se realiza. Aí está, inclusive, a grandiosidade do debate entre as idéias de
exclusão e pertencimento, pois excluir, de um lado, não significa pertencer
imediatamente a outro, além do que não há, embora se queira, um total desenraizamento
do local ao qual se pertencia, embora os administradores da cidade assim o quisessem.
No caso dos mocambos nos anos 1930, no Recife, as pessoas foram retiradas de
suas moradias com a perspectiva de uma melhor condição, indo para lugares distintos.
Criava-se, então, a necessidade de pertencimento a um outro lugar que era ditado de
acordo com sua posição social, relacionada a seu tipo de trabalho, e que acabou
funcionando por causa da propaganda feita pelo governo. A vontade de uma melhora de
condição de vida somada a uma esperança dada pelo governo, fez com que estes
moradores se sentissem melhores e mais respeitados.
Deste modo, propomos-nos aqui mostrar como as intervenções de políticos, com
a ajuda de médicos, engenheiros e arquitetos, modificaram o traçado urbano do Rio de
Janeiro, bem como a vida da população mais pobre que habitava a cidade, desde o final
do século XIX até os anos 40 do século XX. Percebemos, também, que tais mudanças
puseram abaixo cortiços, favelas e mocambos, tendo cada uma delas estruturado a vida
de seus habitantes de forma diferente e que essas experiências só foram efetivamente
concretizadas no âmbito político do pós-1930.
Mas, também vimos que a demolição dos cortiços trouxe a reboque a criação das
favelas e as perseguições aos quilombos, trouxeram os mocambos, transferindo o
problema social de um lugar para outro, trazendo paliativos diversos sem a solução da
questão.
Se a pobreza no Brasil dos anos 1930 e 1940 era vista como atraso, assim como
no início do século XX fora visto como tudo que representasse o passado colonial, seria
127
necessário reformar as cidades e seus cidadãos. E este formar e reformar, observo que
acaba, de alguma forma, propondo o que considero um desenraizamento dos habitantes
das favelas e dos mocambos ao serem retirados de suas casas para a construção de
novas condições de moradias. Não colocamos em jogo, aqui, o fato de serem
transferidos para condições melhores, que é algo óbvio; o que trago para discussão é a
forma como isso foi feito pelas autoridades locais. A decisão da mudança de endereço
não é do morador, mas do governo, assim como também o local escolhido.
A mudança espacial modifica a noção e o sentido da vida dos moradores e o
sentido da reforma. Passados mais ou menos sessenta anos de história, podemos
perceber a perda, inclusive de um olhar para o futuro, já que não houve continuidade
nos projetos e os Parques Proletários, por exemplo, continuaram Provisórios.
Se houve, para esses moradores uma mobilidade social, essa mobilidade acabou,
por vezes, com as suas memórias. O que era retirado de suas casas era para ser
esquecido. A pobreza como uma característica das favelas e dos mocambos, que
funcionava como sinônimo de atraso e de perigo, transformava-se ao serem, seus
moradores, colocados nas Vilas Operárias e nos Parques Proletários, projetados para
essa nova perspectiva de vida.
Destarte, este capítulo, como já mencionado, se voltará para a atuação de Vitor
Tavares de Moura, médico pernambucano, concunhado do interventor Agamenon
Magalhães, e que chega ao Rio de Janeiro, a convite do Prefeito Cônego Olímpio de
Melo
2
, nos anos de 1930, para trabalhar com a questão das favelas e na elaboração dos
Parques Proletários Provisórios na década de 1940, durante a administração de Henrique
Dodsworth, tornando-se um ator social de extrema importância nesse momento, como
elo entre as cidades de Recife e Rio.
Com base no trabalho do interventor Agamenon Magalhães na Recife do Estado
Novo
3
, com a erradicação dos mocambos e a inauguração das Vilas Operárias,
2
Nascido no ano de 1886 em Pernambuco torna-se, no Rio de Janeiro, vereador e Prefeito da Cidade
substituindo Pedro Ernesto na década de 1930, de quem foi assessor. Foi também fundador do Partido
Autonomista do Distrito Federal e do Partido Social Democrático. Anos depois, Henrique Dodsworth
assume seu lugar na Prefeitura/Interventoria da Cidade.
3
A partir de 1937 veremos um pacto entre alguns “coronéis” do Nordeste e a Presidência da República, o
128
observaremos como a política de assistência e habitação se deu de forma semelhante no
Rio de Janeiro. Deste modo, procuraremos fazer uma comparação entre as duas cidades,
para permitir a avaliação de como tais projetos habitacionais se tornaram, ao mesmo
tempo, nacionais, embora de algum modo se diferenciassem em virtude das
singularidades de cada local.
III. DR. VICTOR TAVARES DE MOURA: UMA HISTÓRIA
4
Nascido em Nazareth, Pernambuco, em 1893, Victor Tavares de Moura era
membro da elite pernambucana dona de engenhos. Como ocorria naquela época, as
famílias abastadas faziam com que seus filhos tivessem alguma formação, fosse como
médicos, padres, advogados ou jornalistas, como ocorre com ele e seus irmãos. Inicia
sua carreira acadêmica na Bahia, em 1907, tendo se transferido para a Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro logo depois, onde obteve o título de bacharel, com
especialização em cirurgia, em 1913.
A formação de Victor Tavares de Moura indica que, por ter optado pela Escola
de Medicina do Rio de Janeiro, já tinha uma queda pelos problemas de higiene e saúde
pública, pois, como mostra Monique Carvalho (2003), para ele só com a solução desses
problemas a sociedade alcançaria o progresso, a ordem e a civilização, tão almejadas
pelos políticos, médicos e alguns intelectuais do século XIX e início do XX.
É importante perceber que o pensamento higienista brasileiro caminhava pari
passu com o pensamento europeu, principalmente o francês, que via no Estado o
principal parceiro nas ações sanitárias em prol dos aglomerados urbano-industriais.
Neste sentido, como aponta Monique Carvalho, havia uma forte atuação dos
“higienistas como homens públicos, ligados ao aparelho estatal”(Carvalho, 2003:13).
que acarretará exemplos para todo Brasil, como foi o caso entre Vargas e Agamenon Magalhães, o China,
Gordo, apelido dado a Agamenon por Manuel Bandeira, logo que o Estado Novo é extinto. Sobre este
assunto, cf. Andrade Lima Filho, 1976, op. cit.
4
Acervo DAD/COC/FIOCRUZ – Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz. Departamento de
Arquivo e Documentação. Arquivo Victor Tavares de Moura: inventário analítico. Rio de Janeiro:
FIOCRUZ, 2005 e na entrevista feita com Maria Coeli Moura em 22 de janeiro de 2001, em função do
Projeto “Memória da Favela Carioca: médicos, pobreza e reforma social” (URBANDATA-BRASIL,
COC/FIOCRUZ e IUPERJ, financiado pela FAPERJ), entrevistada por Lídia Medeiros, Jacqueline Lima
e Monique Batista. (Em anexo).
129
Neste sentido, os intelectuais, principalmente os intelectuais médicos, seriam de
extrema importância na prevenção dos males sociais das cidades. Era preciso saneá-las
e encontrar um caminho para a falta de ordem e acabar com as “classes perigosas”.
Embora fosse do Estado o papel de implementador de atitudes em prol da pobreza, este
mesmo Estado contava com os sanitaristas e médicos sociais, além de engenheiros, para
a construção de um Brasil mais saudável. A valorização do trabalho e a higiene seriam
poderosas na reabilitação da população mais pobre. É deste modo que políticas de ação
nas favelas e nos mocambos poderiam ser percebidas muito mais como uma forma de
controle do que realmente uma política habitacional propriamente dita, preocupada com
a questão das habitações.
Antes de viajar à Europa, no período da Primeira Guerra Mundial, para se
especializar em cirurgia na França e na Alemanha, Victor Tavares de Moura entra como
interno na Beneficência Portuguesa, como assistente de clínica cirúrgica durante os anos
de 1912 a 1915. Assim que retorna a Pernambuco, é nomeado para vários cargos:
Inspetor da Escola de Odontologia do Recife, Inspetor Sanitário de Epidemiologia e
Diretor do Posto de Assistência da Diretoria de Higiene e Saúde Pública, esta uma
nomeação feita por concurso, no ano de 1919.
Um ano depois é nomeado interinamente e logo depois efetivado como médico
da prefeitura de Garanhuns, mesmo ano em que se casa com Maria Christina Bezerra
Cavalcanti. Em 1922, já tendo deixado o cargo de diretor, permanece como médico da
Higiene, acompanha as ações contra a peste bubônica e torna-se pai de Maria Coeli, sua
única filha.
De 1924 a 1930, teve como funções a medicina sanitária, dirigiu o Hospital
Santa Francisca, em Barreiros, chefiou o Posto de Saneamento Rural e o Centro de
Saúde anexo ao referido hospital. Antes de se transferir para o Rio de Janeiro, em 1935,
Dr. Moura, como era conhecido, ainda exerce a função de Epidemiologista da Saúde
Pública de Pernambuco, no Recife. Então já no Distrito Federal, foi nomeado Médico da
Prefeitura, Assistente de Clínica Siligráfica, médico do Instituto de Aposentadoria e
Pensões dos Bancários. Neste mesmo Instituto foi nomeado Médico Chefe interino, até
que, em função da Intentona Comunista, o Médico Chefe titular teve que ser afastado e
Dr. Moura é efetivado como Diretor-Médico.
130
No primeiro ano do Estado Novo, Victor Tavares de Moura foi nomeado
interinamente pelo interventor Cônego Olímpio de Melo, o mesmo que o trouxe para o
Rio de Janeiro, como Chefe do Albergue da Boa Vontade
5
, pertencente à Prefeitura do
Distrito Federal. É neste mesmo ano que elabora um plano para o primeiro Refeitório
Popular da cidade. A fim de não acumular funções públicas, o médico opta pelo
Albergue e deixa o Instituto dos Bancários. Mas só em 1939 Victor Tavares de Moura
assume, como Adido, a chefia do Albergue da Boa Vontade. Em abril de 1940, tal
chefia ganha o nome de Diretoria. Neste momento, a Diretoria Geral de Assistência
Municipal já não mais existe, dando lugar à Secretaria Geral de Saúde e Assistência.
É neste meio que Moura é, então, convidado, em 1941, a se encarregar de uma
Comissão para Estudo dos Problemas das Favelas, e de outra, em 1943, que organizaria
e chefiaria trabalhadores enviados para a Amazônia. Neste mesmo ano, é nomeado
Chefe do Serviço Social, futuro Departamento de Assistência Social, do qual seria
Diretor um ano depois, quando assume a comissão que estudará a iniciativa de se
construir os Parques Proletários Provisórios. É durante o período de sua chefia do
Departamento de Assistência Social que se dá a destruição da primeira favela carioca e
a criação do primeiro Parque Proletário.
Além de estudos práticos, do desempenho de funções burocráticas e de sua
devoção à Medicina Social, Victor Tavares de Moura também foi professor desta
cadeira e de Sociologia na Escola de Enfermeiras Rachel Haddock Lobo, de 1944 a
1958. Em 1947, já findado o Governo Vargas, o Dr. Moura pediu exoneração do cargo
no Departamento de Assistência, sendo nomeado para o Conselho Fiscal da Fundação
Leão XIII e para presidir, em 1948, a Comissão de Aquisição de Material do Estado.
O ano de 1949 foi significativo para Moura. Além de sua atividade pedagógica
na mencionada Escola de Enfermagem, também lecionou na Escola de Serviço Social
da PUC/RJ, participou do I Congresso Americano do Trabalho, na Argentina, inseriu-se
na Sessão Brasileira da União Americana de Medicina do Trabalho, foi designado para
o Departamento de Assistência Hospitalar e para o Departamento de Higiene, ambos da
Secretaria Geral de Saúde e Assistência, além de ser autor de inúmeros trabalhos
131
apresentados e publicados. Ainda em 1949 foi Diretor de Coordenação e Execução de
Serviço Social do SESI, onde ficou até o ano de 1953.
A partir dos anos 1950 lecionou Sociologia na Escola de Enfermeiras Rachel
Hadock Lobo, foi Diretor-Médico do IAPB, participou do X Congresso Internacional de
Medicina do Trabalho em Lisboa e tornou-se, entre outras coisas, membro da
Associação Brasileira de Medicina do Trabalho, organizou o Segundo Congresso
Americano de Medicina do Trabalho no Brasil e recebeu homenagens como o “Homem
que mais trabalhou pela Medicina Social nas Américas” e o título de sócio honorário do
II Congresso de Medicina do Trabalho, agora realizado no Uruguai. Em 1958 faz jus à
aposentadoria pela Prefeitura do Distrito Federal, até falecer, em 23 de novembro de
1960.
Após esse breve histórico da vida e carreira de Victor Tavares de Moura, dois de
seus trabalhos se destacaram de forma a instituir mudanças no cenário da assistência
social brasileira: o Albergue da Boa Vontade e os Parques Proletários Provisórios.
Vamos nos deter mais nestes últimos, pois constitui nosso objeto de análise, mas é
imprescindível esclarecer seu trabalho no primeiro, quando se pode observar as
apreensões e atitudes deste médico interessado em resolver problemas individuais numa
dimensão social, que aparece em seu trabalho nos Parques, mas se inicia no Albergue.
A criação dos Parques Proletários Provisórios acabou se tornando uma
preocupação muito maior com as questões de ordem, civilização e saneamento, do que
propriamente uma inquietação com as habitações populares. A preocupação com a
limpeza, fosse ela física ou moral, era muito maior do que qualquer outro intento. Mais
uma vez, lembramos a importância do higienismo que se configurou como preocupação
na Europa do século XIX e foi uma fundamental referência no Brasil dos anos 1940.
A chegada dos anos 1930 é o momento em que o controle social se expande.
Seja através da ordem ou da desordem das classes populares, o que se confirma é que a
preocupação se volta para os trabalhadores como ponto de partida para se solucionar os
problemas sociais. No setor urbano, identificamos uma postura repressora por
5
Sobre este assunto, ver em Lidia Medeiros (2002).
132
intermédio do Código de Obras de 1937, como veremos. É nesse momento que as
favelas e os mocambos começam a se tornar problemas sociais.
Inaugurado em 1934, o Albergue da Boa Vontade teve um papel preponderante
na assistência aos pobres da cidade do Rio de Janeiro. Responsável por abrigar,
alimentar e auxiliar pessoas sem moradia, identificava as pessoas que por ele
procuravam como pretendentes, albergados e freqüentadores, como mostra Lídia
Medeiros (2002). Sua localização era na Praça Mauá, numa rua de nome sugestivo,
chamada Harmonia. Pelos trabalhos deixados por Dr. Victor e por relatos de sua filha
quando fala sobre o Albergue, era essa uma das metas pretendidas pelo médico:
harmonizar a vida daqueles que procuravam esta instituição. Fosse o futuro albergado
sem instrução, fosse um cientista desempregado, Tavares de Moura, embora com
atenção diferenciada para cada um deles, tinha a intenção de tratar de todos. Nas
palavras de Maria Coeli Moura,
“Essa experiência para mim foi muito bonita, partiu muito do coração dele.
Ele, quando chegou no Albergue, o Albergue era um depósito noturno de
pessoas desempregadas. Então, papai resolveu transformar aquilo, quer dizer,
orientar. Começou que as pessoas, ao entrar, eram identificadas, eram
fotografadas, elas deixavam algum objeto pessoal, se tivessem alguma coisa de
valor; elas recebiam, à noite, uma primeira alimentação, roupa limpa, um
banho, dormiam. Eram salões de homens e de mulheres. Agora, tinha sempre
um vigilante à noite, e papai não deixava que fossem acordados com
campainha nem com nada dessas coisas. Ele achava que a pessoa que
amanhece mal dormida e assustada é muito desagradável. Então, eles eram
chamados um a um e aí começava o trabalho de papai para... Eles tinham,
digamos, oito dias no Albergue”.
Devemos ressaltar que sendo filha de Moura, Maria Coeli não se configura uma
depoente neutra em seus relatos, mas estes não deixam de ser extremamente
significativos.
Deste modo, o Albergue foi se tornando um grande centro social para
desempregados e pobres que teve como meta uma reorganização da educação e da
assistência a essas pessoas, tanto que fez com que seu diretor decidisse criar um
Departamento de Reeducação e Assistência Social, que, dentre outras coisas, deveria
133
estudar e colaborar no plano de extinção das favelas, bem como criar novas alternativas
de habitação popular. Isto mostra que as atitudes tomadas por Tavares de Moura durante
sua inserção no campo da política brasileira dos anos 1940, eram, de alguma forma,
coadunadas e direcionadas num mesmo sentido.
O Albergue tinha uma variedade de serviços oferecidos gratuitamente: abrigo e
alimentação, como já mencionados, mas, também, atendimento médico, seleção para
trabalhos, e, se necessário garantia o retorno, dos que o desejassem, à terra natal. Além
disso, como mostram relatos de pessoas e jornais, o atendimento oferecido era o que
dava o tom de personalidade deste Albergue em diferença dos outros. Observemos dois
relatos:
“Ora, o Albergue, há pouco menos de dois anos, era coisa de que ninguém se
lembrava senão para adjetivá-lo de centro de vadiagem. Daquela época para cá,
uma nova orientação lhe foi dada e por isto deixou de ser o centro aludido, para
ser educativo e de classificação. [...] Isto porque ali se está fazendo coisa que
ainda não se tinha feito no Brasil: da escória social tiram-se homens capazes,
após reeducá-los”.
6
“[...] era um cientista que foi bater lá. Então tinha serventia. Então, ele fazia
intercâmbio com o cais do porto, com o Moinho Fluminense, para empregar a
gente, para ter vínculo empregatício. Então, a pessoa estava recebendo
alimentação, dormida, a parte toda de identidade, fichas policiais, aquilo tudo,
organizamos e o trabalho sendo preparado. Então muitos já saíam empregados
porque ele fazia... O trabalho não era só o camarada ir lá dormir porque estava
na rua, não. O camarada tinha que ter sua orientação. E era um lugar limpo,
bem tratado. Todos os anos, no dia de São Lucas, que é 18 de outubro, havia
festas de aniversário do Albergue. Ele fazia missa. Essa missa todos os
funcionários e amigos eram convidados. Ele fazia almoço, ele comemorava e o
Albergue era realmente um lugar bonito”.
7
Outro aspecto importante de ser observado no Albergue da Boa Vontade é seu
lado moral e religioso. Como Tavares de Moura tinha um comprometimento moral,
6
Jornal do Brasil, 20 de janeiro de 1939. Acervo DAD/COC/FIOCRUZ – Fundo Victor Tavares de
Moura, VT/IMP/19370628.
7
Entrevista feita com Maria Coeli Moura em 22 de janeiro de 2001, em função do Projeto “Memória da
Favela Carioca: médicos, pobreza e reforma social” (URBANDATA-BRASIL, COC/FIOCRUZ e
IUPERJ, financiado pela FAPERJ), entrevistada por Lídia Medeiros, Jacqueline Lima e Monique Batista.
(Em anexo).
134
ético e religioso, houve uma preocupação de fazer observações da conduta de seus
freqüentadores num código, chamado de “Os 10 Mandamentos”. Conselhos como
“Procure trabalhar e ser útil”; “Respeite e obedeça aos regulamentos e leis”; “Trate bem
a todos e será bem tratado”; “Evite adquirir vícios, pois eles estragam a saúde e podem
desmoralizá-lo”, entre outros, ficavam pelas paredes do Albergue na tentativa de
auxiliar os direcionamentos dados pelo mesmo.
8
Claro e evidente, que todas essas manifestações de Victor Tavares de Moura não
estavam isoladas do contexto estadonovista, como observamos. Embora não tivesse uma
vinculação político-partidária, o médico social era um homem que trabalhava para a
política e nela estava inserido. Suas ações e preocupações com a pobreza no Brasil, já
indicam isto e o apoio recebido por Vargas, que inclusive visitava os Parques, também
corrobora com esta idéia, embora sua filha diga:
“Olha, ele não tinha nenhuma corrente filosófica, nenhuma ligação com
partidos políticos, não misturava o trabalho dele com a política. Não deixava
fazer propaganda com o seu trabalho. Ele respeitava muito essas coisas.
[...]
Papai não era político. Não era político. Podia ter suas idéias, sua mentalidade,
mas não era político, e tinha um cuidado muito grande quando estava no
Parque Proletário. Um, que foi a época da eleição do Fiúza, lembra? Papai
tinha muito cuidado, não deixava aparecer nada dessas coisas que pudessem
(...). Ele nunca foi político”.
9
A pobreza durante os séculos XIX e XX, seja no Brasil, ou no mundo, estava
relacionada a um problema de competência individual, porém afetava o social, o que
gerava a preocupação do governo. Isto funcionava como se fizessem a propaganda de
uma coisa, mas soubessem que era outra. Ou seja, o erro era imputado aos indivíduos,
embora soubessem que era uma questão social, e que de alguma forma amedrontava o
governo. Nos próprios relatos do Dr. Moura se observava esta questão. Segundo ele, se
o Albergue conseguia colocação para os desempregados, o problema não estava na falta
de empregos, mas no desajuste individual, pessoal.
8
A Noite, 8 de janeiro de 1939.
9
Entrevista feita com Maria Coeli Moura em 22 de janeiro de 2001, em função do Projeto “Memória da
Favela Carioca: médicos, pobreza e reforma social”, (URBANDATA-BRASIL, COC/FIOCRUZ e
IUPERJ, financiado pela FAPERJ), entrevistada por Lídia Medeiros, Jacqueline Lima e Monique Batista.
135
A questão fica bastante clara até mesmo na posição em que é colocado o
Albergue, pois se a falta de emprego, a falta de habitação e a falta de condições
financeiras são tratadas juntas, como uma doença, como um problema social, mostra-se
que há uma preocupação ideológica e específica com estes “doentes morais”, que
deveria ser tratada com políticas públicas, seja pela saúde ou educação. Tratamento é,
então, a palavra utilizada, pois seja na passagem da condição de desamparado para
albergado, ou nas colocações profissionais a que o Albergue se prestava, inclusive para
trabalhos na Região Norte do país, para produções em prol da Segunda Guerra, a
instituição trabalhava com conceitos e com atitudes muitas vezes diferentes de outras
como ela, pois, como já foi dito, o Albergue da Boa Vontade não só não era um
“depósito” de desempregados, ou mendigos, mas um local que tinha, segundo relatos e
reportagens, a específica atribuição de regenerar o indivíduo que por lá passava, a fim
de reintegrá-lo à sociedade através de ensinamentos morais, de inserções em empregos,
de retorno a cidades, etc.
