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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Lúcia Sarmento da Silva
A ESTÉTICA DA CIDADANIA EM
RELATO DE UM CERTO ORIENTE
DE MILTON HATOUM
Porto Alegre
2005
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
Lúcia Sarmento da Silva
A ESTÉTICA DA CIDADANIA
EM RELATO DE UM CERTO ORIENTE
DE MILTON HATOUM
Dissertação apresentada para obtenção
do título de Mestre em Literatura
Comparada
Orientadora: Professora Doutora Sara Viola Rodrigues
Porto Alegre, abril de 2005
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Dedico minha dissertação à minha família e,
em especial, à minha mãe Suzana.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a minha orientadora, Professora Sara Viola
Rodrigues pela sua atenção e orientação cuidadosa.
Agradeço, também, a Josemary, pelo apoio técnico recebido.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................9
1 A LITERATURA COMPARADA E A CIDADANIA ...........................................15
2 UMA NOVA CONCEPÇÃO DE LITERATURA.................................................29
2.1 A CRÍTICA A ARISTÓTELES.........................................................................33
2.2 DISCURSO E REALIDADE............................................................................36
2.3 DESCONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO OCIDENTAL.................................37
2.4 OPOSIÇÃO ENTRE SEXO FEMININO E MASCULINO: UM EXEMPLO ......38
2.5 NEGAÇÃO DAS OPOSIÇÕES BINÁRIAS.....................................................40
2.6 DESCONSTRUÇÃO E CIDADANIA...............................................................42
3 A ESTÉTICA DA CIDADANIA..........................................................................44
3.1 CIDADANIA: CONCILIANDO A MORAL COM A ÉTICA................................50
3.2 CIDADANIA E A RELAÇÃO COM O BINÔMIO IGUALDADE E
LIBERDADE....................................................................................................55
4 PRINCÍPIOS NORTEADORES DA CIDADANIA..............................................57
4.1 REDUÇÃO DAS DIFERENÇAS MORAIS E FILOSÓFICAS..........................58
4.2 COMPATIBILIZAÇÃO DOS PLANOS DE VIDA.............................................58
4.3 ESTABILIZAÇÃO DO ESQUEMA DE COOPERAÇÃO..................................59
5 A CIDADANIA COMO INCLUSÃO: A ACEITAÇÃO DO OUTRO EM
RELATO DE UM CERTO ORIENTE ..............................................................62
5
5.1 INTERAÇÃO E IDENTIDADE ENTRE ESTRANHO E FAMILIAR..................63
5.2 O ESTRANHO E O FAMILIAR EM RELATO DE UM CERTO ORIENTE.......67
6 CONDUTA DOS PERSONAGENS: A MORAL DE CADA UM E AVALIAÇÃO
ÉTICA DA INTERAÇÃO DE TODOS...............................................................71
6.1 A CASA / A LOJA PARISIENSE ....................................................................73
6.2 EVENTO DO NATAL DE 1954.......................................................................74
6.3 A CASA / O SOBRADO..................................................................................76
6.4 EVENTO DA GRAVIDEZ DE SAMARA DELIA..............................................77
6.5 EVENTO DA PRÁTICA COTIDIANA DO RELATO DE CADA
PERSONAGEM ...............................................................................................78
6.6 QUARTO SECRETO .....................................................................................80
6.7 O ESPAÇO DE MANAUS ..............................................................................82
6.8 EVENTO DO “ACIDENTE DE SORAYA ÂNGELA” ......................................84
6.9 EVENTO DO “SUICÍDIO DE EMIR”...............................................................85
6.10 EVENTO DA “FILANTROPIA DE EMILIE”...................................................87
6.11 RELAÇÃO COM OS SERVIÇAIS.................................................................90
6.12 EXCLUSÃO DOS DIFERENTES: SORAYA ÂNGELA E A NARRADORA...92
CONCLUSÃO.......................................................................................................96
REFERÊNCIAS.....................................................................................................98
RESUMO
A Cidadania, tal como a entendemos hoje, é um conceito e uma prática
extremamente recentes na história da humanidade. Fundamentado na noção do
comparatista Edward Said (1995) de que a Literatura Comparada procura ver, em
conjunto e em contraponto, várias culturas, literaturas e áreas do conhecimento, o
presente estudo explora e desenvolve o conceito estabelecido pela autora deste
trabalho de “Estética da Cidadania” moderna em oposição à Estética da Cidadania
tradicional aristotélica. O conceito de Estética da Cidadania é analisado, no romance
Relato de um certo Oriente, do escritor brasileiro, nascido em Manaus, Milton
Hatoum (2003). O termo “estética” está relacionado à condição literária do texto,
enquanto que o termo “cidadania” expressa uma preocupação ética, própria ao
domínio filosófico. Assim, Literatura e Filosofia não se confundem, mas relacioná-las
pode ser útil para ampliar a compreensão de ambas. A relação entre as duas áreas
se dá através do exame da voz e dos comportamentos dos personagens da
narrativa, onde é possível desenvolver e exemplificar o conceito de Cidadania
Moderna. O conceito de “moderno” está aqui empregado no sentido de Charles
Taylor (1997). Através da análise das concepções morais dos personagens centrais
e da ética própria aos grupos aos quais eles pertencem é possível exemplificar a
manifestação dos princípios éticos que permitem o exercício da Cidadania,
preconizados por John Rawls (2000). Estes princípios são também os três objetivos
da Filosofia Política, a saber: reduzir as diferenças morais e filosóficas,
compatibilizar os planos de vida e estabilizar o esquema de cooperação.
Palavras-chave: Literatura Comparada - Filosofia Estética da Cidadania Ética
Moral Intercultural Hibridismo Alteridade.
RÉSUMÉ
La Citoyenneté, telle qu’elle est comprise de nos jours, est un concept et une
pratique extremement récents dans l’histoire de l’humanité. Fondée sur la notion du
comparatiste Edward Said (1995) selon laquelle la Littérature Comparée a pour but
de voir, dans l’ensemble et en opposition plusieurs cultures, littératures et domaines
de la connaissance, la présente étude examine et développe le concept construit par
l’auteur de ce travail d’ “Esthétique de la Citoyenneté” moderne qui s’opose à
l’Esthétique traditionnelle aristotélitienne. Le concept d’Esthétique de la Citoyenneté
est analysé dans le roman Récit d’un certain Orient de l’écrivain brésilien, né à
Manaus, Milton Hatoum (2003). L’expression Esthétique est liée à la condition
littéraire du texte tandis que le terme Citoyenneté exprime un souci éthique, propre
au domaine de la Philosophie. Ainsi, Littérature et Philosophie ne se confondent pas,
bien que leur mise en rapport puisse être utile pour agrandir la compréhension des
deux matières. Le rapport entre les deux domaines se fait à travers l’examen de la
voix et des comportements des personnages du récit, où l’on peut développer et
trouver des exemples du concept de Citoyenneté Moderne. Le concept de “moderne”
est ici employé selon le sens attribué par Charles Taylor (1997). A travers l’analyse
des conceptions morales des personnages principaux et de l’éthique propre aux
groupes auxquels ils appartiennent, il est possible de donner des exemples de la
manifestation des principes éthiques permettant l’exercice de la Citoyenneté,
préconisés par John Rawls (2000). Ces principes sont aussi les trois buts de la
Philosophie Politique, à savoir: réduire les différences morales et philosophiques,
rendre les plans de vie compatibles et rendre stable le schéma de coopération.
Mots-Clé: Littérature Comparée – Philosophie - Esthétique de la Citoyenneté –
Éthique – Morale – interculturel – hybridisme - altérité.
ABSTRACT
Citizenship, as we understand it today, is an extremely recent concept and
practice in human history. Based on comparatist Edward Said’s notion (1995) in
which Comparative Literature seeks to see as a whole and in contraposition, several
cultures, literatures and areas of knowledge, the present study explores and
develops the concept established by the author of this work of “Modern Citizenship
Aesthetics“ in opposition to the Traditional Aristotelian Citizenship Aesthetics. The
concept of Citizenship Aesthetics is analyzed in the romance The Tree of the
Seventh Heaven by the Brazilian writer, born in Manaus, Milton Hatoum (2003). The
term “Aesthetics” is related to the literary condition of the text whereas the term
Citizenship expresses an ethical concern, belonging to the philosophical dominium.
Thus, Literature and Philosophy are distinguished, but relating them may be useful to
broaden their understanding. The relation between both areas takes place through
the exam of the voice and behavior of the narrative characters, where it is possible to
develop and exemplify the concept of modern Citizenship. The concept of modern is
employed here in Charles Taylor’s (1997) sense. Through the analysis of the moral
conceptions of the main characters and the ethics of the groups to which they
belong, it is possible to exemplify the manifestation of the ethical principles that
permit the exercise of Citizenship, preconized by John Rawls (2000). These
principles are also the three aims of Political Philosophy, which are: reducing the
moral and philosophical differences, making life plans compatible and stabilizing the
cooperation scheme.
Keywords:
Comparative Literature - Philosophy Citizenship Aesthetics Ethics
Moral Intercultural Hybridity Alterity
9
INTRODUÇÃO
A Literatura Comparada possui um campo de investigação ampliado ao
admitir o exame da relação da literatura com as demais disciplinas do conhecimento
– entre essas a Filosofia –, segundo elemento do par de disciplinas a que pertence
este trabalho. De fato, essa perspectiva enquadra-se na definição de Remak
1
que
considera a Literatura Comparada como:
o estudo da literatura além dos limites de um país em particular, e o
estudo das relações entre literatura de um lado e outras áreas do
conhecimento e crença, tais como as artes (por exemplo: pintura,
escultura, arquitetura, música), filosofia
, história, as ciências sociais
(política, economia, sociologia), as ciências, religião, etc. de outro
lado. Em suma, é a comparação de uma literatura com outra ou
outras literaturas, e a comparação da literatura com outras esferas da
expressão humana (REMAK, 1971, p.3, grifo nosso).
A investigação realizada sobre a Estética da Cidadania, em Relato de um
certo Oriente, de Milton Hatoum, insere-se na área da Literatura Comparada por
tratar da relação entre as áreas de Literatura e Filosofia.
A Literatura Comparada é aqui igualmente compreendida dentro de uma
abordagem que busca ver alguma espécie de totalidade em lugar do repertório
oferecido pela cultura, literatura e história da pessoa, de acordo com a definição de
Edward Said (1995), citada mais adiante. Para este autor, a Literatura Comparada é
uma forma não unívoca, mas em contraponto de estudar a Literatura de povos e
territórios outrora colonizados, considerados com a mesma importância das
1
“Comparative Literature is the study of literature beyond the confines of one particular country, and
the study of the relationships between literature on one hand and other areas of knowledge and belief,
such as the arts (e.g. painting, sculpture, architecture, music), philosophy, history, the social sciences
(e.g. politics, economics, sociology), the sciences, religion, etc, on the other. In brief, it is the
comparison of one literature with another or others, and the comparison of literature with other
spheres of human expression.” (REMAK, 1971, p.3)
10
Literaturas das principais culturas metropolitanas. Essas identidades são analisadas
não como essências mas como resultado de uma perspectiva geral em que se busca
uma valorização eqüitativa desses diferentes pontos de vista culturais.
A Estética está relacionada à condição literária do texto, enquanto a
Cidadania expressa uma preocupação ética, própria ao domínio filosófico. Literatura
e Filosofia não se confundem, mas relacioná-las pode ser útil para ampliar a
compreensão de ambas. Neste trabalho, considera-se condição literária aquela
resultante do
“estudo do modo pelo qual as culturas se reconhecem através de suas
projeções de “alteridade”. Talvez possamos agora sugerir que histórias
transnacionais de migrantes, colonizados ou refugiados políticos –
essas condições de fronteira e divisas – possam ser o terreno da
literatura mundial, em lugar da transmissão de tradições nacionais,
antes o tema central da literatura mundial (BHABHA, 1998, p.33).
Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, é Literatura e não Filosofia,
pois trabalha com a ficção, com a linguagem literária. A relação entre as duas áreas
se dá através do exame da voz dos personagens em que é possível desenvolver e
exemplificar o conceito de Cidadania moderna, no sentido de Charles Taylor.
Milton Hatoum, escritor brasileiro contemporâneo, nasceu em 1952, em
Manaus, de família de origem libanesa. Escreveu dois romances: Relato de um certo
Oriente, traduzido para diversas línguas, e Dois Irmãos, tendo ambos recebido o
prêmio Jabuti, respectivamente, em 1990 e em 2001. A consciência da Cidadania
moderna fez parte da formação de Hatoum e, como ele mesmo disse, em entrevista
à Aida Hanania
2
, é brasileiro, e esse sentimento se expressa na língua e na infância,
porém as raízes libanesas manifestam-se nos costumes do cotidiano. Essa fusão de
2
Disponível em: <http: www.hottopos.com/collat6/milton1.htm> Acesso em: 28 mar. 2005.
11
convivências culturais faz com que Hatoum considere sua obra como parte da
Literatura Universal, apesar de representar, com fidelidade e riqueza, as
peculiaridades de sua região natal.
Em Relato de um certo Oriente, há um tom de confissão. O romance é, de
acordo com Hatoum, nessa mesma entrevista:
[...] um texto de memória sem ser memorialístico, sem ser
autobiográfico; é, como é natural, elementos da minha vida e da vida
familiar: esse é meu projeto. Num certo momento de nossa vida,
nossa história é também a história de nossa família e a de nosso
país (com todas as limitações e delimitações que essa história
suscite) (HATOUM, 2005).
Relato de um certo Oriente é narrado por uma personagem feminina que
delega a palavra, ao longo do romance, a diferentes personagens, numa tentativa de
reconstruir sua memória de infância. A personagem sai de uma clínica de repouso
onde esteve internada por um tempo e retorna ao espaço de sua infância. Chegando
a casa, ela deixa-se invadir pelas diferentes sensações de cheiros, cores e sons que
trazem de volta fragmentos do tempo vivido. Depois, ao sabor das lembranças
mescladas aos acontecimentos presentes, como a morte de sua madrasta Emilie, o
encontro com o tio Hakim ou com o amigo da família Dorner, conduz este relato em
busca da compreensão do passado. O desfilar de depoimentos, de imagens e
apelos dos sentidos teve o papel de uma verdadeira salvação da personagem,
através da palavra, tão valorizada pelo autor.
Os critérios de concessão da palavra são absolutamente democráticos, no
sentido de que, conforme a pertinência do assunto, determinado personagem
assume a fala, tornando-se a autoridade máxima. Para exemplificar esse uso
12
democrático da palavra, podemos ilustrar com alguns exemplos. Ninguém melhor
que a empregada Hindié para contar o que havia ocorrido no Natal de 1954, quando
os animais foram mortos pelo método local que consistia em dar cachaça, antes do
sacrifício, contrariando a vontade do pai de sacrificar os animais, de acordo com o
ritual libanês. Por outro lado, coube a Hakim a palavra para contar sobre a juventude
de Emilie e os segredos que ela guardava, cuidadosamente, no quarto secreto que
ele espiava com freqüência. Emilie contava as histórias da sua avó Salma e todas as
suas relações com a sociedade local. O pai da família, marido de Emilie, contava
histórias das Mil e Uma Noites e provérbios árabes. Dorner, amigo da família, falava
de sua relação com Emir e com o marido de Emilie. O irmão da narradora era o
interlocutor invisível, porém presente em todos os momentos, já que o relato era
dirigido a ele.
A proposta desse estudo é trabalhar com a hipótese de que (1) é possível
flagrar o conceito de Cidadania Moderna na Estética, especificamente na Literatura
e (2) a partir dessa premissa, mostrar a relevância dos laços que unem a Cidadania
Moderna e a Estética através da Literatura, evidenciando, por meio da presente
investigação, como isso ocorre em Relato de um certo Oriente. Para concretizar
essa hipótese e esse objetivo, obedecemos ao seguinte plano:
O primeiro capítulo aborda os conceitos de Literatura Comparada segundo o
conceito de Literatura Comparada de Edward Said (1995), e de Cidadania Moderna,
de acordo com o conceito de modernidade de Charles Taylor (1997). Este capítulo
mostra como a concepção de Cidadania pode ser estudada no âmbito da Literatura.
Para isso, torna presente as noções de sujeito e alteridade, estética aristotélica e
moderna, cidadania clássica e moderna, tradição iconográfica, renascentista,
13
modernidade, identidade moderna, pós-modernidade, relacionando as referidas
noções em direção à investigação do tema desta dissertação.
No segundo capítulo, uma nova concepção de Literatura é desenvolvida,
comparando-se a antiga norma aristotélica, exposta na Arte Poética (1998), com o
pensamento de alguns autores contemporâneos. Com esse objetivo, aprofundam-se
as noções apresentadas no primeiro capítulo, assentando-se a evolução da
consciência do homem do século XX - que pode ser resumida na ruptura com o
eurocentrismo, o essencialismo e a noção de hierarquia entre as culturas. Esse
conteúdo materializa-se especialmente nas seções A Crítica a Aristóteles, Discurso
e Realidade, Desconstrução do Pensamento Ocidental, Negação das Oposições
Binárias e Desconstrução e Cidadania. O referido conceito de Desconstrução é
examinado através de sua aplicação a algumas antigas crenças arraigadas, a partir
de uma breve análise de textos de Jacques Derrida e Jonathan Culler. É feita uma
alusão das possibilidades da aplicação dessas formas novas de pensamento na
análise de Relato de um certo Oriente, especificamente no que diz respeito à
pluralidade de vozes, sem valor hierárquico, no referido romance.
O terceiro capítulo contém explicações acerca da Estética da Cidadania,
apresentando o vínculo existente entre os conceitos de Estética e Cidadania, aqui
observados sob a ótica da Literatura. Pode-se dizer que nossa afirmação “a nova
estética da literatura é fruto de uma sociedade cujo pensamento aceita a Cidadania”
(p. 44) sintetiza e orienta este capítulo. De fato nele está presente a explanação dos
conceitos de moral e ética, bem como de igualdade e liberdade, vinculados à
questão da cidadania e refletidos na literatura, apontando-se especificamente esta
reflexão no relato da narradora/protagonista do romance de Milton Hatoum.
14
No quarto capítulo, os princípios norteadores da Cidadania, baseados nas
teorias de John Rawls (2000), serão analisados, com o intuito de identificar no
romance a sua relevância. No espaço deste capítulo, lança-se mão dos objetivos da
Filosofia Política para fundamentar e esclarecer o conceito de Cidadania Moderna.
Esses princípios servem como parâmetros de avaliação da aceitação ou exclusão do
indivíduo/cidadão/personagem da obra estudada.
O quinto capítulo apresenta a noção da Cidadania como inclusão, por meio da
análise das fronteiras entre o sujeito e o outro, baseada no conceito de estranho de
Sigmund Freud (1987), retomado por Homi Bhabha (1998) do ponto de vista das
culturas. Conforme anunciado no primeiro parágrafo do próprio capítulo, os
conceitos de hibridismo e estranho são trabalhados para explicitar as relações de
inclusão e exclusão, bem como de assimilação, entre diferentes pessoas e
diferentes culturas, “retraçando as fronteiras e os limites das identidades” (p.61). No
corpo deste capítulo, intensifica-se a análise do texto do romance do corpus,
ilustrando-se, por este meio, a presença do hibridismo cultural e do histórico do
mundo pós-colonial brasileiro.
No sexto capítulo, a conduta dos personagens de Relato de um certo Oriente
será analisada a partir da moral de cada um e da avaliação ética da interação de
todos, através de uma investigação dos acontecimentos mais significativos da
narrativa. Neste capítulo, concentra-se o exame profundo e extenso da narrativa,
especialmente das vozes presentes no relato da protagonista, tendo como
fundamento e roteiro as noções teóricas amplamente discutidas ao longo do
trabalho.
Na parte derradeira desta dissertação, esboçam-se as conclusões do estudo
realizado.
