Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE
FEDERAL
DO
RIO
GRANDE
DO
SUL
PROGRAMA
DE
PÓS-GRADUAÇÃO
EM
LETRAS
A REVISTA FESTA E A MODERNIDADE
UNIVERSALISTA NA ARTE
ESTUDO DE CASO: ADELINO MAGALHÃES
A
LUNA
:
J
OSEANE DE
M
ELLO
R
ÜCKER
M
ATRÍCULA
:
1573-98/2
O
RIENTADORA
:
D
R
ª.
A
NA
M
ARIA
L
ISBOA DE
M
ELLO
P
ORTO
A
LEGRE
,
22
DE DEZEMBRO DE
2005.
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
Agradeço à minha orientadora, Ana Maria Lisboa
de Mello, por ter sido mestre e amiga no decorrer deste
trabalho e em toda a minha jornada acadêmica desde
1998, quando fui bolsista de Iniciação Científica sob sua
orientação.
Sou muito feliz por tê-la como orientadora em um
universo em que muitos se afogam na sua auto-imagem,
buscando incansavelmente fugir do anonimato. Dessa
forma, agradeço sua paciência, pois, nas palavras
afáveis e esclarecedoras, encontrei uma professora que
divide seus ensinamentos e, sobretudo, não tem medo
de aprender cada vez mais.
ads:
3
O vento do meu espírito
soprou sobre a vida.
E tudo que era efêmero
se desfez.
E ficaste só tu, que és eterno...
(Cecília Meireles)
4
R
ESUMO EM LÍNGUA VERNÁCULA
Nesta dissertação visamos discutir as concepções acerca de Modernismo e
nacionalidade a partir do ideário estético elaborado pelos intelectuais da revista
Festa: mensário de Pensamento e de arte, no decorrer da sua primeira fase, ou seja,
1927 1929, contemporânea aos grupos modernistas paulistas, demonstrando uma
visão sobre arte divergente daquelas expostas por outros grupos. Para isso, é
apresentado um breve panorama sobre as origens do nacionalismo literário na
Europa e no Brasil; as confluências e divergências entre Festa e outros periódicos e
a inquietação do grupo diante das inovações culturais do início do século XX.
A fim de compreender as percepções dos intelectuais do Mensário sobre
arte, centramo-nos na pesquisa dos artigos de seus principais colaboradores:
Andrade Muricy, Tasso da Silveira, Henrique Abílio e Barretto Filho. Após a análise
desse ideário, investigamos a relação entre o aparato estético idealizado pelos
autores e a concretização do mesmo no âmbito da literatura. Assim, utilizamos os
contos de Adelino Magalhães, um dos principais realizadores do alvitre estético do
Mensário, sobretudo aqueles pertencentes às obras publicadas na década de 20,
para verificar em que medida a criação literária do autor realiza os pressupostos
teóricos do grupo. Em forma de anexos, acrescentamos uma antologia de artigos de
Festa e de contos de Adelino Magalhães que consideramos essenciais para a
apreensão das aspirações do Periódico.
P
ALAVRAS
-
CHAVE
:
Nacionalidade, revista Festa, Modernismo.
5
R
ESUME
Dans cette dissertation nous visons à discuter les conceptions
concernant le Modernisme et nationalité à partir de l’ensemble d’idées esthétique
élaboré par les intellectuels de la revue Fête: publication mensuelle de la Pensée et
de l’art, au cours de sa première fase, soit 1927 1929 contemporaine aux groupes
modernistes de São Paulo, démontrant une vision sur l’art divergente de celles
exposées par d’autres groupes. Pour ceci , on présente un bref panorama sur les
origines du nationalisme littéraire en Europe et au Brésil; les confluences et
divergences entre Fête et autres périodiques et l’inquiétude du groupe face aux
innovations culturelles du début du XXe siècle.
Afin de comprendre les perceptions des intellectuels de la Publication
mensuelle sur l’art, nous nous concentrons dans la recherche des articles des
principaux collaborateurs: Andrade Muricy, Tasso de Oliveira, Henrique Abílio et
Barreto Filho. Après l’analyse de cet ensemble d’idées nous recherchons la relation
entre l’apparat esthétique idéalisé par les auteurs et la concretisation dans la même
sphère de la littérature. De cette manière nous utilisons les contes d’ Adelino
Magalhães, un des principaux réalisateurs du projet esthétique de la Publication
mensuelle, surtout ceux concernant aux œuvres publiées dans les années 20, pour
vérifier dans quelle mesure la création littéraire de l’auteur réalise les présupposés
théoriques du groupe. Sous forme d’annexe nous ajoutons une anthologie d’articles
de Fête et de contes d’ Adelino Magalhães que nous considérons essentiels à la
saisie des aspirations du Périodique.
M
OTS
-
CLE
: Nacionalité, revue Fête, Modernisme.
6
SUMÁRIO
I
NTRODUÇÃO
..................................................................................................................8
1.
O
S TEMPOS ÁUREOS DO MODERNISMO E DAS DISCUSSÕES SOBRE NACIONALIDADE
........12
1.1 A festa inquieta................................................................................................12
1.2 O Romantismo e as origens do nacionalismo literário.....................................16
1.3 A Semana de 22, os universalistas e uma teoria.............................................20
1.4 O alvitre estético do Mensário.........................................................................27
2.
O
DISCURSO CRÍTICO DOS PRINCIPAIS COLABORADORES DE
F
ESTA
...............................35
2.1 Andrade Muricy – o crítico..............................................................................35
2.1.1 Os convívios do autor..................................................................................45
2.1.2 O dissídio com o público..............................................................................49
2.1.3 A nova geração e a geração adolescente....................................................55
2.2 Tasso da Silveira – o missioneiro da modernidade........................................58
2.2.1 A anta, o carrapato e uma enxurrada..........................................................62
2.2.2 Alegria e Totalismo criador..........................................................................70
2.2.3 Queremos ser ou o nacionalismo brasileiro.................................................76
2.3 Henrique Abílio e o egoísmo estético.............................................................80
2.3.1 Os problemas da língua...............................................................................85
2.4 Barretto Filho – o amante de Bremond, Proust e Dostoievski........................87
2.4.1 O papagaio e a cegonha..............................................................................90
3. U
M ESTUDO DE CASO
:
O ECO DE
A
DELINO
M
AGALHÃES
................................................92
3.1 A multidão de Adelino Magalhães em Festa...................................................92
3.2 Casos e impressões da roça, da burguesia e da infância..............................97
3.3 As visões, as cenas e os perfis da modernidade..........................................104
3.4 A inquietude da hora veloz............................................................................107
4. C
ONSIDERAÇÕES
F
INAIS
..........................................................................................113
5.
R
EFERÊNCIAS
.........................................................................................................119
7
A
NEXOS
:
ANTOLOGIA DE ENSAIOS E DE CONTOS
............................................................124
Antologia de ensaios...........................................................................................124
Antologia de contos de Adelino Magalhães........................................................144
8
INTRODUÇÃO
Esta dissertação começou a ser elaborada em 1998 quando participamos
do projeto “Metafísica e religiosidade na lírica moderna brasileira: Murilo Mendes,
Jorge de Lima e Cecília Meireles”, vinculado ao Projeto Integrado “A poesia, a crítica
e o exercício da modernidade no Brasil”, sob a coordenação geral da professora
doutora Maria do Carmo Campos e sob a orientação da professora doutora Ana
Maria Lisboa de Mello, apoiado pelo CNPq. Nesse período, debruçamo-nos sobre a
obra de Cecília Meireles e, desde o início dos estudos, dedicamo-nos à poesia da
década de 20, período que, desde já, despertou o nosso interesse. Em 2003,
defendemos, nesta universidade, um breve estudo sobre a religiosidade na poesia
do início do século da autora, ou seja, suas primeiras obras.
Ao compreendermos a importância de nos remontarmos aos textos dos
“tempos áureos do Modernismo”, isto é, dos dois primeiros decênios do século XX,
passamos a estudar o mensário Festa a fim de rediscutirmos as origens da estética
em questão para, dessa forma, colaborarmos com os estudos sobre o Modernismo
que, em sua maioria, privilegiam a visão dos participantes da Semana de arte
moderna de 22, ou seja, apresentam como renovação estética o modelo projetado
pelos paulistas. É importante explicitar que Cecília Meireles nos levou à Festa,
porque foi ela uma das participantes mais ativas do Periódico, além de constituir-se
como a figura mais ilustre do Mensário e a que passou a ter mais respeito e apreço
pela crítica tanto brasileira como européia anos mais tarde, sobretudo em Portugal,
onde foi publicada a primeira edição de Viagem em 1939.
A fim de contribuir para os estudos sobre o Modernismo Brasileiro,
passamos a estudar o Periódico com a meta de definir o seu projeto estético, visto
que algumas temáticas, como o interesse pelo nacional, por exemplo, mesmo que
ligado a motes religiosos, não haviam sido examinados pela crítica literária. Festa
aparece a título de curiosidade nos estudos sobre Modernismo e comumente é
apresentado somente o texto-manifesto, escrito por Tasso da Silveira nas primeiras
páginas da Revista, demonstrando a falha ou lacuna que surge na exposição dos
movimentos de renovação estética do país, já que foi disseminado somente o ideário
modernista dos paulistas.
9
Para isso, o estudo da Expressão plástica e consciência nacional na crítica
de Mário de Andrade, de José Augusto Avancini; a dissertação Festa: Contribuição
para o estudo do Modernismo, de Neusa Pinsard Caccese
1
, e demais estudos sobre
periódicos, mesmo que sobre temas diversos, foram importantes para o início da
coleta de dados e da metodologia utilizada para o estudo desta dissertação.
A fim de recuperar o projeto estético do Mensário, preferi deter-me no
discurso crítico de seus principais colaboradores, escolhidos a partir do número de
contribuições de textos teóricos, ou seja, deu-se primazia aos ensaios. Os
participantes capitais e idealizadores do Mensário foram Andrade Muricy e Tasso da
Silveira, seguidos de Henrique Abílio e Barretto Filho. Adelino Magalhães foi
escolhido para essa análise por constituir-se como exemplo de ensaísta e ficcionista
do grupo em que teoria e criação confluíram, além de ser um autor não estudado
pela crítica e por ter provocado em nós um especial interesse.
O mapeamento da Revista originou-se a partir de uma extensa coleta de
dados que dividiu os temas dos artigos em cinco grandes grupos
2
: modernidade,
papel da arte e do artista, diálogos com artistas, diálogos com demais manifestações
artísticas, nacionalismo. Após o rastreamento desses motes, optamos por
direcionarmos nossa discussão para as duas grandes preocupações do grupo:
definir modernidade e rediscutir nacionalismo com o intuito de contribuir para os
estudos sobre o Modernismo Brasileiro, que compreendemos que é essencial
lançar luz às lacunas presentes na construção da cultura e, sobretudo, na literatura
brasileira.
No primeiro capítulo, apresentamos um breve itinerário das origens das
discussões que permeiam o tema “nacionalismo literário” na história cultural de
nosso país e alguns de seus impasses. No final do capítulo, é apresentado um
1
CACCESE, Neusa Pinsard. Festa: Contribuição para o estudo do Modernismo. São Paulo: Instituto
de Estudos Brasileiros, 1971. Este trabalho divide-se em: apresentação da revista, idéias e atitudes,
considerações finais e apêndices. O estudo de Neusa P. Caccese trabalha com as duas fases da
revista, contribuindo para o fichamento e a catalogação de material, além de abordar características
gerais do grupo, layout das páginas e suas principais atitudes críticas. O texto do trabalho tem 105
páginas, acrescido de 137 ginas de apêndices, contendo índice remissivo, antologia poética e
entrevistas com Andrade Muricy e Murilo Araújo. A pesquisa de Neusa, quando apresenta em um de
seus subcapítulos o ideário do Mensário, centra-se na preocupação com a ânsia da modernidade
presente em muitos dos artigos da Revista, entretanto a questão do nacionalismo é rapidamente
abordada e, por almejar dar conta de uma visão ampla do Periódico, por vezes apresenta listas de
características e autores sem poder centrar-se nas discussões dos textos.
2
Era comum encontrarmos em um mesmo artigo exemplos da discussão de mais de uma das
temáticas apresentadas e, quando isso ocorria, o trecho do artigo era catalogado em mais de uma
categoria.
10
apanhado dos princípios estéticos do grupo a fim de preparar o leitor para ingressar
no discurso crítico de seus principais colaboradores, onde serão estudados com
mais de atenção.
No segundo capítulo, esmiuçamos esse discurso e mergulhamos nas
discussões da época, pois a partir desse esforço intelectual que visa estabelecer
pontos em contato entre os participantes, pretendemos definir o caráter do Mensário
e demonstrar a tentativa do grupo de estabelecer o que era ou não nacional, o que
era ou não moderno, discutindo a validade dos parâmetros utilizados pelo
Periódico em discussão.
O terceiro capítulo, dedicado a Adelino Magalhães, é a fusão do estudo do
projeto estético dos dois capítulos anteriores com a realização criativa. Para isso,
não nos detemos apenas em artigos publicados na Revista, mas fizemos a leitura da
Obra Completa do autor, publicada pela editora José Aguilar em 1963, com
posfácios de Murilo Araújo e Andrade Muricy, companheiros em tempos de Festa,
enfocando os livros da década de 20: Casos e impressões (1916), Visões, Cenas e
Perfis (1918), Tumulto da vida (1920), Inquietude (1922), A hora veloz (1926), Os
violões (1927) e Câmera (1928). Assim examinamos, sobretudo a partir do aparato
teórico construído pelo grupo, alguns dos contos de Adelino Magalhães, sempre
enfocando perspectivas que visassem à problematização de temas basilares para a
compreensão de nosso processo de modernização cultural.
Para o exame dos artigos, utilizamos a referência bibliográfica necessária a
cada mote. Assim, para compreendermos a história do movimento romântico e a sua
relevância para o entendimento do nacionalismo literário, utilizamos os artigos
“Nacionalismo literário” de Célia Pedrosa, “Instinto de nacionalidade” de Machado de
Assis e a coletânea de textos do livro Fundadores da modernidade, organizada por
Irlemar Champi. Para estudarmos os impasses na construção da identidade cultural,
sobretudo no âmbito literário, valemo-nos da Formação da literatura brasileira e
Literatura e sociedade de Antonio Candido; do artigo “Nacional por subtração” de
Roberto Schwarz e de Vanguarda e subdesenvolvimento de Ferreira Gullar.
As investigações sobre Modernismo e vanguarda foram amparadas em
Aspectos da literatura brasileira e O empalhador de passarinhos de Mário de
Andrade; História do modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de arte
moderna de Mário da Silva Brito; Modernismo brasileiro e vanguarda e “A semana
de 22, ontem e hoje” de Lúcia Helena e Vanguarda européia e modernismo
11
brasileiro de Gilberto Mendonça Teles. Os estudos sobre a estética e o papel da arte
embasaram-se em Argumentação contra a morte da obra de arte de Ferreira Gullar
e Introdução à filosofia da arte de Benedito Nunes. Além disso, foram ainda de
capital importância para esta pesquisa as obras Estrutura da lírica moderna de Hugo
Friedrich e Notas de literatura I de Theodor Adorno.
Esses textos teóricos foram essenciais para reavivarmos as discussões
sobre Modernismo e nacionalidade, entretanto foi necessário construir o aparato
utilizado pelos colaboradores da Revista a partir do ideário apresentado em seus
artigos entre 1927 a 1929, a fim de reestruturar o projeto estético do grupo e aplicá-
lo ao texto literário, pois não raro alguns conceitos demonstraram-se diversos ou
vagos entre os participantes. O exemplo utilizado de argumentação e realização está
atrelado ao texto de Adelino Magalhães, pois é nele que teoria e prática se fundem e
se concretizam como um projeto bem-realizado do Modernismo de Festa em seus
tempos áureos.
12
OS
TEMPOS
ÁUREOS
DO
MODERNISMO
No início do século XX, em meio ao processo de industrialização e às
conseqüentes modificações que se disseminaram pelo mundo, a vanguarda surge
para abalar as estruturas vigentes e espantar o mofo parnasiano
3
. Reunidos sob um
ideário comum e um conjunto de afinidades, Tasso da Silveira alia-se a Andrade
Muricy e demais colaboradores com o intento de edificar um periódico para veicular
suas idéias. Em agosto de 1927, é distribuído o primeiro número da revista literária
Festa mensário de pensamento e de arte que se preocupa em compreender os
fenômenos de seu tempo, entre eles, a definição de modernidade e nacionalismo.
1.1
A
F
ESTA INQUIETA
No ano de 1925, Andrade Muricy e seu companheiro de infância, Tasso da
Silveira, estavam numa roda literária na esquina da São José com a Rodrigo Silva,
Café Gaúcho, no Rio de Janeiro, conversando e discutindo arte e literatura. Muricy
acabara de voltar da Europa com a narrativa de A festa inquieta
4
debaixo dos
braços. Conta Mário Camarinha
5
que, no encontro referido, aparecera alguém com
uma revista de teatro denominada Máscaras; Tasso da Silveira tivera então a idéia
de fundar uma revista, melhor, um mensário de pensamento e de arte. O nome?
perguntou Muricy – festa, como o seu livro – respondera Tasso.
Em artigo de 31 de abril de 1928, de Festa, Tristão de Ataíde questionara o
nome da revista. De acordo com o crítico, o nome era impróprio porque a palavra
“festa” remetia à idéia de despreocupação, ou seja, imagem de muito modernismo
convencional ou falso, e não aos anseios revelados pelo grupo o qual buscava
novas realidades e sentimento profundo de preocupação com a vida. Respondera
Tasso, em 13 de janeiro de 1929, que Tristão se enganara, o nome do periódico
revelava a festa das almas que se elevam a Deus, “porque festa é essencialmente
3
É importante ressaltar que não uma oposição explícita ao movimento Simbolista por nenhum
grupo modernista, o descompasso ocorre de fato diante das concepções tecidas pelos parnasianos.
4
ANDRADE, Muricy. A festa inquieta. Rio de Janeiro: Lux, 1936.
5
CAMARINHA, Mário de Sá. Artigo publicado em edição comemorativa à memória de Tasso da
Silveira em 1978 (edição fac-similada de Festa).
13
alegria, mas alegria integral, isto é, o a que desconhece, mas a que venceu a
dor”
6
.
Festa circulou, sobretudo no Rio de Janeiro, em duas fases. A primeira
percorreu os anos de 1927 a 1929, denominando-se “Mensário de Pensamento e de
Arte”; a segunda abrangeu os anos de 1934 a 1935, intitulando-se “Revista de Arte e
de Pensamento”. Essas etapas indicam a trajetória trilhada por seus participantes,
os quais priorizavam em primeira instância a teoria em detrimento da arte, o que não
torna a última, evidentemente, menos importante, mas demonstra a preocupação do
grupo, desde o início, com a construção de um ideário estético.
É importante esclarecer que abordaremos nesta dissertação somente a
primeira fase da Revista por envolver o período significativo para a discussão acerca
das concepções sobre modernidade e nacionalidade em um período literário
denominado Modernismo. Mário Camarinha afirma que a segunda fase do Mensário
é apenas um prolongamento do que havia sido a primeira. Aberto para escritores de
todas as idades e de todas as crenças, a segunda fase não tivera, de acordo com
Camarinha, a mesma significação dos treze primeiros números de Festa
(1927/1929). Compreendemos que a derrocada dos tempos áureos do Modernismo
deu-se a partir da desmistificação ocasionada após o Romance de 30, pois, a partir
desse momento, as discussões sobre modernidade e nacionalismo tomaram outro
contorno devido ao despertar da consciência sobre o subdesenvolvimento até então
mascarado.
A compreensão do porquê de a segunda fase do Mensário não ter obtido o
mesmo destaque que a primeira não parece difícil de entender. Se vislumbrarmos o
processo mundial, verificaremos que a década de 1920, na Europa, foi marcada
pelas vanguardas, pelas discussões de estética, pelas negações abruptas ou não da
tradição, uma vez que todos dialogavam de alguma forma com o passado. No final
do culo XIX e início do XX, o mundo havia sofrido mudanças violentas, entre elas:
a
aplicação do conhecimento científico à indústria; a descoberta de novas fontes de
energia; o impacto da eletricidade; o desenvolvimento da medicina, da higiene e da
nutrição; o novo conhecimento químico e fisiológico provocava a revolução na
agricultura. Dentro dessa reorganização social, o apetite voraz do industrialismo
6
Por ser um texto antigo, tomei a liberdade de atualizar a ortografia das citações utilizadas no corpo
desta dissertação.
14
incapaz “de extrair suficiente sustento dos recursos locais”
7
rapidamente engolia o
mundo inteiro, conforme esclarece Geoffrey Barraclough.
No Brasil não foi diferente, o início da década de 1920 é marcado pelos
resquícios da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e pelo desgaste interno do pacto
oligárquico quando, no final do século XIX, cai a antiga oligarquia açucareira e
sobe ao poder automaticamente a do café, que origem à política do café-com-
leite (revezamento político entre Minas Gerais e São Paulo). Além disso, uma
crescente pressão também se estabelece através das novas camadas sociais que,
ao mesmo tempo em que estimulavam, enfraqueciam o regime político estabelecido.
Esse foi um período caracterizado, portanto, pelo ambiente de insatisfação social e
pela busca de novas alternativas. A efervescência da cena brasileira expressou-se,
desse modo, por meio da inquietude cultural e estética da Semana de arte moderna
de 1922, da fundação do Partido Comunista do Brasil e das agitações nos quartéis
que colocaram em cena os movimentos tenentistas.
Isso significa que vários setores do país estavam abalados e aspiravam por
mudanças; eles desejavam nos livrar do bolor do antigo regime e das velhas formas.
Logo, a arte também como forma de representação da sociedade devia se
manifestar de maneira heterogênea. De acordo com o crítico Mário da Silva Brito,
autor da História do Modernismo Brasileiro: antecedentes da Semana de arte
moderna:
O parnasianismo tinha esgotado o seu momento de autenticidade, se
assim se pode dizer, e que fora dar às letras, comprometidas pelo
sentimentalismo serôdio dos românticos, disciplina, equilíbrio e harmonia,
mas caía, agora, por sua vez, na obediência passiva aos cânones da
escola, sem produzir personalidades representativas
8
.
Em meio a essa realidade conflituosa, os nossos artistas e pensadores
tiveram contato com os movimentos europeus de vanguardas. Oswald de Andrade,
em 1912, chegava da Europa com o Manifesto técnico da literatura futurista, que lhe
foi revelado em Paris, debaixo dos braços, e defendia “o compromisso da literatura
com a nova civilização técnica, pregando o combate ao academismo, guerreando as
7
BARRACLOUGH, Geoffrey. Introdução à História Contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1976; p.
53.
8
BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de arte
moderna. Rio de Janeiro: Civilização, 1964; p. 18.
15
quinquilharias e os museus e exaltando o culto às palavras em liberdade”
9
. Os
autores brasileiros bebiam das fontes das vanguardas européias do
Expressionismo (1910) e de seus ”poetas do grotesco”: Trakl, Benn, Heym e Stadler;
do Cubismo (1913) de Picasso, Blaise Cendrars, Reverdy; do Dadaísmo (1916) de
Tristan Tzara; e, um pouco mais tarde, do Surrealismo (1924) de André Breton, Paul
Éluard e Philippe Soupault a fim de descobrir os caminhos que tornariam a nossa
arte independente. De acordo com Antonio Candido, esse fermento de renovação
literária se esboçava em nosso país desde os tempos da Primeira Guerra. Esclarece
o crítico:
o Brasil se encontrava, depois da Primeira Guerra Mundial, muito mais
ligado ao Ocidente europeu do que antes; o apenas pela participação
mais intensa nos problemas sociais e econômicos da hora, como pelo
desnível cultural menos avançado
10
.
Antonio Candido afirma que as vanguardas agiram sobre os brasileiros e
levaram para a arte a velocidade de um surto industrial que impressionava a todos.
O crítico Mário da Silva Brito explica que, para os artistas e para os intelectuais da
Semana, o progresso era visto como o impulsionador da modernidade; e essa, por
sua vez, auxiliava a fortalecer o sentimento de nacionalidade. Era “uma época nova
à espera de uma arte nova”
11
, que deveria exprimir a saga daqueles tempos e de
seus porvires.
O desejo de atualizar as letras nacionais demonstrou-se a partir da
proliferação de manifestos e de revistas literárias utilizados como veículo dos
pensamentos críticos sobre política e estética. As colaborações literárias, como
esclarece Nelson Werneck Sodré em História da imprensa no Brasil, começam a ser
afastadas dos jornais no início do século XX, constituindo matéria à parte é o que
chamamos hoje de suplemento literário. Esse dado é relevante, pois indica que as
transformações na imprensa brasileira possibilitaram a propagação de revistas
literárias, logo de seus manifestos. Entre elas podemos citar: América Latina (1919 –
Rio de Janeiro), Klaxon (1922/1923 São Paulo), Árvore Nova (1922 Rio de
Janeiro), Terra do Sol (1924 Rio de Janeiro), Estética (1924 São Paulo), Terra
9
BRITO, Mário da Silva. Ibidem, p. 29.
10
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1980; p. 180.
11
BRITO, op. cit, p. 28.
16
Roxa e Outras Terras (1926 – São Paulo), Verde (1927/1929 – Cataguases), Revista
de Antropofagia (1928/1929 – São Paulo) e Festa (1927/1929 – Rio de Janeiro).
Para não acusarmos Festa de retardatária, é importante lembrar que muitos
de seus colaboradores estavam presentes no cenário cultural através de
periódicos anteriores: América Latina, Árvore Nova e Terra do Sol, o que fez Tasso
da Silveira afirmar em resposta à provocação de Mário de Andrade, segundo o
qual os participantes do Mensário estavam ocultos enquanto os modernistas
paulistas ouviam as vaias do público em 22 que Festa, em 1919, ansiava por
renovações a partir das participações em América Latina e nas duas publicações
subseqüentes. Não obstante, o espírito revolucionário modernista nasceu mesmo
como projeto estético em São Paulo através das publicações de Klaxon, Estética e A
Revista.
O grupo de Festa era formado por intelectuais e artistas que possuíam
afinidades, como esclareceu Andrade Muricy em entrevista dada à autora Neusa
Pinsard Caccese, pois não se formara como um grupo “estratificado e formal”, mas
como o resultado de uma “insaciável curiosidade de espírito, guiada por profundo
interesse em buscar uma sedimentação das tendências aparentemente
contrastantes que então se acusavam na área literária”.
12
Entre os colaboradores
mais freqüentes estão: Andrade Muricy, Tasso da Silveira, Barretto Filho, Henrique
Abílio e Adelino Magalhães.
Antes de mergulharmos no universo dos participantes de Festa, cabe-nos
retomar algumas das discussões sobre nacionalismo e modernidade para melhor
contextualizarmos os temas estudados, apresentando alguns pontos que iluminarão
a proposta estética defendida pelo grupo.
1.2
O
R
OMANTISMO E AS ORIGENS DO NACIONALISMO LITERÁRIO
O Brasil é um país de contrastes regionais tanto econômicos quanto
culturais e, para sentar-se à mesa com os donos do mundo
13
, faltava-lhe a
modernização. Esse será um dos motes que movimentará uma das facetas do
nacionalismo literário no país: a busca pelo reconhecimento pelo outro. Dessa forma,
12
CACCESE, op. cit., p. 226.
13
Expressão utilizada por CHAUÍ, Marilena In: Brasil mito fundador e sociedade autoritária. Editora
Fundação. São Paulo: Perseu Abramo, 2000.
17
a partir da negação do outro ou da compreensão das contradições em relação a ele,
surgirá a preocupação com o nacional.
Na tentativa de reorganizar a nossa formação histórica, tornou-se tema,
inspiração e finalidade criar uma identidade brasileira, ou seja, negar as heranças
lusitanas e procurar traços em outros povos, como é o caso do índio exemplo de
honestidade e bravura que nos diferenciassem do colonizador. Assim nasceu o
mito fundador do nacionalismo: uma forma de recusar os valores europeus para
formular um elemento particular que nos inserisse no universal, isto é, na Europa,
visto que não nos preocupávamos com o Oriente e nem com o imperialismo
americano, que surgiria depois, que nesses tempos os Estados Unidos
preocupava-se ainda em se constituir como um país independente. Transformando o
indígena em signo oposto à Europa o que ocorreu em certa medida mais tarde
com o caboclo e o sertanejo almejávamos uma herança original a fim de garantir
“um lugar e uma função específicos no processo mundial de modernização”
14
.
De acordo com Célia Pedrosa, esse caráter ufanista deu a nossa literatura
um tom dominante que estabeleceu “afinidades entre o historicismo romântico e o
realismo sociológico postulados desde meados do século XIX aos anos 30 deste
século”
15
. O interesse pelas origens, conforme a autora, criou uma evocação
romântica e nostálgica do passado, representando a cultura de forma estereotipada,
a partir da descrição exótica e bucólica da terra natal. A essa imagem se cristalizou
uma idéia de nacionalismo capaz de sublimar diferenças e conflitos internos,
estigmatizando relações externas e alimentando o maniqueísmo e a xenofobia.
Friedrich Schlegel um dos principais teóricos do Romantismo define o
caráter nacional como o resultado de uma reflexão que articula “universalismo e
particularização, continuidade e transformação”
16
. Impulsionado por intenso sentido
de missão da arte, ou seja, de orientação e de mobilização coletiva, o Romantismo
dialoga com o passado a fim de compreender e valorizar as suas especificidades,
libertando-se das antigas formas e legitimando-se como um dos maiores senão o
maior movimento de renovação estética tanto no Brasil como no mundo, pois
compreendemos que a estética modernista, sobretudo em nosso país, rearticulou
seus ícones a partir de temas românticos, ou seja, alimentou-se, recriou-se a partir
14
PEDROSA,
Célia. “Nacionalismo literário”.
In:
JOBIM, José Luis (org.). Palavras da crítica
Tendências e conceitos no estudo da Literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992; p. 287.
15
Ibidem, p. 286-287.
16
Ibidem, p. 277.
18
dessa escola. A recontagem do mito indígena por Mário de Andrade, em
Macunaíma, exemplifica essa ligação, pois o autor paulista, parodiando o estilo
romântico, reconstrói o perfil do herói de forma debochada (blague modernista).
Na estética romântica, retomando elementos do passado, ressalta-se o
romance histórico, na Inglaterra, de Walter Scott; a busca por uma representação da
identidade americana, nos Estados Unidos, de James Cooper; a redescoberta dos
contos de fadas, na Alemanha, pelos irmãos Grimm; o interesse popular sob uma
visão social e utópica, na França, de Victor Hugo. No Brasil, as primeiras
manifestações de caráter nativista insinuaram-se com Gregório de Matos e Basílio
da Gama, na medida em que esses autores aludem a uma consciência da
nacionalidade. Antonio Candido, em A Formação da Literatura Brasileira, afirma que
os indícios românticos estão em Santa Rita Durão e Basílio da Gama
17
, pois será a
partir deles que surgirão as manifestações primeiras do sentimento de
nacionalidade, devido à temática do indianismo. O Arcadismo, ainda de acordo com
Candido, confirma o processo de construção da identidade brasileira, visto que o
precursor do índio brasileiro romântico será o pastor arcádico
18
.
A fase culminante da nossa afirmação, ainda de acordo com Candido, deu-
se com a Independência política e com o nacionalismo literário do Movimento
Romântico, o qual “se processou por meio de verdadeira negação dos valores
portugueses até que a autoconfiança do amadurecimento nos levasse a superar, no
velho diálogo, esta fase de rebeldia
19
. Como um dos movimentos decisivos para a
formação da inteligência brasileira como posteriormente o Modernismo –, o
Romantismo foi não um “vigoroso esforço de afirmação nacional”, mas também
um momento de construção de uma literatura “universalmente válida”, como explica
o autor em mesmo texto.
Na obra de José de Alencar, por exemplo, nasce Moacyr
filho de Iracema
e Martim
fruto de uma cultura miscigenada e resultado de uma união reveladora do
caráter conflituoso de nossa identidade: o colonizado e o colonizador; o apelo de
17
De acordo com Antonio Candido em A Formação da Literatura Brasileira, a idéia de que a literatura
deveria ser interessada foi expressa por toda a nossa crítica tradicional, desde Ferdinand Denis e
Almeida Garrett. A presença de elementos descritivos locais como traço diferencial e critério de valor
tornou-se timbre de brasilidade.
18
Antonio Candido abre a obra A Formação da Literatura Brasileira com o Arcadismo, porque é na
fase arcádica que se inicia a nossa verdadeira literatura, graças à manifestação de temas,
notadamente o Indianismo, que dominarão a produção oitocentista.
19
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1980; p. 111.
19
civilização e a saudade da pátria; a fragilidade da colônia e a supremacia do Império.
Depois da representação do nascimento de Moacyr, não é possível criar uma
concepção homogeneizadora do nacionalismo, que, como ressalta Antonio
Candido, “a contradição é o nervo da vida” e está configurada na origem do povo
brasileiro. Candido explica que
(...)
quem quiser ver a literatura em profundidade,
tem de aceitar o contraditório, nos períodos e nos autores, porque, segundo uma
frase justa, ele é o ‘próprio nervo da vida’”
20
. Ver o simples no complexo, para
parafrasear o crítico, é compreender que o contraditório também pode ser
harmônico.
Não queremos dizer com isso que a união branco-índio seja disparatada,
mas sim que a assimilação ou não dos valores europeus monta para nossos autores
uma equação insolúvel: queremos uma origem brava (índio), mas não conseguimos
nos desvincular de nossa herança européia (português). Assim, só podemos crer em
um entendimento de nacionalidade ao mesmo tempo misturado e reorganizado
constantemente. Logo, podemos afirmar que não como criar arte que não seja,
em sua essência, contraditória.
O uso abusivo e recorrente de temas de cunho nacionalista criou, no país, o
que podemos denominar de pitoresco. Em busca da afirmação da autonomia, os
autores passaram a representar a realidade física do país, pois, para eles, era na
singularidade da terra natal que se enraizavam as fontes da nossa identidade. Essa
visão de nacionalismo pitoresco foi contraposta por Machado de Assis na medida em
que o autor de Memórias stumas de Brás Cubas entendia o nacionalismo como
manifestação de temas universais e particulares.
Em “Notícia da atual Literatura Brasileira Instinto de Nacionalidade”, Machado
de Assis afirma existir, em sua época, uma preocupação demasiada com vestir as
cores do país. De acordo com o autor, não havia por que procurar o título de nossa
personalidade no elemento indígena, visto que dele não tínhamos recebido influxo
algum além de um legado “tão brasileiro como universal”
21
. Machado de Assis
explica que:
20
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins, 1969; p. 31.
21
ASSIS, Machado de. “Notícia da atual Literatura Brasileira Instinto de Nacionalidade” In: Obra
Completa, v. III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992; p. 803.
20
Não dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve
principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas
não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se
deve exigir do escritor antes de tudo é certo sentimento íntimo, que o torne
homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos
remotos no tempo e no espaço
22
.
Como explica Roberto Schwarz em entrevista
23
, Machado de Assis opunha
pitoresco romântico que tratava de índios ou regiões determinadas – a algo
impalpável e interior. O tratamento da questão nacional jamais fora uma equação
simples, e, para Machado, também era difícil encontrar uma resposta que não
tivesse um intenso sentido de contradição no seu interior. Logo, o autor de Dom
Casmurro não acredita que o nacionalismo se restrinja ao pitoresco, ou ao
”confinamento localista”, nas palavras de Schwarz, ou ao “confinamento temático”,
nas palavras de Célia Pedrosa:
Um poeta o é nacional porque insere nos seus versos muitos nomes
de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade de vocabulário
e nada mais. Aprecia-se a cor local, mas é preciso que a imaginação lhe
os seus toques, e que estes sejam naturais, não de acarreto”
24
.
Outra faceta da dialética particular e universal ocorre entre localismo e
cosmopolitismo, assinalada por Machado de Assis quando afirma que os
costumes do interior conservavam melhor a tradição nacional visto que não
estavam tão susceptíveis às influências européias do que as cidades. Nos tempos
áureos do Modernismo, essa dialética configurou-se através de dois grandes centros
culturais do país: São Paulo e Rio de Janeiro.
1.3
A
S
EMANA DE
22,
OS UNIVERSALISTAS E UMA TEORIA
Mário de Andrade declarou no artigo “Modernismo”, da obra O empalhador
de passarinhos, que o movimento iniciado em São Paulo com a Semana de Arte de
22
Ibidem, p. 804.
23
Esta entrevista pode ser encontrada na obra produzida pela SECRETARIA MUNICIPAL DE
CULTURA DE PORTO ALEGRE. Outros 500: novas conversas sobre o jeito do Brasil. Porto Alegre:
SMC, 2000.
24
ASSIS, op. cit., p. 807.
21
1922 fora “destruidor de tabus, treinador do gosto blico, arador dos terrenos”
25
.
Influenciado por um “espírito universal”
26
e pelas manifestações cubistas e futuristas,
o movimento que floresceu delineou-se com um toque de alarme e com uma
fecunda promessa no país e em sua literatura “quase adulta”
27
.
Modernidade e nacionalismo estiveram lado a lado em nossas
manifestações artísticas. É claro que os românticos não tinham a percepção de
modernidade que temos hoje, mas desde viam na Europa um modelo avançado.
O exemplo europeu tornou-se o nosso espelho; entretanto, como reflexo de outra
cultura, foi edificado, a partir dele, uma equação insolúvel: os artistas guiavam-se
pelo molde, mas não aceitavam ser imagem do outro. Dessa forma, imersos em um
raciocínio insustentável, imitavam o outro e, concomitantemente, almejavam ser
reconhecidos por ele.
Nos anos 20, a modernidade está associada à visão triunfalista de nosso
atraso e à confiança de setores das classes dominantes e da intelectualidade na
possibilidade de o país abrir seu próprio caminho”
28
. Abalando o conservadorismo da
sociedade e da arte, como esclarece Lúcia Helena, os participantes da Semana de
22, a partir do ufanismo, ajustar-se-iam ao relógio do presente, isto é, ao retomar
traços que nos diferenciassem do universal por isso particulares, e que, por serem
únicos, alcançariam o âmbito europeu poderiam ser reconhecidos pelo outro, pois
se constituiriam de forma distinta:
na interpretação dos arautos da Semana de 22, e isto está visível nas
obras que produziram, o mito da técnica vinha imbuído de uma visão
utópica não-conservadora, muitíssimo modalizada, que queria articular de
algum modo a tradição brasileira ao relógio do presente. Na vertente pau-
brasil de Oswald de Andrade, por exemplo, isso se através da fórmula
gozadora da articulação da floresta e da escola. E, na versão
marioandradina, isso ocorre através da urdidura de Macunaíma, o herói sem
nenhum caráter, que se revela uma prodigiosa alegoria da diferença, da
variação de classes, raças e etnias constituinte da cultura brasileira, mas
sem a explicação facilitadora da miscigenação
29
.
25
ANDRADE, Mário. O empalhador de passarinhos. Rio de Janeiro: Livraria Martins Editora S. A.
1972; p. 187.
26
Ibidem, p. 186.
27
Ibidem, p. 189.
28
GULLAR, Ferreira. Vanguarda e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978;
p. 47.
29
HELENA, Lúcia. “Sobre a história da semana de 22” In: MALLARD, Letícia (et al.). História da
literatura: ensaios. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994; p. 107.
22
Essa atitude salvacionista em relação ao atraso não ocorre entre os
participantes de Festa, o que denota uma atitude madura por parte do grupo, uma
vez que nenhuma solução heróica poderia nos salvar de nossa condição de país
subdesenvolvido. O que nos separava da Europa não era somente um punhado de
anos, mas a modernização, a industrialização e a história cultural do antigo
continente, assim surge um sentimento de ruptura eufórica que ”atribui à arte a
capacidade de, modernizando-se, transformar o velho mundo burguês numa espécie
de visão do paraíso (nisto tendo assumido o caráter de grande relato de
emancipação)”
30
. Por isso, podemos dizer que o Modernismo foi a ruptura com a
escola parnasiana que havia se esgotado, a releitura do nacionalismo e da função
da arte em nosso país. Oswald de Andrade acreditava que tínhamos de aceitar a
nossa literatura como ela era, ou seja, ele corrobora a crença de que alcançaríamos
a universalidade através de nossas características particulares. Essa reflexão é
também desenvolvida por Ferreira Gullar quando se refere à arte brasileira:
Essa arte não é superior à dos países subdesenvolvidos: ela é específica de
determinado país desenvolvido. Portanto, não se trata, aqui, de afirmar a
superioridade da arte nacional dos povos subdesenvolvidos, mas de
compreender que, quaisquer que sejam as suas limitações, a melhor arte de
um país subdesenvolvido é aquela que parte de sua realidade específica,
de sua particularidade, e busca através dela exprimir a universalidade, isto
é: a universalidade presente nesta particularidade, e que espresente
nela, e que nenhuma outra arte poderá exprimir – e, por isso, é uma
contribuição à experiência de todos os homens
31
.
Lúcia Helena crê que, por um lado, a ruptura produzida pela Semana foi
necessária para abalar as estruturas vigentes, mas, por outro, foi “inadequada para
que se pudesse veicular o outro tanto que então também se fazia necessário:
produzir, ao lado de uma renovação artística, uma crítica eficaz ao conceito de
modernização abraçado pela elite dirigente do país”
32
. Inundados pelos novos
padrões artísticos, os participantes da Semana se deslumbraram com as
vanguardas européias e, sob o mito do nacionalismo, mostraram-se incapazes de
refletir de forma madura sobre a nossa condição de país subdesenvolvido. Isso
ocorreu principalmente porque os jovens artistas de 22 não tinham o distanciamento
histórico e crítico necessário para avaliar a situação real do país. O que foi feito mais
30
Ibidem, p. 105.
31
GULLAR, op. cit., p. 83.
32
HELENA, op. cit.,p. 111.
23
tarde, nos anos 30, por Graciliano Ramos, Raquel de Queirós, José Lins do Rego,
entre outros.
Novamente, como no Romantismo, a equação montada em torno da
nacionalidade é contraditória e reducionista. O movimento de 22 cai na mitificação
do nacionalismo quando tenta dar conta de nosso atraso. Nesse sentido, se faz
necessário examinar as contradições internas do país para construir um projeto de
forma satisfatória, definindo e redefinindo, por exemplo, o que entendemos por
“realidade nacional”.
Temos nos referido aqui à realidade nacional, mas é necessário também
tentar defini-la. Do mesmo modo que a realidade internacional, como vimos,
é expressão das contradições entre as particularidades nacionais, devemos
ver também a realidade nacional como resultante da interação de elementos
diversos, de fatores regionais, das contradições entre zonas desenvolvidas
e subdesenvolvidas, entre a cidade e o campo, da luta entre as classes
sociais, etc. Se o a olhamos assim, cairemos na mistificação do
‘nacionalismo’ equivalente à mitificação do ‘internacionalismo’ que
denunciamos
33
.
Um termo bastante recorrente na época tanto entre os modernistas
paulistas quanto entre os cariocas será “brasilidade”. Entretanto, este vocábulo
não conta de definir “tal sentimento íntimo”, e, para ambos os grupos, o conceito
do que é ou não tipicamente nacional mostra-se vago. Para os participantes de
Festa, o primitivismo era uma tentativa de assimilar a brasilidade a partir de
elementos pitorescos
que eram vistos como materialização de uma leitura
reducionista do nacionalismo
, pois maximizava o que era exótico. Esta foi a visão
apresentada também por Machado de Assis no artigo comentado nesta
dissertação. Entretanto, para os adeptos de Cendrars, o primitivismo marcava
mesmo a distinção, e a diferença éramos nós:
O primitivismo que na França aparecia como exotismo explicaria Oswald
mais tarde – era para nós, no Brasil, primitivismo mesmo. Pensei, então, em
fazer uma poesia de exportação e não de importação, baseada em nossa
ambiência geográfica, histórica e social. Como o pau-brasil foi a primeira
riqueza brasileira exportadora, denominei o movimento Pau-Brasil. Sua
feição estética coincidia com o exotismo e o modernismo 100% Cendrars,
que, de resto, também escreveu conscientemente poesia pau-brasil
34
.
33
GULLAR, op. cit., p. 95.
34
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil – Era Modernista. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986; p.
50.
24
Além de se contraporem a esse posicionamento, os participantes de Festa
criticaram os modernistas paulistas também pela assimilação acrítica das
vanguardas. Contudo, a relação entre passado e presente é tensa para todos. O
grupo de Festa dialoga tanto com os simbolistas Cruz e Sousa é louvado pelo
Mensário, assim como Antônio Nobre; e o movimento é visto como um instante de
revelação e de complexificação da inteligência quanto com os românticos
lembremos que há uma publicação em homenagem a Alencar
35
, e a figura do vate é
reiterada no decorrer do Periódico
36
.
Sabemos que a reflexão em torno da questão nacional sempre rememora o
diálogo entre tradição e modernidade. Não os participantes da Semana de 22,
mas também os modernistas do Rio de Janeiro parecem retomar embora o estilo
missioneiro seja mais evidente em Festa aquele dom de mostrar algo obscuro na
atualidade para todos aqueles que não conseguem enxergar. Para os colaboradores
do Periódico, essa condição de vate ou profeta alcança ainda caráter religioso.
Benedito Nunes em Introdução à filosofia da arte explica que:
O delírio do poeta maníaco a quem se atribui, ao lado de adivinhos,
augures, profetas e curandeiros, a condição de vate, o que lhe confere um
status religioso – o delírio do poeta, transmitindo-se aos seus ouvintes,
torna-os entusiastas, isto é, receptivos àquelas verdades que, celebradas e
cantadas pela poesia épica e lírica, despertam a recordação da beleza
universal e imperecível, já fruída pela alma no reino das essências, de onde,
um dia, se apartou para fazer-se prisioneira do corpo. O efeito superior da
Poesia é justamente o de instigar a lembrança da beleza externa, que a
contemplação dos belos corpos também pode despertar, e que, segundo a
notável imagem de Platão, reacendendo o desejo infinito do Belo, que se
chama Amor, reimpluma as asas da alma. A fim de prepará-la para o vôo de
retorno ao mundo inteligível, sua pátria de origem
37
.
Ferreira Gullar, ao afirmar que “o poeta, portanto, não cria, não inventa, mas
apenas diz, mostra o existente existindo, e consegue isso por revelar,
simultaneamente, o que existe enquanto experiência particular e enquanto
experiência geral do homem”
38
, completa essa visão. Esse diálogo, entretanto, entre
particular/universal, tradição/modernidade, reflete um caráter disparatado para os
35
uma edição de Festa em homenagem a Alencar que data de dezembro de 1927. Fazem parte
desta publicação: Henrique Abílio, Brasílio Itiberê, Andrade Muricy, Cecília Meireles, Tasso da
Silveira, Zagus Ferraz, Carlos Drummond de Andrade, Barretto Filho, Francisco Karam, Adelino
Magalhães, Wellington Brandão e Correia Dias.
36
Todos os grupos negam o tom parnasiano, mas dialogam com outras tendências. Uns, como Festa,
almejam um nacionalismo menos pitoresco; outros, como os paulistas de 22, desejam uma ruptura
mais brusca com a tradição e pintam com mais intensidade as cores locais.
37
NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. São Paulo: Ática, 1991; p. 24-25.
38
GULLAR, op. cit., p. 97.
25
diferentes grupos. Observemos o relato de rio de Andrade abaixo como
exemplificativo das confusas convicções da época.
A Semana marca uma data, isso é inegável. Mas o certo é que a pré-
consciência primeiro, e em seguida a convicção de uma arte nova, de um
espírito novo, desde pelo menos seis anos viera se definindo... no
sentimento de um grupinho de intelectuais paulistas. De primeiro foi um
fenômeno estritamente sentimental, uma instituição divinatória, um... estado
de poesia. Com efeito: educados na plástica histórica’, sabendo quando
muito da existência dos impressionistas principais, ignorando zanne, o
que nos levou a aderir incondicionalmente à exposição de Anita Malfatti,
que em plena guerra vinha nos mostrar quadros expressionistas e cubistas?
Parece absurdo, mas aqueles quadros foram a revelação. E ilhados na
enchente de escândalo que tomara a cidade, nós, três ou quatro,
delirávamos de êxtase diante de quadros que se chamavam o “Homem
amarelo”, a “Estudante russa”, “A mulher de cabelos verdes”. E a esse
mesmo “Homem amarelo” de formas tão inéditas, então, eu dedicava um
soneto de forma parnasianíssima... Éramos assim
39
.
Diferentemente dos modernistas paulistas na tentativa de apresentar uma
arte que fosse nacional e universal –, os colaboradores da Revista procuram traços
na metafísica que diferenciem o nosso sentimento de nacionalidade. Preocupados
com “certo sentimento íntimo” que nos distinguisse, Festa apresenta um
nacionalismo universalista em contraposição aos paulistas, porque quer inserir a
nossa literatura no âmbito universal a partir do sentimento de que a arte deve
explicar as suas nacionalidades não em face de si mesmas, mas em face do
universo, ou seja, precisa formar uma equação na qual uma realidade mais total e
menos local seja incluída.
Essa ânsia metafísico-religiosa dialoga com elementos arcaicos da filosofia
medieval. De acordo com Benedito Nunes, essa herança – valor metafísico da arte
seria encontrada já nos filósofos medievais de Plotino a São Tomás de Aquino
(século II a.C a III d.C.).
Plotino, conforme veremos, concedeu à Arte uma importância metafísica e
espiritual que ela não poderia mais ter para os pensadores cristãos,
propensos a considerá-la objeto mundano, estranho à índole das questões
religiosas que os preocupavam, quando não indigna de conhecimento,
porque contrária, pelas vinculações com a matéria e com a sensibilidade, ao
ascetismo evangélico, infenso ao mundo e suas pompas, à carne e suas
solicitações sensíveis
40
.
39
ANDRADE, Mário. “O movimento modernista” In: Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo:
Martins Editora, 1974; p. 232.
40
NUNES, op. cit., p. 9.
26
Promovendo uma filosofia da arte que reflita sobre o seu valor na
modernidade, os artistas e ensaístas de Festa procuraram na essência artística certo
caráter que denotasse nacionalidade, que essa é uma das formas de reconstituir
as origens do ser e de religá-lo às suas raízes metafísicas. Essa concepção
relaciona-se com o idealismo de Schelling e de Hegel:
Antecipando-se à própria filosofia, a intuição artística pode reconstituir o
Absoluto. Começando pela consciência e pelo sujeito quando o artista
concebe a obra, passando a realizá-la em harmonia com as suas idéias e
sentimentos a intuição artística termina no inconsciente e no objeto, pois a
obra, nascida desse esforço consciente, conquista uma objetividade, uma
presença exterior, como se tivesse emergido da própria Natureza, ela
abrange, portanto, as duas modalidades de ser que constituem o Absoluto.
E é, por isso, um instrumento filosófico, guiando-se a uma atitude
metafísica, tradicionalmente reservada à especulação racional, e onde as
ciências não chegam
41
.
Essa é a configuração encontrada por Festa para cantar a “realidade total”,
alargando horizontes e tentando compreender o frêmito profundo da modernidade
que, sem dúvida, inquieta seus participantes, pois o artista ou ensaísta questiona-se
sobre a função da arte nos ditos tempos modernos. O grupo do Mensário também se
interroga, como os paulistas, sobre o caráter nacional da arte, embora sob
roupagens universalistas, Festa vislumbrou o antigo mito fundador. Em Definição do
Modernismo Brasileiro, Tasso da Silveira esquematiza os alicerces do projeto
estético do grupo em quatro pontos principais, conforme destaca Coutinho
42
:
velocidade, totalidade, brasilidade e universalidades.
Margarida Maria Gouveia afirma na obra Cecília Meireles uma poética do
“eterno instante” que, assim como todo o modernismo ocidental, o brasileiro também
reúne duas correntes divergentes: “o modernismo de vanguarda regido pelo signo
da ruptura e pela intransigente subversão de valores – e o de herança simbolista”
43
visto como um neo-simbolismo ou s-simbolismo. Mantendo estreita relação com a
tradição e construindo uma arte filosófica e religiosa que transite do particular para o
universal e vice-versa, o modernismo de Festa formulou a sua compreensão de
nacionalismo brasileiro a partir de uma teoria das negativas. Lembremos do capítulo
41
NUNES, op. cit., p. 52-53.
42
Tasso da Silveira Apud COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil – Era Modernista. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1986; p. 116. Essas concepções de Tasso da Silveira foram publicadas em Festa em
janeiro de 1928, número 4.
43
GOUVEIA, Margarida Maia. Cecília Meireles – uma poética do “eterno instante”. Portugal: Imprensa
nacional – Casa da moeda, 2002; p. 19.
27
“Das negativas”, que encerra o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da
nossa miséria”.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o narrador resume a sua vida a
partir do que ele não fez, do que ele não foi. Em Festa, é possível definir a
concepção de modernidade, sobretudo de nacionalismo que o nacionalismo não
cabe em exemplificações simples, mas é um processo dialético e contraditório em
sua origem –, também a partir da negação. O nacionalismo de Festa poderia ser
explicado como o indeferimento ao primitivismo se este não apresentasse uma
origem notadamente metafísica –; ao localismo entende que o artista não
necessita dar à arte brasileira um caráter pitoresco –; ao materialismo – cria em uma
função espiritual e religiosa para a arte.
A compreensão dos pressupostos estéticos de Festa ficará mais clara no
decorrer da dissertação à medida que examinarmos o discurso dos principais
ensaístas do Mensário e exemplificarmos com os textos de seus basilares artistas,
pois assim assimilaremos seu ideário e as discussões sobre a nacionalidade e o
Modernismo da Revista, seus impasses ou contradições.
1.4
O
ALVITRE ESTÉTICO DO
M
ENSÁRIO
Festa apresenta uma visão totalista e universalista da arte. Os seus
colaboradores o acreditavam em ruptura brusca como proclamavam os
primitivistas, mas em continuidade. Não queriam construir a modernidade negando a
tradição, mas dialogando com ela, utilizando-se das nossas origens e da nossa
história cultural, sem aguilhoar-se ao pitoresco. A inovação não deveria se edificar
em contraposição ao velho, mas como um caminho para uma literatura que
ultrapassasse o regional e atingisse o universal, opondo-se à excessiva cor local.
Festa almejou por uma arte sem fronteiras, fruto da crença no espiritualismo como
elemento redentor, como podemos observar no poema-manifesto tecido por Tasso
da Silveira em agosto de 1927:
28
A arte é sempre a primeira que fala para anunciar o que virá.
E a arte deste momento é um canto de alegria.
uma reiniciação na esperança,
uma promessa de esplendor.
44
O crítico Henrique Abílio, em artigo denominado “A modernidade
universalista da arte”, publicado em Festa no mês de agosto de 1927, defendeu a
idéia de que arte não devia se restringir a limites geográficos, mas integrar-se em
uma comunhão universalista. Nesse sentido, de acordo com o crítico, a arte seria
verdadeiramente moderna se ultrapassasse os limites do tempo e do espaço. As
nacionalidades seriam apreendidas, portanto, não a partir de si mesmas, mas do
universo.Tasso da Silveira, em artigo de abertura da Revista de agosto de 1927,
apresenta a concepção de que a função do artista é a de missioneiro, isto é, aquele
que revela a Beleza da vida para os demais.
O artista canta agora a realidade total:
a do corpo e a do espírito,
a da natureza e a do sonho,
a do homem e a de Deus,
canta-a, porém, porque a percebe e compreende
em toda a sua múltipla beleza,
em sua profundidade e infinitude.
(...)
O artista voltou a ter os olhos adolescentes e encantou-se novamente com a
Vida:
Todos os homens o acompanharão!
Poesia e modernidade foram temas bastante abordados nas páginas da
Revista. Em artigo denominado “A crise da prosa”, Andrade Muricy afirma que a
poesia podia vir a ser uma grande aliada da modernidade, que exigiria menos
tempo para ser apreendida (não-concebida). O crítico aponta que, no mundo
moderno, a síntese tomaria conta na escrita, deixando claro que síntese não
significaria forma curta, mas rápida e capaz de atingir velozmente o essencial. Era
necessária, dessa forma, a criação de uma prosa que se entrelaçasse à velocidade
do mundo moderno. Para isso, Muricy cita como exemplos a ser seguidos: Proust,
Joyce e Cocteau.
44
As datas dos artigos citados são apresentadas no corpo do trabalho, quando fizermos referência a
outro ensaio também será explicitado no corpo do texto. Todos os artigos foram retirados da edição
fac-similada em comemoração ao cinqüentenário da revista Festa, organizada por Mário Camarinha e
Lúcio Abreu e fotografada a partir do exemplar doado por Andrade Muricy ao Museu Literário da
Fundação Casa de Rui Barbosa.
29
Ainda nesse artigo, Muricy esclarece que a arte deve estar em perfeita
comunhão com a sica. Para explicar seu raciocínio, aponta para a harmonia de
Proust com Stravinsky. A arte tem de ser construída e planejada e,
conseqüentemente, revelar uma arquitetura própria. Toda arte entrelaça elementos
da música e da poesia, uma vez que ritmo e harmonia são essenciais à edificação
artística. Isso não quer dizer que Festa defendesse uma métrica rígida em seus
versos; entretanto, não abandona totalmente antigas formas.
O horizonte comum visualizado pelos participantes da Revista entre poesia
e música demonstra este caráter de união dos elementos da tradição com os da
modernidade. O poeta Walt Withman, por exemplo, aparece no Mensário em dois
poemas traduzidos e é comumente citado por diversos colaboradores do Periódico,
sobretudo por Andrade Muricy. Conforme afirma Alfredo Bosi
45
: “O ritmo de Whitman
é religioso e epicamente plebeu, ‘mistura notável de Bhagavad Gita e New York
Herald’, como o definiu Emerson”, ou seja, é um bom exemplo do entrelaçamento de
elementos arcaicos e religiosos com modernos e citadinos, miscelânea
representativa do ideário do grupo.
