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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO RURAL
AGRICULTURA FAMILIAR, SEGURANÇA ALIMENTAR E POLÍTICAS
PÚBLICAS: Uma análise a partir da produção de autoconsumo no território do Alto
Uruguai/RS.
Marcio Gazolla
Porto Alegre
-2004-
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO RURAL
AGRICULTURA FAMILIAR, SEGURANÇA ALIMENTAR E POLÍTICAS
PÚBLICAS: Uma análise a partir da produção de autoconsumo no território do Alto
Uruguai/RS.
Marcio Gazolla
Professor Orientador: Dr. Sergio Schneider
Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação
em Desenvolvimento Rural da Faculdade de Ciências
Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul como requisito parcial para obtenção do Grau
de Mestre Desenvolvimento Rural.
Série PGDR – Dissertação n.º
Porto Alegre
-2004-
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO RURAL
A banca examinadora abaixo relacionada aprovou, no dia 21 de Dezembro de 2004, a
Dissertação de Marcio Gazolla intitulada “Agricultura Familiar, Segurança Alimentar e
Políticas Públicas: uma análise a partir da produção de autoconsumo no território do Alto
Uruguai/RS” como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Desenvolvimento
Rural.
Banca Examinadora:
Prof. Dr. Sergio Schneider (Orientador, Presidente, Departamento de Sociologia/UFRGS).
Prof. Dr. Flavio Sacco dos Anjos (Departamento de Ciências Sociais Agrárias/UFPeL).
Prof. Dr. Carlos Guilherme Adalberto Mielitz Netto ().
Prof. Dr. Paulo Eduardo Morruzi Marques ().
DEDICATÓRIA ESPECIAL
Dedico esta dissertação aos meus pais
Luciano e Genoefa que sempre me
incentivaram ao estudo e que me
ensinaram os valores da
responsabilidade, humildade e da
perseverança que me são tão úteis tanto
na minha vida pessoal como profissional.
A eles a minha gratidão, carinho e amor.
AGRADECIMENTOS
Neste momento tão importante de minha vida gostaria de agradecer a todos que de
uma forma ou de outra contribuíram com a realização deste trabalho que para mim é tão
valioso e engrandecedor do ponto de vista pessoal e profissional. Minhas sinceras desculpas,
desde já, se por acaso esquecer de alguém.
- Primeiramente a minha família, especialmente, os meus pais Luciano e Genoefa, mas
também aos meus irmãos Marcia, Marcos e Alexandre pelo incentivo, amor, convivência e
amizade. Vocês todos são muito importantes e especiais para mim!!!;
- Ao meu orientador o Professor Sergio Schneider pelo convívio, amizade, orientação e
incentivo pessoal aos trabalhos de pesquisa e reflexão;
- Em nome do Professor Luis Alberto Cadoná, Diretor do Colégio Agrícola de Frederico
Westphalen (CAFW/UFSM), gostaria de agradecer a todos os colegas professores,
funcionários e alunos desta instituição que entenderam a minha situação profissional e me
possibilitaram o desprendimento necessário para a conclusão desta obra. Esta dissertação
também tem um pouquinho de vocês!!!;
- A todos os meus colegas da turma 2003 de Mestrado do PGDR pela amizade, convívio e
estudo em conjunto neste período da minha vida;
- Aos membros e participantes do grupo de pesquisa “Desenvolvimento Territorial Rural e
Segurança Alimentar” pelas frutíferas discussões e reuniões de pesquisa e estudo. Em especial
a Ana Luiza e ao Leonardo pela ajuda no banco de dados do projeto;
- Aos professores e funcionários do PGDR pelo ensino, conhecimento e atendimento;
- Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela bolsa de
estudo que me possibilitou a realização do curso;
- A todos os agricultores familiares e atores sociais de desenvolvimento que deixaram o seu
trabalho de lado para me dar atenção durante as entrevistas, discussões e visitas;
- As demais pessoas que de um ou outro modo contribuíram para a realização desta pesquisa.
A todos os meus sinceros agradecimentos!!!
[...] O pequeno agricultor ele é um doutor
na sua profissão, ele sabe, ele conhece o
clima, ele sabe a época de plantar o
produto, ele tem um conhecimento, uma
história, uma cultura que vem a centenas
de anos, que vem sendo passada de
gerações em gerações e isso não podemos
perder, temos que buscar isso. Conhece a
função de cada planta, a sua adaptação, o
período de cultivo e isso é importante.
[De uma liderança do Movimento dos Pequenos Agricultores]
SUMÁRIO
LISTA DE TABELAS............................................................................................................ iv
LISTA DE FIGURAS............................................................................................................. vi
LISTA DE BOXES ............................................................................................................... vii
LISTA DE GRÁFICOS ....................................................................................................... viii
LISTA DE ANEXOS.............................................................................................................. ix
LISTA DE SIGLAS................................................................................................................. x
RESUMO................................................................................................................................ xii
ABSTRACT .......................................................................................................................... xiii
INTRODUÇÃO........................................................................................................................ 1
CAPÍTULO 1:
A AGRICULTURA FAMILIAR NO TERRITÓRIO DO ALTO URUGUAI: referências
teóricas e processos de mudança social .............................................................................. 17
1.1 – ELEMENTOS TEÓRICOS PARA O ESTUDO DA AGRICULTURA FAMILIAR E
DO TERRITÓRIO ................................................................................................................. 18
1.1.1 – De colonos a agricultores familiares: gênese, evolução e transformação do
Sistema Agrícola Colonial (SAC) .......................................................................................... 18
1.1.2 – Elementos teóricos aplicados ao estudo da agricultura familiar ....................... 23
1.1.3 – O processo de mercantilização da agricultura familiar ...................................... 30
1.1.4 - O Alto Uruguai: um território da agricultura familiar ........................................ 35
1.2 – AS TRANSFORMAÇÕES DA AGRICULTURA E DO TERRITÓRIO DO ALTO
URUGUAI: os colonos tornam-se agricultores familiares ..................................................... 40
1.2.1 – O papel do Estado nas políticas de modernização
......................................................................................................................................... 42
1.2.2 – O progresso tecnológico e seus efeitos na estrutura de produção
......................................................................................................................................... 47
1.2.3 – As transformações no processo de produção agrícola ....................................... 51
1.2.4 – Os resultados econômicos da modernização ...................................................... 54
1.2.5 - Diferenciação sócio-produtiva e vulnerabilização do autoconsumo
................................................................................................................................................. 56
CAPÍTULO 2:
AUTOCONSUMO E AGRICULTURA FAMILIAR: autonomia, sociabilidade e saber-
fazer ........................................................................................................................................ 64
2.1 – AUTOCONSUMO E CAMPESINATO: Chayanov e Wolf ......................................... 65
2.1.1 – O autoconsumo segundo Chayanov: a tese do equilíbrio ótimo ....................... 65
2.1.2 – Eric Wolf e a constituição dos fundos do campesinato ..................................... 68
2.1.3 – A produção para autoconsumo na agricultura familiar ...................................... 71
2.2 – O autoconsumo como estratégia de “produção” da autonomia ..................................... 74
2.3 – Autoconsumo e sociabilidade ........................................................................................ 78
2.4 – Autoconsumo, identidade e saber-fazer nas formas sociais familiares .......................... 83
2.5 – O autoconsumo como estratégia de diversificação dos modos de vivência
.................................................................................................................................................. 90
i
2.6 – Metodologia de cálculo do autoconsumo utilizada na pesquisa AFDLP
.................................................................................................................................................. 95
CAPÍTULO 3:
AUTOCONSUMO E AGRICULTURA FAMILIAR: segurança alimentar,
mercantilização e vulnerabilização da reprodução social no Alto Uruguai
................................................................................................................................................ 102
3.1 – A importância do autoconsumo para a agricultura familiar do Alto Uruguai ............. 105
3.2 – Autoconsumo e segurança alimentar na agricultura familiar ...................................... 115
3.3 - A mercantilização do autoconsumo familiar no Alto Uruguai .................................... 122
3.4 - A mercantilização do autoconsumo e a pobreza rural: a insegurança alimentar ......... 138
3.5 – O autoconsumo como a principal estratégia de combate à pobreza rural e a insegurança
alimentar ............................................................................................................................... 145
3.6 – Agricultura, segurança alimentar e intervenção do Estado ......................................... 154
CAPÍTULO 4:
POLÍTICAS PÚBLICAS, PRODUÇÃO DE AUTOCONSUMO E
DESENVOLVIMENTO RURAL NO ALTO URUGUAI: uma análise a partir do
Pronaf .................................................................................................................................. 160
4.1 – O PRONAF: uma política pública para a agricultura familiar
............................................................................................................................................... 162
4.1.1 – Breve caracterização ........................................................................................ 162
4.1.2 – O Pronaf como política de desenvolvimento rural e de fortalecimento da
agricultura familiar ............................................................................................................... 165
4.2 – FAZENDO “MAS DE LO MISMO”: uma análise do Pronaf no Alto Uruguai
............................................................................................................................................... 171
4.2.1 – O Pronaf e a intensificação da especialização produtiva da agricultura familiar
............................................................................................................................................... 171
4.2.2 – O Pronaf como política de fortalecimento da produção de autoconsumo ....... 185
4.3 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A DIVERSIFICAÇÃO DAS ESTRATÉGIAS DE
VIVÊNCIA DA AGRICULTURA FAMILIAR: para repensar o desenvolvimento rural no
Alto Uruguai ......................................................................................................................... 197
4.3.1 – Qual desenvolvimento? Qual política pública? ................................................ 197
4.3.2 – O Pronaf e a diversificação das estratégias de vivência ................................... 203
CAPÍTULO 5:
ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO E SEGURANÇA ALIMENTAR: qual
caminho trilhar? .................................................................................................................. 212
5.1 – Os impactos sociais e econômicos do desenvolvimento agrícola no Alto Uruguai ..... 215
5.2 – As migrações no território do Alto Uruguai ................................................................ 221
5.3 – O PAPEL DA AGRICULTURA FAMILIAR PARA A SEGURANÇA ALIMENTAR
................................................................................................................................................ 224
5.3.1 – A agricultura familiar como geradora da segurança alimentar: o caso do
Programa Fome Zero ............................................................................................................ 224
5.3.2 – Abastecimento e segurança alimentar do território: o caso das “feiras da
agricultura familiar” ............................................................................................................. 240
ii
5.4 – POLÍTICAS PÚBLICAS E INICIATIVAS LOCAIS DE DESENVOLVIMENTO,
PRODUÇÃO DE AUTOCONSUMO E SEGURANÇA ALIMENTAR ............................. 246
5.4.1 – As políticas públicas e iniciativas locais de fortalecimento da esfera mercantil
das unidades de produção ..................................................................................................... 247
5.4.2 – As políticas públicas e iniciativas locais de estímulo à produção de autoconsumo
................................................................................................................................................ 253
CONCLUSÕES FINAIS ..................................................................................................... 265
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .................................................................................... 278
ANEXOS .............................................................................................................................. 290
iii
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Percentagens de estabelecimentos que receberam assistência técnica e
financiamentos em alguns municípios do Alto Uruguai do Rio Grande do Sul
............................................................................................................................. 44
Tabela 2: Uso de adubos químicos, calcário e defensivos agrícolas por estabelecimentos em
alguns municípios do Alto Uruguai do Rio Grande do Sul .................................. 49
Tabela 3: Uso de tratores em alguns municípios do Alto Uruguai do Rio Grande do Sul ..... 50
Tabela 4: Idese por blocos e agregado de alguns municípios do Alto Uruguai do Rio Grande
do Sul .................................................................................................................... 57
Tabela 5: Estratos de autoconsumo vegetal e animal de acordo com os valores monetários
que seriam gastos pelas famílias para a sua aquisição no Município de Três
Palmeiras/RS ...................................................................................................... 107
Tabela 6: Estratos de renda agrícola da venda de produtos vegetais e animais no Município de
Três Palmeiras/RS ................................................................................................. 109
Tabela 7: Estratos de renda agrícola por estratos de Produto Bruto Vegetal e Animal de
autoconsumo no Município de Três Palmeiras/RS ............................................ 110
Tabela 8: Estratos das médias de idade das famílias no Município de Três Palmeiras/RS . 111
Tabela 9: Estrato das médias de idade das famílias por estrato de Produto Bruto Vegetal e
Animal de autoconsumo no Município de Três Palmeiras/RS ........................... 112
Tabela 10: Percentagens de famílias que possuem horta e pomar na propriedade no Município
de Três Palmeiras/RS ......................................................................................... 113
Tabela 11: Percentagens das famílias nas quais a horta e o pomar são suficientes para suprir o
consumo do grupo familiar no Município de Três Palmeiras/RS ...................... 113
Tabela 12: Canais de mercado utilizados pelos agricultores para a venda da produção vegetal,
animal e da agroindústria caseira no Município de Três Palmeiras/RS ............ 124
Tabela 13: Percentagens das quantidades de alguns produtos consumidos e vendidos pelas
famílias no Município de Três Palmeiras/RS .................................................... 125
Tabela 14: Grau de mercantilização do processo produtivo por estratos de autoconsumo nas
famílias de agricultores no Município de Três Palmeiras/RS ............................ 127
Tabela 15: Estratos de Produto Bruto de autoconsumo sobre o Produto Bruto Total das
famílias do Município de Três Palmeiras/RS ................................................. 132
iv
Tabela 16: Em que local o Senhor e sua família gastam a maior parte do dinheiro que ganham
[não importa a fonte deste dinheiro]? ................................................................. 137
Tabela 17: Índices de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) para alguns municípios
do Alto Uruguai do Rio Grande do Sul .............................................................. 140
Tabela 18: Indicadores de infra-estrutura e qualidade de vida dos agricultores familiares no
Município de Três Palmeiras/RS ........................................................................ 141
Tabela 19: Acesso a políticas de crédito e financiamento na agricultura familiar de Três
Palmeiras/RS .................................................................................................... 173
Tabela 20: Principais empreendimentos rurais financiados pelo Pronaf Crédito de Custeio e
Investimento, em ordem de importância, para os municípios pesquisados no Alto
Uruguai ................................................................................................................ 176
Tabela 21: Número de contratos e montantes do Pronaf Crédito de Custeio e Investimento em
alguns municípios selecionados do Alto Uruguai do Rio Grande do Sul ........... 181
Tabela 22: Principais empreendimentos financiados pelo Pronaf Crédito de Custeio em alguns
municípios do Rio Grande do Sul no ano de 2000 ............................................. 184
Tabela 23: Valor Adicionado Bruto (VAB) a preços básicos, por setor de atividade
econômica, em alguns municípios selecionados do Alto Uruguai do Rio Grande
do Sul ............................................................................................................... 218
Tabela 24: Produtividade de algumas culturas para autoconsumo e para venda em alguns
Municípios selecionados do Alto Uruguai do Rio Grande do Sul ................... 220
Tabela 25: Principais razões que levam os membros da família a migrar segundo os
agricultores familiares de Três Palmeiras ........................................................ 223
Tabela 26: Principais produtos de autoconsumo vendidos ao Programa Fome Zero e os seus
respectivos preços com base nos valores da Conab ............................................ 229
Tabela 27: Produtos, quantidades e valores gastos no Programa Fome Zero, em Constantina,
até 26/11/2004 ..................................................................................................... 232
v
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Socialização entre colonos de origem gerada pela produção de autoconsumo ....... 81
Figura 2: Importância da produção de autoconsumo da horta e do pomar na agricultura
familiar do Alto Uruguai ......................................................................................114
Figura 3: Processo de “sojicização” no Alto Uruguai e conseqüente deslocamento da
produção de autoconsumo ................................................................................... 133
Figura 4: Agricultor familiar em situação de pobreza rural no território do Alto Uruguai .. 142
Figura 5: Graus de mercantilização do autoconsumo e rotas de produção/reprodução social da
agricultura familiar no Alto Uruguai .................................................................. 150
Figura 6: Importância da atividade leiteira para as unidades de produção familiares .......... 255
vi
LISTA DE BOXES
Box 1: Principais motivações e justificativas para a intervenção do Estado na agricultura . 157
Box 2: Principais características do Pronaf Alimentos ......................................................... 190
vii
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1: Proporção do Produto Bruto de autoconsumo e de venda sobre o Produto Bruto
Total no Município de Três Palmeiras/RS ......................................................... 108
Gráfico 2: Evolução da população total, urbana e rural na Microrregião de Frederico
Westphalen nos anos de 1970, 1980, 1991 e 2000 .......................................... 223
viii
LISTA DE ANEXOS
Anexo 1: Microrregião de Frederico Westphalen com destaque para o Município de Três
Palmeiras, base dos dados primários da pesquisa AFDLP no Alto Uruguai do Rio
Grande do Sul ...................................................................................................... 290
ix
LISTA DE SIGLAS
AFDLP: Pesquisa Agricultura Familiar, Desenvolvimento Local e Pluriatividade no Rio
Grande do Sul: a emergência de uma nova ruralidade.
AGF: Aquisições do Governo Federal.
BACEN: Banco central do Brasil.
BANCOOB: Banco Cooperativo do Brasil S.A.
BANSICREDI: Banco Nacional de Crédito Cooperativo.
BASA: Banco da Amazônia S.A.
BB: Banco do Brasil.
BN: Banco do Nordeste.
BNDES: Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social.
CAI: Complexo Agroindustrial.
CEBs: Comunidades Eclesiais de Base.
CIC: Contratos de Investimentos Coletivos.
CMDR: Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural.
CNA: Confederação Nacional da Agricultura.
CNDRS: Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável.
CNPq: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
CPT: Comissão Pastoral da Terra.
CPR: Cédula do Produto Rural.
CODEMAU: Conselho de Desenvolvimento do Médio-Alto Uruguai.
COMSEA: Conselho Municipal de Segurança Alimentar.
CONAB: Companhia Nacional de Abastecimento.
CONTAG: Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura.
COOPAC: Cooperativa de Produção Agropecuária Constantina Ltda.
COOPERAC: Cooperativa Regional das Agroindústrias.
EGF: Empréstimos do Governo Federal.
EMBRATER: Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural.
EMBRAPA: Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária.
FAO: Food Agricultural Organisation.
FEE: Fundação de Economia e Estatística.
FETAG: Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul.
FETRAF-SUL: Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Sul.
FMI: Fundo Monetário Internacional.
x
IBASE: Instituto Brasileiro de Estudos Econômicos e Sociais.
IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
ICMS: Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços.
IDESE: Índice de Desenvolvimento Social e Econômico.
IDH-M: Índice de Desenvolvimento Humano Municipal.
IDS: Índice de Desenvolvimento Social.
INCRA: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
IPEA: Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas.
MAARA: Ministério da Agricultura, Abastecimento e Reforma Agrária.
MA: Ministério da Agricultura e Abastecimento.
MESA: Ministério Extraordinário da Segurança Alimentar.
MDA: Ministério do Desenvolvimento Agrário.
MDS: Ministério do Desenvolvimento Social.
MMTR: Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais.
MPA: Movimento dos Pequenos Agricultores.
MST: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra.
PGA: Programa de Pós-Graduação em Agronomia.
PGDR: Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural.
PGPM: Política de Garantia de Preços Mínimos.
PIB: Produto Interno Bruto.
PLANAF: Plano Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar.
PM: Prefeitura Municipal.
PRONAF: Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar.
PROVAP: Programa de Valorização da Pequena Produção.
UFPEL: Universidade Federal de Pelotas.
UFRGS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
UFSM: Universidade Federal de Santa Maria.
SAC: Sistema Agrícola Colonial.
SAM: Secretaria da Agricultura Municipal.
SDT: Secretaria de Desenvolvimento Territorial.
SNCR: Sistema Nacional de Crédito Rural
SPSS: Statistical Package for Social Sciencies.
STR: Sindicato dos Trabalhadores Rurais.
VAB: Valor Adicionado Bruto.
VBP: Valor Bruto da Produção agropecuária.
xi
RESUMO
Esta dissertação analisa o papel da produção de autoconsumo na agricultura familiar e as
políticas públicas e iniciativas locais no território do Alto Uruguai do Rio Grande do Sul.
Desde a década de 1970, a agricultura familiar deste território vem passando por
transformações profundas desde o início da modernização da agricultura devido a sua
crescente inserção mercantil. A partir deste período, a agricultura familiar se torna uma forma
de produção e trabalho marcada pela mercantilização social, econômica e financeira. Neste
contexto, a produção de autoconsumo que é uma característica típica destas unidades de
produção sofreu um processo de mercantilização. Este estudo procura demonstrar que isto
decorreu, em grande parte, devido aos processos de especialização produtiva via plantio de
grãos e commodities agrícolas, do uso cada vez mais intenso de tecnologias em larga escala e
da perda do conhecimento acumulado pelos agricultores. Com a mercantilização da produção
que era destinada ao autoprovisionamento as famílias se tornam vulneráveis em termos da
produção de alimentos básicos e o abastecimento alimentar passa a ocorrer mediante compras
nos mercados locais. Este processo de mercantilização e vulnerabilização do autoconsumo fez
com que no Alto Uruguai aparecessem situações de pobreza e de insegurança alimentar entre
os agricultores familiares. Em face desta situação, a dissertação busca analisar em que medida
as políticas públicas destinadas a fortalecer a agricultura familiar estão contemplando ações
de reforço a produção de autoconsumo. Através de pesquisa de campo e entrevistas
semidiretivas realizadas no Alto Uruguai, estuda-se o Pronaf e um conjunto de iniciativas
locais que operam com a agricultura familiar. A conclusão é que, em grande medida, o Pronaf
e, em menor escala, as iniciativas locais não estão conseguindo intervir e estimular os
agricultores familiares a retomar a produção de autoconsumo. Neste sentido, o trabalho
mostra que as políticas públicas e as iniciativas locais acabam reforçando o padrão
produtivista e não permitem que os agricultores familiares possam diversificar as suas
estratégias de vivência e de desenvolvimento rural no Alto Uruguai.
xii
ABASTRACT
xiii
INTRODUÇÃO
Esta dissertação analisa as transformações do papel da produção de autoconsumo na
agricultura familiar, a vulnerabilização da segurança alimentar nestas unidades e os efeitos
das políticas públicas e iniciativas locais no território do Alto Uruguai. A análise empreendida
tem como referência empírica à agricultura familiar do Alto Uruguai e as suas estratégias para
garantir a reprodução social e a segurança alimentar dos membros do grupo doméstico. Neste
sentido, assume importância decisiva as diferentes estratégias de vivência acionadas pelas
famílias visando gerar processos de fortalecimento da produção de autoprovisionamento e de
diversificação rural.
Desta forma, buscar-se-á analisar uma realidade social complexa e multifacetada que
envolve os agricultores familiares e as suas estratégias de reprodução social. Este estudo
focaliza a produção de autoconsumo das famílias procurando demonstrar como nas últimas
três décadas esta sofreu um processo de fragilização nas unidades familiares. Neste período,
por conta das transformações técnicas e produtivas decorrentes da modernização da
agricultura, os agricultores familiares se inseriram crescentemente na dinâmica de mercado, o
que fez com que muitos perdessem a sua autonomia do processo produtivo e inclusive a
tradição e o corpo do saber de produzir os próprios alimentos para consumo. Este processo
produziu uma diferenciação social entre os agricultores familiares e fez com que uma parcela,
não desprezível, passasse a ter dificuldades em garantir a sua segurança alimentar, pois a sua
alimentação deixou de ser produzida no interior da unidade produtiva e passou a ser adquirida
no comércio local ou de vendedores ambulantes (fruteiros, verdureiros, etc). Nesse sentido,
uma parcela importante da agricultura familiar do Alto Uruguai foi levada a um processo
contínuo de vulnerabilização da sua segurança alimentar e de perda da sua autonomia frente
ao contexto social e econômico.
A partir da compreensão deste processo mais geral de fragilização das estratégias de
vivência, tal como definido por Ellis (2000), passou a estudarem-se as políticas públicas e
iniciativas locais que tem como objetivo fortalecer a agricultura familiar no Alto Uruguai.
Verificou-se que, no geral, estas ações não tem sido capazes de estimular a diversificação
produtiva e econômica e tem efeitos superficiais no sentido de contribuir para melhorar a
segurança alimentar dos agricultores familiares. As políticas públicas tradicionalmente
praticadas no Alto Uruguai como o crédito rural, a partir dos anos de 1970, sempre foram
voltadas a estimular o padrão de desenvolvimento agrícola e setorial, onde a produção de
grãos e commodities agrícolas assumiram uma importância central. É só no final da década de
80 que começam a aparecer diversas iniciativas locais alternativas a este padrão hegemônico.
Com a criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
(Pronaf), em 1996, esperava-se que esta situação de financiamento e fortalecimento do padrão
agrícola e produtivista dominante fosse reorientada, que novas atividades produtivas e
econômicas surgissem e que a produção de alimentos para consumo das famílias voltasse a
ser estimulada. Contudo, o estudo que se empreendeu nesta dissertação das políticas públicas
e iniciativas locais indica que elas estão gerando efeitos contrários aos esperados, pois estas
continuam a apoiar o processo de estreitamento das condições objetivas de reprodução social
e alimentar da agricultura familiar. Este processo decorre da manutenção de sistemas
produtivos calcados no cultivo de grãos, o que restringe a diversificação da economia local e
regional e estimula a intensificação do padrão tecnológico. Neste sentido, mantém-se
inalterada a situação de insegurança alimentar das famílias rurais devido à baixa produção de
autoprovisionamento.
Por outro lado, a análise empreendida nesta pesquisa consistiu no uso de um
referencial conceitual que desse conta das transformações sociais, econômicas, técnicas e
produtivas que os agricultores familiares passaram a partir dos anos 70 no Alto Uruguai. Por
este motivo, optou-se pelo uso de referências teóricas que captassem as mudanças e a
dinâmica social dos processos em estudo. Nesse sentido, a presente dissertação trabalha com
três orientações analítico-conceituais. A primeira consiste em conceber a agricultura familiar
como uma forma social de produção e trabalho que se encontra atualmente mercantilizada do
ponto de vista social e econômico. A segunda orientação perseguida pela pesquisa refere-se
ao processo de vulnerabilização da produção de autoconsumo dos agricultores familiares em
contextos em que imperam situações de fragilização social e de insegurança alimentar. Uma
terceira orientação focaliza as diferentes estratégias de vivência adotadas pelos agricultores
familiares, visando assegurar a diversificação das economias e atividades produtivas bem
como a sua reprodução social e alimentar.
2
Com base nesta abordagem adotada, traçam-se alguns objetivos gerais e específicos ao
estudo do autoconsumo e das políticas públicas e iniciativas locais no Alto Uruguai. Como
objetivo geral, a presente pesquisa pretende estudar o papel da produção de autoconsumo
como uma das dimensões fundamentais da segurança alimentar e da reprodução social dos
agricultores familiares, bem como as políticas públicas e as iniciativas locais, visando analisar
qual o tipo de fortalecimento que estas estão gerando na produção de autoconsumo e no
desenvolvimento rural do Alto Uruguai do Rio Grande do Sul. Como objetivos específicos o
estudo pretende analisar qual o papel que a produção de autoconsumo possui na segurança
alimentar e na reprodução social dos agricultores familiares. Também, pretende-se verificar
qual o tipo de fortalecimento que o Pronaf está gerando como política pública no âmbito da
produção de autoconsumo e na diversificação das estratégias de desenvolvimento rural do
território. E, por fim, busca-se compreender qual a contribuição das políticas públicas e
iniciativas locais na geração da produção de autoconsumo e de um tipo de desenvolvimento
rural diversificado.
Neste sentido, o que se buscou na presente pesquisa é estudar o papel da produção de
autoconsumo das unidades de produção familiares com o objetivo de entender as “funções”
que este tipo de produção preenche na dinâmica social, simbólica, econômica e produtiva das
mesmas. Busca-se, também, estabelecer os vínculos da produção de autoconsumo com os
princípios da segurança alimentar e com a sua importância em relação à reprodução social e
alimentar das famílias rurais e das demais populações do Alto Uruguai. Neste sentido,
ressalta-se que a pesquisa analisa o papel do autoconsumo tanto internamente as unidades
familiares como do ponto de vista das “funções” que este tipo de produção possui para o
conjunto da população da região.
No que se refere às políticas públicas, analisa-se o Pronaf, no âmbito federal, e o que
usualmente chamou-se de iniciativas ou de políticas públicas locais que compreendem as
ações das instituições como as Secretarias da Agricultura Municipais (SAMs), as Prefeituras
Municipais (PMs), os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural (CMDRs), o
Conselho de Desenvolvimento do Médio-Alto Uruguai (Codemau), os escritórios municipais
da Emater e as organizações sociais e de representação política da agricultura familiar do Alto
Uruguai como cooperativas de produção agropecuária (Cooperativa de Produção
Agropecuária Constantina Ltda - Coopac), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA),
as organizações sindicais como a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande
do Sul (Fetag) e a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Sul do país
(Fetraf-Sul), dentre outras instituições ligadas ao desenvolvimento do Alto Uruguai. Tanto no
3
que se refere às políticas públicas federais como as iniciativas locais, o estudo visa analisar as
ações implementadas e os seus efeitos sobre a produção de autoconsumo e,
conseqüentemente, em relação à segurança alimentar tanto do ponto de vista dos agricultores
familiares como do restante da população do território.
As motivações para a realização deste estudo são variadas. A primeira motivação está
ligada à própria origem social do autor, filho de agricultores familiares desta região, que
durante o curso de graduação em Agronomia, pela Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM), sempre se indagou sobre os problemas sociais e econômicos ligados à agricultura
familiar, as suas formas de inserção social e econômica, os seus sistemas produtivos
desenvolvidos, as formas de uso da terra e dos meios de produção, a fragilização social, o não
desenvolvimento social e econômico da região, o êxodo rural, dentre outros fenômenos e
processos sociais que ocorriam no Alto Uruguai. Assim, a estada no Programa de Pós-
Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR) propiciou as condições para reflexão sobre
algumas destas questões.
A segunda motivação relaciona-se à própria importância social e econômica que
possui a agricultura familiar no Brasil e o interesse acadêmico que tem despertado. Isso
remete o cientista social a uma série de indagações sobre o futuro desta forma social de
produção e trabalho nas sociedades contemporâneas. E, também, a outras perguntas sobre
como se dão as suas estratégias de reprodução social, a importância desta categoria como
“ator” social e econômico, o agir da família como uma base determinante de um modo de vida
que, sociologicamente, é diferente dos demais atores da agricultura brasileira, os valores
culturais e simbólicos, entre outras dimensões que poderiam ser destacadas, que desafiam os
estudiosos a buscar explicações plausíveis para este “(re)nascimento” da temática no âmbito
dos estudos rurais brasileiros.
O terceiro e principal motivador da pesquisa é o debate mais amplo que está se
desenvolvendo no país desde os anos 90 sobre segurança alimentar e nutricional das
populações em situações de risco, fragilidade e pobreza. Debate este que culminou, no ano de
2003, com a criação do Programa Fome Zero pelo Governo Federal. Neste sentido, a pesquisa
pretende trazer uma contribuição relativamente original ao tratar a produção de autoconsumo
como fonte geradora da segurança alimentar tanto para os agricultores familiares como para a
população de um determinado território em que se encontram situações de insegurança
alimentar e precariedade social. Assim, o estudo se propõe a trazer uma contribuição ao tema
do autoconsumo, pois de acordo com pesquisas documentais e conversas mantidas com
cientistas sociais de centros de pesquisa em desenvolvimento rural do país, verifica-se que o
4
tema do autoconsumo ainda não recebeu um tratamento adequado no Brasil, com exceção de
alguns estudos realizados no passado como os de Garcia Jr. (1983; 1989) e Herédia (1979),
mas que não o analisaram sob o enfoque de sua relevância para a geração de processos de
segurança alimentar.
A realidade empírica de observação desta dissertação é a região do Alto Uruguai.
Acredita-se que esta região seja extremamente representativa de uma situação social em que a
agricultura familiar é hegemônica como ator social e econômico. No Alto Uruguai esta é a
forma de produção e trabalho que é predominante nos espaços rurais, sendo responsável por
93,9% da ocupação da força de trabalho em propriedades rurais onde o tamanho médio é de
13,0 ha por família, demonstrando a predominância e relevância da agricultura familiar como
ator social coletivo. A região em estudo também se caracteriza por um relevo topográfico
acidentado, com grande ocorrência de áreas declivosas. A maioria dos indicadores e índices
de desenvolvimento humano, sociais e econômicos estão abaixo das médias estaduais,
demonstrando a situação de fragilidade social em que a população se encontra. Os municípios
têm uma economia essencialmente agrícola e a maioria da população é rural. Nestes, a
produção agropecuária geralmente é responsável por mais de 50% dos valores monetários
adicionados à economia local. O rural é caracterizado como um espaço pouco diversificado
em termos produtivos e econômicos. O desenvolvimento histórico que se gestou neste
território seguiu a rota da chamada modernização da agricultura e do desenvolvimento
agrícola setorializado com a produção de grãos, commodities agrícolas e a integração
agroindustrial.
A agricultura familiar como forma de produção e trabalho se encontra mercantilizada
do ponto de vista social e econômico como já demonstraram estudos recentes realizados na
região, como é o caso de Conterato (2004). Neste sentido, concorda-se com o autor de que a
agricultura familiar é mercantilizada do ponto de vista social e econômico e vai-se demonstrar
que isso acontece também no caso da produção de consumo alimentar, das políticas públicas e
iniciativas locais. Em relação às políticas públicas praticadas nesta região, pode-se dizer que
desde os anos 70 estas reforçam o padrão de desenvolvimento produtivista e agrícola da
mesma. Já no caso da produção para consumo, esta vem passando por um movimento intenso
de mercantilização que, em alguns casos, está comprometendo a segurança alimentar e a
reprodução social de uma parcela importante dos agricultores do Alto Uruguai.
Esta situação de fragilização social da agricultura familiar do Alto Uruguai leva a
refletir sobre o seu processo histórico de gênese e constituição desta forma social.
Mesmo
não desconhecendo a ocupação humana prévia (sobretudo indígena), a região do Alto
5
Uruguai foi apropriada e transformada em um verdadeiro território da agricultura familiar.
Desde a chegada dos colonos descendentes de imigrantes alemães, italianos, poloneses, etc a
agricultura familiar é a forma social que historicamente se apropriou e se desenvolveu no
Alto Uruguai do Rio Grande do Sul. É esta a forma social de produção e trabalho que se
relaciona com a natureza, com os sistemas produtivos, com o meio ambiente e que estabelece
relações de poder com as outras categorias sociais existentes no território. Neste sentido, ela é
hegemônica não só do ponto de vista numérico, mas, sobretudo, em termos sociais,
econômicos, produtivos e culturais.
Com relação ao processo histórico de evolução e transformações da agricultura
familiar no Alto Uruguai, concorda-se com uma distinção operacional que Abramovay (1998)
estabeleceu agricultores camponeses e familiares. Para este autor, a agricultura familiar de
hoje já foi uma agricultura camponesa que sofreu uma metamorfose social a partir dos anos
70 com as transformações técnicas-produtivas surgidas durante o processo de modernização
da agricultura. Acredita-se que esta distinção seja útil para diferenciar agricultura colonial,
praticada por colonos, que Schneider (1999) caracterizou como um Sistema Agrícola
Colonial (SAC), dos atuais agricultores familiares. É importante frisar que embora se trate da
mesma categoria social, existem diferenças fundamentais entre ambas que decorrem,
basicamente, das relações sociais e econômicas que estabelecem com o ambiente em que
estão inseridas.
Por isso, a agricultura familiar que hoje se encontra no Alto Uruguai se caracteriza
pela sua mercantilização social e econômica e a sua crescente dependência aos circuitos
mercantis para executar a sua reprodução social e alimentar. Assim, a agricultura familiar que
se analisa no Alto Uruguai se caracteriza pela sua dependência ao progresso tecnológico, ao
mercado, a crescente externalização do processo produtivo (inclusive dos alimentos para
consumo) e aos movimentos de cientificizacão da produção agrícola, conforme formulado
por Van der Ploeg (1990; 1992). Contudo, ela não perdeu o seu caráter familiar e, tampouco,
deixou de ser a forma social de produção e de trabalho capaz de se apropriar do espaço rural
com o qual desenvolve interações sociais importantes como no caso dos sistemas produtivos,
do meio ambiente, dos agroecossistemas e mesmo através dos outros atores sociais do
território, estabelecendo com estes diferentes relações de poder.
Deste modo, é a agricultura familiar à forma social que se desenvolveu no Alto
Uruguai desde os primórdios de sua ocupação com descendentes de italianos, alemães,
poloneses, dentre outras etnias. Por estes motivos, concebe-se teorica e metodologicamente,
esta unidade do espaço rural como um território, mas não um território qualquer, mas sim um
6
território da agricultura familiar por ser esta a forma de produção e trabalho que se
territorializou e se apropriou historicamente do espaço rural. Assim, como procedimento
metodológico, o Alto Uruguai é entendido como um nível meso de análise dos processos
sociais, econômicos, culturais e produtivos em curso. Tomando-se o Alto Uruguai como um
território da agricultura familiar, é possível analisar e estudar as transformações da produção
para o autoconsumo, as políticas públicas e iniciativas locais de desenvolvimento para além
das fronteiras domésticas das unidades produtivas, pois assim se toma como unidade de
referência os processos que afetam a região como um todo.
As principais transformações sociais, econômicas e culturais da região são iniciadas a
partir dos anos 70, onde as condições objetivas em que se assentava a reprodução desta forma
social de produção e trabalho foram solapadas. No transcurso histórico deste processo de
mercantilização os agricultores familiares sofreram uma diferenciação social e produtiva
decorrente da penetração do capitalismo na agricultura. Este processo foi desigual e
contraditório gerando, ao mesmo tempo, pobreza e riqueza, exclusão e inclusão, vencedores e
vencidos. Assim sendo, no Alto Uruguai, encontram-se agricultores que conseguiram se
adaptar aos efeitos da mercantilização social e econômica ascendendo socialmente,
acumulando capital, meios de produção e usando tecnologias cada vez mais sofisticadas. Do
outro lado, existem aqueles agricultores que foram se vulnerabilizando e fragilizando-se
frente às condições impostas pela mercantilização e pela penetração do capitalismo na
agricultura. Segundo a perspectiva analítica de Ellis (2000), pode-se dizer que os primeiros
utilizam-se de estratégias de adaptação às mudanças sociais e econômicas, enquanto o
segundo grupo recorreu a estratégias de reação em face das dificuldades, riscos e da própria
insegurança alimentar.
Neste processo mais amplo de transformações e mudanças, uma das esferas da unidade
de produção que sofreu os efeitos da mercantilização social e econômica foi à produção de
consumo alimentar. O processo de mercantilização no Alto Uruguai, iniciado a partir dos anos
70, vulnerabilizou as condições de reprodução social e alimentar dos agricultores familiares
solapando as condições objetivas da produção de autoconsumo e desencadeando processos de
fragilização social e de insegurança alimentar entre os próprios agricultores. A produção
própria de alimentos para consumo, que era um dos pilares básicos em que se assentava à
reprodução social e o modo de vida colonial, passou (e ainda está passando) por um processo
de mercantilização, onde o acesso aos alimentos começa a ser realizado cada vez mais via o
mercado e a sua aquisição assume, em algumas famílias, uma relevância maior que a
produção no interior da unidade doméstica com o uso da força de trabalho do grupo familiar.
7
Ellis (2000) denominou este processo de vulnerabilização da produção para consumo. Na
análise que se empreende com relação ao processo de solapamento da produção de
autoconsumo no Alto Uruguai, assumem fundamental importância às opções em torno da
especialização produtiva, do processo de aprofundamento do padrão tecnológico, a perda do
conhecimento e do corpo do saber dos agricultores familiares como se referiram Woortmann e
Woortmann (1997).
Nesta dissertação, pretende-se demonstrar que o definhamento e o lento abandono da
produção para consumo revela um dos efeitos do processo mais geral de mercantilização das
relações sociais dos agricultores familiares do Alto Uruguai. Este processo se caracteriza pela
crescente inserção dos agricultores nos diversos circuitos mercantis, que vão desde a produção
até a tomada de crédito no sistema financeiro. Entretanto, o mais contraditório deste processo
é que, em alguns casos, o crédito rural tomado financia a própria mercantilização do processo
de produção agrícola, inclusive, a mercantilização da produção para consumo. Isso ocorre por
que as atividades financiadas pelos bancos como, por exemplo, o Pronaf, estimula o
desenvolvimento de atividades produtivas como o cultivo de grãos e a integração
agroindustrial, cuja lógica está assentada nos princípios do produtivismo e do padrão agrícola
de desenvolvimento.
Neste sentido, pode-se dizer que no Alto Uruguai as políticas públicas, em grande
medida, estão fazendo “mas de lo mismo” na feliz expressão de Schejtmann e Berdegué
(2003). Ou seja, elas continuam a financiar o padrão de desenvolvimento que é, em parte, o
responsável pelo solapamento das condições de reprodução social e alimentar dos agricultores
familiares. Neste contexto, uma gama das políticas públicas praticadas como no caso do
Pronaf e das iniciativas locais de desenvolvimento, acabam insistindo no viés da crescente
mercantilização dos agricultores e não contribuem para o fortalecimento da produção de
autoconsumo das famílias rurais, que possui um papel fundamental na geração da segurança
alimentar, na reprodução social e na diversificação das estratégias de vivência dos agricultores
familiares. Assim, as políticas públicas praticadas são, em grande medida, instrumentos de
reforço do padrão de desenvolvimento agrícola e setorial.
É este elenco de questões que definem e recortam a problemática mais geral deste
trabalho. A partir deste referencial, estabelecem-se algumas indagações específicas que tem o
propósito de delimitar mais objetivamente o que se pretende estudar. São elas: a) qual o papel
que possui a produção de autoconsumo para a reprodução social e a geração de processos de
segurança alimentar para os agricultores familiares do Alto Uruguai? b) como as políticas
públicas, especialmente o Pronaf, tem gerado condições favoráveis ao fortalecimento da
8
produção de autoconsumo e a diversificação das estratégias de desenvolvimento rural do
território? e, c) como as políticas públicas e iniciativas locais tem gerado ações de estímulo a
produção de autoconsumo, a segurança alimentar e de desenvolvimento rural que
transcendam a esfera da produção agrícola junto aos agricultores familiares?
A abordagem analítica que se julga adequada para dar conta da problemática referida
parte da idéia de que a agricultura familiar é uma forma social de produção e trabalho que se
encontra imersa em um ambiente social e econômico em que vigoram de forma hegemônica
relações sociais mercantilizadas, tal como definiu Van der Ploeg (1990; 1992). Acredita-se,
também, que os condicionantes gerais da reprodução social e alimentar da agricultura familiar
são determinados por dois conjuntos de fatores. De um lado, os fatores externos a unidade
familiar como a ação do Estado, a política econômica, as leis e legislações vigentes podendo-
se citar como exemplo, as políticas públicas analisadas nesta dissertação. De outro lado, os
condicionantes internos ao grupo doméstico como a composição da família, o número de
membros, a idade destes, as iniciativas adotadas, os recursos disponíveis, a racionalidade
individual dos membros, tal como abordou Schneider (2003a). Também, entende-se a
agricultura familiar como uma forma de produção e trabalho que operacionaliza as suas
estratégias com uma separação heurística entre grupo doméstico e unidade de produção,
visando melhor entender e explicar os processos sociais, econômicos e produtivos em torno
da sua reprodução social, tal como indicado por Carneiro (2000). Neste sentido, a unidade
básica de análise a nível micro é definida como a família rural.
Também se utilizam referências analíticas desenvolvidas por outros autores, como é
o caso de Frank Ellis (2000). Para este autor, a agricultura familiar utiliza-se de dois tipos de
estratégias de vivência. Um primeiro tipo, que são as estratégias de adaptação ao contexto
social e econômico. Neste tipo de estratégia, a agricultura familiar está em uma situação
social de incremento do seu portfolio de opções, que podem ser de acumulação e de ascensão
social. O outro tipo de estratégias de vivência é de reação ao contexto social e econômico que
são as situações de crise e choques em sua reprodução. Neste caso, a agricultura familiar está
em processo de empobrecimento, de regressão e de fragilização social. Em relação às
reflexões de Ellis (2000), também são importantes para a análise desenvolvida nesta
dissertação os conceitos de vulnerabilização do autoconsumo e o de diversificação das
estratégias de vivência. A vulnerabilização do autoconsumo é entendida como a situação
social em que as unidades de produção familiares estão em insegurança alimentar devido ao
fato de não produzirem os seus próprios alimentos para prover a sua segurança alimentar. A
diversificação das estratégias de vivência é definida como um processo pelo qual as unidades
9
domésticas constroem um leque diversificado de opções e iniciativas (portfolio) de atividades,
rendas e ativos para sobreviver e melhorar o seu padrão de vida.
Este conjunto de referências analíticas e conceituais está sendo desenvolvido em
diálogo e interação com os colegas que partilham de preocupações teóricas semelhantes que
estão ligados ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS) e ao Programa de Pós-Graduação em
Agronomia, da Universidade Federal de Pelotas (PPGA/UFPel)
1
. Esta pesquisa utiliza-se da
base de dados e das reflexões do grupo de pesquisa
“Desenvolvimento Territorial Rural e
Segurança Alimentar” que recebeu financiamento pelo CNPq/MESA (atual Ministério do
Desenvolvimento Social - MDS) no ano de 2004. Este projeto visa pesquisar o tema da
segurança alimentar, o papel da produção de autoconsumo, as políticas públicas e os sistemas
agroalimentares em quatro territórios distintos do Rio Grande do Sul, sendo um deles o Alto
Uruguai, o qual é abordado nesta dissertação. Assim, este estudo constitui-se na consolidação
de uma trajetória de pesquisas, indagações e preocupações de um grupo de pesquisadores de
dois programas de pós-graduação em torno de temáticas correlatas a agricultura familiar que
vão bem além das aspirações e preocupações pessoais do autor.
Em termos do enfoque espacial, pretende-se trabalhar com a idéia de que o Alto
Uruguai é um território da agricultura familiar conforme já enfatizado. Esta opção traz
implicações metodológicas como a de realizar a pesquisa em vários municípios, a grande
heterogeneidade de realidades e de atores sociais entrevistados e, a maior de todas, que é a
explicação coerente e consistente de uma realidade social que em muitos aspectos se
apresenta aos olhos como multifacetada, ambígua e contraditória. De certo modo, este desafio
foi enfrentado trabalhando-se com a idéia que no Alto Uruguai existe um padrão de
desenvolvimento agrícola e setorial em que as estratégias de reprodução social dos
agricultores familiares e as políticas públicas são pouco diferenciadas em relação ao contexto
mais amplo. Assim, num primeiro instante buscou-se explicar as grandes tendências em
relação ao desenvolvimento do território, ao autoprovisionamento e a ação das políticas
públicas e iniciativas locais. Num segundo momento se procurou explicar os dados e
informações específicas, destoantes e contraditórias dos aspectos sociais, econômicos e
produtivos que estão sendo analisados.
1
Esta pesquisa também está inserida no contexto mais amplo de um projeto de investigação denominado
“Agricultura Familiar, Desenvolvimento Local e Pluriatividade no Rio Grande do Sul: a emergência de uma
nova ruralidade” que vem sendo desenvolvido pelo Departamento de Ciências Sociais Agrárias da UFPel e o
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da UFRGS, financiado pelo Conselho Nacional de
10
Quanto aos procedimentos metodológicos o estudo utiliza-se de dados secundários e
primários. Os dados secundários foram obtidos nos Censos Demográficos e Agropecuários do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Também se utilizam os dados da
Fundação de Economia e Estatística (FEE), do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas
(IPEA), dos escritórios municipais da Emater, da Coopac/Fome Zero, das instituições
bancárias operacionalizadoras do Pronaf e de outras fontes secundárias. Como fonte de dados
primários, utilizam-se os dados de 59 questionários semi-estruturados aplicados pela pesquisa
AFDLP (2003) que estão organizados em um software de SPSS (Statistical Package for
Social Sciencies)
2
. Desta pesquisa, foram obtidos os dados quantitativos relativos à produção
de autoconsumo
3
, dentre outros, que pertencem ao Município de Três Palmeiras
4
, no Alto
Uruguai. Este município é tido como um caso representativo da dinâmica da agricultura
familiar e do tipo de desenvolvimento que o Alto Uruguai se embuiu historicamente.
A pesquisa de campo utilizou-se de técnicas qualitativas de levantamento de dados,
tais como o uso do diário de campo e de entrevistas semi-estruturadas. A técnica da entrevista
como instrumento de coleta de dados em pesquisas na área das ciências sociais é muito
utilizada pelos cientistas sociais, como formularam Colognese et all (1998) e Gil (1999).
Enquanto técnica de pesquisa, Gil (1999) ressalta que a entrevista é bastante adequada para a
obtenção de informações acerca do que as pessoas sabem, crêem, esperam, sentem ou
desejam, pretendem fazer, fazem ou fizeram, bem como acerca de suas explicações ou razões
a respeito das coisas precedentes (p. 117).
Para a obtenção das informações qualitativas foram realizadas 23 entrevistas semi-
estruturadas com 26 atores sociais entrevistados, sendo que a transcrição de conteúdo das
mesmas foi realizada apenas em 22. Uma foi descartada devido a pouca relevância das
informações obtidas. Foram entrevistados 8 agricultores familiares, 4 secretários municipais
da agricultura, 6 técnicos, agrônomos e extensionistas sociais da Emater, 2 representantes de
Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (CNPq), dentro do Edital “Agricultura Familiar”, vinculado à linha
temática “Atividades Rurais Não-Agrícolas, Multifuncionalidade e Desenvolvimento Local”.
2
Para ver uma melhor exposição de como foram organizados o questionário e a pesquisa AFDLP (2003) no Rio
Grande do Sul consultar Conterato (2004) e também Sacco dos Anjos et all (2004).
3
No Anexo 3, realiza-se uma breve digressão e explicação sobre a metodologia de cálculo utilizada na Pesquisa
AFDLP (2003) para os dados relativos a produção de autoconsumo.
4
Os municípios do Alto Uruguai possuem muitas particularidades semelhantes em termos de suas características
constitutivas. A primeira grande semelhança é a presença esmagadora da agricultura familiar nos municípios
pesquisados. A segunda é a existência de um padrão de desenvolvimento agrícola e setorial que é baseado na
mercantilização das condições de reprodução social da agricultura familiar ali existente. E, um terceiro fator, é a
relativa homogeneidade dos sistemas produtivos e das estratégias de reprodução social acionadas pelos
agricultores familiares. Estes fatores legitimam o estudo do município de Três Palmeiras como um caso típico e,
também, representativo das condições de reprodução social dos agricultores do Alto Uruguai e, assim,
11
CMDRs, o Presidente do Codemau e organizações sociais e de representação política dos
agricultores familiares, sendo um representante da Coopac, um da Fetag (coordenador
regional), 2 da Fetraf-Sul e o um membro do MPA. A lista completa de atores sociais
entrevistados pode ser visualizada no Anexo 2. Estes atores sociais foram escolhidos com
base na posição que ocupam e devido à importância das instituições que representam, além de
se considerar a relevância das informações e dados que poderiam fornecer. A escolha dos
agricultores foi de acordo com a sua situação social e econômica, entrevistando-se desde
agricultores pobres e descapitalizados até agricultores que gozam de uma situação social e
econômica confortável, bem estruturados produtivamente e fortemente inseridos no padrão
produtivo de grãos. Neste sentido, considera-se ter abarcado a heterogeneidade de situações
sociais da região em estudo.
As entrevistas foram realizadas em seis municípios do Alto Uruguai com os quais se
pretendeu abranger uma gama variada de instituições e atores sociais ligados ao
desenvolvimento da região, propiciando a coleta de dados e informações heterogêneas e
diversificadas dos atores entrevistados. Os municípios pesquisados foram: Constantina,
Frederico Westphalen, Taquaruçu do Sul, Três Palmeiras, Palmitinho e Vista Alegre, todos
pertencentes à Microrregião de Frederico Westphalen tal como definido pelo IBGE (vide
Anexo 1). A escolha destes municípios foi feita com base em dois estudos exploratórios que
antecederam a pesquisa de campo visando o conhecimento mais detalhado dos locais de
investigação. No Anexo 1, é possível a visualização da Microrregião de Frederico
Westphalen, foco do estudo, com destaque para o município de Três Palmeiras que é à base
dos dados da pesquisa AFDLP (2003).
Para orientar a problemática de estudo, a construção do referencial teórico e os
procedimentos metodológicos estabeleceram-se três hipóteses de pesquisa. Estas hipóteses
podem ser entendidas como tentativas de responder, preliminarmente, a problemática e as
indagações que foram formuladas com relação ao papel do autoconsumo na agricultura
familiar e o tipo de fortalecimento que as políticas públicas e iniciativas locais estão gerando
no Alto Uruguai. Como primeira hipótese de pesquisa relativa ao papel do autoconsumo na
agricultura familiar, acredita-se que este tipo de produção é a responsável pela geração de
alguns dos princípios da segurança alimentar que são: o acesso e disponibilidade dos
alimentos a serem consumidos, a qualidade nutricional destes, o fornecimento das quantidades
suficientes e permanentes de alimentos e o abastecimento das famílias com uma alimentação
conseqüentemente, podem-se tornar os resultados ali obtidos, em parte, como representativos da situação social e
econômico do Alto Uruguai como um todo.
12
que atenda os hábitos culturais de consumo alimentar. O autoconsumo, também, caracteriza-
se por desempenhar nas unidades familiares o papel de diversificar as estratégias de vivência
e de desenvolvimento das famílias.
Como segunda hipótese de pesquisa, acredita-se que o processo de mercantilização
social e econômica da agricultura familiar a partir dos anos 70, no Alto Uruguai, solapou as
condições objetivas em que se assentava a reprodução social dos agricultores. Neste processo,
a esfera da produção de alimentos para consumo das unidades familiares foi mercantilizada e
vulnerabilizada pelas opções produtivas relativas a especialização produtiva via cultivo de
grãos, commodities agrícolas e integração aos CAIs. Neste sentido, entende-se que os
agricultores do Alto Uruguai mergulharam em um processo contínuo de fragilização social
que desencadeou situações de insegurança alimentar junto às famílias rurais. Esta fragilização
social decorre, em grande medida, das transformações técnicas-produtivas que se gestaram a
partir dos anos 70 com a chamada modernização da agricultura e a conseqüente
mercantilização do consumo familiar.
Como terceira hipótese de pesquisa, trabalha-se com a idéia de que as políticas
públicas como o Pronaf e as iniciativas locais das SAMs, das Ematers, dos CMDRs, do
Codemau e das organizações e representações sociais dos agricultores familiares (Coopac,
MPA, Fetraf-Sul e Fetag) não estão agindo no sentido de fortalecer a produção de
autoconsumo e de gerar a diversificação das estratégias de vivência e de desenvolvimento
junto aos agricultores familiares. Neste sentido, crê-se que muitas das políticas públicas de
desenvolvimento praticadas no Alto Uruguai insistem no viés da mercantilização social e
econômica e na especialização produtiva dos agricultores familiares, vulnerabilizando e
fragilizando a produção de autoconsumo e, assim, não gerando a segurança alimentar entre as
famílias rurais.
Para dar conta destas hipóteses de pesquisa a presente dissertação está estruturada em
cinco capítulos. No primeiro capítulo desenvolve-se um pequeno histórico da agricultura
familiar tomando como referência o início do processo de colonização do Alto Uruguai.
Abordam-se, sucintamente, as principais transformações e metamorfoses que a agricultura
familiar sofreu desde o SAC e a passagem pelo processo de mercantilização social e
econômica dos anos 70. Também, elenca-se alguns elementos teóricos que se julga
pertinentes para a definição, caracterização e estudo da agricultura familiar nas sociedades
contemporâneas e em ambientes onde imperam relações mercantis. Neste capítulo, são
apresentadas as justificativas pelas quais o Alto Uruguai é considerado um território da
agricultura familiar e os pressupostos metodológicos para trabalhar com esta noção.
13
Demonstra-se, também, que o processo de modernização da agricultura no Alto Uruguai foi
perverso do ponto de vista do solapamento das condições de reprodução social dos
agricultores gerando a internalização do progresso tecnológico em larga escala nas unidades
de produção, transformações no processo de produção agrícola, a especialização produtiva, a
diferenciação social e produtiva dos agricultores e a vulnerabilização da produção de
autoconsumo dentre outros efeitos e conseqüências sociais, econômicas e produtivas.
No segundo capítulo analisa-se a produção de autoconsumo a partir do seu significado
subjetivo para o conhecimento, para os simbolismos e a sociabilidade dos agricultores
familiares. Analisa-se a produção de autoconsumo como uma característica típica da
agricultura familiar responsável pela geração de uma identidade sócio-profissional entre os
agricultores, que está ligada ao saber-fazer aplicado à produção dos alimentos que a família
demanda para a sua alimentação. Também, aborda-se a produção de autoconsumo como
geradora de processos de sociabilidade e de reciprocidade entre os agricultores. Ainda neste
capítulo, desenvolve-se a idéia que a produção de autoconsumo gera uma maior autonomia
reprodutiva frente ao mercado para as formas familiares de produção e trabalho na agricultura
através do princípio da alternatividade produtiva que lhe é intrínseco. Também, constata-se
que o autoconsumo propicia a base para que haja a diversificação das estratégias de vivência
das unidades produtivas do Alto Uruguai.
No terceiro capítulo analisa-se a produção de autoconsumo a partir da esfera da
produção propriamente dita. Demonstra-se a importância quantitativa que este tipo de
produção representa para as famílias do Alto Uruguai utilizando os dados da pesquisa AFDLP
(2003), realizada no município de Três Palmeiras. Elucida-se, também, que a produção de
autoconsumo possui uma importância em termos de gerar a segurança alimentar dos
agricultores familiares, devido ao fato dela propiciar a geração de alguns dos princípios
norteadores do conceito de segurança alimentar. Analisa-se esta produção do ponto de vista
das transformações técnico-produtivas que ocorreram a partir dos anos 70 através da
modernização da agricultura e os seus efeitos sobre o autoconsumo. Neste sentido, assume
importância à análise das opções pela especialização produtiva, os cultivos com “funções”
comerciais, a compra dos alimentos no mercado, de feirantes locais, dentre outros que se
tornam às novas estratégias de obtenção dos alimentos das famílias, mesmo que esta
característica seja diferenciada em termos das unidades de produção analisadas. O que se
tenta mostrar é que a mercantilização do consumo de alimentos segue a rota dos diferentes
graus de mercantilização entre os agricultores familiares do Alto Uruguai. Também se aborda
que este intenso processo de transformações técnico-produtivas da base agrícola gerou
14
situações de fragilização social e de insegurança alimentar entre alguns agricultores. Por fim,
trabalha-se com a idéia que o fortalecimento do autoconsumo dever ser a principal estratégia
de reação a ser acionada pelos agricultores familiares frente a um contexto de fragilização
social e de insegurança alimentar.
No quarto capítulo analisa-se o Pronaf Crédito de Custeio e Investimento e tenta-se
estabelecer os vínculos desta política com o fortalecimento da produção de autoconsumo.
Demonstra-se, que o Pronaf guarda uma ambigüidade básica desde a sua criação que é a de
não demarcar, claramente, qual é o tipo de fortalecimento que pretende alavancar na
agricultura familiar brasileira. Constata-se, a partir do estudo no Alto Uruguai, que este
fortalecimento está ligado ao aprofundamento do padrão tecnológico vigente, a especialização
produtiva e a uma opção aberta pelo desenvolvimento agrícola e setorial. No caso do
autoconsumo, demonstra-se que o fortalecimento gerado no Alto Uruguai somente acontece
em termos periféricos e secundários na dinâmica das unidades de produção devido à geração
de novas atividades produtivas alternativas, mas que objetivam claramente a inserção
mercantil dos agricultores. Verifica-se, também, que o Pronaf poderia realizar uma mudança
social muito maior em termos de desenvolvimento se incorporasse alguns dos princípios do
enfoque territorial em sua operacionalização. Um destes princípios é o da diversificação das
atividades produtivas e econômicas, da geração de ocupações e de renda junto às famílias
assistidas. Contudo, a multiplicação das modalidades de financiamento do programa ainda
não está acontecendo junto aos agricultores familiares beneficiados.
No quinto e último capítulo, demonstra-se que a agricultura família do Alto Uruguai
encontra-se numa “encruzilhada” histórica em termos de sua reprodução social, pois as
condições objetivas em que esta transcorre fragiliza-se de forma crescente. Malgrado esta
situação social e econômica, demonstra-se que a agricultura familiar possui um papel
importante na geração de processos de segurança alimentar local junto as demais populações
do Alto Uruguai através do estudo de caso da experiência do Programa Fome Zero, no
município de Constantina. Também, analisam-se as experiências do que usualmente chamou-
se de “feiras da agricultura familiar” que estão distribuídas em vários municípios do Alto
Uruguai e o seu papel no abastecimento local da população. Por fim, demonstra-se que as
políticas públicas e iniciativas locais de desenvolvimento possuem uma dupla lógica de ação,
fortalecendo tanto a produção de autoconsumo como as atividades que visam à inserção
mercantil das unidades de produção familiares.
Enfim, o que se pretende demonstrar com este trabalho é que no território do Alto
Uruguai estão em curso dois processos sociais que interligados parace que caminham em
15
sentidos opostos. O primeiro deles é o que está ligado a produção de autoconsumo. Neste
sentido, pretende-se demonstrar que a partir dos anos de 1970 ocorreu um processo de
mercantilização e vulnerabilização desta esfera das unidades produtivas, onde o
provisionamento de alimentos passa ser externalizado das unidades e a sua aquisição passa a
ser realizada pelos mecanismos do mercado. Este primeiro movimento gera, de forma geral,
uma fragilização social e situações de insegurança alimentar entre alguns agricultores
familiares. O segundo processo é o que está ligado as políticas públicas e as iniciativas locais
de desenvolvimento. Neste caso, pretende-se demonstrar que estas possuem uma orientação
que privilegia o financiamento e o desenvolvimento de ações que visam estimular as
atividades produtivas e econômicas tradicionais do território como a produção de grãos e a
integração agroindustrial. Operando deste modo, estas políticas e iniciativas estimulam o
autoconsumo de alimentos apenas de forma periférica e secundária na dinâmica das unidades
familiares. Assim, pretende-se mostrar que as políticas públicas e as iniciativas locais também
são responsáveis, mesmo que parcialmente, pela mercantilização e vulnerabilização do
consumo de alimentos dos agricultores.
16
CAPÍTULO 1:
A AGRICULTURA FAMILIAR NO TERRITÓRIO DO ALTO
URUGUAI: referências teóricas e processos de mudança social.
O objetivo deste capítulo é o de demonstrar a gênese e evolução da agricultura
familiar no Alto Uruguai. Abordam-se as principais transformações que esta forma de
produção e trabalho passou no transcurso histórico do seu desenvolvimento na região, onde
as mudanças sociais, produtivas, econômicas e culturais coincidem com a assim chamada
modernização da base técnica-produtiva a partir dos anos 70.
Neste capítulo apresenta-se o contexto histórico em que transcorreram as
transformações dos colonos em agricultores familiares no Alto Uruguai. Além disso, também,
se expõe alguns elementos analítico-conceituais que servem de base ao entendimento do que
é a agricultura familiar nas sociedades contemporâneas capitalistas. Demonstra-se que a
agricultura familiar de hoje é uma agricultura mercantilizada e que depende cada vez mais
das relações de mercado para se reproduzir. São, também, elencados alguns elementos
teóricos sobre o conceito de território e procura-se esboçar uma abordagem que demonstre
que o Alto Uruguai é um território da agricultura familiar.
Num segundo momento demonstram-se as diversas transformações que a
modernização da agricultura gerou apartir dos anos 70 no território do Alto Uruguai.
Apresentam-se as ações do Estado nas políticas de modernização e os seus diferentes
instrumentos de política agrícola que foram utilizados em cada período histórico para moldar
a estrutura de produção agropecuária aos objetivos das mudanças técnico-produtivas em
curso. Também é descrito como o processo de modernização da agricultura e a penetração do
progresso tecnológico trouxeram conseqüências sociais perversas para os agricultores
familiares da região.
17
É apartir da modernização da agricultura que as principais transformações sociais,
econômicas e produtivas ganham espaço no Alto Uruguai. Neste sentido, analisam-se as
mudanças e efeitos deste movimento nas unidades familiares como é caso do aumento da
produtividade da terra e do trabalho e a diferenciação social e produtiva dos agricultores
familiares. Também sofrem estas transformações o processo de produção agropecuária e a
produção de autoconsumo familiar de alimentos que passa por um processo de fragilização,
onde esta começa a possuir uma importância cada vez menor na vida e dinâmica dos
pequenos estabelecimentos familiares.
1.1 – ELEMENTOS TEÓRICOS PARA O ESTUDO DA AGRICULTURA FAMILIAR
E DO TERRITÓRIO.
1.1.1 – De colonos a agricultores familiares: gênese, evolução e transformação do
Sistema Agrícola Colonial (SAC).
Nesta seção, desenvolvem-se as principais características constitutivas que faziam
parte da dinâmica do SAC. Demonstra-se que os colonos que se estabeleceram no início do
século XX no Alto Uruguai passaram por mudanças profundas no seu modo de vida
transformando-se em agricultores familiares. Estas transformações implicaram em
modificações nos sistemas produtivos adotados, no modo de vida colonial, na sociabilidade
comunitária, nos tipos de vínculos mercantis desenvolvidos pelos colonos e em suas relações
com a sociedade de forma mais ampla.
O território do Alto Uruguai já era habitado pelos índios (Gês, Guaranis e
Kainganges), caboclos e luso-brasileiros antes da introdução dos imigrantes de origem
européia, principalmente os alemães e italianos. Estas populações, principalmente as
indígenas, viviam como nômades pela floresta, coletando frutas silvestres, caçando e
pescando nos Rios Uruguai, Várzea e Guarita. No que se refere à agricultura, estes
desenvolviam o cultivo do milho e da mandioca em clareiras abertas na mata com técnicas e
instrumentos primitivos próprios de cultivo.
O sistema agrícola praticado pelos colonos pode ser definido como um modo de vida
como o fez Schneider (1999), no sentido que se constitui de uma forma de produzir e
trabalhar própria dos agricultores, bem como de formas de sociabilidade e traços culturais
que estes imigrantes trouxeram como uma “bagagem” de valores sociais. No que se refere ao
modo de produzir era importante o tamanho das propriedades, as condições de vegetação,
18
solo e agronômicas e o os sistemas produtivos praticados. Do lado das formas de
sociabilidade vicinal eram importantes as trocas simbólicas de alimentos, a prática de ajuda
mútua, as relações de vizinhança, as festas comemorativas da comunidade e do padroeiro, os
serões, os jogos de bocha, cartas, futebol, etc. Deste modo, o SAC deve ser compreendido
como uma forma de produzir e uma forma de sociabilidade como definiu Schneider (1999).
A forma de produzir refere-se à organização do trabalho num processo
produtivo capaz de assegurar a subsistência da família, é a maneira pela qual
os indivíduos que trabalham organizam os meios de produção para garantir a
sua reprodução (Marx, 1986). A forma de sociabilidade refere-se ao modo
pelo qual se estruturam as relações sociais que a família do colono-camponês
estabelece com os elementos exteriores (p. 21).
O início da prática agrícola ocorre com a introdução dos imigrantes europeus no Alto
Uruguai, por volta do ano de 1925 (Enderle, 1996). A maior particularidade que marca a
história dessa região é a sua ocupação humana tardia, vindo a ocorrer somente no final do
século XIX e início do século XX. Um primeiro fator explicativo disto é o de que ela se
localiza no extremo Norte do Estado e, assim, os habitantes das regiões Centrais e do Sul do
mesmo, demoraram a fazer incursões até ela. Um segundo fator que explica isso, segundo
Brum (1987), é o de que no Rio Grande do Sul a economia girava em torno do latifúndio
pastoril com a venda de couro, sebo e crinas para os comerciantes ingleses e franceses no
Estuário do Prata, sendo que a área de mata era considerada sem valor, pois não se prestava a
criação do gado que era a principal atividade econômica praticada.
Como culturas de “subsistência” se destacam a importância da batata-inglesa, o
feijão preto, o milho, e a mandioca
5
. Destes, destaca-se o milho que era o primeiro em área
cultivada e em volume de produção sendo conhecido como o rei da agricultura colonial por
possuir várias utilidades entre os colonos. Em termos de criação de animais ressalta-se a
grande existência de porcos seguidos do gado, galinhas e outros pequenos animais
domésticos. Como produtos da transformação animal se destaca à banha que era usada pelos
próprios colonos para autoprovisionamento e também vendida, sendo inclusive chamada de
ouro branco das colônias (Roche, 1969).
Ressalta-se a grande produção para autoconsumo como principal meio de
sobrevivência ao meio adverso da mata e do trabalho pesado nos primeiros anos de
colonização. Esta consistia na produção de gêneros agrícolas diversos que eram voltados
5
A mandioca era uma planta indicadora da fertilidade do solo. O seu desenvolvimento e crescimento de plantio
em uma região indicavam o início da degradação dos solos e a perda da sua fertilidade natural. Assim, se podia
identificar quais as regiões coloniais que estavam em decadência e regressão econômica através da análise dos
19
primordialmente à alimentação das famílias que na época eram extensas e numerosas. O
colono produzia, primeiramente, para o autoconsumo e só depois deste satisfeito é que ele
produzia excedentes de produtos para colocar no mercado (Schneider, 1999)
6
.
As técnicas de cultivo utilizadas pelos colonos eram técnicas primitivas e muito
influenciadas pelos costumes dos indígenas e dos luso-brasileiros. Roche (1969, p. 288) cita
um ciclo de manejo e preparo do solo que consistia em derrubada – queimada – plantação –
capoeira
7
. A este sistema ele denominou de agricultura temporária e periódica da queimada.
As observações de Roche (1969) de que os colonos praticavam um sistema agrícola primitivo
vão de encontro com o que Waibel (1979) também verificou estudando a colonização no Sul
do Brasil. Waibel observou que:
[...] a maioria dos colonos usa o mais primitivo sistema agrícola do mundo,
que consiste em queimar a mata, cultivar a clareira durante alguns anos e
depois deixá-la em descanso, revertendo em vegetação secundária, enquanto
nova mata é derrubada para ter o mesmo emprego. O colono chama este
sistema de roça ou capoeira; na literatura geográfica é geralmente conhecido
como agricultura nômade ou itinerante. Na linguagem dos economistas rurais,
é chamado sistema de rotação de terras (Waibel, 1979, p. 245).
Waibel (1979) classificou os sistemas agrícolas dos colonos no Rio Grande do Sul
em três tipos. O primeiro desenvolvido foi o sistema de rotação de terras primitiva o qual
consistia na derrubada e queima da vegetação para plantio. O segundo sistema foi chamado
por Léo Waibel de sistema de rotação de terras melhorada caracterizando a melhoria das
técnicas e cultivos desenvolvidos. O terceiro sistema praticado pelos colonos ao qual Waibel
(1979, p. 253) chamou de rotação de culturas combinada com a criação de gado, onde se
praticava a agricultura em terrenos arados e adubados com esterco dos animais que eram
criados
8
.
Tanto Waibel (1979) como Roche (1969) concordam com os principais motivos que
levaram e desestruturação e decadência do sistema agrícola colonial. Dentre estes, pode-se
elencar o esgotamento do solo devido ao uso de sistemas agrícolas primitivos, o pequeno
cultivos praticados pelos colonos. Já no caso do milho este era usado inicialmente para desbravar as áreas de
mata como primeiro cultivo e era também uma planta que exauria fortemente a fertilidade natural do solo.
6
O mercado, muitas vezes, no início do desbravamento de uma nova área a colonizar era inexistente devido o
isolamento dos colonos mata adentro e a não existência de estradas ou vias com meios de transportes eficientes
por onde o colono pudesse escoar os seus excedentes produtivos. Em outros lugares até existia meios de
transportes e estradas, mas, a localização dos colonos em relação ao mercado era imprópria o que os levava e
receber menores preços pelos gêneros agrícolas ou a impossibilidade de venda destes.
7
A este mesmo sistema de manejo e preparo do solo Mazoyer & Roudart (1997) denominaram de agricultura de
corte e queimada.
8
Waibel (1979, p. 255) estimou que somente 5% dos colonos atingiram o terceiro e mais desenvolvido estágio;
50% viveram no segundo estágio onde as terras estão esgotadas e exauridas e, 45% estavam no primeiro ou na
fase de decadência do segundo.
20
tamanho das propriedades dadas ou vendidas aos colonos e a divisão (minifundização) das
propriedades por herança ou venda como os principais fatores que levaram a derrocada do
sistema agrícola colonial
9
.
Como afirmou Léo Waibel, a população não emigrava pelo excesso populacional,
mas pelo esgotamento da fertilidade natural do solo que foi acometida pela incompatibilidade
dos sistemas de cultivo empregados pelos colonos. A degradação do solo levou a queda dos
rendimentos e da produtividade agrícola impossibilitando os mecanismos de reprodução
colonial. Este processo mais amplo levou os filhos dos colonos as migrações, primeiramente,
nos entornos das próprias colônias velhas em formato de “manchas de óleo”. Num segundo
momento para outras regiões do Estado, como no Planalto, a Oeste e o Norte e, finalmente
para fora deste, atingindo os estados de Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso e inclusive a
Região Norte do país (Amazônia).
O processo de migração das colônias velhas para as novas foi denominado por Roche
(1969) de enxamagem dos pioneiros no sentido que os colonos migravam em busca de novas
terras para se estabelecer, se casarem e restabelecer o mesmo sistema de cultivo empregado
nas colônias velhas
10
. Jean Roche periodizou as diferentes fases da enxamagem. Segundo o
autor, a primeira fase da enxamagem se deu até 1850 na periferia das colônias velhas, a
chamada expansão em “mancha de óleo”. Entre 1850 a 1890 ocorre a migração para o Oeste
do estado. De 1890 em diante ocorre às migrações em direção ao Planalto e para o Norte do
estado, incluindo o Alto Uruguai. A última fase, de 1917 em diante, o êxodo era para fora do
Rio Grande do Sul. Assim, a “fome de terra” como formulou Roche (1969, p. 343), leva os
pioneiros a buscarem sua reprodução social em outras regiões
11
.
9
Nas colônias velhas a média de ha de terra dadas aos colonos era bem maior do que nas colônias novas. Nas
velhas essa média girava em torno de 70 ha, nas novas não passava de 25 a 30 ha. Nas colônias novas devido ao
menor tamanho das propriedades a sua regressão econômica e social se deu mais fortemente. Outra diferença
fundamental é a de que nas colônias velhas a terra foi, na sua grande maioria, dada ou doada pelo Estado para
que os colonos a explorassem. Nas colônias novas o colono teve que pagar pela terra em dinheiro ou na
prestação de serviços públicos como abertura de estradas, construção de pontes, escolas, etc. Assim, nas colônias
novas a terra como ativo fundiário para a sobrevivência e reprodução do colono já é uma terra mediatizada e
apropriada pelo capital, é uma terra convertida em mercadoria (Martins, 1995).
10
As principais colônias velhas que forneceram braços para o desbravamento do território do Alto Uruguai
foram: a da Serra, nos entornos de Caxias do Sul, Bento Gonçalves e Garibaldi; as do Centro do Estado com as
cidades de Cachoeira do Sul, Júlio de Castilhos, Santa Maria e, as do Planalto Médio do RS, com as cidades de
Erechim, Marau, Santa Rosa, etc. As colônias novas são as colônias que são formadas apartir da migração dos
pioneiros das colônias velhas para novos territórios pelo processo de enxamagem dos pioneiros ao qual Roche
(1969) aludiu. As principais colônias novas se localizaram no Planalto Médio, nas Missões, no Norte do Rio
Grande do Sul incluindo-se ai o Alto Uruguai.
11
A esse mecanismo de migração Waibel (1979) chamou de avanço da zona pioneira. Segundo Waibel o
conceito de pioneiro, [...] significa mais do que o conceito de frontiersman, isto é, do indivíduo que vive numa
fronteira espacial. O pioneiro procura não só expandir o povoamento espacialmente, mas também intensificá-lo e
criar novos e mais elevados padrões de vida (Waibel, 1979, p. 281-282; grifos no original).
21
As colônias novas formadas no Planalto e no Norte do Rio Grande do Sul no final do
século XIX e início do século XX tiveram um desenvolvimento rápido e passaram pelas
mesmas fases de desenvolvimento das colônias velhas. A sua prosperidade econômica e social
foi mais rapidamente atingida devido as melhores condições de infra-estrutura como vias de
acesso, estradas e meios de transportes mais modernos. Contudo, a sua decadência e regressão
econômica se manifestaram também de forma mais ativa devido o esgotamento do solo ser
mais rápida, a partilha entre co-herdeiros e a venda serem mais seguidamente acionadas.
Ressalta-se, também, que as propriedades recebidas eram menores e o fim da fronteira
agrícola era atingida mais depressa que nas colônias velhas onde este processo levava mais
anos para ocorrer. Assim, os mesmos fatores que levaram a regressão das colônias velhas
acometeram as novas, porém, com uma diferença, a intensidade do processo foi multiplicada.
Como formulou Schneider (1999, p. 87) o sistema produtivo adotado pelos colonos continha,
na sua própria dinâmica, os limites de sua reprodução, devido à forma de uso do solo, a falta
de tecnologias apropriadas, o tipo de sistema de herança praticado e a necessidade constante
de expansão da frente pioneira.
Dessa forma, o SAC pode ser entendido como uma forma de reprodução social dos
colonos que passou por várias transformações, no qual as mais significativas dizem respeito
ao acesso a terra, ao tamanho das propriedades, a diminuição da fertilidade natural dos solos e
ao número de membros das famílias que influenciavam a sua dinâmica. O SAC possuía, de
uma forma geral, uma dinâmica governada, em grande medida, pela família e pela sua relativa
autonomia em relação ao contexto social e econômico. Neste sistema produtivo, o mercado
existia na forma de vínculos pessoais e personalizados com os vizinhos, com os comerciantes
locais e os mercados regionais e locais de venda de gêneros agrícolas. Porém, estas
características gerais do SAC se modificam a partir dos anos 70 onde ocorre à transformação
da base técnica-produtiva da agricultura do Alto Uruguai.
Concomitante com estas transformações por que passou o SAC, no Alto Uruguai,
inicia-se um processo em que começa a erigir-se uma “nova” forma social de trabalho e
produção com uma dinâmica de reprodução bem diferente da dos colonos. Na verdade, o que
acontece é uma metamorfose social onde os colonos passam a agricultores familiares como
aludiu Abramovay (1998). Esta forma social se caracteriza por estar assentada no uso do
progresso tecnológico, na existência de vínculos efetivos com o mercado e num maior
dinamismo reprodutivo como características constitutivas intrínsecas a sua dinâmica
econômica e social. Assim, o SAC, como um modo de vida, incluindo uma forma de
produção e de sociabilidade é transformado e transmutado. Ergue-se, assim, a agricultura
22
familiar como substrato paro o desenvolvimento do Alto Uruguai. Assim, na próxima seção,
desenvolvem-se alguns elementos que caracterizam e melhor definem o que se entende por
agricultura familiar e as suas relações com o contexto social e econômico em que esta se
encontra inserida.
1.1.2 – Elementos teóricos aplicados ao estudo da agricultura familiar.
Nesta seção pretende-se caracterizar como se desenrolou a passagem de colonos a
agricultores familiares no Alto Uruguai. Também se quer situar e caracterizar a agricultura
familiar como forma de produção e trabalho nas sociedades capitalistas contemporâneas,
elencando-se, para isso, alguns elementos que se julga pertinentes ao estudo e compreensão
desta forma social de produção e trabalho.
As principais transformações que levaram a modificar-se a forma como transcorria a
dinâmica de reprodução social do SAC pode ser localizada para o caso do Alto Uruguai em
torno dos anos 70 com a chamada modernização da base técnica-produtiva da agricultura.
Com estas mudanças o SAC como um modo de vida que inclui uma forma de produzir e de
sociabilidade se transforma, muta-se e se metamorfoseia em uma “nova” forma social a qual
usualmente denomina-se de agricultura familiar. Desta forma, o agricultor familiar “nasce”
com características distintas do colono de outrora em relação às estratégias que executa para
obter a sua reprodução social, mas também, com algumas características constitutivas
originais do colono. Pode-se dizer, que neste caso, o novo nasce do velho, mas, sem destruí-
lo totalmente, sem superá-lo completamente em suas bases primordiais. O novo se edifica
sobre o velho de forma a ser o velho um sujeito revestido de um caráter novo, diferente e
modernamente construído.
É isso que demonstra a obra seminal de Abramovay (1998) no qual o seu maior
mérito foi o de diferenciar o campesinato da agricultura familiar, superando o debate
acadêmico polarizado e dicotômico que se tinha até então entre estudiosos sobre o caráter das
formas sociais como: tradicional/moderno, camponês/pequeno agricultor, se capitalista ou não
capitalista, etc
12
. Como o autor demonstrou, o camponês, e para o nosso caso, os colonos, se
tratavam de um modo de vida. Assim, de acordo com essa perspectiva se pode pensar a
metamorfose dos colonos em agricultores familiares para o caso do Alto Uruguai,
distinguindo-se esta forma social em termos de características sociológicas intrínsecas e do
12
Para ver uma caracterização histórica das diferentes nomenclaturas e conteúdos que cada uma recebeu em cada
momento do desenvolvimento da “agricultura familiar” no Brasil ver o excelente artigo de Medeiros (1997).
23
seu caráter enquanto categoria social no meio rural
13
. Como Abramovay (1998) mesmo
formulou:
[...] é o que ocorreu de maneira mais intensa no Sul do Brasil - integram-se
plenamente a estruturas nacionais de mercado, transformam não só sua base
técnica, mas sobretudo o círculo social em que se reproduzem e
metamorfoseiam-se numa nova categoria social: de camponeses, tornam-se
agricultores profissionais. Aquilo que era antes de tudo um modo de vida
converte-se numa profissão, numa forma de trabalho (p. 126-127; grifos no
original; em negrito, grifos meus).
O ambiente no qual se desenvolve a agricultura familiar contemporânea é
exatamente aquele que vai asfixiar o camponês, minar as bases objetivas e
simbólicas de sua reprodução social. [...] O paradoxo de um sistema
econômico (é o de que ele), ao mesmo tempo em que aniquila
irremediavelmente a produção camponesa, ergue a agricultura familiar como
sua principal base social de desenvolvimento (p. 131).
O colono existia numa situação de parcialidade em relação ao restante da sociedade,
pois tinha a capacidade de ele próprio nas comunidades rurais em que vivia de estipular e
construir os códigos coletivos de conduta, os valores de sociabilidade, de reciprocidade
14
, a
cultura, enfim, as “regras” que lhe serviam de guia a sua vida social
15
. Contudo, no que se
refere à sua integração mercantil esta já existia desde os primeiros anos de colonização, pois o
colono participava ativamente dos mercados de compra de terras, de relações mercantis com
os comerciantes locais, do comércio nas vilas, etc. Mesmo que nos primeiros anos o colono
somente desbravava a mata e produzia para o autoconsumo familiar, mas, tão logo se
criassem às condições materiais, sociais, as vias de transporte e os canais de circulação de
mercadorias este se inseria no mercado.
Como o Abramovay (1998) verificou, os mecanismos de mercado se confundem com
um conjunto de relações e prestações pessoais que os colonos estabeleciam com os
comerciantes locais, em termos de empréstimos de dinheiro em casos de doenças,
compromisso de venda da produção ao mesmo comerciante, obrigações comunitárias
simbólicas, compra antecipada da produção, etc. Tudo isso demonstra a pessoalidade e o
caráter, em certa medida, incompleto dos mercados nas colônias do Sul. Quando começam a
13
Para fins de estudo da agricultura familiar do Alto Uruguai, acredita-se que os colonos que existem nesta
região são a mesma categoria social dos camponeses a que Abramovay (1998) alude em seus estudos.
14
O conceito de reciprocidade implica que os membros de um grupo agem com relação aos membros de um
outro grupo da mesma forma que os membros deste grupo, ou de um terceiro, ou de um quarto, agem com
relação a eles. Ela não envolve nenhuma idéia de igualdade, de justiça e não obedece a uma regra soberana. A
reciprocidade significa antes e unicamente que não há um fluxo de dupla direção ou circular de bens. (...) Os
grupos provêem mutuamente suas necessidades no que se refere aos artigos que entram nesta relação de
reciprocidade (Polanyi, 1957/1975, p. 220 apud Abramovay, 1998, p. 110; nota de rodapé).
15
Parcialidade não quer dizer isolamento do restante da sociedade ou das outras comunidades rurais, mas sim, a
capacidade de estruturação própria da vida social, da cultura, da sociabilidade, da reciprocidade, etc
(Abramovay, 1998).
24
imperar as características do mercado nas formas camponesas e, no nosso caso no SAC, as
condições sociais em que se assentava a sua reprodução social começam a ser solapadas,
como Abramovay (1998) formulou:
O mercado acaba por substituir o código que orienta a vida camponesa e por
ai solapa suas possibilidades de reprodução social (p. 105).
As sociedades camponesas são incompatíveis com o ambiente econômico
onde imperam relações claramente mercantis. Tão logo os mecanismos de
preços adquiram a função de arbitrar as decisões referentes à produção, de
funcionar como princípio alocativo do trabalho social, a reciprocidade e a
personalização dos laços sociais perderão inteiramente o lugar, levando
consigo o próprio caráter camponês da organização social (p. 117, grifos
meus).
Neste sentido, no que se refere à agricultura familiar de hoje, Abramovay (1998)
mostra que esta é uma forma social integrada ao mercado de modo que não pode ser
compreendida como um modo de vida como no sistema agrícola colonial devido à
impessoalidade com que o mercado se apresenta nas sociedades contemporâneas capitalistas.
Os laços comunitários que possuíam um papel importante na reprodução simbólica dos
colonos são, em partes, desestruturados, bem como os códigos sociais, por onde a conduta dos
indivíduos se pautava pelas relações de pessoa a pessoa. Da mesma forma, a inserção do
agricultor na divisão do trabalho corresponde à maneira universal como os indivíduos se
socializam na sociedade burguesa: a competição e a eficiência convertem-se em normas e
condições da reprodução social (Abramovay, 1998, p. 127).
Deste modo, a agricultura familiar deve ser entendida como uma forma social de
trabalho e produção que ainda conserva algumas características típicas do camponês ou, para
o nosso caso, dos colonos do Alto Uruguai, porém, as diferenças desta para os colonos são em
termos de como são executadas as suas estratégias de reprodução social. A agricultura
familiar de hoje é extremamente dinâmica do ponto de vista econômico e social abarcando
uma diversidade muito grande de sistemas produtivos, de tipos de inserção mercantil, de
vínculos intersetoriais, sendo capaz de reproduzir-se incorporando as inovações e o progresso
tecnológico em larga escala. Ela é, enfim, uma forma social de constituição distinta da forma
colonial e, por isso, esta se constitui na base do desenvolvimento rural da sociedade brasileira
e dos países capitalistas avançados
16
.
16
Schneider (2003) situa o reconhecimento do termo agricultura familiar na sociedade brasileira na década de 90
e dá três motivos para isso. O primeiro é a própria pesquisa desenvolvida por Abramovay (1998) e a de Veiga
(1991) que deram estatus teórico e reconhecimento acadêmico ao termo como categoria analítica. O segundo é a
pressão e as mobilizações das próprias representações sindicais e movimentos sociais no período. E, o terceiro,
que decore, em partes, dos outros dois é o surgimento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar (Pronaf) em 1996 que deu caráter público ao termo dentro do Estado brasileiro.
25
Deste modo, a sua compreensão e estudo devem se dar nos marcos de uma sociedade
capitalista, incorporando a sua dinâmica de reprodução social o entendimento do papel do
mercado como esfera impessoal organizadora da vida social, do progresso tecnológico, do
Estado, da mercantilização das relações de trabalho e do processo de produção agrícola e da
crescente subordinação ao desenvolvimento urbano-industrial. É neste contexto que
Abramovay (1998) tenta dar uma definição aproximada do que seja a agricultura familiar nas
sociedades contemporâneas. Para o autor o agricultor familiar é aquele
[...] cuja integração ao mercado é completa e cuja base técnica acompanha os
principais avanços permitidos pelo conhecimento científico. [...] O que se
escamoteia sobre o nome “pequena produção” é o abismo social que separa
camponeses – para o qual o desenvolvimento capitalista significa [...] total
desestruturação – de agricultores profissionais – que vêm se mostrando
capazes não de sobreviver (porque não são resquícios de um passado em via
mais ou menos acelerada de extinção), mas de formar a base fundamental do
progresso técnico e do desenvolvimento do capitalismo na agricultura
contemporânea (p. 211).
Entretanto, não basta apenas diferenciar colonos de agricultores familiares. É preciso,
também, no caso da realização de pesquisas e estudos compreender e definir a nossa unidade
de análise da realidade social. Neste sentido, a nossa unidade micro de “leitura” da realidade
social vai ser a família rural. Para isso, embasa as reflexões contidas nesta dissertação alguns
novos elementos que foram elaborados por outros estudiosos rurais que se proporam a
compreender a reprodução social da agricultura familiar na atualidade. Um dos estudos
decisivos, neste sentido, é o de Schneider (2003a) o qual deu contribuições interessantes e
explicativas para se operar o conceito de agricultura familiar. Para este autor a agricultura
familiar não é compreendida tanto por sua integração ao mercado e incorporação de progresso
tecnológico como o fez Abramovay (1998), mas pelo sentido de suas relações sociais de
parentesco e consangüinidade no ambiente intrafamiliar. Como Schneider definiu:
[...] a família rural, entendida como um grupo social que compartilha um
mesmo espaço (não necessariamente uma habitação comum) e possui em
comum a propriedade de um pedaço de terra. Esse coletivo está ligado por
laços de parentesco e consangüinidade (filiação) entre si, podendo a ele
pertencer, eventualmente, outros membros não consangüíneos (adoção)
(Schneider, 2001, p. 9; Schneider, 2003a, p. 106).
Porém, ressalta-se, que não é uma simples definição operacional que vai dizer o que
é a agricultura familiar nas sociedades capitalistas contemporâneas. Assim, é preciso o esboço
de mais elementos teóricos para se conseguir melhor “recortar” e caracterizar esta forma
social de produção e trabalho. Neste sentido, as reflexões de Schneider (2003a) são as que
26
embasam este estudo para se tentar ir além de uma definição conceitual, pois se tem que
elencar vários elementos teóricos e conceituais que melhor situem o debate em torno desta
forma social. Para Schneider (2003a) são quatro elementos que definem a agricultura familiar
nas sociedades contemporâneas.
O primeiro elemento diz respeito à gestão dos trabalhos das unidades familiares.
Segundo Schneider (2003a) estas funcionam com base no trabalho dos membros da família e
até podem, em caráter temporário, contratar outros trabalhadores como os assalariados. O
segundo elemento exposto pelo autor está relacionado a uma especificidade estrutural da
agricultura. Refere-se aos obstáculos naturais que a mesma possui e que impedem o
desenvolvimento capitalista de se apropriar de todo o processo de produção agropecuário de
uma forma contígua. Ou seja, mesmo com notórios avanços científicos e tecnológicos o
desenvolvimento capitalista ainda não conseguiu se apropriar da base natural dos processos
agrícolas como já realizou, por exemplo, com o setor industrial.
O terceiro elemento elencado por Schneider (2003a) para que se compreenda a
agricultura familiar atualmente passa pelo entendimento do ambiente social e econômico em
que estas unidades estão inseridas. Neste sentido, o estudo e compreensão de como esta forma
social de produção e trabalho se reproduz só é possível quando se analisa os chamados
condicionantes externos de tais unidades como a ação do Estado, das políticas públicas, da
política macroeconômica, o papel do mercado, de legislações dentre outros condicionantes
mais gerais da sociedade moderna. Segundo Sergio Schneider esse ambiente compõe-se de
um espaço social e econômico e um conjunto de instituições, que tendem a fornecer estímulos
e determinar limites e possibilidades e, assim, exercer uma influência exterior decisiva sobre
as unidades familiares.
Porém, em que pese à importância destes elementos elencados, o fator principal que
determina e condiciona a reprodução social destas unidades é a sua natureza familiar. É na
família que são encontrados os elementos como as relações de parentesco, de gênero, de
herança e a lógica da família da ação que determinam escolhas, estratégias e diferentes
“caminhos” por onde vai se dar a sua reprodução social. Como formulou Schneider (2003a) é
em razão das decisões tomadas pela família e pelo grupo doméstico, frente às condições
materiais e ao ambiente social e econômico no qual estiver inserida, que ocorrerá ou não sua
reprodução social, econômica, cultural e moral (p. 95).
Estes quatro elementos teóricos são importantes ao estudo da agricultura familiar por
permitirem considerar-se o trabalho da família na agricultura com base nas suas relações
internas de mediação entre os seus membros domésticos. Permite, também considerar os
27
imperativos e os limites naturais que a agricultura, como setor de atividades possui frente a
certas especificidades ligadas à natureza
17
.
Com estes elementos teóricos vai-se estudar a agricultura familiar por dois ângulos
de análise integrados. Por um lado, estuda-se o âmbito da família, da unidade de produção e
do grupo doméstico, situando e entendendo as estratégias, escolhas e mediações utilizadas
pelo grupo familiar para se reproduzir social e economicamente no curto e longo ciclo
evolutivo da família de modo a compreender a sua lógica de ação e de decisão. Por este
ângulo também se acredita que a agricultura familiar possui certas características que lhes
patrocina uma determinada autonomia frente ao contexto social e econômico como: a posse
dos meios de produção, a posse do objeto de trabalho (a terra), a organização familiar baseada
no trabalho familiar de parentes. Sendo assim, a agricultura familiar é uma forma de produção
e trabalho que detém uma relativa autonomia decisória e na alocação dos fatores de produção
quando confrontada com o contexto social e econômico em que está inserida. Deste modo,
como formulou Almeida (1986, p. 74) a família se autoproduz no sentido de que esta cria e
gera novas estratégias de ação e de reprodução quando confrontada com condições adversas
para continuar afirmando-se e reproduzindo-se socialmente.
Por outro lado, pode-se dizer que a agricultura familiar é determinada em níveis
diferenciados pelo modo de produção capitalista em que está inserida e ao qual se subordina
enquanto forma de produção e trabalho. Desta maneira, o seu estudo deve considerar também
os marcos sociais e econômicos que a afetam e a determinam nas sociedades capitalistas
contemporâneas. Além de sua lógica reprodutiva interna a agricultura familiar depende
parcialmente das políticas econômicas, das decisões, dos agentes e instituições que medeiam e
impõem sua vontade na sociedade em geral. Assim, o seu estudo deve ser realizado dentro dos
condicionantes mais gerais da sociedade contemporânea que a afetam de forma indelével.