Como sabemos, as instituições não dependem somente de quem as dirige. Sendo
assim, mesmo com a saída de Victor Tavares de Moura, o Albergue continuaria a
funcionar. Porém, também sabemos que nunca um espaço institucional permanece
intacto com a mudança de seus mentores, organizadores e funcionários, pois as
instituições estão presas também às ações pessoais. Todo espaço institucional se revela
um espaço híbrido, relacionado a memórias, a temporalidades, a funcionalidades e, por
que não, a valores simbólicos, o que nos faz ver que com a saída de Tavares de Moura,
logo após o Albergue da Boa Vontade passa a ser parte da Fundação Leão XIII, que de
início ainda preservou algumas atribuições do antigo Albergue, até passar a ser um
centro de triagem, que hoje não existe mais (Medeiros, 2002).
Deste momento em diante, Victor Tavares de Moura se responsabilizaria pela
Comissão de Extinção das Favelas Cariocas e passa a dirigir o Departamento de
Assistência Social, de onde nascem as idéias dos Parques Proletários Provisórios, nosso
próximo assunto.
136
IV. A POLÍTICA DAS (NAS) FAVELAS
Como acontecera no início do século XX, as doenças, a crise habitacional e a
proliferação de idéias contra o sistema político eram responsáveis por uma mudança de
olhares, já que representavam um mal que poderia não só pertencer aos habitantes das
favelas, mas poderia se difundir por toda a população
10
. Estes eram problemas que não
mais eram particulares de um grupo isolado na multidão de uma grande metrópole.
Passava a ser um problema coletivo.
Podemos observar que houve um aumento da população entre os anos de 1940 e
1950 na cidade do Rio de Janeiro, excluindo as áreas do Centro, que abrangia as
localidades da Candelária, São José, Santa Rita, São Domingos, Sacramento e Ajuda,
que de 49.852 pessoas, em 1940, passou a 37.809, em 1950, e a Periférica Central, que
abarcava Santana, Gamboa, Espírito Santo, Rio Comprido e Santo Antônio, que em
1940 contava com 196.381 pessoas, enquanto dez anos depois se resumia a 181.392. O
aumento, então, se dava nas seguintes localidades
11
:
Tabela 5
Aumento da População entre os Anos 1940 e 1950 em algumas Localidades da
Cidade do Rio de Janeiro
12
Localidades 1940 1950
São Cristóvão 70.984 76.604
Santa Teresa 61.476 71.733
Zona Sul 246.445 359.681
Zona Norte 197.961 237.912
Zona Suburbana I 588.532 826.361
Jacarepaguá 71.425 107.093
Zona Suburbana II 182.461 324.906
Zona Rural 70.825 111.832
10
Sobre o assunto, ver o Capítulo II desta tese.
11
A Zona Sul era compreendida por: Glória, Lagoa, Gávea e Copacabana; a Zona Norte: Engenho Velho,
Tijuca, Andaraí; a Zona Suburbana I: Engenho Novo, Méier, Inhaúma, Piedade, Irajá, Madureira e Penha;
a Suburbana II era composta por Pavuna, Anchieta, Realengo; e a Zona Rural, por Campo Grande,
Guaratiba e Santa Cruz.
12
Fonte: Censos Demográficos de 1940 e 1950 apud Mauricio Abreu, op.cit., p. 109.
137
Esta tabela mostra que a população estava longe do Centro e as áreas periféricas
e suburbanas obtiveram um aumento populacional considerável. Embora, como indica
Mauricio Abreu (1988), não haja dados específicos que mostrem o aumento do fluxo de
pessoas que foram, nos anos 1930, para o Rio de Janeiro, este aumento ocorreu e mexeu
com os setores demográfico, imobiliário e industrial. Com o crescimento deste último,
além de as indústrias de base irem se firmando no cenário carioca, com uma área
definida pelo Estado, as moradias populares também proliferavam. Há, segundo Abreu
(1988), indicações de que algumas indústrias nem puderam se instalar na Avenida
Brasil, pela quantidade de favelas que se formavam no local. A proximidade ao
emprego era um fator mais preponderante do que exatamente a condição financeira dos
moradores.
Por outro lado, para as favelas os olhares não vinham somente da esfera política.
De acordo com Marcelo Baumann Burgos, “através da cultura, e muito especialmente
da música popular, as favelas começam a ser incorporadas à vida social da cidade.
13
Devemos observar que o espaço geográfico não é somente o local onde vive a
sociedade, mas onde é ela própria materializada
14
. Além disso, essa materialização não
pode estar desvinculada de seu caráter simbólico. E não é diferente com a favela.
Numa nova tentativa de remodelar a cidade, o projeto de urbanização
considerava, agora, a favela como empecilho. O Código de Obras de 1937 mostra
melhor essa relação no que compete à consideração das favelas como uma “aberração”,
impedindo melhorias e sugerindo seu fim. Dois anos após o Código de 1937, foi
elaborado pelo então diretor do Albergue da Boa Vontade, Dr. Victor Tavares de
Moura, um estudo sobre a situação das favelas. Foi o momento em que este tipo de
habitação popular entrou na pauta dos políticos da cidade.
13
Marcelo Baumann Burgos, “Dos Parques Proletários ao Favela-Bairro – as políticas públicas nas
favelas do Rio de Janeiro”, in Zaluar, Alba, Um Século de Favela, Rio de Janeiro: FGV, 1988, pp. 26-27.
Ver também nesta obra o artigo de Jane Souto de Oliveira e Maria Hortense Mercier, “A Palavra é:
Favela”.
14
Thiago dos Reis Fragoso. “O território e suas representações espaciais: o caso das favelas no Rio de
Janeiro”. Monografia de Graduação. Niterói: UFF, s/d. (Retirado do artigo homônimo publicado no site:
www.igeo.uerj.br/VICBG-004/Eixo5/e5%20140.htm).
138
Agamenon Magalhães certamente orientou uma postura semelhante em Recife.
No Esboço para o Plano de Estudo para a Solução do Problema das Favelas do Rio de
Janeiro, de 1940, Victor Tavares de Moura escreve o seguinte:
“[...] muito do esboço do plano que ora tenho a honra de apresentar, devo aos
estudos e observações pessoais que fiz da vitoriosa experiência de Pernambuco
no combate aos mocambos que eram em número de 45.581 abrigando uma
população de 164.837 pessoas de todas as idades, sexos e profissões da linda
capital do nordeste. É certo que a campanha que vai se realizar no Rio, tem que
diferir em muitos pontos daquela que se está realizando no Recife [...] A mim,
se me afigura menos difícil resolver o problema da Favela do Rio do que o do
Mocambo do Recife”.
No mesmo documento, de importância ímpar para as ações do médico na criação
de novas alternativas para os domicílios populares, Tavares de Moura mostra que um
dos motivos da capacidade de habitação na cidade do Rio é o aproveitamento
desordenado dos morros e terrenos abandonados, onde se constroem as favelas. São
construídas, por vezes, em terrenos de particulares que acabam ajudando a construção
de casebres. Outras, nasceram em terrenos da Prefeitura e da União. E ainda escreve:
“Eu, pessoalmente, tenho a impressão de que a cidade do Rio de Janeiro tem
mais habitantes do que deveria ter. E este excesso é que representa, até certo
ponto, um peso morto para a população, deve estar localizado justamente nas
favelas e nas casas de cômodo verdadeiros cortiços que, se diga de passagem,
são mais perigosos para a saúde e para os costumes do que alguns barracões da
favela. [...] Nas favelas é coisa sabida, moram indivíduos, que contam às vezes
com bons salários. É o vício de viver no barracão, que o samba no nosso
carnaval já canta como a melhor das vidas”.
Como observamos em capítulos anteriores, a preocupação com a pobreza na
Europa também era fundamentada na questão da insalubridade. A pobreza era encarada
como perigo antes na Europa do que no Brasil, mas a preocupação com as habitações
populares data da mesma época, pois, “a arquitetura da casa operária da primeira
metade do século [XX] virou objeto de estudos ao mesmo tempo em que fonte de
inspiração” (Dumont, 1991:5).
139
Na série de documentos de Victor Tavares de Moura há, ainda, a apresentação
escrita de um curta-metragem sobre as favelas, que não aparece sua autoria, chamado
“Eles Vivem...”. O documento analisa a favela como um grande problema social que
necessita de ajustamentos e que tem, com Tavares de Moura, pela primeira vez, os
poderes públicos voltando suas vistas para ela. Neste documento já se manifesta uma
ligação entre as favelas e os mocambos. Vejamos no trecho a seguir:
“O problema dessa humanidade, que tão forte exemplo nos dão as “favelas”
cariocas e os mucambos de Recife, exige para a sua honesta solução que se
conheça em toda a sua natureza e seus detalhes, em todas as suas causas e
conseqüências, sejam quais forem os aspectos que possa tomar esse contato
brutal com a realidade”
15
.
Este documentário tem como proposta observar a favela em todas as suas
questões: “[...] como documento histórico e com o espírito leal de construir, que a
Favela aparece aqui na sua fisionomia cansada e abatida, velha fisionomia que a
insistência da miséria procura marcá-la fundamente”.
No Brasil, a definição de pobre tinha um valor específico. Ou seja, pobre era
aquele que não trabalhava e como a urbanização era algo que caracterizava um sentido
cosmopolita, um universo múltiplo, era necessário que em tal urbanização estivesse
integrado o trabalhador. Por isso, o trabalho era tido como um dever social (Valladares,
1991 e Medeiros, 2002) e a miséria encarada como um mal que deveria ser extirpado
pelo próprio bem-estar do indivíduo, bem como por sua posição social.
Durante o Estado Novo, o Prefeito do Rio de Janeiro, Henrique Dodsworth,
juntamente com os Drs. Jesuíno de Albuquerque, Secretário Geral de Saúde Pública e
Victor Tavares de Moura, tiveram como meta solucionar o problema das favelas do Rio
de Janeiro com um novo planejamento urbano, pois elas começavam a ser incorporadas
às apreensões dos administradores da cidade e dos que nela pensavam como um
problema urbano.
15
Acervo DAD/COC/FIOCRUZ – Fundo Victor Tavares de Moura.VT/MS/19390207.
140
O Código de Obras da Cidade do Rio de Janeiro, o primeiro reconhecimento
legal da existência das favelas (Oliveira, 1981), não só proibia a continuidade da
construção dos casebres como também sugeria a construção de habitações proletárias.
Exterminar as favelas que incomodavam a cidade, estética e sanitariamente, seria a
prioridade, já que eram consideradas aglomerações que ocorrem de forma desordenada.
Em novembro de 1940, o então diretor do Albergue da Boa Vontade, Dr. Victor
Tavares de Moura, apresenta ao Secretário Geral de Saúde Pública um plano para
estudar soluções para as favelas. Soluções paliativas, já que de início a idéia de se
construir parques proletários na cidade era de que fossem provisórios, mas mesmo
assim despertam o interesse de Henrique Dodsworth. Desse plano nasce um relatório
em que o Dr. Moura avalia o conjunto do crescimento urbano e as favelas e lança a idéia
dos Parques Proletários como solução para seus habitantes.
Em outro documento, sem título, Tavares de Moura informa que a iniciativa do
Governo, através do Serviço Social, é realizar a construção de Parques Proletários,
grupos de casas de madeira, que tinham o caráter de provisórios. Na verdade, os
técnicos do Serviço Social da Prefeitura achavam que não se deveria mudar o ambiente
dos ex-moradores das favelas radicalmente - seria necessário um período de
“readaptação fiscalizada”. Como pudemos ver nos documentos e fichas de adesão aos
Parques, os indivíduos que se inscreviam eram fotografados, tinham suas impressões
digitais registradas, faziam Raios X, eram clinicados, vacinados e tinham sua vida
particular examinada, para depois, então, serem alocados em suas novas habitações. O
controle desta população não se dava, portanto, só nessa triagem, mas também por meio
de outras iniciativas, como mostra Victor Moura:
“Um microfone instalado na administração
16
está ligado aos vários alto-
falantes que se acham espalhados pelo Parque para transmitir todas as ordens,
informações, avisos e conselhos educativos aos seus moradores aos quais é
proporcionado todo o conforto material e intelectual, visando sempre a sua
reeducação”.
17
16
A administração do Parque ficava a cargo de um funcionário específico para as questões burocráticas e
pessoais dos moradores. Era conhecido como Sr. Arruda. Ver Monique Carvalho, 2003, p. 42.
141
Para residir no Parque, além de toda documentação exigida, havia um
documento com 19 especificações de como deveriam se portar os ocupantes das casas.
Cada família recebia este documento, e, entre outras coisas, comprometiam-se a: pagar
o aluguel mensal adiantado até o dia 5 de cada mês, além das despesas com consumo de
luz; zelar pela casa, trazendo-a em perfeito estado, lavando o assoalho pelo menos uma
vez por semana; não pregar quaisquer papéis, cartazes, folhinhas ou figuras nas paredes;
não usar ferro elétrico e cozinhar somente com carvão; legalizar a situação conjugal e se
ajustar às leis militares e trabalhistas; submeter-se a todas as exigências da Saúde
Pública e da administração do Parque na defesa contra doenças; não permitir que outras
pessoas não recenseadas morassem nas casas das famílias.
É interessante notar que os compromissos estabelecidos entre a administração do
Parque e os moradores requeriam um ambiente saudável e organizado que dependia de
um arranjo entre as condições reais de moradia e as imposições feitas pela
administração.
Logo que se estabelecem as funções dos Parques e a remoção das favelas, são
apresentadas a Jesuíno Albuquerque algumas notas e sugestões, pela assistente social
Maria Esolina Pinheiro, em que se relata a preocupação com os casos das famílias que
se encontram em estado de miserabilidade e sugere que:
“As famílias, já admitidas no Parque e em estado de miserabilidade por
circunstâncias especiais, deveriam receber de tudo um mínimo até seu
ajustamento social, que, também, deveria ser objeto de solução rápida. Quebra
a harmonia do Serviço a contemplação da fome ou dos andrajos pessoais ou
domésticos. O Parque é proletário, mas se foram admitidas famílias de situação
econômica incertíssima e precaríssima a questão reclama solução”.
[...]
O Parque nº 2 apresenta, sob o ponto de vista das casas, melhor situação do que
julgamos. Entretanto, há casas limpas sem uma cama, cadeira, etc... Os
utensílios de cozinha em péssimo estado. Gente mesmo paupérrima, mas
acessível; suponho necessário dar-lhes alguma coisa”.
Neste sentido, as autoridades começam a olhar e a reconhecer as favelas.
17
Acervo DAD/COC/FIOCRUZ – Fundo Victor Tavares de Moura.
142
Embora o primeiro censo das favelas do Distrito Federal tenha sido feito em 1948
18
, de
1941 a 1943 há um censo para se conhecer os moradores das favelas e seus problemas
Foram 14 as favelas analisadas na Zona Sul da cidade: Buraco Quente, Estrada da
Gávea, Largo da Memória, Cantagalo, Cabritos, São Vicente, Cezar Duarte, Praia do
Pinto, Humaitá, Guarda Nacional, Morro Seco, Olaria, Catacumba e Fonte da Saudade.
Dr. Moura, em 1941, entrega o relatório de estudos das favelas feito por uma comissão
composta por dois engenheiros que estudaram os terrenos e os tipos de habitação e dois
médicos: o próprio Dr. Moura, que dirigiu inquéritos e calculou algumas medidas, e um
segundo, que manteve relações com o Serviço de Estado da Secretaria e recuperação
social dos favelados. Este relatório evidencia sugestões que Victor Tavares de Moura
chama de “preventivas” e “realizadoras”
19
.
Entre as medidas preventivas estavam soluções reeducadoras e controladoras,
como por exemplo: “o controle de entrada no Rio de indivíduos de baixa condição
social” e a promoção de “forte campanha de reeducação social entre os moradores das
favelas, de modo a corrigir hábitos pessoais de uns e incentivar a escolha de melhor
moradia”. Além disso, houve uma grande fiscalização no que concerne à construção de
casebres. (Parisse, 1969: 66).
Já como ação realizadora, “Casas provisórias [...] e para elas transferidos os
moradores dos casebres [...]”
20
. Segundo documento produzido por Victor Tavares de
Moura sobre o problema das favelas, deveria se estabelecer a organização de uma
Comissão para a campanha urbanística; ter um censo prévio das favelas cariocas;
estudar seus moradores e estabelecer novas medidas. Tomadas estas providências,
deveriam se construir novos tipos de habitação para os ex-habitantes das favelas, com o
auxílio dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs)
21
. Suas sugestões foram logo
acatadas pelos IAPs e por Dodsworth, além de fazer um enorme sucesso com a
imprensa, que apoiava as decisões de Getulio Vargas.
18
Prefeitura do Distrito Federal – Departamento de Geografia e Estatística Censo das Favelas, aspectos
gerais, Rio de Janeiro, 1949.
19
Cf. Lucien Parisse. Favelas do Rio de Janeiro – Evolução e Sentido. Rio de Janeiro: Centro Nacional
de Pesquisas Habitacionais. (Caderno do CENPHA, 5), 1969. Durante a pesquisa não foi encontrado
registros nesta e nem em outra obra do nome do segundo médico que participou desta Comissão.
20
Ibidem, pp. 66-67.
21
Os IAPs foram instituídos em 24 de junho de 1933, pelo Decreto 22.872, sendo o dos Marítimos, o
IAPM, o primeiro. Mas, o que mais promoveu conjuntos habitacionais foi o IAPI, dos Industriários,
constituído pelo Decreto Lei 367, de 31 de dezembro de 1936.
143
Segundo Wilma Mangabeira (1986), estudiosa do Conjunto Habitacional
conhecido como Moscousinho, destinado aos trabalhadores industriais: “No período
entre 1937 a 1945 foram construídos 39 conjuntos residenciais. 33 pelos próprios
Institutos através do Plano A e 6 adquiridos prontos. Os que mais contribuíram dentre
os vários Institutos foram o IAPI, IAPE e IAPETEC
22
”.
Outra investida dos Institutos de Aposentadorias e Pensões dar-se-á na
construção de conjuntos habitacionais, modelo importado da Europa, das cidades
jardins, principalmente por ter como princípio sua construção fora do perímetro urbano.
(Mangabeira, 1986). Este projeto, em que a higiene e a estética se encontrariam, era um
bom exemplo para o caso brasileiro. Os terrenos encontrados como alternativa para a
construção de cidades-jardim seriam bem mais baratos por estarem fora do centro da
cidade. E, de outra forma, também não deixava de ser uma possibilidade de isolamento
e a exacerbação do controle que não aparece nas cidades-jardim européias.
Em seu modelo original, a cidade-jardim aparecia como alternativa à classe
média, e, não, à população pobre, como se deu no Brasil. Segundo Mangabeira:
“Com efeito, diferentemente do modelo da cidade-jardim original, os conjuntos
residenciais aparecem como solução habitacional para os trabalhadores pobres,
incapazes de adquirirem ou alugarem moradias no mercado imobiliário
privado. Além disso, em contraste com a cidade-jardim original, umas das
características dos conjuntos seria a total separação entre trabalho e moradia,
isto é, os conjuntos deveriam ser marcadamente separados do espaço do
mercado de trabalho”. (Mangabeira, 1986:70)
Em reportagem do jornal Diário da Noite, em março de 1942, observamos a
intenção da Imprensa em relatar a remodelação urbana pela qual passava a cidade.
Intitulada “As favelas vão mesmo abaixo!”
23
, a reportagem traz fotos da transferência
dos moradores de algumas favelas para a Gávea, considerada como “pitoresco bairro
popular” em virtude da criação dos novos “barracões”, que seria o Parque nº 1. A
22
De acordo com a autora, houve a instituição da Carteira Predial, que primeiro no IAPE e depois nos
outros, denominava a construção de conjuntos residenciais de Plano A, enquanto um programa de
financiamento de habitação por iniciativa dos próprios associados era chamado de Plano B. Mais tarde
aparece o Plano C, iniciado pelo IAPI, que financiava construções para não-associados.
144
reportagem observa o seguinte: “Durante muito tempo, todo mundo via nos morros da
cidade apenas o pitoresco. O morro era mesmo para alguns espíritos sérios somente um
tema folclórico”. E continua:
“Dando cumprimento a determinações expressas do prefeito Henrique
Dodsworth, cujo governo colocou as favelas nos seus justos termos – um
problema humano e social, interessando por outro lado, o quadro urbanístico da
cidade, o sr. Jesuíno de Albuquerque, secretário de Saúde e Assistência, traçou
e está executando largo e decisivo plano, para a imediata extinção das favelas”.
Em 1942, numa conferência feita na Academia Carioca de Letras, Victor
Tavares de Moura diz:
“[...] esperamos que dentro de mais dois meses duas favelas, das mais feias do
Rio, as do Largo da Memória, e aquela que o carioca apelidou, pitorescamente,
de Cidade Maravilhosa, e que vai da margem da Lagoa Rodrigo de Freitas ao
leito da linha do bonde do Leblon, não mais estejam manchando a nossa
cidade.”
24
A partir dessas idéias o Governo toma a iniciativa de remover a primeira favela.
A escolhida é a do Largo da Memória
25
, extinta em 1942. O Prefeito ateia fogo no que
restou da favela e sua população é removida para o primeiro Parque Proletário, o da
Gávea, logo seguido pelos do Caju e o do Leblon
26
.
Um pouco mais de dois meses após a reportagem acima, o mesmo jornal publica
a ação do governo para extinguir a favela do Largo da Memória através do ateamento de
fogo. O jornal considera a ação como algo “sugestivo”, que conta com a colaboração de
dois contingentes do Corpo de Bombeiros e a presença de autoridades como o secretário
de Saúde e Assistência Social, Jesuíno de Albuquerque, do secretário de Viação e Obras
23
Diário da Noite, Ano XIV, 11 de março de 1942, pp. 3 e 8.
24
Victor Tavares de Moura, “Favelas do Distrito Federal”, Aspectos do Distrito Federal, Rio de Janeiro:
Sauer, 1943, p. 263. Acervo DAD/COC/FIOCRUZ – Fundo Victor Tavares de Moura, VT/PI/19432040.