Festa critica o primitivismo integral, pois não crê que as tradições podem ser
apagadas. Em artigo de janeiro de 1929, Carlos Chiacchio demonstra uma visão
bastante recorrente do Mensário: o nexo da continuidade deve ser mantido, afinal,
“nós não éramos mais selvagens se digladiando na selva”. Para o crítico, o elo com
a tradição é necessário, pois sem ele não “tradição renovada, criadora, militante,
nem teríamos coisa alguma”.
Não povos sem tradição. O próprio sentido de viver é uma tradição. Se
viver é continuar, é permanecer, é transmitir, na tradição se circunscreve a
vida. A vida nacional de cada povo na vida universal de cada época. Quanto
a nós, não sei como desconhecer uma tradição, uma vida, uma
continuidade. Belas ou feias, boas ou más, tristes ou alegres, as origens da
nossa tradição, resultante somática de três raças reunidas no momento em
que cresciam para o desejo de imortalidade, não que repudiá-las em
nome de outras probabilidades de beleza que podem existir, como existem,
para outros povos, mas, para nós, não tem préstimo, porque contrárias às
leis do nosso desenvolvimento na história.
(...)
A cultura universalista refina a sensibilidade local.
Mais adiante no mesmo artigo, Carlos Chiacchio critica as outras instâncias
do Modernismo, alertando que a nova estética deve seguir uma orientação que
45
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; p. 90.
30
busque o essencial do Brasil, ou seja, procure um direcionamento sem
subserviências, amparos e patronos. Quando se refere a patronos, Chiacchio faz
menção, sem dúvida, a Graça Aranha, padrinho da semana de 22, e aproveita o
mesmo artigo para acusar os demais modernistas de serem
servidores das
vanguardas européias. Escapando aos limites da crítica honesta e educada, o
ensaísta termina denominando-os de “imbecis desritmados”.
O nacionalismo, entretanto, mote tão incurável do momento é discutido
no Mensário em artigo de dezembro de 1927. Nesse texto, Henrique Abílio traça um
excelente panorama da realidade brasileira de nossas artes, afirmando que as raízes
do nosso nacionalismo estão “nas detestáveis sextilhas lusas”, de Gonçalves Dias,
ferindo assim um ângulo contraditório da nossa literatura, que o autor romântico
não compreenderia o ambiente virgem de nosso país. Para o autor, “a alma incerta
do Brasil ressentia-se, nesse ciclo incipiente da sua evolução, da influência
absorvente da metrópole”
46
.
Para Henrique Abílio, o erro de Gonçalves Dias estava, sobretudo, na
ligação do homem com a terra, e acrescenta que “as numerosas citações
estrangeiras dos seus poemas lhe atestam a perplexidade da atitude, assim, por um
lado, a ânsia de realidade, por outro, a falta de autonomia brasileira na expressão do
fenômeno”. Antonio Candido afirma anos mais tarde, na Formação da Literatura
Brasileira, que Gonçalves Dias, entre os colaboradores nada revolucionários de
Minerva Brasileira (1843-1844) e Niterói (1836), é aquele que recebe maior destaque
e que possui maior inspiração e consciência artística em seu período.
A crítica aos padrões impostos pela gramática também surge no artigo
citado de Abílio e em outros textos do Periódico, pois o autor afirma que o Brasil
“pôs-se a adorar imbecilmente um idioma velho e tardo, vendo nele um ídolo
intangível, sagrado”. E acrescenta que “tudo o que de superficial na nossa
literatura vem, sobretudo, da incapacidade da língua de exprimir a nossa realidade”.
O projeto de construir uma língua brasileira era simultâneo ao de construir uma
literatura que representasse o nosso povo, e esse projeto origina-se de forma mais
sólida com José de Alencar. Mário de Andrade explica em Aspectos da Literatura
46
Esse é o texto de abertura do periódico de número 3 de dezembro de 1927.
31
Brasileira que, apesar das aparências e da bulha, todos continuariam, como antes,
escravos da gramática lusa
47
.
Em janeiro de 1928, Tasso da Silveira escreve um artigo intitulado “A
enxurrada”, definindo algumas das características da nova arte para configurar o
projeto de Festa. O autor compreende que a hora era de renovação, mas não de
uma renovação que representasse apenas ruptura, mas que voltasse às raízes
cadencias do universalismo, e cita, como exemplo: a poesia de Cecília Meireles.
Nessa década, a autora publica os livros Nunca Mais... e Poema dos
Poemas (1923), Baladas para El-Rei (1925) e nticos (1927) que configurarão as
raízes do seu lirismo. A autora participa das outras duas revistas em que muitos dos
colaboradores de Festa teriam contribuído. Em agosto de 22, Árvore Nova
apresenta Cecília Meireles e, em janeiro de 24, surge Terra do Sol, que também
obteve a sua participação.
A arte da hora exigia, de acordo com Tasso da Silveira, muita sensibilidade,
porque não trazia a música costumeira que podia enganar os ouvidos. A seiva
criadora da arte estaria nas “galerias subterrâneas do espíritoe constituir-se-ia
como uma draga dos sentimentos eternos. Ainda nesse artigo, são desenvolvidas as
concepções sobre: velocidade, totalidade, brasilidade e universalidade para aplicar à
arte moderna.
Tasso entende velocidade como velocidade expressional, capaz de
condensar a expressão fortemente emotiva. Para isso, é necessário evitar também
as transposições bruscas e audazes, os terrenos já batidos do espírito. O inesperado
e o surpreendente são partes igualmente importantes dos elementos da nova arte.
Por totalidade, o crítico compreende a capacidade do artista em apreender a vida,
transformar e penetrar em todas as coisas, “porque tem uma visão que lhe é própria.
Porque tem um Desejo que é seu. E esta visão abrange a totalidade. E este
desejo se tornou infinito”.
Brasilidade, como afirma Tasso, é “fazer viver, pela arte, mais luminosa do
que tudo, a realidade brasileira”. O voltar às origens é fundamental para se
desenvolver a brasilidade, entretanto o crítico não compreende a volta às origens
como os primitivistas, inclusive escarnece do grupo escrevendo que eles teriam
adquirido o cacoete de viver a dizer aos gritinhos: “Precisamos começar do
47
ANDRADE, Mário. Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins Editora, 1974; p. 244.
32
princípio”! Para o ensaísta, voltar à origem é retornar ao espiritual, “às indicações do
que somos, do que viremos a ser, dos ritmos que nos são próprios de nossa música
profunda, da beleza que, por ser nossa, mais altamente poderemos realizar?”. Ainda
de acordo com Tasso da Silveira em outro artigo, datado de março de 1928 –, na
Europa
os modernistas são puros índices de originalidade individual, em nossa
terra, as três grandes correntes do modernismo querem, cada uma à sua
maneira, exprimir o Brasil, que ficou sendo para elas o quase único
maravilhoso motivo da beleza.
Em texto de janeiro de 1929, “Batuque p’ra começar”, Tasso afirma, na
primeira página da última edição da primeira fase, que para se atingir a total
realidade interior é fundamental que o artista se desprenda de toda e qualquer
manifestação de nacionalismos estreitos, uma vez que
Nacionalismo é critério comercial e político.
Longe, também, os universalismos dissolventes.
Não existe o homem universal. Mas apenas o homem de uma raça, ou de
um povo.
Brasilidade, sim, porém num sentido profundíssimo.
Brasilidade universalista, se assim se pode dizer.
A nossa realidade particular – porque foi o quinhão que Deus nos deu.
E porque através dela poderemos chegar à compreensão da realidade
total do mundo.
Esse sentimento de espiritualidade ou de totalismo surgiu, de acordo com
Tasso, como uma reação às agruras da guerra. O ímpeto ardente de renovação
dominou a arte, porque o choque da guerra foi muito profundo, estremecendo todas
as bases do mundo, inclusive as estéticas. Tornou-se imprescindível, então,
despertar para uma nova realidade, foi preciso ansiar por Deus, que
presenciávamos a falência e a degradação do homem. Miguel Sanches Neto
48
acrescenta que os participantes das revistas espiritualistas ou totalistas da década
de 1920 estavam inseridos em um ideário místico centrado nos valores do eu como
uma forma de superação do mundo industrial que estava se formando.
Para definir universalidade, Tasso formula um questionamento: “Vocês
compreenderam que nestas condições seremos contados como uma realidade
viva no mundo?”. Um dos entrelaçamentos mais significativos para o entendimento
48
SANCHES NETO, Miguel. “Cecília Meireles e o tempo inteiriço”. In: MEIRELES, Cecília. Poesia
Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001; p. XXii a LiX.
33
dessa proposta está na ligação entre a arte e o divino, explicitada por Tasso da
Silveira em fevereiro de 1928, no artigo “Alegria criadora. Nesse texto, o crítico
explica que a originalidade do artista deve ser de origem divina, ou seja, se Deus é o
senhor de todas as formas, de todos os ritmos, de todas as cores, a arte tem de unir-
se ao absoluto e a essa inspiração criadora.
A ansiedade pelo absoluto acaba constituindo-se religiosa. A união entre
arte e religiosidade é transformada em um exercício artístico que se configura como
um caminho para o autoconhecimento, uma vez que dessa forma se pode vir a
compreender a realidade. Vislumbremos algumas palavras de Goethe, citadas por
Hugo Friedrich que, em certa medida, mostram como o artista percorre a trajetória
do apreender a realidade à indagação metafísica sobre a existência:
toda audácia curva-se a uma melodia legítima”; as catástrofes transformam-
se em bênçãos; aquilo que é comum é exaltado; o benefício de uma poesia
é “que ela ensina a compreender a condição do homem como desejável”;
ela tem a “serenidade interior”, um olhar feliz para o real”, e eleva o
indivíduo ao universalismo humano
49
.
O artista, diante do milagre da vida, anseia pelo verdadeiro e, para atingi-lo,
caça as imagens do mundo e enche-as de sonhos, pois esse é o percurso que
levará ao divino. Os grandes artistas se caracterizam, ainda no mesmo artigo de
Tasso da Silveira, por
um conjunto de processos inteiramente seus, por uma inconsciente escolha
de certos ritmos, de certas formas e de certas cores, é porque o homem não
tem a sensibilidade infinita de Deus, e pode sentir através de um prisma
determinado e só na limitada linguagem que lhe é própria é capaz de
transmitir aos demais a sugestão dos sonhos.
A busca pela verdade será a procura messiânica desenvolvida pelo artista
através do desvendamento do seu mundo de sombras. Estas se formam no fundo de
todo o ser, de tudo que pertence ao ente: os pensamentos, seus fragmentos e suas
sugestões que vêm de todas as partes, principalmente da religiosa que “ilumina
infinitamente mais do que a ciência”. A crítica à ciência é compreendida como
condenação ao materialismo.
49
GOETHE Apud FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978; p.
20.
34
O autor de “Alegria criadora”, no entanto, sabe que a fé oferece poucas
certezas aos seres, uma vez que não apresenta conhecimentos objetivos. Apesar
disso, o artista mensageiro da palavra de Deus esboçará a sua inquietação mais
profunda, o seu desejo mais ardente de conhecimento de mundo e a sua sede de
absoluto através de uma composição de arte que apresente, como foi estudado
nesta dissertação, um “certo sentimento íntimo que o torne homem do seu tempo e
do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”
50
.
O discurso dos principais colaboradores de Festa não se mostra
homogêneo, portanto, a partir de seus convívios, de suas influências e das
discussões sobre Modernismo e sobre o caráter nacional da arte. A seguir,
configuraremos o projeto estético do Mensário delineado a partir do discurso crítico
de seus principais ensaístas.
50
ASSIS, Machado de. “Notícia da atual Literatura Brasileira Instinto de Nacionalidade” In: Obra
Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992; p. 804.
35
2.
O
DISCURSO
DOS
PRINCIPAIS
COLABORADORES
A partir do desvendamento do discurso crítico dos principais colaboradores
de Festa Andrade Muricy, Tasso da Silveira, Henrique Abílio e Barretto Filho
analisamos neste capítulo como se edificou o projeto estético do Mensário.
Esmiuçamos a visão de Muricy o grande teórico do grupo sobre o público, sobre
os estetas de seu tempo e sobre temas polêmicos, tais como o da brasilidade, a fim
de que esse discurso nos auxilie a delinear as discussões da época e a configurar o
conceito de modernidade apreendido pelo grupo. Para isso, é estudada a
enxurrada
51
de idéias que delineia o aparato crítico do missioneiro e membro
fundador de Festa: Tasso da Silveira. A apreensão em representar a brasilidade
como elemento importante da língua é trabalhada por Henrique Abílio. Para
aferventar ainda mais os debates do grupo, é estudado o discurso crítico de Barretto
Filho que delineia as influências e dissonâncias entre Festa e outros grupos.
2.1
A
NDRADE
M
URICY
O CRÍTICO
José Cândido Andrade Muricy figura relevante de Festa na sua primeira
fase –, ensaísta, professor de História e Estética Musical, nascido em 4 de dezembro
de 1895 e falecido em 9 de junho de 1984, é autor de Literatura nacionalista (1916
ensaios), Alguns poetas novos (1918 ensaios), Emiliano Pernetta (1919
ensaios), O Suave convívio (ensaios críticos 1922), A Festa Inquieta (1926 –
romance), Silveira Neto (1930 ensaio), A Nova Literatura Brasileira (1936 crítica
e antologia), Panorama do Movimento Simbolista (1952 estudo histórico-crítico e
antologia), entre outras obras. Esta última é considerada por João Alexandre
Barbosa como
principal repositório do Movimento Simbolista Brasileiro, quer pela reunião
de um impressionante número de poetas e poemas, quer pelas notas
elucidativas do Organizador que, juntamente com a sua Introdução crítico-
histórica, constitui, ainda hoje, a grande fonte para o estudo daquele
momento da Literatura Brasileira.
52
51
Em janeiro de 1928, Tasso da Silveira escreve um artigo denominado “A enxurrada” que será
estudado no decorrer do trabalho.
52
BARBOSA, João Alexandre In: MURICY, Andrade. Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro.
São Paulo: Perspectiva, 1987; p. XVIII.
36
O texto que inaugura a participação de Muricy em Festa denomina-se “A
crise da prosa”, datado de agosto de 1928. Nesse ensaio, o crítico mostra-se
preocupado com a situação da prosa de seu tempo sobretudo a brasileira –, pois,
de acordo com suas considerações, ela estava em crise em relação à poesia, após o
surgimento dos livros de Proust e Joyce
53
, devido à velocidade promovida pela
industrialização que tomava conta do mundo moderno e ditava as novas regras.
Essa preocupação de Muricy está presente em muitos de seus textos e desencadeia
a discussão promovida pelo crítico, ainda nesse mesmo ensaio, sobre os conceitos
de análise e síntese (na poesia haveria o predomínio da síntese, enquanto, na
prosa, o da análise).
Conforme essa visão, a poesia está com seus domínios alargados na
modernidade, enquanto a prosa encontra-se circunscrita ao romance de aventuras e
ao cosmopolitismo do cinema, salvo, é claro, os últimos “espetáculos em extensão”,
para utilizar as palavras do crítico, que compõem a literatura de Proust e Joyce.
Uma das explicações apontadas por Muricy para a problemática crise da
prosa é “a falta de tempo material para realizações mais insistentes e interativas”, ou
seja, diferente da prosa, a poesia era capaz de cristalizar os momentos velozes do
instantâneo com as projeções do subconsciente de maneira mais dinâmica e
emotiva e através de formas mais variadas. Logo, a poesia atingiria o efêmero mais
rapidamente; entretanto, é importante ressaltar que, embora a poesia pudesse ser
lida mais rapidamente que a prosa, isso não quer dizer que ela fosse apreendida
com a mesma velocidade.
Há, entre os colaboradores, sobretudo em Tasso, a preocupação em tecer
uma arte que atinja a totalidade, o universal. Essa inquietação também é latente nos
ensaios de Muricy, visto que o crítico salienta a necessidade, para atingir-se uma
totalidade, de a arte harmonizar-se como em uma sinfonia, em que a ação interior e
a ação exterior devem estar entrosadas em uma atividade contínua. Assim, de
acordo com o também professor de Estética Musical, a música estava dando conta
dessa fusão a partir das composições de Stravinsky e Schoenberg, pois os
compositores revelariam estados de emoção que comunicariam ou sugeririam de
53
Com a velocidade do mundo moderno, os últimos escritores, conforme explica Muricy, de textos
“em extensão” são Ulisses, de James Joyce, publicado em 1922, e Em busca do tempo perdido, de
Marcel Proust, publicado entre 1913 e 1927.
37
forma intensa e extensa em contraposição a algumas páginas de humor. Em outros
momentos, nos ensaios de Muricy, o humor é criticado como um ataque à blague, ao
poema-piada de Oswald de Andrade e de outros primitivistas. O ensaísta defende
que o humor na literatura esteriliza a arte. Estamos nos referindo, evidentemente, ao
humor, não à ironia, graça do intelecto, pois esta não está sujeita ao riso fácil ou ao
deboche.
Outra preocupação latente no ensaio “A crise da prosa” é a de que a
literatura não deve sujeitar-se a outras artes. Quando Muricy afirma isso, ele não se
contrapõe propriamente à justaposição das diferentes artes, a preocupação mais
evidente parece ser em relação ao cinema, demonstrando, talvez, o receio do crítico
de que, com o passar dos anos, aquele englobasse a literatura, e essa, por sua vez,
deixasse de exercer qualquer função na sociedade. O sentimento de ansiedade está
presente também no texto “Posição do narrador no romance contemporâneo”, de
Theodor Adorno, evidenciando, desse modo, a aflição provocada pelo avanço da
modernidade em relação ao futuro da literatura: “Assim como a pintura perdeu
muitas de suas funções tradicionais para a fotografia, o romance as perdeu para a
reportagem e para os meios da indústria cultural, sobretudo para o cinema”.
54
O crítico da Escola de Frankfurt também aponta à importância de se estudar
a literatura sob pressupostos literários, ou seja, utilizar a teoria da literatura para se
estudar literatura. Discussão parecida em defesa de seu objeto artístico fizera
Leonardo da Vinci quando reivindicara para as artes visuais um aparato teórico
exclusivo, liberto da teoria literária.
Nessa conjuntura, o periódico Festa da primeira fase, que tinha subtítulo
Mensário de pensamento e de arte, demonstra a preocupação de seus
colaboradores com a primazia da teoria como foi explicado. E isso é ressaltado,
na crítica de Muricy, quando ele afirma em “A crise da prosa”:
Toda arte construída contém arquitetura, porém arquitetura própria; toda
arquitetura contém poesia e música, visto lhe serem essenciais o ritmo e a
harmonia arquitetônicos.
Logo, o poeta ou artista, de acordo com a visão do crítico, é um artesão, ou
seja, ainda que vislumbremos no manifesto da Revista a percepção de que o poeta
54
ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. Rio de Janeiro: Editora 34 Duas Cidades, 2003; p.
56.
38
ou o artista é com um profeta, um visionário, ressaltando os aspectos metafísicos e
religiosos da arte e do papel do artista, nada há sem trabalho; não há arte sem teoria
e percepção estética
55
.
Outra preocupação recorrente nos ensaios de Muricy refere-se à velocidade
do mundo moderno e suas conseqüências para a arte. A compreensão da
velocidade surge intimamente imbricada com as concepções de análise e de síntese
desenvolvidas quando o crítico explica as diferenças entre prosa e poesia de seu
tempo na arte moderna. O desafio da arte moderna, a partir da perspectiva
muriciana, consiste em alinhavar essas duas percepções. A arte deve ser sintética,
pois atinge de forma rápida o essencial da obra artística que pode, por sua vez, ser
muito complexa e até extensa, mas também analítica, ou seja, “substanciosa e
eficaz para o efeito artístico”. O ensaísta defende um princípio de eficácia para a
arte.
A função de análise, desse modo, engloba os elementos de construção do
texto, enquanto a de síntese representa a velocidade com que os aspectos da
análise se relacionam para atingir a rapidez necessária. A forma apontada por
Muricy para gerar a velocidade indispensável provém do espírito do artista. Com
isso, o crítico ressalta a autonomia que cada artista pode ter em relação a sua visão
de arte. A poesia é apontada como a arte do momento atual, uma vez que, de
acordo com o crítico, ela é a salvação para o espírito aniquilado pelo materialismo e
pela mecanização. Ainda em mesmo artigo observamos que:
(...) parece convir particularmente ao espírito deste momento, ao triunfo
atual, obsoleto, do efêmero, da máquina amanhã obsoleta e atrasada, do
dinamismo exterior, que amanhã terá extenuado o homem, e o terá levado a
uma irresistível ânsia pelas cristalizações em que a eternidade da natureza
humana terna sua parte.
O que estava prevendo o crítico para o objeto artístico pode direcionar-se
diretamente para a organização da sociedade, uma vez que a arte a representa.
Muricy estava clamando, portanto, pela preservação dos valores religiosos ou
metafísicos da arte, que sem eles a arte e a modernização cansariam o homem.
55
Muricy não pensa em trabalho artístico como idealizara Olavo Bilac ao personificar o ourives da
poesia; o crítico refere-se à importância da consciência do artista de seu projeto estético, da sua
função social e da construção de seus diálogos com a tradição, mesmo que para negá-los, como
observamos em outros ensaios.
39
Desse modo, o ensaísta entrevê aspectos da modernidade observados pelos
modernistas de 22 de forma tão adolescente, porque não-crítica, visto que não eram
suficientes para nutrir os anseios da arte moderna e, sobretudo, do homem moderno
que se tornava escravo da máquina e do dinamismo exterior. Muricy temia que a
arte não tivesse função na modernidade.
Outra discussão bastante explorada por Muricy envolve o caráter nacional
da obra de arte ou então da brasilidade na nossa literatura. Em artigo denominado
“A alma brasileira ou a falência do pitoresco”, datado de janeiro de 1927, o ensaísta
traça uma linha cronológica dos autores que trabalharam o pitoresco brasileiro com o
intuito de pintar a brasilidade em seus textos. Esse estudo inicia-se com Pero Vaz de
Caminha que não apresentaria traços da alma brasileira –, passando por Gregório
de Matos que talvez tivesse alguma coisa de brasileiro –, alcançando os árcades
mineiros que seriam os detentores das ânsias de liberdade brasileira –, chegando,
finalmente, a Gonçalves Dias que: “rasgou o véu da inconsciência persistente e
guiou a torrente do sentimento para regiões demarcadamente brasileiras. Uma alma
nacional nasceu, irrecusável, porém melindrosa, tênue...”.
De acordo com o ensaísta, é em José Alencar, a partir das lendas indígenas
de Iracema e Ubirajara, que encontramos o verdadeiro pitoresco brasileiro, uma vez
que estão presentes nessas obras “o sentimento da terra, a criação, a descoberta do
ambiente físico, a invenção da plástica brasileira, numa língua dúctil, saborosa,
recendente...”.
O pitoresco é vislumbrado como a raiz da nacionalidade brasileira.
Entretanto, o grito de afirmação ocorreu, a partir da visão muriciana
56
, no canto
dos escravos pronunciado por Castro Alves, definido pelo crítico como “a primeira
grande comoção coletiva brasileira!”. De acordo com Antonio Candido, em a
Formação da Literatura Brasileira, capítulo VI, a poesia abolicionista de Castro Alves
reuniu aspectos da sociedade e do eu em um “aflorãoque contribuiu muito para a
nossa evolução poética.
A “frutificação perfeita” do pitoresco, mas “sem predomínio legítimo”, é
arrebatado por Muricy na realização, em forma de epopéia, da obra Os Sertões, de
Euclides da Cunha, a partir de “forças misteriosas e bárbaras”, assim partindo do
56
O pitoresco de Muricy não trata somente de meras descrições das paisagens, mas de uma
tentativa de apresentar a alma do brasileiro. Lembremos que muitos dos trechos de Iracema, por
exemplo, são exemplos de pura prosa poética. Assim, cremos que a brasilidade proposta pelo crítico
esteja ligada também a “impressões do interior”.
40
regional particular para o universal sentimento místico
57
. Muricy assevera que
Os Sertões são:
Um painel a fresco duma luminosidade em que o sopro de criação suscita a
turba numerosa de indivíduos típicos, em movimento complexo e possante.
A terra fala uma linguagem rude, direta, indomada, em Euclides: a seca, os
rios em abandono, o duro empertigamento e as massas pesadas da
estrutura geológica...
E os entes inferiores: o estouro da boiada, os animais durante a seca...
E a tragédia humana nascida da imensidade física do isolamento que
incandesce as capacidades especulativas e ala o misticismo...
Ao examinarmos intimamente o ensaio, notamos, no movimento tecido por
Muricy, como o duro universo da seca vai, aos poucos, englobando tudo que o cerca
até atingir o universo místico e alcançar o cerne da tragédia terrena. Dessa forma, é
possível observar que esse percurso iniciado com a seca passa pelos animais,
chega ao drama terrestre e termina com a agitação do alar místico que é gerado
pelo isolamento. No desespero provocado pelo insulamento, pela solidão – o
sentimento místico ou de religiosidade ultrapassa as capacidades cognitivas,
tomando conta dos pensamentos. A escolha do trecho nos aponta novamente para a
questão metafísica: raiz de toda existência humana e das discussões sobre
nacionalismo e modernidade para o grupo.
Após Euclides da Cunha, Plínio Salgado, de O Estrangeiro, mais tarde
diretor do Partido Fascista no Brasil, é apontado como o pitoresco inteligente, aquele
que utiliza “a orgia dionisíaca” daquele momento “em que o mundo exterior existe,
mas estilizado, aproveitado objetiva e deliberadamente como elemento
decorativo...”, ou seja, como artifício decorativo representante da objetividade e
quem sabe também da superficialidade do mundo moderno, o pitoresco tem o seu
valor. Após a literatura de Plínio Salgado, Muricy afirma que a decadência do
pitoresco surge a partir de “catálogos feitos com intenção cíclica, com intenção
nacional...”. A arte, para o grupo de Festa, não deve visar ao nacional; a presença
de nacionalidade na obra é conseqüência de “certo sentimento íntimo”, para retomar
as palavras de “Instinto de Nacionalidade”.
57
É de um misticismo desconcertante, por exemplo, a passagem da Pedra Bonita”, em Os Sertões,
onde, em 1837, solenidades religiosas dos Achantis quebravam pedras pela “ação miraculosa do
sangue das crianças” para oferecer a D. Sebastião e anunciar o seu novo reino. (CUNHA, Euclides
da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998; p. 138).
41
Entre os modernistas de 22, Muricy indica somente Plínio Salgado, ora
ignorando, ora atacando a atividade dos demais modernistas dos tempos áureos,
que o pitoresco brasileiro teria de apresentar a alma brasileira que os estrangeiros,
como Blaise Cendrars e Edouard Keiser, não encontrariam para remoçar a sua
venturosa arte, criticando, portanto, o diálogo dos modernistas paulistas com as
vanguardas européias. Sobre Plínio Salgado, é importante ainda salientar que o
escritor apresenta uma visão do sertão muito próxima à de Muricy, pois, como afirma
Marilena Chauí, em Brasil mito fundador e sociedade autoritária
58
, o sertão, para
ele, era como um estado de espírito, uma mentalidade, a brasilidade manifestando-
se como sentimento da terra quase como uma inspiração. O sertão era uma barreira
natural que nos defendia dos invasores. Em relação à construção do sertão místico,
Marilena Chauí ainda acrescenta:
Essa longa construção do sertão mítico, que começa nos autos de Anchieta,
passa pelo determinismo de Euclides, aloja-se na ideologia integralista da
mentalidade sertaneja e na getulista das entradas e bandeiras, encontra sua
culminância em Grande Sertão: Veredas, que retoma o sentido jesuíta inicial
do embate entre duas forças cósmicas, Guimarães Rosa escrevendo que
‘sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando
vier, que venha armado!’ E forte com as astúcias, sabemos, é o Diabo
59
.
Entretanto, o aspecto mais frutífero desse ensaio de Muricy é, sem dúvida, a
tomada de consciência de que Machado de Assis atingiu os aspectos da brasilidade
de maneira mais eficaz que todos os autores citados, porque o pitoresco havia
falhado em sua obra. Segundo o ensaísta, quanto mais distante do pitoresco, mais
livre ficaria o autor para manifestar a sua genialidade: “Faltava o pitoresco a
Machado de Assis. Tanto melhor: mais nua a sensibilidade pura, mais concentrada a
comoção, o cambiante anímico mais bem caracterizado”, uma vez que “o pitoresco é
prestígio efêmero, em função adjetiva, a sua falência:
forçaria o artista a expressar sua vida interior, e, diretamente, os choques de
flagrante humanidade.
Forçara à sinceridade efetiva e mais esclarecida, e mais alta!
Forçara à sinceridade, à expressão eficaz da vida nacional tão complexa, e,
entretanto, tão singela ainda.
Forçara ao reconhecimento da alma brasileira por nós mesmos, que dentro
de nós a contemos, e que pensamos ignorá-la, vivendo-a.
58
CHAUÍ, Marilena. Brasil mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2000.
59
Ibidem, p. 69.
42
Desse modo, podemos aproximar o raciocínio de Muricy ao de Antonio
Candido
60
, resguardando as proporções, visto que os ensaios de Andrade Muricy em
Festa são curtos por configurarem críticas jornalísticas, enquanto a crítica
desenvolvida por Antonio Candido tem objetivo muito mais amplo: demonstrar como
se deu o processo de formação da literatura brasileira e quais os motes que
conduziram nossos artistas. Estamos aproximando os dois críticos não porque
pretendemos estabelecer parâmetros de comparação entre eles, jamais seria esse o
nosso intuito, o que desejamos é apresentar a importância da questão nacional
como tema que fazia e faz parte das inquietações apresentadas pelos intelectuais
brasileiros ao longo do tempo. Logo, tanto para Muricy como para Candido
61
, o
distanciamento dos assuntos tipicamente nacionais, ou intencionalmente nacionais,
fizeram com que Machado de Assis produzisse a sua literatura de forma mais livre e
inventiva, sem os grilhões do nacionalismo.
Uma das tantas características que faz de Machado de Assis um escritor
com qualidades inumeráveis é a percepção de que o era necessário “vestir-se
com as cores do país” como uma doutrina para estabelecer uma literatura nacional
capaz de trilhar caminhos autônomos, que o regionalismo pensemos aqui em
regionalismo pitoresco mostrou-se um instrumento de descoberta. Assim, o
indianismo e o regionalismo não foram elementos suficientes para a maturidade do
nosso romance, visto que lhes faltou pesquisa psicológica. Essa característica é
vista com eficácia, conforme Lúcia Miguel Pereira citada por Antonio Candido
62
, em
Machado de Assis e Raul Pompéia
63
.
O tema do pitoresco é retomado por Muricy no ensaio denominado
“Alencar”, datado de dezembro de 1927, escrito em homenagem aos 50 anos de
60
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira momentos decisivos. São Paulo: Editora
Itatiaia, 1975.
61
ASSIS, Machado. Notícia da atual literatura brasileira Instinto de Nacionalidade” In: CANDIDO,
Antonio e CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira Das origens ao realismo.
Bertrand Brasil: São Paulo, 1994, p. 301.
62
PEREIRA, Lúcia Miguel Apud CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira momentos
decisivos. São Paulo: Editora Itatiaia, 1975.
63
É notável que ainda hoje um escritor como Raul Pompéia não conste normalmente na galeria dos
maiores ficcionistas da literatura brasileira, visto que é o primeiro grande nome do romance
psicológico brasileiro, possuidor de uma invejável prosa poética, tendo parâmetro comparativo
somente anos mais tarde com Clarice Lispector. Pompéia, como Machado de Assis, compreendera
que o caminho para o vôo criativo estava longe das amarras do “tipicamente nacional”. Em novembro
de 1927, Muricy problematizara a falência do pitoresco como forma de se encontrar a alma brasileira
e de expressar mais diretamente os choques e flagrantes da vida interior, alertando que fremente
olvidavam de O Ateneu, de Raul Pompéia.
43
morte do romancista. Cheio de adjetivos, o que tende sempre a desqualificar a
crítica, Muricy revisita a questão do pitoresco e afirma que José de Alencar é o
patriarca máximo de nossa literatura, porque “dele proveio a mais legítima de nossas
orientações no que se refere à língua literária, a qual ele transmitiu o cheiro da terra
brasileira e o saboroso entontecedor perfume de selva e fruto”.
Coube a Alencar os méritos de livre domínio e manejo da língua,
introduzindo na literatura brasileira a “doçura da fala brasileira” – para citar as
palavras de Muricy e a utilização da candura do primitivo enquanto “os nossos
autores”, que o crítico não diz quais são, recorreram à sensualidade para
expressarem “nosso ardor tropical”, demonstrando, em certa medida, a sua face
tradicionalista de zelador da ordem e dos bons costumes brasileiros. Henrique Abílio
também reconhece em Alencar a importância de um projeto que reivindique uma
língua brasileira.
A figura de Gonçalves Dias é apontada novamente como um “indício do
despertar nacional, não como uma afirmação”, pois não indicou caminho nenhum
para a nossa literatura. A realização definitiva surgiu a partir de Machado de Assis,
lembremos novamente das considerações tecidas por Antonio Candido, visto que
Machado é e novamente surge uma enxurrada de adjetivos: “Um realizador
definitivo, circunscrito ao seu âmbito analítico, criando num refolho íntimo da
sensibilidade brasileira maravilhas de equilíbrio, entretecidas numa trama sólida ágil
inteligência desencantada”.
O grande mérito de José de Alencar, conforme Muricy, está na
conscientização do escritor de seu papel social, para isso, cita a reflexão que o
escritor cearense tece no prefácio de Sonhos d’oiro
64
:
A manga, da primeira vez que a prova, acha-lhe o estrangeiro gosto de
terebentina; depois de habituado, regala-se com o sabor delicioso. Assim
acontece com os poucos livros realmente brasileiros: o paladar português
sente neles um travo; mas se aqui vivem conosco, sob o mesmo clima,
atraídos pelos costumes da família e da pátria irmãs, logo ressoam
docemente aos ouvidos lusos os nossos idiotismos brasileiros, que d’antes
lhe destoavam a ponto de ter em conta de senões.
64
Em verdade, o trecho do prefácio de Alencar aponta-nos somente a nossa condição de
colonizados, de galho secundário, já que não tem o objetivo de edificar um projeto social consistente,
mas de apurar o paladar do português.
44
E questiona o crítico provavelmente em ataque aos modernistas de 22
que os jovens “decretaram que não temos, nem podemos ter literatura brasileira;
para Muricy, com Alencar tínhamos literatura brasileira, não podíamos olvidar das
nossas raízes. A posição de Muricy mostra-se um tanto confusa, que havia sido
explicitado anteriormente que somente em Machado estava a realização definitiva de
nossa literatura e da falência do pitoresco. Nesse artigo vislumbramos, portanto, a
partir do trecho escolhido do prefácio dos Sonhos d’oiro e dos comentários de
Muricy, a opinião de que a literatura brasileira é, como afirma Candido, galho
secundário da portuguesa, pois, como assegura no prelúdio da obra de Alencar,
nossa literatura faria parte da família portuguesa, e haveria nela uma notável
inferioridade, que, diferente da literatura portuguesa, a nossa estava cheia de
idiotismos nacionais, e esses idiotismos, entretanto, denominou-se pitoresco: origem
de um nacionalismo mais maduro. Desse modo, Alencar ultrapassa os limites do
pitoresco, uma vez que “demarcou em suas últimas obras alguns aspectos
característicos e sintomáticos da sensibilidade brasileira em ação no jogo da
entrosagem social simples, incomplexa, da gente de seu tempo”. Não abordou,
portanto, só paisagens, ia mais além, abarcava o “certo sentimento íntimo” para
utilizarmos novamente a expressão machadiana que delineou a nossa sensibilidade
brasileira.
Em Ubirajara e Iracema encontramos as imagens do pitoresco através do
cheiro da terra, da fragrância do ar nativo e da cantante luminosidade americana.
Em O Guarani e em Minas de Prata estão o monumento da hora inicial e solene da
posse e dos primeiros contatos com a selva e o subsolo alucinante do novo
Eldorado”. Em obras como O Tronco do Ipê, Sonhos d’oiro, O Demônio Familiar,
Senhora, Diva, Lucíola, A Viuvinha, comparadas à Moreninha, ao Seminarista, “são
as primeiras representações legítimas de nossa síntese social de então, tão próxima,
através da distância no tempo, da que se encontra na obra de Machado de Assis, de
Xavier Marques, de Afrânio Peixoto e de Lima Barreto”, conforme o crítico em
mesmo artigo.
Muricy encontra em Alencar a origem do caráter nacionalista maduro,
mesmo que apresentasse ainda traços tipicamente pitorescos, pois delineara um
“certo sentimento íntimo” e almejara por uma língua que representasse seu povo.
45
2.1.1
O
S
C
ONVÍVIOS DO AUTOR
Há, na Revista, uma seção fixa denominada “Convívio” que tem a finalidade
de comentar novas obras ou chamar a atenção para um livro ou autor que merece,
de acordo com o ensaísta da seção, mais atenção do público e da crítica. Nesse
sentido, Andrade Muricy, no ensaio que data de junho de 1928, analisa dois autores:
Alfredo Maria Ferreiro, uruguaio, e Adelino Magalhães, membro ativo da revista
Festa; deter-me-ei no último por ser esse um nome importante para a compreensão
do ideário estético do Periódico.
A obra comentada é Casos e Impressões, de Adelino Magalhães; a primeira
edição do livro data, de acordo com o crítico, de 1916; a segunda, de 1928. Muricy
relata que se surpreendeu com a primeira leitura do livro de Adelino, porque esse
apresenta duas feições nitidamente antagônicas: o realismo e o misticismo, o que
mais tarde denomina de supra-realismo. Segundo o ensaio, o livro de Adelino
aproximar-se-ia de uma visão naturalista, entretanto pertencente a um naturalismo
confuso, mas não-ortodoxo, próximo ao do romance russo de Dostoievski e de
Gorki. A partir de suas considerações, o que vale em Casos e Impressões é,
sobretudo, a vivacidade invulgar e a robusteza da visão realista, de um “realismo
acaso alucinado, mas solidamente assente em subestrutura de realidade”.
No mesmo ensaio, o conto “Dedeco, discípulo amado de Tranquilino”,
também de Adelino Magalhães, é comentado pelo crítico. Novamente Muricy chama
o texto do autor de supra-realista, pois mistura elementos do subconsciente à
narrativa. Além disso, esclarece que o livro, aparecido em 1916, não teria sofrido as
influências “importadas”, como sofrera o pessoal do Pau-Brasil dos estrangeiros
Cendrars e Picasso, por exemplo. A vanguarda presente em Adelino Magalhães era
resultado de sua sensibilidade e não de importações como a dos modernistas
paulistas. Para Muricy, a obra de Adelino Magalhães prova que, em 1916:
se ia delineando e até afirmando no Brasil uma nova concepção de arte,
análoga, não há dúvida, a dos expressionistas alemães e a dos modernistas
franceses das várias correntes, sendo, entretanto, absolutamente própria e
personalíssima do autor em questão.
46
Em outra seção “Convívio, datada de agosto de 1928, o ensaísta analisa os
livros: Martim Cererê ou o Brasil dos meninos, dos poetas e dos heróis, de Cassiano
Ricardo; Clã do Jabuti, de Mário de Andrade; Canto do Brasileiro, de Augusto
Frederico Schmidt; Espirituais, Encantamento, Breviário do pianista, de Olívia
Guerra; 4 poemas, de Brasil Pinheiro Machado e Ritmos da terra encantada, de
Heitor Alves. Vislumbremos as suas análises.
Nas considerações sobre Martim Cererê, surgem novamente os temas da
brasilidade e do pitoresco, preocupação latente nos ensaios de Muricy desde as
suas primeiras publicações em Festa. O ensaio inicia afirmando que “em arte,
realização e criação o quase sempre sinônimos”; entretanto, tanto Cassiano
Ricardo quanto Guilherme de Almeida são mais realizadores do que criadores,
porque eles não despertariam, no ensaísta, a sensação “do novo e do inédito”. A
preocupação em ser original e autêntico ainda é, para Muricy, “algo como o penhor
da identidade”
65
para utilizar as palavras de Roberto Schwarz.
A brasilidade dos autores é apontada como “sendo cansativa“. Explica o
crítico que, tanto em prosa como em verso, muitos autores haviam trabalhado, e
de forma mais significativa, a temática do pitoresco “desta terra de Santa Cruz”, visto
que possuíam a “recente e amável apreensão com o nosso passado histórico e
lendário”. Os autores citados são: Ronald de Carvalho, Mário de Andrade, Tasso da
Silveira, Augusto Meyer, Jorge de Lima, Ribeiro Couto, Adelino Magalhães, Plínio
Salgado, Murilo Araújo, Heitor Alves. Logo, os textos de Guilherme de Almeida e de
Cassiano Ricardo estavam mais do que ultrapassados na visão do crítico.
O tema da brasilidade era tecla batida para o leitor, uma repetição, um mote
que insistia em reaparecer em cada uma das páginas de Martim Cererê, tal como os
livros anteriores de Cassiano que possuíam, nos títulos, os elementos de
nacionalidade: Borrões de Verde e Amarelo e Vamos caçar papagaio. Barretto Filho
também se incomoda com os papagaios e o excesso de verde-amarelismo de
Cassiano Ricardo.
Contudo, a “orgia de pitoresco”, presente em Martim Cererê, consagra o
autor como um grande realizador, um excepcional criador que apresentou um “belo
volume cheio de frescura e de ágil dança de imagens cintilantes e elásticas”, uma
65
SCHWARZ, Roberto. “Nacional por subtração” In: Cultura e política, 1964 – 1969. São Paulo: Paz e
Terra, 2001; p. 129.
47
ideologia bandeirante que ora encontrou expressões definitivas, ora apenas achou
um didatismo dispensável. Novamente o excesso de adjetivos amacia a crítica hábil.
O ranço de Muricy em relação a Cassiano Ricardo não está centrado na
realização do autor; o que desagrada o crítico é a reincidência do tema da
brasilidade após 1922. É importante acrescentar que Festa afirma ter feito parte do
movimento modernista primeiramente com a revista Árvore Nova e, depois, com a
revista Terra do Sol, com esclarecemos. O tema da brasilidade, por ser uma
obsessão em nossa literatura, tem de ser estudado com muita atenção e cautela,
pois caracteriza o cerne das preocupações históricas, políticas e culturais de nossa
literatura, devendo ser reavaliado a cada novo momento histórico, visto que o
nacionalismo, como a literatura, está em constantes transformações, combinando-se
e recombinando-se a cada novo momento. Mário de Andrade, citado pelo professor
José Augusto Avancini
66
no seu estudo denominado Expressão plástica e
consciência nacional na crítica de Mário de Andrade, afirma que
... o Nacionalismo não deveria ser uma resposta definitiva, mas uma
solução provisória. (Em mais de um escrito, Mário de Andrade procura
esclarecer este seu conceito muito pessoal, que lhe parecia válido para dois
tipos de momento): 1º) os períodos em que a arte de um país, vendo-se
exaurida, necessita se temperar nas fontes profundas da nacionalidade, e
2º) os períodos em que a arte, ainda o suficientemente caracterizada,
sente necessidade de se proteger contra as influências externas que a
podem desfigurar
67
.
Um cansaço em relação ao tema brasilidade é evidenciado por Muricy a
partir de uma certa falta de paciência em relação àqueles que ainda retomavam o
assunto, pois a preocupação em demarcar a nova geração de escritores e as
conseqüências da modernidade para o homem – mais especificamente para o artista
e o intelectual brasileiro, no mundo tomado pela máquina –, parecem ser
apreensões mais proeminentes para o futuro da literatura e para a sua nova função
na sociedade do que a reiteração de antigos motes. Era importante repensar o
66
Expressão plástica e consciência nacional na crítica de Mário de Andrade é o resultado do estudo
feito pelo professor José Augusto Avancini para obter o título de doutor. Para isso, o professor
pesquisou a crítica escrita por Mário de Andrade e, sobretudo na década de 20, foram objetos de
seus estudos as colunas do Diário Nacional no período de 1927 a 1932 e a Revista do Brasil no
período de 1920 a 1923, entre demais artigos de periódicos presentes no arquivo Mário de Andrade
do IEB/USP.
67
ANDRADE, Mário de. Apud AVANCINI, José Augusto. Expressão plástica e consciência nacional
na crítica de Mário de Andrade. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1998; p. 162.
48
caráter nacional da obra de arte, mas dever-se-ia utilizar roupagens que
combinassem com o estilo da modernidade.
Ainda na segunda parte da seção “Convívio, Muricy analisa Clã do Jabuti e
Canto do Brasileiro, traçando um paralelo entre a obra de Mário de Andrade e a de
Augusto Frederico Schmidt. De acordo com o ensaísta, as contrafações poéticas
utilizadas por Schmidt faziam parte do gênero ou forma de escrever que estava
muito em moda na atualidade. O iniciador do processo foi rio de Andrade em Clã
do Jabuti, obra em que produziu “felizes invenções poéticas”, embora acrescente
que exista um certo abuso dos ritmos e das cores de fonte popular no livro. Talvez aí
estivessem as origens do interesse de Mário de Andrade pelo folclore brasileiro.
Após tecer alguns comentários “apimentados” em relação ao texto de Mário
de Andrade, Muricy escreve que Clã do Jabuti
agrada, e nada nele agrada tanto como o famigerado Acalanto do
Seringueiro
68
. A mim também foi o que mais agradou. Cheguei a dizer, em
rodas, que ali Mário de Andrade atingira afinal a uma música própria e
eficaz, irmã da popular mais genuína, porém não apenas calcada sobre
esta: original, nova, felicíssima.
69
Não obstante, o ensaísta acrescenta que “só uma alma essencialmente boa
poderia ter escrito aquilo, descontadas certas atitudes e a brasilidade, de efeito
seguro com o Hino Nacional”. Quanto à obra de Schmidt, Muricy é severo, uma vez
que escreve que ela é ociosa e dispensável, e finaliza o artigo explicando que era
inocência vislumbrar o livro de Schmidt como manancial de brasilidade, pois esse
era espertamente intencional. Logo, o sentimento de nacionalidade ou de brasilidade
não deveria ser assunto escolhido, mas instintivo, assim como afirmara Machado
de Assis em seu “Instinto de Nacionalidade”.
Os próximos livros na seção que foram analisados são os de Olívia Guerra.
O crítico apresenta sua escritura como “uma floração de arte e de alta emoção”. Pela
autora, provavelmente esquecida pela atual crítica, Muricy demonstra longa
simpatia, afirmando, inclusive, que “na obra de Olívia Guerra percebe-se, entretanto,
que Bocage chegou à jovem musa através da grave e ressoante paixão de Antero
de Quental”.
68
O grifo é do autor.
69
Percebemos no comentário de Muricy que a preocupação com a originalidade e a autenticidade
ainda se mostravam presentes.
49
O texto de Olívia é aproximado também ao de Gilka Machado, por quem o
crítico também demonstra enorme consideração. Há, nessa seção, referência ao
poema “O teu amor”, do livro Espirituais, de Olívia, logo após à poesia “Desamor”, de
Gilka Machado, excelente exemplo do lirismo e da força poética dessa autora pouco
estudada. As poetas são aproximadas por apresentarem, impregnadas em suas
poesias, uma vibração e uma paixão semelhantes.
A penúltima parte desta longa seção “Convívio” discute o livro de Brasil
Pinheiro Machado e o de Heitor Alves. Sobre Brasil Pinheiro Machado, o crítico
afirma que no jovem escritor a aptidão para poeta, mas não percebe, em sua
obra, as influências de Whitman e a lembrança de Mário de Andrade apontadas pela
crítica da época. Na visão do ensaísta, os poemas do jovem poeta eram desiguais,
“cheios de altos e baixos”, resquícios, como mesmo afirma, do espírito adolescente
do autor. sobre Heitor Alves, as palavras de Muricy se desenrolam em forma de
elogios, sobretudo à revista Elétrica, editada e dirigida por Heitor Alves em
Itanhandu. Para ele, Heitor Alves é:
Um valente! Elétrica é uma revista audaz e simpática, e Ritmos da Terra
Encantada cheios daquele “claro fervor” que, na poesia de Heitor Alves,
Tasso da Silveira definitivamente constatou. Poesia multilânime e jovem,
festival, exuberante.
A poesia jovem e exuberante de Heitor Alves corrobora os pressupostos,
defendidos por Tasso da Silveira, de celebração, de exaltação, porque aceita a
realidade como ela é: divina e exuberante. Dessa forma, a partir dos diálogos tecidos
por Muricy, é possível compreender algumas das posições do grupo diante dos
temas em voga em Festa e avaliar a recepção dos autores que ainda hoje são
reconhecidos pela crítica e dos que acabaram sendo incluídos na lista do
esquecimento.
2.1.2
O
DISSÍDIO COM O PÚBLICO
O ensaio que data de janeiro de 1928, “Dissídio com o público”, evidencia a
inquietação do crítico Andrade Muricy em relação à discordância entre a concepção
de arte dos intelectuais brasileiros e a do público. Essa preocupação com a visão do
público sobre a arte é recorrente em seus ensaios.
50
Para Muricy, alguns movimentos em que as diferentes correntes das
artes no país se englobam, a saber: 1) pragmatismo dominante de colorido
pseudomístico; 2) pragmatismo francamente materialista e 3) corrente surrealista. O
crítico o acredita que era possível para o público a compreensão do pragmatismo
pseudomístico ou o do materialista, porque ambos exigem das artes muita
intelectualização; o público não conseguiria acompanhá-la. A terceira corrente, a
surrealista, trabalha “nas águas turvas do subconsciente”, e o público, para o crítico,
por instintivo medo, recusou-se a compreender as suas propostas. Logo, há um
processo de rejeição por parte do público à nova literatura, o que Muricy denomina
de “a crise de público”. Essa reação diante do que não era facilmente revelado
demonstra o receio do novo.
Analisemos com mais detalhe o ensaio. Para Muricy, a modernidade e o
processo de industrialização estavam tonteando e aturdindo o público através da
velocidade do progresso. Hipnotizado pelos novos ritmos, esse se acostumava com
a possibilidade de transportar-se em quatro horas, de avião, por exemplo, do Rio de
Janeiro a Florianópolis. Esse progresso fez com que o público assimilasse, de forma
alienante, os resultados desse avanço. Entretanto, quanto à arte, não a compreendia
e não aceitava as suas novas configurações.
Imerso em uma vertigem contemporânea, o público não se mostra capaz de
compreender as inovações da arte, irritando-se diante dela, não captando que ela
rodopiava no mesmo ritmo que o dinamismo da atualidade. De acordo com o público
a partir da interpretação de Andrade Muricy os “movimentos velozes e elípticos
da arte e do pensamento atuais” não estavam em consonância com o avanço
industrial, rapidamente assimilado e endeusado pela população.
Muricy discorda da indignação da opinião pública diante da arte moderna,
pois acredita que a realidade jamais havia sido apreendida de forma tão realista.
Para o crítico, naquele momento a expressão artística estava se mostrando capaz,
finalmente, também de deformar a realidade, acentuá-la, exagerá-la, usando à
vontade a realidade essencial, ou seja, aquela que não é restrita, mas é resultado de
uma expressão particular. Quanto mais pessoal era a obra de arte, mais precisa ela
seria, já que, de acordo com a visão do crítico, ainda em “O dissídio com o público”:
(...) tornada a realidade essencialmente pessoal, objetiva, a expressão
objetiva dela é mais precisa, mais acorde com a vida, mais oposta ao
fotografismo estático, porque é filtrada através de toda a sensibilidade do
51
artista, controlada pela inteligência, e não apenas gravada na receptiva
deficiente da visão direta.
Aparentemente embravecido, Muricy censura a postura do público, quando
afirma que os brasileiros, seus contemporâneos, estariam lendo preferencialmente
Anatole France e Blasco Ibãnez, Zola e Paul Bourget, leitura de vinte anos, ou
seja, o público mostrava-se atrasado em vinte anos em relação às leituras
modernas
70
. Os leitores aceitavam a modernidade técnica, mas rechaçavam a
modernidade artística. Revelavam-se cada vez mais atrasados em estética.
Alienado, o público mostrava-se preocupado demais com as dificuldades da
vida, com os esportes ou com a educação dos filhos, ou ainda com os elogios da
imprensa, não reservando tempo para ler; aos poucos, a literatura perdia uma de
suas funções: o entretenimento. Desse modo, ele não seria capaz de apreender o
enredamento refinado que tecia a inteligência brasileira. Entre os artistas que
possuíam esse refinamento, Muricy cita Gilka Machado, Cecília Meireles, Tasso da
Silveira, Murilo Araújo, Manuel Bandeira.
Nas últimas linhas do ensaio, vislumbramos um pouco mais do arrebate de
ânimos e de indignação em relação à opinião atrasada do público sobre as
hodiernas artes: “Por que, então, a pretensão de ter opinião sobre literatura e arte,
quanto está afastado de preocupações com literatura e arte?”. E, para finalizar,
desabafa: “Não público, no Brasil, público verdadeiro, o que estimula, o que
proporciona atmosfera vital ao intelectual e ao artista!”. Muricy prezou por um público
que fosse leitor, crítico e esteta, almejou por um esmero intelectual que sempre fora
reservado, em nosso país, a um grupo miúdo e elitista.
Diferente de outros ensaios, em que Andrade Muricy apresenta sua crítica
de forma moderada e suave, nesse o ensaísta responde com ferocidade a uma das
querelas da época: a discussão sobre a possibilidade de a arte moderna ser
incompreensível ou de não representar os valores do povo. Em resposta a essa
questão, o artigo apresenta-se em tom apimentado e fervoroso, tachando o público
de alienado, e a imprensa, de alienante. Esta, alvo da crítica tecida por Muricy, é
vista como a materialização de um ícone da modernidade. O ensaísta aponta para o
poder que a mídia assumira na configuração do gosto do público; anos mais tarde
compreenderíamos a grande função exercida por ela como forte instrumento
70
É importante ressaltar que Festa não negava as vanguardas, mas sim a ruptura abrupta com a
tradição e a assimilação deliberada das novas tendências.
52
manipulador de massas. No entanto, Muricy compreende que a arte moderna estava
cada vez mais intelectualizada, por isso também o desgosto do público, pois ele não
apreendia o seu significado. Valéry afirmara que a poesia devia ser “uma festa do
intelecto”
71
. Essa será uma das características mais importantes da poesia moderna,
já que não procura o leitor, mas o provoca.
O ensaio de Muricy finaliza com a discussão sobre o mercado editorial,
questão apresentada pelo ensaísta em outros artigos. A partir de suas
considerações, a imprensa e o mercado editorial eram os responsáveis pela
alienação do público, pois, conforme o crítico, havia maior interesse em promover
leituras estrangeiras “devido à estandardização do elogio banal da imprensa...”;
entretanto, não ocorre o desenvolvimento dessa consideração no artigo. O que nos
parece é que existia no mercado editorial também um preconceito em relação à arte
moderna e de vanguarda, que se publicava mais escritores estrangeiros do que
nacionais.
Em artigo da seção “Convívio”, de fevereiro de 1928, ressurge a inquietação
do crítico em relação à atualidade que, conforme explicita, é “de tal confusa
complexidade que se torna difícil distinguir nela os filões de legítimo dinamismo
construtivo do que apenas representa desordem e tripudio bufo”. Em meio a tantas
mudanças, é difícil até para um esteta distinguir o que é ou não arte moderna.
O ensaísta também não se conforma com a visão de muitos artistas,
denominados por ele como falhados, e de muitos intelectuais, apegados à tradição
parnasiano-naturalista, de que seria impossível fazer arte no Brasil. Essa
preocupação, recorrente na crítica do autor, demonstra uma tentativa clara de
valorizar a literatura brasileira ou, muitas vezes, de inseri-la no quadro da literatura
universal em um conhecido movimento particular-universal. De acordo com
Muricy, não há a valorização da arte, no Brasil, pelos editores, pelos leitores, pois
esses não a apreciariam e nem a discutiriam; os artistas e escritores estavam,
portanto, sozinhos na missão de fazer arte e de revelar as suas verdades.
O cerne do problema concentra-se na preocupação, por parte dos dirigentes
do país, em tornar o Brasil desenvolvido, possante para usar um terno do autor
econômico e financeiramente; o restante era luxo. A literatura viria depois, seria
questão secundária. Esse procedimento matava os artistas e os intelectuais, uma
71
VALÉRY, Paul Apud FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades,
1978; p. 143.
53
vez que eles recebiam menos atenção do que, por exemplo, os atletas, possíveis
representantes de nossa raça. De acordo com Muricy, a atualidade estava dando
muita importância ao materialismo através, por exemplo, do culto ao corpo, o que ele
denomina de cultura física. O desenvolvimento intelectual viria após a eugenização
da raça a partir dessa cultura. Vejamos um trecho do ensaio:
Eugenização da raça, seleção... Vejamos os homens de esporte: um
esplêndido exemplar humano: os bíceps, os peitorais, as pernas nodosas, a
força tremenda, um soberbo animal, um elemento... Outro: esguio, os
músculos finos e ágeis, vivos, alertas, rápidos... Um murro considerável
como uma avalanche; o risco audaz do vulto pequenino na pista imensa; as
pontas de espada que florescem em cintilações sob o hipnotismo dos olhos
torcedores...