Estes condicionantes podem ser decisões relativas a um determinado tipo de “modelo” de
desenvolvimento, as políticas públicas praticadas, a macroeconomia, a política e a ação
praticada pelo Estado como agente regulador da vida social, a ação de outros grupos sociais, o
mercado, etc. Todos estes setores, agentes e instituições, impreterivelmente, afetam e
17
Para uma melhor compreensão da teoria dos limites naturais impostos à penetração do capitalismo no campo
ver o artigo de Mann e Dickinson (1987). A teoria dos obstáculos naturais a penetração do capitalismo no campo
não explica somente a permanência das formas familiares nas sociedades contemporâneas, mas explica também,
a permanência da agricultura empresarial ou capitalista que também é assentada em uma base biológica. Explica
também, o porque da agricultura e os processos de base biológica não conseguirem ser apropriados, substituídos
e subordinados totalmente a indústria e ao desenvolvimento tecnológico. Mais do que limites naturais
intransponíveis, a agricultura se constitui em um setor assentado na base fundiária, no uso da energia solar, nos
processos de fotossíntese, na dependência de chuvas, do clima, etc que não podem ser completamente
transpostos pelo capital.
28
determinam parcialmente a conduta e as decisões do grupo doméstico familiar nas sociedades
capitalistas.
O que se fará é estudar a agricultura familiar tentando-se articular dialeticamente
estas duas esferas de análise. Neste sentido, como ressaltou Schneider (2003a) o estudo da
agricultura familiar nas sociedades capitalistas deve ser realizado levando-se em conta as suas
estratégias de reprodução social acionadas frente as diferentes situações sociais
18
. Segundo o
autor
A reprodução social, econômica, cultural e simbólica das formas familiares
dependerá de um intrincado e complexo jogo através das quais as unidades
familiares relacionam-se com o ambiente e o espaço no qual estão inseridas.
[...] Desse modo, a reprodução não é apenas o resultado de um ato de vontade
individual ou do coletivo familiar e tampouco uma decorrência das pressões
econômicas externas do sistema social. A reprodução, acima de tudo, é o
resultado do processo de intermediação entre indivíduos – membros com sua
família e de ambos interagindo com o ambiente social em que estão imersos
(p. 95).
Um outro recurso sociológico ao estudo da agricultura familiar é a separação da
unidade familiar em unidade de produção e grupo doméstico. Esta operação permite uma
melhor distinção das esferas da produção e do trabalho no primeiro caso e das relações de
parentesco e consangüinidade no segundo
19
. Nos domínios do parentesco estaria a família,
aqui entendida como uma unidade que sustenta uma rede de relações sociais diversificadas
que não podem ser reduzidas às relações de trabalho. Na esfera do trabalho estaria a unidade
de produção e suas “funções” econômicas como a área plantada, a mão-de-obra utilizada, a
relação com o mercado, a ação da tecnologia, etc (Carneiro, 2000, p. 155).
Esta proposta parece adequada aos fins pretendidos na presente dissertação, pois se
pode pensar, no caso do autoconsumo, a unidade de produção como determinante das
quantidades, tipos de produtos e de como estes vão ser produzidos pela família. Por outro
lado, a produção de autoconsumo depende do número de membros da família e da sua divisão
por sexo e idade sendo, então, recorrentes as preocupações com o grupo doméstico. O que se
18
Segundo Schneider (2001, p. 10; 2003a, p.108-109) o conceito de estratégia de reprodução social é o elo de
ligação entre as unidades familiares investigadas e o ambiente externo, mas também a ligação que parece superar
a dicotomia sociológica em torno do problema da relação estrutura-agente ou processos micro versus macro.
Nesse sentido, a utilização do conceito de estratégia levará em consideração os marcos teóricos e conceituais
sobre as unidades familiares e sua relação com o contexto sócio-econômico específico. Do ponto de vista
substantivo, as estratégias são interpretadas como o resultado das escolhas, opções e decisões dos indivíduos em
relação à família e da família em relação aos indivíduos” (Marini e Pieroni, 1987) apud (Schneider, 2003).
19
Na verdade este é um recurso meramente metodológico e teórico. É uma operação heurística em que o
cientista social usa para melhor classificar e “ler” a realidade social em torno da agricultura familiar, pois, na
realidade a unidade familiar é uma só, não cindível e separável não sendo possível a sua fragmentação ao nível
dos atores sociais.
29
pretende é tomar a agricultura familiar como unidade de análise, levando-se em conta tanto as
suas relações econômicas quanto as suas relações sociais e culturais quer seja internamente ou
no que concerne aos acometimentos e condicionantes do ambiente em que a mesma se insere.
Na próxima seção, elenca-se alguns elementos teóricos que se julga serem
explicativos da reprodução social da agricultura familiar em contextos de mercantilização das
suas relações sociais e econômicas como no caso em estudo do Alto Uruguai.
1.1.3 – O processo de mercantilização da agricultura familiar.
A mercantilização da agricultura familiar é definida como um processo social no
qual o mercado se apresenta como esfera primordial e organizadora da reprodução social dos
agricultores familiares. Este é, na atualidade, a instituição que, em grande medida, governa a
produção e a reprodução da agricultura familiar moderna. Deste modo, esta só pode ser
entendida nas sociedades contemporâneas se for compreendido o caráter, a lógica e a
integração que esta forma social de produção e trabalho se submete aos circuitos mercantis
que se colocam de forma impessoal, heterogênea e como condicionantes da manutenção e
sobrevivência de muitas unidades de produção.
Como já se demonstrou acima, no SAC o mercado se apresentava de forma distinta
de hoje para os agricultores do Alto Uruguai. Neste sistema produtivo, o mercado se
apresentava de forma pessoal e perceptível, geralmente travestido como o comerciante local
das comunidades das linhas ou estradas interioranas, o vizinho e o comércio em casas de
venda e armazéns. Neste período, o mercado era uma instituição social que não subjugava
enormemente os colonos e não lhes apropriava o volume de excedentes que lhes retira agora.
Enfim, o mercado era distinto em ação, submissão da força de trabalho ao capital e em termos
de como se apresentava aos colonos.
Contudo, uma coisa é certa, ele sempre existiu e é anterior a chegada dos colonos no
Brasil. Desde o SAC o mercado e o capital são as instituições sociais que comandam a
colonização, a abertura de novas áreas, a produção de mercadorias pelos colonos e a
organização social e da produção em todas as áreas coloniais do Rio Grande do Sul. Para o
tipo de desenvolvimento que se queria gestar com a colonização a agricultura colonial era
“funcional”
20
. Quando da chegada dos colonos ao Brasil e ao Rio Grande do Sul o mercado já
20
A colônia passa a cumprir o papel de produzir alimentos ao mercado consumidor urbano, já em expansão na
época, além de fornecer matérias-primas industriais ao incipiente, mas já em andamento, processo de
30
existia e se apresentava a eles de forma inequívoca. Como formulou Max Weber (1982) na
América o agricultor produz para o mercado. O mercado é mais antigo do que ele na América
(p. 415).
No SAC o mercado se apresentava aos colonos na fisionomia do comerciante local
que comprava os gêneros agrícolas e pecuários dos colonos e lhe vendia artigos para a
manutenção familiar e complementos para a alimentação como sal, querosene, produtos de
estiva, etc. Os colonos também trabalhavam na abertura de estradas, na construção de pontes e
escolas para gerar excedentes financeiros líquidos para pagar a terra devida ao Estado. No
caso do Alto Uruguai a colonização se deu através da compra e não da doação de terras aos
colonos. A terra desde o inicio é convertida em mercadoria e ajuda o capital e o Estado a
subjugar os colonos (Martins, 1995). Como formulou Piran (2001):
Desde o início, os agricultores familiares organizam a sua produção para o
mercado, mesmo porque necessitavam de excedentes para pagar suas terras e
complementar a manutenção familiar. Isto era conseguido, não apenas
comercializando os excedentes não consumidos pela família, mas dedicando-
se efetivamente ao cultivo ou criação para o mercado (p. 31).
Atualmente, o mercado e a mercantilização das relações sociais e do processo
produtivo mudaram em relação ao SAC. A mudança é de intensidade, pois hoje, a
mercantilização é um processo social muito mais forte e intenso nos agricultores familiares. A
mercantilização se expressa através da subjugação do agricultor familiar ao mercado, através
da externalização e da cientifização da produção agrícola e, das diferentes relações que
emergem dos diferentes circuitos mercantis em que os agricultores estão inseridos
21
.
A mercantilização é o processo pelo qual o agricultor familiar passa a ter a sua
reprodução social e econômica dependente do mercado através da externalização dos
elementos ou das etapas que integram o processo de produção. Assim, a sua reprodução
também é dependente deste, pois as duas são domínios integrados e interdependentes como
demonstrou Van der Ploeg (1990; 1992)
22
. O mercado através do seu “jogo de forças”, do
estabelecimento dos preços dos produtos agrícolas e das mercadorias e, das suas decisões é
que comanda, em certa medida, a lógica de ação do agricultor familiar, incluindo-se ai a
industrialização. Isto sem esquecer o papel político-ideológico (ser proprietário, trabalhar e acumular) e
estratégico (implantar o império da lei, evitar importunar o latifúndio) [...] (Piran, 2001, p. 25).
21
Segundo Marsden hoje não se mercantiliza somente a produção agrícola e as demais mercadorias no processo
de troca, mas, se mercantiliza a força de trabalho, a paisagem rural, o meio ambiente, os agroecossistemas, etc
(apud Schneider, 2003a).
22
Em sua teoria da mercantilização Van der Ploeg (1990; 1992) parte das reflexões já realizadas por Friedmann
(1978a; 1978b) nos seus estudos sobre o trigo e as relações sociais mercantis que este sistema imprimia nos
agricultores. Para Friedmann o agricultor familiar é designado como um produtor simples de mercadorias.
31
influência sobre as suas decisões relativas ao o que plantar, quais atividades produtivas
desenvolver e quais instrumentos e meios de produção usar no processo produtivo. Aqui o
mercado é impessoal e, muitas vezes, invisível materialmente
23
.
Como formulou Marx, a produção mercantil só existe quando as mercadorias passam
a ter valor de toca ao invés de valor de uso. O valor de uso, no caso da agricultura, pode ser
definido como aqueles elementos que entram no ciclo produtivo agrícola sem serem
adquiridos via mercado. Eles são provenientes dos ciclos anteriores de produção e são usados
para o novo ciclo produtivo (Van der Ploeg, 1990; 1992). Deste modo, o agricultor produz os
valores de uso e não os compra, sendo que o mercado não interfere na sua reprodução social.
O valor de troca caracteriza-se pela época histórica onde surgem às contradições entre capital
e trabalho
24
. Na agricultura, o valor de troca surge da necessidade do agricultor comprar as
diversas mercadorias e elementos para iniciar o novo ciclo produtivo anual. Além disso, o
agricultor necessita de excedentes monetários o que o faz, também, vender a produção de
mercadorias agrícolas no mercado executando ai o valor de troca e caracterizando, assim, um
processo de mercantilização. Como Marx formulou, o valor de troca:
Unicamente ao ser intercambiados os produtos do trabalho adquirem, em
quanto valores, um status social uniforme, distinto de suas formas variadas de
existência como objetos de utilidade (Marx apud Van der Ploeg, 1992, p. 172;
nota de rodapé; tradução livre).
Mas também não se pode ser ingênuo a ponto de se achar que a reprodução social da
agricultura familiar não passa pelos mercados tanto de mercadorias como de força de
trabalho. Em resumo, é isso que mostra os estudos de Abramovay (1998) e de Van der Ploeg
(1990; 1992). Ou seja, que a agricultura familiar precisa da integração mercantil para
sobreviver e se reproduzir. A questão que parece ser fundamental para a compreensão do
assunto é a maneira como se dá esta integração ao mercado. A agricultura familiar não pode
ser totalmente isolada do mercado, mas também, não pode ser totalmente subordinada e
23
Como formulou Adam Smith um dos pressupostos do Estado liberal é a “mão invisível” do mercado no
comando da economia, da política econômica e da forma como as decisões são tomadas numa economia de
mercado. De certa forma a teoria da “mão invisível” do mercado pode ser usada aqui para explicar a forma como
o mercado se apresenta aos agricultores familiares no Alto Uruguai. Estes não o vêem, mas sabem que ele existe
e sabem mais: sabem que é a ele que eles tem, em partes, a sua dependência estrutural na sociedade
contemporânea. A “mão invisível” do mercado é que lhes retira a rentabilidade que seria desejada para a
manutenção do processo produtivo, da família, para a renovação dos meios de produção e das condições
objetivas em que ocorre a sua reprodução. O mercado é aqui a “mão invisível” que organiza e comanda a
submissão do agricultor familiar ao Estado e ao capital usurário e mercantil.
24
As condições históricas da sua existência (do capital) não coincidem com a circulação de mercadorias e da
moeda. Só ocorre onde o detentor dos meios de produção e de subsistência encontra no mercado o trabalhador
livre que vem vender sua força de trabalho. É esta a única condição histórica que encerra todo um mundo novo.
32
submissa a este, como ocorreu na maioria dos casos de produção de commodities no Alto
Uruguai. Como formulou Woortmann (1984, p. 73) o grupo doméstico deve produzir tanto
valores-de-uso quanto renda monetária, não só para reproduzir sua força de trabalho, mas para
reproduzir a família. A articulação necessária entre a produção de valores-de-uso e de
mercadorias – inclusive a força de trabalho – é o princípio organizador básico do grupo
doméstico.
A mercantilização se corporifica através da externalização, da cientifização e da
dependência estrutural ao mercado pelos agricultores familiares para executar a sua produção
agrícola e a reprodução da família. A externalização se refere à dependência do agricultor de
fatores externos a propriedade para iniciar um novo ciclo produtivo. No caso do Alto Uruguai,
o início deste processo se dá nos anos 70 com a modernização da agricultura. Neste território,
o agricultor familiar passa a demandar de fatores externos para produzir como máquinas e
equipamentos, insumos químicos (fertilizantes, os diversos “cidas”, espalhantes adesivos,
etc), sementes melhoradas, assistência técnica e outros elementos que são demandados pelo
novo estágio organizacional das forças produtivas na agricultura. Como Van der Ploeg (1992)
mesmo definiu a externalização na agricultura:
A chamada modernização da agricultura segue freqüentemente a rota da
externalização pela qual um número crescente de tarefas são separadas do
processo de trabalho agrícola e são assim tomadas por organismos externos
(p. 169, tradução livre; grifos no original).
[...] o desenvolvimento agrícola sempre implica em um processo de
externalização que gera uma multiplicação de relações mercantis. As tarefas
que foram organizadas e coordenadas inicialmente, sobre o comando do
mesmo agricultor, hão de ser coordenadas agora mediante o intercambio
mercantil e por meio do sistema recém estabelecido de relações técnicas-
administrativas. Esta externalização crescente não só afeta as atividades de
produção, mas também resulta em uma transformação completa do processo
de reprodução (p. 170; tradução livre).
A mercantilização da agricultura familiar através da externalização
25
e da
modernização da base técnica-produtiva gera novas demandas ao agricultor. Demandas estas
que somente podem ser supridas com a compra, via dinheiro, de mercadorias e elementos para
serem usados na produção e na reprodução das condições objetivas de existência das famílias.
Estas novas demandas se caracterizam por submeteram o agricultor familiar a uma
O capital se anuncia desde o início como uma época da produção social (Marx, 1967, p. 173 apud Garcia Jr.,
1989, p. 270).
25
Segundo Van der Ploeg (1992) [...] a externalização de tarefas e da produção implica um aumento das relações
de intercâmbio, dos objetos mesmo de trabalho, dos instrumentos e, progressivamente, o trabalho também, entra
no processo de produção em qualidade de mercadorias e assim alcança simultaneamente um valor de uso e um
33
dependência estrutural ao mercado: a de ter que comprar os vários fatores de produção todos
os anos aos preços de mercado, executando, desta forma, a sua reprodução de forma
dependente deste (Van der Ploeg, 1990; 1992).
A mercantilização da agricultura familiar também se corporifica materialmente no
que Van der Ploeg (1990; 1992) chamou de cientifização da produção agrícola e da
agricultura. A cientifização do processo de produção agrícola se refere à maneira pela qual a
agricultura começa a internalizar e assimilar a técnica desenvolvida pela ciência moderna na
produção agropecuária. É o estágio onde as forças produtivas da agricultura usam da ciência
para produzir e reproduzir as condições objetivas de existência humana e a materialidade do
processo produtivo agrícola. A cientifização da agricultura no Alto Uruguai se corporifica na
internalização, pela agricultura, das técnicas modernas de cultivo e manejo, no uso de
máquinas e equipamentos, no plantio de sementes melhoradas, na fertilização e correção das
propriedades químicas e físicas dos solos, no uso dos diversos “cidas” agrícolas, etc. Como
definiu Van der Ploeg (1992) a cientifização:
Por cientifização entendo a reconstrução sistemática das atuais práticas
agrícolas segundo os caminhos traçados por desenhos de caráter científico.
Por meio da cientifização se cria uma estrutura que permite ao capital obter
um controle mais direto sobre o processo de trabalho agrícola (p. 153-154;
tradução livre).
Nestes novos termos o trabalho agrícola também é mercantilizado, pois o incremento
da externalização via novas tecnologias faz com que o trabalho agrícola aumente em termos
de produtividade e que o tempo de trabalho em determinados processos de produção sejam
diminuídos enormemente. Assim, o trabalho agrícola se torna uma relação de mercado e,
simplesmente, mais um fator de produção que entra no ciclo produtivo agrícola. Van der
Ploeg (1990) resumiu de forma muito inteligente os efeitos da mercantilização sobre o
agricultor familiar. Segundo ele
A “externalização” de uma parte do processo de produção e reprodução (do
agricultor) requer a crescente incorporação da dominância das relações de
preços e de mercado como princípio regulador, reduzindo assim o “papel
relevante” e a autonomia funcional” (do agricultor familiar). A
mercantilização dos elementos usados dentro do processo de trabalho como
também na prescrição externa de tarefas da unidade produtiva se tornam
características fundamentais que trazem com eles a comercialidade crescente
e uma simultânea indeterminação da base de relação de habilidade (do
agricultor). [...] A adoção de inovações externamente desenvolvidas se torna a
palavra chave. Esse é o modo pelo qual a alienação do trabalho agrícola e sua
valor de cambio (troca). Deste modo às relações mercantis penetram até o centro do processo produtivo e
começam a mercantilizar o processo de trabalho [...] (p. 172; tradução livre).
34
formal submissão para com o capital é acompanhada (p. 272, grifos no
original; tradução livre).
Apesar de ser um processo social de longo alcance e de intensidade fortemente
aumentada após a modernização da base técnica-produtiva da agricultura com a
externalização e a cientifização da produção, a mercantilização da agricultura familiar é um
processo inconcluso, não linear e homogêneo como mostrou Van der Ploeg (1990; 1992).
Assim, para o Alto Uruguai o conceito de graus de mercantilização tornar-se-á muito útil para
se pensar as diferentes categorias sociais de agricultores familiares existentes. Como definiu
Van der Ploeg (1992) o grau de mercantilização reflete o estágio em que as relações mercantis
já penetraram no processo produtivo de trabalho e produção
26
.
Estes elementos teóricos em torno da teoria da mercantilização social e econômica da
agricultura familiar serão úteis nos próximos capítulos desta dissertação como aportes
reflexivos para o estudo da produção de autoconsumo e também no caso das políticas públicas
como o estudo do Pronaf e das iniciativas locais de desenvolvimento. Tanto o estudo do
autoprovisionamento como no caso da ação das políticas públicas pretende-se demonstrar que
há um processo de mercantilização de dimensões importantes da agricultura familiar. No
primeiro caso, a mercantilização incide sobre o consumo alimentar dos membros do grupo
doméstico. No segundo sobre a esfera dos financiamentos destinados aos agricultores
familiares.
1.1.4 – O Alto Uruguai: um território da agricultura familiar.
A noção de território aqui expressa é entendida como local de práticas sociais e de
atividades econômicas semelhantes e convergentes dos atores sociais. Sendo visto dessa
forma, este pode ficar dentro de certos limites normativos do IBGE como o município ou
região, bem como ultrapassar estes limites recortá-los e/ou englobá-los. Assim conceituado, o
território se refere a uma unidade do espaço rural onde se dão as relações da sociedade com a
natureza e que não segue os limites pré-estabelecidos pela atual legislação que estabelece o
que é “rural” em exclusão ao que não é “urbano” (Abramovay, 2003).
26
No Alto Uruguai a mercantilização deu origem a um desenvolvimento social desigual e contraditório. Isso
pode ser explicado pelo modo de funcionamento do modo capitalista de produção que é por definição
contraditório e desigual em suas várias facetas e em relação também às formas sociais que lhe fazem parte.
Assim, para o Alto Uruguai, a principal conseqüência da mercantilização foi o desenvolvimento desigual das
formas sociais gerando uma diferenciação social e produtiva entre os próprios agricultores familiares como já
demonstrou amplamente Conterato (2004).
35
O território, assim entendido, será constituído de um conjunto de unidades municipais
do Alto Uruguai onde nestas unidades mais relevantes será desenvolvido o estudo relativo ao
autoconsumo, as políticas públicas e iniciativas locais de desenvolvimento. Esta opção
metodológica é possível de ser realizada devido ao fato do Alto Uruguai ser um espaço onde
as características sociais, reprodutivas, constitutivas, a matriz econômica agrícola e a
população possuem similaridades em termos de constituição social e desenvolvimento
histórico da agricultura familiar. Desse modo, explicar-se-á as temáticas propostas nesta
dissertação de forma a considerar o entorno e/ou a economia local como unidade de análise
meso dos processos sociais em curso no território do Alto Uruguai (Kageyama, 1998;
Saraceno, 1994).
Entretanto, as questões que tão logo se colocam são as seguintes: por que o Alto
Uruguai do Rio Grande do Sul pode ser considerado um território? Quais os atributos e
características que o definem como tal?
O Alto Uruguai é aqui entendido como um território no sentido de este ser uma
unidade do espaço geográfico onde se dão as relações da sociedade com a natureza. No caso
em estudo é onde os homens e, mais especificamente os agricultores familiares, trabalham,
produzem e se relacionam com os sistemas de produção, com os cultivos, com as criações
animais e também com os demais seres humanos. O território é o espaço onde se
desenvolvem as forças produtivas e as diferentes formas sociais de produção e trabalho. É,
também, o lugar onde emergem as contradições do modo de produção capitalista. Ou seja, as
contradições e conflitos do desenvolvimento capitalista desigual como formulou Marsden
(1998) e, onde ocorrem e decorrem relações de poder entre as categorias sociais que
constroem, destroem e reconstroem o território no sentido amplo
27
.
Concebido desta forma o território é a expressão da ação humana mediatizada com a
natureza no contexto histórico em que se desenvolvem as formas sociais de produção e
trabalho. O território é o produto do trabalho e da ação do homem sobre a base física natural e
não uma construção social mentalizada, idealizada e imaginada dos atores sociais e das suas
práticas. Ele é o resultado das relações sociais e contradições concretas das diferentes
categorias sociais que o constituem, que o moldam e que o definem fazendo valer seus
interesses e os interesses do capital. Como definiu Rückert (2003):
27
Se nos reportarmos ao conceito clássico alemão de território formulado pelo geógrafo Ratzel este era definido
em função do Estado nação. Ou seja, o território em seus limites geográficos (tamanho) era a expressão do poder
de um Estado. Isso explica as várias guerras travadas pela Alemanha para conquistar outros territórios e
incorporá-los ao seu, pois a compreensão era a de que quanto maior o território de um Estado nação maior seria
o seu poder em relação aos demais.
36
De uma forma geral, se aceita que o território como um todo é a dimensão
espacial concreta da síntese das múltiplas determinações da formação social
capitalista. O território é assim, o espaço concreto das relações sociais. Os
homens, diferenciados em classes sociais, estão a cada dia escrevendo sua
história que é ao mesmo tempo, a história do trabalho produtivo e a história
do território. As forças produtivas, no decorrer dos processos econômicos-
sociais, é que conformam o território, imprimindo-lhe as características
inerentes às classes sociais e ao tempo presentes (p. 15-16).
Como definiu Rückert (2003), o território é construído pelos indivíduos e suas
relações com natureza mediada por um espaço onde se dão estas relações dentro de um dado
contexto histórico. Assim, o Alto Uruguai constitui um território, mas não é um território
qualquer, é um território da agricultura familiar, pois é esta a forma de produção e trabalho
que, historicamente, se relaciona com os sistemas produtivos, com as demais classes sociais e
com o espaço. Deste modo, é a agricultura familiar que produziu e produz o território em sua
ação contínua sobre os recursos naturais, os agroecossistemas, os sistemas produtivos e o
meio ambiente.
Como se demonstrou anteriormente, o Alto Uruguai sempre foi um território onde a
agricultura familiar predominou e predomina como forma de produção e trabalho. Antes, com
o trabalho dos colonos, desmatando, abrindo estradas, erguendo casas, enfim, construindo o
seu território como espaço de trabalho e de relações entre indivíduos e categorias sociais.
Com a desestruturação do SAC os colonos metamorfoseiam-se em agricultores familiares,
mas o território não muda, ele continua sendo constituído e construído, só que por uma
“nova” forma social que agora o produz e o molda a seus interesses, aos interesses dos
agricultores familiares. O território não se constrói sozinho, ele necessita de uma forma social
que territorialize seus interesses e que o construa de acordo com seus desejos, relações de
poder e aspirações. Como no Alto Uruguai a forma social de produção e trabalho que se
“apropriou” historicamente do território é a agricultura familiar, é ela que territorializa os seus
interesses e que define e redefine o território como espaço de ação concreta. Deste modo, é
que se pode falar que o Alto Uruguai constitui-se num território da agricultura familiar.
Esta opção em tomar o Alto Uruguai como um território é plenamente justificável do
ponto de vista do recorte do objeto de pesquisa que se constitui no estudo da produção de
autoconsumo e das políticas públicas e iniciativas locais de desenvolvimento. Tanto o
autoprovisionamento como as políticas e iniciativas locais são temáticas de pesquisa
correlatos ao tema da agricultura familiar. Estas, também são assuntos de investigação que são
“territorializados” neste espaço rural da geografia gaúcha e, desta forma, não se vê maiores
37
limitações metodológicas em operacionalizar tal empreendimento. Neste sentido, a seguir,
elenca-se alguns elementos teóricos e reflexivos que ajudam a explicitar esta opção de
trabalho com o conceito de território como unidade meso de estudo dos processos correlatos
aos temas em estudo.
Para executar tal iniciativa de estudo aportam-se algumas reflexões desenvolvidas
por outros autores que trataram do tema. Uma primeira autora importante é Saraceno (1996),
que explicitou que as teorias explicativas da segmentação e diferenciação entre o rural e o
urbano com o processo de modernização interpretavam o rural que é uma categoria territorial
com um setor - a agricultura -, opondo-o ao urbano, também uma categoria territorial,
coincidente com outros setores - a indústria e os serviços. Segundo Saraceno (1996, p. 8) a
leitura das diferenciações espaciais em termos do binômio urbano-rural foi significativa até o
momento em que os processos de urbanização e industrialização funcionaram de modo
“clássico”, concentrando recursos nos centros urbanos e esvaziando as zonas rurais dos
recursos aí acumulados na época pré-industrial.
Para Saraceno (1996, p. 9; 1994, p. 321), a partir dos anos 80 verificou-se duas
tendências que contribuíram para mudar o conceito clássico de ruralidade e, também, para
encurtar as fronteiras entre o “rural” e o “urbano”. A primeira é a inversão ou desaceleração
dos fluxos migratórios tradicionais entre as zonas rurais e urbanas. Ou seja, os fluxos
populacionais começam a ser também em direção ao rural. Do outro lado, como no caso da
Itália, começa a haver uma difusão das atividades econômicas que privilegiava não mais
apenas as zonas urbanas, mas também os centros menores e as zonas rurais. Para a autora, a
difusão das atividades industriais, as novas “funções” de laser das áreas rurais e a
descentralização dos serviços públicos fazem com que as categorias analíticas “rural” e
“urbano” percam a sua validade teórica e explicativa. Desse modo, a autora propõe o conceito
de economia local como nova categoria analítica espacial para se interpretar os processos
sociais.
A referência espacial relevante parece ser a região ou, mais apropriadamente,
a economia local (Saraceno, 1994, p. 326; tradução livre: grifos meus).
A ruralidade é um conceito territorial que pressupõe a homogeneidade dos
territórios agregados sob essa categoria analítica, e isto naturalmente vale
também para o conceito de urbano (Saraceno, 1996, p. 3; grifos meus).
Outros autores também discutindo a ruralidade abordam a necessidade de se repensar
as categorias analíticas “rural” e “urbano”. É o caso de Carneiro (2001), que entende que a
ruralidade clássica que existia sofreu uma desestruturação com o surgimento da
pluriatividade, onde há uma inserção plural dos membros das famílias rurais no mercado de
38
trabalho e os espaços rurais sofrem uma diversificação em seus usos. A autora cita ainda a
existência de moradores que não necessariamente pertencem às comunidades rurais e muitos
que nem agricultores são, como uma nova expressão no meio rural. A estes “novos”
moradores das áreas rurais a autora chama “os de fora” ou, os “neorurais” caracterizando,
assim, uma nova ruralidade. Esses fatores elencados levam a autora a propor o conceito de
localidade como sendo um conceito nem “rural” e nem “urbano”, mas sim orientado ao
estudo dos grupos sociais e as suas práticas. A localidade,
esta âncora territorial é a base sobre a qual diferentes culturas locais elaboram
a interação entre representações do “rural” e do “urbano”, de uma maneira
própria (Carneiro, 2001, p. 6).
Também cabe aqui analisar, como é do interesse desta dissertação, as implicações
metodológicas em termos de pesquisas que considerem o território como nova categoria
analítica dos processos sociais, econômicos, produtivos e culturais. A perspectiva de
Kageyama (1998), que estudou a ruralidade em conjunto com a noção de pluriatividade,
também é interessante para se pensar a questão metodológica do enfoque local e a dimensão
espacial do rural. Segundo a autora, que se fundamenta muito em consonância com a
proposição de Saraceno, o conceito de economia local deve ser usado como uma categoria
espacial que independe, para sua definição, da exclusividade ou predominância da atividade
agrícola [...] (p. 529). Sua perspectiva analítica propõe diferentes níveis analíticos para os
estudos rurais. Na perspectiva de Kageyama (1998):
A referência espacial relevante (“região”) é a economia local (a cidade
e seu entorno rural) que forma o “ambiente produtivo” ou contexto. A análise
da capacidade de desenvolvimento das áreas rurais - dada pela sua
diversificação interna e suas formas de integração com o exterior - deve ter
portanto dois pólos, as empresas (ou as famílias) e o contexto ou economia
local [território] em que se inserem (p. 531, grifos meus).
A sua contribuição é decisiva ao propor o entorno ou contexto local como nível meso
de análise dos processos sociais. Como a autora mesmo se refere:
[...] surge à idéia de entorno ou contexto – uma espécie de nível meso de
análise, porque ultrapassa a unidade produtiva, a família e os atores
individuais (micro) e fica aquém do nível geral do desenvolvimento do país
ou da grande região (macro) -, no qual a economia agrícola familiar [...] está
inserida (Kageyama, 1998, p. 538).
Neste sentido, este debate em torno das novas ruralidades e da relação entre o “rural” e
o “urbano” propõe-se a reconsiderar as implicações em termos das fronteiras espaciais dos
estudos que estão sendo desenvolvidos dentro de uma ótica setorial e/ou mesmo municipal. O
39
desafio aqui proposto reside em sair dos limites normativos de um município e tentar explicar
os processos sociais, econômicos e culturais como um todo para o Alto Uruguai. Para
operacionalizar tam empreendimento corabora os elementos sugeridos por Kageyama (1998)
e Saraceno (1994; 1996) de que o território deve ser toma do como uma espécie de nível
mesmo de análise e de estudos das temáticas no âmbito do “mundo” rural. Assim sendo, o
Alto Uruguai é tomado como um território da agricultura familiar e ao mesmo tempo como
uma unidade meso de análise.
Desse modo, o presente estudo desafia-se a não se prender as fronteiras normativas
operacionais das unidades administrativas municipais. Pretende-se, assim, estudar o
autoprovisionamento alimentar das famílias e as políticas públicas e iniciativas locais de
desenvolvimento levando em conta o entorno produtivo e a economia local dos municípios
como formularam Kageyama (1998) e Saraceno (1994; 1996). Este tipo de proposição se faz
operacionalizável por considerar-se que as temáticas de pesquisa serem objetos de estudo que
são plenamente territorializáveis do ponto de vista de ocorrerem em todos os lugares em que
se pretende desenvolver a investigação.
A partir destes elementos teóricos discutidos com relação à agricultura familiar e ao
processo mais geral de mercantilização social e econômica que transcorreu no Alto Uruguai,
acredita-se que se possa explicar e trazer a luz do conhecimento as principais mudanças nos
processos históricos em curso na região. Com este referencial teórico, esboçado nas seções
anteriores deste capítulo, espera-se conseguir compreender os principais movimentos
históricos em torno da agricultura familiar e as intensas transformações sociais, culturais,
econômicas e territoriais por que passou a região em estudo.
1.2 – AS TRANSFORMAÇÕES DA AGRICULTURA E DO TERRITÓRIO DO ALTO
URUGUAI: os colonos tornam-se agricultores familiares.
Nesta seção pretende-se analisar o processo de transformação e diferenciação da
agricultura colonial do Alto Uruguai praticada segundo um sistema produtivo assentado na
produção de excedentes econômicos e na busca constante de novas fronteiras de terras para
garantir a sua reprodução social, econômica e demográfica. Pretende-se demonstrar,
sucintamente, que há fatores de natureza endógena como o grande número de filhos herdeiros,
a diminuição da fertilidade natural do solo, a limitação da fronteira fundiária, etc que, ao se
combinar com um processo mais geral de transformações econômicas e produtivas que
40
tomaram lugar a partir da década de 1970 (a assim chamada modernização agrícola) acabam
alterando estruturalmente o modo de vida destas famílias rurais.
Buscar-se-á elucidar, ainda que de modo superficial, que o processo de mudanças que
afetou os pequenos agricultores do Alto Uruguai implicou em transformações profundas nas
formas de produção e trabalho. Em razão das alterações dos processos produtivos, que serão
apontadas em maior detalhe na seqüência, modifica-se o perfil sócio-econômico da região. As
conseqüências mais notáveis deste processo podem ser percebidas através da diferenciação
dos sistemas produtivos praticados, que tendem cada vez mais para o lado das monoculturas,
e do próprio tecido social, que faz aparecer uma visível segmentação entre os agricultores
mais e menos inseridos nesta dinâmica territorial.
Em síntese, o que se pretende desenvolver, nesta segunda parte do capítulo, é o
processo de metamorfose social e econômica que implicou em uma passagem da agricultura
praticada nos termos do que se denominou de sistema agrícola colonial para uma agricultura
familiar mercantilizada. Para descrever este processo a análise que se empreenderá esta
baseada em alguns elementos que se julga de fundamental importância na explicitação deste
movimento histórico.
O primeiro elemento importante e condicionante do processo de transformação da
base técnica-produtiva foi à ação do Estado a partir de 1965 com a criação do sistema de
crédito rural e dos demais instrumentos de política agrícola. Este foi responsável pelo
financiamento do padrão de desenvolvimento e pala moldagem da atual estrutura de produção
agrícola da região. Um segundo elemento fundamental a compreensão deste movimento de
mudanças é o entendimento do papel que desempenhou o progresso tecnológico junto às
formas sociais de produção e trabalho. Este é um dos principais determinantes da modificação
do modo de vida dos agricultores familiares e, também, o responsável, em grande medida,
pelo solapamento das condições de reprodução social da agricultura familiar na atualidade.
O terceiro elemento que elenca-se como um fator essencial à compreensão destas
transformações são as mudanças que ocorreram com o processo de produção agropecuário.
Este foi transfigurado pelo uso de diferentes tipos de tecnologias, de novas variedades de
plantas e espécies animais, com a artificialização da fertilidade do solo, etc seguindo o rumo
do apropriacionismo industrial das tarefas agrícolas que anteriormente eram executadas pelos
agricultores. O quarto elemento que se acha importante para a elucidação do processo de
transformação da base técnica-produtiva é o aumento da produtividade do trabalho agrícola e
da terra. Estes tiveram o seu crescimento sensivelmente intensificados a partir dos anos 1970
41
devido o uso de tecnologias modernas poupadores do trabalho humano e de métodos de
manejo, condicionamento físico e correção da fertilidade dos solos.
Como quinta ocorrência importante à compreensão destas modificações elenca-se a
intensa diferenciação do tecido social do território. Neste processo existem agricultores que
conseguiram se inserir na dinâmica empreendida pelo processo de mudança na base técnica e
produtiva e que acompanharam os principais avanços científicos e tecnológicos gerados.
Contudo, de outro lado existe uma camada de pequenos agricultores que foram excluídos e
estão sobrevivendo à margem deste movimento de transformações sociais, econômicas e
produtivas. Entretanto, essa diferenciação não é somente social, mas é também produtiva.
Neste sentido, houve uma diferenciação dos sistemas agrícolas praticados e dos tipos de
cultivos e criações que eram desenvolvidos. Neste processo, assumem relevância o
movimento de especialização produtiva dos agricultores com o cultivo de poucas culturas e a
integração via contratos verticais com alguns CAIs específicos.
Uma das principais conseqüências de todas estas transformações, que serão mais bem
desenvolvidas nesta próxima parte deste capítulo, foi o solapamento da produção de
autoconsumo das unidades familiares. Esta sofreu intensas modificações e passou a um
ocupar um lugar cada vez mais secundário na dinâmica de tais unidades. Se antes o colono
possuía como preocupação fundamental para a sua reprodução social a produção dos seus
alimentos, atualmente, isso não é mais a realidade em uma grande parcela destes. Assim,
demonstrar-se-á, mesmo que de forma superficial, pois este assunto será retomado nos
próximos capítulos, que a produção de autoconsumo foi uma das dimensões das unidades
familiares que mais sofreu o processo de mercantilização iniciado nos anos 70.
Na seqüência, abordam-se estas transformações que ocorreram na região a partir dos
anos 1970 de forma a elucidar como ocorre esta metamorfose social dos colonos em
agricultores familiares. Ressalta-se que este não é um processo simples, linear e inequívoco de
eventos e mudanças sociais, mas sim um movimento histórico permeado de contradições,
disputas e conflitos. Ele não ocorre da uma mesma forma e intensidade junto a todos os
agricultores e, por causa disso, algumas das afirmações realizadas devem ser relativizadas e
entendidas como uma tentativa de explicitação dos acontecimentos gerais que transcorrem no
território. Inicia-se esta abordagem com a análise do papel dos Estado na moldagem da atual
estrutura de produção agropecuária existente no Alto Uruguai.
42
1.2.1 – O papel do Estado nas políticas de modernização.
O processo de mudanças na base técnica-produtiva da agricultura do Alto Uruguai
somente foi possível devido à intervenção do Estado, financiando o seu “arranque” inicial no
pós-guerra. Desta forma, se faz de suma importância à análise das políticas implementadas
pelo Estado junto aos agricultores familiares no sentido de tentar apreender o contexto
histórico em que este processo acontece na região em estudo.
O papel do Estado no financiamento e na promoção da modernização da base técnica
da agricultura brasileira pode ser dividida em três grandes fases que começam a partir de
1945. A primeira grande fase vai do pós-guerra até a década de 70. A segunda é, geralmente,
localizada nos anos 80 e, a terceira é referida como da década de 90 em diante. A primeira
fase é caracterizada pela criação do Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR) no ano de
1965. É apartir daí que o Estado se engaja arduamente numa política modernizante para o
campo. A criação do SNCR marca um ponto de inflexão na ação do Estado com relação à
agricultura, pois nunca antes o mesmo havia feito sua opção clara com relação a subsidiar e
modernizar o setor agrícola (Garces Pares, sd).
O crédito rural cumpriu diversos papéis junto aos agricultores familiares do Alto
Uruguai, porém o mais importante deles foi o de financiar a modernização agrícola através
dos subsídios indiretos aos agricultores a taxas de juros, muitas vezes negativas, para que os
mesmos comprassem os insumos, as máquinas, equipamentos e sementes melhoradas que
vinham via “pacote tecnológico” das indústrias e agroindústrias nascentes no período
28
. O
mesmo subsidiava o processo de produção agrícola viabilizando o mesmo, mas também
transferia renda aos setores agroindustriais de tecnologia intensiva em capital, pois o
agricultor aplicava o dinheiro do crédito rural em insumos e tecnologias comprados do setor
agroindustrial que era o agente que ficava com a renda líquida da transação. Nesse processo o
agricultor era somente o intermediário do fluxo monetário: Estado (Banco do Brasil)
agricultor setor agroindustrial
29
.
Do ponto de vista dos beneficiários da política de crédito rural os grandes agricultores
e as culturas mais importantes em termos de área plantada e para a exportação foram as
28
“Pacote tecnológico” era a designação usada na época para conceituar o conjunto de tecnologias que eram
“empurradas” ao agricultor como forma de modernizá-lo. O termo “pacote” ficou consagrado devido ser o
conjunto de tecnologias recomendado para qualquer situação não importando o tipo de cultura, o tipo de solo,
clima, condições sócio-econômicas do agricultor, etc. A receita era homogenizante para todos os casos.
29
Em muitos casos os agricultores eram obrigados a apresentarem as notas da compra de insumos e tecnologias
modernas para receberem financiamento do Banco do Brasil. O financiamento era “casado” com a compra dos
insumos agroindustriais.
43
grandes beneficiárias dos montantes de financiamento. Os agricultores familiares foram
excluídos dos mecanismos de financiamento, bem como as culturas voltadas à produção de
autoconsumo em pequenas áreas (Garces Pares, sd). Os agricultores familiares só começam a
acessar o crédito em 1977. Neste ano, no Rio Grande do Sul, os agricultores familiares
acessam 35,7% dos contratos de financiamentos, porém alcançando apenas 5,4% do total de
recursos disponibilizados. Já os médios e grandes proprietários efetuam 44,5% do número de
contratos, tomando 62,12% do valor do crédito (Rückert, 2004, p. 116). Assim, o crédito rural
possui uma classe social definida: a grande agricultora monocultora e para a exportação.
A exclusão dos agricultores familiares dos financiamentos e da assistência técnica
pode se visto na Tabela 1. Observa-se que no Alto Uruguai a percentagem de agricultores
familiares que recebem assistência técnica somente começa a ser significativa a partir dos
anos 80. O mesmo ocorre com os financiamentos. Até os anos 80 os dados demonstram que
um pequeno número de agricultores familiares tinha acesso às políticas públicas.
Tabela 1: Percentagens de estabelecimentos que receberam assistência técnica e
financiamentos em alguns municípios do Alto Uruguai do Rio Grande do
Sul.
Município Censos
Estab. que
receberam
assistência técnica
(%)
Estab. que
receberam
financiamento (%)
1970 0,00 15,75
1975 0,00 25,16
1980 0,00 33,03
1985 27,33 36,05
Caiçara
1995/96 73,76 50,15
1970 0,00 27,05
1975 0,00 36,44
Constantina 1980 0,00 48,52
1985 17,57 29,61
1995/96 48,34 37,07
1970 0,00 20,04
1975 0,00 30,07
1980 0,00 42,05
1985 9,85 23,13
Frederico Westphalen
1995/96 43,84 42,32
1970 0,00 17,72
1975 0,00 13,99
1980 0,00 25,35
1985 6,30 17,19
Irai
1995/96 38,49 28,39
44
1970 0,00 14,83
1975 0,00 22,39
1980 0,00 35,43
1985 9,12 33,13
Palmitinho
1995/96 53,28 45,59
Fonte: Censos Agropecuários 1970, 1975, 1980, 1985 e 1995/96.
Número este que era inferior a 30% do número de estabelecimentos na maioria dos
municípios do Alto Uruguai, sendo uma exceção os municípios de Frederico Westphalen e
Constantina que superam esta cifra (Tabela 1). Nota-se ainda, que mesmo na década de 90 o
percentual de estabelecimentos que receberam financiamento agrícola é baixo: 50,15% em
Caiçara; 37,07% em Constantina; 42,32% em Frederico Westphalen; 28,39% em Irai; 45,59%
em Palmitinho e, apenas 31,21% em Vicente Dutra, demonstrando a pouca democratização e
acesso pelos agricultores familiares aos recursos públicos
30
.
Do ponto de vista da segurança alimentar, é na década de 80 que ocorre o desmonte
do sistema de armazenagem, através da extinção dos chamados estoques reguladores de
produtos agropecuários. Isso decorre da decrescente importância da PGPM, pois é nesta
década que ela perde campo para as políticas “liberais” da década de 90. Não tinha sentido o
Estado manter um sistema público de armazenagem se não compra mais a produção via
Empréstimos do Governo Federal (EGF) e Aquisições do Governo Federal (AGF).
A década de 90 em termos de políticas agrícolas é em princípio o reflexo dos
acontecimentos anteriores da década de 80 e, principalmente do ajuste externo que o governo
sofreu em suas finanças (Delgado, 2001). Neste novo cenário a política de preços continua
perdendo espaço na agropecuária; o financiamento via fundos públicos é diminuído
enormemente; o padrão de financiamento passa por um processo de seletividade de
agricultores onde se destacam os segmentos empresariais; a taxa de juros praticada tem
aumentos reais e positivos; o financiamento da produção agrícola toma a direção do mercado
e o Estado cada vez mais se retira da intervenção na agricultura (Delgado, 2001; Leite, 2001;
Belik et all, 2001)
31
.
30
Em algumas das próximas tabelas apresentadas na presente dissertação os municípios de Três Palmeiras, de
Taquaruçu do Sul e de Vista Alegre não estão incluídos devido a serem municípios recém emancipados e que
não dispõem de uma série histórica de dados que se possa realizar a análise. Por este motivo, os processos sociais
que se quer explicar são elucidados com dados de outros municípios da mesma Microrregião de Frederico
Westphalen.
31
Na década de noventa mudam a forma de financiamento e os mecanismos pelos quais os recursos são
transferidos aos agricultores. Destaca-se a atuação colada dos agentes privados no financiamento como empresas
de processamento, de máquinas e insumos agropecuários, agricultores integrados, traders, securitários, etc.
Como instrumentos de financiamento destacam-se o sistema soja verde, os títulos privados, certificados de
mercadorias negociadas, e o da troca de produtos por insumos, a compra antecipada, a Cédula do Produto Rural
45
Vale salientar que as políticas públicas atualmente praticadas pelo Estado brasileiro
em relação à agricultura continuam com a mesma lógica e não rompem, totalmente, com o
padrão de desenvolvimento gestado durante os anos de modernização agrícola. Ou seja, o
pouco de crédito rural público que atualmente se disponibiliza é voltado às culturas mercantis
e dinâmicas visando as exportações e o comércio internacional como é o caso da soja. Por
outro lado, o beneficiamento dos grandes agricultores empresariais em detrimento dos
pequenos também é uma questão que parece impossível de ser superada pelas políticas
públicas. Neste sentido, lembra-se a última negociação das dívidas dos grandes empresários
rurais realizada no ano agrícola 2000/2001 onde estes conseguiram prazos de até 25 anos para
pagamento das mesmas.
Uma iniciativa importante e voltada aos pequenos agricultores na década de 90 é a
criação do Pronaf, em 1996. Contudo, como se demonstra no capítulo 4, esta política possui
muitas contradições a serem superadas para ser uma política que realmente gere o
fortalecimento da agricultura familiar. Uma das suas principais limitações é a de estar sendo
aplicado na compra de tecnologias como insumos modernos, fertilizantes, sementes
melhoradas, agrotóxicos, etc. Ou seja, tecnologias de base do processo de modernização
agrícola. Neste sentido, pode-se afirmar que o Pronaf não rompe, totalmente, com uma velha
tradição do crédito rural no Brasil que persiste desde os anos de sua criação: a de continuar
financiando a mudança da base técnica-produtiva.
Não é o objetivo aqui realizar grandes digressões históricas sobre as políticas públicas
praticadas nos anos áureos de modernização agrícola, mas sim apenas demonstrar como o
Estado através das mesmas foi o starter responsável de um processo maior de transformações
sócio-econômicas e produtivas como já indicado anteriormente
32
. Esse processo de
intervenção estatal na agricultura modificou enormemente a estrutura de produção no Alto
Uruguai. Foi a partir do momento que o Estado toma a dianteira deste movimento maior que
as mudanças na base técnica-produtiva ocorrem de forma mais rápidas.
Estas transformações foram incentivadas via subsídios implícitos nos financiamentos,
através da incorporação de tecnologias e insumos industriais, com mudanças profundas no
processo de produção agrícola e com conseqüências sociais, em alguns casos, desastrosas para
(CPR), o Finame Agrícola, os Contratos de Investimentos Coletivos (CIC), os pregões eletrônicos, etc (Belik et
all, 2001). Em resumo, o padrão de financiamento agrícola se pauta pela dispersão em vários instrumentos e o
setor privado toma a dianteira do processo de financiamento e de administração dos mercados agrícolas.
32
Existe uma vasta bibliografia sobre o papel do Estado, as políticas públicas praticadas e os diferentes
instrumentos de intervenção estatal em cada período histórico do Brasil. Devido a isso, não é objetivo, na
presente dissertação, fazer uma análise exaustiva destes instrumentos de regulação e intervenção pública na
agricultura.
46
a população rural do Alto Uruguai. A ação do Estado, assim, afetou diretamente o padrão de
desenvolvimento que vinha sendo gestado para a região como um todo. A principal
modificação que ocorreu neste território foi à incorporação do progresso tecnológico em larga
escala como se verá a seguir na próxima seção.
1.2.2 – O progresso tecnológico e seus efeitos na estrutura de produção.
Como demonstrado anteriormente, é a intervenção do Estado que leva a agricultura a
se modernizar e a incorporar crescentemente o progresso tecnológico que é a faceta principal
das transformações técnicas-produtivas e da penetração do capitalismo no campo. É através
do progresso tecnológico que o modo de produção capitalista exerce sua penetração lenta e
gradual na agricultura transformando o processo produtivo, “desqualificando” as forças da
natureza e subjugando o trabalho do agricultor familiar as demandas do capital industrial e
agroindustrial (Kautsky, 1986).
A modernização da agricultura é o processo pelo qual o progresso tecnológico se
internaliza e penetra na agricultura, modificando o tipo de relação que o agricultor estabelece
com a natureza e os sistemas produtivos. Ela se materializou por o que se usou designar como
“Revolução Verde” que nada mais é do que a transposição e adaptação do padrão de
modernização agrícola dos países desenvolvidos aplicado por agências internacionais para os
países em desenvolvimento como o Brasil
33
. A modernização agrícola
34
pode ser definida
como sendo o processo através do qual ocorrem modificações na base técnica da produção.
Assim, a agricultura moderna (ou modernizada) é a fase agrícola que se caracteriza pelo uso
intensivo, em nível das unidades produtoras, de máquinas e insumos modernos, bem como
por uma maior racionalização do empreendimento e pela incorporação de inovações técnicas,
quer dizer, a utilização de métodos e técnicas de preparo e cultivo do solo, de tratos culturais e
de processos de colheita mais sofisticados (Brum, 1987; Cadoná, 1993).
A forma como o progresso tecnológico penetrou na agricultura pode ser descrita por
três tipos de inovações (Graziano da Silva, 1981; 1999) que constituiriam o “tripé” de
sustentação desse padrão de desenvolvimento. Em primeiro lugar as inovações mecânicas
33
Como exemplo de agências que tiveram um papel pioneiro no processo de internacionalização da
modernização agrícola pode-se citar a Fundação Roquefeller e a Aliança para o Progresso dentre outras. Ver
Brum (1987).
34
Martins (1975, p. 15) define a modernização como sendo a modificação da cultura material das populações
rurais, pelo abandono das práticas rotineiras e de instrumentos “arcaicos” e pela adoção de práticas “modernas”
como a curva de nível, a vacinação do rebanho, o combate às pragas, a utilização de maquinaria de tração
mecânica, os fertilizantes, herbicidas, etc.
47
descritas como aquelas em torno das novas formas de maquinaria agrícola como os tratores,
colheitadeiras, ensiladeiras, carroças, trilhadeiras, motores estacionários de combustão
interna, etc. Em segundo lugar se pode colocar as inovações físico-químicas como sendo
aquelas desenvolvidas para modificar as propriedades físicas e químicas naturais dos solos
com o objetivo de aumentar a sua produtividade. Dentro destas inovações estão, por exemplo,
os fertilizantes (as formulações de N-P-K desenvolvidas industrialmente), os herbicidas,
inseticidas, acaricidas, os medicamentos veterinários, as adaptações de espaçamento, curvas
de nível, terraços, densidade de plantas entre outras que viabilizam uma agricultura intensiva
e dependente da matriz química industrial.
Esse aumento do consumo de fertilizantes, de calcário e de defensivos vegetais para o
Alto Uruguai pode ser visto pelos dados da Tabela 2. Nota-se o grande incremento no uso
destes a partir dos anos 1970 em diante nos estabelecimentos agropecuários. Apenas os
defensivos vegetais não registraram um crescimento significativo
35
. Em terceiro lugar estão as
inovações biológicas definidas como aquelas que visam, via o melhoramento genético de
plantas ou animais, gerarem seres vivos “superiores” em termos de produtividade, redução do
tempo de abate ou colheita, e que sejam potenciadores dos efeitos das inovações mecânicas e
físico-químicas. O objetivo perseguido é o de aumentar a rotação de capital fazendo com que
quem as utiliza diminua, em partes, o tempo de produção auferindo daí maiores lucros ao final
do ciclo produtivo. Dentre estas podemos citar o caso do milho híbrido, as novas variedades
mais produtivas de soja, feijão, o melhoramento genético nos suínos, gado de leite e corte,
aves, caprinos, etc
36
.
Como um quarto pilar do processo de modernização da agricultura e que permitiu a
penetração e difusão do progresso tecnológico pode-se citar a criação de um amplo sistema de
pesquisa e extensão rural destinado a gerar e difundir o conhecimento das novas plantas e
animais, dos novos métodos de manejo dos solos, dos novos fertilizantes e medicamentos,
Enfim, para implantar o padrão de desenvolvimento baseado no tripé mecanização -
químificação – melhoramento genético dos processos produtivos agrícolas. Foi através dos
35
Isso é devido, em partes, a não disponibilidade dos dados do Censo Agropecuário de 1995/1996.
36
É neste tipo de inovação que tem se desenvolvido mais intensamente o progresso tecnológico. O caso do feijão
é emblemático: este não podia ser colhido mecanicamente devido a sua inserção de vagem ser muito próxima do
solo o que acarretava perdas muito elevadas na colheita. A solução foi o desenvolvimento de variedades com
inserção de vagens mais alta o que permitiu a colheita mecanizada. Os exemplos disso, também estão na área das
biotecnologias na criação de novas plantas e animais. Atualmente pode se citar as plantas transgênicas onde a
soja é o maior exemplo; do lado animal é a clonagem nos bovinos a concretização da biotecnologia aonde no
Brasil a Embrapa vem mantendo convênios com empresas da biotecnologia a nível mundial. É obra da Embrapa
a primeira bezerra clonada no Brasil durante o ano de 2003.
48
profissionais das Ciências Agrárias que este padrão de fazer agricultura foi colocado de pé no
campo.
No Alto Uruguai este padrão de desenvolvimento começou a se gestado a partir dos
anos de 1970. A sua particularidade neste território é que ele ocorreu mais intensamente
baseando-se nas inovações físico-químicas e biológicas dada a impossibilidade de entrada de
maquinaria de grande porte ou de potência elevada devido às áreas das propriedades rurais
serem diminutas não viabilizando, assim, o investimento econômico em tratores,
colheitadeiras, etc para uso individual. Outro motivo que fez com que isso acontecesse foi a
grande declividade encontrada nesta região, onde há o impedimento da mecanização pesada e
em larga escala devido ao elevado grau de declividade impossibilitar tais operações (Piran:
2001).
Tabela 2: Uso de adubos químicos, calcário e defensivos agrícolas por estabelecimentos
em alguns municípios do Alto Uruguai do Rio Grande do Sul.
Fertilizantes
Municípios Censos
Total de
estabelecimen-
tos
Adubo químico
Calcário e
outros
corretivos
Defensivos
vegetais
1975 1.244 342 7,0 541
1980 1.105 498 12 418
1985 1.032 608 22 344
Caiçara
1995/96 987 877 211 -
1975 2.557 733 181 822
1980 2.811 1283 181 655
1985 2.750 1535 145 426
Frederico
Westphalen
1995/96 1.380 1212 529 -
1975 1.344 150 7,0 257
1980 1.554 175 30 329
1985 1.588 305 67 167
Irai
1995/96 930 705 259 -
1975 2.260 232 6,0 357
1980 2.365 741 25 237
1985 2.433 793 20 397
Palmitinho
1995/96 1.145 974 43 -
Fonte: Censos Agropecuários de 1975, 1980, 1985 e 1995/1996.
- Dado não disponível.
Isso pode ser visualizado pelos dados da Tabela 3, que nos mostra a ocorrência de um
pequeno número de tratores nos municípios do Alto Uruguai. Nota-se que na maioria dos
estabelecimentos agrícolas a percentagem de tratores por estabelecimento não atinge nem 1%.
49
Dessa forma, as transformações na base técnica e produtiva seguiram o caminho da matriz
química e biológica. A mecanização penetrou na agricultura familiar do Alto Uruguai
somente com motores pequenos, estacionários, trilhadeiras, forrageiros, trituradores de
cereais, e outros equipamentos de menor monta.
Tabela 3: Uso de tratores em alguns municípios do Alto Uruguai do Rio Grande do Sul.
Municípios Censos Nº de tratores Tratores/estab. (%)
1970 15 0,01
1975 37 0,03
1980 83 0,08
1985 88 0,09
Caiçara
1995/96 138 0,14
1970 6,0 0,00
1975 128 0,05
Constantina 1980 271 0,11
1985 371 0,14
1995/96 412 0,25
1970 21 0,01
1975 115 0,04
1980 185 0,07
1985 253 0,09
Federico Westphalen
1995/96 252 0,18
1970 8,0 0,01
1975 12 0,01
1980 52 0,03
1985 51 0,03
Irai
1995/96 90 0,1
1970 0,0 0,00
1975 8,0 0,00
1980 28 0,01
1985 41 0,02
Palmitinho
1995/96 39 0,03
Fonte: Censos Agropecuários 1970, 1975, 1980, 1985 e 1995/96.
Este padrão de desenvolvimento, que é calcado na mercantilização e na externalização
do processo produtivo, como se referiu Van der Ploeg (1990; 1992), é que levou o agricultor a
aumentar o seu consumo intermediário necessário à renovação dos fatores de produção em
cada ciclo produtivo, surgindo deste processo a dependência deste para com as indústrias
fornecedores de insumos, máquinas, equipamentos e sementes melhoradas
37
. É através do
37
Segundo Graziano da Silva (1987, p. 21) o consumo intermediário corresponde ao valor de todos os insumos
que entram no processo de produção (excetuando a força de trabalho). Inclui as despesas com sementes,
50
aumento do consumo intermediário que o setor urbano-industrial aufere rendas crescentes
sobre o agricultor familiar do Alto Uruguai. Ou seja, o capital industrial garante a sua
reprodução ampliada através da subjugação do trabalho produtivo agrícola do agricultor e da
exploração da mais-valia extraordinária gerada pela incorporação do progresso tecnológico.
O principal efeito da penetração do progresso tecnológico na agricultura foi o de
tornar a sua reprodução subjugada e dependente do ramo industrial a montante desta (Cadoná,
1993). Assim, a agricultura enquanto setor autônomo não mais existe feito que a sua dinâmica
é comandada por forças produtivas que se antepõe a ela, que estão determinando as suas
condições de reprodução ex-ante. Desse modo, a dinâmica da agricultura do Alto Uruguai só
pode ser compreendida dentro desse novo padrão de desenvolvimento que se gestou apartir da
2
a
Guerra Mundial
38
.
Sobre o progresso tecnológico e as transformações que este gerou na estrutura
produtiva da agricultura brasileira há uma vasta bibliografia que trata do assunto. Assim, não
é objetivo, nesta seção, realizar-se uma análise exaustiva deste assunto. Passa-se, então agora
a examinar algumas das conseqüências das transformações técnico-produtivas sobre o
processo de produção agrícola.
1.2.3 – As transformações no processo de produção agrícola.
Uma das principais modificações ocorridas com a modernização da agricultura no
Alto Uruguai foi sobre a organização do processo produtivo. Foram às mudanças que se
implementaram no manejo do solo, das plantas, dos animais e na sua relação do próprio
agricultor familiar com a natureza e os sistemas produtivos agrícolas que foram modificadas
substancialmente a apartir dos anos de 1970. Por outro lado, estas modificações estão
intimamente relacionadas com a penetração do progresso tecnológico na agricultura
familiar
39
.
defensivos, fertilizantes, rações e medicamentos para animais, aluguel de máquinas, embalagens e outros itens
que possam ser considerados matérias-primas ou insumos produtivos.
38
Segundo Cadoná (1993, p. 3) os momentos de crise acentuaram-se com a euforia inicial desse processo
modernizador e, principalmente, após a constatação das inúmeras seqüelas que restou: agressão ao meio
ambiente com desmatamentos e queimadas descontrolados; desgaste do solo [...], o exagero de emprego de
máquinas agrícolas, adubos químicos, pesticidas, hormônios e técnicas exógenas de cultivo. Controle da venda e
distribuição dos insumos agropecuários por determinados setores do complexo comercial, financeiro e industrial
que se beneficiam duplamente: na venda de insumos e na aquisição de produtos agropecuários, ocasionando uma
constante transferência dos recursos financeiros e humanos das áreas rurais para esses setores urbanos [...].
39
Entende-se, na presente dissertação, o processo produtivo como uma seqüência de operações ordenadas no
tempo e no espaço onde em cada momento deste o agricultor familiar usa e maneja diferentes fatores de
produção necessários e complementares entre si de modo a obter a melhor combinação possível.
51
As modificações no processo de produção agrícola no território do Alto Uruguai
seguem a dinâmica do que Goodman (1990) chamou, sabiamente, de apropriacionismo. O
apropriacionismo é o processo pelo qual a indústria se apropriou dos elementos discretos
utilizados no processo de produção. Segundo Goodman (1990) o apropriacionismo é um
processo descontínuo, porém persistente de eliminação de elementos discretos da produção
agrícola, sua transformação em atividades agrícolas e sua reincorporarão na agricultura sob a
forma de insumos [...] (p. 1-2). A diferença básica no processo de reincorporação do elemento
discreto que foi modificado pela indústria é: o elemento volta ao processo agrícola com uma
nova forma de aplicação ou manejo o que exige do agricultor, por sua vez, novos
conhecimentos e, o que é mais importante, dinheiro para adquiri-lo, para comprá-lo no
mercado industrial a montante do processo produtivo. É neste movimento de reincorporação
do elemento ao processo produtivo que estão os interesses do capital industrial em apropriar-
se do trabalho do agricultor familiar.
O processo de apropriacionismo inicia-se com o desenvolvimento industrial voltado a
agricultura e com as transformações da base técnica-produtiva desta a partir dos anos de 1970.
Anteriormente, a dinâmica do SAC era organizada de forma que o capital industrial não
conseguia se apropriar dos elementos do processo de produção. Nessa dinâmica, o solo
possuía a fertilidade natural desejada e quando não a possui em suficiente eram, em alguns
casos, usados estercos animais em sua fertilização. As máquinas e equipamentos utilizados
pelos colonos eram fabricadas no interior da sua própria unidade de produção nas chamadas
“indústrias caseiras” (marcenarias, ferrarias, carpintarias, etc). As sementes usadas para o
plantio da safra eram provenientes da colheita do ano anterior ou conseguida com um vizinho
ou parente próximo. Enfim, no SAC o agricultor comprava muitas poucas coisas de fora da
unidade produtiva e não permitia que o setor industrial, emergente na época, se apropriasse do
rendimento do trabalho do agricultor familiar (Cole, 2003; Plein, 2003).
As modificações nessa dinâmica começam a se manifestar, no Alto Uruguai, em torno
dos anos 1970 com as transformações da base técnica-produtiva nos estabelecimentos
familiares. Foi assim, por exemplo, que aconteceu com a fertilidade do solo. O setor industrial
se apropriou desta e colocou a disposição do agricultor familiar os adubos nitrogenados e o N-
P-K para que o agricultor abandonasse a fertilização natural via o esterco ou com resíduos
vegetais. Foi assim, também, com as máquinas e equipamentos usados no processo de
produção. O arado de aiveca foi trocado pelo arado tratorizado, o boi e o cavalo pelo trator, a
52
força humana pela matriz petrolífera, o “manguá”
40
cedeu lugar a trilhadeira que por sua vez,
em alguns casos, mais tarde, cedeu lugar à colheitadeira, e assim tantos outros exemplos
poderiam ser enumerados.
Do lado biológico o apropriacionismo industrial fez que os agricultores familiares do
Alto Uruguai trocassem suas sementes “crioulas” e tradicionais de cultivo pelas sementes do
melhoramento genético em laboratório. Assim, os agricultores familiares deixaram de plantar
as sementes de variedades de milho que passavam de geração a geração e eram selecionadas
naturalmente pelo meio ambiente e pelos seus próprios ascendentes para passar a comprar e
cultivar o milho híbrido que é “mais produtivo”, “rende mais” e que possui um maior vigor
híbrido. Assim, o apropriacionismo industrial penetrou em outras tantas variedades de soja,
feijão, trigo, fumo, etc.
Do lado da produção animal o apropriacionismo agiu da mesma maneira. Trocou o
porco que o colono criava a base de pasto, mandioca e milho para a obtenção da banha e
autoconsumo da família pelo suíno tipo carne voltado para o mercado e que só se alimenta,
exclusivamente, de ração industrializada e que contém uma infinidade de medicamentos e
hormônios de crescimento (Piran, 2001). Na bovinocultura o melhoramento genético das
raças aumentou a produtividade das mesmas sem precedentes. Mas, foi na criação de aves que
o capital industrial mais penetrou. Antes, no SAC, a criação de galinhas caipiras era feita nas
condições naturais à solta no “terreiro” da casa se alimentando de insetos, vegetais e pequenos
animais atingindo o período de abate quando o colono decidia comê-la. Agora, a galinha é
criada em grandes unidades (aviários) é alimentada somente com rações balanceadas e vai
para o abate aos 42 dias de vida.
Assim, neste movimento de modificação dos processos de produção o agricultor
familiar teve que realocar a maneira e o modo como praticava a agricultura. O agricultor
familiar do Alto Uruguai ficou dependente ao capital industrial que é o fornecedor de quase
todos os fatores de produção intensivos em capital. A dependência se configura no uso de
insumos, máquinas, sementes e raças de animais.
Neste novo contexto de transformações econômicas, sociais e produtivas a busca pela
competitividade, inclusive entre agricultores familiares faz com que elementos como a
produtividade da terra e do trabalho humano seja central para o agricultor familiar conseguir
manter-se a sua reprodução social e se adaptar a estas mudanças profundas. Ainda mais,
40
Instrumento que era usado no SAC para a debulha dos grãos dos cultivos que continham os grãos em vagens,
geralmente as leguminosas. O produto agrícola era espalhado em cima de uma “lona” de sacos de estopa ou de
53
devido a este exercer a agricultura em pequenas áreas de terra o que o leva a buscar o
progresso técnico e a seus conseqüentes aumentos de produtividade como abordar-se-ão a
seguir.
1.2.4 – Os resultados econômicos da modernização.
As transformações da base técnica de produção agropecuária no Alto Uruguai
trouxeram como resultado um significativo aumento da produtividade dos fatores de
produção. Os fatores de produção que mais sofreram este processo ascendente em sua
produtividade foram a terra e o trabalho. Como descrito, anteriormente, as pequenas áreas em
que a produção é desenvolvida neste território é que levam o agricultor familiar a uma
intensificação no uso do progresso tecnológico que é a principal forma de aumentar a
produtividade dos fatores produtivos.
No SAC o colono possuía a possibilidade de buscar a sua reprodução social em outras
terras na frente pioneira como forma de expandir a fronteira agrícola, incorporando áreas
ainda não desbravadas para a produção. A fertilidade natural do solo, os instrumentos rústicos
de trabalho e o uso intensivo da força de trabalho familiar dos membros do grupo doméstico
eram os “motores” do desenvolvimento das colônias. Com o fechamento da fronteira
fundiária nos anos 60 e a degradação da fertilidade natural dos solos os colonos buscam outras
estratégias de reprodução social. A saída encontrada, neste contexto, foi à intensificação da
produção nas pequenas áreas de terras que possuíam. A intensificação se desenvolveu no
sentido de dispensar a força de trabalho familiar e incrementar os fatores de produção
intensivos em capital. Por sua vez, isso somente foi possível devido aos incrementos
tecnológicos constantes o que o levou os agricultores familiares e adentrarem em uma
“corrida” tecnológica (Graziano da Silva, 1999).
A modernização da agricultura através da incorporação do progresso tecnológico é que
fez com que houvesse aumento da produtividade da terra e do trabalho. A produtividade da
terra é proveniente dos incrementos tecnológicos que lhe fazem aumentar a sua fertilidade
“artificial” e a sua capacidade física de produção (melhoria das propriedades físicas do solo
como estrutura, textura, porosidade, plasticidade, etc)
41
. Estes são entendidos como o uso de
pano onde passava por golpes do manguá que nada mais era do que um pau de mato com o qual se batia sobre as
vagens do produto para que as mesmas liberassem as sementes.
41
A produtividade da terra tal qual ela somente não existe. O que existe é a produtividade da terra realizada pelo
trabalho produtivo aplicado nela, pois é somente o trabalho socialmente aplicado a um processo de produção
agrícola que gera valor.
54
insumos como fertilizantes químicos, adubos diversos, processos de condicionamento dos
solos, incorporação de matéria orgânica, etc. A produtividade do trabalho é proveniente das
inovações que são poupadoras de trabalho. É o chamado “desemprego tecnológico”, ou seja, é
o processo pelo qual a força de trabalho do agricultor familiar do Alto Uruguai é substituída
pela força mecânica do trator, da colheitadeira, do pulverizador só para citar alguns exemplos.
Segundo Graziano da Silva (1999) a modernização da agricultura através da
incorporação do progresso tecnológico fez a agricultura aumentar a produtividade no período
de 1970 a 1975 a taxas de 1,7% a.a.; no período de 1975 a 1980 em 2,3% a.a. e, no período de
1970 a 1980 em 2,0% a.a. em média. Os rendimentos físicos das principais culturas
comerciais também sofreram incrementos de produtividade por ha. De 1970 a 1980 o milho
aumentou o seu rendimento físico em 1,26%, a soja em 3,47%, a laranja em 2,19% e a cana–
de-açúcar em 1,99%. Já as lavouras destinadas ao autoconsumo familiar no mesmo período
analisado tiveram recuos significativos em seus rendimentos físicos. O arroz recuou –0,08%,
o feijão –3,25% e a mandioca –2,50%. Isso demonstra que o processo de aumento da
produtividade da agricultura brasileira se deu de modo desigual selecionando as culturas
voltadas ao mercado, principalmente, o mercado internacional onde a soja é o maior exemplo
e, deixando de lado os cultivos voltados ao autoprovisionamento alimentar como o feijão e o
arroz.
No caso da agricultura familiar o aumento da produtividade da terra e do trabalho
foram às saídas encontradas pelos agricultores familiares para continuarem se viabilizando
economicamente. É o que demonstram os dados da pesquisa AFDLP (2003) realizada no
município de Três Palmeiras, no Alto Uruguai. No que tange à produtividade da terra ou
física, a pesquisa AFDLP demonstrou que a riqueza gerada por hectare (ha) de terra
explorado, na grande maioria dos estabelecimentos (67,8%) ficou em torno de R$ 500 por
hectare. O maior percentual (37,3%) obteve uma produtividade física entre R$ 251 a R$ 500
e, apenas 6,8% obteve uma rentabilidade por hectare explorado acima de R$ 1.000. Pode-se
perceber que estas produtividades são baixas na grande parcela de unidades familiares o que
se explica, em partes, pela grande relevância da produção de grãos e commodities agrícolas
que possuem um baixo valor agregado por unidade de área (Conterato, 2004).
No que se refere à produtividade do trabalho agrícola, que é a riqueza gerada pela
mão-de-obra familiar e contratada aplicada nas atividades agropecuárias, para praticamente
60% dos estabelecimentos esta não ultrapassa os R$ 2.000. Pouco mais de 10% dos
estabelecimentos obtêm uma produtividade do trabalho agrícola superior a R$ 5.000,
demonstrando substanciais diferenças em relação à capacidade de gerar riqueza na agricultura
55
familiar do Alto Uruguai. Esta diferenciação em relação à riqueza gerada deve-se justamente
a capacidade instalada e ao tamanho de cada estabelecimento agrícola familiar. Isso porque,
um agricultor que dispunha de máquinas e equipamentos agrícolas trabalha em condições bem
distintas de um agricultor que necessita alugar estas mesmas tecnologias. Apesar de ambos
trabalharem em regime de economia familiar, as escalas de produção são distintas e
incomparáveis (AFDLP, 2003).
O aumento da produtividade da terra no Alto Uruguai não foi a principal
transformação sofrida pela agricultura familiar, já que com a perda da fertilidade natural dos
solos desde o SAC era, sem dúvida, necessário um método de restabelecimento da
produtividade das mesmas. A produtividade do trabalho é que, juntamente com o fechamento
da fronteira fundiária e outros fatores, foi a responsável pela falta de alternativas viáveis para
os agricultores do Alto Uruguai. A principal conseqüência disso foi à expulsão de milhares de
pessoas deste território desde a década de 70, demonstrando que o progresso tecnológico via
tecnologias poupadoras de força de trabalho, é um instrumento de “exclusão” social e de
extremamento das diferenciações sociais entre as categorias sociais e dentro da própria
agricultura familiar como se demonstrará a seguir. Além disso, demonstra-se, mesmo que de
uma forma superficial já que o tema será retomado nos próximos capítulos, que o
autoprovisionamento alimentar das famílias também passou por um processo de fragilização
e solapamento com as mudanças técnicas e produtivas iniciadas nos anos de 1970.
1.2.5 – Diferenciação sócio-produtiva e vulnerabilização do autoconsumo.
As transformações por que passou a base técnica e produtiva da agricultura no Alto
Uruguai trouxe inúmeros efeitos perversos do ponto do tecido social. Dentre estes, relata-se
alguns que se julga serem, em partes, explicativos da dinâmica de desenvolvimento que se
gestou a partir dos anos 1970 na região em estudo. Entre os elementos explicativos discorre-
se, sucintamente, sobre alguns indicadores das condições sociais e humanas da população do
Alto Uruguai. Discute-se, também, a diferenciação social e produtiva que surgiu entre os
agricultores e o que se usou chamar de fragilização da esfera produtiva do autoconsumo das
unidades familiares.
Um dos indicadores mais importantes das contradições geradas pelas mudanças que
se seguiram a década de 70 foram às migrações. Neste sentido, o principal efeito foi à
expulsão de uma parcela significativa da população que habitava o “mundo” rural deste
território invertendo a pirâmide populacional. Por exemplo, o número de estabelecimentos de
56
1985 a 1995/96 diminuiu em 27,6%, demonstrando a forte migração que a agricultura familiar
desse sofreu (Brum, 1999).
Outra conseqüência estrutural que decorre do processo de modernização da
agricultura é a pobreza rural das populações desta região. Segundo a Fundação de Economia e
Estatística (FEE, 2004) o Alto Uruguai possui a segunda pior situação em termos de
indicadores sociais e econômicos como mostra a Tabela 4. A FEE identificou um Idese que
para a maioria dos municípios do Alto Uruguai fica a abaixo do Idese do estado do Rio
Grande do Sul, sendo uma exceção o Município de Frederico Westphalen
42
.
Analisando-se o Idese desagregado, ou seja, por blocos, nota-se que os piores
indicadores estão no caso da renda e de saneamento básico. O baixo índice no saneamento se
explica pelo Alto Uruguai ser uma região essencialmente rural cuja taxa de urbanização é
muito baixa. A baixa renda, conseqüentemente, se o Alto Uruguai é essencialmente rural, esta
se localiza no meio rural. A predominância da agricultura familiar no meio rural é histórica, o
que se conclui é que a baixa renda, medida pelo Idese, se encontra na agricultura familiar,
demonstrando, assim, as péssimas condições de vida e a pobreza rural destas populações.
Note que nos blocos da educação e da saúde os indicadores são melhores e mais próximos ao
estadual. Nota-se ainda, a proeminência do Município de Frederico Westphalen que nos
indicadores de educação, saneamento e saúde se sobressai aos indicadores estaduais.
Tabela 4: Idese por blocos e agregado de alguns municípios do Alto Uruguai do Rio
Grande do Sul.
Municípios Educação Renda
Sanea-
mento Saúde IDESE
Frederico Westphalen 0,861 0,687 0,617 0,913 0,769
Taquaruçu do Sul 0,837 0,766 0,218 0,882 0,676
Irai 0,811 0,616 0,393 0,867 0,672
Palmitinho 0,806 0,578 0,327 0,879 0,647
Vista Alegre 0,847 0,560 0,247 0,880 0,633
Caiçara 0,839 0,531 0,169 0,899 0,609
Três Palmeiras 0,799 0,652 0,053 0,888 0,598
Pinheirinho do Vale 0,777 0,507 0,181 0,880 0,586
Vicente Dutra 0,738 0,469 0,205 0,883 0,574
Rio Grande do Sul
0,834 0,757 0,562 0,853 0,751
Fonte: Fundação de Economia e Estatística (FEE). Site: www.fee.tche.br. Acesso em 09/04/2004.
42
O Idese é um índice sintético que abrange um conjunto amplo de indicadores sociais e econômicos com o
objetivo de mensurar o grau de desenvolvimento dos municípios do Estado. O Idese é resultado da agregação,
com a mesma ponderação (0,25), de quatro blocos de indicadores: Domicílio e Saneamento, Educação, Saúde e
Renda. Cada um dos blocos, por sua vez, resulta da agregação de diferentes variáveis (FEE, 2004).
57
Em outro estudo, a FEE encontrou um Índice de Gini
43
de 0,425 demonstrando a
excessiva fragmentação das propriedades rurais, a chamada minifundização, a qual em parte,
pode ser a responsável pela pobreza rural da população. Também a área média das
propriedades em ha, é de 12,0
44
, corroborando com a assertiva da ocorrência de pequenas
áreas as quais devido às más condições químicas, físicas, de fertilidade e de declividade
elevadas impossibilitam a manutenção e a reprodução social das famílias de agricultores
familiares, sendo, desta forma, uma das causas da situação social degradante da agricultura
familiar local (FEE, 1995 apud Schneider et all, 2000).
O Alto Uruguai é uma área que revela indicadores onde o percentual da população
rural é o mais elevado (72,14% e 64,49, respectivamente para as duas das três sub-regiões em
que o Alto Uruguai foi dividido pelo estudo) e o grau de indigência também ocupa posições
de destaque (31,57% e 30,73%, respectivamente). Ou seja, o segundo e o terceiro mais
elevados, embora o Índice de Desenvolvimento Social (IDS) não esteja entre os mais baixos
do Estado (Schneider, 2000, p. 25). Para o autor parece que a pobreza rural está diretamente
relacionada com o alto nível de povoamento e com o excessivo número de pequenas
propriedades de tamanho muito reduzido
45
.
Outra conseqüência das transformações sociais, produtivas e econômicas no Alto
Uruguai é a ocorrência de uma diferenciação social e produtiva entre os agricultores
46
. Isso
decorre da chamada “corrida” tecnológica em que alguns agricultores familiares conseguiram
acesso às inovações provenientes da modernização agrícola e ascenderam socialmente, por
pelo menos por um período de tempo. Outros, por não terem capital, acesso ao financiamento
público e as condições de incorporar as novas tecnologias não conseguiram se inserir nesta
dinâmica territorial de desenvolvimento.
43
O Índice de Gini mede a concentração da propriedade da terra. Quando próximo de 1 significa concentração
máxima; ao contrário, quando mais próximo de 0 (zero) indica baixa concentração.
44
Acrescenta-se que quando do processo de ocupação desse território, via introdução dos chamados colonos de
origem européia ao redor dos anos de 1925, a média de ha que era destinado a cada uma das famílias para se
instalarem e produzirem era em torno de 25 ha. Sendo assim, podemos dizer que hoje as colônias estão “partidas
ao meio” no sentido de que a média, em ha, das propriedades serem em torno de 50% menores que quando do
processo inicial de colonização.
45
Cadoná (1993) estudando a agricultura familiar do Alto Uruguai, mais especificamente, no Município de
Frederico Westphalen também chama a atenção para a situação de pobreza rural e para o fenômeno das
migrações que tiveram início na década de 1960 no Alto Uruguai. O referido autor observou que as precárias
condições de vida dos agricultores familiares residiam principalmente: em habitações precarizadas, nas infra-
estruturas de galpões, máquinas, implementos e animais, problemas de água e saneamento básico.
46
Ressalta-se que a diferenciação social a qual se refere nesta dissertação não é a diferenciação na visão de
Lênin (1889) que achava que devido o desenvolvimento do mercado interno capitalista na Rússia as classes
sociais no campo, como os camponeses iriam se tornar de um lado burgueses e detentores dos meios de produção
e de outro lado proletários e jornaleiros agrícolas. Também não é uma diferenciação social no sentido a que
Graziano da Silva (1999) considera.
58
No Alto Uruguai a diferenciação social e produtiva dos agricultores familiares é um
processo em curso na região como demonstrou Conterato (2004) em um trabalho recente
sobre a mercantilização da agricultura familiar no município de Três Palmeiras
47
. Ela gera o
desenvolvimento desigual das formas sociais de produção e trabalho e possui um caráter
excludente entre as categorias sociais de agricultores
48
. É o caráter desigual e excludente da
modernização agrícola. Ou seja, por um lado ela gera desigualdades sociais nas categorias
sociais já integradas ao processo de desenvolvimento e de outro acentua a “exclusão” dos
agricultores já precarizadas e pobres.
A diferenciação que ocorreu no território do Alto Uruguai é social e produtiva como já
demonstrou em pesquisa nesta região Conterato (2004). A diferenciação produtiva se refere
ao processo pelo qual os agricultores familiares se diferenciaram de acordo com o tipo de
atividade produtiva que exercem. A diferenciação produtiva se refere ao estágio em que estão
organizadas as forças produtivas na agricultura. A diferenciação social é o processo no qual
uma parte dos agricultores familiares conseguiu melhorar sua situação sócio-econômica e
ascender socialmente se integrando a dinâmica do território. Tanto a diferenciação produtiva
como a social coloca um grande número de famílias a “margem” do processo de
desenvolvimento social e econômico no Alto Uruguai. Como formulou Graziano da Silva
(1999) [...] todo o processo de desenvolvimento capitalista é, por si mesmo, contraditório:
produz riqueza e miséria, como duas faces da mesma moeda (p. 115).
A diferenciação social e produtiva é vista como um processo social que pode ser
externo ou interno a unidade de produção e ao grupo doméstico. Como fatores externos que
podem levar a diferenciação pode-se citar a ação do Estado, das instituições e do mercado
que se relacionam com a agricultura familiar. Como fatores internos à família pode-se aludir
ao tamanho desta, as diferentes estratégias de reprodução social postas em prática, o tipo de
solo, o tamanho da unidade produtiva, os tipos de cultivos e criações praticados, etc.
Com o intuito de demonstrar que há uma diferenciação social entre os agricultores do
Alto Uruguai utiliza-se, mesmo que de forma sucinta e com poucos indicadores, alguns dados
da pesquisa AFDLP (2003) para o município de Três Palmeiras. Um primeiro indicador deste
processo é o capital disponível que mostra a capacidade instalada das unidades de produção.
47
Conterato (2004, p. 34-35) faz uma distinção entre diferenciação da agricultura e diferenciação social.
Segundo o autor a primeira, a da agricultura, ocorre através dos diferentes sistemas de produção praticados na
agricultura, diferenciando-a ao longo do tempo por sistemas de produção que surgem para depois serem
substituídos por outros. Já a diferenciação social dos agricultores familiares, ocorre pelos diferentes mecanismos
viabilizados por estes para garantir a sua reprodução social e econômica durante os ciclos geracionais, como
acesso a terra, ao progresso tecnológico, às políticas públicas, etc.
59
Neste sentido, os dados são bastante ilustrativos, já que 22% das unidades operam com um
capital disponível de R$ 0 a 5.000. No outro extremo, tem-se 28,8% das unidades de
produção que possuem um capital disponível maior que R$ 20.001. Há ainda, nos estratos
intermediários a estes dois, unidades produtivas que operam com capital disponível de R$
5.001 a 10.000 (27,1%) e unidades com capital de R$ 10.001 a 20.000 (22%). Estes dados
demonstram uma diferenciação da agricultura familiar no que se refere a sua capacidade
produtiva instalada, pois o capital disponível é importante na dinâmica das unidades de
produção para fazer frente, por exemplo, a gastos excepcionais, iniciar novas atividades
econômicas e produtivas, para o pagamento de dívidas, etc. Assim, unidades com maior
capital disponível possuem a sua reprodução social assegurada frente às oscilações de
rendimentos e do contexto social e econômico em que se encontra inserida.
Outro indicador importante que se pode considerar decisivo no estudo da
diferenciação social da agricultura familiar é a renda agrícola das famílias. Os dados da
Pesquisa AFDLP (2003) são elucidativos neste sentido. A grande maioria das famílias
pesquisadas (56%) possui uma renda agrícola anual de até R$ 5.000. Nos estratos de renda
agrícola de R$ 5.001 a 10.000 e de R$ 10.001 a 20.000, respectivamente, o percentual de
famílias é de 25,4% e de 11,8%. No extremo oposto, estão os agricultores familiares cuja
renda agrícola anual é maior que R$ 20.001, totalizando apenas 6,8% das famílias
pesquisadas. Estes dados também mostram a diferenciação social da agricultura familiar com
base no critério da renda obtida na atividade agropecuária que as famílias desenvolvem o que
é importante para a sua manutenção social, pois famílias com maiores rendas agrícolas
possuem melhores condições sociais e econômicas de prosperarem na atividade agropecuária.
Não é o objetivo central deste estudo discutir o processo de diferenciação social e
produtiva dos agricultores familiares, mas somente demonstrar que ele existe no Alto Uruguai
como estudos recentes já verificaram como é o caso de Conterato (2004). Assim, a presente
dissertação objetiva estudar o autoprovisionamento alimentar e as políticas públicas e
iniciativas locais de desenvolvimento no Alto Uruguai. Deste modo, abordam-se em seguida,
mesmo que de uma forma superficial, a problemática relativa à produção de autoconsumo das
famílias visando, sucintamente, situar a situação social em que se encontra esta dimensão das
unidades de produção da região.
Uma das esferas da agricultura familiar do Alto Uruguai que sofreu um processo de
fragilização com as transformações técnicas, produtivas e econômicas foi à produção de
48
Para ver um referencial teórico para o estudo de diferentes territórios, sua regulação e o desenvolvimento
desigual das formas sociais que nele interagem, consultar Marsden (1998).
60
alimentos destinados ao consumo das famílias. Este processo que se pode chamar de
fragilização da produção de autoconsumo das unidades familiares começou a se gestar a partir
dos anos 70 com a assim chamada modernização agrícola. Neste contexto, os agricultores
familiares que possuíam a sua lógica de reprodução social assentada primeiramente na
produção dos alimentos necessários ao grupo doméstico e, só em segundo plano, a produção
de excedentes visando o mercado passam por um processo onde esta lógica é solapada e
modificada.
Neste processo de fragilização da produção de autoprovisionamento alimentar das
famílias assumem uma importância relativa os tipos de vínculos mercantis dos agricultores, os
tipos de sistemas produtivos praticados, o conhecimento do agricultor, o número de membros
do grupo familiar, etc dentre outros fatores que agem no sentido de gerarem uma
diferenciação social e produtiva desta característica que pode ser descrita como genuína ou
típica do modo de vida colonial. Deste modo, o processo de solapamento da produção de
autoconsumo decorre, em partes, das transformações técnicas-produtivas dos anos 70.
Entretanto, há também fatores internos as unidades de produção que também são explicativos
das mudanças que esta característica sofreu nas famílias. Alguns destes fatores são o número
de membros da unidade, a sua diferenciação por sexo e idade, as necessidades alimentares e
calóricas do grupo, as estratégias de obtenção e produção dos alimentos, etc que podem ser
decisivas na explicação dos processos sociais relacionados à produção de autoconsumo como
se aborda no capítulo 3.
Um dos motivos responsáveis pelo solapamento da produção de autoconsumo no Alto
Uruguai foi o processo de quebra da lógica de policultivos e de criações dos colonos e o início
de um movimento que tornou os agricultores familiares profissionais e especializados em
poucas atividades produtivas. Este processo já havia sido diagnosticado por Cadoná (1993)
que estudou a agricultura familiar da região e as suas estratégias coletivas de reprodução
social. Segundo o autor, os pequenos agricultores que deveriam caracterizar sua atividade
produtiva pela policultura [...] buscando em primeiro lugar o suprimento das necessidades
alimentares da família e dedicando-se a algumas culturas e criações para o comércio, atem-se
à prática da monocultura. Ou seja, o cultivo preferencial de uma cultura, normalmente soja ou
fumo, ligada à agroindústria. Observa-se que muitos destes pequenos produtores [...]
pretenderam transformar-se em “minigranjeiros”, tornando suas propriedades uma lavoura
homogênea de algum produto preferencial da agroindústria [...] (p. 107).
É este processo de inserção mercantil dos agricultores familiares com o cultivo e
criação preferencial de produtos que são facilmente comercializáveis que levou, em grande
61
medida, ao solapamento da produção de autoconsumo. Ou seja, é o processo de
mercantilização social e econômica dos agricultores familiares que faz com que a produção de
autoconsumo seja fragilizada e, em muitos casos, externalizada da unidade de produção como
são os casos em que os agricultores compram o seu consumo alimentar em supermercados
citadinos, de comerciantes locais ou mesmo de fruteiros e feirantes ambulantes que percorrem
o interior dos municípios da região realizando a comercialização de diversos gêneros
alimentícios para as famílias rurais.
É o que observou Pelegrini (2003, p. 85) estudando a agricultura familiar da região e
as associações de agroindústrias familiares. Segundo o autor, com a modernização agrícola, os
agricultores passaram a produzir, fundamentalmente, produtos destinados às agroindústrias
como: soja, fumo, suíno, milho e leite. Este processo mais geral de privilegiamento das
atividades produtivas dinâmicas e mercantis em detrimento da produção de autoconsumo é,
em grande medida, responsável pela vulnerabilização da produção para autoprovisionamento
das famílias. Assim, estas transformações (que serão abordadas nos próximos capítulos) por
que passou esta esfera da agricultura familiar pode ser entendida a partir do conceito de
vulnerabilização da segurança alimentar dos agricultores como formulou Ellis (2000).
Neste processo de transformações sociais, produtivas e econômicas a produção de
autoconsumo passou por mudanças nas unidades de produção que são diferenciadas de
agricultor para agricultor. O que se pretende demonstrar nos próximos capítulos, é que esta
característica é diferenciada entre os agricultores familiares, os seus sistemas produtivos
praticados, os diferentes tipos de inserções mercantis, etc. Esse movimento pode ser entendido
a partir do conceito de diferentes graus de mercantilização da agricultura familiar como
definiu Van der Ploeg (1990; 1992). Ou seja, o consumo alimentar também, como uma
característica constitutiva e intrínseca da agricultura familiar, pode ser descrito como
possuindo diferentes graus de mercantilização.
Neste sentido, nos próximos capítulos procede-se a análise da importância que possui
a produção de autoconsumo para as famílias rurais da região em estudo. Demonstra-se que
este tipo de produção passou por um processo de mercantilização nas famílias que, por sua
vez, é diferenciado de agricultor para agricultor. Neste sentido, pretende-se demonstrar que
nos agricultores que o autoprovisionamento foi vulnerabilizado estes, em alguns casos, se
encontram em situações de insegurança alimentar. Analisa-se, também a produção de
autoconsumo do ponto de vista da sua importância para a geração de processos de segurança
alimentar nas famílias. Esta análise está contida, principalmente, no capítulo 3.
62
Porém, antes desta análise, e ainda no capítulo 2, demonstra-se que o autoconsumo
possui várias funções dentre os agricultores familiares. Este vai além de ser somente uma
fonte de alimentação para as famílias. É através do autoconsumo que os agricultores se
sociabilizam, realizam trocas, que se transmite o saber de uma geração para a outra. É,
também, através do autoconsumo que o agricultor familiar se identifica com a profissão de
agricultor. Assim, o autoprovisionamento é muito mais do que uma simples produção para a
alimentação da família, ele guarda um simbolismo muito grande para o agricultor. Este tipo
de produção também possibilita a geração de estratégias de vivência diversificadas na unidade
de produção, pois é apartir da garantia do mínimo calórico que o agricultor familiar e a sua
família vão gerar outras formas de reprodução social (Ellis, 2000). É esta análise, que se
empreende no próximo capítulo.
63
CAPÍTULO 2:
AUTOCONSUMO E AGRICULTURA FAMILIAR: autonomia,
sociabilidade e saber-fazer.
Neste capítulo procura-se demonstrar que a produção de autoconsumo não serve
somente para alimentar os membros do grupo doméstico. Tampouco, o autoprovisionamento é
apenas um tipo de produção que serve para ser estudado do ponto de vista produtivo. Ela é,
também, uma característica genuína da agricultura familiar que cumpre vários outros papéis
nas formas sociais de produção e trabalho. Estas outras “funções” que o autoconsumo possui
estão ligadas à esfera da cultura dos agricultores, aos simbolismos e ao modo de vida típico
das comunidades rurais.
Deste modo, o que se quer demonstrar é que a produção de autoconsumo é
responsável pela geração da autonomia reprodutiva do agricultor familiar frente ao contexto
social e econômico, principalmente pelo princípio da alternatividade produtiva. Além disso,
analisa-se o papel deste tipo de produção no que tange a reciprocidade e a sociabilidade
vicinal entre os agricultores familiares através da troca de alimentos, dos chamados “cerões” e
visitas informais entre vizinhos e parentes.
Aborda-se também o autoprovisionamento alimentar do ponto de vista da constituição
identitária sócio-profissional do agricultor familiar. Neste sentido, demonstra-se que o
autoconsumo faz parte dos elementos diários do cotidiano das famílias como a terra, a própria
família, a alimentação e, principalmente, em torno do saber-fazer dos agricultores que é
transmitido de geração em geração no Alto Uruguai. Também se abordam alguns elementos
teóricos e conceituais que são utilizados nos próximos capítulos desta dissertação com o
intuito de explicar os processos sociais, econômicos e territoriais ligados à produção de
autoconsumo, as políticas públicas e iniciativas locais de desenvolvimento praticadas nesta
região.
64
No final do capítulo, se realiza, de modo muito sucinto, uma breve exposição sobre a
pesquisa AFDLP (2003) que foi realizada no município de Três Palmeiras, no Alto Uruguai,
visando explicar algumas questões metodológicas como é o caso do cálculo do autoconsumo
familiar, onde se explicitam os principais passos e meandros para o seu cálculo econômico.
Busca-se, também, em certa medida dialogar com alguns autores que trabalharam com o
assunto discutindo alguns aspectos metodológicos que se julga serem importantes de serem
abordados de forma clara e objetiva em pesquisas do gênero. Inicia-se este capítulo com uma
abordagem teórica sobre alguns autores clássicos como Chayanov e Wolf que se debruçaram
sobre este assunto buscando-se alguns conceitos e elementos teóricos que se julga serem
importantes para o estudo desta dimensão das unidades familiares.
