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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
As Viagens de Gulliver
e a ascensão do romance inglês
ROGER MAIOLI DOS SANTOS
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação na área de
Estudos Lingüísticos e Literários em Inglês
do Departamento de Letras Modernas
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo
SÃO PAULO
2006
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3
U
NIVERSIDADE DE SÃO PAULO
F
ACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
ROGER MAIOLI DOS SANTOS
As Viagens de Gulliver
e a ascensão do romance inglês
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação na área de
Estudos Lingüísticos e Literários em Inglês
do Departamento de Letras Modernas
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo
Orientador: Prof. Dr. Marcos César de Paula Soares
SÃO PAULO
2006
iv
Resumo
Este é um estudo das relações entre As Viagens de Gulliver e o romance inglês em sua
fase de formação.
Em 1726, quando Gulliver foi originalmente publicado, o romance inglês não era ainda
um gênero consolidado, mas os elementos formais que o caracterizariam já circulavam em
outras formas literárias. Esses elementos formais — como a contemporaneidade, a
probabilidade, a ênfase na realidade quotidiana, a rejeição de enredos tradicionais, a
linguagem referencial e o individualismo — associavam-se então a correntes literárias e
valores progressistas inaceitáveis para Swift.
Em As Viagens de Gulliver, Swift se apropriou dessas exatas convenções para atacar por
dentro tais correntes e tais valores. Em outras palavras, Gulliver constituiu (entre muitas
outras coisas) uma paródia intermitente das tendências formais que com o tempo viriam a
caracterizar o romance moderno. E no ato mesmo de se apropriar das convenções que
combatia, Swift contribuiu para o estabelecimento de uma via alternativa para autores mais
tradicionais.
Palavras-chave: Swift; Gulliver; literatura inglesa; romance; paródia.
v
Abstract
This is a study of the relationships between Gulliver’s Travels and the English novel in
its formative stage.
When Gulliver was originally published in 1726, the English novel was not yet a
consolidated genre, but the formal elements that would eventually characterise it were already
circulating via other literary forms. Such formal elements — e.g. contemporaneity,
probability, emphasis on daily reality, the rejection of traditional plots, referential language
and individualism — were then associated with literary trends and progressive values deemed
unacceptable by Swift.
In Gulliver’s Travels, Swift appropriated these very conventions in order to attack from
within such trends and values. In other words, Gulliver amounted (among many other things)
to an intermittent parody of the formal trends that would in time characterise the modern
English novel. And in the very act of appropriating the conventions he were fighting against,
Swift furthered the establishment of an alternative avenue for more traditional writers.
Keywords: Swift; Gulliver; English literature; novel; parody.
vi
Índice
Resumo.................................................................................................................................... iii
Abstract................................................................................................................................... iv
Sumário.................................................................................................................................... v
Índice........................................................................................................................................ vi
Notas sobre o texto.................................................................................................................viii
Introdução............................................................................................................................... 1
PARTE 1: NORMAS E EXCEÇÕES................................................................................... 9
1.1. Sociedade e Neoclassicismo......................................................................................... 10
1.2. Neoclassicismo e Romance........................................................................................... 16
1.3. Romance e Sociedade................................................................................................... 25
1.3.1. McKeon................................................................................................................. 29
1.3.2. Hunter.................................................................................................................... 33
1.4. Recapitulação................................................................................................................ 25
PARTE 2: SWIFT E GULLIVER......................................................................................... 41
2.1. As Raízes de Gulliver................................................................................................... 42
2.1.1. Raízes Políticas..................................................................................................... 43
2.1.2. Raízes Literárias.................................................................................................... 49
2.2. Verdade e Virtude......................................................................................................... 57
2.2.1. Viagens Verdadeiras? ........................................................................................... 58
vii
2.2.2. Viagens Imaginárias.............................................................................................. 64
2.2.3. O Viajante Imaginário...........................................................................................69
2.2.4. A Alternativa Conservadora.................................................................................. 76
PARTE 3: CONCLUSÃO...................................................................................................... 86
3.1. Conclusão................................................................................................................... 87
Bibliografia.............................................................................................................................. 97
viii
Notas sobre o texto:
a) Evitei citar em outros idiomas. As citações serão traduzidas e terão seu original
registrado no rodapé.
b) Adotei as seguintes abreviaturas para as notas de rodapé (ver dados completos na
Bibliografia):
CCJS: The Cambridge Companion to Jonathan Swift, edição de Christopher Fox
CCEN: The Cambridge Companion to the Eighteenth-Century Novel, edição de John
Richetti
EECE: Eighteenth-Century Critical Essays, edição de Scott Elledge
GGT: The Genres of Gulliver’s Travels, edição de Frederik N. Smith
GT: Gulliver’s Travels, edição crítica de Albert J. Rivero
MMS: The Memoirs of the Extraordinary Life, Works, and Discoveries of Martinus
Scriblerus, edição crítica de Charles Kerby-Miller
TCH: Swift: The Critical Heritage, coletânea de textos de época editada por
Kathleen Williams
WJS: The Writings of Jonathan Swift, edição crítica de Robert A. Greenberg e
William Bowman Piper
1
Introdução
Desde que passei a me ocupar com estudos sobre a origem do romance inglês, tornou-se
comum que as pessoas me perguntem: e Gulliver, como fica nessa história? Em algum
momento observei que a resposta exigiria todo um volume. Este é o volume.
Publicadas em 1726, As Viagens de Gulliver já ganharam muitíssimas classificações:
romance, sátira narrativa, conto picaresco, viagem imaginária, utopia, antiutopia — e a lista
prossegue
1
. A incerteza resulta não somente da falta de estabilidade taxonômica que
caracterizou a prosa de ficção na primeira metade do século XVIII, mas também da variedade
de modelos a que Swift recorreu na composição do livro. Em Gulliver confluem elementos,
por exemplo, de Sir Thomas More, Rabelais, William Dampier e Daniel Defoe — escritores
com intenções e métodos tão distintos que dificilmente poderíamos abrigá-los sob um toldo
comum. A reunião dessas fontes fez de Gulliver um livro de muitas faces, desafiando a
classificação categórica e relegando a obra a um estado de flutuação genérica que perdura até
hoje. Ao passo que a posterior distinção dos gêneros concedeu a Robinson Crusoé um lugar
assegurado na gênese do romance moderno, Gulliver ainda erra pelas margens da história
literária, e tão cedo não promete lançar âncora.
A promiscuidade genérica de Gulliver é também a de seu autor. Jonathan Swift (1667-
1745) não se notabilizou pela prática de nenhuma forma consagrada. Membro da esfera culta
numa época em que a tradição neoclássica começava a dar mostras de esgotamento e as novas
opções formais eram pouco convidativas para o escritor de formação, Swift descobriu-se sem
modelos certos a seguir. Seu primeiro biógrafo, o conde de Orrery, observou que ele
“escrevera miscelaneamente, e optara antes por parecer um cometa errante que uma estrela
fixa. Houvesse aplicado as faculdades de sua mente numa obra grande e útil, e ele teria
1
Para uma relação mais completa, ver Frederick N. Smith, “Introduction”. GGT, P. 20.