A crítica de Muricy centra-se no endeusamento do corpo ou
supervalorização da forma física na modernidade. Na antiguidade, explica, as lutas
“eram impelidas por interesses bem definidos”. Na modernidade, o esporte
representaria a “arte pela arte”, ou seja, sem função nenhuma, o triunfo “da
gratuidade”. O crítico refere-se a um campeão que fizera o mundo inteiro vibrar: Jack
Dempsey, um dos mais agressivos boxeadores, conhecido como “o Matador de
Manassa”, detentor de uma pegada de 120 Kg.
No entanto, é importante esclarecer que Muricy não desprezou os esportes,
o que não aceitava era a sua supervalorização em relação às artes, e não
compactua com a posição de inércia dos intelectuais brasileiros que, conforme o
crítico, se queixavam da sua situação sem tomar nenhuma atitude. Exemplos
como Mark Twain, William James e Jack London são utilizados pelo crítico para
demonstrar como países que não apresentavam uma preocupação eminente com a
cultura intelectual, como os Estados Unidos, por exemplo, foram capazes de
produzir excelente literatura sem o auxílio, sobretudo, do público.
Ainda no mesmo ensaio, Muricy afirma que, para desenvolver a arte,
tínhamos de viver uma vida prática –- o autor esclarece que, evidentemente, toda
vida é prática –- e, para isso, era necessário que houvesse o que o crítico chama de
“instinto de conservação”. No artista, a obrigação de criar, exprimir e sonhar sob
pena de morte determinaria seu ofício, ou seja, o artista estaria condenado a criar,
criar e criar. Esse é o conceito de instinto de conservação. Assim, ele viveria
diversas existências, e os grandes artistas, por sua vez, viveriam “uma totalidade
humana tão intensa e extensa quanto os heróis das ações. Napoleão teria vivido
54
mais do que os milhares seres reunidos na Comédia Humana pela vida múltipla e
possante da imaginação de Balzac?”, questiona o autor. Era necessário sonhar e
criar para agir contra a realidade opressora.
No decorrer do ensaio, a discussão retorna para a possibilidade de existir ou
não uma arte tipicamente brasileira; a resposta para Muricy é óbvia: sim. No entanto,
ele percebe que nem todos eram capazes de perceber os traços tipicamente
nacionais de nossa arte, muitos se contentavam com as nuances de regionalismo,
com modismos lingüísticos, configurando o que chama de grosseiro pitoresco
brasileiro.
O “quid” nacional, de acordo com Muricy, era facilmente exemplificado, a
partir da música brasileira, através da figura de Villa Lobos. De acordo com a análise
muriciana, a música de Villa Lobos possuía os elementos do pitoresco brasileiro e da
alma nacional que surpreenderam a “cansada e árida Europa”. Não era necessário
que o músico, para conquistar o Velho Continente, se camuflasse de europeu, como
fizera, a partir da perspectiva de Muricy, Carlos Gomes. Villa Lobos conquistara o
mundo com as matracas nacionais, os reco-recos, acentuando assim o tom local
72
.
Andrade Muricy avalia a repercussão do músico brasileiro na revista
francesa Revue Musicale e a crítica tecida pelo então diretor Henry Prunières. Na
ocasião referida, o diretor francês afirma que seria a primeira vez realmente que se
fazia ouvir em Paris a música vinda do Novo Mundo “sem dar a impressão de ser
simples reflexo da música européia”. Para o diretor francês, as fontes do músico
brasileiro seriam os índios, visto que Villa Lobos viveria ao dos índios, “ouvindo
os seus cantos”. Dessa forma, teria conseguido criar a nova alma do primitivo, de
índio caçador, e seria essa a originalidade espontânea e sincera presente na música
de “sabor incomparável” do compositor.
Muricy esclarece que o diretor francês estava desinformado, que Villa
Lobos jamais vivera entre selvagens. Redimindo a visão primitiva de Henry
Prunières sobre os países do Novo Mundo, o ensaísta acrescenta que a alma de
Villa Lobos era selvagem, “nova, vibrante, infinitamente sincera e espontânea, de
uma espontaneidade que vai até quase à inconsciência, melhor: que atinge um infra-
realismo”, como dissera Tristão de Ataíde, “quase absoluto”.
72
Nesta discussão, fica claro que, para Muricy, não havia problema em utilizar o pitoresco, mas era
necessário não forçá-lo, ou seja, o assunto é excelente para realizar a trajetória do particular para o
universal, mas não deve ser compreendido como regra ou obrigação.
55
O “quid” brasileiro, segundo a análise muriciana, ainda não havia sido
descoberto pelos críticos estrangeiros, visto que eles não teriam encontrado o ouro
nativo, o “quid” indefinível, a brasilidade. O caso de Villa Lobos demonstra, para o
ensaísta, a falta de confiança que depositavam os brasileiros em suas capacidades
criadoras. Para exemplificar, cita dois momentos em que artistas ou escritores
nacionais não haviam sido reconhecidos como brasileiros. O primeiro caso é o elogio
de Verdi a Carlos Gomes. Verdi, a partir da perspectiva de Muricy, afirma que Carlos
Gomes “estava fazendo, com notável talento, a melhor música”. O outro caso refere-
se ao comentário de Anatole France a Machado de Assis que “reconhecera” que,
para os brasileiros, Machado de Assis era o melhor romancista do país. Bem
articulado, Muricy afirma que não há, em verdade, nenhum elogio nos dois
comentários, tanto o de Verdi quanto o de Anatole France, que dê atenção à
nacionalidade dos artistas
73
.
Há, na crítica desenvolvida por Andrade Muricy, um forte desejo de expandir
as fronteiras do país, procurando um caráter nacional para a arte que nos eleve, que
transcenda o pitoresco reducionista. Isso fica mais claro quando o crítico finaliza as
linhas de seu ensaio clamando por um “lugar para nossos ritmos, para a nossa
maravilhosa luminária tropical, para a nossa juvenil e encantada” literatura. O
reconhecimento pelo outro se mostra como uma das preocupações mais latentes
nos comentários do ensaísta.
2.1.3
A
NOVA GERAÇÃO E A
G
ERAÇÃO ADOLESCENTE
Em maio de 1928, o ensaio de Muricy retoma a inquietação de se
compreender a modernidade, ou seja, o instante da “construção material e de fúria
materialista; momento de ação exclusiva”. Novamente a sensibilidade ou
espiritualidade é apontada como algo à margem no processo de avanço industrial.
A praticidade é apresentada no texto em contraposição às artes. Há, para
Andrade Muricy, uma maximização da praticidade, da materialidade, como, por
exemplo, dos esportes, questão discutida por ele. Os esportes tomavam de
assalto as mentalidades dos jovens. Em oposição havia uma quase impossibilidade
73
Os comentários de Verdi e France são charmosos, mas não dizem nada, pois não estabelecem
parâmetros de comparação e não apontam de forma significativa os seus méritos, reconhecem
que, em meio à selvageria, havia uma arte interessante ou curiosa.
56
de publicação de livros brasileiros, demonstrando, dessa forma, novamente o
desprezo das editoras em relação aos produtos nacionais.
Ocorreria assim uma mudança radical no quadro cultural brasileiro. Muricy
compreendia que essa modificação gerava um quadro complexo, multifacetado e de
difícil apreensão. Nessa direção, nota-se um claro endeusamento da modernização,
da máquina e da praticidade, o qual ofusca a luz dos intelectuais e artistas que,
conforme o ensaísta, jamais tinham formado, no Brasil, um quadro tão admirável.
E, no Brasil de hoje, neste maravilhoso despertar, ainda extenuado e cego
pela grande luz inesperada, - para um imenso fastigio material, o homem de
pensamento e o poeta acompanham, com seus sutis e fundos instintivos, a
inebriante aventura da realização prática.
Existe, portanto, uma força vigorosa nos intelectuais e artistas porque
resistem ao desprezo e à desvalorização do blico em geral. Desenvolvendo ainda
mais a reflexão, Muricy acrescenta que a “geração nova” é “heróica pela sua
resistência à indiferença ou à hostilidade do ambiente”. O crítico ressalta que
no seio dessa jovem geração, dez ou quinze moços há, dos vinte aos
quarenta anos, dentre os quais é temeridade afirmar se algum deles o mais
autorizado, o mais sério, o mais culto e o mais humano.
Bastaria que a obra e a ação intelectual desses dez ou quinze merecesse,
em seu conjunto, a atenção dos homens de boa fé, para que a existência de
uma admirável elite fosse luminosamente verificada.
Contudo, como Muricy avalia a sua geração? Em artigo de 15 de setembro
de 1928, véspera do final das publicações da primeira fase de Festa, entrevemos um
tom de desilusão no seu texto. O crítico relata que a sua geração não tivera tempo
para ser adolescente, passara dos dezenove diretamente para os trinta anos, e
acrescenta: “mas, sim, pelas mais amargas e penosas experiências pessoais e pelas
que, com a acuidade sobre-aguda de contemporânea, adivinho em meus
coetâneos”.
Assim, a sua geração seria uma “geração feliz e uma geração trágica”,
que se encontrara presa ao mundo em uma “vertigem lica a civilização (como
naquele tempo quase todos pensavam) em perigo, a revolução bolchevista prestes a
fazer-se”. Os jovens brasileiros “instintivamente encolheram-se como medida
inconsciente de defesa e de prudência”. A imaginação aparecera em sua geração,
de acordo com o ensaísta, como uma reação solicitada pela guerra. Como
57
conseqüência desse processo, a tragédia de sua geração fora “o desvirginamento
brutal e assombroso”
74
. E isso gerou, portanto, uma maturação precoce nos
escritores de seu tempo. Nestor Victor, em o jornal O Globo, em 14 de novembro de
1927, republicado em Festa em maio de 1928, afirma que:
“Festa”, porque aceita a intuição nascida na guerra e desenvolvida no
após guerra de que a geração atual é nova duas vezes: pela mocidade e
pelo albor que representa para o mundo o instante que lhes coube
representar. Pelo que divisam comparável a um tenro broto, que eles julgam
estarem personificando, no meio do franco desempenho ou de construções
pendentes que em outros domínios se oferece aos nossos olhos. “Festa”,
antes por coragem, que a fé alimenta, do que por espírito de “profiteur”.
“Festa” que em nada corresponde à magnífica floração do cafezal paulista
nem se prende aos proveitos de uma hora que as vantagens dos “trusts”
tornam maravilhosamente alegres aos colocados em situação para
considerá-la com ultra-otimismo.
A geração de Muricy sofrera os impactos da guerra e, a partir de seu
choque violento desvirginamento atroz –, deixou intacta “muita região espiritual” e
produziu “um desvio tal do sentido filosófico e estético da nova mentalidade, que, se
não permitiu a expansão imediata de todas as virtudes realizadoras da geração”,
pelo menos evitara que lhe adviesse “a sensibilidade dos trinta anos, a então
quase fatal, e já geralmente admitida em nossas tradições intelectuais”.
Filhos da modernização industrial que supervaloriza a máquina e das
seqüelas da guerra, a geração de Muricy obrigou-se a amadurecer muito
rapidamente. São temas recorrentes nos ensaios do crítico, como pudemos
observar, a definição de modernidade e da nova geração de artistas e intelectuais,
como um exercício do autor em compreender a sua atualidade e suas bruscas
mudanças.
Por fazer, brevemente, um balanço da atuação de seu grupo, o que o artigo
“Geração adolescente” nos permite deduzir? Certamente, sinais de desilusão
evidenciados pela voz de quem muito lutou para modificar o quadro cultural de seu
país, mas que apresenta, no balanço das atividades de sua geração, marcas de
cansaço e de descrença em relação à função da obra de arte no futuro. É por essa
razão que o ensaísta denomina a sua geração de trágica. Entretanto, ressaltemos
74
Esse pessimismo latente na crítica de Muricy que nos lembra Adorno demonstra uma
percepção do seu período muito mais madura que a do grupo dos modernistas de 22. Salvo raro
engano, não é perceptível a modernidade como o fim de uma era ou de um modo de vida sem
esperanças, sem sonhos, sem espaço para a arte. A assimilação acrítica dos novos valores pelo
grupo paulista demonstra comportamento juvenil e, muitas vezes, imprudente.
58
que Muricy não aponta a sua crítica para o total pessimismo o que contrariaria as
concepções de Festa , mas para as possibilidades de aprendizado mesmo
quando duro – que o choque com a guerra teria oportunizado a todos da sua
geração.
A partir das considerações de Andrade Muricy, percebe-se que a guerra foi
um fator importante para desencadear o desenvolvimento da sensibilidade a partir
da busca por uma espiritualidade, por uma realidade menos superficial do que
aquela oferecida pelo materialismo. Desse modo, um dos motes que uniram os
colaboradores de Festa foi a tentativa de desenvolver um espírito mais sensível e
transcendente que reagisse ao avanço, produzindo uma arte capaz de orientar
nossos ritmos interiores e, ao mesmo tempo, alargar as fronteiras do país, não se
limitando, por exemplo, ao caráter meramente pitoresco. Essa inquietação de
Andrade Muricy demonstra que, sob discussões de cunho filosófico e estético, o
Mensário é o retrato de um dos momentos mais ricos e conflituosos da história
cultural brasileira: a década de 1920.
No entanto, Andrade Muricy não é mestre solitário em Festa e, para melhor
avaliarmos a especificidade desse grupo, acompanha-no um fervoroso crítico, poeta
e fiel escudeiro: Tasso da Silveira.
2.2
T
ASSO DA
S
ILVEIRA
:
O
MISSIONEIRO DA MODERNIDADE
O artigo-poema-manifesto de abertura da revista Festa data de agosto de
1927. É um texto bastante conhecido pela crítica, talvez um dos únicos sobre o
Mensário, pois é reproduzido em sua íntegra na obra Vanguarda européia e
modernismo brasileiro de Gilberto Mendonça Teles e em trechos de diversos
manuais de literatura. Trata-se de um manifesto em forma de poema, o que é
bastante corrente na escritura de Tasso, visto que outros textos apresentam também
o gosto pela poesia, sobretudo quando misturada à prosa e às discussões de
estética.
O poema de abertura vem sem título, talvez para provocar uma certa
ansiedade no leitor que acaba não tendo nenhuma pista sobre o conteúdo do
Periódico. Não podemos afirmar que o grupo possuía uma voz unívoca, como foi
dito, pois isso não corresponde à verdade. Andrade Muricy, em depoimento a Neusa
Caccese, relata que os participantes ou colaboradores formavam um grupo de
59
afinidades, mas não queriam formar uma escola ou uma nova estética. Logo, entre
tantos colaboradores, sem dúvida quem traça o perfil estético da Revista são
Andrade Muricy e Tasso da Silveira, ficando para Tasso a parte mais criativa e
também mais exaltada da dupla. Muricy é o mais refinado e erudito, mas o menos
inovador. Tasso parece mais explosivo e irônico que Muricy nos ensaios. Fazendo
uma pequena comparação salvas as enormes diferenças que os separam , eles
formariam o par de Andrades no Rio de Janeiro: Muricy seria Mário; e Tasso,
Oswald. Isso demonstra, portanto, o êxito de um movimento a partir da junção de
duas mentes ao mesmo tempo diversas e complementares: uma mais
intelectualizada e cautelosa, outra mais criativa e expansiva.
A visão de Tasso da Silveira permeará todo o Periódico, sobretudo em seus
momentos mais polêmicos em que discussão com Mário de Andrade ou com
Tristão de Ataíde (pseudônimo de Alceu Amoroso Lima). Nessas contendas, Tasso
reitera a sua visão sobre a modernidade e sobre o papel da arte e dos artistas
inseridos nela.
No início do poema-manifesto surge a preocupação obsessiva do crítico em
captar a “visão claradaquele momento que ele chama rotineiramente de “hora”
(utilizou também a expressão recorrente “desta hora”, em outros artigos, para se
referir à modernidade). “Hora” é analisada como um momento de “tumulto e de
incerteza, de confusão de valores e de graves ameaças para o homem”. Essa
percepção será repetida por Muricy e por outros participantes da Revista. Entretanto,
não ficam claras no texto-manifesto quais seriam as confusões de valores a que
Tasso se refere, nem quais seriam as origens de tanta agonia e inquietude.
Acreditamos, após a leitura de demais artigos, que a angústia de Tasso alude à
aflição que o artista experimenta diante das inovações oferecidas pela modernidade,
sobretudo frente à velocidade com que as modificações ocorriam em um país que
começara a se desenvolver. De acordo com Margarida Gouveia:
A inquietude é a razão principal da vitalidade dos membros da Festa. O
anseio de restauração de uma ordem indica uma escrita que está nas
antípodas da destruição, da incoerência, da gratuidade formal. De maneira
convicta, essa escrita condensa o sentimento profundo da alma, a angústia
do destino, uma inquietude de natureza ontológica capaz de refletir “o
60
reconhecimento da necessidade de um equilíbrio, do valor de uma ordem,
construtora, dinâmica”
75
.
Esse momento de ansiedade é apontado como um caminho para a nova
realidade que surgirá, como se fosse necessária a escalada de um mundo que, de
acordo com o ensaísta, esqueceu-se de Deus e acredita que tudo está perdido
reação ainda do pós-guerra. O medo ou ânsia da modernidade leva ao desequilíbrio
que será restaurado, por sua vez, a partir de um movimento cíclico em uma próxima
etapa: o equilíbrio edificado no “re-ligar-se”, ou seja, na crença em um ser superior e
divino que orientará a civilização perdida. Em Tasso, o espiritualismo alcança raízes
ainda mais religiosas.
Outra preocupação freqüente do grupo é a tentativa de apreender a
realidade que o cerca e de se inserir no mundo, como foi apresentada no artigo de
agosto de 1927: “temos a compreensão nítida deste momento. Deste momento no
mundo e deste momento no Brasil”. A partir dessa certeza, o crítico demonstra que
as pretensões do grupo não abrangem somente o âmbito nacional, mas se
inquietam em mostrarem-se presentes para o mundo, em compreender os
processos que envolvem a modernidade tanto no Brasil como fora dele.
Entre os sentimentos que rodopiam em “torvelinho trágico”, para citar as
palavras do autor, um dos problemas apresentados pela modernidade é a
mediocridade que se instalara e finalmente teria se desoprimido e aproveitado o
desequilíbrio de um instante para proclamar-se vencedora. A visão de Tasso, ou
do grupo, sobre a realidade é, portanto, áspera, mas não totalmente pessimista; é
uma percepção desmistificada, desvirginada. Como Muricy, Tasso vê a modernidade
como um período “de seca”, embora acredite ou lute para modificar essa situação,
visto que o público estava cada vez mais se inserindo em uma comunidade de
massa, apresentando nuanças de alienação, por exemplo, a partir da não-
compreensão das vanguardas e das propostas estéticas da arte moderna e da
valorização do materialismo. A educação da sensibilidade, em meio ao avanço
industrial e ao tecnicismo, estava cada vez mais esquecida. Conforme Herbert Read,
citado por Benedito Nunes, com a modernidade houve uma dissociação entre a
sensibilidade e o pensamento, e é essa dissociação que Festa quer recompor:
75
GOUVEIA, op. cit., p. 26. A citação de Margarida Maia Gouveia é de Afrânio Coutinho, Sentido da
inquietude” In: Festa, ano I, fase, 4, Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas Alba, Outubro de 1934, p.
1.
61
Valorizou-se em excesso o pensamento racional, o aspecto intelectual da
cultura, em detrimento da imaginação criadora. Não somente vivemos numa
sociedade dividida: vivemos também com a personalidade dividida. A
educação da sensibilidade foi esquecida e, mais do que isso, considerada
irrelevante no preparo mental do homem, adequada à execução das tarefas
essenciais exigidas pela sociedade técnico-industrial a que pertencemos
76
.
Ainda no poema-manifesto vislumbramos a perspectiva do artista como um
missioneiro, um profeta, um vate, aquele que vai “anunciar o que virá”,
transformando a arte do momento em “um canto de alegria, uma reiniciação da
esperança, uma promessa de esplendor”. A esperança recairia nas mãos dos
artistas porque eles seriam anunciadores ou reveladores da verdade. Essa
concepção é apresentada em outras passagens do Periódico, sobretudo quando,
utilizando-se das palavras de Ruskin, os colaboradores escrevem em nota sem título
e sem autor, em agosto de 1927, sobre a função salvacionista da obra de arte:
Ruskin falou assim: “As grandes nações escrevem a sua história em três
livros: o de seus feitos, o de suas palavras e o de sua arte. Nenhum destes
livros é compreensível sem a leitura dos outros dois, porém, dos três, o
único de confiança é o último. Porque os feitos de uma nação podem ser
gloriosos se os acompanha a fortuna, e suas palavras poderosas graças ao
gênio de alguns de seus filhos, enquanto que a arte é formada dos dons
gerais e das simpatias comuns de uma raça”.
Logo, de acordo com o ensaísta, após o “profundo desconsolo romântico, o
estéril cepticismo parnasiano e a angústia das incertezas simbolistas”:
O artista canta agora a realidade total:
a do corpo e a do espírito,
a da natureza e a do sonho,
a do homem e a de Deus,
O poeta-profeta canta a realidade porque, segundo Tasso, somente ele
percebe-a e compreende-a em “toda a sua ltipla beleza, em sua profundidade e
infinitude”; essa é uma das metas referidas do Mensário: representar uma
realidade total, nem materialista nem espiritualista, mas a junção dos dois
pólos. O canto do poeta-profeta é total, feito de inteligência e de instinto, de ritmos
livres e ágeis, como diz o autor, como músculos de atletas. Desse modo, a arte não
76
READ, Herbert. Apud NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. São Paulo: Ática, 1991; p.
109.
62
pode viver presa a velhos moldes, mas deve ser elástica, maleável. Essa posição
demonstra a concepção do grupo de que era possível sim dialogar com a tradição
sem abandonar as novas tendências.
O poeta-missioneiro é aquele que tem como encargo levar o encanto da
Vida para os homens e, como um grande líder, sua função é abarcar todos que,
fascinados pela beleza apresentada pelo artista, o acompanharão como um profeta
em busca da verdade. Para o artesão da modernidade, a função da arte angustia e
se torna algo problemático porque, como a modernidade, a arte se agita e deve ser
conquistada.
2.2.1
A
ANTA
,
O CARRAPATO E UMA ENXURRADA
Em artigo que data de novembro de 1927, a fúria do ensaísta cai sobre os
ícones utilizados pelos movimentos de vanguarda “da hora”. Inicia-se, assim, uma
birra que circundará o Periódico até seus últimos dias: por que a anta
77
e o carrapato
haviam tornado-se ícones nacionais? Que representatividade ou qualificativo esses
animais tinham para pintar o povo brasileiro? Tasso afirma que as grandes correntes
nacionalistas estavam à procura de símbolos que se revelavam estéreis como, por
exemplo, o grupo paulista, pois elegia a anta como símbolo; e o grupo do Rio, o
carrapato. Infelizes lembranças de acordo com o escritor.
Ao questionar o símbolo da anta, o crítico assevera que ela teria sido
escolhida por uma característica: andar em linha reta, abrindo caminhos e
superando obstáculos. Para o ensaísta, acreditar nessa possibilidade é sinal de
cegueira, não de inteligência, que o animal não seria capaz de caminhar por vias
sinuosas, dispersando inutilmente sua força, mesmo que se mostrasse sempre certo
de suas finalidades. Além disso, acrescenta, a anta “é o mais inestético de nossos
animais. Disforme, deselegante e pesadona”. O carrapato seria ícone talvez pelo
vigor a que adere, mas acredita Tasso que a sugestão era de péssimo gosto e o
exprimia o “generoso ideal de construção brasileira”.
Para chegar a um símbolo ideal de nossa identidade, nem a anta nem o
carrapato eram escolhas acertadas. O símbolo a ser adotado devia exprimir “a um
77
O grupo Anta também é conhecido como Verde Amarelo. O seu manifesto denominado “Nhengaçu
verde amarelo” é assinado por Plínio Salgado, Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo e publicado no
Correio Paulistano em 17 de maio de 1929. Esse grupo enveredará por um ideário político direitista.
63
tempo, a tradição e o mistério”; mas o qualquer tradição, somente aquela
representada em seus momentos de realização mais expressivos. De acordo com
Tasso, apenas a partir da compreensão da memória cultural e dos gritos do
passado, podíamos apreender a nossa vocação. Assim: “Conhecer a própria
vocação é caminhar à luz de clara lâmpada. E para um povo, como para os
indivíduos, obedecer ao próprio espírito é realizar o destino mais glorioso que lhe
possa caber no planeta”. Conforme afirma Lúcia Helena, é interessante observar o
quanto
(...) é tensa, na época, a relação entre passado e presente, entre tradição e
modernidade. E eu ainda iria mais longe. Essa tensão tem caracterizado um
impulso histórico da cultura brasileira, na qual se manifesta uma acentuada
dificuldade em articular as duas pontas da vida, a tradição e a modernidade,
o influxo autóctone e o necessário diálogo (não a implantação acrítica e
ufanista) com o mundo além-porteiras
78
.
A tradição é parte fundamental na construção de um povo, porque não
pertence a nenhum lugar, mas ao espírito, “ao particular temperamento” de uma
nação, ou seja, é a lâmpada da tradição que aclarará, de acordo com o escritor, o
caminho para as novas criações, para o futuro. Cremos que é a herança, a
experiência adquirida no passado, que formará, portanto, a memória de um povo e
iluminará as suas lembranças, o que é característica única e indestrutível em uma
população.
O ensaio gira em torno da ironia em relação à escolha dos ícones,
finalizando com a afirmação de que o país precisa de um símbolo que o represente e
apela: “Precisa-se de um símbolo para tudo isto. Fica aberto o concurso...”. Por isso,
notamos que Tasso é um grande problematizador, equaciona seus questionamentos
e edifica hipóteses, mas, em verdade, poucas respostas encontramos em seus
ensaios, sobretudo nesse em particular. Por um lado, ele critica os novos grupos,
principalmente os paulistas e suas tentativas de criar um símbolo da construção
brasileira, entretanto não sugere outro símbolo. Por outro, uma preocupação
evidente com o caráter nacional, visto que embora não encontre solução para a
problemática levantada Tasso crê na necessidade de termos um símbolo que nos
represente. Esse, evidentemente, deve ser conjugado com as heranças da tradição,
78
HELENA, Lúcia. “Sobre a história da semana de 22” In: MALLARD, Letícia (et al.). História da
literatura: ensaios. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994; p. 113.
64
que elas formam o espírito de uma nação, ou seja, o seu temperamento. No
entanto, esse símbolo jamais é apresentado, configurando a personalidade
agitadora de Tasso como um inventivo missioneiro, mas não como realizador efetivo.
É importante ressaltar que a erudição e a cautela de Muricy são temperos
fundamentais na produção do Mensário.
Ainda permeado por esse espírito exaltado que o caracteriza, em artigo de
janeiro de 1928, já comentado nesta dissertação, denominado “A enxurrada”, o
crítico traça algumas das suas compreensões sobre arte em um ensaio dividido em
nove seções: I as represas abertas, II antologia, III a onda renovadora, IV e,
contudo.::, V equívoco, VI velocidade, VII totalidade, VIII brasilidade, IX
universalidade.
“A enxurrada” é um poema em prosa que, na primeira parte, apresenta a
concepção de que a terra se frutificaria de represas misteriosas que teriam
inundado-a de “águas mortíferas e estéreis/ de que ficaram emergindo apenas/ as
frescas e puras florações maravilhosas/ que, de tão alto que haviam subido em
beleza/tinham ficado próximas de Deus...”. As “águas estéreis” seriam fruto do
materialismo infecundo da modernidade.
Em meio a esse poema, o grande agitador de Festa dialoga com um
suposto interlocutor que lhe pergunta se o crítico estava lendo o Rig-Veda, esse, por
sua vez, responde que, em verdade, havia pensado em “coisas familiaríssimas e
atualíssimas”: o subconsciente, que tinha se metido na conversa, endoidecia-o de
poesia e transfiguraria tudo. O diálogo fica em aberto com a utilização de reticências.
Vislumbramos, nessa passagem, a influência dos preceitos freudianos, temperados
pelo Simbolismo, o que torna a fala nebulosa e hermética, até um tanto estranha,
fragmentando o texto, demonstrando alguns dos processos de experimentação por
que passava a arte moderna, distanciando, muitas vezes, o público devido ao
caráter de excessiva intelectualização.
O mundo moderno mostrava-se tomado por uma enxurrada invencível e
dominadora, pois, por um lado, trazia para a atualidade forças renovadas e criativas,
mas, por outro, surgia com ele também o que Tasso chamava de “bestice”. Ainda
dialogando com um suposto interlocutor, ele afirma:
65
Eu vinha pensando, apenas, neste “momento” do nosso espírito: na grande
onda de alegria criadora que nos dominou e fecundou; e na enxurrada de
bestice que veio atrás.
Evidentemente feito o balanço, haverá saldo de realizações consoladoras.
Mesmo porque uma realização verdadeira vale mais do que todas as
imbecilidades reunidas.
A preocupação com a “hora” ou momento atual é uma tentativa de esmiuçar
as transformações que circundam o grupo – consideradas como instantes de grande
liberdade. Contudo, de acordo com o ensaísta, a “hora” é mal-interpretada pelos
artistas que a vêem como o momento de sua “desopressão infinita”, a sua hora de
“poderem entrar na ronda facilmente”. Para o crítico, o grupo modernista, senhor de
uma “mediocridade aborígine”, não possuía a compreensão da atualidade.
Referindo-se a Graça Aranha
o grande publicitário da Semana de Arte Moderna
Tasso afirma que:
Houve entre eles um surdo regozijo. Mas o diabo da transcendência
chamazinha do espírito criador ainda persistia (afora todas as outras coisas
que não viam) naqueles pedaços de ouro fumegante. Contiveram-se.
Calaram-se.
Um dia, porém, apareceu um maluco de talento que resolveu brincar com a
canalha. E estampou, em letra de forma, a título de poema e com o endosso
do seu nome prestigioso, uma porção de sandices à altura dela. E ainda por
cima escreveu um manifesto jocoso defendendo a “arte nova”.
Os participantes da Semana de 22 são vistos como cegos, pois não seriam
capazes de perceber a realidade em todas as suas facetas. Assim, para os
iluminarem, surgiria o nome de Graça Aranha que, como figura-chave do movimento,
aproveitar-se-ia, de modo burlesco, do momento e das sandices para apresentar a
sua visão da nova arte para o público. Tasso enganara-se, pois como afirma Alfredo
Bosi:
A verdade é que, com Graça Aranha ou sem ele, o Modernismo se
desenvolveria no Brasil como influência de um estado de espírito universal.
E até com algum atraso, pois que as suas manifestações mais clamorosas,
Cubismo e Futurismo, deram seus primeiros vagidos europeus por 1909.
79
A outra seção do texto denomina-se “Antologia” e é uma prosa em verso
que mistura diversas experiências do eu lírico, iniciando com o encontro amoroso:
“Me queira bem, Rosinha! Te juro que te amo!”, perpassando lembranças da família:
“Na sala pobre da casa da roça/ Papai lia os jornais atrasados/ Mamãe cerzia
79
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1976; p. 186.
66
minhas meias rasgadas”. O narrador lembra-se da escola e da sua professora,
parodiando o poema de Casimiro de Abreu: “oh, que saudades que eu tenho/ do
tempo em que “fessô” me botava orelhas de burro/ porque eu não sabia lição”,
finalizando, após o deboche, com a percepção do subdesenvolvimento: “que enjôo
de pensar que a esta hora precisamente 4.529 meninos a dizerem bobices desta
ordem pelo Brasil inteiro! Por este Brasil essencialmente agrícola!”. “Essencialmente
agrícola”, ou seja, não-desenvolvido, havia uma brecha enorme entre querer ser
desenvolvido e de fato sê-lo, éramos ainda como em nossas origens. De acordo com
Caio Prado Júnior:
Se vamos à essência de nossa formação, veremos que na realidade nos
constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais
tarde, ouro e diamantes; depois, algodão e, em seguida, café, para o
comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo (...) que se
organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele
sentido: a estrutura bem como as atividades do país
80
.
A terceira parte do artigo trata da “onda renovadora” que, para Tasso da
Silveira, não pode ser considerada arte, pois cria um ambiente “de burrice, de
‘escárnio estéril’, de silencioso deboche, de despreocupação das altas e puras
meditações, de desprezo pelo trabalho da inteligência, de influxos deletérios sobre
nossa formação mental (...)”. Nesse ambiente, a crítica recai novamente sobre os
modernistas de 22, pois eles dificultariam a união da nova arte e do novo mundo
com as condensações espirituais que, para Tasso e para o grupo de modo geral,
são os cernes da obra artística.
O contato com a espiritualidade busca a adesão à alma popular com a
natureza genuína da realidade brasileira. Os artistas estariam, portanto, tomados de
tal forma por uma “onda renovadora”, vinda da Europa, que facilmente se
desligariam dos elementos que criaram as estéticas do passado; todavia, a crítica é,
sobretudo, em relação à assimilação das vanguardas por parte dos colaboradores
da Semana de 22 de forma “acrítica”. A “onda renovadora” é benéfica, mas é
fundamental valorizar também a tradição, pois sem o passado não há nenhum
progresso. Entretanto é importante ressaltar que a tradição recente a que se refere
Festa é a romântica e a simbolista; o parnasianismo já estava esgotado e bolorento.
80
JÚNIOR, Caio Prado Apud CHAUÍ, Marilena. Brasil mito fundador e sociedade autoritária. São
Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000; p. 33.
67
Para dar exemplo dos artistas que o levados por essa onda renovadora e
dela fazem bom proveito, Tasso cita: Cecília Meireles e suas cadências, Andrade
Muricy e suas faiscações de imagens, o suave sabor de Guilherme de Almeida, as
iluminações de Murilo Araújo, o delicioso ritmo dissoluto de Manuel Bandeira, as
almas e as folhagens pisadas do admirável Plínio Salgado, as bocas erguidas para
beijos ansiados de Gilka Machado, a fascinante crítica descobridora de Henrique
Abílio, a América de Ronald de Carvalho, as paisagens provincianas de Ribeiro
Couto, a alegria do sol amanhecente das páginas jogralescas de Brasílio Itiberê, as
adivinhações surpreendentes de Adelino Magalhães, a ternura amorosa de Abgar
Renault e Emílio Moura, o neo-romantismo de Wellington Brandão, as pinceladas
verde e amarelo de Cassiano Ricardo, o religiosismo lírico de Karam, a jovialidade
garota de Alcântara Machado, os bonecos que vivem em Menotti Del Picchia, as
revelações de alma infantil de Guilherme de Castro e Silva, a ação dinâmica e a
individualidade desbordante de Mário de Andrade, as novas novelas de Oswald de
Andrade, a renúncia gloriosa de Rodrigues de Abreu, o fervor claro de Heitor Alves e
a poesia ainda verde de Augusto Meyer.
Quando Tasso enumera os artistas acima, deixa claro que nem todos são
gênios, mas eram aqueles que vinham trabalhando com “todo o vivo e dinâmico
fervor dos verdadeiros artistas” para ampliar os horizontes da arte brasileira
moderna. O ensaísta termina essa seção do artigo afirmando que os escritores
citados formavam grupos ou escolas que se uniam em três ou quatro correntes, e
que essas, por sua vez, se ignoravam mutuamente.
A quarta seção do texto denomina-se “e, contudo.::”, Tasso mostra-se
preocupado com a formação do blico leitor brasileiro, afirmando que ele é
palerma, não entende nada de arte, logo era dever dos artistas brasileiros guiá-los,
orientá-los e, ironicamente, sugere que os jovens escritores deviam tornar-se público
na nova arte antes de transformarem-se em artistas. De acordo com Tasso, os
jovens artistas não dialogavam com os antigos porque não os conheciam, estavam
preocupados somente em criar sua arte: “Mas vocês de nada disso querem saber.
Querem escrever, ‘apenasmente’. Botar o nomezinho por baixo... Por baixo de quê?
De qualquer ‘bestidadezinha’ que saia impressa nas páginas das revistas que vocês
mesmos fundam para tal fim”. O que o ensaísta critica é a quantidade crescente de
escritores, enquanto o número de leitores tornava-se cada vez menor. Logo, para
ser um bom escritor, a partir das idéias do ensaísta, era necessário conhecer
68
anteriormente a tradição, pois é a partir do conhecido que se pode desenvolver a
criatividade e a originalidade, não correndo o risco de promover imitações.
Considerando-se um “otimista impenitente”, Tasso afirma ser importante
colocar nas cabecinhas dos novos artistas algumas noções “essencialíssimas acerca
do maravilhoso momento de gênese”, devido a esse desconhecimento, os jovens da
atualidade não atingiriam a significação profunda da arte; ainda mais que a
construção de uma obra densa ocorreria depois de muita leitura e trabalho.
Lembremos que o nome do periódico é Festa: mensário de pensamento de arte”, ou
seja, a arte provém da teoria, de um projeto do intelecto.
A quinta seção do ensaio denomina-se “equívoco” e pretende explicar para
os jovens que, para haver novas formas, é fundamental que tenham aparecido
anteriormente velhas formas; para que surjam novos ritmos, velhos ritmos surgiram
anteriormente. Assim, a arte do momento é vista como aquela que seleciona, pois
exige “formidáveis condensações interiores”:
A arte desta hora exige profunda e virginal sensibilidade. Porque o verso, ou
a prosa, não tem mais a musiquinha costumeira que enganava os ouvidos.
Ou corre seiva por este caule, e ele se ergue, ou não corre, e ele tomba;
seiva criadora, que brote das subterrâneas galerias do espírito, como um
óleo, e traga nela diluído o fermento dos sentimentos eternos.
O artista acredita que aquele é o “instante de realização” e, de acordo com o
ensaísta, as características fundamentais da arte do momento o: velocidade,
totalidade, brasilidade e universalidade. Desse modo, Tasso traça os pilares da
proposta da Revista, numa tentativa de construir, artigo por artigo, a poética de
Festa.
O conceito velocidade é tratado na sexta parte do artigo. Velocidade o é
vislumbrada como o ato de falar de trens de ferro e aeroplanos, mas trata-se de
descrever, de esmiuçar cada movimento da alma, o que pode gerar umas dezenas
de páginas, como faz, por exemplo, Marcel Proust. A velocidade a que se refere é a
velocidade expressional “isto é, da expressão que condensa fortemente a matéria
emotiva, e evita, em transposições bruscas e audazes, os terrenos batidos do
espírito, e é sempre inesperada, surpreendente”. Dessa forma, a velocidade é o
movimento que leva o leitor mais rápido ao essencial, ao “sentimento virgem das
coisas”. Afrânio Coutinho em A literatura no Brasil Era Modernista equivocara-se
69
quando afirmou que a velocidade de Tasso da Silveira estava próxima a dos
modernistas da Semana.
A totalidade, por sua vez, é o tema da sétima seção. Para atingir o essencial
é mister que o artista se assenhore da realidade integral, ou seja, da realidade
humana e transcendente, material e espiritual, humilde e formidável. Para alcançá-la
em sua integridade, o artista tem de apreendê-la por inteiro, mesmo que essa seja
deformada:
O artista deforma porque a luz deforma, porque o movimento deforma: e o
artista quer, antes do mais, captar a vida. Transfiguração não é o que vocês
supõem. O artista transfigura porque os seus sentimentos penetram as
coisas, transfigurando-as. Porque tem uma visão que lhe é própria. Porque
tem um Desejo que é seu. E esta visão hoje abrange a totalidade. E este
desejo se tornou infinito...
A brasilidade é o sétimo tópico apresentado por Tasso. Ela é o “fazer viver,
pela arte, mais luminosa do que tudo, a realidade brasileira”. O destino do artista
brasileiro é “expressar mais luminosamente do que a todas as outras realidades” a
nossa brasilidade. E, de acordo com o crítico, os modernistas estavam cegos como
“estátuas de pau... brasil”, pois pensavam que, para atingir a realidade brasileira, era
só utilizar-se do pitoresco:
(...) botar no pseudoverso, com todas as letras, o nome da aldeiazinha em
que vegetam. Ou em traçar a caricatura do boticário da esquina (ainda
hoje!) Ou em arrumar p’ra cima desse imoralíssimo cassange. Ou em
lembrar, entre lágrimas, a mamãe preta que os ajudava a fazer pipi...
Os primitivistas, que queriam começar do princípio, desconheceriam como
chegar ao início da realização, não saberiam como “boiar no vasto fervedouro do
subconsciente brasileiro”, não formulariam indicações do “que somos, do que
viremos a ser, dos ritmos que nos são próprios, de nossa música profunda, da
beleza que, por ser nossa, mais altamente podemos realizar?...” E questiona:
Que trazem vocês para a poesia e a novela? – A expressão direta e
dissaborida de ambientes primários e de pieguices domésticas: cenas de
aldeia, recordações lacrimosas, facécias fáceis, tudo isso despejado em
linguagem chula e enjoada.
Esse ímpeto ardente de renovação dominou o grupo, de acordo com Tasso,
devido também ao choque profundo da guerra e de seu materialismo, o que
70
apressou a “nossa cristalização racial”, uma vez que ela: “Despertou-nos melhor
para o sentimento de nós mesmos./ Aguçou nosso desejo/ Complexificou as nossas
ânsias./ Abriu válvulas à torrente do nosso instinto de povo (...). A herança da guerra
fora o estopim para o movimento de internalização do eu.
O nono e último tópico é composto por uma questão de duas linhas: “Vocês
compreenderam que nestas condições seremos contados como uma realidade
viva no mundo?”. Nesse questionamento de Tasso, percebemos que o conceito de
universalidade por vezes ainda se mistura ao sentimento, por parte do grupo e dos
artistas brasileiros como um todo, de ser compreendido e inserido no mundo, ou
seja, ser aceito, reconhecido e admirado pelo “irmão“ europeu. Vivíamos ainda com
os olhos direcionados para fora de nossas porteiras.
2.2.2
A
LEGRIA E TOTALISMO CRIADOR
O artigo que data de fevereiro de 1928, “Alegria criadora”, divide-se em cinco
seções, deter-nos-emos nas quatro primeiras partes: originalidade divina,
conhecimento, o pensamento cósmico, as sombras.
Na primeira parte do texto, a originalidade é o tema central, mas o ensaio
não se refere a qualquer originalidade, mas àquela que marca a originalidade divina,
que representa a própria vida, a realidade surpreendente. Assim sendo, Deus é
compreendido como o “senhor da totalidade das coisas, da totalidade dos ritmos, da
totalidade das formas”. Diferente do artista que é individualista, limitando nas
palhetas as suas cores, organizando os assuntos premeditadamente, Deus é o
senhor da diversidade voluptuosa, e é nessa diversidade que se manifestaria o
Espírito Absoluto “pela realidade da vida, pela afirmação do ser que até no
mais rasteiro das estrelas”. Visualizamos nessa afirmação a inquietação do ensaísta
em promover uma arte que se mostre livre e, ao mesmo tempo, não se detenha
somente nos sentimentos do artista, mas que seja capaz também de abranger uma
realidade mais ampla.
De acordo com Tasso, deve haver no artista um sentimento de ansiedade
verdadeira pela vida de sua obra. Ele tem de sentir nela a vida em si mesmo, “a
imortal palpitação do que foi realmente criado” e que “passou a representar uma
realidade nova entre todas as outras realidades do universo. Porque a vida é
indestrutível e só o ser permanece”. Assim, há uma preocupação evidente em “sentir
71
a obra de arte” como uma manifestação divina, espiritual; entretanto, devemos
lembrar, não arte sem pensamento para os colaboradores da Revista, desse
modo, a inspiração surgirá junto ao conhecimento, ou seja, de uma teoria estética.
Preocupado em estabelecer doutrinas que abarquem as características da
verdadeira arte, do legítimo artista e das relações metafísicas que os unem, Tasso
assevera ainda em mesmo artigo:
O artista verdadeiro não escolhe cores, ritmos ou formas. Sente apenas
profundamente as coisas, e a sua visão particular, a sua particular
sensibilidade é que lhe determina tiranicamente as formas, os ritmos e as
cores que ficarão marcando na obra a sua individualidade poderosa. E se,
em geral, os grandes artistas se caracterizam por um conjunto de processos
inteiramente seus, por uma inconsciente escolha de certos ritmos, de certas
formas e de certas cores, é porque o homem não tem a sensibilidade infinita
de Deus, e pode sentir através de um prisma determinado, e na
limitada linguagem que lhe é própria é capaz de transmitir aos demais as
sugestões dos sonhos.
A segunda parte do texto chama-se “conhecimento” e inicia afirmando que
havia um tempo em que se acreditava que a “ciência seria a morte da poesia”.
Contudo, “a verdadeira poesia é algo de mais alto e profundo. É o maravilhamento
do poeta diante do milagre da vida. E o conhecimento, a ciência, pode patentear
mais claramente esse milagre”. De acordo com o autor, foi com a ciência que se
criou um novo modo de sentir, o que teria derivado, por exemplo, um Maeterlinck.
Isso significa que, a partir da especulação profunda da ciência, a literatura passara a
estimular ainda mais a sua criatividade e a mergulhar em universos ainda mais
profundos.
Penetrar cada vez mais em universos densos e íntimos do sentimento é uma
das funções mais primorosas do poeta. Para isso, ele deve tornar-se um caçador de
imagens, pois é a partir delas que ele obtém o conhecimento do mundo. Assim, de
acordo com Tasso:
O poeta é um caçador de imagens, e as imagens do mundo enchem-lhe o
sonho comovido de palpitante realidade. E é por esta realidade que os
outros homens o entendem e lhe penetram o mais íntimo do sentimento.
Dir-se-ia que ele entrega à terra a própria alma, como faz com a semente o
lavrador, para que nas imagens ela se vista de realidade e floresça na
expressão. Exprimir-se é comunicar-se. E é por intermédio do mundo que o
poeta se comunica com as outras almas. Conhecer é totalizar a realidade, e
absorvê-la mais profundamente. É enriquecer, portanto, a própria
substância da expressão.
72
A terceira parte do artigo, “O pensamento cósmico”, questiona a
possibilidade de fazer o pensamento científico conviver em harmonia com a fé
religiosa. É recorrente em outros ensaios do Periódico a preocupação com o espaço
que o conhecimento científico tomara. A partir das concepções de Gaston
Bachelard, podemos afirmar que a obra de arte e a ciência possuem a mesma
origem: o ato de sonhar. De acordo com Vera Lúcia G. Felício, para Bachelard:
Há duas vias de acesso aos homens e às coisas: de um lado, a da ciência e
da técnica, através de uma “cidade científica”; de outro, a da poesia e a da
imaginação, que nos libertam das referências da memória a fim de descobrir
homens e coisas
81
.
Assim, conforme Tasso da Silveira, o homem precisa tanto da ciência como
da religião. A última, para ele, se configura como:
(...) um clarão supremo que nos ilumina infinitamente mais do que a ciência;
no entanto, não nos dá nenhuma certeza, na acepção científica do
vocábulo: nas palavras que ficaram tremendo problema psicológico.
Exprimem elas, antes de tudo, que na fé mais ardente há inquietação
profunda, e que o desejo humano aspira, no seu conhecimento de Deus, à
serenidade da ciência.
Por outro lado, o conhecimento científico não é capaz de explicar tudo,
que todo homem possui sede de explicações, ânsia pelo absoluto:
Todavia, do próprio fato da nossa organização espiritual, sabemos da
impossibilidade de um absoluto conhecimento objetivo. A indagação
objetiva nos os fenômenos, e nós temos a sede do absoluto. E é por
isto que procuramos Deus dentro de nós.
O próximo subtítulo do artigo denomina-se “As sombras”. Nesse trecho,
Tasso da Silveira apresenta a idéia de que o pensamento dos participantes ou dos
colaboradores de Festa é proveniente de três fontes distintas: a que herdamos, a
que vivemos e a que lemos e ouvimos, ou seja, a arte é o resultado da tradição, da
experiência e da experienciação, todas unidas e interdependentes. Assim, a arte
dirige-se a uma teoria das sombras, junção dos fragmentos conscientes e dos
subconscientes para, dessa forma, apreender a realidade:
81
FELíCIO, Vera Lucia. A imaginação simbólica. São Paulo: Edusp, 1994; p. 2-3.
73
A verdade é que é há uma teoria de sombras que a nossa invocação se
dirige. Sombras que se formaram no fundo de nós, de todos os
pensamentos, e dos fragmentos de pensamentos, e das sugestões do
pensamento que de todas as partes nos vieram.
A obra artística forma-se através dos fragmentos do consciente e do
subconsciente que dialogam de forma direta ou indireta com os elementos de nossa
vivência, congregando-se de diversas maneiras. Desse modo, a arte segue o
chamado do sentimento religioso, da “comovida estesia” ou ainda da “curiosidade
metafísica”. Esses fragmentos, por sua vez, estão associados à experiência, ou seja,
se “achareis traços de Goethe ou Ruskin, por exemplo, fundidos em traços de vossa
experiência, e de outras fisionomias (...) podeis ter tranqüila certeza de que, de
algum modo, estais criando”. É necessário, portanto, partir da tradição, do que foi
feito, para atingir a originalidade.
“Totalismo criador”, artigo de março de 1928, é um ensaio que inicia
afirmando que arte modernista possuía um ângulo muito estreito para medir a
ansiedade daquela “hora” que tinha um desejo profundo de expressão total: “de
expressão de nossas ingênuas ambições humanas, de nossas altas ambições
espirituais, de nosso particular sentimento das coisas, de nossa visão de mundo”.
Novamente surge a preocupação em representar também o inconsciente
associado à ansiedade do momento: “Consciente ou inconscientemente, trazemos,
todos, no coração, a inquietude tremenda”. A partir dessa reflexão, Tasso define as
correntes da época como: os dinamistas, os primitivistas e os totalistas ou
espiritualistas.
Os dinamistas são apresentados como aqueles que refletem sobre os
sonhos coletivos de construção material, pois o homem dinamista é aquele que
“ergue a cabeça com orgulho para olhar o ‘arranha-céus’ que se levanta e antegoza
a visão do país imenso sacudido, de norte a sul, da trepidação das vias-férreas e
das usinas”, representando, desse modo, embora legítimo, o que tínhamos de mais
“superficial e pueril”. Os dinamistas seriam artistas embasbacados com o poder da
modernização.
Os primitivistas são mostrados como aqueles que “refletem outro mais grave
sentimento popular: o de que o Brasil deve ‘recomeçar do princípio’ para encontrar-
se melhor consigo mesmo e libertar-se das desfigurações que o alheio influxo
imprimiu na sua fisionomia de povo”. Para Tasso, a diretriz do pensamento
74
primitivista comete o engano de querer desprezar todos os influxos que nos
legitimaram, ou seja, os artistas não poderiam olvidar da tradição; por exemplo, de
José de Alencar, tão citado e prestigiado pela Revista. O desprezo à tradição “privar-
nos-ia, se viesse a prevalecer, de poderosos elementos de expansão e
‘completação’ do nosso espírito”. Essa atitude seria muito adolescente, visto que
mesmo quando negamos a tradição o fazemos porque temos um ponto anterior à
realização nova. Lembremos da teoria dos fragmentos tecida por Tasso: jamais
podemos nos desvencilhar do que lemos, pois as nossas leituras formam fragmentos
na mente que são reorganizados até mesmo quando não percebemos.
Quando avalia sua corrente, Tasso escreve que prefere a denominação
totalistas a espiritualistas. Além disso, afirma que, diferente dos grupos anteriores,
Festa não apresenta uma viva correspondência com o consciente sentimento
popular, porque possui uma elaboração de espírito filosófico que nem todos podem
atingir. Os espiritualistas ou totalistas beberiam da “fonte viva da tradição” e
considerariam “a realidade brasileira integrada na realidade universal, co-
participando dessa perene permuta de forças interiores entre os povos, que faz a
complexa grandeza do mundo de nossos dias”. Popular para Tasso, portanto, não
remete a raízes folclóricas, mas a algo mais total, a “certo sentimento íntimo” de
povo: fonte da tradição.
Quando reflete sobre as vanguardas, o ensaísta compreende que falar de
arte moderna na Europa é muito diferente de falar de arte moderna no Brasil, visto
que, se o cansaço de antigas estéticas, aqui criar era uma forma de libertação.
Por isso havia, em nosso país, uma angústia em expressar o novo, ânsia de delinear
o que somos ou de anunciar o que nos empolga, isto é:
desde a alma popular até ao mais sutil e vasto pensamento filosófico e,
religioso, passando por significativas manifestações de nosso espírito
literário, ainda não penetradas dos ritmos modernistas
82
, mas assim
mesmo consideráveis como expressões de brasilidade comovida.
Dessa forma, a estética modernista mostra-se como uma veste muito
estreita para dar conta de autores como Jackson de Figueiredo e seu problema
filosófico-político-religioso. As diferenças quanto ao caráter de renovação entre
Europa e Brasil são muitas, pois:
82
É importante esclarecer que o termo “modernista”, para Tasso da Silveira, é sinônimo de arte
moderna.
75
enquanto na Europa os modernistas são puros índices de originalidade
individual, em nossa terra as três grandes correntes do modernismo
querem, cada uma à sua maneira, exprimir o Brasil que ficou sendo para
elas o quase único maravilhoso motivo de beleza.
Conforme esclarece Ferreira Gullar, falar de vanguarda em um país
desenvolvido é reciclar antigas formas, em um país subdesenvolvido é buscar o
novo, a libertação do homem a partir de uma situação concreta nacional e
internacional:
Mas essas ‘vanguardas’ trazem em si, embora equivocamente, a questão
do novo, e essa é uma questão essencial para os povos subdesenvolvidos
e para os artistas desses povos. A necessidade de transformação é uma
exigência radical para quem vive numa sociedade dominada pela miséria e
quando se sabe que essa miséria é produto de estruturas arcaicas. A
grosso modo, somos o passado dos países desenvolvidos e eles são o
‘espelho de nosso futuro’. Sua ciência, sua técnica, suas máquinas e
mesmo seus hábitos, aparecem-nos como a demonstração objetiva de
nosso atraso e de sua superioridade. Por mais que os acusemos e vejamos
nessa superioridade o sinal de uma injustiça, não nos iludimos quanto ao
fato de que não podemos permanecer como estamos, e estamos
‘condenados à civilização’. Não podemos iludir-nos tampouco tomando as
aparências da civilização como civilização, as aparências do
desenvolvimento como desenvolvimento, as aparências da cultura como
cultura
83
.
Outro nome citado por Tasso, no mesmo ensaio, é o de Tristão de Ataíde
(Alceu Amoroso Lima) que apresenta uma “complexa e palpitante curiosidade
espiritual”. Ainda são apontados os nomes de Alfredo Ladislau Mario Sette, Jarbas
Peixoto e, finalmente, José Lins do Rego. O último, conforme o crítico, revela grande
acuidade espiritual, assim como quase “toda a nossa literatura regionalista,
a que
melhor tem expressado até agora o que de ímpeto trágico em nosso espírito”. O
que diria Tasso se pudesse ter se maravilhado com a religiosidade de um
Guimarães Rosa e de sua travessia mística?
O modernismo de Festa é, portanto, o próximo tópico tratado pelo autor.
Definido como “o único modernismo verdadeiramente expressivo do espírito
brasileiro” daquele momento, ele visa buscar as raízes do ser, na intuição do grupo,
de um destino cósmico que anseia pela totalização e pela expressão integral. O que
interessa ao Mensário é, sobretudo:
83
GULLAR, op. cit., p. 23-24.
76
afirmar a nossa alma diferente (porque em toda obra de Deus a diferença é
que afirma a realidade), embora para em seguida constatarmos o fundo
comum de infinita similitude que faz de cada povo um irmão de todos os
povos, como de cada homem um irmão de todos os homens.
E sobre a recepção das novas tendências da arte, Tasso explica em nome
do grupo:
Não poderíamos, por exemplo, deixar de receber com fervor extremo a
libertação da poesia das velhas medidas e dos velhos ritmos, porque dentro
dessa libertação melhor poderiam pulsar os nossos ritmos próprios e mais
alto ressoar a nossa música interior.
Logo, a arte, para os colaboradores da Revista, está atrelada aos anseios
subterrâneos da alma. Nesse sentido, é pintada como a representação ao mesmo
tempo das aspirações espirituais e da realidade, pois essas indefiníveis nostalgias
revelariam uma reação do grupo ao processo de materialização do mundo moderno,
ao objetivismo do mundo tecnicista; todavia, é importante lembrar que essa acepção
não é uma reação ao cientificismo, visto como o resultado dos anseios e das
especulações humanas que podem ser ora de cunho filosófico e religioso ora de
cunho científico. Destarte, independente da origem das especulações e da
ansiedade, elas provêm do espírito, da busca do ser em apreender a realidade e de
religar-se a uma mais totalista e metafísica.
2.2.3
Q
UEREMOS SER OU O NACIONALISMO BRASILEIRO
O texto que data de maio de 1928 é uma resposta à entrevista de Jaime L.
Morenza ao periódico La Cruz del Sur de Montevidéu. Um trecho da entrevista é
reproduzido na Revista, e o uruguaio critica a “falta de vulto da intelectualidade
brasileira”, o “afan de querer abrasileirar tudo, de separar-se”, o que constitui, para
Morenza, uma tara mental. O que o crítico uruguaio nota é que, na tentativa dos
brasileiros construírem sua identidade, a preocupação com a nacionalidade tornara-
se uma obsessão e um fascínio cíclico, porque, depois de Machado de Assis ter-se
libertado da tara mental nacionalista, os modernistas de 22 e todos os grupos
modernistas retomam, e com toda a força, o velho assunto brasileiro.