25
Ver mais em Maria Hortência do Nascimento e Silva (1942). A autora escreve sua monografia de final
de curso sobre esta favela. É considerado um dos primeiros estudos de caso em favela.
26
Victor Vincent Valla, Educação e Favela. Políticas para as favelas do Rio de Janeiro, 1940-1985, Rio
145
Públicas, Edson Passos, e do prefeito Henrique Dodsworth, que, inclusive, ateou a
primeira chama. A reportagem, que recebeu o título de “Fogueira de quase 1 Km entre a
Gávea e o Leblon”
27
, ainda ressalta a grandiosidade desta atuação, informando que: “O
sugestivo acontecimento, que vem demonstrar o carinho com que são tratadas
atualmente as classes pobres, foi filmado pela repartição governamental competente”
28
.
A palavra de ordem era substituição. Deveriam substituir os locais, mas também
os modos de vida das pessoas. A campanha sanitária começava pela Zona Sul, por ser
considerada por Victor Tavares de Moura como o local mais elegante da cidade e a
iniciativa se baseava na idéia de que nas favelas havia uma séria questão de salubridade
e pobreza, em geral promovidas pela quantidade exorbitante de pessoas que ali
residiam. Dr. Moura ainda dizia:
“É normal existirem em todas as grandes cidades indivíduos que, por motivos
diversos, quais sejam: falta de educação, de saúde e de orientação, falta
trabalho, indolência, vícios sociais, ambiência, etc., não conseguiram ajustar-
se, como é necessário à vida social, pelo menos dentro de um padrão mínimo,
exigido pela dignidade humana”.
29
A ação administrativa no Rio de Janeiro dos anos de 1940 pode ser observada
pela vontade de adaptar as condições dos favelados ao problema da urbanização. Mais
do que sanear, era preciso educar, fiscalizar, corrigir, disciplinar, selecionar. No Parque
Proletário da Gávea, o Parque nº 1, como mostra Victor Vincent Valla (1986), havia
mais do que moradias. Havia igreja, posto médico, festividades, visitas de autoridades,
inclusive do Presidente Getulio Vargas, além de uma séria seleção para a entrada de
moradores: deveria ser considerado pobre, pagar CR$ 40,00 e ser cadastrado no posto
policial próximo ao Parque. Ainda havia outros três Parques: Caju, Penha e Leblon.
As mudanças para os Parques foram ocorrendo e uma das preocupações de
Victor Tavares de Moura era com a localização dos Parques próxima de seus empregos.
Até 1943, três Parques foram instalados e quatro favelas foram destruídas. Porém, as
de Janeiro: ABRASCO, 1986, pp. 37 e 38.
27
Diário da Noite, Ano XIV, 25 de maio de 1942, pp. 2 e 8.
28
Grifo nosso.
146
casas que diziam ser provisórias, nunca se tornaram definitivas. Não houve número de
casas suficiente para abrigar todos os favelados. Em 1944, Dr. Moura dá uma entrevista
à Folha Carioca e diz:
“Para ser solucionado [o problema da favela], o esforço tem que ser de vulto.
Porque a favela tem fôlego de sete gatos. Ela não é só o barracão que se
incorpora a outro barracão e ainda a outros mais... [A favela é] um livro aberto
que é preciso saber ler... A solução é complexa, mas pode encontrar-se
começando-se por não destruir os casebres sem lhes dar substituto [...]”
30
.
O Parque Proletário nº 1, localizado à Rua Marquês de São Vicente, na Gávea,
habitado por 3.912 pessoas, abrigou moradores das favelas do Capinzal, Largo da
Memória e outras menores do Leblon. O Parque nº 2, na Rua Bonfim, num terreno
pertencente à Central do Brasil, tinha 322 casas; já o Parque nº 3, ficava na Praia do
Pinto, à margem da Lagoa Rodrigo de Freitas, em um terreno pertencente ao Instituto
dos Comerciários. O Parque Proletário nº 4 foi construído em 1947, após o fim do
Governo Vargas, no Amorim. Recebeu os moradores da favela do Jockey Club,
próximo à Lagoa Rodrigo de Freitas. Embora todos tenham sua importância, sobre o
que mais se encontra documentação e o que obteve mais relevância foi o Parque da
Gávea, que teve seu terreno doado por Maria Pires da Fonseca, numa faixa de 2500m², à
Rua Marquês de São Vicente, 119 a 135.
O Parque da Gávea foi inaugurado em março de 1942. Passava por um rígido
controle, que não se dava somente in loco, mas na própria escolha de seus moradores.
Às 22 horas era fechado o portão de acesso. Segundo Ney Oliveira (1981), no Parque da
Gávea tinha-se os seguintes serviços: creche, solário, cultura física, escotismo,
bibliotecas, uma igreja católica, e uma Escola Pública, entre outros. Ainda assim,
algumas crianças freqüentavam escolas fora do Parque.
29
Victor Tavares de Moura, op. cit. p.269.
30
Folha Carioca, 1 de julho de 1944.
147
Um problema, por vezes apontado, seria a construção irregular, como os
famosos “puxadinhos”, que eram clandestinamente construídos para aumentar as
unidades, mas do mesmo jeito que apareciam, desapareciam. Embora esta atitude fosse
quase uma tentativa de (re)favelização, depoimentos tomados por Ney Oliveira (1981)
mostram que os moradores tinham uma visão de que por ali tudo era organizado e que
só tinha virado “favela” após a morte de Getulio Vargas.
Percebemos que a tentativa de se estabelecer um caráter provisório para os
Parques, como seu próprio nome diz, não alcançou seu objetivo, já que acabou tendo
sua estrutura durante anos e acabando por se constituir, anos mais tarde, novas favelas.
Tabela 6
Movimento Financeiro Total dos Três Parques
durante os Anos de 1942 e 1944
31
Parque Proletário
Provisório nº 1
1942 1943 1944
Receita Bruta Cr$ 192.157,50 Cr$ 408.131,80 Cr$ 175.862,30
Despesa Cr$ 182.329,60 Cr$ 401.083,00 Cr$ 167.629,70
Saldo do Ano Cr$ 9.827,90 Cr$ 7.048,80 Cr$ 8.232,60
Parque Proletário
Provisório nº 2
1942 1943 1944
Receita Bruta Cr$ 43.180,00 Cr$ 153.117,00 Cr$ 64.119,40
Despesa Cr$ 42.894,00 Cr$ 152.992,60 Cr$ 63.006,30
Saldo do Ano Cr$ 286,00 Cr$ 124,40 Cr$ 1.113,10
Parque Proletário
Provisório nº 3
1942 1943 1944
Receita Bruta ---- Cr$ 51.996,80 Cr$ 38.401,70
Despesa ---- Cr$ 45.235,10 Cr$ 25.613,90
Saldo do Ano ---- Cr$ 6.761,70 Cr$ 12.787,80
É importante notar como o movimento financeiro no primeiro ano de construção
dos Parques 1 e 2 é consideravelmente aumentado e sua queda se mostra no ano de
1944. Embora não haja dados muito precisos, podemos concluir que a aproximação do
fim do Governo Vargas, e com uma propaganda positiva sobre a administração do Rio
de Janeiro já estabelecida, os olhares e as ações nos Parques começaram a diminuir.
148
Observemos, também, parte do regulamento do Departamento de Assistência
Social, em 1944:
“Seção V – Do Serviço de Vilas e Parques Proletários
Sua finalidade é “administrar e orientar os parques proletários,
provisórios ou definitivos, existentes ou que venham a ser construídos, de futuro, pela
PDF, ministrando a seus moradores a assistência e amparo de que necessitem”.
Organização: compreende: a) administração; b) secretaria; c) portaria; d) conservação e
reparação de material; e) escolas primária, profissional e jardim de infância; f) creche;
g) depósito; h) dispensa e cozinha; i) vigilância e policiamento mais ambulatórios,
serviço de censo e inquéritos sociais, favelas, cortiços e outras habitações coletivas,
Centro de Serviço Social”.
Em agosto de 1945, a Presidência da República decreta a criação do ICP
(Instituto da Casa Popular) como uma autarquia administrativa sediada no Distrito
Federal. Em alguns de seus artigos estão estabelecidas funções do ICP no que compete à
continuação dos Parques Proletários
32
:
“Art.1: [...] atenderá às finalidades de construir casas higiênicas, de baixo
custo, destinadas às classes menos favorecidas, visando à extinção das favelas
e de outras habitações condenáveis e proteger tais classes contra os males da
habitação insalubre e da promiscuidade perigosa.
Art. 2: Os atuais Parques Proletários, com todos os terrenos e benfeitorias
pertencentes à Prefeitura do Distrito Federal, bem como todas as vilas e casas
residenciais à mesma pertencentes, serão incorporadas ao patrimônio do ICP, a
partir da data da publicação do presente decreto-lei.”
Em 1946 foi criado o Departamento de Assistência Social que abrange o Serviço de
Reeducação e Readaptação e o Serviço de Vilas e Parques Proletários, e do qual Victor
Tavares de Moura foi escolhido como diretor. Dois anos antes, Tavares de Moura
apresentou o relatório a Jesuíno de Albuquerque e enfatizava que o Serviço de
Reeducação e Readaptação da Secretaria de Assistência Social, a SAS, era um dos
serviços mais importantes do Departamento de mesmo nome, pois, “dele partem muitas
31
Acervo DAD/COC/FIOCRUZ – Fundo Victor Tavares de Moura.VT/MS/19390207.
149
iniciativas e a ele compete grande tarefa no tocante à reeducação dos grupos sociais dos
ajustados, bem como a solução de graves casos de famílias e indivíduos”. Segundo
Tavares de Moura, o Centro Social do Parque Proletário nº 1 fez diminuir a mortalidade
infantil, reduzindo de 39% para 5% do que se via nas favelas. Além disso, atividades
dadas para menores, como nos clubes operários, têm “reeducado e despertado o espírito
associativo” nos jovens.
Embora a idéia dos Parques Proletários permanecesse, com a saída de Vargas do
poder vem a falta de verbas para continuá-los e, mais uma vez, caracteriza-se um
projeto no Brasil que não tem continuação administrativa com a mudança de governo.
Um pouco mais de dez anos depois, Henrique Dodsworth escreve uma crônica para o
Correio da Manhã e faz um balanço de sua tarefa remodeladora e removedora das
favelas:
“É notório, e por isso mesmo deveria ser sabido que foram totalmente extintas
quatro favelas quando exerci a direção da Prefeitura e que duas foram apenas
parcialmente. Extintas a do Capinzal e Olaria, à Rua Marques de São Vicente,
a do Arará no Parque dos Minérios e a do Largo da Memória, nas imediações
da Avenida Bartolomeu Mitre [...].
Os moradores de todas elas foram transferidos depois de rigoroso censo
qualitativo e quantitativo para os Parques Proletários então criados [...]
reduzidos depois a lamentável ruína, por obra da descontinuidade
administrativa em 10 anos de critérios e descritérios de toda sorte [...].
Outras iniciativas têm surgido, animadas de idéias generosas e sob o patrocínio
de personalidades ilustres, mas iniciativas de caráter empírico e, portanto,
inadequado.
Somente a feição técnica, que vigorou durante a minha administração na
Prefeitura, poderá orientar a solução do problema das favelas. ‘Cidades que já
nascem velhas’ como dizia Euclydes da Cunha.”
33
Também em palestra proferida no Rotary Club, em 1957, Victor Tavares de
Moura é apresentado ao público como “indiscutível autoridade” sobre o assunto da
favela, tema que seria apresentado por ele. Segundo o apresentador, Victor Tavares de
32
Acervo DAD/COC/FIOCRUZ – Fundo Victor Tavares de Moura.VT/MS/19390207.
33
“Favelas”, Correio da Manhã, 28 de março de 1956.
150
Moura considerou a favela como “um processo de desintegração social”. Ainda nas
palavras do apresentador, há a indicação que o médico analisou:
“Um estado de ecologia social dentro das favelas, dividindo-as em zonas,
dividindo aquela sociedade que nós podemos considerar como a sociedade
formada de indivíduos inteiramente marginais, inteiramente desajustados da
sociedade, essas mesmas favelas se organizam em classes, em verdadeiras
zonas como se fossem, se formassem uma cidade em decadência, em processo
de involução.”
34
Em sua fala, Tavares de Moura afirma que “ninguém pode estudar um problema
humano sem conhecer o seu histórico, e a primeira coisa que eu fiz foi saber o que é
favela, o que significa favela e por que favela.” Relata, então, seus estudos sobre tais
habitações e revela que só conseguiu trabalhar em favelas como a Praia do Pinto,
através de informantes: “Estudei a Praia do Pinto e eu o fiz pela mão de um malandro.
Lá não ia ninguém, nem a própria polícia, senão armada, mas esse malandro fez
amizade comigo, chamava-se Sebastião do Rego e tinha o apelido de Coxixo.” Podemos
ver aí uma originalidade no pensamento de Tavares de Moura ao fazer tais indagações,
pois tais questionamentos nos anos de 1940 não eram comuns como hoje.
Portanto, o ideal de justiça social caracterizava-se como um problema coletivo.
Como mostra Angela de Castro Gomes, o trabalhador deveria merecer todos os auxílios
para uma melhor condição de vida: saúde, alimentação, habitação, educação, para que
não se tornasse um obstáculo ao desenvolvimento da nação.
35
O mal deveria ser
combatido e, para isso, deveriam se erradicar seus focos. Segundo a autora, a educação
deste novo homem passava por noções de moral, trabalho, disciplina, nacionalidade,
mesmo que para isso possamos observar que poderiam passar por cima de um
sentimento de solidariedade que existia dentro das favelas e mocambos e que poderia,
ou não, se perpetuar nas novas unidades habitacionais que estavam sendo criadas.
34
Acervo DAD/COC/FIOCRUZ – Fundo Victor Tavares de Moura VT/PI/19570108.
35
Angela de Castro Gomes, “Ideologia e trabalho no Estado Novo”, in Dulce Pandolfi (org.), Repensando
o Estado Novo, Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999.
151
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que descrevemos e analisamos aqui era um cenário de extremo controle e
enquadramento da sociedade. Em particular, a atuação do governo frente aos
trabalhadores urbanos chamava a atenção, pois estes eram considerados estratégicos,
sendo necessário observá-los de perto. Porém, embora a Justiça do Trabalho só tenha
atuado em toda a Nação em 1941, já havia uma certa intervenção social na vida do
trabalhador desde 1930, além da criação do Departamento Nacional do Trabalho de
1926. Isto posto, vemos que as atenções aos trabalhadores existiam antes do Estado
Novo. Embora muitos avanços sociais tenham ocorrido pós-1930, não se pode fechar os
olhos para a atuação dos governos anteriores a Vargas. Isso seria, segundo Ângela de
Castro Gomes, assumir a postura dos ideólogos da época, que faziam acreditar na
legitimação do Estado totalitário.
Deste modo, tradição e modernidade não fazem parte de algo que se caracterize
como causa e conseqüência, mas se combinam. As transformações que sofrem as
sociedades, como o Brasil do Estado Novo, estão ligadas a seus estados anteriores.
Muito embora um grande traço da modernidade seja a idéia de contemporaneidade, em
que se deve “viver o seu tempo”, deve-se também observar o que se articulou
anteriormente para se chegar a esse tempo.
A luta pelos direitos do trabalho no Brasil teve grandes benefícios com Getulio
Vargas, mas isso fez parte de um processo e de uma luta pré-1930 (Gomes, 2002:21-
22). Então, o que muda para os trabalhadores com o Governo de Vargas? A atenção
mais centrada e centralizada neste grupo fez nascer uma política mais controladora nos
indivíduos e nos sindicatos; foram eleitos, segundo D’Araújo, “os interlocutores
preferenciais do presidente” (D’Araújo, 2000:55). De alguma forma, o sentido de
cidadania mudara: o cidadão tinha uma carteira de trabalho e era respeitado por isso.
Num momento em que havia uma gestão forte e uma incessante busca pelo
nacionalismo, o amor-próprio do brasileiro deveria ser recuperado e o mundo do
trabalho se responsabilizava por isso.
Ao tentar compreender como o Brasil passou por processos de mudança em sua
construção nacional e como se deu o período de industrialização e, portanto, de
152
modernização, observamos que as diferenças entre ou intra sociedades e sua construção
histórica, têm papel preponderante no caminho de seus desenvolvimentos.
Podemos observar que problemas como articulação de interesses, solidariedade e
legitimação da autoridade aparecem de forma singular em diferentes sociedades,
embora sejam questões universais. Deste modo, os conceitos devem ser utilizados, mas
como instrumentos que auxiliam a entender os processos históricos do desenvolvimento
de Estados Nacionais distintos, e não encarados como receita infalível a que deva se
prender. Deve-se estabelecer que o entendimento dos processos de modernização deve
ser considerado historicizável, ao mesmo tempo em que enquadrados em conceitos mais
gerais (Bendix, 1964).
Assim como na obra de Bendix, faz-se necessário - ao analisar o Brasil da época
em questão -, observar as perspectivas weberianas da dimensão da autoridade e da
solidariedade. Por outro lado, também se deve preocupar com a articulação entre o
poder público e a comunidade política. Há, no entanto, a necessidade de se mostrar que
há singularidades nos processos de modernização e que estes combinam tradição e
modernidade. São, assim, construídos tipos ideais de modernização.
Para o novo governo, a constituição dos novos cidadãos, balizados por direitos
trabalhistas, caracteriza a origem dos direitos de cidadania como símbolo da igualdade
num âmbito nacional. As classes mais baixas começam a adquirir uma participação
mais ativa na política do país, além de se dimensionar quem fazia parte ou não deste
novo conceito de cidadania.
Se, antes, esse setor da sociedade não era representado, a partir destes vínculos
sociais esse sentido modificou-se em todo o território nacional, mesmo que ainda
houvesse um hiato entre o Estado e a sociedade e esta ainda fosse (ou seja) marcada por
desigualdades, pois todas as pessoas que desejam usufruir de seus direitos sociais e
políticos devem se associar para pleitear suas reivindicações.
Porém, a extensão da cidadania às classes baixas se mostra um critério de
igualdade abstrato, o que origina novas desigualdades, e que, segundo Bendix, esse
sistema só é destruído com os regimes totalitários, quando resoluções parciais são
153
substituídas pelo interesse de se implementar o que chama de princípio plebiscitário
num Estado com um único partido, como ocorre um pouco no Brasil.
Seria necessário pensar numa organização social e numa ideologia no Brasil
estadonovista em conexão com o pensamento de Weber, que rejeita uma visão
evolucionista da história e percebe particularidades nas análises comparativas de
diferentes sociedades ao pensá-las sociologicamente, ou melhor dizendo, numa
narrativa histórico-sociológica do desenvolvimento da identidade moderna e sua relação
com as diferentes sociedades. Isto é, embora possamos perceber que os fatores
existentes no Estado Novo não se consagrem realmente como novo e não apareça
somente no Brasil, como uma imaginação surpreendente de Vargas, é preciso entender
que questões que são universais podem ser entendidas em suas singularidades,
dependendo das estruturas sociais e do processo histórico por que as sociedades
passaram.
154
CONCLUSÃO
“Eis que uma boa imagem da exclusão
que se leva a sério significa que a
exclusão não é alguma coisa arbitrária
ou acidental. Ela releva a ordem da razão
[...] ela é justificada [...]. As exclusões
são as formas de discriminação negativa
que obedecem às regras estritas de
construção, numa sociedade dada”.
Robert Castel
“Entre as famílias mais pobres a
mobilidade extrema impede a
sedimentação do passado, perde-se a
crônica da família e do indivíduo em seu
percurso errante. Eis um dos mais cruéis
exercícios da opressão econômica sobre
o sujeito: a espoliação das lembranças”.
Ecléa Bosi
O que fazer numa conclusão? Esta é uma pergunta feita por muitos quando se
tem por fim escrevê-la. Creio que esta é a reposta: escrevê-la. Mas, de que forma? A
conclusão de um trabalho se configura numa das mais difíceis tarefas pelo fato de nunca
acharmos nosso trabalho realmente concluído. Conclusão dá uma idéia de fim, e não
acho que este trabalho tenha chegado ao seu final, pois muito ainda há por escrever
sobre Rio de Janeiro, Recife, Victor Tavares de Moura, Agamenon Magalhães, Getulio
Vargas, pobreza, assistência... e muitos dos assuntos que por aqui passaram.
Neste sentido, optei por fazer desta “conclusão” uma continuação da discussão
de algumas idéias e questões que por esta Tese passaram, e que poderão render frutos
para uma futura pesquisa. Falo da atuação do médico social Victor Tavares de Moura na
cidade do Rio de Janeiro. Como personagem central na história das favelas, Tavares de
Moura operou de forma peculiar na política social do governo Vargas e na política das
favelas do Rio de Janeiro. Foi pelo interesse em seu trabalho que esta Tese nasceu.
156
Os capítulos escritos até aqui formularam e justificaram sua atuação na política
assistencial e social que se pretendia durante os anos de 1930 e 1940. Foi importante
mostrar a criação das favelas, suas relações com os cortiços e compará-las a outras
formas de habitação popular, como foi o caso dos mocambos. Isto se deu para que, em
primeiro lugar, víssemos que o Rio de Janeiro não estava sozinho nas ações político-
assistenciais, e que, também, Victor Tavares de Moura não teve idéias desarticuladas
das ações políticas implementadas no Brasil como um todo. Mas, é importante ressaltar
que se o médico social sofreu influências em relação às medidas que propôs, o Rio de
Janeiro se configurava um local diferenciado dos outros. Era a capital da República,
onde importantes decisões eram tomadas para o país.
As classes populares, incluindo os moradores das favelas foram, a partir da
Revolução de 1930, alvo de políticas públicas propostas pelo Presidente Getulio Vargas.
Ao mesmo tempo em que uma ameaça à moral e aos bons costumes cariocas, os
habitantes das favelas eram eleitores em potencial e o Governo entendia que a melhoria
de suas condições de moradia, saúde, higiene e trabalho trariam esta população para
mais perto de suas realizações.
Não só nos anos de 1940, mas já na década anterior, com Pedro Ernesto na
interventoria da cidade do Rio de Janeiro, viu-se uma política de contato e resultados
com os moradores das favelas. Durante os anos de sua administração Pedro Ernesto
garantiu não só as condições baseadas nos direitos sociais - educação, saúde, emprego e
habitação -, bem como avalizou o setor cultural da cidade, a exemplo do Carnaval
(Conniff, 1981).