2.1 – AUTOCONSUMO E CAMPESINATO: Chayanov e Wolf.
Esta seção propõe-se a apresentar duas diferentes reflexões teóricas que foram
desenvolvidas por autores clássicos que trataram do assunto do autoconsumo nas formas
sociais familiares. Os autores de referência são Chayanov (1974) e Eric Wolf (1976) que
deram contribuições pontuais, contudo significativas em termos do estudo do autoconsumo no
campesinato como uma característica típica das formas sociais familiares de produção e
trabalho na agricultura.
O autoconsumo é uma característica que pode ser descrita como genuína as formas
sociais familiares, pois este é uma dimensão constitutiva do campesinato que o define e o
caracteriza em todas as sociedades, tanto nas já não mais existentes como nas
contemporâneas. No campesinato o autoconsumo possui as mais diversas denominações,
sendo descrito como nível de subsistência, mínimo calórico como o descreveu Wolf (1976),
como agricultura de “subsistência” como foi chamado por muito tempo no Brasil e, como
consumo propriamente dito que é o termo clássico cunhado por Chayanov (1974) que
sintetiza e embasa a maioria dos estudos sobre campesinato no país. Deste modo, passa-se a
apreciar a contribuição desenvolvida por Chayanov.
2.1.1 – O autoconsumo segundo Chayanov: a tese do equilíbrio ótimo.
A contribuição de Alexander Chayanov está compilada no seu livro “A organização
da unidade econômica campesina” de 1964. Sua contribuição reside no fato de ter concebido
a unidade econômica camponesa como uma unidade de trabalho e também uma unidade de
65
consumo familiar. O seu “modelo” básico explicativo é o de que o camponês executa as
tarefas e trabalhos produtivos visando um equilíbrio ótimo entre o trabalho e o consumo da
família, levando em conta para isso à composição e o tamanho da família (número de
consumidores e trabalhadores diferenciados por sexo e idade) e as necessidades que daí
derivam.
Para Chayanov (1964; 1981) a unidade de trabalho familiar é composta pelo número
de membros que compõem a família e que se encontram em plenas condições de trabalho. A
unidade de consumo é composta pelos membros que compõem a família que estão em
condições plenas de trabalho bem como os que não estão ou ainda não a alcançaram
49
. A
racionalidade camponesa dirige-se no sentido de obter o equilíbrio ótimo entre o trabalho e o
consumo familiar. Para isso, o camponês organiza a família de acordo com seu tamanho e a
sua composição interna por sexo e idade ao longo do ciclo biológico de existência da mesma,
de maneira a obter o melhor ponto de equilíbrio entre o trabalho e o consumo do grupo
doméstico. Neste contexto, é central a relação consumidor/trabalhador (c/t) ao longo da
existência da família, pois dependerá desta o maior ou menor esforço que deverão desprender
os membros em condições de trabalho. Quanto mais próximo de 1,0 a relação c/t menor o
grau de autoexploração dos trabalhadores e melhor será o equilíbrio consumo/trabalho da
unidade econômica camponesa. Ou seja,
Qualquer unidade doméstica de exploração agrária tem assim um limite
natural para sua produção, o qual está determinado pelas proporções de
trabalho anual da família e o grau de satisfação da suas necessidades
(Chayanov, 1964, p. 85; tradução livre).
Para Chayanov (1964) o balanço consumo/trabalho é afetado por dois conjuntos de
fatores. De um lado, a própria estrutura interna da família (composição e tamanho da mesma)
que determina a pressão em termos das necessidades de consumo. De outro, está o nível de
produtividade da força de trabalho que é aplicado pela família. Assim, quanto maior for o
número de consumidores da família e mais baixa for à produtividade da força de trabalho
empregada no processo produtivo maior será o grau de autoexploração dos trabalhadores.
Como formulou Chayanov (1964) o volume de atividades da família depende totalmente do
número de consumidores e de nenhuma maneira do número de trabalhadores (p. 81). Portanto,
o que se infere a partir da tese deste estudioso, é que a dimensão do autoconsumo alimentar
nas formas familiares de produção e trabalho é uma esfera fundamental que orienta e afeta as
49
Para Chayanov (1964) as crianças menores de 14 anos são computadas como consumidores apenas e as
maiores de 14 anos como trabalhadores plenos. Já os velhos, enfermos e demais membros incapacitados ao
trabalho produtivo são computados somente como consumidores.
66
estratégias de reprodução e os cálculos das unidades familiares no sentido de como os seus
membros se organizam para obter a alimentação necessária ao seu consumo.
Segundo o autor, o mais elevado grau de exploração da força de trabalho na família
faz que as fadigas de trabalho aumentem e que, desse modo, o bem estar da família diminua
sensivelmente a cada novo aumento de trabalho. Como formulou Chayanov (1964):
Quanto maior é a quantidade de trabalho realizada por um homem em um
período definido de tempo, maiores fadigas representam para o homem as
últimas (marginales) unidades de força de trabalho consumidas (p. 84;
tradução livre).
Para Chayanov o camponês tinha uma existência que era mediatizada pela penosidade
do trabalho agrícola. Isso deriva, em partes, pelo campesinato não possuir em sua lógica de
reprodução os pressupostos que o habilitavam ao uso do progresso tecnológico para que,
assim, este pudesse aumentar a produtividade da força de trabalho familiar. Não que
Chayanov não reconhecesse o papel do progresso tecnológico no aumento da produtividade
do trabalho, mas sim, pelo fato observado por Chayanov de que o camponês não incorporava
o progresso tecnológico devido a este dispensar parte da força de trabalho familiar que não
poderia ser usada em outras atividades. E, também, devido à falta de condições do camponês
em investir em bens de capital
50
dada as condições sociais e econômicas dos mesmos que
muitas vezes não conseguiam atingir o nível do consumo necessário à alimentação da família.
Uma interpretação recorrente em Chayanov (1974) é a de que o objetivo final das
ações e da lógica do campesinato é o bem estar da família. Neste sentido, o autor desenvolve a
tese do equilíbrio ótimo entre trabalho e consumo visando explicar que as estratégias postas
em prática pelos membros do grupo doméstico objetivam em última instância, a obtenção do
consumo que é um pré-requisito fundamental para o bem estar de todo o grupo familiar.
Assim, para Chayanov, a família camponesa se mune de diferentes estratégias para garantir o
seu consumo necessário durante o ano, que é o principal pressuposto para se chegar a uma
condição de bem estar social dos seus membros. Este aspecto é importante na obra de
Chayanov, pois ele permite inferir que a obtenção do consumo alimentar dos membros
domésticos está relacionado com as condições objetivas de existência humana, que por sua
vez, correlacionam-se com a segurança alimentar da família, no sentido desta traçar as suas
estratégias visando primeiramente o consumo dos alimentos necessários aos seus membros.
50
Para Chayanov (1964) a família camponesa não investe em bens de capital, pois este investimento lhe custaria
parte do consumo necessário à manutenção familiar. A família camponesa compensa a falta de capital com a
maior autoexploração da força de trabalho familiar. A falta de capital é, em partes, que determina o grau de
autoexploração dos membros trabalhadores da família.
67
Para Chayanov, a tese do balanço consumo/trabalho é também importante para se
explicar à racionalidade da família frente ao contexto social e econômico em que esta
desenvolve as suas estratégias de reprodução. Neste sentido, o autor deixa explícito em sua
obra, que as unidades de produção camponesas que possuem o consumo necessário aos seus
membros também possuem uma maior autonomia. Ou seja, para Chayanov (1974) a
possibilidade de se obter o consumo necessário no interior das unidades é sinônimo de uma
maior autonominização da família frente à sociedade envolvente. Este aspecto da tese do
autor é essencial de ser compreendido, pois é por ai que se pode explicar e, até mesmo
justificar se se quiser, a importância dos processos produtivos de autoprovisionamento
alimentar nas famílias rurais na atualidade.
Chayanov (1964) também considera que a unidade econômica camponesa faz parte de
um sistema de economia nacional que a determina e a afeta. Isso faz com que o autor
reconheça o papel do mercado como principal determinante do plano organizativo da unidade
econômica camponesa. Para o autor, é o mercado, em partes, que começa a determinar qual as
mercadorias que o camponês deve produzir, que faz com que o camponês empregue a sua
força de trabalho nos melhores mercados, que faz com que sejam produzidos as mercadorias
que lhe dão uma melhor remuneração da força de trabalho, etc. Em suma, é o avanço do
mercado que faz com que o balanço consumo/trabalho comece a ser desestruturado no interior
da família camponesa.
Um outro autor que é fundamental a compreensão da forma como o campesinato
organiza a sua reprodução e ao estudo do autoconsumo nas famílias é Eric Wolf o qual
analisa-se nesta próxima seção.
2.1.2 – Eric Wolf e a constituição dos fundos do campesinato.
No livro “Sociedades camponesas” Wolf (1976) sumariza alguns elementos a partir
dos quais pode-se entender e estudar o autoconsumo nas formas familiares. Para Eric Wolf
(1976: p. 16) os camponeses são cultivadores rurais cujos excedentes são transferidos para as
mãos de um grupo dominante que são os que governam e que utilizam os excedentes
camponeses para manterem seu nível de vida. Além dos grupos dominantes os excedentes
camponeses sustentariam os demais grupos sociais que por não serem cultivadores teriam que
ser alimentados pelo campesinato.
68
Wolf entende o campesinato como sendo uma unidade de trabalho e também de
consumo, coincidindo ai, em grande medida, com o a teoria da unidade econômica campesina
de Chayanov. Como o próprio Wolf (1976) explicou:
Sua propriedade tanto é uma unidade econômica como um lar.
A unidade camponesa não é, portanto, somente uma organização
produtiva formada por um determinado número de “mãos” prontas para o
trabalho nos campos; ela é também uma unidade de consumo, ou seja, ela tem
tanto “bocas” para alimentar quanto “mãos” para trabalhar (p. 28; grifos no
original).
Entretanto, Eric Wolf pressupõe algumas diferenças fundamentais em relação a
Chayanov. Em primeiro lugar, Wolf define os camponeses como sociedades não primitivas e
que produzem excedentes que lhes são apropriados pelos grupos que os dominam e que fazem
parte da sociedade mais ampla em que os camponeses estão inseridos. Neste sentido, Wolf se
diferencia de Chayanov já que o segundo concebia toda a sua teoria sobre a unidade
econômica campesina somente baseada no balanço trabalho/consumo. Em Wolf, os
camponeses não produzem visando somente o seu consumo. Em segundo lugar, Wolf entende
o campesinato como uma forma social que possui relações com outros grupos sociais e entre
os próprios grupos camponeses como no caso dos fundos para cerimoniais, o que não é tão
claramente perceptível em Chayanov que concebe o campesinato como avesso à integração
humana e as regras de conduta dos outros grupos sociais.
Eric Wolf entende que o campesinato estrutura a sua vida social através dos fundos (de
manutenção, cerimonial e de aluguel) que lhe servem segundo o tipo para as suas diversas
funções como as ligadas à subsistência, as funções econômicas e sociais. Para o autor, o
camponês deve ser entendido como um produtor de excedentes e que se integra a uma
sociedade mais ampla da qual geralmente é subordinado aos grupos dominantes. O camponês,
em sua estruturação da vida social, necessita de dois conjuntos de operações. Por um lado, ele
deve alimentar-se e, de outro, produzir excedentes para os diversos fundos. Para alimentar-se
ele precisa produzir o que Wolf (1976) chamou de mínimo calórico que [...] pode ser definido
como o consumo diário de calorias alimentares exigidos para compensar o desgaste de energia
que o homem despende em seu rendimento diário de trabalho (p. 17).
Contudo, o camponês não produz somente para alimentar-se, ele necessita manter os
meios de produção, ter relações sociais e também, devido a sua subordinação a sociedade
envolvente, transferir parte de seus excedentes para os grupos dominantes. Sob tais condições,
uma porção considerável do fundo de manutenção do camponês poderá tornar-se o fundo de
lucro de outrem (Wolf, 1976, p. 23). Assim, é que têm origem os demais fundos necessários à
69
sobrevivência e relacionamento do camponês com os demais grupos sociais. Um desses
fundos é o fundo de manutenção que pode ser definido como a produção de excedentes não
consumíveis (acima do mínimo calórico) que deve ser guardado pelo camponês para a
alimentação animal e plantio da próxima safra. Também pode ser conceituado como os
esforços e o tempo gasto para reparar e manter os meios de produção necessários ao processo
produtivo.
Outro fundo exigido ao camponês para que este tenha acesso às relações sociais,
principalmente, em comunidade e entre camponeses é o fundo cerimonial. Este exige que os
camponeses gerem certos excedentes para serem aplicados em, por exemplo, festas e
casamentos, ou seja, cerimoniais que o camponês e sua família participam. Segundo Wolf
(1976, p. 21) se os homens tem pretensões de participar de relações sociais, deverão trabalhar
para a criação de um fundo visando às despesas por tais atividades. Para acessar o fundo
cerimonial o camponês deve gerar excedentes que vão além do mínimo calórico e do fundo de
manutenção.
Além destes fundos, o camponês deve gerar através do seu trabalho o que Eric Wolf
chamou de fundo de aluguel que é a proporção de trabalho, bens ou dinheiro que o camponês
dá ou transfere aos grupos que o dominam e o subjugam. Em todos os lugares onde houver
alguém exercendo um poder superior de fato, ou domínio, sobre um cultivador, este deverá
produzir um fundo de aluguel (Wolf, 1976, p. 24).
Mas, segundo Wolf (1976) o camponês vivencia um dilema. Este seria descrito como
o camponês ter que, ao mesmo tempo, gerar o mínimo calórico e os respectivos fundos para a
sua manutenção e sobrevivência do grupo doméstico e, também, auferir os excedentes que são
apropriados pelo resto da sociedade envolvente e os grupos sociais que o dominam. Assim, o
camponês teria que manter um equilíbrio
51
entre as necessidades do grupo doméstico e as
exigências de fora da sua unidade de produção. Como formulou Wolf (1976):
As necessidades do camponês – as exigências para manter um mínimo
calórico, o fundo de manutenção e os fundos cerimoniais – entrarão
freqüentemente em choque com as exigências colocadas por quem está de
fora.
[...] Os camponeses serão obrigados a manter o equilíbrio entre suas próprias
necessidades e as exigências de fora, estando sujeitos às tensões provocadas
pela luta para manter um equilíbrio (p. 28).
51
Neste ponto Wolf (1976) também, de certa forma, se referencia em Chayanov (1974), pois a tese central de
Chayanov é a de que a unidade econômica camponesa deveria manter um equilíbrio ótimo entre a esfera da
produção (trabalho) com a esfera do consumo. Wolf somente diz que o equilíbrio deve ser entre as necessidades
do grupo doméstico e com relação aos de fora do grupo doméstico. Wolf dá um peso muito grande a dominação
do campesinato pelo restante da sociedade.
70
Eric Wolf também reconhece o papel da moderna agricultura e do mercado na
desagregação do “mundo” camponês. Para o mesmo, o campesinato tende a deixar de lado a
produção do mínimo calórico assim que a sociedade evolui e ocorre a consolidação das
técnicas modernas
52
de cultivo e criação, bem como o camponês começa a substituir os
cultivos plantando os destinados à venda e ao lucro, pois nas sociedades complexas o lucro é
que equivale aos diversos fundos em que o camponês tradicionalmente subsistia. Portanto,
pode-se inferir daí, que a produção de fundos no campesinato, segundo Wolf (1976), é um
traço marcante e fundante do camponês, pois sem os diversos fundos não existiria camponês
enquanto tal.
Tanto Chayanov como Wolf são autores importantes para o estudo do autoconsumo no
Alto Uruguai. Entretanto, o seu “arsenal” conceitual precisa de alguns ajustes já que hoje se
esta estudando os agricultores familiares e não mais o campesinato. É isso que se tenta fazer
na próxima seção.
2.1.3 – A produção para autoconsumo na agricultura familiar.
Em que pese a importante contribuição de Chayanov e de Eric Wolf para o estudo do
campesinato e do autoconsumo, as suas reflexões precisam sofrer alguns ajustes para serem
operacionalizáveis no contexto atual da dinâmica da agricultura familiar. Tenta-se, nesta
seção, executar tal empreendimento, bem como se lança mão de algumas idéias e conceitos de
outros autores visando avançar além do que os clássicos disseram sobre o assunto do
autoconsumo. Neste sentido, uma primeira assertiva importante a realizar é a de responder o
que diferencia camponeses ou, no caso estudado, os colonos dos agricultores familiares em
relação à produção de autoconsumo e a sua lógica de reprodução? Neste sentido, acha-se que
Chayanov e Wolf deram pistas importantes, mas não suficientes para tal empreendimento.
No caso dos colonos, a sua lógica era baseada eminentemente na reprodução da
família com a produção da sua alimentação através do autoprovisionamento. Não que estes
não produziam excedentes como formulou Wolf (1976). Contudo, a produção era voltada,
primeiramente, para suprir às necessidades da família, mas não se restringia somente a isso.
Os colonos desde os primeiros anos de trabalho nas colônias eram responsáveis pela geração
52
Para Wolf (1976) o uso de técnicas modernas de cultivo e criação designa o que ele chamou de ecótipos
neotécnicos. Wolf distingue entre ecótipos paleotécnicos e neotécnicos. O primeiro seria baseado no trabalho do
homem e do animal, ou seja, seria baseado nas fontes de energia e instrumentos da 1
a
Revolução Agrícola. O
segundo seria baseado pelos aperfeiçoamentos da ciência e na energia dos combustíveis fósseis. Poderíamos
chamá-lo de 2
a
Revolução Agrícola como é mais conhecida.
71
de excedentes produtivos diversos como o suíno, o milho, a banha, etc que, em muitos casos,
eram comercializados nas pequenas vilas, casas rurais de comércio, armazéns de secos e
molhados, e outros. Neste sentido, tal como enfatizado no capítulo anterior, os colonos
possuíam vários vínculos mercantis com a sociedade que os envolvia. Entretanto, estes
vínculos mercantis não chegavam a comprometer a sua autonomia e também não solapavam a
sua reprodução social, pois na maioria das vezes, estes eram baseados na personificação das
relações sociais de pessoa a pessoa como no caso dos vizinhos, comerciantes locais, parentes,
etc.
Neste sentido, em Chayanov (1974) não se encontram os elementos suficientes para tal
explicação. Este é um ponto controverso no autor, pois o mesmo considera que o camponês
somente exerce o trabalho produtivo até o nível onde a família atinge as necessidades de
consumo para o ano. Para o autor, a família camponesa não trabalha além das suas próprias
necessidades de consumo. Este tipo de lógica, para a agricultura familiar do Alto Uruguai, não
pode ser aceita, pois o agricultor familiar possui uma racionalidade que é determinada tanto
pelo mercado como pela dinâmica interna do seu estabelecimento. Neste sentido, atualmente
os agricultores familiares possuem uma produção que é muito maior que a necessária para
assegurar o balanço trabalho/consumo. A maioria dos agricultores familiares produz
quantidades apreciáveis de excedentes que são comercializados e fazem parte da quota de
mercadorias que excedem as necessidades do grupo doméstico.
O agricultor familiar também se diferencia do colono em termos do tipo de integração
ao mercado. Antes, os colonos possuíam apenas vínculos mercantis e a sua lógica da ação
visava, fundamentalmente, a manutenção da família onde o autoconsumo desempenhava um
papel importante. Em relação aos dias atuais, isso não acontece mais com os agricultores
familiares. Estes últimos são definidos não mais por seus vínculos mercantis personalizados,
mas sim pela mercantilização das suas relações sociais de produção e trabalho como formulou
Van der Ploeg (1990; 1992). Neste sentido, a agricultura familiar e a produção de
autoconsumo somente podem ser estudados e entendidos se compreender-se a sua dinâmica
do ponto de vista das relações que esta estabelece com os diferentes mercados com que esta
forma social de produção e trabalho estabelece contatos e transações. Deste modo, a
agricultura familiar de hoje não pode ser entendida pelo seu relativo isolamento social e
econômico que era inerente à lógica das “sociedades” camponesas de outrora, como a
compreendia Chayanov, mesmo que o autor não deixasse muito explícita esta questão.
Já com relação a Eric Wolf acha-se que este autor realizou avanços significativos em
relação a Chayanov. Neste sentido, um ponto a destacar em Wolf é a de conceber os
72
camponeses como produtores de excedentes e como transferidores destes para os grupos que
os dominam, o que em Chayanov não aparece tão nitidamente, pois no segundo autor o
campesinato é visto sob a lógica interna do balanço entre trabalho e consumo da família. Não
que os elementos internos da família como a sua diferenciação por sexo, idade e tamanho não
tenham valor na explicação sociológica dos fatos, mas sim por que não se pode conceber uma
família sobrevivendo na sociedade atual somente tendo por racionalidade a busca das suas
necessidades de consumo e alimentação.
Porém, por mais contraditório que pareça, é neste último ponto que reside a grande
contribuição teórica e histórica de Chayanov, no sentido que este autor é que relevou ao status
dos estudos rurais os elementos internos da família camponesa para o estudo do campesinato,
da agricultura familiar e, conseqüentemente, da produção de autoconsumo nos dias atuais.
Assim, a contribuição do autor é decisiva no que se refere à clareza com que o mesmo aborda
os elementos internos do campesinato como as relações de gênero, a diferenciação por sexo e
idade, o tamanho da família, os seus cálculos, etc que servem como elementos explicativos de
como o consumo doméstico de alimentos é diferenciado de família para família na agricultura
familiar de hoje.
Neste sentido, um outro autor que é importante ao estudo do autoconsumo é Jerzy
Tepicht por ter realizado reflexões que, em grande medida, se baseiam nos argumentos de
Chayanov sobre a lógica interna das unidades familiares. Sua contribuição reside no fato de
ter explicado a permanência do campesinato através da teoria das forças marginais ou não
transferíveis que o camponês possui no interior da unidade de produção (Abramovay, 1998).
Essas forças se constituem da força de trabalho de crianças, velhos e mulheres que não são
contados como trabalhadores plenos na unidade de produção e por isso são “marginais”. São
intransferíveis devido a poderem ser utilizadas somente na agricultura enquanto setor
econômico, pois se o camponês mudar de atividade econômica estas forças ficariam
imobilizadas e inutilizadas no interior do grupo familiar já que não poderiam ser usadas em
outra atividade.
Para o caso do Alto Uruguai, o entendimento dessas forças marginais ou não
transferíveis é essencial ao estudo do autoconsumo, pois é delas que provém uma grande parte
da força de trabalho necessária para se executar a produção de autoconsumo do grupo
doméstico. São os idosos, as crianças e as mulheres, em grande medida, que executam os
trabalhos de cultivo das pequenas plantações ou mesmo a criação de animais voltada ao
autoconsumo do grupo doméstico.
73
De outro modo, as reflexões de Eric Wolf também se tornam úteis para se estudar o
papel do autoconsumo no Alto Uruguai. Em primeiro lugar, porque o autoconsumo ou o
mínimo calórico como Wolf o descreveu ainda continua sendo uma característica tanto
camponesa como da agricultura familiar moderna. Segundo, porque a teoria do mínimo
calórico e dos diversos fundos necessários ao campesinato é também extensível ao agricultor
familiar do Alto Uruguai que guarda, em grande medida, traços do campesinato (colonos) de
outrora. E, em terceiro lugar, porque Wolf considera o campesinato integrado a sociedade que
o envolve e também o considera do ponto de vista de hoje ser o camponês um sujeito que é
pervertido pelo mercado e explorado pelos grupos que o dominam o que não aparece em
Chayanov (1974).
Deste modo, com estas adaptações conceituais e pontuais em torno destes autores
acha-se que é possível dar conta do estudo do autoconsumo sem deixar de lado estas reflexões
clássicas que estes autores desenvolveram, mesmo se estudando esta característica em
agricultores familiares que, como já se definiu anteriormente, possuem outra lógica de
reprodução social e alimentar nas sociedades atuais. Deste jeito, passa-se à análise do papel da
produção de autoprovisionamento alimentar para a agricultura familiar do Alto Uruguai que
será desenvolvida, em partes, neste capítulo e no capítulo 3. Na próxima seção, aborda-se o
autoconsumo na perspectiva da autonomia que este tipo de produção gera para os agricultores
familiares.
2.2 – O autoconsumo como estratégia de “produção” da autonomia.
Nesta seção, abordam-se os principais papéis que a produção de autoprovisionamento
alimentar possui no contexto da autonominização das famílias rurais. O autoconsumo tem
como papel fundamental à produção para garantir a reprodução social do grupo doméstico.
Sendo assim, ele desempenha “funções” que estão ligadas intrinsecamente ao grupo
doméstico e a unidade de produção e que são determinantes da autonomia reprodutiva a curto
e longo prazo junto às formas familiares.
A autonomia do agricultor familiar é constituída por uma dupla lógica
produtiva/reprodutiva relacionada ao autoconsumo e ao grupo doméstico. Por um lado, esta
lógica está assentada no grupo doméstico onde a alimentação produzida pela unidade de
produção é central. O agricultor familiar produz e consome a própria produção, ou seja, esta
74
segure diretamente da lavoura para a casa que é a unidade de consumo do grupo familiar
53
.
Por outro lado, o grupo doméstico transaciona no mercado, de vários produtos agrícolas e
não-agrícolas, para conseguir comprar o necessário a sua alimentação e consumo. Isso é
necessário devido a não produção da totalidade dos produtos e mercadorias consumidas, a
sazonalidade da produção agrícola, a não possibilidade de armazenamento da alguns gêneros
alimentares, a imprevistos climáticos (secas, enxurradas, geadas, etc) que afetam a produção.
O autoconsumo familiar gera a autonomia produtiva e reprodutiva do grupo
doméstico
54
. A produção de autoconsumo gera a autonomia do agricultor familiar por manter
interna a unidade produtiva a principal esfera responsável pela reprodução do grupo
doméstico, ou seja, o autoconsumo, fazendo com que o grupo doméstico dependa cada vez
menos das condições externas a unidade de produção para se reproduzir socialmente. É
através da produção de autoconsumo que o agricultor familiar não depende, totalmente, do
ambiente social e econômico em que está inserido e, principalmente, não depende das suas
constantes flutuações das condições de troca como demonstram os trechos das entrevistas
abaixo. Nota-se que os informantes elaboram a definição da importância da produção de
autoconsumo sempre relacionado esta com o contexto social e econômico, usando para isso
termos como “independência” e “auto-sustentável” para definir o papel que o
autoprovisionamento tem no sentido de autonomizar a reprodução das famílias.
Então isso cria uma estrutura de independência dessas famílias, elas se tornam
independentes, elas vão produzir o seu próprio alimento (Entrevista 6, 2004,
C. A., Representante Sindical, MPA).
Isso nós damos uma grande importância por que o agricultor não depende de
fatores externos a propriedade. Ele está sendo auto-sustentável, a propriedade
é auto-sustentável [...]. Para nós isso é fundamental por que tu trabalha com o
próprio desenvolvimento dentro da propriedade sem depender de fatores
externos, de compras (Entrevista 20, 2004, M. C., Técnico em Agropecuária,
SAM).
A produção de autoconsumo gera a autonomia produtiva e reprodutiva do grupo
doméstico devido a este depender muito menos do mercado como demonstra os trecho das
entrevistas acima. Isso é possível devido à produção de autoconsumo seguir da lavoura para a
casa e desta para a mesa do agricultor assegurando, em grande medida, a sua alimentação. Ao
contrário das lavouras ditas comerciais, onde o agricultor familiar teria que vender a produção
53
Como formulou Garcia Jr. (1983): A casa representa a unidade de consumo. Portanto, é o roçado que dá as
condições mesmas de existência da casa. Se as atividades do roçado geram produtos, as atividades da casa se
ligam às condições de seu consumo, de sua queima (p. 111; grifos no original).
54
Autonomia, neste contexto, se refere às possibilidades de geração e produção das condições materiais de
produção e de reprodução social pelo próprio agricultor familiar. Ou, como formularam Woortmann e
75
num determinado mercado para com a remuneração obtida fazer frente ao “capital constante”
(objetos e instrumentos de trabalho) e ao “capital variável” (manutenção e autoconsumo do
grupo familiar). Neste caso, o agricultor familiar do Alto Uruguai depende das flutuações e
das condições de troca do mercado, não dispondo de certezas sobre a remuneração que vai
obter com a venda da produção, os preços de venda, as condições de troca, a rentabilidade, etc
ficando a mercê destas condições para saber qual o “excedente” monetário que terá para fazer
frente ao consumo familiar através da compra deste (Garcia Jr., 1983, p. 128).
A produção de autoconsumo gera autonomia do agricultor familiar pelo princípio da
alternatividade
55
produtiva como formulou Garcia Jr. (1983; 1989) e pelo da flexibilidade
56
tal qual esboçou Herédia (1979). A alternatividade pode ser definida como a possibilidade da
produção de autoconsumo ser vendida ou consumida pelo grupo doméstico dependendo das
condições familiares (número de membros trabalhadores e consumidores estratificados por
sexo e idade, bem como, pelas condições sociais de reprodução em que o grupo doméstico se
encontra) e das condições de troca desta no mercado. Como explicou Garcia Jr. (1983):
Se os preços dos produtos estão altos, o pequeno produtor pode vender a sua
produção, guardando o dinheiro para as épocas em que baixarem os preços.
Consumirá de sua própria produção apenas o necessário na época em que está
vendendo. Se os preços estão baixos e tiver dinheiro, o pequeno produtor
adquire o produto necessário ao consumo familiar. Com os preços baixos,
caso não tenha dinheiro, lança mão do próprio produto na obtenção do
necessário ao consumo familiar. Assim, tanto a comercialização da própria
produção quanto ao autoconsumo destes produtos levam em consideração a
flutuação dos preços de mercado, não havendo nenhuma falta de sensibilidade
a estas flutuações, mas uma forma própria de fazer face a elas (p. 129)
57
.
A possibilidade de venda de parte da produção tanto de autoconsumo, pelo princípio
da alternatividade, como da produção comercial da unidade produtiva é um modo de o
agricultor familiar fazer frente a sazonalidade da produção, a perecibilidade dos produtos e a
não possibilidade de armazenamento da totalidade dos produtos na época de colheita dando-
Woortmann (1997) a capacidade de manter internamente a unidade de produção os chamados supostos da
produção.
55
Alternatividade entre (os produtos) serem consumidos diretamente, e assim atender às necessidades
domésticas de consumo, e serem vendidos, quando a renda monetária que proporcionam permite adquirir outros
produtos também de consumo doméstico, mas que não podem ser produzidos pelo próprio grupo doméstico,
como o sal, o açúcar, o querosene, etc (Garcia Jr., 1989, p. 117).
56
A noção de flexibilidade de Beatriz Herédia (1979) é semelhante à de alternatividade formulada por Garcia Jr.
(1983).
57
Para o caso do Nordeste a alternatividade é mais explícita para o caso da mandioca que pode ser tanto
consumida pelo grupo doméstico na forma inatura, pode ainda ser armazenada sob o solo de um ano para o outro
para o consumo ou para fazer a farinha, alimento típico no Nordeste. Pode ainda, ser utilizada para fazer farinha
que pode ser consumida ou vendida para fazer frente a outros gastos ou necessidades de consumo, conforme
demonstraram Garcia Jr. (1983; 1989) e Herédia (1979).
76
lhe autonomia nas operações de consumo ou de venda da produção
58
. O agricultor familiar
realiza um “cálculo” (Garcia Jr., 1989; Herédia, 1979) no qual determina, aproximadamente,
o montante da produção que deve ser plantada para consumo do grupo doméstico e para a
venda dos diferentes produtos
59
. Após a colheita o cálculo incide sobre as percentagens e
quantidades que serão autoconsumidas de cada produto, as quantidades que serão
armazenadas e, finalmente, as quantidades que serão vendidas levando-se em conta sempre à
satisfação das necessidades alimentares e reprodutivas do grupo doméstico e os preços de
venda dos produtos nas praças de mercado.
O autoconsumo do grupo doméstico deve ser fornecido para o período de todo o ano,
mas nem sempre é possível o armazenamento da totalidade da produção para o ano todo,
devido alguns produtos serem produzidos somente em algumas épocas (sazonalidade e
estacionalidade) e devido a perecibilidade de outros. A saída, então, encontrada pelo
agricultor familiar é a de realizar o valor de uma parte da produção no mercado, de armazenar
o necessário e possível e, de autoconsumir a produção momentânea e estacional. Com a
realização do valor de parte da produção que não pode ser armazenada e autoconsumida
naquele momento o agricultor familiar pode comprar o consumo nos demais momentos do
ano possuindo, assim, uma margem de manobra o que lhe dá um consumo diferido
60
durante
todo o ano como formulou Garcia Jr. (1983). Esta operação do agricultor familiar lhe garante
condições de fazer frente ao consumo necessário do grupo doméstico tanto pelo lado do
58
O armazenamento de alguns produtos pode ser realizado tanto na lavoura como é a operação de dobra do
milho onde se inverte a haste da planta para que não entre umidade das chuvas e deteriore o produto. No caso da
mandioca, já citada, e da batata-doce o armazenamento se dá sob o próprio solo. No caso dos demais produtos
não perecíveis no médio-longo prazo o seu armazenamento se dá através de seu “ensacamento” ou a granel em
galpões, silos e outros locais fechados como “tuias” como era realizado no SAC. Neste último caso citado
podemos enumerar os seguintes produtos: o arroz, o feijão, o amendoim, o milho-pipoca, a batatinha (para
consumo e para semente), etc.
59
Este cálculo subjetivo do agricultor familiar também informa as possibilidades de criação, consumo e venda
dos animais da unidade de produção que são também formas de “armazenamento”, ou melhor, formas de
“acumulação” de valor que propiciam e seguem também o princípio da alternatividade. Ou seja, possuem a
capacidade de serem vendidos ou autoconsumidos pelo grupo doméstico dependendo das condições de
reprodução social e dos preços que atingem no mercado. Para ver esta lógica do agricultor familiar Nordestino
ver: Garcia (1983; 1989) e Herédia (1979).
60
Segundo Garcia (1983) o consumo diferido (representa) um bem que é vendido por um lado; ou o consumo de
um outro bem necessário ao gasto, por outro. Nestes casos, o mais do que o gasto é uma forma própria de
ajustamento entre o ciclo de produção da unidade doméstica e a periodicidade do consumo familiar. Ou então,
uma forma própria de ajustamento entre o uso dos “produtos de subsistência” e a compra daqueles bens de que
se é consumidor, mas de que não se é produtor (p. 142; grifos no original).
Note que Afrânio Garcia (1983) usa a designação da categoria “subsistência” para designar não a
produção de autoconsumo, mas sim, a reprodução social do agricultor familiar, como ele mesmo explica: (o uso
do termo “subsistência” é) para tentar voltar à acepção clássica, sobretudo em Marx e Ricardo, isto é, aquilo que
é socialmente necessário para a reprodução física e social do trabalhador e de sua família. Subsistência não é,
portanto, um dado, umnimo abaixo do qual a existência física não seria possível, mas uma categoria social
que permite estabelecer que padrões e normas de reprodução são socialmente aceitáveis; por conseguinte um
77
autoprovisionamento alimentar, como pelo lado da compra do que lhe falta ao consumo.
Como formulou a questão Garcia Jr. (1983):
A possibilidade de realização de valor de parte da produção no mercado
permite diminuir estes riscos, diminuir também o trabalho necessário para
contrarestar a perecibilidade dos produtos a para propiciar a estocagem
necessária. Em suma, o dinheiro obtido com a venda possibilita um consumo
diferido, que permite enfrentar as flutuações de produção e diminuir a volume
de trabalho socialmente necessário. Portanto, a compra e venda de produtos é
uma forma de fazer a mediação entre o roçado e a casa, mesmo sem
considerar aqueles produtos necessários à casa que não são fornecidos pela
unidade doméstica (p. 137; grifos no original).
Assim, pode-se dizer, que o agricultor familiar possui uma dupla lógica de reprodução
social aliada à produção e compra do (auto)consumo. Como agricultor ele produz o
autoconsumo, ou seja, os produtos de lavoura e da criação animal que por serem consumidos
pela família e por não passam pelos circuitos de mercado possuem apenas valores de uso.
Quanto ao relacionamento com o mercado este pode ser através da venda da produção ou da
compra de mercadorias agrícolas e não-agrícolas, incluindo-se ai o consumo alimentar. Na
esfera da produção o agricultor familiar pode vender a produção comercial e daí obter um
rendimento que o permite dar conta das necessidades de consumo do grupo doméstico. Por
este mecanismo ele está vendendo mercadorias agrícolas que possuem um valor de troca
mercantil. Neste caso, ele é também um consumidor, pois compra, a preços de mercado, o
consumo necessário à alimentação e manutenção da família
61
.
Além de gerar uma maior independência e autonomia das famílias rurais do Alto
Uruguai, a produção de autoconsumo também tem um papel significativo nos processos de
reciprocidade e de socialização entre as famílias rurais. Estas “funções” do
autoprovisionamento alimentar nas famílias são analisadas na próxima seção.
2.3 – Autoconsumo e sociabilidade.
conceito que se move de sistema para sistema e que está tão submetido às leis de um sistema determinado como
qualquer outro (p. 16; grifos no original).
61
É por esta dupla lógica do agricultor familiar que não se aceita a designação de “agricultura de subsistência”
ou de agricultor totalmente mercantilizado e integrado ao mercado. O termo “agricultura de subsistência” passa a
idéia de um tipo social de agricultor onde a sua produção seria somente utilizada para fazer frente às
necessidades domésticas do grupo familiar, não passando pelas transações mercantis, o que se coloca, desde já,
como falso no caso dos agricultores familiares do Alto Uruguai, pois estes possuem a lógica da produção do
autoconsumo, mas também, por outro lado, a lógica do mercado no que se refere a produção dita comercial. Não
existe, atualmente, uma “agricultura de subsistência” somente, bem como, não existe um agricultor familiar
totalmente mercantilizado do ponto de vista social e econômico. O que existe é um agricultor familiar que possui
sua lógica de produção e reprodução social assentada no mercado e também, ao mesmo tempo, na produção de
autoconsumo como duas esferas integradas dialeticamente e sobrepostas à unidade de produção e ao grupo
doméstico determinando e apontando os “caminhos” que a reprodução social do agricultor familiar vai seguir.
78
O autoconsumo além de ensejar uma maior autonominização das famílias frente ao
contexto social e econômico fundada na produção, nos seus valores sociais próprios e na
lógica de reprodução dos agricultores, também tem uma outra “função” entre os colonos de
origem: a de socializá-los. A sociabilidade refere-se ao processo pelo qual os indivíduos, as
famílias e os grupos sociais se relacionam material e simbolicamente entre si. A sociabilidade
encerra razões “práticas” e simbólicas de ser e de agir. O autoconsumo é uma das dimensões
das formas familiares que é responsável, em grande parte, pela geração de processos de
sociabilidade e da reciprocidade entre os agricultores
62
.
A necessidade da se socializar emerge inicialmente devido o isolamento que os
colonos eram deixados em meio à mata densa e cerrada. A única comunicação ou meio de se
conversar com alguém de fora da família, inicialmente, era se indo até a casa do vizinho mais
próximo. Assim, a forma de se sociabilizar era fazendo uma “visita” a casas dos outros
vizinhos de picada. Com a abertura da mata e a constituição das primeiras comunidades a
sociabilidade familiar passa para a esfera pública da comunidade, mas, ainda assim, se
mantém na esfera das famílias através das “visitas”.
O interessante deste processo é que as transformações sociais, econômicas e
produtivas que transcorreram a partir dos anos de 1970, no Alto Uruguai, não solaparam
totalmente estes tipos de costumes ligados ao modo de vida colonial. Neste sentido, a esfera
da sociabilidade permanece, até hoje, como uma dimensão importante da reprodução moral e
cultural das formas familiares de produção e trabalho no meio rural, malgrado todas as
transformações técnicas-produtivas que se gestaram a partir da assim chamada modernização
agrícola. É claro que a sua intensidade foi enormemente diminuída após estas mudanças, mas
a sociabilidade continua sendo um fator importante de entendimento da cultura, das relações
sociais e dos valores morais da agricultura familiar.
O autoconsumo é um engendrante da sociabilidade familiar na medida em que este era
um meio das famílias se socializarem e se relacionarem. O autoconsumo era motivo de
sociabilidade, pois o mesmo encerrava razões “práticas” e simbólicas do ser colono. O plano
prático é entendido como as necessidades em torno da produção e reprodução que faziam com
que o colono se socializasse. O plano simbólico é permeado pelos valores, pela cultura e pelo
modo de vida dos colonos e suas relações com as demais famílias. Nesse sentido, o colono
não é só uma ordem econômica, é também uma ordem moral que possui certos valores de
62
Antonio Candido (1987) também observou que a produção de autoconsumo era responsável por gerar trocas e
a socialização entre os caipiras paulistas.
79
campesinidade como formulou Woortmann (1990) que lhe são guias de relacionamento e
comportamento social frente aos outros.
Um destes valores é a reciprocidade. Os colonos se socializavam em torno da troca de
produtos, animais e sementes ligadas à esfera do autoconsumo, bem como, na doação de
alimentos aos vizinhos mais próximos. Um exemplo disso era o do abate de uma rês ou de
porcos onde os vizinhos mais próximos eram chamados a ajudar e, em troca da ajuda,
recebiam uma parte do animal para si. Quando os outros vizinhos abatiam qualquer animal
retribuíam a doação da mesma forma. Nesta troca não interessava o tamanho ou a quantidade
de carne recebida, mas sim, que a família “que carneava” não esquecesse de nenhum dos
vizinhos. Se isso acontecesse, era motivo para discórdias e para se “falar mal”. Porém, o
processo de matança do animal não é somente trabalho, é também o lugar de se falar de
negócios, dos outros vizinhos, de acontecimentos recentes da comunidade, da vida, dos
problemas, etc. É um espaço onde ocorre à socialização e o trabalho num processo único. Este
papel da produção de autoconsumo é demonstrado no trecho de entrevista com um agrônomo
da Emater.
Ela proporciona uma integração maior por que se sabe bem que na produção
de autoconsumo as famílias nas comunidades acabam trocando estes gêneros
alimentícios que são produzidos na propriedade. Então gera um diálogo
maior, uma maior socialização das pessoas na comunidade, uma integração
maior [...] (Entrevista 12, 2004, G. S., Engenheiro Agrônomo, Emater).
Um outro caso onde o autoconsumo é gerador da sociabilidade é o das trocas de
produtos ou animais entre vizinhas, parentes e “comadres” é o caso da troca de ovos de
galinhas caipiras entre as mulheres. Nesse caso também existem razões “práticas” e
simbólicas no processo de troca. No plano prático e produtivo a troca é para “misturar as
raças” das galinhas que já estão muito “afinadas de sangue”. No plano simbólico é a forma de
se fazer uma “visita”, de saber dos últimos acontecimentos, ou mesmo, para se conversar
sobre a vida, e, sobretudo sobre a vida dos outros se fazendo a chamada “fofoca” muito
comum nas regiões coloniais até hoje.
Também é o caso da troca de sementes de pipoca, de amendoim, de ramas de
mandioca, de batatas, etc. Ocorre de uma família “ter perdido a semente” de uma determinada
planta de autoconsumo e que a família vizinha a possua. Neste caso, pede-se “emprestado”
um pouco para se reproduzir, sendo o empréstimo nem sempre passível de algum tipo de
pagamento. Isso é possível devido às relações de sociabilidade que permitem que as famílias
transacionem produtos para autoconsumo sem trocarem mercadorias com valor real de troca.
Ou, pode-se trocar um tipo de semente ou animal por outro, numa forma de escambo onde as
80
necessidades práticas de determinado produto ou animal é que guiam a troca. É o caso da
comida como formulou Woortmann (1990) que no contexto da reciprocidade e sociabilidade
nas formas familiares não possui valor de troca:
O elemento central é a comida. Ela tem um valor grande demais para ser
mercadoria. É por seu valor de uso que ela tem valor de troca no contexto da
reciprocidade, onde o dinheiro nenhum valor de troca tem porque pertence ao
domínio do mercado. No campo da reciprocidade [...] quanto maior o valor de
uso, tanto maior o valor de troca que possui a coisa trocada (p. 58-59).
Em outros casos o alimento pode ser usado para pagamento de dias de trabalho. É o
caso muitas vezes das “miudezas” de suínos e bovinos principalmente que são “dadas” a um
agricultor “mais fraco” para que este dispense uma certa quantidade de dias de trabalho para
“pagar” pelo alimento recebido. Além de trabalho este tipo de “negociação” envolve uma
socialização das famílias envolvidas, pois sempre que se abater um animal se oferecerá as
“miudezas” em trocas de “dias de serviço” numa troca não mercantil e simbólica, onde quem
“dá” as miudezas parece estar ajudando a quem a recebe
63
. Da mesma forma que quem a
recebe fica como que comprometido com o doador em lhe “pagar” a mesma com os dias de
serviço que serão dispendidos futuramente.
Fonte: Museu Municipal de Caxias do Sul/Arquivo Histórico Municipal João Sapadari Adami (1928).
Figura 1: Socialização entre colonos gerada pela produção de autoconsumo.
63
Esse processo é idêntico ao relatado por Woortmann (1990) onde os camponeses em trabalho de mutirão na
Amazônia (ajuri) pagavam o dia de serviço dos ajudantes com comida.
81
Em algumas formas de sociabilidade o consumo de alimentos e bebidas entre os
colonos era central como demonstra a Figura 1. É o caso do “cerão” ou do “filó” dentre os
colonos, principalmente, os italianos. Estes consistiam em uma visita a casa de outra família
geralmente à noite com o objetivo de conversar, “se visitar”, ou mesmo fazer algum negócio
ou tratativa de trabalho. Neste caso, a família receptora da visita sempre tem que servir
alguma comida ou bebida para os visitantes como forma de “agrado” e gratidão. É o caso
analisado por Tavares dos Santos (1984) entre colonos italianos
64
:
Se é no inverno, gosto de seron... Seron é quando a gente vai numa casa no
inverno, como batata, pinhon, amendoim e vinho [...] (p. 159).
Em muitos casos é através de uma destas formas de sociabilidade através de conversas
que surgem informações sobre como plantar determinada espécie, qual o “tipo” de cultivo é
melhor, produz mais, ou mesmo sobre as técnicas de manejo mais adequadas. Deste modo, se
por um lado à produção de autoconsumo engendra a sociabilidade, por outro, as formas de
sociabilidade também fazem surgir novos conhecimentos relacionados à produção de
autoconsumo.
Os mutirões coletivos também encerravam a sociabilidade através do trabalho em
grupo dos vizinhos nos períodos de maior “precisão”. Ele encerra também a sociabilidade
através da alimentação na “hora do almoço”, pois é neste momento que o grupo de trabalho
fica junto em sua totalidade. Além de almoçar se tira também uns “dedos de proza” sobre os
mais variados assuntos. A qualidade e a quantidade dos alimentos dispostos à mesa na hora do
almoço é de fundamental importância, pois indica se a esposa é “caprichosa” e se o colono é
um “colono forte”. Neste caso, se ajudar o vizinho é o motivo central do mutirão, este não é o
único. É a maneira também de se socializar com “os compadres” e de botar a conversa em dia.
Para outros, o atrativo ao trabalho é o já sabido churrasco e a bebida que serão servidos no
almoço ou depois do término dos trabalhos
65
.
Deste modo, pode-se dizer que a sociabilidade, a reciprocidade e o autoconsumo são
elementos centrais ao trabalho produtivo e na lógica reprodutiva das formas familiares, pois
64
Outro caso em que é recorrente o consumo de alimentos e bebidas eram as festas de aniversário na casa do
próprio aniversariante. Esta era planejada antecipadamente pelos vizinhos e pela mulher do aniversariante.
Geralmente “se roubava” deste na noite anterior ao aniversário um pequeno animal que geralmente era um suíno,
com o consentimento da mulher, para que fosse abatido e preparado para os festejos. As famílias vinham à noite
em grupo a casa do aniversariante que de nada sabia e era surpreendido com cantigas, bebidas e os parabéns dos
vizinhos. Neste caso os alimentos de autoconsumo e as bebidas coloniais como os vinhos eram que davam o tom
da festa na colônia.
65
É o caso, por exemplo, do final das colheitas “a mão” de soja nos anos 70 e 80, onde o término destas e dos
trabalhos eram comemorados com uma grande festa em família e a todos que haviam ajudado a mesma nos
serviços da colheita como forma de retribuição pelos esforços desprendidos.
82
encerra muito mais do que “ajudas” em trabalhos e trocas, eles são também simbólicos, cheios
de significados e engendram relações sociais dos mais variados tipos dentre os colonos. Como
se formulou acima, o autoconsumo e a sociabilidade se possuem, por um lado, razões
“práticas” relacionadas ao processo produtivo, por outro, guardam um papel muito variado em
termos de construções simbólicas e de relações sociais entre famílias e destas com a
comunidade. Guardam muitos dos valores da campesinidade que definem o campesinato
(colonos) como uma ordem que é mais que econômica, é também uma ordem moral como se
referiu Woortmann (1990).
O autoprovisionamento alimentar dos agricultores familiares do Alto Uruguai também
possui outros papéis em sua reprodução social. É o caso da identidade sócio-profissional dos
mesmos que está diretamente fundada com a produção dos próprios alimentos consumidos
pela família. É, também, o caso do conhecimento e do saber-fazer dos agricultores mais
experientes que é repassado aos jovens de forma a reproduzir muito mais do que aspectos
produtivos, mas também a forma como estes se relacionam e entendem a natureza, os
sistemas de produção e o meio ambiente em que vivem. São estes temas que se analisa, na
seqüência.
2.4 – Autoconsumo, identidade e saber-fazer nas formas sociais familiares.
O autoconsumo não é somente a produção através do trabalho do agricultor aplicado a
um processo produtivo no afã de obter os elementos e produtos necessários à alimentação e
manutenção do grupo doméstico. O trabalho do agricultor é produtivo, mas é também
simbólico e repleto de significações e sentidos que lhe são fundamentais a construção da sua
identidade social enquanto agricultor familiar. A sua identidade, por sua vez, está ligada ao
ser colono, ao trabalho laborioso aplicado no processo produtivo, ao apego a terra enquanto
patrimônio, a família, ao saber-fazer histórico transmitido de geração em geração que embasa
a produção de autoconsumo enquanto produção alimentar e simbólica das relações sociais.
Assim, a produção de autoconsumo longe de ser apenas mais uma mercadoria produzida pelo
colono, é a produção e reprodução de relações sociais e expressa um saber acumulado e
transmitido na socialização dos filhos.
Os agricultores possuem a sua identidade assentada em vários atributos distintos que
os ligam com a produção de autoconsumo. Um primeiro atributo que os ligava fortemente a
produção de autoconsumo é o do trabalho laborioso dos colonos pioneiros (Seyferth, 1994;
Renk, 2000). O desbravar o mato, amansá-lo e a constituição das primeiras lavouras de feijão,
83
milho, batata, mandioca, etc para o sustento da família era o que identificava o colono. Neste
primeiro momento o colono é identificado como o único com qualidades de trabalho superior
aos demais membros da população das colônias em condições de “abrir” e “por abaixo” a
mata e daí extrair o sustento da sua família. Nesse caso, a sua superioridade laborial era
devido à etnia a ele associada, germânica ou italiana
66
. A idéia de pioneirismo está acoplada à
de conquistador, de desbravador, aquele que venceu a natureza inóspita e com seu trabalho
plantou o progresso, que só pode ser associado aos colonos, como uma de suas virtudes
étnicas (Renk, 2000, p. 164)
67
. Além do trabalho laborioso para desbravar a mata e instalar as
primeiras lavouras para autoconsumo o colono também passava por privações alimentares
constantes o que o identificava cada vês mais como um personagem de sofrimento, sem
recursos e que suportava adversidades e carências alimentares. Como formulou um dos
informantes de Renk (2000, p. 168): nós “ficando até quarenta dias sem comer pão”.
Com o desenvolvimento das colônias a identidade ligada ao trabalho pesado aplicado à
produção para autoconsumo se modifica. Das carências alimentares dos anos iniciais as
colônias passam a se identificarem como auto-suficientes em alimentos para suas famílias.
Isso se reflete em comparação com “os da cidade” que “precisam comprar tudo” (Renk, 2000,
p. 169). Nas colônias, ao contrário destes, a auto-suficiência se baseia nas propriedades
coloniais policultoras que produziam um pouco de tudo. Sua produção ia desde artigos
simples da alimentação como as verduras e frutas até a carne de suíno, aves ou gado,
passando pelo feijão, milho, batata, mandioca dentre outros.
A identidade do colono é também acionada com relação à terra. Esta é um patrimônio
familiar que o colono administra e cultiva durante toda a sua existência e que, para a maioria
dos colonos do sul, deve ser repassada a um dos membros (por um padrão de herança variável
em cada caso) do grupo familiar para que permaneça indiviso
68
. A terra para o colono não é
simplesmente mais um “fator” de produção, ela é, sobretudo o local onde ele nasceu, cresceu
e também, em alguns casos, onde constituiu a sua família. A terra é um ente central na lógica
produtiva do colono, pois é através dela que este retira o “sustento” da família como verificou
66
Os colonos se auto-intitulavam desbravadores e os únicos a possuírem as verdadeiras capacidades para o
trabalho na agricultura. Definiam-se em contraposição aos caboclos, luso-brasileiros e indígenas, pois estes eram
“preguiçosos”, “sem vontade” e “nunca iriam prosperar”. Para uma melhor exposição desta identidade no
período colonial ver Seyferth (1994) e Renk (2000).
67
Ressalta-se que a superioridade laborial e as demais distinções realizadas entre colonos e os indígenas, luso-
brasileiros, caboclos, etc é baseada em estudos anteriores que demonstraram como os colonos se identificavam e
se viam frente os demais grupos sociais. Estas afirmações são tomadas “emprestadas” de outros autores e não
necessariamente expressam a opinião do autor.
68
Para ver como é o padrão de herança entre colonos alemães no sul consultar Woortmann (1995) e Arlene Renk
(2000).
84
Tavares dos Santos (1984). É através dela que é possível ao colono possuir e manter uma
certa autonomia no processo produtivo. Sem a propriedade da terra o colono é como que um
desenraizado social, pois não conseguirá produzir nem para o autoconsumo alimentar da
família.
Como verificou Tavares dos Santos (1984) entre colonos ítalo-brasileiros a terra é
usada pelos colonos, principalmente, para sustentar a família. Como se referiu um
entrevistado seu: “se não tivesse a terá non posso sustentá a família” (p. 137) numa alusão que
é da terra que brota a produção de autoconsumo que alimenta a família. Assim, a expressão
“sustentá” quer dizer que a terra é o local de onde provém o alimento para o grupo doméstico.
Ela tem assim, em primazia, uma “função” social antes de ser um “fator” de produção, um
ativo fundiário ou simplesmente uma base para o desenvolvimento econômico e agrícola
69
.
Mas o colono, como estratégia de sucessão e herança, não transmitia apenas a terra
enquanto patrimônio indiviso a um dos filhos. O patrimônio que o colono transmite, de
geração a geração aos seus filhos, não é somente um patrimônio material e produtivo, mas é
também um patrimônio simbólico, cultural e uma matriz ou sistema de conhecimentos como
formulou Suarez et all (1983) aplicados à prática agrícola e a produção dos alimentos para o
grupo familiar. Deste modo, o colono repassa um saber-fazer acumulado e que foi recebido
do seu pai, irmão ou avó para todos os filhos socializando-os com os elementos da natureza e
com o trabalho agrícola. Como formularam Woortmann e Woortmann (1997):
Para se reproduzirem, os camponeses produzem mercadorias, mas a
produção de mercadorias é antecedida logicamente pela produção de bens, e
esta, por sua vez, é antecedida pela produção-reprodução de bens simbólicos
que constituem o corpo do saber (p. 13; grifos meus).
Assim, o processo produtivo de alimentos no caso do agricultor só é possível de ser
realizado se, anteriormente a este, o mesmo possuir o corpo do saber que o embasa e informa.
De nada adianta aos agricultores familiares a posse dos meios de produção e do objeto de
produção (a terra) se estes não tiverem o saber-fazer que fornece o conhecimento necessário
para desenvolver o processo de produção dos alimentos. O papel do conhecimento aplicado
na produção de autconsumo pelos agricultores pode ser exemplificado pelo relato de uma
liderança do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) que chega a formular que o
agricultor familiar é um “doutor” em sua profissão se referindo a relevância que possui o
corpo do saber no caso da obtenção da produção de autoconsumo.
69
O termo fator de produção provém da terminologia neoclássica, que classifica a terra, o capital e a mão-de-
obra como os três principais fatores de produção no caso da agricultura.
85
[...] o pequeno agricultor ele é um “doutor” na sua profissão, ele sabe, ele
conhece o clima, ele sabe a época de plantar o produto, ele tem um
conhecimento, uma história, uma cultura que vem de centenas de anos, que
vem sendo passada de gerações em gerações [...]. Conhece a função de cada
planta, a sua adaptação, o período de cultivo e isso é importante (Entrevista 6,
2004, C. A., Representante Sindical, MPA).
O processo de trabalho nas formas familiares é executado tendo de um lado as forças
produtivas
70
e de outro as relações sociais de produção
71
mediados pelo sistema de
conhecimento aplicado ao processo produtivo. Porém, é o saber que permite usá-los e a
cultura que lhes dá significado, inclusive para mais além da materialidade ou da
instrumentalidade prática do trabalho (Woortmann e Woortmann, 1997, p. 10). O saber exerce
nas relações sociais de produção um trabalho que pode ser formulado como o trabalho do
saber no sentido de um método de ensinamento e pedagogia que aplicado nos diferentes
elementos da família, diferenciados por sexo e idade, são simultaneamente socializados com o
sistema de conhecimentos em torno do trabalho agrícola e da produção de alimentos para o
autoconsumo. É o saber que medeia a relação entre as forças produtivas e as relações sociais
de produção no interior do grupo familiar.
O saber informando o processo produtivo e as relações sociais no grupo doméstico é
um princípio em torno do qual se organiza a identidade das formas familiares de produção e
trabalho. A transmissão do saber aplicado à produção de autoconsumo entre os agricultores
envolve relações de hierarquia, de gênero e de idade no grupo doméstico. É só a partir destas
variáveis que se pode entendê-lo e estudá-lo.
Como relação de hierarquia o saber é tido no pai de família. É este quem governa a
família como se referiram Woortmann e Woortmann (1997), porque ele é que comanda o
processo produtivo, pois é quem detém o saber e nesse caso, o saber é poder no interior do
grupo familiar. Como formulou Woortmann (1983) o papel dos mais velhos é central nas
formas familiares, mesmo em situações em que o pai já possui idade avançada e sem
condições físicas ideais para o trabalho este consegue governar o processo produtivo e a
família devido a sua “experiência” de vida acumulada. Mesmo sendo uma “força marginal”
na unidade de produção no sentido em que formulou Jerzy Tepicht este se impõe pelo seu
saber.
70
A noção de forças produtivas, tal como é utilizada pela sociologia, significa o conjunto de fatores de produção:
recursos disponíveis, homens, e instrumentos de trabalho. Os elementos desse conjunto se combinam de maneira
específica, em cada momento histórico de uma sociedade, para produzir o que ela necessita (Woortmann e
Woortmann, 1997, p. 10).
71
Segundo Woortmann e Woortmann (1997, p. 10) a noção de relações de produção refere-se às funções
preenchidas por indivíduos e grupos no processo de produção e no controle dos fatores e meios de produção.
86
É igualmente o pai de família que ensina, educa e transmite o saber-fazer aos filhos
homens principalmente. O pai de família é que decide as tarefas a fazer, como, quem as
executa e quando um dos filhos já está apto a ser o “novo” chefe e assumir as
responsabilidades sobre a produção. O pai de família “avalia” quando o filho está se tornando
“força plena” e quando ele pode assumir a frente do processo produtivo. Por outro lado, não é
a idade e nem a força física que transformam um filho em força plena. É saber como e por que
fazer. Nesse sentido, não é a idade que faz o homem pleno ou a força plena, mas é o saber
pleno que faz a idade enquanto constructo social (Woortmann e Woortmann, 1997, p. 12;
grifos meus).
O início da socialização dos filhos no processo de trabalho entre os colonos se dá
desde pequenos quando estes acompanham os pais na lavoura e nas lides diárias. Mesmo não
“ajudando” muito, apenas o fato de irem junto já expressa o interesse e o aprender, o qual,
somente virá mais tarde quando estes ficarem “mais velhos”. Como verificou Tavares dos
Santos (1984) em sua pesquisa com colonos italianos, quando um dos entrevistados lhe
informou que levava os filhos pequenos na “roça”: “Eles tem enxadinha cada um deles e von
na roça, non son obrigado a trabalhá, mas só pra acostumá, fazé o serviço, ver o pai como faz,
eles apreende” (p. 45).
Sé é o pai quem ensina aos filhos homens a socialização no processo produtivo, é a
mulher e esposa quem socializa as filhas na esfera da casa e do consumo doméstico
72
.
Geralmente aos homens cabe o trabalho na criação e nas lavouras para venda nas quais se
produz em volume, ou seja, o trabalho dito “pesado” tal como demonstraram Woortmann e
Woortmann (1997). Para as mulheres cabe o trabalho na esfera da residência, do quintal e das
pequenas lavouras e criações destinadas ao autoconsumo
73
. É a mãe que ensina as filhas a se
socializarem, por exemplo, no preparo e cozimento dos alimentos, ensinando-a a não
desperdiçarem e a prepararem o alimento de forma que fique gostoso e palatável, pois para os
colonos um dos atributos de uma “boa esposa” é aquela que “cozinha bem
74
.
São também as mulheres juntamente com as “forças marginais”, ou seja, os velhos e
crianças que realizam o trabalho de cultivo e criação para o autoconsumo doméstico das
formas familiares como mostra a entrevista abaixo. Nota-se, pelo trecho da entrevista, que o
72
Sempre que nos referirmos a consumo estamos fazendo referência não só aos alimentos produzidos pelo grupo
doméstico, mas também a outras mercadorias que podem ser compradas de fora da unidade produtiva para
consumo alimentar familiar. Já a noção de autoconsumo perfaz somente a esfera do que é produzido e utilizado
na alimentação da própria família. A distinção entre estas duas noções é baseada em Chayanov (1974).
73
Esta asserção deve ser relativizada, pois muitas vezes os homens também ajudam nas pequenas lavouras e
criações para autoconsumo.
87
informante refere-se à oposição entre a mulher que é responsável pela produção de
autoconsumo e o homem que fica com a responsabilidade sobre as lavouras comerciais,
demonstrando as relações de poder e de gênero que existem em torno da produção de
autoconsumo.
[...] A produção de subsistência
75
geralmente quem faz é a mulher. É a mulher
que faz isso e ai tem aquela velha relação de poder, a mulher sempre fica
prejudicada por que a mulher é inferior. O homem por que lida com a soja por
que é a soja que dá dinheiro, a soja ou o fumo, quando é a soja principalmente
(Entrevista 22, 2004, R. B., Engenheiro Agrônomo, Emater).
Pode-se dizer que a transmissão do conhecimento segue uma divisão social no interior
da família. Esta divisão é baseada no gênero, na idade e na hierarquia social existente como
demonstra o trecho acima da entrevista, onde a figura do pai da família e da mãe são centrais.
Enquanto o primeiro governa a produção e transmite saber aos filhos homens, a segunda é o
governo da casa e do consumo como. Esta também tem o papel de socializar as crianças e
moças nos pequenos cultivos e serviços domésticos (Woortmann, 1993; Woortmann e
Woortmann, 1997).
Nas formas familiares o autoconsumo é originário de um cálculo subjetivo onde são
determinados por uma “negociação” entre homem e mulher os espaços destinados as lavouras
comerciais e as de autoconsumo, onde serão plantados cada um dos cultivos, a quantia
necessária para suprir a família no ano, a organização dos espaços do “território” familiar
dentro da unidade de produção, etc (Woortmann e Woortmann: 1997). Esse cálculo, leva em
conta o tamanho da família diferenciados em termos de sexo e idade, ou seja, quantas bocas
se têm para alimentar no ano, bem como as necessidades alimentares da família (Chayanov,
1974).
Deste modo, o saber nas formas familiares de produção e trabalho é muito mais que
uma “ferramenta” com a qual o agricultor familiar e a sua família produzem o autoconsumo
alimentar do ano. O saber produz relações sociais e pessoas numa lógica que vai muito além
da produtiva e material. O saber produz e reproduz a cultura, os valores, os significados dos
alimentos, o ordenamento do “mundo” familiar e das suas relações que daí decorem como
indivíduo integrante de uma sociedade muito mais ampla.
O saber nas formas familiares também não é estático. Ele muda e se metamorfoseia
com o processo histórico de desenvolvimento das forças produtivas na agricultura. Assim, o
74
O cozinhar bem para os colonos é uma das principais qualidades que deveriam ser observadas nas moças antes
do casamento para se ter uma boa esposa. Para uma melhor exposição deste assunto, ver Woortmann (1995).
88
saber nas formas familiares mudou muito desde o SAC até os primórdios da agricultura
familiar de hoje. Este saber incorporou elementos das novas tecnologias de ponta, das
mudanças técnicas-produtivas e aqueles repassados pelos organismos foráneos a unidade de
produção como o prescrito por universidades, por órgãos de pesquisa, de assistência técnica e
extensão rural, etc. Pode-se dizer que a mercantilização tal como a definiu Van der Ploeg
(1990; 1992) avança inclusive nesta esfera da vida social – no saber familiar – substituindo-o
por tecnologias e procedimentos exteriores a unidade de produção como formulou
Woortmann (1983):
[...] assiste-se não só o esgotamento das terras, mas do saber que orienta o
trabalho sobre a terra e das possibilidades de manter internos à unidade
produtiva os principais supostos da produção – talvez o componente mais
importante da reprodução camponesa como tal (p. 227).
Esta perda do corpo do saber e do conhecimento local pelos agricultores familiares
também é formulada em relação ao início do processo de mudanças técnicas-produtivas da
agricultura do Alto Uruguai. Este processo de transformação operou a troca do saber-fazer e
da cultura do agricultor familiar pelo conhecimento moderno e pela tecnologia gerada no bojo
do desenvolvimento industrial. Durante o trabalho de campo verificou-se a ocorrência deste
movimento, aonde um engenheiro agrônomo chegou a explicitar que o conhecimento que os
agricultores familiares possuem é “a cultura da indústria” numa alusão ao processo de
penetração das novas técnicas e tecnologias nas unidades de produção. Como o relato abaixo
demonstra:
Então a revolução verde ela foi super desastrosa do ponto de vista da
subsistência, da questão cultural uma vez que [...] o grande prejuízo da
revolução verde foi na questão cultural por que os agricultores perderam
aquela cultura que eles tinham e eles passaram a ter uma outra cultura que é a
cultura da indústria (Entrevista 22, 2004, R. B., Engenheiro Agrônomo,
Emater).
A não transmissão do corpo do saber como formularam Woortmann e Woortmann
(1997) das gerações mais velhas que ainda possuem estes conhecimentos herdados do modo
de vida colonial para as gerações mais novas de futuros agricultores no Alto Uruguai é,
inclusive, um dos motivos da vulnerabilização da produção de autoconsumo nas unidades de
produção. Na percepção de um dos extensionistas rurais da Emater a juventude não é
interessada pela produção de autoconsumo e quem, geralmente, faz este tipo de atividades no
75
Os entrevistados durante a pesquisa de campo geralmente se referem ao autoconsumo como produção de
subsistência e em outros casos como as “miudezas”.
89
interior das famílias são as pessoas mais velhas, ou seja, as forças marginais como se referiu
Tepicht. O relato que segue é ilustrativo deste processo.
A menina [...] não pode ir à horta fazer um canteiro, gente isso ai é o cúmulo.
Vai desmotivado e eles não apreendem a fazer isso. É a avo que está lá na
horta fazendo o canteiro e quando morre essa vó, quem é que vai fazer? [...]
Essa juventude que está se criando ai e que futuramente vão ser as futuras
famílias e que não vão saber fazer nada. E eu percebo que a gente trabalha
muito em alimentação, incentivo e tem meninas de 15, 17, 18 anos que tem o
prazer de me dizer que não sabem fazer um canteiro (Entrevista 7, 2004, M.
Z. B., Extensionista Social, Emater).
Contudo, não é o objetivo, nesta seção, realizar-se uma análise exaustiva em torno da
perda de conhecimento dos agricultores familiares do Alto Uruguai, mas sim apenas apontar
este tipo de acontecimento. Este assunto será retomado mais adiante nos outros capítulos da
presente dissertação onde será mais bem desenvolvido. Passa-se, nesta próxima seção, a
análise da produção de autoconsumo segundo alguns elementos teóricos e reflexivos
esboçados por Frank Ellis.
2.5 – O autoconsumo como estratégia de diversificação dos modos de vivência.
Esta seção tem como objetivo elencar alguns elementos teóricos e conceituais que nos
permitam o estudo do autoconsumo, das políticas públicas e iniciativas locais de
desenvolvimento no Alto Uruguai. Assim, o que se busca é, de certo modo, algumas
referências fundamentais ao estudo da agricultura familiar e da produção de
autoprovisionamento nas famílias baseados, sobretudo, em Frank Ellis.
A hipótese que se quer verificar para o caso do Alto Uruguai é a de que o
autoconsumo desempenha um papel nas formas sociais de produção e trabalho que está
relacionado a propiciar a diversificação das estratégias de vivência e de desenvolvimento das
famílias. Neste sentido, o que se quer demonstrar é que a produção de autoprovisionamento é
a base sobre a qual se assenta materialmente toda a reprodução social e alimentar do grupo
doméstico e o ponto de partida para que as unidades de produção consigam diversificar as
suas estratégias de vivência
76
. O entendimento que se persegue do que sejam as estratégias de
vivência do agricultor familiar é baseado na definição de Ellis (2000):
76
Nesta seção desenvolve-se esta hipótese somente de forma teórica. A sua operacionalização prática ocorre no
capítulo 5.
90
As estratégias de vivência (livelihoods) compreendem os ativos
77
(capital
natural, físico, humano, financeiro e social), as atividades, e o acesso para
estas (mediado por instituições e relações sociais) que juntos determinam o
ganho de vida pelos indivíduos e unidades domésticas (p. 10; tradução
livre)
78
.
Segundo Frank Ellis (2000) as estratégias de vivência podem ser classificadas em dois
tipos principais dependendo do contexto em que a unidade doméstica está inserida, o nível de
riscos e choques em que esta está submetida. Estas podem ser de escolha e adaptação em um
contexto social em que o grupo doméstico está em uma condição de ascensão e até de
acumulação. Neste caso, a estratégias de vivência como escolhas postas em prática se referem
a uma reação voluntária e proativa para chegar à diversificação dos ativos, fontes de renda e
acessos a estes (p. 55). Ou, podem ser definidas como estratégias de adaptação em um
processo contínuo de mudança das estratégias de vivência onde qualquer melhoramento
existente traz segurança e riqueza para tentar reduzir a vulnerabilidade e a pobreza (Davies e
Hossain, 1997 apud Ellis, 2000, p. 63). Neste tipo de estratégia a unidade doméstica possui as
condições materiais e sociais asseguradas por onde vai se dar a sua reprodução. Tal estratégia
pode levar a unidade doméstica à ascensão e, talvez, a uma diferenciação social e econômica
frente às demais, possivelmente pela maior capacidade
79
de manter, renovar e “criar” os
diferentes tipos de capitais necessários a sua sobrevivência.
Por outro lado, as estratégias de vivência podem ser de reação e necessidade em um
contexto de pobreza rural, de riscos e de choques na reprodução social do grupo doméstico
(Ellis, 2000). Neste caso, as condições sociais e materiais que lastreiam a reprodução social da
unidade doméstica estão em processo de desagregação e, é necessário lançar mão de
estratégias para continuar sobrevivendo mesmo em um contexto de crise econômica, de
riscos, de reprodução ameaçada e, também, de insegurança alimentar como no caso da
77
Os ativos podem ser descritos como estoques de capital que podem ser utilizados diretamente, ou
indiretamente, para gerar os meios de sobrevivência da unidade doméstica ou para sustentar o seu bem-estar
material para diferentes níveis de sobrevivência (Ellis, 2000, p. 31; tradução livre).
78
Segundo Ellis (2000, p. 8) o capital natural se refere aos recursos de base como a terra, água, árvores, etc que
rendem produtos utilizados pela população humana para a sua sobrevivência. O capital físico se refere ao acesso
pelo processo de produção econômico de, por exemplo, instrumentos, máquinas, terraços, canais de irrigação, ou
seja, obras de infra-estrutura em geral. O capital humano é referido como os níveis de educação e de saúde da
população. O capital financeiro é definido pelo estoque de dinheiro que pode ser acessado para a aquisição da
produção ou consumo de bens e, o acesso ao crédito. O capital social se refere às redes e associações em que as
pessoas participam que lhes pode dar vários “suportes” e que contribuem em suas estratégias de vivência.
79
Como formulou Ellis (2000, p. 7) o termo capacidade é derivado da Amatya Sen e se refere à habilidade dos
indivíduos para realizar o seu potencial humano (nutrir-se adequadamente, ser livre de doenças) e fazer (exercer
escolhas, desenvolver habilidades e experiência, participar socialmente). Frank Ellis utiliza o conceito de
capacidade para explicar o conceito de estratégia de vivência. As diferentes estratégias de vivência postas em
prática para se atingir a diversificação é dependente das capacidades dos indivíduos e das famílias em
operacionalizá-las.
91
vulnerabilização da dimensão do autoconsumo pelo privilegiamento da esfera comercial e
mercantil da unidade doméstica. Neste caso, as estratégias de necessidade se referem a uma
ação involuntária e infortúnia em direção a diversificação dos ativos e tipos de capitais (p.
55). Ou, podem ser estratégias de reação definidas como uma seqüência definida de respostas
para sobreviver a crises e desastres (p. 61).
No caso do Alto Uruguai as estratégias de vivência seguem os dois cursos descritos
por Frank Ellis, mas há um nítido direcionamento voltado ao segundo tipo de estratégia, ou
seja, voltado às estratégias que são postas em prática devido às necessidades e carências dos
grupos domésticos. Deste modo, as estratégias estão num contexto de reação a sua situação
social e econômica, tentando buscar saídas à reprodução social que se encontra ameaçada e ao
grande número de famílias em situação de pobreza rural na região. No caso de desagregação
do grupo doméstico, de reprodução social ameaçada e de riscos e desastres a que o agricultor
familiar está submetido, este poria em prática as estratégias de vivência por necessidade e por
reação para levá-lo a diversificação das estratégias de vivência. Como definiu Ellis (2000):
A diversificação das estratégias de vivência (livelihood diversification) é
definida como um processo pelo qual as unidades domésticas constroem um
incremento diversificado de suas carteiras de investimentos (portfolios)
80
de
atividades e ativos para sobreviver e para melhorar o seu padrão de vida (p.
15; tradução livre).
A idéia da diversificação das estratégias de vivência parece ser útil e aplicável ao Alto
Uruguai por ser este uma unidade do espaço rural não diversificada historicamente, com um
desenvolvimento que é agrícola e setorializado. Além disso, esta região experimentou um
processo histórico de empobrecimento onde, uma parcela dos agricultores familiares está
lançando mão das diferentes estratégias de reação a sua situação social e econômica
degradante em que se encontram
81
. Deste modo, se pretende usar o conceito de diversificação
das estratégias de vivência para o estudo da produção de autoconsumo e também no caso da
análise das políticas públicas e iniciativas locais de desenvolvimento.
De acordo com Ellis (2000, p. 44) a unidade doméstica lança mão de uma gama de
estratégias diferentes frente à crise. Estas estratégias seguem, segundo o autor, uma seqüência
80
Portfolio pode também ser traduzido como um “leque” diversificado de investimentos. Quer dizer que a
unidade doméstica deve constituir uma ampla gama de atividades e fontes de renda para fazer frente as suas
necessidades e a sua reprodução social.
81
É interessante ressaltar que Ellis concebe o desenvolvimento rural como um conjunto de ações e práticas que
visam, em primeiro lugar, diminuir as desigualdades sociais e a pobreza rural das regiões pobres. Por este motivo
que sua teoria é tão útil ao caso estudado. Como ele mesmo formulou: o desenvolvimento rural pode ser definido
como uma organização de princípios políticos antipobreza para as regiões rurais de baixa renda (p. 25; tradução
livre).
92
que é relatada da seguinte forma
82
: em primeiro lugar a unidade doméstica diversifica as
fontes de renda e atividades (diversificação). Em segundo lugar amplia as suas relações
sociais de reciprocidade baseadas no parentesco e na comunidade (capital social). Em terceiro
lugar exerce uma diminuição do tamanho da família através da migração temporária de
membros da unidade. Em quarto lugar vende-se alguns ativos da propriedade como
implementos, gado, etc. E, como quinta e última estratégia frente à crise vende a própria
propriedade e os demais ativos, abandonando, talvez, definitivamente a atividade agrícola.
Segundo Ellis (2000) a diversificação das estratégias de vivência se justifica devido a
características como a sazonalidade da atividade agrícola, devido aos riscos estratégicos
(choques, guerra civil, doenças humanas, doenças de plantas e animais, etc), danos climáticos
imprevisíveis (enxurradas, secas, neve, inundações, etc), devido a melhor remuneração que
certos mercados de trabalho se apresentam frente à unidade doméstica em relação à
agricultura
83
, e, ainda, a migração como uma estratégia que não é de diversificação, mas que
faz parte do modo próprio de reprodução das formas familiares. Poderia-se acrescentar a estas
razões, a de que a diversificação das estratégias de vivência propicia um lastro mais amplo
por onde se assentaria o desenvolvimento das formas familiares de produção e trabalho,
garantindo, assim, uma base diversa e multilinear de reprodução social.
No caso do Alto Uruguai, o autoconsumo é a esfera da unidade doméstica que vai dar
a base e o lastro para que haja a diversificação das estratégias de vivência na agricultura
familiar. É somente com uma produção de autoconsumo fortalecida internamente na unidade
de produção que, por sua vez, o grupo doméstico poderá lançar-se em outras atividades e
obtenção de outras fontes de renda. Isso se justifica devido ao fato de que, sem autoconsumo,
o agricultor familiar não consegue a diversificação das estratégias de vivência, pois com a
renda e atividades que desenvolver vai gastar para comprar no mercado, a preços de mercado,
o consumo alimentar necessário ao grupo doméstico, dispendendo assim quase todas as suas
“forças” para isso. Sem a produção de autoconsumo fortalecida não se gera as condições
objetivas e materiais para se fazer frente a um processo de diversificação das fontes de renda e
das atividades produtivas. Dessa forma, o que acontecerá, poderá ser, a seqüência descrita por
Frank Ellis de desagregação da unidade doméstica frente a uma crise ou choque que pode ser,
82
É claro que nem sempre as transformações e a desagregação das diferentes unidades domésticas vão se dar
sempre da mesma forma. Este é apenas um modelo teórico e generalizador para mostrar, grosso modo, como
pode ocorrer as estratégias e respostas das unidades familiares frente a uma crise e para justificar a importância
que exerce a diversificação das estratégias de vivência que é a primeira estratégia posta em prática frente à crise.
Se esta estratégia obtiver sucesso, provavelmente, as demais que a seguem não chegarão a serem ativadas.
93
por exemplo, o grupo doméstico incidir em situações de insegurança alimentar devido a não
produzir os seus próprios alimentos.
É o fortalecimento da produção de autoconsumo que leva a diversificação das
estratégias de vivência, mas o fortalecimento do autoconsumo também leva a segurança
alimentar pela diminuição do grau de vulnerabilidade em que se dá a reprodução social do
grupo doméstico (Ellis, 2000). Como formulou Frank Ellis, citando Chambers e Davies:
Vulnerabilidade é definida como um alto grau de exposição para o risco,
choques e stress; e a propensão à insegurança alimentar (do grupo doméstico)
(Chambers, 1989; Davies, 1996 apud Ellis, 2000, p. 62; tradução livre).
Em termos sociológicos, o não fortalecimento do autoconsumo para o agricultor
familiar faz com que este enfraqueça a sua identidade sócio-profissional de agricultor, pois
este usa a força de trabalho familiar, a terra e os meios de produção, ou seja, os fatores de
produção para gerar mercadorias agrícolas que gerarão o valor correspondente quando da sua
realização no mercado
84
. Contudo, estas não gerarão a forma primária de o grupo doméstico
se reproduzir enquanto tal, o autoconsumo. Em outras palavras, o autoconsumo deve ser o
produto imediato da conjugação das forças produtivas na agricultura familiar devido às
características intrínsecas e a lógica de reprodução social e alimentar do grupo doméstico que
está assentada em propiciar, em primeiro lugar, a alimentação aos membros da família. Esta
primazia da produção da autoconsumo em detrimento da produção mercantil também foi
verificada no trabalho de campo como os relatos abaixo demonstram.
O agricultor tem que primeiro produzir para a sua subsistência e depois
pensar em produzir para vender. Primeiro ele tem que garantir o consumo da
família [...]. A gente bate toda a hora que o agricultor tem que primeiro
produzir de tudo para a alimentação, para o consumo humano, para a família,
para a sustentação [...] (Entrevista 19, 2004, R. B., Engenheiro Agrônomo,
Emater).
[...] A família que mora lá no interior e tem um pedacinho de terra o principal,
em primeiro lugar, é que ela possa produzir aquilo que é consumido pela
própria família. [...] Em primeiro lugar a família que mora no interior e que
83
Outros economistas tratam isso como custo de oportunidade. O custo de oportunidade se refere ao princípio de
que é melhor investir os diversos ativos que o agricultor possui em outra atividade de menor risco e mais
rentabilidade de que a agricultura.
84
Pude presenciar numa ocasião no município de Palmitinho à distribuição de cestas básicas por meio do
Governo Federal no âmbito do Programa Comunidade Solidária. Era notável a crítica de alguns agricultores
familiares aos demais que recebiam os benefícios do programa. A crítica era elaborada diretamente sobre a
identidade do ser colono. Ou seja, os agricultores diziam que aqueles agricultores que pegavam as cestas básicas
“não podem ser considerados colonos”, pois “não conseguiam produzir nem o que comem”, e que “era uma
vergonha os colonos dependerem do Governo para terem o que comer”. Isso posteriormente também foi
recorrente no trabalho de campo numa situação em que o agricultor formulou a questão de quem compra a banha
de porco não pode ser considerado agricultor familiar como demonstra a entrevista abaixo:
[...] Que nem eu conheço que tem agricultores que vão comprar uma lata de banha.
Isso nem agricultor a gente pode chamar [...] (Entrevista 3, 2004, L. F., Agricultor
familiar).
94
tem uma pequena área de terra ela tem que ter aquele produto para o consumo
da família (Entrevista 17, 2004, V. S., Representante Sindical, CMDR).
Mas o autoconsumo possui também outro papel fundamental na reprodução da
agricultura familiar. É o autoconsumo, que Ellis (2000) chamou de subsistência, que permite
as formas familiares de produção e trabalho sobreviverem e se reproduzirem em uma
sociedade capitalista cada vez mais competitiva. Como formulou Ellis, o campesinato persiste
na economia capitalista devido [...] a sua capacidade de reunir os pré-requisitos para
(produzir) a sua própria subsistência (p. 24; tradução livre). Concorda-se com a postura da
Frank Ellis em colocar que o autoconsumo é uma das principais formas de o agricultor
familiar se reproduzir enquanto tal no Alto Uruguai.
Neste sentido que descreveu Ellis, realmente, é a produção de autoconsumo, em
grande medida, que explica a permanência da agricultura familiar nas sociedades atuais. A
importância do autoconsumo para a permanência e reprodução social da agricultura familiar
foi evidenciada também na pesquisa a campo como evidenciam os trechos das entrevistas com
representantes de organizações da agricultura familiar. Os informantes definem a permanência
da agricultura familiar usando como requisito principal à importância do autoprovisionamento
de alimentos. Para isso, note que os mesmos usam termos como “viabilidade”, “auto-
sustentável” para se referir a este papel do autoconsumo. No segundo caso o informante
vincula a permanência das famílias que possuírem a produção de autoconsumo fortalecida na
unidade de produção. Como segue abaixo:
[...] A viabilidade da pequena propriedade passa pela produção de
subsistência, produzir a produção da agricultura familiar, pequena
propriedade que fizer isso ela permanece, ela permanece por que é auto-
sustentável [...]. Então eu acho que o caminho é esse, eu não tenho dúvida,
nós temos que trabalhar a agricultura diferenciada, nós somos diferentes [...].
Então nós temos que produzir uma produção diferenciada para conseguir
sobreviver (Entrevista 19, 2004, A. L., Agricultor familiar, Coopac).
[...] (A produção de autoconsumo) é a saída hoje par nós continuarmos na
roça. Se nós não conseguirmos atingir dentro dos próximos 3 ou 5 anos esse
objetivo a nossa visão é de que o êxodo rural vai aumentar ainda mais [...]
(Entrevista 6, 2004, C. A., Representante Sindical, MPA).
No próximo capítulo, demonstra-se que a produção de autoconsumo possui uma
importância fundamental para a reprodução social da agricultura familiar. Para isso, se
analisa alguns dados quantitativos da pesquisa AFDLP (2003)
85
. Também se argumenta que o
autoconsumo gera alguns dos principais princípios da segurança alimentar para os
85
A metodologia de cálculo do autoconsumo e os principais passos que foram seguidos para a obtenção de seus
valores estão descritos no Anexo 3.
95
agricultores familiares e assegura a alimentação básica das famílias rurais. Demonstra-se,
também, que uma parcela significativa dos agricultores do Alto Uruguai no processo
histórico de transformações com a chamada modernização agrícola mercantilizaram o
consumo doméstico de alimentos. Estas transformações iniciadas a partir dos anos 70 são
responsáveis, em grande parte, pelas situações de insegurança alimentar de vulnerabilização
do autoconsumo junto às famílias. São estes alguns dos assuntos que se passa a analisar no
capítulo 3.
96
CAPÍTULO 3:
AUTOCONSUMO E AGRICULTURA FAMILIAR: segurança alimentar,
mercantilização e vulnerabilização da reprodução social no Alto Uruguai.
No presente capítulo, busca-se delinear a importância da produção de autoconsumo
para a reprodução social e a segurança alimentar dos agricultores familiares do Alto Uruguai,
demonstrando que o autoprovisionamento possui vários papéis na unidade de produção e na
alimentação do grupo doméstico. Também, pretende-se elucidar que houve um processo de
mercantilização desta dimensão nas unidades de produção a partir dos anos 70 com as
transformações sociais, econômicas e produtivas que aconteceram no Alto Uruguai. Pretende-
se ainda, abordar, que em uma parcela significativa dos agricultores do território este tipo de
produção sofreu um movimento de vulnerabilização no sentido de que o autoconsumo foi
fragilizado na dinâmica da unidade de produção, levando assim, uma parcela dos agricultores
a situações de insegurança alimentar por não produzirem mais este tipo de alimentos.
Este capítulo parte da hipótese de que a produção de autoconsumo possui o papel de
gerar processos de segurança alimentar nos agricultores familiares do Alto Uruguai através da
garantia de produção dos alimentos básicos que integram a alimentação dos membros do
grupo doméstico. Também, se quer testar a hipótese de que é o processo de mercantilização
social e econômica da agricultura familiar, em grande medida, que levou alguns agricultores
familiares a vulnerabilizarem a produção de autoconsumo, a optarem pela especialização
produtiva e a se encontrarem em situações em que impera a insegurança alimentar.
Para realizar tal empreendimento aborda-se o autoconsumo do ponto de vista da esfera
da produção e da reprodução das unidades familiares, salientando a sua importância para a
agricultura familiar do Alto Uruguai. Analisa-se a transformação da agricultura familiar a
partir das alterações nos processos produtivos, salientando-se os efeitos sobre o papel da
produção para autoconsumo. De uma maneira geral, são identificados dois processos: o de
mercantilização e o de vulnerabilização da produção de autoprovisionamento alimentar. Tal
97
como indicado no capítulo 1, o processo de mercantilização da agricultura familiar
compreende o movimento pelo qual as unidades de produção se tornam cada vez mais
dependentes do mercado para executar a sua reprodução social e alimentar. Neste sentido,
utiliza-se o conceito de mercantilização do autoconsumo para se analisar as transformações
por passou esta dimensão da agricultura familiar na região.
Já o processo de vulnerabilização do autoconsumo, como definido no capítulo 2,
refere-se à situação social pela qual o agricultor familiar passa a ter a sua reprodução social
fragilizada, devido a não produzir o autoconsumo alimentar necessário à alimentação dos
membros do grupo doméstico. Neste sentido, se pretende demonstrar que o processo de
vulnerabilização do autoconsumo leva, em partes, uma parcela significativa dos agricultores
familiares e se encontrarem em situações de fragilização social e de insegurança alimentar.
Neste sentido, uma das questões que se que se pretende analisar é que o autoconsumo
é uma produção que é responsável pela geração de alguns dos principais princípios
norteadores do conceito de segurança alimentar. Dentre os princípios analisados estão o do o
acesso regular e contínuo aos alimentos, o referente à qualidade nutricional da alimentação, o
que se refere às quantidades adequadas e suficientes a alimentação das famílias rurais e, o que
diz respeito aos hábitos alimentares de consumo que se constituíram historicamente junto às
famílias de agricultores do território.
Contudo, se faz necessário uma ressalva importante em relação ao objeto de estudo
analisado neste capítulo. A análise que se empreende visa delinear a segurança alimentar do
ponto de vista da produção de autoconsumo para os próprios agricultores implicados neste
tipo de produção. Assim sendo, a analise não visa diagnosticar a segurança alimentar gerada
pela produção de autoconsumo para a população não agrícola do território
86
, nem para o
contexto internacional da segurança alimentar como a realizaram outros autores (Maluf, 2001;
Maluf et all, 2004). Também não se enfoca a segurança alimentar sobre o prisma das políticas
públicas; tampouco com base no sistema agroalimentar e nas causas estruturais da fome e
insegurança alimentar da população brasileira (Projeto Fome Zero, 2001; Belik, 2001).
Deste modo, a análise que se pretende desenvolver é bem mais modesta e está
relacionada ao nível micro da unidade de produção familiar e das estratégias utilizadas pela
família para viabilizar a reprodução social e alimentar dos seus membros. O objetivo é o de
efetuar-se uma abordagem com base na agricultura familiar e nas dimensões da segurança
alimentar que são geradas pela produção de autoconsumo para os próprios membros desta.
86
Esta análise será realizada no capítulo 5.
98
Assim, realiza-se uma leitura do papel do autoprovisionamento alimentar do ponto de vista da
reprodução social e da segurança alimentar que esta produção gera na agricultura familiar,
levando-se em conta os princípios da definição de segurança alimentar esboçados por Maluf
et all (2004).
Neste sentido, entende-se a segurança alimentar a partir da definição brasileira que foi
enviada a Cúpula Mundial de Alimentação de 1996 a qual é citada por Maluf (2001). Esta
definição é bastante ampla e completa por trazer em seu corpo conceitual tanto o princípio do
acesso permanente dos indivíduos aos alimentos, a questão da quantidade suficiente e
permanente destes, a esfera da qualidade alimentar e nutricional e a das práticas alimentares
saudáveis que são as principais dimensões constitutivas do conceito de segurança alimentar. É
este conceito que se utiliza para analisar e definir o que se entende por segurança alimentar na
presente dissertação. Este conceito é utilizado para analisar-se a segurança alimentar gerada
através da produção de autoconsumo do ponto de vista dos agricultores familiares. Análise
esta que é empreendida neste capítulo. Mas, também se utiliza deste conceito para as análises
precedentes dos outros capítulos do presente estudo. Assim, de acordo com esta a definição a
[...] segurança alimentar significa garantir, a todos, condições de acesso a
alimentos básicos de qualidade em quantidade suficiente, de modo
permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades básicas, com
base em práticas alimentares saudáveis, contribuindo, assim, para uma
existência digna num contexto de desenvolvimento integral da pessoa humana
(p. 147).
Assim sendo, neste capítulo tenta-se demonstrar que no Alto Uruguai a
mercantilização do autoconsumo é responsável por uma diferenciação social da produção de
autoprovisionamento alimentar das famílias onde há agricultores mais e menos
vulnerabilizados nesta característica. Neste contexto, aqueles agricultores que possuem o
autoconsumo não vulnerabilizado são aqueles que, historicamente, conseguiram se
desenvolverem via estratégias de adaptação a mercantilização social e econômica da
agricultura familiar. Já outros, se vulnerabilizaram mais neste processo de transformações
sociais, econômicas e produtivas e estão lançando-se em estratégias de reação a situação de
reprodução social e alimentar ameaçada (Ellis, 2000).
Demonstra-se, também, que a mercantilização da agricultura familiar é que gerou, em
partes, o solapamento da produção de autoconsumo onde muitos agricultores foram
fragilizados em sua segurança alimentar não obtendo mais o mínimo calórico necessário a sua
reprodução social e alimentar como formulou Wolf (1976). Elucida-se ainda, que a
mercantilização do consumo familiar, em grande medida, tem como uma das suas faces mais
99
cruéis o empobrecimento rural território, a dependência alimentar dos agricultores familiares
ao contexto social e econômico (as compras de alimentos) e, em muitos casos, gera situações
de insegurança alimentar junto aos agricultores.
Neste sentido, inicia-se o capítulo com a análise da importância da produção de
autoconsumo junto às famílias de agricultores familiares de Três Palmeiras, no Alto Uruguai,
utilizando-se para isso dos dados sobre autoprovisionamento alimentar obtidos pela pesquisa
AFDLP (2003) realizado no ano de 2002 para este município. Esta análise é empreendida
nesta próxima seção.
3.1 – A importância do autoconsumo para a agricultura familiar do Alto Uruguai.
Alguns dos dados sobre autoprovisionamento alimentar apresentados e analisados a
seguir fazem parte da pesquisa AFDLP (2003) que possui como objetivo estudar a dinâmica
da agricultura familiar, as suas estratégias de reprodução social e o desenvolvimento rural em
Três Palmeiras, no Alto Uruguai. Nesta pesquisa também se obtiveram dados relativos à
produção de autoconsumo das famílias, no que se refere tanto a produção animal como
vegetal e a respectiva importância que assume esta dimensão nos estabelecimentos familiares
em termos de valores monetários e percentuais.
Neste sentido, a produção de autoconsumo será estudada no Alto Uruguai tendo como
base empírica dos processos sociais o município de Três Palmeiras. Deste modo, acha-se que
é possível esta operacionalização por dois motivos principais. Primeiro, por que se trabalha
com a idéia que no Alto Uruguai existe uma dinâmica territorial da agricultura familiar. Ou
seja, existem poucas diferenças de reprodução social das unidades familiares nesta região
onde se desenvolve o estudo. Em segundo lugar isso é possível por que se acredita que o
município de Três Palmeiras seja um local representativo das condições de reprodução social,
econômica e alimentar da agricultura familiar, sendo possível, assim, executar-se uma certa
generalização dos dados empíricos deste município para o Alto Uruguai como um todo sem
incorrer em distorções abusivas.