De acordo com a visão do crítico uruguaio sobre o caráter nacionalista
brasileiro, existe em nossa literatura uma “onda em que há secretos, o
77
suspeitados amargores da irrealização, do desejo que luta por expressar-se, do
modo de ser que ainda não se manifestou”. Logo, estávamos ainda tão preocupados
em definir o que éramos que não conseguíamos nos libertar das amarras dessa
missão, impedindo o vôo eficaz de nossa literatura, como compreendera Machado
de Assis. No entanto, para nos depreendermos desse ofício nos afirmarmos
,
tínhamos, conforme explica Tasso, que esquecer de nós mesmos, o que, para o
ensaísta, é tarefa impraticável, porque é característica dos brasileiros admirarem a
grandeza de outros povos, a grandeza interior dos outros povos para, assim,
“podermos deixar de desejar a grandeza interior em nós”. Dessa forma, a admiração
pela cultura européia parece servir de exemplo também para o que não se deseja ou
não se anseia para o Brasil, sobretudo quando se refere aos sentimentos de
superioridade da metrópole.
A cultura do outro, no entanto, não serve somente como exemplo, mas, de
acordo com o crítico, “no Brasil, a alma humilde do povo está sempre pronta a
aceitar a superioridade alheia sobre nós”. Ou seja, o sentimento de passividade
brasileiro é visto por Tasso como um aspecto positivo, pois não demonstra que não
somos criativos ou que somos deslumbrados, mas sim humildes. Desse modo, o
ensaísta explica que “o amor à tria não é, pois, um vão sentimentalismo nem um
instinto anacrônico. É uma condição, uma lei de nossa humana realidade”. Aceitar a
influência do outro seria qualidade de nosso espírito humilde.
Morenza afirma que a intelectualidade brasileira apresenta o que denomina
de “preocupação nacionalista”; contudo, para Tasso, isso é nada “mais do que o
sentimento vivo de que nós ainda não nos realizamos integralmente”. O nosso
nacionalismo é definido por Tasso não como “orgulho hostil e fechado”, mas como
“ansiedade criadora”, que diferente dos europeus que queriam se renovar, s,
ainda muito jovens, almejávamos encontrar o nosso caminho, aprendendo com os
outros “as lições que nos servem”. Na medida em que procurávamos o nosso
caminho, a influência do outro era aceita e até recomendável.
Assim, o objetivo da nossa literatura não era “tudo abrasileirar”, mas criar
uma literatura honesta, ou seja, que possuísse características essencialmente
brasileiras; todavia, esclarece que, para isso, a recusa à imitação servil é necessária,
que “o próprio do espírito é criar, e criar de si mesmo. O alimento que lhe vem de
fora lhe é alimento quando assimilável e assimilado”. Nesse processo, a
78
individualidade é peça-chave para a realização de uma arte que represente a
realidade local, mas não se restrinja a ela, visto que:
... mais do que o pensamento, a arte é expressão individual. Expressão do
mundo exterior transfigurado, refratado, e expressão do mundo interior em
seus instantes de transcendência. Mas expressão individual. Apenas,
quanto mais o poeta é o poeta, mais íntima é a comunhão do seu espírito
com a Realidade que o rodeia. Porque mais forte é o seu poder
transfigurador.
De acordo com o crítico, “o que cada povo tem dado de mais
profundamente humano, universal, é justamente o que reflete com mais fidelidade a
sua natureza interior”. Não haveria um homem universal propriamente dito, mas um
sentimento íntimo universal que ligaria todos os povos; e esse sentimento, por sua
vez, estaria ligado à marca divina e metafísica do Criador.
O amor à pátria é vislumbrado, portanto, não como um vão sentimento, mas
como uma lei da realidade humana, uma vez que “nenhum indivíduo, povo algum,
chegará a realizar o máximo de suas possibilidades se falsear o seu temperamento
próprio, se ‘torcer a sua vocação’, se o souber defender o seu espírito”. O que
podemos depreender das idéias de Tasso é que o sentimento nacionalista e o
anseio metafísico são dois pólos que se complementam e estão nas origens de
todos os seres, logo, de toda a arte.
Sobre o que Morenza afirma ser “tara mental”, Tasso responde que esse
sentimento ou, em certa medida, obsessão em perseguir o assunto, demonstra a
vontade do povo de realizar-se integralmente, o que ainda não teria acontecido. Não
obstante, é importante esclarecer que, sob os olhares humildes de nosso povo, não
há nenhum sentimento de inveja ou rancor em relação às demais literaturas, e
esclarece: “nosso ‘nacionalismo’ não é orgulho hostil e fechado. É ansiedade
criadora. Aprendemos com os outros as lições que nos servem”.
Essa visão de Tasso reitera o ponto de vista da Revista, ou seja, a
necessidade de não romper com a tradição, mas de dialogar com ela. Essa posição
choca-se com a do grupo modernista de 22 que, de acordo com os colaboradores de
Festa, aceitariam facilmente e sem críticas as tendências e vanguardas da Europa.
Os participantes do Mensário, de acordo com ensaísta, recusavam-se à imitação
servil das vanguardas, porque tal atitude se contrapunha à arte de criar. Lúcia
Helena, em ensaio sobre o modernismo paulista, aponta para a posição ingênua dos
79
participantes da Semana ao assimilar sem crítica o que vinha de fora, como
apontamos nesta dissertação.
O nacionalismo e o universalismo apareceram, desse modo, como
elementos complementares, pois teríamos o dever de surgir como realmente
éramos, para que assim o mundo pudesse “contar conosco”; a partir de nosso
nacionalismo, alcançaríamos uma arte distinta da do velho mundo, ocupando um
espaço único no quadro da literatura universal. O nacionalismo era, pois, o caminho
para o universalismo, visto que, a partir do sentimento de nacionalidade, os artistas
renovariam, em meio a tantas modificações, o quadro da literatura brasileira. É
evidente que está no centro dessas inovações a presença de um sentimento
nacionalista, religioso e totalista, escasso e carente na modernidade de então. De
acordo com Maria Margarida Gouveia:
Muitas vezes ressurgirá a temática nacionalista mas sempre numa
perspectiva de integração na realidade universal. Deste modo, a brasilidade
de Festa, subentende universalismo, e assim, a identidade de um povo é
vista pelo outro como algo dele também. Volta-se a reflexão para o ser
nacional como processo de auto-identificação que reconhece um estatuto
histórico-cultural singular, mas numa construção que passa forçosamente
pela abertura ao mundo cultural do tempo
84
.
Nesse sentido, a arte como expressão individual apresenta sempre um pólo
externo, o nacionalismo, e um pólo interno, a transcendência ou o sentimento de
religiosidade. Logo, cantar a realidade local e a realidade individual e interior é visto
como condição prima para qualquer grande poeta, desde os românticos até hoje,
sendo o segundo pólo muito mais vasto que o primeiro, que é a partir dele que o
poeta desdobra a sua realidade desde o “simples amor à paisagem natal, de cuja
frescura de beleza se embebe a lascívia dos sentimentos”, até as mais “audazes
aspirações universalistas e as mais transcendentes melancolias metafísicas”.
É equivocado, por isso, afirmar que Festa não tinha preocupações com a
questão nacional, como pensam muitos críticos; o nacionalismo é peça-chave para a
construção de uma arte que represente a realidade brasileira, entretanto ela não
pode ficar presa a ele, é necessário, para Tasso da Silveira e para os demais
participantes da Revista, imergir no universo dos sonhos, na metafísica e na
religiosidade para, assim, melhor abarcar a aventura artística. É importante ressaltar
84
GOUVEIA, op. cit., p. 33.
80
que: “Na globalidade, Festa apresenta um pluralismo religioso que respeita no
homem a tendência para o sobrenatural, para o Absoluto, mas sem reconhecer na
Igreja Católica o monopólio das consciências”
85
. Os ideais apresentados em Festa
demonstram o medo e a ansiedade diante das modificações do início da década de
20, a tentativa de compreender as novas estéticas e as configurações da arte
moderna que se delineavam, mesmo que por vezes teça uma crítica um tanto
abstrata e lacunar, promovendo uma tensão dentro do seu próprio discurso.
2.3
H
ENRIQUE
A
BÍLIO E O EGOÍSMO ESTÉTICO
Colaborador entusiasta do Mensário, Henrique Abílio contribui para a
Revista tanto através de textos teóricos de requintado exercício intelectual quanto de
textos literários como contos e poesias. Estudioso curioso do sentido da arte, o
crítico estabelece o valor da obra a partir de si mesma, utilizando também os motivos
de ordem transcendental e metafísica para explicar o fenômeno artístico, como
esclarece Mário Camarinha no ensaio “Tempo de Festa”
86
. Esse sentido e valor da
arte que se autocentra é o que Abílio denomina “egoísmo estético”, ou seja, a
capacidade da arte de refletir sobre sua própria função, e só ela ser capaz de
abarcá-la.
Preocupado em apreender a função da arte na modernidade, Henrique
Abílio esclarece em artigo de agosto de 1927, “O fumo da chaminé”, que são dois os
aspectos que caracterizam a arte moderna:
o que configura uma profunda verdade possuída e sentida e é no
alheamento de toda a regra preestabelecida uma realização espontânea e
independente e o que resulta da obediência passiva e despersonalizada a
preceitos conhecidos e preexistentes à objetivação artística.
Desse modo, vislumbramos que a forma artística, quando entendida como
verdade possuída e sentida, é mais independente e espontânea e, por isso, pode
estabelecer uma nova estética. Já, quando é resultado da obediência passiva e
despersonalizada, serve somente a estéticas determinadas, uma vez que apresenta
85
GOUVEIA, op. cit., p. 60.
86
CAMARINHA, Mário de Sá. Artigo publicado em edição comemorativa à memória de Tasso da
Silveira em 1978 (edição fac-similada de Festa).
81
modelos rígidos e sujeitos à objetivação, ou seja, cabe em moldes, pois demonstra
preceitos já conhecidos.
O ensaísta define o verdadeiro artista como aquele que apresenta as
características de sua época, mas não como um fim, já que, dessa forma, a obra de
arte não resistiria ao tempo e tornar-se-ia ilegítima em tempos futuros. Essa será
uma preocupação constante na crítica de Abílio: a universalidade da arte.
Desde os tempos de Alencar, na literatura brasileira uma inquietação
obsessiva com a cópia. A respeito desse tema, Abílio alerta para a demasiada
preocupação com a originalidade, criando obras artificiais que não assimilariam o
sentido da imitação, produzindo “imitação no pior sentido: não assimilada nem
sentida e portanto inadequada e falsa”. É o que afirma Roberto Schwarz quando
esclarece, no artigo “Nacional por subtração”
87
, anos mais tarde, que “brasileiros e
latino-americanos fazemos constantemente a experiência do caráter postiço,
inautêntico, imitado da vida cultural que levamos”. Esse caráter inautêntico da arte
brasileira será resolvido em parte por Oswald de Andrade quando cria a estética
antropofágica, entretanto é importante ressaltar que, ainda ingênuo, o grupo de
Oswald faz uma assimilação sem desenvolver contundentes críticas diante desse
banquete. Na cada de 20, não tínhamos a consciência de nosso atraso, pois
críamos que alcançaríamos a Europa e ajustaríamos o relógio. A visão antropofágica
de Oswald de Andrade interpreta o nosso retrocesso a partir de um caráter
triunfalista, queimando uma etapa, conforme afirma Roberto Schwarz no artigo
citado.
Henrique Abílio, ainda refletindo sobre a assimilação ou não das
vanguardas, enfatiza que é necessário encontrar na obra de arte o que de fato nela
é espontâneo e verdadeiramente sincero. A imitação não serviria nem ao menos
para apreender um estilo de um autor, pois, de acordo com o crítico, “todo o mundo
está farto de saber que aprender estilo é a maneira mais certa de se não ter estilo”.
Logo, está no cerne da arte apresentar um sentimento particular e verdadeiro, já que
quanto mais particular for esse sentimento
pensemos aqui, sobretudo, sobre o
87
SCHWARZ, Roberto. “Nacional por subtração” In: Cultura e política, 1964 – 1969. São Paulo: Paz e
Terra, 2001; p. 108.
82
caráter nacional
mais universal ela será. Essa idéia compactua com a de Liév N.
Toltói no artigo “O que é arte
88
, quando afirma que:
... se o artista for sincero, ele expressará seu sentimento como ele o
experimentou. E, como todos nós somos diferentes, esse sentimento
aparecerá também particular a qualquer outro homem, e isso quanto mais o
artista tiver ido fundo em sua sinceridade. Esta mesma sinceridade obrigará
o artista a encontrar uma expressão clara para o sentimento que ele quer
traduzir.
Em fevereiro de 1928, em texto denominado “A balada tropical”, Abílio
constrói uma imagem bastante rica da modernidade que atrai, mas
sem dúvida
também
amedronta a muitos. A visão do crítico, diferente da dos participantes da
Semana de arte paulista, demonstra um olhar apurado, pois não os avanços
somente como elementos da salvação para um país que se acreditava separado da
Europa ou da Inglaterra por apenas alguns anos. Ferreira Gullar enfatiza que 1922
fora um ano em que havia forte “expressão de confiança de setores das classes
dominantes e da intelectualidade na possibilidade de o país abrir seu próprio
caminho”
89
. Observemos que, no texto de Henrique Abílio, é apresentada uma jovem
em meio a um carnaval tentando compreender, circundada pela multidão
90
, o
processo de balbúrdia que a cerca tal qual o homem diante das inovações dos
tempos modernos:
Dos automóveis transbordantes, as serpentinas desabrochavam em longos
coleios multicores, traçando de lado a lado da avenida uma teia bizarra,
cujos fios fremiam todos de simpatias fugazes e flertes instantâneos,
levando através das nuvens de confete e dos jatos glaciais de éter
mensagens silenciosas e ardentes... ... ... de outros acasos mais tangíveis,
menos distantes, menos dispersos na balbúrdia infernal daquelas horas
incompletas.
Como em “O homem das multidões”, de Edgar Alan Poe, o homem
(representado pela jovem) citado na prosa de Henrique Abílio utilizada aqui em
caráter exemplificativo encontra-se imerso na teia da modernidade em um
movimento desordenado, confuso, surreal, cercado de muitos, mas perfeitamente
só, procurando por si mesmo, tentando realizar-se, almejando, sobretudo, abarcar
88
TOLTÓI, Liév N. O que é arte” In Fundadores da modernidade (coordenação de Irlemar Champi).
São Paulo: Ática, 1991.
89
GULLAR, op. cit., p. 47.
90
Essa imagem de um homem aturdido em meio à balbúrdia do mundo moderno espresente nos
contos de Adelino Magalhães.
83
esse novo processo em busca de algo perdido: a compreensão de sua interioridade .
A multidão é, de acordo com Engels, o fenômeno em que a humanização lugar
para os milagres da civilização, em que “a diferença brutal, a clausura insensível de
cada um nos próprios interesses privados torna-se tanto mais repugnante e ofensiva
quanto maior é o número de indivíduos que se aglomeravam em um espaço
reduzido”
91
. Observemos outra imagem do homem da modernidade para Henrique
Abílio:
Eis aí: aquele homem lhe revelará subitamente a realidade íntima de toda
aquela exasperante obsessão: cada um procurando realizar-se, exteriorizar-
se, projetar fora de si, num delírio de salvação de si mesmo, o seu próprio
eu recalcado até à compreensão deflagrante, o seu eu verdadeiro, que era
menos uma equação ingênita tentando atuar num ambiente propício do que
um conjunto de tendências reativas a uma condição de vida ingrata e
coercitiva procurando libertação e sobretudo compensação.
O homem que se mostra perdido na multidão achará alento somente na
própria arte, pois será nela que o ser da modernidade encontrará “uma ascensão em
profundidade”, conforme afirma o crítico no ensaio “A modernidade universalista da
arte”. Será a arte que encaminhará o homem para o descobrimento da própria
essência, e esta se conjurará com a ânsia das nacionalidades para atingir a
universalidade, ou seja, será a partir da expressão do momento presente, abarcando
o sentimento de nacionalidade de forma mais verdadeira e essencial possível, que
teremos uma arte moderna, que “a arte é verdadeiramente grande quando é
moderna no tempo e universalista no espaço”. De acordo com o ensaísta, a arte é o
refúgio do homem perdido na atualidade.
Para atingirmos a modernidade universalista, conforme Abílio, é necessário
explicar as nacionalidades “não em face de si mesmas, mas em face do universo”;
entretanto, seu horizonte deve ser largo, visto que sua visão será “tanto mais
artificial quanto mais se afasta da realidade total ou mais se aproxima da realidade
parcial”. A arte, para o crítico, o tem função histórica, pois sua finalidade não é a
de explicar os acontecimentos do passado, mas de “revelar o presente e profetizar o
futuro”
92
. assim ela apresenta função profética. Com essa percepção, a
preocupação do ensaísta é a de evidenciar que a arte deve exprimir aspirações mais
91
ENGELS, Friedrich. Apud BENJAMIN, Walter. “A situação das Classes trabalhadoras em Inglaterra”
In: A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000; p. 47.
92
Sem dúvida, essa afirmação de Henrique Abílio é muito taxativa, não há como não negar a função
histórica na arte. Compreendemos que a inquietação de Abílio aponta para as raízes metafísicas da
arte, mas não reconhecer seu caráter histórico seria minimizar seu valor.
84
profundas em vez de simplesmente pintar um ambiente geográfico específico, já que
objetiva representar algo mais superior e universal. Mesmo que, para isso, ela
tivesse de partir de construções cada vez mais nacionais para poder alcançar o que
havia de mais universal.
Lembremos de Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa. Nessa obra, o
autor mergulha na linguagem e no imaginário do sertão nada mais particular a
fim de arrastar o leitor para discussões mais universais e metafísicas numa
travessia
93
que nunca se completa – à procura do sentido da existência construído e
reconstruído a todo o momento na linguagem de Riobaldo. Mesmo não tendo
Guimarães Rosa no horizonte, Henrique Abílio defende que o artista tem de transitar
entre particular-universal em um movimento constante para, dessa forma, apresentar
uma arte de aspirações nacionalistas verdadeiras. Vislumbramos essa concepção no
artigo “A modernidade universalista da arte”:
O artista, que é uma síntese de seu tempo e do seu meio, é portanto um
nacionalista espontâneo e inconsciente, porque a sua arte, projetando-se
sobre o mesmo fundo de aspirações universais, parte, contudo, e é força
que parta, do sentimento profundo de seu ambiente específico e da
compreensão perfeita e superior do que ele representa na ordem universal.
O crítico condena aqueles que consagram em sua arte o que ele chama de
“nacionalismo puro”, ou seja, uma visão restrita do mundo a qual ignora as
inspirações e os ideais metafísicos. O nacionalismo puro seria uma arte dissonante,
pois se mostraria como o resultado do que o ensaísta chama de cosmopolitismo
incaracterístico: uma atitude que assinalaria ausência de origem, não
compreendendo, portanto, que havia nas aspirações religiosas ou metafísicas de
cada povo o cerne das suas manifestações nacionais, de seu imaginário revelado a
partir da emoção comovida do artista. O nacionalismo seria, desse modo, “a
conseqüência da teoria individualista aplicada às coletividades”, logo nada mais
coletivo que a crença ou a aspiração metafísica ou religiosa. Essa é a equação
criada por Abílio em “A modernidade universalista da obra de arte” para definir o
caráter nacionalista e universal artístico: “Ser nacionalista em arte equivale a
encontrar a conexão sutil e o significado verdadeiro de uma modalidade nacional em
93
Como exemplo dessa travessia em busca do conhecimento que nunca se completa, podemos
também aludir ao conto “Terceira margem do rio” do livro Primeiras estórias do mesmo autor.
85
face do globo, tomado como a soma dinâmica de todos os povos na terra”. Abílio
compactua com o ideário da Revista clamando por uma arte totalista.
2.3.1
O
S PROBLEMAS DA LÍNGUA
Para Henrique Abílio, a chave do problema montado em torno da temática
do nacional está na linguagem, que acredita que é ela o meio em que operam as
diferenciações entre o idioma português e a língua brasileira claro que sempre
escapando ao exotismo –, não seria necessário, portanto, escrever em tupi guarani
para criar uma língua nacional, mas era imprescindível o ficar preso à linguagem
de chumbo dos lusos de 1500, uma vez que, de acordo com o ensaísta em artigo
denominado “Selvagens e fósseis”, deveríamos acompanhar a evolução constante
da língua que cada vez mostrava-se mais ágil, mais plástica e mais moderna.
O
artigo provoca os escritores: “Quem não quiser escrever em brasileiro (entidade
existente: o português no Brasil) que escreva no que quiser, que nós o
conservaremos num mortuário de raridades”.
Em artigo datado de dezembro de 1927, “A realidade brasileira”, Henrique
Abílio critica a posição diante da língua de Gonçalves Dias e Rui Barbosa, afirmando
que aquele teria composto detestáveis sextilhas lusas, “flor exótica de ancestralismo
e incompreensão brasileira do nosso ambiente virgem”, enquanto esse erraria o
conceito da nossa tradição, tentando “enclausurar em moldes rígidos a Língua
Portuguesa do trópico, sem atentar ao processo atrofiante que daí resultaria para o
nosso próprio pensamento”. Sobre o sentimento de brasilidade de Gonçalves Dias, o
ensaísta afirma:
O seu sentimento de brasilidade envolvia uma concepção simplista da
nossa realidade e ou a desvirtuava, inteiramente alheio da sua significação
profunda ou ia captar dentro da própria selva, reduzindo a uma expressão
linear o que já era um fenômeno mais complexo da civilização cristã, agindo
no sentido da nossa universalização.
Alinhavar o homem a terra, conforme explicita Abílio, não é a única forma de
demonstrar “a consciência íntima do seu berço nem a integração moral do indivíduo
no ambiente”. Era necessário compreender
86
em toda a sua complexidade extrema, o panorama multiforme que a vida
estendia diante dos seus olhos, porque as condições necessárias da sua
individualidade e da sua personalidade lhe não permitiam apreender o
sentido profundo da realidade ambiente.
Para penetrar nos influxos nacionalistas, dever-se-ia procurar um germe
fecundador que apresentasse características múltiplas. Abílio compreende que o
nosso nacionalismo não pode ser representado com apenas um traço, mas é a
união de traços particulares que, acumulados, formam o que o crítico chama de
poliangular. Esse ponto de vista compactua com a visão de Ferreira Gullar em
Argumentação contra a morte da obra de arte
94
, quando afirma que:
É impossível definir, portanto, um traço particular que possa caracterizar
uma possível arte brasileira, mesmo porque os traços que se poderiam
rastrear na experiência acumulada não o os mesmos nas diferentes
regiões do país. É certo, porém, que todos nós nos reconhecemos nessas
formas regionais e que a capacidade criadora do artista consiste
precisamente em transcender o que é particular, regional, e erigi-lo em
expressão universal. Quando ele consegue, a obra se torna, por seu
conteúdo, universal e, por sua forma, nacional.
Essa inquietação com a forma aparece na crítica de Abílio, ainda no mesmo
artigo, a partir da defesa de um idioma que caracterize o seu povo – idéia já
defendida por Jode Alencar –, visto que depois de Rui Barbosa uma estagnação
da língua teria atrofiado a sua expressão, criando um largo hiato que a tornaria
rígida e “incolor dentro das armaduras anacrônicas dos textos quinhentistas”. E
estupefato diante da “estereotipação lingüística”, o Brasil, segundo Abílio, passara “a
adorar imbecilmente um idioma velho e tardo, vendo nele um ídolo intangível,
sagrado”. Assim, para mergulhar nas raízes de nosso nacionalismo, era
imprescindível exprimir-se em uma língua que fosse semelhante à realidade
brasileira (título do artigo), que a língua, por muito tempo, teria somente
pastichado a Europa, apresentando um idioma que parara no tempo e que se
revelava inadequado para traduzir o valor intelectual e artístico da moderna arte
brasileira. Nesse sentido, os artistas mostravam-se cansados de
ver e de aplaudir imbecilmente o que os outros fazem, queremos construir,
queremos conhecer o que fomos, queremos ser agora de tal sorte que
94
GULLAR, Ferreira. Argumentação contra a morte da arte. Rio de Janeiro: Revan, 1993; p. 85.
87
sejamos no mundo e aos olhos do mundo, e que venhamos a ser amanhã e
sempre.
O crítico aponta, ainda no mesmo ensaio, que a função da obra de arte é
representar o seu momento e o seu espaço, mas não se restringir geograficamente,
pois assim perderia seu caráter universalista. Caso essa característica não seja
atingida, a arte não resistirá ao poder do tempo. A preocupação com a linguagem
mostra-se essencial para o ensaísta, porque a linguagem, como uma das
manifestações mais importantes da obra de arte para manifestar sua nacionalidade,
tem de representar o seu povo; logo, a luta por inovações da linguagem demonstra-
se como uma das metas mais urgentes para os artistas. A partir do particular da
linguagem, atingiríamos, conforme o crítico, a universalidade na arte. Quanto mais
egoísta
95
constitui-se a obra de arte, mais nacionalista e, conseqüentemente, mais
universalista essa arte se configura.
2.4
B
ARRETTO
F
ILHO
O AMANTE DE
B
REMOND
,
P
ROUST E
D
OSTOIEVSKI
Colaborador de Festa como ficcionista, crítico, pensador e escritor, José
Barretto Filho tinha fama de poeta desde a publicação, em 1922, de A catedral de
Ouro. Anos mais tarde, em 1947, o autor escreve Introdução a Machado de Assis.
Ensaísta com ares europeus, Andrade Muricy fora quem revelara Proust ao jovem
escritor.
Em agosto de 1927, Barretto Filho apresenta no artigo “O erro sutil de
Bremond”, de acordo com Neusa Pinsard Caccese
96
, “a validade das idéias do
filósofo de que ‘A Mística extinguirá a razão de ser da Poesia’”. Ainda no texto de
Barretto, o crítico explica que a diferença entre a atividade poética e a filosófica se
mostra a partir de uma linha de experiência única em que o contato “com a realidade
profunda se realiza sem nenhum processo de inteligência ou de raciocínio; é um
conhecimento direto, imediato, semelhante ao conhecimento místico”. Essa
afirmação de Barretto reitera a visão apresentada especialmente por Tasso da
Silveira e Henrique Abílio do artista como um missioneiro, um profeta, um ser
inspirado. Além disso, Barretto Filho reafirma a imersão nas raízes metafísicas da
95
A estética romântica é a escola mais egoísta de todos os tempos (representação do que há de mais
particular no indivíduo), entretanto é, sem dúvida, a mais universal.
96
CACCESE, op. cit., p. 111.
88
poesia, buscando na filosofia aporte para suas discussões, o que, em parte, parece
ter esmaecido nas gerações posteriores, salvo em Jorge de Lima, Murilo Mendes,
um certo Vinícius de Moraes, Frederico Schmidt e Cecília Meireles. A ligação entre
poesia e filosofia era esmiuçada nos “Fragmentos logológicos” de Novalis
97
quando ressalta que:
A poesia eleva cada ente através de uma ligação específica com o todo
restante; e se a filosofia, através de sua legislação, é quem prepara o
mundo para a influência efetiva das idéias, então a poesia é, por assim
dizer, a chave da filosofia, seu fim e significado, pois a poesia forma a bela
sociedade a família universal –, a bela organização doméstica do
universo.
Diante de uma sociedade que, de acordo com o ensaísta, o mundo
como se estivesse diante de espelhos deformadores, o homem moderno
supervaloriza a inteligência objetiva e esquiva-se de mergulhar em si mesmo. Nessa
direção, a teoria artística tem como função o mergulho no sujeito a fim de abarcar o
objeto estético:
(...) nós queremos uma teoria da Arte que não se resolva senão em si
mesma, de uma Arte que esteja verdadeiramente criando dentro de nós, a
todo momento, a nossa substância espiritual, e cumprindo a misteriosa
função de transformar incessantemente a vida nessa mesma substância
espiritual.
Separado de si mesmo, o homem moderno supervaloriza o pensamento
objetivo idéia referida por Andrade Muricy –, diante da procura de um
conhecimento mais interior, quebrando, portanto, a sua relação com o mundo
objetivo. No artigo denominado “O segundo pecado original”, o ensaísta esclarece
que:
o homem moderno quebrou a adequação da inteligência com o mundo
objetivo, porque tendo enriquecido a este com as mais surpreendentes
descobertas, esqueceu-se de proceder ao enriquecimento do próprio mundo
interior.
Nesse texto, Barretto Filho explica que havia, naquele momento, uma atual
crise das inteligências
que necessitaria de novos valores e da reeducação da
sensibilidade artística e de seus sentidos, visto que os homens mostravam-se cada
97
NOVALIS. “Fragmentos logológicos” In: Fundadores da modernidade (coordenação de Irlemar
Champi).
São Paulo: Ática, 1991; p. 31.
89
vez mais perdidos de si mesmos e da curiosidade de autoconhecimento: “O homem,
todavia, não se pôde conformar com essa prisão dentro de si mesmo. Conhecer é
transbordar-se, ir além de si mesmo, e isso parece ser a finalidade da alma
humana”. Citando Jacques Maritain, Freud, Lutero, Descartes, Heráclito, Proust,
Kant e Bergson no mesmo artigo, Barretto Filho compreende a modernidade como
um período de tumulto em que o homem estaria à espera do momento propício para
“entrar na compreensão integral do universo e depois na sua posse, porque não
nada que ele possua menos do que as suas formidáveis realizações materiais, sobre
as quais não exerce o domínio do espiritual”.
A preocupação com o futuro da arte leva o ensaísta a refletir também sobre
o futuro da língua. Em artigo de novembro de 1927, “O nosso instrumento de
expressão”, Barretto Filho como Henrique Abílio também na linguagem um
dos mais fortes traços de nacionalismo na nossa arte. Para o crítico, a língua traz, na
sua expressão histórica, a sua trajetória viva e o poder de todas as vozes de seus
ascendentes:
Honra aos elementos bárbaros que enriqueceram a língua; glória aos ritmos
obscuros do nagô e do kibumbo, que trouxeram à língua a interpretação de
uma natureza semelhante à nossa; glória aos poetas guaranis, que
apreendiam o universo em incisivas sínteses lingüísticas, e faziam os sons
parecerem com as coisas.
Isso sem olvidar as então atuais expressões da língua como a gíria, por
exemplo: “Honra aos colaboradores inconscientes, aqueles que formaram a gíria, e,
mordazes e joviais, proporcionaram à língua portuguesa o seu único ensejo
aprecível de humor e de epigrama”. A língua, para Barretto Filho, apresenta-se
multifacetada, poliangular como diria Henrique Abílio, porque como representação
do nacional, não pode negar o passado, mas também não deve ficar presa a ele.
Inovar era a tendência daquele momento; entretanto, inovar, para os participantes
de Festa, nunca significou negar os antecedentes, e sim partir deles para não
incorrer nos mesmos erros, como de Rui Barbosa, utilizado tanto por Henrique Abílio
como por Barretto Filho como exemplo de uma língua parada no tempo, alinhavada
aos modelos lusitanos e, conseqüentemente, não representante do ritmo nacional da
modernidade.
O ensaísta compreende também que o momento de inquietação criava
cortinas que dificultavam uma melhor avaliação das problemáticas que circundavam
90
a arte, necessitando-se, por isso, do distanciamento histórico para a projeção de
uma análise mais profunda do problema, cabendo somente aos novos jovens
artistas, provavelmente, a resposta:
E vós que ides receber o fruto dos nossos esforços, jovens artistas de
amanhã, podereis melhor do que nós avaliá-lo. Tudo está por fazer, até a
própria linguagem. Somos herdeiros de um instrumento de expressão
desvirtuado por todos os clássicos portugueses e brasileiros, que o
romantizaram, impuseram-lhe um ritmo pobre, sem os recursos de
orquestração que exigimos. É uma língua que chegou, com Rui Barbosa, a
um ideal declamatório, e se compenetrou profundamente dele. Honra aos
que pretenderam transformá-la: Alencar desejando transmitir-lhe a música
estranha das nossas florestas e dos nossos pássaros (a música que
adivinhou Carlos Gomes); Euclides agitando-a, deformando-a, marcando-a
de caracteres decisivos; Machado de Assis subtilizando-a, e tornando-a
capaz de traduzir nuances, essas nuances que andam em nós como portas
abertas para mundos interiores desconhecidos.
A partir de um plano imenso de possibilidades, a língua “sairá de nossas
mãos singularmente viva e realmente criada”. Como vemos, a preocupação com a
invenção do instrumento representativo da nossa nacionalidade é uma problemática
recorrente no Mensário. Logo, esse é um dos motivos que centralizam o elogio em
José de Alencar, entre outros aspectos: foi ele o primeiro a almejar uma língua
brasileira. A retomada do nacionalismo e a preocupação com a terra o vistas pelo
ensaísta como um retorno às origens por uma necessidade de descoberta e de
conquista do destino do país.
2.4.1
O
PAPAGAIO E A CEGONHA
Artigo de 15 de junho de 1928, “O papagaio e a cegonhaé um texto-chave
não para comentarmos a concepção acerca da nacionalidade presente em
Barretto Filho, mas também para reiterar a proposta do grupo de Festa. Nesse texto,
o ensaísta afirma que a arte brasileira não deveria ser orientada “para os assuntos
picturais
98
da terra”. Essa visão corrobora a dos demais participantes do Mensário,
pois também viam na arte pictórica aquela que ficava presa a representar
geograficamente o local ou o seu povo, ou seja, não apresentava o que Barretto
Filho denomina de realidade interior: aquela que evidencia a função totalista e
98
Neste artigo de Barretto Filho, devemos compreender a palavra “picturais” como adjetivo referente
a pitoresco.
91
espiritualista da obra de arte. Esse nacionalismo pitoresco, para o ensaísta, é fonte
finita:
Sobretudo no gênero narrativo. A preocupação de brasilidade objetiva, que
deseja afirmar-se buscando os nossos ambientes rudimentares, as almas
primitivas do sertão, ou remontando ao poema das origens, produziu
certamente as mais fortes obras modernas. vai sendo, entretanto, uma
fonte incessantemente bebida, e em breve completamente exaurida,
esgotada do suco novo que nos proporcionou.
Em 15 de abril de 1928, outro participante do Mensário, Adelino Magalhães,
critica os modernistas paulistas utilizando, para isso, um argumento que vai ao
encontro do desenvolvido por Barretto Filho: “Basta botar a alma fora da gaiola, e ela
cantará o canto de nossa terra com a toada que Deus nos deu. Não é preciso para
ser novo e ser patrício copiar Cendrars ou Catullo Cearense...”. Assim, para retornar
às origens, o grupo de Festa acredita que na equação da modernidade não se
poderia omitir o espírito, visto que
o espírito é criador e capaz de renovar-se; a natureza, ao contrário, se
repete e se extingue rapidamente. Entretanto, o preconceito que
assinalamos começa inconscientemente a repudiar, em nome da
brasilidade, toda narração que não se desenvolver nos currais, nas estradas
ou nos campos; os seus personagens devem ser os homens rudimentares,
a fim de que se incluam dentro do cunho brasileiro que se convencionou.
Havia uma necessidade urgente em representar o brasileiro também em seu
fenômeno urbano, produzindo uma literatura que fosse capaz de aprofundar o drama
do brasileiro, mergulhando profundamente na inquietude da vida do país em
contraposição às teses sociais que, conforme o crítico, eram traçadas com intenções
matemáticas, pois criavam uma literatura que chegava “à apoteose do cientificismo
barato, tantas vezes ensaiado, sempre que se pretende encarar o Brasil
geográfico e racial”.
O discurso crítico de Barretto Filho contrapunha-se, desse modo, a tudo que
pudesse ser esquematizado ou transformado em sistema, pois essa atitude gerava
uma arte reducionista. Para o ensaísta, o espírito da terra não estava na urgência de
se inserir papagaios e índios (ou negros) como forma de se atingir um caráter
nacional; pelo contrário, a mudança devia ser mais densa, não alcançando somente
as fontes desse caráter no drama do homem rural, mas também no vivenciado pelo
homem urbano: aquele que se confrontava brutalmente com a temida modernidade.
92
3. UM
ESTUDO:
O
CASO
ADELINO
MAGALHÃES
3. 1 A
MULTIDÃO DE
A
DELINO
M
AGALHÃES EM
F
ESTA
Quem sempre viveu na cidade e, portanto, em meio à modernização, é
incapaz de compreender as modificações abruptas ocorridas no processo de
mecanização na cada de 20 no Brasil ou, se quisermos estender um pouco mais
os nossos horizontes, na Europa do século XIX, ou seja, na Londres de Edgar Poe e
na Paris de Charles Baudelaire. Acostumados a conviver com a multidão e com a
velocidade do mundo moderno, nada mais nos assusta, no entanto nem sempre foi
assim, já que entrevimos que, pelo menos para os participantes do periódico carioca,
tal transformação provocava temor e ânsia.
A arte, para os colaboradores de Festa, mostrava-se ameaçada pelo
materialismo e pelo cientificismo que acompanhavam o processo da modernidade.
Nadando contra a corrente porque não exaltava a assimilação imediata das
vanguardas, que desconfiava de sua produtividade e de suas origens –, o grupo
de Festa via a atualidade, a hora veloz como denominara Adelino Magalhães, como
um período de tumulto em todas as instâncias, uma oportunidade para reavaliar a
hodierna situação, repensando e reorganizando os impactos do passado, como, por
exemplo, a guerra. Essa reavaliação fez com que o grupo criasse uma estética que
objetivasse o voltar-se para si como um processo de reflexão maduro em retaliação
ao cientificismo e ao materialismo que surgiam pós-guerra.
De acordo com Mário Camarinha, Adelino Magalhães é o maior nome de
Festa, embora tivesse participado do grupo a partir do Mensário América Latina
(1918) com o texto “Dedeco, discípulo de Tranquilino”, publicado em Tumulto da
vida. Legatário de uma estética que utiliza elementos do subconsciente, mostrando-
se sucessor da estética simbolista, os companheiros do periódico afirmam, em texto
publicado em junho de 1928, que sua arte, de caráter supra ou infra-realista, não
fora importada como a dos participantes do movimento Pau-Brasil, o que pontuaria o
ineditismo da estética do autor. Logo Adelino é vislumbrando também como um
precursor do supra-realismo, hoje denominado surrealismo.
Em novembro de 1927, Adelino publica em Festa o texto “Já vai Dedeco
para os seus quarenta” e, em junho de 1928, “Dedeco, discípulo de Tranquilino”.
93
Dedeco, discípulo de feições amarfanhadas, surdo de um ouvido e falando com
dificuldade, é amado pelo filósofo Tranquillino, mas pouco sabemos nesse conto da
filosofia do último. No texto, o narrador inicia afirmando que a vida de Dedeco não
inspiraria interesse a certos homens frívolos, pois sua vida era pacata, sem grandes
ações ou aventuras, já que seu interesse era desvendar os enigmas do Destino. Não
como chamar a atenção de outrem sem apresentar uma vida “que é frívola e
brutalmente sequiosa de sangue e dos sensuais estertores das grandes misérias de
uns, que são ao mesmo tempo o pedestal da glória d’outros”. Dedeco compreende
que o sucesso e a derrota fazem parte dos movimentos humanos, mas com qual
finalidade? que estávamos presos a um estranho gozo de dor, devíamos prender
a nossa atenção ao Espírito em uma fidalguia insuperável e eterna. A procura pela
espiritualização em Adelino pode ser entendida como uma reação às rupturas
promovidas pelo mundo moderno (aquele frívolo e egoísta), uma compensação para
aqueles que almejam “levar a humanidade ao divino dos seus destinos”.
De sorriso triste “tal uma gota d’água caída do salgueiro sobre a sepultura”,
Dedeco agarra-se ao passado de tal forma que relê o que leu para poder sentir
mais profundamente; e, selvagemente conservador, vai-se acorcundando para o
passado. Dessa forma, Dedeco decide-se, na arquitetura de seu ideário, dar apenas
“umas pinturazinhas de quando em vez” no edifício de suas opiniões. Dedeco
compreende que as idéias precisam de amadurecimento, logo de tempo para melhor
serem assimiladas, e por esta razão amaldiçoa os tempos presentes e:
vai-se acorcundando para o passado, com mais inteligentes e simpáticos
olhos sobre outrora, porque os leva cheios do desconforto de tudo que não
seja esse passado tumultuoso e férico de ilusões! Selvagemente
conservador e o passado de mocidade ele o conserva como a
recordação de uma encantada paisagem jamais tornada a ver e diante da
qual todas as outras são de uma absurda, de uma incompreensível e
blasfema inferioridade!
Assim, tal qual para Dedeco, a arte, para o grupo do Mensário, deve ter um
projeto estético bem-edificado, ainda que se possa fazer parte do processo criativo
acrescentar novos preceitos; todavia, é importante ressaltar que ter definido uma
estética é, sem dúvida, não assimilar facilmente os preceitos vanguardistas como
fizeram os paulistas de 1922.
94
O filósofo de Adelino Magalhães procura por sua essência, está perdido em
meio à modernidade, e afirma o narrador ”Não ama a cidade, Dedeco!... Se na
ausência dela, sente algo de vazio, é pelo hábito do tumulto inconsistente!...” A
multidão cria no filósofo uma experiência próxima à reflexão ensejada por Edgar
Alan Poe em “O homem da multidão”, ou seja, os indivíduos estão cercados por
muitos, mas simultaneamente distante de todos e de si mesmos, gerando um mal-
estar insuportável que se denomina anonimato. Todos os olhares estão perdidos na
multidão das grandes cidades. E, tal qual a personagem do conto de Poe, Dedeco
também persegue a multidão “numa curiosidade lorpa”, assim como no passado
fizera Tranquilino.
O discípulo de Tranquilino não crê na amizade, no outro, acredita apenas na
solidão, deseja estar só, almeja afastar-se dos outros para encontrar a si próprio:
na solidão dos que pensam diferente dos outros: na solidão dos que
sentem diferente dos outros; só, na solidão dos espontaneamente
superiores; na solidão dos que são como um gesto de graça tão
nostálgico de si mesmo! – pairando sobre as brutais contingências da vida!
Perdido, Dedeco não quer escravizar-se, não quer massificar-se e, a partir
dessa atitude, ele torna-se incapaz de submeter-se a qualquer todo, lendo do
meio para o fim e do fim para o princípio as suas obras “num eterno pavor de se
escravizar a quem quer que seja”. Com as cidades, as pessoas tornam-se
uniformes, e Dedeco quer encontrar-se, quer tornar-se único, mas nessa trajetória
em busca do seu Destino, muitas vezes perde o caminho:
(...) a procurar sempre as Alturas e tão atraído por elas, que levando a
contemplá-las, de longe, esqueceu-o de galgar a banalidade dos primeiros
degraus para atingi-las!...Depois, quando teve consciência do erro, era
tarde! Tarde para galgar os começos da Altura – ele assim achou, no
desânimo que lhe veio de ‘ter perdido tanto tempo’!
O filósofo das alturas está desorientado e intui que todo o esforço restar-se-
á inútil. É incapaz de “acompanhar o turbilhão polifônico, duêndico, voraginoso do
Século!”. Como trabalhamos no decorrer dessa dissertação, assim como Dedeco
vive um período de mudanças que o apavora, um temor à velocidade acomete os
colaboradores do Mensário do início do século XX.
Para suportar as agruras do excessivo trabalho mental, “o discípulo de
Tranquillino põe-se a correr, a fazer caretas e a dizer imbecilidades!...” É assim que
95
ele consegue por fim “estabelecer o equilíbrio e evitar ao jovem-pensador dores de
cabeça e insônia!...”, mas mesmo que voe e que vague, por vezes, de forma
inconsciente, Dedeco sente-se mal “num país onde o pé dos foot-ballers
99
tem mais
valor do que o cérebro dos pensadores!”. Sonambulizado à luz do dia, Dedeco não
acredita em verdades únicas – sobretudo quando elas provêm de outrem –, e
percebe que no Rio de Janeiro:
um enxame de mestiços farejadores das verdades mastigadas d’além-
mar (e das mentiras, outrossim) – enxame este que sacode a cachola
vazia, em reverências profundas, diante de um orador de sabor vieirense,
que leva a desamassar em todos os sentidos banalidades quilométricas,
que tendem a endeusar sua pessoazinha!...
Tudo é perdoado sob a bandeira do progresso, e essa utopia forma-se, de
acordo com Dedeco, a partir de uma balança que equilibraria, em seus dois pratos,
espiritualismo e materialismo. No cerne desse movimento estaria o destino infindável
de um dia alcançar o equilíbrio.
Envergonhado, irritado e medroso, Dedeco volta-se para si e se enfarrusca
em atitude hostil, organizando uma relação com a vida, de acordo com o narrador,
que a como um “pavoroso enigma do Destino”. Em meio a tantas confusões, os
olhos de Dedeco “se embaçam de uma rancorosa tristeza de insofrido viajante, que
perdeu contudo o comboio...”. Esse comboio que remete à fugacidade e será
recorrente na obra do autor.
Em texto de novembro de 1927, em Festa, Adelino Magalhães escreve “Já
vai Dedeco para os seus quarenta...”. Assim, alguns anos mais tarde na vida do
discípulo e filósofo, ele é analisado pelo narrador como aquele que “não se eleva,
nem declina”, pois tornara sua vida “cristalizada”. Perdido de si mesmo, Dedeco,
perto dos quarenta, sente “saudade de si próprio”, pois se perdeu na jornada do
autoconhecimento e foi consumido pelo mundo e por suas modernidades. Para o
discípulo de Tranquilino: “Foram-se as esperanças, na melancólica morbidez: após,
foi o frêmito das esperanças; enfim o eco derradeiro do derradeiro frêmito. O
desencanto da terra...”. Desiludido, Dedeco sabe que tudo é transitório e até mesmo
na relação com as mulheres o que lhe resta é a fugacidade.
99
A crítica à supervalorização do futebol ressurge nos ensaios de Tasso da Silveira e Andrade
Muricy.
96
Referindo-se à massa, Dedeco proclama que “tem horror à massa, ao
anonimato da massa, ao esparrame disciplinado da platéia...” E, buscando
descortinar a magia do universo, aos quarenta Dedeco: “lacrimeja, então, penalizado
de si mesmo... Mas quando se recorda de que, no Universo, ele dele assim se
condói, com essa força de se condoer... um arrepio macabro lhe corre os nervos!”. E
não suportando mais o seu frio mistério, Dedeco termina sublimando-se em busca
de uma Consciência Universal.
Em outro texto datado de fevereiro de 1928, denominado “Evoé”, também
publicado em Festa, Adelino Magalhães retoma o tema das multidões quando se
refere à rua como o espaço dos ruídos delirantes que provinham de “ímpeto
audacioso e irresistível... a vibrar a essência doente de todas as coisas!...” e, em
meio à massa alucinante que não cedia, bendito é o povo, pois tem “a coragem
suprema da Loucura! da Visão-maior, que ultrapassa...”. Em texto publicado em abril
de 1928, “Os momentos altos”, vislumbramos nas palavras do autor o ideário
expresso em seus contos, construídos, em sua maioria, de monólogos:
Pois bem, é nessa frase tão pouco intelectual que o homem de letras mais
necessita procurar um “programa de vida”, um modo de existir que o
concilie consigo mesmo e, no quanto possa, com o ambiente: com o mais e
com o tempo.
Viajar? Mas haveria nisto um tanto de
fuga
:
de fuga inútil,
pois que esses aspectos dolorosos são universais. De mais a mais, a
questão não consiste em variar de paisagem: mas possuir-se sempre do
prestígio de sua personalidade, esteja onde se estiver. Satisfazer-se, e o
se iludir com a passividade de ser consolado!
Adelino Magalhães compactua com o ideário do Mensário, que crê na
festa interior, ou seja, na celebração do triunfo e do lampejo do homem para o divino
no homem: única forma de superar o cataclismo da modernidade. Entregar-se à
multidão, decorrente da modernidade, é vivenciar o choque, e a maneira encontrada
por Dedeco para sobreviver a ele é expandir-se, transpassar-se, por isso há na
personagem um misto de loucura, uma supra-realidade. É nesse universo intangível
que nos deparamos com o efêmero como uma tentativa de construir o que no
presente voeja. O grupo de Festa quer desvelar a modernidade e a sedução das
cidades, mas não deseja inebriar-se dela, sobretudo se essa modernidade ou
protótipo de civilização vier de fora como algo importado, que é o caso da
assimilação acrítica das vanguardas. O movimento de envolver-se e de refugiar-se
97
constitui um traço inerente ao artista moderno que ora se embrenha na multidão, e
mistura-se a ela, ora a despreza, tornando-se só.
3. 2
C
ASOS E IMPRESSÕES DA ROÇA
,
DA BURGUESIA E DA INFÂNCIA
.
Para melhor avaliarmos a obra de Adelino Magalhães, estenderemos nossa
análise para além dos textos publicados em Festa, incluindo os livros Casos e
impressões (publicado em 1916 e republicado em 1926); Visões, cenas e perfis
(publicado em 1918 e republicado em 1932); Tumulto da vida (publicado em 1920 e
republicado em 1932); Inquietude (publicado em 1922 e republicado em 1932); A
hora veloz (1926); Os violões (1927); Câmera (1928). É importante esclarecer que
essas duas últimas obras são partes integrantes da edição de volume único de
1963, da José Aguilar, de Os momentos.
Nas primeiras páginas de Casos e Impressões, vislumbramos, nas
discussões rotineiras do conto “As bananas”, a crítica do autor aos sentimentos
mesquinhos e, por vezes, materialistas do ser humano. No conto, o personagem
João leva bananas de presente para o amigo Maneco e, em meio a esse gesto
aparentemente sem importância, intrigas são instaladas entre os interlocutores, visto
que, em verdade, João, ao mesmo tempo em que as bananas para o
companheiro, o desafia, pois Maneco havia caçoado das frutas do companheiro que
nasciam na encosta do morro, lugar desapropriado para plantá-las de acordo com o
colega. nesse conto um ar de vingança, que Maneco não acredita que João
seria capaz de produzir bananas na encosta do morro. No final do texto, esse leva
as bananas consigo com a ajuda do empregado:
O João é que se mostrava indeciso entre olhar para o colega e olhar para o
molecote que viera do curral, com o chapéu de palha desabado, a camisa
imunda, as calças arregaçadas e em trapos, a cara negra e lustrosa
voltada para o chão. Por fim, pôs-se o João a olhar muito seriamente para
o empregado, enquanto o fazendeiro de fora saía em busca do cavalo, a
resmungar e a bater com as botas em cima das fezes de animais,
espalhadas pelo terreiro. (p. 77)
100
Em “A vingança”, conto do mesmo livro, o personagem Mané, roceiro, é
casado com Teresa, e ela, por sua vez, mantém um relacionamento amoroso
100
As citações a seguir que aparecerem o número da página indicado fazem parte de
MAGALHÃES, Adelino. Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1963. Quando houver modificação da
referência, será apontado em nota explicativa.
98
com Chico Catinga. A vingança de Mané é fazer a mulher fumar os pentelhos do
amante. Vingança calculada, que Mane agüentara por muito tempo ter sido
“cornudo”. Aqui também o homem aparece como aquele capaz de calcular, meditar
e pôr em prática sua represália. Sabemos que um dos projetos da Revista era
abarcar o homem total, assim faz parte integrante do projeto estético de Adelino
também representar o ser humano pleno, incluindo seus impulsos, sobretudo
aqueles de origem sexual.
Essa representação do homem, a partir dos seus instintos, pode ter
chocado o público de 1916, mesmo que essa mistura de estilos
101
tenha sido uma
das características da época. Para as famílias bem-comportadas
102
, Adelino era,
sem dúvida, um pervertido, um imoral, no entanto esse tom natural da obra Casos e
Impressões não é uma herança de um movimento estético, mas uma tentativa
das diversas correntes que confluíam no período de representar o homem em sua
plenitude: corpo e espírito, e suas diversas facetas. Uma concepção semelhante
aparecera muito antes na literatura, sobretudo européia, quando os românticos
trazem o lado feio, grotesco e repugnante para as suas obras. Um exemplo disso
pode ser vislumbrado no corcunda, de Nossa Senhora de Paris, de Victor Hugo.
Entretanto, se o livro de Adelino inicia em tom mais naturalista ou expressionista,
percebemos, entrecortando o texto, a presença de discussões de caráter metafísico.
Observemos o tom de fatalidade recorrente no livro estudado no trecho citado a
seguir:
O aluarado silêncio, fora, se universalizava, extático, sonambúlico,
monjamente místico, como se nele se houvesse paralisado toda a lírica e
apavorada e crente alma do caboclo, tão só, tão tíbio frente à natureza
augusta! E nesse silêncio, as vinganças, os ódios covardes fundiam-se ao
frio desvitalizado e macabro do luar, que parecia aplaudir, como
monstruoso duende, num bater de palmas de mãos descarnadas, à
fatalidade incolor das coisas... (p. 79)
Ecoa, de sua obra, uma amargura fina. Assim, se, por um lado, achamos
até engraçado ou irônico a atitude da personagem Mané, por outro compreendemos
101
Augusto dos Anjos também faz uma fusão interessante dos preceitos científicos da época e do
grotesco às aspirações de caráter metafísico e sublime como, por exemplo, em “Eterna mágoa” e
“Uma noite no Cairo”. Andrade Muricy (MURICY, Andrade. Panorama do Movimento Simbolista
Brasileiro. Perspectiva: Rio de Janeiro, 1987; p. 873) aproxima o autor de Cruz e Sousa. Esta cisão
do homem parece ser, inclusive, uma tendência de época.
102
Era uma tendência comum no período a publicação de jornais de cunho erótico. Sonia Brayner
afirma em O Labirinto do Espaço Romanesco que autores consagrados, como Olavo Bilac, escreviam
nesses periódicos marginais sob pseudônimos. O pseudônimo de Olavo Bilac era Bob.
99
que existe uma angústia que abafa quaisquer outros sentimentos na alma do
caboclo
103
: “Vancê gozô! Vancê queria novo macho e ele veio uma purção de vêis,
hein! E Mané, quando ele tava aí, em cima de vancê cobrindo vancê, sua égua...
Mané tava lá, na enxada véia, trabaiando como um cativo... (p. 80)”. E, após o
desgosto e a vingança saciada, um delicioso prazer instala-se na protagonista: “Era
um gozo infinito, que passava de elegante sorriso e malicioso a uma gargalhada
estridente, caveirenta (p. 79)”.
Em outros trechos, a animalização e o instinto tornam-se ainda mais
evidentes, apresentando flagrantes escabrosos, grosseiros e até imprevistos:
Quá tocaia! Ele lá mais é bêbo, como um danado! Eu sube fazê a coisa:
êle tava todo prosa, na venda do Coroné, e êle tava falando de uma
prução de valentia... que tinha brigado, em Minas... que quando tava em
Santa Derfina tinha dado num turco... que êle non ia prêso pruquê os
chefes gostava dêle... que êle matô um criolão dêsse tamanho, no Oeste
e... e qu’inda foi cobri a muié do crioulo e as fia... e uma prução de coisa
que non acabava mais! Os outro rindo por trás de Mané e Mané fingindo
que o dava pela marotêra... Ah! véia, Mané sabia que tava com uns
chifrão dessa grandura! (p. 80).
no conto “As rezas”, Custódio é como um capataz de fazenda que
obriga os negros a rezarem sucessivas vezes. Depois de muitas rezas, os homens
mostram-se famintos.
Naquele dia, o dono da fazenda havia prometido peru a todos,
no entanto Custódio sempre achava uma nova reza necessária antes do
prometido banquete. Cansados e com fome, os negros miseráveis transformam-se
em animais. Estabelece-se uma baderna. Um panorama alucinante é apresentado
pelo autor; e assassinatos são cometidos entre a pancadaria geral. Como outra das
fatalidades fotografadas por Adelino, os cachorros da casa acabam comendo o peru
em meio à confusão. Sem dúvida, entrevíamos nas primeiras páginas do autor a
configuração da decadência e do reconhecimento do desnível econômico de nosso
país. Observemos um trecho desta luta alucinante pela sobrevivência:
Os porretes bailavam, produzindo estalos de secura, às vezes
desmentidos por um deslizamento gorduroso...
Fios de sangue começaram a correr pelas cabeças e a pingar no chão;
corpos baqueavam, e a luta se tornava cada vez mais acesa.
Ela havia principiado em torno do Zé Custódio, quase todos se havendo
emblocado contra ele: mas alguns neutros, que foram apartar, apanharam,
em franca colaboração com os ‘decididos’ do menor grupo, simpático ao
103
Lembremos que em Adelino vislumbramos a representação do caboclo, logo anterior a Juca
Mulato, de Menotti Del Picchia.
100
negrão-chefe; e estes neutros, instintivamente, também se puseram a
colaborar, reagindo, na pancadaria que jorrava dos homens do mandão (p.
90).
Adelino compreendia que falar em modernidade nesse país não era uma
tarefa simples. É fácil cobrir o subdesenvolvimento com o colorido e os gritos das
vanguardas, difícil é desvendar a miséria e a hipocrisia da sociedade. Poucos eram
os projetos que visavam pintar o Brasil como ele realmente era: fragmentado,
multifacetado, pobre e analfabeto. É sabido que a modernidade fizera-se na década
de 20, mas é importante salientar que ela não era para todos. Infelizmente, a
concepção de subdesenvolvimento surgiria na Literatura Brasileira somente após a
Revolução de 30, e é com os autores dessa década que a miséria será denunciada.
O descontentamento do autor em relação à realidade que se configura no
início do século XX está delineado também no conto “A prisão da Candonga”. É
importante salientar que os negros, mulatos, caboclos e roceiros de Adelino são
personagens apresentados em meio à sua condição, em seu habitat natural,
dependentes, muitas vezes, de senhores ou patrões, mas sobretudo de sua
condição humana, ou seja, de seus medos, de seus desejos de vingança, de seus
instintos etc.