Logo após, ainda na administração de Olympio de Mello, predecessor de
Henrique Dodsworth, a Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro lançava o Código de
Obras de 1937, no qual, mais uma vez, se observavam ações em prol das habitações
populares, incluindo aquelas que o Código chamava de “habitações anti-higiênicas”. Os
anos 1930 inauguraram, então, a administração não só da cidade, mas de seus
habitantes.
Tal administração, organização e a busca pela socialização dos favelados
contaram, como mostra Licia Valladares (2005), com o apoio da estatística. Se a cidade,
157
para ser modificada, necessita do conhecimento de sua planta, seus bairros, sua
geografia, com seus moradores não poderia ser diferente. Há a necessidade de se
conhecer seus números, suas localizações, para investir em suas obras.
É, então, com a chegada dos anos 1940 que a estatística, que chegara ao Brasil
no século XIX, trouxe para as favelas a possibilidade de uma maior investigação e de
seu reconhecimento. Um estudo completo sobre as favelas foi solicitado, em 1941,
durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Urbanismo. Nesta solicitação pedia-se, entre
outras coisas, um dossiê fotográfico, número de habitantes e de habitações, condições
sanitárias e possibilidade de urbanização (Mariano Filho, 1941 apud Valladares, 2005).
Vale lembrar que neste mesmo ano houve a Primeira Conferência de Educação e Saúde,
promovida por este Ministério, que comprova a intenção do Estado brasileiro de discutir
tais demandas sociais.
Deste modo, todas essas ações abriram frente para o relatório de Victor Tavares
de Moura, publicado em 1943. Como já dissemos, embora a favela tivesse sido cantada
e contada desde o início do século XX, e que durante os anos de 1930 tivesse começado
a ser alvo de políticas públicas, é com Tavares de Moura que há a grande iniciativa de
se pesquisar sobre as moradias e seus moradores, e criar novas possibilidades para eles,
como foi o caso do projeto dos Parques Proletários Provisórios.
Sabemos, também, que o médico social não atuou sozinho. Além de contar com
o apoio incondicional do interventor Henrique Dodsworth e do próprio Presidente
Vargas, Moura pôde contar, ainda, com o trabalho das assistentes sociais que
auxiliavam não só na administração dos Parques, como na transferência dos moradores
das favelas para estes. Era um trabalho de identificação e (re)socialização dos
moradores, que deveriam aprender a conviver em sociedade, diferente do que faziam
nas favelas, segundo os preceitos dos administradores da época. As assistentes lidavam
com o processo de transferência e adaptação dos moradores, como foi o caso da própria
filha de Moura, já citado anteriormente.
158
Em entrevista feita com a senhora Maria Coeli Moura
1
, filha do Dr. Victor, pela
equipe do Projeto Memória da Favela Carioca, podemos identificar neste trabalho que,
muitas vezes, valores e pensamentos distintos daqueles que iriam habitar os Parques
diferenciavam daqueles que estavam prontos a removê-los. Ao ser perguntada sobre
qual era a reação das pessoas removidas, a senhora Maria Coeli responde:
“Ah, tinha muita dificuldade! Muitos queriam ir, claro que queriam ir, mas
queriam levar seus hábitos: coleção de latas, coleção de porcaria, está
entendendo? (...) Mas aí é que o Serviço Social, as assistentes sociais
mostravam. E quem é que não queria sair de uma porcaria e ver aquelas
casinhas limpinhas, tudo arrumadinho? Naturalmente que eles estavam ávidos
de ir para lá; teve um malandro que pediu para morrer lá. Papai levou, ele
morreu num quarto”.
2
Quando a entrevistada fala das “latas e porcarias” que as assistentes sociais não
permitiam que fossem levadas para a nova casa, não se percebe que esses objetos
tinham, de alguma forma, um valor muito maior do que o econômico para os ex-
habitantes das favelas: eram lembranças que fariam sobreviver o passado que, se teve
momentos ruins ou bons, os objetos representavam sua atuação com seu meio, com seus
hábitos, e os ligavam a um tempo e a um lugar. A memória, nesse sentido, aparece
como fenômeno social.
É deste modo que percebemos como a mudança de espaço, por mais necessária e
agradável que seja, passa por afetos, por objetos e lugares que se traduzem em cantos
inesquecíveis que fazem parte não só da memória daqueles indivíduos e sociedades,
mas reforçam as suas identidades. Os conjuntos de objetos que rodeiam todas as pessoas
justificam a sua existência, como era o caso das “latas e porcarias” dos habitantes das
favelas. Objetos que são constituídos de universos particulares que definem, muitas
vezes, a marca de seus donos, que os fazem se reconhecer.
1
Sobre Maria Coeli Moura, ver no capítulo referente a seu pai.
2
Entrevista feita em função do Projeto Memória da Favela Carioca: médicos, pobreza e reforma social.
(URBANDATA-BRASIL/COC-FIOCRUZ/IUPERJ), financiado pela FAPERJ, realizada por Jacqueline
Lima, Lídia Medeiros e Monique Batista, em 21 de janeiro de 2002.
159
Como vimos, também, tais políticas públicas e assistenciais não ocorrem
somente no Rio de Janeiro, mas vimos comparativamente o exemplo de Recife, onde o
ranço dos quilombos fez criar os mocambos, que sofreram semelhante intervenção no
final dos anos 1930 na administração de Agamenon Magalhães, e acabaram por
influenciar as ações nas favelas anos depois.
Isso mostra que a política varguista idealizou e colocou em prática um processo
de socialização e proteção aos trabalhadores brasileiros com o intuito de mostrar que a
mudança não poderia ser feita somente nas habitações populares, mas, e principalmente,
nos habitantes. Oferecer higiene, saúde e novas condições de habitabilidade a esses
trabalhadores daria a eles um novo olhar sobre o governo, e a reciprocidade então se
faria.
A saída de Vargas, e com ele o fim de seus projetos, acabou gerando o que
Thiago Fragoso (s/d) chama de “reivindicação de infra-estrutura”, pois os moradores de
favela acabaram tendo seus direitos revistos pelo processo de redemocratização. Mais
uma vez, não significava dizer que a partir de 1946 os políticos teriam um olhar
“bondoso” para com os moradores de favelas, mas o contexto fazia com que o governo
entrasse nas nelas com a finalidade de conferir os chamados direitos sociais (habitação,
emprego, saúde, etc.).
Foram criadas, assim, associações, como a Fundação Leão XIII, a partir de 1947,
que não só era instrumento da política governamental, mas também da Igreja Católica.
A estrutura seria moral e materialmente concedida. Maior proeminência política as
favelas teriam a partir dos anos 1950, pois não só a Igreja, mas os partidos políticos e
alguns intelectuais também se aliariam a elas (Burgos apud Zaluar, 2000). Cada vez
mais, os olhares sobre as favelas se dariam na perspectiva de orientação daqueles que lá
viviam. Era como se o valor a eles dado fosse um prêmio por merecimento pelo “bom
comportamento”, e não o questionamento de porquê estavam ali. Como aponta Fragoso:
“Em 1955 a Cruzada São Sebastião entra em cena aprofundando o trabalho nas
comunidades como exigência de uma politização do ‘problema favela’. Surge o
1º conjunto habitacional perto da favela de origem – a Cruzada, no Leblon. Um
ano depois, passa a atuar o Serviço de Recuperação das Favelas e Habitações
Anti-higiênicas (SERFHA) que, amparada na matriz filosófica higienista, apóia
160
até 1960, de forma modesta a Fundação Leão XIII e a Cruzada São Sebastião.
Todas estas atuações do Estado materializam uma concepção de mundo e de
sociedade que é exterior à favela”. (Fragoso, s/d)
A relação da pobreza com doença, falta de higiene e insalubridade foi o que
levou o primeiro governo Vargas a investir em ações sociais relacionadas à saúde,
educação, habitação e trabalho. A busca pela cidadania, com valores morais e sociais
próprios, só seria alcançada se fossem adotadas medidas de socialização que
garantissem a unidade nacional tão desejada na época, e o urbanismo foi um dos
colaboradores para solucionar tais questões.
161
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173
ANEXO 1:
Cronologia
CRONOLOGIA:
Rio de Janeiro Recife
Brasil
Favelas. Entrega do Relatório de Victor Tavares de Moura Educação e Saúde
Primeiro Congresso de
Urbanismo
1942 Criação do Primeiro Parque Proletário Provisório Entrada do Brasil na Segunda
Guerra Mundial
Conferência de Victor Tavares de Moura na
Academia de Letras, sobre as favelas no
Distrito Federal
1943 Criação do Parque Proletário Provisório nº 2 Criação da CLT
1944 Criação do Parque Proletário Provisório nº 4
Inauguração da Av. Presidente Vargas
1945 Surge o Serviço Social Contra o Deposição de Getulio Vargas:
Mocambo Fim do Estado Novo
180
ANEXO 2:
Fotos
Foto 1: Aspectos da população carente rural em Recife. Arquivo AGM – Foto 024_37 – CPDOC / FGV
Foto 2: Aspectos da população carente rural em Recife.Arquivo AGM – Foto 024_29 – CPDOC / FGV
182
Foto 3: Arquivo AGM – Foto 24_43– CPDOC / FGV
Foto 3: Novas edificações construídas através da campanha da Liga Social contra o Mocambo: Vila de Tecelagem de Seda e
Algodão de Pernambuco. Arquivo AGM – Foto 24_43– CPDOC / FGV
Foto 4: Novas edificações construídas através da campanha da Liga Social contra o Mocambo: Vila das Costureiras.
Arquivo AGM – Foto 24_50– CPDOC / FGV
183
Foto 5: Agamenon Magalhães e outros no palácio do governo do estado de Pernambuco.
Arquivo AGM – Foto 015_1 – CPDOC / FGV
Foto 6: Agamenon Magalhães, Getúlio Vargas, Apolônio Sales e outros durante banquete.
Arquivo AGM – Foto 016_1 – CPDOC / FGV
184
Foto 7: Agamenon Magalhães, Getúlio Vargas e outros interventores no Palácio do Catete.
Arquivo AGM – Foto 029_2 – CPDOC / FGV
Foto 8: Getúlio Vargas fala à nação por ocasião da instauração do Estado Novo, na presença de outras
autoridades no palácio do Catete. Arquivo GV – Foto 041 – CPDOC / FGV
185
Foto 9: Getúlio Vargas com o ministro da Justiça Agamenon Magalhães, em 1945.
Arquivo AGM
Foto 038
CPDOC / FGV
Foto 10: Placa de comemoração da construção da Vila das Lavadeiras em Recife, homenageando Agamenon
Magalhães. Arquivo AGM – Foto 024 - 55 – CPDOC / FGV
186
Foto 11: Favela do Largo da Memória. Arquivo VTM – VT / MS / 19390207 – COC / FIOCRUZ
Foto 12: Favela do Largo da Memória. Arquivo VTM – VT / MS / 19390207 – COC / FIOCRUZ
187
Foto 13: Favela do Largo da Memória. Arquivo VTM – VT / MS / 19390207 – COC / FIOCRUZ
Foto 14: Favela do Largo da Memória. Arquivo VTM – VT / MS / 19390207 – COC / FIOCRUZ
188
Foto 15: Comissão em visita à favela. Arquivo VTM – VT / MS / 19390207 – COC / FIOCRUZ
Foto 16: Casas experimentais do Parque Proletário Provisório nº 1 – Gávea.
Arquivo VTM – VT / MS / 19390207 – COC / FIOCRUZ
189
Foto 17: De um lado, a Favela da Praia do Pinto/Cidade Maravilhosa, do outro a construção do Parque
Proletário Provisório nº 3 – Praia do Pinto. Arquivo VTM – VT / MS / 19390207 – COC / FIOCRUZ
Foto 18: Parque Proletário Provisório nº 1 – Gávea.
Arquivo VTM – VT / MS / 19390207 –
COC / FIOCRUZ
190
Foto 19: Arquivo VTM – VT / MS / 19390207 – COC / FIOCRUZ
Foto 20: Arquivo VTM – VT / MS / 19390207 – COC / FIOCRUZ
191
ANEXO 3:
Documentos
Documento 1: Foto de Agamenon Magalhães dada ao casal Victor e Cristina Tavares de Moura.
Acervo Maria Coeli Moura
193
Documento 2: Capa do Relatório da Liga Social Contra o Mocambo. Acervo Licia Valladares.
194
Documento 3: Decreto da Comissão Censitária para os mocambos. Série de documentos
relativos à situação dos mocambos em alagados do Recife e à Liga Social Contra o Mocambo,
que visa a construção de casas populares. Acervo CPDOC/FGV. AGM c1938.09.17
195
Documento 4: Carta de Marcondes Filho, Ministro do Trabalho e da Justiça, a Agamenon
Magalhães comunicando que está em andamento o projeto do Mocambo e comentando sua carta
a Amaral Peixoto, Interventor do Rio de Janeiro, sobre a situação política nacional. Rio de
Janeiro, 1944. Acervo CPDOC/FGV. AGM c1944.12.05
196
Documento 5: Recorte do Jornal O Globo sobre a nomeação de Victor Tavares de Moura como
Chefe do Albergue da Boa Vontade, em 1937. Acervo COC/FIOCRUZ. VT/MS/19350405
197
Documento 6: Ficha dos Albergados no Albergue da Boa Vontade. Acervo COC/FIOCRUZ.
VT/MS/19400226
198
Documento 7: Nomeação de Victor Tavares de Moura para chefia de Albergue da Secretaria
Geral de Saúde e Assistência, em 1939. Acervo COC/FIOCRUZ. VT/MS/19350405
199
Documento 8: Capa do Documento Esboço para o estudo e solução do problema das favelas do
Rio de Janeiro. Acervo COC/FIOCRUZ. VT/MS/19390207
200
Documento 9: Ficha do Serviço Censitário para o estudo do problema das favelas. Acervo
COC/FIOCRUZ. VT/MS/19390207
201
Documento 10: Apuração do Censo na Favela do Largo da Memória.Acervo COC/FIOCRUZ.
VT/MS/19390207
202
Documento 11: Apuração do Censo na Favela da Praia do Pinto. Acervo COC/FIOCRUZ.
VT/MS/19390207
203
Documento 12: Fatura sobre obras no Parque Proletário Provisório Nº 1 – Gávea. Acervo
COC/FIOCRUZ. VT/MS/19390207
204
ANEXO 4:
Organogramas
SECRETARIA GERAL DE SAÚDE E ASSISTÊNCIA
1
SECRETÁRIO GERAL
SERVIÇO DE SERVIÇO DE SERVIÇO DE ESTATÍSTICA SERVIÇO DE INFORMAÇÃO LABORATÓRIO DE
ADMINISDTRAÇÃO EXPEDIENTE SANITÁRIA SANITÁRIA PRODUTOS FARMACÊUTICOS
DEPARTAMENTO - DEPARTAMENTO - DEPARTAMENTO - DEPARTAMENTO - DEPARTAMENTO - DEPARTAMENTO - DEPARTEMENTO - DEPARTAMENTO
ASSISTÊNCIA DE PUERICULTURA DE HIGIENE DE TUBERCULOSE DE ALIMENTAÇÃO DE MEDICINA DE ASSISTÊNCIA DE OBRAS E
HOSPITALAR VETERINÁRIA SOCIAL
2
INSTALAÇÕES
1
Decreto-lei nº 6769, de 04 de agosto de 1944. Fonte: Inventário Sumário do Fundo Gabinete do Prefeito – DF. Documentos da Administração Henrique Dodsworth
(1937-1945). Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural,
O Arquivo, 1996.
2
No detalhe na página seguinte.
206
DEPARTAMENTO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
DIRETOR
ALBERGUE DA BOA VONTADE ASILO SÃO FRANCISCO DE ASSIS
SERVIÇO DE REEDUCAÇÃO E SERVIÇOS DE VILAS E PARQUES
READAPTAÇÃO PROLETÁRIOS
SERVIÇO CENTRAL DE ASSIS- SERVIÇO DE CORRESPONDÊNCIA
TÊNCIA
SERVIÇOS AUXILIARES
207
ANEXO 5:
Entrevista com Maria Coeli Moura
ENTREVISTA COM MARIA COELI MOURA
1
FITA 1:
LADO A:
JL – Bom, Dona Maria Coeli, gostaríamos de conversar com a senhora sobre a vida
familiar do Dr. Victor, o que a senhora souber sobre seus avós, sobre a vida dele, da
infância. A senhora fique à vontade.
MC – Papai teve uma origem, como quase todos no Recife, de senhor de engenho –
embora com sangue azul de nobreza –, mas se o meu avô era senhor de engenho
naquela época, era também um homem muito avançado, porque não ficou apenas como
um senhor de engenho, ele também teve o dom, o bom senso de levar os filhos para os
estudos. Então, ele teve um filho advogado, um bispo e teve papai que foi estudar
medicina aos 14 anos, entendeu? Ele tinha uma visão muito grande. E ele nunca teve
escravatura. Ele tinha uns empregados que eram titulados como escravos, mas, quando
houve a Lei Áurea, não é, ele deu a carta de alforria porque era lei, mas na realidade
eles nunca foram tratados como escravos. Tenho uma vaga idéia de um escravo que
tinha muita liberdade, que comia na mesa com ele. Foi o único que foi embora porque
não tinha mais o que esperar da liberdade. E papai teve vida muito rural, mas com 14
anos e meio ele, primeiro foi estudar no seminário diocesano de Olinda. Naquela época,
não sei agora, as pessoas não iam estudar no seminário só para ter a carreira religiosa,
mas era também o ensino da época, o que devia corresponder ao ensino primário, depois
o primeiro e o segundo, não sei bem o grau, porque naquela época era diferente. De lá,
papai então com 14 anos e meio, tanto que ele foi o benjamim da turma, se formou
muito cedo e foi estudar medicina na Bahia. Antes de terminar o curso ele se transferiu
para a Universidade do Rio de Janeiro, onde ele se formou. Fez especialização em
Medicina e foi o primeiro assistente do José de Mendonça, que era naquela época a
sumidade cirúrgica no Rio de Janeiro. Com 22 anos, eu acho que ele se formou com 20
anos e meio, o vovô deu a ele a oportunidade de fazer a especialização cirúrgica em
Paris e na Alemanha. Ele ficou um tempo em Paris e depois foi para a Alemanha para
fazer com o grande Fischer que era também o grande nome da época. Lá ele tinha um
grupo de colegas brasileiros, e eles falavam português. Isso irritava muito à população
porque era tempo de guerra. Ele assistiu a declaração do Kaiser, da guerra de 1914.
Então, disse que o Kaiser puxou o sabre e disse “eu e a minha espada declaramos guerra
ao Deus e ao homem”. Era a loucura alemã, né? Então, papai falava português e aquilo
irritava, mas eles já faziam aquilo de brincadeira. E ele tinha tipo de montenegrino, era
moreninho, cabelos pretos. Um dia, nessa brincadeira, ele se deu mal, porque foi
1
Entrevista com Maria Coeli Moura, filha de Victor Tavares de Moura, assistente social que
trabalhou com o pai no Parque Proletário da Gávea, feita em 22 de janeiro de 2001, em função do
Projeto “Memória da Favela Carioca: médicos, pobreza e reforma social” (URBANDATA-BRASIL,
COC/FIOCRUZ e IUPERJ, financiado pela FAPERJ), entrevistada por Lídia Medeiros, Jacqueline
Lima e Monique Batista. Esta entrevista revisada por Lídia Medeiros encontra-se no Inventário
Analítico da Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz. Departamento de Arquivo e
Documentação. Arquivo Victor Tavares de Moura. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2005.
209
prisioneiro de guerra e condenado à morte. Só que ele dividia o apartamento com um
oficial da guarda imperial do Kaiser. Então..., aquelas coisas todas, ele declarou o
conhecimento desse oficial e o oficial foi chamado. Papai disse que a impressão foi
horrível, porque eram quase cinco horas da manhã, sentados à mesa, num banco, e o tal
colega dele entrou naquele passo marcial. Então perguntaram: “Conhece este homem?”
Então disse que ele botou o sabre sobre a mesa e disse: “Pela minha pátria e minha
honra. É um colega brasileiro, mora comigo”. E deu todas as fichas de papai. Então
houve mil desculpas do governo alemão, mas papai ficou furioso e então resolveu sair
para a Holanda e se inscrever na Cruz Vermelha Francesa pra brigar. Você vê que era
coisa de jovem! E a dona da casa não deixou ele tirar a bagagem porque o país estava
em guerra. Como é que você pode avisar, minha filha, com 15 dias, que vai sair do
apartamento? Então a bagagem ficou fechada, os marcos ficaram nos bancos e ele veio
com um sobretudo, num trem de cargas para Amsterdã. Chegando em Amsterdã, o
nosso cônsul era o Tefé e ele viu lá o melhor hotel que tinha, pediu um frasco de (?),
entrou num banheiro, tomou um banho e procurou o cônsul. Então o cônsul foi lá, o
Tefé mandou dar toda assistência que ele precisava e tal. E a família quando começou a
tomar conhecimento, forçou dizendo que vovó estava doente, que era o único meio dele
voltar para o Brasil. E no meio do Canal da Mancha, já no navio, ele recebeu o
cabograma avisando que vovó estava bem. Então, ele foi obrigado a voltar para o Brasil.
Veio para o Rio de Janeiro, mas logo foi para o Recife e aí vocês têm toda aquela
história do livro que eu dei a vocês, não é? Serviço de Odontologia, Secretaria de Saúde,
enfim, aquela vida dele toda. Ele estava como que corresponde á Secretaria de Saúde
aqui, naquela época era o governo do Dr. Povoa, em Pernambuco. Ele estava com a casa
montada para casar, quando o governo Povoa saiu e automaticamente, o cargo dele que
era de confiança, também. O irmão dele, meu padrinho, Dom Moura, era o fundador da
diocese da cidade de Garanhuns, o primeiro bispo e convidou o papai para ser o médico
da cidade e papai foi, foi lá que eu nasci. Ele desmontou a casa e foi. Mas aí começou
uma vida muito árdua, porque papai trabalhava muito com gente do bando de Lampião,
de Manuel Silvino, que é sertão quase, embora seja uma cidade longe, uma cidade fria,
de dez graus, às vezes – até agora é de turista –, mas ela fica muito próxima dessa parte
do sertanejo.Então, veio a peste bubônica, ele tomava muito soro, coitado, ficava muito
inchado, tinha que levantar de madrugada para atender gente fora. Às vezes tinha um
cinema, uma vez por semana tinha um filme premiado, quando estava no meio da fita
aparecia na tela “chamado para o Dr. Moura”, então mamãe ficava com alguém e lá ia
papai atender. E era uma vida muito sacrificada, mas, enfim, ele era o médico da cidade.