O objetivo perseguido nesta seção é o de demonstrar a importância da produção de
autoconsumo nas famílias do Alto Uruguai. Para isso, estuda-se o autoprovisionamento dos
agricultores com base nos conceitos de mercantilização do autoconsumo, no de segurança
alimentar e no de vulnerabilização do autoconsumo das famílias rurais tal qual como
definidos nos capítulos anteriores e neste. O autoconsumo alimentar representa uma
100
importante esfera da unidade de produção da agricultura familiar
87
. Este é fundamental para a
segurança alimentar do grupo doméstico, principalmente em territórios onde imperam
situações de fragilização social como é o caso do Alto Uruguai, pois nestes lugares a pobreza
rural pode ser a causa principal da insegurança alimentar entre os agricultores familiares como
já formularam autores como Belik et all (2001).
Assim, em pesquisa desenvolvida no município de Três Palmeiras procura-se
demonstrar a importância que o autoprovisionamento possui para a segurança alimentar dos
agricultores familiares do Alto Uruguai. Na Tabela 5 estão expostos os valores que as famílias
rurais do Alto Uruguai gastariam caso fossem adquirir o consumo a preços regionais de
mercado, demonstrando a importância que este assume na reprodução social e alimentar do
grupo doméstico. A maioria das famílias de agricultores familiares possui um autoconsumo
que está situado no estrato de R$ 1.000,01 a 2.000 por ano (49,2% e 47,5% para o
autoconsumo vegetal e animal, respectivamente), demonstrando os gastos que estas famílias
teriam caso o adquirissem no mercado. Esta percentagem é ainda maior quando se soma às
famílias que gastariam até R$ 2.000 em autoconsumo anual (84,8% e 72,9% das famílias), o
que demonstra o baixo nível de consumo que possuem as famílias rurais do Alto Uruguai e
que algumas podem se encontrar em situação de insegurança alimentar.
O processo de mercantilização do consumo familiar fica mais claro quando se analisa
os percentuais acumulados de autoconsumo vegetal e animal. De acordo com a Tabela 5, a
grande maioria das famílias possuem uma produção de autoconsumo que está no estrato de
até R$ 2.000 por ano, sendo que os percentuais acumulados até este estrato são de 84,8%
para o caso do autoconsumo vegetal e de 72,9% para o caso do autoconsumo animal. Estes
dados corroboram a hipótese de que existe uma mercantilização do consumo alimentar entre
os agricultores familiares, o que pode ser a causa dos baixos montantes monetários que este
assume na dinâmica de tais unidades familiares. Bem como, pode ser este processo que está
levando muitos agricultores a situações de insegurança alimentar.
Tabela 5: Estratos de autoconsumo vegetal e animal de acordo com os valores
monetários que seriam gastos pelas famílias para a sua aquisição no
Município de Três Palmeiras/RS.
Estratos de autoconsumo
(R$/ano)
Vegetal
(%)
Percentual
ve
g
etal
Animal
(%)
Percentual
animal
87
Como definido na pesquisa AFDLP (2003) e por Conterato (2004) o autoconsumo corresponde à parte do
Produto Bruto animal e vegetal consumida pela família durante o ano agrícola correspondente. Ressalta-se para
fins de compreensão, que este estudo somente analisa a produção de autoconsumo destinada à alimentação das
famílias. Não se analisa, por exemplo, o autoconsumo intermediário como o definiu Tepicht, tampouco o
produtivo ou “salário indireto” como formulou Leite (2003; 2004).
101
acumul. (%) acumul. (%)
0 a 1000 35,6 35,6 25,4
25,4
1000,01 a 2000,00 49,2 84,8 47,5 72,9
2000,01 a 3000,00 11,9 96,7 22 94,9
3000,01 a 5000,00 3,4 100 5,1 100
5000,01 a 10000,00 0,0 0,0
Total 100 100
Média (R$/ano) 1.337,83 1.566,57
Média Total (R$/ano) 2.904,40
Fonte: Pesquisa AFDLP – CNPq/ UFPel /UFRGS, 2003.
Porém, há uma quantidade de famílias que possuem um autoconsumo maior,
variando entre R$ 2.000,01 e 3.000 por ano, que não é desprezível (11,9% e 22%), para o
autoconsumo vegetal e animal, respectivamente. Há outras famílias que se encontram em
estratos de autoconsumo que podem variar de R$ 3.000,01 a R$ 5.000 por ano. Estes dados
demonstram que há uma diferenciação social dentre os agricultores familiares e que não se
expressa somente no âmbito dos sistemas produtivos como demonstrou Conterato (2004) para
o caso do Alto Uruguai. Há também uma diferenciação social no que se refere à produção de
autoconsumo, onde na grande maioria dos agricultores este se encontra vulnerabilizado
(estratos até R$ 2.000) em função da especialização produtiva e o plantio de cultivos voltados
ao mercado. Dentre as famílias que possuem um autoconsumo mais fortalecido (acima de R$
2.000,01) a situação é contrária. Ou seja, o autoconsumo perfaz um montante bem mais
significativo, principalmente quando se analisa o autoconsumo animal.
Com relação aos valores totais que a produção de autoprovisionamento perfaz nas
famílias, o autoconsumo vegetal atinge um valor médio de R$ 1.337,83 e o animal de R$
1.556,57, totalizando, assim, um autoconsumo médio total por ano de R$ 2.904,40 para as
famílias do Alto Uruguai. Isto representa um autoconsumo de R$ 242,03 por mês por família,
ficando em torno de um salário mínimo federal mensal, que vigorava por ocasião da
realização da pesquisa, que era de R$ 240,00. Sendo a média de pessoas por família em torno
de 4,0 membros, pode-se obter a média total per capita de autoconsumo que é de R$ 60,50
por mês. Estes valores diferem dos obtidos por Leite (2003; 2004) que estudou o
autoconsumo em quatro assentamentos no Rio de Janeiro e encontrou um valor anual de
autoconsumo médio por família de R$ 1.078,72 e de R$ 89,89 por mês, sendo que os seus
valores de autoconsumo ficaram bem abaixo do encontrado neste estudo
88
. Este valor por
ocasião da pesquisa, como o autor mesmo ressaltou, equivaleria a meio salário mínimo.
88
Ressalta-se, como já foi abordado no capítulo 2, que a metodologia utilizada por Leite (2003; 2004) é diferente
da utilizada no âmbito da pesquisa AFDLP (2003). Dessa forma, a comparação dos dados obtidos pelas duas
102
A produção de autoconsumo também assume um montante significativo quando se
estima esta em relação ao Produto Bruto Total como demonstra o Gráfico 1. O Produto Bruto
de Autoconsumo assume um montante, em média, de 14,84% do Produto Bruto Total. Ou
seja, quase 15% de tudo que é produzido nas unidades de produção no Alto Uruguai é
destinado ao autoprovisionamento, o que indica a sua importância para a reprodução social e
alimentar das famílias. Por outro lado, a proporção do Produto Bruto que é destinado à venda
assume um montante de 85,14% do Produto Bruto Total. Para o caso da região Sul os estudos
da FAO/INCRA e de Buainain et all (2001, p. 15) já apontavam que em torno de 20% do que
é produzido pela agricultura familiar é utilizado no interior do próprio estabelecimento na
forma de autoconsumo da própria família para fazer frente as suas necessidades, o que indica
que os resultados de pesquisas diferentes são quase coincidentes.
Gráfico 1: Proporção do Produto Bruto de autoconsumo e de venda sobre o Produto
Bruto Total no Município de Três Palmeiras/RS.
14,84
85,15
0%
20%
40%
60%
80%
100%
Proporção de PBVenda sobre o PBTotal
Proporção de Autoconsumo sobre PBTotal
Fonte: Pesquisa AFDLP – CNPq/ UFPel /UFRGS, 2003.
A importância do autoconsumo para a agricultura familiar do Alto Uruguai também
fica evidenciada quando se analisa a sua relação com a renda agrícola das famílias. De acordo
com a Tabela 6, observa-se que a grande parte das famílias possui uma renda agrícola de R$
0,0 (zero) a 2.000 por ano (47,4% e 32,2%, respectivamente, da venda de produtos vegetais e
animais). Renda agrícola esta que é considerada baixa em relação ao restante das demais
famílias, já que algumas possuem renda agrícola que ultrapassa os R$ 10.000 anuais (22% e
23,7% da renda vegetal e animal, respectivamente). Isso também confirma a idéia da
pesquisas pode não ser elucidativo dos processos sociais e, também, pode não ser um procedimento correto do
ponto de vista estatístico. Entretanto, mesmo assim, mantém-se a comparação como forma meramente
demonstrativa e com o intuito de manter um diálogo com outros estudos que estão sendo realizados no país no
âmbito desta mesma temática.
103
diferenciação social e produtiva entre os agricultores familiares, tal como se abordou no
capítulo 1. O processo de mercantilização social e econômica da agricultura familiar gerou
um movimento diferenciado entre os agricultores, em que em alguns ocorreu o solapamento
da rentabilidade agrícola e, em outros, houve um aumento desta advindo da integração a
dinâmica territorial da produção de grãos e commodities agrícolas.
Tabela 6: Estratos de renda agrícola da venda de produtos vegetais e animais no
Município de Três Palmeiras/RS.
Estratos de renda a
rícola da venda de
produtos (R$/ano)
Vegetal
(%)
Animal
(%)
0 a 1000 27,1 16,9
1000,01 a 2000,00 20,3 15,3
2000,01 a 3000,00 10,2 11,9
3000,01 a 5000,00 11,9 15,3
5000,01 a 10000,00 8,5 16,9
> 10000,01 22 23,7
Total 100 100
Média de renda agrícola (R$/ano) 8.377,33 8.105,24
Média total de renda agrícola (R$/ano) 16.482,57
Fonte: Pesquisa AFDLP – CNPq/ UFPel /UFRGS, 2003.
A média da renda agrícola vegetal é de R$ 8.337,33 e a animal de R$ 8.105,24,
sendo que a renda agrícola média total das famílias é de R$ 16.482,57 para o Alto Uruguai.
Desta forma, um autoconsumo médio total de R$ 2.904,40, conforme demonstra a Tabela 6,
corresponde a 17,62% da renda agrícola média total obtida no ano pelos agricultores
familiares, assumindo assim, uma importância decisiva na reprodução social e alimentar das
famílias. Caso estas famílias tivessem que comprar o autoprovisionamento alimentar no
mercado, a preços de mercado (preços pagos aos agricultores), gastariam quase 18% de renda
agrícola anual nesta operação da compra da alimentação necessária à família.
Na Tabela 7, tem-se a correlação da renda agrícola com o autoconsumo das famílias.
A grande maioria das famílias que possuem um autoconsumo até R$ 2.000 por ano tem uma
baixa renda agrícola que chega a R$ 5.000 por ano (71,4% e 66,7% no estrato de R$ 0 a 1.000
e de 44,8% e 57,1% no estrato de R$ 1.000,01 a 2.000 de autoconsumo vegetal e animal,
respectivamente), demonstrando que para estas famílias pobres em termos de renda agrícola o
autoconsumo também é baixo, podendo em alguns casos, estes agricultores se encontrarem
em situações de insegurança alimentar. Isso pode ser comprovado quando se analisa o estrato
de autoconsumo até R$ 1.000 em que neste, se encontram 19% e 13,3% do autoconsumo
(vegetal e animal, respectivamente) das famílias de agricultores familiares que possuem uma
renda agrícola que é negativa, ou seja, menor que zero. Neste caso, é que o autoconsumo
104
possui uma maior importância dentro da unidade de produção para a segurança alimentar do
grupo doméstico, mesmo sendo baixo (até R$ 1.000/família/ano), no sentido de “frear” um
processo maior de vulnerabilização da reprodução social e alimentar que está ocorrendo nas
famílias. Ou seja, é nas unidades de agricultores familiares mais pobres que a produção para
autoconsumo assume uma importância decisiva.
Tabela 7: Estratos de renda agrícola por estratos de Produto Bruto Vegetal e Animal de
autoconsumo no Município de Três Palmeiras/RS.
Estratos de autoconsumo (R$/ano)
0 a 1000 1000,01 a 2000 2000,01 a 3000 3000,01 a 5000
Estratos de renda
agrícola (R$/ano)
Veg
(%)
Ani
(%)
Veg
(%)
Ani
(%)
Veg
(%)
Ani
(%)
Veg
(%)
Ani
(%)
< 0 19,0 13,3 0,0 7,1 0,0 0,0 0,0 0,0
0 a 5.000 71,4 66,7 44,8 57,1 14,3 23,1 0,0 0,0
5.001 a 10.000 0,0 6,7 37,9 17,9 57,1 53,8 0,0 66,7
10.001 a 15.000 9,5 6,7 3,4 10,7 28,6 15,4 50 0,0
15.001 a 20.000 0,0 0,0 3,4 0,0 0,0 0,0 0,0 33,3
20.001 a 30.000 0,0 0,0 3,4 3,6 0,0 7,7 50 0,0
30.001 a 50.000 0,0 0,0 3,4 3,6 0,0 0,0 0,0 0,0
> 50.000 0,0 6,7 3,4 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0
Total 100 100 100 100 100 100 100 100
Fonte: Pesquisa AFDLP – CNPq/ UFPel /UFRGS, 2003.
Nos estratos maiores de autoconsumo que os de R$ 2.000,01 a 3.000 as percentagens
de famílias que possuem renda agrícola maior possuem a tendência de passar para o estrato de
R$ 5.000,01 a 10.000 (57,1% e 53,8%) e nos estratos de R$ 10.000,01 a 15.000 (28,6% e 15,4
de autoconsumo vegetal e animal, respectivamente). No caso do estrato de autoconsumo de
R$ 3.000,01 a 5.000 a tendência é que a renda agrícola também ser maior. Em resumo, os
dados da Tabela 7 demonstram que naquelas famílias onde o autoconsumo é mais
significativo, ou seja, onde este assume valores monetários maiores a renda agrícola também é
maior. Deste modo, as famílias rurais que possuem o autoconsumo fortalecido internamente a
unidade de produção auferem maiores rendas agrícolas, o que sustenta a hipótese de que o
autoconsumo é a base e o lastro sobre o qual deve se assentar, prioritariamente, todo o
processo de reprodução social das famílias do Alto Uruguai.
Também se faz necessário o estudo do autoconsumo do ponto de vista da
composição do grupo doméstico, tal como propôs Chayanov (1964), por sexo e idade nas
famílias do Alto Uruguai
89
. Neste sentido, a Tabela 8 mostra a estratificação das famílias por
89
Devido a limitações do Banco de dados da Pesquisa AFDLP (2003) não foi possível estratificar as famílias por
sexo e correlacioná-lo com o autoconsumo.
105
idade. As maioria das famílias compõem-se de grupos domésticos de “meia idade” que estão
no meio do seu ciclo biológico de evolução, representando 35,6% do total de famílias entre
30,1 a 40 anos de idade. Até esta faixa etária estão 66,1% de todas as famílias analisadas na
pesquisa, demonstrando que a grande maioria das famílias possui um maior número de
consumidores e trabalhadores nesta faixa etária.
Tabela 8: Estratos das médias de idade das famílias no Município de Três
Palmeiras/RS.
Estratos das médias de idade
(anos)
Percentagem
(%)
Percentagem acumulada
(%)
< 21 5,1 5,1
21,01 a 26 15,3 20,3
26,01 a 30 10,2 30,5
30,01 a 40 35,6 66,1
40,01 a 50 15,3 81,4
> 50 18,6 0,0
Total 100 100
Fonte: Pesquisa AFDLP – CNPq/ UFPel /UFRGS, 2003.
Nos extremos encontram-se as famílias jovens (20,3% até 26 anos de idade) e
aquelas que estão se encaminhando para a etapa final do seu ciclo biológico (18,6% com mais
de 50 anos de idade). Nas primeiras, geralmente, o número de consumidores é maior e nas
segundas é menor como mostrou Chayanov (1964). É significativa a percentagem de 18,6%
de famílias com mais de 50 anos de idade, sendo isso explicado devido à ocorrência de muitas
unidades de produção onde a composição das mesmas era principalmente, ou exclusivamente,
de pessoas idosas, inclusive aposentados.
A Tabela 9 mostra que as famílias que possuem um autoconsumo até R$ 1.000
possuem uma idade bastante avançada, geralmente mais de 50 anos de idade (47,6% e 33,3%
das famílias para o autoconsumo vegetal e animal, respectivamente). Estas famílias são
compostas, provavelmente, por um membro ativo em condições de trabalho ou por nenhum e,
os seus pais já com idades avançadas e sem condições de trabalho, sendo definidas como
famílias no final do seu ciclo biológico de evolução. É por esse motivo que os valores do
autoconsumo são tão baixos neste estrato (R$ 0,0 a 1.000).
Nos estratos de autoconsumo superiores a R$ 1.000,01, nota-se que a maioria das
famílias se localizam em média de idades entre 30,01 a 40 anos comprovando os dados da
Tabela 8 apresentada anteriormente. As famílias com média de idade de 30,01 a 40 anos são
famílias de “meia idade” caracterizadas por um grande número de consumidores e também de
106
trabalhadores, mas principalmente de consumidores. Por esse motivo é que os valores do
autoconsumo neste tipo de família são tão elevados chegando, em muitos casos, a variar de
R$ 3.000,01 a 5.000 como demonstra o quarto estrato da Tabela 9 (50% e 66,7% das famílias
para autoconsumo vegetal e animal, respectivamente).
Tabela 9: Estrato das médias de idade das famílias por estrato de Produto Bruto
Vegetal e Animal de autoconsumo no Município de Três Palmeiras/RS.
Estratos de autoconsumo vegetal e animal (R$/ano)
0 a 1000 1000,01 a 2000 2000,01 a 3000 3000,01 a 5000
Estratos de média de
idade (anos)
Veg
(%)
Ani
(%)
Veg
(%)
Ani
(%)
Veg
(%)
Ani
(%)
Veg
(%)
Ani
(%)
< 21 4,8 6,7 6,9 3,6 0,0 7,7 0,0 0,0
21,01 a 26 4,8 13,3 24,1 14,3 14,3 15,4 0,0 33,3
26,01 a 30 0,0 13,3 17,2 14,3 14,3 0,0 0,0 0,0
30,01 a 40 28,6 13,3 31 42,9 71,4 38,5 50 66,7
40,01 a 50 14,3 20 17,2 7,1 0,0 30,8 50 0,0
> 50 47,6 33,3 3,4 17,9 0,0 7,7 0,0 0,0
Total 100 100 100 100 100 100 100 100
Fonte: Pesquisa AFDLP – CNPq/ UFPel /UFRGS, 2003.
A existência de horta e pomar nas unidades de produção familiares também pode ser
considerado um indicador da presença ou não do autoconsumo de verduras, saladas e frutas na
alimentação das famílias. A Tabela 10 mostra que 89,8% das famílias possuem horta e que
94,9% também possuem pomares em suas propriedades, demonstrando a existência do
autoconsumo destes produtos. Contudo, um percentual significativo de famílias (10,2%), não
possui horta em suas propriedades e, provavelmente, não consomem produtos advindos da
horta na alimentação, exceto no caso de que os adquiram no mercado local.
Tabela 10: Percentagens de famílias que possuem horta e pomar na propriedade no
Município de Três Palmeiras/RS.
Horta (%) Pomar (%)
Sim 89,8 94,9
Não 10,2 5,1
Total 100,0 100,0
Fonte: Pesquisa AFDLP – CNPq/ UFPel /UFRGS, 2003.
Quando perguntadas sobre o montante de produtos produzidos na horta e no pomar e
se estes eram suficientes para o autoconsumo do grupo doméstico, a grande maioria das
famílias respondeu afirmativamente (94,3% e 87,5% para a horta e pomar, respectivamente),
conforme mostra a Tabela 11. Neste caso, também, se observa que um percentual
significativo de famílias (15,2%) respondeu que o pomar não satisfaz as necessidades de
107
autoconsumo dos integrantes das famílias, demonstrando uma carência na produção própria
de frutas para a alimentação do grupo doméstico.
Tabela 11: Percentagens das famílias nas quais a horta e o pomar são suficientes para
suprir o consumo do grupo familiar no Município de Três Palmeiras/RS.
Horta (%) Pomar (%)
Sim 94,3 87,5
Não 5,7 12,5
Total 100,0 100,0
Fonte: Pesquisa AFDLP – CNPq/ UFPel /UFRGS, 2003.
A grande percentagem de pessoas que possuem horta e pomar e que estas cobrem as
necessidades de consumo das famílias, conforme demonstram os dados expostos, conduz a
uma conclusão. A de que os agricultores familiares continuam valorizando e produzindo os
alimentos provenientes da horta e do pomar para a sua alimentação e que a mercantilização do
autoconsumo ainda não atingiu, em grande medida, a produção da horta e do pomar como
mostra a Figura 2. Isso colabora com o que Van der Ploeg (1990; 1992) chamou de diferentes
graus de mercantilização, pois não são todas as esferas do processo produtivo que são
mercantilizadas.
Este é um típico caso que pode ser entendido pelo conceito de diferentes graus de
mercantilização como aludiu Vander Ploeg (1990; 1992), pois os agricultores familiares,
geralmente, mercantilizam o consumo das chamadas “pequenas lavouras”, mas não são todos
que mercantilizam a produção dos pequenos gêneros alimentícios como os produtos
provenientes da horta e do pomar doméstico (Figura 2). A mercantilização do autoconsumo,
no Alto Uruguai, acontece mais intensamente nas chamadas “pequenas lavouras” de
autoprovisionamento alimentar como é o caso das de arroz, feijão, amendoin, mandioca, trigo,
dentre outras.
108
Fonte: Pesquisa de Campo (2004).
Figura 2: Importância da produção de autoconsumo da horta e pomar doméstico na
agricultura familiar do Alto Uruguai.
Ressalta-se, que nesta seção não é o objetivo de se realizar uma análise exaustiva em
torno da questão da mercantilização do autoconsumo familiar e da vulnerabilização. Estas
questões serão retomadas durante o desenrolar deste capítulo e dos outros também, onde serão
mais bem expostas e desenvolvidas, pois tanto a mercantilização do autoconsumo como a
vulnerabilização, são conceitos “horizontais” que perpassam toda a análise que se pretende
desenvolver nesta dissertação e, deste modo, não são passíveis de serem abordados somente
em uma seção ou capítulo em específico.
Esta seção teve como objetivo demonstrar a importância da produção de
autoconsumo para a reprodução social e a segurança alimentar das famílias do Alto Uruguai.
Nesta próxima seção, pretende-se aprofundar a análise em torno da segurança alimentar das
famílias, utilizando-se para isso os depoimentos que foram coletados a campo através do uso
da metodologia qualitativa (entrevistas semipadronizadas). Pretende-se demonstrar que a
produção de autoconsumo é responsável pela geração de alguns dos principais princípios
fundantes do conceito de segurança alimentar, tal como já foi definido anteriormente. É esta a
análise que se empreende agora.
3.2 – Autoconsumo e segurança alimentar na agricultura familiar.
109
Nesta seção, quer-se demonstrar, mesmo que sucintamente, as transformações por
que passou o autoprovisionamento alimentar a partir dos anos de 1970 com as transformações
técnicas-produtivas que a assim chamada modernização agrícola gerou nas famílias da região.
As mudanças que se quer evidenciar são sempre comparativas, tomando-se o modo de vida
colonial como referência em tal empreendimento. Por outro lado, também se quer evidenciar
os papéis que a produção de autoconsumo assume e cumpre na reprodução social e na
segurança alimentar dos agricultores familiares do Alto Uruguai, realizando-se a análise da
segurança alimentar a partir dos principais princípios norteadores do conceito, tal como o
definiu Maluf et all (2004)
90
.
No sistema agrícola colonial a unidade doméstica operava com uma racionalidade
cujo objetivo prioritário e fundante era a satisfação das necessidades dos membros que
compunham o grupo doméstico. Como se demonstrou nos capítulos 1 e 2, estes colonos
operavam na lógica da produção dos próprios recursos com o fim último de garantir aquilo
que Chayanov (1974) designou de equilíbrio ou balanço ótimo entre produção e consumo.
Embora houvesse produção de excedentes as unidades produtivas não estruturavam os seus
processos produtivos exclusivamente para a produção de bens de troca. Por esta razão, todo o
colono produzia o suficiente para alcançar a satisfação das necessidades familiares em termos
de produção de alimentos garantindo, assim, em certa medida, a segurança alimentar e o bem
estar da família, pois estes eram os objetivos finalístico das suas ações e cálculos subjetivos
como demonstrou Chayanov (1974). Deste modo, a seguir, ressaltam-se algumas evidências
empíricas de pesquisa que são elucidativas desta lógica que permitia ao colono possuir uma
alimentação suficiente e, assim, garantir a sua segurança alimentar e a reprodução social do
grupo doméstico.
Durante o trabalho de campo o SAC sempre foi definido pelos informantes como
uma “época de abundância” de alimentos e uma época em que o agricultor familiar possuía
segurança alimentar. Isso se deve ao fato de que, a produção de autoconsumo atendia a alguns
dos princípios da segurança alimentar junto às famílias como: a qualidade nutricional dos
alimentos consumidos, a questão do acesso facilitado a estes, a produção das quantidades
necessárias e permanentes a família e a obtenção de uma alimentação que respeitava os
hábitos de consumo dos membros do grupo doméstico. Neste sentido, a menção sempre é
90
Ressalta-se, para fins de elucidação do objeto de estudo tal como recortamo-o na introdução deste capítulo,
que a abordagem em torno da segurança alimentar que se quer realizar nesta seção é realizada do ponto de vista
do agricultor familiar e da sua produção de autoconsumo. Não se analisam, por exemplo, a segurança alimentar
das demais populações não agrícolas do território. Esta segunda análise será realizada no capítulo 5.
110
feita em relação às “tuias”
91
que sempre estavam cheias de cereais como o arroz, o feijão, o
amendoim, o milho-pipoca e ao “porão” da casa onde se encontravam os produtos
transformados como o vinho colonial, os salames, os queijos, a banha, etc. Os agricultores se
referem a este período como um período de “fartura”, pois mesmo as famílias sendo grandes
em números de membros, geralmente 8 a 10 pessoas, o colono conseguia produzir a
alimentação de todo o grupo doméstico (Diário de Campo, 2004).
Este processo de autosufisciência alimentar das colônias no início do século XX é
demonstrado pelos relatos obtidos. Note que a comparação é sempre realizada temporalmente,
ou seja, a situação dos dias atuais com o modo de vida e a alimentação dos colonos no sistema
agrícola colonial, que é tomado como uma “época de fartura”, de abundância alimentar e de
“segurança alimentar”. No segundo relato, inclusive fatores como a questão de se viver por
um período maior de tempo e com saúde, aparecem como explicativos da importância da
produção de autoconsumo alimentar.
Antigamente, eu me lembro, [...] ainda existia no interior aquelas famílias
tradicionais que ainda tinham aquelas casas antigas e que nos porões tinham
as tuias e lá você encontrava tuias com farinha, com arroz, com feijão, com
amendoim, com pipoca. Encontrava as latas de banha em abundância, banha
de porco, tu encontrava lá varas de salame pendurado, tu olhava para o outro
lado tu encontrava uma tábua cheia de formas de queijo, coisa que tu hoje não
consegue encontrar no interior uma propriedade com este nível [...]
(Entrevista 7, 2004, M. Z. B., Extensionista Rural, Emater).
O meu avô hoje teria 118 anos (se refere se ele fosse vivo) e eu morei com ele
e não tinha luz, mas se produzia de tudo e com segurança alimentar e ele tinha
14 filhos. O pai que é falecido na geração dele teve 8 (filhos) e eu hoje tenho
3 e tu vê como vai diminuindo, mas 14 filhos e se criavam todos e se criavam
bem. Fartura se dizia, se dizia que se tinha fartura e com segurança
alimentar por que o meu avô morreu com 87 anos [...]. Nunca tinha ido num
médico e num dentista (Entrevista 15, 2004, E. G., Economista, Codemau).
As mudanças mais significativas na produção de autoconsumo parecem ter ocorrido
à medida que a agricultura familiar do Alto Uruguai incorporou um conjunto de inovações
tecnológicas (mecanização, sementes melhoradas, insumos modernos, etc) patrocinados pelo
processo mais geral de modernização da agricultura. A vulnerabilização do autoconsumo,
neste contexto, parece estar relacionada ao processo de diminuição da fertilidade natural dos
solos que vinha acontecendo desde o sistema agrícola colonial e, também, ao início do
processo de migrações no Alto Uruguai nos anos 70. A pouca fertilidade dos solos inibiu a
manutenção dos padrões alimentares baseados no autoconsumo, enquanto que as migrações
91
As tuias são pequenas caixas de madeira fabricadas pelos próprios colonos nas quais os colonos guardavam os
alimentos para o seu consumo como o feijão, o arroz, a batatinha inglesa, o amendoin, o milho-pipoca, dentre
111
foram responsáveis por um déficit de força de trabalho nas famílias onde, muitas vezes,
apenas as forças marginais como se referiu Tepicht não conseguiam produzir o autoconsumo
e, assim, reproduzir a lógica e o padrão de vida das famílias do sistema agrícola colonial. Este
processo é ilustrado pelo depoimento de um agricultor, que menciona como fatores da
vulnerabilização do autoconsumo a baixa fertilidade do solo e a falta de membros na unidade
doméstica para executar os trabalhos produtivos.
(A produção de autoconsumo) estava mais forte no passado. Hoje está mais
fraca, está terminando a agricultura. Desde a terra se tu não botar nada ela não
produz. As piazadas vão crescendo e vão saindo, ficam só os velhos e como é
que nós vamos se virar. É que não dá mais a planta como dava e a gente tem
pouca ajuda [...] (Entrevista 1, 2004, A. N., Agricultor familiar).
Foi o processo de modernização da agricultura, através da especialização produtiva,
que fragilizou o autoconsumo entre os agricultores familiares. Este processo de
transformações técnicas-produtivas fez com que o agricultor familiar modificasse a sua lógica
de reprodução social, no sentido de que este passou a desenvolver sistemas produtivos
altamente específicos como no caso da soja, do milho, do trigo, do fumo e da integração aos
CAIs. Isso decore de um privilegiamento das atividades produtivas rentáveis e mercantis em
detrimento da produção de autoconsumo que não gera uma renda monetária perceptível aos
agricultores. Esta lógica atual dos agricultores familiares é ilustrada pelo trecho da entrevista
com um agricultor que nos formula esta questão claramente. Note que, neste caso, a
comparação também é realizada em relação ao modo de vida colonial como uma época em
que se tinha alimentação em casa com os dias atuais em que o agricultor “cultiva mais o que
dá dinheiro”.
[...] Na época que a gente era criança se cultivava mais as coisas de
alimentação em casa, hoje mesmo o pessoal acha que fazer dinheiro é mais
fácil e daí tem que comprar banha essas coisas. [...] O pessoal cultiva mais o
que dá dinheiro, tem uma mentalidade de que o agricultor tem que ter o
dinheiro no bolso, mas que na verdade não seria isso, nós tendo a alimentação
é essencial (Entrevista 2, 2004, J. N., Agricultor familiar e Vereador, MPA).
Se a percepção de que a especialização produtiva é que deslocou a produção de
autoconsumo é consenso entre os agricultores familiares o mesmo não acontece com as suas
organizações sociais. Por exemplo, para a Fetag foi o próprio agricultor que se especializou
produtivamente em algumas culturas e se “esqueceu de produzir” o autoconsumo. Para esta
organização de representação social, o processo de vulnerabilização da produção de
outros. Geralmente, eram armazenados nestes compartimentos os alimentos que não eram perecíveis no curto
espaço de tempo.
112
autoconsumo é endógeno a unidade de produção onde é o agricultor que “só visa o lucro e
esqueceu um pouco do básico”. Este movimento de vulnerabilização do autoconsumo é
explicado devido a esta produção não possui valor para a comercialização e por que os
agricultores plantam os cultivos que lhes dão maiores rentabilidades, por que na ótica dos
agricultores “tendo o dinheiro eu tenho tudo”. Para a Fetag, o modelo tecnológico de
agricultura e os fatores externos a unidade de produção não possuem tanta influência sobre a
vulnerabilização do autoconsumo alimentar das famílias.
Já para os representantes do MPA o principal fator de vulnerabilização do
autoprovisionamento alimentar é externo a unidade de produção e o agricultor é apenas uma
“vitima” deste processo. A perda dos conhecimentos em torno da produção do autoconsumo é
atribuída ao “pacote verde” da modernização agrícola desde os anos 70. Isso é realizado com
um discurso político e ideológico muito forte contra as empresas multinacionais,
principalmente a Monsanto e, também, contra o poder público que segundo o MPA seriam os
principais responsáveis pela difusão deste “modelo” de desenvolvimento. O relato que segue
de uma liderança do MPA é elucidativo disso. De acordo com o informante foi o “pacote
verde” das multinacionais e dos “governos” que vulnerabilizou o autoconsumo nos
agricultores, através da indução da especialização produtiva e da compra dos alimentos no
mercado. Nota-se que o informante menciona, ainda, a perda do conhecimento do agricultor,
ou seja, o corpo do saber, como se referiram Woortmann e Woortmann (1997), como
explicação para o processo de vulnerabilização do autoconsumo.
Dentro então dessa realidade dos últimos 20 anos, aproximadamente, as
décadas de 80 e 90 aonde veio por parte dos planos dos governos, das
multinacionais na nossa visão o pacote verde onde induziu os nossos
agricultores a produzir uma só cultura para vender no mercado e comprar o
que comer para a sua subsistência. [...] E esse pacote que tem sido induzido
pelas multinacionais, químicos, está fazendo com que o agricultor perca esses
conhecimentos, essa cultura, a produção lá, a qualidade da produção de
lingüiça, salame, o próprio queijo, enfim, muitos agricultores estão perdendo
isso (Entrevista 6, 2004, C. A., Representante Sindical, MPA).
Para muitos agricultores quando perguntados se o modelo tecnológico ajudava na
produção de autoconsumo, a resposta, em alguns casos, foi afirmativa e estes citavam o uso
de adubos, de fertilizantes e de defensivos como positivos para aumentar a produção de
alimentos para a família. A justificativa dos agricultores é de que se tem que usar a tecnologia
por que esta “ajuda-nos” e que sem ela não é possível produzir o autoconsumo por que as
113
unidades de produção “não tem mais mão de obra” e se “não plantar bem não adianta” como
os relatos dos dois agricultores ilustram
92
.
[...] O problema é que não tem mais mão de obra, então o pequeno, em
primeiro lugar, ele tem que quando ir plantar ele tem que plantar muito bem,
porque além de pouca terra, se ele plantar mal ele colhe mal. Então eu
também uso bastante agrotóxico assim, herbicida para o caso das ervas
daninhas nas lavouras (Entrevista 3, 2004, L. F., Agricultor familiar).
O adubo a gente tem que comprar por que onde não coloca adubo caseiro não
dá, tem que comprar. E se tu não botar adubo nas plantas não dá, não adianta.
Ele ajuda o agricultor, tem que botar (Entrevista 16, 2004, R. D., Agricultor
familiar).
Contudo, mesmo com a vulnerabilização do autoconsumo no Alto Uruguai em
função do processo de mercantilização social e econômica da agricultura familiar, a produção
de autoprovisionamento familiar ainda é relevante em todas as famílias estudadas, possuindo
um papel na reprodução social e na segurança alimentar dos agricultores. De acordo com a
pesquisa de campo, os principais papéis da produção de autoconsumo estão ancorados em
alguns princípios fundantes do conceito de segurança alimentar, tal como definido
anteriormente como base em Maluf et all (2004). Segundo o autor, a segurança alimentar dos
indivíduos que, no caso estudado são os agricultores familiares, deve ser pautada por alguns
princípios centrais.
De acordo com estes princípios, a definição do que seja a segurança alimentar
compreenderia a questão do acesso permanente das pessoas (agricultores) aos alimentos.
Também se constituiriam como dimensões do conceito, a qualidade nutricional dos alimentos
e o fornecimento destes de acordo com as quantidades e necessidades dos indivíduos. Por fim,
se faz de suma importância à definição da segurança alimentar no que concerne aos hábitos
alimentares, pois segundo o autor esta é uma dimensão importante da segurança alimentar. Ou
seja, a alimentação das pessoas deve estar de acordo com a “cultura” alimentar de uma dada
população específica ou local (Maluf et all, 2004). Definidos os princípios ou dimensões do
conceito de segurança alimentar, passa-se a analisar, em seguida, cada um destes princípios
com relação ao seu comportamento frente ao agricultor familiar e a produção de
autoconsumo.
O primeiro princípio norteador do conceito de segurança alimentar é o da qualidade
nutricional dos alimentos consumidos pelos agricultores. Neste sentido, a produção de
autoconsumo é sempre interpretada como geradora da segurança alimentar por conter uma
92
Esta contradição dos agricultores não é nova, pois Conterato (2004) estudando a mercantilização da agricultura
familiar no Alto Uruguai já havia diagnosticado esta questão.
114
qualidade nutritiva que seria “superior” aos alimentos da cidade. Este princípio é justificado
devido à produção de autoprovisionamento alimentar ser uma produção isenta de defensivos
agrícolas e de “coisas químicas” como se referem os agricultores, pois estes não usam
agrotóxicos na sua produção e manejo
93
. Este princípio da segurança alimentar que a
produção de autoconsumo preenche é formulado por um representante sindical em
comparação com os alimentos de cidade que o agricultor não sabe a origem, os atributos de
qualidade, as contaminações, os eventuais transtornos a saúde, etc.
Em primeiro lugar o produtor deve saber o que vai consumir. Então a
segurança alimentar é essencial porque ele sabendo o que ele está produzindo
vai ser até melhor para a subsistência da família dele, [...] cultivando de uma
forma mais orgânica e sem o uso de defensivos por que ele está produzindo
para ele mesmo. Quer dizer, segurança alimentar se você adquire um produto
na cidade, no mercado você não sabe a origem desse produto e o que foi
usado para cultivar ele. Quer dizer, qual é o estágio de contaminação dele,
isso é prejudicial ou não para a saúde (Entrevista 8, 2004, D. S.,
Representante Sindical, Fetag).
Uma segunda formulação, muito recorrente, é a de que a produção de autoconsumo
gera uma economia monetária para as famílias e também uma maior autonomia do agricultor
frente ao contexto social e econômico. Este princípio da segurança alimentar está relacionado
ao acesso aos alimentos, já que aqueles agricultores que possuem o autoconsumo não
vulnerabilizado nas suas unidades de produção não terão necessidade de comprar os alimentos
necessários para atingir o balanço ótimo a que Chayanov (1974) se referiu. Estes agricultores,
produzindo internamente na unidade de produção os seus próprios alimentos passam a não
depender da aquisição do consumo externo a propriedade, configurando-se, assim, uma
situação onde os agricultores possuem um acesso facilitado aos alimentos necessários e,
também, ao mesmo tempo, mantém uma certa autonomia relativa frente ao mercado, pois não
necessitarão realizar compras de alimentos para a família. Os agricultores possuem a
consciência de que se forem comprar tudo de fora da unidade de produção “não tem renda
que agüente” como o trecho da entrevista demonstra. Note que o agricultor entrevistado se
refere tanto a autonomia que a produção de autoconsumo gera utilizando-se da expressão “se
93
Menasche (2003) estudando a questão dos transgênicos no Norte do Rio Grande do Sul e no Centro Sul do
Estado também observou que os agricultores não utilizavam agrotóxicos e nem organismos geneticamente
modificados (OGM) quando se tratava da sua própria alimentação. Os agricultores também fazem menção de
que nos tempos de antigamente não existiam “estas coisas químicas” para produzir os alimentos e que hoje é
“quase tudo com químicos”. O relato de um agricultor ilustra isso.
[...] (Antigamente) ninguém conhecia coisas tóxicas naquele tempo. A comida era de
primeira, tudo era sem coisas tóxicas e a gente assim nunca que fosse faltar alguma
coisa. Era sempre abundante (Entrevista 13, 2004, B. M., Agricultor familiar).
115
livrar de comprar no mercado”, bem como ao acesso facilitado e a economia que é gerada
com a produção própria dos alimentos.
A importância de se produzir tudo é por que se livra de comprar no mercado.
Produzindo em casa se torna bem mais barato e o alimento dá para se dizer
que é bom, sadio. Quanto menos se comprar no mercado é maior a economia
que se faz. Se eu vou comprar galinha, vou comprar a batatinha, vou
comprar tudo que é coisa não tem renda que agüente (Entrevista 10, 2004, L.
S., Agricultor familiar).
Quando perguntados sobre a importância de produzirem os próprios alimentos na sua
unidade de produção, os agricultores foram claros em formular que a importância principal é a
de possuírem os alimentos em quantidades suficientes para alimentar a família. Neste sentido,
a produção e posse das quantidades de alimentos necessários à alimentação do grupo
doméstico para atingir o que Wolf (1976) chamou de mínimo calórico, pode ser entendida
como um dos princípios da segurança alimentar como formulou Maluf et all (2004). Este se
refere à garantia de uma alimentação em quantidades suficientes e de modo permanente para
que os agricultores não passem fome e nem sofram restrições alimentares. Assim, a produção
de autoprovisionamento também preenche este princípio da segurança alimentar, evitando
com que os agricultores passem fome como eles mesmos se referiram durante as entrevistas.
Note que o “passar fome”, no caso do segundo informante é esboçado no sentido de não
possuir o autoconsumo e este ter que ser comprado no mercado.
A importância é que a gente tendo isso ai dá para dizer que a gente tem tudo.
A importância é manter sempre isso ai, continuar para não passar fome [...]
(Entrevista 10, 2004, L. S., Agricultor familiar).
Se tu vai tirar dinheiro (para comprar o consumo) além que está mal, no caso,
vai querer tirar. Nem tem dinheiro no bolso para retirar e pode até passar
fome (Entrevista 13, 2004, B. M., Agricultor familiar).
Um outro princípio da segurança alimentar que é preenchido pela produção de
autoconsumo refere-se ao de fornecer uma alimentação aos agricultores que esteja de acordo
com os hábitos de consumo “arraigados” do território. Este princípio que a produção de
autoconsumo preenche pode ser entendido como o agricultor ter acesso a uma alimentação
que condiga com o que ele e a sua família gostam de se alimentar e consumir nas suas
refeições diárias. Por este princípio da segurança alimentar, gerado pela produção de
autoprovisionamento, se faz possível para as famílias suprirem as suas necessidades como
formulou Chayanov (1974) sem se desfazer da sua “cultura” alimentar, do seu corpo do saber
relacionado ao consumo, preparo e aos hábitos alimentares que foram herdados dos seus
ascendentes. Este aspecto é importante de ser compreendido, já que as unidades familiares
116
que possuem o seu autoconsumo não vulnerabilizado não necessitam suprir as suas
necessidades através de alimentos “estranhos” ao grupo doméstico como no caso de produtos
industrializados. Neste sentido, a não vulnerabilização do autoconsumo gera a conservação
dos hábitos alimentares que, por sua vez, estão ligados à manutenção da bagagem cultural
histórica das gerações ascendentes do território.
Um outro papel importante da produção de autoconsumo é o de gerar rendas não
monetárias para as unidades de produção, possuindo, assim, uma função importante na
reprodução social das famílias. Durante o trabalho de campo, pode-se constatar junto aos
agricultores que este tipo de produção possui poucos custos de produção embutidos em sua
obtenção, já que quase não se empregam tecnologias onerosas como adubos químicos,
sementes melhoradas e agrotóxicos. Também não se utiliza a mecanização pesada, pois a
produção é desenvolvida em pequenas áreas nas imediações da casa ou da horta e a força de
trabalho é toda familiar, sendo que neste contexto cumprem papéis importantes às mulheres,
crianças e velhos, as forças marginais a que Tepicht se referiu. Assim, pode-se dizer que,
basicamente, os “insumos” utilizados para geração do autoconsumo na agricultura familiar
são de dois tipos principais: o conhecimento do agricultor e a força de trabalho que ele detém
na estrutura familiar.
O objetivo desta seção foi o de demonstrar que a produção de autoconsumo possui
um papel fundamental na geração de processos de segurança alimentar junto aos agricultores
familiares do Alto Uruguai. Na próxima seção, se analisa a produção de autoconsumo do
ponto de vista da sua mercantilização e da diferenciação social que esta dimensão possui na
agricultura familiar. Demonstra-se, ainda, que a mercantilização do autoconsumo, em
algumas famílias, gera a vulnerabilização da reprodução social e alimentar.
3.3 - A mercantilização do consumo familiar no Alto Uruguai.
Nesta seção se pretende analisar como o autoconsumo de alimentos nestas famílias
foi mercantilizando e, em muitos casos, externalizado da unidade de produção. Neste sentido,
demonstra-se que esta mercantilização não é um processo que ocorre da mesma forma em
todas as unidades. Ela é um movimento histórico que possui um caráter contraditório e
desigual no que se refere ao impacto que gera sobre a alimentação das famílias. Este processo
será compreendido pelo conceito de diferentes graus de mercantilização do autoconsumo
como se referiu Van der Ploeg (1990; 1992). Demonstra-se, também, que este processo mais
117
geral e amplo de mercantilização do autoconsumo leva uma parcela significativa dos
agricultores familiares a vulnerabilização da sua reprodução social e alimentar.
A mercantilização do autoconsumo é o resultado de um processo histórico e interrupto
de transformações por que passou a agricultura familiar do Alto Uruguai. Esta é o resultado
das transformações técnicas-produtivas que se gestaram a partir da modernização da
agricultura deste território. É, também, o resultado material e concreto do padrão de
desenvolvimento agrícola calcado no uso do progresso tecnológico, na especialização
produtiva, na “profissionalização” do agricultor familiar a que Abramovay (1998) se referiu.
A mercantilização social e econômica compreende, ainda, um processo de diferenciação
social e produtiva gerada entre os agricultores e baseia-se também na lógica do mercado que
fragiliza as condições sociais de reprodução do agricultor familiar (Conterato, 2004).
Este movimento de mercantilização social e econômica da agricultura familiar possui
uma de suas facetas relacionada à esfera da produção de autoconsumo. A mercantilização do
autoconsumo é a situação social em que o agricultor familiar deixa de produzir os seus
alimentos no interior das unidades familiares e passa a adquiri-los nos mercados com os quais
possui contatos e relações sociais. Assim entendida, a mercantilização é um processo pelo
qual, muitas famílias adquirem o se consumo alimentar de fora das unidades de produção.
Para analisar e demonstrar este processo no Alto Uruguai lança-se mão dos dados da pesquisa
AFDLP (2003) para o município de Três Palmeiras e também da pesquisa de campo através
do uso da técnica das entrevistas semipadronizadas.
Desse modo, pode-se analisar a mercantilização da agricultura familiar através dos
canais de mercado em que os agricultores comercializam a sua produção. É o caso da venda
da produção, onde pelos mecanismos do mercado o agricultor perde a “alternatividade” de
vender para quem ele deseja, ou, onde ele obteria uma maior lucratividade. Ele tem que
vender sua produção nos canais de comercialização tradicionais como demonstram os dados
da Tabela 12. A maioria das famílias de agricultores vendem a produção vegetal e animal para
as cooperativas (54,2% e 37,3%, respectivamente) e para os intermediários e atravessadores
(23,7% e 22%, respectivamente). Somente 25,4% das famílias no caso da produção animal
vendem os seus produtos diretamente para os consumidores.
No caso da produção da “agroindústria caseira” a situação é bem diferente
94
. Os
agricultores procuram canais diferentes para vender a suas mercadorias como é o caso da
94
A “agroindústria caseira” se refere a produção que os agricultores transformam ou processam no interior da
sua unidade de produção sem terem que, necessariamente, possuírem a legalização formal para tal
118
venda direta aos consumidores (28,8%). Também é representativo que 69,5% das famílias no
caso da produção de agroindústria caseira e de 15,3% no caso da produção vegetal não
executem nenhum tipo de venda da produção da unidade produtiva. Este montante
significativo que não é vendido pelas famílias perfaz o autoconsumo familiar que é usado para
suprir as próprias necessidades alimentares do grupo doméstico. Isso demonstra que o
agricultor familiar do Alto Uruguai, como já enfatizado, possui uma lógica com relação ao
autoconsumo que segue determinados graus de mercantilização como definiu Van der Ploeg
(1990; 1992). Ou seja, o agricultor comercializa alguns produtos e outros não. Ele vende a
grande maioria da produção vegetal e animal (84,7% e 91,5%, respectivamente), mas não
comercializa, totalmente, a grande parte dos produtos da agroindústria caseira (69,5%).
Tabela 12: Canais de mercado utilizados pelos agricultores para a venda da produção
vegetal, animal e da agroindústria caseira no Município de Três
Palmeiras/RS.
Canais de mercado
Vegetal
(%)
Animal
(%)
Agroindústria
caseira (%)
Venda direta para os consumidores 5,1 25,4 28,8
Cooperativa 54,2 37,3 0,0
Intermediário - atravessador 23,7 22 1,7
Agroindústria e/ou empresa privada 1,7 6,8 0,0
Não vende 15,3 8,5 69,5
Venda direta em feiras 0,0 0,0 0,0
Para o poder público – Município 0,0 0,0 0,0
Armazém ou venda na localidade 0,0 0,0 0,0
Outro 0,0 0,0 0,0
Total 100 100 100
Fonte: Pesquisa AFDLP – CNPq/ UFPel /UFRGS, 2003.
Provavelmente a não comercialização da produção da agroindústria caseira pelos
agricultores familiares esteja ligada aos hábitos e a tradição de transformação e elaboração de
produtos como queijos, salames, “chimias” e demais produtos como compotas e geléias que
os imigrantes italianos e alemães mantiveram como um traço histórico de suas origens (do seu
modo de vida colonial) no interior das unidades de produção e com uma clara função de
assegurar o autoconsumo do grupo doméstico. Pelos dados da Tabela 12, nota-se também que
os agricultores familiares do Alto Uruguai não utilizam os canais de comercialização
alternativos como a venda em feiras, para o próprio poder público municipal, para os próprios
comerciantes do município que possuem armazéns. Os agricultores familiares preferem a
empreendimento. A transformação das matérias-primas em produtos com maior valor agregado como o salame,
os doces de frutas, queijos, etc constituem-se em produtos típicos da chamada agroindústria caseira.
119
comercialização da produção via os canais de mercado tradicionais, expressando desta forma
a mercantilização na esfera comercial da unidade de produção.
Para analisar a mercantilização de alguns produtos de lavoura da agricultura familiar
do Alto Uruguai selecionou-se alguns dos principais produtos vendidos e autoconsumidos
pelas famílias. A Tabela 13 mostra que o produto típico de venda e que perfaz o significado
de uma commoditie é a soja (91,14% da mesma é destinada para a vendida). Como
demonstrou Conterato (2004), ela é o principal produto da agricultura familiar e a expressão
máxima do processo de mercantilização da agricultura familiar do Alto Uruguai, que o autor
denominou de “sojicização” da agricultura familiar no sentido de que é a soja que transforma
a paisagem do território e mercantiliza o agricultor.
Outros cultivos que perfazem um montante de venda maior que o de consumo é o
feijão (60,08%) e o trigo (55,89%) conforme demonstra a Tabela 13. Note que tanto o feijão
como o trigo eram produtos típicos de autoconsumo no SAC e que foram cada vez mais
sofrendo um processo de mercantilização comercial para que o agricultor familiar possa
auferir rendimentos monetários crescentes para fazer frente a externalização e ao aumento dos
custos produtivos na agricultura.
Tabela 13: Percentagens das quantidades de alguns produtos consumidos e vendidos
pelas famílias no Município de Três Palmeiras/RS.
Produtos
Consumo (%) Venda (%) Total
Feijão 39,91 60,08 100,00
Arroz 99,25 0,74 100,00
Batatinha 70,80 29,20 100,00
Trigo 44,11 55,89 100,00
Milho 79,59* 20,41 100,00
Soja 8,85 91,14 100,00
Fonte: Pesquisa AFDLP – CNPq/ UFPel /UFRGS, 2003.
* Inclui o somatório da quantidade de consumo animal de milho (autoconsumo intermediário).
Como produtos típicos de autoconsumo da agricultura familiar do Alto Uruguai tem-se
o arroz que é o produto mais autoconsumido pelas famílias (99,25%), seguido pelo milho com
79,59% e pela batatinha com 70,80% do autoconsumo. No caso do feijão e da batatinha são
típicos indicadores de produtos usados pelo grupo doméstico para fazer frente a sua
reprodução social e alimentar, se bem que no caso da batatinha esta já se encontra
parcialmente mercantilizada, pois 29,20% da produção é destinada à venda.
120
O milho
95
, a batatinha, o trigo e o feijão são produtos que seguem a trajetória da
alternatividade, como proposto por Garcia Jr. (1983; 1989). Estes produtos podem ser tanto
autoconsumidos como comercializados pelos agricultores familiares para fazer frente ao seu
consumo diferido ao longo do ano ou, para comprar os demais elementos para consumo do
grupo doméstico, assumindo neste contexto uma importância fundamental nas famílias. Desta
maneira, estes produtos propiciam uma maior maleabilidade da unidade de produção para que
esta consiga enfrentar as situações de flutuações de preços e de troca adversas no mercado ou
mesmo da ocorrência de imprevistos climáticos (secas, enxurradas, geadas, etc) e choques
diversos como formulou Ellis (2000). No trabalho de campo também encontramos situações
de produtos em que imperam a alternatividade produtiva como é o caso do milho e do
amendoim. O milho pelos seus vários usos na unidade de produção e o amendoim por poder
ser vendido e também autoconsumido através de rapaduras, pés de moleque, etc como os
trechos das entrevistas demonstram.
Tem uma importância muito grande até porque aquele agricultor que produz o
milho, por exemplo, ele vai ter a sua vaca de leite, ele vai ter o queijo, os
derivados do leite, ele vai ter também com esse milho a galinha que vai
produzir ovos que ajuda nos derivados, o frango, também ele vai ter o suíno, a
banha que é um dos alimentos indispensáveis na panela do pequeno agricultor
hoje [...] (Entrevista 6, 2004, C. A., Representante Sindical, MPA).
[...] Eu, por exemplo, planto 1 ha de amendoim por ano já vou para o 7
o
ano. 1
ha de amendoim você tira na média de uns 1.500 Kg de amendoim debulhado.
Então a gente come, faz moleque, rapadura e a gente vende, por exemplo, esta
semana que passou vendi a 4 reais o quilo sem sair de casa (Entrevista 19,
2004; A. L., Agricultor Familiar, Coopac).
Deste modo, a alternatividade entre consumir os seus produtos e vendê-los, permite ao
agricultor familiar um maior “jogo de cintura” para enfrentar a mercantilização do processo
produtivo e do próprio autoconsumo. Permite também ao agricultor familiar que produz os
produtos com a “marca” da alternatividade uma maior segurança alimentar em termos
quantitativos e qualitativos, pois este agricultor terá os alimentos estacionais necessários ao
consumo da família e também saberá da qualidade que estes alimentos possuem, pois foi a sua
família que os produziu, sabendo o que foi usado em termos de agrotóxicos, defensivos, etc
que podem comprometer a saúde alimentar do grupo doméstico.
95
O milho é o principal produto da agricultura familiar que possui a “marca” da alternatividade, pois no contexto
de reprodução da unidade de produção e do grupo doméstico este possui vários usos. Ele pode ser consumido
verde como alimento ou depois de semi-seco como canjica. Pode ser armazenado na lavoura através da
envergadura da haste da planta, o “dobrar o milho” como os agricultores chamam. Pode também ser armazenado
no galpão de um ano para outro para ser usado como semente para a próxima safra, ou, pode ser usado para
autoconsumo intermediário como formulou Jerzy Tepicht para ser servido aos animais como galinhas, porcos,
121
A Tabela 14 apresenta a correlação entre o consumo intermediário com o
autoconsumo nas famílias de Três Palmeiras. Esta correlação fornece o grau de externalização
em que o autoconsumo se encontra, tendo como indicador o consumo intermediário. As
famílias que possuem um autoconsumo até R$ 1.000 têm um grau de mercantilização menor,
pois a sua grande maioria se situa nos estratos até R$ 5.000 de consumo intermediário,
predominando nas faixas de R$ 1.000,01 a 2.000 (33,3% para vegetal e 20% para animal) e na
de R$ 2.000,01 a 5.000 (19% e 33,3 para vegetal e animal, respectivamente).
Isso pode ser explicado por serem famílias já avançadas no seu ciclo biológico que
vivem de aposentadorias rurais e que pouco se dedicam à agricultura. Deste modo, gastam
muito pouco em consumo intermediário e por isso são pouco mercantilizadas. Possivelmente,
o que produzam seja somente para o próprio autoconsumo alimentar do grupo doméstico, que
é reduzido em número de membros como demonstra a Tabela 8, já apresentada anteriormente.
Podem ainda, ser famílias pequenas e pobres nas quais o autoconsumo e o consumo
intermediário assumem montantes muito pequenos. São nestas famílias que o
autoprovisionamento alimentar se encontra mais vulnerabilizado como se referiu Ellis (2000),
sendo que, em alguns casos, estas famílias se encontram em situações de insegurança
alimentar por dependerem do mercado para possuírem acesso a alimentação dos seus
membros, já que a produção dos próprios alimentos perfaz um montante muito pequeno
96
.
Tabela 14: Grau de mercantilização do processo produtivo por estratos de Produto
Bruto de autoconsumo nas famílias de agricultores no Município de Três
Palmeiras/RS.
Estratos de Produto Bruto animal e ve
g
etal de
autoconsumo (R$/ano)
0 a 1000 1000,01 a 20002000,01 a 3000 3000,01 a 5000
Estratos de consumo
intermediário (R$/ano)
Veg
(%)
Ani
(%)
Veg
(%)
Ani
(%)
Veg
(%)
Ani
(%)
Veg
(%)
Ani
(%)
< 1000 19 20 6,9 3,6 0,0 15,4 0,0 0,0
1000,01 a 2000 33,3 20 13,8 17,9 0,0 15,4 0,0 33,3
2000,01 a 5000 19 33,3 37,9 35,7 42,9 23,1 0,0 0,0
5000,01 a 10000 14,3 0,0 6,9 14,3 14,3 15,4 0,0 0,0
10000,01 a 15000 4,8 13,3 13,8 10,7 0,0 0,0 0,0 0,0
> 15000 9,5 13,3 20,7 17,9 42,9 30,8 100 66,7
Total 100 100 100 100 100 100 100 100
Fonte: Pesquisa AFDLP – CNPq/ UFPel /UFRGS, 2003.
bovinos, etc que, por sua vez, também poderão integrar a alimentação do grupo doméstico. Foi por estes e outros
usos que Roche (1969) o chamou de rei da agricultura colonial.
96
No capítulo 4, demonstra-se que é em algumas famílias de aposentados rurais que se encontram a maior
compra de alimentos de fora da unidade de produção. Nestas famílias a externalização do consumo alimentar é
um dos principais motivos do por que estas se encontram, em uma certa medida, em situação de insegurança
alimentar, pois o seu acesso aos alimentos é sempre mediado pela lógica do mercado.
122
Nos estratos de autoconsumo de R$ 1.000,01 a 2.000 de autoconsumo também se
verifica a mesma tendência, a maioria das famílias (58,6% para o vegetal e 57,2% para o
animal) ficam até o estrato de R$ 5.000 de consumo intermediário, demonstrando que a
mercantilização do autoconsumo é maior até este nível de consumo intermediário. Já no
estrato de autoconsumo de R$ 2.000,01 a 3.000 a mercantilização do autoconsumo não é tão
acentuada, pois aqui já começa a haver uma dispersão dos dados onde não se observa uma
tendência nítida. Parte das famílias se situa no estrato de consumo intermediário de R$
2.000,01 a 5.000 (42,9% para vegetal e 23,1% para animal) como as demais e são mais
mercantilizadas. Já outras se situam no estrato maior de R$ 15.000 (42,9% e 30,8% para
vegetal e animal, respectivamente) e são menos mercantilizadas em termos do autoconsumo.
Por fim, o estrato de R$ 3.000,01 a 5.000 de autoconsumo as famílias estão
concentradas no estrato de consumo intermediário maior que R$ 15.000 o que nos dá um
pequeno grau de mercantilização no caso do autoconsumo vegetal que é de 100% e que é um
pouco maior no animal (66,7%), entretanto este estrato de autoconsumo do ponto de vista
estatístico é pouco significativo
97
.
Os dados da Tabela 14 permitem afirmar que a hipótese de que há uma
mercantilização do autoconsumo em curso no Alto Uruguai se confirma. Esta se expressa
pelo grau de externalização de gastos que o agricultor familiar realiza com o consumo
intermediário. Permite também inferir que há diferentes graus de mercantilização do
autoconsumo entre os agricultores familiares. Entretanto, não se pode afirmar que uma maior
mercantilização do autoconsumo represente uma maior vulnerabilização deste no interior da
unidade de produção. O que se pode afirmar, em resumo, é que um maior grau de
mercantilização do autoconsumo está nas famílias que possuem um autoconsumo menor, ou
97
Essa afirmação deve ser relativizada. Diz-se que ele é pouco significativo por que no estrato de R$ 3.000,01 a
5.000 de autoconsumo apenas dois casos (duas famílias) é que deram origem aos dados. Comparando-se estas
duas famílias com relação ao total da amostra que foram 59 questionários, realmente, o seu peso é muito
diminuto. Por outro lado, em pesquisa científica todas as possibilidades devem ser consideradas e até os
pequenos números devem ser considerados como importantes, pois, às vezes, em tendências de dados destoantes
das centrais é que estão os elementos sociológicos mais ricos para uma boa elucidação da complexidade que é a
explicação da realidade dos processos sociais.
Por outro lado, ressalta-se que a amostragem que deu origem aos dados apresentados nesta dissertação
foi rigorosa do ponto de vista de “colher” a heterogeneidade e a diversidade das condições de reprodução social
da agricultura familiar de Três Palmeiras. A mesma foi realizada com base numa amostragem probabilística
aleatória por comunidade o que fez com que todas as famílias, nas quais se aplicou o questionário, pudessem
entrar no banco de dados com o mesmo peso relativo em relação as demais. Assim, estes dois casos também são
importantes, mesmo sendo bastante destoantes dos demais, pois eles demonstram que a produção de
autoconsumo é muito variável de família para família e de situação social para situação social na agricultura
familiar. Desse modo, este processo diferenciado no que concerne ao autoprovisionamento alimentar das
123
seja, as que possuem valores de autoconsumo até R$ 2.000 por ano. Nas que possuem valores
de autoconsumo maiores de R$ 2.000,01 o grau de mercantilização é menor em algumas e
maior em outras sendo que os dados não apresentam uma tendência nítida.
Esta variação aleatória dos dados também colabora com a hipótese de Van der Ploeg
(1990; 1992) de que existem diferentes graus de mercantilização entre os agricultores
familiares. Aqui, no caso analisado, existem diferentes graus de mercantilização do
autoconsumo, o que nos leva a confirmar a assertiva de que há uma diferenciação social entre
os agricultores familiares nesta dimensão da unidade familiar, em que algumas famílias
possuem esta esfera do estabelecimento agrícola mais reforçada como nos estratos acima de
R$ 2.000 por ano de autoconsumo. Outras, por sua vez, possuem o autoconsumo mais
vulnerabilizado, como é o caso das famílias que possuem um autoconsumo menor de R$
2.000 por ano.
A diferenciação do autoconsumo entre os agricultores familiares também foi
verificada no processo de pesquisa de campo, onde se constatou que nem sempre aqueles
agricultores que possuem uma maior mercantilização do processo produtivo são os mais
vulnerabilizados em sua produção de autoconsumo. Neste sentido, pode-se afirmar, para o
caso do Alto Uruguai, que uma maior mercantilização produtiva com plantio de cultivos
comerciais e maior inserção no mercado não necessariamente acarreta em uma menor
produção de autoconsumo. Muitas vezes, ocorre o contrário, são estes agricultores que, em
grande medida, ainda guardam o corpo do saber necessário à produção de autoconsumo. Essa
afirmação também foi formulada da mesma forma pelos informantes durante o trabalho de
campo, que também perceberam esta diferenciação da produção de autoconsumo e a sua
relação com a integração mercantil dos agricultores familiares. Neste sentido, o relato de um
secretário da agricultura é elucidativo deste processo.
Essa diferença dá para se notar sim. Até mesmo aqueles agricultores que
possuem uma produção mais destinada para o mercado, que estão mais
capitalizados mesmo esses, muitas vezes, tem mais presente à produção de
subsistência do que aquele agricultor totalmente descapitalizado, que perdeu
toda aquela cultura de produzir para a subsistência, mas mesmo esses
agricultores que estão totalmente capitalizados eles produzem (o seu
autoconsumo) [...] (Entrevista 9, 2004, G. P., Engenheiro Agrônomo, SAM).
O que se pode afirmar, portanto, é que existe uma diferenciação do autoconsumo
entre os agricultores do Alto Uruguai, mas esta não é somente explicada em termos das suas
famílias do Alto Uruguai pode ser compreendido e explicado pelos diferentes graus de mercantilização do
autoconsumo como se referiu Van der Ploeg (1990; 1992).
124
relações mercantis. A explicação para a diferenciação existente no autoconsumo deve ser
buscada em outros fatores como o tamanho da propriedade e as condições de relevo,
diferentes inserções no processo de modernização da agricultura, o sistema produtivo e
organizacional empregado na unidade de produção, os tipos de cultivos desenvolvidos e o
saber-fazer das famílias.
Durante a pesquisa de campo pode-se constatar que são estes fatores os
responsáveis pelas diferenças no autoconsumo e os diferentes graus de mercantilização que
esta característica possui entre os agricultores familiares. As condições agronômicas do
terreno como a declividade do solo, a erosão, a fertilidade, características físicas, etc
explicam, em grande medida, a diferenciação do autoconsumo. Geralmente, em comunidades
com solos mais empobrecidos do ponto de vista da fertilidade natural e com ângulos de
declividade elevados é onde se encontram os agricultores familiares mais vulnerabilizados
em seu autoprovisionamento alimentar. Este processo é ilustrado pelo trecho da entrevista
abaixo.
A princípio, no nosso município é meio regionalizada a coisa. Nós temos a
parte nobre do município que pega uma região do asfalto para lá. E ai nós
pegamos esta área para cá que é mais divisa com Erval Seco, Seberi e divisa
com Palmitinho que é bem mais pobre, bem mais pedregosa, montanhosa [...].
É que a terra foi embora (erosão), a terra fértil o pessoal foi derrubando o
mato e plantando em áreas não propícias e foi empobrecendo e hoje se tu vai
analisar o solo nosso está bastante problemático (Entrevista 7, 2004, J. C. G.,
Técnico em Agropecuária, Emater).
Mas, muitas vezes, não é somente este fator que explica a vulnerabilização da
produção de autoconsumo
98
, mas existem outros que agem concomitantemente. Pode-se
constatar, também, que nos locais com condições de solos desfavoráveis, o corpo do saber
como formularam Woortmann e Woortmann (1997) também sofreu o processo de
mercantilização com as transformações técnicas-produtivas que ocorreram apartir dos anos
70. Neste processo, muitos dos conhecimentos que eram passados de pai para filho, de
geração em geração no interior do grupo doméstico não estão mais sendo efetuados e, em
muitos casos, o que impera é a “cultura da indústria” como os informantes mesmos se
referiram.
Neste sentido, a diferenciação do autoconsumo é explicada, comparativamente,
entre aqueles agricultores que se fragilizaram e se mercantilizaram do ponto de vista do
98
Na pesquisa de campo também se verificaram casos em que as condições do solo não eram propícias à
agricultura e mesmo assim os agricultores conseguiam produzir o seu autoconsumo. Porém, na maioria dos casos
o tipo de solo, fertilidade, declividade, etc são determinantes da produção de autoconsumo para o caso do Alto
Uruguai.
125
autoconsumo e dos conhecimentos aplicados à produção destes alimentos. Este processo pode
ser compreendido a partir do que Ellis (2000) chamou de estratégias de reação a sua situação
social de reprodução alimentar ameaçada. E, de outro lado, aqueles agricultores que não
adentraram no processo de transformações técnicas-produtivas, que entenderam este
movimento de mudanças bruscas e que mantiveram o seu corpo do saber que lhes era
inerente. Estes últimos podem ser definidos, segundo Ellis (2000), por aqueles agricultores
que usaram de estratégias de adaptação em face ao contexto da modernização agrícola e da
mecantilização crescente da esfera do autoconsumo familiar, resistindo a este processo em
curso no Alto Uruguai.
Essa diferenciação das estratégias de vivência entre os agricultores fica evidente na
entrevista que segue. Nota-se que a referência sempre é feita temporalmente, ou seja, antes da
modernização da agricultura como um tempo onde se tinha segurança alimentar em termos de
autoconsumo e, depois da modernização, como um período de uso de tecnologia e de
especialização produtiva, especialmente com o plantio da soja. Fica claro, também, que o
processo de desenvolvimento capitalista na agricultura é desigual e contraditório causando
efeitos diferentes como conseqüência da sua penetração nas formas sociais de produção e
trabalho e na esfera do autoconsumo familiar.
Então nós fomos absorvendo de forma gradual um processo de
empobrecimento pela modernização da agricultura, a revolução verde. Neste
contexto muitas famílias foram se fragilizando mais do que outras. Então hoje
você vê que aquelas famílias que não absorveram por completo o processo da
revolução verde e mantiveram as suas origens, as suas tradições, o seu sistema
produtivo histórico que é herança dos imigrantes que aqui chegaram no início
do século passado e embora entenderam o processo da revolução verde, mas
não abandonaram o processo de produção de subsistência com qualidade e
segurança alimentar. E outros, de certo estimulados com a euforia de ganhar
mais dinheiro, iam se modernizar, trabalhar menos por que as máquinas iam
fazer, iam plantar soja por que trabalhava um período e depois parava e não
precisava mais. A soja ia lhe dar um dinheiro, uma renda para ele adquirir os
produtos de subsistência e assim esses se fragilizaram (Entrevista 15, 2004, E.
G., Economista, Codemau).
A diferenciação do autoconsumo em função das diferentes estratégias de vivência
postas em prática pelos agricultores no processo histórico de desenvolvimento no Alto
Uruguai pode ser visualizado pela Tabela 15. A maioria das famílias (28,8%) possui um
Produto Bruto de autoconsumo que varia de 0 a 15% do Produto Bruto Total da unidade de
produção, sendo consideradas famílias com um baixo nível de produção de autoconsumo e
vulnerabilizadas, como formulou Ellis (2000). Já nos estratos de 15,01 a 30% e no de 30,01 a
50% de Produto Bruto de autoconsumo encontra-se famílias que possuem um autoconsumo
126
maior (25,4% e 27,1% das famílias, respectivamente) demonstrando serem famílias que
puseram em prática as estratégias de adaptação ao contexto da mecantilização do consumo
familiar e que resguardaram a esfera do autoconsumo e, desta forma, não sofreram o processo
de vulnerabilização. Há também, famílias que possuem altas porcentagens de Produto Bruto
de autoconsumo, chegando a variar de 50 a 100% em relação ao Produto Bruto Total. Mas a
grande maioria das famílias (81,4%) possui um Produto Bruto de autoconsumo que chega até
um máximo de 50% do Produto Bruto Total.
Tabela 15: Estratos de Produto Bruto de autoconsumo sobre o Produto Bruto Total das
famílias do Município de Três Palmeiras/RS.
Estratos de Produto Bruto
de autoconsumo (%)
Percentagem
(%)
Percentagem Acumulada
(%)
0 a 15 28,8 28,8
15,01 a 30 25,4 54,2
30,01 a 50 27,1 81,4
50,01 a 75 13,6 94,9
75,01 a 100 5,1 100
Total
100
Fonte: Pesquisa AFDLP – CNPq/ UFPel /UFRGS, 2003.
Os dados da Tabela 15 demonstram que há várias situações em relação a produção
de autoconsumo entre os agricultores familiares, sendo que se pode encontrar aqueles
agricultores bastantes vulnerabilizados e, em muitos casos, em situação de insegurança
alimentar. Estes, em sua grande maioria, estão pondo em práticas estratégias de reação frente
a este contexto de crise na sua reprodução social e alimentar. Entretanto, tem-se também, um
outro grupo de agricultores que não se encontram vulneráveis em relação a sua produção de
autoconsumo e estão em situação de segurança alimentar, por que historicamente usaram de
estratégias de adaptação a mercantilização do consumo familiar e hoje não se encontram
fragilizados em termos de sua reprodução social e alimentar.
A mercantilização do autoconsumo no Alto Uruguai está se desenvolvendo via
deslocamento da produção animal e vegetal das pequenas “roças” nas imediações das casas e
perto das lavouras comerciais para dar lugar aos cultivos comerciais e produzidos em maior
escala (Candido, 1987)
99
. Com o avanço das últimas e o bom preço que algumas delas, como
99
Antônio Candido (1987) também verificou em seu estudo sobre o caipira paulista que a alimentação produzida
por estes sofria transformações que ele atribuiu, dentre outros fatores, ao plantio de cultivos que visavam o
mercado. Ele também verificou que: o homem rural [...] dependia cada vez mais da vila e das cidades, não só
para adquirir bens manufaturados, mas para adquirir e manipular os próprios alimentos (p. 142) caracterizando,
desta forma, o mesmo processo social de vulnerabilização do autoconsumo alimentar, só que com outras
palavras no que no presente estudo chama-se de mercantilização do consumo familiar.
127
a soja está atingindo no mercado nacional e internacional, este tipo de lavoura está deslocando
as de autoconsumo e tomando o seu espaço dentro da unidade produtiva, caracterizando uma
mercantilização da produção de autoconsumo que esta desaparecendo da esfera produtiva para
dar lugar a lavouras voltadas para o mercado. É a especialização da produção em poucos
cultivos e baseados na rentabilidade monetária destes que faz com que se mercantilize a
produção de autoconsumo e, assim, se diferencie as unidades de produção no Alto Uruguai.
Esse processo de deslocamento espacial do autoprovisionamento pode ser ilustrado nos
relatos transcritos e também pela Figura 3. Note que, no caso da Figura 3, o plantio da soja se
desenvolve até nos arredores da moradia ou como formularam alguns informantes “até nas
escadas da casa”.
Se tu pegar os últimos 2 ou 3 anos o soja deu aquele salto de preço então o
pessoal “enlouqueceu” [...]. Então aquela área que tinha de pastagem para
gado foi tudo dizimado, foi vendido vaca, então aqui aconteceu também esse
processo. Vendas de animais se desfizeram por que o preço estava bom da
soja, valia a pena plantar a soja e comprar o leite, comprar as coisas
(Entrevista 22, 2004, R. B., Engenheiro Agrônomo, Emater).
Eu acho que o fator principal [...] é a produção de soja, a produção de grãos.
Muita horta, muito pomar foi destruído para aumentar a área do plantio de
soja. Isso a gente visualiza dia a dia no meio rural (Entrevista 23, 2004, V. T.,
Técnico em Agropecuária, Emater).
Fonte: Pesquisa de campo (2004).
Figura 3: Processo de “sojicização” no Alto Uruguai e conseqüente deslocamento da
produção de autoconsumo.
128
Outras diferenças em termos de autoconsumo são notadas em nível de organização da
propriedade onde a distribuição espacial da casa, das benfeitorias, do pomar e da parte de
embelezamento das unidades produtivas como o jardim, o “pátio” e outros espaços são
indicadores de um agricultor “caprichoso” e que “cultiva de tudo” na sua propriedade. Este
agricultor é o que possui pouca dependência ao contexto social e econômico, pois geralmente
produz a maioria do seu consumo e não depende de políticas públicas para isso
100
. Possui uma
família bem mais estruturada em termos de coesão social conseguindo manter um bom
número de filhos na propriedade. Também possui uma renda maior devido a não ter que
comprar o consumo familiar no mercado.
Este agricultor também é menos vulnerável em termos de saúde, pois com a produção
de autoconsumo ele sabe o que está consumindo em termos de atributos de qualidade
alimentar e também possui a sua auto-estima valorizada frente aos demais agricultores,
vizinhos e conhecidos citadinos por ser o típico agricultor policultor como se referiu Renk
(2000), numa alusão ao colono que cultivava os mais variados tipos de alimentos para o seu
consumo durante o SAC. Este tipo de agricultor é o que conseguiu viabilizar-se via estratégias
de adaptação, como formulou Ellis (2000), a mercantilização do consumo e a vulnerabilização
deste no Alto Uruguai. Os trechos das entrevistas ilustram como são definidos, sempre
comparativamente, os agricultores vulneráveis
101
e não vulneráveis em sua reprodução social
e alimentar. Note que os agricultores vulneráveis são definidos como vivendo numa situação
constrangedora por terem que comprar o seu consumo no mercado e não possuírem a sua
propriedade organizada. Ao contrário dos outros, não vulneráveis, que possuem um equilíbrio
financeiro melhor, produzem os próprios alimentos e a sua propriedade é bem mais cuidada.
[...] Aquele agricultor que produz a sua subsistência é um agricultor que tem
um equilíbrio financeiro melhor, que vai pouco buscar dinheiro nas
instituições financeiras, ele produz os seus próprios alimentos, ele investe os
próprios recursos, ele tem um resultado maior no final do processo. [...]
Aquele agricultor que não produz a sua subsistência em primeiro lugar ele
vive em uma situação constrangedora, porque ele precisa comprar o seu
100
Um informante formulou que aqueles agricultores que possuem autoconsumo suficiente na sua unidade
produtiva dependem bem menos do contexto social e econômico em termos de reprodução social, como é o caso
das políticas públicas onde foi usado o exemplo do Pronaf.
Eles têm um nível de vida bastante elevado e eles estão se afastando até das linhas de
crédito como estas tradicionais como o Pronaf para Custeio e Investimento, por que
eles estão fazendo a própria poupança e a gente pode perceber isso (Entrevista 12,
2004, G. S., Engenheiro Agrônomo, Emater).
101
Para alguns informantes que eram lideranças de agricultores familiares e que possuíam um tom de
intervenção mais político os agricultores vulneráveis em termos de autoconsumo são aqueles que não participam
de reuniões, de organizações sociais, mobilizações, que não defendem a agricultura familiar, etc. Os informantes
explicavam que esta situação era devido a estes “não terem consciência” da importância que tinha a produção de
autoconsumo.
129
alimento no mercado e ele, muitas vezes, não têm uma renda mensal, ele não
tem dinheiro para isso (Entrevista 6, 2004, C., A., Representante Sindical,
MPA).
Há diferenças gritantes. Todo aquele que na sua propriedade tem uma auto-
suficiência de produção a propriedade dele é mais arrumada, à frente da casa é
limpa, ajeitada, arrumada, é pintado, é grama cortada, arvoredo bem cuidado,
lá atrás tem os animais, do lado tem o pomar e lá tem tudo o que ele precisa.
[...] E aquele outro agricultor que deixa a casa de lado, os palanques da cerca
caídos e a última telha do galpão cair para ir embora. Ele está só contando os
dias para chegar à aposentadoria para ir embora. Então esse agricultor compra
tudo pronto, mal como está ele compra tudo pronto e ai ele vai cada vez pior
(Entrevista 11, 2004, N. B., Secretário da Agricultura Municipal, SAM).
Mas a situação de mercantilização do autoconsumo no Alto Uruguai não gera
somente a diferenciação deste tipo de produção nas unidades familiares, pois também
engloba a compra de alimentos externos a propriedade, como no caso dos feirantes que os
revendem aos agricultores no meio rural ou no caso da compra destes nos supermercados
locais. Também gera situações de fragilização social e de pobreza rural, como se demonstra a
seguir, levando os agricultores familiares a uma situação de insegurança alimentar e, em
muitos casos, como se observou a campo, a um acesso deficiente aos alimentos, inclusive via
compra direta, já que muitos não mais os produzem e não dispõem das condições financeiras
para os adquirí-los nos comércios locais.
É a mercantilização do autoconsumo, como definiu Van der Ploeg (1990; 1992),
que se corporifica através do processo de externalização do consumo alimentar, em que a
produção própria é substituída em novas bases, por um processo de compra dos alimentos
necessários para se atingir o que Wolf (1976) chamou de mínimo calórico e, assim, garantir a
reprodução social e alimentar do grupo doméstico. Um dos indicadores do processo de
mercantilização do consumo alimentar são os produtos que os agricultores compram de fora
da sua unidade produtiva para suprir as suas necessidades em termos de alimentação.
Pôde-se constatar, durante o trabalho de campo, que os produtos comprados nos
supermercados são de dois tipos. Tem-se, por um lado, os produtos típicos da agricultura
familiar e que poderiam, perfeitamente, serem produzidos pelos próprios agricultores onde se
destacam a banha, a carne (diversos tipos), a batatinha, o feijão, o arroz, a massa, os ovos, o
pão, frutas como maçã, melancias, saladas como o repolho, a alface e outros que se
encontram, em uma parcela significativa dos agricultores, externalizados da unidade de
produção. Ou seja, estes são adquiridos nos supermercados locais a preços de mercado como
qualquer consumidor citadino. Neste sentido, um estudo desenvolvido pela Emater et all
(2002) visando diagnosticar os hábitos de consumo e a segurança alimentar da população do
130
Alto Uruguai, encontrou o repolho (78,17%), a cenoura (67,76%) e a alface (64,82%) como
os alimentos mais comprados pela população do território
102
.
Por outro lado, às compras se direcionam aos chamados produtos industrializados
como o salgadinho, os molhos de tomate, temperos desidratados, os enlatados, etc e, o
símbolo máximo da mercantilização do consumo na agricultura familiar que é o refrigerante
por causa dos atuais hábitos de consumo, os apelos consumistas e o baixo preço do mesmo
nos supermercados. Neste sentido, o mesmo estudo da Emater, aponta que o consumo de
refrigerantes em 46,28% da população é realizado no mínimo uma vez por semana; 13,33% o
consomem de duas ou três vezes por semana e 14,45% a cada quinze dias, demonstrando ser
o consumo de refrigerantes um bom indicador da mercantilização do consumo alimentar no
Alto Uruguai, mesmo a população urbana estando incluída na amostra
103
. A mercantilização
do consumo também é observada nas entrevistas com agricultores que compram o seu
consumo na cidade e com representantes sindicais que verificaram este processo de
externalização do consumo familiar. Note, que os produtos que são citados nas entrevistas
(com exceção da erva-mate) como a massa, o açúcar, o tomate, a batatinha, a carne, a banha,
os ovos e o torresmo são todos produtos de autoconsumo passíveis de serem produzidos pelos
agricultores familiares.
A gente compra às vezes massa, a erva-mate, às vezes o açúcar que a gente
faz, mas de vez em quando compra alguma coisa. E às vezes a gente nem
sempre produz, que nem o tomate, tu não produz o ano todo, que nem a
batatinha também, às vezes tu produz, mas não dura. Às vezes se compra
alguma coisa. Até carne às vezes [...] (Entrevista 4, 2004, N. B., Agricultor
Familiar).
[...] Tem até produtores que fazem isso, por exemplo, de vir comprar banha
no supermercado, ovos, carne de galinha, carne de porco, torresmo que é tudo
coisas que você pode produzir na propriedade (Entrevista 8, 2004, D. S.,
Representante Sindical, Fetag).
A mercantilização do consumo alimentar dos agricultores também é evidenciada
quando se analisa o local em que estes gastam o dinheiro recebido das várias fontes de renda
que possuem. Isso é ilustrado pela Tabela 16, que demonstra que a grande maioria dos
agricultores (89,8%) gasta o dinheiro na cidade onde residem, levando-se a inferir daí e, de
102
Estes dados devem ser analisados com cautela, pois uma parte da amostra populacional para desenvolvimento
da pesquisa era de origem urbana. A população urbana entrou na amostra com um percentual de 41% enquanto
que a rural ficou com 59%.
103
Não se quer afirmar que os agricultores familiares não possam comprar nada para o seu consumo alimentar
nos supermercados como é o caso dos refrigerantes. Ao contrário, entende-se que os agricultores familiares
possuem a sua lógica de reprodução social e alimentar assentada tanto no interior da sua unidade de produção
como no mercado. Apenas se usou o exemplo dos refrigerantes como um indicador deste processo crescente de
externalização do consumo de alimentos que está ocorrendo atualmente com os agricultores do Alto Uruguai.
131
acordo com o que se observou a campo junto a supermercados, que uma boa parte deste
percentual de gastos é com alimentação via compra desta nos supermercados, onde os
agricultores realizam o chamado “rancho” mensal
104
. Os demais gastos são realizados na
própria comunidade onde residem (5,1%) e em outras localidades (5,1%).
Tabela 16: Em que local o Senhor e sua família gastam a maior parte do dinheiro que
ganham [não importa a fonte deste dinheiro]?
Percentagem (%)
Na própria comunidade onde residem 5,1
No centro urbano da cidade a que pertence à localidade/distrito 89,8
Na cidade-pólo mais próxima (cidade maior da região) 0,0
Outra localidade 5,1
Total 100,0
Fonte: Pesquisa AFDLP – CNPq/ UFPel /UFRGS, 2003.
Se as compras em supermercados são indicativas da mercantilização do consumo
familiar, este não é o único meio que os agricultores usam para adquirir os seus alimentos. Há
também, no espaço rural dos municípios do Alto Uruguai uma constante mercantilização do
consumo alimentar que se dá via compra direta dos alimentos pelos agricultores de feirantes,
fruteiros e vendedores ambulantes de gêneros alimentícios que percorrem as comunidades,
muitos inclusive, com dias da semana agendados para a venda de produtos para os
agricultores. Os principais produtos que são comprados pelos agricultores são as frutas e
verduras, mas em alguns casos, se chega a comprar pães, sorvetes, bolachas, sucos, etc como
os trechos das entrevistas com agricultores e atores do serviço de extensão rural demonstram.
Os entrevistados chegam a formular que “todo dia quase estão passando vendendo essas
coisas” e que tem até roteiros de feirantes e fruteiros para vender produtos de consumo
alimentar para os agricultores familiares.
Ali na beira da faixa é todo o dia. Todo dia tem gente que entra aqui para
vender, mais é esses negócios do pessoal de fora trazendo batatinha, maçã,
essas coisas. Todo dia quase estão passando vendendo essas coisas [...]
(Entrevista 3, 2004, L. F. Agricultor familiar).
E1: [...] Se você passar hoje em volta de todo o município você vai encontrar
que tem um roteiro, você vai encontrar gente vendendo batata, cebola, pães,
cucas, bolachas para os agricultores (M. Z. B., Extensionista Rural, Emater).
E2: Tem 3 ou 4 carros que circulam toda a semana, a semana toda inclusive
derivados de massa, sorvetes, picolés, sucos e as laranjas se estragando nos
pés. Então tudo isso se tem no interior, tudo isso e é mais fácil ir lá e pegar 2
reais e comprar um pão do que fazer (Entrevista 7, 2004, J. C. L., Técnico em
Agropecuária, Emater).
104
É claro que também uma boa parte deste dinheiro é utilizada na compra de roupas, combustíveis, insumos,
132
Em que pese esta situação social de mercantilização e de vulnerabilização do
autoconsumo entre as famílias ainda há uma certa harmonia em termos de reconhecimento de
que atualmente não se produz mais a maioria dos alimentos como era “antigamente”. Porém,
não há um consenso de que haja uma mercantilização da esfera do autoconsumo entre os
extensionistas da Emater, Codemau, das SAMs e outras instituições de desenvolvimento. Para
alguns, os agricultores familiares continuam produzindo a grande parte dos alimentos tanto
em qualidade como em termos de quantidades para alimentar o grupo doméstico. Neste
sentido, o Alto Uruguai é reconhecido como um espaço onde não existem problemas de
insegurança alimentar entre as populações do espaço rural. Esta questão é formulada,
principalmente, por atores entrevistados que dirigem entidades que possuem uma abrangência
territorial que agem em vários municípios e por outros que possuem cargos políticos de uma
importância relativamente grande nos municípios onde atuam.
[...] Nós sabemos que os nossos agricultores da região do Médio-Alto Uruguai
eles vivem bem, eles tem qualidade de vida por que eles produzem a
subsistência e naturalmente o excedente para comercializar, mas a
subsistência é o primeiro foco ou meta das famílias de pequenos agricultores é
produzir os alimentos o qual assegura as condições dignas de vida e que eles
possam ser bem alimentados e que eles possam alimentar a sua família e viver
bem lá no meio rural (Entrevista 15, 2004. E. G., Economista, Codemau).
Eu acho que, de um modo geral, para a subsistência da família [...] a grande
maioria das famílias todas elas produzem o básico para a subsistência das
próprias famílias (Entrevista 17, 2004, V. S., Representante Sindical, CMDR).
O objetivo desta seção foi o de demonstrar que há um processo de mercantilização do
autoconsumo no Alto Uruguai. Elucidou-se, também, que este processo é desigual entre as
famílias de agricultores familiares, sendo que algumas se encontram mais vulneráveis e outras
menos vulneráveis em sua reprodução social e alimentar. Na próxima seção, objetiva-se
analisar as transformações técnicas, produtivas, sociais e econômicas que se desenvolveram
no Alto Uruguai a partir dos anos de 1970 que, em grande medida, são responsáveis por um
movimento crescente de fragilização social das famílias e a degradação do seu nível de vida e
bem estar social. Neste sentido, demonstra-se que, em muitos casos, este empobrecimento das
famílias e a vulnerabilização da produção de autoconsumo tem levado uma parcela dos
agricultores a se encontrarem em situação de insegurança alimentar.
3.4 - A mercantilização do consumo e a pobreza rural: a insegurança alimentar.
instrumentos de trabalho e outros bens duráveis e não duráveis de consumo familiar.
133
Conforme indicado no primeiro capítulo, o Alto Uruguai pode se considerado um
território onde o processo de mudanças da base técnica-produtiva desencadeou um certo
empobrecimento geral e um solapamento das condições de reprodução social dos agricultores
familiares. Deste modo, nesta seção, pretende-se demonstrar que, realmente, existe pobreza
rural no Alto Uruguai e que esta, em alguns casos, é responsável pelas situações de
insegurança alimentar que se encontra junto aos agricultores.
Com relação à ligação entre os temas da pobreza e da insegurança alimentar existe
uma ampla bibliografia que indica que os seus limites sociais são muito tênues e que
geralmente situações de fragilização social podem desencadear processos de alimentação
deficiente. Esta hipótese de trabalho de que a pobreza rural leva, em alguns casos, a situações
de insegurança alimentar e a fome já havia sido formulada por outros autores. É o caso de
Maluf et all (2004, p. 5), que afirma que a pobreza ocupa o lugar de determinante principal da
insegurança alimentar, isto é, do não acesso regular a uma alimentação adequada, dando
origem aos fenômenos da fome e da desnutrição. A própria FAO (2004) afirma que não há
dúvidas de que a pobreza é uma das causas da fome. Além destes, Graziano da Silva et all
(2001) e Belik et all (2001) também trabalharam com a mesma hipótese no caso do Brasil.
Para o caso do Alto Uruguai os estudos de Schneider et all (2000) e de Schneider et
all (2001), já demonstraram que há uma situação de pobreza rural neste território
105
. A
pobreza do território do Alto Uruguai pode ser identificada a partir de alguns indicadores
como o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) de alguns municípios,
como demonstra a Tabela 17. Nos anos de 1970 e de 1980 apenas o município de Vicente
Dutra figurava com um IDH-M igual ao estadual sendo que os demais municípios se
encontravam todos abaixo da média estadual. Nos anos 90 o IDH-M (1991) piorou sendo que
neste período nenhum dos municípios atingiu a média estadual, mesmo que alguns cheguem
próximos (Frederico Westphalen e Taquaruçu do Sul). No ano 2000 o IDH-M ressalta o
município de Frederico Westphalen como o único que supera a média estadual com 0,834.
Para os demais municípios a situação continua a mesma, pois todos os municípios figuram
abaixo da média estadual.
De acordo com os dados da Tabela 17 pode-se observar que a situação de pobreza
do território vigora desde 1970 quando ocorrem as principais transformações técnicas-
produtivas da agricultura familiar desta região. Como no Alto Uruguai a maioria da
105
O objetivo aqui não é o de se discutir as causas da pobreza rural do território, mas sim apenas demonstrar que
esta existe e que, em muitos casos, gera a insegurança alimentar entre os agricultores familiares. Para ver as
134
população ainda reside no meio rural, a pobreza demonstrada através do IDH-M, também se
encontra, a sua grande parte, no “rural” e o rural, por sua vez, é constituído, em sua grande
maioria, pela agricultura familiar o que nos leva a inferir que a pobreza rural
106
se encontra,
predominantemente, nas áreas rurais de pequenos estabelecimentos familiares.
Tabela 17: Índices de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) para alguns
municípios do Alto Uruguai do Rio Grande do Sul.
Município IDH-M 1970 IDH-M 1980 IDH-M 1991 IDH-M 2000
Caiçara 0,466 0,626 0,669 0,795
Constantina 0,435 0,647 0,658 0,796
Frederico Westphalen 0,452 0,688 0,752 0,834
Irai 0,444 0,620 0,643 0,778
Palmitinho 0,435 0,589 0,587 0,768
Pinheirinho do Vale - - 0,666 0,747
Taquaruçu do Sul - - 0,716 0,769
Três Palmeiras - - 0,584 0,767
Vicente Dutra 0,631 0,808 0,549 0,724
Vista Alegre - - 0,680 0,763
RS
0,631 0,808 0,871 0,809
Brasil
0,462 0,685 0,742 0,757
Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, PNUD/IPEA/IBGE/FJP (1998).
- Dado não disponível.
Na opinião dos entrevistados foi o processo intenso de transformações sofridas a
partir dos anos de 1970 que gerou, em grande medida, o empobrecimento rural e a
vulnerabilização das condições de reprodução social da agricultura família do Alto Uruguai
como demonstra o trecho da entrevista. Observa-se que o empobrecimento é sempre
formulado de forma desigual entre os agricultores familiares como é próprio da dinâmica do
desenvolvimento capitalista na agricultura, em que o diferencial é entre aqueles que aderiram
à modernização da agricultura e os que ficaram de fora deste processo. Neste sentido,
ressalta-se que a degradação das condições de vida da população rural é um processo que
ocorre de forma diferente entre os agricultores familiares. Há aqueles que estão utilizando-se
principais causas da pobreza rural e das desigualdades sócio-econômicas ler os trabalhos de Schneider et all
(2000) e Schneider et all (2001).
106
A pobreza no Alto Uruguai pode ser também analisada em termos de renda auferida pela população em
termos de salários mínimos mensais. A grande parcela das pessoas com 10 ou mais anos de idade da região não
possuem nem sequer um rendimento mensal. Em torno de 36,9% das pessoas, em média, não possuem
rendimentos mensais. Isso pode ser exemplificado pelos dados de alguns municípios como Taquaruçu do Sul
onde este percentual de pessoas sem rendimentos mensais chega a 44,56% das pessoas com 10 anos ou mais de
idade; Irai com 44,70% e Pinheirinho do Vale com 46,27%. Isso é mais grave quando se analisa, também, o
percentual de pessoas com 10 ou mais anos de idade que recebem até 1 salário mínimo mensal. Em torno de
25,9% das pessoas, em média, estão com um nível de renda que não ultrapassa 1 salário mínimo mensal sendo
135
de estratégias de reação a esta situação de reprodução social ameaçada. Já um outro grupo,
está pondo em prática estratégias de adaptação ao contexto das mudanças técnicas-produtivas
(Ellis, 2000). O relato contido no trecho da entrevista é elucidativo destas duas estratégias
frente ao empobrecimento e a fragilização social existente no território.