No conto “O subterrâneo (Cancioneiro de quatro confidências malditas)”, da
obra Inquietude, vislumbramos ainda um tom sensual à narrativa a partir da trajetória
de uma mulher que se entrega aos instintos, em que é descrita como a “fera devorou
a ave”. O instinto é discutido por Adelino Magalhães como um sentimento que
domina os homens e os dispersa de suas indagações metafísicas e religiosas,
provocando o caos. Vejamos um trecho a seguir:
Ainda sinto o momento fatal – um desvario!uma desorientação: a gula de
volúpia dele salpicou-me de provocação as faces; os seios; sob minhas
vestes... sob minha casta intimidade! Oh! O turbilhão! minha casta e
recatada intimidade de virgem!...
E depois...dolorida, a gemer, senti o arfar de sua volúpia sobre meu
delíquio pavoroso: sobre meu desejo quente, informe, resfolegante... um
delírio!
Que estentor de lúbrica delícia inda sinto! E possuiu-me! (p. 500)
(...)
Tudo se desmantela no Século! Tudo se irmana no mesmo caos, em
destroços! (p. 502)
O aprofundamento psicológico das personagens e o desvendamento de sua
introspecção são elementos recorrentes na obra de Adelino Magalhães. Em “Chico-
Vovó”, em cenas da infância de Casos e Impressões, temos a narrativa de um
menino sensível que é criado com muito carinho pela sua avó, mas maltratado pela
mãe por parecer um “moleirão”. A vovó conta-lhe muitas histórias de príncipes e
princesas. A mãe espanca-lhe quando a vovó se ausenta, pois essa não permite que
o menino apanhe. Rejeitado no seio da família, o Chico-Vovó compreende que ele
está sozinho, pois mesmo entre os seus irmãos, o menino, sob a voz do narrador,
não encontra correspondência:
Oh! Os dois nunca haviam sido verdadeiros irmãos para ele! Desde cedo,
haviam-se tornado ‘belos meninos’ da Mamãe e dos amigos da mamãe;
e ele, atirado ao lado, sem carícias e sem elogios, imprestável, magro e
feio (ele bem o reconhecia!) fora sempre um cachorrinho, aturado na casa,
apanhando as botinas e a roupa e copo de água para os outros... (p. 152).
É evidente que sob o olhar das novas teorias pedagógicas que preferem o
diálogo à surra, não compreendemos ou supomos absurdo e violento as atitudes da
mãe de Chico-Vovó. Depois de ter apanhado do patrão e fugido, ao relatar o
episódio para a mãe, o menino é novamente imposto à violência:
Ou antes: seu Bernardo havia dado com o metro de pau em cima dele,
porque ele estava distraído no momento em que uma crioulinha entrara
para comprar uns cadarços...
Ele fugiu, temendo apanhar mais; chegando em casa, àquele dia de
trabalho, a Mamãe perguntou-lhe ‘como era aquilo’?! Contou tudo e levou
uma surra de sapato: depois, ficou preso no quarto escuro, a arroz e caldo
de feijão... (p. 152)
Um relato que também retoma a opressão no seio familiar está presente no
conto “Ele e o Carlinhos”, da obra Visões, cenas e perfis. Nesse texto, Zeca e
Carlinhos disputam o amor da avó. O último é protegido e mais rico que os outros
primos, o queevidencia a tirania do homem contra o homem. Assim, a opressão é
apresentada como uma das marcas da humanidade, e essa está nas relações de
todos os tipos, iniciando com os pais versus os filhos, em primeira instância, após
tomando outras configurações, tais como aristocracia versus proletariado, homem
versus mulher, entre outros. Logo, vivemos sempre sob uma luta entre classes, pois
não é desejo do homem pertencer ao universo do outro, visto que anseia pelo seu
próprio mundo, aquele em que ele possa ser o centro. No conto estudado, Zeca
deseja ser do mundo encantado, pois no mundo “real” não encontra espaço, tal qual
o personagem de “Chico-Vovó” que também se oprimido. Contudo, em “Ele e o
102
Carlinhos”, somente Carlinhos é quem recebe os afagos da vovó. Vejamos os
trechos abaixo selecionados:
Ele tudo fazia para contentar a Vovó, que era enfim o seu último reduto; o
último agasalho que poderia esperar sua infelicidade sem remédio! Ia catar
gravetos para a vovó: tentava rachar a lenha, apesar de cair extenuado nas
primeiras machadadas, com grande gozo dos outros, especialmente do
Carlinhos, que pegava logo no machado, como um herói vitorioso; limpava
os talheres e lavava os pratos, que passavam, de novo, pelas mãos da
velha Quitéria, sempre implicante, sempre a dizer:
Este menino atrapai mais do que ajuda! Arre! Que intrometido! (p. 420)
(...) e ele sentia que não era do mundo dos outros, mas sim de um mundo
encantado: de um mundo de fadas, de estrelas (tais aquelas que
despontavam no céu), de anjos, de meninas como a Rute ou de coisas
bonitas como as que ele lia nos seus poucos, mas tão belos livros!... (p.
421)
(...) parecia-lhe que a vida estava passando lá, à distância, e que em plena
solidão, ele restava, tão abandonado!...(p. 422)
E Quitéria, e os primos desatavam na mais desmoralizadora gargalhada.
(p. 423)
A violência à criança também é relatada no conto “O presente”, de Casos e
Impressões, e há, neste texto, um misto profundo de suavidade e melancolia a partir
da história de um menino que compra 25 balinhas para sua mãe, mas seu irmão,
Bentoca, come-as. Eles lutam. Após apartar a briga, o menino apanha de sua mãe e
não consegue dirigir-lhe nenhuma palavra, não lhe conta a verdade: “Tremia todo! E
só umas lágrimas vagarosas desciam pelas faces dele...” (p. 159).
Ainda nos casos de infância, ressaltamos o conto “Mário”, narrativa em que
o autor relata o desejo de um pequeno em brincar com o amigo Mário que dias
não o visitava, pois seu pai falecera. No entanto, o pequeno, como qualquer outra
criança, é egoísta e não compreende a tristeza do amigo, só deseja brincar com ele.
Assim, em meio ao choro do coleguinha, o pequeno afirma: “Olha! Nós agora vamos
brincar sempre com este trem. Mas... que é isso, Mário? Não chora! Não chora, não,
Mariozinho!” (p. 157). O egoísmo é visto, portanto, como uma característica
intrínseca ao homem, e é esse sentimento que cria a sociedade moderna tão
criticada pelo grupo em que os homens mostram-se cada vez mais voltados para si.
Na última parte, que se denomina Casos e impressões, título da obra,
Adelino apresenta-nos o monólogo interior “Francisco”. Nesse texto, temos um
movimento semelhante a outro conto denominado “Um prego, mais outro prego”, ou
seja, há um eco, uma frase, como o ritornelo da poesia, que reaparece entremeando
103
a narrativa “Goteja! goteja!/Pam! Pam! Pam!...”. Um mendigo morre, e o narrador
sente a falta desse transeunte, uma vez que esse fazia parte da paisagem da
cidade, assim como as árvores, o lixo e o cão do próprio mendigo. Refletindo
enquanto a chuva caía nada mais propício –, o narrador reflete sobre a existência,
sobre a fatalidade, sobre o “bulício feroz da cidade”.
Percebemos no projeto estético de Adelino a tentativa, como em
“Francisco”, de escrever uma literatura que represente uma experiência imediata,
isto é, que esteja além das intermediações simbólicas que construímos entre o
mundo e nós, fundando-se na experiência adjacente que ora se mostra mais
instintiva, ora mais reflexiva, como ocorre nesse texto. A representação da realidade
exterior e psíquica se funde a partir do ser analisado, o mendigo: desencadeador do
processo de impressões sobre a miséria humana. Essa compreensão do mundo
pode ser aproximada a de Bergson, filósofo francês nascido em 1859, que dera
como uma de suas contribuições mais importantes para a humanidade a concepção
de retorno à experiência imediata, sobretudo a partir das construções e das relações
que estabelecemos. Vejamos um trecho da reflexão do narrador:
Goteja! E assim, mais um prego, mais outro prego... outro fechem o vasto
caixão das coisas idas, das misérias idas; daquelas que na fúria de uma
pertinácia minuciosa e incansável, sob a macabra fatalidade da luta, tal
qual a toada desta chuva, foram rompendo o tempo, foram se afundando
no infinito... (p. 166)
Em outro conto “Sonho acordado de uma noite de estio”, de Casos e
Impressões, temos a visão de um homem em uma noite de insônia
104
, refletindo
sobre a solidão do mundo moderno em um processo mental quase delirante,
fragmentário, hermético, criando um discurso enigmático, de obscura e de aguda
intelectualidade. Vejamos alguns trechos escolhidos a seguir:
Tudo corre tanto! Tudo se despedaça tanto nesta vida!
E que indiferença infinita em tudo! (p. 183)
Passam, sem cessar, os automóveis!
Que voragem! A voragem da vida, sem dúvida!
Está tudo perdido! (p. 183)
Duas e meia!... Interessante o tique-taque do relógio!
Que caveirenta paciência... a contar assim o tempo... a contar assim o que
se não acabará jamais!...
104
A insônia também foi abordada por Graciliano Ramos no conto “Insônia”, mas em Graciliano a
narrativa não é fragmentada como em Adelino.
104
Jamais! Que abismo!... (p. 184)
Quantos livros, nestas minhas estantes!
Quantas filosofias, quantas ciências, quantas hipóteses e quantas
verdades! Quantas sensações, quantos desvarios, quantas dores e
quantas visões, dentro da policromia destas capas elegantes!
O Universo espremido nestas estantes!
E por estes livros, eu abraço a grande Ânsia humana, a Ânsia das coisas, a
Ânsia Universal. (p. 184)
Nos trechos acima, entrevemos o estado de insônia e de extinção das
delimitações de tempo e espaço. Além disso, as concepções apresentadas acima de
desprezo ao materialismo e ao cientificismo compactuam com as idéias
apresentadas pelos demais colaboradores da Revista: preferências por temas
metafísicos existencialistas e religiosos em contraposição ao materialismo do
mundo moderno. Mais do que um projeto estético, o ideário de Festa, e de Adelino
Magalhães, é uma concepção de mundo.
3.3 A
S VISÕES
,
AS CENAS E OS PERFIS DA MODERNIDADE
No início da obra Visões, cenas e perfis, editado em 1918 e reeditado em
1932, temos uma epígrafe que nos auxilia a desvendar o conteúdo da obra: “Visões
de um deslumbrado ante a feeria da vida e dos anseios humanos; psicologia dos
insubmissos, desorientados em mórbidos ineditismos; cenas das sociedades onde
a sinceridade dos instintos e sofrimentos vigorosamente rudes”. Nessa epígrafe,
o autor nos adianta que os contos terão como pano de fundo o cenário da cidade e
suas diversas facetas como a velocidade, a decadência, a solidão e, com ela, o
sentimento de anonimato, o materialismo e a desumanização ressurgem para
delinear as marcas do mundo moderno.
Em “Lembrança à Matilde”, temos o retrato de um homem mergulhado em
sua sina: ficar terra a terra. Assim, em meio à plebe iletrada, um universo de
corrupção e opressão sobre a classe popular é desvendado. Temos nesse conto a
figura do escritor de cartas e, em meio ao discurso, uma frase é sempre retomada no
decorrer da narrativa “Lembranças à Matilda”, lembranças que não são ouvidas pelo
escritor da carta e acabam não sendo inseridas ao texto. No decorrer da escritura da
missiva, o narrador entrecorta o discurso das personagens e delineia um retrato de
Brasil: pobre, miserável e subdesenvolvido. Vejamos nos trechos a seguir:
105
Geme, guitarra, em tua monotonia metálica e nostálgica!
Geme, por esses que se não sabem exprimir, que foram feitos para o
trabalho e para o sofrimento humilde, ignorante, tenebroso, em terra
estranha, embora esta seja o generoso Brasil!
Mas enfim, as paredes tremiam e o binho berde não faltou, nem as
castanhas... O Chico chegou a tomar uma bebedeira que...
Geme nas mãos que te compreendem... mãos de fadiga rude; mãos
grosseiras que acariciam, como uma delicadeza de aragem, as cabecinhas
loiras... geme!
Lembranças à Matilda.
Geme por eles... e diz, guitarra, a angústia desse povo condenado a uma
brusca e rápida ascensão de grandeza: ao ridículo depois, entre um amigo
pérfido e um filho irreverente; filho irreverente diante da irrisória decadência
paterna – decadência de incultura de tristeza e de saudade” (p. 204)
“Jardins”, conto organizado em estrofes e repleto de lirismo, temos um
narrador da cidade à procura de um Ideal, e esse, por sua vez, é comparado a uma
bailarina que se espirala em uma dança, ou seja, incessantemente procurando-se,
enovelando-se. O sentimento de busca pela paz está personalizado no Jardim, onde
vivem os sonhos infantis, o refúgio da cidade. No entanto, não é no universo da
urbe que podemos nos abrigar do tormento da cidade e do próprio destino terrestre,
mas também nas copas das árvores, símbolo de evolução, de verticalidade, de fonte
de vida, e, sobretudo, de ascensão aos céus. Observemos as últimas linhas de
“Jardins”:
Árvore! teoria verde de realidade e de fantasia, do que é do homem a
existência, no funambulesco jardim.
Jardim, fantasia verde; noitada, ao luar, do homem e as árvores!
Jardim...
E vai fora o ruído; e entre as copas e entre as trilhas cochilam,
adormecem os ecos, com à toada da ama dormíamos nós, em crianças...”
(p. 219)
No conto “A greve”, observamos um processo de desumanização dos
homens e de humanização das máquinas que, na hierarquia social, são mais
valorizadas que os proletários. Assim, em meio à organização de uma greve que
acaba não ocasionando nenhuma mudança no final do conto, e tudo volta a ser
como era antes –, os eternos exploradores capitalistas, com uma ótima lábia e com
o apoio da polícia, terminam com a possibilidade de qualquer negociação. Dessa
forma: “A cavalaria se havia mexido e imiscuía-se pelo grupo numa intimidade
mansa, sorrateira, cheia de lábia, que ia dispersando, um tanto a custo, aquelas
antiadvocatícias contra a eloqüente boquinha de dentes cariados” (p. 230). E, em
meio à multidão de operários miseráveis que lutavam pela sobrevivência, o
106
personagem ferido pelos policiais, que se chama Aristeu, reflete em meio à imagem
alucinante que se configura, pois percebe como se equacionam a aritmética do
destino, as revoluções humanas e a trajetória do carro da História.
Nós venceremos!...
Donde vem esse desequilíbrio... donde vem essa desigualdade?
Parecia que ansiava por responder à augusta interrogação do repórter, ali,
com o braço amparado o já sonolento ferido, ao eco daquele tiroteio vizinho
que quebrava vidros, que engendrava ais! no tumulto das patadas, do
tilintar das espadas!
O olhar da Morte aclarava-lhe a Vida, numa grande síntese! Havia poucos
meses que adoecera e que, na ociosidade pensadora da cama, numa
tardinha memorável, percebera ao longe, na lonjura da sua apoucada
ciência, esquecida, o grande carro triunfal da História humana, esplêndido,
apoteótico de guerreiros, de fidalgos, de soberanos, de ricaços, de
cantores cortesãos, de celebrados felizes... de Felizes, enfim, puxado pelo
robusto e disforme Boi que, a passadas lentas, mansas e possantes, ia
pela intérmina estrada.
E seria sempre assim...
Às vezes, para o boi irado, um engabelamento de feno melhor! gritos de
humildes, macabramente anônimos, que morreram sufocados nos
subterrâneos da História!
Como ele sentia uma vontade heróica de chorar!
Oh! O Povo!
O Povo! Como ele... ele era o Povo! (p. 239)
Em outro monólogo espantoso “Avante! Avante!”, da obra Tumulto da vida,
ressurge a temática da greve como elemento desencadeador das reflexões sobre as
estruturas sociais, mas principalmente sobre o destino do ser humano. A concepção
de que não há igualdade entre os homens, pois todos são desiguais, reitera a crítica
que apresenta a cidade como o local da falta de união, da miserabilidade e do
materialismo. Em meio ao confronto entre os policiais e os proletários, a rua
transforma-se no local onde os homens são esmagados. O eco característico de
Adelino Magalhães é configurado a partir do grito de guerra “Avante! Avante!”.
Observemos como se o tumulto em que fracos e fortes lutam numa sinfonia
alucinante para aniquilar o outro em uma busca frenética pelo insondável:
Na rua, desta vez, foi-se aproximando, ao acaso, de um cavalariano, numa
decisão louca de esbordoá-lo! Quando, de brusco, o policial vira o animal
para o lado dele! Uma surpresa estrondosa tumultuou-lhe no ser: como era
possível aquele soldado, que naturalmente tinha alma e tinha noiva ou
filhos, voltar-se contra ‘ele’, que nunca lhe fizera mal? (p. 360)
107
Fracos e fortes; pequenos e grandes, por natureza; glórias e misérias
físicas, estúpidos e inteligentes, não falando dos outros acidentes mais
particulares da forma, da cor, da estrutura a Natureza que fez os seres
para viverem uns à custa dos outros, para se aniquilarem, como poderia
ela admitir a igualdade, a liberdade e a fraternidade, que o os conceitos
mais antagônicos ao plano geral e intrínseco de sua obra? (p. 361)
Ser tão insignificante! Ter apenas a inteligência para aperceber-se dessa
insignificância ante o Infinito insondável! De que valem nossas questínculas
de homens, perante o universo? (p. 361)
A cidade gloriosa e sofredora cintilante da glória de sofrer, com o fulgor
de suas injustiças e de suas desigualdades, comburidas em honra ao seu
Apogeu! – a cidade, separada dele pela treva que afundava a campina num
nirvânico silêncio... Assim, da treva de sua angústia, os espíritos bons, os
Maiores, vêem a iluminada maldição dessa cosmópolis, que é a Vida
Humana!
Cidade sofredora!...(p. 363)
E outra! Ele adivinha que encontrará novas dores humanas, e que chorará
a nostalgia delas contudo, em longo e soluçante silvo! Oh! Para que
inventar o Progresso o correr mais veloz da simpatia humana, se jamais,
por essas serras além, por esses vales... por esses mundos... o repouso
virá! Jamais! (p. 387)
Viva a revolução! E o sofrimento humano...
Avante! Avante! (p. 392)
O ambiente da cidade ressurgirá em outros contos do autor como o espaço
onde a apreensão, o temor e a inquietude da modernidade se alojam. A denúncia da
miséria humana será tema recorrente tanto em Adelino Magalhães como em Festa.
Essa agitação, promovida pela “hora veloz”, é o resultado da rebeldia do grupo e do
autor diante do pensamento materializado do início do século.
3.4 A I
NQUIETUDE DA HORA VELOZ
A inquietude metafísica do autor vai elevando-se no decorrer de sua obra.
Ainda em Visões, cenas e perfis, temos, no conto “Dias de chuva”, algumas das
teorias de Tranquilino, o filósofo que teria orientado Dedeco ainda em tempos de
Festa, já trabalhado nesta dissertação. O devaneio filosófico de Tranquilino se divide
entre a influência da Bíblia e Força e Matéria, de Buchner. Assim, a partir de um dia
de chuva, Tranquilino encontra-se com sua intimidade. Às vezes como um:
Eu, um esquecido de mim mesmo e das coisas sem orientação, sem
senso... Eu, para quem só tem relevo as coisas longínquas... a memória
das coisas idas, que me surgem surpreendentes com o ineditismo
108
estonteador, bárbaro, herético, excomungado, com que apareceram os
mundos novos aos marinheiros dos tenebrosos mares! (p. 266)
E, outras vezes, como aquele que percebe o contraste entre o mundo
cognoscível e incognoscível, ansiando equacionar esses dois pólos que criam uma
relação misteriosa dentro do filósofo, ora ele mostra-se místico e cristão, ora
materialista e racional. Imersos no devaneio, não temos marcações espaciais e
temporais no conto. É importante assinalar que aqui o discurso é entrecortado pelo
som da chuva: o desencadeador da experiência metafísica.
Oh! Contraste entre as coisas do mundo cognoscível, contraste entre o
mundo cognoscível e o mundo incognoscível!
Maldito livro da Ciência... por que sorris assim, vitorioso e mau?” (p. 268)
“Contraste, Pai dos seres; Pai das formas e da atividade... e resmungue eu
sempre... Pai dos homens, das sensações e do gênio contraste, Pai do
Ideal, e o mais imperceptível fio, com a mais complicada estrutura contudo”
(p. 269)
“Adorável materialismo!
E é tudo tão profundo, e é tudo tão banal!... E pergunta-me, irônico, o
adorável livro de capa amarela e velha, como um bom octogenário de triste
ciência benévola da vida:
Como será Sua majestade? Venerável? Venerável, sem dúvida...
amigamente venerável!” (p. 269)
“Adorável espiritualismo!
E a grande... a infinita tristeza do mistério!...” (p. 269)
O devaneio metafísico e religioso é ainda mais intenso em “De Santa
Teresa, à noite”, de Visões, Cenas e Perfis, em que oração e devaneio se misturam
em uma busca quase desesperada pela Hosana em meio às trombetas que soam
para salvar os homens aqui perdidos:
Tão longe, porque nós não te compreendemos, Vitoriosa Luz azul,
salpicada em ânsias na derrota intensa estrondosa as trevas...
E contudo eras longamente esperada, transudação-azul, azulmente
nirvânica, de todas as ânsias, de todos os ideais, de todas as sensações,
de todos as misérias – de todos os anímicos séculos humanos!
E nós nos desvairamos nesta realidade, mais desvairante do que nossos
sonhos!... (p. 307)
A trombeta soa!
Para onde irão?
Para a glória doutros mundos?
Oh! Os mundos em que há a Dor transudando a Luz!
Trombetas soam!
Rasgam a treva heróicas ânsias... recapitulam o combate, avançando... (p.
308)
109
Dominada pelos espasmos da civilização, “A Rua”, de Visões, cenas e
perfis, é o lugar onde todos estão perdidos de si mesmos e dos outros. A rua ideal é
o espaço da indiferença, do anonimato; é o local onde festivamente se irmana a
triunfante modernização ao desespero dos homens. Tudo isso é desencadeado a
partir do susto que o narrador leva ao ver um menino ser quase atropelado por essa
máquina gigantesca que se chama cidade. É relevante salientar que aqui o eco de
Adelino Magalhães também se apresenta a partir da reiteração, no discurso, da
visão do quase atropelamento. Vejamos a seguir um trecho de como se organiza
essa máquina:
Oh! Para onde irá aquele sujeito que ali passa?
Que fará ele na vida? Que função e que ideal representará?
Para onde irá?
Aquele sujeito, neste momento uma tempestade, talvez, talvez uma
aurora larga e redentora!...
A indiferença, talvez!
E essoutros, todos, que por aí passam?!... (p. 309)
Em Tumulto da vida, nenhum conto é mais significativo da extrema fraqueza
do homem e da sua miséria do que “Um prego! Mais outro prego!”. Nesse texto,
temos a narrativa de um doente na época em que ocorre a gripe espanhola no Rio
de Janeiro, em torno de 1918, considerada uma praga mundial ao lado de outras,
tais como a sífilis, a peste bubônica e a malária.
Não se sabe quantos brasileiros foram infectados e mortos pela espanhola.
Nos países em que estes dados foram registrados, os números são
assustadores. Na Inglaterra e País de Gales, os mortos somaram 200 mil.
Na França, só entre os soldados, cerca de meio milhão contraiu a doença e
31 mil morreram. Nas tropas americanas que participaram da guerra
morreram 43 mil (...) Nos Estados Unidos a gripe fez 500 mil óbitos e
presume-se que, na Índia, os mortos chegaram a cinco milhões. No total,
embora não se disponha de dados exatos, calcula-se que a doença não fez
menos de 20 milhões de mortos entre 600 milhões de infectados
105
.
Logo, mesmo doente, o narrador lembra-se do som dos pregos do
caixãozinho que tinha feito pouco para a filha, pois, dessa forma, o corpo da
pequena não seria misturado aos indigentes. Entrecortando o fluxo de consciência
que mistura as visões do consciente e do inconsciente, que o narrador está em
105
BERTOLLI FILHO, Claudio. "A gripe espanhola em São Paulo". Ciência Hoje, vol. 10, 56,
outubro de 1989; p. 32.
estado febril, o som das marteladas ecoam: “Pam! Pam!”/ “E um prego! E mais outro
prego!”. Em meio ao desespero, a cidade mantém-se triunfante como que zombando
dos miseráveis tomados pela epidemia.
A cidade ainda era risonha e incrédula, na despreocupada molecagem de
sua agitação fátua, crente unicamente no luminoso vaivém de todos os
dias! Os bondes e os automóveis e as fachadas e os homens e todas as
coisas pareciam sorrir, desdenhosos a correr, a correr... superiores ao mal,
vacinados contra o mal, pelo seu orgulho de Urbe intangível e privilegiada!
(p. 339).
A partir das impressões singulares de Adelino Magalhães, podemos
exemplificar algumas das problemáticas apresentadas pela revista Festa, mostradas
no decorrer desta dissertação através do discurso teórico do Mensário e projetado
na obra do autor. Os títulos de suas obras direcionam à concepção do escritor,
tais como: Tumulto da vida e Inquietude. Nessa última, encontramos já na epígrafe a
visão de modernidade como o período em que “se conturbam todos os ideais, todas
as filosofias, todas as estéticas, todas as fés, num desvario clarividente de novos
mundos!”. E, em meio a essa miscelânea, a decadência se configura a partir da
revolta, do “estardalhaço dos mal-estares”, da insânia, do delírio, dos devaneios e
das “convulsas cariátides a susterem o templo do Sofrimento Humano!”.
Em “Raiva a maldição”, orar é só o que basta para aqueles que estão
imersos no turbilhão e na tempestade do reino da Cosmópolis. Revoltado, o narrador
contrapõe-se ao criador e ao destino traçado por este à humanidade. O discurso é
entrecortado por sucessivas interjeições, o que deixa mais intensa a ira da
personagem.
Soluça o Destino a fatalidade de se cumprir: soluça de querer fugir em vão
à sua desgraça – o Destino que se vai, a tempestar... a tempestar...
No turbilhão, minha dor entre miríades (p. 494)
É a agonia: a agonia da Civilização, que se esboroa do Gozo são os
clarins cavernentos (ouves?) do Gozo, que escancara as fauces para o
Castigo, a morrer! (p. 494)
Nos horizontes, em longas braçadas de gozo desorgânico o mais
espiritual, o mais leve, o mais floconoso coroado de harmonias vou... e
vou... vou, e um porto de colunatas! A tarde é um farfalhar manso de
faíscas de luz, policroma! Espera-se uma embaixada da Graça de Deus.
Oremos!
Oremos! Humanos de todas as desventuras, oremos à Alva Dona: ‘Nossa
Senhora, suprema expressão de Pureza e Bondade, a teus pés estamos:
nós – o rancor, a perfídia, a mentira, a gula, a concupiscência! (p. 498)
111
No livro A hora veloz, o monólogo “Excelsior” também apresenta um tom de
oração como resultado do desespero do homem miserável banhado por um intenso
misticismo em meio à degradação que se apresenta. Esse texto é divisado por
orações proféticas como, por exemplo: “Sobre o futuro, sobre a humana evolução o
segredo todavia desvendar-se-á” (p. 629). O “Excelsior” é almejado pelo narrador,
imerso em profunda oração, a partir de uma linguagem fragmentada e
impressionista:
Excelsior! Oh! para que duvidar?
Pelos séculos, Excelsior! Em místico, vivificante delírio!
o reflexo esmaecido da estrada! O palor no espaço... que
promessa!...
Princípio máximo... ó fulgente Abismo gerador...
Harpas de fé pela estrada; alaridos de Trovadores, liras de poetas, visões
exsudando gemidos tropicais, a seguirem harpas de salmistas...
É o palor-estranho: a estrada estranha é! Aleluia!
Por onde penetrar?...
Excelsior! em místico, vivificante delírio! (p. 630)
O compassar do relógio e, junto com ele, a desilusão dos tempos, é
delineado no monólogo “Tique-taque”. Nesse texto, o tema da insônia é retomado e,
em meio ao fluxo fragmentado das reflexões do narrador, o discurso é entrecortado
pelo eco do relógio “Tique-taque! tique-taque! tique-taque!”. Observemos a
fragmentação do fluxo de consciência abaixo como a representação da mente do
homem insone:
E bate uma bigorna agora, lá, em baixo, por esta noite alta... e do meu
pobre quarto, que amargura!
Há lá um gemedor som, de máquina fatigada!
Oh! tenho a idéia de que se bate a cadeia que vez mais prende a
Existência ao ministério do Sofrimento! Mais um esforço... mais esse! E
essoutro...
E aqui, do meu leito, solitário no espasmo da melancolia!
Tique-taque! tique-taque!... tique-taque!...
Oh ! que tortura a minha, de pensamento : de escutar, como uma
danação, as vozes que falam, a todo instante cortejo que não acabará
mais!... santo desespero!
Quatro e dez da madrugada! (p. 517)
Na epígrafe de Os momentos, “que fremem na exaltação dos olhos
voltados para a pátria extensão, onde soluça a voz dos violões/ Os momentos que
se sublimam no convulso da alma dentre de si mesma, arquejando por claridade na
treva do destino. /Os momentos que se fazem gloriosa Duração!”, entrevemos, em
meio ao discurso filosófico do narrador, o homem incorporado à Sensibilidade
Infinita, no entanto com olhares sagazes em relação ao materialismo e ao suposto
conforto oferecido ao homem: “Que mais a Civilização do que requintar as misérias
naturais? Do que antepor as representações aos seres concretos, e os incidentes
aos fatos primordiais que mais consegue o Progresso?” (p. 701). Em “Câmera”, o
autor satiriza um cartaz exposto em uma exposição de automóveis, brincando com a
idéia de que o materialismo seria o bem para todos os males.
Assim, não importa que o mundo esteja abafado, não interessa se você tem
rancor de não ter vivido algo: “Comprem um automóvel” (p. 717), pode ser um
Cadillac, um Dodge, um Buick ou ainda um Chevrolet. O materialismo parece vencer
os sentimentos mais sublimes do homem. Com os avanços da modernidade, de
acordo com Adelino Magalhães, tornamo-nos cada vez mais sós e anônimos,
perdidos na urbe triunfante que se apodera de nossos traços de humanidade.
Simpatizante da miséria humana, Adelino Magalhães apresenta, a partir das
imagens evanescentes e fragmentadas, o refúgio no tempo interior e a crença no
divino do homem em contraposição ao materialismo e à mecanização que surgiam
com os avanços tecnológicos. Herdeiro de estéticas como o Simbolismo e o
Expressionismo, o autor produz uma obra que dialoga com os preceitos de Festa de
construção de uma arte universal, ou seja, a partir das sensações, o autor abarca
uma visão profunda e transcendente do ser, forma encontrada para representar o
homem total vislumbrado por Tasso da Silveira e demais colaboradores do
mensário.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
O estudo de periódicos no Brasil, mais especificamente de revistas
literárias, tem se mostrado um espaço ainda a ser explorado. Órgão da terceira
corrente do Modernismo, Festa constitui-se como um rico documento das
discussões e polêmicas que nortearam a década de 20, logo um estudo mais atento
do projeto estético do Mensário se fez indispensável, visto que, desse modo,
pudemos recuperar uma lacuna da memória cultural de nosso país e reconstruir os
debates a cerca de modernismo e nacionalidade a partir dos artigos da Revista.
Imbuída da crença da construção do nacional a partir do universalismo e do
totalismo, Festa exaltou uma visão de arte ligada ao Espírito, edificando uma
estética que interpretou o mundo pós-guerra como aquele que havia fracassado, que
não merecia mais crédito, pois era voltada ao materialismo. Afirma Hauser
106
que o
século XX começa depois da Primeira Guerra Mundial. Seus impactos foram
sentidos por todo o mundo, e a mutação, ocorrida no período posterior a 1914, levou
a um discurso fragmentado, a um sentimento de desilusão, a uma crença no espírito,
que o humano não era digno de confiança, e era necessário buscar uma forma de
superar o cataclismo da modernidade. A atmosfera de desespero levou o homem a
buscar, no passado, na memória, elementos para alimentar a mente e o espírito.
A arte espiritualista ou totalista proposta por Festa não desejava estar presa
a antigos modelos, mas compreendia que não havia como criar novos caminhos sem
considerar a trajetória percorrida pela tradição, que menosprezá-la seria negar
tudo que até então havia sido assimilado e compreendido. Para inovar, era
indispensável conhecer as ancestrais propostas, por isso a contumácia em dialogar
com propostas anteriores.
O Modernismo, tanto o proposto pelos artistas de São Paulo quanto pelos
do Rio de Janeiro, foi uma espécie de intervalo entre duas épocas a fim de provocar
rupturas e considerar novas tendências. Os grupos da década de 20 prepararam o
terreno para o ensaio, para a poesia e para a prosa mais madura que surgiria
somente em 30. O processo agitacionista, sobretudo o de São Paulo, obteve
sucesso, pois abalou as estruturas estéticas vigentes visto que o movimento era
106
HAUSER, Arnold. “A era do cinema” In: História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
mais estético que político e espantou a eloqüência parnasiana que estava
encharcada de falsos valores.
É evidente que entre São Paulo e Rio de Janeiro, e dentro dos próprios
grupos, havia uma enorme dificuldade em conciliar os antagonismos, as tendências
heterogêneas, os impasses. Contudo, esse processo reflete a desorientação dos
participantes dos grupos e o período transitório e conturbado que freqüentavam
diante do quadro de mudanças bruscas, marcado pelas reformas formais e,
conseqüentemente, pelo desconcerto em relação ao novo. O toque de alarme
como se refere ao Modernismo Mário de Andrade – buscou a originalidade e rompeu
com as formas de expressão enclausuradas. Abordagem adolescente? Sem dúvida,
mas corajosa de seu projeto e edificadora do prelúdio do debate consistente que
surgiria na década seguinte.
A partir da trajetória das querelas que permeavam o tema da representação
do nacional ou da denominada “brasilidade”, demonstramos como este mote foi uma
preocupação eminente para o grupo do Rio de Janeiro que almejava rediscuti-lo e
defini-lo a partir das mudanças que delineavam o movimento Modernista. Assim, foi
através das concepções tecidas sobre arte pelo grupo que reconhecemos, em
Adelino Magalhães, a fusão entre a teoria espiritualista e/ou totalista e a aplicação
dos preceitos dos ensaístas do Periódico. Desta forma, no terceiro capítulo,
ampliamos a leitura de Festa e abarcamos alguns contos da Obra Completa de
Adelino Magalhães, pertencentes à década de 20.
À espera de uma nova arte, percebemos que a explosão de revistas
literárias e, junto delas, de manifestos e de novas propostas para propagar as
modernas concepções artísticas, apontava para o desejo de o país modernizar-se,
entretanto, os artistas deparavam-se com o embaraço de criar uma identidade
brasileira que possuísse traços tipicamente nacionais, mas que não apresentasse
resquícios do irmão europeu. Retomava-se a velha evocação nostálgica romântica
de representação da terra natal. Neste sentido, Festa contrapõe-se às percepções
desenvolvidas pelos paulistas de que seria possível ajustar-se ao presente e
alcançar a modernização a partir da fórmula gozadora, da blague, do primitivismo e,
mais tarde, da antropofagia como formas de solucionar as nossas diferenças diante
do Europa.
Festa não cria em uma arte fruto da ruptura, mas do diálogo com antigas
escolas, isto não quer dizer, evidentemente, que Festa representasse uma falsa
tradição. A proposta do grupo do Rio de Janeiro é modernista na concepção dos
versos, na diagramação de suas ginas, no entendimento de que a nova arte
brasileira deveria abarcar as diversas facetas do homem moderno que estavam
sendo dilaceradas pela mecanização. Ela é herdeira de antigas estéticas, mas
autônoma em seu processo criativo.
Tanto os grupos de São Paulo como os do Rio de Janeiro inspiraram-se na
crença de que a partir dos elementos nacionais - particulares, por vezes regionais -
atingiríamos os universais e seríamos reconhecidos pelo outro. Em verdade, Festa
opõe-se ao pitoresco ou ao exótico, ou seja, a certa obrigação em vestir as cores
locais para delinear seu caráter singular. O movimento primitivista, de acordo com
Festa, é vislumbrado como aquele que intentava apagar as tradições, proposta
inaceitável para o grupo carioca. Sem os elos com a tradição, a história ficaria pobre
e fragmentada; não era possível criar um novo princípio, como, de acordo com o
grupo, teriam feito os primitivistas. Logo, como pudemos observar, a essência do
caráter nacional e do sentimento de “brasilidade” mostrou-se confusa e, por vezes,
dissonante para todos os grupos, entretanto não podemos menosprezar o ideário de
Festa que visava abarcar a arte moderna e esquematizar os alicerces do que
compreendia como caráter nacionalista.
Para definir o alvitre estético do Mensário, observamos o esforço de Tasso
da Silveira ao edificar os conceitos de velocidade, totalidade, brasilidade e
universalidade. Verificamos também em Muricy, como em Tasso da Silveira e
Henrique Abílio, a inquietação em apreender a velocidade na arte moderna,
velocidade expressional, o que tornava a poesia, em relação à prosa, mais ágil.
Muricy também acredita que a poesia estaria menos contaminada de modernidades,
porque ela misturar-se-ia menos ao cinema e a outros cosmopolitismos, logo
mantinha os seus domínios alargados. Como mensário de pensamento e de arte,
Muricy preza por uma teoria da arte, por um programa estético e vislumbra o artista
como um artesão, não simplesmente como um inspirado, um visionário, um
metafísico. A compreensão de artista como inspirado será mais latente nos ensaios
de Tasso da Silveira e Henrique Abílio.
As raízes do nacionalismo, para Muricy, surgiriam a partir das
manifestações do pitoresco em Iracema e Ubirajara de José de Alencar. Para
apresentar uma efetiva realização do movimento particular-universal, Muricy
comenta a passagem da Pedra Bonita de Os Sertões, de Euclides da Cunha,
demonstrando que será a partir da paisagem do sertão (particular) que se atingirá o
desespero do homem diante de sua miséria (universal). E é esse sentimento místico
ou religioso, provocado pelo insulamento e pela solidão, que aponta para “certo
sentimento íntimo”, característica singular de nossa cultura. Movimentos
semelhantes seriam apontados em Raul Pompéia e em Villa Lobos.
Na crítica de Tasso da Silveira, ressurge a ansiedade em definir ou
compreender a arte da hora. Tasso também aponta para a dissolução entre a
sensibilidade e o pensamento a partir da guerra e do avanço industrial e tecnológico.
Em Tasso, o espiritualismo alcança raízes profundas. Era necessário representar, na
arte, a realidade total, ou seja, materialista, tecnológica, mas também espiritualista,
metafísica. Tasso entende a necessidade de se criar uma arte que se direcione para
além de nossas porteiras, logo, muitas vezes, o “universalismo” está ligado ao
reconhecimento do irmão europeu, o velho tom dissonante de nossa cultura. A
temática nacionalista é mote recorrente no Mensário e aparece sempre ligado à
perspectiva de integração na realidade universal. Esses motes serão retomados em
Henrique Abílio e Barreto Filho, mas acrescidos da reflexão sobre a necessidade de
uma língua brasileira que represente os anseios do povo.
Nos contos de Adelino, percebemos que o autor compactua com o ideário
do Mensário, pois crê na festa interior como alternativa para superar o cataclismo da
modernidade. Não textos que tenham um tom pitoresco ou verde-amarelo, o que
faz com que a obra de Adelino obtenha ainda mais caráter universal, sem deixar de
ser a representação de uma nação: a brasileira. O fluxo de consciência e sua
fragmentação também atestam, na forma do discurso, esse universalismo. Os
contos são, em geral, uma forte crítica ao materialismo, à mecanização que separa o
homem de sua realidade metafísica e de seu espiritualismo. Assim, ele sente-se
incompleto, porque almeja religar-se a sua interioridade.
Em relação ao século XIX, compreendemos que Adelino continuidade à
prosa poética desenvolvida por Raul Pompéia em O Ateneu; em relação à obra de
Machado de Assis, o autor aprofunda ainda mais a preocupação com a
representação da interioridade do sujeito em atingir a verdade e constrói uma
narrativa que visa representar o homem diverso, multifário e imerso em uma
atmosfera descomposta. Adelino penetra nos domínios indevassados das
manifestações psíquicas, na fluidez contínua das sensações, fantasias e aspirações,
a fim de desvendar os fatos nas consciências de suas personagens. No século XX,
são legatários de Adelino Magalhães, e por que não dizer de Festa, o processo
epifânico desencadeado a partir do fluxo de consciência de Clarice Lispector; a
utilização dos recursos narrativos desencadeados a partir da memória ou a utilização
dos recursos da poesia, construção de neologismos, entre outros aspectos, de
Guimarães Rosa; além de demais autores como, por exemplo, cio Cardoso,
Otávio de Farias e Caio Fernando Abreu.
Adelino Magalhães apresenta uma singularidade tão expressiva no quadro da
virada de século que Eugênio Gomes
107
o aproximou da denominação de “ilha”,
utilizada por Thibaudet, para caracterizar Ulisses do escritor irlandês James Joyce.
No entanto, as efemérides da revolução estética que levaram a tantas mudanças,
criação de vanguardas e experimentalismos na passagem do século, não edificaram
um par para Adelino Magalhães. Sem dúvida podemos afirmar que sua obra
demonstra um autor atento às teorias psicológicas e filosóficas vigentes em seu
tempo. Recordemos que uma explosão de fluxo de consciência e monólogo
interior na literatura européia: em 1913 é publicado No caminho de Swan de Marcel
Proust; em 1919, Noite e dia e, em 1922, O quarto de Jacó, ambos de Virgínia
Woolf; ainda em 1922, é editado Ulisses de James Joyce e é publicado o artigo
Fantasia do inconsciente de D. H. Lawrence, o que demonstra uma tendência ou um
sentimento de época.
Não podemos negar que o grupo Festa e, especialmente, Adelino
Magalhães, possuem um legado que deve ser examinado com atenção. Sabemos
que, nesta dissertação, apresentamos apenas uma possibilidade entre os múltiplos
caminhos que podíamos ter elegido para reavivar esse grupo. Examinando e criando
espaços para novos questionamentos, não tivemos a pretensão de apresentar uma
única possibilidade de leitura do Mensário, mas intentamos revisar a história do
Modernismo brasileiro período de grande efervescência cultural que exprimiu a
saga dos nossos tempos a partir de uma nova proposta. Essa dissertação é, sem
dúvida, o início de um percurso que se propõe, pois compreendemos que muitos
autores como, por exemplo, Gilka Machado, Murilo Araújo e Adelino Magalhães,
necessitam ser relidos e estudados a fim de que sejam desobstruídos os caminhos
da omissão e do esquecimento.
107
GOMES. Eugênio. Adelino Magalhães e a moderna literatura experimental” In MAGALHÃES,
Adelino. Obras Completas. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1963.
Grande realizador do projeto de Festa, vislumbramos em Adelino
Magalhães um autor que efetivamente conjugou o ideal estético proposto à escritura
de seus monólogos. Assim, entendemos que este será o início de um itinerário que
se estenderá no doutorado, instância onde nos deteremos na obra do autor, seu
contato com as vanguardas que dominaram a primeira cada do século XX, o
diálogo com Raul Pompéia e a construção do monólogo interior como recurso formal
que procura delinear o homem em sua integridade. O estudo de Adelino Magalhães
é basilar para a melhor compreensão do Movimento Simbolista no Brasil, para o
estudo do conto brasileiro, para as investigações sobre os diálogos com autores
brasileiros e europeus que utilizaram o monólogo interior e o fluxo de consciência
como técnicas de ruptura de valores a fim de abarcar questionamentos filosóficos e
existenciais, no início do século, e envolver as facetas da realidade que até então
estavam relegar. A pesquisa sobre metafísica e a função da memória auxiliará a
estabelecer os pilares desta averiguação e contribuirá para preenchermos as
lacunas da história do romance de introspecção brasileiro.
REFERÊNCIAS
ABÍLIO, Henrique. “A modernidade universalista da arte”, agosto de 1927, In: Festa,
edição fac-similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “Selvagens e fósseis”, agosto de 1927, In: Festa, edição fac-
similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “A realidade brasileira”, dezembro de 1927, In: Festa, edição fac-
similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “A balada tropical”, fevereiro de 1928, In: Festa, edição fac-
similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. Rio de Janeiro: Editora 34 Duas
Cidades, 2003.
ALAMBERT, Francisco. A semana de 22: a aventura modernista no Brasil. São
Paulo: Editora Scipione, 1994.
ANDRADE, Mário. O empalhador de passarinhos. Rio de Janeiro: Livraria Martins
Editora S. A., 1972.
_______________. “O movimento modernista” In: Aspectos da Literatura Brasileira.
São Paulo: Martins Editora, 1974.
_______________. “Festa – nºs 1, 2 e 3 – Rio de Janeiro”, março de 1928, In: Festa,
edição fac-similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
ASSIS, Machado. “Notícia da atual literatura brasileira Instinto de Nacionalidade
In: CANDIDO, Antonio e CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da Literatura
Brasileira – Das origens ao realismo. São Paulo: Bertrand Brasil, 1994.
ATHAYDE, Tristão. “Gente de amanhã”, março de 1928, In: Festa, edição fac-
similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
AVANCINI, José Augusto. Expressão plástica e consciência nacional na crítica de
Mário de Andrade. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1998.
BARBOSA, João Alexandre In: MURICY, Andrade. Panorama do Movimento
Simbolista Brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1987.
BARRACLOUGH, Geoffrey. Introdução à História Contemporânea. edição. Rio de
Janeiro: Zahar, 1976.
120
BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2000.
BERTOLLI FILHO, Claudio. "A gripe espanhola em São Paulo". Ciência Hoje, vol 10,
nº 56, outubro de 1989.
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1976.
_______________. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro: antecedentes da Semana
de arte moderna. Rio de Janeiro: Civilização, 1964. 2ª edição.
CACCESE, Neusa Pinsard. Festa: Contribuição para o estuda do Modernismo. São
Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1971.
CAMARINHA, Mário de . In: Festa, edição fac-similada. Rio de Janeiro: Inelivro,
1978.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1980.
_______________. Formação da literatura brasileira momentos decisivos. Editora
Itatiaia: São Paulo, 1975, volume I e II.
CHAUÍ, Marilena. Brasil mito fundador e sociedade autoritária. Editora Fundação.
São Paulo: Perseu Abramo, 2000.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1998.
CHIACCHIO, Carlos. “Modernistas e ultra-modernistas: a reação subjetivista
brasileiro”, abril de 1928, In: Festa, edição fac-similada. Rio de Janeiro:
Inelivro, 1978.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil Era Modernista. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1986.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.
DELGADO, Luiz de. “Um aspecto de um livro”, março de 1928, In: Festa, edição fac-
similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
FELÍCIO, Vera Lucia. A imaginação simbólica. São Paulo: Edusp, 1994.
FILHO, Barretto. “As sombras das raparigas em flor”, novembro de 1927, In: Festa,
edição fac-similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________.”O espírito solitário”, fevereiro de 1928, In: Festa, edição fac-
similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “O segundo pecado original”, maio de 1928, In: Festa, edição fac-
similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
GOMES. Eugênio. “Adelino Magalhães e a moderna literatura experimental” In
MAGALHÃES, Adelino. Obras Completas. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1963.
GOUVEIA, Margarida Maia. Cecília Meireles uma poética do “eterno instante”.
Portugal: Imprensa nacional – Casa da moeda, 2002.
GULLAR, Ferreira. Vanguarda e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1978.
_______________. Argumentação contra a morte da arte. Rio de Janeiro: Revan,
1993.
HAUSER, Arnold. “A era do cinema” In: História social da arte e da literatura. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
HELENA, Lúcia. “A semana de 22, ontem e hoje” In Letras de Hoje. Porto Alegre
97, setembro de 1994.
____________. Modernismo brasileiro e vanguarda. São Paulo: Ática, 1986.
____________. “Sobre a história da semana de 22”. In: MALLARD. Letícia (et al.).
História da literatura: ensaios/ Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1994.
MAGALHÃES, Adelino. Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1963.
MURICY, Andrade. Panorama do movimento simbolista brasileiro. São Paulo:
Perspectiva, 1987; volume 2.
_______________. “A crise da prosa”, agosto de 1927. In: Festa, edição fac-
similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “A alma brasileira ou a falência do pitoresco”, novembro de 1927,
In: Festa, edição fac-similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “Alencar”, dezembro de 1927, In: Festa, edição fac-similada. Rio
de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “O dissídio com o blico”, janeiro de 1928, In: Festa, edição fac-
similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “Confiança”, fevereiro de 1928, In: Festa, edição fac-similada. Rio
de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “A nova geração”, maio de 1928, In: Festa, edição fac-similada.
Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
122
______________. “Convívio”, junho de 1928, In: Festa, edição fac-similada. Rio de
Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “Convívio”, agosto de 1928, In: Festa, edição fac-similada. Rio de
Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “Geração adolescente”, setembro de 1928, In: Festa, edição fac-
similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
NOVALIS. “Fragmentos logológicos” In Fundadores da modernidade (coordenação
de Irlemar Champi).
São Paulo: Ática, 1991.
NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. São Paulo: Ática, 1991.
PEDROSA,
C
ÉLIA
.
“Nacionalismo literário”. In:
JOBIM, José Luis (org.). Palavras da
crítica – Tendências e conceitos no estudo da Literatura. Rio de Janeiro.
Imago, 1992.
SANCHES NETO, Miguel. “Cecília Meireles e o tempo inteiriço”. In MEIRELES,
Cecília. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
SILVEIRA, Tasso da. Artigo de abertura, agosto de 1927 In: Festa, edição fac-
similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “A modernidade universalista da arte”, agosto de 1927, In: Festa,
edição fac-similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “Renovação”, novembro de 1927, In: Festa, edição fac-similada.
Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “O simbolismo brasileiro”, dezembro de 1927, In: Festa, edição
fac-similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “A árvore”, dezembro de 1927, In: Festa, edição fac-similada. Rio
de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “A enxurrada”, janeiro de 1928, In: Festa, edição fac-similada. Rio
de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “Alegria criadora”, fevereiro de 1928, In: Festa, edição fac-
similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “Totalismo criador”, março de 1928, In: Festa, edição fac-similada.
Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “Queremos ser ou o nacionalismo brasileiro”, maio de 1928, In:
Festa, edição fac-similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “Cateretê 5 para sanfona e violão”, junho de 1928, In: Festa,
edição fac-similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
123
______________. “Três simples sugestões sobre a arte brasileira (romance, poesia,
teatro)”, julho de 1928, In: Festa, edição fac-similada. Rio de Janeiro: Inelivro,
1978.
______________. “A descoberta da alegria”, agosto de 1928, In: Festa, edição fac-
similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “Instinto de tatu ou desiludidos de si mesmo”, setembro de 1928,
In: Festa, edição fac-similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
______________. “Batuque p’ra começar”, janeiro de 1929, In: Festa, edição fac-
similada. Rio de Janeiro: Inelivro, 1978.
SCHWARZ, Roberto. “Nacional por subtração” In Cultura e política, 1964 1969.
São Paulo: Paz e Terra, 2001.
____________________. Outros 500: novas conversas sobre o jeito do Brasil. Porto
Alegre: SMC, 2000.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Editora
Mauad, 1998.
____________________. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira, 1964.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Rio de
Janeiro: Vozes, 1978.
TOLTÓI, Liév N. “O que é arte” In Fundadores da modernidade (coordenação de
Irlemar Champi).
São Paulo: Ática, 1991.
VICTOR, Nestor. “Os novos”, maio de 1928, In: Festa, edição fac-similada. Rio de
Janeiro: Inelivro, 1978.
124
ANTOLOGIA
DE
ENSAIOS
A ALMA BRASILEIRA OU A FALÊNCIA DO PINTURESCO
A
NDRADE
M
URICY
Pero Vaz de Caminha, no crepúsculo matutino, começou a secular e perene disposição
ditirâmbica diante da natureza brasílica.
A terra, então, não tinha alma brasileira, mas, isso sim, americana.
Muito, muito mais tarde, uns estremecimentos...
Gregório de Mattos talvez tenha tido alguma coisa de brasileiro.
A alma da terra era, no seu tempo, assomada, violenta e serenateira.
Quase inconscientemente de sua individuação nacional.
Os Árcades Mineiros tinham por instinto brasileiro suas ânsias de liberdade.
Indefinível ainda, a nuança de alma, porém com obscuras afirmações, longinquamente
aurorais.
Gonçalves Dias rasgou o véu da inconsciência persistente, e guiou a torrente do sentimento
para regiões desmarcadamente brasileiras.
Uma alma nacional nasceu, irrecusável, porém melindrosa, tênue...
“Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá”
Uma jovem alma mida, mas perdida de efusão simplista, de emoção cândida, penetrante,
pungindo até os ossos.
Aquilo chamava-se (é bom não esquecer) “Canção do Exílio”...
É bela a canção de Gonçalves Dias?
Não o creio. Também: não posso julgar dela.
É uma beleza humilde, que a legenda envolveu.
Uma espécie de hino nacional...
Alencar foi mais, e menos longe, com “Iracema” e “Ubirajara”.
Duas lendas indígenas?
Que tem com isso a alma brasileira?
O sentimento da terra, a criação, a descoberta do ambiente físico, a invenção da plástica
brasileira, numa língua dúctil, saborosa, rescendente...
O verdadeiro pinturesco brasileiro despontou com Alencar: Gonçalves Dias adivinhara-o
apenas, e dera-lhe expressão meramente moral.
A alma morena, dourada, recozida ao sol dos trópicos e na fornalha verde-úmida do
Equador, a moça alma brasileira estava prestes para um primeiro grito definitivo de afirmação.
Soou a “tuba bronzeada” do canto dos “Escravos”.
Castro Alves, a primeira grande comoção coletiva brasileira!
Quando “Canaã”, de Graça Aranha, levantou o postulado da vida, da dolorosa indecisão
de infância de raça nova, fê-lo envolvendo a interrogação ansiada num mágico e deslumbrante
“zaimph”, numa prestigiosa visão do cenário soberbo, sugestão e anúncio da grande realização da
humanidade que se torna necessária para equilibrar tais esplendores.
A alma brasileira ia dando frutificação perfeita, em que o pinturesco era essencial, porém
sem predomínio ilegítimo:
- aquele fremente “Ateneu”, de Pompéia, que andam querendo (pobres deles!)
esquecer...
- o poema da adolescência brasileira, talhado em matéria preciosa, impregnada de vida
estuante e de fragrância perduradoura: “Alma em flor”, de Alberto de Oliveira...
Logo depois, mais uma vez, o pinturesco foi arrebatado à epopéia, com novo elance
coletivo da alma nacional (movida, então, por forças misteriosas e bárbaras) no “Os Sertões”, de
Euclides da Cunha.
Um dominador da língua, um grão-senhor da expressão...
Um painel a fresco, duma luminosidade densa, em que o sopro de criação suscita a turba
numerosa de indivíduos típicos, em movimento complexo e possante.
A terra fala linguagem rude, direta, indomada, em Euclides: a seca, os rios em abandono, o
duro empertigamento e as massas pesadas da estrutura geológica...
E os entes inferiores: o estouro da boiada, os animais durante a seca...
E a tragédia humana nascida da imensidade física, do isolamento que incandesce as
capacidades especulativas, a ala o misticismo...
Depois...
125
Depois o pinturesco inteligente, muito “sabido”, de “virtuose” formados no cosmopolitismo
policrômico e jogralesco...
Depois a orgia dionisíaca deste momento em que o mundo exterior existe, mas estilizado,
aproveitado objetiva, deliberadamente como elemento decorativo...
Depois, Plínio Salgado, irresistível naquele definitivo “Mandaguary”, do “O Estrangeiro”.
Depois a decadência: o pinturesco convencional, o pinturesco erudito, os catálogos de
fatos, de cores, de danças, de temas, de modismos característicos, catálogos feitos com intenção
cíclica, com intenção nacional...
E a alma, “com isso” (como diz o nosso povo)?
A alma brasileira deu a Farias Brito altivez bastante para olhar com olhos novos, de crítico
de gênio, o espetáculo do pensamento universal...
A lama brasileira deu a Alberto Torres coragem para olhar para o mundo brasileiro com
olhos estranhamente realistas...
Quando estrangeiros como Blaise Cendrars e Edouard Keiser procuram no Brasil um
“pitoresco” inédito que lhes remoce a arte aventurosa, qual poderá ser esse pinturesco, assim
desligado da alma brasileira?
Desligado da alma brasileira, aquela indefinida alma que anda perto de transbordar, mal
contida (ou bem, se quiserem: depende do ponto de vista meramente estético), e inconfundível,
naquela “Capitu” dos “olhos de ressaca”..., no sorridente Brás Cubas, na imortal intensidade humana
da “Missa do Galo”...
“Espírito inglês”, “humour”, convenções que é necessário afastar; verdades que é preciso
reduzir às suas secundárias, dispensáveis proporções...
Precisamente por que o espírito de Machado de Assis assim se aproximava do inglês, é
que a brasilidade do seu sentimento ressalta mais cristalina e evidente.
Cristalina ao ponto de, como a vidraça de Ortega y Gasset, não se a ver.
Tudo, porém, é visto através dela.
“Faltava o pinturesco, a Machado de Assis”.
Tanto melhor: mais nua a sensibilidade pura, mais concentrada a comoção, o cambiante
anímico mais bem caracterizado.
O pinturesco é prestígio efêmero, em função adjetiva...
Uma chama irisada, sedutora, mas cuja substância rapidamente se consome, logo por
outra substituída...
O arriscado, o decepcionante pinturesco...
Só uma coisa vale: a alma e os seus fenômenos de relação.
A falência do pinturesco forçará o artista a expressar sua vida interior, e, diretamente, os
choques de flagrante humanidade.
Forçará a sinceridade efetiva e mais esclarecida, e mais alta!