2
decerto brilhado com mais glória”
2
. Não bastasse as formas disponíveis na época parecerem
desgastadas ou vis, Swift, por sua conta, parece haver duvidado cronicamente da virtude
intrínseca das obras de imaginação. Se chegou a aplicar a sério as faculdades de sua mente,
não foi na literatura imaginativa: ele era acima de tudo um escritor político que punha a
escrita a serviço de uma causa ulterior, e que via pouco valor autônomo nos frutos literários
dessa campanha, aos quais raramente apunha seu nome. Se algum gênero lhe parecia
sobressair aos demais, era a história. Ele almejou destacar-se como historiador da Inglaterra e
especialmente do reinado de Ana, mas seus ocasionais esforços historiográficos não lograram
êxito. Seus demais escritos são amiúde efemeridades em que se reconhece a voz do
historiador e comentarista político. Assim também As Viagens de Gulliver: longe de
revelarem uma eventual crença no valor artístico da prosa de ficção, elas constituíram a
adoção de um modelo socialmente significativo que permitiria a Swift dar vazão a seus
interesses centrais nos planos simultâneos da forma e do conteúdo. Com o tempo a motivação
política do livro esmaeceria e seria obscurecida pelo mero interesse narrativo, em resultado do
que Swift entraria para a história da literatura inglesa como um ficcionista malgré lui. O
público em geral não estranharia ver Robinson Crusoé e As Viagens de Gulliver ombreando
em séries juvenis e coleções de romances famosos. A crítica especializada, porém, não
perderia de vista a atitude de Swift para com a prosa de ficção — uma atitude a um só tempo
de adoção e repúdio —, nem a complexa relação de As Viagens de Gulliver com o emergente
romance inglês.
O leitor, com boa razão, desejará saber o que tenho em mente ao me referir ao
“romance”. Por motivos que ficarão claros mais adiante, não pretendo adotar uma definição
restritiva do termo, que rotule impecavelmente o universo de obras. Por enquanto apresento
uma definição sucinta, que será complementada na Parte 1 por uma descrição operacional do
gênero. Tanto a definição como a descrição são de J. Paul Hunter. O romance
2
“[Swift has written miscellaniously, and has chosen rather to appear a wandering comet, than a fixed star. Had
he applied the faculties of his mind to one great, and useful work, he must have shined more gloriously.”
Remarks on the Life and Writing of Dr. Jonathan Swift, Dean of St. Patrick’s, Dublin (1752) TCH, P. 116.
3
é uma espécie distinta (e então bastante inovadora) de prosa de ficção — denotando a
preocupação com a subjetividade e a consciência de pessoas comuns, com a linguagem comum
e com eventos quotidianos e contemporâneos — que emergiu na Europa em vários pontos dos
séculos XVI e XVII e começou a dominar o mercado popular na Inglaterra no início do século
XVIII, pouco antes de Swift escrever As Viagens de Gulliver.
3
Essa definição, a princípio bastante ampla, é também suficientemente precisa para dar
ao gênero fronteiras mais ou menos definidas. Tais fronteiras podem parecer arbitrárias,
sobretudo para nós, leitores de nosso tempo e idioma. Isso se deve a um problema
terminológico que sempre se impõe aos que escrevem em português sobre o romance de
língua inglesa. O tipo de obra narrativa que atualmente chamamos de romance — digamos,
Mrs. Dalloway ou O Complexo de Portnoy — é designado em inglês pela palavra novel. Esse
termo, entretanto, não tem o sentido amplo de sua contrapartida em português. Em seu uso
substantivo, o nosso “romance” pode se aplicar tanto a poemas do círculo arturiano, ao
Roman de la Rose e às longas narrativas heróicas de Madelleine de Scudéry como a obras de
Dickens, Flaubert ou Dostoiévski. A palavra novel, se usada com rigor, só vale para o
segundo grupo, e exclui de antemão composições em verso e o mundo maravilhoso da lenda.
Quando discorremos em português — ou mesmo em francês ou italiano — sobre a ascensão
inglesa do romance, roman ou romanzo, precisamos qualificar nossos termos. Podemos fazê-
lo pelo recurso a um epíteto: a versão italiana de The Rise of the Novel, por exemplo, se
intitula Le Origini del Romanzo Borghese. Eu preferi utilizar pura e simplesmente “romance”,
ressalvando porém que o termo deve ser entendido o tempo todo como uma tradução literal de
novel, com as restrições de sentido que isso implica: “a preocupação com a subjetividade e a
consciência de pessoas comuns, com a linguagem comum e com eventos quotidianos e
contemporâneos”.
3
“[The novel] is a distinctive (and then quite innovative) kind of prose fiction — featuring a concern with
subjectivity and the consciousness of ordinary people, ordinary language, and everyday contemporary events —
that emerged in Europe at various points in the sixteenth and seventeenth centuries and that began to dominate
the popular market in England in the early eighteenth century, shortly before Swift wrote Gulliver's Travels. J.
Paul Hunter, “Gulliver’s Travels and the later writings”. In: CCJS, p. 238, n. 18.
4
A especificidade do termo na Inglaterra é um resultado dos esforços críticos que se
fizeram desde o final do século XVII para diferenciar a novel de um outro gênero bastante
amplo que, para o nosso infortúnio, os ingleses chamam de romance. A palavra designa
sobretudo o que conhecemos como o romance heróico ou idealista da França, com seu recurso
ao maravilhoso, seu decoro cortesão e seus heróis nobres, em nítido contraste com a realidade
mais prosaica da novel. Também designa a atitude anti-realista que voltaria a ter vigência com
o movimento gótico e o Romantismo. Já se vê que problemas isso cria para o tradutor: textos
como o prefácio de Nathaniel Hawthorne em A Casa das Sete Torres, no qual o autor faz
distinções entre novel e romance, chegam ao português empregando os cognatos “novela” e
“romance”. A leitura fica mais fluente, mas o sentido padece. Um estudo crítico não pode
correr esse risco. Como já reduzi a abrangência do português “romance” para criar um
equivalente instrumental de novel, adotarei como tradução do inglês romance a expressão
“estória romanesca” ou a forma reduzida “romanesco”, seguindo nisso o exemplo de Sandra
Vasconcelos
4
.
Na primeira metade do século XVIII a distinção entre romance e estória romanesca
ainda não se assentara, e as expressões eram usadas sem nenhum critério consensual, sendo
por vezes intercambiáveis. Pior: a elas vinham somar-se muitas outras designações, como
“história”, “memória” e “epopéia”. Esses termos eram aliás preferíveis: na virada do século
XVII para o XVIII o termo romance (novel) estava por demais associado ao escândalo de
autoras malvistas como Aphra Behn e Mary Delariviere Manley para que escritores de
ambição o adotassem. No pós-escrito a Clarissa, Richardson tratou de desenganar os que
vissem em seu livro “um mero romance ou estória romanesca”
5
. Fielding, por seu turno,
conclamou para si o campo do “épico cômico em prosa” e da “história (...), diferente do
enxame de tolos romances e monstruosas estórias romanescas”
6
. Entre os romancistas
canônicos anteriores a 1770, somente Smollett admitiu em algum momento escrever
romances, na dedicatória de The Adventures of Ferdinand Count Fathom (1753). E todavia o
mesmo Smollett considerava The Adventures of Roderick Random (1748) uma estória
4
Sandra Guardini Vasconcelos, Dez lições sobre o romance inglês do século XVIII, p. 35.
5
“(…) a mere novel or romance”. Clarissa, p. 1498.
6
Cf. prefácio a Joseph Andrews e Tom Jones, IX, I (“Swarm of foolish Novels, and monstrous Romances” ).
5
romanesca, apesar de a estrutura dos dois livros ser muito similar.