Quando eu estava com quase dois anos, a coisa estava muito difícil, porque o pessoal
não podia pagar e ele tinha filho para criar. Teve um camarada que mandou sortear um
cabrito para poder dar o cabrito para papai. Então o que ele fazia? Ele mandou juntar
um monte de papelzinho com uma pontinha preta, e o garoto que vinha pegar pegava o
da pontinha preta que era para papai ganhar. Claro que papai sempre foi uma criatura
desprendida da parte material. Ele cobrava, não cobrava, fazia benefício para ajudar a
todo mundo... Isso devia ser do temperamento dele, ele tinha por teoria que quando
fazia alguma coisa de bom, dizia: “Minha filha – para minha mãe – não importa o que
se faz e a quem faz, o que importa é que seja feito”. Tanto que naquela época do Dr.
Getulio, papai procurava muito se esconder nas fotografias, ele não era uma pessoa que
quisesse se projetar, a projeção do papai era pelo valor intrínseco dele. Para mim é meio
difícil, parece meio cabotino filho falar do pai, mas tenho a consciência tranqüila de que
posso encher a boca para falar do meu pai porque ele realmente era uma pessoa... Eu
queria ser a metade da bondade que papai foi, do desprendimento fora de série mesmo.
Bom, aí ele veio com o irmão para Recife e, não esquecendo daquela situação do meio
210
rural, ele arrendou do cunhado – porque a família toda lida muito com engenho, com
essas coisas – um engenho que era onde o diabo perdeu as botas, num lugar horrível
chamado Capicuri. Eu não me lembro porque era muito pequeninha, mas tenho umas
idéias de algumas coisas. Por exemplo, a gente ia por uma estrada a cobra estava
enrodilhada para dar o bote. Uma vez eu passei e os trabalhadores mataram; ela aparecia
dentro da cesta de roupa lavada dentro de casa. E mamãe todo dia rezava às seis horas
da tarde para sair daquele lugar. Um belo dia, ele botou o pé na bota e lá estava uma
caranguejeira dentro, eles ainda não sabiam do antídoto e ele sofreu muito porque a
mordida dela é muito forte, dói muito. Depois ele descobriu: você faz uma papinha,
mesmo fina, de bicarbonato de sódio com água e põe sobre a lesão e a dor passa. Tanto
que ele atendeu um homem que estava bêbado e dizia que tinha tirado o braço dele! A
dor passa. Eu tive urticária, a gente tem várias coisas devido ao envenenamento da
bicha, não é? E era uma vida difícil. Com dois anos depois ele saiu daí. Algum tempo
depois ele – sempre aturando engenho – ele fez sociedade com dois pernambucanos
numa usina chamada Rio Luna, que ficava às margens do rio Luna, que dividia a cidade
de Barreiros. Já era governador o Estácio Coimbra. Então, ele era diretor do Hospital
Santa Francisca. Então, unia o útil ao agradável, tinha a parte da medicina, era diretor
do hospital da cidade, e tinha a parte da sociedade na usina. Mas, com a Revolução de
30 houve aquela luta e queimaram o Hospital, aquilo tudo e depois, então, ele foi
também... Acho... Não lembro detalhes porque eu tinha sete ou oito anos, então a gente
não sabe muitos detalhes – mas o fato é que a sociedade dele com os dois amigos se
dissolveu. Ele ficou no Departamento de Higiene do Posto de Saúde por muito tempo,
ater que o Cônego Olympio de Melo era o prefeito do Rio e, por uma coincidência, tio
Agamenon estava no Ministério do Trabalho, se não me engano, nessa época. Tio
Agamenon foi duas vezes do Trabalho e uma da Justiça. Eu acho que primeiro foi
Ministro do Trabalho. Então, convidaram papai para vir para o Rio de Janeiro,
arrumaram um trabalho para ele vir fazer aqui.
JL – Como foi esse convite?
MC – Sim, Tio Agamenon e o padre Olympio de Melo requisitaram ele para vir e ele
veio. Então ele montou um consultoriozinho de medicina na Avenida Rio Branco – eu
mandei a placa para vocês, não mandei? (sic) Quanto à minha memória, eu me lembro
que o primeiro cargo que a prefeitura deu a papai foi no Albergue da Boa Vontade, em
35, 36. Ele veio para... 35 ele veio para a Cidade do Rio, 36, 37, não foi? Foi muito
remoto. Eu sei que o Albergue era um depósito de gente pobre.
LM – Antes de a gente entrar nas coisas mais específicas, acho que valia a pena falar
um pouco mais das relações familiares porque elas são a base da pessoa. Irmãos,
quantos irmãos...?
MC – Eles eram 9 irmãos. Depois morreu uma e ficaram 8. Papai era o conciliador da
família, papai era o irmão que unia. Papai e mamãe eram os cunhados chamados em
todos os momentos difíceis da vida.
211
LM – Ele era o mais velho?
MC – Não, era um dos mais moços. Por exemplo, ele morou muito tempo, quando
solteiro, com o meu avô no engenho e essas coisas, ele morou com o mais velho que era
industrial, Zequinha de Moura. Morava com tia Candoca e tio José de Moura. Então,
qualquer problema que se dava na família, Victor e Maria Cristina eram as pessoas
chamadas. Talvez só mesmo pelo temperamento. Por exemplo, esse meu tio mais velho,
José de Moura, teve a infelicidade de perder três filhos: um numa viagem que ele fez à
Europa, o menino teve tifo e ficou lá. Anos depois, acho que minha tia já tinha morrido,
veio o corpo para o Brasil; ele perdeu o filho mais velho num ataque de alergia aqui no
Rio de Janeiro. Então, quem veio para buscar o corpo foram papai e mamãe. Quando
chegou em Recife, ele chamou papai e disse: “Victor, eu não tenho coragem de assistir
ao encontro de Cândida com o José Carlos. Eu queria mais a presença de vocês”.
Quando chegou na vez do tio Francisco, ele teve barriga d’água – porque eles todos
morreram de cirrose – a linhagem das mortes do bispo, do papai, o tio Francisco, a
vovó, eu não sei se era banho de rio, esquistossoma, naquela época, mas havia o
problema da função hepática e a dele foi a primeira da série de todas elas, o meu fígado
está se manifestando agora, só que, com a graça de Deus, não é grave na função
hepática. Mas eu não conheço nenhum primo que não esteja chateado nesta parte de
fígado. Mas a geração nova não pegou essa parte. Então, foi o irmão na transfusão de
sangue, das noites mal dormidas, da presença. Depois, quando morre – você sabe, tem
sempre um problema de família, porque tem a família da cunhada, da mulher, do
marido, cada um tinha um temperamento. Todas as minhas tias são muito boas pessoas,
muito educadas, mas todas com temperamentos muito diferentes. Então, eu me lembro
de papai, na parte de morte do tio Francisco, houve muita interferência de papai na
questão de lei, digamos assim, na conciliação de família. Enfim, ele era o conciliador e
muito querido por todos eles e pelos sobrinhos. Tanto, que quando ele comprou um sítio
para mim aqui no Rio, o sonho dele era construir uma casa no terreno para um dos
sobrinhos dele. Ele era muito, muito querido esmo, tanto pelos sobrinhos do lado da
mamãe como do lado da família dele. Por toda a vida ele foi conciliador. Agora, era
uma família de estirpe, de papai, de família todos muito finos, todos muitos educados,
todos muito amigos, família católica praticante, com um irmão bispo. Essa minha tia,
mulher do Tavares de Moura, o mais velho, ela cegou antes de morrer e a preocupação
dela não era pelo fato de estar cega, era que as pessoas não sofressem por causa dela.
Era uma santa, essa minha tia. José de Moura, era meigo, falava manso, vô Moura
também, quer dizer, era uma família muito, muito unida, e além de unida, a família de
papai era bonita. Só ele que só teve um filho, porque tio José de Moura teve 9, tio Artur
teve 7, agora ele teve uma irmã que teve ataque de eclampsia no quarto filho, deixou 3
meninas, então a outra irmã dele que não tinha filhos, passou a ser uma espécie de
guardiã, porque o marido da minha tia botou as meninas num colégio interno com 2, 3
anos. Então, quando elas começaram a tomar ciência, elas pediram à tia que não tinha
filhos para tirar elas, porque elas ficavam mais à vontade na casa da tia no engenho.
Então, tia Naninha completou a educação das meninas. Mas quando Miriam se formou,
ela disse: “Agora, titia, vou deixar sua casa porque eu vou ser a dona da casa do papai”.
Porque tio Adolfo nunca se casou, ele continuou viúvo. Então, ela foi ficar com o pai
até o pai morrer. Quando o pai morreu, elas passaram definitivamente para tia Naninha.
LM – Então, eram quatro homens?
212
MC – Não.
LM – Digo, os irmãos do Dr. Victor...
MC – De papai eram. Tio José, tio Artur, tio Francisco, tio Adolfo, tio Alfredo – que
morreu cedo –, tia Júlia, tia Naninha, Dom Moura... Tio Francisco, tio Artur, depois tio
Alfredo, depois padrinho Dom Moura, ta faltando um. Eu tenho que ir lá ver na
fotografia...
LM – Bom, então tinha o bispo, Dr. Victor que era médico, tinha o industrial...
MC – Tinha o tio Artur que era advogado, tinha o tio Chico que era desses negócios de
engenho, tio Adolfo, Alfredo morreu com 22 anos – desse eu não me lembro, Alfredo,
Alfredo, não sei bem qual era a profissão dele porque ele morreu muito cedo.
LM – Agora, algum deles, além do Dr. Victor, teve algum cargo público?
MC – Ah, sim! Tio Artur foi a mão direita no governo do tio Agamenon e o filho dele
foi secretário particular do tio Agamenon. Tio Artur era brilhante, era advogado. Era
brilhante. O tio José de Moura teve... O filho dele, Arlindo Moura, tinha aquela fortuna
toda aos 36 anos, aquela coisa fantástica, era grande amigo do tio Agamenon, era
correligionário, tanto que ele morreu depois que Agamenon morreu – ele se matou, né?
JL – Esse Artur Moura também trabalhava na Folha da Manhã com Agamenon?
MC – É, com Agamenon, pois é, o tio Artur. E o filho dele, Júlio, foi secretário
particular do tio Agamenon, depois passou a ser Jarbas Maranhão que é marido da
Lourdinha, filho de tio José de Moura.
JL – Sei.
MC – Que é o senador. Não é possível que eu tenha esquecido de outro tio, não tenho.
Tio José de Moura, tio Artur, papai, tio Alfredo... Não tinha outro não. Mas era outro
tio. Eu me lembro que tinha fotografia que era assim: morreu um, ficou outro vivo,
morreu um, ficou outro vivo, então... Eu não sei. Depois eu vou procurar essa fotografia
para ver quem é que eu estou esquecendo.
LM – O Dr. Agamenon Magalhães era da família da sua mãe?
213
MC – Não. Aí, papai era amigo do tio Agamenon.
LM – Antes do casamento?
MC – Antes mesmo do casamento de mamãe. E mamãe... Eram três moças: tia
Antonieta, que casou com o tio Agamenon; Maria Carolina, a mais moça e mamãe, a do
meio, Maria Cristina. E tio Agamenon já era amigo de papai. Quando ele se casou com
ta Antonieta, a amizade deles não foi porque ele entrou na família. A amizade deles... E
papai casou depois dele. Na ordem, casou depois dele. Agora, eles eram muito unidos,
tanto que eles eram compadres, papai batizou todos os filhos dele. Eles eram muito
unidos. E quando ele tinha problema... O menino mais velho dele, que já morreu, dizia
que o papai era o pai dele também, o segundo pai. Então, eles eram, os meninos, muito
unidos com papai, todos eles. E os netos de tio Agamenon e os bisnetos eram todos
apegados com papai. Papai sempre foi o avozão, sabe como é? Tanto que ele morrendo
a gente precisou ter muito cuidado porque as netas de tio Agamenon corriam e se
atiravam na cama em cima da barriga dele. E ele já muito mal mandava comprar
bombom e umas coisinhas assim para dar às meninas. Tanto que quando ele morreu,
uma delas era muito pequenininha e foi ao cemitério um dia e botava as mãozinhas
assim na pedra dizendo que ele ia levantar. Elas eram muito, muito apegadas com ele.
Papai, papai conquistou a família dele e a família da mamãe. Tanto, que a tia que criou a
mamãe... Tio Agamenon era um homem público e tinha uma vida mais movimentada.
Então, viaja para cá, viaja para lá, viaja para cá, você sabe como é que é. A mais moça
foi muito bem casada, mas ficou viúva porque o tio (sic) morreu muito cedo. Tanto que
a tia que criou mamãe... Quando desmanchou a casa, o genro que ela escolheu para
morar e terminar a vida dela foi papai. Ela morava conosco, ela morou na nossa casa.
Era tia-avó, que criou mamãe. Acabou de criar a irmã dela, vovó do Carmo, e criou a
mamãe. Porque o meu avô do lado materno morreu com mais ou menos uns trinta anos
e minha avó ficou com a escadinha: uma de 4, uma de 3, uma de 2 e uma de dois meses.
Então minha avó levou toda essa gente para dentro de casa com meu tio-avô, que era
um português muito fino. Ele tinha uma fábrica de calçados para o exército e tinha uma
firma: Braga e Sá e Cia. Então, ele de dois em dois anos fazia uma viagem ao Porto para
visitar a família, fazia uma estação de águas em Vichy com vovó, vovó se vestia em
Paris e voltavam os dois, mas nunca tiveram filhos. Então, ele foi muito generoso, e
levou a mamãe, todo mundo e vovó para casa e criou as meninas com muito amor.
Quando elas, já mocinhas estavam se preparando para ir à França, ele morreu. Então
ficou... A de dois meses morreu logo em seguida e ficaram as três mais velhas. Então se
chamava a casa das cinco Marias e a gente nasceu vendo a vovó Braga, que é a vovó
que criou a mamãe e a gente considerava também como avó. A gente tinha aqueles dois
amores dentro de casa que eram as duas avós. A mãe de mamãe morreu mais cedo de
diabetes e vovó morreu na minha casa com 84 anos, que era muito apegada, mamãe era
muito apegada com ela. E aí era papai, tudo era papai. Papai era um doce, mas eu acho
que era por isso mesmo que Nosso Senhor o levou tão cedo, né? Quer dizer, agora ele
não estaria vivo, já teriam passado 26 anos... Apesar de que ontem, eu andei
perguntando lá no cemitério, estava conversando com, um senhor e ele me disse que o
avô dele era o centro das atenções da família toda, reuniões de Natal e tudo, que ele
morreu com 109 anos perfeitamente lúcido, chamando “cadê o namorado de fulana que
não apareceu, cadê cicrano”, uma perfeição, a família se reunia para o Natal tudo em
volta dele. Agora, papai estaria com que idade? Ele foi de 1894, não, de 1892, 110, já
estaria muito velho. O que mais?
214
JL – Então, voltando um pouquinho à vinda dele aqui para o Rio, quando exatamente
foi essa vinda? O ano mais ou menos...
MC – Foi março de 1935 e nós viemos... Eu cheguei com mamãe – viemos depois de
navio – no dia 13 de junho de 35, porque ele teve que vir antes.
JL – Porque houve uma campanha em Pernambuco, de Ligas Sociais Contra o
Mocambo, a criação de vilas operárias, pelo Agamenon.
MC – Sim, mas foi depois, papai já estava aqui.
JL – Depois, em 39. Então ele não chegou a participar junto com Agamenon dessa...
MC – Não, papai já estava aqui. A campanha do mocambo, o trabalho social do tio
Agamenon interessou muito a papai porque era um trabalho muito bonito, mas era
diferente porque mesmo a condição social de Pernambuco era muito diferente da
condição social do Rio de Janeiro. Começa que as casas lá eram dentro de mangue.
JL – Sim, Alagados.
MC – As casas dentro do manguezal, aquela coisa toda. Então, tio Agamenon aterrava e
lá, não tem, lá em Pernambuco não há morro, então nós não temos o problema da favela
no morro. Então tinha aquelas partes pobres. E tio Agamenon fez o seguinte: ele
transformava em vilas, mas ele fez as vilas por profissões – vila das costureiras, vila das
lavadeiras, entendeu? Urbanizou assim, de acordo com a profissão. E foi esse trabalho
do mocambo, dessas casas de palafitas, dessas coisas que tinha. Porque aqui, no serviço
social dele, claro, muito ligado lá, porque a ele interessava. Só que a parte urbanística da
cidade, as condições sociais de Pernambuco, tudo era diferente das condições do Rio de
Janeiro.
JL – Mas eles chegavam a trocar idéias?
MC – Ah, sim. E papai de vez em quando ia a Recife a convite fazer conferência, era
recebido pelos jornalistas. Ele tinha uma projeção. Agora, naturalmente, eu acredito que
ele tenha se valido muito de... Quando ela me perguntou sobre cartas, mas eu não
encontrei cartas porque aquilo eles conversavam, eles falavam, e muitas vezes talvez ele
tenha recebido alguma carta de tio Agamenon, rasgou depois, tomou experiência e
telefonou, porque eu não sei nem como era que eles se entrosavam. Mas havia
entrosamento, naturalmente, entre os dois.
215
JL – Então, a gente queria saber agora como é que foi a experiência dele, Dr. Victor, no
Albergue da Boa Vontade, que era o que a senhora estava...
MC – Essa experiência para mim foi muito bonita, partiu muito dom coração dele. Ele,
quando chegou no Albergue, o Albergue era um depósito noturno de pessoas
desempregadas. Então, papai resolveu transformar aquilo, quer dizer, orientar, começou
que as pessoas ao entrar eram identificadas, eram fotografadas, elas deixavam algum
objeto pessoal se tivessem alguma coisa de valor, elas recebiam à noite uma primeira
alimentação, roupa limpa, um banho, dormiam. Eram salões de homens e de mulheres.
Agora, tinha sempre um vigilante à noite e papai não deixava que fossem acordados
com campainha nem com nada dessas coisas. Ele achava que a pessoa que amanhece
mal dormida e assustada é muito desagradável. Então eles eram chamados um a um e aí
começava o trabalho de papai para... Eles tinham, digamos, oito dias no Albergue. Em
casos importantes, como sacerdotes, cientistas, (sic), repórteres, naturalmente que papai
recebia no gabinete dele. Essa massa... Não é que ele desprezava não, os outros tinham a
mesma atenção, mas houve casos em que papai... Inclusive a pobreza envergonhada,
colegas, com certeza ele não podia tratar como um velhinho, na verdade tinha que ter
todas as atenções no Albergue. Era um cientista que foi bater lá. Então tinha serventia.
Então, ele fazia intercâmbio com o cais do porto, com o Moinho Fluminense, para
empregar a gente, para ter vínculo empregatício. Então, a pessoa estava recebendo
alimentação, dormida, a parte toda de identidade, fichas policiais, aquilo tudo,
organizamos e o trabalho sendo preparado. Então muitos já saíam empregados porque
ele fazia... O trabalho não era só o camarada ir lá dormir porque estava na rua, não. O
camarada tinha que ter sua orientação. E era um lugar limpo, bem tratado. Todos os
anos no dia de São Lucas, que é 18 de outubro, havia festas de aniversário do Albergue.
Ele fazia missa. Essa missa todos os funcionários e amigos eram convidados. Ele fazia
almoço, ele comemorava e o Albergue era realmente um lugar bonito. Tanto, que mais
tarde, quando eu fui trabalhar no centro de recuperação de mendigos, eu tinha essa visão
do papai, quando eu era secretária, diretora de planejamento, secretária de serviços
sociais, eles me mandaram, me tiraram da minha função, me deram uma empregada,
uma xícara de café, essas besteiras. E lá fui eu para 3 ou 4 salas na Avenida 13 de Maio,
mas me deram uma verba. Esse serviço era diretamente ligado ao secretário e eu montei
o serviço para o Dr. Vilar, organizei papéis, pranchetas, tudo direitinho. (sic).
FIM DO LADO A
LADO B:
MC – E tinha algo muito com a parte de Albergue. Pelos menos no atendimento e tal.
Era diretor o Dr. Celestino. Então o Dr. Celestino me requisitou para fazer o orçamento
porque algumas vezes eu fui agente de orçamento do Estado, isto é, eu era a funcionária
encarregada de fazer toda a planilha, todo o mapa orçamentário do que um
departamento ou uma secretaria precisa e aqueles mapas vão com a defesa: porque eu
216
estou pedindo tantos lápis, porque eu estou pedindo isso ou aquilo, vai para a
Assembléia Legislativa para ser votado.
LM – Em que época?
MC – Esse ano. Papai já tinha morrido, foi depois de 60.
LM – Certo.
MC – Então eu fiz esse trabalho não somente na divisão de teatro para o departamento
de cultura como fiz também para Dr. Celestino, se eu não me engano. Então essas
verbas foram para o departamento de recuperação de mendigos, que eu agora não sei
como está, não sei se continuam com o trabalho, não sei como é porque agora eu já
estou muito afastada do Estado há muitos anos. Mas o Albergue foi um exemplo. Agora
de esse Albergue hoje – que tem o nome de João XXIII – continua sendo alguma coisa
de louvável eu não posso dizer.
LM – O que eu queria saber em relação ao Albergue, eu li todas aquelas reportagens
que vocês reuniram ao longo dos anos e o que me chamou mais a atenção é que os
jornalistas sempre destacavam o fato de ser aquela uma experiência totalmente inédita,
de os outros Albergues não copiarem aquele sistema.
MC – Não, não.
LM – A senhora tem idéia de como o Dr. Victor teve essa idéia? Como ele formulou
esse projeto?
MC – Dele.
LM – Da experiência dele?
MC – Dele. Tudo que partia de papai eu não tenho conhecimento de que papai fosse
fazer porque tivesse visto isso em algum lugar.
LM – Não, às vezes assim... Por exemplo, teve uma inspiração, né?
MC – É, inspiração dele.
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LM – Eu acredito que, por exemplo, na questão da remoção das favelas, muitas das suas
idéias tenham surgido da conversa com o Dr. Agamenon, idéias comuns talvez que eles
tivessem.