Forçará a sinceridade, a expressão eficaz da vida nacional, tão complexa, e, entretanto, tão singela
ainda.
Forçará ao reconhecimento da alma brasileira por nós mesmos, que dentro de nós a
contemos, e que pensamos ignorá-la, vivendo-a.
A CRISE DA PROSA
A
NDRADE
M
URICY
A poesia teve seus domínios tão grandemente alargados ultimamente, que a prosa tem
andado circunscrita ao romance de aventuras, ao cosmopolitismo cinemático.
Isso, visto o espetáculo em extensão: o caso de Proust ou o de Joyce são excepcionais, se
bem que característicos.
Stevenson, Conrad, Goibenau, Kipling, Jack London, por um lado; Morand, Giradoux, Mac
Orlan, Durtain, Cendrars, Dekobra, por outro, velhos e novos, dos mais lidos até hoje.
Todas as restrições inevitáveis e necessárias feitas, impossível negar que a poesia tem sido
mais sensível e exato sismógrafo literário neste começo de século, no que se refere à forma
sobretudo, do que a prosa.
A falta de personalidades notáveis a cultivarem a prosa seria uma justificativa, mas não
corresponderia aos fatos.
A explicação é outra, e fácil: transição rapidíssima, império quase indisputado do efêmero,
falta de tempo material para as realizações mais insistentes e iterativas.
Proust, Joyce, exceções que comprovam...
126
Facilidades e sedução da poesia (parece pueril notá-lo): cristalização instantânea de
momentos velozes, com funda projeção no subconsciente, com sucessiva excitação da emotividade
pelo dinamismo das sugestões elípticas e pela variedade de formas.
A sinfonia, essa, exige a continuidade da atenção, apresenta as longas preparações de
ambiente, a análise, a corrente de intensidade renovada da entrosagem duma ação contínua, interior,
exterior, ambas a coisas ao mesmo tempo.
A sinfonia quer dizer, a obra de ficção, construída.
Não estabeleço graus de superioridade qualitativa entre os dois grandes ramos da atividade
artístico-literária.
O que não há é, em geral, capacidade de esforço para obras que exijam fôlego além da
intensidade, que pode ser sintética.
momentos mais longos que outros, na vida; momentos que exigem representação mais
complexa, mais acentuada, de sugestão precisa e pormenorizada.
Estados de emoção segunda criam superposições no tempo que a grafia sucessiva pode
comunicar ou sugerir...
Proust...
A música tem dado provas concludentes dessa necessidade.
Strawinsky, Schoenberg, têm criado sobretudo grandes massas, intensas e extensas, ao par
de curtas páginas de “humour”.
Satie, Poulenc, Auric, Honnegger, Malipiero, Milhaud, quase páginas rápidas e elétricas,
porém sem desdenhar o teatro, a ação lírica.
Estes exemplos da música não são inúteis: acentuam a legitimidade de formas que vinham
sendo desdenhadas, repelidas como incompatíveis com a crise atual de velocidade, justificável, sem
dúvida, bela até, sob muitos de seus aspectos, mas que seria necessário combater se viesse diminuir
do homem a faculdade da força fecunda.
O “humour” por si só, esterilizaria, em pouco tempo, a arte; o cinema, em sua representação,
não na estética, que é maravilhosamente promissora, porém na estritamente mecanista, pertence ao
âmbito da nova arte: o próprio cinema.
Sujeitar a literatura a qualquer outra arte é aniquilá-la.
Tirar elementos de outras artes para dar-lhe vitalidade nova é justo, sob a condição de fazer a
transposição sob critério estritamente literário.
“Cada vez mais a arte é ‘construída’ logo a arte caminha para uma arte de síntese: a
arquitetura”...
julgamento apressado, superficial, por que o homem sente a vida por meio de variados
sentidos, muito mais numerosos que os célebres e convencionais cinco, porém sente a um tempo o
todo e as partes; não prescinde de nenhuma; consegue até gozar através de cada uma delas
sucessiva ou intermitentemente.
O cego não vê, nem o surdo ouve, mas o cego comove-se com a música agudamente, o
surdo pode ser arrebatado por uma deslumbrante visão.
Poderá haver uma comoção sintética, correspondendo a uma arte combinada, no sentido químico da
expressão.
Será, porém, para raros momentos: o homem não poderá renunciar aos prazeres analíticos e
às sínteses parciais, por que será para ele, um empobrecimento.
Toda arte construída contém arquitetura, porém arquitetura própria; toda arquitetura contém
poesia e música, visto lhe serem essenciais o ritmo e a harmonia, porém ritmo e harmonia
arquitetônicos.
A análise e a ntese são, uma e outra essenciais e significativas na arte moderna, como em
todas as artes em que seja dado vasto lugar à inteligência, à cerebralidade, ao par do subconsciente
e até do inconsciente: caso da arte atual.
O predomínio da síntese poderia inclinar o espírito preferencialmente para a poesia e para o
aforisma, o romance e a novela parecendo essencialmente analíticos.
Felizmente, para a arte, que perderia altos meios de expressão, aquilo é mera aparência: não
incompatibilidade entre síntese e análise, quando esta seja substanciosa e eficaz para o efeito
artístico.
Demais, cumpre notar, síntese não quer dizer “forma breve, curta”, mas, sim, rápida,
atingindo o essencial, essencial que pode ser muito complexo e até extenso.
A velocidade necessária deve provir do espírito, que gera a forma como lhe for necessária,
que gera a forma adequada, se em verdade criador.
Por isso, Proust, Strawinsky são legitimamente modernos, tanto quanto os que são “curta,
breve”, cinematograficamente rápidos: os Cendrars, os Cocteaus, os Auric, etc.
127
A poesia, tomando menos tempo para ser apreendida e relativamente menos tempo para ser
grafada (não, digo: concebida), parece convir particularmente ao espírito deste momento, ao triunfo
atual, absoluto, efêmero, da máquina amanhã obsoleta e atrasada, do dinamismo exterior, que
amanhã terá extenuado o homem, e o terá levado a uma irresistível ânsia pelas cristalizações em que
a eternidade da natureza humana tenha sua parte.
Quase toda a prosa modernista tem estado, por isso, subordinada à poesia, provindo antes
de Whitman e de Appolinaire do que da tradição da prosa.
Não importa: sempre houve dessas trocas e entrechoques.
O que é inegável é que o pitoresco atual (rádio, cinema, automóvel, aeroplano, usinas,
massas operarias) está sendo esgotado e vai já descorando.
Proust, Joyce, agora Cocteau, estão indicando, não um caminho, um exemplo a seguir,
porém uma possibilidade e uma legitimidade.
A prosa exige um senso de harmonia cíclica e uma continuidade complexa não
substancialmente necessária à poesia.
Por isso, antevejo um renascimento da prosa, pelo advento de um novo espírito de medida e
contenção clássicas, que seja capaz de retirá-la do faiscar de imagens multicoloridas de Morand, da
atonalidade mate de Cendrars, do contorcionismo espirituoso e perspicaz do engenhoso Giraudoux,
no neo-romantismo adolescente de Montherland...
Assim como Proust corresponde a Strawinsky (mas não é absolutamente necessário ser
eslavo, ser russo!... Cada um a seu modo, segundo a ética de sua raça), assim é necessário que
surjam prosadores que valham efetivamente um Essenin, um Maiakowsk, um Valery-Larbaud (por
onde se vê que há dois “Barnabooth” bem diferentes, e que eu estimo diversamente).
Que sobretudo não sejam apenas reflexos em prosa, aqui, dos nossos poetas modernistas,
mas que valham por si mesmos, como afirmações positivas da prosa.
Não é de crer que na multiplicidade dos ritmos emocionais da vida moderna, só sejam
escolhidos os ritmos privativos poéticos.
Aqui, no Brasil, seria prova de falta de complexidade do ambiente literário, até de preguiça
física de escrever, quando não o terror, da asfixia causada pelas deficiências lamentáveis de nosso
comércio e indústria editoriais.
“Falta de estímulo”, dirão. Sim: as meninas costumam recitar os poetas, e a moda da
declamação grassa nos salões.
Nossos legítimos poetas não recebem, entretanto, tal ilusória e perniciosa celebridade.
Editores?
Há nisso vicioso círculo: um movimento forte e grande de criação em prosa criará o editor.
A ENXURRADA
T
ASSO DA
S
ILVEIRA
I
AS REPRESAS ABERTAS
Sobre a terra passou o alento vivo
do espírito criador,
E mais uma vez se produziu o milagre das fecundações prodigiosas.
O húmus ferveu como metal no fundidouro,
e as seivas novas correram
para brotar do chão humilde
transfundidas
na chama pura da beleza
das formas imorredouras...
Represas que protegiam a terra frutescente
de lodos moles
e estagnações pestilentas
que, do seu adormecimento de morte,
insidiosos espreitavam
a vida clara e ardente.
Escancararam-se, além, represas misteriosas,
e veio, dominadora,
128
a enxurrada invencível...
E a terra genetriz viu-se alagada,
não das águas de benção
das alturas saudáveis:
a terra genetriz viu-se inundada
de águas mortíferas e estéreis,
de que ficaram emergindo apenas
as frescas e puras florações maravilhosas
que, de tão alto que haviam subido em beleza,
tinham ficado próximas de Deus...
***
- Você anda decorando o Rig-Veda?
- Qual Rig-Veda, meu amigo! Eu vinha pensando em coisas familiaríssimas
e atualíssimas. O subconsciente foi que se meteu na conversa. Doidinho de poesia; transfigurou-me
tudo...
*
Eu vinha pensando, apenas, neste “momento” do nosso espírito: na grande onda de alegria
criadora que nos dominou e fecundou; e na enxurrada de bestice que veio atrás.
Evidentemente feito o balanço, haverá saldo de realizações consoladoras. Mesmo porque
uma só realização verdadeira vale mais do que todas as imbecilidades reunidas. Mas ainda assim...
Aliás, tão previsível tudo isto!
Renovação, libertação...
Todo instante inicial de liberdade tem sempre dois sentidos. Um, para as profundas
naturezas, que o compreendem como uma possibilidade nova de mais ardente esforço criador. Outro,
para os nulos e medíocres, que julgam nele ver a “sua” hora, a hora de poderem entrar na ronda
facilmente, – a “sua” hora de desopressão infinita...
A mediocridade aborígine ansiava por este instante: febrilmente! Ansiava no fundo do seu
instintozinho rudimentar. Porque de coisa alguma tem a clara consciência. Vieram os primeiros
renovadores, queimando os dedos com os primeiros metais novos que acabavam de fundir. Os
medíocres espiaram. Ali não havia (que eles pudessem ver) nada das imensas complicações
anteriores. Houve entre eles um surdo regozijo. Mas o diabo da transcendente chamazinha do
espírito criador ainda persistia (afora todas as outras coisas que não viam) naqueles pedaços de ouro
fumegante. Contiveram-se. Calaram-se.
Um dia, porém, apareceu um maluco de talento que resolveu brincar com a canalha. E
estampou, em letra de forma, a título de poema e com o endosso do seu nome prestigioso, uma
porção de sandices à altura dela. E ainda por cima escreveu um manifesto jocoso defendendo a...
“arte nova”.
Aí, foi simplesmente o delírio.
Isto, sim, a gente entende!
E começou a enxurrada...
II
ANTOLOGIA
Me queira bem, Rosinha! Te juro que amo-te!
Na sala pobre da casa da roça
Papai lia os jornais atrasados
Mamãe cerzia minhas meias rasgadas.
Entretanto, ele gostava da mulher. Apesar das rugas, das briguinhas...
Mr. Paul Bourget é que faz ela inocente; ninguém diria mas é.
129
E o Chico da Venda todo de príncipe
cabra sarado no samba
surge num passo dengoso
Quando você morreu, mamãezinha, todos me diziam
que eu não chorasse porque você viria todas as noites
lá dou outro mundo
acalentar o sono do seu filhinho...
E eu nunca poderei esquecê-la
porque se eu a esquecer
eu terei um grande remorso
Crepúsculo
Festa de cores.
Fascinação.
Cidade
do verde
do ouro
do azul
– Ballada
A minha professora
magra
magrinha
tosse
tosse
tosse...
Eu tenho um sapato preto
e um sapato amarelo
quando está chovendo
minha mãe me faz sair p’ra rua de tamanco.
Oh, que saudades que eu tenho
do tempo em que o “fessô” me botava orelhas de burro
porque eu não sabia a lição.
Lhe prometo toda a sinceridade. Comigo não gosto de encrencas...
Zé Bagunça soprou na gaita
e o bacorinho pensou que fosse Siá Rita
botando milho na gamela.
Arreda, que lá vai a enxurrada! Chiiii... que enjôo!...
Que enjôo de pensar que a esta hora há, precisamente, 4.529 meninos a dizer bobices desta
ordem pelo Brasil inteiro! Por este Brasil essencialmente agrícola!
III
A ONDA RENOVADORA
O grave perigo é que, pelo número, eles acabaram fazendo ambiente. Ambiente de arte, de
pensamento, de espiritualidade? o. Ambiente de burrice, de “escárnio estéril”, de licencioso
deboche, de despreocupação das altas e puras meditações, de desprezo pelo trabalho da
inteligência, de influxos deletérios sobre nossa formação mental, de íntima desvalorização de nossa
alma de povo, de desprestígio de nossa língua saborosa, de bolshevicação geral. Ambiente que
dificulta as condensações espirituais que se vinham fazendo, que joga o nosso pobre povo mais para
o fundo do seu abismo de ignorância e incultura e, assim, afasta ainda mais os puros, legítimos
130
artistas dos revigorantes contatos com a alma popular, de que eles têm necessidade pela sua
natureza de genuínos cantores da realidade brasileira.
*
No entanto, a onda renovadora, a verdadeira onda renovadora de nossa arte é um fato!
Mais impetuosa nuns, menos impetuosa em outros, ela transmitiu os seus profundos
estremecimentos ao espírito comovido de duas a três dezenas de artistas, que são hoje a nossa
glória jovem e a consoladora certeza dos nossos destinos espirituais.
A onda renovadora palpita em mais de um poema deslumbrante, em mais de uma cristalina
página de alta prosa. Nas estranhas cadências universalistas de Cecília Meirelles. Nos puros cristais
de ambiente interior e exterior e nas faiscações de imagens de Andrade Muricy. No silvestre sabor do
“Meu”, de Guilherme de Almeida. Nas iluminações “a giorno” de Murilo Araújo. No delicioso “ritmo
dissoluto” de Manoel Bandeira. Nas almas pisadas e nas folhagens pisadas, recendentes a trópico,
desse admirável Plínio do “Estrangeiro”. Nas bocas erguidas para os beijos ansiados, dos poemas
novos de Gilka. Nas vegetais, telúricas nostalgias de Barreto Filho. Na espiritualidade delicadíssima
dos versos de Lacerda Pinto. Na fascinante crítica descobridora de Henrique Abílio. No “Toda a
América” de Ronald de Carvalho, poema de quem não é poeta, poema feito só de inteligência e
decalcado em ritmo whitmaniano, mas em que uma graça de jogo vocabular que os períodos
anteriores de nossas letras não conheceram. Nos incomparáveis interiores e nas frescas paisagens
provincianas de Ribeiro Couto. Na alegria de sol amanhecente das ginas jogralescas de Basílio
Itiberê. Nas adivinhações surpreendentes de Adelino Magalhães. Na recolhida, brasileiríssima ternura
amorosa de Abgar Rénault e Emílio Moura. No messianismo neo-romântico de Wellington Brandão.
Nas pinceladas largas, a verde e amarelo, de Cassiano Ricardo. No religiosismo lírico de Karam. Na
jovialidade garota de Alcântara Machado. Nos bonecos que vivem, de Menotti del Picchia. Nas
revelações da alma infantil, de Guilherme de Castro e Silva. Na ão dinâmica e na individualidade
desbordante Mário de Andrade e nas novelas novas de Oswaldo. Nas fundas vozes de renúncia
dolorosa de Rodrigues de Abreu. No fervor claro de Heitor Alves. No pomar verde que é a poesia de
Augusto Meyer...
Não estou fazendo uma lista de gênios. Há, aí, poetas e prosadores que tirariam grau 10 num
exame de grande arte... E outros que tirariam 9, 8, 7 ½... Mas não sou examinador, nem mestre-
escola. Citei os que vão trabalhando com todo o vivo e dinâmico fervor dos verdadeiros artistas,
embora com mais profunda, ou menos profunda, ou muito menos profunda eficácia realizadora.
Sempre, contudo, dentro daquele incomunicável sentimento de adoração pela arte, que domina
nas legítimas naturezas.
Capela? Grupelho? Escola?
Congreguei nomes de três ou quatro correntes que fingem ignorar-se mutuamente.
E agora?
IV – e, contudo...
Que valem, porém, para o efeito da formação do ambiente geral, e da impressão recebida
pelo público palerma que nada entende de arte, mas que, em defesa de nosso destino de povo,
devemos orientar, que valem os que ficaram arrolados, e que não atingem a 30, diante daquela
assustadora legião de 4.529 renovadores” às avessas, para o por na conta os 3.417 parnasianos,
neoparnasianos e ex-parnasianos que ainda nos restam?
E, contudo, – meninos!vocês, com o incontido desejo de arte que é, no fundo, o comovente
sentimento que os agita, poderiam prestar a este nosso caro Brasil um relevantíssimo serviço. Vocês
poderiam constituir um público! Um vasto público! esclarecido e freguês dos bons livros. Contanto
que aprendessem alguma coisa. Que meditassem um pouco. E se habituassem a distinguir melhor os
valores, de maneira a não caírem na esparrela das blagues ignóbeis. E quem sabe, até, quantos de
vocês, com uma rigorosa eugenia espiritual, não viriam engrossar pelo menos a reserva daquele
magro pelotão de heróis da primeira linha?
Mas vocês de nada disto querem saber. Querem escrever “apenasmente”. Botar o nomezinho
por baixo... Por baixo de que? De qualquer bestidadezinha que saia impressa nas páginas das
revistas que vocês mesmos fundam para tal fim.
Sou, todavia, um otimista impenitente. E desde que estou com a mão na massa, por que não
hei de fazer uma tentativa por incutir nessas cabecinhas algumas noções essencialíssimas acerca do
maravilhoso momento de gênese a que vocês assistem, sem atingir-lhe a significação profunda?
V
EQUÍVOCO
Em primeiro lugar, meninos, vocês precisam convencer-se de uma coisa: é que, se as velhas
normas do verso caíram, a Lei do verso persiste. Se os ritmos antigos foram abandonados, foi para
que surgissem novos ritmos. Não foi para facilitar a entrada de vocês. Muito pelo contrário. A arte
desta hora seleciona. Seleciona sem piedade. Porque não oferece a muleta do verso feito aos
capengas. Porque arrancou fora o gancho cômodo da rima, a que os medíocres de todos os tempos
se agarravam. A arte desta hora exige formidáveis condensações interiores, para que o verso, liberto
dos mortos ritmos, – venha com ritmo. Com o ritmo novo, que é uma criação de cada momento, que é
uma revelação de cada alma. A arte desta hora exige profunda e virginal sensibilidade. Porque o
verso, ou a prosa, não tem mais a musiquinha costumeira que enganava os ouvidos. Ou corre seiva
por este caule, e ele se ergue, ou não corre, e ele tomba; seiva criadora, que brote das subterrâneas
galerias do espírito, como um óleo, e traga nela diluído o fermento dos sentimentos eternos.
Vejam vocês a que ponto se enganaram!
Não houve, propriamente, barreiras aluídas.
Houve barreira que cresceram para o céu...
***
Está claro que eu não poderia das a vocês um compêndio de arte modernista. Tal compêndio
ainda o pode ser feito, como nenhuma estética foi jamais escrita “a priori”. Estamos no instante
da realização. A codificação de princípios virá depois. Isto não impede, contudo, que além daquela
advertência inicial, eu facilite a vocês a compreensão de alguns dos grandes caráteres já patentes da
arte de hoje.
Vamos lá. Aprendam bem direitinho estas palavras:
- VE-LO-CI-DA-DE
- TO-TA-LI-DA-DE
- BRA-SI-LI-DA-DE
- U-NI-VER-SA-LI-DA-DE
VI – velocidade
VELOCIDADE: isto é difícil de entender, meninos... Não se trata de falar em aeroplanos,
trens de ferro, automóveis. Nem de dizer tudo muito ligeirinho, por versos dissilábicos e estrofes
espichadas como salsichas, como vocês tantas vezes fazem. A velocidade de Proust “fons et origo”
de quanto Paul Morand e Giraudoux por existe, consistia em levar descrevendo um
movimento de alma através de dezenas de páginas. Trata-se de velocidade expressional, isto é, da
expressão que condense fortemente a matéria emotiva, e evite, em transposições bruscas e audazes,
os terrenos já batidos do espírito, e seja sempre inesperada, surpreendente.
Um verso de vinte sílabas pode ser mais veloz do que um de duas. E um romance em doze
volumes mais rápido do que outro em um.
Aqui é que a imagem nova, aquela que aos verdadeiros criadores se revela, mostra
toda a sua maravilhosa eficácia.
Aqui é que o sentimento virgem das coisas como os predestinados o possuem opera
milagres de assombrar...
VII – totalidade
TOTALIDADE: quer dizer: o artista assenhorando-se da realidade integral: das realidades
humanas e transcendentes; das realidades materiais e espirituais: humildes ou formidáveis. Mas para
recriá-las na sua arte. E não para evocá-las saudosisticamente em frases bambas e melosas.
Deformação não é o que vocês pensam. O artista deforma porque a luz deforma, porque o
movimento deforma: e o artista quer, antes do mais, captar a vida. Transfiguração não é o que vocês
supõem. O artista transfigura porque os seus sentimentos penetram as coisas, transfigurando-as.
Porque tem uma visão que lhe é própria. Porque tem um Desejo que é seu. E esta visão hoje
abrange a totalidade. E este desejo se tornou infinito...
132
VIII – brasilidade
Eis o ponto que, sobre todos os outros, nos interessa. BRASILIDADE: fazer viver, pela arte,
mais luminosa do que tudo, a realidade brasileira. Porque ela é que está integrada em nós: em nosso
instinto, em nossa inteligência, em nosso mundo moral. E a ela é que temos por destino expressar
mais luminosamente do que a todas as outras realidades.
Como fazê-lo, porém?
Nisto é que vocês andam cegos como estátuas de pau... brasil.
Vocês pensam que a coisa está em botar no pseudo-verso, com todas as letras, o nome da
aldeiazinha em que vegetam. Ou traçar a caricatura do boticário da esquina (ainda hoje!). Ou em
arrumar p’ra cima da gente com esse imoralíssimo cassange. Ou em lembrar, entre lágrimas, a
mamãe preta que os ajudava a fazer pipi...
É fiados nesses elementos que, tendo adquirido o calculado cacoete dos Andrades, vocês
vivem a dizer aos gritinhos: “Precisamos começar do princípio...”
Começar do princípio!
Vocês o têm a mínima noção do que seja o lento, mas formidável trabalho das obscuras
energias que se condensam através de milênios para a criação de cada maravilhosa realidade da
natureza ou do espírito...
Para vocês, o mundo foi mesmo formado por aquele piparote jovialíssimo do Padre Eterno,
de que fala Junqueiro. E a arte, a alma dum povo, surge com o simples desencadeamento dos fluídos
vivos da boçalidade represados, por força das circunstâncias, em algumas centenas de cabecinhas
de estudantes vadios...
Começar do princípio!
Nós estamos no início da nossa “realização”. Mas as profundas fermentações preparatórias?
Mas o longo processo de cristalização interior, de que provimos? Mas os gritos anunciadores da
conquista gloriosa, que encheram o ar antes de nós? Mas os primeiros blocos de virgem e rutilante
cristal puro que começaram a boiar no vasto fervedouro do subconsciente brasileiro, antes que nós
chegássemos? E, através de tudo isto, as indicações de rumo certo que nos deixaram todos os
precursores, indicações do que somos, do que viremos a ser, dos ritmos que nos são próprios, de
nossa música profunda, da beleza que, por ser nossa, mais altamente poderemos realizar?...
Meninos, vocês não escreveriam bobagens se tivessem sentido o frêmito de beleza
verdadeira que anima muitas das páginas daqueles simples e heróicos precursores.
Sem possuírem nem sombra do gênio criador de vários deles (que heresia!) vocês estão
em postura mais rudimentar, diante da nossa realidade, do que a dos menos significativos desses
artistas do passado.
Que trazem vocês para a poesia e a novela? A expressão direta e dissaborida de
ambientes primários e de pieguices domesticas: cenas de aldeias, recordações lacrimosas, facécias,
fáceis, – tudo isso despejado em linguagem chula e enjoada.
Ora, isto, depois da ingênua, mas deliciosa idealização romântica desses mesmo sentimentos
simples que nos deram Varella, Casimiro de Abreu, Castro Alves, em ritmos e músicas que jamais se
apagarão de nosso ouvido; depois dos coloridos maravilhosos de Alencar; depois dos frêmitos
profundo que Alberto de Oliveira captou; depois da humanidade viva e dos ambientes vivos de
Machado de Assis e Lima Barreto; depois dos acentos reveladores da poesia de Cruz e Souza...
Se hoje um ímpeto ardente de renovação nos domina, é porque o choque profundo da guerra,
que fez estremecer o mundo até a base, apressou de certo modo a nossa cristalização racial.
Despertou-nos melhor para o sentimento de nós mesmos.
Aguçou nosso desejo
Complexificou as nossas ânsias.
Abriu válvulas à torrente do nosso instinto de povo.
Queremos expressar-nos integralmente como vemos agora que somos. Como, pois, voltar
aos balbucios iniciais?
... as seivas novas correram
para brotar no chão humilde
transfundidas
na chama pura de beleza
das formas imorredouras...
133
IX
A UNIVERSALIDADE
Vocês compreenderam que só nestas condições seremos contados como uma realidade viva
no mundo?
Dezembro 1927.
A MODERNIDADE UNIVERSALISTA DA ARTE
(Fragmento de um ensaio)
H
ENRIQUE
A
BÍLIO
A arte é uma ascensão em profundidade.
E tende assim a acompanhar a vida, descobrindo-lhe a própria essência no significado íntimo
da realidade objetiva.
A sua função no tempo é estar presente ao momento que passa, fixando-lhe a síntese, e
revelando portanto o índice que ele representa na infinita curva progressiva da evolução cósmica.
A sua finalidade no espaço e, não restringir ao limite geográfico das nacionalidades a sua
capacidade reveladora, mas integrar a ânsia viva dessas nacionalidades no concerto harmônico da
comunhão universalista.
Exprimir no momento presente o momento que passou é, em relação ao tempo, o mesmo que
isolar da existência universal um dado povo em relação ao espaço.
A conclusão é por conseguinte inevitável: a arte só é verdadeiramente grande quando é
moderna no tempo e universalista no espaço.
O conceito sintético da arte, nesta ordem de considerações, resume-se pois na soma de
ambos os elementos, isto é, modernidade universalista.
O nacionalismo puro é em arte uma dissonância no coro de vozes predestinadas que tecem à
volta do planeta a luminosa atmosfera de todas as ânsias humanas subindo para Deus.
Eu chamo nacionalismo puro aquele que traduz a concepção do mundo restrito e ignora nos
seus efeitos a aspiração e o ideal metafísico da humanidade.
em cada povo uma predestinação artística, que inevitavelmente se manifestará na sua
arte, porque a arte é uma revelação da Beleza Integral através da emoção comovida do artista.
A atitude do artista diante da vida, em todas as suas múltiplas modalidades, é escutar-lhe as
vozes profundas e fixá-las, transfiguradas pela sua equação pessoal, na expressão tangível e
humana que lhe torna possível a existência objetiva.
Um artista é tanto maior quanto mais largo é o horizonte que suas concepções abrangem
porque a força latente de um povo tem um significado íntimo além dos limites acidentais ou não da
situação geográfica.
Toda raça fala através da sua arte, não porque lhe constitua o único objeto nem seja o círculo
estreito dentro do qual ela há de se mover.
Mas porque o frêmito da vida que comunica, servindo-lhe de base dinâmica, descerra aos
seus olhos as perspectivas transcendentes de uma totalidade humana voltada para um ideal comum.
A arte, na sua expressão mais elevada, tem de explicar as nacionalidades não em face de si
mesmas, mas em face do universo.
O artista, que é uma síntese de seu tempo e do seu meio, é portanto um nacionalista
espontâneo e inconsciente, porque a arte, projetando-se sobre o mesmo fundo de aspirações
universais, parte contudo, e é força que parta, do sentimento profundo de seu ambiente específico e
da compreensão perfeita e superior do que ele representa na ordem universal.
O desvirtuamento deste conceito biparte-se em duas correntes opostas, com resultados
divergentes, mas igualmente estéreis nos seus efeitos.
De um lado, o nacionalismo em si mesmo, do qual se poderia dizer que é, em arte, a
conseqüência da teoria individualista aplicada às coletividades.
De outro, um universalismo vazio, sem ligações físicas ou metafísicas de nenhuma natureza,
correspondendo de fato a uma atitude puramente mental, de que decorre, a rigor, o mero
cosmopolitismo incaracterístico que assinala a ausência de origem e portanto a ilegitimidade de fim.
Tudo se reduz a uma questão de ritmo.
No primeiro caso a confusão é manifesta.
Molda-se a arte no ritmo em vez de imprimir o ritmo na arte.
134
O fenômeno de expansão atrofia-se assim num processo de refração, ou mais precisamente,
de polarização.
Daqui se conclui por uma incompreensão total do que vem a ser, do ponto de vista deste
ensaio, o ritmo na arte, palavra de que me sirvo, aliás, em falta de melhor.
Em última análise, toma-se por arte o próprio ritmo, quando na verdade a sua função é
vitalizá-la, dando-lhe individualidade própria.
A obra de arte que resulta desta compreensão errônea é um puro maneirismo, tanto mais
artificial quanto mais se afasta da realidade total ou mais se aproxima da realidade parcial.
Fechado neste estreito horizonte, o artista não é mais um homem na humanidade e muito
menos uma faceta nova na revelação da arte: é apenas um indivíduo constrangido nas limitações do
seu nacionalismo, com uma atualidade restrita e fugitiva no tempo e uma realidade instável e
insignificativa no espaço.
No segundo caso há a ausência de ritmo caracterizada pela sua própria multiplicidade.
Escapam do objetivo deste estudo os fatores de ordem biológica e mesológica que tornariam
mais imediata a evidência da tese.
De toda forma, o fenômeno é intuitivamente compreensível, pois assinala o tipo divergente de
que define o primeiro caso.
O processo inverte-se e é antes de superexpansão o seu caráter.
Porque a arte não existe, assim como não existe o artista, em virtude de uma deliberação da
vontade individual.
Um artista é um artista a despeito de si mesmo e em conseqüência de leis superiores ao seu
julgamento.
A sua missão é revelar-nos a Beleza Suprema, que se não atinge apenas pela inteligência,
mas sobretudo pelo sentimento.
É-lhe portanto impossível abstrair das condições necessárias dentro das quais se há de
produzir a sua obra, porque elas lhe foram determinadas sem interferência sua.
Quer isto dizer que a legitimidade da arte não pode resultar de uma “atitude” inconciliável com
a sua origem e a sua finalidade, que são de fato superiores à idéia que delas se faz a humanidade
vulgar.
Destituída de ritmo a obra universalista perde o caráter idealista que a individualiza, como o
nacionalismo puro lhe atrofia o íntimo sentido de humanidade que a integra na progressão
ascendente das nossas aspirações e idéias.
As bruscas eclosões nacionalistas que assinalam a história de todos os povos não traduzem
o desejo latente de excluir o país em que elas se verificam, da comunhão humana, mas a
conscientização de instintos profundos e incoercíveis, cujo objeto vital é imprimir o seu próprio ritmo
na harmonia transcendente do universo.
O que lhe marca a característica é tendência de integração específica que lhe é inerente e
própria, isto é, o senso de equilíbrio que o atrai e lhe a percepção das necessidades
imprescindíveis através da conservação perfeita da sua essência.
As reações significam por conseguinte a oposição orgânica contra a contaminação exterior,
não propriamente pelas perturbações de ordem fisiológica que sobrevenham, mas pelo
desvirtuamento de ritmo que instinto adivinha fatal em conseqüência dessas perturbações.
O que deve interessar o artista não é a reação em si, pois que tal elemento é propriamente
irredutível ao ideal de arte que o orienta mas a vibração secreta que a determina e o índice de
afirmação que ela representa.
Ser nacionalista em arte equivale a encontrar a conexão sutil e significado verdadeiro de uma
modalidade nacional em face do globo, tomado como a soma dinâmica de todos os povos na terra.
Deve ser o seu único legítimo orgulho a realização de uma obra que tenha um fim mais alto
que o de afirmar uma existência particular, que não reflita na sua manifestação artística uma origem
lidima e ponderável e a ânsia coletiva dessa origem dentro de um dado momento.
A arte não tem função histórica, porque a sua finalidade o é explicar o passado, é antes
revelar o presente e profetizar o futuro através de uma criação de beleza.
Quando a arte encontra o seu objetivo no passado, o artista entrou num círculo vicioso, em
cuja regressividade se não acha compensada a lacuna assim aberta no presente.
Essa função pertence de fato à crítica aplicada à história artística, porque em tal papel a
crítica não tem limitação no tempo.
A arte que não é atual representa antes um fenômeno de cultura: falta-lhe autonomia,
individualidade, sensibilidade, própria, e não traduz a rigor o sentimento do artista diante da vida, mas
a superfetação do artífice revivendo um mundo morto através de uma pura acrobacia mental.
135
A sua arte nada revela, porque é na essência uma cópia, um aspecto insubstancial e falso
que nada acrescenta em nada alarga os horizontes do seu tempo.
Não menos de superficial na sua significação do que no produto industrial, que
necessariamente ignora a equação pessoal do artista e atinge apenas a realidade exterior da obra.
O papel sintético do artista só se preenche integralmente quando se somam nele as mil
facetas móveis do seu ambiente.
Uma nova concepção de arte surge precisamente no momento em que a linha evolutiva da
arte tende a afastar-se da vida, a estagnar-se ou a involuir e, sentido oposto à espiral ascendente que
ela descreve.
O papel do artista é estar presente a esse momento, apreendê-lo em toda sua plenitude e
profundidade e definir-nos o seu significado essencial, que de desvendar aos olhos da
humanidade um estágio mais alto na ascensão perene que nos leva para o infinito e para a infinita
revelação.
Nunca foi mais largo o espaço que separa as duas fases sucessivas da arte, como o que se
interpõe entre a arte de ontem e a do momento atual.
A arte moderna é um puro milagre de sensibilidade e de sinceridade e é um milagre o
menor de técnica e de capacidade de transfiguração.
A REALIDADE BRASILEIRA
H
ENRIQUE
A
BÍLIO
Em outros tempos, numa época que a característica dominante da fase que hoje
atravessamos torna por contraste mais remota – nós cantamos Waterloo.
Muito antes, Gonçalves Dias, ferindo um ângulo contraditório na nossa literatura, compusera
aquelas detestáveis sextilhas lusas flor exótica de ancestralismo e incompreensão brasileira no
nosso ambiente virgem.
Muito mais tarde, Ruy Barbosa, errando o conceito da nossa tradição, tentaria enclausurar em
moldes rígidos a língua portuguesa do trópico, sem atentar no processo atrofiante que daí resultava
para o nosso próprio pensamento.
***
Ao tempo em que Gonçalves Dias timbrava em exibir conhecimentos clássicos da língua, nós
pensávamos ainda, por assim dizer, de acordo com a mentalidade que as circunstâncias nos haviam
imposto.
A alma incerta do Brasil ressentia-se, nesse ciclo incipiente da sua evolução, da influência
absorvente da metrópole.
O seu sentimento de brasilidade envolvia uma concepção simplista da nossa realidade ou a
desvirtuava, inteiramente alheio da sua significação profunda ou a ia captar dentro da própria selva,
reduzindo a uma expressão linear o que era um fenômeno mais complexo da civilização cristã,
agindo no sentido da nossa universalização.
As sextilhas de Frei Antão e I - Juca Pirama dão-nos as duas faces irreais desse período
histórico e definem a orientação do poeta, titubeante ainda e ainda desorientado em face da
formidável eclosão da nacionalidade.
O vínculo do homem a terra não era a consciência íntima do seu berço, nem a integração
moral do indivíduo no ambiente porque não era ainda o mesmo sangue da terra e o sangue do
homem.
O abismo que os dividia representava-se pelo elemento alienígena da sua constituição
biológica, e cuja faculdade de compreensão meramente objetiva não compensava a ausência quase
total de afinidades étnicas.
Gonçalves Dias refletia mal a chama bárbara e prodigiosa da realidade brasileira.
Faltava-lhe a penetração aguda capaz de compreender, em toda a sua complexidade
extrema, o panorama multiforme que a vida estendia diante dos seus olhos, porque as condições
necessárias da sua individualidade e da sua personalidade lhe não permitiam apreender o sentido
profundo da realidade ambiente.
Dir-se-ia uma poderosa emoção poderosa em busca do gérmen fecundador que lhe desse
expressão objetiva, mas sem ressonância integral para a beleza ainda selvagem, mas poliangular
da nossa existência ponderável.
As numerosas citações estrangeiras dos seus poemas lhe atestam a perplexidade da atitude:
por um lado, a ânsia de realidade, por outro, a falta de autonomia brasileira na expressão do
fenômeno.
136
Toda a sua obra revela a ausência de um ritmo constante, que as circunstâncias lhe não
podam dar e são, antes, com a afirmação de um poeta, sem restrições de conceito, o índice de um
período de formação tendendo irresistivelmente para uma fase mais real e luminosa.
***
Waterloo – o Brasil estarrecido ante o clangor das tubas européias, Hugo à frente, já
acessível às emoções eletrizantes, mas absorvendo em vez de assimilar, com um substractum
maleável, incapaz de fixação, distante de si mesmo – uma alma infantil, versátil e caprichosa,
brincando com todos os deslumbramentos.
***
Depois Ruy – a estagnação da língua na atrofia clássica, um largo hiato a impedir a evolução
isócrona da expressão e da civilização.
Toda a elasticidade do pensamento que então nascia para nós, tornada rígida e incolor dentro
das armaduras anacrônicas dos textos quinhentistas.
Em toda a nossa evolução, a atitude mais artificial e mais nociva que assumiu um homem,
precisamente porque o seu prestígio era real e as suas preferências tinham um estranho poder de
infiltração perigosa.
Pasmo diante da sua estereotipação lingüística, o Brasil pôs-se a adorar imbecilmente um
idioma velho e tardo, vendo nele um ídolo inatingível, sagrado.
Levados sob o influxo do renascimento filológico irradiado de Portugal desde os fins do século
passado, nutrido pelos estudos alemães da Línguas românicas, compreendendo defeituosamente a
finalidade de tais conhecimentos, perdendo-nos por algum anos numa teia confusa e ressequida de
construções preciosas, de arcaísmos ridículos, de intransigências gramaticais maníacas.
Tudo o que de superficial na nossa literatura vem sobretudo da incapacidade da língua a
exprimir a nossa realidade.
Ruy errou expressamente querendo corrigir as letras brasileiras que se afastavam de sua
concepção clássica.
E desserviu-nos desoladoramente, impondo-nos a ignorância da vitalidade orgânica do
idioma, fossilizando a expressão de nossa vida complexa, imaginando utopicamente uma passividade
brasileira absurda em face da curva evolutiva segura que assinala a nossa existência.
Uma estagnação verdadeira travando o curso do nosso pensamento com uma língua que
parara e absolutamente inadequada a traduzir com sua inércia o desdobramento constante do nosso
valor intelectual e artístico.
Os vestígios que ainda restam dessa frase de puro artificialismo mostram nitidamente quando
de pueril e nocivo na idolatria da língua pela língua, do purismo esterilizador que constrói formas
peregrinas em torno do puro ar atmosférico, captando-lhe a vacuidade intangível e abstrata.
Neste plano da nossa afirmação existencial, Ruy deslocou a nossa gravidade, e nós tivemos
de perder um largo tempo a restabelecê-la, mas restabelecemo-la e queremos saltar agora os nossos
obstáculos, não grotescamente, para que o povo se ria, vestidos de armaduras medievais, mas de
calção curto e cabeça descoberta, expostos a toda luz e a todos os ventos.
Passaram as doenças exóticas e com elas o bafio do descobrimento, os preconceitos
dissolventes.
***
Hoje uma crítica que discrimina e separa um contato mais íntimo do homem com a terra, a
fusão do objeto e da expressão, o indivíduo sabendo quem é, satisfeito de ser quem é o
querendo ser outra coisa.
Cansamo-nos de ver e de aplaudir imbecilmente o que os outros fazem, queremos construir,
queremos conhecer o que fomos, queremos ser agora de tal sorte que sejamos no mundo e aos
olhos do mundo, que venhamos a ser amanhã e sempre.
Nós caminhávamos cegamente para a terra na mesma proporção em que ela caminhava para
nós e encontramo-nos: não há forma que possa impedir que andemos juntos de agora por diante.
Da reação que o desvio de Ruy nos impôs sobrevive ainda um paroxismo transitório, que
ignora a nossa tradição e quer ignorar a civilização que adquirimos, e inverte o conceito brasílico da
nossa realidade pastichando a Europa exausta e desfibrando o dado expressional complexo, que o
ambiente sujeita à sua condição própria e necessária.
137
Ruy é o único responsável pela anarquia atual da língua brasileira em algumas das suas
manifestações alucinadas e falsas: o alheamento do que em qualquer idioma é a mesma substância,
acessível a toda modificação evolutiva mas permanente e indestrutível em si mesma.
A nossa época é de libertação: o nosso sangue não mancha a terra: essa identidade é o
ideal que nos orienta.
ALEGRIA CRIADORA
T
ASSO DA
S
ILVEIRA
O
RIGINALIDADE
D
IVINA
A marca da originalidade na obra de Deus é a vida: o “estilo” de Deus é a vida. Em que se
parecem uma montanha e outra montanha, uma flor e outra flor, as águas de um lago e as águas de
outro lago, e sobretudo um ser humano e outro ser humano, senão em que vivem da vida da
realidade surpreendente?! Deus não esquematizou a sua individualidade infinita como os artistas que
limitam na palheta as cores únicas, ou no papel os traços estudados e sempre os mesmos, ou na
obra literária os assuntos premeditadamente eleitos, com que pretendem “marcar” a sua maneira.
Deus é senhor da totalidade das cores, da totalidade dos ritmos, da totalidade das formas. E a criação
divina é diversa, voluptuosa e volúvel a cada segundo novo no quadrante do tempo. Mas na pétala
mais simples, na asa mais rudimentar, no veio mais humilde de um granito, como na abrupta cadeia
de montanhas coroadas de neve ou no esplendor das estrelas longínquas, o seu Espírito Absoluto
se manifesta, uno e simples em meio à variedade infinita das coisas e dos seres. E manifesta-se pela
realidade da vida, pela afirmação do ser que há até no pó mais rasteiro das estradas.
A ansiedade do artista verdadeiro deve ser também pela vida da sua obra. Não a vida no
tempo, na lembrança dos homens, que isto é vaidade e nada mais. Mas a vida em si mesma, a
imortal palpitação do que foi realmente criado, e passou a representar uma realidade nova entre
todas as outras realidades do universo. Porque só a vida é indestrutível e só o ser permanece.
O artista verdadeiro não escolhe cores, ritmos ou formas. Sente apenas profundamente as
coisas, e a sua visão particular, a sua particular sensibilidade é que lhe determina tiranicamente as
formas, os ritmos e as cores que ficarão marcando na obra a sua individualidade poderosa. E se, em
geral, os grandes artistas se caracterizam por um conjunto de processos inteiramente seus, por uma
inconsciente escolha de certos ritmos, de certas formas e de certas cores, é porque o homem não
tem a sensibilidade infinita de Deus, e só pode sentir através de um prisma determinado e na
limitada linguagem que lhe é própria é capaz de transmitir aos demais a sugestão do sonho.
Rodin, renovador, tinha a paixão dos dorsos gregos, porque neles sentia a vida imorredoura.
E do estudo atento da estatuaria helênica saiu-lhe o “Homem que pensa”, tão novo e tão diverso, mas
tão vivo também. O que ele aprendeu nos mármores fidianos não foi o contorno flexuoso nem o
sereno modelado. Foi a impressão virgem da vida, do sentimento profundamente sentido, da alegria
criadora que é um dom de Deus e que visita a alma do artista nos seus momentos de suprema
humildade.
Por isto, se houve um Esteta verdadeiro, no sentido de Mestre de Arte, de teorisia da
Beleza, este foi Ruskin, que ensinou sempre a beleza suprema da Natureza, obra de Deus, e ensinou
sempre a humildade no artista, porque a humildade é que leva ao estado de graça, à angélica
inocência que faz do homem um criador.
C
ONHECIMENTO
Houve um tempo em que se supôs ingenuamente que a ciência seria a morte da poesia. É
que se estava em pleno romantismo, e como poesia definia-se todo um desregramento interior, que
encarcerava o poeta numa vaga ilusão de que ele não queria sair, porque fora dela se julgava
perdido. Mas a verdadeira poesia é algo de mais alto e profundo. É o maravilhamento do poeta diante
do milagre da vida. E o conhecimento, a ciência, só pode patentear mais claramente esse milagre.
Ter uma noção mais nítida das coisas é mais intensamente senti-las. Para o espírito inculto,
aquela pedra à borda do caminho não passa de uma forma elementar. Para o que saiba pouco, é
uma condensação de forças inesgotáveis, e na sua infinita estabilidade representa perpétuo
dinamismo. O que sabe fruirá um gozo multiplicado. Sentirá a pedra em sua totalidade, na sua
conformação exterior como na sua estrutura íntima, na sua forma e no seu volume, na sua aparente
inércia e no seu tumulto de energia. E sentirá ainda a ligação de cada um dos ínfimos elementos da
pedra humilde com as forças universais, de cujo vivo jogo ela vivamente participa. o é outro o
138
modo de sentir” de um Maeterlinck, por exemplo, e não foi de outra fonte que derivou toda a
profundíssima poesia do autor de “O tesouro dos humildes”. Esta sensibilidade nova é filha da
ciência.
O poeta é um caçador de imagens, e as imagens do mundo enchem-lhe o sonho comovido
de palpitante realidade. E é por esta realidade que os outros homens o entendem e lhe penetram o
mais íntimo do sentimento. Dir-se-ia que ele entrega à terra a própria alma, como faz com a semente
o lavrador, para que nas imagens ela se vista de realidade e floresça na expressão. Exprimir-se é
comunicar-se. E é por intermédio do mundo que o poeta se comunica com as outras almas. Conhecer
é totalizar a realidade, e absorvê-la mais profundamente. É enriquecer, portanto, a própria substância
da expressão.
Não falo apenas da ciência física do Universo. Falo de todas as ciências, principalmente das
que nos mostram o homem em contato com a natureza.
Que imagem maravilhosa, verbi gratia, da altitude e da profundeza do gênio, nas costas
oceânicas talhadas em abrupto corte vertical, quando sabemos que delas foi que, pela profundidade
de suas águas, pôde nascer a navegação, que as costas em declive, as mansas praias –, nunca
teriam permitido. Quando sabemos que delas foi que pôde partir, um dia, a primeira proa que,
rompendo o mistério, sulcou as águas virginais do mundo...
Para o poeta que contemple, com os olhos do conhecimento, um cair de crepúsculo, o
instante maravilhoso é de um prodígio maior ainda. Porque ele sentirá o crepúsculo não apenas como
um momento do seu dia, mas como o eterno caminheiro, que veio fazendo a volta ao mundo, e que
uma hora antes adormecia outras terras, agora mergulhadas na noite, e avançando, avançando, uma
hora mais tarde estará vestindo de sua doçura infinita as regiões para além do horizonte, sobre as
quais, nesse instante, arde, glorioso, o sol...
Que estranha majestade neste caminhar de crepúsculos e auroras!
O
PENSAMENTO CÓSMICO
Não cabe no pensamento finito do homem o pensamento infinito do Infinito. Mas nós somos
alguma coisa mais do que nosso pensamento atual e individual. Somos o pensamento da espécie;
que outra coisa significa, por exemplo, o “instinto” de conservação e de reprodução? Para
compreendê-lo não precisamos sair do puro domínio científico. Porque não guardaríamos também, no
mais fundo das regiões do nosso “ser” o pensamento cósmico total, que, assim como o da espécie
lute por aflorar à nossa consciência, abrindo-lhe os insondáveis horizontes?
“A religiosa é um clarão supremo que nos ilumina infinitamente mais do que a ciência; no
entanto, o nos nenhuma certeza, na acepção científica do vocábulo”: nas palavras que ficam
há tremendo problema psicológico. Exprimem elas, antes de tudo, que na fé mais ardente há
inquietação profunda, e que o desejo humano aspira, no seu conhecimento de Deus, à serenidade da
ciência.
De onde provém essa estranha antinomia? Ainda talvez do fato de que a consciência
representa apenas o assenhoramento, por parte de nosso espírito, de uma parcela mínima do
conhecimento total que em nós contemos.
Nesta parcela estão compreendidos os conhecimentos definitivamente científicos, mais a
soma dos dados empíricos que nos foram fornecidos pela experiência vulgar de cada um de nós.
Vieram-nos, porém, uns e outros, “de fora” de nós mesmos? Ou a observação e a experiência agiram
apenas como estimulantes de conhecimentos que preexistiam em nós como energias adormecidas?
Nem a antiguidade helênica, mas o homem de todos os tempos, acreditou sempre nessa ciência
infusa, de sentido tão vago e perturbante.
O espírito científico, rigorosamente indutivista, é um exemplo de humildade admirável, como
lembrou Unamuno. É como se o homem se dispusesse, em submissão heróica, a reaprender a lição
esquecida nas páginas de grande livro da natureza. Um gigantesco esforço de memória, de suprema
concentração em si mesmo, dar-lhe-ia talvez parte daquela ciência perdida, mas sujeita a mil erros e
desvios do entendimento precário. No livro maravilhoso as leis divinas estão escritas com todas as
letras. É apenas lê-lo.
Todavia, do próprio fato da nossa organização espiritual, sabemos da impossibilidade de um
absoluto conhecimento objetivo. A indagação objetiva nos os fenômenos, e nós temos a sede
do absoluto. E é por isto que procuramos Deus dentro de nós.
139
A
S SOMBRAS
O nosso “pensamento”, no sentido de nossa “filosofia”, vem de três fontes diferentes, do que
herdamos, do que vivemos, e do que lemos e ouvimos.
O que herdamos é , já de si, tão complexo; o que vivemos, tão múltiplo e diverso; e o que nos
foi dado ler e ouvir, o polimórfico e variado, que é um milagre e uma prova do Espírito a sua
unificação na mesma sutil corrente de uma vida mental.
No entanto, a nossa ilusão modesta é que vivemos principalmente de meia dúzia de autores
que, entre todos, mais nos dominaram, e em cujo influxo nos amparamos a cada instante de
meditação. Parece-nos ser a palavra deles que invocamos quando em si mesmo o nosso espírito se
recolhe para extrair dos seus profundos silêncios interiores as luminosas soluções.
A verdade é que é a uma teoria de sombras que a nossa invocação se dirige. Sombras que
se formaram no fundo de nós mesmos, de todos os pensamentos, e dos fragmentos de pensamento,
e das sugestões de pensamento que de todas as partes vieram.
Note que são muitas sombras e não uma só: porque todos aqueles elementos de
proveniência tão vária se congregaram diversamente, segundo misteriosas leis de afinidade. Uma
delas acorrerá ao chamado do vosso sentimento religioso, outra ao apelo de vossa comovida estesia,
uma terceira à atração de vossa curiosidade metafísica, etc. E em cada uma achareis traços de
Goethe ou Ruskin, por exemplo, fundidos em traços de vossa própria experiência, e de outras
fisionomias, e de vosso instinto profundo. E quando supondes ser a Goethe que invocais, mesmo
que lhe estejais repetindo, palavra por palavra, um pensamento conhecido –, é uma nova entidade
que do íntimo do vosso espírito que vos fala. E podeis ter a tranqüila certeza de que, de algum modo,
estais criando.
Na realidade, nunca seremos verdadeiros discípulos de ninguém. A não ser de alguma
doutrina divina, como a que fluiu dos lábios de Jesus, e que, por ser divina, comporta, dentro do seu
mais extremo rigor dogmático, essa infinitude de nuanças e essa infinitude de significações que se
geram no mais secreto dos espíritos.
O
GRANDE ARTISTA E O GRANDE ESPÍRITO
Leio um artista que recebeu como um batismo a graça suprema da evocação prodigiosa.
Seus vultos humanos e suas paisagens ardem na luz e se transfiguram de sugestão e
mistério na sombra. De suas páginas vem-nos cristalino e fresco o borbulho das águas; doloroso e
infinito, o zunido dos ventos pela noite; profundo e morto, o silêncio dos longos êxtases da natureza.
Aqui, aponta-nos uma perspectiva de montanhas, com os píncaros em escalada vertiginosa,
e a bruma a coroá-los na serenidade da altura. Além sugere-nos uma visão de crepúsculo, com
sombras lentas em procissão fantástica, e os lugarejos perdidos no adormecimento infinito da hora
mansa.
Mas sobretudo os seres que ele cria, as almas de que povoa a solidão do mundo! Palpitam
da vida múltipla de cada ser verdadeiro, tem a elasticidade dos músculos, o frêmito ou a languidez
dos nervos ou das carnes, a ondulação do corpo e do pensamento, as mais sutis nuanças de
expressão dos seres do Criador. Há olhares em que ele põe a fluida luminosidade, o úmido brilho dos
olhares reais; bocas em que desenha o traço fugitivo, indefinível, de extrema mobilidade, dos lábios
que se abrem num esto de paixão; mãos que se alongam para nós, desgarradas da gina, como
atraídas pelo fluído da simpatia de nossa humanidade verdadeira.
E as almas sonham, deliram, concentram-se, dispersam-se, vivem aos nossos olhos, num
contato imediato, com a nossa alma, que também sonha, delira, se concentra e dispersa ao prestígio
maravilhoso da evocação.
No entanto, esse artista, que o põe diante de nós uma outra Realidade, a Realidade saída
de suas mãos criadoras; que nos faz compreender como nenhum outro a alegria da arte e o
significado transcendente desta palavra: realizar; e é o imaginário magnífico e o animador
surpreendente, esse artista não consegue levar-nos para além de nós mesmos, para dores ou
alegrias mais altas do que as que a vida nos oferece, para concepções mais puras e esperanças mais
infinitas, – porque esse grande artista não é um grande espírito.
Oh da viagem que fizerdes na companhia dele não voltareis transfigurados!
140
A
MOR ÀS COISAS
Entre o amor às coisas e o amor aos seres humanos como nós, um abismo mais fundo,
talvez, do que parece. Mas não quero fazer a metafísica daquilo que todo mundo compreende e
sente a este respeito. Desejo apenas notar certas diferenças secundárias, em que nem todos
reparam.
O amor ao nosso semelhante, por exemplo, é essencialmente uma fonte de sofrimento,
enquanto que o amor às coisas é quase sempre condição de alegria. Falo do nobre e grande amor:
puramente altruísta no primeiro caso, puramente estético no segundo. O amor carnal e a avarice
estão fora da minha idéia.
Basta lembrar que, numa das hipóteses, ele é um apelo ao sacrifício, e, na outra, um convite
ao êxtase da contemplação.
A minha filha, cuja cabecita acarinho neste momento, é, sem dúvida, na minha vida, a mais
profunda das alegrias. Mas que ondas misteriosas de inquietude nessa alegria que vibra como uma
harpa, cujas flexíveis cordas a cada instante vão romper-se...
Nem todos os amores humanos terão esse estremecimento de amargura. Todos, contudo,
participam do desprendimento de nós mesmos; e este vocábulo sugere bem o que de agoniante
em todos eles: “desprendimento”, que significa, de fato, uma ligação mais íntima ainda com o próprio
fundo doloroso de nossa humanidade.
No amor às coisas, o que achamos é o esquecimento. As coisas não se somam a nós, para
aumentar o “volume da alma” em que o sofrimento opera, como o fazem os seres que amamos. Pelo
contrário, confinam dentro de seus próprios limites nosso ser, e dão-lhe com isto a tranqüila
serenidade do repouso. Talvez resida aí toda a essência do a que chamamos beleza, na arte plástica.
Aqueles dois simples lampiões, que vejo todas as tardinhas quando regresso à casa,
erguidos à entrada da ponte do canal, assenhorearam-se positivamente da minha mais íntima
ternura. Acostumei-me a saudá-los amigavelmente, quando por eles passo. Venho no bonde, com os
olhos presos na leitura. O hábito me adverte de que eles se aproximam. E eu fecho o livro para olhá-
los fundamente, e ainda de longe, quando o veículo avançou, volto a cabeça para uma despedida.
Eles me dão um mundo de sensações, mas todas de calma e de serenidade. Pela simetria
em que foram colocados, pela harmonia profunda com a paisagem, com as pilastras da ponte, com
as bordas suaves do canal, equilibram dentro de mim todas as imagens vivas e todos os tumultuantes
pensamentos. Em si mesmos, representam a estabilidade, isto é, o que, sem modificação, pode durar
indefinidamente. E no conjunto das coisas significam o que é eminentemente substituível. Por estas
duas razões, o que neles verdadeiramente me importa, que é a forma, toma esse caráter de
eternidade que meus olhos de carne não encontram nos objetos do meu amor humano.
Do amor às coisas é que nasce o sentimento realista do mundo. E do amor aos homens
todas as infinitas divagações do nosso espírito.
Do primeiro nos vem a energia serena. Do segundo, os impulsos formidáveis. Do equilíbrio de
ambos, a sabedoria.