Essa confusão terminológica não era apenas má vontade: antes de a noção do romance
coalescer na segunda metade do século XVIII, os romancistas ingleses não se viam
necessariamente numa empreitada comum. “[L]onge de estarem prontos a aceitar as variadas
obras como ‘romances’, eles não parecem ter chegado nem mesmo ao consenso de que obras
como Robinson Crusoé, Pamela, Joseph Andrews, Clarissa, Tom Jones, Peregrine Pickle e
Tristram Shandy eram todas da mesma espécie”
7
. Em outras palavras, o romance inglês não
nasceu de um projeto formal elaborado em comunhão por um conjunto de autores de
vanguarda. A teorização neste caso, como em muitos outros, foi posterior à prática: o conceito
do gênero só se estabilizou após um elevado grau de experimentação por parte de autores que
seguiam por trilhas paralelas mas distintas. Nossos esforços por conferir maior nitidez às
fronteiras genéricas esbarram no fato de que livros muito diferentes se consagraram como
romances numa época em que os termos vinham se assentando mas o gênero era
relativamente amorfo. A menos que estejamos dispostos a rejeitar uma parte dessas obras —
digamos, Tom Jones ou Tristram Shandy —, as definições que propusermos precisam ser
suficientemente flexíveis para acomodar toda a gama de experimentação que precedeu a
estabilização terminológica. Eis por que evitei adotar uma definição restritiva de romance:
nenhum modelo rígido de formulação posterior poderá dar conta da instabilidade e da fluidez
genérica então prevalecentes.
Uma conseqüência dessa abordagem mais maleável à origem do romance é que teremos
de renunciar à idéia de obra fundadora. Tal idéia, especialmente grata ao jornalismo cultural, é
de qualquer modo pouco criteriosa. A eleição de um primeiro romance costuma ser
influenciada por preferências pessoais ou nacionais, e decidida graças a definições genéricas
elaboradas com o fito de excluir predecessores. Isso ocorre porque à classificação como
romance apega-se usualmente um juízo de valor: numa época que prefere a inovação ao
tradicionalismo, ser o primeiro romance significa sobressair na grande corrente literária e
prenunciar o futuro. Mais que isso: o julgamento da primazia é feito quase sempre com base
7
“[F]ar from being ready to accept the various works as ‘novels,’ they do not appear to have arrived at a
consensus that works such as Robinson Crusoe, Pamela, Joseph Andrews, Clarissa, Tom Jones, Peregrine
Pickle and Tristram Shandy were even all of the same species”. Geoffrey Day, From Fiction to the Novel, p. 7.
6
no cânone, como se o primeiro fosse necessariamente o famoso. Os candidatos a romance
fundador incluem invariavelmente obras canônicas: Satyricon, O Asno de Ouro, Filocolo,
Pantagruel, A Celestina, Lazarillo de Tormes, Dom Quixote, A Princesa de Clèves, Robinson
Crusoé, Pamela, Joseph Andrews. Temos aí uma confusão entre precedência e preeminência,
e ela é prejudicial ao estudo sério de origens. O cânone é um instrumento útil na medida em
que permite ao crítico manusear um corpus universal vasto demais para ser abarcado em sua
inteireza. Em Mimesis, por exemplo, Erich Auerbach optou conscientemente por trabalhar
com autores canônicos (salvo algumas exceções), em razão do imenso intervalo histórico que
lhe coube por objeto. Mimesis, em sua busca pela “unificação da quotidianidade com a
seriedade trágica”
8
, constitui antes um exame de casos dispersos do que uma história do
realismo europeu
9
, já que Auerbach deixa de lado não somente autores de menor vulto (como
Robert Challe e George Lillo), mas também figuras importantes como Samuel Richardson,
tratando sumariamente de outros como Calderón e Lope
10
. Essa opção, válida para a proposta
de Mimesis, é menos justificável num estudo de origens. Nesse caso devemos ter em mente
que o cânone representa um recorte seleto de um universo muito mais amplo, e que nesse
processo de redução ele agiganta a singularidade das obras, conferindo uma nitidez enganosa
às fronteiras formais da história e favorecendo o estabelecimento da precedência em tal ou
qual gênero. É evidente que se limitarmos nosso exame a Shakespeare, Donne, Milton e
Defoe, este último será o fundador do romance. A certeza desaparece quando trazemos à mesa
a grande e multifária produção que acompanhou Robinson Crusoé e que partilhou em muitos
momentos de suas características formais, por vezes antecipando-as. A eleição segura de um
primeiro romance, portanto, só pode ocorrer com a simplificação do processo histórico. Os
dois críticos com quem minha presente dívida é maior — J. Paul Hunter e Michael McKeon
—, em que pesem suas divergências, coincidem na proposta de expandir o leque de estudo e
considerar obras não canônicas e até mesmo “extraliterárias”, no esforço por resgatar a real
complexidade da gênese do romance.
Como se vê, nosso território é bravio. Ele não possui fronteiras marcadas nem
8
Erich Auerbach, Mimesis, p. 246.
9
Idem, p. 493.
10
Ibidem, p. 296.
7
compartimentos estanques. Ao longo das páginas seguintes, o início do século XVIII será
visto como um momento literário prolífico e genericamente instável, em que as narrativas em
prosa podem participar simultaneamente de muitos gêneros — do romance, do romanesco, da
utopia, das biografias criminais, das alegorias religiosas, da viagem imaginária — sem se
deixarem reduzir a nenhum deles; e não haverá um teste de DNA que lhes determine a pureza
de sangue, nem identifique o primeiro romance genuíno. O risco de que esse ofuscamento das
fronteiras ponha em dúvida o processo mesmo de ascensão de um novo gênero é ilusório. Nas
palavras de Hunter:
[O] moderno romance inglês, como o conhecemos, ganha existência em algum momento no
início do século XVIII, e eu afirmaria que a quantidade explosiva de ficção narrativa na época,
juntamente com mudanças distintas e definíveis na natureza da narrativa extensa, significam que
podemos especificar a emergência de um gênero mesmo que não a possamos fixar numa tarde
qualquer de sexta-feira.
11
Após essas considerações preliminares, o leitor já terá previsto que meu objetivo aqui
não será restituir As Viagens de Gulliver ao seio do romance, problema que se poderia
resolver com uma definição do gênero desenvolvida especificamente para esse fim. Isso
equivaleria, no entanto, a mudar o idioma da discussão crítica e impossibilitá-la na prática.
Meu interesse está antes em estudar as relações entre As Viagens de Gulliver e esse gênero
cujos contornos ainda eram incertos mas cujas tendências particulares já se revelavam. O
estudo se dividirá em duas partes, com uma conclusão ao final. A Parte 1, que tratará muito
pouco de Swift em si, procurará retratar a posição do romance no início do século XVIII,
como um gênero sem regra e sem prestígio numa época de normas neoclássicas e
preponderância de escritores pertencentes ou vinculados à aristocracia. A Parte 2 inserirá
11
“[T]he modern English novel as we know it comes to exist sometime around the beginning of the eighteenth
century, and I would argue that the exploding amount of narrative fiction then, together with distinctive and
definable changes in the nature of extended narrative, mean that we can specify the emergence of a genre even if
we cannot pin it down to a particular Friday afternoon.” J. Paul Hunter, “Gulliver’s Travels and the Novel”, p.
70.
8
Swift no contexto descrito na Parte 1, estabelecendo relações entre As Viagens de Gulliver e o
romance em formação; entre Swift e os novos romancistas; e entre a esfera conservadora
daquele e a esfera progressista a que estes freqüentemente pertenciam.
Se Swift percebia os rumos que a prosa de ficção vinha tomando, de que maneira suas
inclinações se espelham em sua única incursão prolongada por esse terreno? Em outras
palavras, “e Gulliver, como fica nessa história?” Veremos como esse livro reflete e incorpora
problemas mais gerais da história literária e social de seu tempo, ilustrando toda uma atitude
de classe e de época com relação a um notório arrivista.
9
PARTE 1
Normas e exceções
10
1.1. Sociedade e neoclassicismo
A estória romanesca cujo espaço o romance viria pouco a pouco a ocupar não era senão
um nicho menor da literatura aristocrática. O momento que testemunhou a publicação de As
Viagens de Gulliver pertencia não à “Era do Romance”, nem à “Era do Romanesco”, e sim ao
que desde há muito se convencionou chamar de Era Augustana — um período histórico e
cultural que se espelhava na pujança do Império Romano na época de Augusto e no prestígio
de luminares das letras como Virgílio, Horácio e Cícero; uma fase em que a política e a
literatura eram regradas por princípios de ordem maior — uma aristocracia ilustrada no
primeiro caso e normas neoclássicas no segundo. Essa, ao menos, é a definição estereotípica;
não lhe faltam problemas, como veremos em seguida.
