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[...] os levantinos da cidade eram numerosos e quase todos
habitavam no mesmo bairro, próximo ao porto. A beira de um rio ou
a orla marítima os aproximam, e em qualquer lugar do mundo as
águas que eles vêem ou pisam são também as águas do
Mediterrâneo (HATOUM, 2003, p. 76).
Nesta passagem, Manaus se apresenta em uma multiplicidade de etnias cuja
interação compõe sua identidade:
No estilo das casas e na disposição dos jardins e pomares,
expressava-se a diversidade das origens dos que ali passaram a
viver: ingleses, americanos, libaneses e, também, exportadores de
borracha, médicos brasileiros. A regularidade ou o ponto em comum
entre todos esses recém-chegados advinha tanto de sua posição de
estrangeiros quanto de seu comportamento mais marcadamente
individualista, o que se expressava nos modelos familiares e nas
trajetórias dos filhos, comparativamente ao que predominava entre
as famílias já estabelecidas. Formava-se um conjunto ruidoso e
cosmopolita (DAOU, 2000, p.37-38).
A comparação estabelecida entre Manaus e Trípoli é feita a partir da
dualidade silêncio-ruído que pontua o dia e a noite das ruas das duas cidades
portuárias e das personagens do romance, especialmente a vida de Emilie que
“acompanhava o percurso solar, indiferente às horas do relógio, às badaladas dos
sinos da Nossa Senhora dos Remédios e ao toque de clarim que lhe chegava aos
ouvidos três vezes ao dia” (HATOUM, 2003, p.28).
Se havia algo de análogo entre Manaus e Trípoli, não era
exatamente a vida portuária, a profusão de feiras e mercados, o grito
dos mascates e peixeiros, ou a tez morena das pessoas; na verdade,
as diferenças, mais que as semelhanças, saltavam aos olhos dos
que aqui desembarcavam, mesmo porque mudar de porto quase
sempre pressupõe uma mudança na vida: a paisagem oceânica, as
montanhas cobertas de neve, o sal marítimo, outros templos, e
sobretudo o nome de Deus evocado em outro idioma. Mas uma
analogia reinava sobre todas as diferenças: em Manaus como em
Trípoli não era o relógio que impulsionava os primeiros movimentos
do dia nem determinava o seu fim: a claridade solar, o canto dos
pássaros, o vozerio das pessoas que penetrava no recinto mais
afastado da rua, tudo isso inaugurava o dia; o silêncio anunciava a
noite (HATOUM, 2003, p.28).