MC – ...você leu... Bom, eu tenho pra dizer, aquele livro que... Aliás, eu tinha que fazer
com você, Lídia vamos..., que aquilo ali, inclusive a gente não encontra letra. Vamos
ver se a gente passa tudo cortando o que não deve, naquele bendito daquele livro. Ali
ele conta muito bem que foi chamado para fazer um plano desmonte de favela. Claro
que ele tinha a concepção própria dele, mas também devia ter a concepção de um
homem de visão, de um homem social, de um homem que lê, de um homem que vê as
coisas em outros países, talvez algumas experiências, embora cada caso seja um caso,
cada país seja um país, eu acredito que o papai podia ter. Agora, eu tenho a impressão
que muito do trabalho de papai era uma coisa dele, inspiração dele, coração dele, porque
papai era um homem que trabalhava com o coração, embora algumas vezes ele era
muito amigo de Dom Távora e Dom Távora era da Fundação Leão XIII.Então, às vezes
como amigos eles discordavam em pontos de trabalho porque o Dom Távora fazia, e era
natural que fizesse, exclusivamente com a visão religiosa e o papai fazia o trabalho
social com a visão religiosa, mas ao lado da visão técnica, não é? Porque você não pode
só pensar, você vai fazer a caridade, mas você vai fazer o ajuste. A caridade não é só
você passar a mão na cabeça do que está errado, não é verdade? Você tem que fazer
aquilo dando um seguimento de bem-estar para a pessoa. Isso que eu digo. Quando o
Lacerda tirou o Pasmado, eu tenho a impressão – eu trabalhava na secretaria – eu tenho
impressão que ele tirou aquilo mais no sentido urbanístico da cidade, mas não no
sentido social ou humano, porque ele tirou moradores da zona sul para a Vila Kennedy
em casas de mutirão. Quer dizer, ele não lembrou do reajuste profissional dessa gente.
Pois se essa gente trabalha na zona sul e é jogada para o lado de lá, vai haver um
desajuste, não vai? De tempo, de sono, de convivência familiar, de atenção para com os
filhos, tudo isso vai desaparecer porque você tem que trabalhar, de preferência – é o que
ele fazia quando era o Instituto dos Bancários – você tem que trabalhar perto também da
sua residência porque você não pega... o ser humano não é uma máquina que vai para lá
e depois vem como um robozinho não. E um homem que chega esfolado do trabalho de
noite numa Vila Kennedy, vindo da zona Sul, ele já vai encontrar os filhos dormindo,
não vai? Quando ele sair de madrugada ele não vai deixar também a família? Então, que
aproximação tem com o familiar? E o cansaço? E a despesa? E o desgaste?
JL – Essa era uma preocupação do Dr. Victor?
MC – É, o papai tinha, como eu acho que era essa a preocupação dele, é que você tem...
O serviço social é um todo. Se você vai fazer o social numa favela, você vai fazer, mas
tem que pensar não somente na parte urbanística, no saneamento, na rua, na escadinha
que sobe, na melhoria, mas você tem que estar com a tenção voltada para o homem,
para o ser humano, porque o centro de uma favela, o elemento principal para você olhar
é o ser humano. Por que é que você vai urbanizar ela? Por que é que você vai melhorar,
vai botar água? Em função do ser humano, não é verdade? Você não vai fazer uma
escada. Você vai fazer a escada para o homem. Eu tenho a impressão que era assim,
essa... Nesse sentido. Papai... Quando fez os restaurantes populares – que agora o nosso
governador está encantado, vai fazer – mas quando ele fez na Praça da Bandeira aquele
plano do primeiro e que não apareceu o nome dele, ele disse para mamãe: “Minha filha,
isso não importa quem faça, o negócio é fazer”. Agora, fazer direitinho, fazer com
218
desprendimento, fazer não porque quer contar pontos, fazer porque quer se elevar quer
sair nas manchetes de jornal e quando acaba, sai do governo, outro vem e não continua,
que é o que a gente está vendo aí, todo dia. Vem um, faz um bocado de coisa; o outro
que veio por vaidade não continua. Ao não continuar uma coisa boa que foi feita, vai
prejudicar toda uma população. Não o que você está vendo aí? Você vê esse negócio do
metrô. Eu já devia estar com o metrô aqui há muito tempo. Saiu o... Eu nem sei quem
foi que abriu até aqui, foi o Moreira Franco, foi o Brizola, veio o outro e fechou. Agora
veio o outro e vai fazer um pedaço até a Siqueira Campos, um pedacinho de nada e isto
aqui está tudo tapado em cima porque não fizeram. Quer dizer, é um tal de renovação,
de um querer fazer mais que o outro, não sei, não entendi porque eles não fizeram.
JL – O Dr. Victor tinha alguma filiação partidária ou não?
MC – Não. Papai não era político. Não era político. Podia ter suas idéias, sua
mentalidade, mas não era político, e tinha um cuidado muito grande quando estava no
Parque Proletário. Um, que foi a época da eleição do Fiúza, lembra? Papai tinha muito
cuidado, não deixava aparecer nada dessas coisas que pudessem... Que estava se
chamando, que estava atrapalhando. Se não me engano, num desses documentos que eu
mandei para vocês, tem alguma coisa nesse sentido, não sei se vocês leram, que foi na
FIOCRUZ. Eu li qualquer coisa, nesse ponto... Ele nunca foi político.
LM – Deixa eu fazer só mais uma pergunta em relação aos albergues. Me parece, de
acordo com os documentos que eu li, havia uma distinção entre o mendigo e o
desempregado e o albergue pretendia atingir o desempregado. Quer dizer, aquela pessoa
que se desajustou pela falta do emprego e aí sua vida se desestruturou e não aquele
mendigo que já é um habitué da rua, já formou a sua vida na rua.
MC – Pelo que você sente, porque era uma porção de gente que ia dormir lá, não é
verdade? Todos os que procuravam recebiam comida e possivelmente recebiam uma
orientação. Agora, eu não estou a par de todo mundo que passava lá. Eu sei que papai
fez um conchavo porque na maioria das vezes, mendigo ou não, ele conseguia
reestruturar o ser humano. Porque a pessoa chega à mendicância porque chegou ao
fundo do poço, mas se tem alguém que lhe dê a mão e ele tem a oportunidade de subir e
tem capacidade, ele vai subir. Então, não ia para o Albergue porque estava
desempregado, ia porque estava na rua, porque não tinha onde dormir, não era porque
ele tivesse perdido o emprego naquele momento. Ali estava quem perdeu o emprego há
pouco tempo, como também...
LM – Não havia essa distinção?...
MC – Não! Ali ele recebia caridosamente todo mundo que precisasse de acolhida.
Agora, naturalmente procurava orientar. Eu acredito que ele, não sei, mas como nas
219
favelas, ele deve ter feito encaminhamentos para policiais, encaminhamento para
hospitais. É possível, não é, porque cada caso é um caso.
JL – Como era a resposta dessas pessoas que iam para o Albergue? Eles aproveitavam
essas chances?
MC – Sim, eles se empregavam e depois retomavam suas vidas.
JL – Alguns voltavam lá?
MC – Bom, se eles voltavam lá para agradecer a papai, essas coisas o papai não
comentava. Isso a gente não sabe. A gente sabe que o trabalho andava. Agora, ele deve
ter feito muitas amizades, papai era muito popular. Eu não duvido nada que ele de vez
em quando lá no Albergue não tivesse recebido uma pessoa que voltasse lá para dar
uma prosinha com ele. Mas isso seria o dia-a-dia normalmente, natural dele, ele não
botava isso no curriculum dele.
LM – A senhora chegou a trabalhar no Albergue com ele?
MC – Não. Eu entrei no Estado em 1944.
LM – Ele já tinha saído do Albergue.
MC – Aí quando ele fez outro plano de serviço social, o Albergue depois continuou
sendo dele.
LM – É sim.
MC – Porque o departamento...
LM – Isso.
MC – ...Fazia parte do organograma o Albergue, Asilo São Luiz.
LM – Era atribuição dele, mas ele não mais o diretor.
220
MC – Não, não, ele não era o diretor-geral do Departamento de Assistência Social.
Então tinha o Albergue, tinha o Departamento de Assistência Social propriamente dito,
tinha Parques, o Serviço de Recuperação de Favelas, tinha a parte propriamente das
favelas. Enfim, eram diversos órgãos, diversos Serviços que faziam parte de um
departamento.
LM – A senhora sabe como foi esse salto do Albergue para a organização do
Departamento de Assistência Social?
MC – Bom, esse salto eu tenho a impressão que ficou ligado ao problema do desmonte
da favela.
LM – Ele sentiu a necessidade a partir dessa demanda?
MC – Aí vêm os convites, não é, minha filha? Aí vem o conhecimento do secretário, do
funcionário que ele tem. Então, papai, do Albergue ele foi fazer o negócio da favela, aí
reestruturou o Departamento de Assistência Social e juntou e foi dada a ele a diretoria
do Departamento.
LM – A equipe do Albergue foi ele que trouxe, ou os principais assessores?...
MC – Não. A equipe do Albergue, tanto quanto eu me lembro, aquele pessoal do
Albergue trabalhou com papai lá no Albergue e ficava cada um nas suas atividades. Ele
trouxe do Departamento de Assistência Social para perto dele, o Dr. Orestes – eu me
lembro que o Dr. Orestes veio com ele, porque quando eu entrei no serviço no Estado,
no Departamento, eu fui designada para o Departamento de Assistência Social e muitas
vezes ele me chamava “Iaiá”, brincava comigo e tal e ele me dava dicas do trabalho. Dr.
Orestes veio com ele. Mas eu me lembro dos funcionários lotados lê e continuando com
aquele movimento. Aí o Departamento que era criado – eu já entrei com o
Departamento criado – e como é que ele remanejou, botou esses funcionários lá, você
sabe que um diretor quando assume precisa de um secretário, precisa de um datilógrafo,
então ele deve ter tido e talvez este Departamento que antes existia também, tinha
alguns funcionários lá. Essa parte burocrática eu não estava por dentro porque eu ainda
não trabalhava lá. Depois, quando fui trabalhar já fui designada para o Parque 1. Eu
trabalhava no Parque Proletário nº 1. Fazia a triagem psicológica das crianças. Depois
de lá, quando papai saiu, então eu fui convidada para fazer o histórico da Secretaria de
Saúde, no Serviço de Informação Sanitária, por um colega dele que estava chefiando lá.
Mas quando eu lá cheguei, eles tinham recebido a biblioteca do velho Moncorvo Filho.
Então me deram e foi aí que entrei na Biblioteconomia, por causa dessa biblioteca. E aí
eu fiquei até quando se fundou depois o Centro de Estudos e eu passei a chefiar a
Biblioteca do Centro de Estudos Médicos. Depois, o Romano me mudou, em 48 horas,
com os meus milhares de livros e tudo, para o térreo do Pedro Ernesto. Era uma
maravilha, tudo muito bom, mas foi uma corrida, um colega me ajudou, você pode
imaginar aquela livraria toda, livros, fichários, a gente mudar assim, de repente, tudo é
221
muito catalogado, não é? Aí eu fui para lá. E aí fui. A minha vida foi muita coisa
mesmo: chefe de polícia feminina, de ponto, trabalhando num lugar, mas chefiando o
ponto de outro, sabe como é. A minha vida funcional foi muito tumultuada e muito boa.
Eu gostava.
JL – Ele conheceu ou teve contato com Pedro Ernesto?
MC – Papai?
JL – É!
MC – Papai sim, eu não. Papai quando veio para o Rio era o Pedro Ernesto, lembra? Ele
estava vivo, mas eu vim, eu vim com 12 anos, eu era menina. Aí eu fui para colégio, aí
o que eu sei era de adolescente, né... Mas papai deve ter conhecido.
JL – Então, eu queria que a senhora contasse um pouco a experiência dos Parques,
principalmente do Parque 1, que foi...
MC – O Parque 1, aliás, dos Parques Proletários. As favelas do Rio são essas favelas de
hoje que você sabe, “Ah! Tenho medo”. Você não entrava, nem a ambulância entrava
na porta. Eles tinham esses “comandos vermelhos” daquela época, os malandros
realmente dominavam. Eles tinham os pontos de luz, eram os mandas-chuva do lugar. E
aquelas favelas imundas, horríveis, aqueles casebres horrorosos. E papai precisava fazer
um censo para desmonte de favelas. Então ele, com aquele jeitinho dele começou a
fazer aquela conquista. Mamãe ficava apavorada, porque, por exemplo, na Praia do
Pinto teve que pagar cerveja em botequim de noite para aqueles malandros para poder
criar amizade. E ele realmente adquiriu o carinho, de um certo modo, ele se tornou uma
pessoa respeitada. E, então pode fazer o censo. Então, chegou-se à conclusão de que
você jamais poderia construir uma casa de alvenaria e passar aquele pessoal da favela
diretamente para essa casa. A educação, neste ponto, era mínima. Eles arrancavam as
torneiras, tomavam banhos vestidos, levavam os hábitos da favela para dentro das casas,
havia muito desajuste psicológico, desajuste familiar, muita coisa a ser feita. Havia
muita gente escondida lá dentro. Muita coisa. Então, para que o plano chegasse à etapa
final – que não chegou, pois não deu para continuar – eles tinham que ter um campo de
treinamento vamos dizer assim, né, estágio. Então, foram construídas – e depois não se
conformava, ele mandou vários ofícios pedindo, porque era por um ano e aquilo tinha
que ser desmontado e passar para a parte final. Então, papai mandou, fez a construção,
tanto que você vê a fotografia da Praia do Pinto uma parte já construída e a favela ali.
Então ele fez as casinhas, eram casinhas de madeira, juntinhas assim, com banheiros
coletivos, porque eram provisórias. Mas dando todo um cunho, por exemplo, no Parque
1 a única casa de alvenaria era a capelinha de Nossa Senhora. Tinha a sede da
administração, mas as ruas eram arborizadas e dando a eles também o sentido de casa
para eles criarem amor, para fazer florescer as coisas todas. Agora, dentro desses
Parques, o Parque 1 é um exemplo, tinha todo um carinho. Por exemplo: ele já... Tinha-
222
se a parte de documentação toda registro civil, orientação familiar, casamentos, enfim,
tratava da vida deles. A parte que... Porque lá no Parque 1 nós tínhamos recreio infantil,
escola primária, jogos, a parte religiosa, catequese, tinha toda uma parte de oficinas –
este sofá foi feito lá – de marcenaria, de várias coisas, campos de diversão. Enfim, havia
uma estrutura para que durante aquele tempo eles se tornassem sociáveis. E papai fez
então um treinamento de moças no Corpo de Bombeiros e tinha um corpo de bombeiros
de mulheres permanentemente no Parque, porque o Parque era de madeira, então
precisava ter aquele cuidado. E chegou a uma (sic) tal que o chefe da caixa da Light era
o Dr. Carlos Luz e ele, não sei, houve um concurso, qualquer coisa, que lê ofereceu lá a
eles o que eles preferiam: um campo de jogo ou uma biblioteca. E eles quiseram a
biblioteca. Isto demonstra a que ponto nós conseguimos (sic) coisa e tal. E era bonito,
chegava de noite os operários iam para casa, mudavam de roupa e iam para biblioteca,
ler. Quer dizer, aquilo deu a eles uma melhora de vida. Então papai começou a adquirir
os terrenos perto – aí é que eu digo – e ele começou, ele comprou, eu não sei agora se
esse terreno onde ia fazer... Era ali perto, onde era Olaria e Capinzal, a PUC, ele
comprou da Dona Marieta Pires Ferreira aquela da roda ali, porque era para construir as
casas definitivas. Então eles sairiam de uma favela, passariam, digamos assim, por uma
recauchutagem e se incorporariam a uma sociedade, com capacidade de viver com essa
sociedade.
JL – Essas pessoas, quando removidas, qual era a sua reação com a remoção, como elas
encaravam isso?
MC – Ah, tinham muita dificuldade! Muitos queriam ir, claro que queriam ir, mas
queriam levar seus hábitos: coleção de latas, coleção de porcaria, está entendendo? Elas
queriam... Deviam, um pouco de dificuldade. Mas aí é que o serviço social, as
assistentes mostravam. E quem é que não queria sair de uma porcaria e ver aquelas
casinhas limpinhas, tudo arrumadinho? Naturalmente que eles estavam ávidos de ir para
lá; teve até um malandro que pediu para morrer lá. Papai levou, ele morreu num quarto.
Foi muito engraçado, porque houve uma eleição lá de um deles, da Praia do Pinto e
papai começou a pleitear... Por exemplo, quando morria era assim: ficava o caixão
sendo velado e eles bebendo e jogando em volta para fazer a eleição. Então, papai
começou a cambalar pra rece... para conseguir o malandro chefe lá deles, que ele
gostaria, que era justamente para poder continuar o trabalho do censo, porque não era
fácil fazer o censo de uma favela.
LM – Deixa eu voltar um pouquinho para o plano. A senhora tem a lembrança de quem
fazia parte da comissão junto com o Dr. Victor Tavares, de alguém?
MC – Os nomes agora me fogem muito, mas estão todos com vocês. Tinha gente tão
conhecida, meu Deus, mas eu sou péssima para guardar nomes, mas está tudo lá, todos
da comissão da favela. E nosso caderno vai ter também. Tinha um grupo grande que
papai... Porque ele, ele, por exemplo, quem fazia o trabalho dele era o Nelson (?), que
era o mestre-de-obras do lugar. Tinha...
223
LM – Por exemplo, a senhora se lembra se havia algum arquiteto?
MC – Sim, claro, minha filha! Quando se foi fazer os Parques ele teve que ter
orientação da parte de alguém, algum planejamento. Não sei, se me lembro era qualquer
coisa Reis... Não me lembro o nome, se você olhar lá você acha. Acho que Máximo
Reis fazia parte dessa... Aqueles funcionários que estavam ao lado dele. Você tem
muitas fotografias de papai no Capinzal, com as plantas, conversando com eles.
Inclusive está o Nelson e toda aquela gente toda que fazia parte do grupo de construção.
Porque papai, para construir, precisava de um técnico.
LM – Claro!
MC – Ele tinha. Mas isto tudo está em toda a documentação dele que foi. Mas com 50
anos não me lembro mais do nome de ninguém.
LM – Agora, é... A remoção... O censo. Essa equipe montou o censo e teve a idéia de
fazer o censo. A senhora tem lembrança de como foi isso?
MC – Não, não. Papai que quando fez o desmonte das favelas...
LM – Ele que teve a idéia?
MC – ...Mandou fazer as fichas, mandou fazer o censo, entrar nas favelas e ver quantos
moradores, número de famílias, tipo de renda familiar, até eu dei umas fichas para
vocês.
LM – Claro.
MC – E é por ali que se pôde fazer o volume de pessoas humanas que iriam habitar em
cada lugar, naturalmente, o censo para saber que tipo de material humano você tinha ali;
o tipo de dinheiro que eles ganhavam, qual era a renda familiar, qual era o número de
filhos, o número de desempregados, naturalmente, queria ver de doentes, de pessoas
velhas, quer dizer, o censo deve ter sido baseado nisso, porque você não pode trabalhar
com uma coletividade, se você vai fazer um trabalho em benefício dessa comunidade,
você tem que saber com quem você vai trabalhar, quantos são e que necessidades esse
pessoal tem.
JC – Houve um movimento censitário com os mocambos também...
224
MC – Claro. Porque sem você saber as necessidades do ser humano, como é que você
vai poder ajudar? E o censo naturalmente ia mostrar muito da necessidade. A primeira
etapa, o primeiro trabalho dentro da favela depois da conquista para entrar, a finalidade
precípua da entrada na favela, inicial, foi fazer o censo. Sem o censo não teria
acontecido nada.
LM – A senhora acompanhou a saída das pessoas?
MC – Sim. Aí eram caminhões levando...
LM – A própria prefeitura...
MC – ...Leva pra lá. Era a prefeitura porque nessas horas é um trabalho de equipe,
assim como papai trabalhava junto às delegacias, com o Dulcídio dos Santos para...
Quando eles pegavam o malandro, papai tirava, já era combinado para criar confiança.
Porque não era facínora, era... Você está entendendo? Tem que haver... Era muita coisa.
Agora, o centro era papai e ele estava arrumando tudo. Então, ele tinha amigo na
polícia, na delegacia, na prefeitura, o caminhão trazia, o outro removia, essa coisa toda,
não é? A mudança deles todos. E aí o Parque já tinha um administrador, porque o
Parque tinha uma casa de administração, tinha empregados e administradores, esse povo
não ficou lá solto não!
LM – Tinha sempre visita dos políticos, do Dr. Dodsworth?
MC – Ah, sim! Dr. Dodsworth, Dr. Getulio. Papai fez uma Páscoa coletiva linda. D.
Jaime ficou encantado, porque as Irmãs de Jesus Crucificado faziam a parte da
catequese. Tinha escolas primárias pra elas aprenderem, as professoras, tinha tudo. E
mesmo pequenininho, era um bairrozinho,o é? De preparação para o futuro.
Infelizmente, nós estávamos só com 4 Parques: Caju, Amorim, Praia do Pinto e a
Marquês de São Vicente.
LM – Agora, a senhora sabe a razão de o Parque nº 1 ter sido tão bem sucedido? Ter
mais equipamentos tinha mais serviços?
MC – Eu acho que o Parque º 1 foi o mostruário da coisa, começou...
JL – O piloto.
MC – Foi o piloto. O que não quer dizer que não se fossem fazer nos outros as mesmas
coisas. Mas, ele foi o primeiro, foi a remoção de Olaria e Capinzal, mas a primeira
225
remoção foi a do Largo da Memória. Depois que começou a tirar a Praia do Pinto que é
essa parte onde tem o Scala, aquela parte enorme toda, tirou também a favela Jóquei
Clube, junto com a do Piraquê; foram 17 favelas ao todo. Agora, tinha-se também o
Parque do Amorim e o do Caju. E essa gente também recebia os benefícios, recebia
tudo. É porque naturalmente ficou muito... Eu, por exemplo, como trabalhava aqui,
fiquei muito focalizada no Parque nº 1, mas não quer dizer que os outros Parques não
iam ser tratados... Que uma população daqui ia receber isto ou aquilo e a outra não.
Não! Eles tinham critérios. Os mesmo privilégios, o mesmo tratamento, a mesma
preocupação e a mesma adaptação que os de cá iam receber. O problema da favela não
era o da zona sul. O problema das favelas era para todas as pessoas que estivessem
nessa situação. Agora, é uma pena que durante todos esses anos os governos posteriores
não tivessem deixado um pouquinho a vaidade, se é que foi a vaidade e tivessem
pensado na beleza da cidade e na situação dessa gente e tivessem prevenido para não
continuar em morros e morros – Pavão-Pavãozinho, Cantagalo e companhia da via.
Porque o que devia haver, talvez, ainda o Morro da Providência e da Saúde que foram
do começo do século, isso é uma coisa. Mas eu acho que muitas dessas favelas aí
poderiam não ter sido construídas.
JL – Há uma literatura que diz que no Parque nº 1 havia uma habitação especial para o
Getúlio Vargas quando ele ia visitar.
MC – Que eu saiba, não.
JL – Por que? Ele não ia? Ele não freqüentava?
MC – O Dr. Getúlio foi algumas vezes lá, você tem fotografias dele entrando lá, mas
ele ia como (sic), com a sua comitiva, uma porção de gente correndo atrás, mas ele
entrava livremente no Parque, no meio do povo, conversava, falava, via as instalações e
ia-se embora.
JL – Só o banheiro era coletivo, ou a cozinha também, um refeitório?
MC – Só o banheiro. Não, não. Elas tinham as suas casinhas, em cada dois grupos tinha
a casinha, agora, tinha aqueles banheiros, eram separados para homem e mulher, não é?
Porque aquilo era uma coisa provisória, não se podia fazer para cada pessoa porque
eram milhares, fazer um banheiro... Porque eu quero que você veja as casinhas como
eram. Era uma escadinha, você entrava e tinha a sala, as dependências. Eram casinhas
pequenininhas, naturalmente, de acordo com o número de famílias, quer dizer, até eu
acredito, não sei, podia até contar mais de uma, as famílias eram muito grandes, não é?
Agora, no banheiro tinha lugar para botar a roupa, usar sabão, lavar com água, etc.
JL – Então, segundo o que a senhora observou, a reação das pessoas quando passavam
para lá era positiva?...
226
MC – Era muito boa, positiva.
JL – Somente na situação de quererem levar suas coisas para lá...
MC – E o outro caso é que você precisava reeducá-los, né? Papai contava, por exemplo,
que uma era a mania de juntar lata, a outra era a mania de lingerie. Bom, eram as suas
lingeries. E eu acredito, minha filha, porque eu não estava lá no momento. Esse trabalho
de remoção deve ter sido acompanhado por agentes sociais, pessoas ali da área que iam
fazer esse trabalho. Eu, por exemplo, fui trabalhar na parte de psicologia, mas com
certeza, na hora da mudança da favela da Praia do Pinto (sic) estavam os agentes sociais
para orientar o que levar, não levar... Agora, ao chegar ao Parque, tem que reeducar,
porque senão eles vão transformar aquilo em favela outra vez, tanto que, quando
abandonaram o Parque ele virou praticamente uma favela, que não continuaram, porque
papai tinha saído, queriam que papai voltasse e eu fiz uma promessa a São Judas Tadeu,
ele tinha até um quadrinho de São Judas Tadeu em cima da mesa. Porque o pai é meu.
Os riscos de vida que ele correu trabalhou, se descabelou, coitado! Teve lides, ameaçou
a saúde dele e agora destroem tudo o que o homem fez, porque o Parque virou uma
favela!
JL – Os Parques duraram quanto tempo?
MC – Nem sei, nem sei mais, minha filha, porque papai saiu e aquilo foi se
deteriorando. Hoje você vê que não tem nenhum resquício. Felizmente, não se fez outra
favela na Marquês de São Vicente naqueles lugares, mas houve ainda um tempo em que
eles quiseram salvar, mas salvar depois. Aí eu achei que era ruim porque o pai era meu,
quer dizer, eu vi a luta de papai.
JL – A senhora ainda tem contato com alguém daquela época?
MC – Minha filha, muita gente já morreu. A pessoa que eu tinha contato, que era
grande amiga minha, que trabalhou com papai muitos anos e era muito amiga, ela
morreu há uns 3 ou 4 anos atrás, Dagmar.
JL – Que trabalhava junto com a senhora?
MC – É, no Departamento Social. Eu acho que todo mundo daquela época, Dr. Luiz
Oliveira, essa gente toda. Dr. Villardo, mas ele trabalhou depois e uma amiga minha
disse: “Ah, eu estive com o Dr. Villardo e ele mandou um abraço para você”. Mas eu já
saí do Estado há muitos anos.
JL – Mas as pessoas que moravam, por exemplo, no Parque...
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MC – O Parque. Eu só tenho contato dos moradores do Parque com uma empregadinha
minha, que casou lá em casa. Ela entrou menina e saiu para casar de braço dado com
papai, entrou na igreja, minha mãe fez o vestido de noiva, eu sou madrinha da filha dela,
que já é avó e...
FIM DO LADO B
FIM DA FITA
FITA 2:
LADO A:
MC – Algum tempo atrás, quando mamãe ainda era viva, o chefe da marcenaria disse á
mamãe que muitas das meninas que trabalhavam na marcenaria com papai que foram
para lá novinhas nunca se perderam. Tinha um que queria ter uma navalhada no rosto e
dez entradas na polícia, porque era o exemplo que ele tinha. E depois eles mesmos
ficaram com vergonha disso, né? Porque eles conheceram o outro lado. Eu estava vendo
outro dia no noticiário que um homem pobre resolveu fazer uma experiência com esses
meninos lá em Belo Horizonte, ele mora perto de uma favela, então resolveu se
interessar por aquela garotada dali, arranjou uma quadra em uma associação conhecida.
Então juntou essa meninada toda que faz ginástica e gosta de futebol e gosta disso. E eu
fico chamando a atenção para a mentalidade deles porque eles já estão com a
mentalidade de educação, disciplina, tudo isso passado por esse homem que mal sabe o
português, entendeu? Quer dizer, no que eles vêem o bom, vêem o melhor, eles não
querem voltar para o ruim, não é? A não ser que seja uma deturpação. Naquele tempo
ainda não tinha esse problema de tóxico que tem hoje, não se falava nisso.
JL – Agora, uma coisa: muito embora o Dr. Victor não tenha sido político, ele teve
cargos dentro da política, uma aproximação grande com Getúlio Vargas, com
Dodsworth...
MC – Ah, sim. Mesmo porque, minha filha, naquele tempo era Estado da Guanabara,
era Distrito Federal. O Presidente morava aqui. Tinha o Presidente e tinha o Prefeito. E
o Prefeito tinha sempre os diretores. Então, era uma hierarquia. Não era como agora que
você está aqui e o Presidente está em Brasília. Então o Presidente não toma nem
conhecimento de um diretor daqui. Naquele tempo não. Tinha o Presidente da
República, era Distrito Federal. As autoridades todas... Eu acho que não existia nem
Governador, porque em Brasília tem, não é? Mas o quanto eu me lembro era Dr. Getúlio
e logo o Prefeito. Daí era como se fosse o Fernando Henrique passando pro César Maia.
228
Devia ser isso. A coisa era diferente. Agora, não era como se ele tivesse cargos políticos
de Deputado, de Senador, dessa coisa não. Ele era tudo dentro do quadro funcional,
aquele que atendia à Prefeitura do Distrito Federal.
JL – Mas ele tinha alguma assim, amizade? Eu digo, pessoal, com Getúlio Vargas?
MC – É, Dr. Getúlio gostava muito de papai, muito. Ele chamava papai de doctor
Victor. Além de tudo, papai era amigo de tio Agamenon. O tio Agamenon foi um
grande amigo dele. Então, eu tenho a impressão que, talvez também, esse conhecimento
de família de papai... Eu tenho a impressão que havia amizade assim de cordialidade
muito grande do Dr. Getúlio com papai.
JL – A relação com o Dr. Dodsworth também era assim?
MC – Excelente. Dr. Dodsworth ficou comigo: papai morreu e ele continuou comigo,
que foi com ele que eu entrei. Tanto que eu era guardiã da defesa do governo dele nisso
tudo porque este Arquivo que vocês levaram daqui para a FIOCRUZ é a defesa do
governo do prefeito da época e não constava em canto nenhum. Então, isso tudo estava
comigo. E, depois que papai morreu, eu tenho a impressão que tive alguns contatos com
o Dr. Dodsworth. Então, ele era muito amigo de papai. Papai tinha esse dom de fazer
amizade com as pessoas. Não era por falsidade não, nem por interesse, por nada. Era
porque era dele. Agora, muito sincero, muito certo, muito correto. Eu não sei, mas tenho
a impressão que antigamente as coisas eram mais corretas, mais equilibradas, eu não sei,
acho que era. O que mais?
LM – Qual a formação da senhora?
MC – Pedagogia na Universidade Católica.
LM – Pedagogia e depois foi trabalhar na Prefeitura?
MC – Não, foi assim: eu, quando saí do colégio, eu era do colégio, eu fiz meu primário
todo com uma professora que morreu agora, ano passado. Eu fui reencontrá-la e adorei.
Era uma moça da sociedade que tinha aqueles cursinhos primários e vários de nós
fizemos, até o filho do tio Artur, ele tinha aquele cursinho, fiz o meu curso, eu fui
alfabetizada em casa – com 1 ano eu falava o português certo, com 6 anos eu já estava
catequizada. Aí eu fui para o Recife. Aí eu fiz o meu primário com ela e fiz admissão,
exame, me preparei em casa e fui para o Colégio das Dorotéas, que hoje tem aqui no
Rio na Rua do Bispo. Lá eu fiz o primeiro e o segundo e a metade do segundo ano
ginasial, foi quando papai foi transferido e eu tive que ser transferida pro Rio. Papai
queria, tinha pensado em me botar nas Marcelinas, pelo que eu imaginava, mas como as
meninas do tio Agamenon estavam no Sacré Coeur de Jesus, eu vim para o Sacré
229
Coeur. Ele queria que eu falhasse aquele meu ano para ficar no Rio, conhecer e tal, mas
eu graças a Deus: “Não, não quero perder o meu ano”. Eu entrei no meio do ano, claro,
com as dificuldades porque o francês daquela época minha era de colégio público, de
colégio ginasial era um francês diferente, besteira e eu vinha pra um colégio onde só se
falava francês. Então, as ordens eram em francês, tudo era em francês, apenas a
admissão era em português, mas eu fiz... Eu fiquei de segunda época em matemática,
que sempre foi a minha diferença, aliás, também foi só uma vez na vida. Aí eu terminei
meu curso ginasial com 16 anos no colégio Sacré Coeur de Jesus. Não existia científico,
não existia pré. Era um colégio universitário na Praia Vermelha. Era uma bagunça onde
todo mundo ficava misturado. Então papai achou que eu estava saindo de um colégio de
freiras e muito jovem e ele – a idéia que eu tenho – não quis que eu entrasse para fazer
um tal de um cursinho que tinha lá, eu não me lembro mais como era a organização ali.
Eu então enchi o meu tempo. Fiz curso de datilografia, de salgadinhos e doces, mas eu
sempre tive uma tendência, Nosso Senhor sempre me puxou para esta parte de
catequese e biblioteconomia. E eu estava trabalhando na igreja da Casa de Copacabana,
na Casa do Pobre, que é uma casa de assistência às crianças pobres, é uma creche e lá
tinha uma biblioteca. E eu, folheando, encontrei um prospecto da fundação da
Universidade Católica, da PUC. Ela tinha sido formada naquele ano, digamos, que eu li.
O meu diretor estadual e professor era o fundador da PUC, era o Padre, Reitor Padre
Leonel Franca. Então eu fui conversar com o Padre Leonel Franca. Eu tive vontade de
fazer Direito, sempre tive, mas ele escolheu para mim Pedagogia. E aí eu fui. Eu sou da
segunda turma de fundação da PUC, eu fiz quatro anos lá. Antes de sair da PUC, eu
tive, no último ano, eu estive em tratamento, eu estive muito doente. Então, quando eu
acabei, eles acharam por bem que eu tivesse uma ocupação profissional, terapêutica
ocupacional. E foi aí que Dr. Dodsworth me botou no Estado, o Dr. Dodsworth é que
me mandou. Primeiro era uma função extraordinária. Depois de muito tempo é que eu
fui efetivada. E eu comecei no Departamento de Assistência Social que papai já era, já
era fundador. Bom, aí quando eu estava formada eu já era funcionária. Quando eu me
formei eles abriram realmente um concurso para o magistério, para professores, mas da
seguinte forma: prova de títulos. Então, entrava professor do Pedro II, professor com
uma porção de títulos e a gente estava com o quê? Horas de didática na Universidade. E
mandado de segurança e outras coisas mais. Então eu desisti de fazer e quis continuar
minha carreira administrativa, embora meu título esteja, meu diploma esteja registrado
no Ministério da Educação, registrado tudo direitinho. Eu só podia ensinar em
universidades ou nas escolas superiores, normal, na Orsina da Fonseca. Porque eu sou
nível superior, não sou professora primária, né? Mas, aí não adiantava mais nada. Mas,
enfim, me formei, né? Aí eu já estava no Estado e fiz minha carreira ali. Só que o
Estado me proporcionou mudanças. Transfere daqui, transfere dali e eu fui pegando
experiências. Por exemplo, eu trabalhei em favela, trabalhinho muito bom, social.
Depois, trabalhei em centro de saúde de bairro, uma experiência muito boa,
maravilhosa, aprendi como é que se monta uma casa de comércio no Rio de Janeiro.
Tem alta de inflação, tem exigência, tem não sei o quê. Aí você aprende como é dar
vacina, eu trabalhava lá. Depois me chamaram para fazer o histórico da secretaria e me
botaram livro pela frente, eu fui lá. Depois me chamaram para fazer o histórico da
secretaria e me botaram livro pela frente, eu fui fazer uma especializaçãozinha. Depois
veio o Centro de Estudos, aí ele me botou dentro mesmo. Aí eu fui fazer teses médicas
com médico. E fui tendo um envolvimento, depois ele me pediu tempo para a Biblioteca
Regional de Copacabana quando era no Lido. Depois me botaram no setor de prontuário
que era pra fazer a vida: tem lá o número da matrícula e você, toda a vida funcional,
você se encarrega da vida funcional do colega. Depois me mandaram para a recuperação
230
de mendigos, e daí para o Dr. Villardo e fui ser secretária dele. Aí fui ser muita coisa
porque fui ser chefe de ponto – eu estava de férias e o Lacerda me fez chefe de ponto,
atendendo também à polícia feminina do Albergue. Eu pegava o meu carrinho e ia
ajudar no centro de recuperação, eu ficava na 13 de Maio, ali na Secretaria... E eu tenho
muito essa coisa de ser líder. Engraçado, não devia ser, porque quando papai e mamãe
andavam, eu botava papai e mamãe na frente de tão envergonhada que eu era, mas
tenho uma tendência à liderança, não sei, eu sei que eu fui... No fim eu não tinha mais
medo quando me chamavam. Depois eu estava... Eu cheguei a Assessor de Gabinete da
Secretaria de Serviços Sociais, eu tinha que dormir na hora que ela dormia, na enchente
porque ela não ficava sem mim, essas coisas, mas por causa de uma colega e até hoje a
gente não sabe por que foi e ela já morreu – que Deus a tenha no céu – eu saí da
Secretaria de, enfim... Mas eu já tinha outra Secretaria de mãos abertas para mim, a do
Benjamin, que era... Benjamin de que meu Deus do céu? Que era Secretário de
Educação da época. E ele, então, falou com a Secretária e sobrinha dele, a Marilda,
então eles me convidaram pra Secretaria de Educação e eu fui trabalhar com o Dr.
Albano Marques. Lá, fazia parte da Secretaria de Educação e eu fui agente de
orçamento lá, a Divisão do Teatro, como o Teatro Municipal, a Escola de Belas Artes,
etc. Aí, o Napoleão Muniz Freyre, que era meu amigo, que eu vi pequenininho, de
família amiga, eu fui ser auxiliar do, do próprio. Trabalhar com Napoleão no
Departamento de Teatro, na Divisão de Teatro. Ele estava ali. Os teatros estavam sendo
tirados da... Fazia-se o borderô e eles eram alugados à companhias particulares, mas a
Prefeitura estava revendo esses teatros. Então, eu fui mandada para dirigir o Gláucio
Gil, preparar o funcionalismo, preparar o Teatro para receber o Roberto di Cleto, que
seria o artista que ia ser diretor. Então, essa foi uma experiência muito boa porque eu
não sabia o que era uma rotunda, não sabia o que era um... Aí, eu já fui aprender outra
coisa, né? E aprendi! Eu fui ser diretora de teatro. Aí eu tive que adaptar os funcionários
a aprender a não receber propina em dia de estréia. Quer dizer, ensiná-los a serem
funcionários do Estado, né? Aí eu pintei e bordei lá porque a Maria Fernanda tinha feito
uma porção de coisas no Teatro, mas o Teatro tinha até aqueles batentinhos que você
anda e dá o passinho, tem que dar dois passinhos e meio; e eu achava aquilo horrível. Já
estava achando ruim quando um dia o flashlight me avisou que uma senhora quase caiu.
Então eu não tive dúvida. Botei pedra dentro do meu carrinho, fui para o setor de
urbanização, mandei tirar aquela passadeira, mandei fazer uma todinha... Uma rampinha
para descer, depois eu quis pintar. Bom, aí eu quis pintar o Teatro, o Napoleão não me
deu dinheiro, “Ah, não vai dar dinheiro, então espera aí!” Cal com ocre. Pintei os
camarins todos com ocre. Depois, então, quando eu já estava quase para me aposentar,
não sei se eu voltei a trabalhar com o Napoleão, aí eu não me lembro. Eu sei que resolvi
que eu ia me aposentar na Biblioteca de Copacabana, onde já havia sido funcionária. Aí
eu entrei lá e disse assim: “Neuza, vocês estão me querendo?” “O que você quer,
Maria?” “Eu estou querendo voltar para aqui”. “Vamos fazer um feriado nacional!” Ai
eu voltei, pedi ao Diretor do Departamento na época, me mandou; eu trabalhava com o
Albano Marco, mas lá depois, tinha um outro departamento. Era o marido da filha
daquele Gustavo Corção, que foi minha colega de trabalho. Se não me engano, era
marido dela. Ele então, eu fui designada para a Biblioteca Regional de Copacabana e lá
me aposentei. Aí, quando eu me aposentei, a Biblioteca era sustentada por um Grupo de
Amigos da Biblioteca, porque na biblioteca falta tudo, falta material, falta fita métrica,
falta durex, é pobre. Então, eu trabalhei muito tempo com uma pessoa extraordinária
que era a Consuelo Chermon de Brito. Aliás, é muito engraçada essa experiência.
Consuelo – eu não sei se ainda está viva – ela é uma pessoa maravilhosa, mas uma
pessoa leiga, bibliotecária, que foi dirigir uma biblioteca. Então, ela pegou a lei e botou
231
assim como viseira e tinha que ser aquilo à risca. Eu fui designada para trabalhar com
ela, mas sabia que ela gritava, que fazia, que acontecia. Então, quando eu cheguei lá e
disse, “Olha, dona Consuelo, eu não grito com ninguém, mas não admito que gritem
comigo”. Qualquer coisa assim. Não, era aquela coitada que não tinha maleabilidade
nenhuma na lei. Então eu comecei: “Não, Consuelo, a funcionária adoeceu, manda o
ponto em casa, manda assinar o ponto, não é assim”. Comecei a... Eu sei que oito meses
depois ela tirou férias e eu fiquei no lugar dela. E fiquei muito amiga da Consuelo. E a
Consuelo criou a Associação dos Amigos da Biblioteca de Copacabana, cujo presidente
era um doutor do Lions, que era uma pessoa particular. E tinha que ter a tesoureira. E
eu, como já era funcionária da Biblioteca, já era a tesoureira. Então quando eu me
aposentei, para não perder o vínculo, eu continuei. Eu fui 25 anos tesoureira da
Biblioteca de Copacabana. E quando o (?) saiu, eu tenho até uma placa aqui para ele, eu
ainda fiquei dando um respaldo lá para quem ficou. E aí pronto. Foram 28 anos e duas
licenças-prêmio contadas. Quer dizer, minha vida no Estado foi assim: vai pra aqui, vai
pra ali, vai pra favela, vai pro Hospital Pedro Ernesto, faz trabalho pra médico, faz tese
pra médico, faz pesquisa pra isso... “Por que você não estudou medicina?” “Ou me
prende na pesquisa ou eu vou pra Faculdade”. (ri). Porque ou eu fico pesquisando ou eu
fico na faculdade. Foi muito bom.
LM – Então, o trabalho direto com o Dr. Victor foi só nesse período das favelas? Só?
Só nesse...
MC – Foi, no Departamento de Assistência Social. Quando papai saiu, eu saí. Porque
não podia ficar. Eu não achava que outro diretor que viesse se sentisse bem de ter a filha
do diretor lá.
LM – Mas a senhora sabe por que ele saiu? Se foi por traição...
MC – Sei, papai saiu e se aposentou, nós sabemos porquê. Porque – meu Deus, não me
lembro o nome agora –, aquele prefeito maluco – eu não me lembro o nome dele agora,
depois eu vou me lembrar – tinha um prefeito maluco, aí, que nomeava as pessoas pela
aparência. Então, ele chegou encontrou um ótimo diretor de maternidade limpando uma
mesa ou qualquer coisa. Então, ele pegou esse homem e resolveu que esse homem devia
ser o diretor do Departamento no lugar de papai. Quer dizer, você não tira um diretor de
maternidade que está bem no seu cargo pra botar num cargo onde já tem um técnico,
não é verdade?
LM – Foi o prefeito que sucedeu o Dodsworth?
MC – Foi. Como era o nome dele? Eu até conhecia...
JL – Isso foi 46, né?
232
MC – A gente tem que ver o nome dele.
LM – Em 45 o Dodsworth sai.
MC – Como era o nome dele, heim? Ele fazia isso, ele fez várias coisas. Depois, aí eu
acho que em 1958 que papai pediu a aposentadoria. Foi aí...
LM – mas nisso ele já tinha saído do projeto dos Parques Proletários?
MC – Ah, sim. O Departamento continuou e os Parques Proletários faziam parte do
Departamento, nunca deixaram de fazer.
LM – Sim, ta. Mas, aí logo depois da saída do Prefeito Dodsworth ele saiu também do
Departamento porque é cargo de confiança, é isso?