O período que a expressão “Era Augustana” designa é a primeira incerteza. O clássico
estudo de Arthur Humphreys traz uma delimitação no subtítulo: The Augustan World—Life
and Letters in Eighteenth-Century England. Humphreys se concentra no século XVIII —
mais exatamente até seus meados — e deixa de lado o intervalo entre 1660 e 1702
(respectivamente a Restauração e a ascensão da rainha Ana). Scott Elledge, em sua antologia
de ensaios críticos da época, cita a que lhe parece a menção mais antiga da expressão num
texto de Leonard Welsted datado de 1720: “vejo elevar-se uma nova Era Augustana”
12
. A. C.
Ward buscará uma fonte posterior, mas com uma conseqüência interessante: a seu ver a idéia
de “augustanismo” tem origem numa passagem da biografia de Dryden escrita por Johnson:
“O que se disse de Roma, adornada por Augusto, pode aplicar-se mediante uma fácil metáfora
à poesia inglesa embelezada por Dryden: lateritiam invenit, marmoream relinquit, ele a
encontrou tijolos e a deixou mármore”
13
. Isso faria recuar a Era Augustana ao século XVII, de
modo a englobar a obra de Dryden e de outros autores que instauraram a “correção” poética
após a exuberância desregrada dos poetas metafísicos. E, de fato, encontramos uma passagem
12
“I see arise a new Augustan Age”. Welsted, “An Epistle to the Duke of Chandos”. In ECCE, p. 548, n. 1.
13
“What was said of Rome, adorned bu Augustus, may be applied by an wasy metaphor to English poetry
embellished by Dryden, lateritiam invenit, marmoream relinquit, he found it brick, and he left it marble.” Life of
Dryden. V. A. C. Ward, Illustrated History of English Literature, v. II, p. 77.
11
anterior à de Welsted num texto de 1690 escrito por Francis Atterbury, bispo de Rochester:
“[Waller] ocupa sem dúvida o primeiro lugar na lista de refinadores e, até onde sei, também o
último; pois pergunto-me se no reinado de Carlos II o inglês não atingiu sua plena perfeição e
não teve sua Era Augustana, como a teve o latim”
14
. A delimitação da Era Augustana é assim
variante: ela é ora situada no período 1660-1700, ora no período 1700-1740. Resolver a
inconsistência cabe naturalmente a especialistas na área. Eu, por prudência — e também
porque pretendo tratar do credo neoclássico que regrou grande parte da produção augustana
—, optei por trabalhar com os extremos 1660-1740
15
.
A Era Augustana, comecei dizendo, representa não somente um período cultural, mas
também uma fase da história política e social da Inglaterra. A estratificação entre aristocratas,
capitalistas e pobres parecia corresponder a uma tripartição romana similar, e a grandeza da
nova Inglaterra queria refletir a de Roma. Mas a justiça do paralelo foi desde cedo posta em
dúvida. Voltaire lhe aplicaria sua usual verve: “Há um senado em Londres cujos membros são
em parte suspeitos — embora seguramente por engano — de vender ocasionalmente suas
vozes, como se fazia em Roma; eis aí toda a semelhança”
16
. A coincidência de estratos sociais
era ademais irrelevante, sendo característica “de todas as sociedades mais avançadas onde
ainda não teve início o processo de igualização”
17
. Ainda mais problemática é a suposta visão
de Augusto como ideal de governante e patrono das letras. Howard D. Weinbrot coligiu todo
um volume de evidências de que os “augustanos” viam em Augusto um tirano da pior espécie:
covarde, traiçoeiro, opressivo e depravado, responsável por solapar o equilíbrio constitucional
da república. O mito de um Augusto sábio e virtuoso — mito que tinha suas altas e baixas
conforme oscilava o prestígio do rei — seria uma ficção invocada por poetas com finalidades
retóricas ou em busca de patronato régio. Para Weinbrot, o rótulo “augustano” (que deveria
aliás ser descartado) é enganoso até mesmo no campo da literatura. A reputação dos luminares
14
[Waller] undoubtedly stands first in the List of Refiners, and for ought I know, last too; for I question whether
in Charles the Second’s Reign, English did not come to its full perfection; and whether it has not had its
Augustan Age, as well as the Latin.” Francis Atterbury, “Preface to The Second Part of Waller’s Poems”. In
David Womersley (ed.), Augustan Critical Writing, p. 121.
15
Sigo o exemplo de Bonamy Dobrée. English Literature in the Early Eighteenth Century, p. 17.
16
“Il y a un sénat à Londres dont quelques membres sont soupçonnés, quoique à tort sans doute, de vendre leurs
voix dans l’occasion, comme on faisait à Rome; voilà toute la ressemblance.” Voltaire, Lettres Philosophiques,
VIII, p. 63.
17
Hauser, História Social da Arte e da Literatura, p. 536.
12
clássicos, sobretudo Virgílio, sofreu em razão dos elogios que haviam feito a Augusto. A
Eneida foi vista por muitos como um poema político que preconizava a monarquia. Horácio
sofreu críticas similares, e Cícero foi tido como um cego que não percebera nutrir seu futuro
executor
18
. Por tudo isso, cumpre usar com certa reserva o nome “Era Augustana”; ele é
conveniente, mas não é preciso. E contudo, apesar das imperfeições, ele é muito revelador se
dele depreendermos uma relação estreita entre literatura e alta sociedade.
Raramente na história da literatura inglesa a corte exerceu tamanha influência sobre os
autores como na época de Carlos II. O interesse sincero do monarca pelo assunto
(especialmente pelo drama) incentivou o desenvolvimento de círculos letrados no seio da
aristocracia, e é notável o número de nobres então capacitados a escrever com distinção e
elegância — como o duque de Buckingham e o conde de Roscommon. Com ocasionais
exceções (como Bunyan e Milton), os grandes autores da Restauração foram membros da alta
sociedade ou integrantes da classe média cuja educação refinada lhes permitiu o acesso às
camadas superiores
19
. O circuito fechado da produção e consumo da literatura palaciana foi
muito propício para o desenvolvimento do etos refinado que notabilizou a época. Por um lado,
os patronos permitiam aos autores dedicar-se à criação poética sem se preocupar com
questões mundanas como a vendagem; por outro, os autores estavam em contato direto com
um público composto por connoisseurs cujas expectativas conheciam e cujas críticas ouviam
em primeira mão. Essa reciprocidade tinha como resultado uma censura informal, que excluía
do escopo da literatura tudo o que fosse ofensivo às altas camadas — sobretudo as camadas
baixas. A vida quotidiana (esse reduto de artesãos, vielas urbanas, rixas de família, ambições
burguesas e aromas indóceis) só poderia figurar na literatura como objeto de ridículo, não
merecendo tratamento sério de autores que tinham na polidez uma de suas máximas.
Ilustração literal disso é a passagem de Absalom and Achitophel em que Dryden se recusa a
nomear os rebeldes rasteiros: “Tampouco a turba abjeta terá aqui lugar / A quem reis não
deram títulos, e nem Deus graça”
20
. A Restauração, vista como um retorno à ordem política
depois dos anos atrozes de Guerra Civil e Commonwealth, seria associada também à
18
Weinbrot, Augustus Caesar in “Augustan” England, p. 50, 126 e 12.
19
Ver James Sutherland, English Literature of the Late Seventeenth Century, pp. 25-31.