K
IPLING E
D
OSTOIEWSKI
Kipling e Dostoiewsky, – o Kipling, sobretudo, dos dois Livros da Jungle e o Dostoiewsky de O
crime e o castigo e das Recordações da casa dos mortos, é que supremamente ficaram marcando
em meu espírito os dois grandes tipos de sensibilidade criadora em arte: a sensibilidade propriamente
artística, objetiva, plástica, e a sensibilidade moral, subjetiva e religiosa, alimentando-se uma da
beleza múltipla do mundo, e a outra do mistério profundo da alma do homem.
Dostoiewsky representa o segundo destes tipos.
O eixo do seu dinamismo criador é o sentimento do homem em face do próprio espírito. Seus
ambientes são interiores, são os ambientes da alma. O problema religioso, que mal se disfarça sob as
roupagens de evocação prodigiosa de O crime e o castigo, está latente em toda a sua obra.
Dostoiewsky compreende que um caminho traçado por Deus, e que cada homem significa um
atalho desviado, perdido em contorções infinitas, bordejando algumas vezes a grande estrada real,
e outras vezes compelido, em vertigem, para os distanciamentos dolorosos. Há, implícita, uma tese
moral e religiosa no formidável espetáculo do sofrimento humano que ele nos dá em seus livros. Em
O crime e o castigo, sutilmente condena a razão individualista. O crime de Raskolnikoff não foi
produto de inclinações viciosas ou perversas. Nasceu do orgulho da inteligência, que a si mesma se
arrogou o direito de concebê-lo e executá-lo em nome das exigências de uma pretensa missão social.
E o castigo, mais tremendo ainda, veio como o sinal majestoso da infinita dependência do homem em
relação a essa força suprema de que as leis do mundo derivam.
O domínio de Dostoiewsky é o do trágico interior, cujas veredas de sombra como que
percorrem paisagens do além da vida, porque são infinitas, fora do tempo e do espaço.
Para Rudyard Kipling, o que sobretudo existe é o mundo exterior, como um supremo motivo
de beleza.
Os seus quadros de imaginação mais fantástica são construídos sobre a realidade viva das
coisas. É a sua capacidade de sentir a perpétua presença da beleza no universo que tudo transfigura
aos seus olhos. Ele se apraz em remodelar, em recriar esse universo, na argila prodigiosa da sua
arte, de maneira tal que, assistindo ao ato da criação, tenhamos o sentimento imediato da grandeza e
do virgem esplendor de tudo. Usa, por vezes, de uma espécie de processo antitético para produzir a
sugestão maravilhosa. Nada nos faz sentir tão vivamente a majestade de uma montanha como
aquele desmoronamento de montanha de “O milagre de Purum Bhagat”. Nesse desmoronamento é
que, por assim dizer, palpamos a massa bruta de terra que se erguia para o alto, – é que lhe sentimos
o volume.
O mesmo efeito de sugestão poderosa alcança Kipling com aquela corrida dos elefantes
através da floresta adormecida, para a dança misteriosa na clareira da montanha (“Toomai dos
elefantes”). é admirável em si mesma a concepção dessa dança dos brutos paquidermes, que em
noite determinada se dirigem de todas as partes para a clareira mergulhada em sombra, como para
um rito religioso. Mas, como em toda obra de Rudyard, o que mais ressalta nessa página é a força
portentosa com que ele sugere a realidade: o vulto de Kala-Nag, o grande elefante, personagem
principal do conto, rolando “para fora da sua paliçada o lentamente e silenciosamente como rola
uma nuvem para fora do vale” – a floresta acordada na noite, – acordada, viva, povoada de seres; – o
orvalho a chover das árvores, em grandes gotas, sobre os dorsos invisíveis dos elefantes em
multidão; o ruído surdo da dança, em que os brutos batem, ritmicamente com os pés sobre o solo,
fazendo-o ressoar como um tambor de guerra à entrada de uma caverna; e o silêncio assombroso
que a intervalos sucede aquele rufar estranho, enchendo a noite até as estrelas...
***
Kipling o mundo em relevo de beleza. Dostoiewsky percebe a vida em profundidade.
Ambos operam o mesmo milagre da arte. Mas se ao primeiro pertence a radiosa alegria de modelar
de novo a plástica das coisas, o segundo teve em partilha o agoniado deslumbramento de quem
penetra o mistério, e, caminhando entre sombras, transpõe os horizontes estreitos da existência para
um além que não tem fim.
O SEGUNDO PECADO ORIGINAL
B
ARRETO
F
ILHO
O homem moderno quebrou a adequação da inteligência com o mundo objetivo, porque
tendo enriquecido a este com as mais surpreendentes descobertas, esqueceu-se de proceder ao
enriquecimento do próprio mundo interior.
A história desse divórcio é o drama que se vem desenvolvendo na consciência moderna, cuja
atitude diante do pensamento especulativo como em face da realidade é tão vivamente trágica, que o
nosso século, marcado por um signo de inquietação, será talvez o mais atormentado e absurdo
período da história humana.
Os três nomes estranhos que Jacques Maritain invoca como origem do mundo moderno,
ainda nos estão a enviar raios sombrios de suas influências; elas estão assinaladas, absorvidas no
homem do século XX, de tal forma que os parecem longínquas, dessemelhantes nos seus efeitos,
mas na verdade são profundamente atuais, e estão presentes à nossa existência com a
inalterabilidade de causa eficiente.
O homem que Freud viu através de sua ciência divinatória é aquele a quem Lutero agitou,
acordando as forças do instinto e despertando no seu dinamismo sensual; é o mesmo a quem
Rousseau lisonjeava a sensibilidade doentia, até exigir a sua volta ao quadro primitivo, com a
renúncia de todas as construções gregárias e sociais com que ele soube enobrecer a vida.
A inteligência que hoje se recusa ao conhecimento conceitual, é aquela para a qual Descartes
reivindicou o processo angélico de conhecer e que realizou com esse supremo desafio um segundo
pecado original; é a mesma que recebeu da dádiva desilusória do universo de Kant, onde as imagens
142
se criam e se conhecem a si mesmas, sem que a inteligência, no ato de conhecer, informe outra
matéria que não ela mesma, atinja outras realidades que não as modificações de si mesma.
O homem moderno, trabalhado por essas influências, não ressalvou intacta nenhuma de suas
faces: a inteligência, abalada no íntimo mesmo de sua estrutura foi desviada do seu objetivo secular,
e a sensibilidade, desencadeada em suas forças cegas, em suas moções obscuras, pretende uma
posse da realidade que não seja apenas a sua representação intelectual, mas um contato íntimo,
imediato, original, algo que se pareça a uma combinação química por afinidade e simpatia, ou
procurando-a com Bérgson, na renovação incessante, no que se esfazendo, no vir-a-ser do velho
Heráclito, ou apreendendo do Proust, o explicador da quarta dimensão, a essência da mesma do
tempo pelo processo daquela memória vida, que surge do fundo das cisternas do inconsciente ao
apelo de um sabor ou de um perfume.
Depois que Kant negou a realidade em contato com a inteligência, por isso mesmo que
negava esse contato, subtraindo ao conhecimento todo o seu valor objetivo, nada foi possível mais
fazer em prol da inteligência desacreditada.
O homem, todavia, o se pôde conformar com essa prisão dentro de sim mesmo. Conhecer
é transbordar-se, ir além de si mesmo, e isso parece ser a finalidade da alma humana. Não nos
satisfizemos com a atividade viciosa de criar a matéria de nosso conhecimento e conhecer o que era
nossa criação. Esse papel da Divinidade não agradou ao homem moderno, porque acordado
contemporaneamente na valorização dos instintos e dos sentidos ele sentia cada vez mais a
necessidade de encher o vácuo desse conhecimento com uma realidade diferente da sua,
conhecimento integral que se dirigisse à sua personalidade complexa e toda.
E o homem escapou do impasse kantiano por uma filosofia de atividade e de posse das
coisas, e inventou um instrumento de conhecer que lhe permitiu continuar a obra de descrédito da
inteligência.
O instrumento de conhecer do homem moderno reclama a colaboração de todas a suas
energias. Na intuição de Bergson, no misticismo filosófico de Blondel, no misticismo estético de
Proust, o conhecimento racional, específico da inteligência pura, não desempenha nenhum papel. O
essencial é atingir a realidade em si mesma de maneira que a personalidade humana esteja
integralmente, sensual e intelectualmente unificada ao objeto do conhecimento.
Entretanto, malgrado as tentativas de construção, nós estamos sob os efeitos do segundo
pecado original. A legenda bíblica se repete, e o erro humano (?), marcado depois de Descartes com
o caráter angélico de definitivo, o poderá corrigir-se, e inventou para nós outros uma nova árvore
do bem e do mal.
O atual renascimento católico e thomista que se faz sob a inspiração de Jacques Maritain, é a
mais séria tentativa para a salvação do homem moderno. (Mas ele estará perdido?) Julien Brenda,
Henri Bremond, outros tantos travestis do espírito clássico convidando a inteligência a voltar aos seus
antigos quadros. Todos eles instrumentos do grande ideal católico, que é sobretudo o de preservar o
homem contra a vertigem do Mistério, ideal que utiliza até forças estranhas a si mesmo como o faz
Charles Maurras. Mas o espírito moderno é rebelde. Angustiado, inquieto, ele está na sua fase crítica.
A sua condição social não está resolvida. Os gritos de individualismo se multiplicam, pela voz da arte,
da filosofia, do sexo. Sobretudo deste. O panorama de Regis Michaud sobre os Estados Unidos é o
conto doloroso desses édipos contrariados, cujo problema é o da organização social, que ao mesmo
tempo supõe uma solução de ordem especulativa.
Entre os mecânicos ideais do século o indivíduo sente que precisa afirmar-se, e reagir contra
a quantidade pela qualidade, contra a maquina pelo cérebro, contra a ciência pela sabedoria.
As grandes conquistas modernas deram à vida novas possibilidades de ser mais saboreada,
e não de ser mais compreendida. O homem necessita, todavia, de estabelecer para cada nova forma
de sensação uma nova forma de compreender. Na ânsia de equilíbrio e de beleza que perseguimos,
surgirão novas formas de vida que satisfaçam integralmente a personalidade moderna. Nós
queremos uma condição de vida que no-la ofereça integral, não sem limitações, mas sem mutilações.
E o Édipo moderno, que acordou para ser uma válvula de escapamento, desde que se comprimia
cada vez mais o homem (o puritanismo nos Estados Unidos), está misturado a todas as suas
atividades. Temos que resolver o problema de sua existência, situá-lo convenientemente, e isso se é
um problema social próximo, é em última análise um problema metafísico longínquo. Temos que
resolver urgentemente todas as questões sobre a causa e a natureza das coisas, para dizermos a
última palavra sobre o seu emprego e fruição.
Precisamos de uma nova tábua de valores, e temos que contar com um dado do mais alto
interesse com a estranha vida do sexo, que é hoje em dia um novo prisma para as coisas, capaz de
por si só representar o homem, fazendo-se Arte, fazendo-se filosofia, e se julgando capaz de explicar
tudo e de ser causa de tudo.
143
Quanto vai durar o período de inquietação o sabemos ao certo. É lícito entretanto, esperar
um novo classicismo, no sentido de que o homem não volte a ser o que era, mas resolva os
problemas e preencha os vácuos que se propôs, de maneira a entrar na compreensão integral do
universo e depois na sua posse, porque não há nada que ele possua menos do que as suas
formidáveis realizações materiais, sobre as quais não exerce o domínio do espiritual.
É preciso primeiro acalmar Descartes, para saber depois como se deve agir em face de
Lutero, esse Descartes e esse Lutero que o a inteligência desvairada e os instintos imperiosos do
homem do século XX.
144
ANTOLOGIA
DE
CONTOS
DE
ADELINO
MAGALHÃES
CHICO-VOVÓ
- “E HÁ DE FICAR sempre um Chico-Vovó!”
Na cama – na sua boa amiguinha – com as pequenas mãos espalmadas nos joelhos,
acorcundado, ele tremia, numa subida ânsia.
Lá na sala, a Mamãe falava ainda:
- “Pois é: não dá para nada, esse moleirão... Ele há de ficar sempre um Chico-Vovó!”
Escutando passos, cada vez mais distintos, o medo lhe crescia de que chegassem até ali,
ao quarto! Chegava a contá-los, para avaliar a distância, e abaixava instintivamente a cabeça, como
se a Mamãe estivesse pertinho repreendendo-o, muito vermelha e trêmula, a balançar os braços
para todos os lados; a ranger os dentes; a dar passinhos para trás, passinhos para diante... Depois,
menos convulsionado, percebendo o “raque-raque” da tesoura que cortava a costura sobre a mesa;
depois, percebendo que a Mamãe se fora sem dúvida lá, para a cozinha, ainda vencido pelo eco
daquele tom de enfado, de impaciência e de indignação que o sufocara, ele começou a olhar para os
pés da cama, nos quais um dos ferrinhos estava solto e bambo, deixando o companheiro sozinho no
grande vão; a olhar para a dançarina de porcelana sobre a cômoda e para os potezinhos e para os
vasos pequeninos onde Mamãe e, antigamente, a Vovó punham tanta coisa, desde fios de cabelo a
sementes de hortaliça; a olhar para o relógio, tão elegante e tão severo, como uma torre de pau,
fazendo um tique-taque amigo, carinhoso e embalador embalador de convidar a dormir: e para a
caixa de folha, desconchavada e seca, e para o cabide com roupas de homem, com roupas de
mulher, todas bambas, tristes, querendo chorar, como ele!..
Querendo chorar! E no entanto aqueles amigos do quarto falavam com tanta ternura, com
tão velha amizade, forte e meiguíssima, que ele parecia encorajado para resistir à Mamãe!
Falavam sobre aquelas conversas falavam sobre aquelas coisas que eles entendiam:
– aquelas coisas doces, tão bonitas e tão longe, que pareciam dizer assim:
- “Vocês não devem dar confiança a mais ninguém! Só vocês... só vocês...”
E quando a Vovó era viva?...
Ah! mas ele não dava para mais nada!
Dava para sonhar e dava... para lavar as xícaras lá, na cozinha, com a Hermogênia, e para
por a mesa...
Punha a mesa, com muito capricho, puxando bem a toalha, de modo a ficar sem rugas e a
ficar com as beiras tombando igualmente, nos dois lados opostos; separava um prato do outro por
dois palmos e meio, bem contadinhos; os copos e os guardanapos, na mesma fileira, ficavam
distantes do prato por quatro dedos...
Farinheira, prato de pão, moringas... tudo o mais tinha sua posição relativa, muito bem
determinada... Ele sentia mesmo um certo orgulho, quando a Hermogênia gritava, da porta da sala:
- “Sô Chico, óia, é hora de por a mesa!”
Mas naquele momento, tal qual noutros, ele tinha um mau deslumbramento, pavoroso, a se
lembrar que nunca poderia ser um homem, como o “seu” Roberto, a falar de negócios, vivo, nervoso;
nem como o Doutor Castro, a contar à Mamãe, risonho, um pouco curvo, de como havia passado
Dona Gertrudes naqueles últimos dias e o que ela tinha exatamente; nem podia ser como o “seu”
Duguinha, indo de pijama, a assobiar, para o banheiro.
Ele se sentia subir, todo desorientado, sem esperança, sem idéias, sem sentir, vendo tudo
escuro; como se fosse, junto ao dia, apagando lá, atrás da vidraça empoeirada. Porque, de fato, ele
não dava para nada, e andava a fugir de todo o mundo, a fugir da consciência que tinha, tremenda,
implicante, perseguidora, de todos os momentos: a consciência de que não podia ser visto “como
gente”, por ninguém.
Quando levava recados da Mamãe para a Dona Custódia, esquecia-se da metade; quando
fazia compras, deixava-se enganar, ao receber o troco...
Também não trazia nunca, exatamente, o que a Mamãe recomendava.
Ia pelo caminho a resmungar, repetindo baixinho o que ouvira, de modo a não se esquecer:
isso, com tanto maior facilidade, quanto escolhia sempre os pontos mais desertos para andar. Mas
quando chegava ao fim, a fisionomia da pessoa a quem ia falar, fazendo-se contraída, no esforço de
atenção, espantava-o e ele se punha a titubear, atarantado, com calafrios, quase a cair.
145
Um dia, veio correndo pela rua afora, na mais fria palidez possível! Levara ao turco um
dedal para ver se trocava por outro: o homem, antes de responder, um tanto abstrato, pegara numa
tesoura, para cortar uma chita...
E contudo... os outros...
E contudo, os “outros”, iam fazendo a melhor figura, segundo diziam todos os que se
assentavam à mesa do jantar: tanto os de casa, como os de fora, os quais sempre perguntavam
pelos “rapazes”. Diziam, às vezes, haver sabido notícias deles, por esse ou por aquele...
O Gustavo, repetiam, andava ganhando maior ordenado e era, cada vez, mais estimado
pelos patrões: gracejavam mesmo dele, com uma das filhas do Lopes, o sócio mais moço, porquanto
o rapaz escrevera que, na última vez que fora visitá-lo, a moça lhe dera uma rosa muito bonita e
prometera algumas mudas que ele, em breve, mandaria para casa.
Mamãe estava recebendo, constantemente, cartas do Fredinho, anunciando que ele ia
muito bem nos estudos; que os professores estavam muito satisfeitos; que apenas numa, ou em duas
cadeiras é que se sentia um pouco fraco, mas iria estudá-las, desde então, com o maior cuidado; que
havia estado com o compadre Teles, da Mamãe, o qual havia dado a ele um bonito livro de História
Natural...
Ficava muito atrapalhado, muito zonzo, quando falavam sobre os outros na mesa: olhava
disfarçadamente para uns e para outros, olhava para as paredes e para o teto, alisava a toalha, abria
e procurava consertar o guardanapo roto, fazia bolinhas de pão... Mais nervoso ficava porque se
punham a falar do “brilhante futuro” dos rapazes; a dizer que eles honravam a família; que “se fossem
todos como eles, estava tudo muito bem” – que eles tinham sido sempre assim...
E recordavam-se de passados feitos dos dois “homenzinhos”! Desde cedo, haviam-se
tornado “belos meninos” lá, da Mamãe e dos amigos da Mamãe; e ele, atirado ao lado, sem carícias e
sem elogios, imprestável, magro e feio (ele bem o reconhecia!) fora sempre um cachorrinho, aturado
na casa, apanhando as botinas e a roupa e o copo de água para os outros...
Ai dele, se não fosse a Vovó!...
Sentia um grande alívio, no instante em que, à mesa, mudavam de conversa; levantava o
corpo, tomando fôlego e se punha, de novo, a mastigar a comida. Depois, lembrando-se da palestra
acabada:
- “Quem sabe que se fosse também para a Capital...?”
Mas tinha medo... Não queria sair de casa: nem podia compreender isto.
Podia-se empregar, quando muito ali, em Friburgo! A primeira vez não fora bem, era fato;
não havia dado para caixeiro, no armarinho do “seu” Bernardo.
Ou antes: “seu” Bernardo havia dado com o metro de pau em cima dele, porque ele estava
distraído no momento em que uma crioulinha entrara, para comprar uns cadarços...
Ele fugiu, temendo apanhar mais; chegando em casa, àquele dia de trabalho, a Mamãe
perguntou-lhe “como era aquilo”?! Contou tudo e levou uma surra de sapato: depois, ficou preso no
quarto escuro, a arroz e caldo de feijão...
Para os livros também não dava: mesmo porque ninguém queria explicar a ele...
Às vezes, pensava em fazer um bonito, como o Fredinho: pensava estudar muito e muito,
numa vasta ânsia de redenção, de ser mesmo o filho daquela que ele não podia sentir como sendo
sua Mamãe; de sentar em qualquer parte da casa, de dia ou de noite; de olhar para todos
desassombradamente; de não andar mais com a Hermogênia; de ser “outro”, enfim!
Mas qual!...
Punham diante dele uma porção de livros, e lhe mandavam dar a lição, sem haverem
ensinado patavina!...
Punham-no de castigo, em frente às páginas cheias de letrinhas que, para ele, nada
significavam! Para se distrair, ia vendo as gravuras e pensava numa porção de coisas – tão bonitas!
como só ele sabia, e como a Vovó também sabia... antigamente!
Oh! a Vovó! A Vovozinha!
***
Tanto se lembrava dela!
Diziam que era única coisa para que ele dava: falar na Vovó!
Quando era viva a Vovó, andava-lhe sempre agarrado às saias e parecia uma verdadeira
sombra atrás dela...
Ajudava-a, isto era... Ou talvez atrapalhasse mais do que ajudasse; contudo, estava
sempre procurando adivinhar o que ela queria para ir buscar, para ir fazer por ela...
146
Era tão amiga, tão boa! Um doce, uma bala, uma gulodice... tirados não se sabia donde...
mas uma coisinha qualquer, sempre, a Vovó tinha para ele!...
A Vovó era tanto dele!
De noite, sentava-se à cabeceira dele para contar histórias... Gostava, a não mais poder,
das histórias que Vovó contava: Vovó contava tão bem, e contava coisas tão bonitas!
Quando caía doente, ou quando a Vovó caía doente, ficava um tanto satisfeito, porque
daquele modo podia tê-la, sossegada, junto dele quase todo o tempo, falando da fada que tinha
varinha de condão; do “Turco, Leão, Falcão!”, da “Bela do Bosque”; da “Princesa Azul” que esperava
o seu noivo encantado!...
Mesmo quando estava de pé, rodando, todo serviçal, em torno da Vovó, o a deixava
descansar um instante, perguntando:
- “Mas Vovó, a Princesa se casou afinal?”
Às vezes, punha-se a pensar a um canto, enquanto Votrabalhava: pensava no Príncipe
e na Princesa... que se deviam casar por força! Outras vezes, abria os olhos, à manhã, chorando e
dizendo, muito comovido, coisas como esta:
- “Vovó! Vovó! Olha, sonhei que o Príncipe veio correndo e que encontrou a Princesa
morta. E eu sonhei... que a Princesa... era a Vovó!
E antes de dormir, muito satisfeito do silêncio em que a casa toda caía, embalado pela toada
dos grilos e dos sapos fora, sonhava, de olhos abertos, com as fadas que vinham de tão longe,
dolentes e esguias, com porte e gestos e vestimenta de rainhas moças...
E o Príncipe... e a Princesa...
Pareceu-lhe sempre que Mamãe não gostava dele andar tanto com a Vovó!
Mamãe tinha talvez ciúmes dele andar mais com a Vovó do que com ela! Ia ralhar sempre
com ele, quando estava com a Vovó na cozinha, na copa, no tanque, no quarto...
Quando Vovó saía, ele sumia-se num canto a chorar e Mamãe, quando o encontrava,
aproveitava-se da Vovó estar fora, para surrá-lo. Vonão consentia que ele apanhasse, quando ela
estava em casa. Mamãe gritava, então muito vermelha, balançando os braços:
- “É Mamãe quem perde este menino!
Às vezes, saía com a Vovó; mas faziam caçoada, às escondidas, dela, muito pobrezinha
vestida e com modas do tempo antigo, e vinha para casa, a choramingar, sem que a Vovó pudesse
saber por quê...
E naquele instante ali, na cama, ele se lembrava tanto...
Sentia as lágrimas lhe correrem pelo rosto...
Oh! no dia em que a Vovó morreu, ele chorou até ficar doente!
Não dormira, a bem dizer, sempre junto à cabeceira, desde que a Vovó caíra de cama;
estava com os olhos em cima do rosto dela, instante a instante, e escutava, todo trêmulo, o que se
dizia baixinho, enquanto ela dormia...
- “E há de ficar sempre um Chico-Vovó, este moleirão!...”
Ia viver... ia continuar a viver, xingado e batido pela Mamãe, ouvindo que o Fredinho e o
Gustavo estavam fazendo muito bonita figura, e ele sem poder ser um homem... assim como os
outros homens e – pior de tudo – sem poder ver mais, nunca mais! a Vovó!...
Ele arregalava os olhos, brilhantes de lágrimas, como que procurando a Vovó, com seu
vestido azul-escuro, de lã, a que ele se agarrava a todo o momento, no tempo do frio; com sua blusa
pintada duma porção de pontinhos.
Procurava-a, tal qual era, de cabelos muito brancos; de rosto cheio de rugas; de boca
quase sem dentes; de queixo saindo um pouco... podendo ser mais curto, a falar a verdade.
E ela ia sempre sorrindo, pegando no avental, andando muito depressa e soprando os
dedos que tinha quase em carne viva...
- “Oh! quem sabe, quem sabe se a Vovó não seria capaz de aparecer ali, à porta?
E havia de perguntar a ele, muito boazinha:
- “Que está você fazendo aí, Chiquinho?”
Ele responderia, em voz trêmula e se remexendo, à beira da cama:
- “Estou pensando na Princesa Azul, Vovó! E no Príncipe, que se deve casar com a
Princesa!...”
147
DEDECO, DISCÍPULO AMADO DE TRANQUILINO
Publicado in Festa
Há certos homens, cuja vida para os frívolos oferece o máximo de interesse, porque ela
representa um tumulto brilhante de aventuras e epopéias animalescas!
Dedeco não inspirará jamais por suas ações e pela natureza de sua vida a alvoroçada
simpatia da maioria dos homens, que é frívola e brutalmente sequiosa de sangue e sensuais
estertores das grandes misérias de uns, que são ao mesmo tempo o pedestal da glória de outros...
também homens cuja vida em se relacionando, sob aparente pacatez e desinteresse, com as
agruras que voejam espectralmente em torno do pavoroso enigma dos destinos, prendem
solenemente a atenção dos eleitos do Espírito, proporcionando-lhes um estranho gozo de fidalga-dor,
que é o mais profundo a que possa aspirar criatura humana!
É uma compensação!...
E é esta uma fidalguia insuperável, eterna, que se não amedronta com o número e que se
propôs, desde o começo, de levar a humanidade ao divino dos seus destinos!
Dedeco costuma dizer que sua ironia e a do falecido Tranquilino são notas da grande
orquestra, que vai rompendo a mudez da Sombra... notas dos “ferrinhos”, ou do flautim, embora, ou
mesmo dos “pratos”, quando chegam à gargalhada do sarcasmo!... Mas o fato é que o notas, e
notas indispensáveis na Sinfonia!
“A Sinfonia! Hosana!”
Hosana! O pequeno número vencerá!
Hosana! Oh! o excelso Dia...
Mas Dedeco já morreu! A precocidade tem seus deploráveis efeitos!
Apesar de não ter mais do que trinta anos, Dedeco já se definiu na arquitetura de suas
opiniões características, individuais, e o edifício agorapoderá levar umas pinturazinhas, de quando
em vez.
Dedeco vai ficando desses homens aos quais a gente acha demais na vida, e dos quais
quando se vão, além do agradável sensacional, que em toda a morte, do “menos umde instintivo
desafogo que a gente sente no seu egoísmo animal – há ainda a redentora satisfação de se haver ido
uma coisa aborrecida, de tanto vista!... de tanto usada!
Dedeco sabe disso, e tem um sorriso triste tal qual uma gota de água caída do salgueiro
sobre a sepultura!
Dedeco sabe bem disso, porque bem, em relação a outrem, já experimentou a sensação
desasfixiante e quase vitoriosa de “ver ir-se embora mais este!...”
Há em nossa natureza animal tantas jaças, que a desgastá-las lá se iria a preciosa gema!...
________________________________
Dedeco já passou! Dedeco hoje só relê o que já leu, sente mais profundamente o que já
sentiu, tornou-se arisco e, às vezes, selvagemente conservador.
Dedeco vai-se acorcundando para o passado, com mais inteligentes e simpáticos olhos
sobre outrora, porque leva-os cheios do desconforto de tudo que não seja esse passado tumultuoso e
feérico de ilusões! Selvagemente conservador e o passado de mocidade ele o conserva, como a
recordação de uma encantada paisagem, jamais tornada a ver e diante da qual todas as outras são
de uma absurda, de uma incompreensível, e blasfema inferioridade!...
Maldição aos tempos presentes!...
______________________________
Deu agora Dedeco para negar o gênio, pretextando que a criação, que se dá como
característico do gênio, é o maior absurdo imaginável!...
Tudo que o gênio “cria” já existe na natureza! É tão sabido como todas as grandes
verdades, que é sempre preciso repetir!...
Que é pois um gênio? Um devassador feliz e muitas vezes casual, inconsciente, de novos
continentes!
______________________________
Estou a falar muito do espírito de Dedeco; diga também alguma coisa sobre o seu físico e
sobre suas anomalias...
148
Principiar por anomalias, talvez seja mais ilustrativo. Por seus maus cheiros, vindos de suas
entranhas, é evidente que ele tem uma ternura verdadeiramente materna.
Pelos perfumes ele próprio confessa uma outra simpatia: a simpatia que se tem pelo
mórbido, pela inimizade à vida; pela espiritualidade antagônica à vida com seu pequenino “V”.
______________________________
Portanto Dedeco entra nas perfumarias...
Admite-as...
O que ele não admite são os barbeiros e os engraxates, frivolíssimos vadios; são os
choferes, e os “garçons d’hotel”, importunos ou zombeteiros, e os livreiros que se fazem de cáftens do
espírito...
E quando um desses indivíduos, num isolamento amigo, lhe fala das necessidades da
família e na dureza do ganha-pão, Dedeco se admira de como se vai sombreando seu ânimo e
apiedando dum monstro, como o tal!...
Oh! mas a dor humana é tão sagrada para Dedeco!... tão catedralescamente venerável!
______________________________
A arte, para Dedeco, é sempre fútil! Que utilidade em se reproduzir a natureza? Que
utilidade em se manifestar uma impressão, que nunca poderá ser geral, e sim pessoal?
E a filosofia!... que brinquedo de mau gosto armar casinhas engenhosas, mas que
servem de ornato? E a ciência, que ganha ao conhecimento verdades sempre incompletas, que
prejudicam mais ao cérebro e à vida do que a sua ignorância, visto que a ignorância está sempre
numa boa e prudente defesa?...
______________________________
Prosa e poesia!...
“O prato de substância dê-me: boa prosa! A poesia... ah! sim, um poucochito de
sobremesa! Vá lá... lá!... ao meu estômago adulto!!
Contudo Dedeco tudo, atabalhoadamente, do meio para o fim, e do fim para o princípio,
incapaz de se submeter ao método, ao completo raciocínio do autor, num eterno pavor de se
escravizar a quem quer que seja!
De tal rebeldia leitora, resulta que Dedeco é um cataclísmico turbilhão de dúvidas se
espasmodizando gigantescamente num tenebroso universo de problemas!
______________________________
É a maior volúpia de Dedeco sentir-se tangido pelo frenesi do tumulto universal!
______________________________
Crê Dedeco na amizade?
Não, nem na de Tranquilino ele cria... Entre dois amigos, cada um três, esperando
receber seis...
Para isso é que as manobras da hipocrisia deles são, cada vez, mais cheias de “afeto” e de
“desinteresse”!
Dedeco diz que muitas vezes sente seu estômago rancoroso dos seus pulmões, e mais
freqüentemente, de suas pernas...
E só...
“Só, na solidão dos que pensam diferente dos outros: na solidão dos que sentem diferente
dos outros: só, na solidão dos espontaneamente superiores; na solidão dos que são como um gesto
de graça – tão nostálgico de si mesmo! – pairando sobre as brutais contingências da vida!”
A antipatia que Dedeco experimenta pelos “estranhos”, seja devida contudo à inferioridade
que neles sente de não apreciarem, como ele, o mar, a música e Manon ou Margarida... de não
comerem, como ele, tão bom bife... de não terem aquela sua delicadeza... de não serem a mesma
carne, que ele!
***
149
Consciente da realidade de tudo, testemunho do ruir dos alicerces dos princípios
fundamentais de uma civilização, Dedeco cruza os braços e vive para se deixar morrer, ironicamente
amodorrado, esquecido, quase inconsciente... cuidadoso somente do seu sorriso de ineficaz ironia!
***
Crer na democracia, oh! não!
Se ele é pela fidalguia do pequeno número, que levará a humanidade ao seu destino, sem
mesmo que ela o perceba!...
“Deixem lá a maioria pensar que vence!...”
Depois!...
***
Depois, um cabeleireiro que já raspou a cabeça de Dedeco, em pequeno, é hoje
deputado!...
Era muito carrancudo!
Dedeco não poupa isso... tanto mais que não o cumprimenta o tal ex-barbeiro, e tem um
olhar imperioso, indiscutivelmente vencedor!...
***
Dedeco é revolucionário porque sabe existir bastante ordem e senso no mundo: ordem e
senso, que tem a superioridade moral de lhe perdoar os arreganhos verbosamente dinamiteiros.
Pobre Dedeco! Dedeco não é de nada!...
Dedeco perdeu-se a procurar sempre as alturas e tão atraído por elas, que levando a
contemplá-las, de longe, esqueceu-se da galgar a banalidade dos primeiros degraus, para atingi-
las!...
Depois, quando teve consciência do erro, era tarde! Tarde para galgar os começos da
altura – ele assim achou, no desânimo que lhe veio de “ter perdido tanto tempo”!
_______________________________
Não estou fazendo muito metódico este perfil de Dedeco!...
Tão pouco metódico ele o é!...
A cada um o que merece!... Mesmo porque sei que ele me repeliria com feições convulsas;
de natureza revoltada!...
_______________________________
Será Dedeco bom?
Não é bem exato que Dedeco seja bom por indolência, por comodista “deixar fazer” de
caboclo agasalhado do sol inclemente, sob frondosa mangueira – e sonolentamente estirado!...
Não é bem exato que seja algum tanto esmoler por se ver livre do importuno... Não, ele tem
qualquer coisa de espontaneamente generoso e compassivo!
Contudo, praticado o bem, ele se apavora às vezes com a idéia de vir a ser a humanidade,
um dia, desesperadoramente monótona de perfeita bondade!
_______________________________
- Imprevidente Dedeco o é, por superstição.
Não ama de pensar no futuro, por que pensaria risonhamente e... “nada de bom lhe haveria
de acontecer!
Bastaria pensar... para que – não lhe viesse o esperado!
_______________________________
Ama o sensacional!
É um fraco que ama e respeita o vigor dos acontecimentos.
Tem Dedeco a tristeza dos fracos...
150
_______________________________
A tristeza inerente à sua débil pessoa, frouxamente alta, exangue, adormecida, é terminada
por uma rala cabeleira negra, latinamente negra, como a tristeza mesma. E tem Dedeco um olhar,
que se não fixa em ninguém, tanto receia ele trair sua versatilidade, seu flutuar de opiniões, e seu
desprezo pelo incompleto de tudo, pela miséria de tudo...
Esse olhar irradia de um rosto mastigado e picado, como devastado pela dúvida, que
maltrata todo o ser do exótico jovem, nascido por macabra ironia, para as doiradas tristuras de
excepcionalidade!
______________________________
Frouxamente alta, a pessoa de Dedeco é tal um guincho estéril de seu ser todo, a pedir
inutilmente o Infinito...
_______________________________
Seu caráter mórbido, resultante da fraqueza orgânica...
Dedeco é, de fato, um desorientado por impotência psíquica de pertinência numa ordem de
idéias e pela intuição que ele tem da inutilidade final de todo o esforço!
______________________________
Dedeco, imoral!...
Atirem-lhe as pedras!...
______________________________
Não, não! Esperem um pouco!
Muito sofre Dedeco em ter sido feito assim!...
Dedeco foi feito assim, e Dedeco vive numa época em que as mulheres se sublimam de
beleza e de sedução, seminudando-se, em elegantíssimos e sonhadores esgarçamentos de
vestuário!
Imoral que seja, Dedeco é mais digno que os hipócritas do século!
Freqüentemente Dedeco tem passado por imoral!...
Por São Tranquilino!
É o discípulo amado de Tranqüilino, pelas suas ações e pelas suas palavras, um furacão de
luz!
De luz que publica os mais recônditos segredos da mentira humana e é furacão porque,
antagônica à treva das misérias, clareando, destrói ao mesmo tempo da Luz que não é luz!
Por onde passa Dedeco, sempre um assanhamento de minhocas... imbecis que
superiorizam para ele o seu portezinho de nulos: há imbecis que olham para a sua gravidade, com
um risinho idiota de palhaço sem vocação; há imbecis, que se vêm chegando para ele com um tremer
de lábios mal-intencionado, desorientadamente furioso da superioridade do filiforme fidalgo, mui
modesto contudo!
Dedeco não os vê porém, esquecido na ânsia de acompanhar o turbilhão polifônico,
duêndico, voraginoso do século!
Dedeco é uma grandeza mansa.
______________________________
Diante de um estranho, Dedeco é pavorosamente mórbido, vendo “o outro” como infinito
deserto ao fim do qual ele, o outro, estivesse!
O outro ali tão perto, e o longe!... E Dedeco a sentir a nostalgia de si mesmo, como um
noivo o sentirá da noiva, na ausência do “anjo querido!”.
______________________________
Todas as vezes que Dedeco está a pensar em coisa que lhe não apraz, abandona-a de
brusco, figurando-se a disparar um tiro:
“Pum! Lá vai a bala!...”
Lá vai a bala, frenética, decisiva... e com ela a idéia e o mal-estar...
Depois de excessivo trabalho mental, o discípulo de Tranquilino põe-se a correr, a fazer
caretas e a dizer imbecilidades!...
Tem isso por fim “estabelecer o equilíbrio” e evitar ao jovem pensador dores de cabeça e
insônia!...
Para excesso de critério: parvoíce!
Dedeco goza de boa saúde mental e, sendo “paranóico”, é contudo o maior criador de
verdades de sabor clássico, que eu tenho visto no Rio.
No Rio, segundo Dedeco, um enxame de mestiços farejadores das verdades
mastigadas dalém-mar (e das mentiras, outrossim) enxame este que sacode a cachola vazia, em
reverências profundas, diante de um orador de saber arcaicamente “vieirense”, que leva a
desamassar em todos os sentidos banalidades quilométricas, que tendem a endeusar sua
pessoazinha!...
Dedeco se entristece e olha com um mau sorriso para estes fracudos “grandes homens”, da
Caboclolândia!
Dedeco olha para os “jornalistazinhos” de sua terra como para uns pivetezinhos literários,
que seria preciso prender... Prender como a serezinhos importunos, sem solenidade, levando-os pelo
fundilho das calças... tendo cuidado apenas de se não machucar com o esperneamento dos
insignificantezinhos!
Aliás, Dedeco se sente mal num país onde o pé dos foot-ballers tem mais valor do que o
cérebro dos pensadores!
Um povo destes que quer levar a cabeça ao nível dos pés não pode agradar, pela sua
atitude muar, ao nosso filósofo.
______________________________
“Salve! Salve, divina Sinceridade!...”
Tudo, que é, seja! Seja, à custa de lágrimas embora!
Morra o bom-senso miserável, abafadiço, sem horizontes, sem galhardia, asfixiante de tudo
que a natureza tem de mais belo, de mais puro, de mais espontâneo, de mais duradouro!”
Dedeco tem uma inconfessável simpatia pelos levianos, pelos intrigantes espirituosos,
pelos censores desabusados e irônicos, pois dão animação à vida!... Poupem-no, porém, a ele!
Tem uma certa covardia física ao lado do excessivo brio! Sua atitude, numa questão
qualquer, depende da disposição do momento!
Disposição que lhe diz: “não vale a pena expor-me por isso!...” Disposição que lhe diz: “não,
isto é um desaforo deste patife!”
Segundo uma ou outra coisa, que lhe brote no cérebro, ele age... e a brisa que lhe passa
pelo ânimo faz-se furacão ou simples assovio à covardia dele!...
Pela mulher, ele sente uma incompatibilidade irredutível!
Diante de uma mulher, ele se sente como diante de uma pessoa de “outros interesses...”
tão opostos aos seus!...
______________________________
“Os exemplos das maiores virtudes humanas estão nos animais! Fidelidade, no chão; amor-
materno; assistência nas aves... a ir assim!...
Sinto-me mal em ser homem, especialmente por ter inteligência para reconhecer o que sou,
como homem!”
***
O conceito que se faz geralmente das ações humanas, faz lembrar a Dedeco as visitas
esporádicas da Polícia carioca às casas de tolerância onde são presas escandalosamente dez ou
doze pessoas, para “moralizar” as centenas de pessoas que lá foram impunemente...
______________________________
152
Espera sempre por um “dia solene”!...
É que, sendo ele um desordenado convulso, que quer abarcar todos os esforços e todos os
conhecimentos ao mesmo tempo, superficialmente contudo, por não poder ser de outra forma, no afã
de sua curiosidade espera pelo dia solene, que será aquele no qual ele começará a tomar posse
definitiva e gradual e segura de cada coisa...
______________________________
Eu que o admiro muito, acho contudo que Dedeco vai passando de irônico a imbecil!...
Sim, senhores!
Nas crises mais sérias em que se debatem seus amigos, ele ama de vê-los, evidentemente,
se embaraçarem, se enfurecerem... antes de auxiliá-los, com sincera solicitude.
Faz mesmo ironias, de péssimo gosto, sobre a desgraça alheia!
Ele é uma alma feminina, que se na contingência de ser uma alma máscula, porque
veste calças de homem!
______________________________
Na impotência dele tudo é “aragem”!
Seus bons gestos, seus bons atos, suas boas palavras... são, de fato, como o ardor sexual
dos velhos, são passageiros, e devem portanto ser imediatamente aproveitados por ele!
Não é que ele seja mau!...
Oh! Não!
Mas ele é impotente em tudo... anêmico... desfibrado... esquecido!...
______________________________
Ele é uma inteligência e uma vontade que voam vagamente... inconscientes,
sonambulizados ao pleno dia!
______________________________
Às vezes, em meia vigília, vê-se com nitidez, tão ele mesmo, que chega a se amedontrar!...
Envergonha-se então de seus vícios e cacoetes, de suas gafes... como se fossem contudo
as de um filho querido!
______________________________
Seu instinto paterno se manifesta pelo modo de tratar a todo mundo:
- “Meu filho!...”
Por que não se casa logo ele?
Casar-se, ele?
“Oh! eu me enterraria na vida quando deixasse de seguir, cheio de taciturna e redentora
angústia, a esbelteza boticelina da Inatingíveis na campina crepuscular, já atingida pela noite...
A noite é o mistério doloroso da saudade, que fica!
Caricatural Dedeco!
Sorriso irônico espremendo e impossível de sua felicidade!...
Depois... uma supuraçãozinha que Dedeco tem nos olhos, pela manhã, por certo que
diminuiria o amor e o respeito da esposa...
______________________________
Por amor à liberdade, odeia as companhias-carrapato, inclusive a dos melhores amigos.
______________________________
Dedeco é filho de comerciante: por isso “aproveita” tudo!
153
Aproveita o tempo, querendo tirar utilidade até do tempo perdido, com paradoxos
consoladores, que lhe vêem ao cérebro; aproveita do que lê, tudo, mesmo o mais ralo, com os
mesmos paradoxos!...
Aproveita o que dá, em insinuando aos amigos o valor da dádiva...
______________________________
Dedeco tem uma forma especial de piedade!
- “Uma esmolinha pelo amor de Deus!...
“Ora bolas! que é que eu tenho com você, ó pobre?”
Sente uma simpatia liricamente apiedada pelos “pobres”!...
Questão de número!
Ou antes, a todos ou a nenhum! Questão de tudo ou nada!
______________________________
Que implicância ele tem aos moleques que atiram lama nas fachadas!...
“Jornalistas”, ele vos odeia!...
______________________________
“Espiritualismo e materialismo dois pratos de balança; e acima um ou outro, mais espírito
ou mais progresso material!... Eis a história humana... e sempre a balança no fim das contas!
Utopia do progresso!
Está a nos parecer que agora se vai de novo a balança para o lado oposto àquele prato em
que estão Herr Haeckel, as vias férreas e o clorofórmio!...”
Dedeco, discípulo de Tranquilino, já confessa sua derrota?
Que belo espírito!
Ou talvez... que santa hipocrisia, a deste malicioso que tem a espiritualidade em conta de
moça bonita, que acaba por dizer uma sandice, no meio de seus arreganhos líricos...
______________________________
“O ignorante e o muito sábio parece que encontram...
Mas, não!
O ignorante é mau por inveja ao suposto gozo, que deve sentir o sábio! É bom o sábio
porque, sabendo que nada sabe, só pode esperar o gozo da prática do Bem!”
Curioso! Dedeco, quando recita suas máximas sob pedidos insistentes, arregala os olhos,
empalidece e gagueja!
Debaixo da moléstia, o maganão reconhece a solenidade de suas palavras sentenciosas!
______________________________
Admira os amigos que o admiram! Os que o admiram, por isso mesmo, são inteligências
primorosas!
______________________________
Veste-se mal, é retraído e pudico!
______________________________
Odeia os casadinhos que passeiam de braço, reclinados um para o outro, orgulhosos!
“É um egoísmo a dois, indecente, escandalosamente animal!”
Depois cá para nós Dedeco, ao vê-la assim, à esposa possuída e derreada, grita pelos
olhos o jovem filósofo latino: “A propriedade é um roubo!”
______________________________
154
Às vezes Dedeco se persuade tanto da espiritualidade das coisas que seu ser físico se nos
desaparece e só nos ficam os olhos! Ou antes, seu olhar, é que só nos fica!
Nisso ele se parece muito com o falecido Tranquilino...
E que olhar, tão pouco de olhos, o de ambos, nessas feitas!...
Não sei! – entre nós, e sem espírito de mal – mas não raro tenho umas suspeitas!...
O afeto de Tranquilino por Dedeco sempre me deu reparos – confesso-o!
E os olhares!... Tão iguais, tão de pai e de filho!...
______________________________
Ele não é bisbilhoteiro, nem maldizente!...
Parece que é ambas as coisas, bem percebo quando em quando.
Não! Ele é um “espírito crítico”.
______________________________
Ama deveras o Pai, especialmente porque um dia, vendo-o debruçado a trabalhar, notou
que ele já estava com a ponta do nariz amaiorada, de velha!
- “Coitado! Envelheceu a trabalhar... por mim!”
O nariz parecia o bico de um papagaio sonolento! “Coitado do meu velho!
______________________________
Ele, freqüentemente, imagina-se dos Maiores guerreiro, Santo, gênio artístico, estadista
visionário – dos Maiores ele se julga, ilusoriamente: ser realmente grande, profundamente!
E Dedeco vai às altas regiões, de um misterioso augusto e longínquo, em que freme o
saudoso tumulto das ações extra-humanas, em longo cortejo pelos séculos...
É como se fosse Dedeco um inspirado cântico de estranho triunfo, atravessando,
passageiramente hosanático, a terra miserável! Mas ah! Dedeco sacode bruscamente seu ser...
Sacode bruscamente seu ser ilusoriamente supremo envergonhado, irritado, e medroso
de se ter afastado tanto de si para se incorporar à personalidade dos outros, por grande que ela seja!
E volta a seu ser Dedeco e nele se enfarrusca, em atitude muito hostil!
______________________________
Dedeco exaspera-se de vê-los tão grandes, tão desumanamente grandes, a conduzir trás
eles o interesse escravo de todos nós!
Dedeco, que ama o espetáculo fantástico de agitação humana durante os séculos, ele, tão
tímido, tão recatado, tão desinteressante!
Oh! a tragédia dos gorados!
______________________________
Dedeco é surdo de um ouvido e fala com dificuldade...
Fala com dificuldade: é muito imaginoso e, a falar, toda sua atenção está presa às imagens.
As palavras vão saindo entrecortadas, custosas, insignificativas... sem consciência delas mesmas.
______________________________
E Deus?
“Será Deus um entediado da eternidade e do infinito, como eu o sou cá, da miséria, e que
para se distrair, inventou o mundo?
Inventou o mundo, assim, bem coerente na sua incoerência, de forma tal que mais
engenhosamente se pudesse divertir?”
Reparo sempre que Dedeco se esquiva de falar em Deus, um tanto constrangido, e é por
isso mesmo que achei curioso transcrever essa sua casual opinião... Opinião, ou antes, insinuação!...
Parece que ele teme ver Deus zangado com sua dúvida, no dia em que houverem de
ajustar contas...
______________________________
155
E nele tudo é temor e dúvida!
Para Dedeco tudo oferece o aspecto duma paisagem pálida, esboçada, fugitiva, apavorante
de espectral: de uma paisagem de loucura!
E quando não...
“Oh! por que hei de amar esta campina macabramente ampla, sem fim, com um
desabafado ideal de infinitas e estranhas angústias lá, lá ao fim, nesses horizontes rubros, como uma
danação, como um dia extremo de sanguinário fim epopéico, de dor suprema!?”
______________________________
Ele é o conflito entre o ser psíquico que herdou, cheio do abafado preconceito cristão e o
ideal pagão de gozar a vida em toda sua plenitude, ao pleno sol dos sentidos libertos!
Fá-lo o século gozar – pleno sol dos sentidos – porque o século é um turbilhão de seduções
macias, policromas, requintadas e vertiginosas!...
Surge-lhe, oh! sim! que angústia, todavia!
E ele é um espectro, tal como o foi Tranquilino!
Passará sem a consciência de si mesmo – suprema tortura!
Quando acorda, leva mais de uma hora a cair em si...
______________________________
A cair verdadeiramente em si levará talvez... quando acordar, na manhã suprema!
Mas enfim, onde está a “relação da vida de Dedeco com o pavoroso enigma do Destino?”
Bem ponderando, concedamo-lo... embora, o simbólico valor!
______________________________
Concedamo-lo, visto que ele pelo menos é um paladino da Verdade, fonte de toda atitude
superior!
Concedamo-lo, e animemo-lo, pois que Dedeco anda a desanimar...
Meteu-se na cabeça do infeliz grande-homem que ele é, foi e será apenas Dedeco...
implicantemente e delirantemente Dedeco!
______________________________
Espectralmente Dedeco!
E seus olhos se embaçam de uma rancorosa tristeza de insofrido viajante, que perdeu
contudo o comboio...
156
FRANCISCO
- “GOTEJA! Goteja!”
Pam! Pam! Pam!...
Enquanto a chuva cai, como um colosso de farelo através de monstruosa peneira, numa
toada impertinente, choramingas e lúgubres; enquanto uma fiada apertadinha de pingos fisga o
cimento lá, do outro lado da porta fechada; enquanto no ralo se estira o som oco e diluído da água a
cair, – goteja, goteja mais forte lá, em cima no teto, sob a fresta de alguma telha partida.
Pam! Pam! Pam!...
E eu penso:
- “Onde estará? Viverá ainda?”
Nas noites de chuva, como esta, é que eu tinha mais pena do mísero! Oferecia-lhe a
varanda, mas ele rejeitava com um “não” muito seco, alheio, importunado...
E lá se ficava, assentado ao portão, como se a noite fosse estrelada; como se a noite fosse
a hospedaria dos mendigos, das outras vezes, em que lamparinas pelo céu. Em que é a terra um
grande colchão duro, um tanto mais seco, contudo, do que ora!...
Despeitado, voltava eu, com o eco daquela arrogância de vagabundo, com o eco daquela
minha derrota ante a possibilidade de fazer o bem; voltava envolto no cobertor, pisando o cimento
encharcado do jardim, apanhando a chuva fria e fisgadora.
Pam! Pam! Pam!...
Goteja! E assim, mais um prego, mais outro prego e... outro fechem o vasto caixão das
coisas idas, das misérias idas; daquelas, que na fúria de uma pertinácia minuciosa e incansável, sob
a macabra fatalidade da luta, tal qual a toada desta chuva, foram rompendo o tempo, foram
afundando no infinito...
Oh! eu me lembro o dia em que, ao lado do guarda, ele desceu a ladeira, mais indiferente
do que trôpego, numa despersonalidade idiota...
E se foi para nunca mais voltar...”
***
Depois, remexendo-me apagadamente sob as cobertas, num deslumbramento sinfônico de
largas recordações surgidas em cortejo:
- “Ei-lo! Ei-lo em suas muletas, desengonçado, à beira da calçada! Ei-lo com sua cartolinha
tombada para a direita, sem cor, em estilhaços; incrível cartolinha, espectral, acentuando em
circunflexo o hiato da furiosa cabeleira, achatada, pedindo os horizontes, nos seus enfarruscados
anéis abertos, cor de ouro velho!
E debaixo dela, no rosto longo, a barba em ponta – ei-lo! – e a barba exige a direita, numa
atitude gritadora de libertação! E os olhos verdes são de um brilho triste, como dois destroços de
consciência, naufragando da oceânica miséria, apática, do resto...
Ei-lo, e o resto é um monturo de lixo que tem dois olhos verdes, de um brilho triste!...
Como é extensa a dolorosa confusão desses trapos, em agonia extrema!... Essa muleta, a
se despencar, é lama até lá, em cima! E ele nunca se lavou, por certo; os pés estão encapsulados
numa reforçada crosta de terra seca, rija...
A cara, essa é de um amorenado à madeira envernizada, lustroso, escorregadiço e alheios
olhos que diante dessa miséria se escancaram, enquanto o curioso faroleiro deles tem o estômago
revolto...
Ei-lo!...
Pedaço de lixo, em carne, que foi abraçado por Mãe, por noiva talvez; pedaço de lixo que
foi talvez um mundo de honrarias, mais ainda... um mundo de Sonhos, quem sabe!?
A pensar na diferença dele para mim, invade-me um calafrio; e na diferença dessa minha
cama para a cama dele, a pensar...
Vendo uma nebulosa de maior negror no negror das sombras, dela sinto o eco emotivo da
desigualdade entre os que ficam, como ele, no limiar dos tempos e no limiar da vida e os que, como
eu, alcançaram a meta dos Civilizados e dos Venturosos!
Vendo uma nebulosa de maior negror... em modorra, ao som da chuva...
Agora onde estará ele?
157
***
Eu me lembro dele, como um pedaço de minha vida que se foi: como um pedaço de vida
que não saboreei... que deixei ir... que mal percebi, adormecido, como sempre!
Gostava de vê-lo, sentado na calçada, quando vinha eu para a casa, à tardinha!
Não muito longe dele, vadiava sempre um cão felpudo, amarelo-fosco. Ao vê-los, a ambos,
na minha rua solitária, sentia-me bem: com mais amor, olhava um fundo de chácara ali, a dois passos
e lá, em baixo, o crepúsculo rubro amplexando a cidade...
Distraía-me, contudo, do bulício feroz da cidade, alguma coisa mais que a plácida exaltação
do crepúsculo, mais que o carinhoso silêncio do arvoredo: era a humildade triste – longínqua
humildade! – do cão e... dele!
Às vezes, cumprimentava-o com carinho: secamente outras e por fim não o saudava mais,
restribuindo com minha indiferença a invencível rudeza dele.
Minha meiga filosofia, tecida em torno dele, se ia cansando outrossim, secando, num
grande tédio de si mesma.
Onde estará?
Talvez em úmida sombra, sua existência em sombra esteja! Talvez em anarquia muda de
ossos! Talvez em boêmia inconsciente, animalesca, esteja; pelas intempéries da terra, afora...
Goteja! Goteja!
Pam! Pam! Pam!...
E a chuva cai... Em pranto de salgueiro cai a chuva; corre o pranto em pálido rosto,
tombado numa voluptuosa resignação sobre o regaço da Fatalidade.
Ei-lo!
Eu não pensava talvez em nada, aquele dia...
Sem dúvida, não pensava em nada, quando eu o vi levado pelo guarda, naquela sua
atitude trôpega, indiferente, idiota...
À janela, com o queixo entre as mãos, eu olhava, inconsciente também, para o manso azul,
para a rua sossegada, para o guarda, para ele...
Há quanto tempo, não falava com ele, não pensava nele, não o via!...
Ele não saíra entanto, um dia que fosse, dessa rua em que moro; sobre cujo calçamento
escuto o teimoso pingar da chuva...
____________________________
Pam! Pam! Pam!...
E lá, em cima, no teto do quarto, goteja! goteja!...
158
O PRESENTE
- SIM, ERA ISSO mesmo... Era do que a Mamãe gostava: as balas de coco! Sempre que
podia, a Mamãe estava com uma bala à boca...
- “Mamãe, que bala é que você está chupando?”
- “É de coco! Que quer você agora? Não pode me ver chupar uma bala que
também não queira, não é?
Não era por mal, no entanto, que ele perguntava à Mamãe: era, em verdade, para lhe
causar uma surpresa... certo dia!
Certo dia... o dia do aniversário dela para dizer logo o que ele pensava; e a surpresa
consistia, exatamente, em comprar daquelas balas de que tanto gostava a Mamãe. Comprar e dar a
ela numa caixinha muito bonitinha, que ele havia de arranjar com a Mamãe mesma, sem ela
desconfiar...
Como arranjou por fim!
- “Mamãe, me dá essa caixinha que foi dos seus sabonetes?”
- “Mas, menino, você não está vendo que a caixinha está com as agulhas e com a
linha?”
- “Não, Mamãe, essa é outra!
- “Pois, então, leva...”
A Mamãe respondera distraída, atarefada como estava, adiante do fogão, fazendo o jantar.
Na caixinha, ele dispôs as vinte e cinco balas em duas fileiras, ficando uma por cima,
cruzando com a direção das outras. Ele não de arranjar de outro modo, apesar de ter mexido com
as balas em todas as ordens e em todas as confusões possíveis dentro daquele espaço de papelão,
mais comprido do que largo; o qual ainda conservava uma boa intenção de perfume que havia
também de agradar à Mamãe!
E que eram vinte e cinco balas não havia vida! Contara-as, bem contadinhas, desde
que dera ao caixeiro do “seu” Fernandes as duas moedas de duzentos réis e a de tostão!
De tudo isto ele estava certo, de tudo isto se lembrava, nas menores particularidades,
naquele momento em que ele ia buscar enfim, para dar à Mamãe, a caixinha escondida debaixo do
colchão dele...
Escondida? Escondida, sim; porque o Bentoca, o irmão mais velho, não tinha pena de
comer os doces e as balas que “ele” comprava ou que a Mamãe dava a ele...