Na minha concepção o processo de modernização da agricultura dos anos 60
e da revolução verde nos anos 70 mais avançando ali ele foi mudando a nossa
matriz cultural e foi desembocando nesse empobrecimento, mas sempre tendo
presente de que uma parte (dos agricultores) compreendeu aquilo e não
entrou de cara naquele processo e manteve as suas origens. E uma outra se
bandeou para esse processo e desencadeou neste empobrecimento (Entrevista
15, 2004, E. G., Economista, Codemau).
O empobrecimento e as condições de qualidade de vida dos agricultores familiares
também podem ser verificados quando se analisa alguns indicadores de infra-estrutura e
qualidade de vida, que fazem parte do quotidiano das famílias do Alto Uruguai como
demonstra a Tabela 18. Quando perguntados sobre as suas instalações sanitárias 76,3% dos
agricultores responderam que possuem banheiro completo em sua moradia, mas um
percentual não desprezível de 10,2%, possui banheiros incompletos e outros 11,9% apenas
casinha ou latrina. Outro indicador das condições de vida é o do tipo de piso predominante
nas residências. Neste indicador, ainda a grande maioria das residências possui pisos de
madeira (89,8%), 8,5% outro tipo de piso e apenas 1,7% das famílias possuem as suas casas
com pisos concretados, sendo este um bom indicador da situação de pobreza dos agricultores
do Alto Uruguai. A Figura 4, também evidencia este empobrecimento no que se refere às
condições de moradia de alguns agricultores.
Tabela 18: Indicadores de infra-estrutura e qualidade de vida dos agricultores
familiares no Município de Três Palmeiras/RS.
Instalações sanitárias
Percentagem
(%)
Tipo de parede externa
predominante
Percenta
g
em
(%)
Banheiro completo 76,3 Tijolo com revestimento 27,1
Banheiro incompleto 10,2 Tijolo sem revestimento 1,7
Casinha ou latrina 11,9 Tábuas 71,2
Nenhuma 1,7 Tapumes ou chapas de madeira 0,0
Tipo de piso predominante
Destino dos dejetos humanos
Concreto 1,7 Fossa simples (seca) 27,4
Chão batido 0,0 Fossa séptica/poço absorvente 55,9
Madeira 89,8 Direto no solo 10,2
Outro 8,5 Direto nos cursos d'água 5,1
N
ão te
m
3,4
mais séria a situação de municípios como Vicente Dutra onde este percentual chega a 31,24%; Vista Alegre com
33,29% e Três Palmeiras com 34,36% das pessoas nesta faixa de renda (IBGE/Censo Demográfico, 2000).
136
Tipo de cobertura
predominante
Abastecimento ener
g
ia
elétrica
Telha de barro 52,5 Rede geral 93,2
Telha de amianto (Brasilit) 42,4 Gerador próprio 0,0
Capim ou palha 0,0
N
ão possui 6,8
Zinco ou outro metal 5,1 Outro 0,0
Outro 0,0
Fonte: Pesquisa AFDLP – CNPq/ UFPel /UFRGS, 2003.
Quanto ao tipo de cobertura que predomina nas casas dos agricultores, 52,5% das
famílias ainda possui casas cobertas por telhas de barro (Figura 4), 42,4% possuem o telhado
de telhas de amianto e 5,1% de zinco ou outro metal. Quanto ao tipo de parede externa
predominante 71,2% das famílias possuem casas com paredes de tábuas (Figura 4) e apenas
27,1% paredes com tijolos e algum tipo de revestimento externo.
Quanto ao destino dos dejetos humanos, 55,9% das famílias possuem fossa
asséptica ou algum tipo de poço absorvente dos dejetos. Porém, por outro lado, 24,7% dos
agricultores somente possuem fossa simples e outros 10,2% fazem suas necessidades direto
no solo ou nos cursos d’agua (5,1%). Quanto à rede de fornecimento de energia elétrica,
93,2% das famílias possuem energia da rede geral, demonstrando um bom abastecimento
elétrico. Porém, um percentual não desprezível das famílias (6,8%) ainda não possui
fornecimento de energia elétrica. Em resumo, estes indicadores deixam claro duas coisas. A
primeira é de que existe uma fragilização social dos agricultores no Alto Uruguai. E, a
segunda, é que a pobreza está concentrada, predominantemente, no “rural” e, dentro deste, na
agricultura familiar que se constitui na maior parcela dos agricultores desta região.
137
Fonte: Pesquisa de campo (2004).
Figura 4: Agricultor familiar em situação de pobreza rural no território do Alto
Uruguai.
Em larga medida, este empobrecimento que é fruto de um processo histórico de
transformações do território que vulnerabilizou a esfera do autoconsumo familiar no Alto
Uruguai. Como formulou Maluf et all (2004, p. 10) a inexistência de condições de produção
para o autoconsumo pela carência de recursos (água, área útil, etc.), ou a perda destas
condições devida a opções como a da especialização produtiva, são causas de insuficiência
alimentar que se somam aos indicadores de pobreza rural medidos em termos da renda
monetária entre os agricultores familiares.
No Alto Uruguai a face mais perversa do processo de mercantilização do espaço
agrário é a vulnerabilização da esfera do autoconsumo familiar onde muitos agricultores não
conseguem atingir nem o mínimo calórico como formulou Wolf (1976) e se encontram em
situação de insegurança alimentar e de fome. Por exemplo, um diagnóstico municipal da
Emater (2002), sobre a realidade do município de Taquaruçu do Sul, um dos municípios
pesquisados, estima que em torno de 40% das famílias não produz a quantidade suficiente de
alimentos para uma alimentação com uma boa qualidade nutricional (p. 19). Este processo de
insegurança alimentar, em que algumas famílias estão passando fome, pode ser observado
pelos relatos contidos nas entrevistas com um agricultor familiar que revela já ter incorrido
138
em situações de alimentação deficiente e de um presidente de CMDR que reconhece a
ocorrência de falta de uma alimentação baseada na produção própria de autoprovisionamento.
Anos atrás foi passado épocas apertadas, que (a comida) era racionada, às
vezes só tinha duas variedades de comida e não tinha outras. [...] Então nós
tínhamos que apertar de todo o lado, fazer economia e passava apertado. Mas
dá para dizer quase fome, comer bem menos do que comia (Entrevista 10,
2004, L. S., Agricultor familiar).
Nós tivemos aqui no nosso município [...] famílias que não tinham, que só
produziam a cultura do fumo e que não plantavam outras culturas. Inclusive
para a própria alimentação e ai o que acontecia? Dava uma frustração de safra
e ai o pessoal tinha que comprar toda a comida no mercado e, muitas vezes,
estas famílias tiveram grandes dificuldades até em termos de alimentação
(Entrevista 17, 2004, V. S., Representante Sindical, CMDR).
Observa-se que no primeiro caso a insegurança alimentar é referida pela falta do
mínimo calórico a que Wolf (1976) se referiu. Ou seja, a insegurança alimentar emerge de
um contexto de pobreza rural onde o agricultor não consegue obter a quantidade de produção
de autoconsumo suficiente e permanente para a alimentação do seu grupo doméstico. Nesta
primeira entrevista, a dificuldade maior dos agricultores está em se realizar o balanço entre
trabalho e consumo para atingir as necessidades alimentares básicas da família, tal como
apontou Chayanov (1974). Já no trecho da segunda entrevista, o tipo de insegurança
alimentar é distinto. Neste caso, ela emerge de uma opção pelo plantio dos cultivos
comerciais e mercantis como formulou Maluf et all (2004), onde o fulcro da insegurança
alimentar é de outra natureza. É de natureza da dependência gerada ao contexto social e
econômico para a obtenção dos alimentos necessários ao consumo familiar via o mercado.
Desse modo, pode-se afirmar que a maior insegurança alimentar que existe no Alto
Uruguai deve-se a mercantilização do consumo familiar dos agricultores. Este processo
acontece devido à dependência da compra do mínimo calórico de fora da unidade de
produção e a conseqüente vulnerabilização da alimentação do grupo doméstico. A
contradição principal do processo de mercantilização do autoconsumo é que o agricultor
familiar não mercantiliza somente o processo produtivo de grãos e cultivos comerciais como
formulou Van der Ploeg (1990; 1992), mas também o consumo familiar pela compra dos
alimentos no mercado, gerando uma situação de insegurança alimentar devido à dependência
de sua reprodução social e alimentar ter que provir do ambiente social e econômico em que
este está inserido.
Este processo de mercantilização social e econômica, que inclusive atinge a
produção de autoprovisionamento, levou alguns atores sociais entrevistados a formularem
que o agricultor de hoje não é mais um agricultor no sentido de sua identidade sócio-
139
profissional. Na sua opinião, este agricultor seria um “comprador” como outro qualquer, que
adquire o seu consumo alimentar no mercado do mesmo jeito que ele compra os fertilizantes,
os defensivos, os insumos, a tecnologia, as sementes melhoradas, etc. Este processo de
mercantilização do consumo alimentar pode ser entendido pelo que Van der Ploeg (1990;
1992) chamou de externalização da produção agrícola, onde o agricultor passa, cada vez
mais, a comprar os elementos necessários a sua reprodução social, que neste caso, são os
alimentos necessários ao consumo da família. Neste sentido, o relato de um agrônomo da
Emater é elucidativo.
Acostumou-se com isso, então por que eu vou produzir a comida se eu posso
comprar fora. Como eu compro o adubo, a semente, eu compro isso, compro,
compro. Então ele virou um comprador e um produtor de soja que vende para
a cooperativa [...]. Antes da produção virou um comprador de matéria-prima,
compro o adubo, compro, compro. Então ele também compra a comida, é
mais uma compra, ficou mais fácil, mais prático (Entrevista 22, 2004, R. B.,
Engenheiro Agrônomo, Emater).
O objetivo desta seção, foi o de demonstrar que no Alto Uruguai existe um
empobrecimento geral do território e uma fragilização das famílias rurais que afeta,
diferentemente, as condições de reprodução social e alimentar dos agricultores familiares.
Elucidou-se, também, que uma parcela dos agricultores, que possuem o seu autoconsumo
vulnerabilizado nas unidades produtivas estão em situações de insegurança alimentar e,
inclusive, de fome.
Na próxima seção, tenta-se demonstrar que a produção de autoprovisionamento é
uma produção, que pela lógica de reprodução da agricultura familiar, deveria ser a prioritária
a ser gerada da conjugação das forças produtivas. Também, aborda-se este tipo de produção
na perspectiva do “combate” as situações de pobreza rural e de insegurança alimentar que
imperam no território.
3.5 – O autoconsumo como a principal estratégia de combate à pobreza rural e a
insegurança alimentar.
Na presente seção, toma-se a agricultura familiar como uma forma de trabalho e
produção social que está inserida em um ambiente social e econômico que é marcado pela
mercantilização crescente das suas estratégias reprodutivas, principalmente pela
mercantilização do autoconsumo. O Alto Uruguai, como já demonstrado no capítulo 1, é um
território que possui a “marca” da mercantilização. É um território em que imperam relações
140
sociais assimétricas, onde a pobreza rural é muito acentuada e, em muitos casos, a
insegurança alimentar se faz presente em boa parte das famílias de agricultores familiares.
Esta situação pode ser explicada pelo esquema da Figura 5, elaborado a partir da
realidade social do Alto Uruguai. Nele, delineiam-se alguns aspectos importantes do que se
chama de rotas possíveis de produção/reprodução social que a agricultura familiar pode
seguir em diferentes contextos sociais, econômicos e históricos. Na Figura 5, a agricultura
familiar é tomada como uma forma de produção e trabalho que gere determinados fatores de
produção (terra, força de trabalho e os meios de produção) que conjugados entre si pelo
agricultor familiar, através de suas relações sociais de produção, resultam em um
determinado tipo de produto agrícola que, por sua vez, é o resultado material e concreto de
um processo de produção agropecuária. Este produto agrícola pode ser tanto uma mercadoria
agrícola e possuir livre circulação e valor de troca no mercado, como é o caso da soja ou, ser
um valor de uso que no contexto dos circuitos do mercado não possui valor algum a não ser o
de ser usado pelo seu possuidor em seu próprio benefício. É o caso dos alimentos, que o
agricultor familiar produz com o objetivo único de alimentar o grupo doméstico, ou seja, o
autoprovisionamento, que no contexto da unidade de produção familiar não possui valor de
troca, pois está servindo apenas para saciar a fome da família (valor de uso) e gerar e
segurança alimentar como já se demonstrou
107
.
O processo de produção agrícola pode levar há duas diferentes estratégias de
produção/reprodução social da agricultura familiar em diferentes formações sócio-
econômicas, que são definidas e diferenciadas pelo grau de mercantilização das relações
sociais que produzem o autoconsumo
108
. Estas três rotas de reprodução social, como
demonstra a Figura 5, não são estáticas, mas dinâmicas no sentido de que um agricultor que
se encontra em um determinado nível de mercantilização do autoconsumo pode assumir uma
trajetória ascendente ou descendente em seus níveis produtivos. Assim, o esquema da Figura
5 é proposto como forma de explicação da realidade da agricultura familiar e da produção de
autoconsumo no Alto Uruguai. Além disso, ressalta-se que ele não é estático, mas sim
107
No caso dos alimentos estes não são entendidos como mercadorias no sentido marxista do termo, já que estes
fornecem os elementos minerais, proteínas, vitaminas, açúcares, etc que farão parte da composição orgânica do
próprio indivíduo e integrará o ser humano de forma a não poderem ser apropriados diretamente pelo capital em
termos de valor de troca e, assim, não podem ser consideradas mercadorias agrícolas pela impossibilidade, de
deles, ser retirado o valor correspondente à mais-valia.
108
Por estratégia de produção se entende a forma e a maneira como o agricultor familiar maneja e desenvolve o
seu sistema produtivo agrícola. Por estratégia de reprodução se entende a forma com que o agricultor familiar
ganha a sua vida, ou como formulou Ellis (2000), como o agricultor familiar põe em prática diferentes
estratégias para obter a sua vivência. Neste sentido, nesta seção, se conjuga os dois conceitos, o de estratégia de
produção ao de reprodução, devido a agricultor familiar ser uma forma social (familiar) conjugado a um setor
econômico (agricultura), deste modo, é permitida essa junção, de forma a tornar a análise não cindida.
141
dinâmico no sentido que o mesmo pode ser modificado a qualquer momento conforme mudar
a dinâmica territorial em curso no Alto Uruguai.
Uma primeira via ou rota de produção/reprodução social é aquela que se desenvolve
onde a produção de autoconsumo não é vulnerabilizada no interior da unidade de produção.
Nesta via, o agricultor familiar, primeiramente, produz o que é necessário à alimentação e
segurança alimentar do grupo doméstico, sendo que a mercantilização do autoconsumo é
existente, porém em um grau (Van der Ploeg, 1990; 1992), que não compromete a
reprodução social e alimentar da família. Esta rota propicia ao agricultor familiar uma
reprodução social baseada nos seus supostos internos de produção como formularam
Woortmann e Woortmann (1997), diminuindo a externalização do consumo doméstico em
bases reais onde o agricultor familiar passa a depender menos do contexto social e econômico
e, principalmente, reduz-se a mercantilização do consumo doméstico já que a
produção/reprodução social e alimentar está assegurada no interior da própria unidade de
produção.
Esta rota ou via de produção/reprodução social leva o agricultor familiar a reduzir a
sua vulnerabilidade como se referiu Ellis (2000) ao mercado, pois o agricultor familiar está
agindo como se estivesse pondo em prática uma estratégia de vivência que é de adaptação ao
contexto social e econômico existente. Estratégia de adaptação, pois o mesmo está se
munindo de todos os artifícios e supostos internos de produção para em nenhum momento
depender do mercado para executar a sua reprodução social e alimentar. De adaptação,
também, por que o fortalecimento do autoconsumo é a maneira mais racional de se fazer
frente a um processo de mercantilização sobre o qual o agricultor familiar não possui o
controle efetivo da conjuntura mercadológica, podendo apenas influir nesta de forma
periférica e marginal. A única e verdadeira estratégia de vivência a sua mercantilização do
consumo alimentar, é a de fortalecer o autoconsumo, pois é este que lhe traz alguns dos
princípios mais importantes da segurança alimentar como demonstrou Maluf et all (2004).
Estes princípios da segurança alimentar foram formulados por um agrônomo durante o
trabalho de campo como a entrevista demonstra.
Isso é fundamental por que segurança alimentar, como o nome já diz, é uma
segurança tu ter a comida e se tu produzir ela em casa tu vai ter mais
segurança por que ela vai estar disponível, vai ter o acesso, tu vai ter a
disponibilidade que são os princípios da segurança alimentar. Tu vai ter
acesso à comida, você vai ter a quantidade e a qualidade (também) (Entrevista
22, 2004, R. B., Engenheiro Agrônomo, Emater).
142
Desta forma, pode-se dizer, que o agricultor familiar garante a sua segurança
alimentar e reprodutiva, pois possui a sua produção de autoconsumo garantida internamente a
unidade de produção, “produzindo” assim, também, num mesmo processo social a sua
autonomia parcial frente ao mercado, aos mecanismos de preços e as condições de troca que
este lhe imputa e que, geralmente, no caso do consumo alimentar são quase sempre
desvantajosas para o agricultor familiar.
Esta via de produção/reprodução social, conforme mostra a Figura 5, gera a
alternatividade da produção como formularam Garcia Jr. (1983; 1989) e Herédia (1979), que
é o processo pelo qual o agricultor familiar consegue, via produção de autoconsumo, vender
ou consumir os produtos agrícolas dependendo da sua situação alimentar e reprodutiva e das
condições que o mercado lhe oferece (preços, vantagens, trocas rentáveis, etc). Assim, a
produção de autoconsumo traz um maior “jogo de cintura” a unidade produtiva, pois em
situações de bons preços e excesso de produção de determinado produto agrícola pode-se
vender este e com o valor monetário obtido, comprar outros bens e produtos de consumo que
a família não possui capacidade de produzir, gerando assim, um circulo virtuoso de trocas
vantajosas ao grupo doméstico, podendo este garantir todos os bens necessários à
alimentação da família através do consumo diferido.
Por outro lado, se as condições de mercado não são favoráveis (baixos preços, por
exemplo), a produção é pouca e a reprodução alimentar está comprometida, o grupo
doméstico pode optar por autoconsumir aquela parcela de produto que foi obtido mediante o
seu próprio esforço e, assim, tambémo vai depender de trocas mercantis. Como
demonstrou Garcia (1989), o agricultor familiar pode, ainda, vender determinado produto in
natura e comprar o seu derivado transformado se não possuir a força de trabalho suficiente
(variável Chayanoviana) para executar a operação de transformação, como é o caso da
mandioca em algumas famílias do Nordeste.
Esta rota de produção do autoconsumo pouco mercantilizada é fundamental para
que o agricultor familiar possa executar a diversificação das estratégias de vivência (Ellis,
2000)
109
. Ainda mais, em contextos de não diversificação das estratégias de vivência como é
o caso do território do Alto Uruguai, onde o padrão agrícola e setorial de desenvolvimento é
hegemônico e impõe restrições das mais diversas ao avanço econômico e social das formas
familiares de produção e trabalho no espaço rural. É o autoconsumo, levando-se em conta a
109
Esta hipótese de pesquisa será mais bem demonstrada no capítulo 5, onde se trabalha com as experiências em
que a produção de autoconsumo gera a segurança alimentar e a diversificação das estratégias de vivência na
agricultura familiar.
143
lógica de reprodução social da agricultura familiar, que deveria ser gerado, primeiramente, da
conjugação das forças produtivas com os fatores de produção agrícolas, com o claro objetivo
de propiciar a alimentação dos membros da família e, assim, garantir a reprodução social e
alimentar do grupo doméstico. É somente a partir da alimentação garantida, o mínimo
calórico a que Wolf (1976) se referiu, que o agricultor familiar vai lançar-se em uma
estratégia de vivência de reação ao seu não desenvolvimento econômico e social.
É o autoconsumo que assegura a reprodução social e forma uma espécie de “lastro”
de apoio por onde o agricultor familiar pode reagir a sua situação social, buscando
diversificar as suas estratégias de vivência através da ampliação das suas atividades
produtivas, rendas, ativos e capacidades (Sen apud Ellis, 2000) de obtê-los. Fortalecer o
autoconsumo para que o agricultor familiar possa diversificar as suas estratégias de vivência
é o caminho mais viável para o combate da pobreza rural que existe no território do Alto
Uruguai. Esta formulação, também foi recorrente no trabalho de campo, onde os atores
sociais entrevistados formularam que o autoconsumo propicia um “lastro maior para a
propriedade” e também a deixa mais “sólida” as intempéries e as condições de mercado,
como a entrevista demonstra.
Por que com certeza o agricultor que produz o seu consumo a sua
propriedade fica mais sólida, principalmente as condições de intempéries, de
clima e as condições de mercado. O problema que a soja enfrenta, se ele
perdeu a soja, mas ele produziu a galinha, produziu a batata e isso ele não vai
precisar estar comprando e conseqüentemente ele vai estar mantendo a renda,
mesmo sendo uma renda que não vai entrar em termos de moeda, mas ele não
vai precisar comprar. Então ela dá um lastro maior para a propriedade e, por
isso, que ela é importante essa produção de autoconsumo (Entrevista 9, 2004,
G. P., Engenheiro Agrônomo, SAM).
144
- Autonomia reprodutiva frente ao
contexto social e econômico;
- Menor externalização do
consumo familiar;
- Garantia de segurança alimentar
através da produção de autoconsumo;
- Menor externalização do processo
produtivo agrícola;
- Maior possibilidades de diversificação
das estratégias de vivência;
- Alternatividade produtiva.
Estratégias de produção
/reprodução social:
- Autoconsumo (+)/mercant (-)
Agricultura Familiar
- Autoconsumo (-)/mercant. (+)
- Maior externalização do processo
produtivo agrícola;
- Maior externalização do consumo
familiar;
- Aumento da insegurança alimentar
do grupo doméstico;
- Especialização produtiva e
diferenciação social;
- Aumento da pobreza rural;
- Não alternatividade produtiva.
Figura 5: Graus de mercantilização do autoconsumo e rotas de produção/reprodução social da agricultura familiar no Alto Uruguai.
145
A segunda rota, segundo a Figura 5, de produção/reprodução social que é a
dominante no Alto Uruguai, em relação à anteriormente descrita, é a rota da mercantilização
do autoconsumo. Esta via se caracteriza por uma mercantilização crescente do processo
produtivo agrícola como definiu Van der Ploeg (1990; 1992) e onde o grau de externalização
dos agricultores familiares é elevado. Nesta rota, o autoconsumo se encontra bastante
mercantilizado e os agricultores, constantemente, executam a sua reprodução alimentar e
social buscando grande parte do consumo doméstico nos mercados citadinos locais, gerando
assim, uma perda de autonomia alimentar e uma situação de insegurança alimentar, pois a
produção de autoconsumo não está assentada nos supostos internos da unidade de produção.
A mercantilização do autoconsumo, em alguns casos, leva a insegurança alimentar
do grupo doméstico, pois é necessária uma monetarização crescente da família para que esta
consiga comprar no mercado, aos preços e condições que este lhe impõe, o consumo
alimentar necessário a família. Este contexto é uma situação em que o grupo doméstico se
encontra vulnerável em face ao mercado, pois é este que define os preços, as condições de
circulação de mercadorias e o que o agricultor familiar vai comer
110
. A mercantilização do
autoconsumo faz com que o agricultor familiar passe a vivenciar um dilema, pois, por um
lado, este tem que obter excedentes monetários para fazer frente à compra do consumo
alimentar fora da unidade de produção. Entretanto, para isso, ele tem que obter saldos
monetários crescentes no ano dentro da unidade de produção o que só é possível, em
territórios com um padrão de desenvolvimento agrícola, aumentando a produção de
commodities e a inserção mercantil via especialização produtiva. Contudo, esta lógica de se
especializar produtivamente dos agricultores, leva a uma situação social em que se aumenta o
grau de vulnerabilização do autoprovisionamento alimentar, como formulou um dos nossos
informantes. Pelo relato, observa-se que o principal motivo da vulnerabilização do
autoconsumo é a especialização produtiva e que esta é formulada em relação ao plantio de
culturas mercantis como é o caso do fumo.
Eu acredito assim que em nível de município que [...] dum modo geral a
produção de subsistência foi fragilizada nos últimos anos, principalmente eu
acredito por causa da especialização. Por exemplo, a cultura do fumo para o
agricultor ter uma renda maior para a família passou a cultivar mais e
110
Como o agricultor familiar compra a seu consumo no mercado, é este último que coloca à venda os tipos de
alimentos que se deve consumir. Também, neste caso, o agricultor perde a sua autonomia de consumo já que,
mesmo possuindo dinheiro para comprar determinado alimento, pode este não ser oferecido pelos circuitos
mercantis na forma com que o agricultor desejasse. Um exemplo disso, foi à desestruturação dos chamados
“moinhos de pedra” coloniais os quais beneficiavam o milho extraindo a farinha de milho usada pelos colonos,
principalmente os de origem italiana, para a elaboração da famosa “polenta”. Em algumas ocasiões se percebe a
queixa dos agricultores de que não há mais este tipo de moinho no interior e que “a farinha que se compra no
mercado (supermercados principalmente) não dá uma polenta boa” por que “não presta”.
151
cultivando mais precisa mais mão de obra, mais tempo dedicado para essa
atividade e conseqüentemente ele começa a deixar de lado a produção de
subsistência. Então, aos poucos, foi sem se perceber diminuindo a quantidade,
a variedade, a diversificação de produtos para a sua subsistência (Entrevista 9,
2004, G. P., Engenheiro Agrônomo, SAM).
A especialização produtiva leva a uma “encruzilhada” reprodutiva para os
agricultores, na qual quanto mais estes se especializam, mais intensamente a produção de
autoconsumo é deslocada espacialmente e temporalmente no interior da unidade de produção
tornando-se “marginal” em muitos casos e, em outros, chegando a ponto de serem extintas
totalmente como se pode observar a campo
111
. Este movimento em direção a especialização
leva a uma maior dependência do contexto social e econômico, com uma tendência ao
crescente gasto financeiro com o consumo alimentar da família e a vulnerabilização da
reprodução social e alimentar das famílias.
No Alto Uruguai a mercantilização da agricultura familiar pelo plantio de
commodities e a especialização produtiva é que levou, em grande medida, a mercantilização
do autoconsumo. Neste contexto de especialização produtiva e de atividades que geram maior
lucratividade é que o agricultor familiar perde a alternatividade da produção como se referiu
Garcia Jr. (1983; 1989), pois as culturas como a soja e o fumo, que estão entre os principais
produtos da agricultura familiar, não possuem outra “função” que não à comercial. No
contexto da unidade de produção nenhum papel importante em termos de segurança alimentar
é desempenhado por estes produtos que tem a sua valorização somente na esfera do mercado.
Neste contexto de mercantilização do autoconsumo, quase não há espaço para a
diversificação das estratégias de vivência das famílias, como definiu Ellis (2000), pois estas
estão em tamanha situação de vulnerabilidade (que se corporifica em alguns casos através de
um empobrecimento rural) que qualquer renda extra gerada, ativo ou produtos obtidos através
das redes de trocas com os vizinhos (reciprocidade familiar) são usados primeiramente para a
garantia da alimentação do grupo doméstico (Graziano da Silva et all, 2001). A
diversificação das estratégias de vivência somente é possível no momento em que as famílias
111
Temporalmente, por que o agricultor familiar desprende um maior tempo as lavouras e criações que lhe são
lucrativas e um menor ou nenhum tempo às atividades de autoconsumo. É o caso de suinocultores que possuem
em torno de 500 ou 600 suínos em processo de engorda. Quando estes são pequenos ele não pode se afastar da
pocilga por muito tempo, por que tem que “tratar os porcos” até 5 vezes ao dia. Quando estes estão em fase de
terminação não pode se afastar do “chiqueirão”, como formulam os agricultores, por que os “porcos podem
brigar e morrer”, ou, por que tem que realizar a limpeza diária da pocilga. Nestas unidades produtivas com
integração vertical aos complexos agroindustriais o agricultor familiar quase não dispõe de tempo para os
cultivos de autoconsumo e acaba comprando grande parte deste nos mercados locais. Ressalta-se ainda, que os
agricultores lamentam-se que inclusive nos finais de semana não possuem “tempo para descansar”, pois “tem
que cuidar dos porcos”.
152
conseguirem gerar ativos, rendas e possuírem a capacidade de obter um excedente monetário
para fazer frente a outras necessidades e possibilidades de reprodução social. É por isso que o
fortalecimento do autoconsumo em contextos de agricultura familiar mercantilizada é tão
importante. Ele é que forma, em grande medida, a base para a diversificação das estratégias
de vivência e reduz a vulnerabilidade do grupo doméstico a situações de pobreza rural e de
insegurança alimentar.
Em um território mercantilizado, como é o Alto Uruguai, uma das faces da
fragilização social que o padrão de desenvolvimento agrícola e setorial gera, pode ser
associada a vulnerabilização das condições de vida da população rural, como no caso
relacionado ao empobrecimento rural. A pobreza está diretamente associada à fome nas
populações e alguns autores tem enfatizado a hipótese de que a pobreza é uma das causas
estruturais da fome e da insegurança alimentar (Belik et all, 2001; Maluf et all, 2004; FAO,
2004; Graziano da Silva et all, 2001). Em territórios onde a grande maioria da população é
rural (em torno de 60 a 70% para a maioria dos municípios do Alto Uruguai) é mister
concluir-se que a pobreza rural e a fome estão dentro das unidades familiares de produção.
Assim, a ocorrência da insegurança alimentar entre os agricultores familiares pode
ser encarada, em grande medida, como efeitos da mercantilização do autoconsumo, que faz
com que o agricultor familiar passe a possuir um limiar de reprodução social e alimentar cada
vez mais estreito no qual os limites entre pobreza e o “passar fome”, como se referem os
agricultores, são muito tênues. Assim, a questão da pobreza rural, da insegurança alimentar e
da produção de autoconsumo são temas correlatos e que possuem uma interligação dialética
de forma que para se compreender um deles se faz necessário o entendimento dos outros. São
temas que estão em “rede” em territórios mercantilizados.
O objetivo desta seção foi o de demonstrar que a agricultura familiar pode seguir,
basicamente, duas rotas de produção/reprodução social com relação ao autoprovisionamento
alimentar das famílias. Também, se pretendeu traçar um “mapa da rota”, mesmo que de
forma simplificado, de por onde as condições de reprodução social e alimentar da agricultura
familiar são menos vulnerabilizadas e mercantilizadas. Na próxima seção, desenvolvem-se de
forma sucinta, alguns argumentos que justificam a intervenção do Estado em relação à
agricultura tomando-se por base, para tal empreendimento, o conceito de segurança
alimentar. Esta abordagem se faz de fundamental importância para se fazer um link com os
demais capítulos desta dissertação, que possuem como objeto de estudo a ação do Estado
através das políticas públicas (o Pronaf no capítulo 4) e as políticas e iniciativas locais de
desenvolvimento (no capítulo 5), visando relacioná-las com a segurança alimentar gerada
153
através do autoconsumo, tanto do ponto de vista dos agricultores familiares como da
população não agrícola do território.
3.6 – Agricultura, segurança alimentar e intervenção do Estado.
Nos próximos dois capítulos discutir-se-á a intervenção do Estado através das
políticas públicas tendo como referência empírica o Pronaf, as políticas e iniciativas locais de
desenvolvimento. Deste modo, se faz necessário caracterizar a intervenção do Estado na
agricultura de forma a demonstrar as principais razões pelas quais este deve intervir
positivamente nos espaços rurais. Mas antes disso, se faz necessário discutir, de forma
resumida, as principais conclusões que se alcançou até este momento da pesquisa de modo a
correlacioná-las com a intervenção do Estado neste setor, que será desenvolvida nos próximos
capítulos.
O que se tentou demonstrar até aqui é que a agricultura familiar é uma forma de
produção e trabalho que, no Alto Uruguai, se encontra mercantilizada do ponto de vista social
e econômico. Este processo mais geral de transformações técnicas-produtivas, econômicas e
sociais fez com que os agricultores passassem por profundas transformações do seu modo de
vida e no que diz respeito a organização do seu trabalho produtivo. Neste sentido, uma das
dimensões das unidades produtivas que sofreu estas mudanças foi a do autoconsumo familiar
de alimentos.
Um dos princípios da produção de autoconsumo na dinâmica das unidades familiares
está relacionada à geração da segurança alimentar para os membros que compõem o grupo
doméstico destas. Neste sentido, a produção de autoconsumo possui uma importância
fundamental no que diz respeito a gerar alguns dos principais princípios norteadores do
conceito de segurança alimentar como a questão relativa ao acesso dos alimentos pelos
indivíduos, o fornecimento das quantidades necessárias e de um modo permanente, a
qualidade nutricional dos alimentos consumidos e o de fornecer uma alimentação que esteja
de acordo com os hábitos de consumo e alimentação historicamente desenvolvidos pela
população rural do território.
Contudo, o que se tentou demonstrar até aqui, é que esta produção foi sendo solapada
a partir dos anos 70 com as transformações técnicas-produtivas por que a região do Alto
Uruguai passou. Dentre estas transformações destacam-se um processo de mercantilização do
autoconsumo que se refere ao movimento pelo qual este é deixado de ser produzido na
unidade familiar, passando para fora desta, ou seja, sendo externalizado na dinâmica de
154
reprodução social e alimentar de muitas famílias. Entretanto, este processo de mercantilização
do autoconsumo não atingiu a todos os agricultores da mesma forma, pois ele possui vários
graus de ação frente tais unidades. Um outro processo identificado foi o de vulnerabilização
do autoconsumo que compreende uma fragilização geral deste tipo de produção em algumas
famílias, gerando processos de insegurança alimentar e até de fome em alguns casos. Neste
segundo processo, pode-se identificar uma fragilização geral das famílias que possuem este
tipo de produção mais vulnerabilizada nas suas unidades produtivas, sendo que, em alguns
casos, estas famílias estão expostas a choques e crises em sua reprodução social como
formulou Ellis (2000), devido a não possuírem o autoprovisionamento alimentar suficiente
para fazer frente as suas necessidades de consumo.
É neste contexto de mercantilização e de vulnerabilização da reprodução social e
alimentar das famílias que se faz importante à análise das políticas públicas de Estado, com o
objetivo de se verificar em que medida estas estão focalizando o tema da produção de
autoconsumo e da segurança alimentar das populações rurais. Isso se reveste de uma
importância fundamental no caso do Alto Uruguai, já que em um contexto em que muitas
famílias não estão tendo a sua segurança alimentar garantida, como direito básico a
alimentação para os indivíduos, como se referiu Maluf et all (2004), se faz de suma
importância à ação do Estado com o fito de equacionar tal problema social junto aos
indivíduos envolvidos, sejam eles rurais ou urbanos.
Deste modo, a análise das políticas públicas praticadas pelo Estado possui um carácter
de investigação científica e acadêmica. Contudo, quer-se também ressaltar o papel que o
Estado possui como instituição de regulação societal, no sentido do equacionamento dos
problemas sociais ligados a população rural, como no caso da insegurança alimentar. Neste
sentido, é papel do Estado propiciar as condições básicas de vida da população, através de
políticas públicas que garantam a qualidade de vida, o bem estar social e a manutenção do
tecido social rural. Assim, pretende-se analisar as políticas públicas correlatas ao “mundo”
rural do Alto Uruguai tentando avaliar até que ponto estas estão mudando a situação de
vulnerabilização e de mercantilização do autoconsumo familiar e, assim, conseqüentemente
garantindo e gerando segurança alimentar para os agricultores familiares envolvidos em tais
processos. Deste modo, passa-se agora, a analisar as principais justificativas que levam o
Estado a intervir na agricultura. Ressalta-se que estas são analisadas do ponto de vista da
segurança alimentar dos indivíduos.
Segundo Delgado (2001) a intervenção do Estado tem como objetivo fundamental
regular os mercados agrícolas, garantindo preços e rendas para os agricultores, e estimular a
155
produção doméstica, de modo que o abastecimento alimentar, especialmente urbano, não seja
comprometido pela escassez de produtos e por preços internos muito elevados (p. 16).
Entretanto, mais importante que a regulação do mercado, dos preços e o incentivo à produção
agrícola que o crédito rural barato e farto nas décadas de 70 e 80 cumpriu adequadamente e,
no final da década de 80 a PGPM, é se justificar a intervenção estatal do ponto de vista de
assegurar o direito básico a todos os cidadãos, inclusive os agricultores familiares, a
segurança alimentar em todos os seus princípios constitutivos e norteadores.
Assim entendida a segurança alimentar deve ser o motivo prioritário da intervenção
estatal como ela foi, no passado, para os países europeus e os EUA e, desta forma, ela deve
ser concebida do ponto de vista do direito à alimentação de todos os cidadãos, obedecendo-se
os principais princípios de segurança alimentar e nutricional os quais são: a qualidade dos
alimentos disponibilizados a população, o seu fornecimento em quantidades suficientes e
permanentes, propiciar um acesso adequado e contínuo, disponibilidade permanente de
alimentos, hábitos e práticas alimentares sadias e corretas, preparo adequado dos alimentos,
consumo de alimentos fundamentados nos aspectos culturais das populações de cada
território, etc como forma de mitigação da fome tanto das populações “urbanas” como das do
“rural”. Como formulou Maluf et all (2004) é preciso que se considere o direito humano à
alimentação como primordial, que antecede a qualquer outra situação, de natureza política ou
econômica, pois é parte componente do direito à própria vida (p. 2)
112
.
Neste sentido, como formulou Couto (2003), a intervenção do Estado é necessária no
caso da segurança alimentar devido a três conjuntos de razões: a) necessidade de controle de
crises de abastecimento através da regulação da oferta agrícola ao longo do ano, prevenindo
oscilações abruptas de preços alimentares ou suplementando a oferta em períodos de escassez;
b) provisão de segurança social no longo prazo contra situações extraordinárias – guerras,
desastres climáticos, embargos de natureza política, crises cambiais, etc. – ou qualquer outra
circunstância não passível de controle e previsão humana; c) concretização do objetivo de
acesso irrestrito à provisão alimentar a preços adequados vis-à-vis às históricas desigualdades
sócio-regionais prevalecentes nas sociedades capitalistas atrasadas (p. 15).
No Box 1, sumariza-se os principais motivos que justificam a intervenção do Estado
no agricultura, tendo como pressuposto a segurança alimentar. O objetivo aqui não é o de
discutir isso aprofundadamente visto que não é o foco principal do nosso estudo, mas sim
112
Inclusive a constituição brasileira reza no capítulo que trata dos direitos básicos do cidadão o direito a
alimentação, dentre outros, como condição mínima da dignidade, da cidadania e da existência humana. Direito
este que deve ser assegurado pelo Estado como entidade suprema de regulação societal.
156
somente trazer a luz algumas das motivações clássicas que informam o debate da intervenção
estatal na agricultura.
Box 1: Principais motivações e justificativas para a intervenção do Estado na
agricultura.
Fonte: Delgado (2001), Leite (2001), Garces pares (sd) e reflexões próprias do autor.
a) Garantia do direito irrestrito e primordial a todos os cidadãos a uma alimentação de
acordo com os princípios da segurança alimentar e nutricional;
b
) Garantir a soberania alimentar do país frente a guerras, desastres climáticos, preços
distorcivos de mercado praticados por outros países e outros fatores que possam afetar
a
disponibilidade, o fornecimento e a alimentação adequada da população;
c) A agricultura é uma atividade de risco (está exposta às adversidades e imprevistos
climáticos) e também um setor estratégico para o abastecimento alimentar e o
desenvolvimento sócio-econômico do país e, por isso, estes riscos devem se
r
“compartilhados” com o restante da sociedade através da transferência de renda do Estado
aos agricultores;
d) A dependência estrutural da agricultura em relação à natureza torna o tempo de
p
rodução superior ao tempo efetivo de trabalho, o que imputa a atividade agrícola certas
descontinuidades que tendem a reduzir a lucratividade e a velocidade de rotação de capital
do setor;
e) A atomização da produção agrícola e as descontinuidades do processo produtivo faze
m
com que a oferta dos produtos agrícolas tenha variações de acordo com a estacionalidade
de produção (safras, períodos de não produção, etc) induzindo variações de mercado que
muitas vezes são distorcivas aos preços dos produtos agrícolas pagos aos agricultores;
f) Garantir uma sustentação da renda real aos agricultores devido à agricultura, em países
como o Brasil, se uma transferidora constante de renda para o desenvolvimento de outros
setores econômicos da sociedade.
Estas justificativas expostas no Box 1, são importantes para se entender a ação do
regulatória do Estado frente a agricultura e a segurança alimentar e nutricional dos indivíduos
integrantes da sociedade. No sentido de entender a ação da intervenção estatal do ponto de
vista da segurança alimentar e nutricional pode-se situar os anos 90 como um ponto de
inflexão das políticas de segurança alimentar e nutricional no Brasil. É a partir desta década
que o Estado brasileiro começa a se preocupar com as camadas da população em situação de
fome, miséria e insegurança alimentar.
Estas preocupações, em certa medida, tomam corpo na estrutura governamental de
modo a tentar sanar os problemas correlatos a estas situações sociais degradantes das
populações implicadas em carências alimentares e sociais. Contudo, o que parece ficar claro é
que as respostas a estes problemas passam sempre por ações fragmentadas e imediatas, por
programas assistências com caráter pontual e específico e uma abordagem da segurança
alimentar que não toma o ser humano como o centro das atenções de tais estratégias.
157
Uma mudança significativa começa a se desenhar no final dos anos 90 e início deste
século, onde a questão da segurança alimentar e nutricional toma novas dimensões sociais e
políticas no país. Neste sentido, destacam-se as ações do Estado através de vários programas
de assistenciais como o Comunidade Solidária, o programa de distribuição de cestas básicas,
os programas Bolsa Escola, Bolsa Família, etc. Porém, em grande medida, estes estavam
fragmentados na estrutura de governo, sendo que as suas atribuições e operacionalização não
recaíam sob o um órgão governamental apenas que desse cabo deste tipo de política.
Este cenário, em grande medida, começou a ser modificado nos últimos anos quando a
segurança alimentar é alçada a principal política da área social de governo. Neste sentido,
parece que a segurança alimentar ganha uma maior importância como política de Estado, o
que se concretiza no ano de 2002 com a criação do Ministério Extraordinário de Segurança
Alimentar (MESA), que atualmente está sob o nome de Ministério do Desenvolvimento
Social (MDS). Destaca-se também, com a criação do MESA o estabelecimento de um
programa nacional de combate a insegurança alimentar e nutricional, o Programa Fome Zero,
que se coloca como um marco histórico da intervenção do Estado nesta área. Este programa
propõe-se tanto a ações estruturais como pontuais e de curto prazo visando o combate da fome
e da insegurança alimentar
113
. Isso reflete também, em grande medida, as ações da própria
sociedade civil brasileira que agiu no sentido de realçar a importância de ações concretas de
combate a fome através de diversas pressões e, inclusive, com o desenvolvimento de
iniciativas neste sentido como forma de incitar a ação estatal para tal empreendimento.
Neste sentido, os próximos dois capítulos desta dissertação procuram estabelecer os
vínculos entre a ação do Estado em relação à segurança alimentar das famílias do Alto
Uruguai. Para isso, realisa-se um estudo em torno da produção de autoconsumo das unidades
familiares, visando analisar quais os principais pressupostos e a lógica de ação que permeia a
intervenção pública com relação a este tipo de produção. Nesse sentido, no capítulo 4, analisa-
se a Pronaf como política pública para os agricultores familiares do Alto Uruguai, visando-se
estudar o tipo de fortalecimento que esta política tem gerado na produção de autoconsumo das
famílias rurais. Já no capítulo 5, analisam-se as políticas e iniciativas locais de
desenvolvimento, no sentido de demonstrar as concepções em torno da segurança alimentar
113
Em que pese a grande relevância do Programa Fome Zero para o equacionamento das situações de
insegurança alimentar e da fome, acha-se que ainda é cedo para uma avaliação da concretização dos seus
principais objetivos. Mesmo assim, destaca-se a importância desta política na estrutura governamental atual e o
seu caráter de combinar ações estruturais (geração de emprego, renda, incentivo a produção, etc) com iniciativas
de curto prazo como a distribuição de cestas de alimentos, criação de restaurantes populares, fornecimento de
tíquetes de refeição, etc.
158
que perpassam tais ações, tanto do ponto de vista dos agricultores como da população não
agrícola do território.
159
CAPÍTULO 4:
POLÍTICAS PÚBLICAS, PRODUÇÃO DE AUTOCONSUMO E
DESENVOLVIMENTO RURAL NO ALTO URUGUAI: uma análise a
partir do Pronaf.
O objetivo central deste capítulo é o de realizar uma análise do Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), no sentido de se verificar em que medida
esta política pública está contribuindo para a geração da segurança alimentar na agricultura
familiar através do fortalecimento da produção de autoprovisionamento de alimentos.
Objetiva-se, também, analisar qual o tipo de fortalecimento que está política esta gerando em
termos de desenvolvimento rural e nas condições de reprodução social e alimentar da
agricultura familiar do Alto Uruguai.
A hipótese que serve de guia para empreender esta análise é a de que o Pronaf é uma
política que não fortalece a produção própria de alimentos dos agricultores familiares do Alto
Uruguai e, assim, conseqüentemente, não gera a segurança alimentar para as famílias rurais.
Ainda segundo esta hipótese, supõe-se que o Pronaf não está conseguindo gerar um tipo de
fortalecimento na agricultura familiar que leve em conta a diversificação produtiva e
econômica das famílias beneficiadas por tal política.
Retomando-se algumas conclusões principais e parciais esboçadas até este momento
do estudo, ressalta-se que o Pronaf tem um papel importante como política pública de Estado,
no sentido de tentar modificar o cenário de mercantilização e de vulnerabilização da produção
de autoconsumo no Alto Uruguai. Este seria, em alguma medida, o papel do Estado num
contexto onde os processos de mercantilização e de vulnerabilização do autoconsumo das
famílias rurais levam algumas destas a situação de solapamento das suas condições de
reprodução social e alimentar. Neste sentido, o Pronaf poderia ser um instrumento importante
para modificar este quadro de reprodução social ameaçada, de fragilização social e de
160
insegurança alimentar de uma parcela significativa desta população rural, como já se
demonstrou anteriormente no capítulo 3. É neste contexto mais amplo de mercantilização da
agricultura familiar, do autoconsumo e da vulnerabilização deste tipo de produção que se
pretende estudar o Pronaf como uma política pública específica à agricultura familiar do Alto
Uruguai.
Deste modo, pretende-se demonstrar que o Pronaf está imerso em uma ambigüidade
básica que faz com que, ao mesmo tempo, ele seja um programa que apóia e estimula os
agricultores familiares a intensificar a sua inserção no padrão produtivista de agricultura,
mesmo que na formulação original e os seus objetivos sejam os de buscar alternativas a este
desenvolvimento convencional. Deste modo, pretende-se elucidar que o principal tipo de
fortalecimento que o Pronaf Crédito de Custeio e Investimento gera na agricultura familiar do
Alto Uruguai, está ligado ao padrão de desenvolvimento agrícola e setorial, onde a
especialização das atividades produtivas e econômicas dos agricultores se sobressai como
estratégia de apóio para tais unidades
114
. Mostra-se também, que é este tipo de fortalecimento
da agricultura familiar, em grande medida, que faz com que a produção de autoconsumo sofra
os processos descritos antes, no capítulo 3, de mercantilização e de vulnerabilização
produtiva.
Contudo, ressalta-se que o Pronaf gera um fortalecimento do autoconsumo na
agricultura familiar que, em alguns casos, pode-se dar de forma direta ou periférica na
unidade de produção. Insiste-se, também, que tem que haver uma distinção entre as linhas do
Crédito de Custeio e do Investimento do Pronaf, pois a sua influência é distinta sobre a
produção de autoconsumo. A primeira, do Crédito de Custeio, gera um fortalecimento
centrado na especialização produtiva dos agricultores e somente apóia o autoprovisionamento
de alimentos através da produção de milho (autoconsumo intermediário) e do que se usou
chamar de deslocamentos da aplicação de parte dos seus recursos. A segunda, a do Crédito de
Investimento, gera um fortalecimento do autoconsumo em maior escala e de forma direta pelo
aumento da produção, principalmente no caso das atividades como a bovinocultura de leite e a
fruticultura. Esta linha gera ainda um apóio a produção de alimentos para consumo que se
relaciona com o financiamento de pequenas inovações tecnológicas e de infra-estrutura rural
nas unidades familiares.
114
A análise proposta neste capítulo se centra somente na linha do Pronaf Crédito de Custeio e Investimento que
possui uma maior influência sobre a produção de autoconsumo. Não é objetivo analisar-se, nesta pesquisa, as
demais linhas do Pronaf como a de Infra-Estrutura e Serviços e a de Capacitação Rural.
161
Também se analisa que, malgrado o esforço dos elaboradores do Pronaf no sentido de
lhe imprimir uma configuração alternativa de desenvolvimento rural que levasse em
consideração as especificidades territoriais e, sobretudo, o enfoque na autonominização dos
agricultores familiares, a realidade estudada mostra um quadro bem mais complexo e
multifacetado. Neste sentido, de uma forma geral, pode-se dizer que o Pronaf continua
financiando atividades produtivas e econômicas que possuem um viés setorial e agrícola
muito pronunciado no Alto Uruguai, o que leva a inferir que o programa está fortalecendo e
apoiando o desenvolvimento de atividades centradas na produção agropecuária enquanto
estratégia de reprodução social dos agricultores.
Por fim, procura-se demonstrar que, não obstante as diversas modalidades de
financiamento rurais criadas nos últimos dois anos, o Pronaf continua com o seu enfoque
tradicional de desenvolvimento. Neste sentido, elucida-se que a diversificação destas
modalidades de financiamento, bem como das atividades produtivas dos agricultores
familiares é ainda muito tímida e, em alguns casos, até inexistente. Contudo, quando estas
existem, mantém o viés setorial de desenvolvimento centrando-se no financiamento das
atividades agropecuárias tradicionais do território. Desse modo, inicia-se a análise do Pronaf
com uma breve caracterização do programa e do seu público alvo, os agricultores familiares.
4.1 – O PRONAF: uma política pública para a agricultura familiar.
4.1.1 – Breve caracterização.
O surgimento do Pronaf inaugura um novo marco histórico na intervenção do Estado
na agricultura brasileira. Os agricultores familiares até então alijados das políticas públicas
para o rural se tornam alvo das mesmas e atores sociais, de certa forma, privilegiados
demonstrando a importância que esta categoria social possui para o desenvolvimento do país.
Como formularam Schneider et all (2004), o surgimento deste programa representa o
reconhecimento e a legitimação do Estado em relação às especificidades de uma nova
categoria social – os agricultores familiares – que até então era designada por termos como
pequenos produtores, produtores familiares, produtores de baixa renda, ou agricultura de
subsistência (p. 21).
O surgimento do Pronaf constitui-se em um marco histórico considerando-se que
desde os anos 70, com a assim chamada modernização da agricultura brasileira, a intervenção
do Estado sempre privilegiou a grande agricultura. Durante o processo de modernização os
162
instrumentos de política agrícola usados pelo Estado para intervir no setor como o SNCR e a
PGPM foram voltados para a agricultura para exportação e para as atividades agropecuárias
dinâmicas e, só perifericamente, aos agricultores familiares.
Do ponto de vista das políticas agrícolas e agrárias nos anos de modernização estas
penalizaram duramente uma parte significativa da agricultura familiar, sendo este um dos
motivos da sua situação de fragilização social e econômica. Como formulou Ferreira et all
(2001) a política agrícola definida para conduzir a modernização da agricultura nacional – até
o Pronaf – tinha um foco único: o aumento da produtividade, a partir da incorporação de
avanços tecnológicos, e um público alvo relativamente homogêneo: a empresa rural,
viabilizável, sobretudo em função da disponibilidade de grandes áreas de terra e acesso
garantido a numerosos a abundantes subsídios fiscais e creditícios.
O Pronaf deve também ser entendido dentro de um contexto de crise do padrão de
financiamento oficial do Estado brasileiro a agricultura na década de 90
115
. Esta crise se
caracterizou por uma precipitação geral do fornecimento de crédito rural tanto para os grandes
produtores como para os familiares, porém como este último vinha de uma demanda
reprimida de décadas o que se fez foi com que se avolumassem as mobilizações sociais e
pressões por políticas agrícolas e agrárias diferenciadas e específicas. É no contexto das lutas
sociais e políticas das organizações sociais rurais como a Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura (Contag), os movimentos sociais como o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra, o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o
movimento de mulheres rurais entre outros, que o surgimento do Pronaf deve ser entendido
116
.
Estas reivindicações por políticas públicas diferenciadas para o setor familiar culminaram nos
chamados “Gritos da Terra Brasil” organizados pelos movimentos sociais do campo que
ocorriam todos os anos tendo como uma de suas bandeiras principais a reivindicação de
políticas públicas para os setores desfavorecidos do campo (Schneider, 2003a; Schneider et
all: 2004).
Mas o surgimento do Pronaf deve também ser compreendido dentro do próprio
movimento social que deu origem ao reconhecimento da categoria social dos agricultores
115
Para ver uma caracterização da crise do financiamento agropecuário no Brasil na década de 90 consultar:
Belik et all (2001), Delgado (2001), Graziano da Silva (1987) e Leite (2001).
116
Para Oliveira Vilela (1997) a “paternidade” do Pronaf pode também ser atribuída ao Banco Mundial, pois o
autor encontrou traços marcantes e convergentes entre as recomendações políticas do mesmo para como o Brasil
deveria formular as suas políticas de apoio à agricultura, especialmente, os agricultores familiares e dos pobres
do campo. O autor encontrou convergência em questões do Pronaf como: o modelo de gestão social, a questão
das contrapartidas, o Pronaf como política social de combate à pobreza, a retirada do Estado da agricultura, etc.
163
familiares, que somente aconteceu na metade da década de 90
117
. Este reconhecimento, por
um lado, foi fruto das mobilizações sociais dos próprios agricultores e de suas organizações.
Mas, de outro, ele foi o resultado de vários trabalhos acadêmicos que realçaram a importância
da agricultura familiar para o desenvolvimento dos países capitalistas avançados como os
estudos de Veiga (1991), Abramovay (1998). No Brasil, ressaltam-se os trabalhos de equipe
do Convênio INCRA/FAO que demonstrou o peso relativo desta categoria social na
agricultura brasileira e que serviu de base à implantação do Pronaf. Sendo assim, o
reconhecimento institucional da categoria agricultor familiar pelo governo federal se deveu a
este duplo movimento social. De um lado as pressões dos movimentos sociais do campo e, de
outro, a legitimação acadêmica e a elevação ao status teórico da categoria analítica da
agricultura familiar entre os estudiosos do meio rural.
De 1995 em diante, pode-se dizer, que é o Estado que reconhece a categoria social de
agricultor familiar, pois é este que, primeiro, legitima as reivindicações e, em segundo lugar,
estabelece políticas públicas diferenciadas. Este reconhecimento da necessidade de uma
política diferenciada para o segmento familiar, possuiu suas origens no Programa de
Valorização da Pequena Produção (Provap) instituído ainda em 1993. Este programa consistia
em uma linha de crédito com juros de 4% a.a., sem correção monetária e os agricultores
familiares eram classificados de acordo com o tamanho do estabelecimento e a mão de obra
utilizada
118
. Quanto aos resultados o Provap este teve um alcance reduzido devido às
exigências impostas pelas instituições financeiras ao seu público alvo tomador (Andrade da
Silva: 1999).
Em 1995 o Governo Federal cria o Plano Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar (Planaf) que seria o embrião do Pronaf, lançado um ano depois, em 1996. No Planaf
se deixa claro à opção do Estado pela agricultura familiar e a justificativas que orientam a
intervenção estatal em tal sentido. As orientações que deram origem ao Planaf são as mesmas
que orientam o Pronaf. No sentido de fazer uma opção aberta pelos agricultores familiares
brasileiros, o Presidente da República, da época, na apresentação do Planaf diz que [...] estas
mudanças são o reconhecimento de que existe um amplo setor social da agricultura a margem
das políticas públicas nos últimos anos. É preciso dar um basta a essa situação. Os limitados
117
Schneider et all (2004, p. 22) ressalta que as reivindicações e lutas sociais em torno da abertura comercial
pelo Mercosul, da queda de renda dos agricultores familiares e por políticas diferenciadas começaram ainda
durante a Constituição de 1988 ganhando destaque nas chamadas “Jornadas Nacionais de Luta” do início dos
anos 90 e, posteriormente, a partir de 1995 passaram a ser denominadas de “Grito da Terra Brasil”.
118
Para ver um documento da época para ter uma idéia de como este debate se desenvolvia em nível de Estado
consultar MAARA (1993). Neste documento se propõe uma política diferenciada para o “pequeno produtor”
164
recursos de que o Governo dispõe precisam ser direcionados para a agricultura familiar,
ficando o financiamento dos produtores capitalistas a ser resolvido pelo mercado (Planaf,
1995, p. 4).
Em 1996 o Governo Federal lança o Pronaf como programa governamental e não mais
como plano como era o Planaf. A diferença fundamental entre os dois está em que, o
programa governamental possui financiamento, metas a serem executadas e cumpridas,
enquanto o plano é passível de ser somente uma orientação em termos de política agrícola.
Assim, o Pronaf, enquanto programa, ganha muito mais espaço na estrutura governamental.
As principais orientações de origem do Pronaf analisam-se na próxima seção, onde se trata
dos antecedentes teóricos, dos pressupostos e da classificação dos agricultores familiares que
o programa efetuou.
4.1.2 – O Pronaf como política de desenvolvimento rural e de fortalecimento da
agricultura familiar.
O Pronaf e, também o seu antecessor o Planaf, tomam como necessário uma
distinção entre a agricultura familiar e agricultura patronal como dois “modelos” gerais. A
justificativa para isso é de que a agricultura não é uma atividade praticada por grupos
homogêneos de produtores rurais (Planaf, 1995, p. 12). Estes dois modelos são diferenciados
pelo tipo de gestão das unidades produtivas, a direção dos trabalhos agrícolas e na existência
ou não de trabalhadores assalariados. Estas distinções forma efetuadas tomando-se como
referência a tipologia proposta pelos estudos da FAO/INCRA de 1994.
A agricultura familiar, neste contexto, foi classificada em três tipos gerais que são:
a) agricultura familiar consolidada: compreende aqueles agricultores familiares que estão
integrados ao mercado, que tem acesso a inovações tecnológicas e as políticas públicas; b)
agricultura familiar em transição: possuem acesso parcial aos mercados e a inovação
tecnológica sendo excluída da maioria dos programas e políticas públicas governamentais; e,
c) agricultura familiar periférica: este tipo de agricultura é classificada como não tendo infra-
estrutura adequada, como sendo inviáveis economicamente e que a sua integração ao
mercado depende de um programa de reforma agrária e de atividades não agrícolas (Planaf,
1995, p. 15-16).
baseada em itens como: crédito rural, seguro agrícola, cooperativismo e associativismo, infra-estrutura,
assistência técnica e extensão rural, pesquisa, comercialização agrícola e integração ao Mercosul.
165
A contradição básica existente nesta classificação dos agricultores familiares é que,
em primeiro lugar, ela restringe a três tipos de agricultura uma base de estabelecimentos e
formas sociais de produção e trabalho que é muito diversificada em termos de suas condições
de reprodução social. A segunda e, talvez a principal, é a de apontar a categoria da agricultura
familiar em transição como a preferencial das políticas públicas. A pergunta que fica é: e a
categoria da agricultura familiar periférica o que fazer com ela em termos de intervenção do
Estado? A justificativa para tal procedimento estaria no fato de que os agricultores que
estivessem na condição de transição não regrediriam a categoria de periféricos, mas sim,
ascenderiam a consolidados. Mais tarde o Pronaf abandonou esta distinção original devido às
várias críticas que se seguiram de estudiosos rurais e mesmo dos movimentos sociais de
representação da categoria.
Quanto aos beneficiários, o Pronaf define que podem ser tomadores de crédito rural
os agricultores familiares que exploram uma parcela de terra na condição de proprietários,
assentados, posseiros, arrendatários ou parceiros e atendam os seguintes requisitos:
a) Utilizem o trabalho direto da sua família podendo ter em caráter complementar
até dois empregados permanentes e contar com a ajuda de terceiros quando a atividade
agropecuária assim exigir
119
;
b) Não possuir área superior a quatro módulos fiscais conforme legislação em vigor;
c) Ter, no mínimo, 80% da renda bruta anual familiar originada da atividade
agropecuária, pesqueira e/ou extrativa;
d) Residir na propriedade ou em aglomerado rural ou urbano próximo.
Dentre os critérios de seleção que o Manual Operacional do Pronaf (1996) coloca, o
que tem sido mais criticado é justamente o da exigência de que 80% da renda bruta anual da
unidade de produção venha do setor agropecuário. Este é um primeiro indicador de que o
Pronaf é uma política pública que toma como base os agricultores que desenvolvem
atividades agropecuárias extricto sensu. Deste modo, o programa desconsidera as outras
atividades produtivas, econômicas e de prestação de serviços dos espaços rurais que
119
É válido ressaltar que no documento do Planaf de 1995 este critério é diferente. No Planaf só é aceito, para
fins de enquadramento, aquele agricultor familiar que não possuía nenhum empregado permanente na unidade de
produção. Como demonstrou Moruzzi Marques (2004), esta mudança se deveu as pressões dos segmentos
patronais que queriam se apropriar de parte dos recursos do Pronaf, como a Confederação Nacional da
Agricultura (CNA) que muito pressionou o Governo Federal na época que, por sua vez, abriu mão do critério
original proposto no Planaf.
166
poderiam ser, em alguns casos, interessantes fontes de renda, de ocupação profissional e de
geração de empregos (Carneiro, 1997)
120
.
Desde 1996, o Pronaf opera com este critério e somente nesta safra agrícola de
2004/2005 é que ele, de certa forma, incorpora a questão das rendas não agrícolas e da
pluriatividade em seus termos. No Manual do Plano Safra de 2004/2005 define-se que para
enquadramento no Grupo “B” do Pronaf pelo menos 30% da renda bruta familiar anual deve
vir das atividades agropecuárias ou não agropecuárias do estabelecimento; no Grupo “C”
60%; no Grupo “D” 70%; e, no Grupo “E” 80%, diferenciando assim, por “Grupos” de
agricultores, através do critério renda bruta anual, o seu enquadramento em uma determinada
faixa de benefício do programa. Estes novos critérios representam um avanço enorme, pois se
passa a considerar, por exemplo, as atividades não agrícolas e a pluriatividade, como
importantes na reprodução social da agricultura familiar. E, também, por ser a primeira vez
na história do Brasil que os agricultores poderão ter uma política pública como o Pronaf para
financiar atividades que saiam do escopo do desenvolvimento agrícola e setorial baseado na
mercantilização social e econômica
121
.
O Pronaf em sua formulação original coloca-se como uma política de
desenvolvimento rural para os agricultores familiares, mas a sua orientação geral, como
muitos estudos já demonstraram, é a de ser uma política de desenvolvimento agrícola, setorial
e com um intenso viés modernizante (Carneiro, 1997; Ferreira et all, 2001; Abramovay, 2003;
Chaves Feijó, 2003). Nos seus documentos de base as orientações sobre desenvolvimento
agrícola são mescladas com as de desenvolvimento rural nos anos iniciais do programa. Neste
vai e vem em torno de orientações, concepções e mudanças o Pronaf não deixa claro qual é o
tipo de fortalecimento que quer gerar na agricultura familiar.
No documento do Pronaf de 1996 (Manual Operacional do Pronaf, 1996) o mesmo é
definido como um programa que se propõe a apoiar o desenvolvimento rural, tendo por
fundamento o fortalecimento da agricultura familiar como segmento gerador de emprego e
renda (p. 6; grifos meus). Contudo, em nenhum momento, se deixa claro o que é este
fortalecimento da agricultura familiar, ou melhor, qual o tipo de fortalecimento que se quer
120
O Pronaf desde o seu surgimento coloca este critério como um dos principais para a tomada do crédito o que
limita o acesso de muitos agricultores familiares que praticam outras atividades. O acesso com este critério
prejudica principalmente os agricultores familiares mais pobres e vulneráveis (Ellis, 2000) em sua reprodução
social, ou seja, aqueles que mais sofreram as conseqüências da mercantilização da agricultura familiar e que tem
que buscar no mercado de trabalho das atividades não agrícolas e na pluriatividade a complementação da renda
para continuar se reproduzindo enquanto tal.
121
No Plano Safra de 2003/2004 já existiam linhas de crédito para, por exemplo, o turismo rural, agregação de
valor através da criação de agroindústrias, etc que são consideradas atividades não agrícolas, mas o Plano Safra
de 2003/2004 não deixava claro isso no critério de enquadramento através da renda bruta anual.
167
gerar nas condições de reprodução social da agricultura familiar. Este vácuo de entendimento
do que seja o fortalecimento da agricultura familiar já foi alvo de críticas de outros autores
como Ferreira et all (2001) que acha que o Pronaf não demarcou, com precisão, o que vem a
ser fortalecimento da agricultura familiar, vindo a incorporar sucessivamente novas ações,
sem estruturá-las de forma orgânica (p. 534; grifos no original).
Entretanto, é possível deduzir-se um entendimento do que seja o fortalecimento da
agricultura familiar quando se analisam as justificativas que o programa desenvolve para
apoiar e financiar os agricultores. Neste sentido, de acordo com o Manual Operacional do
Pronaf (1996), a agricultura familiar deve ser a opção privilegiada da intervenção estatal
devido ela possuir 21% da área total de terras do país, por responder por 87% da produção
nacional da mandioca, a 79% do feijão, a 69% do milho, a 66% do algodão, a 37% do arroz e
26% do rebanho bovino. Uma outra justificativa utilizada para intervir na agricultura familiar
é que esta possui uma grande capacidade em absorver mão-de-obra e gerar renda o que a
transforma numa alternativa socialmente desejada, economicamente produtiva e
politicamente correta para atacar grande parte dos problemas sociais urbanos derivados do
desemprego rural e da migração descontrolada na direção campo-cidade (p. 7; grifos meus).
Estes dois argumentos permitem que se tenham algumas “pistas” sobre qual o
fortalecimento que o Pronaf quer gerar na agricultura familiar. No primeiro caso, a
justificativa é produtivista, pois a agricultura familiar deve ser fortalecida por ser uma forma
de produção e trabalho que é importante do ponto de vista da geração da produção
agropecuária. Este argumento fica mais claro ainda quando no Manual Operacional do Pronaf
(1996) é afirmado que o objetivo geral do programa é proporcionar o aumento da produção
agrícola, a geração de ocupações produtivas e a melhoria da renda e da qualidade de vida dos
agricultores familiares (p. 7). Neste sentido, a melhoria da qualidade de vida e das condições
de reprodução social dos agricultores, em partes, é entendida como sinônimo do aumento da
produção agrícola o que nem sempre é verdadeiro como o próprio processo de
desenvolvimento desigual da modernização agrícola já demonstrou.
No outro conjunto de justificativas está a opção pela agricultura familiar por ela ser
“socialmente desejada”, “economicamente produtiva” e “politicamente correta”. Desse modo,
a agricultura familiar deveria ser apoiada por ser uma forma de produção e trabalho que
absorveria os excedentes populacionais rurais. Neste caso, a contradição reside no fato de que
este argumento é utilizado ressaltando-se que a agricultura familiar teria que resolver os
problemas gerados pelo desenvolvimento urbano e industrial como no caso do desemprego.
Dessa forma, a agricultura familiar deveria ser incentivada, do ponto de vista das políticas
168
públicas, para servir, mais uma vez, como “funcional” e complementar ao desenvolvimento
urbano e industrial de forma a sustar as mazelas e problemas sociais advindos deste.
No que se refere à trajetória de evolução do Pronaf, este nos anos iniciais é definido
fundamentalmente por um viés agrícola muito pronunciado. Isso acontece de 1996, ano de sua
criação, até 1999 onde o mesmo incorpora novas orientações e objetivos. De 1999 em diante o
programa começa a assumir outras referências. Entretanto, na prática, em termos de o que ele
está financiando não há mudanças significativas. As mudanças a partir de 1999 coincidem
com a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CNDRS), pelo
Governo Federal, o que faz com que as referências do programa fossem reformuladas. Estas
novas orientações estão enquadradas dentro do que, usualmente, se chamou de “Novo Mundo
Rural”, que nada mais foi do que um conjunto de referências formuladas pelo Governo
Federal para delinear por onde passaria as ações de desenvolvimento rural no país, baseando-
se em dois pilares principais: na agricultura familiar e reforma agrária.
Com estas reformulações do programa, o Pronaf em seus documentos de base, passa
afirmar que o desenvolvimento deve se pensado em um quadro territorial e que o espaço rural
possui múltiplas funções que vão além da produção agropecuária. Segundo o documento de
1999 (MA, 1999), a proposta defende uma nova concepção de desenvolvimento, formulada
mais num quadro territorial do que setorial. O rural não se confunde com o agrícola e a
perspectiva setorial deve ser substituída pela perspectiva territorial, tendo como elemento
central às potencialidades específicas de cada local [...]. O documento afirma ainda que, o
desenvolvimento local e regional deve se dar por meio da desconcentração da base produtiva
e da dinamização da vida econômica, social, política e cultural dos espaços rurais – que
compreendem pequenos e médios centros urbanos -, usando para isso como vetores
estratégicos o investimento na expansão e fortalecimento da agricultura familiar, na
redistribuição dos ativos de terra e educação e no estímulo a múltiplas atividades geradoras de
renda no campo, não necessariamente agrícolas (p. 2; grifos meus).
Por estes trechos do documento se pode ter uma idéia da significativa mudança das
referências do Pronaf nos seus anos iniciais de programa tomando a perspectiva do
desenvolvimento territorial como a mais adequada à expansão e fortalecimento da agricultura
familiar e dando menos ênfase a perspectiva setorial e agrícola. Segundo o documento (MA,
1999, p. 3) o espaço rural deve ser percebido e valorizado por suas quatro dimensões
principais: a) como espaço produtivo, dominantemente agrícola e agro-industial, mas com
crescentes opções de múltiplas atividades; b) como espaço de residência, tanto para os
agricultores como para trabalhadores urbanos que optam por um padrão de moradia
169
diferenciado no cotidiano ou nos fins-de-semana; c) como espaço de serviços, inclusive os de
lazer, turismo, etc; e, d) como espaço patrimonial, como base de estabilidade das condições de
subsistência, valorizado pela preservação dos recursos naturais e culturais.
Assim, em grande medida, o Pronaf muda as suas orientações em 1999, assumindo
como primordial o desenvolvimento territorial e as múltiplas funções que os espaços rurais
abrangem. Contudo, é importante ressaltar, que esta mudança é apenas qualitativa, ou seja,
está relacionada aos conceitos e atributos por onde se pensa que deveria passar o
desenvolvimento rural, pois, na prática, o Pronaf não muda conjuntamente com as novas
orientações assumidas. O programa continua com as orientações iniciais e originais que se
pautam pelo desenvolvimento setorial e da dimensão produtiva do espaço agrícola como fonte
geradora de emprego e renda a agricultura familiar
122
. Assim, pode-se dizer, que o Pronaf
tentou uma mudança significativa no que se refere as suas referências em torno do
desenvolvimento rural, mas que, em grande parte, estas ficaram presas às orientações iniciais
do programa.
É neste contexto mais amplo de orientações do programa que se pretende estudá-lo no
Alto Uruguai. Deste modo, o que se pretende demonstrar, baseando-se na realidade empírica
da região, é que o programa continua possuindo como ação principal o financiamento da
produção agrícola e de pequenos investimentos em infra-estrutura das unidades de produção.
Neste sentido, a sua ação é, em grande medida, contraditória com o que proposto em seus
documentos de base, que afirmam claramente as múltiplas funções dos espaços rurais como
importantes à reprodução social da agricultura familiar. Esta orientação do programa em
voltar-se à dimensão produtiva dos espaços rurais é que se analisa a seguir, tentando-se
demonstrar que o Pronaf, em boa medida, está gerando um tipo de fortalecimento dos
agricultores familiares que, em partes, está correlacionado com algumas orientações e
pressupostos das transformações técnicas-produtivas que vem acontecendo no território desde
os anos 70.
Neste sentido, o que se busca trazer a luz do conhecimento é a relação desta política de
crédito rural com o processo mais amplo de transformações sociais, econômicas e produtivas
por que passou o Alto Uruguai. Para isso, analisa-se a relação do programa com os
agricultores familiares da região, demonstrando-se os principais financiamentos e
empreendimentos em que o programa está concedendo crédito. Também, se analisa a relação
122
No documento do MAA (1999) são feitas também várias referências e traçadas estratégias para a questão da
política de reforma agrária que neste ano seria integrada ao Pronaf, mas não é o objetivo desta pesquisa analisar
tais implicações.
170
desta política com o processo de especialização profissional dos agricultores e com a
produção de autoconsumo, tentando-se estabelecer os reais vínculos desta política com a
segurança alimentar das famílias rurais. Desse modo, a análise que se empreende nas
próximas seções, visa demonstrar o tipo de fortalecimento que o programa está gerando junto
aos agricultores familiares do Alto Uruguai.
4.2 – FAZENDO “MAS DE LO MISMO”: uma análise do Pronaf no Alto Uruguai.
4.2.1 – O Pronaf e a intensificação da especialização produtiva da agricultura familiar.
Na presente seção, quer-se demonstrar que no Alto Uruguai o Pronaf revela algumas
das contradições expostas anteriormente. De um modo geral, pode-se afirmar que o era para
ser um programa de desenvolvimento rural com enfoque no desenvolvimento de várias
atividades econômicas, produtivas, fontes de renda e geração de empregos dos espaços rurais,
se transformou em um programa que visa, em grande medida, fortalecer e apoiar os
incrementos de produção agropecuária, a especialização produtiva e a inserção mercantil dos
agricultores familiares nas cadeias agroindustriais de grãos e commodities agrícolas.
Neste sentido, a hipótese que se quer testar com relação ao Pronaf é a de que esta
política de apoio da agricultura familiar, via crédito rural, está gerando um tipo de
fortalecimento que vai na “contramão” das condições objetivas de reprodução social dos
agricultores. Deste modo, o que se quer evidenciar é que o Pronaf está apoiando a agricultura
familiar no sentido de mercantilizar às condições produtivas e sociais das famílias como é o
caso do incentivo a especialização na produção de grãos. Assim, pretende-se demonstrar que
o programa possui algumas ambigüidades no que se refere a quais ações apoiar e, também,
com relação ao que se entende que seja fortalecer a agricultura familiar. Neste contexto, o que
se coloca como pergunta é: será que o tipo de fortalecimento que o Pronaf está propondo para
a agricultura familiar do Alto Uruguai não é justamente o que está levando ao solapamento e
fragilização da mesma? É esta pergunta que se tenta responder nestas próximas seções.
Num contexto de mercantilização social e econômica da agricultura familiar como é o
caso do Alto Uruguai, é de extrema importância analisar-se o papel do crédito rural concedido
via o Pronaf. Neste sentido, o que se percebeu com o trabalho de campo, é que o crédito
disponibilizado pelo Pronaf possui uma lógica, em grande medida, perversa com relação aos
efeitos que gera nas famílias rurais e em suas unidades de produção. Referimo-nos a
dependência que os agricultores possuem em relação a esta política para financiar, todos os
171
anos, a implantação das lavouras e das pequenas criações e atividades produtivas agrícolas.
Este processo pode ser compreendido pelo conceito de mercantilização da esfera financeira da
agricultura familiar tal como definido por Van der Ploeg (1990; 1992).
Neste sentido, no SAC o agricultor familiar possuía as condições para executar o
próprio financiamento da produção, ou como formularam os agricultores a “própria
poupança” e a sua mercantilização financeira quase que inexistia. É com o advento da
modernização da agricultura que a mercantilização do agricultor familiar ganha novo alento
no Alto Uruguai. A dependência da tomada de crédito rural para financiar as atividades
produtivas através da compra de insumos e tecnologia no mercado é a principal característica
do que se usa chamar de uma mercantilização financeira do agricultor familiar. Ou seja, a
tomada de crédito rural, todos os anos, via as instituições bancárias para financiar as
atividades de lavoura e o plantio de cultivos comerciais.
Esta dependência dos agricultores familiares ao Pronaf para executar as suas
atividades produtivas e econômicas fica evidenciada no trecho da entrevista. Segundo os
atores sociais é a própria “lógica” do financiamento do Pronaf que leva a dependência, pois o
agricultor, a cada ano, com a diminuição da rentabilidade agrícola por causa da sua
externalização crescente e o aumento dos custos de produção, tem que buscar o financiamento
público para continuar se reproduzindo. Note que o informante ressalta que o papel do crédito
rural deveria o ser o de autonominizar os agricultores com relação à tomada de
financiamentos, mas o que ocorre é o contrário. Como o ator social entrevistado mesmo
formulou o papel do crédito rural do Pronaf, como está sendo operacionalizado atualmente,
“não visa à independência do agricultor, mas a dependência”.
É essa a questão principal que eu vejo do crédito é que ele (o agricultor)
buscasse não ficar dependente do crédito, mas buscando a independência do
crédito. Essa é a lógica. A lógica hoje [...] é de que o agricultor fique
dependente do crédito ad infinitum. A lógica do crédito mesmo que vem para
melhorar a condição do produtor é de que ele em 1, 2, 3 anos, no máximo, é
que ele não precise mais desse crédito e que a própria propriedade dê
condições de ele se reproduzir. Então nós temos um programa de crédito que
não visa à independência do agricultor, mas a dependência (Entrevista 9,
2004, G., P., Engenheiro Agrônomo, SAM).
Este processo de dependência dos agricultores familiares com relação ao crédito rural
pode ser evidenciado pelos dados da Pesquisa AFDLP (2003). Como demonstra a Tabela 19,
os agricultores familiares passaram a ter uma maior acesso ao crédito rural depois da
implementação do programa. No caso do Alto Uruguai, os agricultores que possuem acesso
ao crédito rural chega a 71,2% do total de agricultores, demonstrando que com o advento do
172
Pronaf a cobertura do crédito rural foi ampliada por um lado, contudo, de outro lado, a
dependência dos agricultores para com esta política de financiamento público também
aumenta
123
.
Quanto à finalidade dos recursos, ou seja, o tipo de aplicação que é realizada 69,2%
dos recursos são investidos no custeio agropecuário principalmente de culturas anuais como o
milho, a soja, o fumo, dentre outras como se demonstrará mais adiante e, 30,8% dos recursos
em investimentos em infra-estrutura das unidades de produção, aquisição de matrizes animais,
pequenos incrementos tecnológicos, etc. Também é importante o valor médio dos contratos
do Pronaf para o Alto Uruguai, que atingem em média R$ 2.721,66, demonstrando, assim, a
importância desta política para com o financiamento das atividades econômicas e produtivas
dos agricultores.
Tabela 19: Acesso a políticas de crédito e financiamento na agricultura familiar de Três
Palmeiras/RS.
Finalidade dos recursos
Agricultores que tomaram
crédito ou financiamento
(%)
Custeio (%) Invest. (%)
Valor médio
financiamentos Pronaf
(R$)
71,2 69,2 30,8 2.721.66
Fonte: Pesquisa AFDLP – CNPq/ UFPel /UFRGS, 2003.
O tipo de fortalecimento que o Pronaf gera na agricultura familiar do Alto Uruguai
pode ser analisado com base nos empreendimentos que o programa financia junto aos
agricultores. O Pronaf é uma política pública que, em alguma medida, ainda mantém alguns
dos princípios pelos quais se gestou o padrão agrícola hegemônico de desenvolvimento do
país. O que se quer dizer é que, de uma maneira geral, o Pronaf não rompe com a tradição
histórica de voltar o crédito rural para financiar a aquisição de insumos químicos, agrotóxicos,
fertilizantes químicos e sementes melhoradas. O programa mantém a velha tradição do crédito
rural no sentido de ser voltado para o financiamento do processo de transformação da base
técnica e produtiva da agricultura, a assim chamada modernização agrícola. Verificou-se no
123
Ferreira et all (2001) Também verificou esta dependência dos agricultores familiares com relação à tomada
do crédito rural. Analisando os estabelecimentos familiares até 50 ha e qual o grau de cobertura do Pronaf a
autora encontrou valores bastante elevados em relação ao acesso aos recursos. Neste sentido, os dados para
alguns municípios do Rio grande do Sul são elucidativos. Por exemplo, em Erechim a cobertura do programa foi
de 70,8% dos estabelecimentos familiares com área de terra até 50 ha; em Passo Fundo de 73,4%; em Frederico
Westphalen, no Alto Uruguai, foi de 88,3%; e, em Três Passos chegou a cifras de 98,0% dos agricultores
familiares do município com até 50 ha, demonstrando, assim, o acesso facilitado ao programa por um lado, mas
de outro, também, a dependência dos agricultores desta região do estado com relação a esta política de crédito
rural.
173
trabalho de campo que o dinheiro do Pronaf Custeio, na maioria das vezes, é aplicado na
compra de insumos e de tecnologias como adubos, uréia, sementes melhoradas, agrotóxicos e
outras mercadorias que são típicas do processo de mercantilização e externalização da
agricultura como formulou Van der Ploeg (1990; 1992).
Neste sentido, os relatos de compra de insumos por parte de um agricultor familiar
com o crédito de Custeio do Pronaf e o de um secretário da agricultura municipal são
elucidativos. Nota-se que no primeiro relato o agricultor investiu os recursos do crédito na
compra de insumos, de sementes melhoradas e de fertilizantes químicos. No segundo relato o
secretário da agricultura municipal formula a questão de que o Pronaf ainda continua
financiando o processo de mudança da base técnica agrícola e atribui as instituições
financeiras, aos técnicos da área rural e aos próprios agricultores familiares este
direcionamento do programa.
Mas esse foi o Pronafinho, de lavoura, o Custeio. Eu tenho o Custeio de 3 ha,
mas fiz a lavoura para o milho. [...] Botei no adubo, na uréia e a mão de obra é
minha, não botei peão. Foi para financiar o insumo do milho, a semente, o
adubo e a uréia que eu comprei (Entrevista 10, 2004, L. S., Agricultor
familiar).
Então ele (o Pronaf) ainda mantém o velho chavão de que o crédito rural
financiou a modernização da agricultura, ainda continua. Nós passamos o
milênio e ainda estamos na mesma. Os gerentes dos bancos e os técnicos
continuam ainda com essa idéia que é para essa questão, que é para você
pegar na agropecuária e financiar e daí você colocar. E mesmo a maioria dos
agricultores [...] (Entrevista 9, 2004, G. P., Engenheiro Agrônomo, SAM ).
Este direcionamento do Pronaf pode ser visualizado pela Tabela 20 que traz os
principais empreendimentos financiados pelo programa, em ordem de importância, para os
municípios pesquisados no Alto Uruguai. Verifica-se que o principal empreendimento
financiado pelo crédito de custeio diz respeito à implantação das lavouras de grãos e
commodities agrícolas como a soja, o milho, o trigo, o fumo e, em um caso, o feijão. Como se
sabe, estas lavouras são caracterizadas pelo uso intensivo de fertilizantes químicos,
agrotóxicos, sementes melhoradas geneticamente, etc. Estas, também, são as principais
formas de inserção mercantil dos agricultores familiares do território. No caso do Alto
Uruguai, estas lavouras são as principais responsáveis pelo movimento histórico de
mercantilização dos agricultores familiares e pelos processos de especialização produtiva e
econômica dos mesmos.
É por isso que se pode dizer que o Pronaf está fazendo “mas de lo mismo” como
formularam Schejtmann e Berdegué (2003), no sentido de que o programa não possui ações
estruturadas visando romper com o padrão de desenvolvimento agrícola hegemônico
174
instaurado no território, mas continua a fazer “mais do mesmo”, o que significa reforçar o
padrão de desenvolvimento vigente. Neste sentido, o Pronaf continua a financiar o processo
de aquisição de tecnologias, insumos e produtos que foram, em grande medida, responsáveis
pelo processo de fragilização da agricultura familiar da região. Assim, o Pronaf exacerba o
processo de mercantilização e de externalização dos agricultores familiares. Pode-se, deste
modo, afirmar que se o Pronaf não deixa explícito o tipo de fortalecimento que ele quer gerar
na agricultura familiar, no caso do Alto Uruguai, este fortalecimento passa pela
mercantilização da mesma via financiamento do processo de mudança técnica-produtiva da
base agrícola e do aprofundamento do padrão tecnológico.
Pela Tabela 20, observa-se ainda a importância do Pronaf no financiamento de outros
empreendimentos como o caso da bovinocultura de leite que é o segundo tipo de atividade
produtiva em que o crédito de investimento foi mais acionado em todos os seis municípios
pesquisados. Grande relevância possui, ainda, o financiamento da fruticultura com a
implantação de pomares de diversas frutíferas como videiras, Citrus, pessegueiros, figueiras,
etc que, de um modo geral, fica com o terceiro lugar em ordem de prioridade de concessão
dos financiamentos na maioria dos municípios pesquisados. Destacam-se, também, como
empreendimentos rurais relevantes em que o Pronaf financiou a sua implantação ou
desenvolvimento a geração de infra-estrutura rural nas unidades de produção, a melhoria das
propriedades físicas e químicas do solo e a suinocultura. Como atividades pouco financiadas
pelo programa tem-se a piscicultura, a aquisição de pequenas máquinas e equipamentos
agrícolas e a implantação de agroindústrias familiares objetivando a agregação de valor a
matéria-prima agropecuária
124
.
Este viés do Pronaf em continuar financiando o processo de mudança da base técnica-
produtiva da agricultura já havia sido verificado por outros autores. É o caso de Carneiro
(1997), que formulou que o padrão de organização da produção privilegiado pelo Pronaf e a
sua função social no desenvolvimento econômico do país estão sustentados, implicitamente,
nas noções de produtividade e na rentabilidade crescentes (p. 71; grifos no original). Essa é
uma das contradições principais do programa, pois ao mesmo tempo em que se propõe a ser
uma política de desenvolvimento rural com ênfase na diversificação das atividades produtivas
rurais, em grande medida, o programa é uma política de desenvolvimento agrícola que
124
Ressalta-se que alguns destes empreendimentos financiados pelo Pronaf serão retomados a frente a melhor
analisados, visando demonstrar qual o papel e o tipo de fortalecimento que geram na agricultura familiar do Alto
Uruguai e também junto a produção de autoprovisionamento alimentar das famílias.
175
continua a financiar a incorporação de tecnologias modernas e a incentivar as atividades
produtivas e econômicas que são rentáveis para os agricultores familiares.
Tabela 20: Principais empreendimentos rurais financiados pelo Pronaf Crédito de
Custeio e Investimento, em ordem de importância, para os municípios
pesquisados no Alto Uruguai.
Município
Principais empreendimentos financiados
Três Palmeiras
- Custeio de lavouras de soja, milho, trigo e fumo (compra de insumos, sementes, adubos,
fertilizantes, etc).
- Bovinocultura de leite (formação de pastagens, aquisição de matrizes, etc).
- Fruticultura (implantação de pomares de videiras).
- Melhoramento das propriedades físicas e químicas do solo (compra de calcário, distribuição de
adubos orgânicos, fertilizantes, adubação verde, etc).
Vista Alegre
- Custeio de lavouras de milho, feijão e fumo (compra de insumos, sementes, fertilizantes,
agrotóxicos, etc).
- Bovinocultura de leite (aquisição de matrizes, medicamentos, ordenhadeiras, congeladores de
resfriamento, etc).
- Melhoramento das propriedades físicas e químicas do solo (compra de calcário, fertilizantes,
adubação verde, etc).
- Construção de infra-estrutura rural (galpões de armazenamento de fumo e pequenos estábulos).
Constantina
- Custeio de lavouras das culturas de soja, trigo e milho (compra de insumos, fertilizantes e
defensivos agrícolas).
- Bovinocultura de leite (aquisição de matrizes, ordenhadeiras, congeladores de resfriamento,
tanques de expansão, melhoramento de estábulos, compra de tanques de expansão e melhoramento
de pastagens).
- Fruticultura (implantação de pomares de Citrus, pêssegos, videiras, nectarinas, etc).
- Construção de agroindústrias familiares para agregação de valor à matéria-prima (compra de
equipamentos, materiais de trabalho, construção das instalações, aquisição de material de consumo
permanente, etc).
Palmitinho
- Custeio de lavouras de grãos como milho, soja, trigo, fumo, etc (aplicação dos recursos em
fertilizantes, defensivos e insumos diversos).
- Bovinocultura de leite (aquisição de matrizes leiteiras, equipamentos de ordenha e de
conservação do leite, formação de pastagens, medicamentos, construção e melhoria de
instalações).
- Correção das propriedades físicas e químicas do solo (compra de calcário, fertilizantes químicos,
adubação verde, controle de erosão, distribuição de adubos orgânicos, etc).
- Aquisição de pequenas máquinas e equipamentos agrícolas (compra de motores estacionários,
trituradores, forrageiros, motoseras, etc).
- Fruticultura (implantação de pomares de videiras, Citrus, etc).
Frederico
Westphalen
- Custeio de lavouras para as culturas de milho, soja, fumo e trigo (compras de fertilizantes
químicos, insumos diversos, sementes melhoradas e defensivos agrícolas).
- Bovinocultura de leite (aquisição de matrizes leiteiras, equipamentos de ordenha e conservação
do leite, melhoria de estábulos, melhoria e implantação de pastagens).
- Fruticultura (pomares de videiras, pêssegos, Citrus, figos, etc).
- Suinocultura (construção e melhoria de pocilgas, construção de esterqueiras, compra de matrizes
suínas, compra de medicamentos e equipamentos).
- Criação de infra-estrutura rural (construção e/ou melhoria de pequenos açudes, pocilgas, reforma
de galpões, manutenção e reforma de tratores, etc).
- Financiamento de agroindústrias familiares para agregação de valor à matéria-prima (construção
das instalações, compra de máquinas e equipamentos, compra de material de consumo
permanente, etc).
- Piscicultura (construção de alguns açudes).
Taquaruçu
- Custeio de lavouras de milho, soja, fumo e trigo (financiamento dos insumos, fertilizantes
químicos, agrotóxicos e sementes melhoradas).
- Bovinocultura de leite
(
a
q
uisi
ç
ão de matrizes, com
p
ra de e
q
ui
p
amentos de ordenha e
176
do Sul conservação, melhoria de instalações, etc).
- Fruticultura (implantação de pomares de Citrus, videiras, etc).
- Infra-estrutura rural (construção e/ou melhorias de instalações, galpões, pocilgas e estábulos).
Fonte: Pesquisa de Campo (2004).
Neste sentido, pode-se afirmar, que o fortalecimento que o Pronaf gera no Alto
Uruguai é o de “mais produção” como os atores entrevistados formularam durante o trabalho
de campo. Assim, o questionamento que fica é: como uma política pública que não financia
um processo de diversificação rural pode continuar mantendo o agricultor familiar no campo?
O próprio processo histórico de mercantilização da agricultura familiar no Alto Uruguai
demonstrou ser o padrão tecnológico incompatível com a manutenção e a absorção da força
de trabalho das famílias, principalmente os jovens, junto as suas unidades de produção. A
questão do privilegiamento das atividades produtivas rentáveis e os cultivos de inserção
mercantil são elucidados nos relatos de um agricultor familiar e de um sindicalista da Fetag.
No primeiro relato, o agricultor familiar formula que uma das contradições do programa é a
de que ele deveria financiar a produção de alimentos nas unidades familiares, mas que, o que
geralmente ocorre é o contrário, ou seja, ele apóia o desenvolvimento da produção que “dá
mais lucro”. No segundo relato, o sindicalista da Fetag liga o fortalecimento gerado pelo
Pronaf com o objetivo de aumentar a produção agropecuária, como se isso fosse totalmente
normal na lógica de ação do mesmo. Como o mesmo se referiu, o Pronaf estimula o agricultor
familiar para ele “produzir mais”.
Eu vejo, assim, no meu entender que o financiamento já é para gerar alimento
para o produtor só que muitas vezes o produtor não aplica nisso, muitas vezes
o produtor tem uma mentalidade, assim, que tem que aplicar naquilo que dá
retorno [...]. Hoje o produtor prefere aplicar mais aquilo que dá mais lucro,
assim mais para frente, que dá mais dinheiro, assim, financeiramente
(Entrevista 2, 2004, J. N., Agricultor familiar e Vereador, MPA).
O fortalecimento que ele traz é no sentido de dar condições para o produtor
aumentar a sua produção. [...] Então o fortalecimento vem fortalecer dessa
forma o agricultor. Quer dizer, [...] te fortalece para você produzir mais e
nesse sentido o Pronaf vem realmente fazer como diz o seu nome fortalecer a
agricultura familiar. Fortalece por que o agricultor tendo melhores meios
financiados pelo Pronaf, melhores meios de produção, ele vai se empolgar e
se entusiasmar mais para produzir (Entrevista 8, 2004, D. S., Representante
Sindical, Fetag).
Como formulou Carneiro (1997), isso nos leva a identificar nessa política uma lógica
produtivista, sustentada na tecnificação e na realização de um rendimento para o agricultor
familiar que lhes possibilite não apenas melhorar o seu padrão de vida, mas sobremaneira,
reembolsar os investimentos públicos (p. 72; grifos meus). Esta é outra contradição
fundamental do Pronaf, que inclusive, age na vulnerabilização da produção de autoconsumo.
177
No momento em que o agricultor familiar pega um financiamento do Pronaf junto às
instituições bancárias a primeira coisa que lhe ocorre é como vai proceder ao pagamento. Isso
o faz chegar à conclusão que não se pode investir na produção de autoconsumo, pois se gastar
os recursos do Pronaf nesta atividade, que não vai lhe gerar um excedente monetário em
termos líquidos, como ele vai pagar o financiamento? A saída encontrada, então, é utilizar a
força de trabalho familiar e a sua área de terra com os cultivos comerciais e de maior inserção
mercantil o que acaba vulnerabilizando a produção de autoconsumo espacial e
temporalmente, como se demonstrou no capítulo 3.
Verificou-se no trabalho de campo que as próprias instituições de desenvolvimento
como a Emater, SAM e organizações de representação, especialmente os sindicatos,
trabalham e orientam o agricultor familiar nesta lógica de que ele deve plantar o que “dá
retorno” para poder pagar o financiamento realizado. Os trechos das entrevistas são
elucidativos desse processo. No primeiro caso uma liderança sindical da Fetraf-Sul é que
revela que o sindicato orienta os agricultores familiares a investir no que “gere renda”. No
segundo, um secretário da agricultura municipal coloca a questão de que é a própria lógica do
financiamento público que faz com que o agricultor familiar venda para o mercado a
produção para pagar o financiamento em detrimento do autoconsumo familiar. No segundo
relato, também fica evidente que são os cultivos comerciais que retiram o tempo do agricultor
em se dedicar à produção dos alimentos para a família e que, assim, faz com que esta fique
em um segundo plano na unidade de produção.
Então a gente sempre orienta o agricultor a não brincar por que se ele pegou o
financiamento ele vai ter que devolver vai ter que pagar. Então produzir,
tentar produzir o que gere renda e o que sobre um pouco para pagar a dívida e
mais para ter para manter a família de pé (Entrevista 18, 2004, A. R. A.,
Representante Sindical, Fetraf-Sul).