MC – Depois que papai saiu... Não, ele não saiu por causa do... Mendes de Moraes. O
Mendes de Moraes tinha a mania de botar a pessoa por simpatia. É o quanto eu imagino,
me lembro. Então ele botou, era até um colega de papai, papai ajudou esse senhor, não
me lembro, ele pegou esse homem que era chefe de maternidade e mandou ser chefe,
diretor do Departamento de Assistência social.
LM – Certo.
MC – Entendeu? Aí, não sei por que motivo, antes que outras coisas ocorressem, papai
não queria mais assumir nada. Aí ele foi trabalhar no Serviço Social da Indústria com
Evaldo Lodi, era o chefe do Departamento de Assistência Social do SESI – Serviço
Social da Indústria. Depois ele se aposentou, mas, coitado! Dois anos depois, morreu.
LM – Pois é, então além, além do trabalho da prefeitura ele tinha outras atividades aqui,
quando veio pro Rio. Tem essa experiência do SESI, que a senhora tem mais ou
menos...
MC – Não, o SESI já foi fim da década de 40, na década de 50. Pois é, nós fomos num
congresso em 51. Foi meados da década, foi final da década de 40 para início da década
de 50. Isso já foi muito depois.
LM – A atuação dele no SESI era qual?
233
MC – Ele também foi diretor do Departamento de Serviço Social do SESI do Estado do
Rio, região do Rio de Janeiro, Campos.
JL – Ele aqui no Rio chegou a clinicar ou só fez esse trabalho?
MC – Ele começou a clinicar, tinha um escritório na Avenida Rio Branco, mas foi
muito pouco tempo.
LM – Mas qual era a especialidade?
MC – Depois mudou da medicina tradicional para a Medicina Social do Trabalho. E
dedicou-se inteiramente, deixou realmente a parte clínica dele, ele e passou a fazer
somente Medicina Social.
LM – E...
JL – Desculpa... Quando ele chega ao Rio é que ele...
MC – É, aí é que ele montou o consultório, ainda era médico, depois é que ele parou.
LM – E, qual era a especialidade?
MC – Era Cirurgia, mas essa clínica era de cintilografia.
LM – E, ele teve também uma atuação no Instituto dos Bancários, não é?
MC – Ah, bom. Aí vem outra coisa... Quando ele era chefe do Albergue, em 1935, teve
a Intentona, lembra? Depois da Revolução de 30. O diretor médico do Instituto dos
Bancários era o Eliezer Magalhães e esse Magalhães tinha fama de comunista ou
qualquer coisa assim e me parece que papai era médico também do Instituto dos
Bancários, médico simples. Então, o Eliezer deixou papai no lugar dele como diretor e
teve que sair do Rio. Depois, no ano seguinte – eu não me lembro as datas – parece que
em 36 ele foi confirmado como diretor médico do Instituto dos Bancários. Ele
organizou a rede médica bancária do Brasil inteiro. Até hoje eu tenho amizade com os
filhos do Dr. Stockler no Paraná, porque papai, ele faz o seguinte: ele mandava ver no
lugar, na cidade, o melhor fisiólogo, o melhor clínico e convidava pro quadro clínico
bancário, entendeu? Então, ele tinha uma projeção grande em conhecimento de pessoas
em outros Estados também; e o corpo médico do Instituto dos Bancários era um grande
234
corpo. Ele conseguiu melhorar muito a parte de Tuberculose... Aí é que eu digo, a
mentalidade dele era botar o profissional perto de casa. O bancário morando no Rio de
Janeiro não trabalhava em Niterói, o assistente social que trabalhava no Rio de Janeiro...
está me entendendo? Por esses exemplos de botar o assistente social perto, de botar, eu
tenho a idéia de fazer isso, aquilo. Eu acho que era essa a mentalidade dele. Então ele
fez... médico diretor até 1938. Quando veio aquele negócio do... que o Dr. Getúlio
mandou... foi um negócio que mudou tudo no país, como é que se chama?
JL – Estado Novo.
MC – É, não foi o Estado Novo, não. Constituição!
JL – A Constituição.
MC – A Constituição de 38. Dr. Getúlio mandou que optasse ou – ninguém podia ter
dois cargos – Naquela época o Instituto e o Estado dava maiores condições de
estabilidade. Então, papai conversou com mamãe e os dois eram assim e ele optou pelo
Estado. Em 1946, Dr. Getúlio, na Constituição de 46, mandou que ele voltasse em
disponibilidade ou não. Quer dizer, ou ele voltava para o cargo dele, exercendo, mas
como estava o Eli Bahia que era um amigo dele no lugar, ele não queria tirar o lugar de
ninguém, ou ficava em disponibilidade, mas com os mesmos proventos e os mesmo
direitos de (sic). E mandou que esse claro de dinheiro, de proventos, de benefícios
fossem anexados. Só que ele não conseguiu usufruir esses proventos, porque morreu.
Quem recebeu todo esse atrasado de papai e passou a ter pensão foi a mamãe. E quando
ele morreu, nós pagamos o Nascimento e Silva. Porque aconteceu nesse ínterim, quando
houve essa lei, o presidente do Instituto dos Bancários não providenciou para que papai
tivesse essa posição e ele continuou como simples médico dos bancários. Aí um amigo
dele, que eu não esqueço nunca, um grande amigo dele era Dr. Roberto Pessoa, que
sempre mando um telegrama pra ele, disse: “Moura, como é isso, você é muito humilde,
você tem que reivindicar o seu direito”. Então levou ele para o Nascimento e Silva que
foi, você se lembra dos dois irmãos Nascimento e Silva? Heitor e Luiz Gonzaga, que
um foi Ministro do Trabalho, era essa dupla, que eram um dos grandes advogados do
Rio. Então eles assumiram a causa de papai e papai começou a receber um dinheiro,
mas ele não usava porque ele tinha que ter a garantia de que ele ia ganhar em última
entrância. Então, ele botava esse dinheiro no banco. Antes de Ele adoecer pra morrer,
passou no banco “Irmãos Guimarães” e a gerente de lá, dona Maria, disse: “Dr. Moura,
o senhor está ficando com muito dinheiro aqui”. Ele disse: “Não se incomode, Maria,
porque quando eu voltar eu vou botar conta-conjunta com a minha mulher”. Só que ele
adoeceu lá no sítio e lá no sítio o Armandinho, meu primo, que era Ministro da
Agricultura e tal, telefonou avisando que ele tinha ganho por unanimidade. Então, ele
morreu sabendo que tinha ganho a causa dos bancários, mas não usufruiu. Mamãe
recebeu, então, os atrasados que pagaram os advogados, pagaram tudo e terminado o
inventário, ela ficou com a pensão e nós, através do Banco do Brasil, aplicamos isso
numa companhia internacional, Interamericana Simetal S. A., forte, porque eu levei
aquele ano com o inventário de papai – aí eu não entendia de finanças – procurando
235
qual era o meio pra gente depois ter uma vida equilibrada. Só que o diretor comercial da
firma fugiu com o ativo da firma e eu tive falência total.
JL – A mãe da senhora trabalhava? A mãe da senhora trabalhava.
MC – Então... Eu tive falência total. Tudo isso, coisas que estavam lá dentro, tudo isso
deixou de existir. Abriram uma firma igual lá em Belo Horizonte e eu nunca soube o
que era. Eu ainda voltei à 7ª Vara pra ver, mas eles tinham... Eu me registrei no
Ministério da Fazenda para a Concordata, mas eles tinham muitos credores na frente,
né? Mas papai... Agora eu estou lutando para defender essa pensão, mas não estou
conseguindo, só queria arranjar alguém que me ajudasse porque eu nunca ouvi dizer que
pensão prescreve, prescreveu. Porque é um direito meu, né? Porque eu achei que eu não
tinha direito, quando eu descobri que tinha e me ajudava muito, porque o Estado me
paga mal, o Estado paga muito mal. Você vê a gente tem um currículo... Ontem, me
mandaram, uma colega me telefonou apavorada, ela foi da nossa época, eles me
mandaram ontem um catatau de coisas aqui, uma ficha para eu encher e esta ficha
depois, eu tenho que levar pessoalmente, eles estão fazendo recadastramento. Se a gente
soubesse que daí ia sair algum benefício..., mas não é pra ver se não tem ninguém que
morreu, né? Mas é de uma minúcia tamanha, entendeu? Grau de universidade que a
gente fez... Agora, bota umas coisas estranhas: renda familiar. Eu não tenho família, eu
sou sozinha. Agora, como é que eu boto a renda? A renda do Estado ou boto a pensão
que eu recebo do meu pai?Quer dizer, uma coisa muito mal... (sic) Eu posso chegar ali e
alguém me explicar alguma coisa porque tem muita coisa que eu não posso responder.
Eu não tenho marido, não tenho... Como é renda familiar? Quer dizer, tem um catatau
desse tamanho. Eu queria receber essa pensão do papai porque ia me ajudar, porque o
Estado é péssimo. Então ele tinha a diretoria dos bancários, né, teve a parte profissional
dele toda, terminou, quando ele se aposentou, entrou para o Departamento de Higiene,
mas era final de carreira, médico, trabalhou muito tempo no SESI, né, e era o Presidente
da União Americana de Medicina do Trabalho, com sede em Genève, era o
representante no Brasil, teve medalha de ouro, teses ganhas em muitos congressos
porque era a parte científica dele, né?
LM – Ele também fazia parte do Conselho Financeiro da Fundação Casa Popular, não é
isso?
MC – Ah, bom, aí aqueles títulos, aquelas comissões todas, Comissão de Aquisição de
Material, não é? Muita coisa. Conselheiro da obra da Dona Eunice Lyra, da Federação
das Crianças Filhos de Leprosos, não é? Papai tinha muita dessa... Aí, são coisas como
eu tenho ali, uns títulos, Comissão de... não me lembrava que eu tinha de criança, de
quando eu era pequena. A gente durante a vida funcional...
LM – A s idéias, a rotina de trabalho dele, ele comentava isso em casa, ele pedia
conselhos à mãe da senhora, à senhora?
MC – Bom, ele dialogava, a mamãe e o papai eram muito unidos. Toda a vida deles foi
pautada por um casamento muito bonito. Quando papai e mamãe casaram, mamãe casou
236
assim..., primeira vez que..., ela não sabia quem era papai. Ela achou complicado... É
muito engraçado. Ela tinha um primo que coincidentemente era amigo de papai. E se
não me engano quando ele casou, foi aquele casamento antigo, com mademoiselle
d’honeur, se lembra, aquelas... Antigamente era assim: a moça, rapaz, aquela badalação.
E a mamãe foi convidada para ser a mademoiselle d’honeur e o papai o garçon
d’honeur. Mas ela só conhecia o papai porque os jornais todos dizendo: “Dr. Moura
chegando da Europa”. Então, ela já criou uma antipatia, não sei porque foi. Só que
minha avó morreu e papai não pôde ir. Então, foi no lugar de papai até um outro rapaz
ao casamento, um rapaz muito bonito, comerciante, sabe? Um rapaz muito bonito e tal.
Então, mamãe não sabia quem era aquele Dr. Victor, mamãe... Mas, acontece que a
madrinha dela de batismo, que ela ia chamar – papai e ela nasceram no mesmo dia – e
ela ia se chamar Vitória. Só que não podia, só por causa da tia Maria ela se chamou
Maria Cristina. Ele viu mamãe num bonde, antigamente era bonde, mamãe ia levara tia,
minha tia-avó, a tia dela para casa onde depois foi a casa do irmão dele. E hoje é um
hospital. E ela foi levar a tia velhinha e papai tinha chegado da Europa no mesmo bonde
e perguntou quem eram e disseram. E ela vivia cantando no Palácio do Bispo, no
Palácio do Governo, ela tinha uma voz lindíssima e tal. Ele veio ao Rio e encontra tia
Maria que estava no Rio e diz assim: “Dona Maria, a senhora conhece, por acaso, umas
meninas do Zeca Cavalcante?” Aí tia Maria diz assim: “Não vai dizer que é a minha
afilhada?” Tia Maria era muito engraçada. Aí tia Maria quando chegou no Recife fez
um almoço na casa dela, que tinha um terraço assim, que nem este, – eu tenho um galo
aqui que eu caí de cabeça e bati no pé da mesa – ela fez um terraço, lá atrás tinha um
terraço, que ficavam os senhores de idade todos e cá o pessoal jovem e convidou
mamãe. E mamãe muito enfiada, né, muito desconfiada por causa de papai, mamãe foi e
sentou lá junto dos velhos. Só que ela ficou sentada junto de um velhinho de olhos
azuis, tipo de holandês, porque o meu avô era descendente de holandês, de barbinha
branca, meu avô era lindo...
PAUSA NA FITA
FIM DO LADO A
LADO B
MC - ...começou aquele namoriquinho de encontrar ela em casa, não é, tio Agamenon
ficou em cima, foi indo. Quando foi um dia, mamãe estava afundada em tintas porque
ela pintava, mamãe estava afundada em tintas, era dia o dia 8 de setembro, tia Maria
chega e diz: “Se lava toda, se limpa porque o coronel Moura vem lhe pedir em
casamento hoje”.
E aí papai chegou junto de vovô e disse: “Meu pai, você se lembra daquela moça que
você viu assim... Você vai pedir ela em casamento para mim”. E vovô..., né? Aí foi
como mamãe conheceu vovô. Era lindo de cabecinha branca. Bom, aí foi o casamento
mais certo do mundo, mais certo. Nunca levantaram a voz dentro de casa. Quando ela
estava afobada e ele chegava, ele virava e dizia assim: “Puxa, a mamãe está danisca
hoje, não está?” [risos] (?). Bom, tudo eles faziam em comum acordo. Se ele tinha um
plano, ele contava o que estava pensando. Ele era muito... Uma vez ele estava sentado
na cadeira lendo jornal e a gente conversando... “Mas vocês já falam, heim?” Aí é que
237
nós íamos lá pra sala de jantar, né? Ele vinha atrás. Ele não ia a um congresso se não
pudesse levar a família. Ele não era um homem de explica as coisas, as idéias dele no
gabinete não. Ele era um homem de conversar em casa, de dizer os planos. Ele botava
muito a gente dentro para trabalhar, nas festas do Albergue. Mamãe levava o coral dela,
não é, ele contava as coisas que aconteciam. E outra: ele não era uma pessoa... O
trabalho dele não era desassociado do ambiente familiar dele não. Agora, mamãe
quando a gente procurava – porque a dona de casa durante o dia, às vezes, tem problema
de aborrecimento – então ela tinha uma filosofia: quando era a tardinha e tal, ela
mudava a roupa, ficava toda bonitinha, se tinha alguma coisa desagradável ela não dizia
a papai quando ele chegava. Deixava papai chegar, descansar, tomar seu banho e tal,
enfim... Se tinha alguma coisa, ela comentava depois. E se ele saía de casa, ela não
queria saber da porta pra fora como foi. Se davam muito e ele nunca prevaricou, com a
graça de Deus, inclusive me levou para trabalhar com ele. Mas as funcionárias dele,
todas eram muito amigas dela. Ela tamm não vivia metida em departamento, nada,
mas às vezes em que ela foi às festas do Albergue era muito querida, era muito
respeitada, tratava todas elas com muito amor, muito carinho. Eu sei que no tempo que
papai era funcionário... Tinha uma que dizia que ela era a filha nº 1 e eu era a filha nº 2,
uma amiga minha. Era assim. Então, o papai era manso, sabe? Era manso. Por exemplo,
se ele tinha que chamar a atenção de um funcionário, ele chamava à parte, ele
conversava, ele tinha essas qualidades. É isso que ainda está faltando em mim. Às vezes
eu sou meia... fogo de palha. Até preciso deixar de ser aquela “Maria-vai-com-as-
outras”, né? Aquela mangaba, como eu também ainda preciso me modificar nesse
ponto. Mamãe era muito calma também.
LM – É... A senhora sabe se o Dr. Victor tinha alguma relação com o Rotary Club?
Porque ele fez algumas conferências...
MC – Não, ele fez. Ele não era rotariano, ele era convidado.
LM – E alguém da família? a senhora sabe se havia algum rotariano?
MC – Não. Que eu saiba, não. Foram as instituições sociais e científicas que veio, que
projetou o nome dele e o convidaram. Mas, que eu saiba papai nunca foi rotariano.
Olha, ele não tinha nenhuma corrente filosófica, nenhuma ligação com partidos
políticos, não misturava o trabalho dele com a política. Não deixava fazer propaganda
com o seu trabalho. Ele respeitava muito essas coisas. O negócio dele era o idealismo
em benefício das pessoas, o trabalho que estava fazendo, o amor que tinha em fazer este
trabalho. Ele foi professor da Escola Haddock Lobo muitos anos. Ele não tinha nada
disso. Agora, tinha que ter conhecimento porque vinha o tio Agamenon, tinha que ter.
LM – A senhora lembra o que ele gostava de ler? Se ele compartilhava as leituras com a
senhora? Sugeria leituras...
238
MC – Não. Papai lia muito. Primeiro, agora, eu tenho que me lembrar, né, minha filha?
Porque eu, menina, a gente sai vai pro colégio, a gente não fica muito “Ah, papai, o que
é que o senhor está lendo”? Ele, naturalmente, lia muito essa parte de medicina, dessa
coisa social dele; quando eu era menina ele tinha uma biblioteca em que eu não podia
entrar pra manusear livro, tinha que ter cuidado. Então, eu sei que ele devia estudar
muito cirurgia, os livros médicos dele. Isso eu imagino que fosse. Depois de grande, a
leitura de papai, o interesse dele era muito social. Agora, ele lia muito jornal, adorava,
gostava muito de futebol, gostava muito de rádio, noticiário. Era uma pessoa muito
interessada por essas coisas, lia muito jornal o dia inteiro. Então, a pessoa que lê jornal
está toda entrosada, mas muito misturado com o trabalho dele também, né? Você vê que
ele recortava, lia, se interessava. Agora, a pessoa que disser assim: “Ah, lê um livro de
poesia. Ah, porque gosta da literatura de José Lins do Rego”. Não era assim. Essa parte
de literatura comum, não vi papai voltado pra esse lado não. Nunca vi. Pode ser que ele
tenha lido um livro que alguma pessoa lhe indicou, mas isso eu nunca vi, nunca prestei a
atenção nisso. Ele passava o dia trabalhando também, depois. Porque minha família, a
gente criança... Primeiro que quando é menina é desligada. Depois, passa o dia no
colégio. Chega do colégio, o que vai fazer? Dever e essas coisas todas. Depois vai pra
faculdade, idem, idem... Me metia no quanto pra estudar. Essa doença que eu tive, esse
esgotamento, eu dormia 4 horas por noite, era aquela coisa. Quer dizer, eu fui ficando
esgotada. Então não era muito de ver, mas não me lembro de papai... Porque tamm
não ficou na biblioteca dele esse tipo de literatura, não tinha essa parte na biblioteca.
JL – Agora, pra terminar: ele tinha algum hobby, alguma coisa que ele gostasse de
fazer?
MC – Tinha: caçada, tiro ao pombo. Papai era, como todo filho de coisa, né... caçador.
Então, pescava em estação d’água, brincava, mas na realidade o grande hobby do meu
pai foi caçador. Ele tinha matilhas de cães de caça que a mamãe tinha que cuidar, botar
sutiã nas mocinhas porque quando entrava no mato não se machucar, limpar e tratar
quando vinham. Ficava... Tinha uma que ficava na cadeira. Quando cansava fazia
mamãe sair da cadeira pra trocar com ela, que ela estava cansada, e era aquela
brincadeira. Então saía e ia pra caçada, passava o dia no meio do mato lá com os amigos
deles. E ela – é isso que eu digo – então a mamãe fazia o seguinte: em Garanhuns,
recém-casada, praticamente, eu ainda não tinha nascido e o papai, que trabalhava
demais e a mamãe dizem, que coitada, a única coisa que ela não gostava era das
caçadinhas, não era ela que ia dizer não, não é? Então, eles saíam domingo e ela ficava
só. Então, ela ia pro Colégio Santa Sofia e procurava uma menina interna que não
tivesse família pra ir visitar, pra passar o dia com ela. E ia passar lá com a menina e
conversava e tal. A única vez que ela chorou, se amolou, porque foi num dia de Ano
Bom e papai não chegava. Ela vestida e eles iam á festa. Mas ela estava vestida não era
porque eles iam à festa não. Ela estava com medo que tivesse acontecido algum
acidente, foi por isso. Quer dizer, ela... Ela era 100%. Tudo que papai fazia ela achava
bom. Cuidava dos cachorros dele, achava tudo muito bom, era o único vício. E fumar.
Porque naquele tempo não tinha essa consciência de que o fumo era tão... o próprio
bispo fumava. Fizeram uma aposta um dia, um estava fumando escondido do outro,
ninguém deixava. Mas era só isso. Não bebia, não jogava, não passava a noite fora, não
achava graça em nada que não fosse na família, era muito unido com os cunhados, com
próprio ambiente familiar, sempre em casa.Ah, sim! E o futebol! Porque ele foi jogador
239
do Fluminense, ele era o 6 do Fluminense junto com o Marcos de Mendonça, quando o
Borgeth saiu pra fundar o Flamengo, né? Flamengo foi antes, mas saíram. Agora vai
fazer 100 anos e eu não acho a carteira dele, eu não sei onde eu botei. Então ele foi
jogador do Clube, porque eram os rapazes da sociedade aqui no Rio. Adoravam futebol.
Era Fluminense doente, por isso que, quando ele morreu, ele estava com o radinho aqui
no estômago ouvindo. Era a disputa do América com o Fluminense. E o Fluminense
perdeu nesse ano. Então, disfarçaram e tiraram porque aquilo emocionava ele. Eu acho
que ele morreu sem saber que o clube dele perdeu. Mas ele foi Fluminense toda a vida
aqui e Náutico em Recife. Mas ele teve um desgostozinho qualquer com o Fluminense,
parece. Porque houve um claro que ele ficou afastado sem pagar, não sei o que e quando
ele voltou..., houve qualquer coisa, mas ele nunca deixou de amar o clubezinho dele.
JL – Isso acontece com todos os tricolores.
MC – É. Eu também... Eu sou Fluminense.
JL – Eu também.
MC – Eu tenho o escudo dele de ouro, uma jóia na lapela que é uma beleza.
JL – Pior é que isso agora ta gravado, né?
MC – É! Agora... [risos].
FIM DO LADO B
FIM DA FITA
FIM DA ENTREVISTA
240
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