1 A LITERATURA COMPARADA E A CIDADANIA
O conceito de Cidadania, dentro do enfoque de Relato de um certo Oriente de
Milton Hatoum, pode ser considerado um tema da Literatura Comparada, de acordo
com a concepção desta do fim do século XX, baseada nos estudos de Edward Said,
um dos mais importantes críticos literários e culturais dos Estados Unidos. Podemos
constatar que Said relaciona o pensamento do fim do século XX a uma
descentralização da cultura; ou seja, uma aceitação crescente da idéia de que não
há uma cultura mestra a partir da qual as demais se moldam de maneira imperfeita.
Said salienta, aqui, a existência de diversas culturas que não passam de pontos de
vista que não aspiram ou, ao menos, não poderiam aspirar à posição de uma
verdade em-si-mesma, ou à primazia sobre as outras culturas existentes. O seguinte
trecho de Cultura e Imperialismo apresenta essas questões:
À medida que o século XX se aproxima de seu fim, cresce, em quase
todo o mundo, uma consciência das linhas entre culturas, as divisões
e diferenças que não só nos permitem diferenciar as culturas, como
também nos habilitam a ver até que ponto as culturas são estruturas
de autoridade e participação criadas pelos homens, benévolas no
que abrangem, incorporam e validam, menos benévolas no que
excluem e rebaixam (SAID, 1995, p.46).
Este comentário de Said sobre esta consciência descentralizadora que vem
crescendo, desde o final do século XX, ilustra a derrubada das velhas e arraigadas
16
concepções que datam dos filósofos pré-socráticos e que dominaram o pensamento
até então. Romper com essa antiga tradição de pensamento significa promover uma
revolução cultural.
A expressão “antiga tradição do pensamento”, aqui utilizada, refere-se à
consagrada noção de “essência” ou, em outras palavras, à idéia segundo a qual há
uma verdade a ser revelada, descoberta e uma cultura mais evoluída que a detém.
Dessa noção de verdade, é derivada a idéia de que há formas de vida superiores a
outras e de que há civilizações superiores a outras. Dessa idéia é derivada, também,
a de que, se há uma civilização superior às demais, nada mais justo do que esta
comandar e “iluminar” as demais com as suas concepções acerca do que é certo e
errado. Assim, o resquício deste pensamento é que, até hoje, de acordo com Said,
as culturas, nacionalmente definidas, aspiram à dominação. Entretanto, a oposição
entre cultura dominada e cultura dominante está constantemente sujeita à
contradição, como aponta Said, neste trecho em que comenta o impacto recíproco
entre Índia e Argélia e Inglaterra e França, havendo uma enorme dificuldade em
separar os elementos pertencentes a cada cultura:
Em todas as culturas nacionalmente definidas, creio eu, existe uma
aspiração à soberania, à influência e ao predomínio. [...] Longe de
serem algo unitário, monolítico ou autônomo, as culturas, na
verdade, mais adotam elementos “estrangeiros”, alteridades e
diferenças do que os excluem conscientemente (SAID, 1995, p. 46).
A evolução da consciência, no fim do século XX, de que fala Said diz respeito,
também, à evolução da Literatura Comparada. A noção inicial de Literatura
Comparada que data de antes da Segunda Guerra Mundial até o começo da década
de 1970 (em que ocorre a evolução da consciência de acordo com Said) tinha como
característica central o eurocentrismo.
17
Dentro desse pensamento eurocêntrico, a Literatura Comparada estudava a
relação da matriz superior – a literatura européia – com a sua filial, uma cópia
imperfeita – não-européia. Neste fragmento, Said ilustra sua compreensão da
Literatura Comparada antes desta nova consciência das linhas entre culturas que,
como se disse, marca o fim do século XX:
Falar de literatura comparada, portanto, era falar da interação mútua
das literaturas do mundo, mas o campo era epistemologicamente
organizado como uma espécie de hierarquia, estando no alto e no
centro a Europa e suas literaturas latinas e cristãs (SAID, 1995, p.
81).
Já na concepção de Said, e adotada por nós, falar em Literatura Comparada,
é falar em diversas culturas sem supor a primazia de uma sobre a outra. A Literatura
Comparada não pressupõe mais este tipo de hierarquia e procura romper com os
rígidos limites estipulados pela sua primeira concepção eurocêntrica para poder
enriquecer seu alcance:
Para o estudioso experiente de literatura comparada, campo cuja
origem e finalidade é ir além do isolamento e do provincianismo e
ver, em conjunto e em contraponto, várias culturas e literaturas,
existe um investimento já considerável precisamente nesse tipo de
antídoto ao nacionalismo redutor e ao dogma acrítico: afinal, a
constituição e os primeiros objetivos da literatura comparada eram
adotar uma perspectiva além da nação a que pertencia o indivíduo,
ver alguma espécie de totalidade em lugar do pequeno retalho
defensivo oferecido pela cultura, literatura e história da pessoa
(SAID, 1995, p. 78).
A partir desta nova visão da Literatura Comparada, novos métodos de análise
serão desenvolvidos para o estudo de qualquer texto literário. Acreditamos que esse
novo enfoque é o mais adequado possível para o estudo da obra de Milton Hatoum,
em especial Relato de um certo Oriente, inclusive pela afinidade teórica
demonstrada por Hatoum com relação às idéias de Said. Hatoum declara, na
apresentação de Representações do Intelectual (SAID, 2005), sua admiração pelas
18
idéias de Said que pregam a tolerância às diferenças e a inclusão das minorias,
idéias oriundas de um conceito moderno de Cidadania:
A prosa elegante e erudita de Said, seu olhar compassivo aos mais
desfavorecidos e pouco representados, sua visão humanista que
combina pensamento crítico e compreensão da história, tudo isso faz
deste livro uma reflexão vigorosa sobre o papel do intelectual no
mundo contemporâneo (SAID, 2005).
O papel do intelectual, idéia desenvolvida neste livro de Said, consiste na
noção do intelectual que está à margem do poder, diretamente comprometido com o
povo, sensível a seus conflitos e apto a representá-lo, mesmo quando isso significar
representar os desfavorecidos. Said engaja-se com as causas do povo, buscando
soluções que permitam o exercício da Cidadania.
Na obra de Milton Hatoum, percebemos, na própria estrutura da narrativa,
essa interação rica e destituída de hierarquias que caracteriza a concepção de
Literatura Comparada de que fala Said: em Relato de um certo Oriente, objeto de
nosso estudo em Literatura Comparada, as duas identidades – brasileira e libanesa
– são percebidas como o resultado da colaboração entre a história do Brasil e de
sua colonização pelos portugueses e a reorganização do conhecimento ocorrida
com o advento de imigrantes árabes, durante o período pós-colonial. As duas
identidades em questão não estão sendo vistas como “essências” outorgadas por
um poder divino, mas como o produto da colaboração entre a história brasileira e a
participação do Líbano no Brasil. A maneira com que Hatoum apresenta a interação
cultural em Relato de um certo Oriente corresponde à formação de identidade
concebida por Said, negando a antiga tradição da essencialização e das hierarquias
em que uma cultura se sobrepõe à outra.
19
Neste trecho, Said enfatiza o quão impossível é considerar uma cultura como
“O” modelo, e as demais culturas como subprodutos, já que esta cultura não teria
sequer identidade, se não fosse possível diferenciá-la de outras:
Num sentido importante, estamos lidando com a formação de
identidades culturais entendidas não como essencializações (embora
sejam atraentes, em parte porque parecem e são consideradas
essencializações), mas como conjuntos contrapontuais, pois a
questão é que nenhuma identidade pode existir por si só, sem um
leque de opostos, oposições e negativas: os gregos sempre
requerem os bárbaros, e os europeus requerem os africanos, os
orientais, etc. Sem dúvida, o contrário também é verdadeiro (SAID,
1995, p. 88).
A cultura grega, considerada, em muitos momentos da história, como o
modelo a ser seguido, só pôde afirmar-se em contraposição ao “Outro”, que seriam
os povos bárbaros, assim como os europeus requerem os povos africanos e
orientais, nos exemplos de Said. Assim, o «outro» é fundamental, mesmo sendo
considerado inferior. A nova consciência que vem crescendo, desde o fim do século
XX, de que fala Said, seria a explicitação de que o “centro” da cultura necessita das
demais culturas para sua afirmação e, mais do que isso, o questionamento e até a
negação da superioridade de uma cultura sobre a outra, antes tida como postulado.
A identidade cultural de um grupo é composta, justamente, por esses entre-lugares
em que diferentes culturas se contrapõem e formam novos cenários, talvez
correspondendo ao que Jameson chama de «espaço incomensurável», expressão
esta comentada mais adiante.
A nova Literatura Comparada requer uma nova consciência que aceita o outro
e pressupõe a interação entre as diversas culturas. A negação das hierarquias
pressupõe uma nova consciência que se aproxima de uma igualdade entre as
culturas. O direito de todas essas culturas e o direito à não-discriminação
20
correspondem a uma visão mundial de igualdade. Essa visão mundial em que todos
participam corresponde, na esfera de uma nação particular, à noção de Cidadania,
em que cada cidadão pode interagir, fazendo valer seus direitos e cumprindo seus
deveres.
A Cidadania, tal como a entendemos nos dias de hoje, é um conceito político
e uma prática extremamente recentes. Na história da humanidade, o que foi
constatado, na maioria das situações, constituiu-se na existência de modos de vida
em que as liberdades fundamentais e a igualdade política, praticamente, nunca
existiram. Nos casos mais extremos dessas características, a forma de governo era
a tirania, que se opõe à democracia
3
, que é a forma de governo em que a noção de
Cidadania passa a ser concebida. A cultura moderna é fruto de uma Cidadania
moderna, mais livre e igualitária em relação a seu início na Grécia Antiga, em que
ela estava destinada apenas a uma classe específica de homens livres, que excluía
a grande maioria (escravos, metecos e mulheres) e em que a identidade antiga era
restritiva.
A Cidadania atual aplica-se, no Brasil, a um número muito mais abrangente
de pessoas que gozam de direitos e cumprem deveres de forma eqüitativa. De
acordo com o artigo 1º da Constituição da República Federativa do Brasil, publicada
3
A democracia surgiu entre os gregos como um sistema político baseado na partilha do poder entre
todos os cidadãos das cidades-estado (polis), fundando uma sociedade política baseada na vontade
dos indivíduos que estabeleciam um contrato social. A democracia moderna é uma transposição dos
ideais da cidade-estado ao Estado-Nação, incluindo ajustes como o mecanismo da representação.
Embora desde Aristóteles até nossos dias o termo democracia tenha sido empregado para designar
uma das possíveis formas de se exercer o poder político pelo povo, direta ou indiretamente, ao longo
do tempo, esse conceito foi assumindo diferentes sentidos. Dentre as diversas teorias democráticas,
adotamos a perspectiva de democracia de John Rawls por acreditarmos no seu projeto de sociedade
e nos seus ideais de justiça distributiva. Para ele o conceito de democracia anda junto com a idéia de
justiça (como equidade) e de direitos humanos.
21
no Diário Oficial da União nº191-A, de 5 de outubro de 1988 (ANGHER, 2004),
atualmente em vigor, no “Título I DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS” – enuncia a
"Cidadania" como sendo um dos princípios que fundamentam o Estado Democrático
de Direito do Brasil:
Art.1º A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-
se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a Cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político
Parágrafo único: Todo o poder emana do povo, que o exerce por
meio de representantes ou diretamente, nos termos desta
Constituição (ANGHER, 2004, p.1).
A Cidadania aparece como um dos fundamentos da Nação, como um assunto
primordial e que só pode ser tratado pela União, não podendo os Estados e
municípios interferirem nas normas que regem tal fundamento:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
[...] XIII - nacionalidade, Cidadania e naturalização (ANGHER, 2004,
p. 16).
Nesses artigos, percebemos a importância da Cidadania, tida como
fundamento da República Federativa do Brasil. Sem este elemento, o Brasil deixa de
ser uma república, pois deixa de ser regido pelo poder que emana do povo o qual
tem o direito de eleger seus representantes.
Esta Cidadania, como foi dito antes, difere da que ocorria na Grécia antiga,
que abrangia apenas uma elite. A Cidadania atual diz respeito a uma noção
moderna da mesma, pois esta, tal como entendemos nos dias de hoje, é um
conceito e uma prática extremamente recentes. Na história da humanidade, o que foi
22
constatado, na maioria das situações, constituiu-se na existência de modos de vida
em que as liberdades fundamentais e a igualdade política praticamente não
existiam. Nos casos mais extremos dessas características, conforme mencionamos
na página anterior, a forma de governo era a tirania, que se opõe à democracia.
Neste trabalho, adotamos a definição de Charles Taylor para conceituar o
moderno e a Cidadania moderna que decorre desse conceito. Tal definição situa a
modernidade, a partir do século XVIII:
A identidade moderna surgiu porque mudanças na sua
autocompreensão ligadas a um grande leque de práticas – religiosas,
políticas, econômicas, familiares, intelectuais, artísticas –
convergiram e reforçaram-se mutuamente para produzi-la: por
exemplo, as práticas de oração e ritual religioso, de disciplina
espiritual como membro de uma comunidade cristã, de auto-exame
na condição de um dos regenerados, da política do consentimento,
da vida familiar resultante de casamentos baseados no
companheirismo, da nova forma de criar os filhos que se desenvolve
a partir do século XVIII, da criação artística sob as demandas da
originalidade, da demarcação e defesa da privacidade, dos mercados
e contratos, das associações voluntárias, do cultivo e demonstração
de sentimentos, da busca do conhecimento científico. Cada uma
dessas práticas, e outras, contribuíram um pouco para o conjunto de
idéias em desenvolvimento sobre o sujeito e sua condição moral que
estou examinando nesse livro [...] elas ajudaram a constituir um
espaço comum de compreensão em que nossas idéias atuais do self
e do bem se desenvolveram (TAYLOR, 1997, p.268)
No trecho citado, podemos definir a identidade moderna como uma mudança
de pensamento que ocorre, simultaneamente, em diversos setores da sociedade, em
diversas esferas da vida humana. Essas mudanças apontam para uma propriedade
em comum que caracteriza a modernidade de Taylor: uma fragmentação do poder e,
conseqüentemente, dos modelos que dele derivam. Os exemplos de Taylor ilustram
essa fragmentação que ocorre em todas as esferas da vida humana e que
caracteriza a identidade moderna. O aumento da prática de se cumprimentar na rua,
por exemplo, já denuncia uma abertura para o outro, assim como as decisões
23
grupais por meio do voto em eleições e as trocas no mercado. Em diversas esferas
da vida humana, um novo modelo se anuncia. Um modelo em que há mais
participação de diversos setores e mais espaço para a diversidade. Tal contexto se
apresenta mais favorável a um pensamento que privilegia o vínculo dos participantes
de uma sociedade com a vida pública. Tal vínculo constitui uma relação de maior
liberdade e igualdade entre os participantes da sociedade, instituindo, assim, uma
nova Cidadania.
O exemplo que ilustra, claramente, a transição do modelo anterior para o
moderno está contido na citação própria da página anterior, mais especificamente a
frase que menciona a «criação artística sob as demandas da originalidade». A
referida expressão denuncia uma ruptura em relação aos modelos estéticos
anteriores, como a iconografia da Alta Idade Média em que, de acordo com Taylor
(1997, p. 262), a imagem era uma superfície opaca e impenetrável. A pintura, neste
caso, seguia um esquema rígido que pretendia representar o próprio objeto
representado e não o que ele evoca. Ou em outras palavras, o referido modelo
buscava a representação do objeto em si, e não a representação do objeto tal como
é visto por um determinado observador.
A partir do Renascimento, ocorre uma libertação em relação à tradição
iconográfica: o artista não pretende mais imitar o padrão que pretende representar o
próprio objeto. A partir de então, o artista se liberta deste padrão, para buscar
retratar a natureza, mais especificamente um ângulo da natureza. Agora, o artista
não representa a própria natureza, ele se opõe a ela, posiciona-se como se opondo
a ela e como representando um ponto de vista sob o qual o objeto pode ser
percebido e que é explicitado ao observador, através de diversas técnicas as quais
24
evidenciam a noção de profundidade. Nesta nova arte, o espaço e a posição nele
são importantes, pois o artista retrata um ponto de vista que se opõe aos demais
possíveis pontos de vista. O artista se libertou do modelo iconográfico anterior, para
prender-se na busca da perfeição ao retratar a natureza.
Tal mudança, oriunda de uma ruptura com um padrão rígido de iconografia,
evoca um rumo da percepção estética em que a importância do sujeito, do autor da
obra, já se faz mais presente: o artista não é mais aquele que melhor executa uma
dada técnica de pintura, ele é aquele que consegue inovar ao expor um novo ponto
de vista sobre um dado objeto da natureza. Este novo estatuto do sujeito, do self de
Taylor, indica uma evolução da maneira de encarar a arte rumo ao pensamento
moderno. O artista tem mais liberdade, mas permanece, entretanto, preso ao padrão
que determina que a natureza seja retratada com perfeição. A identidade moderna,
descrita por Taylor como nascente no século XVIII, é caracterizada pela nova
ruptura, não mais entre o artista e o modelo acabado de pintura que ocorreu no
Renascimento, mas na ruptura do artista com o próprio objeto a ser retratado. A
modernidade é o lugar da idéia de liberdade em relação a qualquer padrão. Agora,
ao artista é permitido retratar algum objeto externo. Ele expressa sensações ou
impressões, como um pintor impressionista.
Este exemplo da tradição iconográfica foi usado para ilustrar uma evolução de
um pensamento determinado por um padrão mais rígido, passando pelo
Renascimento, rumo a um pensamento mais flexível em que há mais espaço para o
ponto de vista particular, para a subjetividade. Tal evolução pode ser observada em
todas as esferas da sociedade moderna, da qual a democracia é a maior expressão
da valorização de pontos de vista. Por menor que sejam os poderes individuais de
25
cada cidadão, eles existem, e a opinião pública é levada em conta nas ações
cotidianas dos dirigentes das nações. Esta consideração exerce uma influência
decisiva nas manifestações artísticas, nas noções daquilo que é belo, a saber, a
estética.
Na definição escolhida de identidade moderna nesta dissertação, podemos
dizer que estão englobadas as noções de modernismo e pós-modernismo, tais como
as entendem Homi K. Bhabha e Fredric Jameson, nas obras O Local da Cultura
(1998) e Pós-Modernismo, a Lógica Cultural do Capitalismo Tardio (2004), sem que
seja esse o foco da nossa pesquisa. No escopo dessa dissertação, a referência que
nos norteia, e que lhe é essencial, é a distinção entre a estética aristotélica e a
estética moderna, no sentido dado por Charles Taylor.
Essas características que convencionamos chamar de “Estética da
Cidadania” aparecem de forma muito expressiva na literatura e podem ser
estendidas a produções literárias e artísticas pertencentes ao período moderno, em
especial, à literatura pós-colonial, como no romance de Hatoum. Nelas, o princípio
da igualdade política e o das liberdades fundamentais, manifestam-se de maneira
muito expressiva na estética, ou seja, nas manifestações artísticas que expressam
uma noção de belo na cultura moderna.
Para compreender essas manifestações, é importante confrontar a maneira
de pensar que permitiu a implantação da Cidadania moderna às mentalidades que
constituíram até o presente um modelo privilegiado, não somente político, mas
estético (o que nos interessa para a literatura), em direção a um novo pensamento
26
mais flexível no qual vários modelos são aceitos (mesmo aqueles que representam
uma minoria) e são ilustrados na obra Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum.
Nosso objetivo é manifestar as noções de “Estética da Cidadania
4
características dos tempos modernos, presentes no romance de Milton Hatoum,
Relato de um certo Oriente, que traz, no seu texto, concepções que evocam a
Cidadania, presentes, por exemplo, nos diversos pontos de vista que compõem a
narrativa. O romance Relato de um certo Oriente, de 1989, remete, basicamente, a
uma viagem da memória na qual a personagem principal, uma mulher, após ter
passado muito tempo longe, regressa e rememora sua infância em Manaus e, ao
mesmo tempo, reconstrói a sua vida através da escrita, em um diálogo epistolar com
seu irmão. Segundo o crítico literário Davi Arrigucci Jr,
A narração remonta ao passado por lances retrospectivos, pela voz
da narradora em que se encaixam outras vozes num coral coeso,
lembrando a tradição oral dos narradores orientais: caixa de
surpresas, de que saltam as múltiplas faces das personagens, num
jogo de sombra e silêncio, sob a luz ardente do Amazonas. Nela se
guardam as hesitações e lacunas da memória, o que não se alcança
do passado – modo oblíquo de se deparar com os limites do
conhecimento do outro e de si mesmo, enigma último do ser
(HATOUM, 1989).
Este romance, Relato de um certo Oriente, constitui um conjunto de visões,
de impressões, de testemunhos e relatos que alteram a evolução da narrativa,
segundo a posição espacial e ponto de vista ocupados pelos personagens. O que
vai sendo constatado pelo leitor depende, fundamentalmente, da interpretação que
os diferentes personagens vão atribuindo aos eventos ocorridos ao longo do
romance.
4
Esta expressão - “Estética da Cidadania” – está sendo elaborada por mim para designar a estreita
relação de dependência que existe entre a moral de uma sociedade que criou uma Cidadania tal
27
A questão da identidade moderna fundada na igualdade política está muito
presente no Relato de um certo Oriente. O autor, nascido no Brasil, de família de
origem libanesa, expressa, através da narradora, sua
identidade multicultural. A
pesquisa em Literatura Comparada envolve a Literatura e a Filosofia que, segundo
McFarland
5
, concernem áreas culturais não idênticas, porém não opostas entre si;
apesar das diferenças existentes entre essas duas áreas, constata-se que elas têm
pontos comuns. Literatura e Filosofia são áreas contíguas.
Tanto o filósofo quanto o artista formulam teorias, no entanto com
perspectivas e finalidades diferentes. Os dois termos “estética” e “crítica literária”
identificam dois tipos de atividades: a estética parte da filosofia em direção à arte e a
segunda, parte da arte em direção à filosofia. A teoria estética é, geralmente,
caracterizada pela necessidade de relacionar a atividade artística com a teoria geral
da cognição e/ou do valor e, por causa dessa tendência, freqüentemente, não tem
relação direta com nenhuma dada particularidade de um trabalho artístico. A palavra
“estética” foi usada, inicialmente, para indicar a investigação filosófica sobre a arte
pelo filósofo Alexander Baumgarten
6
, em 1735. Muitas vezes, a Literatura e a
Filosofia andam juntas em uma “mútua fecundação”, embora, em outras ocasiões,
uma esconda a outra ou, ainda, tome caminhos diversos. Nesta dissertação,
como a conhecemos hoje (componente fundamental da identidade moderna baseada na
subjetividade segundo Charles Taylor) e seus produtos artísticos que expressam uma idéia do Belo,
ou seja, do estético.
5
“Though poetry and philosophy are different ways of attempting to understand
the mystery of life (philosophy begins in wonder, say both Plato and Aristotle [Theaetetus 155D;
Metaphysics 982b 10-20), the fact that they are contiguous cultural areas allows for a certain realm
of interpenetration, a borderland whose inhabitants speak both languages as native languages”
(MCFARLAND, Thomas. Literature and Philosophy. In BARRICELLI, Jean-Pierre; GIBALDI, Joseph.
Interrelations of Literature. New York: Jean-Pierre Barricelli and Joseph Gibaldi, 1982, p. 29).
6
Referenciado por McFarland, Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762), filósofo alemão, é
considerado o criador do neologismo “estética”. Baumgarten define a estética como sendo a ciência
do modo de conhecimento e de exposição sensível.
28
acreditamos que as duas andem juntas e, parafraseando a feliz expressão de
McFarland, em “mútua fecundação”.
2 UMA NOVA CONCEPÇÃO DE LITERATURA
Ao afirmar que, nesta dissertação, Filosofia e Literatura andam juntas, é
importante salientar de que tipo de Literatura e de Filosofia estamos tratando. Tanto
na Filosofia quanto na Literatura é preciso explicitar que estamos tratando de um
conceito moderno, de ambas, que vai de encontro às noções aristotélicas. Moderno
é aqui utilizado no sentido que lhe confere Taylor. A Filosofia moderna de que
estamos tratando é aqui representada por Rawls que desenvolveu, em Uma Teoria
da Justiça (2000), os princípios éticos os quais permitem que a Cidadania seja
exercida.
O conceito de Cidadania pressupõe uma maior aceitação de diversos pontos
de vista, na medida em que possa haver uma harmonia entre eles. Já os conceitos
aristotélicos sobre a escrita e sobre o governo das cidades pressupõem uma
repartição binária de extremos os quais representam o melhor que se opõe ao pior,
com pouca aceitação de pontos intermediários. Isso pode ser exemplificado pelo
comando que deve ser feito sempre por homens, excluindo escravos e mulheres.
Na tragédia, considerada por Aristóteles na Poética (1998) a forma mais
nobre de escrita, o personagem central deve apresentar características precisas
30
para merecer tal destaque. O conceito atual de Cidadania é imenso, inclusivo,
portanto, deve se apoiar em teorias mais igualitárias. Tais teorias procuram ampliar a
aceitação de diferentes padrões, ultrapassando a velha oposição entre bem e mal,
ou entre verdadeiro e falso.
Em “A Estrutura, o Signo e o Jogo nas Ciências Humanas”, Jacques Derrida
(1971) apresenta uma reflexão sobre a ruptura desses padrões e a aceitação de um
novo pensamento, através uma dura crítica à forma como vem sendo elaborado o
discurso que corresponde a toda a tradição do pensamento ocidental. Mas o que
significa criticar um discurso? O discurso é a operação intelectual que se efetua
através de uma sucessão de operações elementares parciais e sucessivas, que
expressa o pensamento, através de uma seqüência de palavras ou de proposições
que se encadeiam. Tal operação é regida de acordo com os princípios da filosofia
ocidental, mais precisamente da Metafísica, pois esta, enquanto Ciência Primeira
(como a designavam os pensadores gregos) goza do estatuto de fornecedora dos
primeiros fundamentos que condicionam a validade de todos os demais princípios,
de qualquer área do saber. Criticar o discurso que corresponde à tradição do
pensamento ocidental significa, então, criticar os princípios da Metafísica.
Esses princípios da Metafísica que têm a função de tornar o conjunto das
informações - que compõem uma grande cadeia de proposições - compreensíveis e
compatíveis entre si, num primeiro momento. Num segundo momento, a ambição da
Metafísica seria possibilitar que esses princípios, depois da Metafísica, na Física, por
exemplo, tornem possível a previsão de novas proposições. Essa sistematização do
saber propiciada pela Metafísica possibilitaria, assim, o saber em geral, a ciência.
Tal é o objetivo da Metafísica ocidental: fornecer os fundamentos do pensamento
para qualquer saber.
31
Para que possamos compreender a crítica à tradição de pensamento da qual
ele se origina, é fundamental abordar, primeiramente, algumas idéias gerais desse
pensamento. As ferramentas que a Metafísica utiliza para fornecer os alicerces para
qualquer saber são compostas por todo um aparato conceitual de oposições
apresentadas como primordiais, para que possamos compreender o mundo.
Aristóteles, o filósofo cujas concepções metafísicas tanto influenciaram o
pensamento ocidental, apresenta, em seus escritos, a tradicional distinção entre
substância e acidente, segundo a qual diferenciamos as características inerentes a
um determinado objeto (como, por exemplo, a de ter quatro lados para qualquer
objeto que seja quadrangular) e aquelas que são acidentais (que esse quadrado
seja vermelho, por exemplo). Um quadrado que não tiver quatro lados,
simplesmente, não é um quadrado, mas, se sua cor não for vermelha, ele nem por
isso deixará de pertencer à categoria dos quadrados. Todos os princípios da
Metafísica tradicional encontram-se em algum tipo de lógica que consiste num
conjunto de normas que “domesticam” a argumentação, através de regras como as
que regulam o uso dos conetivos (“e”, “ou”, “se”, “então”, “se” e “somente se”), de
expressões existenciais (“existe um objeto x” ou “para todo objeto x”), de acordo com
um sentido que busca a unificação do pensamento. Assim, o princípio da
causalidade, por exemplo, é, na linguagem natural, expresso por “então”, ou
equivalente. O pensamento expresso pelo discurso torna-se passível de
homogeneização, tornando-se codificável como uma equação matemática: a Lógica
constitui o próprio centro regulador de que fala Derrida (1971).
Tal ordenamento no discurso constitui uma tentativa de eliminar qualquer
possibilidade de parcialidade. Se o objetivo da Metafísica é tornar-se uma ciência
32
cujas proposições jamais expressem interesses, mas, sim, verdades independentes
da vontade de quem quer que seja, nada mais apropriado para isso do que transferir
o discurso para uma estética tão insossa, quanto números e letras. O interesse da
Lógica seria, de forma disfarçada, não apenas o de auxiliar o pensamento com suas
regras, mas também torná-lo mais insípido. Figuras de linguagem podem provocar
fortes emoções, o que pode comprometer a tão sonhada imparcialidade da ciência.
O discurso de uma pessoa deve ser interpretado, exclusivamente, de acordo com os
correlatos a que ele alude, para evitar qualquer equívoco ou ambigüidade. De
acordo com esse pensamento, é mais fácil argumentar com imparcialidade,
utilizando um raciocínio expresso em termos lógicos, do que pensando em termos
de fatos empíricos, cheios de emoções e cores fortes que poderiam comprometer a
imparcialidade dos resultados. Um juiz, por exemplo, deve julgar culpado qualquer
indivíduo cuja ação se enquadre em uma proposição geral que caracterize esse tipo
de ação como condenável.
A partir dessa breve introdução do modelo de pensamento que corresponde a
toda uma tradição da Metafísica ocidental, pretendemos apresentar uma alternativa
a esse pensamento e as motivações que levaram a essa mudança de um
pensamento unívoco para um pensamento que admite a pluralidade.
2.1 A CRÍTICA A ARISTÓTELES
A crítica de Derrida (1971) parece denunciar um caráter ingênuo da filosofia,
ao acreditar que todo discurso produzido pode ser traduzido em termos de um
código unificador, regulado por princípios iguais para todos. A pretensão à
imparcialidade, por exemplo, sempre é um equívoco, maior ainda em se tratando
33
das ciências humanas. Se, nas ciências exatas, sempre há um interesse subjacente
a cada discurso, mesmo se inconfessável até mesmo para o cientista que se julga
imparcial, nas ciências humanas, a imparcialidade é indisfarçável.
É um pouco mais fácil ser imparcial ao tratar da posição dos astros e de seus
movimentos do que quando o discurso se refere às pessoas, quer se trate de suas
ações políticas ou de suas convicções filosóficas. Isso porque o discurso das
ciências humanas exerce uma influência mais direta sobre as paixões humanas, por
exemplo, a vaidade.
As emoções, como a vaidade, influenciam diretamente na construção do
discurso. Só isso já é um motivo para desconfiar do belo ideal, unificador da Filosofia
ocidental. Ideal e eficiente porque pretende nos dar a segurança de um saber que
apreende a estrutura última das coisas e, também, porque pretende nos oferecer um
método que permite dividir o problema em quantas partes for preciso até encontrar
uma unidade menor, “clara e distinta”, empregando uma expressão de Descartes,
utilizada de forma irônica no texto de Lévi-Strauss (Le Cru et le Cuit), citado por
Derrida, em A Estrutura, o Signo e o Jogo nas Ciências Humanas:
Efetivamente o estudo dos mitos coloca um problema metodológico,
pelo fato de não se poder conformar ao princípio cartesiano de dividir
a dificuldade em quantas partes for necessário para resolver. Não
existe um verdadeiro termo para a análise mítica, nem unidade
secreta que se possa apreender no fim do trabalho de
decomposição. Os temas multiplicam-se ao infinito (DERRIDA, 1971,
p. 241).
A obra de Descartes encarna, aqui, a obra clássica de Filosofia iludida com o
raciocínio lógico binário, baseado na oposição verdadeiro e falso, que pretende
fornecer a chave para todas as dúvidas existenciais e científicas da humanidade.
34
Para encontrar tais soluções, bastaria ir com calma, passo a passo, destrinchando o
problema em quantas partes fosse preciso. Mas onde está essa unidade mínima? Aí
reside mais uma ilusão.
É uma ilusão pensar que podemos falar de “fora de nós mesmos” sobre o
mundo, ignorando nossas limitações, tais como o ponto de vista em que cada um se
insere (ninguém pode falar por todos), e a vulnerabilidade às emoções. Tal divisão
só parece ser possível em textos filosóficos que são como um desvio do
pensamento espontâneo. Num texto clássico de Filosofia, como o de Aristóteles, o
leitor, num primeiro momento, se impressiona com a perfeição com que qualquer
coisa pode ser explicada dentro das ferramentas fornecidas pelo pensador. Já no
mito, que corresponde a uma interpretação mais espontânea e, talvez por isso, mais
profunda das questões primordiais que parecem governar o sentido da vida, vemos
que a maneira com que é formulado impede que se divida um problema em
unidades, como pretende fazer Descartes. Trata-se de outro registro da
interpretação, sendo que um é mais pretensioso ao querer simplificar os problemas,
para que sejam aparentemente solucionados, enquanto que o outro, modestamente,
apresenta os conflitos insolúveis inerentes à condição humana, como o do sentido
da vida.
Esse pensamento redutor simplifica demais as coisas, quer dar um guia de
instruções para a vida. Derrida (1971), ao criticá-lo, propõe uma interpretação
inovadora por acreditar ser ela menos pretensiosa: esta é uma possibilidade de
compreensão das coisas, e não aquela que deve ser necessariamente encarada. A
interpretação de Derrida exclui o antigo modelo centralizador, em que um conceito
corresponde a uma presença, assim como o vocábulo “cadeira” corresponderia a um
35
exemplar desse móvel. Este é mais um exemplo de como esta Filosofia, criticada por
Culler (1997) e Derrida (1971), simplifica as coisas: a correlação entre o objeto e seu
nome nem sempre é tão simples; o discurso não é um simples retrato de uma
realidade determinada.
2.2 DISCURSO E REALIDADE
A confusão entre discurso e realidade e a própria confusão conceitual que a
palavra “realidade” suscita torna-se mais evidente quando utilizamos palavras que
aludem a sentimentos como “amor”. Para definir tais abstrações, que são justamente
os tradicionais temas filosóficos – aqueles que não podem ser verificados
empiricamente, tais como o “belo” ou o “justo” – já surge uma série de problemas
conceituais.
Ao transpor esses assuntos para um código unificador de argumentação
lógica, esses pensadores, na verdade, nos distraem da parte mais delicada de seu
pensamento: uma série de afirmações que são tomadas como pressupostos e que
aparecem, dogmaticamente, no texto, como se fossem evidentes. Nessa linha de
pensamento, todo o raciocínio parte do pressuposto de que uma determinada
interpretação já foi consagrada como verdadeira.
Um recurso bastante utilizado pelos filósofos para a exposição de suas
interpretações são as oposições binárias. Uma explicação sempre é uma
simplificação daquilo que se pretende explicar, um esquema. Explicar é simplificar a
maneira como se deve destacar dentre aquilo que experimentamos, aquilo que
36
precisa ser discriminado. Voltaremos a tratar disso mais adiante. Assim, quando
encontramos, na praia, conchas de todos os tamanhos, podemos explicar sua
classificação de inúmeras formas. Naturalmente, a forma mais simples de se explicar
alguma coisa é dividindo-a em duas partes, pois esse é o mínimo em que as coisas
podem ser divididas. É mais fácil, por exemplo, dividir as conchas em grandes e
pequenas. Só que, normalmente, as classificações já carregam um peso moral e
afetivo para as pessoas. Certamente, haverá um dos tipos de concha que será
preferido, digamos, que as maiores são próprias para a decoração da casa, e as
pequenas são inúteis. A classificação tende a envolver uma discriminação em que
um lado apresenta todas as características benfazejas: é belo, bom e desejável;
enquanto o outro extremo é feio, ruim e repelente.
2.3 DESCONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO OCIDENTAL
A descoberta dos novos filósofos estudados, que enfatizam a desconstrução
do pensamento ocidental, como por exemplo, Jonathan Culler (1997), é que essa
forma de classificar as coisas é apenas uma forma e não “a forma” de interpretar as
coisas. As conchas poderiam ser classificadas de infinitas maneiras, de acordo com
outras propriedades, não necessariamente benéficas ou maléficas. Na obra
intitulada A Desconstrução, no capítulo “Sobre a Desconstrução”, depois de analisar
diversos exemplos extraídos de clássicos da filosofia, Culler afirma:
Os exemplos que consideramos não nos dão razões para crer, como
às vezes se sugere, que a desconstrução faz da interpretação um
processo de livres associações em que qualquer coisa vale (...) se,
por exemplo, o sentido for pensado antes como um produto da língua
do que como sua fonte, como isso afetaria a interpretação?
(CULLER, 1997, p. 127)
37
Desconstruir, buscar uma nova forma de pensar que não siga o esquema
clássico de oposições binárias, em que um extremo representa o lado positivo e o
outro o negativo, não significa interpretar aleatoriamente; significa considerar mais
alternativas, enriquecer o panorama a ser contemplado, sem excluir tudo o que não
se encaixar no antigo modelo do “bom”. Desconstruir significa tomar consciência da
peculiaridade da linguagem, tanto escrita quanto falada, e renunciar à esperança de
que ela funcione como um perfeito correlato do mundo real. A desconstrução aponta
para o fato de que é esse real que é uma ilusão: o que temos, na argumentação
filosófica, é, isso sim, um produto da língua.
2.4 OPOSIÇÃO ENTRE SEXO FEMININO E MASCULINO: UM EXEMPLO
Um exemplo bastante comum dos preconceitos arraigados nos textos
fundadores da cultura ocidental, fundamentados em oposições binárias, consiste na
interpretação que expressa a inferioridade do sexo feminino.
Uma formulação marcante desse pensamento discriminatório do sexo
feminino que exemplifica o pensamento metafísico baseado em oposições binárias
se encontra na célebre Ética a Nicômaco, de Aristóteles (1996), em que a felicidade
é apresentada, já que ela é “um bem em si mesma”, “aquilo a que todas as ações
visam”, em oposição, por exemplo, a um meio de transporte. Como o nome indica, o
meio de transporte constitui um meio de se deslocar com vistas a chegar em um
lugar. Ao contrário do meio de transporte, a felicidade é boa em si mesma porque
não é um meio para nada, é o fim último de todas as ações. Atingir a felicidade não
depende do acaso, pois não se pode contar com a fortuna, já que seus frutos
38
costumam ser efêmeros. A felicidade é algo louvável e perfeito e constitui um modo
de viver que depende de uma certa atividade da alma, conforme a excelência
perfeita. Não cabe aqui definir ou justificar o que seja esta atividade da alma,
conforme a excelência perfeita; o que queremos, aqui, é investigar um modo de
pensar representativo não apenas de Aristóteles, mas de toda uma tradição que
desemboca na nossa e ainda a influencia fortemente. Podemos concluir, a partir
dessa concepção de felicidade, que ela é considerada um bem maior, ou seja, quem
sabe viver de acordo com essa concepção atinge o maior valor moral a que uma
pessoa pode chegar. Concluímos, também, que a felicidade depende do nosso
esforço, da nossa deliberação. De acordo com essa característica do bem maior da
vida (a felicidade), concluímos que a mulher está excluída dela já que está, portanto,
impossibilitada de chegar a atingir a felicidade, de acordo com Aristóteles, na
Política, no capítulo intitulado “A Formação da Cidade”:
É preciso, inicialmente, reunir as pessoas que não podem passar
umas sem as outras, como o macho e a fêmea para a geração. Esta
maneira de se perpetuar não é arbitrária e não pode, na espécie
humana assim como entre os animais e plantas, efetuar-se
naturalmente. É para a mútua conservação que a natureza deu a um
o comando e impôs a submissão ao outro (ARISTÓTELES, 2000, p.
22).
Cabe, então, à mulher a obediência, o que significa que ela não delibera, que
só lhe resta agir de acordo com a decisão alheia, não podendo, assim, exercitar a
“excelência perfeita”. Podemos observar o quão dogmática é essa organização de
Aristóteles: o filósofo não apresenta um argumento que justifique, satisfatoriamente,
o fato de um sexo por ser mais forte do que o outro, passe a comandar o mais fraco.
Claro, Aristóteles quando assegura que tal organização apresenta um benefício
mútuo para a geração da espécie, mas essa afirmação é dogmática. Por que seria
39
mais vantajoso para a manutenção da espécie o homem comandar e a mulher não
ter direto ao bem maior, que é a vida feliz?
Esse tipo de argumentação excludente aparece em outras áreas consagradas
da cultura. Os exemplos são incontáveis. Um deles está no prefácio da peça de
Victor Hugo, intitulada Ruy Blas (HUGO, 2001), em que o autor afirma que há três
tipos de espectadores: o povo, que quer ver a ação; as mulheres, que querem ver as
paixões; e os sábios, que querem ser instruídos, aprender uma lição, enquanto
assistem a uma peça. Essa distinção entre os três tipos de público pressupõe a
exclusão das mulheres do grupo dos sábios, daqueles que querem se instruir. Esse
exemplo de Victor Hugo, muito mais recente, mostra como, até pouco tempo, esse
tipo de classificação era considerado natural e até óbvio. Fica claro que, hoje em dia,
esse tipo de discriminação não é mais tão difundido na cultura ocidental.
O romance Relato de um certo Oriente é um exemplo da valorização da figura
feminina, enquanto detentora do saber: neste romance, a narradora (enteada de
Emilie) reconstrói a história da família, dando a palavra aos principais membros.
Nesta família, Emilie é a matriarca que detém a tradição das origens, sendo,
também, a mediadora entre a cultura de origem e a local.
40
2.5 NEGAÇÃO DAS OPOSIÇÕES BINÁRIAS
A idéia de negar as oposições binárias é expressa pela noção de jogo de que
fala Derrida. O jogo constitui uma analogia para compreender o mecanismo do
discurso: ele é regido por regras que limitam suas possibilidades, mas que, ao
mesmo tempo, tornam seu rumo imprevisível. O que os novos filósofos da
desconstrução querem é ampliar essas possibilidades, para que o jogo se torne mais
livre. Um bom jogo é aquele em que qualquer um dos participantes pode ganhar,
porém, ao mesmo tempo, é aquele cuja situação pode ser revertida a qualquer
instante.
Para que isso ocorra, o primeiro passo é desvencilhar-se do preconceito do
sistema binário em que um lado já é dado de antemão como o superior. Ambos
devem ter mobilidade no jogo. O segundo é ampliar as próprias possibilidades: não
só os dois opostos são válidos como seus intermediários: na verdade, a própria
oposição deve ser destruída.
Em Relato de um certo Oriente, a protagonista dá a vez da palavra a cada
um, como no jogo de Derrida. A protagonista deparou-se com o problema de quem
detém a fala:
Como transcrever a fala engrolada de uns e o sotaque de outros?
Tantas confidências de várias pessoas em tão poucos dias
ressoavam como um coral de vozes dispersas. Restava então
recorrer à minha própria voz, que planaria como um pássaro
gigantesco e frágil sobre as outras vozes. Assim, os depoimentos
gravados, os incidentes, e tudo o que era audível e visível passou a
ser norteado por uma única voz, que se debatia entre a hesitação e
os murmúrios do passado (HATOUM, 2003, p.166).
41
Apesar de a protagonista nortear a narrativa, ela se mostra hesitante e frágil,
atenta a todas as vozes, não se sobrepondo a elas de maneira autoritária. A voz da
protagonista contém diversas vozes, mesmo quando incompatíveis entre si, sendo
que nenhuma comanda as demais.
2.6 DESCONSTRUÇÃO E CIDADANIA
A nova forma de pensar não só não privilegiaria, necessariamente, nem uma
nem a outra extremidade das oposições binárias (dependeria da vantagem que cada
uma levaria em cada situação), pois nenhuma teria um estatuto fixo de bom ou ruim,
predeterminado, mas também deve estar aberta para as demais possibilidades de
expressão do discurso. A desconstrução não abandona totalmente o pensamento
desenvolvido até então, pois este nos legou o ensinamento do discurso como um
jogo. A desconstrução pretende, sim, criar regras que tornem o jogo mais livre e
imprevisível; afinal, quanto mais imprevisível é um jogo, mais interessante ele se
torna.
O grande atrativo da desconstrução talvez resida em seu caráter inovador:
trata-se de um pensamento que não veio se opor ao anterior. Caso a desconstrução
tivesse por objetivo derrubar a tradição que a antecede, ela não estaria fazendo
nada além de repetir a velha oposição binária da verdade que contradiz a falsidade.
Ao contrário, a desconstrução reconhece que não pode negar a herança da tradição
que recebeu, pois ainda não conseguimos pensar de forma livre do pensamento no
qual fomos criados. Entretanto, é possível abalar suas estruturas mais centrais,
42
mesmo que os elementos utilizados em uma nova construção sejam ainda os
mesmos.
Através dessa nova maneira de pensar, é possível aceitar mais facilmente as
diferenças de um modo geral. Um pensamento mais livre, no que se refere aos
antigos e rígidos modelos aqui exemplificados, em Aristóteles, representa uma
grande evolução rumo a uma nova literatura e a diferentes formas de vida humana
em geral. Essa maior tolerância à diferença constitui um traço importante da
Cidadania.
3 A ESTÉTICA DA CIDADANIA
As características da narradora-protagonista e do relato evocam toda uma
mudança literária em relação ao antigo modelo representado pelos ditames da
Poética aristotélica. Para compreender essa mudança, exporemos, neste capítulo,
alguns traços da Literatura que apresentaram uma evolução a qual corresponde a
um desenvolvimento político ligado à Cidadania.
O fato de muitos países terem se tornado democracias representa uma
mudança que se manifesta em diversas esferas da vida humana. Essa evolução
parte de um pensamento que privilegia um modelo não apenas político, mas estético
(o que interessa para a literatura) que vai rumo a um pensamento mais flexível em
que diversos modelos são aceitos, até mesmo aqueles que representam uma
minoria.
O modelo tradicional da narrativa, de maneira geral, impõe normas estéticas
que expressam um tipo de «racionalidade» narrativa como auto-evidentes. A
narrativa já não obedece mais a tais critérios. O termo «tradicional» refere-se aqui a
teorias mais antigas sobre a narrativa, como a Poética de Aristóteles, em que há
regras severas que determinam o que é a boa literatura. Esse modelo
44
estético tradicional foi o critério da boa literatura por um período significativo da
história. Mais do que fruto do gênio de Aristóteles, esses critérios tradicionais são o
fruto de uma sociedade na qual um padrão de excelência era o mais alto valor. De
acordo com esse padrão, a narrativa não poderia apresentar contradições, a
coerência deveria ser respeitada, nenhum elemento poderia ser acrescentado à
história, se não fosse essencial para seu desenlace. No modelo aristotélico, a arte
da escrita era nobre, pois nos apresentava uma história perfeita, em um harmonioso
desencadeamento de eventos, que devia tocar o leitor pelas reflexões e emoções
que evocavam. Os fatos deveriam estar fortemente relacionados para compor a
noção de unidade, podendo ser facilmente contados, pois, normalmente,
concentravam-se em apenas um ponto de vista. Estas características (coerência,
unidade da história) evocam uma educação em que o pensamento daquele que
escreve é corrigido por critérios argumentativos. O escritor é um homem sábio que
organiza não apenas seu pensamento, mas o próprio sentido da narrativa, em que o
mundo retratado parece ser organizado e dotado de sentido, apesar dos conflitos.
Nesse mundo, a ação se desenvolve sob uma lógica em que ela resulta,
inevitavelmente, de ações precedentes.
Outra característica do modelo antigo é a importância da escolha dos temas.
Fica claro que há uma hierarquia que designa temas mais ou menos nobres. Um
homem que enfrenta perigos pela honra de seu povo, por exemplo, é um tema
nobre. E se o tema não for exatamente nobre, a ação precisa ser curiosa e
surpreendente, deve conter algo de extraordinário, mesmo se não há um herói.
Esta forma de narrar pressupõe um ponto de vista coerente, fruto de uma
sociedade que valoriza os «grandes homens», em que um ponto de vista é
45
favorecido e representa toda a comunidade. O escritor é uma autoridade, ele não
representa um ponto de vista, mas o ponto de vista. A ele cabe organizar o
pensamento em uma totalidade coerente.
São essas concepções antigas que serão contestadas em Relato de um certo
Oriente. A realidade, aqui apresentada, não é tão perfeita; está cheia de repetições,
de tédio, de falta de sentido, de fatos que não estão ligados uns aos outros com
perfeição. A realidade seria uma composição formada pelos relatos de várias
pessoas e coordenada pela narradora que dá a palavra a essas vozes. Nesse
mosaico, cada peça não é necessariamente definitiva, pois constitui um ponto de
vista que, aliás, não está sempre conectado aos demais pontos de vista
apresentados. O papel da narradora é dar sentido a esse grande mosaico, olhando
de longe, com o passar do tempo, para enxergar algo que ela não pode ver no
momento vivido. Cada peça sozinha não tem tanto sentido, mas a visão das peças
reunidas pode, de longe, apresentar uma visão mais completa. É o que expressa a
narradora que conta, através da sua própria voz e da voz dos outros, a quem ela
delega a palavra, em seus relatos que tratam de diversos temas, nem sempre
“nobres”, como, por exemplo, as brincadeiras das crianças ou as brigas entre Emilie
e seu marido. Vistas de longe, essas situações e as reflexões que elas provocam
compõem uma identidade que não é fixa e está em permanente construção.
Relato de um certo Oriente é uma narrativa em que percebemos a presença
de diversos pensamentos, diversas fontes e em que não há uma autoridade máxima.
Não há uma censura que estabeleça quais são os temas nobres ou aceitáveis. Tudo
pode ser narrado, pois o que interessa é a reflexão que essas descrições provocam,
a partir do que elas revelam. As visões da narradora são reflexos do que ela viveu e
46
não aspiram à verdade ou à verossimilhança. A mesma lembrança pode se modificar
e ser narrada de diferentes formas. Em diferentes momentos, a mesma lembrança
pode adquirir diferentes expressões que podem interferir na percepção do próprio
presente, como na descrição de Said:
A invocação do passado constitui uma das estratégias mais comuns
nas interpretações do presente. O que inspira tais apelos não é
apenas a divergência quanto ao que ocorreu no passado e o que
teria sido esse passado, mas também a incerteza se o passado é de
fato passado, morto e enterrado, ou se persiste, mesmo que talvez
sob outras formas (SAID, 1995, p. 33).
A partir das idéias expressas nos ensaios críticos de T.S. Eliot, Said destaca o
que para ele é a idéia central de Eliot, a qual é compartilhada por Said: “[…] a
maneira como formulamos ou representamos o passado molda nossa compreensão
e nossas concepções presentes” (SAID, 1995, p. 34-35).
A importância atribuída à interpretação e reinterpretação do passado, como
elemento que não apenas se manifesta no presente como, por vezes, persiste no
presente, de acordo com as palavras de Said, mostra uma visão aberta à mudança.
Esta concepção se opõe às versões definitivas. Nesta concepção literária
compartilhada por Said e Hatoum, o passado é um elemento sujeito à remodelagem,
à reavaliação, sem que uma versão tirana se sobreponha a título de «versão oficial».
A nova estética da literatura é fruto de uma sociedade cujo pensamento aceita
a Cidadania. Cidadania significa, entre outras coisas, um poder destinado a uma
maioria, mesmo que seja uma parte ínfima do poder. Todos os pequenos poderes
constituem uma grande composição, onde as vozes se contradizem,
constantemente, os interesses se confrontam e onde há possibilidade de ser
incoerente, de mudar de opinião. O fato de que muitos exerçam um pouco de poder,
47
constitui uma novidade na estética. Se muitos decidem, ainda que de forma limitada,
o futuro da sociedade, significa que essa maioria deve estar representada de
maneira significativa na arte, pois é, em grande parte, a essa maioria que as obras
se destinam. Como a maioria das pessoas tem uma vida ordinária, pelo menos do
ponto de vista do observador exterior que descreveria os fatos por elas realizados, a
profundidade da vida dessas pessoas reside, freqüentemente, em sua reflexão
cotidiana. Devido às mudanças ocorridas na sociedade, oriundas de uma nova
Cidadania, o cotidiano deixou de ser marginalizado na literatura: as sensações
individuais passaram a ser valorizadas, e o narrador passou a ter direito à
contradição e à repetição.
Por constituir o sentimento de pertença passiva e ativa de indivíduos em um
Estado-nação, a Cidadania constitui a forma primeira do vínculo coletivo. Um
Estado-nação é constituído por um espaço físico e por seus habitantes que se
identificam uns com os outros. Esta identificação que implica direitos e obrigações
universais - a Cidadania - corresponde à primeira passagem entre a representação
do eu e a representação do resto do mundo (composto por todos os elementos do
mundo externo ao nosso corpo, como as demais pessoas, a natureza ou meios
construídos por pessoas, a partir da natureza). A Cidadania é vista como forma
primeira do vínculo coletivo, graças a uma longa evolução da cultura humana que
tornou possível usufruir de uma certa igualdade política e de suas liberdades
fundamentais.
Esse vínculo coletivo que pode parecer natural àqueles que nasceram nos
tempos modernos é, na verdade, fruto de uma mudança de mentalidade a qual pode
ser observada mediante o estudo da evolução da “história das idéias”. Estas idéias
48
podem ser analisadas através de obras que exerceram uma influência importante
sobre as concepções que definiram diferentes configurações políticas, em cada
período da história. Essas concepções expressam, em cada época, de acordo com
um contexto dado e com a evolução do pensamento deste contexto, aquilo que é
bom e aquilo que é mau, o que é desejável e o que deve ser evitado. Essas
referências constituem um sistema de valores que chamamos de moral. A moral
constitui uma orientação de acordo com a qual os projetos humanos adquirem um
sentido. Um projeto só tem sentido na medida em que seu autor o considera como
parte de uma idéia do que é bom, de um benefício, em oposição ao que não é
desejável.
A moral é uma determinação do que é bom e do que é ruim. que pode variar
de acordo com o contexto, traduzindo uma maneira de interpretar a vida humana
expressa nas manifestações culturais, especialmente na literatura que nos interessa
particularmente nessa dissertação. Qual o contexto que tornou possível a inserção
da Cidadania como elemento essencial à identidade? A Cidadania, aqui definida
como forma primeira de vínculo coletivo, ocupa esse estatuto prioritário graças a um
enorme progresso da cultura, com as características indicadas por Charles Taylor,
nas Fontes do Self: a formação da identidade moderna (1997). Tais características
serão explicitadas mais adiante.
A grande vantagem da identidade moderna consistiria na produção de uma
estética em que é possível mostrar as fraquezas e incoerências sem serem
apontadas, necessariamente, como vergonhosas. Se a arte expressa valores
elevados como a honra, a racionalidade, a lealdade e a nobreza, mostrar também
aspectos opostos, ou apenas distintos desses, como a irracionalidade, a repetição
49
ou o tédio, tornará o discurso mais completo, pois estes também correspondem a
aspectos essenciais da vida humana. Estes aspectos que freqüentemente foram
excluídos na arte, certamente fizeram falta enquanto ferramentas que nos
possibilitam compreender a vida. A inclusão dessa esfera ignorada nas
manifestações culturais torna a arte mais real, pois, com isso, a arte pode ser mais
humana. O direito à incoerência seria uma conquista da identidade moderna, fruto
de uma Cidadania em que o poder é dividido de maneira mais justa e que promove o
direito à aceitação de todos, com qualidades e defeitos.
3.1 CIDADANIA: CONCILIANDO A MORAL COM A ÉTICA
Ao tratar da questão da Estética da Cidadania, os conceitos de ética e de
moral aparecem inevitavelmente. Esses conceitos se confundem, freqüentemente,
no discurso face às diversas definições atribuídas a esses mesmos nomes – ética e
moral – ao longo da história. Devido ao caráter obscuro desses substantivos, por
serem, simultaneamente, ambíguos e polissêmicos, cabe, aqui, esclarecer o que se
entende ao tratar de tais conceitos.
A confusão que se dá entre esses dois conceitos ocorre porque ambos
parecem fornecer princípios que têm por objetivo preservar a justiça numa dada
sociedade. Por vezes, ética e moral aparecem como sinônimos, mas, na maioria das
vezes, apresentam-se de forma confusa, pois se sabe que, caso não sejam
sinônimos, há uma relação entre eles, embora não se saiba exatamente qual.
50
A noção de moral ou de pessoa moral, aqui adotada, refere-se àquela que é
definida, de acordo com o verbete de André Lalande, em Vocabulário Técnico e
Crítico da Filosofia, da seguinte forma:
Pessoa Moral. Ser individual, enquanto possui as características que
lhe permitem participar da sociedade intelectual e moral dos
espíritos: consciência de si, razão, quer dizer, capacidade de
distinguir o verdadeiro e o falso, o bem e o mal; capacidade de
determinar por motivos pelos quais se possa justificar o valor perante
outros seres razoáveis (LALANDE, 1996, p. 812).
Essa definição coincide com a de John Rawls (2000) que, no livro Uma
Teoria da Justiça, defende o princípio segundo o qual uma sociedade deve ser
igualitária, ou seja, tratar seus participantes como iguais no que se refere a direitos e
deveres. Para Rawls, a justificativa para esse princípio deve-se ao fato de que os
seres humanos são iguais quanto a um aspecto: todos têm uma capacidade de
formar idéias, mais ou menos desenvolvida, daquilo que é bom e ruim, do bem e do
mal, do que é desejável (apesar da moral não ter relação com o desejável) e do que
deve ser evitado.
A importância da obra de Rawls é expressa através do pensamento de
Rouanet
7
:
Contra aqueles que dizem que a Filosofia não serve para nada,
acreditamos que, sim, a Filosofia tem uma influência sobre o
comportamento das pessoas, dos governos e exerce uma influência
sobre a história. Quem pode avaliar, por exemplo, em que medida o
capitalismo não se tornou mais humano, em parte, devido às críticas
e análises de Marx? Da mesma maneira, Rousseau, com Do contrato
social e o Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens
certamente contribuiu para se rever alguns dos pressupostos de
nossa civilização, inspirando a Revolução Francesa. Descartes, com
suas Regras do método, suas coordenadas cartesianas, está
presente em toda parte, desde a Modernidade. A lista é longa. Da
mesma forma, podemos esperar que as idéias de filósofos como
7
Disponível em: <http://geocities.yahoo.com.br/eticaejustica/textos.html> Acesso em: 30 mar. 2005.
51
Kant e Rawls influenciem, mais cedo ou mais tarde, os povos e
governantes de nossa época e futuros. Como dizia Kant, se olharmos
para a história exclusivamente de maneira empírica, veremos apenas
maldade, violência, uma sucessão de carnificinas. É preciso
introduzir uma finalidade artificial, um ideal, um sonho. Como disse
Rawls, se for para viver em um mundo onde tenhamos que abrir mão
de nosso sonhos, talvez não valha a pena viver. Mas sonhos com
alguma base na realidade, como restos diurnos. É o realismo utópico
de John Rawls
(ROUANET, 2003).
De acordo com essas noções, todas as pessoas formulam seus planos de
vida. As pessoas diferem dos demais seres vivos por fazerem planos de acordo com
algum ideal do bem e do mal, construído em cada pensamento, e agirem de acordo
com essa idéia perseguindo tais planos. Essa noção do bem e do mal que molda os
planos de vida das pessoas faz com que as mesmas sejam consideradas “seres
morais”. O fato de sermos seres morais é a justificativa do filósofo John Rawls, para
que considere justo que possamos ser tratados como iguais perante a lei e que
possamos perseguir nossos objetivos na medida, é claro, em que estes não violem
as liberdades básicas dos demais integrantes da comunidade em questão.
Em outras palavras, é a moral (noção do bem e do mal) que existe em cada
um de nós, seres humanos, que, ao mesmo tempo, nos torna iguais e diferentes. O
fato de sermos considerados “seres morais” justifica que recebamos o mesmo
tratamento perante a lei, tendo direitos e deveres iguais, mas, ao mesmo tempo, são
essas concepções de bem e de mal, que guiam nossa conduta, que nos tornam
diferentes um do outro, criando nossa singularidade.
Há, portanto, dois aspectos aparentemente antagônicos na definição da
Moral: apesar de ser o elemento que legitima a igualdade entre as pessoas, é ela,
na verdade, que mostra a diferenciação entre estas, cada uma com seus desejos e
projetos particulares. Não há contradição nestas duas características: a igualdade
52
entre os participantes de uma sociedade é abstrata, já que as diferenças são
evidentes, a começar por aspectos físicos (chamados por Rawls de “Loteria
natural”). O que torna as pessoas iguais é justamente a autonomia que têm quanto
ao pensamento e às suas concepções de bem e de mal.
Já a noção de Ética é definida por Lalande como:
A ciência que toma por objeto imediato os juízos de apreciação sobre
os atos qualificados como bons ou maus. É o que propomos chamar
de Ética. Com efeito, qualquer hipótese que se adote sobre a origem
e a natureza dos princípios da moral, é certo que os juízos de valor
que tratam da conduta são fatos cujas características cabe
determinar e que o estudo da conduta não pode ser substituído pelo
estudo direto destas, porque a conduta dos homens nem sempre é
conforme com os seus próprios juízos sobre o valor dos atos. Sem
dúvida acontece que, de fato, questões de Moral e as de Ética, assim
definidas, sejam freqüentemente misturadas, mas isso não exclui
uma distinção muito nítida das suas definições (LALANDE, 1996, p.
349).
De acordo com essas definições, moral e ética são conceitos que dizem
respeito a esferas distintas do ser humano: uma se refere ao particular, e outra à
coletividade. A moral é fundamental enquanto elemento que reúne as aspirações de
cada um, compondo um pensamento que norteia as ações.
A ética diz respeito ao julgamento das ações das pessoas. A ética e a moral
têm em comum o seguinte aspecto: ambas norteiam a ação humana. A moral orienta
as ações na medida em que é nela que se situam os projetos de cada um, e a ética
orienta as ações ao estabelecer para a coletividade quais os limites para execução
destas ações. É a partir da ética que se determina, não mais individualmente, mas
coletivamente, que ações são permitidas e quais são proibidas. A moral refere-se à
noção de bem e de mal de cada um, e a ética refere-se a uma noção coletiva de
bem e de mal.
53
4A importância da noção de Cidadania reside no fato de que este conceito
promove a conciliação entre Moral e Ética, conforme demonstramos a seguir.
Num regime tirano, em que não há direitos igualitários, não há participação de
um número maior de pessoas nas decisões que irão interferir na vida da
coletividade, portanto, não há Cidadania. Neste tipo de governo, há uma identidade
entre a moral do tirano e a ética, ou seja, a lei que é aplicada não trata a todos como
iguais, ela é simplesmente fruto dos desejos de quem comanda. A ética surge como
um instrumento que busca tornar compatíveis os diferentes projetos de vida, sem
pressupor a superioridade de um ser humano sobre o outro, na medida em que ela
se distancia da moral de um sujeito e se ocupa em conciliar a moral de cada um
através de leis que devem ser aplicadas de forma imparcial. A ética, enquanto
instrumento regulador o qual fornece aparato teórico para fundamentar uma
legislação que torne os projetos de cada um compatíveis na medida do possível (ou
seja, na medida em que os projetos não interfiram nas liberdades fundamentais de
cada um), só é possível na medida em que há Cidadania.
Em um governo moderno, em que um número crescente de pessoas pode
perseguir seus planos e tomar parte das decisões, deve haver uma certa liberdade,
regulada por leis prescritas por princípios éticos. Tais princípios regulam as ações
dos cidadãos que merecem esse estatuto de partícipes ativos e passivos, com
certos direitos e deveres na sociedade, em um específico nível de igualdade. O
merecimento deste estatuto, por parte dos cidadãos, se justifica por serem iguais
pelo menos quanto a um aspecto: todos são seres morais, ou seja; têm suas
concepções acerca do bem e do mal mais ou menos definidas e, a partir daí,
formulam seus planos de vida.
54
Em outras palavras, a Cidadania consiste na busca da conciliação entre as
pessoas, considerando-as como iguais enquanto seres morais, com base num
sistema de leis aplicado de forma igual para todas, alicerçado em valores
estabelecidos, chamados de Ética. Essa conciliação que visa, na medida do
possível, compatibilizar os diferentes projetos das pessoas, se expressa no conceito
moderno de Cidadania.
3.2 CIDADANIA E A RELAÇÃO COM O BINÔMIO IGUALDADE E LIBERDADE
Como foi dito anteriormente, a Cidadania é o conceito que concilia a moral e a
ética as quais correspondem, respectivamente, à esfera privada de cada cidadão
(com suas concepções de bem e mal que orientarão suas ações e objetivos a serem
perseguidos) e à esfera pública (que estabelece limites para a perseguição desses
objetivos particulares, procurando conciliá-los sem lesar os bens primários e
liberdades fundamentais). Essas esferas que são os componentes do vínculo entre
os valores que regem os aspectos privado e público da vida em sociedade
correspondem a dois conceitos que serviram de alicerce para a democracia, a saber,
os conceitos de liberdade e de igualdade.
Embora os conceitos de liberdade apareçam, freqüentemente, de forma
articulada, para sustentar teorias da justiça, eles diferem em sua essência. O
conceito de liberdade refere-se a direitos de cada um de executar diversas ações,
delimitando as fronteiras da esfera particular; a igualdade é um conceito relacional,
que como tal, adquire sentido ao relacionar diversos elementos. A própria linguagem
indica esta diferença entre os conceitos de liberdade. Podemos dizer, com sentido, a
frase, “Maria é livre”. É claro que o sentido de “livre” pode apresentar alguma
55
variação de sentido, de acordo com o contexto, mas, de um modo geral, podemos
compreender seu significado. Por outro lado, dizer “Maria é igual” não faz sentido
nenhum, pois este próprio conceito de igualdade pressupõe que o sujeito está sendo
comparado com outro, ou outros, sob algum determinado aspecto.
Liberdade pressupõe a possibilidade de o indivíduo desenvolver seus talentos
e, assim, perseguir seus objetivos. Em um sistema democrático, a liberdade (ou as
liberdades, pois se trata de um conjunto de liberdades para fazer algumas coisas)
deve ser limitada pelo valor da igualdade. A igualdade é o vínculo com o coletivo, é
um conceito relacional que estabelece como os componentes de uma sociedade
poderão se comportar. A igualdade pressupõe mais de um elemento se inter-
relacionando, então, é o conceito que leva em consideração o outro, a comparação
com o contexto em que se vive, que permite a comparação das situações.
O avanço da modernidade, expresso no ideal da Revolução Francesa
“Liberdade, Igualdade, Fraternidade”
8
mostra como os elementos devem estar
ligados para que cada indivíduo tenha seu espaço, e não apenas um tirano. Para
isso, cada um tem que ter liberdade. Mas o próprio fato de que existam outras
pessoas, impede que uma só possa ter tudo; é preciso fazer concessões. Por isso,
deve haver um limite para o florescimento das qualidades de cada um; numa
democracia, alguém, ou um pequeno grupo não pode querer tudo para si. Daí a
limitação imposta pela noção de igualdade.
8
De acordo com Taylor, um dos autores que fundamentam essa dissertação, a Fraternidade é um
terceiro elemento do qual não tratarei aqui, pois ele refere-se ao aspecto religioso, a valores
cristãos. Meu objetivo aqui é tratar da Cidadania na identidade moderna e para isso, estou
relacionando a critérios jurídicos de justiça, que dizem respeito à ética, moral, à igualdade e à
liberdade. Os critérios religiosos de Cidadania não serão desenvolvidos aqui.
56
Assim como, numa sociedade moderna e democrática, o conceito de
igualdade apresenta os limites da liberdade, o contrário também ocorre: o conceito
de liberdade limita o conceito de igualdade, pois ambos os conceitos têm o mesmo
estatuto, nenhum tem primazia sobre o outro. Eles compõem uma dupla
indissociável para uma democracia. O conceito de igualdade também não pode se
sobrepor ao de liberdade. Se todos os participantes da sociedade forem tratados de
maneira literalmente idêntica, como em um internato, a liberdade dessas pessoas
será afetada. As pessoas podem, dentro dos limites em que não prejudiquem as
demais, perseguir estilos de vida diferentes, permanecendo iguais às outras do
ponto de vista de seus direitos e deveres. Há casos em que o tratamento
diferenciado constrói uma maior igualdade, como por exemplo, no caso de uma
pessoa portadora de alguma doença séria receber algum auxílio do governo para
tratar essa doença. Portanto, tratar a todos como iguais, sem levar em conta
algumas diferenças, fere o princípio da liberdade, assim como uma liberdade
indiscriminada de uns pode atingir a liberdade de outros, ferindo o princípio da
igualdade entre os indivíduos.
Liberdade e igualdade devem se limitar, mutuamente, formando um princípio
de justiça, em que haja espaço para a Cidadania. Ou seja, a liberdade e a igualdade
devem ser princípios reguladores que assegurem a todos o direito de perseguir seus
objetivos, desenvolvendo suas aptidões, levando em conta a presença do outro e
dos benefícios, mas também os deveres que essa integração com os demais
componentes da sociedade implica.
4 PRINCÍPIOS NORTEADORES DA CIDADANIA
De acordo com John Rawls (2000), a Filosofia Política tem um objetivo
prático: desenvolver uma teoria da justiça que torne uma comunidade humana
viável. Este objetivo está claramente relacionado à Cidadania que, como foi dito
antes, estabelece o vínculo entre a moral individual e a ética que concerne à
coletividade. Para que esse vínculo ocorra de maneira harmoniosa, faz-se
necessária uma participação dos cidadãos, regulada por princípios que delimitem
direitos e deveres iguais para todos. Dentro dessa concepção de Rawls da busca de
uma comunidade humana viável, situamos a Cidadania como assunto primordial da
Filosofia Política.
Para que essa busca seja possível, é preciso, de acordo com Rawls, em Uma
Teoria da Justiça (2000, p.6), atingir três objetivos centrais da Filosofia Política, os
quais sempre pressupõem a noção de igualdade entre as pessoas, entre os
membros dessa comunidade viável. Os três objetivos da Filosofia Política são os
seguintes: (1) reduzir as diferenças morais e filosóficas; (2) compatibilizar os planos
de vida; e (3) estabilizar o esquema de cooperação.
58
4.1 REDUÇÃO DAS DIFERENÇAS MORAIS E FILOSÓFICAS
O primeiro objetivo da Filosofia Política é reduzir as diferenças morais e
filosóficas entre as pessoas, para que elas possam cooperar com base no respeito
mútuo, enquanto não se chega a uma solução melhor, ou seja, formular um
consenso, uma estabilidade de juízos ou concordância com o objetivo de evitar o
conflito político. Para isso, é preciso orientar as pessoas fornecendo critérios para
avaliar os fins de uma sociedade, de forma racional e coerente.
Ao procurar pontos de convergência entre as pessoas, esse princípio procura
aspectos em que as opiniões sejam iguais. Em pelo menos um aspecto, as opiniões
mostram-se iguais: todas as pessoas são seres morais, ou seja, têm uma concepção
do que é bom, e do que é ruim e, a partir dessa concepção, todas podem formular,
mais ou menos claramente, o que querem fazer de suas vidas e agir de forma a
buscar o que querem.
4.2 COMPATIBILIZAÇÃO DOS PLANOS DE VIDA
O segundo objetivo da Filosofia Política é tornar os planos de vida dos
indivíduos compatíveis entre si, evitando que as expectativas legítimas de cada um
sofram frustrações graves. Esse objetivo da Filosofia Política estabelece a igualdade
entre as pessoas sob o seguinte aspecto: todas as pessoas devem poder,
igualmente, perseguir seus planos de vida, por mais diferentes que sejam entre si.
Ou seja, todos devem poder estabelecer quais são seus objetivos e procurar atingi-
los.
59
Para que seja possível que cada membro da sociedade atinja seus objetivos,
é preciso que haja um esquema de cooperação entre as pessoas. A cooperação é
de interesse comum, pois, como diz Rawls (2000, p. 4), “a cooperação social
possibilita que todos tenham uma vida melhor da que teria qualquer um dos
membros, se cada um dependesse de seus próprios esforços”. É mais fácil para
uma pessoa, por exemplo, alimentar-se dentro de um esquema de cooperação do
que isolado da sociedade.
A cooperação não tem por finalidade apenas possibilitar a execução dos
planos de vida das pessoas: ela também deve limitá-la. Se alguém entende que é
bom agredir outra pessoa fisicamente, por exemplo, seus planos de vida certamente
serão incompatíveis com os da pessoa agredida. É preciso estabelecer um certo
limite na execução de possíveis planos de vida, para que o objetivo prático da
Filosofia Política, que é tornar uma comunidade humana viável, seja atingido. Uma
comunidade em que não há segurança quanto à integridade física, por exemplo, não
será viável.
Para tornar os planos de vida compatíveis entre si é preciso estabelecer não
apenas regras que permitam a execução desses planos, mas também critérios que
permitam decidir quais deles são legítimos e quais não são. Os planos que não são
legítimos deverão ter sua execução impedida de alguma forma.
4.3 ESTABILIZAÇÃO DO ESQUEMA DE COOPERAÇÃO
O terceiro objetivo da Filosofia Política é tornar o esquema de cooperação
estável. Para isso, deve haver forças estabilizadoras que impeçam violações e que
60
tendam a restaurar a organização social.
Este objetivo da Filosofia Política trata de um esquema que é regido por
normas a serem cumpridas e que não podem ser violadas. Nesse objetivo, está
incluída a noção de igualdade enquanto imparcialidade, ou seja, as regras que têm a
função de manter a organização social estável são aplicadas a todos os membros da
sociedade, independentemente de sua posição social ou de qualquer outra
característica. Isto significa que, do ponto de vista da lei, todos devem ser tratados
de forma igual; as regras devem ser aplicadas da mesma forma para todos,
imparcialmente.
Para que o esquema de cooperação seja estável, é preciso que se
estabeleçam regras sujeitas à revisão. Com o passar do tempo, uma determinada
regra pode deixar de fazer sentido devido a mudanças culturais. Um exemplo disso
são as antigas leis que se referiam aos direitos das mulheres, geralmente muito mais
limitados do que os dos homens. Essas regras tiveram que ser revisadas, pois, a
partir de um determinado momento, elas já não expressavam mais a opinião das
pessoas. As regras não são a expressão da opinião de uma população, mas elas
devem levar essa opinião em conta para que sejam compatíveis com a realidade
histórica a que elas se aplicam. Daí a importância da Cidadania. Assim, por
exemplo, as regras que regiam Atenas, na época de Aristóteles, certamente eram
bem diferentes das que regem Atenas atualmente.
Os três objetivos da Filosofia Política traduzem a preocupação de Rawls com
o estabelecimento da igualdade entre as pessoas enquanto seres morais. É claro
que as pessoas são diferentes quanto a vários aspectos, como as características
61
físicas, as habilidades e as posições que ocupam na sociedade. Como já se disse,
Rawls apontou a característica relevante que torna as pessoas iguais: a moralidade.
As pessoas são iguais enquanto seres que têm uma concepção do que é bom e do
que é ruim e, a partir disso, formulam, de maneira mais ou menos precisa, como
querem orientar suas vidas.
A igualdade aparece aqui como um meio para atingir um bem maior, que é o
de tornar uma comunidade humana viável. Ou seja, a igualdade não é desejável por
si só, mas como um meio de proporcionar uma vida desejável para todos, de acordo
com os planos de cada um.
Para que isso seja possível, é preciso estabelecer regras que indiquem quais
planos são legítimos e quais não o são. Em uma comunidade humana viável, deve
ser possível perseguir os planos legítimos, e impossível executar os que não o são.
Para isso deve haver forças estabilizadoras que impeçam violações e que tendam a
restaurar a organização social. Essas forças estabilizadoras traduzem uma
preocupação que ultrapassa as concepções individuais de bem e de mal (moral de
cada um), levando em conta a sociedade como um todo. Esta preocupação em
compatibilizar, em certa medida, as concepções individuais, estabelecendo objetivos
comuns expressa uma propriedade da Cidadania.
5 A CIDADANIA COMO INCLUSÃO: A ACEITAÇÃO DO OUTRO EM
RELATO DE UM CERTO ORIENTE
Os conceitos apresentados nesse capítulo (hibridismo, estranho) explicitam
relações de inclusão e exclusão e de assimilação entre diferentes pessoas e
diferentes culturas, retraçando as fronteiras e os limites das identidades.
Bhabha (1998) afirma que o outro é, freqüentemente, compreendido como o
“estranho”, que é uma condição colonial e pós-colonial paradigmática. Os imigrantes
buscam afirmar suas tradições culturais nativas e recuperar suas histórias de
origem, como Emilie ao narrar à sua família as histórias de sua avó libanesa Salma.
A atividade negadora é, de fato, a intervenção do “além” que
estabelece uma fronteira: uma ponte onde o “fazer-se presente”
começa porque capta algo do espírito de distanciamento que
acompanha a re-locação do lar e do mundo – o estranhamento
(unhomeliness) – que é a condição das iniciações extraterritoriais e
interculturais. Estar estranho ao lar (unhomed) não é estar sem casa
(homeless); de modo análogo, não se pode classificar o “estranho”
(unhomely) de forma simplista dentro da divisão familiar da vida
social em esferas privada e pública (BHABHA, 1998, p. 29-30).
Em Relato de um certo Oriente, a família de Emilie está desenvolvendo uma
atividade extraterritorial e intercultural em que o estranhamento é inerente. Um dos
63
exemplos é o deslocamento das fronteiras espaciais entre o público e o privado,
quando a família morava no mesmo local em que trabalhava (a loja Parisiense).
O espaço familiar e doméstico é também o lugar de afirmação das tradições culturais
de origem, em que as fronteiras entre a casa e o mundo se confundem. Nas
sociedades pós-coloniais, existe o estranho que se manifesta também na esfera
cultural:
A autoridade da cultura, na moderna episteme, requer, ao mesmo
tempo, imitação e identificação. A cultura é heimlich com suas
generalizações disciplinares, suas narrativas miméticas, seu tempo
homólogo vazio, sua serialidade, seu progresso, seus costumes e
coerência. Mas a autoridade cultural é também unheimlich, pois, para
ser distintiva, significatória, influente e identificável, ela tem de ser
traduzida, disseminada, diferenciada, interdisciplinar, intertextual,
internacional, inter-racial (BHABHA, 1998, p.195).
5.1 INTERAÇÃO E IDENTIDADE ENTRE ESTRANHO E FAMILIAR
O tema do estranho aborda a questão da delimitação entre o universo
familiar, ou o que corresponde à identidade pessoal e aquilo que está fora dela.
Freud, em O Estranho (1987), nos apresenta o estranho enquanto uma parte
da nossa própria identidade a ser desvendada pela psicanálise e que expressa uma
aparente contradição: o estranho é, na verdade, aquilo que há de mais íntimo, como
os conflitos relacionados à família nuclear.
Para Freud, o estranho e o familiar estão, ao contrário do que nos aparece,
em uma relação de identidade.
Em O Estranho (FREUD, 1987), este conceito é apresentado em uma vasta
gama de definições, mas a primeira e mais genérica relaciona-se à sensação de que
64
algo é assustador. O estranho é, freqüentemente, entendido como aquilo que é
excepcional e incomum, não familiar. Por caracterizar incomum, o vocábulo
“estranho” é também empregado com o sentido de inacessível, incompreensível, o
que o distingue do horror, que provoca um medo mais explícito: enquanto uma cena
de violência é apavorante, a sua vaga e misteriosa sugestão pode ser estranha. O
estranho provoca medo muito mais por representar o que é alheio, do outro, o que
nos aparece como desconhecido, do que por apresentar, de fato, algo assustador.
Freud explicita a aproximação e, em alguns casos, a identidade entre
“estranho” e “não estranho” ou “familiar”. Dentre as definições extraídas de um
conceituado dicionário, Freud apresenta exemplos, como no caso em que “uma
fonte enterrada ou um açude seco... Não se pode passar por ali sem ter sempre a
sensação de que a água vai brotar de novo” (FREUD, 1987, p. 241). Este exemplo
foi, ao mesmo tempo, caracterizado como estranho e não-estranho. Freud se utiliza
de um dicionário, porque sua autoridade reside em expor o uso comum da língua,
Dessa forma, um dicionário que aponta identidade entre “estranho” e seu
supostamente oposto “não estranho” está revelando um mecanismo comum do
pensamento. Com a autoridade do dicionário, Freud estabelece a identidade entre
estes conceitos aparentemente antagônicos. Esta identificação de identidade é o
primeiro passo para desvendar o significado deste conceito da estética e da
psicanálise. O segundo passo é mostrar, através de exemplo, como é possível essa
identidade.
Freud utiliza, como exemplo, o conto de Hoffman intitulado O Homem da
Areia. Freud nos mostra que tudo o que era apresentado neste conto como “não
familiar” pelo protagonista Natanael, na verdade, está relacionado ao “familiar”. Suas
65
angústias, ilustradas nas situações inexplicáveis, incompreensíveis e assustadoras
podiam ser interpretadas como referentes àquilo que há de mais íntimo e familiar
(portanto, “não estranho”), a saber, sua relação com seu pai. Essas angústias foram
disfarçadas em uma história que desloca todo o enforque de seus conflitos com o pai
(extremamente conhecido, familiar, não estranho), para pessoas ou seres
misteriosos que interferem, surpreendentemente, na vida pessoal ou da família,
como Olímpia que, na verdade, era um autômato, uma máquina criada por um
cientista (extremamente estranho, não familiar). Assim, Natanael pode atribuir seus
conflitos a elementos estranhos, porque não está envolvido com eles enquanto que
um conflito relacionado a alguém tão intimamente relacionado à sua identidade, seu
genitor, é como uma ameaça a si próprio. Reconhecer esses conflitos íntimos é um
“crime” inconfessável, mesmo se a confissão for para si próprio, aliás, principalmente
se for para si próprio. Esse exemplo ilustra um mecanismo de defesa da mente
humana, de ocultar ou “recalcar” fatos que podem ferir, justamente os fatos mais
íntimos e familiares, como se estes fossem não familiares, estranhos.
O que é mais estranho e assustador está no domínio mais íntimo de nossa
personalidade. Assim, há uma identidade entre os conceitos aparentemente
antagônicos de estranho e não estranho.
Daí a importância de tomarmos consciência dos conflitos que não ousamos
ou podemos confessar a nós mesmos, ou seja, a consciência do inconsciente. Esta
consciência permite a compreensão da identidade entre o estranho e o não
estranho. Ao perceber o conflito interno, percebemos que o externo não tem a
importância a ele atribuída.
66
A discriminação de estrangeiros seria, na verdade, um disfarce de um
estranhamento de algo que está em cada um. As discriminações que vivenciamos
no cotidiano, na verdade, seriam a expressão de conflitos pessoais, recalcados e
exteriorizados em manifestações agressivas redirecionadas a objetos ou pessoas,
grupos que possam ocupar o lugar do “estranho”. Ao contrário da aparência que a
experiência nos sugere, todos somos estranhos, estrangeiros a nós mesmos, muito
mais do que aos “outros”. Isso não implica a necessidade de uma fraternidade, mas
a ausência de um conflito entre as pessoas, uma vez que o maior conflito já reside
em cada um. Esse estranho que está em nós mesmos, é o conflito maior que
interfere na relação com os outros.
É, pois, nesses conflitos, que procuramos respostas para os nossos próprios
problemas, assim como Natanael interpretava angústias referentes à sua família,
através de pessoas “estranhas”.
Para compreendermos o ponto de vista de um indivíduo particular ou de uma
sociedade, ou da humanidade em geral, é preciso levar em conta a dimensão do
inconsciente da personalidade humana. A dificuldade reside no fato de ela estar
oculta. Ao examinarmos essa temática em profundidade, poderemos perceber
inversões como a referida acima, mais especificamente a idéia de que o que
normalmente se atribui ao Outro está no próprio Self.
Já estaria na hora de desmascarar as verdadeiras intenções por trás de
aparências que ocultariam o medo de revelar a própria condição humana ou, em
alguns casos, uma intenção de impor uma forma de vida como legítima, aniquilando
as demais. A conscientização das inversões demonstradas por Freud, entre o que é
67
estranho e o que não é, constituindo-se no primeiro passo para um pensamento em
que a discriminação entre as formas legítimas e ilegítimas de pensar e de agir
tornar-se-ão mais flexíveis e, por que não mais sinceras, em direção a uma maior
aceitação do outro que caracteriza a Cidadania. Tal consciência representa uma
justificativa para que sejam atribuídos direitos e deveres iguais às pessoas, princípio
inerente à Cidadania.
5.2 O ESTRANHO E O FAMILIAR EM RELATO DE UM CERTO ORIENTE
O romance Relato de um certo Oriente se passa no que Bhabha denomina
um entre-lugar (entre o estranho e o familiar), no qual atua o tempo do paradoxo
colonial, em que o duplo da cultura retorna de modo estranho. Segundo Bhabha,
Freud, em seu estudo sobre O Homem da Areia, de Hoffman, negligenciou esse
aspecto do estranho cultural, detendo-se, mais especificamente, na esfera do
indivíduo. Bhabha analisou a questão do estranho do ponto de vista de
coletividades que caracterizam grupos culturais.
Ambas as análises apontam para o perigo de se fixar em sua cultura de
origem, ou em seu ponto de vista e não perceber que o maior conflito poderia estar
em nós mesmos.
Bhabha afirma que Fanon, apesar de reconhecer a importância crucial para
os imigrantes em afirmar suas tradições culturais, está consciente dos “perigos da
fixidez e do fetichismo de identidades no interior da calcificação de culturas coloniais
[...]” (BHABHA, 1998, p. 29).
68
A personagem principal que conduz a trama narrativa de Relato de um certo
Oriente é a mulher que, através de diálogos epistolares com seu irmão, realiza uma
busca, na memória, para entender e encontrar explicações para a sua vida. Essa
busca é complementada e reforçada por uma viagem a Manaus, uma volta ao lugar
em que tudo ocorreu, relembrando, sensorialmente, o passado, por meio de cheiros,
cores, texturas, sons que evocam o passado e dando voz a outros personagens que
viveram naquele período da infância da personagem e que podem elucidar muitos
fatos que ficaram obscuros para ela até o presente.
Antes de sair para encontrar Emilie, imaginei como estarias em
Barcelona, entre a Sagrada Família e o Mediterrâneo, talvez sentado
em algum banco da praça do Diamante, quem sabe se também
pensando em mim, na minha passagem pelo espaço da nossa
infância: cidade imaginária, fundada numa manhã de 1954...
(HATOUM, 2003, p.12).
Por se tratar de uma família de migrantes, Relato de um certo Oriente é um
romance em que a questão do outro e do estranho sempre está presente. A família
era composta por Emilie e seu marido, pelos dois filhos adotados, a narradora e seu
irmão, e pelos quatro filhos de Emilie: Hakim, Samara Délia com sua filha Soraya
Ângela, os outros dois filhos homens, os irmãos de Emilie, tio Emílio e tio Emir. A
narrativa gira em torno de Emilie, a matriarca de uma família de migrantes libaneses
estabelecidos em Manaus, na década de 1950. Esta sempre manteve a
preocupação em conservar a memória da família, preservando sua identidade
original. De acordo com as palavras de Arrigucci ao comentar as características de
Emilie:
[...] a extraordinária Emilie, matriarca e matriz de toda a vida da casa,
que traz aninhado no colo o novelo de história da família, origem e
fim do enredo do romance (HATOUM, 2003).
69
E, na própria narrativa do romance, transparecem as opiniões dos personagens sobre
Emilie:
Ninguém podia viver longe de Emilie, nem refutar suas manias
(HATOUM, 2003, p. 21).
Emilie se regozijava durante essa sessão de idolatria, fazia gosto
observar sua postura de mãe-do-mundo, estendida sobre ti tal uma
redoma radiante a inflar perpetuamente [...] (HATOUM, 2003, p. 23).
A partir da representação de mundo aristotélica, como experiência única de
um sujeito diante da realidade, pode-se ver uma imagem especular, embora
invertida, que é a polaridade surgida a partir do século XVIII a qual dá voz a
diferentes pontos de vista do sujeito. No romance de Hatoum, o hibridismo cultural e
histórico do mundo pós-colonial brasileiro é tomado como lugar paradigmático de
partida, através das “fronteiras culturalmente contingentes da nacionalidade
[nationhood] moderna” (BHABHA, 1998, p. 24) da década de 1950, no Brasil.
A cultura se torna uma prática desconfortável, perturbadora, de
sobrevivência e suplementaridade – entre a arte e a política, o
passado e o presente, o público e o privado – na mesma medida em
que seu ser resplandecente é um momento de prazer,
esclarecimento ou libertação. É dessas posições narrativas que a
prerrogativa pós-colonial procura afirmar e ampliar uma nova
dimensão de colaboração, tanto no interior das margens do espaço-
nação como através das fronteiras entre nações e povos. Minha
utilização da teoria pós-estruturalista emerge dessa contra-
modernidade pós-colonial. Tento representar uma certa derrota, ou
mesmo uma impossibilidade, do “Ocidente” e sua legitimação da
“idéia” de colonização. Movido pela história subalterna das margens
da modernidade – mais do que pelos fracassos do logocentrismo –
tentei, em pequena escala, revisar o conhecido, renomear o pós-
moderno a partir da posição do pós-colonial (BHABHA, 1998, p. 245).
O hibridismo existe na relação entre a cultura familiar e a cultura estranha.
Esta divisão não resolve a tensão entre as duas culturas em questão, mas acentua a
ambivalência de um sujeito híbrido pela duplicação de dois saberes contraditórios:
O hibridismo é uma problemática de representação e de individuação
colonial que reverte os efeitos da recusa colonialista, de modo que
outros saberes “negados” se infiltrem no discurso dominante e
70
tornem estranha a base de sua autoridade – suas regras de
reconhecimento (BHABHA, 1998, p. 165).
6 CONDUTA DOS PERSONAGENS: A MORAL DE CADA UM E A
AVALIAÇÃO ÉTICA DA INTERAÇÃO DE TODOS
Em Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, constatamos uma
orientação da narrativa rumo à busca dos referidos objetivos da Filosofia Política que
norteiam a construção da Cidadania.
Para analisar essa orientação, valemo-nos da segmentação em espaços e
eventos para poder cercar a moral de cada um dos personagens. A relação que
temos com o espaço real ou fictício está diretamente vinculada com a relação que
temos conosco. O espaço delimita-se, assim, pela expressão dos nossos sentidos.
O espaço literário ganha todas as propriedades sensoriais do espaço real,
obedecendo a leis próprias, como a do fechamento e a da extensão. Considerando a
originalidade do romance de Hatoum, sabemos que os códigos internos do sistema
espacial são tributários dos sistemas axiológico e ideológico da sociedade na qual o
texto foi elaborado e nos quais a noção de Cidadania está inserida. Os episódios
são a descrição do “eu no espaço moral”, no sentido do comentário do crítico
Bhabha ao livro de Charles Taylor, já citado anteriormente:
72
Escrevendo sobre a noção do “eu no espaço moral, em seu recente
livro Sources of the Self [Fontes do Eu], Charles Taylor impõe limites
temporais no problema da pessoalidade [personhood]: “a suposição
de que eu poderia ser dois eus em sucessão temporal é uma
imagem superdramatizada ou então um tanto falsa. Vai contra os
atributos estruturais de um eu como um ser que existe em um
espaço de interesses” (TAYLOR, 1989, p. 51). Essas imagens
“superdramatizadas” são precisamente o que me interessa quando
tento negociar narrativas em que se vivem vidas duplas no mundo
pós-colonial, com suas jornadas de migração e seus viveres
diaspóricos. Esses objetos de estudo exigem a experiência da
ansiedade para se incorporarem na construção analítica do objeto da
atenção crítica: narrativas das condições fronteiriças de culturas e
disciplinas (BHABHA, 1998, p.294).
O romance desenvolve-se a partir das memórias da personagem principal que
escreve cartas a seu irmão, na Espanha, e, através desse diálogo, reconstrói a
memória do passado vivido junto à sua família, em Manaus, por meio de espaços,
eventos e relatos de testemunhas da sua infância. Essa peregrinação focaliza
diferentes espaços que trazem à tona fragmentos dessa memória que ela quer
recuperar. Selecionamos os espaços que julgamos mais significativos e, ao mesmo
tempo, em cada espaço, também os eventos mais importantes relacionados a ele.
A conduta dos personagens de Relato de um certo Oriente revela aspectos
importantes das concepções morais destes que podem ser avaliados de acordo com
os três princípios da Filosofia Política de Rawls, cujo objetivo é permitir que os
valores da Cidadania sejam respeitados. Além da conduta dos personagens, os
eventos relatados no romance também revelam aspectos importantes das
concepções morais, porém em uma esfera mais ampla que contém a coletividade, a
saber, a esfera ética. Esses eventos estão relacionados a um determinado espaço o
qual exerce um papel importante no cotidiano ou em um momento específico da
trajetória dos personagens. Assim, os itens desse capítulo são compostos por
espaços e eventos relevantes para a caracterização de aspectos morais e éticos
fundamentais para a compreensão da Cidadania, além de serem considerados por
73
nós, como os mais importantes na trajetória de reconstrução do passado da
personagem narradora.
A especificidade do texto analisado nos conduziu a propor os seguintes
espaços que, em breve apresentaremos, levando em consideração a transformação
operada em cada caso preciso desse lugar pós-colonial em que novas identidades
híbridas estão emergindo.
6.1 A CASA / A LOJA PARISIENSE
A casa se desdobra, inicialmente, na Loja Parisiense, sendo, mais tarde,
separada da casa com a mudança da família para o sobrado. Podemos dizer que
essa casa, que era também o espaço da loja, compreende o espaço público e o
espaço privado (a casa onde habitava a família).
O crítico Arrigucci sublinha a importância da casa como lugar de lembranças:
O romance é aqui uma arquitetura imaginária: a arte de reconstruir,
no lugar das lembranças e vãos do esquecimento, a casa que se foi.
Uma casa, um mundo. Um mundo até certo ponto único, exótico e
enigmático em sua estranha poesia, mas capaz de se impor ao leitor
com alto poder de convicção (HATOUM, 2003).
A Loja Parisiense, comprada de um marselhês nos anos 1930, servia,
portanto, também, de residência para a família.
74
6.2 EVENTO DO NATAL DE 1954
O evento do Natal de 1954 é caracterizado por uma intensa integração da
comunidade, habitualmente bastante segmentada devido às diversas etnias das
quais seus componentes são originários. Nessa festa, excepcionalmente, as
diferenças morais e filosóficas dos integrantes da comunidade são reduzidas em
torno da celebração, e os planos de vida das pessoas passam a convergir,
provisoriamente, ao redor de um esquema de cooperação montado para o preparo
deste evento. Por ser o momento de maior integração em Relato de um certo
Oriente, em que diferentes pontos de vista se compatibilizam harmoniosamente, é
considerado um acontecimento norteado por características também presentes no
conceito de Cidadania.
O episódio ocorrido no Natal de 1954, quando a família habitava a loja
Parisiense, foi muito marcante e teve sua origem nas diferenças culturais da prática
de matar os animais.
Havia uma grande adaptação dos costumes do Líbano ao Brasil; até o
pinheiro de Natal era uma imitação do cedro, árvore símbolo do Líbano. As iguarias
na mesa e as músicas também se misturavam em uma riqueza de sons e paladares:
Num dos cantos da sala o pinheiro que imitava o cedro estava
repleto de penduricalhos e caixas transparentes com presentes
embrulhados em papel de seda; nas prateleiras das vitrinas e
cristaleiras havia bandejas de doces, bombons, frutas secas e vários
tipos de tortas de frutas da região. O teto da sala estava coberto de
balões furta-cores, e por toda a casa se espalhavam bolas de
sumaúma enroladas em papel crepom, que encerravam caixinhas
com caramelos e chocolates recheados de castanha. Eram tantos
objetos coloridos que reluziam dentro e fora das vitrinas que a festa
de natal lembrava os preparativos carnavalescos; só faltavam as
75
máscaras e fantasias para a ceia religiosa tornar-se uma festa pagã
(HATOUM, 2003, p. 38).
A família de libaneses estava integrada à comunidade local, vizinhos e
amigos da região:
Todos se reuniam na copa do casarão rosado, com a exceção de
meu pai, que se ilhava no quarto ou ia passear na Cidade Flutuante,
onde ele entrava nas palafitas para conversar com os compadres
conhecidos, com os caboclos recém-chegados do interior, e depois
caminhava até o porto para visitar armazéns e navios (HATOUM,
2003, p. 35).
As mulheres da vizinhança ajudavam na cozinha, preparando e
esticando a massa dos pastéis e folheados (HATOUM, 2003, p. 36).
Antes de meia-noite, a vitrola tocava canções portuguesas e orientais
ritmadas com palmas, e os vizinhos estrangeiros, vestidos a caráter,
vinham cumprimentar Emilie e assistir às filhas de Mentaha
dançarem após a ceia (HATOUM, 2003, p. 38).
Até então, a religião não causara graves desavenças entre meus
pais. Ele encarava com naturalidade e compreensão o fervor
religioso de Emilie. Tolerava as festas cristãs, mas se alheava com
um desdém perfeito das preces elaboradas por Emilie, fazia vista
grossa às imagens e estátuas de santos, e afastava-se do quartinho
de costura onde as duas mulheres cortavam e picotavam retângulos
de papel vegetal para confeccionar santinhos coloridos que seriam
doados às órfãs internas do colégio Nossa Senhora Auxiliadora
durante a primeira comunhão (HATOUM, 2003, p. 45).
Apesar de todos esses elementos visíveis na direção da integração e da
construção de objetivos comuns, havia práticas árabes que levavam à divisão e não
se deixavam assimilar pelos costumes locais. Entre elas, está a prática de matar os
animais para servi-los, depois, nas refeições, tendo sido fruto de uma grave
desavença entre o casal:
Tio Emílio fazia as compras, matava e destrinchava os carneiros,
torcia o pescoço das aves e passava-lhes a lâmina no gogó para que
o sangue esguichasse com abundância, como exigia meu pai. Só
uma vez é que utilizaram outra prática para matar os animais.
Consistia em embriagar as aves e torcer-lhes o pescoço para que
vissem o mundo já embaçado girar como um pião. As aves morriam
lentamente, ébrias, os olhos dois pontos de brasa e o pescoço
76
mulambento como um barbante. “Esse martírio só pode ser obra de
cristão”, proferia meu pai, sabendo que Hindié já fizera isso em
outras casas e que era uma prática bastante difundida na cidade
(HATOUM, 2003, p. 36).
O fato é que desde aquele natal meu pai e Hindié se estranharam.
Até hoje não sei como ele descobriu que as galinhas e os perus
tinham ingerido cachaça antes de serem estrangulados (HATOUM,
2003, p.37).
O pai brigou com Emilie e foi para a Cidade Flutuante reunir-se com amigos,
habitantes locais, mostrando a integração existente entre estrangeiros e habitantes
da região.
Soube depois que Anastácia passara o dia em busca do meu pai, até
encontrá-lo na Cidade Flutuante, conversando com amigos do
interior. Dormira na casa de um compadre que conheceu no rio
Purus: uma palafita pintada de rosa e verde, cercada por latas de
querosene entulhadas de tajás, açucenas e flores do mato. Estava
sentado no meio de uma roda de homens curiosos para ouvir no
rádio a voz estranha de uma canção que causava estardalhaço de
risos (HATOUM, 2003, p.46).
6.3 A CASA / O SOBRADO
Com a mudança da família para o sobrado, o espaço público (loja) e privado
(casa) ficaram independentes. O sobrado era o espaço privado da família.
Só quando mudamos para a casa nova (o sobrado), o santuário de
segredos desmoronou (HATOUM, 2003, p. 52).
A atmosfera da casa estava impregnada de um aroma forte que logo
me fez reconhecer a cor, a consistência, a forma e o sabor das frutas
que arrancávamos das árvores que circundavam o pátio da outra
casa. Antes de entrar na copa, decidi dar uma olhada nos aposentos
do andar térreo. Duas salas contíguas se isolavam do resto da casa.
Além de sombrias, estavam entulhadas de móveis e poltronas,
decoradas com tapetes de Kasher e de Isfahan, elefantes indianos
que emitiam brilho da porcelana polida, e baús orientais com relevos
de dragão nas cinco faces. A única parede onde não havia
reproduções de ideogramas chineses e pagodes aquarelados estava
77
coberta por um espelho que reproduzia todos os objetos, criando
uma perspectiva caótica de volumes espanados e lustrados todos os
dias, como se aquele ambiente desconhecesse a permanência ou
até mesmo a passagem de alguém. A fachada de janelões de vidro
estava velada por cortinas de veludo vermelho; apenas um feixe de
luz brotava de um pequeno retângulo de vidro mal vedado, que
permitia a incidência da claridade (HATOUM, 2003, p.10).
Lembro que adormecera observando o perfil da casa fechada e
quase deserta, tentando visualizar os dois leões de pedra entre as
mangueiras perfiladas no outro lado da rua. (HATOUM, 2003, p. 9).
6.4 EVENTO DA GRAVIDEZ DE SAMARA DÉLIA
A gravidez de Samara Délia foi, em oposição ao episódio do Natal, o evento
em que houve a menor integração entre os personagens. Este evento, como será
explicado a seguir, foi marcado pelo preconceito dos membros da família devido a
um pensamento patriarcal que prejudicou, enormemente, o esquema de
cooperação, a redução das diferenças morais e filosóficas e a compatibilização dos
planos de vida. Apesar de todas as dificuldades, uma evolução significativa ocorreu
na aceitação de Samara Délia, mesmo que, em grande parte, somente depois da
morte de sua filha.
A gravidez fora do casamento de Samara Délia foi condenada pela família. No
entanto, cada um julgava, a seu modo, o ato da filha. Emilie prestava auxílio
material, não deixando nada faltar e, em seguida, já estava bem com a filha. Os dois
irmãos de Samara dedicaram-lhe ódio por toda a vida, desprezando-a, hostilizando-
a, não reconhecendo nela uma pessoa com direito a tratamento respeitoso e digno.
O pai ficou constrangido, mas, aos poucos, reconheceu o valor da filha, protegendo-
a dos seus irmãos, sem, no entanto, dirigir-lhe a palavra durante toda a sua vida.
78
Com a idade avançada de um patriarca cansado da vida, passava
horas jogando gamão e contando histórias para ti, e agiu com
sinceridade espantosa ao enaltecer a filha que tinha, a ponto de
confundir as opiniões de Emilie quanto ao estado mental do marido:
Não entendo mais nada balbuciava. Não sei onde começa a
lucidez e onde termina o devaneio de meu marido.
Na verdade, ao elogiar a filha, ele se mostrava mais lúcido que
nunca. A sua fama de homem sisudo, austero e maníaco se diluiu
com o tempo, e dos comentários apressados sobre a sua
personalidade, restou a verdade unânime de que ele era, antes de
mais nada, uma pessoa generosa que cultuava a solidão. Foi ele
mesmo que me ajudou a sair da cidade para ir estudar fora e, além
disso, nunca se contrariou com a nossa presença na casa, desde o
dia em que Emilie nos aconchegou ao colo, até o momento da
separação. Desfrutamos os mesmos prazeres e as mesmas regalias
dos filhos, e com eles padecemos as tempestades de cólera e mau
humor de um pai desesperado e de uma mãe aflita. Nada e ninguém
nos excluía da família, mas no momento conveniente ele fez questão
de esclarecer quem éramos e de onde vínhamos, contando tudo com
poucas palavras que nada tinham de comiseração e de drama
(HATOUM, 2003, p. 19-20).
Este evento ilustra o movimento da narrativa rumo aos valores da Cidadania.
Os três objetivos da Filosofia Política são contemplados: as diferenças morais e
filosóficas são reduzidas, pois as concepções morais manifestas no início
(condenação da gravidez) evoluíram rumo a uma maior compreensão e aceitação
entre os membros da família que, assim, reduziram suas diferenças morais e
filosóficas, compatibilizando seus planos de vida em torno da criação de Soraya
Ângela, estabelecendo, dessa forma, um esquema de cooperação.
6.5 EVENTO DA PRÁTICA COTIDIANA DO RELATO DE CADA PERSONAGEM
A escrita dentro da escrita apresenta um processo dinâmico do diálogo entre
as culturas. Por isso, a cultura dominante não pode manter-se sem a contribuição
dos elementos da cultura em que ela se encontra. É um processo de apropriação de
79
traços culturais próprios do outro. Além do confronto entre a cultura libanesa e a
cultura local, há a diversidade da realidade da mestiçagem, da mistura entre as
culturas. Nessa assimilação de costumes, o relato tem um papel muito importante. É
o relato das reações, às vezes amigáveis, íntimas ou conflituosas, estranhas ou
escandalosas, que forma aquilo que Fredric Jameson comentou, em sua obra
intitulada Pós-Modernismo – A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio (JAMESON,
2004, p.171), no capítulo em que aludia ao conceito de espaço.
Esses atritos culturais metamorfoseados em “relatos”, salientando as
diferenças existentes, poderia situar-se naquele espaço descrito por Jameson em
que o sujeito descentrado, fragmentado, introduz uma estrutura de ambivalência na
qual a temporalidade não-sincrônica da cultura de origem (árabe) e da cultura local
(brasileira) abrem um terceiro espaço de negociação das diferenças
incomensuráveis, gerando tensão entre as existências fronteiriças.
Evidencia-se, em todo o texto do romance, um movimento integrador através
da palavra, oral e escrita, na língua materna - o árabe, ou na língua do país que os
acolheu. Inclusive, a salvação da narradora será pela palavra dos outros e dela
própria, como no encontro com o tio Hakim, por exemplo, que dará seu testemunho
sobre o período da infância da narradora, iluminando-o um pouco mais para ela:
O encontro aconteceu na noite do domingo, sob a parreira do pátio
pequeno, bem debaixo das janelas dos quartos onde havíamos
morado. Na manhã de segunda-feira tio Hakim continuava falando, e
só interrompia a fala para rever os animais e dar uma volta no pátio
da fonte, onde molhava o rosto e os cabelos; depois retornava com
mais vigor, com a cabeça formigando de cenas e diálogos, como
alguém que acaba de encontrar a chave da memória
(HATOUM, 2003,
p.32).
Às vezes, o “espaço de dentro” invadia o “espaço de fora”, em uma espécie
80
de contaminação como, por exemplo, durante as preces do Ramada, quando a voz
do pai, o patriarca da família, ecoava na calçada:
[...] Vinha do quarto aberto, onde um corpo febril há dias em jejum
vociferava as preces do último dia. [...] (HATOUM, 2003, p. 49).
As raízes são preservadas através do uso da língua materna nos relatos
contados da história da bisavó Salma, na aprendizagem por Hakim da língua árabe:
Sentada na cama, me confidenciou que sua avó lhe ensinara a ler e
escrever, antes mesmo de freqüentar a escola. Para começar a
aprendizagem da língua-mãe, me contou sucintamente como
falecera Salma, minha bisavó, aos 105 anos de idade (HATOUM,
2003, p.50).
Já estava me habituando àquela fala estranha, mas por algum tempo
pensei tratar-se de uma linguagem só falada pelos mais idosos; ou
seja, pensava que os adultos não falavam como as crianças. Aos
poucos me dei conta de que eles gesticulavam mais ao falar naquele
idioma, e houve casos em que intuí idéias através dos gestos
(HATOUM, 2003, p. 49).
6.6 QUARTO SECRETO
Havia, também, na casa da família, na época em que o espaço era dividido
com a loja, “espaços proibidos”, secretos, como o quarto em que só Emilie entrava e
guardava suas relíquias e lembranças, muitas delas escritas:
Eu copiava tudo, esforçando-me para escrever da direita para a
esquerda, desenhando inúmeras vezes cada letra, preenchendo
folhas e folhas de papel almaço pautado. No fim da tarde, corria para
mostrar ao meu pai as anotações, que ele corrigia, enquanto Emilie
desaparecia no quarto contíguo ao seu, onde só ela entrava
(HATOUM, 2003, p. 51).
81
O quarto secreto era o local em que Emilie guardava as relíquias, lembranças
de sua vida no Líbano. Ela preservava esses objetos dos olhares dos outros e
gostava de observá-los em momentos de intimidade e a sós. Esse lugar, justamente
por ser secreto, despertou a curiosidade de seu filho Hakim que violou este lugar e
ficou fascinado com o que lá encontrou. Mesmo sabendo que não tinha o direito de
invadir a privacidade de sua mãe e desvendar seus segredos, ele penetrou várias
vezes no quarto e entristeceu-se quando a família mudou de casa e Emilie desfez-se
de vários objetos, enquanto outros foram guardados em um baú do qual ele não
tinha a chave.
Ao entrar em contato com esses objetos da cultura oriental, Hakim passou a
interessar-se pelo estudo da sua cultura de origem:
Nessa noite, ao me acompanhar até o quarto, minha mãe sussurrou
que no próximo Sábado começaríamos a estudar juntos o "alifebata"
(HATOUM, 2003, p.50).
A palavra desempenha um papel fundamental no romance, desde seu título.
É através do relato coordenado pela narradora e diferentes pontos de vista dos
personagens que a narrativa do romance é tecida. Tudo passa pela palavra: os
diálogos epistolares da narradora com seu irmão, o relato dos personagens mais
importantes, o poder do curandeiro Liberato que também tem sua origem na palavra,
as anotações de Dorner; a aprendizagem do árabe que representa a manutenção da
identidade nas origens da família; os diálogos de Emilie com Anastácia Socorro em
que cada uma descreve as frutas e costumes de sua cultura; o culto ao Alcorão, que
norteava a vida do pai e as Mil e Uma Noites que o faziam sonhar. Eis alguns dos
fatos que ilustram a diversidade e a importância da palavra neste romance.
82
O convívio com teu pai me instigou a ler As mil e uma noites, na
tradução de Henning. A leitura cuidadosa e morosa desse livro
tornou nossa amizade mais íntima; por muito tempo acreditei no que
ele me contava, mas aos poucos constatei que havia uma certa
alusão àquele livro, e que os episódios de sua vida eram transcrições
adulteradas de algumas noites, como se a voz da narradora ecoasse
na fala do meu amigo (HATOUM, 2003, p.79).
Hoje, ao pensar naquele turbilhão de palavras que povoavam tardes
inteiras, constato que Anastácia, através da voz que evocava
vivência e imaginação, procurava um repouso, uma trégua ao árduo
trabalho a que se dedicava. Ao contar histórias, sua vida parava para
respirar; e aquela voz trazia para dentro do sobrado, para dentro de
mim e de Emilie, visões de um mundo misterioso: não exatamente o
da floresta, mas o do imaginário de uma mulher que falava para se
poupar, que inventava para tentar escapar ao esforço físico, como se
fala permitisse a suspensão momentânea do martírio (HATOUM,
2003, p. 92).
A mania que cultivei aqui, de anotar o que ouvia, me permitiu encher
alguns cadernos com transcrições da fala dos outros. Um desses
cadernos encerra, com poucas distorções, o que foi dito por teu pai
no entardecer de um dia de 1929 (HATOUM, 2003, p.70).
6.7 O ESPAÇO DE MANAUS
O espaço urbano de Manaus em que transcorre a narrativa havia sido
projetado na belle époque. Foi transformado durante a administração do engenheiro
militar maranhense Eduardo Ribeiro, entre 1892 e 1896; sendo baseado na forma de
um tabuleiro de xadrez com dois patamares, um voltado para o rio e o outro se
distanciando do rio. Mantinha vários serviços urbanos que permitiam que a
negociação da borracha fosse realizada com diversos centros do mundo.
Os seguintes trechos apresentam alguns aspectos do espaço de Manaus que
são descritos em Relato de um certo Oriente:
83
[...] os levantinos da cidade eram numerosos e quase todos
habitavam no mesmo bairro, próximo ao porto. A beira de um rio ou
a orla marítima os aproximam, e em qualquer lugar do mundo as
águas que eles vêem ou pisam são também as águas do
Mediterrâneo (HATOUM, 2003, p. 76).
Nesta passagem, Manaus se apresenta em uma multiplicidade de etnias cuja
interação compõe sua identidade:
No estilo das casas e na disposição dos jardins e pomares,
expressava-se a diversidade das origens dos que ali passaram a
viver: ingleses, americanos, libaneses e, também, exportadores de
borracha, médicos brasileiros. A regularidade ou o ponto em comum
entre todos esses recém-chegados advinha tanto de sua posição de
estrangeiros quanto de seu comportamento mais marcadamente
individualista, o que se expressava nos modelos familiares e nas
trajetórias dos filhos, comparativamente ao que predominava entre
as famílias já estabelecidas. Formava-se um conjunto ruidoso e
cosmopolita (DAOU, 2000, p.37-38).
A comparação estabelecida entre Manaus e Trípoli é feita a partir da
dualidade silêncio-ruído que pontua o dia e a noite das ruas das duas cidades
portuárias e das personagens do romance, especialmente a vida de Emilie que
“acompanhava o percurso solar, indiferente às horas do relógio, às badaladas dos
sinos da Nossa Senhora dos Remédios e ao toque de clarim que lhe chegava aos
ouvidos três vezes ao dia” (HATOUM, 2003, p.28).
Se havia algo de análogo entre Manaus e Trípoli, não era
exatamente a vida portuária, a profusão de feiras e mercados, o grito
dos mascates e peixeiros, ou a tez morena das pessoas; na verdade,
as diferenças, mais que as semelhanças, saltavam aos olhos dos
que aqui desembarcavam, mesmo porque mudar de porto quase
sempre pressupõe uma mudança na vida: a paisagem oceânica, as
montanhas cobertas de neve, o sal marítimo, outros templos, e
sobretudo o nome de Deus evocado em outro idioma. Mas uma
analogia reinava sobre todas as diferenças: em Manaus como em
Trípoli não era o relógio que impulsionava os primeiros movimentos
do dia nem determinava o seu fim: a claridade solar, o canto dos
pássaros, o vozerio das pessoas que penetrava no recinto mais
afastado da rua, tudo isso inaugurava o dia; o silêncio anunciava a
noite (HATOUM, 2003, p.28).
84
O pai explicou o motivo de ter escolhido a cidade de Manaus para fixar-se,
constituir família e viver sua vida. Era a semelhança com as imagens vistas através
dos livros infantis, na infância e na terra natal.
Ter vindo a Manaus foi meu último impulso aventureiro; decidi fixar-
me nessa cidade porque, ao ver de longe a cúpula do teatro,
recordei-me de uma mesquita que jamais tinha visto, mas que
constava nas histórias dos livros da infância e na descrição de um
hadji da minha terra (HATOUM, 2003, p.75-76).
6.8 EVENTO DO “ACIDENTE DE SORAYA ÂNGELA”
O evento do acidente de Soraya Ângela ilustra uma grande dificuldade em
atingir os objetivos da Filosofia Política que tornam possível o desenvolvimento da
Cidadania. O primeiro objetivo, o de reduzir as diferenças morais e filosóficas, foi
alcançado, já que, com a morte de Soraya Ângela, as agressões à Samara Délia e a
indiferença para com a criança da parte dos dois tios foi, provisoriamente, suspensa
num momento de solidariedade.
O segundo objetivo (compatibilização dos planos de vida) também foi
atingido, em certo sentido, já que, a partir do acidente da filha, Samara teve maior
oportunidade de perseguir seus planos de trabalho na loja Parisiense já que seu pai
passou a dar mais crédito a ela e a valorizar sua competência.
O terceiro objetivo (estabilizar o esquema de cooperação) foi sensivelmente
alcançado, pois toda a família – exceto os dois irmãos – se uniu para suprir a falta da
criança.
85
Estes trechos apresentam alguns momentos em que estes objetivos estão
explicitados:
Da rua, do portão do Quartel, da praça, das casas vizinhas, vi muitas
pessoas correndo na direção do impacto [...] (HATOUM, 2003, p.17)
[...] mas só havia enxergado Emilie debruçada sobre um volume
coberto por um lençol manchado de vermelho. Havia também peixes
e legumes e frutas espalhadas sobre as pedras cinzentas, e os
soldados ameaçavam com cassetetes a meninada que tentava fisgar
as compras da cesta de Emilie, espalhadas no chão, bem junto ao
corpo da prima; alguns curumins saltavam por cima da mancha de
sangue querendo chamar a atenção dos homens armados, vestidos
de brim ou cáqui, uma tonalidade da cor da pele das crianças
(HATOUM, 2003, p.21)
Sim, eram adolescentes e cínicos – continuou Samara. – No dia em
que minha filha faleceu, tiveram a audácia de encomendar flores de
organdi suíço à Madame Verdade. Acho que pressentiram a morte
de Sorainha porque, logo depois do acidente, a cabecinha
esfacelada estava coberta de flores de tecido. Nunca me senti tão
humilhada. Passaram seis anos sem falar comigo, sem fazer um
mimo na menina, e de repente enfeitaram sua cabeça sem vida com
flores que valem uma fortuna! (HATOUM, 2003, p.14).
6.9 EVENTO DO “SUICÍDIO DE EMIR”
Emir, irmão de Emilie, suicidou-se por infelicidade. Foi obrigado por Emilie a
abandonar seu amor, encontrado em um porto da França, antes de vir para o Brasil.
Depois disso, sua vida parecia não ter sentido e sua ocupação era errar pelas ruas
de Manaus.
Não, Emir não era como os outros imigrantes, não se embrenhava no
interior, enfrentando as feras e padecendo as febres, não se
entregava ao vaivém incessante entre Manaus e a teia de rios, não
havia nele a sanha e a determinação dos que desembarcam jovens e
pobres para no fim de uma vida atormentada ostentarem um império.
Emir se esquivava de tudo, ele tinha um olhar meio perdido, de
alguém que conversa contigo, te olha no rosto, mas é o olhar de uma
pessoa ausente. Além disso, aqueles passeios me intrigavam,
caminhar pelas ruas das pensões baratas, do hotel dos Viajantes,
86
caminhar sem parar, sem ver ninguém, apenas desafiar o silêncio do
fim da madrugada ou se assustar com um grito, uma gargalhada ou
de repente um facho de luz que de repente explode na janela de um
quarto. A vida de Emir parecia se reduzir a esses passeios matinais:
depois da travessia do igarapé, a caminhada até a praça Dom Pedro
II, a rua dos grandes armazéns, a visão dos mastros, das quilhas e
das altas chaminés, o apito grave do Hildebrand, que trazia
passageiros de Liverpool, Leixões e das ilhas da Madeira, talvez
Emir soubesse o destino do navio: Nova York, Los Angeles, alguma
cidade portuária do outro hemisfério, nostalgia do além-mar
(HATOUM, 2003, p. 62-63).
Dorner, fotógrafo que também documentava tudo por escrito, era amigo de
Emir e percebeu o desespero no rosto do amigo, na última foto que tirou dele, pouco
antes de ele cometer o suicídio jogando-se no rio. Dorner guardou um profundo
sentimento de culpa por não ter feito nada para evitar o triste fim do amigo.
Dorner fotografou Emir no centro do coreto da praça da Polícia. Foi a
última foto de Emir, um pouco antes da caminhada solitária que
terminaria no cais do porto e no fundo do rio (HATOUM, 2003, p. 60).
Não sem um certo arrependimento, eu pensava: por que não levara
Emir para a casa dos Ahler? por que fotografá-lo com a orquídea na
mão e deixá-lo vagar, atordoado, a um passo do desastre? aquelas
imagens de Emir ainda vivas na minha memória, estavam registradas
no filme da câmera que eu esquecera no La Ville de Paris (HATOUM,
2003, p.66).
O sentimento de culpa e o remorso corroeram a existência de Dorner e de
Emilie. Embora por razões diferentes, ambos tinha o forte sentido moral de analisar
os seus atos e de julgá-los inadequados com a moral em que cada um deles
acreditava. Posteriormente, consideraram que agiram incorretamente com relação a
Emir, pois Emilie tolheu a liberdade do irmão, privando-o do seu amor, e Dorner não
teve o gesto solidário que impediria o amigo de se suicidar.
Observamos a expressão da moral de cada personagem, neste episódio,
através do sentimento de culpa originado pelo suicídio de Emir. O sentimento de
culpa de Emilie e Dorner decorrem de comportamentos distintos: a primeira interferiu
87
no destino de Emir, fazendo com que ele desistisse do que ele acreditou sempre ser
o amor da sua vida, e Dorner, ao contrário, não interferiu, deixando de agir em um
momento crítico em que ele talvez pudesse ter salvo a vida do amigo.
Assim, a moral destes dois personagens alterou-se ao longo do tempo. Emilie
percebeu que nem sempre deveria interferir na liberdade alheia, impondo suas
concepções particulares de bem e de mal, mesmo que com a melhor das intenções,
pois as conseqüências podem ser funestas e imprevisíveis. Já Dorner percebeu que,
muitas vezes, não podemos deixar passar um momento sem agir, sendo importante
tomar iniciativa e interferir na vida alheia, se o alcance desta interação for decisivo,
isto é, num caso de vida ou morte. Percebemos que há um limite complexo e nem
sempre bem definido a respeito do que seja respeitar a liberdade de alguém, sem
impor seus preceitos particulares, e ser indiferente, ignorando o outro e isentando-se
de qualquer compromisso oriundo do esquema de cooperação. O fato de que dois
extremos constituem uma violação da harmonia coletiva é facilmente constatado; a
dificuldade reside em encontrar um equilíbrio entre a intervenção na vida do outro
(um excesso devido à violação da liberdade de cada um) e a indiferença ao outro
(que não interfere na liberdade, mas, ao mesmo tempo, não desenvolve o esquema
de cooperação preconizado pelos princípios de Rawls).
6.10 EVENTO DA “FILANTROPIA DE EMILIE”
De acordo com a moral de Emilie, para se redimir da sua intromissão na vida
de Emir que poderia ter provocado seu suicídio, ela passou a dedicar-se à
filantropia.
88
As dezenas de fotos de Emir serviram para Emilie colocar em prática
uma promessa cumprida à risca durante boa parte de sua vida; tu
deves ter reparado que, infalivelmente, a cada aniversário da morte
de Emir tua avó caminhava até a Matriz e, ajoelhada, com o corpo
voltado para o rio, orava os responsos de Santo Antônio; depois
seguia até o cais e pedia a um catraieiro para que a conduzisse à
boca do igarapé do Educandos, onde jogava na água um vaso com
flores e um retrato do irmão; esse gesto repetido a cada ano,
despertou uma certa curiosidade nos moradores da Cidade Flutuante
(HATOUM, 2003, p. 85).
Mais passava o tempo e minha mãe parecia mais perto de Emir,
mais inconformada com o desaparecimento dele. Transcorridos mais
de vinte anos daquela manhã do coreto, Emilie ainda se dedicava a
uma prática filantrópica que, no início, não incomodou meu pai.
Afinal, o Alcorão não a aconselha numa das Suratas? (HATOUM,
2003, p. 98).
Não sei como isso continuou, mas enquanto morava aqui ela se
empenhava para que nada faltasse aos moradores da Cidade
Flutuante (HATOUM, 2003, p. 98).
A filantropia de Emilie apresenta um aspecto contraditório de sua
personalidade: apesar da aparente gratuidade de suas doações, elas tinham um
caráter compensatório. Tais ações visavam redimir Emilie de sua culpa pela morte
de Emir. Ao mesmo tempo em que ela dava aos pobres, controlava a quantidade e
a qualidade do alimento consumido pelas empregadas. Esta ação mesquinha era
observada pelo irmão da narradora o qual residia em Barcelona:
Muito antes de eu viajar (e dizem que antes da morte de Emir) ela já
distribuía alimentos aos filhos da lavadeira Anastácia Socorro. Eu
procurava ver nesse gesto uma atitude generosa e espontânea da
parte de Emilie; talvez existisse alguma espontaneidade, mas quanto
à generosidade... devo dizer que as lavadeiras e empregadas da
casa não recebiam um tostão para trabalhar, procedimento
corriqueiro aqui no norte. Mas a generosidade revela-se ou se
esconde no trato com o Outro, na aceitação ou recusa do Outro.
Emilie sempre resmungava porque Anastácia comia “como uma
anta” e abusava da paciência dela nos fins-de-semana em que a
lavadeira chegava acompanhada por um séqüito de afilhados e
sobrinhos (HATOUM, 2003, p. 85).
As ações filantrópicas de Emilie parece serem motivadas por seu objetivo, a
sua salvação, e não correspondem a um comportamento constante, cotidiano em
89
sua vida. Ela é generosa uma vez por ano e, no dia a dia, ela é mesquinha nos
mínimos detalhes:
As frutas e guloseimas eram proibidas às empregadas e, cada vez,
que, na minha presença, Emilie flagrava Anastácia engolindo às
pressas uma tâmara com caroço, ou mastigando um bombom de
goma, eu me interpunha entre ambas e mentia à minha mãe
dizendo-lhe: fui eu que lhe ofereci o que sobrou da caixa de tâmaras
que comi; assim, evitava um escândalo, uma punição ou uma
advertência, além de deixar Emilie reconfortada, radiante de alegria,
pois para fazê-la feliz bastava que um filho devorasse quantidades
imensas de alimentos, como se o conceito de felicidade estivesse
muito próximo ao ato de mastigar e ingerir sem fim (HATOUM, 2003,
p. 88-89).
Devido à sua filantropia, Emilie passou a ser reconhecida por todos na
comunidade que retribuíam dando-lhe oferendas:
Muitos desses agraciados lhe ofereciam presentes que eles
preferiam chamar de “lembrancinhas para a mãe de todos”. Eram
objetos, animais, plantas originários dos quatro cantos da Amazônia
[...] (HATOUM, 2003, p.100).
Com o passar do tempo, boa parte do que ela doava correspondia a essas
oferendas, o que irritou seu marido que considerava que suas doações nada mais
eram que uma troca das mãos dos pobres da comunidade para as mãos dos pobres
dos orfanatos:
Para ficar em paz com as Irmandades religiosas, Emilie doava as
frutas que recebia aos montes. Com o tempo, meu pai passou a
ironizar essa festa de benevolências, e dizia: “Praticam uma
filantropia curiosa: tiram dos pobres para dar aos pobres”. O velho já
não escondia sua irritação naquele dia agitado do ano (HATOUM,
2003, p.101).
90
6.11 RELAÇÃO COM OS SERVIÇAIS
A relação com os serviçais evidencia a distância existente entre patrões e
empregados, mostrando, inclusive, a ausência do princípio de igualdade. O título da
função “serviçal” indica, pelo menos quanto a um aspecto (comando e obediência),
duas posições antagônicas (superioridade/inferioridade). É claro que esta hierarquia
não significa que, sob outros aspectos, não possa haver igualdade entre patrão
empregado ou, até mesmo, superioridade do serviçal.
Nestes exemplos, que ilustram a relação mais comum, que é de
desigualdade, o serviço dos empregados é extremamente desvalorizado:
[...] devo dizer que as lavadeiras e empregadas da casa não
recebiam um tostão para trabalhar, procedimento corriqueiro aqui no
norte. Mas a generosidade revela-se ou se esconde no trato com o
Outro, na aceitação ou recusa do Outro. Emilie sempre resmungava
porque Anastácia comia "como uma anta" e abusava da paciência
dela nos fins de semana em que a lavadeira chegava acompanhada
por um séqüito de afilhados e sobrinhos. Aos mais encorpados, com
mais de seis anos, Emilie arranjava uma ocupação qualquer: limpar
as janelas, os lustres e espelhos venezianos, dar de comer aos
animais, tosquiar e escovar o pêlo dos carneiros e catar as folhas
que cobriam o quintal. Eu presenciava tudo calado, moído de dor na
consciência, ao perceber que os fâmulos não comiam a mesma
comida da família, e escondiam-se nas edículas ao lado do
galinheiro, nas horas da refeição. A humilhação os transtornava até
quando levavam a colher de latão à boca (HATOUM, 2003, p. 86).
Os irmãos abusavam sexualmente das empregadas diante da atitude
complacente de Emilie que lhes creditava a responsabilidade pelo comportamento
dos filhos. Aqui temos o relato do irmão que mora em Barcelona, discordando da
atitude de seus dois irmãos:
Além disso, meus irmãos abusavam como podiam das empregadas,
que às vezes entravam num dia e saíam no outro, marcadas pela
violência física e moral (HATOUM, 2003, p. 86).
91
Pela voz do irmão da narradora que foi morar em Barcelona, podemos
perceber a discordância dele no que diz respeito ao tratamento dado por Emilie às
serviçais. A divergência era tanta que ele optou por afastar-se de Emilie para poder
continuar a admirá-la, apesar das diferenças:
Vozes ríspidas, injúrias e bofetadas também participavam deste
teatro cruel no interior do sobrado. Lembro de uma cena que me
deixou constrangido e apressou a minha decisão de partir, e, assim
venerar Emilie de longe (HATOUM, 2003, p. 86).
O pai, marido de Emilie, assim como o irmão em Barcelona, reconhecem o
drama vivido pelas serviçais devido ao abuso dos dois filhos, criticando o
comportamento destes e a complacência de Emilie:
A mulher levou a criança à Parisiense e contou coisas a meu pai. Foi
uma das poucas vezes que o vi cego de ódio, os olhos incendiados
de fúria. [...] e escutei também, pela primeira vez nos seus acessos
de fúria, uma frase em português; gritou, entre pontapés e murros na
porta, que um filho seu não pode escarrar como um animal dentro do
corpo de uma mulher (HATOUM, 2003, p.87).
O bate-boca com Emilie foi tempestuoso e breve: que não era a
primeira mulher que aparecia na Parisiense com um filho no colo,
dizendo-lhe "esta criança é seu neto, filho do seu filho"; que não
atravessara oceanos para nutrir os frutos de prazeres fortuitos de
seres parasitas; que naquela casa os homens confundiam sexo com
instinto e, o que era gravíssimo, haviam esquecido o nome de Deus
(HATOUM, 2003, p.87).
Neste trecho, Emilie reforça seu ponto de vista, segundo o qual são as
serviçais que provocam o comportamento de seus filhos:
Deus?
contra-atacou Emilie.
Tu achas que as caboclas olham
para o céu e pensam em Deus? São umas sirigaitas, umas
espevitadas que se esfregam no mato com qualquer um e correm
aqui para mendigar leite e uns trocados.
O velho interrompeu subitamente a discussão e saiu sisudo,
decepcionado antes com Emilie que com meus irmãos. Era inútil
censurá-los ou repreendê-los, Emilie colocava-se sempre ao lado
deles; eram pérolas que flutuavam entre o céu e a terra, sempre
92
visíveis e reluzentes aos seus olhos, e ao alcance de suas mãos
(HATOUM, 2003, p.87).
O seguinte trecho demonstra como a dificuldade em atingir o primeiro objetivo
que conduz à Cidadania (reduzir as diferenças morais e filosóficas, ou seja, as
diferenças entre os pontos de vista de cada um com suas variadas concepções
morais, de bem e mal), freqüentemente, representa um obstáculo para o segundo e
terceiro objetivos que conduzem à Cidadania, a saber, compatibilizar os planos de
vida e estabilizar o esquema de cooperação. Quando as pessoas divergem em seus
pensamentos, fica mais difícil respeitar o outro de maneira a poder conviver de forma
harmônica, respeitando o pensamento do outro e seu modo de vida regido por este
pensamento. Assim, fica claro que, havendo uma dificuldade em um dos três
objetivos que conduzem à Cidadania, os demais se encontram igualmente
prejudicados, pois se trata de um conjunto cuja dissolução impede o bom convívio:
Essa conivência de Emilie com os filhos me revoltava, e fazia com
que às vezes me distanciasse dela, mesmo sabendo que eu também
era idolatrado. Tornava-me um filho arredio, por não ser um estraga-
albarda, por não ser vítima ou agressor, por rechaçar a estupidez, a
brutalidade no trato com os outros. No meu íntimo, creio que deixei a
família e a cidade também por não suportar a convivência estúpida
com os serviçais. Lembro Dorner dizer que o privilégio aqui no norte
não decorre apenas da posse de riquezas.
Aqui reina uma forma estranha de escravidão opinava Dorner. A
humilhação e a ameaça são o açoite; a comida e a integração
ilusória à família senhor são as correntes e golilhas (HATOUM, 2003,
p. 87-88).
6.12 EXCLUSÃO DOS DIFERENTES: SORAYA ÂNGELA E A NARRADORA
Soraya Ângela, filha de Samara Délia, sofreu dois tipos de exclusão na
sociedade. O primeiro foi devido à situação de sua mãe que ficou grávida sem ter se
93
casado e sem nunca ter revelado o nome do pai da criança. Toda a família a
hostilizou por isso, repercutindo, também, no tratamento dado a Soraya Ângela. O
segundo tipo de exclusão sofrido pela menina foi por ela ser surda-muda e, dessa
forma, não estar dentro dos parâmetros sociais de “normalidade”. O único momento
em que Soraya Ângela foi considerada “normal” e, portanto, foi aceita pela família,
foi no dia em que ela rabiscou seu nome com giz vermelho no casco de uma
tartaruga chamada Sálua:
Foi o melhor presente de Natal – exclamou Emilie, após soletrar seu
próprio nome, com os olhos fixos no quelônio. Samara Délia ficou
radiante naquele momento porque os irmãos pela primeira vez
reconheceram em Soraya um ser humano, não um monstro
(HATOUM, 2003, p.14).
Esta passagem apresenta o processo de aceitação no grupo como uma
performance a ser atingida. Para obter o título de “normal”, que corresponde a uma
aceitação, cada indivíduo tem de passar por testes, variáveis de acordo com o grupo
em que se encontra, para se mostrar digno desta pertença.
Como o filósofo francês Michel Foucault (1972) demonstrou no seu livro
Histoire de la folie à l'âge classique, o homem sendo definido pela razão (“l'homme
est un animal raisonnable”), traz como conseqüência quase que inevitável a
exclusão das pessoas portadoras de doença mental e, por extensão, a exclusão de
pessoas que estejam fora da norma da sociedade.
O conceito de normalidade não pode ser definido a priori, de maneira clara,
porque ele é um conceito interrogativo que se presta a muitas contradições. Para
Descartes, o homem define-se pelo bom senso que é a razão, ou a “luz natural”, e a
loucura é o exílio, fora do homem, um lugar de exclusão. E é na esteira desse
94
processo de exclusão – que corresponde à invenção da loucura – que Michel
Foucault
desenvolve a sua tese de que a loucura, a partir do século XVII, na Europa,
é a representação da anormalidade através do processo de confinação em casas de
internação que estavam vazias, desde o final do século XIV, antigos leprosários. O
gesto social da internação constitui um ato de ruptura social, visando à exclusão das
ruas de todas as pessoas indesejáveis e que poderiam perturbar a tranqüilidade dos
habitantes das cidades. Assim, a noção de “normal” é uma herança de um
comportamento determinado por novos valores econômicos (o dinheiro e o lucro) e
morais (o trabalho). Biologicamente, ser normal pode significar estar em uma média,
na ordem das realizações físicas, de acordo com o contexto sociocultural.
Soraya, ao meu redor, por detrás dos troncos, da folhagem que
lambia a terra, fingindo encontrá-la, aceitando absurdamente a
hipótese de que ela teria ido ao pátio ver os animais, banhar-se na
fonte, pular a cerca do galinheiro, e gesticular furiosamente diante do
poleiro para que, em pânico, as aves passassem do sono à
debandada caótica, soltando as asas, ciscando a terra e o ar,
debatendo-se, encurraladas entre a cerca intransponível e a figura
lânguida que com seus excessos de contorções sequer as
ameaçava; mas essa encenação matinal, presenciada com espanto
e comiseração por todos nós, talvez fosse uma festa para Soraya,
uma maneira de ser escutada ou percebida sem ter acesso à
palavra, um parêntese no seu cotidiano (o galinheiro, o quintal, os
animais) para escapar aos olhares, aos sussurros de constatação:
ela não fala, não ouve, o seu corpo se reduz a um turbilhão de
gestos no centro de um espetáculo visto com olhos complacentes
(HATOUM, 2003, p.16).
Também a narradora sente-se excluída e concorda em internar-se em uma
clínica psiquiátrica, hesitando até em sair de lá por não se sentir fortalecida o
suficiente para enfrentar o mundo. No entanto, aceita sair da clínica para tentar
reconstruir a sua infância e a sua história através da palavra, dos relatos das
testemunhas, cada uma com o seu ponto de vista diferente, iluminando a sua
verdade e dando um sentido à sua existência. De acordo com as palavras de
Arrigucci:
95
Como outros em nosso tempo, é este o relato de uma volta à casa já
desfeita, reconstruída pelo esforço ascético de um observador de
olhar penetrante, mas pudoroso, que recorda e imagina. História de
uma busca impossível, o romance é ainda uma vez aqui a aventura
do conhecimento que empreende o espírito quando se acabam os
caminhos. É aí que começam as viagens da memória (HATOUM,
2003).
96
CONCLUSÃO
A estrutura em que Relato de um certo Oriente foi elaborada permite avaliar e
constatar o respeito pelas diferentes vozes que compõem a trama narrativa. O
conjunto de testemunhos constitui um mosaico heterogêneo de vozes em que todas
são igualmente importantes, realizando o conceito de Cidadania através de uma
estética peculiar em que as diferenças não são suprimidas.
São essas diferenças que enriquecem e modelam Relato de um certo Oriente.
Não existe um ponto de vista que seja preponderante aos demais. Apesar da
narradora coordenar e delegar a fala para cada personagem, ela não se situa num
plano superior, pois acata sem pré-julgamentos nem censuras o discurso de cada
um.
Essa atitude demonstra uma Estética literária nova de aceitação das
diferenças culturais, sociais e filosóficas. Essa nova Estética opõe-se ao antigo
padrão preconizado na Poética aristotélica fortemente apoiada em padrões mais
rígidos acerca da trama narrativa. Neste antigo modelo, havia a predominância de
uma voz que conduz a trama. A nova Estética literária, aqui ilustrada, é marcada
pela coexistência de diversas vozes, respeitando os princípios rawlsonianos,
considerados como objetivos da Filosofia Política, a saber: reduzir as diferenças
morais e filosóficas, compatibilizar os planos de vida e estabilizar o esquema de
cooperação. Tais princípios foram encontrados em diferentes níveis, de acordo com
os personagens e suas trajetórias, e são também critérios para estabelecer o estágio
em que os personagens encontram-se em relação à Cidadania.
97
Em vez de valorizar a unidade e coerência narrativa, essa nova Estética da
Cidadania privilegia a oportunidade de registrar manifestações de diferentes
procedências, mesmo que, aparentemente, incompatíveis entre si. O importante não
é mais a linearidade do discurso; mas resgatar vozes que teriam ficado à margem do
discurso, permitindo a elas, assim, imprimir sua percepção do mundo.
Em Relato de um certo Oriente, estão representadas, sob forma ficcional,
diferentes facetas da vida humana, dando ao próprio leitor a possibilidade de reunir
e de dar sentido aos diferentes fragmentos. A análise feita neste trabalho
corroborou, portanto, a hipótese inicial, flagrando o conceito de Cidadania Moderna
na Estética. Neste caso, a Estética da Cidadania revelou-se na Literatura, através
da análise da obra do corpus.
O trabalho realizado evidencia o modo singular da vinculação entre a
Cidadania e a Estética, no romance Relato de um certo Oriente. Este trabalho
constitui-se em mais uma manifestação dos estudos Comparatistas, os quais
possibilitam o processo de interpretação crítica das diversas áreas do conhecimento,
utilizando-se de aportes teóricos das referidas áreas. Nesse sentido, uma vez mais
constatou-se a fecunda relação entre a Filosofia e a Literatura.
Esta participação democrática, tanto do leitor quanto dos diferentes pontos de
vista dos personagens no interior da narrativa, forja aquilo que é denominado pela
autora de Estética da Cidadania.
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