É a lógica do próprio financiamento, no momento que ele financia parece que
fica embutido na cabaça dele (do agricultor) que ele tem que vender e não
ficar para o autoconsumo. Então é a própria lógica do financiamento que tem
que ser discutida. No momento que você financia parece que você tem que
produzir para vender e pagar o financiamento e não para a sua subsistência.
Vender alguma coisa para cumprir este teu contrato de pagar o financiamento.
Mas eu vejo assim, que os próprios financiamentos levam que a produção de
autoconsumo tenha uma deficiência dentro da propriedade por que estimula o
agricultor a investir mais, a se especializar mais e no momento que se
especializa ele pára de produzir a sua subsistência, por que ele vai dedicar
maior tempo para aquela produção que vai para o mercado (Entrevista 9,
2004, G. P., Engenheiro Agrônomo, SAM).
Outro motivo pelo qual o Pronaf Custeio de lavoura não financia a produção de
autoconsumo é o de que o financiamento é voltado às atividades específicas dentro das
178
unidades de produção familiares. Quando da elaboração do projeto técnico de financiamento
que, geralmente, é feito pelas Ematers municipais, o agricultor tem que se decidir por qual das
culturas ele quer financiar e o que vai constar para fins legais de enquadramento nas normas
do Pronaf. O que acontece, em termos gerais, é que o projeto técnico de financiamento
elaborado enfoca a produção de milho, soja, fumo ou outra atividade produtiva de inserção
mercantil. O financiamento, deste modo, é específico e pontual a uma cultura o que faz com
que o agricultor familiar se especialize produzindo o que o Pronaf lhe disponibiliza recursos
em detrimento dos produtos de autoconsumo.
Neste caso, a mudança que o Pronaf Crédito poderia incorporar é a de dar o
financiamento não voltado à atividade agrícola específica, mas sim voltado à unidade de
produção, deixando o agricultor avaliar e decidir em quais das suas atividades produtivas seria
mais importante à aplicação dos recursos. Esta mudança significaria a possibilidade de opção
para o agricultor familiar poder investir os recursos no que ele entender que é mais importante
para a sua família, incluindo-se ai, a produção de autoconsumo e as demais pequenas
atividades produtivas que ele desenvolve dentro da unidade de produção que, muitas vezes,
não possuem funções comerciais e nem de obtenção de lucratividade, mas sim visam à
segurança alimentar e a garantia das condições de reprodução social do grupo doméstico.
Em que pese estas contradições do Pronaf com relação ao tipo de fortalecimento que
está gerando na agricultura familiar do Alto Uruguai, esta política é muito importante para a
reprodução social dos agricultores. No caso do Alto Uruguai, o Pronaf gerou, em grande
medida, um certo fortalecimento das condições de reprodução social dos agricultores
familiares. Este fortalecimento gerado foi em termos de financiar a aquisição de infra-
estrutura produtiva e de equipamentos das propriedades, como no caso do Pronaf Crédito de
Investimento, que financia a aquisição de pequenas máquinas, equipamentos, utensílios para
executar a transformação caseira de produtos, ordenhadeiras, pequenos engenhos de cana de
açúcar, equipamentos para a fabricação de alimentos como pães, bolachas e outros como se
demonstrou na Tabela 20. Neste sentido, tem-se que diferenciar dentro do Pronaf Crédito, as
linhas de Custeio e a linha de Investimento, pois enquanto a primeira fortalece a
mercantilização do agricultor familiar via financiamento dos cultivos mercantis e que
especializam produtivamente os agricultores, vulnerabilizando as condições objetivas de sua
reprodução social, a segunda linha tem fortalecido os agricultores familiares do Alto Uruguai
e, inclusive, em muitos casos, incentivado mais consistentemente a produção de autoconsumo
e a diversificação das atividades produtivas e econômicas como se vai demonstrar mais
adiante neste capítulo.
179
Verificou-se, também, durante a pesquisa de campo, que o Pronaf tem executado uma
certa ação no sentido de manter o agricultor familiar no espaço rural e, assim, fazer com que a
agricultura familiar permaneça nas sociedades capitalista modernas enquanto forma social de
produção e trabalho como formulou Abramovay (1998). Neste sentido, o programa estaria
cumprindo, de certa forma, um de seus objetivos programáticos que seria o de fortalecer a
agricultura familiar para evitar as migrações do meio rural em direção aos centros urbanos.
Observou-se este tipo de fortalecimento do Pronaf durante as entrevistas com os atores sociais
que, inclusive, estimaram percentuais de agricultores familiares que o Pronaf fixou na
agricultura e que deixaram de ir embora dos espaços rurais de seus municípios
125
.
Uma das coisas que ele está fortalecendo é a permanência do agricultor na
terra, ele está criando um vínculo para o agricultor permanecer ai, porque hoje
se não tivesse um programa como esse ai eu acho que a outra metade dos
produtores já tinham ido embora. Tem cara que está vivendo em cima disso
[...] (Entrevista 7, 2004, J. C. L., Técnico em Agropecuária, Emater).
Ajudou muito, quanto a isso foi fantástico, quem realmente utilizou (os
recursos) foi fora de sério. Ajudou, se não tivesse vindo esses Pronaf para
Palmitinho teria somente 20% dos produtores no interior (Entrevista 5, 2004,
V. A., Engenheiro Agrônomo, Emater).
A importância que assume o Pronaf na reprodução social dos agricultores familiares
do Alto Uruguai pode também ser verificada com a análise dos dados da Tabela 21. De
acordo com os dados da Tabela 21, se pode notar a evolução do Pronaf nos últimos três anos
tanto em número de contratos como em montante de recursos acessados por alguns
municípios selecionados. Todos os municípios do Alto Uruguai tiveram crescimento
significativo do número de contratos e do montante de recursos acessados de 2001 a 2003. Os
municípios que mais acessam o Pronaf no Alto Uruguai são Constantina (em 1º lugar),
Frederico Westphalen e Irai. Isso pode ser explicado devido ao fato destes municípios
concentrarem as maiores populações rurais, se comparados aos outros que fazem parte da
Tabela 21 e, também, no caso de Frederico Westphalen e Irai por serem os municípios dentre
os mais “velhos” da região. Já o município de Constantina se destaca devido às instituições de
125
O Pronaf também foi importante na reprodução social dos agricultores no ano de 2004, pois toda a Região Sul
do país foi assolada por uma estiagem que durou, em média, três meses e que fez com que muitos agricultores
familiares perdessem percentuais elevados da produção agrícola. Segundo o Jornal Folha do Noroeste (2004, p.
12) as perdas na cultura da soja variaram de 20% a 50% nos municípios do Alto Uruguai; as perdas no feijão
safrinha foram de até 75%; e, de 40% na produção de leite. Já segundo o Programa de rádio do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Palmitinho do dia 06/02/2004, as perdas com a estiagem para o milho safrinha
chegaram a 80% da produção; com o feijão também 80% e com a soja em torno de 20 a 30% do total plantado.
Neste sentido, o Pronaf foi importante por que os agricultores que tiveram perdas em função da estiagem nos
municípios enquadrados na listagem de perdas além do tradicional rebate para os agricultores que pagaram em
dia o financiamento que é de R$ 200,00 por financiamento, o Governo Federal acenou com mais um desconto de
180
crédito rural como o sistema Cresol (Sistema Cooperativo de Crédito Solidário) que facilita,
enormemente, o acesso ao Pronaf pelos agricultores e diminuem os custos de transação das
operações bancárias facilitando, assim, a tomada do crédito rural do programa.
Tabela 21: Número de contratos e montantes do Pronaf Crédito de Custeio e
Investimento em alguns municípios selecionados do Alto Uruguai do Rio
Grande do Sul.
Municipios
Con-
tratos
(2001)
Montante total
em 2001
(R$)
Con-
tratos
(2002)
Montante
total em 2002
(R$)
Con-
tratos
(2003)
Montante
total em 2003
(R$)
Constantina 2.244 3.454.954,92 2.534 5.143.120,16 1.464 3.056.748,85
Frederico Westphalen 2.160 2.034.974,14 1.467 2.167.332,92 1.219 1.879.220,60
Irai 1.334 1.166.322,50 1.360 1.500.695,78 1.030 1.735.167,34
Palmitinho 791 597.924,47 1.818 2.230.161,42 916 1.160.592,22
Pinheirinho do Vale 428 411.791,00 249 805.249,62 580 1.067.124,00
Taquaruçu do Sul 479 771.031,26 422 768.189,45 134 598.413,31
Três Palmeiras 455 780.476,90 435 1.522.286,50 408 1.012.912,03
Vicente Dutra 874 1.098.561,50 808 978.485,50 800 1.770.837,41
Vista Alegre 323 414.975,11 449 1.121.910,40 440 1.093.339,11
Fonte: BACEN (Somente Exigibilidade Bancária), BANCOOB, BANSICREDI, BASA, BB, BN E BNDES.
Dados atualizados até BACEN: Até 02/2003; BANCOOB Até 04/2003 (sem oper. em 2003); BANSICREDI:
Até 04/2003; BASA: Até 04/2003; BB: Até 03/2003; BN: Até 04/2003 e BNDES: Até 03/2003 - Últimos 3
meses sujeitos à alterações.
Verifica-se, também, a importância do Pronaf em termos de cobertura no caso do Alto
Uruguai, onde que na maioria dos municípios este atinge mais de 60% dos agricultores
familiares. Ou seja, mais da metade dos agricultores dos municípios possuem algum tipo de
financiamento do Pronaf. Isso é ilustrado pelo caso de Frederico Westphalen, onde a
cobertura do Pronaf chega a 88,3% de todos os agricultores do município (Ferreira et all:
2001).
Entretanto, não há um consenso em torno da idéia de que o Pronaf esteja realmente
fortalecendo o agricultor familiar, especialmente entre os seus representantes como o MPA e
a Fetag. Para estas representações sociais, o Pronaf não gera nenhum tipo de fortalecimento
para os agricultores familiares, principalmente por ser pouco o volume de recursos
disponibilizados por contrato e porque os valores repassados pelo Pronaf não acompanharem
os custos de produção que ano após ano estão sendo reajustados positivamente. O argumento
é de que os valores dos contratos do Pronaf estão “congelados” a quatro ou cinco anos no
R$ 650,00 o que totalizou um montante de R$ 850,00 por contrato efetuado como uma forma de compensar as
perdas advindas da seca na região.
181
mesmo valor e que neste período os custos de produção continuaram a subir, sendo que o
Pronaf não acompanhou este aumento real dos custos produtivos. Para o MPA, o Pronaf não
fortalece nada, pois é “só propaganda do governo”. Outro motivo que as representações
sociais acham que o Pronaf não gera fortalecimento é devido ao pouco volume de recursos
que está entrando nos municípios e que estes recursos não chegam a ter um impacto real na
economia local. Estas concepções em torno do programa ficam claras nos depoimentos de
duas lideranças, uma do MPA e outra da Fetag.
De modo geral pela iniciativa dos governos eu diria que é só propaganda não está
fortalecendo nada. Eu quero só reforçar que é muito pouco dinheiro. Nós temos em
torno de 600 famílias de agricultores aqui no município de Vista Alegre que
financiam por ano no custeio de lavoura em torno de 1 milhão de reais, é pouco
recurso, é muita propaganda por parte do governo, por parte do Pronaf e não chega
até o agricultor àquilo que seria de direito, é muito pouco recurso. Então, na nossa
opinião o Pronaf tem que ser melhorado e até agora é só propaganda, não fortalece
nada, não tem fortalecido nada (Entrevista 6, 2004, C. A., Representante Sindical,
MPA).
Hoje o valor liberado por ha ele está muito aquém do custo de produção porque se nós
pegarmos ai de 4 a 5 anos para cá o valor mudou muita pouco coisa. Ele aumentou,
mas não na mesma proporção que aumentou o insumo, os custos de produção, e se tu
considera a mão de obra, adubo, uréia, a terra, também, tudo isso. Aumentou muito de
custo (Entrevista 8, 2004, D. S., Representante Sindical, Fetag).
Desse modo, mesmo sendo o Pronaf uma forma de estimular a mercantilização
financeira do agricultor familiar, uma política de inserção mercantil que gera a dependência
das condições de reprodução social e a uma política que leva ao “estreitamento” das
atividades produtivas no âmbito da unidade de produção ele, ainda assim, é muito importante
na manutenção da agricultura familiar do Alto Uruguai. Neste sentido, concorda-se com
Abramovay (1998), quando este afirma que o não desaparecimento da agricultura familiar e a
sua manutenção nos países capitalistas avançados dependeram das políticas públicas de apoio
praticadas pelo Estado junto a esta categoria social.
Mas, mesmo tendo um papel na manutenção e reprodução da agricultura familiar do
Alto Uruguai, o Pronaf possui outras contradições fundamentais de serem explicitadas. Uma
delas é a de estar assentado na profissionalização dos agricultores familiares. Esta política
gera um processo de especialização produtiva nas unidades de produção que, em muitos
casos, fragiliza a reprodução social das famílias. Assim, demonstra-se, a seguir, que o
principal efeito do Pronaf Crédito de lavoura é o de financiar a especialização produtiva do
agricultor familiar.
A especialização produtiva é a situação em que o agricultor familiar é levado, pela
política pública, a plantar o que esta financia, ou seja, o que é mais fácil e historicamente as
instituições bancárias tem tradição de financiamento e de operacionalização. Neste caso, os
182
cultivos que se sobressaem é a produção de grãos e de commodities agrícolas como o milho, a
soja, o trigo, o fumo e outras em menor volume. Este tipo de especialização da produção
gerada pelo Pronaf “quebra a lógica da agricultura familiar” como nos formulou um ator
social entrevistado, pois a verdadeira lógica de reprodução da agricultura familiar, segundo
este, por onde esta se assenta e, inclusive, o Pronaf a define em contraposição a lógica da
agricultura patronal, é a da diversificação do que é produzido no interior das unidades
familiares.
Verifica-se este processo de especialização produtiva pelos relatos de um secretário da
agricultura municipal. Note que o informante formula que o Pronaf não foi pensado para
exercer tal impacto sobre os agricultores familiares, mas que é a maneira como ele está sendo
operacionalizando na prática que está levando os agricultores a se especializar e, desse modo,
inclusive não destinar espaços produtivos dentro da unidade de produção para as culturas de
autoconsumo.
Eu acredito que o sistema como está do Pronaf não digo que é a lógica como
ele foi pensado, mas é como ele está sendo operacionalizado ele leva a
especialização, com certeza ele está levando a especialização. O agricultor
acaba indo lá e financiando a soja ou o milho e para ele pegar uma gama de
recursos razoáveis para ele fazer o plantio dele ele tem que financiar 10 ha ou
5 ha que é toda a área de cultivo dele deixando muito pouco para o arroz, para
o feijão e outras coisas que ele não tem acesso ao crédito. [...] Então por
facilidade, por operacionalidade acaba especializando e daí quebra a lógica
da agricultura familiar que no meu modo de ver é a diversificação, é a
diversidade. Se for a especialização ai tu entra numa lógica mais capitalista,
mais produtivista e que leva a especialização. Quebra a característica da
agricultura familiar (Entrevista 9, 2004, G. P., Engenheiro Agrônomo, SAM).
É também a especialização produtiva do agricultor familiar do território que desloca
espacialmente e temporalmente a produção de autoconsumo das unidades familiares como já
se demonstrou no capítulo 3. Neste sentido, o relato exposto acima evidencia que o agricultor
familiar financia o plantio de milho ou soja na pouca área de terra que possui e a produção de
autoconsumo fica relegada a um plano secundário dentro da unidade de produção. Esta é,
justamente, a contradição gerada pelo Pronaf no Alto Uruguai, ou seja, a de propiciar a
inserção mercantil e a especialização produtiva dos agricultores familiares via os cultivos
dinâmicos e, assim, a conseqüente vulnerabilização da produção de autoconsumo levando o
agricultor familiar, em muitos casos, a situações de insegurança alimentar e incertezas em
termos de sua reprodução social e alimentar. Como formulou Moruzzi Marques (2004, p. 8) a
consolidação, relativamente rápida, deste tipo de iniciativa (favorecendo agricultores
183
familiares bem inseridos nas dinâmicas de mercado) assenta-se, em grande medida, sobre um
privilégio de objetivos econômicos na ocasião de nascimento do programa.
Observa-se melhor este processo de especialização produtiva dos agricultores através
da análise dos dados da Tabela 22, que traz os principais empreendimentos financiados pelo
Pronaf para alguns municípios do Rio Grande do Sul. Na maioria dos municípios o Pronaf
Rotativo é um dos financiamentos mais acessados. Isso pode ser explicado por esta linha de
crédito não exigir muita burocracia na tomada do financiamento, porém ela só é extensível a
agricultores familiares que são clientes das instituições bancárias há um maior período de
tempo. O outro motivo do seu acesso ser maior é devido ao agricultor familiar poder investir
no que ele quiser na unidade de produção, não necessitando de um projeto técnico que o
“oriente” em termos de que atividade produtiva os recursos devem ser aplicados. Porém, o
que alguns autores já verificaram, é que com o surgimento dessa linha de financiamento os
montantes de crédito que eram acessados para as culturas do milho, fumo e da soja
diminuíram, o que leva a supor que os recursos do Rotativo estão sendo aplicados nestas
culturas também (Andrade da Silva, 1999).
Tabela 22: Principais empreendimentos financiados pelo Pronaf Crédito de Custeio em
alguns municípios do Rio Grande do Sul, no ano de 2000.
Tipo de empreendimento financiado (%)
Municípios
Pronaf
Rotativo
Fumo
Milho
Soja
Santa Cruz do Sul 9,0 71,0 18,0 -
Erechim 53,0 - 34,0 8,0
Passo Fundo 47,0 - 26,0 17,0
Frederico Westphalen 24,0 10,0 44,0 17,0
Pelotas - 45,0 43,0 -
Três Passos 21,0 - 27,0 30,0
Santa Rosa 32,0 - 21,0 41,0
Guaporé 63,0 23,0 11,0 -
Fonte: BACEN/RECOR adaptado de Ferreira et all (2001).
- Dado não disponível.
Pelos dados da Tabela 22 fica explícito o padrão de desenvolvimento que o Pronaf está
gestando no Rio Grande do Sul. Como já se formulou, é um padrão alicerçado na
especialização produtiva dos agricultores, pois os principais produtos financiados são o milho,
a soja e o fumo, todos ligados aos complexos agroindustriais e aos agricultores familiares
mais inseridos em termos de dinâmica mercantil, como já demonstraram vários autores
(Abramovay e Veiga, 1999; Andrade da Silva, 1999; Ferreira et all, 2001 e outros). Para o
caso do Alto Uruguai, o município de Frederico Westphalen é ilustrativo deste
184
direcionamento dos recursos do Pronaf, pois neste local 44% dos recursos foram para o milho,
24% para o Pronaf Rotativo (que também financia a implantação de lavouras de milho, soja,
fumo, etc), 17% para a soja e 10% para o fumo, demonstrando a seleção e a especialização de
atividades produtivas que o Pronaf está gerando no território. O processo de especialização
produtiva dos agricultores também pode ser analisado pelos dados da Tabela 20, apresentada
anteriormente, que demonstra que o principal empreendimento financiado para os municípios
do Alto Uruguai é o custeio de lavoura das culturas de soja, milho, fumo, trigo e algumas
poucas lavouras de feijão
126
.
Neste sentido, pode-se dizer que o Pronaf pode não estar fortalecendo os agricultores
familiares, mas está contribuindo para a sua mercantilização social e econômica através da
especialização produtiva das atividades e com o cultivo preferencial de poucas culturas na
unidade de produção. Esta é mais uma das contradições do programa que se propunha a ser
uma política diversificada em termos dos usos do espaço rural, tal como se demonstrou
anteriormente. Na verdade, o programa tem se revelado uma política de incentivo a produção
de grãos e commodities, provocado um estreitamento das opções de reprodução social dos
agricultores familiares. Deste modo, o Pronaf exacerba a via agrícola de desenvolvimento das
famílias do Alto Uruguai.
Nesta seção, procurou-se evidenciar a dinâmica da agricultura familiar gerada pelo
Pronaf que é a dominante no Alto Uruguai. Esta dinâmica baseia-se no financiamento das
culturas de grãos e de commodities agrícolas, na integração dos agricultores familiares aos
complexos agroindustriais e na dependência destes em relação ao acesso e tomada do crédito
rural. Nesta próxima seção, procura-se evidenciar a dinâmica periférica ou secundária que é
gerada pelo Pronaf. Pode-se dizer que esta está relacionada com o fortalecimento que o
programa gera na produção de autoconsumo das famílias e na segurança alimentar destas,
através da produção dos próprios alimentos necessários a sua alimentação.
4.2.2 – O Pronaf como política de fortalecimento da produção de autoconsumo.
Nesta seção, procura-se demonstrar que o Pronaf está exercendo um fortalecimento da
produção de autoconsumo de alimentos para as famílias do Alto Uruguai. Porém, mostra-se,
também, que o programa possui uma ação diferenciada entre as suas duas linhas de
126
No caso do feijão, mesmo que no trabalho de campo foram pouco significativos os relatos de implantação de
lavouras desta cultura, ela é importante por ser um produto básico de consumo das famílias. Neste caso, pode-se
185
financiamento, o Pronaf Crédito de Custeio e o de Investimento. Evidencia-se também, que
esta política mesmo de uma forma periférica e, em outros casos, de uma forma direta ela tem
estimulado a produção de autoprovisionamento alimentar dos agricultores da região. Para
demonstrar este processo diferenciado de ação das duas linhas do programa, em primeiro
lugar se analisa o Crédito de Custeio e, posteriormente, o de Investimento.
No caso do Pronaf Custeio o fortalecimento do autoconsumo se dá de uma forma
indireta. O agricultor familiar, em alguns casos, acessa o financiamento para a produção de
grãos como o milho, a soja, o fumo ou mesmo o Pronaf Rotativo. Este faz a cultura que ele
financiou, só que não coloca toda a quantidade do adubo, dos insumos e fertilizantes na
cultura principal. O agricultor familiar sempre “guarda” um pouco dos fertilizantes e insumos,
como formularam alguns dos informantes, para executar a implantação de alguma cultura para
autoconsumo como uma horta, um plantio de feijão, de arroz, amendoim ou outra cultura
qualquer de autoconsumo. Na verdade, o que ocorre é um deslocamento de parte dos recursos
que o Pronaf financiou para a implantação da cultura principal, para que haja o fortalecimento
das culturas voltadas ao autoconsumo familiar, por isso que, indiretamente, o Pronaf tem
estimulado o autoconsumo.
Essa racionalidade do agricultor familiar em “proteger” os cultivos de autoconsumo
alimentar evidencia-se nos relatos de um agricultor que executou este deslocamento dos
recursos para implantar uma horta e, no segundo caso, de um dirigente sindical da Fetraf-Sul
que confirma que a entidade orienta os agricultores a executarem essa operação de passar
parte dos recursos das culturas mercantis e comerciais para a produção de autoconsumo.
Não ele (Pronaf) ajuda em todas as partes. Tem o adubo [...] que tem que
colocar em toda a propriedade. Se tu vai semear uma verdura tu bota o adubo,
ele ajuda em todas as partes (Entrevista 16, 2004, R. D., Agricultor familiar).
O agricultor tem que saber que busca o crédito agrícola para produzir o
alimento. Não investir só na soja, mas ele tem que pegar alguns sacos de
adubo e um pouquinho deste recurso e produzir os outros produtos como o
amendoim, a mandioca, a batata e os outros produtos de subsistência [...]
(Entrevista 18, 2004, A. R. A., Representante Sindical, Fetraf-Sul).
Ainda sobre o Pronaf Crédito de Custeio pode-se perceber, durante o trabalho de
campo, que ele possui um papel importante no fortalecimento da produção de autoconsumo
gerado pelo apoio e estímulo a produção de milho nas unidades de produção familiares. O
milho é um dos produtos mais financiados pelo Pronaf Crédito de Custeio no Alto Uruguai
como demonstram as Tabelas 20 e 22, apresentadas anteriormente. O milho como se
dizer, que o Pronaf está fortalecendo, mesmo que precariamente, a produção de autoconsumo e, assim, gerando a
segurança alimentar da população rural.
186
demonstrou no capítulo 3, possui o caráter da alternatividade como formulou Garcia (1983;
1989), neste sentido ele pode ser tanto vendido como consumido pelo grupo doméstico
dependendo das condições de reprodução social e de mercado. Além disso, na agricultura
familiar do Alto Uruguai ele possui vários usos na unidade de produção. Ele pode ser usado
na engorda dos animais, pode ser armazenado na lavoura, pode ser guardado no “galpão”,
pode ser consumido pelo grupo doméstico na forma de produtos elaborados a base do mesmo
como a farinha, o pão de milho, a polenta, bolachas, etc ou mesmo a canjica feita do grão
inteiro. Pode ainda, ser consumido como milho verde, dentre outros usos.
Assim, o Pronaf financiando a produção de milho ele está, de certa forma, financiando
o autoconsumo do grupo familiar. Pode-se constatar esse caráter do milho durante o trabalho
de campo como a entrevista demonstra. O informante chega a formular que o agricultor
familiar que “não tem milho na propriedade não tem nada”, numa alusão a importância desta
cultura para a reprodução social e a segurança alimentar do grupo doméstico.
[...] 95% dos recursos (do Pronaf) estão sendo priorizados para a produção de
milho, estão sendo investidos na sua totalidade, porque o milho é um alimento
indispensável na pequena propriedade. Hoje se não tem milho na propriedade
não tem nada. Dá para dizer, assim, que não é pequeno agricultor se não tiver
milho. Então a prioridade é e vai continuar sendo a produção de milho
(Entrevista 6, 2004, C. A., Representante Sindical, MPA).
Neste sentido, os dados levantados a campo parecem indicar um desacordo com os
resultados de pesquisa de outros autores como Abramovay e Veiga (1999), Andrade da Silva
(1999), Ferreira et all (2001) e outros, que afirmaram que o Pronaf está fortalecendo somente
os agricultores familiares integrados ao mercado via os complexos agroindustriais da soja, do
milho (avicultura e suinocultura) e do fumo. No caso do Alto Uruguai, isso deve ser
relativizado, pois uma percentagem muito significativa do milho produzido dentro das
unidades de produção familiares é destinado ao autoconsumo intermediário, como formulou
Jerzy Tepicht e, vai fomentar a criação e engorda de suínos, aves, bovinos caprinos e outros
pequenos animais que, muitas vezes, vão servir ao autoconsumo das famílias, especialmente
das mais pobres que não estão integrados verticalmente via complexos agroindustriais. Assim,
uma parcela da produção do milho, em grande medida, é voltada ao autoconsumo e neste
sentido sim, o Pronaf vem fortalecendo a produção de autoconsumo e até gerando segurança
alimentar entre os agricultores familiares.
Entretanto se analisar somente o papel da produção da soja e de fumo, então sim, tem-
se que concordar com os autores citados, pois estes produtos na dinâmica da unidade de
produção não possuem o caráter da alternatividade. O papel do milho no fortalecimento do
187
autoconsumo familiar é explicitado no trecho da entrevista com um agrônomo da Emater que
destaca o papel desta cultura na produção de carne, leite e ovos para a alimentação das
famílias.
No nosso município o Pronaf financia mais o milho do que qualquer outra
cultura. Então ele faz a produção de autoconsumo por que é desse milho que
ele vai produzir a produção de galinha ao redor de casa, ele vai produzir o
leite, carne, ele vai ter carne, leite e ovos em cima disso. Então eu acho que o
milho é um parâmetro importante para o autoconsumo na propriedade, para a
produção de autoconsumo na propriedade. Então, neste sentido, eu acho que
ele está auxiliando de forma preponderante para a manutenção da agricultura
familiar (Entrevista 12, 2004, G. S., Engenheiro Agrônomo, Emater).
Contudo, a grande reivindicação dos agricultores familiares, dos atores sociais e das
instituições ligadas ao desenvolvimento dos municípios é que o Pronaf Crédito de Custeio não
possui uma linha de crédito rural que custeie a implantação de cultivos e criações de
autoconsumo
127
. Desse modo, a reivindicação é para se ter uma linha de crédito que financie o
autoconsumo de uma forma direta como acontece com as culturas do milho, da soja, do fumo
e outros cultivos comerciais e, não indiretamente e perifericamente através dos deslocamentos
de recursos como se demonstrou anteriormente. A principal constatação realizada durante o
trabalho de campo é a de que, realmente, o Pronaf não vem financiando diretamente a
produção de autoconsumo, ou as “diversificações” da agricultura familiar como os
entrevistados se reportam a este tipo de produção. O trecho da entrevista é ilustrativo deste
processo de não financiamento direto, pelo programa, da produção de autoconsumo e
demonstra a tentativa de facilitar o acesso ao crédito para este tipo de produção através da
criação de cooperativas de crédito como a Cresol.
A gente tenta e até a Cresol fez um trabalho, tem tentado mostrar a
importância da subsistência e tem tentado direcionar o crédito mais para
estimular os agricultores à subsistência, mas na prática se tu for ver não tem
se conseguido muito isso por que se financia a cultura, se financia a soja, o
milho [...]. Hoje não se tem uma linha de Custeio para estas atividades (de
autoconsumo) (Entrevista 22, 2004, R. B., Engenheiro Agrônomo, Emater).
Entretanto, o não financiamento da produção de autoconsumo ou das “diversificações”
da agricultura familiar não são consensos entre os agricultores e os atores sociais de
desenvolvimento. Neste sentido, as opiniões sobre o impacto dos financiamentos do Pronaf
são muito divergentes e até mesmo contraditórias. Há, inclusive, atores sociais de
127
Em alguns municípios, como é o caso de Constantina, o poder público municipal está criando um fundo de
recursos para equalização dos juros do Pronaf para que os agricultores possam, mais facilmente, e com menores
custos financeiros investir na produção de autoconsumo e nas “diversificações” da agricultura familiar como os
atores sociais de desenvolvimento se reportam a este tipo de produção.
188
desenvolvimento que acham que “hoje se tem dinheiro para tudo” e que é só “ir numa
agência bancária que você financia qualquer coisa” por menor que seja, incluindo-se ai o
autoconsumo familiar o que não foi, efetivamente, o que se verificou durante o trabalho de
campo. Do lado dos agricultores esta percepção também foi encontrada. Estes acham que o
Pronaf é mais voltado ao financiamento da produção de autoconsumo por que é “pouco
dinheiro” e devido a este motivo, serve apenas para “manter a família” e não para produzir
para o mercado. Os trechos das entrevistas são ilustrativos destes modos diferentes de
perceber o impacto do Pronaf sobre o autoconsumo. No primeiro caso o depoimento de um
técnico da Emater que chega a formular que hoje “tem recurso para mais de metro para a
subsistência” e, no segundo caso, de um agricultor familiar que endossa este tipo de
concepção em torno do programa.
[...] Hoje tu vai a qualquer agência bancária e quiser financiar uma criação de
galinha, por menor que seja, ou fazer um pomarzinho, ou fazer uma horta tu
tem recurso para isso. Hoje não dá para falar que não tem, tem para tudo.
[...] Quanto a isso recursos para a subsistência é um excelente programa.
[...] Tem recurso para mais de metro para a subsistência [...]. Não produz
alimento quem não quer na agricultura [...] (Entrevista 17, 2004, J. C. L.,
Técnico em Agropecuária, Emater).
Não, ele está incentivando mais a produção que é para a família pelo que a
gente nota. Em primeiro lugar, já não é muito dinheiro também que a gente
consegue mais é para a família, não é para a produção para a venda, é mais
para manter a família [...] (Entrevista 3, 2004, L. F., Agricultor familiar).
Em outros casos, a justificativa dos agentes de desenvolvimento é de que o Pronaf
possui financiamentos para a produção de autoconsumo, mas o problema é que o agricultor
familiar que não quer investir no autoconsumo. Justifica-se de que o Pronaf é diversificado
em linhas de financiamento e que também enfocam o autoprovisionamento em muitas delas.
É o caso, por exemplo, do Pronaf Investimento Alimentos que foi criado na safra 2003/2004 e
objetiva incentivar a produção básica de alimentos da agricultura familiar. Segundo o Plano
Safra 2003/2004 (2003) o Pronaf Alimentos visa estimular a produção de cinco alimentos
básicos da mesa dos brasileiros - arroz, feijão, mandioca, milho e trigo (p. 4). O motivo de
que, em alguns casos, o Pronaf Alimentos não está fortalecendo a produção destes cinco
alimentos básicos é simples: verificou-se que os agricultores familiares, muitas vezes
orientados pelos sindicatos e escritórios municipais da Emater, usam o recurso para outros
fins que não a produção dos alimentos que o programa visa fortalecer, objetivando a geração
da segurança alimentar como o próprio Plano Safra (2003) define.
Durante o trabalho de campo, pode-se perceber inúmeras irregularidades na aplicação
dos recursos desta linha de financiamento como investimento na construção de pocilgas para
189
integração agroindustrial, não aquisição de animais (matrizes) para atividade leiteira, usos
para pagamento de dívidas, para pagamento de universidade para os filhos, etc. Quando os
recursos são usados na agricultura, geralmente, estes são deslocados para uma atividade
produtiva com maior potencial de retorno financeiro e que tenha comercialização garantida.
Neste sentido, como já havia evidenciado Conterato (2004), é a lógica da mercantilização
social e econômica que predomina nos agricultores familiares do território, inclusive, quando
se trata de um financiamento visando o fortalecimento do autoconsumo familiar e a segurança
alimentar do grupo doméstico como já se demonstrou no capítulo 3. O Box 2, é explicativo
das principais objetivos e características do Pronaf Alimentos.
Box 2: Principais características do Pronaf Alimentos.
Fonte: Plano Safra (2003).
O Pronaf Alimentos é uma linha de crédito especial para estimular a produção de cinco
alimentos básicos da mesa dos brasileiros dentre os quais o arroz, o feijão, a mandioca, o
milho e o trigo. Esta modalidade de financiamento está em sintonia com o Program
a
Fome Zero, visando com a concessão desta linha de microcrédito, combater a pobreza nos
espaços rurais e assegurar a geração da produção de autoconsumo para alimentação das
famílias. Abrange agricultores com renda bruta anual familiar de até R$ 2 mil. O objetivo
é criar condições para que os agricultores mais carentes desenvolvam atividades para su
a
subsistência e garantia de renda. O programa possui valores de financiamento até R$ 1
mil, juros de 1% ao ano, dois anos para quitação do empréstimo e bônus (desconto par
a
p
agamento em dia) de 25%.
Já o Pronaf Crédito de Investimento gera um fortalecimento que pode ser de forma
direta, onde ocorre um aumento real da produção de autoconsumo ou, indiretamente, na forma
de geração da infra-estrutura rural nas unidades de produção. Essa linha do Pronaf é mais
voltada ao financiamento da infra-estrutura nas propriedades dos agricultores. O estímulo ao
autoconsumo, nesse caso, ocorre através do fortalecimento da estrutura de produção das
unidades familiares através da a aquisição de máquinas e equipamentos para a transformação
e agregação de valor, equipamentos como ordenhadeiras de bovinos de leite, matrizes animais
para leite e suínas, engenhos de cana, “tachos” de açúcar, pequenas máquinas para
panificação e outras pequenas inovações tecnológicas que desempenham papéis importantes
na obtenção da produção de autoconsumo, mesmo que o seu impacto seja indireto sobre esta.
O trecho de uma entrevista com um secretário da agricultura municipal demonstra este
processo de apoio da produção de autoprovisionamento alimentar que o Pronaf Investimento
gera mesmo sendo de uma forma indireta como o entrevistado mesmo se refere.
190
Se tu pegar os projetos financiados tu vai encontrar em todos eles
características de fortalecimento da produção de autoconsumo, de
transformação para o autoconsumo, você vai ver nitidamente em todos os
projetos. Praticamente todos os agricultores financiam alguma coisa ou um
tacho, ou um engenho de cana, ou alguma outra coisa de agregação de valor.
Indiretamente para esse fortalecimento, ou seja, o agricultor ainda mantém
viva aquela questão da produção para o autoconsumo, mesmo quando ele vai
financiar alguma coisa que é Investimento lá para o leite, mas de alguma
forma ele tenta colocar algum produto ou equipamento neste sentido
(Entrevista 9, 2004, G. P., Engenheiro Agrônomo, SAM).
No caso do Pronaf Investimento, ainda são importantes às atividades da fruticultura e
do leite como fortalecimento do autoconsumo familiar, pois as duas recebem um montante
relativamente grande dos recursos do Pronaf Investimento, principalmente a atividade leiteira
que, como se demonstrou na Tabela 20, apresentada anteriormente, é o segundo
empreendimento mais financiado nos municípios do Alto Uruguai. Tanto a fruticultura como
o leite são importantes no contexto da reprodução social e alimentar das famílias rurais do
Alto Uruguai por dois motivos: as duas possuem o caráter da alternatividade como formulou
Garcia Jr. (1983; 1989) e, também, agem no sentido de diversificar as estratégias de vivência
dos agricultores familiares como formulou Ellis (2000), retirando, em grande medida, a lógica
da especialização produtiva e do padrão produtivo dominante do grão e das commodities do
território
128
.
O financiamento da atividade leiteira pelo Pronaf Investimento é muito importante na
reprodução social e na segurança alimentar dos agricultores familiares, pois a produção de
leite possui o caráter mercantil, dando uma renda mensal para o agricultor familiar, mas
também, possui o caráter da alternatividade de usos no contexto do grupo doméstico. Do leite
o agricultor pode obter vários produtos de transformação caseira como o queijo, a nata, a
manteiga, etc que podem servir de alimentação ao grupo doméstico ou, serem vendidos em
caso de haver “sobras” no autoconsumo familiar. Pode ainda, ser consumido na forma in
natura pelos membros das famílias, garantindo, assim, uma alimentação com qualidade
nutricional, em quantidade suficiente e permanente e, de acordo com os hábitos alimentares
das populações rurais do território, ou seja, os princípios da segurança alimentar como
formulou Maluf et all (2004).
Durante o trabalho de campo se observou que os principais empreendimentos
financiados pelo Pronaf Investimento na atividade leiteira são: ordenhadeiras mecânicas,
128
Esta afirmação será retomada e melhor desenvolvida no capítulo 5.
191
estábulos para ordenha, construção de cercas (“potreiros”), aquisição de matrizes leiteiras
129
,
compra de resfriadores de expansão ou congeladores, dentre outros como demonstra a Tabela
20, apresentada anteriormente. Em alguns destes casos o fortalecimento do autoconsumo pelo
Pronaf Investimento ocorre de forma direta como no caso da aquisição das matrizes leiteiras
e, mas em outros, isso ocorre periférica ou indiretamente, como no caso da compra de
equipamentos para à atividade. O fortalecimento da atividade leiteira através da criação da
infra-estrutura para a atividade pelo Pronaf Investimento é evidenciado pelo relato de um
presidente de CMDR.
[...] Principalmente na questão do Investimento tem fortalecido de um modo
geral principalmente na questão da bacia leiteira que é o grande número de
financiamentos de Investimento é na bacia leiteira e as famílias que tem uma
atividade neste setor tem se destacado com infra-estrutura na propriedade com
grandes avanços (Entrevista 17, 2004, V. S., Representante Sindical, CMDR).
No caso do financiamento da fruticultura verifica-se que o Pronaf tem financiado
projetos de diversas espécies de frutas como: laranja, pêssego, figos, morangos, implantação
de parreirais de videiras e outras frutíferas em menor escala, propiciando uma diversificação
produtiva e econômica junto aos agricultores familiares como demonstra a Tabela 20,
apresentada anteriormente. A produção de frutas tem, assim, um papel importante na
reprodução social dos agricultores fora do padrão dominante da produção de grãos. A
produção de frutas, em sua grande maioria, é destinada para a venda, porém, em muitos casos,
verificou-se que este tipo de integração dos agricultores ao mercado não é tão subordinada aos
complexos agroindustriais como no caso das commodities agrícolas. Por outro lado, as
famílias podem beneficiar-se do caráter da alternatividade das frutíferas que podem ser
vendidas ou consumidas dependendo das condições alimentares e de mercado. No caso de
serem autoconsumidas, podem servir de alimento in natura como no caso do leite ou, serem
transformadas na propriedade via “agroindústria caseira” sendo elaborados as geléias, doces
em compota, doces em calda, frutas cristalizadas, as “chimias”, etc que, por sua vez, podem
ser tanto autoconsumidos ou vendidos no mercado local gerando um fonte de renda adicional
as famílias.
129
Mas é também na questão da atividade leiteira que se verificam o maior número de casos de desvios de
recursos do Pronaf pelos agricultores familiares. Este acontecimento ocorrido, em alguns nos municípios, é
chamado de “vacas papel” pelos atores sociais entrevistados devido os agricultores fazem o projeto técnico junto
da Emater justificando a aquisição de matrizes leiteiras para a propriedade, mas na verdade os mesmos utilizam
os recursos para outros usos e “arranjam” uma nota do Bloco 15 de um vizinho, parente ou amigo para justificar
como se tivesse ocorrido à transação normalmente de compra e venda dos animais. Em muitos casos, verificou-
se que os recursos foram aplicados na compra de carros, motos, pagamento de dívidas, pagamento de
universidade para os filhos dentre outros usos.
192
No caso da fruticultura, o Pronaf Investimento fortalece o autoconsumo de forma
direta quando a produção de frutas é autoconsumida pelo grupo doméstico. Entretanto, muitas
vezes, o Pronaf Investimento financia a estrutura para a implantação de uma estufa para
hortaliças ou mesmo a cultura de uma frutífera e os agricultores familiares usam esta estrutura
gerada pelo Pronaf, ou mesmo, a correção da fertilidade e da acidez do solo, para implantar os
cultivos de autoconsumo, aproveitando, assim, os recursos do Pronaf e caracterizando, desse
modo, um fortalecimento indireto da produção de autoconsumo como o elucidativo relato de
um agrônomo da Emater municipal ilustra. Nota-se, pelo relato, que o Pronaf Investimento
não financia diretamente as culturas de autoconsumo e que este estímulo ao
autoprovisionamento alimentar ocorre de forma indireta através do uso da estrutura de
produção montada como os recursos do programa, mas que visavam apoiar outros
empreendimentos.
É nesse caso ali a questão da subsistência o que tem influenciado para que o
pessoal faça é o Investimento. A gente faz o investimento em cima, tipo do
hortigranjeiro, a estrutura e a partir daí eles com recursos próprios é que vão
fazer a cultura de subsistência. Assim, o Pronaf em si, diretamente, não tem
financiamento à cultura do aipim, da batata-doce. Isso ai não, se financiou a
estrutura e eles com o retorno eles estão produzindo e indiretamente
influenciou na produção. Por exemplo, nós estamos financiando estufas,
túneis, mulching, a lona para fazê-los e a partir daí nós financiamos esta parte,
a adubação, a correção do solo e eles fazem a cultura de subsistência, mas a
cultura não é financiada diretamente. [...] Até mesmo alguma coisa de
fruticultura o pessoal faz assim. Às vezes a gente financia uma correção de
solo e, em cima disso, eles colocam a fruticultura e no meio dessa cultura eles
colocam a cultura do feijão, amendoim, batata utilizando aquela correção do
solo, mas não foi financiada a cultura (Entrevista 5, 2004, V. A., Engenheiro
Agrônomo, Emater).
Em suma, o que se pode dizer do Pronaf Crédito é que há uma diferenciação no
impacto das suas duas linhas básicas de atuação, o Custeio e o Investimento. No caso do
Crédito de Custeio ele é mais voltado às culturas dinâmicas e mercantis como o milho, a soja,
o fumo, etc. Mas, por outro lado, ela financia o milho que possui uma importância grande em
termos de autoconsumo intermediário nas unidades de produção familiares para produção de
proteína animal e outros derivados como ovos e leite. A sua contribuição no fortalecimento do
autoconsumo ocorre, também, pelos deslocamentos dos recursos das culturas comerciais para
as de autoconsumo na forma de insumos, fertilizantes e adubação como já se demonstrou.
Já a linha do Pronaf Crédito de Investimento, estimula a produção de autoconsumo de
forma direta e indiretamente. Na forma direta, através, por exemplo, do financiamento de
projetos de fruticultura e de aquisição de animais como matrizes suínas e bovinas que vão
193
gerar um aumento da produção mercantil e também de alimentos nestas atividades. A forma
indireta ocorre através do fortalecimento da infra-estrutura das unidades de produção com o
financiamento de pequenas máquinas, equipamentos e inovações tecnológicas que,
indiretamente, gerarão um impacto favorável na produção de autoconsumo
130
. A constatação
principal durante o trabalho de campo e que os nossos informantes formularam, várias vezes,
é a de que: “o Pronaf Custeio especializa e o Investimento diversifica”, numa alusão aos
impactos diferenciados que as duas linhas de financiamentos possuem no autoconsumo de
alimentos das famílias. Este processo de estímulo diferenciado das duas linhas do programa
pode ser verificado pelo relato de um técnico da Emater. Nota-se que o entrevistado liga a
especialização produtiva com o cultivo de grãos e o Pronaf Custeio e, a produção de frutas e
de leite com a diversificação e com o Pronaf Investimento.
O recurso do Custeio é tranqüilamente aplicado na questão dos grãos, se
destina a estas atividades. O Pronaf D Custeio, que são poucos agricultores
que acessam, que já são mais aqueles agricultores de inserção de mercados,
consolidados na cultura de grãos. Então o Pronaf D neste sentido ele fortalece
a questão dos grãos. Mas nós temos um dos créditos mais acessados que é o
Pronaf C Investimento que este é muito atuante na questão da diversificação,
tanto assim, que se considerarmos uma boa parte dos recursos vão para o leite,
mas também para outras atividades como a fruticultura [...] (Entrevista 23,
2004, V. T., Técnico em Agropecuária, Emater).
Porém, no Alto Uruguai, a ação das políticas públicas sobre as famílias rurais e o
autoconsumo nem sempre é vista como positiva pelos atores sociais de desenvolvimento. Há
casos em que as políticas públicas são as responsáveis pela vulnerabilização do autoconsumo
e a mercantilização do mesmo entre as famílias do território. É o caso das políticas que eram
praticadas no âmbito do extinto Programa Comunidade Solidária e Comunidade Ativa do
Governo Federal, bem como dos atuais Programas de Bolsa Família, Cheque Seca (a nível
estadual) e outros programas assistenciais que são vistos como desmotivadores das famílias
rurais e da produção de autoconsumo. O que acontece é que as famílias que passam a receber
alguns destes benefícios como os do Programa Comunidade Solidária (que distribuía cestas
básicas de alimentos junto aos agricultores familiares) não produzem mais os seus próprios
alimentos básicos do dia-a-dia em sua unidade de produção, vulnerabilizando, assim, o
130
Geralmente, os financiamentos tanto das linhas do Crédito de Custeio como da de Investimento não visam o
autoconsumo como a principal estratégia de reprodução social das famílias, mas sim, a inserção mercantil
mesmo sendo numa atividade fora do escopo dos grãos e das commodities agrícolas. O apoio ao autoconsumo
ocorre como se fosse uma conseqüência secundária do estímulo das atividades produtivas mercantis e, por este
motivo que, insiste-se na presente dissertação, que o seu fortalecimento se dá de forma indireta e periférica na
unidade de produção familiar.
194
autoconsumo e o mercantilizando-o, tornando-se dependentes do abastecimento realizado
pelas políticas públicas assistenciais.
Isso já havia sido objeto de críticas de outros estudiosos do Pronaf, como é o caso de
Moruzzi Marques (2004), que verificou que o fornecimento de cestas de alimentos para os
agricultores pobres constitui, antes de tudo, um fator de desestímulo para o desenvolvimento
das atividades produtivas nos estabelecimentos familiares. O autor ainda afirma que este
aspecto reforça a argumentação de que o objetivo social de combate à miséria do
Comunidade Solidária precede e desestrutura as possibilidades de intervenção visando o
fortalecimento de aspectos produtivos da agricultura familiar, em particular daquela que se
encontra nas situações de maior precariedade (p. 12). Este processo de desestímulo que as
políticas públicas exercem sobre a produção de autoconsumo pode ser ilustrado pelo trecho
da entrevista com um técnico da Emater que exerce uma crítica contundente deste tipo de
iniciativa, chamando-as de “paternalistas”.
É um pouco de paternalismo também, acho que os últimos governos foram
bastante paternalistas independentes de (partido). Graças a Deus nós não
temos cestas básicas no nosso município, mas já tivemos muitas ações
parecidas com cestas básicas. Se tu vai analisar é rebate disso, é cheque seca,
é cheque não sei o que. Então isso criou uma expectativa falsa (Entrevista 7,
2004, J. C. L., Técnico em Agropecuária, Emater)
131
.
Malgrado estes problemas das políticas públicas assistencialistas do passado, o Pronaf
se propõe a ser um novo instrumento de fortalecimento da agricultura familiar tanto do ponto
de vista da produção de autoconsumo como da produção comercial e de produtos que
compõem a cesta básica das famílias do território. Isso é explicitado nos últimas orientações
do programa como no documento do Plano Safra 2004/2005. Neste documento, se afirma que
as ações do Pronaf buscam satisfazer a necessidade da criação e/ou fortalecimento de
mecanismos que permitam à agricultura, em especial à agricultura familiar, maior capacidade
de compatibilizar a produção para o seu próprio consumo e para o mercado, especialmente
de alimentos que compõem a cesta básica (Pronaf, 2004, p. 4; grifos meus).
Contudo, não é isso que se verificou a campo no caso do Alto Uruguai. Como se
demonstrou, os maiores impactos do Pronaf são indiretos e periféricos em relação à produção
131
Há casos, também, que os informantes revelaram ser as famílias com aposentados as que não produzem o
autoconsumo e que “compram tudo de fora” da unidade de produção. Nesse sentido, a aposentadoria rural,
segundo alguns atores sociais de desenvolvimento, seria também uma política pública que vulnerabiliza e
mercantiliza a produção de autoconsumo como demonstra o relato de uma assistente social da Emater:
A gente também vê que um pouco se deve a grande maioria de aposentados no
interior, a aposentadoria. Tem famílias que estão vivendo só em cima da
aposentadoria e ai não produzem nada porque é mais cômodo comprar (Entrevista 7,
2004, M. Z. B., Extensionista Rural, Emater).
195
de autoconsumo. Soma-se a isso, outros problemas de aplicação dos recursos do Pronaf como,
em alguns casos, em que se constatou que o Pronaf é o responsável pela mercantilização do
consumo familiar através de um processo de externalização da alimentação justamente
naquelas famílias mais pobres e vulneráveis em termos de reprodução social e potenciais
focos de insegurança alimentar como se demonstrou no capítulo 3.
Durante o trabalho de campo pode-se constatar situações em que os recursos do Pronaf
não foram investidos na produção da agricultura familiar de forma a gerar daí o autoconsumo,
mas sim, foram investidos na compra dos alimentos para o grupo doméstico nos centros
urbanos das cidades aprofundando, assim, o processo de fragilização do consumo das famílias
rurais e não fortalecendo este tipo de produção como reza os objetivos do programa. Este
acontecimento pode ser elucidado pelo relato de um presidente de CMDR que se mostra
preocupado com a aplicação dos recursos do programa na compra da alimentação e, também,
com a contradição que isso representa em termos da reprodução social da agricultura familiar.
Nós temos ainda, não são muitas (famílias) que ainda pegam este dinheiro e
com a parte deste dinheiro compram alimentos, comida. Isso não pode
acontecer por que quem mora no interior não pode comprar, com exceção de
alguns produtos, mas a grande maioria tem que ser produzida na própria
propriedade (Entrevista 17, 2004, V. S., Representante Sindical, CMDR).
Soma-se a isso, em outros casos, a percepção de alguns atores sociais de
desenvolvimento que acham que o agricultor familiar não precisa de políticas públicas para
produzir o autoconsumo, mas sim, “precisa de vontade” e de colocar a produção de
autoconsumo como uma das suas principais prioridades na dinâmica das unidades produtivas.
Esta concepção em torno do autoconsumo é justificada pelo motivo de que para produzir o
autoconsumo não se tem gastos vultuosos, já que é uma produção na qual não se usa insumos
químicos, sementes melhoradas e tecnologias modernas o que não acarreta grandes custos
produtivos ao agricultor familiar. Além disso, se exalta a importância dos fatores de produção
como a terra e o trabalho do grupo doméstico na produção do autoconsumo em detrimento do
fator capital (tecnologia, por exemplo), pois estes primeiros o agricultor familiar possui na sua
unidade de produção e são de fácil acesso. O relato de um agrônomo da Emater é elucidativo
deste tipo de concepção, pois o mesmo coloca que o autoconsumo tem que ser um
“princípio” de prioridade dos agricultores “por que para fazer subsistência não precisa
dinheiro precisa vontade”.
Eu acho que não é o crédito que vai fazer a subsistência avançar. O crédito
pode estimular. [...] Se o agricultor não tiver claro na sua definição da
propriedade, na sua prioridade da propriedade que ele quer trabalhar a
subsistência ele pode ter dinheiro ou não ter dinheiro por que se ele tiver
196
dinheiro ele pode desviar para a soja, se ele tem prioridade na soja ele vai
colocar tudo na soja [...]. O grande problema da subsistência é que ele tem
que tirar isso como princípio por que para fazer subsistência não precisa
dinheiro precisa vontade (Entrevista 22, 2004, R. B., Engenheiro Agrônomo,
Emater).
Nesta seção, demonstrou-se que o Pronaf, em grande medida, financia a produção de
autoconsumo dos agricultores familiares do Alto Uruguai. Também, se demonstrou que as
suas duas linhas de financiamento básicas, o Crédito de Custeio e o de Investimento possuem
impactos diferentes no processo de estímulo a produção de alimentos dos agricultores.
Contudo, está análise do Pronaf realizada no Alto Uruguai é instigante no sentido de levar a
refletir sobre os seus principais objetivos enquanto política pública e a sua relação com o
desenvolvimento do território.
Neste sentido, pode-se dizer que o programa está gerando um tipo de desenvolvimento
no Alto Uruguai que vem de encontro a uma fragilização geral das estratégias de reprodução
social e alimentar dos agricultores familiares. Desse modo, no Alto Uruguai, o Pronaf tem
sido o responsável, em grande medida, pelo solapamento da reprodução social das famílias
rurais, principalmente através da especialização produtiva e econômica que o crédito rural
efetuou entre os agricultores. Neste sentido, pode-se afirmar que o programa está
vulnerabilizando os agricultores familiares e também a produção de autoconsumo que sofre os
efeitos decorrentes de tal padrão de desenvolvimento agrícola. Entretanto, sabe-se que o
Pronaf não determina, sozinho, os “caminhos” por onde irá passar o desenvolvimento das
formas familiares de produção e trabalho. Contudo, como política pública ele tem a
capacidade de condicionar o desenvolvimento beneficiando uma ou outra atividade produtiva
e, assim, afetando as estratégias de reprodução dos agricultores familiares.
Desse modo, não cabe somente refletir sobre o Pronaf como uma política pública para
a agricultura familiar. Cabe, também, relacioná-lo ao contexto social e econômico em que o
mesmo está inserido e, principalmente, ao tipo de desenvolvimento em que o mesmo
operacionaliza a tomada do crédito rural pelos agricultores. Esta proposição implica em se
refletir sobre alguns desafios do programa, as mudanças possíveis e as alternativas que estão
colocadas neste momento histórico de sua evolução. Nesse sentido, o desafio do Pronaf é o de
se voltar a um processo que realmente gere um fortalecimento dos agricultores familiares. É
com estas pretensões que se quer evidenciar, na próxima seção, algumas orientações em torno
de um tipo de desenvolvimento “alternativo” ao padrão agrícola do Alto Uruguai e relacioná-
las com as políticas públicas, especialmente o Pronaf, no sentido de tentar responder algumas
questões como: para este tipo de desenvolvimento que o território se moldou nas últimas
197
décadas qual é a melhor política pública? E, como o Pronaf pode contribuir neste processo de
transformação da estrutura social, econômica e produtiva? São estas as questões que se tenta
abordar a seguir.
4.3 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A DIVERSIFICAÇÃO DAS ESTRATÉGIAS DE
VIVÊNCIA DA AGRICULTURA FAMILIAR: para repensar o desenvolvimento rural
no Alto Uruguai.
4.3.1 – Qual desenvolvimento? Qual política pública?
O objetivo desta seção é a de relacionar as políticas públicas com um novo enfoque de
desenvolvimento alternativo ao que se tem atualmente no Alto Uruguai. Neste sentido, não
cabe somente criticar-se o padrão agrícola de desenvolvimento. Bem como, não cabe,
formular nenhum juízo de valores para o processo de mercantilização social e econômica que
a agricultura familiar adentrou nestas últimas décadas, fragilizando as suas estratégias de
reprodução social. O que se pretende realizar é uma análise de como o Pronaf poderia
contribuir para a mudança do cenário social, econômico e produtivo do Alto Uruguai. Neste
sentido, cabe relacioná-lo com alguns aspectos do desenvolvimento desta região e com o que
alguns autores estão chamando atualmente de abordagem territorial do desenvolvimento rural
como formulou Schneider (2003b)
132
.
O que ocorre atualmente no Alto Uruguai é um processo de desenvolvimento que
possui a produção agropecuária como principal atributo econômico para a geração de renda e
a manutenção das famílias rurais. Esta região, historicamente, se moldou a um padrão
produtivo assentado na produção de grãos e commodities agrícolas e na integração aos
chamados Complexos Agroindustriais. A partir dos anos 70 com as transformações técnicas-
produtivas, econômicas e sociais (a assim chamada modernização agrícola) a agricultura
familiar adentrou em uma nova fase de desenvolvimento, onde esta pode ser caracterizada
pela mercantilização social e econômica das unidades de produção familiares. Estas mudanças
fizeram com que os agricultores adentrassem em um processo de especialização produtiva, de
132
O desenvolvimento territorial se configura em um novo enfoque e modo de pensar o desenvolvimento rural
das “regiões” interioranas e de baixa densidade demográfica. Ele é voltado ao um novo modo de gerir o
desenvolvimento onde a perspectiva espacial passa a ser valorizada e onde se tenta integrar o desenvolvimento
“urbano” ao “rural” numa nova expressão e categoria que se usou definir como o território (Saraceno, sd). Neste
sentido, o desenvolvimento rural não se resume ao desenvolvimento agropecuário como formularam Abramovay
(2002) e Campanhola (2000), mas sim a um conjunto variado de atividades, atributos econômicos e produtivos
198
diferenciação social e produtiva, de empobrecimento rural (em alguns casos) e de
solapamento de suas estratégias tradicionais de reprodução social.
Neste sentido, é necessário que as políticas públicas se voltem na direção da mudança
social deste tipo de desenvolvimento que o território se embuiu historicamente para que esta
situação de vulnerabilização social e de fragilização dos agricultores não atinja níveis em que
os problemas sociais se avolumem ainda mais, como é o caso da pobreza rural como já se
demonstrou no capítulo 3. Deste modo, se faz necessário o uso de instrumentos de mudança
social e de transformação produtiva e econômica deste espaço rural. Assim sendo, o Pronaf
parece ser um bom ponto de partida para realizar esta inflexão, dado o seu caráter de ser uma
política de fortalecimento das unidades familiares e, também, por ser um programa que não
possui a sua ação limitada às fronteiras administrativas dos municípios, mas sim age no
território como um todo (Abramovay, 2002; 2003). Entretanto, o que se quer demonstrar é
que o Pronaf ainda possui várias limitações como política pública, no sentido de conseguir
realizar estas transformações sócio-econômicas e produtivas no território.
Como exemplo, se pode aludir que o Pronaf desde a sua formulação original está
assentado em um enfoque e numa operacionalização dos financiamentos públicos que exalta o
viés setorial do desenvolvimento, mesmo que em determinados momentos de sua evolução
este enfoque foi relativizado e foram incluídas novas alternativas de geração de emprego, de
renda e de ocupações em suas orientações. Contudo, o programa, na prática, não incorporou o
financiamento das múltiplas atividades econômicas que fazem parte dos espaços rurais. Esta
evolução, de certa forma contraditória do programa, também é válido para o caso do Alto
Uruguai que possui um desenvolvimento histórico assentado na produção primária, em muito
influenciado pelas políticas estritamente agrícolas que foram praticadas ao longo do processo
de desenvolvimento desta região (como o SNCR e da PGPM) e que gerou um
desenvolvimento que pode ser definido como agrícola e setorializado levando em conta
apenas um setor econômico - a agricultura - enquanto atividade hegemônica (Sarraceno, 1994;
1996).
No Alto Uruguai, a constatação que se retira do trabalho de campo, é a de que o Pronaf
está, em grande medida, fortalecendo o viés setorial e agrícola do desenvolvimento, pois a
agricultura e a produção de grãos e commodities agrícolas é a atividade hegemônica e o
“motor” do desenvolvimento do território. Como já se demonstrou neste capítulo, o Pronaf
está fortalecendo a mercantilização dos agricultores familiares através do incentivo, via o
assentados na vocação cultural da população, na sua história, na cultura técnica e na espessura do tecido social
do território (Reis, 1985; 1988).
199
crédito rural, ao processo de mudança da base técnica-produtiva da agricultura e também a
assim chamada especialização dos agricultores familiares através do financiamento aos
cultivos dinâmicos e comerciais como a soja, o milho, o fumo, etc. Dessa forma, o programa
está fazendo com que haja um estreitamento das estratégias de reprodução social e uma
limitação objetiva do processo de diversificação econômica e produtiva das famílias rurais
(Saraceno, 1994, 1996; Veiga, 1999).
Esta lógica do Pronaf, em estar fortalecendo uma atividade econômica, no caso do
Alto Uruguai, a agricultura é evidenciada no relato de um representante do MPA que quando
perguntado sobre se o Pronaf vinha financiando outras atividades que possuíam uma ligação
intersetorial, a resposta foi que o Pronaf é mais “centrado na produção agrícola”, aludindo
que o programa possui um viés setorializado. O segundo relato é de um técnico da Emater que
também reafirma a lógica setorial do Pronaf, formulando que ele incentiva as “atividades
tradicionais” agrícolas como a soja e que não propicia a diversificação intersetorial ou
multisetorial das economias do território. Nota-se que o entrevistado argumenta que é uma
segurança para o programa emprestar recursos para a soja (cultivo de grãos) por que a
diversificação econômica e produtiva pode gerar incertezas e insegurança para quem financia
os agricultores, neste caso, para o Estado.
Ele é mais centrado na produção agrícola [...]. Ele tem cumprido esse papel,
mas até certo ponto, mas timidamente, são raros só em alguns casos
(Entrevista 6, 2004, C. A., Representante Sindical, MPA).
O Pronaf está financiando as culturas e as atividades que são tradicionais. Isso
ai até é uma segurança que está por de trás disso. É mais seguro você
emprestar para a soja, emprestar custeio de soja sabendo que já se tem uma
estrutura, uma comodidade, ela gera mais certeza. A diversificação ela pode
gerar uma incerteza, então nem sempre se prioriza estes recursos para a
diversificação. É muito tímida a diversificação (Entrevista 12, 2004, G. S.,
Engenheiro Agrônomo, Emater).
Como definiu o representante da agricultura familiar, é “tímido” o processo de
fortalecimento do Pronaf em atividades como ligação intersetorial. Os financiamentos do
Pronaf estão voltados a atividades dentro do viés da agricultura e mesmo que, em alguns
casos, ele diversifique as atividades produtivas e econômicas dos agricultores familiares com
um financiamento a uma cultura com o princípio da alternatividade produtiva como a
fruticultura e o leite, estas duas atividades também estão ligadas à produção agropecuária e
enfatizam o viés setorial do desenvolvimento do território. Em outros casos, quando os atores
sociais de desenvolvimento e os agricultores foram perguntados sobre o financiamento de
atividades de serviços, de comércio, industriais, etc, ou seja, com integração intersetorial ou
200
multisetorial como o turismo rural, as agroindústrias familiares, as atividades não agrícolas, a
pluriatividade, etc a resposta é a de que o Pronaf ainda não está financiando estas atividades.
Este não financiamento destas “novas” atividades econômicas, produtivas e de
serviços nos espaços rurais, fica evidenciada no relato de um secretário da agricultura
municipal que demonstra que o Pronaf não está estimulando atividades econômicas e
produtivas com ligação multisetorial através dos seus financiamentos. Nota-se, pelo relato,
que atividades como o turismo rural e a criação de agroindústrias familiares são atividades de
serviços e econômicas que ainda estão sendo pouco operacionalizadas junto aos agricultores
familiares. A Tabela 20, apresentada anteriormente, também demonstra isso já que foi
somente o município de Constantina que acessou o Pronaf visando à agregação de valor a
matéria-prima agrícola e a implantação de agroindústrias familiares.
Na grande maioria é Custeio e Investimento. [...] Mas o que a gente vê na
prática é Investimento e Custeio na sua grande maioria e são poucos que, eu
até não tenho conhecimento assim de hoje ter algum projeto de Turismo Rural
não tem nenhum eu tenho certeza. Agroindústria tem alguns sendo pensados e
encaminhados, mas não tem nenhum. Então ainda tem esse limite de você
conseguir ultrapassar a atingir esse limite de se modificar o tradicional do
Custeio e do Investimento. Mesmo que o Investimento você consiga fazer
uma diversidade maior, mas geralmente o Investimento é em cima daquelas
atividades, hoje a maior parte do Investimento no município é na atividade de
leite, é na bovinocultura de leite, mas não se conseguiu sair daquela questão
de (aquisição) de matrizes, do financiamento de vacas para a produção. São
poucos que conseguem ultrapassar isso também (Entrevista 9, 2004, G. P.,
Engenheiro Agrônomo, SAM).
Uma das modificações que um novo enfoque de desenvolvimento rural requereria é o
de que as políticas públicas deixassem de financiar somente atividades ligadas à produção
agropecuária e se voltassem a um tipo de desenvolvimento que integrasse os espaços rurais e
urbanos, pois as fontes de geração de empregos, de rendas e de inserções profissionais dos
agricultores familiares podem estar fora da agricultura como já demonstraram Saraceno (sd),
Abramovay (2002; 2003) e Schneider (2003a). Estas podem estar nos espaços urbanos como,
por exemplo, no setor de comércio, nos serviços, nas indústrias, transportes, nas
comunicações, etc e, deste modo, seria necessário políticas públicas que estimulassem
também estes tipos de atividades para que, assim, o desenvolvimento rural fosse conectado e
integrado a dinâmica urbana e vice-versa como, por exemplo, através da geração de
atividades e ocupações não agrícolas as famílias rurais do território (Schejtman, 2000).
Este seria um dos desafios que estariam colocados para o Pronaf enquanto política de
fortalecimento da agricultura familiar, pois, talvez, o estímulo à diversificação dos espaços
rurais não esteja somente no desenvolvimento e no financiamento das atividades ligadas ao
201
rural, mas sim, em muitos casos, como os estudos já demonstram a existência de uma
dinâmica e rede urbana sólida e diversificada de atividades pode fornecer estímulos
apreciáveis às áreas rurais. Neste sentido, como demonstrou Abramovay (2002; 2003) o
principal desafio do Pronaf é voltar-se a ser uma política de fortalecimento da agricultura
familiar que transcenda a dimensão estritamente agrícola e setorial do desenvolvimento
incorporando as diversas atividades territoriais. Como Abramovay (2002) formulou o
desenvolvimento territorial não pode apoiar-se apenas nos agricultores, mas enfrenta o desafio
de incorporar um conjunto de atores e organizações que nem sempre fazem parte do universo
de atuação dos que estão voltados especificamente para o fortalecimento da agricultura
familiar (p. 27).
No caso do Pronaf, ressalta-se que este processo de diversificação rural não vem
acontecendo. Também não está ocorrendo, para o Alto Uruguai, um planejamento do
desenvolvimento que transcenda os limites municipais onde os papéis das instituições
territoriais seriam fundamentais para tal empreendimento. Mesmo que no trabalho de campo
encontraram-se instituições que poderiam ser os “germes” emuladores de um processo de
desenvolvimento territorial como a Associação dos Municípios da Zona da Produção
(Amzop), o Conselho de Desenvolvimento do Médio-Alto Uruguai (Codemau) e os CMDRs,
estas instituições, continuam, em grande medida, a operar por setores de atividades
econômicas e, muitas vezes, com objetivos dispersos e fragmentados que não estimulam a
formação de redes territoriais e de contratos confiáveis entre atores sociais, agricultores
familiares e instituições de desenvolvimento (Abramovay, 2002).
No caso do Pronaf, os CMDRs seriam as instituições centrais ao processo de
desenvolvimento como demonstrou Abramovay (2002; 2003). Entretanto, o que se constatou
durante a pesquisa de campo é que cada Conselho de Desenvolvimento Rural possui as suas
ações referenciadas dentro de suas demandas municipais através de um elenco de prioridades,
problemas e alternativas rurais (quando existem) e que não levam em conta as demandas dos
outros municípios e do território como um todo
133
. Neste sentido, pode-se afirmar que não há
a formação de um consórcio ou de uma rede dos CMDRs por onde poderia ser articulado o
desenvolvimento rural e as demandas de todo o território como, por exemplo, para gerir ações
133
Na maioria dos municípios pesquisados os CMDRs não possuíam um plano de desenvolvimento rural
elaborado, bem como, os que possuíam este não passava de um amontoado de programas diversos como, por
exemplo, programa de fruticultura, de suinocultura, de bovinocultura de leite, etc todos dispersos dentro do
Conselho e sem um mínimo de “amarramento” a uma estratégia de desenvolvimento integrada do município.
Isso pode ser comparado ao que Abramovay (2002; 2003) chamou de um programa de desenvolvimento rural no
formato de uma “lista de compras”. Além disso, quando havia algum planejamento dos programas de
202
e trabalhos que visassem a diversificação multisetorial das economias e atividades produtivas.
Neste caso, o que se encontra é uma seara de pequenos trabalhos pulverizados em vários
órgãos, instituições e organizações sociais, mas não há, efetivamente, uma instituição que
coordene o desenvolvimento destas ações e iniciativas no território visando um processo de
desenvolvimento que poderia ser definido como multifacetado como se referiu Van der Ploeg
(2000).
No caso do Alto Uruguai, essa mudança seria interessante que fosse incorporada pelo
Pronaf, pois uma das principais constatações do trabalho de campo é a de que mesmo os
agentes de desenvolvimento e as instituições locais realizando ações de desenvolvimento rural
em seus municípios visando à diversificação rural, a inserção plural dos membros das famílias
nas atividades agrícolas e políticas locais de estímulo a agricultura familiar, estas ações
confinadas a esfera municipal não são suficientes para romper com o padrão de
desenvolvimento agrícola e setorializado que continua hegemônico no território. Sendo assim,
parece que uma política de cunho mais geral e ampla como o Pronaf pode, talvez, começar a
realizar esta transformação sócio-econômica e produtiva.
Com o intuito de mudar o enfoque do Pronaf, é importante considerar as mudanças em
sua arquitetura institucional no Governo Federal. A proposta territorial de desenvolvimento
parece que ganha algum espaço na estrutura do Ministério do Desenvolvimento Agrário
(MDA) com a criação da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT), como indicaram
Schneider et all (2004). Segundo o documento do MDA/SDT (2003) a opção pelo
desenvolvimento territorial deve ser a prioridade das políticas públicas e também se deve
compreender que uma nova ruralidade está se formando a partir das múltiplas articulações
intersetoriais que ocorrem no meio rural, garantindo a produção de alimentos, a integridade
territorial, a preservação da biodiversidade, a conservação dos recursos naturais, a valorização
da cultura e a multiplicação de oportunidades de inclusão (p. 4)
134
. Espera-se que esta nova
arquitetura institucional e estas novas orientações do MDA no que se refere ao
desenvolvimento rural dêem cabo de realizar as transformações que os espaços rurais mais
desfavorecidos e pobres necessitam como é o caso do Alto Uruguai e que consigam,
desenvolvimento rural que iriam ser implantados no munipio, estes sempre enfatizavam e se lastreavam no
fortalecimento da produção agropecuária como principal estratégia de estímulo à agricultura familiar.
134
Para ter uma idéia do escopo desta mudança institucional ver: Schneider (2004) e MDA/SDT (2003). No
documento do MDA/SDT (2003) o território é definido como: um espaço físico, geograficamente definido,
geralmente contínuo, compreendendo cidades e campos, caracterizado por critérios multidimensionais, tais como
o ambiente, a economia, a sociedade, a cultura, a política e as instituições, e uma população, com grupos sociais
relativamente distintos, que se relacionam interna e externamente por meio de processos específicos, onde se
pode distinguir um ou mais elementos que indicam identidade e coesão social, cultural e territorial (p. 19).
203
realmente, modificar as formas de inserção das famílias rurais nos diferentes tipos de
mercados que não o somente ligado a produção agropecuária.
Esta seção objetivou demonstrar o tipo de desenvolvimento que se gestou no Alto
Uruguai nas últimas décadas. Frente a isso, procurou-se desenvolver uma abordagem de como
o Pronaf poderia ser um instrumento de transformação sócio-econômica e produtiva deste
território. Elucidou-se que existem algumas mudanças que estão em curso, porém de uma
forma muito pouco significativa ainda. Na próxima seção se analisam algumas novas
modalidades de financiamento que o programa incorporou principalmente nos últimos dois
anos e se tenta verificar qual o real impacto destas na economia rural e nas atividades
produtivas dos agricultores. Também, se analisa até que ponto estas novas modalidades de
financiamento conseguiram gerar uma diversificação das estratégias de vivência dos
agricultores familiares.
4.3.2 – O Pronaf e a diversificação das estratégias de vivência.
Quando da sua elaboração, em 1996, o Pronaf era um programa muito pouco
diversificado em termos de modalidades de financiamento para a agricultura familiar. O
Pronaf Crédito de Custeio e de Investimento financiava, basicamente, o custeio agropecuário
tradicional de grãos e commodities agrícolas e alguma infra-estrutura nas propriedades
familiares
135
. Isso fez com que o programa inicialmente recebesse muitas críticas pelo seu
viés setorial e por muitos dos seus princípios norteadores estarem embasados numa lógica
produtivista como formulou Carneiro (1997) ou, em outros casos, por estar fortalecendo
apenas os agricultores mais integrados aos complexos agroindustriais e de maior inserção
mercantil como verificaram Abramovay e Veiga (1999), Andrade da Silva (1999) e Ferreira et
all (2001) principalmente na região Sul do país.
Isso fez com que o programa aos poucos fosse mudando as suas orientações, o seu
caráter e se diversificando no sentido de ampliar as atividades financiadas através da criação
de novas modalidades de financiamento principalmente na questão do Crédito de
Investimento. Porém, isso não se concretizou rapidamente. É apenas no Plano Safra
2003/2004 que o Pronaf dá uma verdadeira guinada nas suas modalidades de financiamento,
incorporando atividades até então não incluídas no programa, o que fez com que este, de cera
forma, se diversificasse programaticamente falando, pois em muitos casos, como é o do Alto
135
Além das outras duas linhas básicas do programa que são o Pronaf Infra-estrutura e o Pronaf Capacitação
Rural que não é o objetivo analisá-las na presente pesquisa.
204
Uruguai, esta diversificação das modalidades de Crédito de Custeio e de Investimento “ainda
está só no papel” como nos formularam os nossos informantes.
O Pronaf, atualmente, possui uma certa diversificação das modalidades de
financiamento de atividades econômicas muitas até com integração intersetorial que estão
contidas no chamado Plano Safra para a agricultura familiar. Contudo, esta diversificação, em
alguns casos, não está chegando à base dos agricultores familiares como se constatou no Alto
Uruguai. E, em outros casos, quando estas novas modalidades de financiamento são acessadas
pelos agricultores familiares não está havendo uma correta aplicação dos recursos como
estabelecem as diretrizes do programa.
Desde o Plano Safra 2003/2004 o programa vem operando com novas modalidades de
financiamento dentre as quais pode-se citar: Pronaf Alimentos (destinado à produção de
autoconsumo de cinco alimentos básicos que são a mandioca, o arroz, o feijão, o milho e o
trigo), Semi-Árido, Mulher, Jovem Rural, Pesca, Florestal, Agroecologia, Pecuária Familiar,
Turismo Rural, Máquinas e Equipamentos e o Pronaf Agregar
136
. Destas modalidades de
financiamento da agricultura familiar a grande maioria mantém o viés setorial de
financiamento as atividades ligadas a produção agropecuária, mas as modalidades como o
Pronaf Turismo Rural e o Pronaf Agroindústria são uma inovação e inauguram um novo
sentido das políticas públicas, acentuando o enfoque intersetorial integrando a agricultura com
o setor de prestação de serviços e de agregação de valor a produção agropecuária.
Entretanto, durante a pesquisa se encontrou poucos financiamentos de projetos de
agroindústrias familiares. Somente no município de Constantina esta atividade produtiva esta
sendo desenvolvida onde existe um programa municipal de incentivo a agroindustrialização
da matéria-prima e atualmente existem 12 agroindústrias familiares na área de leite, vegetais e
derivados de carnes, sendo que algumas destas foram viabilizadas, em partes, com os recursos
do Pronaf como demonstra a Tabela 20, já apresentada anteriormente.
Já no caso do Pronaf Turismo Rural não se encontrou nenhum projeto financiado no
território, demonstrando que esta nova modalidade de financiamento do programa está muito
timidamente tendo impacto sobre o desenvolvimento rural. Além disso, as demais
modalidades que visam fortalecer e, de certo modo, diversificar a atividade agropecuária
também são pouco operacionalizadas. No caso do Alto Uruguai foram encontrados projetos
de financiamento do Pronaf relevantes somente no caso do Pronaf Mulheres (190 contratos no
136
O Plano Safra 2004/2005 manteve as mesmas modalidades de crédito do Pronaf que o de 2003/2004 apenas a
modalidade Pronaf Agregar foi transformada em Pronaf Agroindústria. Para maiores informações ver: Pronaf
(2004).
205
município de Três Palmeiras) e do Pronaf Alimentos principalmente, que está sendo acessado
em todos os municípios, mas com muitos problemas de operacionalização e de aplicação dos
recursos que não estão de acordo com o seu objetivo principal que é o fortalecimento da
produção de autoconsumo.
Esta é uma das contradições do Pronaf, pois mesmo este fazendo a opção pelas
múltiplas atividades do espaço rural ele não está conseguindo, efetivamente, chegar através
das novas modalidades de financiamento, até a base dos agricultores familiares e de suas
organizações sociais ocasionando, assim, o não fortalecimento da diversificação das
estratégias de vivência como formulou Frank Ellis (2000). Isso é evidenciado através dos
relatos de dois entrevistados. No primeiro, um representante da agricultura familiar formula
que a diversificação do Pronaf em diferentes modalidades de financiamento “é só
propaganda” e que os agricultores estão “esperando que isso saia do papel”. No segundo
caso, um relato de um técnico da Emater ilustra que algumas das novas modalidades de
financiamento estão chegando até os agricultores, mas de forma muito pouco significativa não
gerando, assim, o fortalecimento que o Pronaf se propôs e nem a diversificação das estratégias
de vivência dos agricultores familiares.
Sem dúvida que estas novas linhas criadas de Pronaf elas são importantes para
a diversificação, para a produção de autoconsumo, enfim, é importante. Só
que isso é só propaganda, não existe nada de concreto, não existe nenhum
projeto se quer nesta linha. [...] Estamos esperando que isso saia do papel, se
sair do papel nós teremos resultados bastante importantes na nossa região para
a economia dessas famílias e dos municípios (Entrevista 6, 2004, C. A.,
Representante Sindical, MPA).
Nós temos o (Pronaf) Alimentos, que ele tem sido aplicado bastante no nosso
município. O Florestal de forma tímida alguns agricultores estão procurando,
mas não está tendo muita aceitação. O Jovem Rural pelo o que eu tenho de
conhecimento nós não fizemos nenhum. O Mulher algumas mulheres
financiam, mas não esses Pronaf que se destina a organização de mulheres. O
Agroecologia tem alguns projetos que foram acessados através do
Agroecologia. Máquinas e Equipamentos também se têm alguns projetos.
Pecuária Familiar é mais destinado para outras regiões [...]. E Turismo Rural a
gente tem tido procura. Florestal e Turismo Rural a gente tem tido procura,
mas assim muito tímido e não se tem uma vontade muito grande para
financiá-los. Basicamente aqui nós estamos trabalhando é Custeio,
Investimento, Rotativo e Alimentos (Entrevista 12, 2004, G. S., Engenheiro
Agrônomo, Emater).
Contudo, o mais contraditório deste processo de diversificação em curso do Pronaf é
que uma parcela dos atores sociais de desenvolvimento do Alto Uruguai atribui aos próprios
agricultores familiares a não diversificação efetiva do programa. O argumento central usado é
o de que são os agricultores familiares que “não tem consciência” e que “não são
206
empreendedores” para acessar as novas modalidades do programa. Quanto ao programa este é
visto sem maiores problemas operacionais e, neste sentido, a justificativa é de que o programa
está estruturado para diversificar as atividades produtivas e econômicas das famílias rurais,
porém são os agricultores que não estão buscando o acesso a estes novos financiamentos
públicos do Pronaf.
Estas concepções acerca do Pronaf são demonstradas nos relatos de um técnico da
Emater e de um presidente de CMDR. Observa-se, no primeiro relato, que o informante diz
que os agricultores é que não estão interessados em acessar as novas modalidades de
financiamento e que o escritório da Emater possui, inclusive, as normas do Pronaf caso estes
quisessem. No segundo relato, é também atribuído aos agricultores o pouco acesso aos novos
créditos do programa, justificando-se que “o pessoal não despertou para essas novas
atividades, para estas novas fontes de renda”.
Está chegando só que não foram acessados ainda, por falta de
empreendedorismo do agricultor. [...] O pessoal não está interessado. [...] É
um monte de linhas de financiamentos para atingir a todos. Nos mais diversos
(tipos), isso ai tem aqui, tem as normas se tu for ver no programa tem todas
essas linhas de crédito ai (Entrevista 7, 2004, J. C. G., Técnico em
Agropecuária, Emater).
Nós temos uma dificuldade muito grande em nível de município, o pessoal
não despertou para essas novas atividades, para estas novas fontes de renda.
Nós até em nível de Conselho discutimos bastante por que não fazer só que
nós temos bastante resistência em nível dos agricultores que não estão
conscientes daquilo que é importante para a própria família, para a
comunidade e para o próprio futuro dos filhos. Neste sentido nós estamos
bastantes atrasados (Entrevista 17, 2004, V. S., Representante Sindical,
CMDR).
Entretanto, ao longo da pesquisa de campo não foi isto o que se verificou. A não
diversificação das estratégias de vivência dos agricultores familiares pelo Pronaf se deve a um
conjunto muito variado de motivos. Em primeiro lugar, há de se considerar a história
produtiva do território que sempre foi centrada na produção agropecuária e que esta
concepção de desenvolvimento se reproduz até hoje entre os agricultores, instituições e
agentes de desenvolvimento. Em segundo lugar, o Pronaf, nos seus anos iniciais de
financiamento aos agricultores familiares, privilegiou as modalidades de financiamento que
visavam aumentar a produção de grãos e de commodities agrícolas, concepção esta que não se
modifica de uma hora para outra. Em terceiro lugar, há de se considerar que determinadas
atividades econômicas, talvez não possam ser viabilizáveis economicamente e nem terem um
mercado de consumo devido a não segmentação da demanda (Saraceno, 1994; 1996) e às
características inerentes ao território.
207
Por exemplo, o turismo rural, que no caso do Alto Uruguai não tem um mercado
consumidor, devido à baixa renda da população, a sua indiferenciação, etc. Também é
importante considerar que há uma falta generalizada de informações nos municípios com
respeito às novas modalidades de financiamento do Pronaf tanto em nível dos atores sociais
de desenvolvimento e instituições, mas principalmente entre os agricultores familiares o que
limita o acesso, a tomada e a operacionalização das novas atividades econômicas que o Pronaf
poderia gerar e também a diversificação das estratégias de vivência dos agricultores
familiares.
Em outros casos, os atores sociais de desenvolvimento formulam que o Pronaf
financia o autoconsumo por ele ser um programa que é muito diversificado em modalidades
de financiamento. Os mesmos citam as diversas modalidades de financiamento e por este
motivo procuram justificar a diversificação de atividades econômicas e produtivas dos
agricultores familiares, como que se o programa trouxesse implícito estas “novas”
modalidades e isso se tornasse realidade na base dos agricultores familiares e suas
organizações de uma forma linear e inequívoca. Ou seja, o programa sendo diversificado ele,
conseqüentemente, diversificaria as atividades produtivas e econômicas das unidades
familiares e a produção de autoprovisionamento alimentar, sendo que, em muitos casos, não
se realiza uma análise mais aprofundada do real impacto desta diversificação no território.
É o caso do Pronaf Alimentos que foi encontrado em todos os municípios pesquisados.
Esta modalidade de financiamento se destina a fortalecer a produção de autoconsumo através
do financiamento da produção de cinco produtos básicos que são o arroz, o feijão, a
mandioca, o milho e o trigo. Quando os atores sociais de desenvolvimento foram perguntados
sobre o real impacto do Pronaf em relação à produção de autoconsumo sempre citavam o
Pronaf Alimentos como positivo no fortalecimento desta, gerando aumentos reais de
produção. Esta modalidade de financiamento é muito acessada pelos agricultores familiares,
não tanto por estes fazerem uma opção aberta pelo fortalecimento da produção de
autoconsumo, mas sim por ser um crédito que possui equalização das taxas de juros sendo que
o juro é zero (0,0) e, por este motivo, é que o seu acesso é muito procurado entre os
agricultores. Contudo, ao mesmo tempo, é este o motivo que leva o Pronaf Alimentos a ser
aplicado incorretamente. Em alguns casos, se constatou que os atores sociais de
desenvolvimento e os escritórios municipais da Emater orientam os agricultores familiares a
acessarem esta modalidade do Pronaf e aplicá-la em atividades lucrativas, comerciais e nos
chamados cultivos dinâmicos de mercado deslocando, assim, os recursos da produção de
autoconsumo para cultivos e atividades lucrativas, fazendo com que a produção de
208
autoconsumo continue vulnerabilizada e mercantilizada na unidade de produção como se
demonstrou no capítulo 3.
Esta é uma outra contradição do Pronaf Alimentos, pois o que era para ser uma
política pública que servisse de “alavanca” para o fortalecimento do autoconsumo acaba
fazendo “mas de lo mismo” na feliz expressão de Schejtman e Berdegué (2003). Ou seja, o
Pronaf mantém a lógica de beneficiamento da produção mercantil e das atividades produtivas
dinâmicas. Nas entrevistas de campo se constatou este direcionamento dos recursos do Pronaf
Alimentos quando os atores sociais de desenvolvimento formularam que o Pronaf Alimentos
“virou um Pronaf normal”, numa alusão de que esta modalidade de financiamento em nada
se distingue das outras, pois continua a financiar as atividades tradicionais do território como
é o caso da suinocultura integrada, da produção de grãos e commodities e de outras atividades
econômicas mercantis. Por outro lado, em alguns casos, estes recursos nem chegam a ficar na
esfera da agricultura e são usados, pois são recursos “baratos” como os agricultores dizem por
não incidirem juros, em outros usos que nada tem a ver com a atividade agropecuária e nem
mesmo com a produção de autoconsumo.
Esta lógica do Pronaf Alimentos de fortalecer o agricultor familiar como se fosse um
Pronaf normal fica explícita no relato de um técnico da Emater. Note que o entrevistado
explora a principal contradição do Pronaf Alimentos que é a de ser um programa que visa
estimular o autoconsumo, mas na prática, na base dos agricultores familiares isso não vem
acontecendo. O entrevistado usa a seguinte expressão para argumentar este processo: “é claro
que tem uma lógica do ponto de vista teórica muito boa, mas na prática eu acho que não deu
grandes alterações na subsistência”.
[...] O Mais Alimento se desvirtuou muito. O Mais Alimento realmente ele
vem naquela lógica de tentar reforçar a subsistência, mas o que eu sinto no
Mais Alimento ainda é que na primeira vez que saiu aqui se desvirtuou muito.
Por que qual é o problema? [...] Ainda tem muito rolo nestas histórias,
desvios. Muito desvio do princípio de aplicação do Mais Alimento, por que o
agricultor quer investir o dinheiro naquilo que ele acha que é importante.
Então, por exemplo, o Mais Alimento não podia permitir outras coisas e ai foi
mudando, foi mudando e virou um Pronaf normal. Então eu ainda acho que, é
claro que tem uma lógica do ponto de vista teórico muito boa, mas na prática
eu acho que não deu grandes alterações na subsistência [...] (Entrevista 22,
2004, R. B., Engenheiro Agrônomo, Emater).
Neste final do capítulo pretende-se realizar uma breve retomada, mesmo que sucinta,
das principais considerações desenvolvidas até este momento da pesquisa e tentar estabelecer
a sua relação com as políticas públicas, notadamente o Pronaf. Como se demonstrou nos
últimos capítulos à produção de autoconsumo no Alto Uruguai se encontra mercantilizada e
209
vulnerabilizada na dinâmica das unidades familiares de produção. Esta constatação deve ser
tomada como um problema estrutural de tais unidades, que a partir dos anos de 1970
adentraram em um processo de fragilização das suas estratégias tradicionais de reprodução
social que eram acionadas no contexto do seu modo de vida colonial. Em partes, as políticas
públicas como o SNCR e a PGPM, que foram praticadas neste período histórico, também,
visaram, em alguma medida, mercantilizar e vulnerabilizar a produção de
autoprovisionamento das famílias rurais, pois estas possuíam como viés a busca crescente de
incrementos de produção das atividades produtivas comerciais e dinâmicas.
Neste sentido, cabe avaliar-se até que ponto as políticas públicas praticadas no Alto
Uruguai estão conseguindo transformar esta realidade social, econômica e produtiva? Para
tentar responde a este questionamento, trabalhou-se com uma hipótese de pesquisa que se
exprime na idéia de que as políticas públicas federais, especificamente o Pronaf, não têm
agido no sentido de fortalecer a produção de autoconsumo e a diversificação das estratégias
de desenvolvimento rural junto aos agricultores familiares do território.
No sentido de analisar até que ponto esta formulação se afirma se fazem necessários
dois comentários. O primeiro diz respeito à produção de autoconsumo e o segundo com
relação à diversificação das estratégias de vivência dos agricultores familiares. No caso da
produção de autoconsumo, pode-se dizer que o Pronaf gera um fortalecimento da produção de
alimentos próprios para alimentação das famílias rurais e, assim, em alguma medida gera
processos de segurança alimentar junto aos agricultores. Contudo, se faz necessário uma
ressalva. Este estímulo gerado junto à produção de autoconsumo é em menor grau do que o
gerado nas atividades dinâmicas e comerciais como no caso do cultivo de grãos e
commodities agrícolas. Neste sentido, pode-se dizer que o apoio ao autoconsumo é periférico
e secundário na dinâmica de desenvolvimento que está sendo estimulada pelo programa no
Alto Uruguai.
No que se refere ao Pronaf estar gerando um processo de diversificação das estratégias
de vivência Junto aos agricultores familiares, pode-se afirmar que o programa possui, em
alguma medida, uma ação via concessão de crédito rural, que visa estimular a diversidade
produtiva e econômica dos espaços rurais. Entretanto, o Pronaf não está conseguindo,
efetivamente, gerar um movimento em direção a diversificação produtiva, pois os principais
empreendimentos financiados estão ligados à produção de grãos e commodities agrícolas.
Mesmo quando ocorre um processo de diversificação, este é sempre setorial como no caso da
fruticultura e da produção de leite, mas nunca intersetorial ou multisetorial. Nesse sentido,
pode-se dizer que o programa está gerando uma pequena diversificação das estratégias de
210
vivência dos agricultores, mas que, em algumas atividades econômicas e produtivas, este
processo está sendo pouco significativo.
No próximo capítulo, dando seqüência a análise das políticas públicas e iniciativas
locais de desenvolvimento, estuda-se a ação dos atores sociais e instituições no sentido de
tentar compreender como as suas ações e trabalhos estimulam a produção de autoconsumo
para os agricultores familiares e para a população não agrícola do território. Tenta-se,
demonstrar que a produção de autoprovisionamento alimentar possui uma importância não
apenas para os agricultores familiares implicados em situações de insegurança alimentar como
já se demonstrou no capítulo 3, mas que o autoconsumo pode servir também para a
alimentação e reprodução social da população dos municípios.
Deste modo, no próximo capítulo, demonstra-se que as políticas públicas e iniciativas
locais possuem uma dupla lógica de ação. De um lado, elas incentivam as atividades
dinâmicas e comerciais dos agricultores familiares e que, na maioria dos casos, não geram a
segurança alimentar dos mesmos. Contudo, de outro lado, a região possui um conjunto
variado de iniciativas que também são significativas no fortalecimento da produção de
autoconsumo e na geração da segurança alimentar entre os agricultores familiares e, inclusive,
para o restante da população do território. É o caso da venda dos produtos dos agricultores
para o Programa Fome Zero e as experiências das “feiras da agricultura familiar”, nas quais a
agricultura familiar cumpre um papel muito importante no abastecimento local e na segurança
alimentar das demais populações.
211
CAPÍTULO 5:
ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO E SEGURANÇA
ALIMENTAR: qual caminho trilhar ?
O objetivo geral deste capítulo é o de demonstrar que no Alto Uruguai existem
políticas públicas e iniciativas locais de desenvolvimento que estimulam a produção de
autoconsumo dos agricultores familiares e que esta produção possui um papel importante no
abastecimento e na segurança alimentar das populações locais. Também se quer elucidar que
as políticas públicas e iniciativas locais, em alguma medida, possuem a sua ação voltada ao
fortalecimento do autoconsumo nas unidades de produção.
Como hipótese geral que se vai testar neste capítulo está a idéia de que as políticas
públicas e iniciativas locais de desenvolvimento não têm conseguido agir no sentido de apoiar
a produção de autoconsumo e a diversificação das estratégias de vivências e de
desenvolvimento junto aos agricultores familiares do Alto Uruguai.
Para realizar tal empreendimento, analisa-se primeiramente o tipo de desenvolvimento
que se gestou historicamente no território e demonstra-se que o mesmo está assentado na
produção agropecuária. Neste contexto, as estratégias de reprodução social dos agricultores
familiares estão voltadas aos auspícios do aumento da produção agropecuária e quase não
possuem atividades geradoras de renda com ligação intersetorial como no caso da
pluriatividade e das atividades não agrícolas que são pouco significativas. Demonstra-se,
também, que a agricultura familiar do território está numa “encruzilhada” histórica em termos
de sua reprodução social, por que a sua trajetória revela um aprofundamento do padrão
técnico-produtivo que já se persegue a mais de três décadas e cujos resultados são aqueles
apontados nos capítulos 1, 2 e 3 desta dissertação.
212
Como se demonstrou nos outros capítulos desta dissertação, em alguma medida, os
principais problemas estruturais da agricultura familiar estão relacionados ao processo de
mercantilização social e econômica desta forma social de produção e trabalho e ao padrão de
desenvolvimento agrícola que se gestou nas últimas décadas no Alto Uruguai. Dentre estes, se
destacou dois. O primeiro, que está relacionado a mercantilização do autoconsumo das
unidades de produção. E, o segundo, que se refere ao movimento pelo qual o
autoprovisionamento de alimentos foi vulnerabilizado nas famílias rurais. Estes dois
processos sociais fragilizaram a reprodução social e alimentar dos agricultores familiares da
região e são, em partes, responsáveis pelas situações de insegurança alimentar e de fome em
que uma parcela da população rural se encontra.
Porém, estas contradições que foram produzidas pelo desenvolvimento capitalista na
agricultura não entraram em cena sozinhas no Alto Uruguai. Esta fragilização geral das
condições de reprodução social e alimentar dos agricultores familiares foram um processo
cheio de ambigüidades, de disputas políticas e de mobilizações dos atores e organizações
sociais do território. Neste processo, o papel dos atores e organizações sociais foi decisivo no
sentido de exercer uma pressão política sobre as administrações públicas, sobre o Estado e
sobre as instituições que patrocinavam tal padrão de desenvolvimento.
Destaca-se o papel das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), da Igreja Católica, da
Comissão Pastoral da Terra (CPT), dos movimentos sociais, do sindicalismo rural e demais
organizações sociais que se mobilizaram contra as desigualdades sociais, a expulsão dos
agricultores dos espaços rurais e as conseqüências sociais e econômicas que tal padrão de
desenvolvimento gerava na região. Foi, destas pressões e lutas políticas, em grande medida,
que emergiram, anos mais tardes, as mudanças propostas naqueles anos de conjuntura
conturbada e de efervescência social da década de 80. Neste sentido, muitas das políticas
públicas e iniciativas locais que se vai analisar no presente capítulo são, em partes, frutos
destas mobilizações que fizeram com que muitas instituições, o Estado e as administrações
públicas reconhecessem as reivindicações emanadas destes atores sociais e as incorporassem
em seu ambiente e estrutura de trabalho
137
.
Não obstante estas mobilizações sociais dos agricultores e a encruzilhada histórica que
a agricultura familiar adentrou nas últimas décadas, mesmo assim, esta possui um papel muito
importante como geradora da segurança alimentar e do abastecimento local das demais
137
Reconhece-se o pioneirismo e a importância destas organizações e atores sociais que se mobilizaram no
sentido de se discutir um “novo modelo” de desenvolvimento para a região. Contudo, este tema não será
213
populações não agrícolas. No caso da segurança alimentar, demonstra-se que a agricultura
familiar age no sentido de assegurar uma alimentação com qualidade nutricional, em
quantidades suficientes e permanentes e, também, fornece um acesso e uma disponibilidade
de alimentos de acordo com os hábitos de consumo do território, assegurando e fortalecendo
as iniciativas locais de combate à insegurança alimentar e a fome que estão atualmente entre
as principais mazelas sociais do país (Maluf et all, 2004).
Isso é realizado pela análise de duas experiências. No caso da segurança alimentar,
mostra-se que a agricultura familiar é responsável pela geração de alguns dos princípios
norteadores da mesma, através da análise do Programa Fome Zero, no município de
Constantina, que executa a compra local de alimentos dos agricultores familiares e os distribui
para as famílias em situação de insegurança alimentar e de fome. Também, analisam-se as
iniciativas locais das “feiras da agricultura familiar” (que estão dispersas em vários
municípios), que são pequenas feiras municipais onde os agricultores vendem os seus
produtos agrícolas, o artesanato rural, os produtos transformados pela “agroindústria caseira”,
etc. No caso das feiras da agricultura familiar, demonstra-se que estas possuem uma
importância em termos de realizar o abastecimento local de alimentos e, também, de gerar a
segurança alimentar das populações não agrícolas. Tanto na primeira iniciativa analisada
como na segunda, salienta-se que é a produção de autoconsumo que está sendo
comercializada pelos agricultores e gerando a segurança alimentar e o abastecimento local das
demais populações do Alto Uruguai.
Entretanto, para o estudo destas duas iniciativas locais é importante uma ressalva.
Nesta análise, não se estuda o papel da produção de autoconsumo do ponto de vista dos
agricultores familiares. Neste sentido, a análise empreendida com relação a estas duas
iniciativas, focaliza a produção de autoconsumo e o seu papel para a geração da segurança
alimentar para as demais populações do Alto Uruguai e não para os agricultores familiares
como já se realizou no capítulo 3. Verifica-se, também, com a análise do Programa Fome
Zero e o caso das feiras da agricultura familiar que é a partir do autoconsumo não
vulnerabilizado e mercantilizado nas suas unidades de produção, que os agricultores
familiares do Alto Uruguai conseguem gerar e “criar” novas estratégias de vivência, como
bem formulou Frank Ellis (2000).
Por fim, neste capítulo, analisam-se as políticas públicas e iniciativas locais de
desenvolvimento do Alto Uruguai, tentando-se estabelecer os vínculos destas com os
focalizado na presente dissertação. Remete-se o leitor a alguns autores que já o enfocaram para o caso do Alto
Uruguai como: Navarro (1996), Gorgen (1998) e Piran (2001).
214
processos de fortalecimento do autoconsumo familiar e de geração da segurança alimentar
para os agricultores
138
. Mostra-se, que as mesmas possuem uma dupla lógica de ação junto às
famílias rurais. Neste sentido, por um lado, estas políticas e iniciativas locais agem no sentido
de estimular os processos de desenvolvimento da produção de autoconsumo nas unidades de
produção e, desse modo, em grande medida, geram a segurança alimentar das famílias rurais.
Contudo, por outro lado, há um número, não desprezível, de ações que são totalmente
contrárias a este processo, agindo no sentido de vulnerabilizar e mercantilizar o autoconsumo
familiar e, assim, conseqüentemente fragilizar as ações que assegurariam o surgimento da
segurança alimentar junto aos agricultores familiares mais vulneráveis em sua reprodução
social e alimentar.
Inicia-se a análise com o estudo dos principais impactos sociais e econômicos gerados
pelo processo histórico de desenvolvimento agrícola e setorial do Alto Uruguai. Nesta seção,
pretende-se demonstrar que a reprodução social das famílias rurais está cada vez mais
dependente da via agrícola de desenvolvimento e que as condições objetivas de reprodução
dos agricultores se encontram cada vez mais fragilizadas.
5.1 – Os impactos sociais e econômicos do desenvolvimento agrícola no Alto Uruguai.
O objetivo desta seção, é o de demonstrar que no Alto Uruguai é o padrão de
desenvolvimento agrícola que é dominante e hegemônico. Pretende-se mostrar também, que o
processo histórico de desenvolvimento do Alto Uruguai é marcado por um viés setorial e
agrícola muito significativo. Neste sentido, elucida-se que no Alto Uruguai não há um
processo de desenvolvimento rural, mas sim um aprofundamento do padrão de
desenvolvimento agrícola como bem demonstrou Conterato (2004). Na presente pesquisa, o
desenvolvimento rural é entendido como um processo multiator, multinível e multifacetado,
tal como definido por Van der Ploeg (2000, p. 391), no qual não só a agricultura possui uma
importância na reprodução social das famílias rurais, mas sim as demais atividades não
necessariamente ligadas a esta e, principalmente, a diversificação das livelihood como
formulou Ellis (2000)
139
.
138
Entendem-se como políticas públicas e iniciativas locais às ações e trabalhos de instituições como as SAMs,
as prefeituras municipais, os escritórios municipais da Emater, as cooperativas de produção agropecuária, as
organizações de representação da agricultura familiar como o MPA, a Fetag, a Fetraf-Sul, etc, o Codemau, os
CMDRs e outras instituições locais que agem no âmbito do desenvolvimento dos espaços rurais do Alto
Uruguai.
139
Para ver uma diferenciação conceitual entre desenvolvimento agrário, rural, agrícola e local ver o artigo de
Navarro (2001).
215
O que se verifica no Alto Uruguai é um processo de aprofundamento do padrão
agrícola de desenvolvimento, onde as atividades econômicas e produtivas dos agricultores
familiares não estão sendo diversificadas, mas sim estreitadas através da inserção mercantil
via a produção de grãos e commodities, integração aos CAIs, através da especialização
produtiva e da vulnerabilização do autoconsumo familiar. Neste processo histórico de
desenvolvimento agrícola, a agricultura familiar cada vez mais fragilizada, se encontra em um
processo constante de empobrecimento, de solapamento das suas estratégias de reprodução
social e principalmente de mercantilização do consumo familiar.
Como formulou Conterato (2004) a agricultura do Alto Uruguai parece ter
desempenhado com grande êxito as funções que lhe foram atribuídas, pois a partir da década
de 1960, a produção de alimentos, principalmente grãos como trigo, soja e milho se
intensificou na região, sustentada pela utilização de insumos industriais. Além da produção de
alimentos baratos, se intensifica um fluxo migratório rural-urbano, caracterizando o êxodo
rural, tornando o Alto Uruguai uma região de expulsão demográfica. Isso se explica, em parte,
pelo caráter extremamente seletivo da modernização da agricultura, que privilegiou a
produção de alimentos exportáveis e de produtores melhor estruturados, tornando a região um
celeiro produtivo, mas de intensa migração (p. 75).
Como o autor se referiu, foi o processo de desenvolvimento capitalista na agricultura,
em grande medida, que gerou este tipo de desenvolvimento que é por definição desigual e
excludente nas formas sociais de produção e trabalho. Neste processo, alguns agricultores se
estruturaram com mais meios de produção, internalizaram o progresso tecnológico nas suas
unidades de produção, se inseriram em nesta dinâmica gerada a partir dos anos 70 e, assim,
ascenderam social e economicamente. Este processo pode ser compreendido pelo conceito de
estratégias de adaptação de Ellis (2000). Desse modo, estes agricultores se adaptaram ao
ambiente social e econômico mercantilizado e conseguiram retirar deste as suas necessidade
de consumo e ainda produzirem excedente apreciáveis para a venda. Já, em outros casos, o
desenvolvimento agrícola e a sojicização da agricultura familiar expulsaram a grande maioria
da população do território desde a década de 70, onde muitos agricultores lançaram-se e,
ainda estão utilizando-se até atualmente, de estratégias de reação ao empobrecimento rural, a
vulnerabilização do autoconsumo e a sua situação de insegurança alimentar (Ellis, 2000).
Este viés agrícola do desenvolvimento do Alto Uruguai já havia sido diagnosticado
por outros autores. É o caso de Conterato (2004) em recente estudo na região verificou que a
dinâmica de desenvolvimento hegemônica pose ser caracterizada pela predominância da
produção agropecuária e por uma fragilização geral das condições de reprodução social das
216
famílias devido, em partes, a sua inserção mercantil via o cultivo de grãos e commodities
agrícolas, principalmente a soja, o milho, o trigo, o fumo, etc. Para demonstrar esta dinâmica
de desenvolvimento, em seguida, destacam-se alguns dados que demonstram a concordância
com o que o autor explicitou.
Esta dinâmica pode ser elucidada quando se analisam alguns dados sobre as atividades
produtivas e econômicas desenvolvidas pelas famílias. Como demonstrou Conterato (2004), o
Alto Uruguai é uma região onde as estratégias de reprodução social enfatizam a via agrícola
do desenvolvimento, pois a grande maioria das famílias possui a suas fontes de renda e de
manutenção social ligadas as atividades de produção agropecuária (66,1%). Já as famílias
pluriativas (15,3%) e de pluriatividade de base agrária (18,6%) assumem percentuais bastante
reduzidos se comparados as primeiras
140
. Desse modo, a não inserção plural dos membros das
famílias rurais em um conjunto de atividades diversificadas setorial e intersetorialmente, em
grande medida, é o que pode estar levando a agricultura familiar a um processo de
“estreitamento” das condições objetivas em que se desenvolve a sua reprodução social.
Este processo de fragilização da agricultura familiar do Alto Uruguai fica mais nítido
quando se analisa a composição da renda total das famílias. Neste sentido, a grande maioria
das famílias possui a renda agrícola como principal estratégia manutenção familiar,
totalizando 72,95% da renda total das unidades de produção e demonstrando a grande
relevância que possui a produção agropecuária para as mesmas. Em segundo lugar, está a
renda de aposentadorias e pensões rurais que figuram com um montante de 15,32% da renda
total. Em seguida, tem-se a renda advinda das atividades não agrícolas com 6,62% da renda
total e as rendas de outros trabalhos com 4,33% e, por fim, as rendas de outras fontes
compondo 0,78% da renda total das famílias. Estes números reafirmam, mais uma vez, a
importância das estratégias de reprodução social da agricultura familiar lastreadas na
produção agropecuária, onde a renda agrícola assume um montante muito significativo
totalizando quase 73% das possibilidades de ganhos econômicos dos agricultores familiares.
Neste sentido, a importância que assume a agropecuária na vida econômica dos
municípios do Alto Uruguai pode ser visualizada pelos dados da Tabela 23, onde consta o
Valor Adicionado Bruto (VAB) para cada um dos grandes setores econômicos para alguns
municípios selecionados. Pelos dados da Tabela 23, se pode constatar a grande relevância que
140
Por pluriatividade se entende o processo de inserção plural dos indivíduos (pelo menos um indivíduo da
família) das famílias rurais em um mercado de trabalho que possua ligação entre a agricultura e outro setor
econômico, ou seja, com ligação intersetorial. Já a pluriatividade de base agrária é definida como a inserção
plural dos membros das famílias rurais em atividades ligadas à agropecuária como prestação de serviços de
217
assume a agropecuária e o setor de serviços nos municípios. No caso da agropecuária, esta é
responsável pela geração de 40 a 50% do VAB na grande maioria dos municípios, com
exceção de Frederico Westphalen, onde o setor industrial é um pouco mais desenvolvido.
Também, se pode notar, o pouco desenvolvimento dos setores da indústria e do comércio
comparativamente ao agropecuário e ao de serviços. Estes dados só confirmam os dados que
se apresentou anteriormente sobre a composição da renda total e da inserção profissional das
famílias rurais, pois onde a atividade agropecuária é a principal forma de geração de riquezas,
já que se não há um desenvolvimento mais significativo dos setores da indústria e do
comércio, não há como se formar um mercado de trabalho urbano-industrial que absorvesse
os excedentes populacionais rurais da região e, tampouco, há como surgir processos
endógenos de desenvolvimento da pluriatividade e de atividades não-agrícolas com ligação
intersetorial.
Tabela 23: Valor Adicionado Bruto (VAB) a preços básicos, por setor de atividade
econômica, em alguns municípios selecionados do Alto Uruguai do Rio
Grande do Sul.
Serviços
Município
Ano
Agropecuária
(%)
Indústria
(%)
Comércio
(%)
Demais
serviços (%)
VAB
total
Constantina 1996 38,94 2,46 8,30 50,31 100,00
2001 37,02 2,52 10,65 49,80 100,00
1996 54,86 0,47 1,20 43,47 100,00
Caiçara
2001 58,69 0,51 0,87 39,93 100,00
1996 16,82 25,77 11,62 45,79 100,00Frederico
Westphalen
2001 27,52 8,83 12,25 51,40 100,00
1996 37,75 1,11 4,31 56,83 100,00
Irai
2001 47,37 0,67 2,12 49,84 100,00
1996 46,49 2,32 3,08 48,10 100,00
Palmitinho
2001 48,23 2,61 1,92 47,23 100,00
1996 46,27 0,80 12,12 40,81 100,00Taquaruçu do
Sul
2001 51,10 0,37 7,53 40,99 100,00
1996 44,56 0,23 5,28 49,93 100,00
Três Palmeiras
2001 51,54 0,39 6,40 41,68 100,00
1996 44,74 0,19 1,56 53,51 100,00
Vista Alegre
2001 50,71 1,80 1,61 45,88 100,00
Fonte: FEE/Núcleo de Contabilidade Social (2001).
Porém, o mais paradoxal e contraditório deste processo é que os próprios agricultores
revelam um alto grau de satisfação com relação à atividade agrícola e ao “meio” rural em que
máquinas, contratação de força de trabalho por outro agricultor, beneficiamento da produção, etc que não possui
ligação intersetorial. Para uma melhor exposição destes conceitos consultar Conterato (2004).
218
vivem. Como demonstrou Conterato (2004), a grande maioria dos agricultores mesmo
possuindo precárias condições de vida e trabalho e grande relevância das rendas agrícolas nas
suas estratégias de reprodução se autodefinem como muito satisfeitos (15,3%) e satisfeitos
(72,9%) com relação à atividade agrícola. Quando perguntados sobre a satisfação em relação
ao “meio” rural, também, as respostas não foram diferentes, sendo que 28,8% dos agricultores
se definem como muito satisfeitos e 69,5% como satisfeitos com o “meio” rural em que
vivem (a tranqüilidade do “meio” rural, o convívio com os vizinhos, o contato com a
natureza, a produção de alimentos, etc são considerados importantes pelas famílias). Ou seja,
mesmo o processo de desenvolvimento agrícola sendo extremamente desigual e excludente,
as famílias rurais do ponto de vista da sua reprodução social continuam a enfatizar que as
estratégias postas em prática via aumento da produção agropecuária é a forma mais viável de
assegurar a sua reprodução social e o bem estar da família.
Os efeitos deste padrão de desenvolvimento sobre algumas culturas para autoconsumo,
em alguns municípios selecionados do Alto Uruguai, pode ser visualizado na Tabela 24. Neste
sentido, a Tabela 24 demonstra o aumento de produtividade de algumas culturas típicas de
mercado e outras destinadas ao autoconsumo (culturas com a “marca” da alternatividade
produtiva) das famílias. Pelos dados da Tabela 24, se pode notar que o padrão de
desenvolvimento agrícola foi extremamente seletivo e desigual em termos do tipo de impacto
que gerou nos índices de produtividade física das culturas de autoconsumo e mercantil, pois o
que houve foi um aumento destes índices nas culturas que possuíam uma “função” comercial
mais significativa como a soja, o milho e o fumo. Este processo ocorreu em detrimento, da
produção de autoconsumo representada pelo feijão e pela mandioca, demonstrando que o
processo de mercantilização da agricultura familiar privilegiou alguns cultivos e secundarizou
outros na dinâmica das unidades de produção.
Como exemplos típicos deste processo pode-se analisar a produtividade física da soja
como típico produto comercial e da mandioca como produto de autoconsumo. A primeira teve
aumentos de produtividade física elevados desde os anos de 1970. No município de Caiçara
esta passou de 15,67 sacos/ha em 1970 para 26,91 em 1995/96; em Frederico Westphalen
passou de 15,07 para 25,6 sacos/ha; em Irai de 18,81 para 26,8 sacos/ha e, em Palmitinho de
13,69 para 13,94 sacos/ha mantendo-se neste município praticamente no mesmo patamar de
1970 a 1995/96. No caso da mandioca, esta experimentou um movimento contrário ao da
soja, já que a sua produtividade física foi diminuída desde os anos de 1970. No município de
Caiçara esta passou de 1.5073,61 Kg/ha em 1970 para 7.566,92 em 1995/96; em Frederico
Westphalen passou de 7.566,92 Kg/ha para 4.816,82; em Irai passou de 1.0707,05 Kg/ha para
219
3.289,23 e, em Palmitinho passou de 15.353,27 kg/ha para 11.757,1 no mesmo período de
tempo. O que estes dados da Tabela 24 demonstram, é que o padrão de desenvolvimento
agrícola centrou seus esforços no aumento da produtividade física dos chamados cultivos
dinâmicos, rentáveis e de fácil inserção mercantil e vulnerabilizou os de autoconsumo que
possuem uma importância na segurança alimentar da agricultura familiar como já se
demonstrou no capítulo 3.
Tabela 24: Produtividade de algumas culturas para autoconsumo e para venda em
alguns Municípios selecionados do Alto Uruguai do Rio Grande do Sul.
Feijão
(1ª e 2ª
safra)
Fumo Mandioca Milho Soja
Municípios Censos
Produtivi-
dade (sc/ha)
Produtivi-
dade
(arobas/ha)
Produtivi-
dade
(Kg/ha)
Produtivi-
dade (sc/ha)
Produtivi-
dade (sc/ha)
1970 13,39 - 15073,61 23,13 15,67
1975 16,06 53,93 13595,95 21,99 21,89
1980 11,19 42,76 13676,3 29,01 16,6
1985 9,4 54,72 10817,12 33,44 25,54
Caiçara
1995/96 11,13 71,4 7566,92 36,09 26,91
1970 15,2 - 13973,41 24,81 15,07
1975 17,02 73,19 10880,59 23,01 18,44
1980 10,29 42,5 10862,44 27,83 15,72
1985 8,73 52,02 12870,19 28,65 22,07
Frederico
Westphalen
1995/96 10,08 76,64 4816,82 36,17 25,6
1970 13,35 - 10707,05 27,24 18,81
1975 16,76 58,5 13811,62 33 23,42
1980 15,46 46,24 13392,24 36,49 21,05
1985 9,59 53,92 12739,54 31,2 22,37
Irai
1995/96 17,51 70,65 3289,23 33,9 26,8
1970 8,08 - 15353,27 26,03 13,69
1975 10,77 60,71 13161,49 22,62 19,98
1980 6,88 44,08 19545,71 27,34 17,84
1985 7,61 63,26 12963,61 28,27 21,38
Palmitinho
1995/96 8,34 77,96 11757,1 24,48 13,94
Fonte: Censos Agropecuários do IBGE de 1970, 1975, 1980, 1985 e 1995/96.
- Dados não disponíveis
Dentro deste padrão de desenvolvimento agrícola e setorial as principais atividades
produtivas que são responsáveis, em grande medida, pela vulnerabilização e pelo
deslocamento espacial e temporal da produção de autoconsumo são a produção de grãos e
commodities agrícolas com destaque para a soja, o milho, o trigo, etc e a integração
220
agroindustrial com marcante presença dos CAIs da suinocultura, fumicultura e da avicultura
com integração vertical
141
. São estas atividades produtivas, principalmente, que são, em
partes, as responsáveis pela mercantilização do autoconsumo familiar como já se demonstrou
com o caso da soja no capítulo 3. Elas fazem com que o agricultor entre num processo de
especialização produtiva e de inserção mercantil, fazendo com que os mesmos voltem as suas
estratégias de reprodução social a poucas atividades produtivas, rentáveis e que possuem um
mercado garantido e seguro. São estas as principais estratégias de reprodução social dos
agricultores do Alto Uruguai e, são também, a expressão máxima do padrão de
desenvolvimento agropecuário do território gestado desde os anos de 1970.
O objetivo desta seção foi o de demonstrar um panorama geral, mesmo que
sucintamente, das condições em que está acontecendo a reprodução social dos agricultores
familiares do Alto Uruguai. Também, se pretendeu caracterizar o padrão agrícola de
desenvolvimento desta região. Na próxima seção, ainda neste sentido, para elucidar melhor
este padrão de desenvolvimento, desenvolve-se uma abordagem em torno das migrações que
ocorreram e, ainda ocorrem, no Alto Uruguai. Entende-se que as migrações são um bom
indicador das contradições sociais que o padrão de desenvolvimento capitalista da agricultura
gerou no território que se caracteriza, principalmente, por ser um local de expulsão
demográfica.
5.2 – As migrações no território do Alto Uruguai.
O principal indicador das contradições do processo de desenvolvimento capitalista na
agricultura familiar do Alto Uruguai pode ser auferido através das migrações. Este território é,
historicamente, conhecido como um local de expulsão populacional e gerador de fluxos
migratórios para outras regiões do estado e mesmo para forma do mesmo. O processo de
migração do território, em grande medida, é fruto do processo de modernização da agricultura
e sua conseqüente mercantilização social e econômica das unidades de produção familiares.
Foi a penetração do progresso tecnológico e a especialização produtiva dos agricultores, em
partes, especialmente com o plantio da soja, que desempregou a força de trabalho do Alto
Uruguai e incrementou os fluxos migratórios em direção aos centros urbanos.
Este processo de migrações fica evidenciado nos relatos de um agrônomo da Emater e
de um representante da agricultura familiar. No primeiro caso, o entrevistado faz a ligação do
141
Para uma caracterização dos CAIs, principalmente da suinocultura ver Altmann (1997) e Plein (2003), já que
não é o objetivo desta dissertação analisar mais aprofundadamente estas atividades produtivas.
221
processo mais amplo de transformações da base técnica produtiva com a ocorrência das
migrações, formulando que o objetivo desta era o de “liberar mão de obra”. No segundo
relato, o informante formula que os agricultores foram “iludidos” neste processo e que,
muitos, tiveram que deixar os espaços rurais devido a quererem “comprar tudo o que o
mercado oferece” e cita, por exemplo, o uso de tecnologias que não eram adequadas para os
agricultores familiares como um dos motivos das migrações.
[...] A modernização da agricultura que ela cumpriu um papel dela que eles
queriam o que? Liberar mão de obra se tu for olhar o êxodo rural o Alto
Uruguai foi uma região que liberou mão de obra violentamente o que
aconteceu é que a cidade não conseguiu absorver. E ainda libera se tu fores
ver a piazada estão todos em restaurantes trabalhando em São Paulo por que é
oportunidade de vida [...] (Entrevista 22, 2004, R. B., Engenheiro Agrônomo,
Emater).
A gente sabe que muitos agricultores foram embora. Por que? Por que se
iludiram de comprar tudo o que o mercado oferece e aquilo que o mercado
oferece hoje nem sempre é o melhor, oferece por que tem para vender,
tecnologia que às vezes não é adequada, adaptada para a pequena propriedade
e às vezes você vê desilusão [...] (Entrevista 19, 2004, A. L., Agricultor
familiar, Coopac).
Este processo de migrações no Alto Uruguai pode ser visualizado no Gráfico 2, que
mostra a evolução da população total, rural e da população urbana. Verifica-se que a
população rural é a que possui uma queda mais acentuada principalmente a partir da década
de 70 onde se inicia o processo de modernização da agricultura, levando a conclusão de que
quem mais sofreu o processo de migração foram e estão sendo os agricultores familiares
142
. A
população total também apresenta uma queda significativa, mas bem menor do que a rural,
demonstrando que a região não se embuiu de um processo de desenvolvimento capaz de
realizar a fixação da população na própria dinâmica de desenvolvimento territorial. A
população urbana, por sua vez, é a única que apresenta um crescimento positivo,
demonstrando uma certa expansão e absorção da força de trabalho nas cidades da região,
porém, esta absorção não foi suficiente para sustar os intensos fluxos migratórios advindo dos
espaços rurais.
Quanto às razões que levam os agricultores familiares à migração a principal é o
acesso à educação e ao mercado de trabalho (56,5%) como estratégias de continuar a sua
reprodução social, como mostra a Tabela 25. Questões associadas a melhores condições de
saúde e de atendimento, também figuram como importante com 21,7% das respostas e, a
142
Dentre as pessoas do território são os mais jovens os que mais utilizam o recurso das migrações como
estratégia de reprodução social. De acordo com os Censos Demográficos do IBGE os jovens até os 29 anos de
222
baixa remuneração do trabalho agrícola (baixas rendas e o quadro de pobreza rural do Alto
Uruguai) figura também como importante para ativar as migrações em 17,4% dos membros
das famílias pesquisadas. Outros motivos são responsáveis por apenas 4,3% das repostas dos
agricultores. Estes dados demonstram ser o padrão de desenvolvimento agrícola calcado na
mercantilização da reprodução social dos agricultores familiares, em partes, o principal
responsável pelas migrações do território para outras localidades
143
.
Gráfico 2: Evolução da população total, urbana e rural na Microrregião de Frederico
Westphalen nos anos de 1970, 1980, 1991 e 2000.
0
50.000
100.000
150.000
200.000
250.000
1970 1980 1991 2000
Rural Urbana Total
Fonte: Censos Demográficos do IBGE (1970; 1980; 1991; 2000).
Tabela 25: Principais razões que levam os membros da família a migrar segundo os
agricultores familiares de Três Palmeiras.
Razões que impulsionam a migração Nº de casos % sobre os válidos
Acesso à educação e mercado de trabalho 13 56,5
Questões associadas à saúde 5 21,7
Baixa remuneração do trabalho agrícola 4 17,4
Outros 1 4,3
Fonte: Pesquisa AFDLP – CNPq/ UFPel /UFRGS, 2003.
idade totalizam um percentual de -67,7% das pessoas que migram na região estando, assim distribuídos: de o a 9
anos: -34,7%; de 10 a 19 anos: -3,2% e; de 20 a 29 anos: -29,8%.
143
Como formulou Garcia Jr. (1989) é típico da situação social do campesinato a migração para outros locais
para continuar executando, em outros mercados de trabalho, a sua reprodução social, pois a família camponesa é
intrinsecamente incapaz de absorver internamente todos os seus membros nas ocupações produtivas que
desenvolve e nas pequenas áreas de terra que possui. Porém, o pior desta situação social é a de que a grande
maioria dos agricultores familiares e seus filhos jovens que migram é a de que não conseguem ascender de
classe social como formulou Martins (2003) e executar a sua reprodução social de forma ampliada. Esta é uma
das grandes contradições sociais que o desenvolvimento capitalista promoveu e, promove, na agricultura familiar
do Alto Uruguai.
223
O objetivo desta seção foi o de demonstrar, resumidamente, que o Alto Uruguai é um
local de intensos fluxos migratórios desde os anos de 1970, quando se iniciaram as
transformações técnicas-produtivas e econômicas nesta região. Na próxima seção, mostra-se
que os impactos sociais e econômicos deste padrão de desenvolvimento agrícola que
predomina no Alto Uruguai parecem serem notórios e evidentes. Contudo, talvez se possa
atribuir a estes mesmos efeitos e conseqüências a origem de um conjunto de iniciativas locais
que caminham na contramão do processo hegemônico e que tem como objetivo instaurar e
retomar ações que visam garantir a segurança alimentar dos agricultores e do restante das
populações vulneráveis e empobrecidas.
Neste sentido, nas próximas seções analisa-se o papel que a produção de
autoprovisionamento alimentar possui na geração de processos de segurança alimentar e de
abastecimento local das populações não agrícolas da região. A primeira iniciativa local
analisada é a das compras de produtos da agricultura familiar através do Programa Fome
Zero, do Governo Federal, no município de Constantina, no Alto Uruguai. A segunda
iniciativa analisada, diz respeito ao papel das “feiras da agricultura familiar”
144
na geração de
processos de abastecimento local nos municípios e na segurança alimentar das populações
urbanas. Inicia-se a análise com o estudo do Programa Fome Zero.
5.3 – O PAPEL DA AGRICULTURA FAMILIAR PARA A SEGURANÇA
ALIMENTAR.
5.3.1 – A agricultura familiar como geradora da segurança alimentar: o caso do
Programa Fome Zero.
Nesta seção, analisa-se a compra de alimentos de autoconsumo dos agricultores
familiares pelo Programa Fome Zero, no município de Constantina, no Alto Uruguai
145
.
144
Usamos a denominação de “feiras da agricultura familiar” para unificar a nomenclatura dos diversos tipos de
feiras que encontramos durante o trabalho de campo. Foram encontradas desde feiras ecológicas, feiras do
produtor, feiras da agricultura familiar e feiras de produtos coloniais.
145
A escolha do município de Constantina se deveu, em primeiro lugar, por ser este um local onde a agricultura
familiar é predominante enquanto forma de produção e trabalho nos espaços rurais. Em segundo lugar, pela
relevância que se acha que há em se estudar a compra de alimentos que o Programa Fome Zero está realizando
neste local, dada as poucas pesquisas realizadas sobre o tema e o ainda embrionário impacto desta política
pública. E, em terceiro lugar, por ser este município um local onde as estratégias de reprodução social dos
agricultores familiares estão passando por um processo de diversificação rural, apoiados em instituições e
organizações sociais fortes e inovadoras em termos de como gerar novos processos de desenvolvimento rural.
Este último motivo faz com que o município seja reconhecido como uma referência de desenvolvimento rural
pelos outros do Alto Uruguai. Ele, também, é um pouco destoante em termos de características da sua agricultura
224
Reconhece-se que havia outras iniciativas, em outros municípios, que seriam importantes de
serem estudadas, porém escolheu-se esta para ilustrar o seu impacto sobre o autoconsumo e
também para analisar como a produção de autoprovisionamento pode cumprir um papel
importante como geradora da segurança alimentar da população local. Trata-se, assim, de um
estudo de caso, pois esta experiência de compras públicas da produção dos agricultores
familiares é limitada a um município do Alto Uruguai.
O objetivo perseguido nesta seção é o de demonstrar que a agricultura familiar do Alto
Uruguai (particularmente a de Constantina), possui um papel importante no fornecimento de
alimentos básicos de consumo para as demais populações do município. Neste sentido, quer-
se mostrar que a mesma é fundamental para que possa ocorrer à geração de processos de
segurança alimentar nos locais em que esta forma de produção social e de trabalho é
hegemônica nos espaços rurais. Assim, quer-se elucidar que a agricultura familiar além de
contribuir para o desenvolvimento da região do Alto Uruguai, ela também contribui para a
reprodução social e alimentar da população não agrícola.
A experiência que se analisa surge dentro de um debate mais amplo sobre segurança
alimentar e nutricional que emergiu na década de 90 e início deste século no Brasil. Neste
sentido, pode-se dizer que o auge destes debates e discussões foi alcançado mediante a criação
do Programa Fome Zero pelo Presidente da República Luis Inácio Lula da Silva, em Janeiro
de 2003, como principal programa e política pública na área de inclusão social e geração de
renda as famílias desempregadas, em insegurança alimentar e em situações de
vulnerabilização da sua reprodução social. Este programa constitui-se em uma inovação nas
políticas de segurança alimentar praticadas até então, pois não se propõe a medidas paliativas
e de curto prazo somente, mas a transformações de cunho estrutural, de inclusão social e
geração de renda as famílias necessitadas e em situações de inanição alimentar
146
. Como o
Projeto Fome Zero (2001) definiu que o seu objetivo seria o de [...] incorporar ao mercado de
consumo de alimentos aqueles que estão excluídos do mercado de trabalho e/ou que têm
renda insuficiente para garantir uma alimentação digna a suas famílias.
familiar local o que aumenta a heterogeneidade e a diversidade de análise da realidade social estudada no Alto
Uruguai, o que, de certa forma é bom, pois o conceito de território ao qual trabalha-se na presente dissertação,
pressupõe também uma não homogeneidade de situações sociais, produtivas, econômicas e, sobretudo, de
relações sociais de poder desiguais.
146
As políticas de segurança alimentar da população brasileira sempre foram paliativas e com um foco muito
forte em termos de assistencialismo aos “pobres” e menos favorecidos. O maior exemplo disso, era o processo de
distribuição de cestas básicas no âmbito do extinto Programa Comunidade Solidária. Este programa privilegiava
a distribuição pontual de alimentos e não continha em sua formulação um conjunto de medidas a longo prazo,
que viessem de encontro a geração de renda e a inclusão social das famílias e indivíduos desfavorecidos
econômica e socialmente.
225
Esta guinada das políticas de combate à fome e a insegurança alimentar em um de seus
eixos principais de ação visa o fortalecimento da agricultura familiar e da produção de
autoconsumo, para que esta possa responder em termos de gerar uma produção de alimentos
para sanar os problemas de deficiência produtiva, de fome da população local, de produção
com baixa qualidade, acesso debilitado pelos indivíduos que são demandantes destes
alimentos (Projeto Fome Zero, 2001). Este mudança das políticas de segurança alimentar está
se consolidando no município de Constantina, no Alto Uruguai, onde o Programa Fome Zero
gerou uma nova dinâmica em termos de segurança alimentar de uma parcela da população
que estava em situação de pobreza e fome e, também, em termos de ampliação das condições
de reprodução social dos próprios agricultores familiares que são participantes do programa.
Neste município, o Programa Fome Zero possui em seu modo de gestão uma lógica muito
interessante, pois beneficia a agricultura familiar através das compras da sua produção de
autoconsumo, mas também, ao mesmo tempo, fortalece as condições de reprodução social e
alimentar das famílias assistidas pelo programa.
Este modo de gestionar o programa, fica explicito no objetivo geral do Projeto Compra
Local dos Produtos da Agricultura Familiar (2003), em que se define que a [...] implantação
do programa de compra direta local dos produtos da agricultura familiar, (objetiva) fortalecer
as ações de combate à fome (e) desemprego, visando melhorar as condições de vida dos
agricultores familiares e dos moradores do Bairro São Roque que estão em estado de
vulnerabilidade (p. 1)
147
. Como fica evidenciado no objetivo do programa, o mesmo visa tanto
o fortalecimento da agricultura familiar (da produção de autoconsumo) como da população
em estado de insegurança alimentar e de fome do município.
Estes dois objetivos ficam ainda mais claros quando se analisam os objetivos
específicos do programa
148
. Do lado dos agricultores familiares o programa prevê: a)
viabilizar a comercialização dos produtos dos agricultores familiares; b) incentivar os
agricultores a produção de alimentos; c) (fazer) avançar e fortalecer a produção orgânica; e, d)
fortalecer a organização das entidades da agricultura familiar. Já do lado dos consumidores
147
O Bairro São Roque é um local da periferia da cidade de Constantina, no qual é realizada a distribuição das
cestas de alimentos a cada 15 dias pelo Programa Fome Zero. Este Bairro possui em torno de 400 famílias de
moradores das quais 182 são beneficiadas com o programa.
148
O Projeto Compra Local dos Produtos da Agricultura familiar (2003) foi celebrado via um convênio entre a
Cooperativa de Produção Agropecuária Constantina Ltda (Coopac) constituída pelos próprios agricultores
familiares e a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) via Programa Fome Zero do Governo Federal. O
Projeto prevê um orçamento total de R$ 150.000,00 para ser gasto na compra de alimentos de 60 agricultores
familiares do município que fornecerão 28 tipos de produtos de autoconsumo para a formação das cestas básicas
que são distribuídas quinzenalmente a 182 famílias do Bairro São Roque que possui em torno de 400 famílias.
Cada agricultor familiar está cadastrado no programa, se enquadra nos critérios do Pronaf e receberá em torno de
R$ 2.500,00 no período de 1 ano.
226
dos alimentos produzidos pela agricultura familiar, ou seja, os beneficiados pelo programa os
objetivos são: a) beneficiar as famílias que estão em estado de risco ou subemprego; b) criar
mecanismos de inclusão social; e, c) através da distribuição de alimentos criar condições para
que as famílias possam participar de programas municipais de geração de renda. Esta dupla
lógica de ação do programa o tornou extremamente importante tanto para o fortalecimento da
produção de autoconsumo da agricultura familiar como para a geração da segurança alimentar
da população desprovida de alimentação e vulnerável em relação a sua segurança alimentar.
Na seqüência, analisam-se as implicações do programa para os agricultores familiares e,
posteriormente, os efeitos para os beneficiados pela distribuição dos alimentos.
Do ponto de vista da agricultura familiar participante do Programa Fome Zero, este
gerou vários benefícios, porém o principal impacto do programa foi o de gerar um
fortalecimento da produção de autoconsumo nas unidades de produção. Como já se
demonstrou no capítulo 3, anteriormente, a mercantilização e a vulnerabilização do
autoconsumo no Alto Uruguai são dois dos problemas estruturais que levam a uma
fragilização da agricultura familiar desta região. Deste modo, o que se encontrava como
característico destas unidades de produção em Constantina, era uma produção de alimentos
fragilizada pelos processos de mercantilização e vulnerabilização do autoconsumo, em grande
medida, em função do plantio de grãos e da especialização produtiva principalmente via o
cultivo da soja.
Neste sentido, a ação do Programa Fome Zero ocorreu no sentido de revitalizar e
“resgatar” a produção de autoconsumo e o conhecimento a ela associado como formularam os
atores sociais entrevistados. Neste sentido, o Fome Zero está tendo o seu impacto ao nível
local, no sentido de fortalecer uma produção que se encontrava vulnerabilizada e
mercantilizada no interior das unidades familiares. Este fortalecimento da produção de
autoconsumo nas unidades de produção fica evidenciado nestes relatos com o presidente do
CMDR e com um membro da SAM. Verifica-se, no primeiro relato, que o informante formula
que a produção de mandioca e de batata estavam vulnerabilizadas nas unidades familiares e
que foi o Fome Zero que “resgatou” estes tipos de produtos através da compra para a
distribuição para as famílias carentes. O segundo relato demonstra que os agricultores
produziam principalmente grãos (soja e milho) e que com a compra local dos produtos pelo
Fome Zero começaram a cultivar os produtos de autoprovisionamento alimentar e, assim, esta
produção deixou de ser mercantilizada e deslocada na dinâmica das unidades familiares pela
produção de grãos.
227
Por exemplo, a questão da mandioca quase não se tinha mais produção, a
batata. Então foi resgatado estas produções, estas culturas que é um alimento
muito importante e que em muitas propriedades já não se tem mais isso. Então
o programa é muito importante para se voltar a produzir isso, resgatar isso
também (Entrevista 21, 2004, N. A., Agricultor familiar, CMDR).
Existiam produtores que nem produziam (o autoconsumo), era produção de
grãos e com o passar do tempo foram vendo. Este ano que passou teve uma
seca muito grande e o pessoal notaram que não dá mais para tu jogar todas as
cartas só na soja ou só no milho. Estão vendendo para o programa e estão
ajudando por que para nós é uma alavanca [...] (Entrevista 20, 2004, M. C.,
Técnico em Agropecuária, SAM).
Um outro efeito do programa para com os agricultores familiares foi a de propiciar
acesso ao mercado para o escoamento da produção de autoconsumo. Neste sentido, pode-se
dizer que o Fome Zero resolveu os problemas de comercialização deste tipo de produção que
em municípios essencialmente agrícolas e pequenos, como é o caso de Constantina, é um
grande entrave ao desenvolvimento e fortalecimento da agricultura familiar, pois são locais
que não possui um consumo urbano que demande estes produtos em quantidades crescentes e
que, assim, promovessem a inserção mercantil e o fortalecimento da agricultura familiar local.
Este efeito do Programa Fome Zero sobre a comercialização dos produtos pode ser
comparado ao que Maluf (1999, p. 4) chamou de desafio de “construção de mercados”
diferenciados para a agricultura familiar. Este processo de viabilização da comercialização
destes produtos de autoconsumo da agricultura familiar é demonstrado pelo relato de um
entrevistado que chega a formular que neste sentido o “o Fome Zero foi um achado”, numa
alusão aos efeitos do programa em viabilizar a comercialização dos agricultores familiares.
O problema é que não tinha comercialização, não se tinha uma organização,
uma cooperativa, um grupo, alguma coisa organizada que pegasse e escoasse
a produção de uma forma mais organizada. Que escoasse a produção mês a
mês, formar uma cesta, vender esta cesta. Isso o Fome Zero foi um achado,
por que ele vem fazer isso. É um recurso público que compra cestas de
produtos da agricultura familiar (Entrevista 22, 2004, R. B., Engenheiro
Agrônomo, Emater).
Em relação à compra destes produtos de autoconsumo da agricultura familiar local,
pode-se dizer que o Programa Fome Zero exerceu uma metamorfose na produção de
autoconsumo. Isso aconteceu devido à produção de autoprovisionamento que só assumia um
papel importante na segurança alimentar e na reprodução social destes agricultores familiares,
como se demonstrou no capítulo 3, e que, quase não possuía uma “função” mercantil na
dinâmica das unidades de produção se metamorfoseou e assumiu um novo caráter nas
estratégias de inserção mercantil das famílias, gerando uma nova fonte de renda através da
venda da produção ao poder público. Neste sentido, pode-se formular que o autoconsumo
228
passou de uma “mercadoria” que possuía, prevalentemente, valores de uso na dinâmica das
famílias rurais que vendem para o Fome Zero para uma mercadoria que possui valores de
troca no contexto da reprodução social dos agricultores, sendo uma das novas estratégias de
vivência dos agricultores beneficiados do município a venda e comercialização da produção
de autoconsumo.
O Programa Fome Zero também está propiciando uma elevação real da renda dos
agricultores familiares, garantindo um canal alternativo de inserção mercantil fora do escopo
da produção de grãos e gerando uma (re) valorização da produção de autoconsumo e do saber-
fazer dos agricultores familiares integrados ao programa. A elevação da renda se dá devido o
Fome Zero realizar a aquisição da produção de autoconsumo a um preço mais elevado do que
o preço praticado nos mercados regionais, garantindo assim, uma elevação do nível de rendas
das famílias. Geralmente, o preço pago pela produção de autoconsumo pela Conab é de 10% a
mais do que o praticado nos mercados regionais. Ressalta-se ainda, que o programa vai
transferir aos agricultores, no prazo de um ano, um montante equivalente a R$ 2.500,00 por
família através da compra dos 28 produtos de autoprovisionamento. Os preços pagos bem
como os 28 produtos de autoconsumo vendidos pelos agricultores familiares podem ser
visualizados na Tabela 26. Observa-se, pela Tabela 26, que a grande maioria dos produtos
vendidos para o programa são de autoconsumo e tidos como típicos da agricultura familiar
demonstrando, assim, que esta forma de produção e trabalho está tendo um papel relevante na
geração da segurança alimentar da população do Bairro São Roque.
Tabela 26: Principais produtos de autoconsumo vendidos ao Programa Fome Zero e os
seus respectivos preços, com base nos valores da Conab.
Produto vendido Preço Conab
(R$)
Produto vendido Preço Conab
(R$)
Farinha de milho 2,22/Kg Açúcar mascavo 1,47/kg
Leite tipo C 0,95/Litro Farinha de trigo 4,04/Kg
Amendoim 6,64/Kg Morangas 1,01/Un.
Carne suína 4,23/Kg Filé de peixe 7,87/Kg
Queijo colonial 7,64/Kg Batata doce 1,43/Kg
Cebola 0,83/Kg Cenoura 1,51/Kg
“Chimia” colonial 6,08/Kg Couve/repolho 1,50/Un.
Salame colonial 9,35/Kg Canjica 1,86/kg
Banha suína 2,65/Kg Massas 1,71/500 gr.
Feijão 2,22/Kg Bolachas 3,09/400 gr.
Laranja 0,62/Kg Pão -
Mel 7,50/Kg Pipoca 2,88/Kg
Mandioca 1,67/Kg Rapadura 1,85/Kg
Melado 1,69/Kg Ovos 1,72/dúzia
Fonte: Adaptado do Projeto Compra Local dos Produtos da Agricultura familiar (2003, p. 8).
229
- Dado não disponível.
Também é importante considerar que o modelo de gestão do programa ocorre em nível
local pelas instituições do município, o que permite uma operacionalização mais flexível e
transparente do mesmo. Através do Conselho Municipal de Segurança Alimentar (Comsea) as
instituições locais como a Fetraf-Sul, a Coopac, Emater, poder público local, Cooperativa
Regional das Agroindústrias (Cooperac), CMDR, Fundação São Roque, Igrejas e outras
instituições e organizações sociais realizam a gestão e a operacionalização do programa. Isso
lhes permite uma negociação local das instituições com os agricultores familiares no sentido
da padronização dos produtos, das normas de qualidade, dos tipos de produtos comprados, as
quantidades a fornecer e, principalmente, uma negociação quanto à questão da sazonalidade
de produção dos gêneros que compõem as cestas básicas. A gestão em nível local do Fome
Zero permite que os agricultores familiares vendam ao programa os produtos ditos “de época”
o que lhes permite a comercialização do autoconsumo produzido na sua própria estação
climática. Ou seja, no período de safra onde, geralmente, o excesso de produção em um
período curto de tempo, de um produto em específico, gera uma queda geral dos preços pagos
e um excesso de produção que é “desovada” no mercado.
Este forma de gestão e operacionalização do programa é demonstrado no relato de um
entrevistado, que explica que o Fome Zero não requer sempre os mesmos produtos para
compor as cestas, mas que estes podem serem modificados de acordo com a estação de
produção e com a disponibilidade de um dado produto pelos agricultores. Como o informante
mesmo formulou: “não é uma cesta fechada, amarrada. Não tem que ser esta lista de
produtos pode variar um pouco”
.
Essa é a grande dificuldade que a gente encontra na agricultura familiar,
dificuldade de tu vender por que é aquele velho problema às vezes tu tem a
produção, mas tu não tem a regularidade da produção. Então o Fome Zero te
permite por que ele não te obriga a tu entregar todo o mês aquele produto.
Daqui a pouco tu tem uma safra e você entrega na safra. [...] No Fome Zero
você faz a cesta, você entregou a cota, você fez a sua parte. Então se não tem
mais aquele produto substitui por outro, ai aquele outro produtor vai entregar
a sua cota, entregou naquele período e assim você compõe a cesta, não é uma
cesta fechada, amarrada. Não tem que ser esta lista de produtos pode variar
um pouco [...] (Entrevista 22, 2004, R. B., Engenheiro Agrônomo, Emater).
Neste sentido, pode-se considerar que a produção de autoconsumo também propicia o
que Ellis (2000) denominou de diversificação das estratégias de vivência dos agricultores
familiares. Isso pode ser comprovado com a análise desta experiência do Fome Zero, pois
somente os agricultores que possuíam uma produção de autoconsumo não totalmente
230
mercantilizada e vulnerabilizada na sua unidade de produção é que conseguiram fornecer e
comercializar os seus produtos através do programa. Não foram os agricultores especializados
na produção de grãos e commodities agrícolas que aderiram ao programa, mas os que
manteram o seu corpo do saber em torno da produção dos gêneros de autoconsumo como
formularam Woortmann e Woortmann (1997). Neste sentido, pode-se dizer que foi a
produção de autoconsumo fortalecida no interior da unidade de produção familiar que
propiciou o lastro e a base para a geração de uma nova estratégia de vivência dos agricultores
familiares de constantina: a venda dos produtos de autoconsumo para o Fome Zero. Deste
modo, o autoconsumo propicia a diversificação das estratégias de vivência, pois o agricultor
passa a produzir uma grande diversidade de produtos no interior do seu estabelecimento
retomando, em partes, a sua característica de ser um típico agricultor policultor como o
definiu Renk (2000), se referindo a grande variedade de produtos que eram produzidos,
colhidos e processados no interior das unidades de produção durante o SAC
149
.
Este processo de diversificação das estratégias de vivência dos agricultores familiares
pode ser demonstrado pelo relato de um entrevistado local, que explica que os agricultores
que entregam os produtos de autoconsumo para o programa são agricultores que possuem
“um aprendizado”, que “tinham experiência anterior” e que “tinham cultura acumulada de
produzir a mandioca, produzir a batata, produzir o salame, o queijo, produzir a carne”. Note
que o informante tenta explicar que são estes agricultores que já possuíam o corpo do saber
necessário à obtenção do autoconsumo que conseguiram se inserir neste processo de
diversificação das estratégias de vivência geradas pelo Programa Fome Zero.
Eu acredito que eram famílias que se destacavam na sua produção de
autoconsumo e que tinham um aprendizado, que sabiam produzir os produtos.
Então não eram pessoas que não sabiam trabalhar com estes produtos, sabiam,
já tinham experiência anterior, tinham conhecimento, tinham cultura
acumulada de produzir a mandioca, produzir a batata, produzir o salame, o
queijo, produzir a carne. Então já vem da cultura. Então o que se fez? Se
organizar na propriedade de forma a ter uma certa rotina de 15 em 15 dias ele
tem que se organizar, ele tem que carnear tem que arrancar tem que plantar.
Organizou-se para ter este fornecimento (Entrevista 22, 2004, R. B.,
Engenheiro Agrônomo, Emater).
O estudo da iniciativa local no município de Constantina também permite verificar que
a agricultura familiar está gerando a segurança alimentar para a população de um bairro
urbano, que é beneficiada pela distribuição dos alimentos que são comprados dos agricultores
149
No caso do surgimento de processos de agroindustrialização na agricultura familiar do Alto Uruguai também
se constatou que foi o autoconsumo e o corpo do saber dos agricultores familiares que propiciou com que se
231
familiares através do programa. Ressalta-se, que as 182 famílias beneficiadas recebem,
quinzenalmente, uma cesta de produtos que varia de 23 a 25 Kg de alimentos, composta pelos
28 tipos de produtos, expostos na Tabela 27. O Programa Fome Zero já destinou um montante
de R$ 132.567,34 na compra dos 28 produtos de autoconsumo dos agricultores familiares que
integram as cestas básicas, até a data de 26 de novembro de 2004. Na Tabela 27, é possível se
observar os produtos adquiridos até este momento, as suas quantidades e os valores que foram
gastos para a sua aquisição.
Tabela 27: Produtos, quantidades e valores gastos no Programa Fome Zero, em
Constantina, até 26/11/2004.
Produtos comprados
Quantidades/produto
Valores gastos/produto
(R$)
Açúcar mascavo 5.196 Kg 7.638,12
Amendoin 803 Kg 4.598,96
Banha 1.102 Kg 2.920,30
Batata-doce 2.685 kg 2.765,55
Bolacha 1.064 Un. 2.657,90
Canjica de milho 1.465 Kg 2.498,82
Carne suína 3.494 Kg 14.587,51
Cebola 1.155 Kg 958,65
Cenoura 1.098 Kg 1.416,42
“Chimia” (doce de fruta) 2.835 Kg 11.971,64
Couve-flor 1.552 Un. 2.045,64
Farinha de milho 6.587 Kg 7.498,40
Farinha de trigo 5.247 Kg 6.974,06
Feijão 5.516 kg 9.653,00
Laranja 9.525 Kg 3.891,70
Leite 2.256/ 500 gr. 9.249,60
Mandioca 4.859 Kg 5.337,74
Massa 4.411 Kg 7.041,98
Mel de abelha 420 Kg 3.024,00
Melado 306,04 Kg 509,55
Moranga 115 Un. 116,15
Ovos 1.705 Dúzias (12 ovos) 2.932,60
Paçoca de amendoin 1.351 Un. 2.472,35
Pão 1.428 Un. 2.492,66
Pipoca 1.353 Kg 2.489,52
Queijo 1.306 Kg 9.988,45
Repolho 683 Un. 450,78
Salame 499 Kg 4.355,29
Total (somente Kg) = 60.990,04 Total (R$) = 132.567,34
Fonte: Comunicação pessoal da Coopac/Fome Zero, por e-mail, em 26/11/2004.
iniciasse os processos de agroindustrialização da matéria-prima agrícola e a agregação de valor aos produtos da
agricultura familiar, também gerando, neste caso, novas estratégias de vivência das famílias.
232
Pela Tabela 27, pode-se observar que o principal produto adquirido em termos de
quantidades pelo programa é a laranja, com um total de 9.525 Kg, representando um custo de
R$ 3.891,70. No que se refere aos demais produtos comprados destacam-se também a farinha
de milho com 6.587 Kg e um custo de aquisição de R$ 7.498,40; a farinha de trigo com 5.247
Kg e um custo de R$ 6.974,06; o açúcar mascavo com 5.196 Kg e um custo de R$ 7.638,12; a
mandioca com 4.859 Kg e um custo de R$ 5.337,74 e a massa com a compra de 4.411 Kg e
um custo total de R$ 7.041,98. Outros produtos também adquiridos em quantidades
significativas são a carne suína, a “chimia”, a batata-doce e o leite.
Quanto às quantidades de produtos adquiridos até a data de 26 de novembro de 2004,
o Fome Zero executou a compra de 60.990,04 kg dos diferentes produtos de autoconsumo,
demonstrando que o programa está gerando a segurança alimentar em termos de propiciar o
fornecimento das quantidades suficientes de alimentos para as famílias beneficiadas. Cada
família que faz parte do programa recebeu do mesmo, até a presente data, um total de 335,11
Kg de alimentos que foram entregue na forma de cestas básicas
150
. Em termos monetários, o
programa destinou a cada família um valor de R$ 728,39 que foram transferidos para os
mesmos na forma de alimentos.
O estudo desta iniciativa local no município de Constantina também leva a uma
conclusão sobre o tipo de vínculo mercantil dos agricultores familiares que participam desta
experiência. A conclusão que se retira deste estudo é a de que é possível a agricultura familiar
manter um tipo de relação com o contexto social e econômico de forma a se beneficiar deste,
como ocorre no caso do Fome Zero, em que os agricultores construíram um novo tipo de
mercado diferenciado do de grãos e commodities agrícolas. Neste sentido, vale ressaltar que
nem sempre o mercado é uma instituição social que subjuga os agricultores e que os mantém
dependentes em relação na ambiente social e econômico. Com a análise desta iniciativa local,
pode-se formular que há condições dos agricultores familiares manterem-se inseridos no
mercado sem sofrerem um tipo de mercantilização social e econômica que os subjuge
totalmente como vem acontecendo historicamente no Alto Uruguai com a produção de grãos.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a agricultura familiar de Constantina está sendo
responsável pela geração da segurança alimentar junto a estas 182 famílias beneficiárias do
Fome Zero. Esta segurança alimentar é definida pelos princípios formulados por Maluf et all
150
Nos 60.990,04 Kg de alimentos adquiridos pelo programa, não estão computados os alimentos que estão em
unidades como em dúzias e unidades unitárias (Un.), devido a não possibilidade de se atribuir a estes um
determinado valor que fosse aproximado do seu peso real. Deste modo, para não incorrer em estimativas
grosseiras, preferiu-se analisar somente as quantidades em Kg e que perfazem o montante principal das compras
do programa.
233
(2004). Desse modo, a produção de autoconsumo gera a segurança alimentar da população do
Bairro são Roque, no que se refere a propiciar o acesso e disponibilidade dos alimentos,
através do fornecimento das quantidades suficientes e permanentes destes, pela qualidade
nutricional que compõe cada um dos tipos de produtos e por ser uma produção que está de
acordo com os hábitos de consumo constituídos historicamente junto a estas famílias
beneficiadas. Assim, pode-se afirmar que o programa Fome Zero está fortalecendo a
reprodução social e alimentar da população do município. Neste sentido, a seguir, se
demonstra como cada um destes princípios da segurança alimentar é assegurado junto à
população do bairro beneficiado.
Do ponto de vista da população beneficiada pelo programa o principal efeito é a
geração da segurança alimentar através do consumo dos produtos da agricultura familiar. Isso
se dá através da produção de autoconsumo dos agricultores familiares que fornece a
alimentação em quantidades suficientes para as famílias e, assim, propicia o acesso e a
disponibilidade de alimentos para os indivíduos em estado de insegurança alimentar. Este
princípio da segurança alimentar foi formulado pelos informantes durante o trabalho de
campo de modo que o principal efeito do programa foi o de que “as pessoas pararam de
passar fome” e começaram a se alimentar diariamente devido à produção de autoconsumo
que compõe as cestas de produtos que são distribuídos quinzenalmente
151
.
A geração deste princípio da segurança alimentar pelo programa é evidenciado com o
relato de um membro da Fetraf-Sul, que é uma das instituições locais responsáveis pela
operacionalização do programa no município. Nota-se, que as melhorias geradas pelo
programa não são em termos monetários, mas em termos de que as pessoas passaram a ter a
alimentação básica do dia a dia para poderem executar a sua reprodução social e alimentar.
Observa-se, também, que o informante explica que até antes da existência do Fome Zero as
pessoas beneficiadas “passavam fome” e que muitas“ficavam sem comer”.
Agora na parte de melhoria em termos de dinheiro eu não sei até que ponto
ajudou. Ajuda por que eles têm, assim, a garantia da alimentação só que por
outro lado eles não ganham dinheiro, eles ganham a comida. Então a melhoria
é em termos de nutrição, eles comem melhor, tem uma alimentação mais rica,
então melhorou. Estes tempos tinham pessoas que ficavam sem comer, assim
um tempo atrás esse pessoal passava fome [...] (Entrevista 18, 2004, O. L.,
Representante Sindical, Fetraf-Sul).
Assim, pode-se dizer que a produção de autoconsumo gera a segurança alimentar das
famílias pobres e vulneráveis em sua reprodução social e alimentar, fornecendo uma
234
alimentação suficiente para sanar os problemas de iniqüidade, de acesso e de inanição
alimentar como formulou Maluf (2001) e Maluf et all (2004). Contudo, além de o
autoconsumo gerar a segurança alimentar em termos de acesso permanente aos alimentos, da
disponibilidade suficiente destes e do fornecimento das quantidades necessárias à alimentação
das famílias do Bairro São Roque, este também gera a segurança alimentar em termos da
qualidade nutricional dos alimentos que compõem as cestas distribuídas as famílias pobres e
vulneráveis como demonstra a Tabela 26 e 27, apresentadas anteriormente
152
.
Isso é devido à produção de autoconsumo ser uma produção que, na maioria das vezes,
é isenta de agrotóxicos, de medicamentos, de fertilizantes químicos, etc. No caso da venda
para o Fome Zero os agricultores são orientados pelas instituições locais que gestionam o
programa a produzir de forma “orgânica”, ecológica ou agroecológica a grande maioria dos
produtos vendidos ao programa. Como também já se demonstrou no capítulo 3, os
agricultores familiares, geralmente, não usam insumos químicos e agrotóxicos na produção
dos seus próprios alimentos de autoconsumo. Isso fez com que fosse possível ao programa
Fome Zero operar com estes produtos também de forma a serem isentos de contaminações e,
assim, possuírem uma melhor qualidade nutricional e alimentar, gerando a segurança
alimentar pelo princípio da qualidade nutricional dos alimentos fornecidos como a definiu
Maluf et all (2004). Este princípio da segurança alimentar que é preenchido pela produção de
autoconsumo é relatado por um dirigente sindical da Fetraf-Sul.
[...] A base dos agricultores que produzem é que usam o mínimo de
agrotóxicos. É um alimento de qualidade por que se não tiver qualidade à
gente não entrega. É um produto de qualidade e os agricultores aqui da nossa
região eles tem educação e não são agricultores de momento. É gente que
começou na roça e que sabem produzir [...] (Entrevista 18, 2004, A. R. A.,
Representante Sindical, Fetraf-Sul).
A produção de autoconsumo também gera a segurança alimentar das famílias do
Bairro São Roque, devido os alimentos fornecidos e distribuídos pelo programa serem
baseados nos hábitos históricos de consumo da população beneficiada. Neste sentido, todos os
produtos que compõem as cestas distribuídas para as famílias em situação de vulnerabilidade
alimentar são produtos que compõem a cultura alimentar, os hábitos de consumo e a culinária
151
Este mesmo impacto positivo do programa também foi verificado por Valente Júnior et all (2004) para o caso
do município de Guaribas, no Piauí.
152
Em visita ao Bairro São Roque, em uma conversa informal com uma mãe de família com três filhos, ela nos
revelou que a sua família vivia com os “biscates” que o marido fazia e que eles, deste modo, jamais
conseguiriam ter renda suficiente para compara produtos com a qualidade que possuíam os que são fornecidos
pelo programa como no caso do queijo, do salame, das carnes de porco e de gado, do filé de peixe, das massas,
etc, pois estes produtos “eram muito caros” nos supermercados locais (Diário de campo, 2004).
235
local constituindo-se em alimentos enraizados e territorializados junto às famílias. Assim, a
segurança alimentar valoriza os hábitos locais de consumo como formulou Maluf et all (2004)
e não é uma incorporação de alimentos importados de outros territórios ou mesmo alimentos
alienígenas que nada tem a ver com a cultura alimentar das famílias assistidas.
Os 28 tipos de alimentos que compõem as cestas distribuídas às famílias podem ser
visualizados nas Tabelas 26 e 27, apresentadas anteriormente. Verifica-se que os principais
produtos são: o leite, a carne suína, o queijo, a “chimia” (doce de fruta), o salame, a banha, o
feijão, a mandioca, a farinha de trigo, a batata-doce, as massas coloniais, bolachas, pães, ovos
e outros alimentos. O importante é observar que todos os 28 produtos distribuídos fazem parte
dos hábitos de consumo locais e que nenhum deles é um produto totalmente desconhecido das
famílias beneficiadas. Inclusive, o Programa Fome Zero permite uma certa flexibilidade dos
produtos que compõem as cestas, pois alguns produtos são freqüentemente trocados e
substituídos por outros conforme as reivindicações das próprias famílias assistidas pelo
programa visando, justamente, que não haja sobras, desperdícios e que os alimentos
distribuídos sejam consumidos em sua integralidade.
A esta constatação da geração da segurança alimentar de acordo com os hábitos
alimentares do território se soma uma percepção importante que é a de que a segurança
alimentar deve ser gerada a nível local da população do município. Desse modo, o
entendimento é o de que se a fome a as situações de insegurança alimentar ocorrem de forma
localizada em determinadas “áreas” do Alto Uruguai, que neste caso é o município de
Constantina. É, também, nestas áreas que devem ser geradas as condições para a sua
superação. De certo modo, é isso que o Programa Fome Zero está fazendo, pois a produção de
autoconsumo é obtida em nível local nas unidades de produção dos agricultores e segue
diretamente para as famílias com carências alimentares sem passar por nenhum outro canal de
comercialização.
Assim, a fome e as situações de insegurança alimentar são combatidas e eliminadas
nos próprios locais de origem, caracterizando-se pela geração da segurança alimentar no nível
local e não um processo que depende de compras exteriores, transporte ou importação de
alimentos de fora dos locais de consumo, como acontecia com o extinto Programa
Comunidade Solidária em que as cestas básicas de alimentos chegavam de locais foráneos dos
municípios para serem distribuídas à população. Esta lógica local entre as situações de
insegurança alimentar e ao mesmo tempo as ações de combate à fome são ilustradas pelo
relato de um agrônomo da Emater que formula que o melhor é onde se tem “uma negociação
entre o alimento e a fome”.
236
Se você tem a nível local o alimento e você tem a fome, por que você não faz
esta negociação entre o alimento e a fome, quem tem fome. Então o Fome
Zero vem neste sentido (Entrevista 22, 2004, R. B., Engenheiro Agrônomo,
Emater).
Além de gerar a segurança alimentar da população do Bairro São Roque a produção de
autoconsumo, indiretamente, propicia outras melhorias sociais, econômicas, de resgate da
cidadania e de inclusão social nas famílias beneficiadas pelo Fome Zero. Isso pode ser
verificado em uma visita ao bairro beneficiado pela distribuição das cestas básicas de
produtos da agricultura familiar, onde nos foi relatado pelos próprios moradores que o Fome
Zero foi uma “alavanca” importante para o início de um processo muito maior que inclui: um
resgate da auto-estima das pessoas e famílias; a percepção dos direitos enquanto ser humano
incluindo-se ai o direito a alimentação e a cidadania como condições mínimas de existência,
ou seja, a segurança alimentar do ponto de vista do direito humano a alimentação como
formulou Maluf et all (2004); o início de um processo de organização social e comunitária
inclusive com a fundação de uma cooperativa de processamento e reciclagem de lixo; a
tomada de consciência da importância das instituições locais no processo de desenvolvimento
e; sobretudo, a geração de um processo de inclusão social e geração de emprego e renda com
a participação social dos moradores e instituições locais de desenvolvimento do município
(Diário de Campo, 2004)
153
.
Este processo que não passa somente pela simples distribuição de alimentos a famílias
e pessoas em situações de vulnerabilidade é a maior inovação do Fome Zero e, deve ser
creditado ao modo como o programa foi concebido e está sendo operacionalizado
154
. Neste
sentido, o Fome Zero possui como objetivos a inclusão social, a geração de empregos e de
renda no médio e longo prazos e não somente o paliativo de combater a fome em focos e
momentaneamente, sem oferecer alternativas viáveis de inserção social a esta população. Isso
se deve, em grande medida, ao programa ter em sua lógica de ação a participação social das
153
Também foi relatado pelos entrevistados durante o trabalho de campo, que antes da existência do programa
havia muitas crianças pedindo esmolas nas esquinas e lugares públicos da cidade e com o Fome Zero isso foi, em
partes, sanado pois as famílias que recebem as cestas de alimentos têm que se comprometer a colocar as crianças
na escola como contrapartida aos alimentos recebidos.
154
Vale ressaltar o papel das instituições locais no âmbito do desenvolvimento do município de Constantina.
Estas agem em redes de cooperação nas diferentes ações de desenvolvimento praticadas localmente e inclusive
no caso do Fome Zero. É este motivo que faz, em grande medida, o município de Constantina ser reconhecido
como um município desenvolvido, de agricultura familiar diversificada e estruturada e constituído por um
conjunto de iniciativas que são reconhecidas pelos atores sociais e instituições de outros locais do Alto Uruguai.
Muito do desenvolvimento do município pode ser creditado as redes de atores sociais e aos trabalhos que são
desenvolvidos em conjunto por instituições como o poder público municipal, a Coopac, a Emater local, o
sindicato de trabalhadores rurais, a Cresol, a Cooperac a nível regional, dentre outras organizações e atores
237
pessoas assistidas, mas o principal motivo é devido a ele não ser uma política de carácter
assistencialista como era no passado, não muito distante, o Programa Comunidade Solidária.
O Fome Zero, da maneira em que ele está sendo gestionado e operacionalizado,
procura distribuir as cestas de alimentos às populações assistidas, além de incluir as famílias
em atividades de formação, cursos, assembléias municipais, participação na formação das
cestas, distribuição destas, atividades de limpeza da cidade pagas pelo poder público
municipal dentre outras atividades e profissionalizações. Assim, a partir da análise desta
experiência no município de Constantina, pode-se afirmar que o programa inova no sentido de
romper com os vícios das políticas públicas assistencialistas de combate à fome e a
insegurança alimentar do passado e busca construir um novo “modelo” de gestão social e de
tratamento das mazelas sociais e econômicas da população pobre e vulnerável em sua
reprodução social e alimentar.
O programa também inclui as chamadas “contrapartidas” dos beneficiários, que são os
trabalhos que estes devem desenvolver durante o recebimento dos alimentos, visando criar
compromissos sociais e gerar novos conhecimentos, formação profissional e ampliação das
oportunidades de emprego e renda. Isso é evidenciado pelo termo de responsabilidade firmado
entre o Fome Zero e a Coopac, onde além de serem traçadas as diretrizes de gestão do
programa e o papel das instituições gestoras também é explicitado as atribuições dos
beneficiários dos alimentos que são: a) manter os filhos na escola; b) manter os filhos em dia
com as vacinas; c) participar de oficinas, cursos, palestras promovidas pelo poder público e o
programa; d) participar de cursos de alfabetização; e) zelar pela limpezas de terrenos e ruas; f)
recolher o lixo; g) organizar, nos casos possíveis, uma horta no fundo do quintal; e, h)
participar de atividades de limpeza e organização do bairro (“pé no bairro”) (Programa Fome
Zero/Convênio Conab-Coopac, 2003, p. 5).
Como se pode constatar, o programa inclui diversas atividades de inclusão social, de
geração de novas oportunidades e até atividades em benefício dos próprios assistidos e suas
famílias, como são os chamados “pés no bairro”. Nestas atividades, as instituições locais
organizam os moradores para executarem tarefas de limpeza, organização e embelezamentos
da casas e do próprio local em que as famílias convivem. Isso demonstra que o programa não
visa, pontualmente, somente combater à fome a as situações de insegurança alimentar, mas
uma ação mais ampla e articulada de inserção social, melhorias da qualidade de vida e
geração de novas oportunidades de emprego e renda. A questão das contrapartidas dos
sociais. Nesse sentido, reconhece-se o papel das redes institucionais e o que Ellis (2000) chamou de capital
social no processo de desenvolvimento rural.
238
beneficiários também é demonstrada no trecho da entrevista com o presidente da Coopac,
entidade conveniada com a Conab para execução e gestão do programa em nível do
município.
E estas famílias têm que dar uma contrapartida que é mandar os filhos para a
escola, participar das oficinas, oficinas de mulheres, corte e costura, de
bordado, de tricô, de crochê, de fazer pão, de fazer bolacha, etc. Os homens, a
contrapartida dos homens é participar dos “pés no bairro”, é capinar nos
arredores da casa, é fazer uma hortinha atrás da casa se eles tem terreno,
ajudar, por exemplo, estes tempos nós fomos ao bairro ajuntar todos os tipos
de lixo, fazer roçada, limpar o bairro, embelezar o bairro, manter as ruas
limpas. Então tudo isso é a contrapartida, participar das reuniões, das aulas
que a gente promove e das assembléias para tomar as decisões. Então essa é a
contrapartida das famílias (Entrevista 19, 2004, A. L., Agricultor familiar,
Coopac).
Assim, pode-se afirmar, a partir da análise desta iniciativa de compra dos produtos da
agricultura familiar no município de Constantina, que a agricultura familiar possui um papel
fundamental na geração da segurança alimentar em nível local, pois a produção de
autoconsumo engendra um circulo virtuoso na reprodução social dos indivíduos que vai muito
além da própria dinâmica da unidade de produção familiar, mas que perpassa, também, pela
reprodução social e a segurança alimentar das demais populações do município. A compra da
produção de autoconsumo pelo Fome Zero gera uma nova dinâmica de desenvolvimento
municipal que beneficia tanto as condições de reprodução social da agricultura familiar,
gerando, por exemplo, uma diversificação das suas estratégias de vivência, bem como
fortalece o tecido social não necessariamente rural do município como é o caso das
populações urbanas vulneráveis em sua reprodução social e alimentar.
Embora haja muitas e interessantes dimensões a serem explorada nesta iniciativa local
do Programa Fome Zero, no município de Constantina, é possível afirmar que a agricultura
familiar pode contribuir para a geração de processos de segurança alimentar nas populações
vulneráveis a insegurança alimentar do Alto Uruguai. Por outro lado, lamenta-se que este tipo
de iniciativa local seja restrita ao município de Constantina e a uma parcela pequena de
agricultores familiares, pois este tipo de experiência poderia contribuir para a solução dos
problemas de mercantilização e vulnerabilização do autoconsumo no Alto Uruguai que foram
apontados nos capítulos 2 e 3. Espera-se que este tipo de ação seja ampliada para outros
municípios ou mesmo em escala regional, pois os seus efeitos seriam benéficos tanto para os
agricultores familiares como para o restante da população do Alto Uruguai.
Seguindo-se neste caminho da análise das iniciativas locais que geram segurança
alimentar no Alto Uruguai, a próxima seção é dedicada ao estudo do que se usou chamar de
239
feiras da agricultura familiar. Pretende-se explicitar que este tipo de iniciativa possui um
papel fundamental, mesmo sendo experiências de pequeno alcance, no que se refere ao
fornecimento de alimentos através do abastecimento alimentar dos municípios e, também,
gerando a segurança alimentar das populações urbanas.
5.3.2 – Abastecimento e segurança alimentar do território: o caso das “feiras da
agricultura familiar”.
Outra iniciativa local importante na geração da segurança alimentar da população do
Alto Uruguai ocorre através das chamadas “feiras da agricultura familiar”. Estas feiras são
espaços públicos de comercialização dos produtos de autoconsumo e de abastecimento
alimentar dos municípios onde elas ocorrem. Assim, a agricultura familiar desempenha um
papel de fornecedora de alimentos de diversos gêneros, formas e tipos a população,
principalmente urbana
155
. Durante o trabalho de campo encontrou-se as chamadas “feiras da
agricultura familiar” nos municípios de Palmitinho, Frederico Westphalen, Taquaruçu do Sul
e Constantina. São nestes municípios que se vai analisar, de um modo geral, a importância e o
papel destas iniciativas locais.
Nesta iniciativa a agricultura familiar gera a segurança alimentar através do
abastecimento local da população dos municípios. O entendimento do que seja abastecimento
alimentar é o mesmo do esboçado por Maluf (1999) que o define como sendo uma estrutura
que disponibiliza os produtos alimentares, isto é, as formas pelas quais os alimentos são
produzidos e distribuídos para a população. Nessa perspectiva, descrevem-se os fluxos
seguidos pelos bens através de encadeamentos que ‘se iniciam’ na etapa agrícola, passando
pela intermediação mercantil e o processamento agroindustrial, até o comércio varejista (p. 4).
Neste sentido, a idéia de abastecimento alimentar é a de que existe uma cadeia pela qual um
alimento é produzido, elaborado ou processado e comercializado para a população com vistas
a gerar o abastecimento e a segurança alimentar desta.
Nas chamadas feiras da agricultura familiar se constatou que tanto os agricultores
como as populações do Alto Uruguai se beneficiam deste processo de comercialização de
alimentos. Do lado dos agricultores familiares, os benefícios advêm do fato de poderem
comercializar os seus produtos em um mercado que é alternativo ao dos grãos e commodities
155
Godoy et all (2003) estudando as feiras livres em Pelotas, no Rio Grande do Sul, diagnosticou que os maiores
consumidores urbanos das mesmas são os desempregados, as donas de casa, as pessoas com baixo poder
aquisitivo e os aposentados.
240
agrícolas, o que lhes confere uma maior rentabilidade aos seus produtos, pois este é um canal
de mercado que encurta os encadeamentos e transações mercantis entre intermediários e onde
os agricultores familiares trabalham a comercialização direta com o consumidor urbano na
maioria das vezes, como observaram Ricotto et all (2002). Isso é extremamente importante
em termos de reprodução social dos agricultores familiares, pois como frisou Maluf (1999),
esta é uma forma de construir os seus próprios mercados locais para escoamento e
comercialização da produção de autoconsumo familiar.
Mais importante ainda, é que as feiras da agricultura familiar propiciam uma maior
renda aos agricultores, como verificaram Ricotto et all (2002) em seu estudo sobre as feiras
livres de Misiones, na Argentina. Isso se deve a comercialização ser realizada semanalmente
gerando, assim, recursos financeiros que são utilizados na manutenção familiar, nos gastos
mensais da casa, do processo produtivo agrícola e mesmo na manutenção de pequenos
equipamentos e máquinas agrícolas. Nas feiras estudadas, isso só é possível devido à
comercialização dos produtos de autoconsumo serem realizadas num período de tempo mais
curto do que no caso da produção de grãos o que faz com que as condições de reprodução
social das unidades familiares sejam alargadas e amplificadas no ambiente social e econômico
em que se dão as suas estratégias.
Este processo pelo qual os agricultores auferem rendas semanais nas feiras da
agricultura familiar é demonstrado no relato de um agricultor familiar que vende os seus
produtos de autoconsumo e da sua agroindústria familiar na feira de Frederico Westphalen.
Como o agricultor familiar formulou, as vantagens de se vender na feira é devido aos
“troquinhos” semanais que esta gera para a sua família. Nota-se que o entrevistado também
descreve os principais produtos que são comercializados dentre os quais se teriam os produtos
de horta como verduras e legumes, as frutas, os produtos transformados das agroindústrias
familiares, o mel e o peixe, sendo que todos estes são produtos oriundos da produção de
autoconsumo.
Nós estamos lá, temos a banquinha lá. Olha isso é tudo o que o pessoal
produz, tudo o que o pessoal produz vamos dizer de verdura, legumes,
coisarada, que nem nós temos os produtos da agroindústria e as frutas que
também nós produzimos vai lá. Então os outros vendem o mel, o peixe, tem
de tudo. Mas eu acho que é uma coisa muito boa essa feira ai. Vende e dá um
“beco” toda a sexta feira, dá um troquinho. É uma coisa boa que inventaram
isso ai (Entrevista 13, 2004, B. M., Agricultor familiar).
Além deste tipo de iniciativa local gerar uma renda semanal para os agricultores, na
maioria dos casos, as feiras da agricultura familiar também promovem novas estratégias de
241
vivência junto as famílias do Alto Uruguai como formulou Ellis (2000). Este processo ocorre
devido à venda e comercialização dos produtos de autoconsumo da unidade de produção
familiar que são colocados à disposição da população urbana. Estes produtos são
extremamente diversificados em seus usos e tipos incluindo-se frutas, verduras, produtos
processados e com agregação de valor como pés de moleque, rapaduras, os doces em caldas,
as “chimias”, salames e derivados de carne, queijos e outros derivados de leite, artesanato
rural, bordados entre outros produtos típicos de autoconsumo e da produção das unidades
familiares. Assim, o autoconsumo não mercantilizado dos agricultores familiares é que
propiciou esta nova estratégia de vivência diversificada e uma maneira alternativa e
inovadora de inserção mercantil no Alto Uruguai
156
.
Através da experiência das feiras da agricultura familiar conseguiu-se constatar que
são as unidades de produção que possuem o corpo do saber como definiram Woortmann e
Woortmann (1997) e o autoconsumo não fragilizado que dão origem a novos processos de
relação com o mercado e, sobretudo, a novas estratégias de vivência dos agricultores
familiares. Este processo de surgimento de uma nova estratégia de vivência da agricultura
familiar através da comercialização da produção de autoconsumo nas feiras, fica evidenciado
no relato de um secretário da agricultura municipal que formulou que são as famílias que já
possuíam o autoconsumo não vulnerabilizado na unidade de produção as que somente
melhoraram os seu processo de produção e, em alguns casos, aumentaram o volume
produzido para poder atender a demanda semanal da feira. Observa-se que o entrevistado
afirma que as famílias que vendem na feira apenas “aproveitaram a cultura que tinham de
produção e que produziam para a família consumir aquilo e deram um caráter econômico
para levar para a Feira do Produtor”.
Digamos nem uma família passou a produzir um produto especial para vender
na feira. Eles somente melhoraram um pouco aqueles produtos ou, nem
melhoraram, passaram a produzir numa escala um pouco maior do que eles já
produziam para o seu autoconsumo. Então, quer dizer, eles aproveitaram a
cultura que tinham de produção e que produziam para a família consumir
aquilo e deram um caráter econômico para levar para a Feira do Produtor
[...].Então esse é o objetivo. Aos poucos ir consolidando isso, ao invés de
perder esse autoconsumo, a própria questão da cultura de produzir o
autoconsumo deu um caráter econômico próprio da agricultura familiar da
região (Entrevista 9, 2004, G. P., Engenheiro Agrônomo, SAM).
156
Ricotto et all (2002) analisando as feiras francas da agricultura familiar em Misiones, na Argentina, também
formulou que foi o autoconsumo fortalecido das unidades familiares (sobras de produtos de chácaras) que deu
origem a novos processos de comercialização dos agricultores, entre os quais a criação das feiras da Província de
Misiones.
242
As experiências das feiras da agricultura familiar também são importantes na
reprodução social da agricultura familiar por gerarem processos diferenciados de inserção
mercantil e por promoverem uma segmentação dos mercados e criarem as possibilidades reais
de diferenciação de produtos frente aos mercados tradicionais de consumo e abastecimento
(Maluf, 1999)
157
. A segmentação do mercado, no caso das feiras da agricultura familiar,
ocorre devido às experiências representarem uma alternativa ao abastecimento e
fornecimento de alimentos a população dos municípios rompendo, assim, ainda que
parcialmente, com a dependência em relação aos mecanismos tradicionais de aquisição de
alimentos via as redes e grupos de supermercadistas.
As feiras da agricultura familiar também geram uma diferenciação dos produtos em
nível dos municípios, pois os produtos de autoconsumo trazem a “marca” da agricultura
familiar e não se assemelham em nada aos produtos fabricados industrialmente pelo sistema
agroalimentar. Nas feiras são encontrados produtos alternativos em que muitos possuem
marcas, selos e estratégias de marketing que os diferenciam dos consumidos tradicionalmente,
fazendo com que a população os adquira justamente pelo seu carácter alternativo em termos
alimentares. São os casos dos produtos ditos coloniais, agroecológicos, artesanais, ecológicos
e outras denominações típicas de locais, origens e tradições ligadas à história da agricultura
familiar.
No caso das feiras, a agricultura familiar gera a segurança alimentar das populações do
território através do processo de abastecimento a nível local, atendendo a alguns dos
princípios norteadores da segurança alimentar, como formulado por Maluf et all (2004).
Primeiro, por permitir o acesso e a disponibilidades de alimentos a população e, segundo, por
fornecer produtos com qualidade nutricional e, terceiro, por abastecer os consumidores com
alimentos que estão de acordo com os hábitos de consumo “arraigados” historicamente no
território
158
. No caso do acesso e da disponibilidade de alimentos estes são propiciados pela
produção de autoconsumo das unidades familiares que respondem pelo fornecimento dos
produtos as feiras da agricultura familiar, inclusive, com preços mais baixos do que os
157
No documento da Feira Ecológica da Agricultura Familiar de Constantina constam como objetivos e
resultados da mesma: diminuição dos custos de produção; melhoria dos rendimentos e da qualidade de vida dos
agricultores familiares; incrementos na renda familiar e; gerar um melhoramento da propriedade como um todo
(Emater, sd, p. 4).
158
O princípio da segurança alimentar no que diz respeito ao fornecimento de quantidades permanentes e
suficiente de alimentos não pode ser utilizado para o caso das feiras da agricultura familiar, pois estas são
estruturas de comercialização que, na maioria dos casos, funcionam apenas um dia por semana nos municípios,
além de contarem com o abastecimento de apenas alguns tipos de alimentos predominantes em detrimento de
outros. O consumidor pode abastecer-se de apenas alguns gêneros alimentícios como as verduras e produtos de
horta, as frutas e os produtos da chamada “agroindústria” familiar que são os predominantes nas feiras.
243
alimentos que são adquiridos nos canais tradicionais de mercado pelo fato de haver uma
relação direta agricultor-consumidor que é facilitadora do acesso alimentar.
A qualidade nutricional é representada pelos produtos de autoconsumo que são
comercializados por estes serem, em algumas das feiras pesquisadas, produtos sem o uso de
fertilizantes químicos, agrotóxicos e outros insumos baseados nas técnicas de cultivo e criação
da assim chamada modernização da agricultura como também observaram Godoy et all
(2003). Quanto aos hábitos de consumo, se verificou que a grande maioria dos produtos
vendidos nas feiras da agricultura familiar são o que poderíamos chamar de “produtos
territoriais”. Ou seja, que possuem uma história de consumo ligada às famílias rurais e
também aos habitantes dos centros urbanos, constituindo-se em alimentos que possuem um
reconhecimento e integram os hábitos alimentares, a culinária e a gastronomia local da
população de um longo período histórico de tempo.
Malgrado, à importância das feiras da agricultura familiar para a sua reprodução
social, para o abastecimento e a segurança alimentar da população do território, estas
iniciativas são frágeis e pouco significativas frente ao contexto mais geral em que ocorre o
abastecimento alimentar dos municípios agrícolas do Alto Uruguai. Esta afirmação está
baseada na percepção de que as feiras pesquisadas se constituem em experiências muito
pequenas e localizadas se confrontadas com as condições que se exige para um adequado
abastecimento e segurança alimentar nos municípios. No caso do município de Palmitinho a
feira funcionava com apenas 3 feirantes. Em Taquaruçu do Sul também eram poucos
agricultores, sendo que não se dispõe dos números exatos. Em Frederico Westphalen são 44
agricultores feirantes, sendo esta feira a mais expressiva em números de agricultores e em
volume de vendas. A feira de Frederico Westphalen também é a mais antiga de todas,
possuindo uma história de mais de 20 anos de existência. No município de Constantina a feira
ecológica continha apenas 5 agricultores familiares. Em síntese, estes dados demonstram a
pouca escala e tamanho deste tipo de iniciativa local nos municípios do Alto Uruguai.
A explicação para a pequena expressividade das feiras da agricultura familiar no Alto
Uruguai deve ser buscada em um conjunto de fatores. Em primeiro lugar, a própria história de
desenvolvimento agrícola e setorial do território limita que ganhem fôlego iniciativas
alternativas de comercialização fora do escopo da produção de grãos e commodities agrícolas.
Em segundo lugar, está a dinâmica do abastecimento e da segurança alimentar nestes
municípios que é governada principalmente pelos supermercados urbanos. Neste contexto, a
criação de feiras da agricultura familiar é vista como motivo de disputas políticas, de embates
244
e de descrenças por uma parte da população urbana e pelos donos de postos de abastecimento
alimentar.
Em terceiro lugar, soma-se o baixo nível de consumo dos municípios pequenos em que
operam tais iniciativas, fazendo com que as feiras da agricultura familiar não se tornem,
efetivamente, significativas do ponto de vista do número de agricultores feirantes e do volume
de vendas praticados. Como quarto motivo, pode-se dizer que a própria dinâmica
essencialmente agrícola destes municípios assentada na produção de grãos e commodities não
permite que os agricultores aumentem a produção de alimentos alternativos para venda nas
feiras como os provenientes das hortas, pomares, agroindústrias rurais, artesanato, etc. Soma-
se a isso, que estes municípios não possuem uma integração em relação a outros territórios ou
mesmo a centros urbanos maiores, como aludiu Saraceno (sd, p. 12; 1994, p. 329), o que
limita a comercialização e venda destes produtos para outros locais e regiões. Poderia-se
ainda, elencar outros fatores como a pobreza de parte da população e o baixo nível de renda, a
pouca diferenciação social desta e a não existência de um mercado consumidor que possua
condições de renda compatíveis para alavancar processos de consumo significativos.
Agrega-se a isso, a falta de periodicidade de fornecimento e abastecimento de produtos
requeridos pelos consumidores urbanos devido a sazonalidade produtiva, o que limita as
possibilidades reais de expansão das feiras da agricultura familiar como verificaram Kiyota et
all (2000). Estas dificuldades de consolidação das feiras da agricultura familiar foram
recorrentes durante o trabalho de pesquisa, como demonstram os trechos das entrevistas. No
primeiro relato verifica-se que o agricultor formula que as feiras da agricultura familiar não se
desenvolvem nos municípios por que estes são cidades pequenas e por que não possuem
processos de consumo de alimentos significativos. No segundo relato, ficam evidentes as
disputas dos outros postos de abastecimento municipais, como no caso dos supermercados,
com as feiras da agricultura familiar, envolvendo conflitos em torno de fixação de preços de
produtos e com as instituições locais de desenvolvimento como a secretaria da agricultura e a
Emater, que são as instituições responsáveis pela organização de tal iniciativa.
No nosso lugar aqui não existe consumo dá para dizer, porque é tudo uma
cidade pequena. O produtor para vender uma coisa nas pequenas cidades não
é fácil hoje em dia, porque em primeiro lugar hoje em dia onde que não tem
boca não tem. O alimento vai aonde? (Entrevista 3, 2004, L. F., Agricultor
familiar).
Nós temos comércio muito forte aqui em Taquaruçu e às vezes isso atrapalha
porque o comércio nosso tem ciúme da Feira do Produtor. O dia que tem Feira
aqui eles baixam os preços dos produtos. [...] Então, o pessoal não quer fazer
ninguém crescer, às vezes o comércio forte é bucha num lugar. Um lugar
pequeno como aqui nós temos 5 supermercados fortes e grandes. [...] É uma
concorrência acirrada, então tu imagina esses 5 mercados e a secretaria da
245
agricultura e a Emater (incentivando a Feira do Produtor), vai ter até
problemas políticos, mexeu até com políticos por causa da Feira do Produtor
(Entrevista 7, 2004, J. C. L., Técnico em Agropecuária, Emater).
Malgrado estes problemas e a pouca relevância das feiras da agricultura familiar nos
municípios pesquisados, mesmo assim, é importante reafirmar que a agricultura familiar
possui um papel importante no abastecimento e na geração da segurança alimentar da
população do Alto Uruguai. Este papel se observa através do fornecimento de alimentos e da
promoção de alguns dos principais princípios da segurança alimentar em que os agricultores
familiares são os maiores responsáveis nas duas iniciativas analisadas: o Programa Fome Zero
e as feiras da agricultura familiar.
Na próxima seção, analisam-se as políticas públicas e iniciativas locais de
desenvolvimento das SAMs, da Emater, das organizações e representações da agricultura
familiar (Fetag, Fetraf-Sul, MPA, cooperativas de produção agropecuárias), do Codemau, dos
CMDRs, etc, tentando-se estabelecer o vínculo destas com a segurança alimentar dos
agricultores familiares. Pretende-se demonstrar, também, que estas políticas públicas e
iniciativas locais possuem uma dupla lógica de ação em que estão assentadas, pois estas
fortalecem tanto as atividades produtivas mercantis e dinâmicas como a produção de
autoconsumo de alimentos das famílias rurais.
5.4 – POLÍTICAS PÚBLICAS E INICIATIVAS LOCAIS DE DESENVOLVIMENTO,
PRODUÇÃO DE AUTOCONSUMO E SEGURANÇA ALIMENTAR.
As políticas públicas e iniciativas locais de desenvolvimento que se propõe a analisar
nesta seção, são as ações, iniciativas e trabalhos de instituições como as secretarias da
agricultura municipais, os escritórios municipais da Emater, dos Conselhos Municipais de
Desenvolvimento Rural, do Conselho de Desenvolvimento do Médio-Alto Uruguai
(Codemau) e de organizações como cooperativas e entidades de representação social dos
agricultores familiares (Fetag, Fetraf-Sul e MPA). A idéia central é a de elucidar a lógica de
ação destas em relação ao autoconsumo familiar, mostrando que estas enfocam este tipo de
produção em algumas de suas ações, mas que também há um nítido privilegiamento da esfera
mercantil e comercial das unidades de produção.
Para realizar tal empreendimento, a análise está dividida em duas partes. Primeiro,
analisam-se as políticas públicas e iniciativas locais que visam à inserção mercantil das
246
unidades de produção. E, em segundo lugar, estudam-se as políticas e ações locais que
promovem o fortalecimento da produção de autoconsumo das famílias do Alto Uruguai.
5.4.1 – As políticas públicas e iniciativas locais de fortalecimento da esfera mercantil das
unidades de produção.
As políticas públicas e iniciativas locais no Alto Uruguai possuem uma lógica de ação
semelhante a que se analisou no caso do Pronaf, no capítulo 4. Neste sentido, o que se
pretende demonstrar é que há um privilegiamento das atividades produtivas e econômicas das
unidades de produção que são dinâmicas e com mercado garantido em detrimento da
produção de autoconsumo familiar. Percebe-se, que as políticas públicas e iniciativas locais
que seriam os instrumentos responsáveis, em grande medida, pela transformação social,
econômica e produtiva do território, na verdade, o que estas estão fazendo é fortalecer o
padrão de desenvolvimento hegemônico que está levando, dentre outras coisas a uma
vulnerabilização e mercantilização do autoconsumo familiar, tal como se demonstrou no
capítulo 3.
As principais políticas públicas e iniciativas locais de desenvolvimento no Alto
Uruguai são voltadas às atividades tradicionais como a produção de grãos e commodities
agrícolas e a integração aos CAIs da suinocultura e avicultura. Isso demonstra que a mudança
de paradigma vigente que não é fácil de ser executada no Alto Uruguai, pois as instituições,
atores e organizações sociais ligadas ao desenvolvimento não conseguem visualizar atividades
produtivas e econômicas alternativas a este padrão agrícola de desenvolvimento e que
propiciassem um processo real de diversificação rural que não ficasse preso somente a
produção de grãos e a integração agroindustrial. No que se refere a estas políticas e iniciativas
locais, começa-se analisando algumas delas como a as que estão voltadas a apoiar o plantio de
grãos e a expansão da integração vertical.
Neste sentido, há uma gama de ações locais que são desenvolvidas visando à
adequação das áreas de plantio e o aumento de produção agropecuária. É o caso dos trabalhos
como construção e recuperação de estradas vicinais que objetiva o escoamento da produção
agrícola das áreas interioranas dos municípios. Também é o caso dos trabalhos de máquinas
fornecidos pelo poder público local que, em muitos lugares, é desenvolvido através das
chamadas “patrulhas agrícolas” que executam atividades diversas, onde as principais são: a
limpeza de áreas com pedras, controle da erosão, destocamentos, adequações de áreas para
plantio, construção de canais de drenagem, fornecimento de trabalhos de máquinas para
247
executar o plantio de grãos, distribuição de esterco orgânico nas unidades de produção.
Enfim, trabalhos que visam principalmente à melhoria das áreas de terras impróprias para que
haja a sua incorporação à produção visando o aumento da produtividade agrícola
Em muitos casos, os atores sociais de desenvolvimento justificam tal opção das
políticas públicas e iniciativas locais devido às atividades ligadas à produção de grãos e
commodities serem as principais estratégias de reprodução social dos agricultores familiares
do Alto Uruguai, como o relato de um agrônomo da Emater demonstra que os grãos são a
prioridade principal, pois “é o que mais gera renda” e, por este motivo, “o grão é a
prioridade” nas ações dos atores e instituições locais de desenvolvimento.