Oh! daí a instantes, ele estava às voltas com o Bentoca...
***
Uma luta desesperada!
Mamãe bateu em ambos, por castigo, mas especialmente nele; Bentoca havia jurado à
Mamãe que ele é quem havia provocado...
Ele não respondeu nem que sim nem que não...
Como poderia ele dizer à Mamãe a razão da briga se não queria que ela soubesse nada a
respeito do presente que ele... ia dar!
O Bentoca havia roubado as balas; “ele” quando viu a caixinha vazia, rasgou de raiva o
papel de seda em que ia embrulhá-la e sentiu os olhos cheios de água...
Os olhos cheios de água, como agora em ouvindo a Mamãe falar, nervosa, puxando os
cabelos de cima do rosto, muito vermelho:
- “É isto! Não estão contentes enquanto o me vêem enfezada... Esse ruço então, hoje,
saiu fora do sério!”
Esse ruço... ele! Hoje!
Devia contar à Mamãe? Ou não?
- Assim, como estava, era melhor; mas...
- “É verdade, até esse ruço hoje... Com esta cara de santinho!
Oh! ele acabaria chorando!
Que contrariedade! A Mamãe a fazer anos àquele dia; e àquele dia logo é que a Mamãe se
ia zangar tanto!...
Zangar por causa dele; por causa do presente dele, afinal!
Contaria, de uma vez, à Mamãe? Abraçá-la-ia, um beijo e, assim as pazes feitas...
Sim, porque ela havia de ficar contente com ele e havia de perdoá-lo!
- “Esse ruço!
159
Mas, não! Ele não tinha coragem, não tinha jeito; tremia todo e ficava frio de pensar
nisso!
E nessa indecisão, acocorado no banquinho da copa, ele sofria cada vez mais, em
escutando a Mamãe falar, sem descanso:
- “Sim, senhor, com a tal cara de santinho, lembrou-se também de me enfezar! Não sei
como lhe veio essa idéia hoje!... Esse ruço!...”
Oh! por que não haveria ele de falar logo, de uma vez?!
Mas... os beiços dele estavam duros, e a língua estava dura, como pedra!
Quando ele queria contar à Mamãe “tudo”, num grande arranco de coragem, a tentativa
ficava na boca e um calafrio corria-lhe pelo corpo!
- “Logo hoje! Esse ruço!”
Tremia todo! E só umas lágrimas vagarosas desciam pelas faces dele...
160
SONHO ACORDADO DE UMA NOITE DE ESTIO
- POR CERTO que foi o choque da lâmpada contra o leito!
Mas... voltemos ao caso do lápis: o lápis saltou da mão do Diretor e foi cair ao chão!
Eu tinha razão... o Diretor era o Diretor... e o lápis, caindo, deu ensejo a que se
interrompesse o assunto.
Um pinote proposital do lápis! E quanta futilidade poderosa, assim, na história dos Povos!
- Mas isto é velho, sobre ser pretensioso.
E como tudo que é velho, sempre novo, nasoculado amigo!
E ser pretensioso...
Por que não poderá isto ser muito simples?
Depois... depois... que tenebrosa loja é esta?
***
Um pobre turco de triste cabeça caída, neste exíguo espaço classificado em multicolores
pacotes de fazendas e bugigangas.
Que faz ele, assim, só?
Oh! a vida seria uma injustiça insofrível se o tédio não fosse a miséria dos ricos!
E eu me apiedo entanto deste desgraçado de carrancuda cara, com sulcos de dor
desfreguesada...
Deixem-me comprar nela uma... uma gravata, que seja!
De que cor? Azul, cor do Ideal! Cor do Ideal, mas... diante deste prosaísmo de estomago
vazio e de face dolorosa!
E hei de perguntar o preço... e havemos de falar em dinheiro...
De regatear eu hei, talvez!
Oh! que música é esta?
Adorável sempre esta Gueixa... um sonho cor-de-rosa, despetalado sobre a cabecita de
uma adolescente loura, sonhos de histórias que ouvimos quando crianças.
***
E que adorável este quinteto de cegos... Eu me vou ao Mercado.
Antes que tudo, o estômago... antes que tudo o agricultor: e se escreva assim a arrogante
história humana!
E salve a Sociologia, ciência severa, de pudica magreza britânica!
E adiante porém... e adiante está o mar largo, azul e luminoso, com o sorriso juvenil
das embarcações à vela... com o esforço de fumaça se espreguiçando das chaminés, nos
transatlânticos!
Você ânsia, intraduzível, dos monstros e das lanchinhas frenéticas... heráldico som,
fremente e raro!
E de Niterói o branco casario, microscopizando, estirado, lá doutro lado!
Ah! se se contivesse a estardalhaçante miséria da vida na amplitude azul e luminosa desta
Calma!
***
Sombras que desfilam... vós, Dona Mariana e tu, minha linda Dona Conceição...
***
Diz-me Dona Mariana, a coser junto de sua vela, com seus óculos de aro de ouro:
- “Conceição não tem juízo...”
Dona Conceição, em casa, procura explicar o caso à sua maneira...
Conceição, de fato, bem pensado... não tem juízo...
Mas é tão bela! Tão ineditamente bela!
A gente procura desculpar tanto essa abstrata cabecita de pintura pré-rafaelica!
- Bem! Bem! Isto é “caso”? Isto é “impressão”?
- Uma noite... sonho acordado de uma noite de estio.
Dona Conceição!
***
E aquela cuja aventura alígera foi mais veloz que o trem que corria!...
***
E o som estraçalhado das correntes do comboio parecia que estraçalhava meu pobre
sonho, em turbilhões!
***
Tudo corre tanto! Tudo se despedaça tanto, nesta vida!
E que indiferença infinita em tudo!
Pálidas amantes, como lida Augusta, ambulatriz cujo corpo era de todos! Cuja palidez
era só minha, nos macabros segredos de ser tão pálida!
Oh! um dia, os meus cabelos lacrimejando a sombra, sobre esta palidez imbecil e querida...
***
Pálidas amantes!
E se foi tudo!...
Oh! a culpa desta insônia está no choque da lâmpada contra o espaldar do leito!
Eu já ia dormindo...
Passam, sem cessar, os automóveis!
Que voragem! A voragem da vida, sem dúvida!
Está tudo perdido!
Contam-se angústias: não mais se chora...
Monstruosa Dona Estela que te queixaste da ingratidão de tua filha, nesta mesma sala
onde a carregaste ao colo... onde sorria ela, pequenina, à tua Carícia, só... só... à tua Carícia!
E nem uma lagrima, nessa gueixa, quase distraída!
Tudo se abisma... em que? para onde?
No meio da voragem, um grande olhar humano, e espantado, terrível, sem alvo...
A noite vai alta... duas horas talvez!
***
Duas e meia!... Interessante o tique-taque do relógio!
Que caveirenta paciência... a contar assim o tempo... a contar assim o que não se acabará
jamais!...
Jamais! Que abismo!...
Eu... quem sabe?... oh! a loucura é uma amante duêndica, como uma sombra de castelo
abandonado, à Lua!
Jamais!
Quantos livros, nestas minhas estantes!
Quantas filosofias, quantas ciências, quantas hipóteses e quantas verdades! Quantas
sensações, quantos desvarios, quantas dores e quantas visões, dentro da policromia destas capas
elegantes!
O Universo espremido nestas estantes!
E por estes livros, eu abraço a grande Ânsia humana, a Ânsia das coisas, a Ânsia
Universal.
Evolo-me na aspiração que vai da molécula ao maior Sol: e choro de emoção, neste vôo
monstruoso que se vai, como se fosse envolvido na maior Sinfonia de todos os Tempos!
(... uma aspiração, sim, e ninguém jamais o soube...)
***
História, deixa a fátua grandeza dos Heróis e diz-nos dos suspiros de cada anônimo que se
perdeu por aí, nesta voragem inconcebível...
História, apagadíssimo eco da voragem!...
162
- Mas, enfim, “caso”, “impressão”?
Não sei! Que importa!
***
Eu quisera amar cada homem, cada coisa, cada forma e cada sensação!
Sempre a insônia...
Tudo em vão! De que vale a vida?
Eu quisera ser um babilônico rei; um Rei de Legenda Rubra!
Seria um Rei moreno, de olhos profundos, fatais, cercado de cortesãs, envoltas em gaze
branca e cercado de perfumes esgalgos e modorrentos!
***
E tudo estaria feerizado numa luz arroxeada! E correria um vinho leve, abstrato, como um
sonho... e correria em taças cor da Lua!
A um gesto meu, entre bailarinas gaditanas, líbicos escravos apareceriam; a um gesto meu,
líbicos escravos entregar-me-iam punhais e a um gesto meu, golfadas de sangue despenhar-se-iam
do peito de cada cortesã.
E eu mandaria da minha colina feéricamente palaciana... eu mandaria os cadáveres nus lá,
para baixo, para o ignóbil pavor plebeu...
Eu, um Rei lúbrico e sanguinário! Eu, um Rei de Legenda Rubra!
***
Recordações deste dia o turco solitário, o lápis do Diretor, Dona Conceição... e tantas
outras recordações de dias, de tempos passados!...
Para onde ides vós, recordações?
Foi, por certo, o ruído desta lâmpada... Eu ia dormindo e, assustado, despertei da
modorra!
Depois... conciliar o sono – impossível!
Que horas serão agora?
Talvez se me fechem as pálpebras à friorenta carícia da madrugada que, embuçadinha,
chega!
163
UM PREGO! MAIS OUTRO PREGO!...
... E A QUEDA do pequeno volume produziu no solo um som oco, profundo e gemedor! A
cidade sem alma, exangue, jamais se reergueria!... Que seria dele?...
Teve impressão de que a terra, rancorosa, se ia abrir, para tragá-lo, num surto
cataclísmico...
Oh! era ela gentil, com seus olhos negros, vivos e ingênuos, com uma expressão indecisa
entre meiga e senhoril – encarando-o com tão estranho olhar, que o perturbava! sacudindo-lhe
bizarramente o suave ânimo amante.
Na santa amizade, uma indefinível saudade pela defunta!
- Lá fora, mais o balouçante som de um caminhão nos paralelepípedos do calçamento!
Como este som era então arrepiadoramente funerário nos dias que corriam...
Deus de piedade, quando acabaria a calamidade, nunca vista?
E um prego... mais outro prego! Coitadinha!
Parecia um sonho... ele não tinha consciência do que fazia!... E exatamente para o ter
consciência daquela catástrofe, ele ia batendo um e outro prego, rapidamente, desordenadamente,
incertamente, com o martelo bambo em suas frágeis mãos, amolentadas.
Coitadinha!
Por que saíra sá” Nicota? Havia pouco que aparecera junto dele, com os grossos beiços
relaxados, avisando, numa moleza que tornava quase imperceptível a palavra, que ia sair, “pra
comprá a galinha, se fosse possive...”
se fora, arrastando a corcunda e abandonado-o mais desamparado na solidão daquela
saleta escura, que mais cruciante lhe fazia a dor; e mais infantilmente amedrontado deixara-o como
nos pavorosos dias de sua febre!
Amedrontado diante “dela”! Que cruel absurdo!
Ela assim, de vestido azul, como pedira, naquela horrível noite, em que entretanto falava
tão calma, tão anciãmente calma!...
- “Quero ir de azul... com aquele vestido de uma porção de rendas, ouviu?...”
E as horas da noite corriam num silêncio pesaroso; uma e depois outras, severas... assim
fossem vestidas de preto...
- Agora?!...
- Oh! com ela seriam capazes de fazer o mesmo que com os outros, com tantos
outros? Seriam capazes de arremessá-la, brutalmente, com um golpe de no seu frágil e
pequeno invólucro sem cetim, para a tétrica profundeza?
Para a tétrica profundeza comum a tantos eles a arremessariam, os revoltados e
apavorados penitenciários? – os improvisados enterradores daqueles dias calamitosos?
Que tristeza amolentada a sua nestas marteladas fantásticas!
Chovera; e os pingos que ali caíam, na área, eram-lhe cada angústia mais, que se lhe
enterrava, soturnamente, na alma.
E outro prego!...
O ruído, então raro, de um bonde à rua, ali perto, pareceu dar-lhe a impressão inesperada
dos dias comuns: um assomo de conforto tomou-lhe o ânimo! Foi passageiro, porque brotou-lhe como
uma surpresa a visão de uma das cenas desagradáveis daquela tarde”: entrara a mulher no
bonde apinhado, com uma cesta à mão...
- “Que leva aí?”, perguntou o condutor.
- “É uma galinha!” E a quarentona, muito gorda, remexeu-se nervosa no banco...
- “Bem, então não pode ir!
E retirou-se o condutor no balaústre para dar saída à gorducha e à carga! Um “não pode!”
formidável irrompeu de todos os passageiros!
Até os balaústres, os anúncios do bonde, as correias do tímpano – tudo parecia tomar parte
nessa manifestação de solidariedade à embaraçada miséria, na calamitosa tarde! E diante eis que
surge... um caixãozinho!
Por que o impressionou tão mal, como um apelo que lhe constrangisse a garganta?
Ele lá ia, aflito, ofegante, à procura do médico...
- E outro prego! E mais um...
Já se fatigara demasiado, duas ou três vezes, e por isso lá se fora assentar à beira do leito,
onde as cobertas ainda estavam revoltas e muito amarrotadas dos quinze dias que o haviam
agasalhado febril.
164
Como parecia existir persistente, no espaço, o espectro pavoroso daquela desolação!...
Havia um susto em todas as coisas; e no espaço sombrio daquela saleta, sem dúvida que palpitava o
temor de uma próxima catástrofe, ou a fadiga apavorada de um longo sofrer, receoso de se queixar.
Os sons do martelo haveriam de chamar, sem dúvida, a desgraça, tão altos eram... Era
preciso abafá-los; mas como?
Fora por uma tardinha, amigavelmente desnublada bem se lembrava do começo! por
uma tardinha de beleza, aparentemente sem perfídia, tão límpida era! Lia, a gracejar, um tanto
entibiado contudo, as primeiras notícias nos jornais, assentado à banqueta do café “Belas-Artes”, com
o Florêncio e o Artur, colegas da repartição.
- “Estão bem portanto os que gostam de espanholas, hein, Florêncio!”
- É, mas estas dão abraço de tamanduá!”
As gargalhadas do rapaz loiro, de bigodes à Kaiser, provocaram escândalo no espaço
tumultuoso e irritantemente cheiroso do café, onde caras assustadiças, tenebrosas, voltaram-se para
a origem blasfema daquele riso franco.
Ele também rira ele, que sentia as pernas bambas e quentes, um abafamento interior,
um mal-estar geral, desconcertante, já começando a desencorajá-lo. Contudo o que mais o afligia era
o pequeno vulto “dela”, a lhe aparecer à mente, incerto, como que a tombar, de cabeça muito lassa
sobre o pescoço! tombar, amparado pelas mãos dele...
Experimentou mesmo uma sensação estranha ao abraçá-la, aquela tarde, mal transpôs o
largo portal daquela sua casa antiga; este mesmo portal que ali estava, com uma alma danada e
ingrata na sua indiferença de portal, esperando abrir-se para o último abraço... no instante supremo!
- Arrepios de fraqueza ele os tinha, freqüentes... Magoavam-no menos porém que os
arrepios, macabramente despersonalizadores a o epileptizarem pelo corpo, às vezes todas que ele se
lembrava da horrenda catástrofe!
Coitadinha!
Aquela tarde!... Aquela tarde, mudada a roupa, ele a carregara no colo e apertando ao peito
o amável fardo, fora pilheriar à janela do fundo com a modistazinha e com outros vizinhos que, por
acaso, puseram a cabeça amiga pela pan-abertura daquelas janelas rasgadas no desvario da procura
de ar, pelo espaço que ia até o morro...
Não apareceram vários, naturalmente adoentados. A modista todavia franqueou-lhe ao
olhar o seu pitoresco rostinho, de uma beleza petulante, rueira, de narizito arrebitado e escandalizou
na quietude daqueles fundos de quintais:
- Olá, seu viúvo! Como se vai com a espanhola? Parece que está atacado... tem a cara
que parece a de um caju seco!
Ria, como uma louquinha!
- “E a Estelita? Que olhos grandes e espantados tem ela! Boa noite, senhor viúvo!”,
arrematou a parolagem, como sempre, a graciosa costureirita fiel àquele cumprimento!...
E ela também parecia olhá-lo, espantadinha, àquela tarde... e um supersticioso terror ia
constringindo o ânimo dele, com aquele espanto infantil, sincero, focalizado sobre seu barbento rosto!
Sim, bem se lembrava do começo!
A cidade ainda era risonha e incrédula, na despreocupada molecagem de sua agitação
fátua, crente unicamente no luminoso vai-vém de todos os dias! Os bondes e os automóveis e as
fachadas e os homens e todas as coisas pareciam sorrir, desdenhosos a correr, a correr... superiores
ao mal, vacinados contra o mal, pelo seu orgulho de Urbe intangível e privilegiada!
Oh! a mesma cidade que ele veria semanas depois, num mortal aspecto de devastação,
maltrapilha na sujeira de secas folhas, de panos, de restos orgânicos, relaxadamente descosidos no
silêncio de suas ruas, mal percorridas por um ou outro veículo, não raro com uma serventia fúnebre, a
apavorar os poucos transeuntes macilentos e preocupados, que passavam como sombras!...
E se o vento levantava uma nuvem de pó, levavam os sombrios andantes rapidamente,
estertorosamente, o lenço ao nariz, como que procurando se resguardar, desvairadamente, do
furacão da peste!...
Eles, sombras no meio da Sombra daquele pesadelo sombras de medo, numa tétrica
insegurança, numa tétrica desconfiança de cada passo que davam...
E aqui e ali, uma ou outra cara exangue, a levantar estrepitosamente o batente de ferro de
tal casa comercial, muito assustado, muito indeciso, febrilmente desorientado!... Logo, dois, três,
muitos indivíduos, como que surgidos por encanto, a transporem apressadamente o portal...
- Pam! Pam! Pam!... vai, martelo! vai e vem, como uma lembrança tenaz, funerariamente
tenaz, na catadupa de meus pensamentos...
Pam! Pam!
- Oh! a sua cidade de heróis, que tanto os houve, mesmo assim!...
165
Hosanas! hosanas ao carioca! sempre altruísta, sempre mexeriqueiro e prestativo,
maldizente e consolador!
Salve oh! generoso falho-de-caráter!
Pela idéia passavam-lhe então os inúmeros casos de caridade relatados nos jornais
passava-lhes um cortejo tumultuoso de fisionomias suaves, encimando vestes brancas, sob o gesto
apressado, sofregamente socorredor da branca Urbe, e de olhos inquietos, sob o gorro, distintivo com
a rubra-cruz.
- Ide! Ide, sem demora, em meu nome, à miséria dolorosa!
E para que ir longe, aos exemplos de benemerência no tenebroso turbilhão de desgraças,
se ali estava o Zé Lopes, o vizinho enfermeiro de quase toda a rua e que passara uma longa noite
junto dela, pálido, encovado, a cair de sono.
Junto dela... e o anjinho, no entanto, abria os olhos, espavoridos, como dois abismos
brancos, a pedir fremente:
- “Manda! manda ele embora! Eu tenho medo dele!
Coitadinha! Ingrata, na sua febre, na sua infância!...
E o Boaventura! e outros casos!...
Dera o Boaventura mais de metade, do pouco que tinha, ao Posto da Glória e... sem
aparato! tão seraficamente incógnito!...
- Bate, martelo fatal! Um prego! mais outro prego!...
Uma angústia! mais outra angústia!
E levantava-se de novo, fraco, num doloroso deslocamento, relaxado, de todo o seu ser...
Tão fraco, que nem podia andar!
Causava-lhe isso um pavor infantil, o poder andar! pavor de lhe arrancar lágrimas
covardes, de desespero.
- Ficaria assim? sempre?
Coitadinha!
Parecia um sonho no sonho, um pesadelo no pesadelo! O pesadelo de tê-la de enterrar
“deste modo” era talvez maior que o pesadelo de havê-la perdido!
...De enterrá-la, deste modo!
Mais outro passo... oh! ele não poderia ocultar o contento, mesmo naquela tétrica ocasião –
o contento de sentir que andava; que não estava paralítico, como por vezes julgava, num angustioso
e sufocante surto de pavor!
...De enterrá-la, deste modo!
Apelar para a Empresa Funerária, de que lhe valeria entretanto? Para alertada mente,
assustada e prevenida, passava-lhe a cena sucedida com o Artur, da Repartição: um velhote a
mostrar, ao rapaz muito aflito, a pilha desconjuntada de caixões amarelos, de madeira sem veludo,
sem cetim, sem revestimento, sem alma, tal um acanalhamento fosse à própria morte... e a interrogar,
irritantemente desconsolado, o velhote:
- “Mas que quer o senhor? Todos estes caixões tem dono! Quase todos foram feitos pelo
pessoal da Marinha e do Lloyd... e mais caixões houvesse, e mais gente a trabalhar!...”
Ainda ofegante, o homenzinho, no meio da multidão enlutada, em ansiosa expectativa:
- “Nem que o senhor encomendasse um caixão para depois de amanhã! Isto está assim!...”
Pobre Artur... eternamente separado do seu irmão mais querido! E que pedaço de homem,
o Zinho era!
Paz à sua alma!
- Mas... e um carrinho de mão? Não seria possível? Já tantos tinham feito uso dele...
Pam! Pam! Pam! Põe-te de novo a trabalhar!... Ou queres, de novo, a moleza covarde e
consternada deste leito?
Pam! Pam!... Repara como há um zumbido impertinente, choramingoso, plangente, no
espaço! Assim fosse um pranto contínuo, fatigado, monotonamente inconsolável, junto à tumba, na
treva absoluta de uma noite-de-morte!
Repara no choramingar plangente deste sombrio espaço, úmido! Desperta a ti, porém,
mais um ruído... e outro ruído... de caminhão e de alígero automóvel, na intérmina agonia do “lá fora”!
– da vasta cidade sepultada...
E mais um automóvel!... que tardio e impossível consolo irá este buscar, na fúria bravia e
cega, a romper aí pela amodorrada dor, febril e delirante, dos milhares de agônicos emparedados?...
- Fon! Fon! Uma cara de megera aparecia-lhe, desdentadamente, a sorrir:
- “Olá! qu’é da clássica petulância dos choferes, hein?
Fon! Fon! Macilentamente mansos agora, hein, a remexerem, menos cafajestes de
atrevimento, no relógio – os pândegos reis de Sebastianópolis!
166
Hah! Hah!
Fon! Fon!
Contudo uma alegria íntima lhe vinha, um clarão de vida, vigoroso a exaltar, sentindo de
novo os automóveis, com o seu característico buzinar, tão conhecido dos dias felizes, como se numa
surpresa estrondosamente redentora, a cidade fosse voltar aos seus dias comuns!
Oh! quem lhe dera!... Verdade é...
- É verdade... para que, agora? sem ela?
Ainda há tão poucos dias, “ela”, por ali, pela estreita salinha...
E mais caminhões!... Oh! que pareciam por a casa abaixo, no estertor desesperado de sua
passagem, pela rua mal calçada...
Os caminhões!... sim, ele vira, da casa do Florêncio, quando fora pedir as tábuas, as
fatídicas tábuas!... ele vira, às sacadas, o povo olhar, de olhos escancarados, o branco e disforme
amontoado, que os caminhões conduziam, barulhentamente, estrepitosamente, aos trancos...
De olhos escancarados, o povo cada homem olhava, parvamente apavorado todos
como cães vivos olham para cães mortos, orelha em pé e rugas no focinho contraído...
Esta idéia bizarra ele tivera entre tantas outras naquele seu cérebro, havia semanas,
mórbido, em constante, variadíssimo delírio.
Um fantasma, um outro “eu” entrava nele!
E dos caminhões, pernas e braços para fora, em desigual vestidura, bambamente hirtas... e
a gente tendo um desejo mau de rasgar lençóis, este... aquele... para ver em baixo tal e tal macerada
fisionomia barbuda, no contraste macabro entre a negra barba e a pele pálida: pálida uma
recordação longínqua!... há tanto já parecendo ter-se ido o morto de si mesmo!
Seria possível mesmo? – Pam! Pam!...
Um prego! E mais outro prego!...
Seria possível mesmo? Ainda havia tão poucos dias ela estivera a correr por ali:
aumentando-lhe inconscientemente a insuportável dor de cabeça dele a correr, sem que a “sá”
Nicota, na sua distração apatetada, horrorizada, tivesse a idéia de fazê-la parar...
E ele a via então, como que amaiorada, disforme, inchada e feia ele a via assim! no seu
delírio tão diferente de como era “ela”.
Tal ele a via, febril, mesmo convalescente da primeira fase de sua moléstia.
- Três e meia! A bater as longas horas, o próprio velho relógio era enfermo, ou
desconsolado, ou invariavelmente saudoso: tendo uma fria e sepulcral saudade de velho vovô!...
Por certo que deu o relógio pela ausência “dela”... Se ela sempre apontava para ele
aqueles longos e róseos dedinhos, que agora ali estavam exangues e rijos, e curvos!...
Curvos, no seu último esforço de se segurarem à vida... Não o seria?
Três e meia! E “sá” Nicota, nada de vir!
Também coitada! Via-a bem!...
Via-a bem, coitada, acorcundando-se mais, cada vez, entre a multidão fremente,
desesperada, que alçava uníssona o rancor de sua palidez faminta e convalescente, ante o
despitoresco e vasto barracão da Praia Formosa.
- “Quem dá mais por esta?”
O soldado levara a ave estardalhaçante acima, como um troféu frenético, irrequieto,
cacarejante.
E as palidezes emagriçadas a gritarem, a se empurrarem, fossem elas um chocalhante
bando de esqueletos, ávidos, loucos pela estertorante ave pensa das mãos policiais... e “sá” Nicota a
se desapertar na turba incontível, bravia, trazendo um frangote!...
Ora, bem! um frangote!
Um frangote, sem dúvida, que ela o traria... e a custar mais que a melhor galinha do
mundo!
- “Ah! Liopordo... é o diabo do Comissariado!... Óia, seu Liopordo, os automóveis dos
deputados, esses vão cheio de galinha gorda, os porcaria!...”
Beiçolando mais sua indignação:
- “Lá tavam uma porção!... É, seu Liopordo...”
Oh! que ela chegaria assim, a falar, toda corcundeante e trêmula – ele a via, já!
Mas... pam! pam! pam!
Pobre anjinho! Como são ainda tão expressivos estes olhos, ainda meio cerrados!
... E fora possível!
- Olhos de meus olhos, razão de minha vida, que serei eu agora no mundo?
Lágrimas... e mais... e mais lágrimas, tantas que lhe corriam dos olhos sobre as tábuas!
Sobre as tábuas também batia ocamente o martelo, bambo entre seus dedos, sem firmeza!
167
- “A Notícia! Mais escândalos na Santa Casa!”
Um sacudir de nervos lhe desequilibrou todo o corpo, à voz do jornaleiro que passava, a
gritar o jornal, com uma toada diferente dos outros dias; doente, sombria, intimidada, no silêncio
pesaroso da rua.
Mais escândalos na Santa Casa!
- Num salão enorme, há um desespero sem fim incomparável... sem luz franca, leal...
tetrificado num estuante arfar de angústias, com o relevo de um ou outro ai!... e é tudo uma ameaça
escura, premente...
Ele está, ao chão! – ele, tão tiritante!
Ao chão, sobre uma esteira, entre mil outros frangalhos humanos, num amontoamento
horrível!... E que sentir à morte neste salão intérmino, onde a Morte passeia, pondo a gélida mão, ao
acaso, sobre este, sobre aquele... que desorientação no espírito ao querer apreender o vácuo desse
acaso!...
Vem-lhe uma catadura má, como uma ameaça, junto à esteira:
- “Olhe! tome.... é o chá!
Vai alta noite...e um véu passa aos olhos! E tudo se finda!...
Que horrível pesadelo! Oh! se ele “lá”, de fato, houvesse estado!!
Angústia! Onde a alma boa da Cidade?
Mais um bonde!... Como parece fatigado, tresnoitado!...
Oh! se a Cidade de fato, despertasse à Ventura, ao som oco e balouçante deste bonde!...
______________________________
- “Vo... o...on!” E lá se vai ele, carregado veículo de desventuras, de desesperanças, no seu
som de voragem...
Pam! Pam! Pam!
Pobre anjinho!
Um prego! E outro mais! Como estava saindo disforme “aquilo”!
Parou um instante: olhou... e sempre as lágrimas!...
E sempre as lágrimas!
Oh! quantas vezes às tábuas, que ele serrava para o galinheiro, pegava ela para brincar,
batendo uma contra a outra...
Pobre anjinho!
Pam! Pam! Pam! – Pam! Pam!...
- Lá, no campo do Maracanã, vendo os trens céleres a demandarem a saudade das roças,
e vendo os corpos ágeis de rapazes em camiseta listrada a se desarticularem no embate da bola, ele
e a boa noivinha e a futura cunhada que boa era a Lili! iam passo a passo, indo e voltando, na
desorientação de mil coisas, que lhe atiçavam a curiosidade até se assentarem numa pedra, ou se
encostarem na cerca. A princípio, ele vexava de sair com a noiva e com a futura cunhada: sentia-
se zonzo, e parecia-lhe que todo mundo olhava acanalhadoramente para ele.
Depois, não raro, aborrecia-se, vinha-lhe um tédio de enlouquecer, fazendo-o bruto, áspero,
a espancar até o “Peri”, o pobre cãozinho que freqüentemente os acompanhava, em desvairadas
correrias... Vinha-lhe este tédio; Amelita se aborrecia; e era sempre a Lili, a adorável magricela
loirinha, que principiava a reconciliação, mal os dois contraíam feições insatisfeitas...
E o diabrete não tardava a uni-los num abraço, a fazê-los risonhos, ensaiando eles então
um beijo muito pundonoroso, perto daquela testemunha, cintilantemente maliciosa!...
Entanto em que iria dar aquele amor, aqueles momentos tão felizes, que lhe passavam,
como um fulgor suave – em recordação – pela mente, nos seus dias de febre?
Em que iria dar?
- Pam! Pam! Pam!...
Um prego! mais outro prego!
Em sua primeira convalescença, ele a apertava tanto ao peito coitadinha! com os olhos
ainda rasos de lágrimas, da lembrança da defunta e de suas cunhadas...
______________________________
E o tempo passava, como um caudal que levasse cada vez mais para longe essas
recordações, essas saudades... E o tempo passava, numa zoada longa, angustiosa e escura!
Tão angustiosa, como aquele seu tenebroso e úmido quarto...
Tão longe, por este mundo, a boa Lili!
168
E a outra, em que mundos pararia?
E tão só!...
Oh! existiria um Céu, um Infinito de delicias e de eternidade, onde estivesse sua querida
Amélia? Um abismo indefinivelmente pavoroso se lhe abria, enlouquecedor, a esta pergunta feita a
si mesmo...
Um abismo! De que vale o homem?
Isto mesmo ele perguntava ao espaço, a Alguém, a quem quer fosse... quando vira o
médico, numa atitude calvamente sentenciosa, auscultar o esmagriçado corpo do anjinho!
De que vale o homem?
Bons tempos antigos!... Oh! se lhe aparecesse, pelo menos, a Lili, toda solícita, junto à sua
angústia, boazinha, como sempre, naquele seu gesto costumeiro de espalmar as mãos diante dos
olhos dele:
- Oô!... quem é?
E ela lhe ficaria no tenebroso quarto, graciosamente serviçal, ao pé. Ela, que gostava tanto
do anjinho... se o visse ali, assim... tão palidamente outro!
Quanta coisa! quanta coisa no seu passado! Os seus bons tempos, no Catete, na pitoresca
pensão, de sujeiras e de imoralidades familiaridades, cujas horas se contavam pelas graves
badaladas do próximo Clube! a pensão, um vetusto casarão amigavelmente vetusto, no conforto de
sua banalíssima arquitetura colonial!
Aquela pensão! Nela ele dava os primeiros passos em sua vida de homem, com alegrias
satânicas e sofrimentos requintadamente perversos, que lhe surgiam como horizontes roxos,
gangrenados!...
Sofrimentos!... e este contudo!...
Coitadinha!
Se o Joaquim ali viesse! Espocou-lhe de súbito a lembrança amiga daquele pobre operário,
tão prestativo fora-lhes naqueles dias calamitosos!...
- “Oh sôr Leopoldo, a terra é linda, que é!... Mas... mas o diabo é a miséria! A miséria, é o
que há lá, sôr Leopoldo!
Bom Joaquim!
Ele jamais se arrependeria de ter sempre tratado amigavelmente aquele humilde homem,
marido de sua lavadeira, que deixaria os seus para cuidar dele durante dias e dias, até o momento
em que, muito febril, se foi a cair também – no pobre leito lá em seu casebre!
Bom Joaquim! E como gostava dela! Quantas vezes ele a ela adormecera ali, ao colo...
depois que as mãos rudes haviam acariciado a cabecinha loira, e que os severos lábios se haviam
aberto, para entretê-la com velhas histórias frescas de ingenuidade!
Coitadinha!
... E mais um prego! O martelo lhe dançava cada vez mais nas mãos frágeis, desvigoradas
de fraqueza e de emoção!...
Tantos cuidados! Tantas ânsias! Tantos remédios, para isto!... Para isto!... Tantos
remédios!...
- “Dou-lhe vinte mil réis pela receita!”
- “Mas há aqui mais de quinhentas à sua frente!”, explicava o ofegante
farmacêutico, fechando de novo os batentes a fim de evitar a invasão da onda popular.
- “Mas faça-o, por Deus! pelo amor que tem à sua filhinha!
Chorava, súplice, humilhado a falar...
E fora do Catumbi ao Catete, numa dolorosa via-sacra, a procurar todas as farmácias...
Como era triste a cidade!...
Esperava momentos longos, angustiosíssimos, por um bonde!... E ao tomar o primeiro
veículo que lhe aparecera, tal uma aurora de salvação, quase caiu, espremido entre tanta gente,
apinhada nos balaústres!
De lenço ao nariz, ou a aspirar frasquitos, caras apavoradas, pálidas, olhavam
acabrunhadamente para o chão...
E na farmácia ele, esperando insofridamente, lembrava-se de que cada minuto passante
era uma probabilidade de menos, de vida, que “ela” tinha.
Angústia! Quanta angústia!
- “Vá! passo adiante!
Trôpego, deixando o martelo, se foi ver o que era... Um polícia empurrando um
crioulinho, que ia a resmungar...
Seria um coveiro improvisado?
169
Pobre rapaz, sem a interventosa presteza do patrão, naturalmente iria, sob o sol
causticante, empurrar com a pá, para as rasas covas, os cadáveres já a se desfazerem!
Pobre rapaz! Desamparado à rua pelo zelo dos que te deram emprego; os quais,
naturalmente, ignoram este teu surpreendente destino!
Mas uma outra lembrança triste lhe veio apagando-lhe o interesse pelos estranhos: ela
tinha tanto medo dos policiais!
- “Olha um soldado!” e a “sá” Nicota atrás da sua carreira incontida, nervosa:
- “Qu’é isto, menina! Você não tá vendo que o sordado não faz nada!
Coitadinha!
- Pam! Pam! Pam!... – Como eram fracos seus dedos...
E ei-lo, de novo!...
Um prego! mais outro prego!...
- Tão longe de todos! Tão longe “dela”!
Dela, tão longe então!...
Uma vontade covarde de chorar lhe vinha...
Três horas!
E a “sá” Nicota? Nada, nada de aparecer!
Também perto desta velha negra, ele sofria um terror tão angustioso como se sentisse nela
sua infância prolongada, seu medo e sua parvoíce de outrora ou como se sentisse nela feitiços de
bruxa africana!
Capengando, apalermada, quando ela aparecia, um quê de pavor misterioso e abafadiço
lhe invadia o ser especialmente agora, nesses dias calamitosos... E contudo era tão indispensável à
pequena! ela lhe fora uma segunda mãe!
Estava tudo acabado! Olhava, de novo, para a cabecinha loira, tal um doirado pesadelo...
Tão bela! como fora possível desaparecer! Que contra-senso! que incoerência esta: fazê-la
Deus, tão bela! para a vida, e tirá-la!
E tirá-la!...
- “A Rua! A Notícia!
Um jornaleiro a mais, passou lá fora, gritando os vespertinos e um calafrio entibiou-o,
sacudindo-o, na revolta de seus órgãos...
estava a prever; o número de mortos aumentara! 750-800-1000 estariam em letras
garrafais...
Figurava-se, como doutras vezes, olhos escancarados sobre o jornal, irado contra a
verdade, trêmulo e suspiroso, querendo reduzir, subjetivamente, o número de mortos do dia!
- Naturalmente contaram com os de ontem! Serviço mal feito... E eu... e eu ainda posso ir!
Se tantos foram ontem!
Essa era a sua preocupação máxima... mas, ei-la que ali estava!
Um remorso lhe vinha daquele seu egoísmo; e cobria-a de beijos...
Meu Deus! meu Deus, que angústia!
Lembrava-se dos mortos... O Paulo Teles; o Marçal Gomes, da Contadoria; o Renato,
marido da Jandira... que extravagante moléstia esta! que escolhia, como uma caveirenta cortesã
lasciva, os homens mais novos e fortes...
Deles se recordava, como se ali estivessem, com tal ou tal roupa de uso comum, com seus
gestos característicos; com sua última palestra...
E ele, ali estava ainda... Mas, de que valia, se o seu anjinho?...
Um prego! mais outro prego!...
Que angústia! Como poderia vir, de súbito, tanto sofrimento sobre o mundo?!
________________________________
Que estranha maldição! Compraz-se assim um Deus de, por uma bizarria de momento,
espalhar pela calma relativa do mundo ou em conseguinte a uma calamidade, uma outra maior
calamidade? E Deus, assim, a espalhar a calamidade, num gesto largo de seus braços, com um
sorriso serenamente mau aos lábios, cercados de grossas barbas!...
Um abalo lhe vinha, de pavor, de figurar assim infantilmente Deus – Deus o autor da Morte,
cuja presença implacavelmente fria ele sentira nos seus dias de leito... e a mesma Morte que lhe
arrebatara “ela”!...
Lágrimas!... lágrimas! lhe caíam como grossos pingos na tempestade dalma...
Maldição! Maldição! Seria a guerra?
170
Malditos os que se trucidavam, num pandemoníaco delírio, vasto como um continente, e
que mandam para as pacíficas terras distantes os germes de sua podridão vingativa heróica que
seja!
_____________________________
E as caveiras se rirão, sem dúvida, em montões macabros, lá, nas planícies de Flandres
se rirão daqueles que, de luto, vagueiam cabisbaixos e pálidos pelas ruas dessa Sebastianópolis
desorgulhosa, ramos e coroas à mão, sobressaindo as flores com suas vivas cores, da profunda
negridão fosca do luto!... E rir-se-ão do que de heróico trinta mil mortos, de tão estúpida morte,
ressurgidos, fariam em exército de gloriosa presença, aos campos de batalha, ovacionando em cada
morte um louvor ao Brasil!
Rir-se-ão da Sebastianópolis galhofeira! Sebastianópolis, cujas avenidas, numa brusqueza
de danação, viram-se vazias, num hiato de horror, como se toda população houvesse corrido aos
lares, num impulso único e elétrico, para varrer deles a invasão sutil e tremenda!
Coitadinha! Oh! quando ele se lembrava, em meio de que outras idéias fossem da
última expressão fisionômica da criaturinha pondo a cabecita fora do leito; do último olhar a pedir
misericórdia, a pedir vida naquela angústia da morte aproximadamente, passo a passo, a pedir
misericórdia no seu pavor infantil a ele, ao espaço, ao indefinível oh! que sofrimento lhe apertava o
ânimo!
Entretanto ambos, no princípio, chegaram a se rir com a “sá” Nicota, do medo dos outros e
ele, naquela mesma saleta úmida, a suspendera aos braços, perguntando num quixotismo muito
frívolo: – queres ver a espanhola! É muito bonita...
“Aquilo” era benigno: e, de vez em quando, para variar, era necessário que a cidade
sofresse um contratempozinho!...
Ai da vida, se fosse todo dia o mesmo feijão-e-carne-seca! Coisa benigna e de
desentorpecer todavia... e assim é que gracejava com os vizinhos, até que, na terceira tarde, gritos
lancinantes, numa desenvoltura e num descompasso loucos, foram ouvidos, forçando-o a abrir a
janela dos fundos!
estava a modista, muito pálida, com a cabeleira a fazer; e ele também aterrorizado,
pele fria e seca, trêmulo, alheio de si, apressou-se de perguntar o que houvera...
- Fora seu” Ignácio, o dono da sapataria, pai de oito filhos... e a morte fora súbita; uma
verdadeira congestão!
“Ela” estava muito agarradinha às pernas dele e tremia tanto que ele, numa visão
incrivelmente terrível, já a via morta ali a seus pés!...
Oh! mas não seria naquela ocasião...
Pérfida Natureza! Às vezes, quando menos se espera...
Que sufocação! que sofrimento nestas suas recordações!...
E ele se viria cair, febril, dali a poucos dias, desorientado, sem conseguir que a “sá” Nicota
lhe trouxesse um médico, não sabendo se o sangue que vomitava era do pulmão ou do estômago, ou
da garganta... esse sangue para o qual ele arregalava os olhos espavorido!... E lhe vinha a velha
criada dar notícias da rua; que caíra seu Fulano, seu Sicrano...: que não pudera comprar quase
nada... os armazém tão tudo fechado, oh! que horrô, seu Liopordo!”... E mais ainda: que só vira os
caminhões carregando cadáveres...
- “...aqueles defuntos todos, cobertos de lençó e tudo junto, como se fosse saco de feijão!
Como se fossem sacos de feijão! Oh! os que jamais se viram! os que se viram, indiferentes,
ao acaso, uma ocasião, talvez!... Oh! os que se odiaram! e que assim foram juntos, na última viagem!
E os que se amaram, no rosto do outro, numa promiscuidade extremamente acanalhadora, tal a
Fatalidade escarrasse sobre todas as misérias humanas, na mais grave circunstância, pela qual
pudessem elas passar!...
Inda isto sentia, no meio do seu delírio: um delírio covarde, que o fazia chamar a pequena a
todo instante; a fazê-la assentar junto dele, apesar dos seus queixosos protestos, porque de fato lá
estava ela sempre a brincar... Vinha, um tanto resmunguenta, de cabeça baixa...
Coitadinha!
E um prego! e mais outro prego!
Quem o diria! Como parece resignada, na imobilidade azul em que está, de olhos meio
cerrados!
Quem o diria?
Fazê-la amada assim! Deus... e Deus depois tirá-la! Tirá-la dele, que a amava tanto a ter a
superstição até de que “ela” jamais morreria!
Porque seria impossível de fato morrer, quem tanto fazia vivida uma alheia vida!...
- “Sim... ela vale tanto! Não pode morrer!”
Pam! Pam! Pam!
Um ar triste e frio vinha lá, de fora, da rua; da cidade. Da cidade... e a cidade seria
desvitalizadamente triste. Era da cidade esta atmosfera lúgubre, em zoada, tal fossem as pulsações
do peito estuante dela – a febril Sebastianópolis.
Febril Sebastianópolis! Oh! orientalesca princesa, tu te derreaste no divã de tua privilegiada
natureza, envenenada por um vento mau, que te surpreendeu em pleno festim!... um vento do
deserto nos teus paços mouriscos!...
Pam! Pam! somente duas tábuas!...
Havia sido o difícil arranjar essas que os pregos haviam conjuntado! Oh! se não fora o
Florêncio, no seu gesto inesquecível de generosidade, ceder-lhe aqueles dois caixões, nos quais,
irritantemente, teimavam ficar, em irreverência humilhante, perversa, as letras garrafais: Adriano
Ramos Pinto – Porto!
Maldita incoerência das coisas deste mundo!
Um grande enôjo lhe vinha, sem saber de quê...
Que angústia!
Descansava nos dedos lassos o martelo...
Que angústia! E refletia, como nos seus dias de febre; – de que vale a vida?
De que vale a vida, se ela é feita para “isto”? Tanto esforço, tanto sonho, tanto ideal... e um
dia, uma megera aparece, faz uma careta, sopra no baralho de cartas e ficamos nós a sentir que é
muito estúpido termos um cérebro para sonhar e mãos para agir quando o fim de tudo isto, muito
surpreendente, é: reconhecer que o sonho e a ão foram uma “blague”, uma perfídia da natureza!
do Destino!
Por que, de fato, sonhar e agir, sem nunca termos o prazer final de apreciarmos nossa
obra? cumpre à morte o interromper algum esforço... a nossa morte, ou a morte de um ente caro! De
um ente caro que é enfim a nossa morte, outrossim.
Com os olhos cheios de lágrimas, olhava para “ela”, tão pálida, no seu revestimento azul...
Sonhamos tanto! e tão nítido! Oh! por certo que existirá uma região, onde esteja o final dos
nossos sonhos, a doce apoteose deles... deles, os sonhos tão dignos de se realizarem, tão justos! E
tão justa efetivamente a nossa cândida felicidade! Oh! sonhos de almas enamoradas!
Oh! sonhos sempre belos, mesmo no sombrio sofrimento de um enfermo, em maldita e
avassaladora peste!
Sonhos! sonhos! e aquela desilusão!
Pam! Pam! Pam!
Mais um prego!
E há lágrimas em tudo, e só o problema da vida-e-morte resiste, como um estribilho
imperecível, no pomposo hino do Universo!
Pam! Pam! de que vale a vaidade?
A vaidade! Hah! Hah! Hah! Senhor magistrado que, de roupão e face cadavérica, estais a
cozinhar parcos legumes para a família, toda a guardar o leito!...
Hah! Hah! quando esperáveis por esta, ó desastrado cozinheiro da última hora! Olhe, eu cá
tenho tido um amigo, operário, que me está a fazer o serviço! Tratei-o sempre tão amigavelmente...
- Vaidade!... Mas, ah! ele tinha o mau costume de se recordar dos serviços prestados pelo
Joaquim; o mau costume, porque, de fato, era menos pela gratidão, que ele se recordava do bom
amigo, do que pela vaidade de haver merecido aquelas provas de amizade!
Vaidade! Hah! hah! hah! Vaidade e sensualidade!
Pam! Pam! Um prego!...
Sensualidade. E lhe vinha a onda má!...
“... num último coleio, enfim bárbaro, monstro, louco, eu arrancaria de mim um pouco dessa
minha matéria pervertida e arrumar-lhe-ia dentro, para as profundezas do ventre dela... e ela,
num último coleio, anunciaria que sua perdição satisfeita, sugara, sedenta, selvagemente sedenta,
esta delícia macabra arrancada às profundezas do meu corpo e que a aguardaria avaramente, para
perpetuar, numa suave cabecinha anelada, o delírio celestial do nosso crime!”
Uma cabecinha anelada!...
Treme, treme, martelo! Oh! o fim!
O fim... de tudo!
Caixeirinha gentil, para que, se o fim... E é contudo a vida um desespero, que espera...
172
E sua cunhada? E sua Mãe? Oh! as travessuras que ele fazia, em pequeno, talvez
tivessem acelerado o fim da boa Mamãe!
_______________________________
Não soubera ele amá-la como devia... não o saberia amar também “ela”... e tudo assim,
feito para o sofrimento; para o sofrimento dos que sofrem a inconsciência alheia; para o sofrimento
dos que, um dia, vão se lembrar que foram inconscientes, e fizeram sofrer!
Fizeram sofrer aos que lhes foram mais caros!
Coitadinha!
Ah! se a “sá” Nicota viesse!...
Martela! Martela! A tua angústia!
Se a “sá” Nicota viesse! Ela viria a contar, muito ofegante e corcunda, que vira caminhões
com cadáveres; que fora ao Necrotério ver os defuntos todos juntos naquelas mesas de mármore e
pelo chão, tresandando, no mais insuportável mau-cheiro...
- “Tudo fedendo, seu Liopordo! Rico e pobre, tudo fedendo igual! Pra que, seu Liopordo,
tanta prosa desta gente graúda?”
Sim, para que? Ele se recordou do dia em que, depois de arrombar a porta do palacete, em
frente, com o Manuel Duarte do armazém, vira o mais trágico espetáculo!
- “Oh! por Deus, seu Duarte!” E lá estavam na grande cama de vinhático dois esmagriçados
corpos adultos, a erguerem custosamente o peito, sob a pesada coberta azul, pálidas faces
enterradas no travesseiro!...
Horror menor este! Ao lado do casal, que já não podia falar, na caminha de vime jazia,
arroxeada de decomposição, uma criaturinha gentil, lábios quase cerrados!...
Pobre gente, apesar de seus haveres!... E fora o Manuel Duarte convidá-lo a arrombar
aquele palacete, fechado havia semana e tanto!...
Pobre gente! e um mau cheiro, comum a todos que se extinguem, pairava duêndicamente
no ar!...
E a criaturinha gentil... tal qual ela!
“Ela”, talvez lhe fosse ingrata em vida, mas assim mesmo... oh! ressurgisse ela, o seu
adorado sonho mau!
E fosse com a Mamã, mais tarde, naquela sua mania de segurar com os dentes o pão, os
biscoitos, enquanto entre os dentes dele estivesse a outra metade!
Pam! Pam! Pam!
Por que lhe ficar na memória aquele gesto característico da sua defunta companheira?
Um prego! mais outro prego!...
- Haviam batido?
Nem uma visita...
Oh! como ficava ele afetuoso quando lhe aparecia, naqueles dias, uma visita, uma amigo,
que casualmente escapo do flagelo e casualmente lembrando-se dele, o vinha ver. Envolvia-o então
num grande aconchego de carinho; perguntava-lhe pela saúde, com detalhes estranhos;
aconselhava-o, com solícita ternura de vovô muito experimentado...
- “Cuidado! Cuidado, meu querido! Olha, cheira sempre o mentol, quando saíres...
Agasalha-te bem, põe as galochas...”
Os amigos contavam-lhe coisas estranhas, incríveis, como aquela do Eduardo! O Eduardo
vira, na Rua da Alfândega, de um segundo andar, arrumarem para um caminhão de cadáveres,
um... e outro... e depois outro... como sacos...
- “Sim, senhor... Eram, sem dúvida, de sírios... e faziam plum! plum! plum! quando caíam! E
um sujeito derramava lá, de cima, água com creolina, porque era um cheiro danado!
O Manuel Borges comentava:
- “Tornaram-se todos bons e caridosos agora, meu caro! Muito sacana, que era cheio de
“pose”, pede agora licença para entrar no banco do bonde todo cheio de mesuras! E todos o
esmolas...”
Arregalava os olhos:
- “Sim, senhor, dão esmolas e até chamam os pobres! Tudo mudado, com medo de Deus!”
Muito contrito, o Manuel Borges, benzia-se! E tanto ele como o Eduardo acabavam
chamando a pequena e enchendo-a de carinhos.
Seria uma bela moça... muito boa e caridosa criatura como o Pai!
Beijavam-na; perguntavam-lhe se gostava de balas... E ela olhava-os, séria, pensativa...
E ele? Tinha também planos...
173
Sim, confessara, tinha seus planos; de... de pedir a modistazinha... o por ele... mas...
mas por causa da pequena, que precisava de... E... e não sairia mais à noite ficando em casa com a
família... mais agradável, mais confortável assim... e evitaria as constipações!
Protegeria o Joaquim e... e outras coisas mais... tantas, e tão curiosas, que ele faria!...
Os amigos escutavam-no, às vezes distraídos...
E ela, a doce criaturinha... coitadinha!
Coitadinha!
Um prego! Mais outro prego!...
Mas enfim? Como fazer? Pedir a um cocheiro da Funerária que a levasse, substituído
“outra” por ela?
Outra, mais “fresca”? que pudesse esperar mais tempo?
E um calafrio mortal, inconcebível, lhe vinha ao lembrar-se de que alguém fizera isto,
segundo noticiaram os jornais...
O martelo lhe tremia nas mãos! Mas... bate! bate!
Pam!... Mais outro prego!
E a cidade à noite! Oh! seria à noite, sim, o trajeto fatal!
Oh! ele enlouqueceria!
Depois... quem sabe, ao dia seguinte? aos pontapés, no Caju, pelos penitenciários,
raivosos, incontíveis, aos furores do sol sem peias ou às chibatadas da chuva implacável...
- Um... mais um... e outro... oh! danação de nunca acabar!
E “ela” também... oh! Deus do céu!
- Um bonde... um auto... Como estremece a casa, irada, impaciente, ao passar dos veículos
raros que lhe rompem o silêncio sepulcral!...
E o sepulcral silêncio da cidade...
Angústia! Quando acabaria toda esta catástrofe!...
Para ele... oh! jamais!... Que lhe valeria a vida, agora?
Pam! Pam! Pam!
- “Eu serei seu criado, seu escravo, se o senhor for salvá-la! Por misericórdia, doutor!
Mas quem haveria de dizer que ela cairia assim, tão depressa?
- “Tá doendo aqui! E tá quente!... Quero deitá!...” Choramingava, impertinentemente.
E “sá” Nicota:
- “É preciso chamar o médico!”
- “Mas onde? Onde, meu Deus, eu encontrarei um médico?”
E a chuva caía... como estava a cair então, aos pingos, sem vontade, desanimada...
Ah! se sua cunhada, pelo menos, estivesse ali! Oh! por onde agora?!
E jamais... jamais veria ela o querido anjinho!
______________________________
Oh! aparecesse a “sá” Nicota! Velha megera, no dia em que lhe anunciara:
- “Chi, seu Liopordo, agora chegô a vêis das criança e das muié! Só os véio escapa!”
A vez das crianças!...
Pam! pam! pam!... Um prego! Mais outro prego!
Oh! ele a vira um dia, no delírio: o estranhamente! Ele a vira: numa planície vasta, sem
fim, escura e pantanosa, numa planície tenebrosamente febril, ia “ela”, a galopar sorridente e
vitoriosa, um falcão ao braço e longo cortejo, a segui-la; – cortejo de guapos moços em vivos
ginetes...
- “Que belo! Que belo e que triunfo! Salve!”
Depois... depois, ela a chorar, dobrada sobre um túmulo... e o cortejo, a galopar... a galopar
lá, adiante!
Upa! Upa!
Que fique ela, tão formosa, embora, a chorar sobre seu túmulo... minha querida, que moça
assim, moça e triunfante seria!
Sobre seu túmulo numa planície vasta e escura, febril!...
- Tremendo aspecto em tudo, naquela sua casa, onde uma agonia profunda boiava,
silenciosa!
Pam! pam! pam!
Coitadinha!
E no princípio haviam tanto rido!...
Oh! Senhor, um castigo seria?...
174
Mais um prego!...
De que outro modo? Num carrinho de mão, mesmo que o fosse! mas em vão o
procurava!...
Danação inconcebível! Que seria dela?
E mais um prego! Pam! pam! pam!
E outro!... E outro prego!
As lágrimas já não tinham conta!...
Um último desejo! – Ele morreria de dor!
Pam! pam! um derradeiro prego!
***
E depois... e depois a rua foi-lhe sombria, e tudo lhe foi passando em visões vagas e sem
nexo!... Bondes, transeuntes, automóveis, um bêbedo, caído ao pé de um lampião, uma criança com
umas latas às duas mãos!
E lá adiante, parecia divisar um caminhão...
Tudo em sombras, vago, delirantemente irreconhecível!
Como pesava!...
Coitadinha!... Avante!...
Maricota, sai da chuva...
Deixa, deixa de imbromá,
Maricota, sai da chuva...
Ele abriu mais os olhos; escancarou-os, num pavor apalermado!...
alcançara o caminhão! Era o cocheiro que cantava, com o rosto muito rubro e a cabeça
caída, polichinelamente:
...deixa de imbromá,
Maricota, sai da chuva!
Que tu vai te aconstipá!
Como pesava! Contudo antes assim, do que ser rolada ela do vagão da Light sobre uma
prancha, para o portão, tal um fardo!
O portão... o portão do Caju já lá estava!
A cidade jamais se reergueria, por certo! Oh! terror! Sem vida, exangues, luzes amarelas de
círios lá, dentro, através das vidraças... E a respiração estuante da Urbe no espaço, ele sentia! fosse
assim a modorra crepuscular de um febrento.
Mas que lhe importava? E caminhões e coches às portas... num silêncio tétrico!... Lá!...
Lá... um fazendeiro de Minas, barbado... um coronel, de vistosa farda... um estudante... um
comerciante de cara sebosa, ainda assim... e lá, a ficarem juntos, na solidão fria do Nada, e “ela”...
Mas que lhe importava tudo isso?
- Que seria dele?
... e a queda do pequeno volume produziu no solo um som oco, profundo e gemedor!
_______________________________
Teve a impressão de que a terra, rancorosa, se ia abrir para tragá-lo, num surto
cataclísmico!
O portão do cemitério lhe parecia uma escancarada fauce de condenação!
- Só na terra? Que iria fazer?
Aos ouvidos lhe vinha sempre o eco de um prego! mais outro prego!
Oh, a única solução; pô-la ali, num tosco caixão, ao portal do Caju!
- “Minha filha!
Se ali estivesse, pelo menos, a “sá” Nicota!... De fadiga, de comoção, ele não podia andar...
Que esforço!
A cidade mergulhava-se, cada vez mais, numa tristeza asfixiadora!...
Pam! Pam!...
Ele se bestificara, imóvel, à frente do vasto campo-santo, lacrimejante, apavorado! E
parecia vê-la ainda, no último instante, olhos já virados, fazendo um esforço para erguer o bracinho...
- “Papai! Vem cá!”
- Coitadinha! Minha filhinha do coração!
- E um prego! Oh! a obsessão!
- Que seria dele na tremenda angústia?
175
Mais outro prego... E outro...
Pam! pam! pam!
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo