Como parecia existir persistente, no espaço, o espectro pavoroso daquela desolação!...
Havia um susto em todas as coisas; e no espaço sombrio daquela saleta, sem dúvida que palpitava o
temor de uma próxima catástrofe, ou a fadiga apavorada de um longo sofrer, receoso de se queixar.
Os sons do martelo haveriam de chamar, sem dúvida, a desgraça, tão altos eram... Era
preciso abafá-los; mas como?
Fora por uma tardinha, amigavelmente desnublada – bem se lembrava do começo! – por
uma tardinha de beleza, aparentemente sem perfídia, tão límpida era! Lia, a gracejar, um tanto
entibiado contudo, as primeiras notícias nos jornais, assentado à banqueta do café “Belas-Artes”, com
o Florêncio e o Artur, colegas da repartição.
- “Estão bem portanto os que gostam de espanholas, hein, Florêncio!”
- É, mas estas dão abraço de tamanduá!”
As gargalhadas do rapaz loiro, de bigodes à Kaiser, provocaram escândalo no espaço
tumultuoso e irritantemente cheiroso do café, onde caras assustadiças, tenebrosas, voltaram-se para
a origem blasfema daquele riso franco.
Ele também rira – ele, que já sentia as pernas bambas e quentes, um abafamento interior,
um mal-estar geral, desconcertante, já começando a desencorajá-lo. Contudo o que mais o afligia era
o pequeno vulto “dela”, a lhe aparecer à mente, incerto, como que a tombar, de cabeça muito lassa
sobre o pescoço! tombar, amparado pelas mãos dele...
Experimentou mesmo uma sensação estranha ao abraçá-la, aquela tarde, mal transpôs o
largo portal daquela sua casa antiga; este mesmo portal que ali estava, com uma alma danada e
ingrata na sua indiferença de portal, esperando abrir-se para o último abraço... no instante supremo!
- Arrepios de fraqueza ele os tinha, freqüentes... Magoavam-no menos porém que os
arrepios, macabramente despersonalizadores a o epileptizarem pelo corpo, às vezes todas que ele se
lembrava da horrenda catástrofe!
Coitadinha!
Aquela tarde!... Aquela tarde, mudada a roupa, ele a carregara no colo e apertando ao peito
o amável fardo, fora pilheriar à janela do fundo com a modistazinha e com outros vizinhos que, por
acaso, puseram a cabeça amiga pela pan-abertura daquelas janelas rasgadas no desvario da procura
de ar, pelo espaço que ia até o morro...
Não apareceram vários, naturalmente já adoentados. A modista todavia franqueou-lhe ao
olhar o seu pitoresco rostinho, de uma beleza petulante, rueira, de narizito arrebitado e escandalizou
na quietude daqueles fundos de quintais:
- Olá, seu viúvo! Como se vai com a espanhola? Parece que já está atacado... tem a cara
que parece a de um caju seco!
Ria, como uma louquinha!
- “E a Estelita? Que olhos grandes e espantados tem ela! Boa noite, senhor viúvo!”,
arrematou a parolagem, como sempre, a graciosa costureirita fiel àquele cumprimento!...
E ela também parecia olhá-lo, espantadinha, àquela tarde... e um supersticioso terror já ia
constringindo o ânimo dele, com aquele espanto infantil, sincero, focalizado sobre seu barbento rosto!
Sim, bem se lembrava do começo!
A cidade ainda era risonha e incrédula, na despreocupada molecagem de sua agitação
fátua, crente unicamente no luminoso vai-vém de todos os dias! Os bondes e os automóveis e as
fachadas e os homens e todas as coisas pareciam sorrir, desdenhosos a correr, a correr... superiores
ao mal, vacinados contra o mal, pelo seu orgulho de Urbe intangível e privilegiada!
Oh! a mesma cidade que ele veria semanas depois, num mortal aspecto de devastação,
maltrapilha na sujeira de secas folhas, de panos, de restos orgânicos, relaxadamente descosidos no
silêncio de suas ruas, mal percorridas por um ou outro veículo, não raro com uma serventia fúnebre, a
apavorar os poucos transeuntes macilentos e preocupados, que passavam como sombras!...
E se o vento levantava uma nuvem de pó, levavam os sombrios andantes rapidamente,
estertorosamente, o lenço ao nariz, como que procurando se resguardar, desvairadamente, do
furacão da peste!...
Eles, sombras no meio da Sombra daquele pesadelo – sombras de medo, numa tétrica
insegurança, numa tétrica desconfiança de cada passo que davam...
E aqui e ali, uma ou outra cara exangue, a levantar estrepitosamente o batente de ferro de
tal casa comercial, muito assustado, muito indeciso, febrilmente desorientado!... Logo, dois, três,
muitos indivíduos, como que surgidos por encanto, a transporem apressadamente o portal...
- Pam! Pam! Pam!... vai, martelo! vai e vem, como uma lembrança tenaz, funerariamente
tenaz, na catadupa de meus pensamentos...
Pam! Pam!
- Oh! a sua cidade de heróis, que tanto os houve, mesmo assim!...