Mas te digo francamente, a soja é a primeira em termos de retorno de ICMS, a
questão de retorno à soja eu acredito que seja o primeiro. [...] Quando eu falo
soja são os grãos, vamos pegar os grãos soja, milho e trigo, estes três são os
fortes. O grão é a prioridade sem dúvida, é o que mais gera renda [...]
(Entrevista 22, 2004, R. B., Engenheiro Agrônomo, Emater).
Neste sentido, parace haver uma contradição em termos de qual desenvolvimento se
quer gerar com as políticas públicas e iniciativas locais das instituições de desenvolvimento,
pois muitos dos atores sociais de desenvolvimento exercem uma crítica forte ao padrão de
desenvolvimento agrícola e ao processo de mercantilização da agricultura familiar. Contudo,
quando se examina os trabalhos que desenvolvem percebe-se que são voltados ao
aprofundamento deste padrão. Há inclusive casos em que os CMDRs aprovaram em seu plano
de trabalho que o fortalecimento do padrão agrícola é a prioridade das iniciativas e trabalhos
da Emater e do poder público municipal. Ou seja, os CMDRs, que se esperaria que fossem
unidades de planejamento do desenvolvimento dos municípios, fazem uma opção deliberada
por ações que acabam reforçando o desenvolvimento agrícola e para promover incrementos
na produtividade das principais culturas.
Já em outros casos, os trabalhos dos conselheiros municipais consiste em fazer o
acompanhamento e a lista dos agricultores que serão beneficiados pelos serviços das
chamadas “patrulhas agrícolas” e máquinas do poder público municipal, demonstrando o viés
que as políticas públicas e iniciativas locais possuem em torno do desenvolvimento agrícola.
O relato do que foi traçado como prioridade de trabalho de um dos CMDRs é ilustrativo desta
tendência das ações de desenvolvimento no Alto Uruguai. Observa-se, pelo relato, que a
prioridade do CMDR foi a readequação das áreas impróprias e de cultivo para implantação de
culturas como o milho, a soja, o feijão, etc visando o aumento da produção agrícola.
O Valor Adicionado (Bruto) [...] em 97 era de 7 milhões que vinha da
agricultura e hoje nós temos em 46 milhões da agricultura. Ele teve um
248
crescimento muito grande que foi da adequação das lavouras que deu um
aumento da produção significativo da produção de milho, soja, feijão, todas as
safras do município. [...] E para começar o desenvolvimento do município a
readequação das propriedades, das lavouras, das áreas que fica mais fácil o
pessoal plantar (Entrevista 11, 2004, N. B., Secretário da Agricultura
Municipal, SAM).
Há também um conjunto amplo de políticas públicas e iniciativas locais que são
voltadas à instalação e ao desenvolvimento de atividades como a suinocultura e avicultura.
Incluem-se, neste sentido, o fornecimento de trabalhos de máquinas para executar a
terraplanagem para a construção das pocilgas e aviários, o fornecimento de materiais para
construção dos mesmos como areia, pedras britas, cimento e, em alguns casos, até a força de
trabalho de funcionários das prefeituras para executar os sistemas de instalação elétrica, o
encanamento ou mesmo a construção das instalações. Neste sentido, a justificativa
apresentada pelos atores de desenvolvimento para este conjunto de trabalhos é a de que a
suinocultura, principalmente, é uma atividade que em alguns municípios chega a quase 70%
do retorno do ICMS do município.
Desse modo, pode-se dizer que reside nesta compreensão à contradição central deste
tipo de ação, pois as políticas públicas e iniciativas praticadas são em função da rentabilidade
que as mesmas irão gerar para os cofres públicos e não para os agricultores familiares. Neste
sentido, tanto as políticas públicas de incentivo a produção de grãos, com destaque para a
soja, e aos CAIs possuem este viés de estimularem o desenvolvimento financeiro das
prefeituras através do retorno de impostos, deixando em segundo plano as aspirações
produtivas e econômicas dos agricultores. Esse tipo de concepção e ação das políticas
públicas e iniciativas locais, ficam explicitados nos relatos de dois secretários municipais da
agricultura com relação à suinocultura. No primeiro relato, o informante elenca alguns dos
principais trabalhos que a SAM realiza junto aos agricultores. No segundo, o secretário da
agricultura formula que o incentivo à atividade é por que esta gera em torno de 68 a 70% do
ICMS que retorna para os cofres municipais e formula que “no caso do ICMS que vem em
primeiro lugar vem à suinocultura”.
Colocamos a disposição dos agricultores para auxiliar na construção e
melhoramento das propriedades, galpões, pocilgas e chiqueirões. Nós temos
uma equipe de pedreiros e carpinteiros que são dois pedreiros, dois
carpinteiros, um eletricista e um encanador que nós estamos colocando a
disposição num programa em incentivo à suinocultura da secretaria aos
agricultores (Entrevista 11, 2004, N. B., Secretário da Agricultura Municipal,
SAM).
Em termos de rentabilidade para o município seria a suinocultura que hoje nós
temos em torno de 50
a 60 propriedades produzindo e o retorno só da
suinocultura dá quase 68 a 70% (do ICMS) que vem. No caso do ICMS que
249
vem, em primeiro lugar vem à suinocultura, a avicultura, o fumo, depois o
milho, a soja e o leite está lá em sétimo ou oitavo [...] (Entrevista 5, 2004,
Técnico em Agropecuária, SAM).
Há também uma gama de trabalhos em torno das outras políticas públicas que vêm das
esferas administrativas tanto a nível estadual como federal e que são importantes na dinâmica
de trabalho das instituições locais. É o caso da elaboração de projetos e da operacionalização
de programas como o RS-Rural e também o Pronaf, que segundo os atores sociais de
desenvolvimento “toma muito tempo de trabalho” das instituições locais, principalmente da
Emater. Segundo estes, a elaboração e execução destas políticas públicas como o RS-Rural, o
Banco da Terra, o Pronaf, o Proger Rural e o Proger Rural Familiar, demandam muito do
tempo de trabalho que poderia ser administrado e distribuído em termos de extensão rural e
assistência técnica junto aos agricultores. Este fato também é motivo de críticas por parte dos
agricultores, que acham que o que principalmente falta é os “técnicos da Emater saírem mais
do escritório” e estarem mais presentes nas comunidades rurais.
Inclusive este é um dos motivos apontados pelos agricultores pelo qual a produção de
autoconsumo está fragilizada nas unidades de produção. Seria devido à falta de assistência
técnica e extensão rural das instituições locais como Emater e SAMs. Isso pode ser ilustrado
pelos dados da Pesquisa AFDLP (2003) realizada no município de Três Palmeiras, no Alto
Uruguai. Esta pesquisa demonstra que a maioria dos agricultores familiares do Alto Uruguai
possui acesso às políticas de assistência técnica e extensão rural atingindo um percentual de
55,9% dos entrevistados. Mas, se se levar em conta o percentual de agricultores que não
possuem acesso a este tipo de política pública (44,1%), concluí-se que o percentual de 55,9%
não é tão significativo do ponto de vista da abrangência das políticas públicas de assistência
técnica e extensão rural, já que quase a metade dos agricultores não tem acesso a estes
serviços
159
.
Isso pode ser explicado devido ao fato da assistência técnica e extensão rural
fornecidas aos agricultores não serem somente oriundos de órgãos públicos. Segundo a
Pesquisa AFDLP (2003), os órgãos públicos são responsáveis por apenas por uma parte em
tais trabalhos. A Emater é responsável por somente 28,8% do total de assistência técnica e
159
Pode-se perceber, durante o trabalho de campo, uma certa “discriminação” em relação ao tipo “ideal de
agricultor que as instituições locais privilegiam em termos de desenvolvimento dos trabalhos de assistência
técnica e de extensão rural. Há um nítido privilegiamento a aqueles agricultores familiares que são “modelo”
para o município em detrimento daqueles mais pobres e menos estruturados em termos de sua unidade de
produção. Isso é extremamente contraditório do ponto de vista da segurança alimentar, pois são estes últimos os
que mais necessitam de políticas públicas para gerar o fortalecimento da sua produção de autoconsumo e
diversificar as suas estratégias de vivência.
250
extensão rural no Alto Uruguai; as SAMs por 3,4% e, a Secretaria Estadual da Agricultura por
5,1%. Como órgãos privados de assistência técnica e extensão rural se sobressaem às
cooperativas de produção com 30,5% do total; os sindicatos com 3,4%; as empresas
integradoras com 6,8% e, particulares com 6,7% do total. Isso explica, em partes, o processo
de vulnerabilização do autoconsumo, pois as cooperativas de produção agropecuárias, por
exemplo, prestam a assistência para que haja o fortalecimento do cultivo de grãos e
commodities agrícolas na região que são as atividades com as quais elas trabalham. Do
mesmo modo, as empresas integradoras e particulares visam o fortalecimento do setor
específico em que atuam. Assim, o tipo de assistência técnica e de extensão rural prestado no
Alto Uruguai influencia diretamente as estratégias de reprodução social dos agricultores e,
também, em partes, agem no sentido de vulnerabilizar a produção de autoconsumo e,
conseqüentemente, assim, a segurança alimentar dos mesmos.
Há também um conjunto variado de iniciativas no Alto Uruguai que visam romper
com o padrão de desenvolvimento agrícola. Estas iniciativas das instituições locais ocorrem
na área da bovinocultura do leite, da fruticultura, da agroindustrialização e agregação de valor
aos produtos da agricultura familiar, no tratamento ambiental da água e saneamento básico,
através de cursos de formação e profissionalização dos agricultores dentre outros trabalhos
que os atores, instituições e organizações sociais estão realizando. Estes trabalhos, de certa
forma, enfocam um padrão de desenvolvimento diferenciado das práticas e princípios da
assim chamada modernização da agricultura e, também, são uma forma de diversificação das
estratégias de vivência dos agricultores, tal como formulou Ellis (2000). Neste sentido, os
agricultores estão se reproduzindo não somente pelas estratégias de produção agropecuária e
através da integração agroindustrial, mas por um conjunto de atividades produtivas variadas e
alternativas a este padrão de desenvolvimento hegemônico
160
.
Contudo, o mais contraditório é que este gama de atividades produtivas diferenciadas
que, de certo modo, estão propiciando a diversificação das estratégias de vivência dos
agricultores familiares não conseguem romper com o padrão de desenvolvimento agrícola
hegemônico no Alto Uruguai. Há uma compreensão clara dos atores sociais e das instituições
de desenvolvimento de que o território deve se diversificar. Tanto é assim, que várias das
160
Segundo Ellis (2000) a diversificação e a especialização das estratégias de vivência dentro de uma unidade de
produção não são contraditórias e excludentes. Neste sentido, se a família possui um número de membros
suficientes para tal empreendimento ela pode ser diversificada em suas várias atividades produtivas, rendas e
ativos. Ou seja, no seu portfolio e, ao mesmo tempo, cada um dos membros do grupo doméstico ser especialista
em uma atividade específica de produção. No Alto Uruguai esta abordagem encontra dificuldades de ser
operacionalizada nos grupos domésticos por ser este um local de expulsão demográfica como já se demonstrou e
251
ações locais agem neste sentido, mas não conseguem executar a “quebra de paradigma” do
desenvolvimento agrícola que possui as suas raízes na história do Alto Uruguai, dificultando,
assim, o desenvolvimento de alternativas viáveis do ponto de vista da reprodução social dos
agricultores familiares
161
. O que acontece no Alto Uruguai não é diferente de outros lugares
onde o desenvolvimento agrícola e a produção de grãos são as principais estratégias de
reprodução das famílias. Neste sentido, ressalta-se que talvez não bastem somente políticas
públicas e iniciativas locais diferenciadas para modificar este cenário social, econômico e
produtivo, pois este decorre de um contexto mais geral e estrutural do país que se refere ao
“modelo” de desenvolvimento capitalista e de suas influências sobre o rural.
Este direcionamento e as dificuldades de se diversificar as estratégias de vivência dos
agricultores familiares através das políticas públicas ficam explicitados no depoimento de um
presidente de STR da Fetag e de um agricultor familiar que enfatiza a diversificação como um
dos princípios trabalhados pelas instituições e atores sociais no Alto Uruguai
162
. No primeiro
relato, observa-se a dificuldade de executar a diversificação das atividades produtivas dos
agricultores e, mesmo quando isso ocorre, este processo se desenvolve setorialmente dentro
da própria produção de grãos, de leite, da produção de carnes e da fruticultura. No segundo
relato, o agricultor entrevistado deixa explicito que os trabalhos e ações das instituições e
atores sociais de desenvolvimento são voltados a diversificação rural como forma de sair do
padrão produtivo dos grãos (milho e soja).
Buscaram-se já vários exemplos e se frustrou (o agricultor) e hoje quando
você traz uma nova alternativa para o produtor ele fica muito atrás, muito na
dúvida se vai ser viável ou não. Assim, dento das possibilidades o produtor
diversifica a produção de grãos, de leite, de carne, de fruticultura alguns, mas
ainda nós estamos a passos lentos (Entrevista 8, 2004, D. S., Representante
Sindical, Fetag).
Eles estão em cima de tudo isso ai, em cima do leite, do peixe, da fruta essas
coisas que eles querem que todos diversifiquem para ter uma renda a mais.
[...] Eles trabalham com tudo um pouco e sempre falam nas reuniões que não
onde as famílias rurais possuem, em média, somente 4 membros conforme se constatou através da Pesquisa
AFDLP (2003) e já havia sido demonstrado amplamente por Conterato (2004).
161
As políticas públicas e iniciativas locais enfocam a diversificação das estratégias de vivência dos agricultores
familiares, porém esta diversificação das unidades de produção é sempre formulada pelos informantes (tanto
agricultores como os atores sociais de desenvolvimento) num quadro setorial, ou seja, a diversificação dentro das
atividades agropecuárias. Estes atores sociais, em nenhum momento, formularam a diversificação das estratégias
de vivência via a integração intersetorial ou multisetorial através, por exemplo, de atividades não agrícolas e da
pluriatividade.
162
No caso da diversificação o Codemau que pode ser considerado uma instituição territorial de
desenvolvimento pela sua ampla abrangência nos diversos municípios e pelos seus trabalhos com programas
regionais de desenvolvimento, enfatiza que os “eixos” principais por onde deve se assentar o desenvolvimento
da região são: em 1º lugar a diversificação rural; 2º a agregação de valor e a agroindustrialização da matéria-
prima e, em 3º lugar a mineralogia. Mesmo o Codemau trabalhando com programas alternativos a questão do
desenvolvimento agrícola estricto sensu este padrão não consegue ser modificado significativamente no Alto
Uruguai.
252
adianta plantar só o milho ou só a soja e deixar o resto por que ai não tem
como você sobreviver se encher todas as terras de soja e ai não sobra mais
nada para plantar. Então eles dizem que vem tudo do mercado e ai é difícil.
Eles sempre dizem que a pequena propriedade não era para se envolver com a
soja, isso nas reuniões que eu fui, algumas vezes, eles dizem que não adianta
se botar na soja o pequeno, não adianta, pobre não adianta. Tem que plantar
um pouco de tudo e criar um pouco de tudo (Entrevista 10, 2004, L. S.,
Agricultor familiar).
O objetivo desta seção foi o de analisar as principais políticas públicas e iniciativas
locais de desenvolvimento do Alto Uruguai. Procurou-se demonstrar que tais ações e
trabalhos desenvolvidos, em grande medida, não conseguem modificar a situação social,
econômica e produtiva do território, mas que, em alguns casos, estas vêm de encontro ao
fortalecimento do padrão de desenvolvimento vigente. Na próxima seção, busca-se mostrar
que existem algumas destas políticas e iniciativas locais que enfocam o estímulo da produção
de alimentos próprios dos agricultores familiares. Muitas, inclusive, sendo responsáveis pela
geração de processos de segurança alimentar junto às famílias rurais.
5.4.2 – As políticas públicas e iniciativas locais de estímulo à produção de autoconsumo.
Não obstante, a relevância das ações e dos trabalhos das instituições e atores locais de
desenvolvimento em termos de fortalecer e inserir os agricultores familiares nos mercados de
grãos e commodities agrícolas e de integração aos CAIs, existem vários trabalhos que se
direcionam a produção de autoconsumo. Estas ações se desenvolvem na área da bovinocultura
de leite, da fruticultura, do tratamento da água e saneamento básico, de trabalhos de prestação
de assistência técnica e extensão rural voltados ao autoconsumo e, de cursos e capacitações
profissionais visando o aprendizado da produção, elaboração e preparo dos alimentos. Isto
mostra que, mesmo que persista o padrão agrícola de desenvolvimento hegemônico, existem
iniciativas que apresentam soluções para a vulnerabilização da agricultura familiar e da
segurança alimentar.
Dentre estas políticas e ações locais, a bovinocultura de leite é uma das principais
atividades produtivas vista como alternativa ao padrão de desenvolvimento dos grãos e
commodities agrícolas. Como já se demonstrou no capítulo 4, o leite é uma produção que
possui o carácter da alternatividade como definiu Garcia Jr. (1983; 1989). As políticas
públicas e iniciativas de fortalecimento da produção leiteira no Alto Uruguai enfocam a
bovinocultura leiteira uma das principais alternativas ao padrão de desenvolvimento dos grãos
253
e a especialização produtiva, sendo que o leite é tido como uma diversificação das estratégias
de vivência dos agricultores.
As políticas públicas e iniciativas locais fortalecem a bovinocultura leiteira através do
fornecimento de assistência técnica e extensão rural através de veterinários que orientam na
prevenção e cura das doenças animais, na inseminação artificial, no manejo e implantação de
pastagens e demais orientações gerais da atividade. Há também, um processo de orientação
quanto à construção de silos, no processo de elaboração de silagem e na alimentação dos
animais. As ações locais também se desenvolvem na área de manejo sanitário dos animais e
pastagens, na orientação quanto à escolha e aquisição de matrizes leiteiras e em cursos de
profissionalização dos agricultores na atividade. Em outros casos, há inclusive, a doação de
matrizes leiteiras em conjunto com outras políticas públicas estaduais como o RS-Rural nas
comunidades menos estruturadas e mais pobres dos municípios, bem como outras ações de
reestruturação familiar e produtiva nas chamadas “bacias leiteiras”
163
.
As políticas públicas e iniciativas locais desenvolvem a bovinocultura de leite por ser
esta uma atividade produtiva que é muito importante na reprodução social dos agricultores
familiares “pelo lado social”, como formularam os informantes. Ou seja, em termos de
retorno econômico para os municípios (ICMS), a produção de grãos e commodities agrícolas e
a integração agroindustrial são hegemônicos. Porém, pelo lado da manutenção do tecido
social e a reprodução social e alimentar dos agricultores o leite compreende uma boa parte da
quota das famílias nos municípios. Isso é devido o leite seguir a trajetória da alternatividade e
a sua produção ter vários usos no contexto da unidade de produção familiar como já se
demonstrou no capítulo 4. Também, é devido o leite possuir um caráter mercantil para as
famílias. O caráter mercantil desta produção é importante, pois assegura uma renda mensal
para as famílias, facilitando que estas façam frente aos gastos mensais em termos de
alimentação que não é produzida na unidade familiar, para os gastos com roupas,
combustíveis, energia elétrica, telefone e outras pequenas despesas mensais, chegando alguns
informantes a formularem que “o leite é o salário do agricultor familiar”.
A produção de leite nos pequenos municípios do Alto Uruguai é importante, também,
para a dinamização da economia local, pois é uma renda que faz com que o comércio, as
pequenas lojas, os supermercados, as agropecuárias e outros estabelecimentos se beneficiem
163
As chamadas “bacias leiteiras” compreendem certas comunidades rurais onde a atividade de produção de leite
é predominante. O termo bacia leiteira é tributário das ações estaduais nas chamadas bacias hidrográficas
municipais. Desse modo, as políticas estaduais como o RS-Rural possuem como unidade básica de ação as
chamadas bacias hidrográficas mais pobres dos municípios e, por este motivo, que o termo “bacia” é utilizado,
também, nos casos das ações em torno da bovinocultura de leite.
254
das compras realizadas pelos agricultores todos os meses gerando, assim, um circulo virtuoso
de relações e trocas econômicas locais entre os atores sociais. O relato do presidente da
Coopac é ilustrativo da importância do leite para os agricultores familiares do Alto Uruguai.
A sua importância da atividade também pode ser visualizada pela Figura 6, que demonstra a
relevância desta nas unidades de produção.
Então isso começa a desenvolver o município e o agricultor por que ele todo o
mês tem o seu “salário”. O que ele faz com o “salário”? Ele coloca o telefone,
ele tem a água, ele tem luz, ele começou a adquirir os confortos, ele tem o
carro, ele abastece o carro com o dinheiro do leite, ele compra o que ele
necessita com o dinheiro do leite. Então é um “salário” do agricultor o leite e
sem contar os derivados que às vezes as famílias mesmas fazem com o leite e
as agroindústrias que surgiram que são 3 agroindústrias (Entrevista 19, 2004,
A. L., Agricultor familiar, Coopac).
Fonte: Pesquisa de campo (2004).
Figura 6: Importância da atividade leiteira para as unidades de produção familiares.
Um outro conjunto importante de políticas públicas e iniciativas locais se desenvolve
na área da fruticultura como uma atividade importante na reprodução social e na
diversificação das estratégias de vivência dos agricultores familiares. As principais culturas
incentivadas pelas ações locais são a citricultura (laranjas, bergamotas, etc), a viticultura (que
está em plena expansão sendo uma das principais culturas), o plantio de pessegueiros,
nectarinas, ameixeiras, figueiras dentre outros cultivos. As ações locais no caso da fruticultura
agem no sentido de viabilizar as mudas das frutíferas, orientar sobre o plantio e o manejo
255
como podas, adubação verde, aplicação de defensivos, etc bem como na área da
comercialização. Esta opção pela fruticultura pelas instituições e atores locais de
desenvolvimento é devido a um conjunto de razões, mas a principal é porque a fruticultura “é
para quebrar um pouco o paradigma da modernização”, como formulou um técnico da
Emater.
Em primeiro lugar, a fruticultura é uma produção que está fora do escopo tradicional
de produção de grãos e commodities agrícolas e que possui o carácter da alternatividade,
como já se demonstrou no capítulo 4. Além disso, é uma atividade alternativa de inserção
mercantil das unidades de produção familiares. Em segundo lugar, esta atividade demanda
uma menor quantidade de trabalho, em algumas épocas do ano, dos membros da unidade de
produção e um trabalho diferenciado em relação às tarefas que devem ser executadas, sendo,
em alguns casos, menos laborioso do que o cultivo de grãos. Os atores locais justificam a
atividade por ser um cultivo de caráter perene e que é mais resistente às secas e as outras
intempéries climáticas. Em terceiro lugar, está o seu alto valor agregado por unidade de área,
pois a atividade é responsável pela geração de uma maior renda por área plantada se
comparada aos cultivos de grãos. Também influi na opção pela fruticultura das unidades de
produção, a topografia do terreno, pois em áreas muito declivosas outras atividades não são
possíveis de serem implantadas. Neste sentido, a opção pela fruticultura faz com que nestas
áreas a atividade seja viável, também, do ponto de vista da conservação do solo e da água que
são considerados aspectos importantes para as instituições locais como as Ematers e as SAMs.
Tanto no caso da bovinocultura de leite, como no da fruticultura o fortalecimento da
produção de autoconsumo não é o objetivo central das políticas públicas e iniciativas locais.
Na maioria das vezes, o objetivo central é o de propiciar a geração de uma nova estratégia de
vivência para que os agricultores familiares se integrem a um “novo” tipo de mercado que não
o dos grãos e commodities agrícolas. Assim, o fortalecimento do autoconsumo e a
conseqüente geração da segurança alimentar são secundarizados na formulação de tais ações,
que visam à inserção comercial de tais unidades de produção. O autoconsumo, neste contexto,
só é fortalecido periferica e secundariamente nas unidades familiares, devido ao grupo
doméstico plantar para a venda e, assim, como possui este tipo de produção disponível, usa-a
para a alimentação da família. Esta é a principal contradição deste conjunto de ações locais,
pois o foco principal de tais iniciativas é a inserção mercantil e não a geração da segurança
alimentar da população rural através do estimulo ao autoconsumo de alimentos.
Do ponto de vista do fortalecimento da produção de autoconsumo no Alto Uruguai,
assume uma relevância também as políticas públicas e iniciativas locais que promovem o
256
tratamento da água, a preservação ambiental e o saneamento básico das unidades de produção.
A água não é um alimento produzido pelo agricultor e, tampouco, passa pelo processo de
produção agrícola das unidades familiares, porém ela é um alimento indispensável utilizado
no autoconsumo das famílias, sendo importante em relação à reprodução social, a segurança
alimentar e, sobretudo, na saúde da população rural. A água pode ser considerada também um
autoconsumo do grupo doméstico, pois ela é obtida, na maioria das famílias, no interior das
próprias unidades de produção e são raras as famílias que possuem água encanada e tratada de
fora do seu estabelecimento.
No caso da água, as instituições e atores locais desenvolvem um trabalho em relação à
manutenção da qualidade de vida e da segurança alimentar dos agricultores familiares, através
do desenvolvimento de métodos de tratamento, conservação e análises da qualidade das águas
servidas as famílias. Muitos destes trabalhos são executados em conjunto com as políticas
públicas estaduais como o RS-Rural
164
e, em outros casos, são próprios das instituições locais
de desenvolvimento como a Emater, as prefeituras municipais e as SAMs. Estas políticas
priorizam a construção de banheiros nas residências familiares, o destino correto das águas
utilizadas nos banheiros e na cozinha doméstica, a construção de fossas assépticas e
sumidouros, a canalização das águas residuais, a não poluição ambiental com as águas
residuais, etc.
Um outro conjunto de ações visam assegurar a qualidade da água para consumo das
famílias através de ações como a proteção correta das fontes, poços e vertedouros, limpeza e
construção de fontes, tratamento da água para consumo e preparo dos alimentos, análises
periódicas para auferir a qualidade desta em termos microbiológicos e químicos, etc. Além
disso, as ações enfatizam a “tomada de consciência” dos agricultores sobre a importância da
água como elemento essencial à qualidade de vida, a segurança alimentar e a preservação do
meio ambiente, que se concretiza em termos de orientações em reuniões técnicas, semanas do
meio ambiente e prescrições feitas via programas radiofônicos locais. Assim, este conjunto de
ações locais assume uma importância na reprodução social dos agricultores familiares, pois
164
Não é o objetivo desta dissertação, a análise do Programa RS-Rural no âmbito de uma política pública
estadual. Contudo, pode-se afirmar que ele é, em partes, responsável por processos de reestruturação do
autoconsumo nas comunidades rurais mais pobres e vulneráveis em sua reprodução social. Verificou-se durante
o trabalho de campo que o RS-Rural possui três pilares de ação nas famílias abrangidas. Constitui-se de ações de
geração de trabalho e renda, ações de saneamento básico e preservação ambiental e, um conjunto de trabalhos de
fortalecimento da produção de autoconsumo familiar. No caso do fortalecimento do autoconsumo incluem-se
ações como: construção de pomares, de hortas, implantação de pequenas lavouras de autoconsumo, doação de
pequenos equipamentos para a transformação e agregação de valor aos produtos da agricultura familiar através
da chamada “agroindústria caseira”, criação de pequenos animais, entrega de matrizes de vacas leiteiras e outros
pequenos animais, etc. Assim, em muitos casos, as instituições locais executam os seus trabalhos em conjunto
com o de outras políticas públicas de outros níveis administrativos do Estado, como ocorre no caso do RS-Rural.
257
além de gerar a segurança alimentar através da qualidade da água de consumo familiar,
também, preservam o meio ambiente e a qualidade de vida da população dos espaços rurais.
Este conjunto de trabalhos em torno da água e da segurança alimentar das famílias é
demonstrado pelo relato de um secretário da agricultura municipal que elenca algumas das
principais ações das instituições de desenvolvimento.
[...] Temos um trabalho que foi feito sobre a infra-estrutura na área rural e a
qualidade de vida, água potável nas famílias do interior, poços artesianos
acompanhado com exames de laboratório cada 6 meses para ver a
contaminação dos poços, das águas. [...] É um trabalho de conscientização do
destino correto das águas servidas, das fossas e dos banheiros, etc. Isso é feito
pelos extensionistas da Emater. E depois tem trabalhos com equipamentos e
máquinas que perfuram (novas fontes e poços). Nós fizemos trabalhos de
condução das águas servidas, construção de sumidouros, fossas assépticas, etc
nas propriedades. A gente chama isso de saneamento básico no meio rural
mais vinculado ao destino das águas servidas, das águas de banheiros, de
lavar roupa, as águas que existem ao redor da casa (Entrevista 11, 2004, N.
B., Secretário da Agricultura Municipal, SAM).
Ainda no âmbito dos trabalhos em conjunto das instituições locais e do RS-Rural se
pode destacar um conjunto de ações em torno da conservação do solo, recuperação das
qualidades químicas e físicas, práticas de correção da fertilidade e da acidez do solo, técnicas
de adubação orgânica, adubações verdes (cobertura verde do solo) e ações de controle da
erosão. Estas ações locais são importantes tanto do lado da produção dita mercantil como da
produção de autoconsumo, pois o solo é a base e o substrato para o desenvolvimento dos
processos produtivos agrícolas e o seu bom estado de conservação e manejo implica
diretamente no potencial produtivo das atividades agropecuárias que são desenvolvidas sobre
o mesmo. Assim sendo, a sua conservação e manutenção em condições adequadas assume
uma importância decisiva na reprodução social e alimentar dos agricultores familiares como
no caso da produção de autoconsumo destes.
Um outro grupo de ações e trabalhos das instituições locais voltados ao estímulo da
produção de autoconsumo é realizado através da construção coletiva e participativa de
experiências em unidades demonstrativas, que usualmente em extensão rural são chamadas de
lavouras demonstrativas ou “propriedades modelo”. Consiste na implantação de hortas,
pomares e lavouras de arroz, feijão, mandioca, batata, trigo, amendoim, dentre outras numa
comunidade ou mesmo nas escolas municipais de 1º grau, visando demonstrar como se deve
implantar, manejar e a importância que possui a produção de autoconsumo para as famílias
rurais. Estas experiências, geralmente, são realizadas em escolas ou em algum dos
agricultores da comunidade e possui um carácter participativo e coletivo na execução dos
258
trabalhos, sendo que todos os agricultores participantes se envolvem na execução da atividade
juntamente com os atores sociais de desenvolvimento. A sua importância reside em fazer com
que os agricultores (re) valorizem a produção de autoconsumo na dinâmica da sua unidade de
produção. Neste tipo de atividade geralmente as SAMs ou a Emater doam parte das sementes,
equipamentos e materiais necessários à execução da atividade de formação dos agricultores e
estes, por sua vez, contribuem com a sua força de trabalho para construir a horta, plantar o
cultivo ou mesmo implantar a lavoura específica de autoconsumo.
O crescimento dos cultivos é acompanhado periodicamente com visitas dos atores
sociais de desenvolvimento e dos agricultores. No final do ciclo destes, é realizada a colheita
e a quantidade de produto obtida é distribuída igualmente para cada agricultor da comunidade
que participou da experiência. Isso é realizado para que, no próximo ano, este mesmo
agricultor execute o plantio da sua própria lavoura de autoconsumo nos “moldes” em que lhes
foi ensinado pela experiência coletiva, fazendo, assim, que cada agricultor tenha as condições
técnicas para a produção (saber-fazer, as técnicas de cultivo, preparo do solo, época de
semeadura, etc) e o insumo básico para a produção (as sementes). No caso desta experiência
ser desenvolvida em escolas da rede municipal de ensino, o objetivo é a capacitação e
formação dos filhos dos agricultores quanto à importância da produção de autoconsumo para
que estes influenciem os pais e, também, os que forem agricultores futuramente já possuam o
corpo do saber necessário e o conhecimento acumulado sobre o assunto (Woortmann e
Woortmann, 1997).
Estas experiências podem ser consideradas como geradoras da segurança alimentar, tal
como a definiu Maluf et all (2004) para os agricultores, pois além de lhes fornecer o
conhecimento e o acompanhamento em uma atividade de formação pedagógica e
participativa, esta faz com que cada agricultor no final do processo se beneficie com as
sementes da produção de autoconsumo gerada podendo, assim, cultivar aquela cultura no
próximo ano agrícola para a reprodução social e alimentar do seu próprio grupo doméstico
165
.
O relato de um agrônomo da Emater e de um secretário da agricultura municipal é elucidativo
deste tipo de política pública e iniciativa local visando fortalecer a produção de autoconsumo.
No primeiro relato, verifica-se que este tipo de trabalho quando é realizado de forma coletiva
é chamado de “hortas comunitárias” ou de “propriedades modelo”. No segundo relato o
secretário da agricultura municipal explicita que o objetivo deste tipo de iniciativa é o de
165
No caso das hortas, a colheita das verduras, tubérculos e legumes é realizada de forma com que cada
agricultor se beneficie de uma parte da produção para ser utilizada no autoconsumo do seu grupo doméstico em
particular.
259
incitar os agricultores que não participaram da iniciativa a fazerem igual à experiência que foi
desenvolvida.
E1: Nós iniciamos um trabalho de se produzir o que realmente se consome
que é, desde a pipoca, o amendoim, as hortaliças no geral que é as hortas
comunitárias e até mesmo as hortas familiares. E também vai se trabalhar
junto às escolas municipais à propriedade como um todo. [...] Se vai trabalhar
nas escolas com os alunos e posteriormente se reúne à comunidade em uma
propriedade para ser uma “propriedade modelo” para posteriormente através
do mutirão se desenvolver em todas essas propriedades [...] (V. A.,
Engenheiro Agrônomo, Emater).
E2: Se pega uma “propriedade modelo” em cada localidade e depois a própria
visão do pessoal de fora em cima desta propriedade vai fazer com que eles
melhorem a sua (Entrevista 5, 2004, L. A., Técnico em Agropecuária, SAM).
Em relação ao estímulo da produção de autoconsumo, há também várias políticas
públicas e iniciativas locais que visam promover a profissionalização dos agricultores, a
formação e informação, a transferência de tecnologia e conhecimentos por parte das
instituições e organizações sociais para os mesmos. É o caso de cursos ligados à produção de
autoconsumo, a elaboração e preparação de alimentos, de boas práticas de higiene e limpeza
das habitações, de higienização correta dos alimentos, de hábitos alimentares saudáveis e
corretos, de tratamento da água, de melhor aproveitamento dos alimentos e da chamada
“alimentação alternativa”
166
.
Neste caso, este grupo de políticas públicas e iniciativas locais podem ser divididas em
dois grupos distintos em termos de enfoque. Num primeiro grupo, podem-se encontrar as
ações de formação e profissionalização dos agricultores em torno da esfera da produção dos
alimentos propriamente dita. Este conjunto de atividades geralmente envolve principalmente o
público masculino e os jovens também do mesmo sexo. Neste conjunto de atividades, estão os
cursos de formação (uma das principais atividades realizadas), os seminários municipais, os
dias de campo, as viagens de estudo e formação que visam socializar os agricultores com o
conhecimento de “novas” alternativas produtivas tanto ligadas ao autoconsumo familiar
como, em alguns casos, visando novos “nichos” mercadológicos.
O centro destas iniciativas gravita em torno da formação, capacitação e
profissionalização dos agricultores em relação às técnicas de produção do autoconsumo, ou
166
No caso da alimentação alternativa, encontrou-se durante o trabalho de campo uma experiência
importantíssima no que se refere à utilização da soja na alimentação humana. Esta leguminosa historicamente foi
utilizada no Alto Uruguai para a venda e não possuía nenhum valor em termos alimentares e nutricionais para a
população rural. Contudo, em alguns municípios pesquisados, ela está sendo utilizada para a confecção de
produtos de confeitaria e padaria como croquetes, biscoitos, bifes de soja, ambrosias, doces de soja, leite de soja,
etc realizando, assim, uma metamorfose do papel desta oleaginosa que somente era valorizada em termos de
mercado e que hoje passa a integrar os hábitos de consumo e a alimentação de muitas famílias no Alto Uruguai.
260
seja, a transmissão do corpo do saber como formularam Woortmann e Woortmann (1997). As
atividades de formação e capacitação estão ligadas à esfera da produção do autoconsumo,
englobando o repasse de conhecimentos em torno de algumas atividades como: a produção de
leite a pasto, a criação da terneira, formação e manejo de pastagens, utilização de caldas e
produtos menos tóxicos no combate de doenças e insetos, cursos na área da fruticultura
(implantação do pomar, podas, formação, comercialização, etc), derivados de leite, carne e
vegetais (agregação de valor), piscicultura, gestão rural, apicultura dentre outros. Alguns
destes cursos ministrados aos agricultores são relatados pelo presidente da Coopac no trecho
da entrevista. Verifica-se que os cursos que o informante relata estão mais voltados à área da
produção leiteira e seus derivados por ser esta a principal atividade que a cooperativa mais
desenvolve junto aos agricultores
167
.
[...] A gente fez muitos cursos, cursos de geléia de laranja, bergamota, a gente
fez vários cursos de derivados de leite que é para o agricultor fazer o queijo,
vários tipos de queijo, fazer bebida láctea, o iogurte, pão de soro, doce de
leite, bom, fizemos vários e, em praticamente, todas as comunidades do
município a gente fez curso com mulheres e homens também para eles
aprender a importância da produção de subsistência [...]. Todos estes produtos
ai a gente ensinou (Entrevista 19, 2004, A. L., Agricultor familiar, Coopac).
No caso das mulheres e jovens rurais, a capacitação e formação possuem um carácter
diferenciado da propiciada aos homens. Nas atividades formativas como cursos, excursões e
reuniões técnicas nas comunidades estas quase não são profissionalizadas em relação à esfera
da produção propriamente dita do autoconsumo. Com estas, as ações e trabalhos visam à
educação quanto aos hábitos alimentares saudáveis e corretos, as práticas de higiene e limpeza
das habitações e alimentos, a obtenção e o preparo destes, o seu aproveitamento para a
alimentação da família, a confecção de novos pratos e receitas, o preparo de chás de ervas
medicinais dentre outras profissionalizações
168
. Quando há os chamados Clubes de Mães
organizados nas comunidades dos municípios, geralmente, são estes grupos sociais que são
procurados pelas instituições locais para se ministrar cursos e reuniões técnicas sobre o
autoconsumo familiar, por que as mulheres já se encontram previamente organizadas, o que
facilita o acesso e a execução deste tipo de iniciativa.
167
Ressalta-se, que a maioria dos cursos ministrados aos agricultores que estão relacionados a produção de
autoconsumo são realizados pelas Ematers municipais e não por organizações da agricultura familiar como no
caso citado da Coopac.
168
No caso das mulheres, também são ministrados, pela Emater principalmente, vários cursos de confecção de
vários tipos de artesanatos e também de cosméticos caseiros como sabões, shampoos, sabonetes, etc que não são
produtos de autoconsumo alimentar, mas servem para autonomizar a reprodução social do grupo doméstico
frente ao contexto social e econômico ou, em alguns casos, até servir como uma pequena fonte de renda
alternativa para as famílias.
261
Assim, pode-se dizer que, enquanto os homens são socializados com as técnicas de
produção dos alimentos as mulheres, por sua vez, recebem o conhecimento necessário para o
seu preparo e aproveitamento para o grupo familiar assegurando, assim, a segurança alimentar
e nutricional dos alimentos consumidos pelo grupo doméstico. Este conjunto de políticas
públicas e iniciativas locais que são responsáveis pela formação e capacitação das agricultoras
pode ser visualizado pelo relato de um agrônomo da Emater municipal. Note que o informante
formula que este é um dos principais trabalhos da Emater com o autoconsumo e que a
“estratégia é de trabalhar com a mulher isso”, demonstrando a diferenciação por sexo que
existe, inclusive na execução destas ações locais de estímulo ao autoprovisionamento de
alimentos.
[...] Mas o principal trabalho que a gente faz com a subsistência é com as
mulheres atreves dos clubes de mães. Então é a produção da matéria-prima, é
a horta, é o aproveitamento do que ela tem em casa, como ela pode aproveitar
melhor, é a laranja, é a bergamota, é o leite, como que faz isso, como que
aproveita, as receitas. A nossa estratégia é de trabalhar com a mulher isso
(Entrevista 22, 2004, R. B., Engenheiro Agrônomo, Emater).
Ainda dentro do contexto da formação e informação dos agricultores familiares com
relação à produção de autoconsumo, existem uma série de políticas públicas e iniciativas
locais que não se constituem em ações e trabalhos “concretos” de geração do autoconsumo
junto aos agricultores. É o caso das orientações via reuniões técnicas nas comunidades, nas
visitas as residências dos agricultores e os programas radiofônicos das SAMs, das Ematers e
de outras instituições e representações sociais dos agricultores familiares como os sindicatos e
cooperativas de produção agropecuária, que fornecem as informações em torno da
importância da produção de autoconsumo. Como formularam os atores locais de
desenvolvimento este tipo de trabalho visa “conscientizar os agricultores da importância de
eles produzirem os seus próprios alimentos” nas suas unidades de produção e não depender,
assim, de compras exteriores assegurando, assim, a segurança alimentar destas famílias rurais.
No caso do Alto Uruguai, pode-se formular, que uma das principais políticas públicas e
iniciativas de fortalecimento do autoconsumo é baseada nas prescrições técnicas e nas
orientações que os atores sociais de desenvolvimento repassam aos agricultores familiares
como forma de conscientizá-los da importância de produzirem os seus próprios alimentos.
Soma-se a isso, a constatação de que uma boa parte das ações e trabalhos das
instituições de desenvolvimento locais são voltadas às atividades agropecuárias comerciais e
dinâmicas e não ao autoconsumo familiar, como já se demonstrou anteriormente. Além disso,
os atores sociais de desenvolvimento reconhecem que, em grande medida, as políticas
262
públicas e iniciativas locais estão deixando de lado a produção de autoprovisionamento de
alimentos das famílias, como o relato de um secretário da agricultura municipal demonstra. O
relato é elucidativo do “esquecimento” que as ações locais de desenvolvimento possuem com
relação a produção de autoconsumo, sendo que o informante chega a reconhecer que a
Emater, a SAM e a cooperativa local “estão fazendo pouco neste sentido” e que “tem que ser
mais forte este investimento técnico na produção de autosubsistência”
169
.
Neste sentido, eu confesso que está um pouco fraca esse fomento a idéias e a
produção de autosubsistência [...]. Tanto a Emater, a própria secretaria (da
agricultura) como a Cooperativa estão fazendo pouco neste sentido, tem que
ser mais forte este investimento técnico na produção de autosubsistência
(Entrevista 11, 2004, N. B., Secretário da Agricultura Municipal, SAM).
Também há um consenso das instituições e dos atores sociais de desenvolvimento do
Alto Uruguai em torno da importância de se alavancar processos de agroindustrialização e de
agregação de valor a matéria-prima proveniente da agricultura familiar, tanto no sentido de
fortalecer os processos diferenciados de construção de mercados para os dos agricultores
familiares ao qual aludiu Maluf (1999), bem como, com o objetivo de gerar o autoconsumo na
forma de produtos transformados e processados nas unidades de produção. Entretanto, o que
se percebe neste tipo de política e iniciativa local é a fragmentação das ações, o pouco avanço
significativo das iniciativas e a não execução de trabalhos que realmente venham a fortalecer
este tipo de atividade
170
. No fundo, a limitação é a mesma da constatada para as outras
atividades produtivas “inovadoras” do território: a grande dificuldade que as instituições e
atores locais se deparam para alavancar processos endógenos de desenvolvimento rural que
sejam alternativos ao padrão de desenvolvimento agrícola e setorial a que historicamente os
agricultores familiares estão submetidos
171
.
Assim, pode-se afirmar que as políticas públicas e iniciativas locais no Alto Uruguai
possuem uma ambigüidade fundante, pois fortalecem tanto as atividades produtivas mercantis
e dinâmicas dos agricultores familiares como a produção de autoconsumo. No caso da
segunda, alguns tipos de fortalecimento gerados no autoprovisionamento de alimentos
169
O agente de desenvolvimento usa o termo “autosubsistência” para se referir à produção de autoconsumo.
170
Dos municípios pesquisados apenas o de Constantina possui 12 agroindústrias familiares legalizadas e em
funcionamento nas áreas dos derivados de carnes, leite e vegetais. Nos demais municípios as iniciativas neste
sentido são menos expressivas ainda em termos de números de famílias na atividade.
171
Atualmente o Codemau está montando o “Programa Regional de Qualificação das Cadeias Agroindustriais”
(2004) que visa o fortalecimento destas atividades e a unificação das ações em termos regionais para a Região do
Médio-Alto Uruguai. Como aspectos positivos, destaca-se a abrangência do programa que pode ser considerado
como territorial por ser uma política que está sendo pensada em nível de vários municípios e a cooperação
multiinstitucional do mesmo com a participação de diversas entidades ligadas ao desenvolvimento do Alto
Uruguai e mesmo do estado do Rio Grande do Sul.
263
decorrem da criação de alternativas de inserção mercantil como no caso da bovinocultura de
leite e da fruticultura. Neste tipo de ações, o fortalecimento da produção de autoconsumo
ocorre de uma forma indireta e secundária na dinâmica das unidades de produção. Em outros
casos, há um fortalecimento direto através da construção de hortas, pomares e pequenas
lavouras demonstrativas, ou mesmo no caso das orientações institucionais repassadas aos
agricultores sobre a importância deste tipo de produção. Assim, pode-se afirmar que, em
grande medida, as políticas públicas e iniciativas locais de desenvolvimento estão gerando a
segurança alimentar dos agricultores familiares do território através do estímulo a produção
própria de alimentos para as famílias rurais.
Esta dupla lógica das políticas públicas e iniciativas locais no Alto Uruguai pode ser
compreendida através dos conceitos de estratégias de adaptação e de reação de Ellis (2000).
No caso das ações que incentivam a produção de grãos e commodities agrícolas e a integração
agroindustrial estas estratégias dos agricultores, dos atores sociais e instituições locais de
desenvolvimento são de adaptação ao contexto social e econômico e ao processo de
mercantilização dos processos de produção tradicionais. Já no caso dos trabalhos de
fortalecimento e apoio a produção de autoconsumo, estes podem ser descritos como
estratégias de reação ao contexto histórico do desenvolvimento agrícola do território, pois
estas iniciativas visam retomar a produção de autoprovisionamento de alimentos, minorar a
vulnerabilização da agricultura familiar e também gerar ações que restabeleçam a segurança
alimentar dos agricultores.
264
CONCLUSÕES
A presente dissertação procurou analisar o papel da produção de autoconsumo e das
políticas públicas e iniciativas locais no Alto Uruguai do Rio Grande do Sul. Com relação à
produção de autoconsumo, procurou-se demonstrar que esta possui uma importância
fundamental na geração da segurança alimentar para as unidades familiares e para a
população da região. Também se demonstrou que a mercantilização e a vulnerabilização do
autoconsumo são processos simultâneos e estruturais da agricultura familiar do Alto Uruguai
que agem no sentido da fragilização e solapamento das condições de reprodução social e
alimentar das famílias. No que se refere às políticas públicas e iniciativas locais de
desenvolvimento, pretendeu-se mostrar que as mesmas são ambíguas, pois possuem a sua
ação voltada a um aprofundamento do padrão de desenvolvimento calcado na produção de
grãos, de commodities agrícolas e na integração agroindustrial, mas também fortalecem, em
alguns casos, a produção de autoprovisionamento. Contudo, o estímulo realizado por estas na
produção de autoprovisionamento de alimentos é periférico e secundário na dinâmica das
unidades familiares. Neste sentido, a pesquisa pretendeu explicitar que estas políticas públicas
e iniciativas locais, em grande medida, reforçam os processos de mercantilização e
vulnerabilização do autoconsumo de alimentos das famílias rurais.
Quanto à problemática social em estudo, pode se dizer que no período recente, uma
parcela cada vez mais significativa dos agricultores familiares do Alto Uruguai vem
apresentado dificuldades para garantir sua viabilidade econômica e a sua reprodução social.
Estudos recentes mostram que esta situação decorre do próprio modelo de desenvolvimento
técnico produtivo vigente na região, que induz, crescentemente, os agricultores a inserção
mercantil. A alteração dos processos produtivos, cada vez mais dedicados às monocultoras e a
mercantilização social e econômica produziram efeitos diversos na agricultura familiar da
região, entre os quais se destaca a diferenciação social entre os agricultores familiares, a
especialização produtiva, uma fragilização social e uma degradação das condições de vida, a
265
vulnerabilização da produção para o autoconsumo, entre outras conseqüências sociais,
econômicas e produtivas. Em face deste processo mais geral, este estudo concentrou o seu
interesse sobre duas dimensões principais: de um lado, em analisar o processo de fragilização
e vulnerabilização da produção para autoconsumo, decorrente das transformações mais gerais
antes mencionadas, indicando seus efeitos para a segurança alimentar das famílias. De outro
lado, procurou-se estudar em que medida as políticas públicas e iniciativas locais de
desenvolvimento, atualmente em vigor, que tem como objetivo fortalecer e ampliar a
agricultura familiar, de fato, estão contemplando ações que se destinam a estimular a
produção para o autoconsumo e a segurança alimentar.
Neste sentido, ao término desta dissertação, que teve como preocupações centrais o
estudo da produção de autoconsumo e as políticas públicas federais e as iniciativas locais
correlatas à agricultura familiar e a sua reprodução social e alimentar, vale a pena um
questionamento sobre a verdadeira contribuição que a pesquisa fornece ao avanço do
conhecimento social sobre o rural brasileiro e para o território do Alto Uruguai em particular.
Neste sentido, considera-se que esta dissertação fornece alguns subsídios e reflexões
importantes para se pensar o desenvolvimento de territórios mercantilizados, como é o caso
do Alto Uruguai. Além disso, o estudo contribui para a compreensão de como se desenvolve a
dinâmica de reprodução social e alimentar da agricultura familiar enquanto forma de
produção e trabalho hegemônica neste espaço rural.
Desse modo, considera-se que a principal contribuição aportada está em “descortinar”
a importância da produção de autoconsumo para a geração de processos endógenos de
segurança alimentar nas famílias rurais e no próprio território. Também, fornecem-se
subsídios teóricos e reflexivos correlacionados a reprodução social e alimentar da agricultura
familiar, demonstrando a importância que possui o autoprovisionamento de alimentos através
dos processos de autosufisciência produtiva e de autonominização das famílias frente ao
contexto social, econômico e mercantil. Considera-se que a presente pesquisa também aporta
avanços no conhecimento relacionado às políticas públicas estudadas como o Pronaf e as
iniciativas locais de desenvolvimento. Tentou-se demonstrar que estas possuem em sua
lógica, como concepção predominante, a idéia da integração mercantil e da especialização dos
agricultores em poucas atividades produtivas e econômicas. Neste sentido, as ações praticadas
nem sempre focalizam a produção de autoconsumo como uma esfera importante em termos de
fortalecimento da agricultura familiar. Assim, acredita-se que o estudo contribuí para que os
atores sociais locais, as instituições ligadas ao rural e os formuladores de políticas públicas em
todos os níveis do Estado, percebam a importância de se criar mecanismos de financiamento e
266
apoio à agricultura familiar que não a focalize meramente do ponto de vista produtivo,
comercial e mercantil, mas também do ponto de vista do estímulo da produção de
autoconsumo e da segurança alimentar das famílias rurais.
Por outro lado, os resultados objetivos desta pesquisa permitem uma breve digressão
sobre algumas referências analíticas que inspiraram este trabalho. A primeira e, talvez,
fundamental referência refere-se à idéia da mercantilização da agricultura familiar. Partindo
da idéia de Van der Ploeg (1990; 1992), pode-se afirmar que no Alto Uruguai há um processo
de mercantilização da agricultura familiar e que este atinge também a esfera da produção de
autoconsumo das famílias. Contudo, a mercantilização do autoconsumo é um processo que
possui diferentes graus entre as famílias pesquisadas. Neste sentido, o conceito de
mercantilização do autoconsumo foi relevante para a análise de como se desenvolveu este
processo junto aos agricultores familiares e de como este tipo de produção sofreu as
conseqüências das transformações técnicas-produtivas, econômicas e sociais a partir dos anos
70.
Esta referência também foi utilizada no caso da análise das políticas públicas onde se
demonstrou que uma parcela dos agricultores familiares do Alto Uruguai está dependente do
crédito rural e das instituições financeiras oficiais. Esta situação caracteriza-se como um
processo de externalização monetária das unidades familiares e um tipo de mercantilização do
agricultor familiar que não é produtiva, mas financeira. Ainda no estudo das políticas
públicas, esta referência foi fundamental para a descrição das suas ações e os diferentes tipos
de estímulos que geram junto aos agricultores familiares. Neste sentido, utilizou-se o conceito
de mercantilização do autoconsumo para se descrever o processo pelo qual algumas políticas
públicas praticadas fortalecem os movimentos de integração mercantil, financiam o
aprofundamento do padrão tecnológico, ou mesmo agem no sentido de mercantilizar a própria
produções de autoconsumo através do reforço das atividades produtivas tradicionais como o
cultivo de grãos e a integração aos CAIs.
Uma outra referência conceitual inspiradora utilizada é fornecida por Frank Ellis
(2000) com a idéia de vulnerabilização do autoconsumo. Esta referência foi relevante para o
entendimento de como a produção de autoprovisionamento das famílias se modificou frente
ao contexto mais geral da mercantilização social e econômica da agricultura familiar. Com
esta referência também foi possível a análise das situações em que as famílias rurais se
encontram em precariedade social e em insegurança alimentar, descrevendo-se os principais
condicionantes e fatores relacionados à ocorrência deste processo no Alto Uruguai. Ainda
com relação a este autor, um outro conceito chave ao estudo empreendido é a idéia de
267
diversificação das estratégias de vivência dos agricultores familiares. Esta referência foi útil
para discutir as estratégias adotadas pelos agricultores frente ao padrão de desenvolvimento
agrícola que é hegemônico no território. Neste sentido, tentou-se “descortinar” as principais
causas que levaram o Alto Uruguai a ser um território em que a produção agropecuária
(cultivo de grãos, commodities agrícolas e a integração aos CAIs) é a principal atividade
desenvolvida pelas famílias, quase inexistindo um processo efetivo de diversificação das
economias rurais e atividades produtivas.
O conceito de diversificação das estratégias de vivência também serviu de referência
na explicitação da hipótese de que é o autoconsumo não vulnerabilizado e mercantilizado das
unidades familiares que gera novas estratégias de vivência junto aos agricultores familiares.
Neste sentido, a análise das experiências do Programa Fome Zero e das feiras da agricultura
familiar são exemplos de diversificação das estratégias de vivência dos agricultores familiares
do Alto Uruguai que foram baseadas na comercialização dos produtos de autoconsumo. A
análise destas experiências revelou que a produção de autoconsumo foi responsável pela
geração de novos ativos e fonte de rendas diversificando o portfolio de oportunidades das
famílias envolvidas em tais iniciativas.
Ainda com relação à Ellis (2000), foram fundamentais os conceitos de estratégias de
adaptação e de reação ao contexto social e econômico. Com estes dois conceitos, conseguiu-
se explicitar, primeiro, as diferentes situações sociais, econômicas e produtivas que existem
junto aos agricultores familiares da região e as diferentes estratégias que são acionadas em
cada caso. Em segundo lugar, estas referências foram úteis para se empreender a análise das
políticas públicas e iniciativas locais, mostrando que as mesmas podem tanto adaptar os
agricultores as atividades produtivas tradicionais do território como podem inseri-los numa
nova dinâmica produtiva e econômica que engloba ações que visam reagir a situação social de
vulnerabilização e restabelecer a sua segurança alimentar.
Uma outra referência conceitual relevante são os estudos de Afrânio Garcia Jr. (1983;
1989) sobre o caráter de alternatividade da produção de autoconsumo. A alternatividade
produtiva estabelece a idéia de que à produção de autoconsumo poder ser vendida ou
consumida pelos membros do grupo doméstico, dependendo das condições de reprodução
social e alimentar, das flutuações de preço e das condições de troca em vigor no mercado. O
conceito de alternatividade produtiva foi utilizado no caso do Alto Uruguai para dar conta de
duas situações diferentes. A primeira se refere à este caráter da produção de autoconsumo
poder cumprir tanto o papel de uma produção mercantil e, ao mesmo tempo, de servir ao
consumo alimentar da família. Neste contexto, o uso desenvolveu-se no sentido de discutir o
268
processo de autonominização das unidades produtivas frente ao contexto social e econômico,
pois as famílias que possuem a oportunidade de optar entre vender e/ou autoconsumir os
produtos de autoprovisionamento contam com um tipo de estratégia que implica em um maior
“jogo de cintura” de tais unidades em relação ao mercado.
A segunda utilidade do conceito de alternatividade produtiva desenvolveu-se no
sentido de dar conta da disputa teórica existente entre alguns estudiosos da agricultura
familiar que se reportam em definir esta forma social de produção e trabalho como um “setor
de subsistência” ou mesmo como uma “agricultura de subsistência”. Neste sentido, o que o
conceito de alternatividade produtiva traz de novo para a realidade da agricultura familiar
brasileira, é que não existe nenhum tipo de agricultura na atualidade que possa ser
caracterizada como sendo somente de “subsistência”. Com o conceito de alternatividade
produtiva, pode-se entender a agricultura familiar tanto do ponto de vista das suas estratégias
de produção e alimentares internas ao núcleo doméstico bem como as suas ligações com o
ambiente social e econômico. Neste sentido, pelo conceito de alternatividade, pode-se afirmar
que não existe uma “agricultura de subsistência” como não existe um agricultor familiar
totalmente mercantilizado do ponto de vista social e econômico. Este entendimento permite
estabelecer que existem agricultores familiares que possuem sua lógica de produção e
reprodução social assentada no mercado e ao mesmo tempo na produção de autoconsumo,
como duas esferas integradas dialeticamente e sobrepostas à unidade de produção e ao grupo
doméstico, determinando e apontando os “caminhos” e as estratégias pelas quais vai se dar
sua reprodução social e alimentar.
No que se refere à realidade social do território em estudo, verificou-se que esta é
extremamente ambígua em suas facetas, o que levou à escolha de um referencial teórico que
desse conta das contradições sociais encontradas durante o trabalho de campo. Neste sentido,
salienta-se a importância do uso de um referencial teórico que permitiu uma compreensão
histórica das transformações sociais, econômicas, técnico-produtivas e culturais que o Alto
Uruguai conheceu desde a década de 70. Assim, pôde-se explicitar as principais mudanças e a
reconstrução da realidade social ligada à dinâmica da agricultura familiar como, por
exemplo, no caso da produção de autoconsumo em que se demonstrou a ocorrência de um
processo histórico de mercantilização e vulnerabilização desta característica junto às unidades
de produção. Isso também foi realizado no caso do Pronaf, no qual se traçou a sua trajetória
de evolução e mudanças que se delinearam no tempo e no espaço rural do Alto Uruguai.
Neste sentido, as principais mudanças sociais que aconteceram no Alto Uruguai
coincidem com o início do processo de transformações na base técnico-produtiva da
269
agricultura, a assim chamada modernização agrícola que se iniciou a partir dos anos 70. Neste
movimento histórico, a agricultura familiar ingressou numa etapa de mercantilização social e
econômica, na qual os reflexos e contradições deste processo afloraram através da sua
crescente integração aos circuitos mercantis de troca e de venda da força de trabalho, no
solapamento das condições objetivas em que se assentava a sua reprodução social, no
aprofundamento do modelo tecnológico, etc. Além disso, ressalta-se a relevância da
especialização produtiva em poucas atividades, basicamente, a produção de grãos e a
integração vertical aos CAIs, uma intensa diferenciação social e produtiva entre os
agricultores, a fragilização e o empobrecimento do tecido social do território e o surgimento
de situações de insegurança alimentar junto as populações rurais. Contudo, estas
transformações não atingiram a todos os agricultores da mesma forma. Há os que saíram
ganhando neste processo, que se inseriram nesta dinâmica territorial e acumularam capital
para continuar se reproduzindo. Por outro lado, há aqueles agricultores que não conseguiram
acompanhar esta dinâmica agrícola do território, que se fragilizaram e que estão numa
situação de vulnerabilização social e alimentar crescente.
Estas contradições fizeram com que o Alto Uruguai seja conhecido, por um lado,
como um grande “celeiro” produtivo devido à expressividade do desenvolvimento agrícola e
setorial que ocorre nesta região historicamente. Porém, de outro lado, também é ai que se
encontram os mais baixos índices de desenvolvimento humano e social, as situações de
fragilidade social e pobreza rural, as baixas rendas agrícolas, o “estreitamento” das condições
de reprodução social dos agricultores, a expulsão demográfica de uma grande parte da
população e outros indicadores, que demonstram como este processo também gerou efeitos
perversos e negativos. Esta contradição revela, tão somente, a face desigual e ambígua do
desenvolvimento do capitalismo na agricultura, pois trata-se de um sistema que, ao mesmo
tempo amplia a produtividade agrícola e vulnerabiliza a reprodução social de uma forma de
produção e trabalho como a agricultura familiar.
Neste processo mais geral de transformações técnico-produtivas, sociais e econômicas
da agricultura familiar do Alto Uruguai uma das esferas que sofreu as conseqüências da
mercantilização foi a do consumo familiar, que foi vulnerabilizado e externalizado da unidade
de produção. Neste sentido, se afirma a primeira hipótese de estudo de que a diminuição da
importância dada à produção de autoconsumo na dinâmica das unidades de produção
familiares decorre do processo mais geral de mercantilização da agricultura familiar que fez
com que os agricultores se especializassem em poucas atividades produtivas, nos cultivos
dinâmicos e comerciais, no aprofundamento do modelo tecnológico, nas atividades rentáveis,
270
etc. Estas transformações técnicas e produtivas que decorrem da mercantilização social da
forma familiar é que levou, em grande medida, estes agricultores à uma situação de
vulnerabilização de sua reprodução social e alimentar, à uma fragilização do tecido social e
até a situações de insegurança alimentar. Neste sentido, este estudo demonstra que a
mercantilização social e econômica contribuiu de forma decisiva para vulnerabilizar a
reprodução social e alimentar dos agricultores familiares do Alto Uruguai.
Contudo, este processo de mercantilização do consumo familiar não atingiu todos os
agricultores familiares da mesma forma. Há uma parcela significativa que se mantiveram,
relativamente, autônomos ao processo de mercantilização social e econômica em que a
produção de autoconsumo perfaz montantes extremamente significativos da produção gerada
pela família e autoconsumida na alimentação dos membros domésticos. Há ainda outros, que
mesmo sendo bastante mercantilizados do ponto de vista social e econômico continuam
possuindo a produção de autoconsumo não vulnerabilizada na dinâmica da sua unidade
familiar. Deste modo, pode-se dizer, que a produção de autoconsumo, de uma maneira geral,
foi mercantilizada no território, mas ainda há famílias que guardam o corpo do saber e as
técnicas de produção responsáveis pela sua autonomia alimentar.
Este processo pode ser descrito como uma estratégia de adaptação, conforme definiu
Ellis (2000), e de esforço de conservação dos conhecimentos, métodos de cultivo e produção
herdados do Sistema Agrícola Colonial no qual a produção de autoprovisionamento não se
encontrava mercantilizada. Pode-se dizer, enfim, que a produção de autoconsumo possui
diferentes graus de mercantilização entre os agricultores familiares do Alto Uruguai como
formulou Van der Ploeg (1990; 1992). Esta é uma característica também muito variável entre
as situações sociais dos agricultores, sendo que os principais fatores que influem na sua
diferenciação são: o tamanho da unidade de produção, o tipo de relevo (fertilidade do solo,
declividade, etc), as diferentes inserções mercantis dos agricultores, o sistema produtivo
desenvolvido, as atividades econômicas e produtivas praticadas e o saber-fazer dos
agricultores.
Verificou-se que é nesta parcela de agricultores que a mercantilização social e
econômica não vulnerabilizou e solapou a produção de autoconsumo das famílias, que se
encontram os agricultores em melhores situações em termos de qualidade de vida e de bem
estar social. Isso se deve ao fato da produção de autoconsumo possuir um papel importante na
geração dos princípios da segurança alimentar junto aos agricultores que a possuem. Estes
princípios são: o do acesso e disponibilidade dos alimentos, a qualidade nutricional destes, o
fornecimento das quantidades permanentes e suficientes à alimentação do grupo doméstico e,
271
ainda, a obtenção de uma alimentação que responde aos hábitos de consumo históricos das
famílias rurais do Alto Uruguai. Ressalta-se, ainda, que a produção de autoconsumo também
gera um processo de autonominização das famílias frente ao contexto social e econômico,
pois aquelas que são autosuficientes no seu autoprovisionamento de alimentos dependem
muito menos de compras externas e de recursos monetários para executar tal operação. Neste
contexto, a produção de autoconsumo também propicia a alternatividade produtiva da unidade
de produção familiar, podendo os membros desta decidir entre vender e/ou autoconsumir a
produção própria de alimentos.
Além disso, este tipo de produção é que fornece a base material e produtiva por onde
vai se desenvolver os processos de diversificação das estratégias de vivência dos agricultores
familiares, como se referiu Ellis (2000). Neste sentido, pôde-se confirmar a segunda hipótese
de pesquisa através da análise empreendida do Programa Fome Zero e também com relação às
“feiras da agricultura familiar”, onde se verificou que estas experiências geraram novas
estratégias de vivência e de desenvolvimento junto aos agricultores que participavam de tais
iniciativas. Estas estratégias de vivência geradas pela produção de autoconsumo se referem à
possibilidade dos agricultores comercializarem este tipo de produção para o poder público, no
caso do Programa Fome Zero e, também, para a população do Alto Uruguai no caso das feiras
da agricultura familiar, fazendo com que as famílias envolvidas em tais iniciativas pudessem
diversificar o seu portfolio de oportunidades, rendas e ativos. Assim, a hipótese de que a
produção de autoconsumo possui um papel importante na geração da segurança alimentar e
nos processos de diversificação das estratégias de vivência junto aos agricultores familiares
do Alto Uruguai revelou-se adequada.
Além destas “funções” que a produção de autoconsumo assume diretamente ligada à
reprodução social e alimentar dos agricultores familiares, esta também possui um papel
importante na geração do abastecimento e da segurança alimentar das demais populações do
Alto Uruguai. Isto foi verificado com a análise da experiência da compra pública local de
produtos de autoconsumo para o Programa Fome Zero no município de Constantina e no caso
das “feiras da agricultura familiar”. Nestas duas experiências, a agricultura familiar além de
produzir para o seu autoprovisionamento produz, também, excedentes de autoconsumo que
são oferecidos para a mitigação da fome, dos processos de insegurança alimentar e para o
abastecimento local do território contribuindo, assim, para que não haja a vulnerabilização da
reprodução social e alimentar da população do mesmo. Este papel preenchido pela produção
de autoconsumo decorre deste tipo de produção propiciar a geração de alguns dos princípios
norteadores do conceito de segurança alimentar junto à população do Alto Uruguai, como: a
272
qualidade nutricional dos alimentos, as quantidades suficientes e permanentes, o acesso e a
disponibilidade destes e, o fornecimento de uma alimentação de acordo com os hábitos de
consumo “arraigados” historicamente neste espaço rural. Assim, a agricultura familiar, além
de se autoprovisionar, produz alimentos para as demais populações do território garantindo,
em partes, o abastecimento a e segurança alimentar destas.
Contudo, as ambigüidades do desenvolvimento agrícola do Alto Uruguai e a
fragilização da agricultura familiar desta região não são os únicos processos sociais em curso
no território analisado. Há também os efeitos das políticas públicas e iniciativas locais de
desenvolvimento que devem ser avaliados do ponto de vista de se elucidar qual o estímulo
que as mesmas estão destinando para os agricultores familiares. Neste sentido, as contradições
também residem no impacto e nas concepções que perpassam as instituições de
desenvolvimento, as políticas públicas e as iniciativas locais praticadas visando ações de
apoio à agricultura familiar. Na verdade, estas acabam sendo uma maneira de reforçar o
padrão de desenvolvimento agrícola que, em larga medida, é o responsável pelo solapamento
da reprodução social e alimentar dos agricultores familiares.
Neste sentido, as políticas públicas praticadas são contraditórias em termos do tipo de
estímulos que estão desenvolvendo junto à agricultura familiar do Alto Uruguai. Este
fortalecimento é, de uma forma geral, baseado na mercantilização social e econômica das
unidades de produção familiares, na integração mercantil, no incremento do padrão
tecnológico e produtivo, na especialização produtiva em torno do cultivo de grãos e
commodities agrícolas como o milho, a soja, o fumo, etc e na integração aos CAIs da
suinocultura e avicultura. Neste sentido, o fortalecimento da produção de autoconsumo
acontece somente de uma forma periférica e secundária na dinâmica das unidades de
produção, pois as concepções que perpassam as políticas como o Pronaf e as iniciativas locais
de desenvolvimento não enfocam o autoprovisionamento alimentar das famílias como uma
dimensão relevante da reprodução social das mesmas.
Observou-se este processo através da análise do Pronaf como uma política pública do
âmbito federal para a agricultura familiar do Alto Uruguai. Para o caso estudado, comprovou-
se que o principal fortalecimento que o Pronaf gera na agricultura familiar vem de encontro ao
padrão de desenvolvimento produtivista, que é hegemônico no território. Neste contexto, as
suas ações se desenvolvem no sentido de mercantilizar social e economicamente os
agricultores familiares, de financiar o padrão tecnológico vigente, de aprofundar o processo
de especialização produtiva e de manter a dependência estrutural dos agricultores familiares
ao crédito rural e as instituições financeiras oficiais. Esta política também mantém o viés do
273
desenvolvimento agrícola e setorial do território não financiando atividades produtivas e
econômicas com ligação intersetorial como, por exemplo, a pluriatividade e as atividades não-
agrícolas. Deste modo, o Pronaf contribui muito pouco para que possa emergir uma nova
ruralidade econômica e social, um gama de atividades produtivas alternativas de fontes de
rendas, de ativos e de capitais que diversifiquem o portfolio de oportunidades e as estratégias
de vivência dos agricultores familiares como se referiu Ellis (2000).
No caso da produção de autoconsumo, o fortalecimento que o Pronaf Crédito gera é
distinto entre as suas duas linhas de financiamento: o Custeio e o Investimento. No caso do
Custeio o Pronaf fortalece principalmente a especialização produtiva via o cultivo de grãos e
commodities agrícolas como o milho, a soja e o fumo, além da modalidade do Pronaf Rotativo
que também é aplicado nestas culturas. A produção de autoconsumo somente é fortalecida de
forma periférica através da aplicação de uma parte dos recursos ou dos insumos, que seriam
destinados às culturas dinâmicas, nos cultivos de autoconsumo. O mesmo ocorre na produção
de milho das unidades familiares, que entra como um insumo na produção de carnes que são
utilizadas para a alimentação da família. Já o Pronaf Investimento, fortalece o autoconsumo
de uma forma indireta através da criação da infra-estrutura rural das unidades de produção.
Também gera um estímulo de forma direta no caso da fruticultura e da bovinocultura de leite
que são atividades que possuem o caráter da alternatividade produtiva na dinâmica de tais
unidades.
Contudo, o processo de fortalecimento da produção de autoconsumo gerado pelo
Pronaf deve ser minorado vis-a-vis o movimento mais amplo de apoio da mercantilização e da
especialização produtiva em curso no Alto Uruguai. Neste sentido, vale resgatar a terceira
hipótese formulada, de que o Pronaf não fortalece o autoconsumo e também não propicia a
diversificação das estratégias de vivência dos agricultores familiares. A pesquisa demonstrou
que esta hipótese não se confirma integralmente e, portanto, deve ser relativizada, pois o
Pronaf mesmo que, perifericamente e, em alguns poucos casos de forma direta, possui ações
que geram estímulos favoráveis ao autoconsumo, principalmente na sua linha de
Investimento. De certa forma, o programa também está propiciando uma diversificação das
estratégias de vivência dos agricultores, mesmo que ainda de uma forma tímida e pouco
significativa. Assim, pode-se dizer que o Pronaf, em alguma medida, tem gerado a segurança
alimentar dos agricultores familiares do território através do fortalecimento do
autoprovisionamento alimentar das famílias.
Já no caso das políticas públicas e iniciativas locais praticadas pelas instituições de
desenvolvimento nos municípios estas possuem uma dupla lógica de ação sobre as unidades
274
de produção. Por um lado, estas geram o reforço do padrão agrícola e setorial de
desenvolvimento, incentivando atividades produtivas ligadas à especialização produtiva como
no caso do plantio de grãos, commodities agrícolas e a integração vertical através dos CAIs.
Entretanto, de outro lado, elas fortalecem a produção de autoconsumo familiar com uma gama
diversificada de políticas e trabalhos onde se destacam: a prestação de serviços de assistência
técnica e extensão rural voltados ao autoconsumo, os incentivos a atividades como a
fruticultura e a bovinocultura de leite, os cursos, capacitações e profissionalizações dos
agricultores relacionados à produção, preparo e consumo dos alimentos, os trabalhos em torno
do tratamento de águas e do saneamento básico nos espaços rurais e as orientações e
“conscientizações” de caráter geral sobre a importância da produção de autoconsumo na
alimentação e bem estar das famílias.
Comparando-se estas políticas públicas e iniciativas locais que visam à inserção
mercantil das unidades de produção vis-a-vis às políticas de apoio à produção de autoconsumo
familiar, pode-se afirmar que se encontra uma maior gama destas agindo no reforço da
produção comercial e mercantil das unidades familiares. Assim, quanto à terceira hipótese
formulada, de que as políticas públicas e ações locais não enfocavam o fortalecimento da
produção de autoconsumo e o desenvolvimento rural de uma forma diversificada, pode-se
afirmar que esta se confirma apenas parcialmente, pois uma parte significativa das políticas e
ações locais tem como base o apoio à produção de autoconsumo. De outro lado, estas políticas
e iniciativas também geram, mesmo que de uma forma não central em sua lógica, um
desenvolvimento que pode ser descrito como diversificado em relação a algumas atividades
produtivas mesmo que estas mantenham o seu viés setorial. Deste modo, pode-se afirmar que
as políticas públicas e iniciativas locais das instituições e atores sociais de desenvolvimento,
em grande medida, desenvolvem ações que estão gerando um fortalecimento da produção de
autoconsumo e, assim, conseqüentemente, criando condições reais para que surjam processos
concretos de estímulo à segurança alimentar dos agricultores familiares.
Neste sentido, pôde-se concluir de uma maneira geral com o estudo empreendido, que
a agricultura familiar do Alto Uruguai passou por um processo histórico de transformações
sócio-econômicas e produtivas, que implicaram em uma fragilização das condições de
reprodução social desta forma de produção e trabalho. Neste movimento, o autoconsumo de
alimentos das famílias rurais foi uma das esferas das unidades produtivas que sofreu dois
processos: o de mercantilização e o de vulnerabilização, que são entendidos como problemas
estruturais da agricultura familiar da região. Por outro lado, as políticas públicas que poderiam
ser os instrumentos de transformação deste cenário social, econômico e produtivo acabam, em
275
muitos casos, por reforçar e estimular as atividade produtivas e o padrão de desenvolvimento
que é responsável pela mercantilização e vulnerabilização descritos anteriormente. Neste
sentido, mesmo que algumas iniciativas locais e políticas públicas apoiem ações de
fortalecimento da produção de autoprovisionamento, a maioria destas não o fazem de uma
maneira central, mas periférica e secundária.
Assim, ao término desta dissertação que teve como preocupação central o estudo do
papel da produção de autoconsumo, das políticas públicas e iniciativas locais de
desenvolvimento, tentou-se responder a alguns questionamentos de pesquisa que inquietavam
o autor desde longa data. Contudo, sabe-se que na pesquisa social a resposta de uma pergunta,
tanto de forma parcial como integral sempre remete a novas perguntas, dúvidas ou abre novos
horizontes de trabalho e investigação. Assim, esta dissertação de mestrado se constitui, desde
então, como o início de uma trajetória de pesquisas que o autor se coloca, desde já, o desafio
de consolidar nos próximos anos nas temáticas correlatas a agricultura familiar e ao
desenvolvimento rural. Deste modo, a realização deste estudo possibilitou a abertura de novos
horizontes de pesquisa e investigação e as reais possibilidades de concretização das mesmas,
talvez, através de um doutoramento nos anos vindouros.
Com relação à continuidade da realização de estudos no âmbito do rural, esta
dissertação abriu novos horizontes de pesquisa e inquietações em torno da temática da
agricultura familiar e do desenvolvimento rural. Uma delas, que perpassou quase toda a
dissertação e que não pode ser abordada na presente pesquisa, é a dos hábitos de consumo dos
agricultores familiares. Além de demonstrar a importância da produção de autoconsumo para
a reprodução social e a segurança alimentar das famílias rurais, seria também interessante a
elaboração de um estudo que avaliasse os hábitos de consumo diários dos agricultores no que
se refere ao preparo dos alimentos, as refeições realizadas, os tipos de alimentos consumidos,
o número de refeições diárias, a composição nutricional dos alimentos, as relações de poder
dento da família no que se refere à produção, obtenção e alimentação, etc. Um outro conjunto
de temáticas que se abrem para a pesquisa nos próximos anos é o estudo de assuntos poucos
abordados com relação a agricultura familiar, já que as investigações focalizam esta,
geralmente, do ponto de vista econômico e produtivo. Estes temas seriam a análise das
relações de gênero no interior do núcleo familiar, das relações de poder e hierarquia do grupo
doméstico, os padrões de herança, o parentesco, etc. Ou seja, um “olhar” sobre dimensões
sociológicas e antropológicas das famílias que a maioria dos estudos deixam de lado e que são
importantes na reprodução social, moral e simbólica das famílias rurais. É neste sentido que
se espera contribuir de agora em diante.
276
Quanto ao aprendizado que fica a partir da elaboração deste estudo, vale salientar a
“bagagem” teórica e de conhecimentos práticos para a vida de pesquisador e profissional da
área do desenvolvimento rural. Outro aprendizado importante foi retirado do processo de
pesquisa, que se refere a realidade social em torno da agricultura familiar em que se constatou
que esta se apresenta como um processo complexo e multifacetado. Neste sentido, a
explicação de um determinado processo social, que a primeira vista parece simples, muitas
vezes, esconde meandros que não podem ser negligenciados, pois corre-se o risco de cair em
elaborações grosseiras e que em nada ajudam a explicar o objeto em estudo. Assim, a tarefa
que parece factível de ser realizada pelos estudiosos do “mundo” rural é a de tentar explicar
até as pequenas coisas, as contradições e questões destoantes das centrais, pois muitas vezes é
nestas que se encontram as evidências empíricas fundamentais que ajudam a elucidar um
determinado objeto em estudo, no sentido de tentar exaurir o máximo possível à realidade
social em suas múltiplas faces.
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288
ANEXOS
Anexo 1: Microrregião de Frederico Westphalen com destaque para o Município de
Três Palmeiras, base dos dados primários da pesquisa AFDLP no Alto
Uruguai do Rio Grande do Sul.
Microrregião de Frederico Westphalen
Fonte: Pesquisa AFDLP/CNPq – UFRGS - UFPel (2003).
289
Anexo 2: Agricultores familiares e atores sociais de desenvolvimento entrevistados no
Alto Uruguai.
- Adão Nunes, Agricultor Familiar.
- Adir Lazaretti, Agricultor Familiar e Presidente da Coopac.
- Antônio Rodrigues de Almeida, Agricultor familiar e Representante Sindical, Fetraf – Sul.
- Bruno Magalsky, Agricultor Familiar.
- Cléber Albarello, Representante Sindical e integrante do MPA.
- Deonir Sarmento, Representante Sindical, Fetag.
- Edemar Girardi, Economista, Codemau.
- Gaspar Scheidt, Engenheiro Agrônomo, Emater.
- Gelson Pellegrini, Engenheiro Agrônomo, SAM.
- José Nunes, Agricultor Familiar, Vereador e integrante do MPA.
- Júlio César Leal, Técnico em Agropecuária, Emater.
- Leandro Albarello, Técnico em Agropecuária, SAM.
- Luis Fritzen, Agricultor Familiar.
- Luis Siqueleiro, Agricultor Familiar.
- Marcos Conterato, Técnico em Agropecuária, SAM.
- Marlene Zanatta Bridi, Extensionista Rural, Emater.
- Nadir Busatto, Secretário da Agricultura Municipal, SAM.
- Nelci Araldi, Agricultor Familiar e Presidente do CMDR.
- Nelson Bordin, Agricultor Familiar.
- Olivar Lazaretti, Representante Sindical, Fetraf – Sul.
- Rosalino Dalã, Agricultor Familiar.
- Ruben Bernardi, Engenheiro Agrônomo, Emater.
- Valdecir Augustin, Engenheiro Agrônomo, Emater.
- Valdecir Estival, Agricultor Familiar e Representante Sindical, CMDR.
- Vinícius da Trindade, Técnico em Agropecuária, Emater.
290
Anexo 3: Metodologia de cálculo do autoconsumo utilizada na pesquisa AFDLP.
Os dados primários que se utiliza nos capítulos desta dissertação, principalmente no
capítulo 3, são frutos da pesquisa AFDLP (2003) que foi realizada no estado do Rio Grande
do Sul no ano de 2002. Esta pesquisa visou estudar as diferentes dinâmicas da agricultura
familiar e o desenvolvimento rural em quatro regiões distintas da geografia gaúcha onde, em
cada uma, se elegeu um município específico para proceder a um estudo de caso. Estas
regiões são o Alto Uruguai (município de Três Palmeiras), a Serra Gaúcha (Veranópolis), Sul
do estado (Morro Redondo) e a região Noroeste (Salvador das Missões). Esta pesquisa
também contou com o financiamento do CNPq que no início de 2001 lançou o edital para
apresentação de projetos na área de C & T em apoio à agricultura familiar.
A pesquisa possui os seus dados referenciados no ano agrícola de 2001 e 2002
(setembro de 2001 a agosto de 2002). Ao todo foram entrevistados 238 estabelecimentos
familiares nas distintas regiões compreendendo um universo médio de 2.500 explorações
familiares. Em cada município usou-se entrevistar de 10 a 15% das unidades familiares que
compunham o todo do município. O critério adotado foi o da amostragem sistemática
aleatória por comunidade dentro de cada município para que se pudesse abarcar a diversidade
e heterogeneidade da agricultura familiar e, também, a questão probabilística de qualquer um
dos estabelecimentos poder entrar na amostra. Assim, no município de Três Palmeiras foram
aplicados 59 questionários totalizando 10,17% das unidades familiares existentes no
município.
Acredita-se que o município de Três Palmeiras é um município que é representativo
de uma dinâmica maior da agricultura familiar e de desenvolvimento da região do Alto
Uruguai. Este é o motivo principal da sua escolha por parte da pesquisa AFDLP. Por este
motivo acredita-se que o município de Três Palmeiras seja representativo das condições em
que transcorre a reprodução social da agricultura familiar da região e, deste modo, pode ser
possível uma generalização, em certa medida, dos resultados obtidos com os dados da
produção de autoconsumo local. A sua escolha também se deveu ao fato deste município
possuir um número total de estabelecimentos muito próximo ao dos outros municípios
estudados. Isto era importante em termos de se manter uma certa proporcionalidade média no
número de questionários que seriam aplicados em cada caso em estudo dentro da proposta de
10 a 15% dos estabelecimentos entrevistados em cada local.
291
A aplicação destes questionários deu origem a um banco de dados montado no
software SPSS (Statistical Package for Social Sciencies) com aproximadamente 1.300
variáveis que dizem respeito a aspectos produtivos, políticas públicas, estrutura fundiária,
representações sociais, valor gerado, ambiente social e econômico, etc. Deste banco de dados
é que se retiraram os dados relativos à produção de autoconsumo e alguns outros dados
primários que se utilizam nesta dissertação. Acha-se necessário à apresentação da
metodologia de cálculo do autoconsumo por dois motivos principais. Primeiro para que haja
uma compreensão clara de como os mesmos foram obtidos. E, segundo, para servir de base e
até mesmo para abrir um debate metodológico com outras pesquisas que se propõem a
estudar esta mesma variável com procedimentos metodológicos distintos. Sendo assim, em
seguida apresenta-se os principais passos e a metodologia que foi utilizada para a montagem
do banco de dados da pesquisa AFDLP (2003).
No que se refere aos aspectos produtivos da agricultura familiar de Três Palmeiras
foram levantados dados relativos à produção vegetal, animal e a chamada “transformação
caseira” que compreende a matéria-prima que passou por um processo de elaboração e
processamento no interior das unidades familiares como no caso dos queijos, salames e doces
de frutas. Em cada uma destas rubricas foram levantados dados sobre as quantidades
produzidas, vendidas e autoconsumidas pelas famílias, bem como os preços médios de venda
da produção nos mercados regionais. Foram, ainda, levantados as quantidades de
autoconsumo animal que é à parte da produção própria das famílias que se destinam à
alimentação animal. Geralmente, compreende produtos vegetais como no caso da produção
de milho que entra como um insumo na criação animal. O autoconsumo animal configura o
que Tepicht chamou de autoconsumo intermediário devido a este tipo de produção vegetal
servir de forma intermediária para a obtenção de um outro produto final, como por exemplo,
a carne.
O autoconsumo compreende todo o tipo de produção, bens, ferramentas de trabalho
ou outros produtos que são gerados no interior da unidade familiar e que é utilizada pelos
membros desta para suprir as suas necessidades. Entretanto, para a presente dissertação, não
se analisa alguns “tipos” de autoconsumo como, por exemplo, o autoconsumo na forma de
lenha utilizada pelas famílias, o autoconsumo intermediário animal ou produtivo e o que
Leite (2003; 2004) chamou de “salário indireto” que consiste em adicionar a renda não
monetária das famílias receitas advindas de tíquetes refeição, passes de ônibus, etc
172
. A
172
Acha-se que Leite (2003; 2004) confunde em seus estudos dois tipos de receitas que são diferentes. O
autoconsumo é um tipo de renda ou ingresso não monetário da unidade de produção e integra o cálculo da renda
292
análise realizada se deterá no autoconsumo alimentar do grupo doméstico. O autoconsumo
alimentar pode ser definido como aquela parcela da produção animal, vegetal ou
transformação caseira que foi produzida pelos membros de uma família e que é utilizada na
alimentação do grupo doméstico correspondente de acordo com as suas necessidades.
A primeira operação que se efetuou no banco de dados foi o cálculo do Produto
Bruto, em moeda corrente, das diferentes rubricas de produção. Estes foram obtidos da
multiplicação das quantidades de produtos vendidos pelo preço médio de venda dos
respectivos produtos. Desta forma, obteve-se o Produto Bruto de Venda das unidades
familiares. Os dados relativos à produção de autoconsumo estão na forma de moeda corrente,
em reais (R$). Para organizá-los desta maneira foram obtidas as quantidades dos produtos de
autoconsumo e multiplicados pelos seus respectivos preços de venda que os agricultores
receberiam caso vendessem estes produtos no mercado regional. Esta operação matemática
tornou os dados de autoconsumo apresentáveis na forma de Produto Bruto de Autoconsumo e
a sua unidade de mediada em reais.
Assim, por exemplo, se no banco de dados a produção de arroz autoconsumida
totaliza 1.527Kg nas 59 famílias entrevistadas em Três Palmeiras e o preço médio de venda
do arroz pago aos agricultores regionalmente é de R$ 0,25/Kg, o Produto Bruto de
Autoconsumo de arroz é igual a R$ 381,75. Ressalta-se que para tal operação necessitou-se
realizar uma uniformização das unidades de medida da produção como, por exemplo, a
transformação de sacas em Kg. Também, em alguns casos, o estabelecimento dos preços
médios foi estimado com base na declaração dos agricultores que possuíam determinada
produção. Por exemplo, aqueles agricultores que não possuíam arroz na sua unidade de
produção, o valor deste foi estimado tomando-se por referência os valores médios de preços
que foram informados pelos outros agricultores que possuíam arroz na sua propriedade de
forma a completar os espaços em branco que havia no banco de dados decorrente da falta da
informação, já que se fosse atribuído o valor zero (0,0) isso levaria a distorções no momento
do cálculo do autoconsumo.
Os preços atribuídos à produção de autoconsumo podem ser considerados de dois
pontos de vista distintos. Sacco dos Anjos et all (2004) atribuíram o preço pago ao produtor
na hora da compra destes produtos. Este procedimento, geralmente, acaba por subestimar os
valores que este tipo de produção representa. Por outro lado, pode-se atribuir os preços pagos
bruta das mesmas. Contudo, o autoconsumo é o resultado concreto do que é produzido dentro da unidade
familiar. Já o “salário indireto”, a que o autor se refere nada tem a ver com o processo produtivo agrícola. Este é
293
ao consumidor de maneira que a produção de autoconsumo passa a assumir um maior valor
na unidade de produção. Como critério de fixação dos preços para a produção de
autoconsumo na pesquisa AFDLP (2003) decidiu-se pelo preço que os agricultores
receberiam caso vendessem os seus produtos de autoconsumo nos mercados regionais mesmo
sabendo que isso, de certa forma, leva a uma sub-valorização desta produção. Este
posicionamento se justifica devido a acreditar-se que a fixação dos preços em nível do
agricultor leva mais em conta as condições de reprodução social em que a agricultura familiar
opera frente ao ambiente social e econômico.
Destas duas operações elementares de cálculo do Produto Bruto de Venda e do
Produto Bruto de Autoconsumo resultou o Produto Bruto Total, que nada mais é do que a
soma dos dois primeiros. Deste modo, pode-se obter, por exemplo, as percentagens de
Produto Bruto referente ao montante que perfaz a produção de autoconsumo e a produção
para a venda na totalidade dos casos estudados do município de Três Palmeiras. Esta última
operação é importante, pois permite que se saiba o percentual médio que o autoconsumo
perfaz nas famílias pesquisadas no Alto Uruguai.
Ressalta-se que o Produto Bruto de Autoconsumo no caso da transformação caseira
não foi possível de ser calculado. Isso aconteceu devido às informações prestadas por alguns
agricultores não levar em conta uma separação da matéria-prima in natura da matéria-prima
que entrava na produção de derivados da rubrica específica da transformação caseira para
autoconsumo. Desse modo, estes produtos que se encontravam nesta rubrica foram
adicionados na parte da produção vegetal ou animal conforme o caso. Por exemplo, se era
produção de queijos, esta foi somada juntamente a produção animal e entrou no cálculo do
Produto Bruto de Autoconsumo animal. Esta dificuldade foi encontrada na hora do
preenchimento dos questionários onde, em muitos casos, o valor do autoconsumo estava
sendo sobreestimado.
Por exemplo, se um agricultor informava que produzia um total de 12.000 litros de
leite no ano de referência da pesquisa, essa litragem correspondia a uma dada quantidade que
era consumida pela família, por exemplo, 2.000 litros e a uma outra que era comercializada
(10.000 litros). Assim, os derivados de leite que eram autoconsumido pela família, por
exemplo, na forma de queijos devem estar dentro das quantidades de leite que eram
autoconsumidas, ou seja, dentro da parcela dos 2.000 litros. Deste modo, se o mesmo
um tipo de excedente econômico não monetário exterior a unidade produtiva, que integra as receitas das famílias
e deve ser adicionado ao cálculo da renda bruta total, mas não ao autoconsumo das famílias.
294
agricultor autoconsumia 30 Kg de queijo no ano de referência da pesquisa, o leite para
fabricá-lo deve vir da quantidade de leite autoconsumida pela família (dos 2.000 litros).
Este é o procedimento que se utilizou na montagem do banco de dados para
contornar a superestimação dos valores do autoconsumo, evitando-se somar novamente os
quilogramas de queijo separados da quantidade de leite autoconsumida. Neste sentido, os
dados de autoconsumo foram obtidos como Produto Bruto de autoconsumo animal e Produto
Bruto de autoconsumo vegetal, já que o Produto Bruto de autoconsumo para transformação
caseira, pelos motivos expostos, não foi possível separar para fins de cálculo. Assim, o
Produto Bruto Total de autoconsumo foi obtido da soma do Produto Bruto de autoconsumo
vegetal mais o animal.
Outro aspecto considerado é que no cálculo do autoconsumo não há a possibilidade
de se obter os valores monetários líquidos que este tipo de produção perfaz nas unidades
familiares. Isso se deve ao fato de não se conseguir separar, de forma exata, as despesas que
incorrem na produção de autoconsumo com as da produção para a venda ou comercial. Por
exemplo, não se consegue separar as despesas que foram imputadas no uso de adubo químico
num parreiral em que uma parte da produção da uva se destina à venda e a outra vai para o
vinho a ser autoconsumido pela família. Neste exemplo, a dificuldade está em saber qual a
quantidade de adubo que foi gasta para a produção da uva e qual a quantidade que foi
dispendida na produção da uva que virou vinho para o consumo da família, uma vez que não
é possível calcular separadamente estas despesas e subtraí-las da renda agrícola total. Não há
como haver uma separação, exata, entre despesas para a produção mercantil e para a de
autoconsumo. Por este motivo, acredita-se que o autoconsumo deve ser calculado e
apresentado na forma de Produto Bruto de Autoconsumo e não como produção de
autoconsumo líquida.
No caso dos produtos de autoconsumo advindos da produção do pomar e hortas
domésticas, estes também não foram calculados por esta metodologia devido a sua extrema
variabilidade entre os agricultores e, sobretudo, pelo fato do próprio agricultor não saber
informar às quantidades que consome de produtos da horta ou do pomar. Por exemplo, o
agricultor não sabe informar, com poucas exceções, quantas laranjas, pés de alface, goiabas,
temperos verdes, etc consome por semana, mês ou ano. Nestes casos, foi solicitado aos
agricultores que informassem apenas os valores médios anuais do ano de referência da
pesquisa, em reais, da produção do pomar e da horta. Esta decisão também foi tomada devido
as pequenas quantidades de produtos que teriam que serem levantados no questionário, o que
295
acarretaria em um acréscimo, não desprezível, do número de variáveis do banco e também de
trabalho que teria que ser desprendido a campo para coleta destas informações.
Ocorre que muitos dos agricultores não quiseram e outros não souberam informar os
valores que a sua produção do pomar e da horta doméstica assumiam anualmente no ano base
da pesquisa. Neste caso, se realizou uma estimativa destes tomando-se como referência os
valores médios per capita informados pelos outros agricultores entrevistados. Assim,
estimaram-se estes valores levando-se em conta o número de membros das unidades
domésticas que não haviam declarado os valores de autoconsumo para horta e pomar. Por
exemplo, em uma unidade familiar onde o número de membros é maior, também os valores
do autoconsumo do pomar e da horta devem ser maiores. Por este motivo a estimativa ter que
ser considerada do ponto de vista per capita.
A explicitação de metodologia do cálculo do autoconsumo se faz de extrema
importância, pois é a partir dela que se pode descrever os dados utilizados como fontes na
presente dissertação. Estes dados são apresentados principalmente no capítulo 3, que analisa a
produção de autoconsumo do ponto de vista da sua importância para a reprodução social e a
segurança alimentar dos agricultores familiares do Alto Uruguai. Neste sentido, os dados da
pesquisa AFDLP são utilizados para demonstrar a importância do autoconsumo do ponto de
vista produtivo vis-a-vis a produção comercial ou mercantil.
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