20
“Nor shall the rascal rabble here have place, / Whom kings no title gave, and God no grace.” Dryden, Absalom
and Achitophel, 579-580. In Hammond (ed.), Restoration Literature: An Anthology, p. 55.
13
reordenação literária. Dryden, para quem uma das causas da impolidez elisabetana fora
justamente a distância entre escritores e nobres, referiu-se aos elisabetanos como “a raça
gigante anterior ao dilúvio”
21
— expressão que sugere grandeza mas também grosseria.
Recorde-se que os dramaturgos elisabetanos escreviam tanto para a fina flor como para a
gente de poucas letras que ia buscar algum regalo nos teatros, e tinham de servir a ambas. Os
augustanos só serviriam à primeira. Preservar a grandeza mas refinar o tom foi seu projeto
maior. E seu manual de etiqueta foi o neoclassicismo.
A corte que se formou em torno de Carlos II após a Restauração incluía muitos ingleses
que se haviam instalado na França durante os anos da Guerra Civil e se imbuído da cultura e
dos valores franceses; também incluía franceses pertencentes ao séquito da rainha-mãe
Henriqueta Maria. O pensamento crítico francês, então numa fase de intensa atividade,
trasladou-se com eles para a Inglaterra e aí ganhou corrência. A literatura nacional seria
medida de acordo com princípios que ferventaram na França entre 1630 e 1660 e ganharam
sistematização durante o reinado de Luís XIV. Esses princípios, que só muito mais tarde
seriam chamados de “neoclássicos”, teriam vasta influência nos séculos XVII e XVIII e
serviriam por muito tempo como pedra de toque da boa poesia. Durante o Renascimento,
intérpretes italianos e franceses da poética clássica se haviam incumbido de preencher as
lacunas dos textos antigos (sobretudo o de Aristóteles) e formular regras abrangentes para a
composição e o julgamento da poesia. A França do século XVII sistematizou essas regras e
tornou-se o centro difusor do pensamento neoclássico. O princípio supremo desse pensamento
era a função moralizante da poesia, que se sobrepunha a seu valor como objeto de deleite; em
termos modernos, a função didática das obras era mais importante que sua função estética.
Outros princípios gerais eram a linguagem clara, o conteúdo decoroso, a verossimilhança da
fábula, a unidade de concepção e a consistência na caracterização dos personagens. Para tudo
isso a imitação dos antigos — ou da “natureza” — era essencial. A tragédia clássica,
conforme descrita por Aristóteles e Horácio e normatizada pela crítica renascentista, seria o
21
“(…) the giant Race before the Flood”. “To my dear friend Mr. Congreve, on his comedy called The Double
Dealer” (1694). Ver também o tratamento dado a Shakespeare e Jonson em Of Dramatick Poesie: An Essay
(1668).
14
grande modelo a ser seguido nos misteres da caracterização
22
e da unidade
23
, com o resultado
de que todo detalhe secundário seria visto como excrescência. O importante, segundo esse
sistema, era tratar de verdades universais, e não de particularidades geográficas ou históricas.
Shaftesbury observaria: “O mero retratista, com efeito, tem pouco em comum com o poeta;
antes, como o mero historiador, ele copia o que vê e traça minuciosamente toda feição e
marca abstrusa; não é assim com homens de invenção e engenho”
24
. Depois dessas regras
gerais, a doutrina neoclássica apresentava outras, mais específicas, que regravam os diversos
tipos poéticos, especialmente a comédia, a tragédia e a epopéia. A violência explícita da
tragédia elisabetana, por exemplo, seria banida para os bastidores, e toda ação extravagante
deveria ser narrada em vez de encenada
25
. Descontadas ocasionais divergências, tal era a
essência do pensamento neoclássico que os ingleses receberam da França
26
.
Grande parte dos princípios neoclássicos parecia aos augustanos saudável e conforme
ao bom senso. De fato, após sua sistematização no último quartel do século, o neoclassicismo
se tornou o credo ortodoxo. Mas a intransigência das regras menores (e especialmente das
unidades de ação, tempo e lugar) era vista como um obstáculo à inventividade. Essa objeção
já vinha sendo feita na própria França por autores como La Bruyère, Saint-Évremond e o
Corneille da fase final, de modo que o neoclassicismo que desembarcou na Inglaterra foi logo
acompanhado de sua crítica. O crescente interesse por Longino, cujo tratado Do Sublime se
difundiu na tradução de Boileau, favoreceu uma atitude mais liberal no julgamento poético.
“[D]evemos preferir uma grandeza com alguns defeitos, ou uma mediocridade correta, em
tudo sã e impecável?” Os ingleses, que tinham sempre presente a obra de Shakespeare como
prova de que era possível ser grande sem ser exato, se dispuseram à tolerância. “[A] precisão
22
“Quando se experimenta assunto nunca tentado em cena, quando se ousa criar personagem nova, conserve-se
ela até o fim tal como surgiu de começo, fiel a si mesma.” Horácio, op. cit., p. 59. (As citações da poética antiga
provêm do volume A Poética Clássica, em que Roberto de Oliveira Brandão reuniu os textos de Aristóteles,
Horácio e Longino.)
23
“Em suma, o que quer que se faça seja, pelo menos, simples, uno.” Horácio, Arte Poética, p. 55. Ver também
Aristóteles, Poética, VIII, p. 28.
24
“The mere face painter, indeed, has little in common with the poet but, like the mere historian, copies what he
sees and minutely traces every feature and odd mark. It is otherwise with the men of invention and design.”
Shaftesbury, “Sensus Communis”, in Characteristics of Men, Manners, Opinions, Times (1711). In ECCE, p.
174.
25
Horácio, op. cit., p. 60.
26
Atkins, English Literary Criticism: 17
th
and 18
th
Centuries, pp. 11-12.
15
em tudo acarreta o risco da mediania, e nos grandes gênios, assim como na excessiva riqueza,
alguma coisa se há de negligenciar.
27
Essa idéia seria ecoada em muitos ensaios de autores
da época. Por isso é necessário que evitemos a associação não qualificada entre augustanos e
neoclassicismo. Mesmo na rara fase em que o ânimo naturalmente indômito dos ingleses se
deixou atrair pelo clássico, nenhum dos autores mais influentes acolheu a doutrina sem
restrições. Butler, Dryden, Addison, Pope, Johnson — todos os grandes nomes deixaram
pronunciamentos contra a servil obediência às regras. O autor que mais se destacou como
defensor da ortodoxia neoclássica, Thomas Rymer, acabou estigmatizado como exemplo do
mau crítico, sobretudo em razão de seus ataques a Shakespeare. No período que mais nos
interessa (o primeiro terço do século XVIII), o que havia era uma aceitação superficial da
doutrina de Boileau, Rapin e Le Bossu, com pouco interesse nas regras mais estritas.
Mantinham-se os princípios gerais (como o propósito moral da poesia e a imitação dos
antigos e suas formas) mas o julgamento de acordo com regras vinha dando lugar ao
julgamento de acordo com o gosto. “Em meio a contracorrentes conflitantes já havia um
despertar para a necessidade de algo mais que regras, a constatação de que o apelo poético
não se dirigia somente ao intelecto, mas também às emoções; e métodos de apreciação, em
oposição a métodos de composição, tornaram-se então a consideração principal.”
28
existiam, portanto, em forma embrionária as tendências estéticas que em meados do século
renovariam o interesse no medievalismo e em outras avenidas artísticas e seriam responsáveis
por rejeitar até mesmo a face menos restritiva do credo neoclássico. Um exemplo germinal é a
série de ensaios sobre os “prazeres da imaginação” publicados no Spectator por Addison —
autor que, com seu propósito de tirar a filosofia das universidades e levá-la para os cafés,
pode ser visto como uma ponte entre o alto mundo augustano e um outro mundo menos
polido e mais prosaico, a cuja expressão literária dedico o próximo capítulo
29
.
27
Longino, Do Sublime, XXXIII, 1-2. Esse tratado, composto na primeira metade do século I, é na verdade de
autoria incerta. Ele foi uma réplica a um tratado de Cecílio de Calacte em que este exaltava o valor da correção e
da pureza gramatical (o chamado aticismo). É, portanto, um manifesto nato contra a intransigência das normas.
28
“Amid conflicting cross-currents there was already an awakening to the need for something more than rules, a
realization that the poetic appeal was not to the intellect alone, but to the emotions as well; and methods of
appreciation, as distinct from methods of composition, became now the main consideration.” Atkins, op. cit.,
185.
29
Para os ensaios “On the pleasures of the imagination”, ver os números 411 a 421 do Spectator. A proposta de
popularização do conhecimento é feita no Spectator Nº 10.
16
1.2. Neoclassicismo e romance
Sir Fopling: (...) Tenho intrigas para contar-te, mais
agradáveis do que jamais leste num romance.
Harriet: Escreve-as, meu senhor, e apraz a nós
mulheres; nossa língua carece de tais estorietas.
Sir Fopling: Escrever, madame, é uma parte
mecânica do espírito; um cavalheiro jamais deve ir
além de uma canção ou um bilhete.
30
Sir George Etherege, The Man of Mode, IV, i
Conceitos abrangentes como Era Augustana ou neoclassicismo são decerto úteis, mas
não devemos perder de vista suas limitações. No capítulo anterior procurei discuti-las
brevemente e evitar a adoção estereotípica dos conceitos, sem entretanto pôr em dúvida o
fundo de verdade que eles contêm. No restante do texto usarei o termo “augustano” para
designar escritores cultos que pertenciam aos círculos da elite e seguiam uma versão diluída
do neoclassicismo. Por isso mesmo não o aplicarei a autores “excluídos” como John Dunton
ou mesmo Daniel Defoe
31
.
No início do século XVIII notamos duas mudanças importantes com relação ao
augustanismo da Restauração: a progressiva remoção dos nobres do rol de autores e a
decadência do patronato, sobretudo após 1714. Com o crescimento do mercado livreiro, a
prática profissional da literatura vai se assemelhando a um ofício como qualquer outro, sendo
aviltante para o nobre. Mais adiante isso seria fatal para os círculos palacianos, mas em
princípios do século a literatura continuava dominada por escritores cultos ligados às altas
esferas, e esses escritores se empenhavam em defender a hierarquia dos gêneros neoclássicos.
30
“Sir Fopling: I have intrigues to tell thee more pleasant than ever thou read’st in a novel.//Harriet: Write’em,
sir, and oblige us women; our language wants such little stories.//Sir Fopling: Writing, madam, ’s a mechanic
part of wit; a gentleman should never go beyond a song or a billet.” In Lawrence (ed.), Restoration Plays, p. 171.
31
É comum, contudo, encontrar Defoe listado entre os augustanos. Minha opção de estreitar a aplicação do
termo (feita também por J. Paul Hunter e outros) destina-se somente a dar maior clareza ao argumento.
17
A tragédia, a comédia e a ode são as formas privilegiadas, e a elas vêm somar-se outras
igualmente exigentes em bagagem clássica — como o poema herói-cômico e a “imitação” (a
reescritura de poemas antigos com ambientação moderna, como as imitações de Horácio
feitas por Pope ou as de Juvenal feitas por Johnson).
É hora então de nos perguntarmos: se os augustanos dominaram de tal forma a cena
literária da época, como se explica que tão poucos deles sejam lidos com freqüência pelo
público atual? A resposta tem menos a ver com questões elusivas de mérito artístico do que
com os imprevisíveis rumos da história da literatura. O prestígio que o romance granjeou a
partir do século XIX converteu a prosa de ficção na forma literária por excelência, e é natural
que os leitores de nosso tempo procurem nos séculos passados aquilo que mais se assemelhe
às preferências modernas. Um autor como Voltaire é mais lido por seus contos filosóficos do
que por sua obra poética e histórica, a que ele atribuía muito mais valor. Os títulos dos séculos
XVII e XVIII que costumam figurar hoje em dia em coleções populares são, quase que sem
exceções, narrativas ficcionais em prosa: O Progresso do Peregrino, Robinson Crusoé, As
Viagens de Gulliver, Tom Jones, A História de Rasselas, O Vigário de Wakefield e outros e
outros. Nos círculos augustanos, porém, prevalecia a poesia, esteio do neoclassicismo. Antes
de 1740, era muito raro que autores de formação clássica praticassem a prosa de ficção; e se o
fizessem, faziam-no em escritos de mão sinistra.
Uma das razões para a falta de prestígio dessa forma era a inexistência de um texto
autorizador proveniente da Antigüidade. Mesmo na Grécia antiga a prosa de ficção foi um
gênero tardio, e não recebeu a mesma atenção crítica que a épica, o drama e a poesia lírica. A
Poética de Aristóteles, cuja ênfase em características formais a punha numa posição
minoritária em meio à crítica antiga, foi tida não obstante como a autoridade suprema no
Renascimento, e seu silêncio sobre a prosa de ficção teve grandes conseqüências
32
. Como
vimos, os críticos italianos que acolheram o texto e preencheram-lhe as lacunas converteram
as descrições de Aristóteles em prescrições a serem observadas para a prática da real poesia,
que foi compartimentada em gêneros com sanção “aristotélica”. Quando um gênero não tinha
essa sanção nas fontes originais — a exemplo da comédia, cuja descrição mais extensa por
32
Daniel Javitch, “The Assimilation of Aristotle’s Poetics in sixteenth-century Italy”. In Glyn P. Norton (ed.).
The Renaissance, pp. 53-65.
18
Aristóteles possivelmente se perdeu —, autores como Robortello, Castelvetro ou Giraldi a
“deduziam” da Poética, aduzindo regras para a composição do gênero. (Desse debate é que
surgiram as três unidades da dramaturgia, cuja origem moderna era desconhecida por muitos
augustanos.) A dedução de regras, no entanto, se tornava mais difícil no caso de gêneros
desconhecidos na Antigüidade, como o romanzo e sobretudo a novella. O romanzo era a
princípio uma forma escrita em verso, e as discussões a seu respeito tinham como vórtice o
Orlando Furioso de Ariosto. O mundo heróico do Orlando acabaria transplantado para obras
compostas em prosa, e o enfoque cavalheiresco seria sucedido posteriormente pelo pastoral e
pelo histórico. A busca de aceitação para esse tipo de ficção resultou em tentativas de
preservar seu estatuto de poesia. O argumento era o de que um poema podia perfeitamente ser
escrito em prosa — idéia sustentada por autores da expressividade de Tasso (Discorsi del
poema eroico) e reformulada posteriormente por Fielding no prefácio de Joseph Andrews. A
consagração dos romances bizantinos, e sobretudo da Etiópica de Heliodoro, como grandes
poemas em prosa da Antigüidade proporcionou às narrativas romanescas uma genealogia
respeitável e uma fase de aceitação crítica, e não foi por acaso que Cervantes viu nos Trabajos
de Persiles y Sigismunda seu texto imortalizador. Na França (trajeto lógico da crítica italiana
rumo à Inglaterra), as pretensões do roman à posição de epopéia em prosa eram bem
conhecidas, e foram sustentadas num tratado seminal: a Lettre-traité sur l’origine des romans
(1670), do bispo Pierre-Daniel Huet. Huet afirmava que o roman, como uma espécie de épico,
devia observar as regras intrínsecas do gênero; ele conseguiu reconciliar a estrutura episódica
do roman com o requisito neoclássico de unidade, e sua idealização com o requisito de
verossimilhança. Seu tratado, que foi logo traduzido para o inglês
33
, contribuiu para justificar
o prestígio que a estória romanesca desfrutava no século XVII como a variedade de prosa de
ficção mais aceita nos meios aristocráticos
34
. Mas a composição do gênero romanesco na
Inglaterra foi escassa: o único exemplo de considerável destaque (se excetuarmos o
precedente de Sir Philip Sidney) foi a Parthenissa de Roger Boyle (1651-1656/1669). Em
geral o interesse dos leitores por esse tipo de ficção era satisfeito por traduções de autores
33
A Treatise of Romance and Their Originals (1672).
34
Cf. Lionel Stevenson, The English Novel. A Panorama, capítulo II.
19
franceses como Mlle. de Scudéry e La Calprenède
35
. Depois de 1670 mesmo a produção
francesa definhou, e entre os augustanos a forma não parece ter sido praticada. Eu, pelo
menos, não sei de nenhum caso.
Menos afortunado que o destino do romanzo foi o da novella italiana. Embora elogios
às virtudes poéticas da prosa de Boccaccio não fossem incomuns, a aproximação dessa forma
com os gêneros consagrados mostrou-se mais problemática. O tratamento crítico mais
organizado que a novella teve no Cinquecento, embora a julgasse em moldes aristotélicos, não
procurou reabilitá-la como forma artística
36
. Por retratar a experiência diária de pessoas
comuns em tons de ridículo, a novella não poderia recorrer à linguagem elevada da tragédia
ou da epopéia, o que dificultava sua classificação como poesia. Na França seiscentista a prosa
de ficção que retratava o quotidiano careceria igualmente de apreço crítico, não merecendo
grande atenção dos autores que reformularam o projeto literário de seu país, como Du Bellay
e Ronsard
37
. No século seguinte ela ganharia finalmente a atenção dos críticos, mas o
tratamento dado a gêneros como o roman comique e a nouvelle (mais fincados na realidade do
que as estórias romanescas) não procurava reconciliá-los com a poética clássica: eles eram
vistos como formas arrivistas, estranhas à província do neoclassicismo. Essa atitude se
transplantou para a Inglaterra seiscentista, onde o debate sobre a prosa de ficção, carente de
teorização nativa, era ainda dominado pelo pensamento francês.
Ora, na França a desavença entre os círculos letrados e a prosa de ficção ia além da falta
de precedentes antigos. Entravam em jogo questões de moralidade e verossimilhança. Durante
algum tempo a estória romanesca conseguiu atender a esses requisitos neoclássicos com seu
retrato idealizado de episódios históricos e figuras reais, como Ciro, o Grande
38
. Seus
35
Cf. Zuber e Cuénin, Le Classicisme, p. 151; Salzman, “Theories of prose fiction in England: 1558-1700”, In
Glyn P. Norton (ed.). The Renaissance, pp. 301-302; e Sutherland, English Literature of the Late Seventeenth
Century, pp. 202-3.
36
Trata-se das Lezione sopra il comporre delle novelle (1574), de Francesco Bonciani , texto que até o século
XVIII só foi lido em forma manuscrita por círculos restritos. Glyn P. Norton e Marga Cottino-Jones, “Theories
of prose fiction and poetics in Italy: novella and romanzo (1525-1596)”. In Glyn P. Norton (ed.). The
Renaissance, pp. 322-335.
37
Glyn P. Norton, “Theories of prose fiction in sixteenth-century France”. In Glyn P. Norton (ed.). The
Renaissance, pp. 305-313.
38
G. J. Mallinson, “Seventeenth-century theories of the novel in France”. In Glyn P. Norton (ed.). The
Renaissance, pp. 315-6.
20
defensores invocavam a distinção entre vrai (verdadeiro) e réel (real): o verdadeiro (donde
verossímil) se baseava numa recriação moralmente correta da história, ao passo que o real
deixava de lado a censura prévia e apresentava o mundo em forma bruta, sendo
intrinsecamente imoral
39
. O roman, com seus heróis e heroínas modelares (porém históricos),
conseguia ser a um só tempo verossímil e edificante. Mas essa solução não perdurou. O
artificialismo do mundo romanesco constituía um obstáculo para a validade das lições morais:
como esperar que um bon vivant se emendasse com exemplos tão afastados da vida comum?
A saída seria retificar o verdadeiro sem incorrer na indecência do real. Insinua-se aqui o
dilema característico da prosa de ficção francesa dessa época: os autores oscilavam entre um
idealismo tido por mentiroso e um realismo tido por imoral
40
.
Uma solução para o dilema foi oferecida pelo roman comique, forma que almejava os
mesmos fins morais que o grand roman sem omitir a realidade quotidiana. O Roman
Bourgeois (1666), de Furetière, será “bourgeois” a um só tempo por evitar a ficção
aristocrática e pôr na ribalta o mundo prosaico da burguesia. “Cumpre para isso que a
natureza das histórias e os caracteres das pessoas se apliquem de tal modo a nossos costumes
que creiamos reconhecer neles a gente que vemos todos os dias.”
41
Pintura da realidade? Sim,
mas com uma demão de escárnio. A esse respeito, Ronald Paulson observou:
O escritor do período que desejasse expressar a experiência comum da vida quotidiana, como
oposta ao alto mundo aristocrático do romanesco ou ao mundo religioso do combate espiritual,
tinha de recorrer, como modelos, à comédia ou à sátira. Ele não encontraria tal tipo de relato nos
gêneros trágico, épico ou romanesco, em que isso romperia as regras do decoro, bem como as
premissas do gênero; desde que Aristóteles fez a distinção de que a comédia lidava com uma
imitação do homem como inferior ao que é, e a tragédia do homem como superior ao que é,
39
English Showalter, “Prose fiction: France”. In Nisbet e Rawson (ed.). The Eighteenth Century, p. 219.
40
Pomeau e Ehrard, De Fénelon à Voltaire, p. 176. O principal estudo a esse respeito é o de Georges May, Le
Dilemme du roman au XVIII
e
siècle, ao qual infelizmente ainda não tive acesso.
41
“Il faut pour cela que la nature des histoires et les caractères des personnes soient tellement appliqués à nos
moeurs, que nous croyons y reconnaître les gens que nous voyons tous les jours.” Furetière, “Avertissement” de
Le Roman Bourgeois, p. 24.
21
poucos tentaram violá-la. O real era o baixo e o baixo era o cômico.
42
O retrato da vida quotidiana, visto como frívolo ou imoral, era justificado pelo argumento
típico dos comediógrafos: a exibição de vícios não seria degradante, desde que feita com
finalidades reformadoras. Os personagens desse tipo de narrativa — cujo pilar é a Histoire
Comique de Francion (1623), de Sorel — costumavam caracterizar-se por um hábito aviltante
que caberia à sátira condenar. O enfoque era portanto oposto ao do roman, cujos protagonistas
eram espelhos de virtude. No Roman Comique (1651) de Scarron vemos a confluência desses
dois mundos: os personagens de perfil romanesco, como Mademoiselle de L’Étoile e Le
Destin, são retratados com simpatia pelo narrador, ao passo que figuras mais realistas, como
Ragotin e La Rancune, são flagelados a cada página. Esse é um bom método para recomendar
a virtude e destratar o vício, mas ele impunha duras limitações ao realismo, sobretudo em
matéria de caracterização. Isso fica bastante visível num romance como Le Diable Boiteux
(1707), de Le Sage, em que o diabo manco Asmodeu levanta os telhados de Madri para que
Dom Cleofas possa testemunhar as intrigas domésticas de seus compatriotas. Essa visão
instantânea dos madrilenses — um “quadro dos costumes do século”
43
— dificulta em muito
o desenvolvimento psicológico. Os personagens tornam-se necessariamente unidimensionais.
Nos termos de Paulson, são personagens “legalistas” (definindo-se por uma dada ação), como
opostos aos personagens “orgânicos” do romance (que se desenvolvem no tempo e recebem
um tratamento mais empático)
44
. O que o roman comique fazia, na prática, era submeter a
realidade a um outro tipo de filtro, novo mas igualmente limitador.
É na tentativa de evitar tanto o idealismo do grand roman como o realismo
insatisfatório do roman comique que uma outra forma surge em meados do século: a nouvelle.
42
“The writer of the period who wished to express the ordinary experience of day-to-day life, as opposed to the
high aristocratic world of romance or the religious world of spiritual combat, had to go for his models to comedy
or satire. He could not find such an account in the tragic, epic, or romantic genres, where it would have broken
the rules of decorum as well as the assumptions of the genre; once Aristotle had made the distinction that
comedy dealt with an imitation of man as less than he is and tragedy with man as more than he is, few attempted
to violate it. The real was the low and the low was the comic.” Paulson, Satire and the novel in eighteenth-
century England, p. 14.
43
Le Sage, Le Diable Boiteux, p. 272. O livro é uma adaptação de El Diablo Cojuelo, de Velez de Guevara
(1641).
44
Paulson, op. cit., p. 3.
22
Em suas Nouvelles françoises (1656), Segrais professará a intenção de “expor as imagens das
coisas como ordinariamente as vemos ocorrer”
45
. A obra-prima do gênero — A Princesa de
Clèves (1678), de Madame de Lafayette —, apesar do ambiente palaciano, se destacará pela
verossimilhança e pela complexidade psicológica, distando em muito do universo exaltado do
roman. O problema é que, com a tentativa da nouvelle de emular mais fielmente a história, a
censura romanesca sai de cena e materiais vistos anteriormente como perniciosos voltam ao
escopo dos escritores. Mesmo a relativamente correta Princesa de Clèves se tornou objeto de
acalorada discussão crítica, prenunciando a grande polêmica moralista da década de 1730.
Todos os três gêneros acima ganharam circulação na Inglaterra em traduções ou
imitações, promovendo entre os ingleses o mesmo debate que já fremia na França. Os pecados
da inverossimilhança ou da imoralidade seriam apontados com igual afinco e iguais furores. O
grand roman, como vimos, perdeu o apreço dos autores pouco depois da Restauração, mas
manteve-se caro aos leitores, que com o tempo seriam censurados em razão de seu gosto pelo
maravilhoso. O roman comique não exerceria grande influência na Inglaterra até que autores
sofisticados como Fielding e Smollett aproveitassem sua mistura entre sátira e realismo. Essa
forma, que com sua ótica intelectualista era mais condizente com as inclinações augustanas,
pecava porém por sua estrutura episódica, ofensiva ao requisito neoclássico de unidade
46
. A
nouvelle, com seu realismo sem decoro, seria a mais ofensiva das formas: muito imitada na
Inglaterra em fins do século XVII, ela seria alvo da maioria das acusações de imoralidade, já
que seus temas usuais eram intrigas de amor e galanteria, dificilmente justificadas pelas
breves sabatinas morais ao final. Caracteristicamente, uma figura comum na literatura inglesa
do século XVIII seria a jovem desencaminhada por esse tipo de leitura
47
. Ademais, a
associação da prosa de ficção com o escândalo, a calúnia, a corrupção, a alienação ou a mera
irrelevância só se reforçava com a corrência de gêneros como as histórias secretas, as
memórias, as falsas cartas de amor, as biografias de criminosos e os relatos de viagens a terras
fantásticas. Uma prática comum a várias dessas formas era a pretensão à absoluta veracidade,
45
“donner les images des choses comme d’ordinaire nous les voyons arriver”. Citado por English Showalter, op.
cit., p. 210.
46
Segundo Aristóteles: “Das fábulas e ações simples, as episódicas são as mais fracas”, Poética, IX, p. 29.
47
Alguns exemplos são Manley, The New Atalantis, I, p. 83; Smollett, Roderick Random, XXII, p. 119;
Mackenzie, The Man of Feeling, XXVIII, p. 42; e Sheridan, The Rivals, I, ii.
23
ofensiva à separação aristotélica entre história e poesia. (Sobre isso terei mais a dizer na Parte
II.) E havia um último problema, que não se configurara de todo nos três gêneros franceses: a
mistura de estilos. Horácio condenara expressamente o tratamento sério de temas baixos
48
, e
era isso o que vinha caracterizando boa parte da prosa de ficção na virada do século XVII.
Some-se esse último pecado aos anteriores, e a conclusão será esta: num ambiente em que a
boa literatura era julgada (ainda que liberalmente) segundo critérios neoclássicos, a prosa de
ficção só poderia ser uma forma marginal, desdenhada por literatos ciosos de sua reputação.
O último problema que mencionei (a mistura de estilos) merece uma consideração final.
É interessante notar que o poema herói-cômico — forma de MacFlecknoe e The Rape of the
Lock, obras centrais da poesia augustana — cometia igualmente esse pecado. Haveria algo
que tornasse a violação especialmente perniciosa no caso da prosa de ficção realista? Sem
dúvida. Como já vimos, até essa época era incomum que as classes inferiores figurassem na
literatura sem um viés depreciativo. Algumas exceções inglesas eram as obras de Thomas
Deloney, que procuravam exaltar os artesãos e cujo principal personagem, “cujas terras são
seus teares”
49
, desdenha um título de fidalguia que lhe oferece Henrique VIII; e The
Shoemaker’s Holiday (1599), de Thomas Dekker, comédia cujo protagonista, filho de um
sapateiro, trazia como divisa “Não sou nenhum príncipe, mas nasci principescamente”
50
. Em
ambos os casos está implícito um conceito de respeitabilidade independente do sangue ou do
status nobiliárquico. Isso também transparece em tragédias domésticas elisabetanas como A
Woman Killed with Kindness (1603), de Thomas Heywood, e a anônima Arden of Faversham
(1587-92), que se encerra com uma justificação de sua crueza: “Porquanto a simples verdade
é assaz graciosa / E dispensa outros toques de lustrosa matéria”
51
. O que vemos neste caso é o
vínculo entre a vida diária e a seriedade trágica (o assunto de Auerbach) e a equiparação
48
“A um tema cômico repugna ser desenvolvido em versos trágicos.” Arte Poética, p. 57.
49
(…) “whose lands are his looms”. Jack of Newbury, 2. In Paul Salzman (ed.), An Anthology of Elizabethan
Prose Fiction, p. 339.
50
“Prince am I none, yet am I princely born.” The Shoemaker’s Holiday, III, iv. In Dunn (ed.), Eight Famous
Elizabethan Plays, p. 94. A peça de Dekker foi baseada em The Gentle Craft, de Deloney. Simon Eyre fora um
negociante de tecidos que se elegera prefeito de Londres em 1419 (ou 1446).
51
“For simple truth is gracious enough, / And needs no other points of glozing stuff.” Arden of Faversham,
Epílogo, p. 103.
24
implícita dos problemas do sangue plebeu aos do sangue azul. A mistura de estilos, como já
podemos notar nesses exemplos remotos, não era um simples dilema estético. Quando
envolvesse a elevação do homem comum a objeto de tratamento sério, ela era socialmente
perniciosa. E se tornaria mais freqüente com o passar do tempo. Seu ápice seria a Clarissa
(1747-8) de Richardson, mas a tendência já se fazia visível em textos como The History of the
Nun (1689), de Aphra Behn, e a coletânea Delightful Novels Exemplified in Eight Choice and
Elegant Histories (1686). No primeiro terço do século XVIII ela teria em Daniel Defoe um
destacado cultor, em cujas obras o marinheiro, o soldado raso, a ladra e o mercador
assumiriam o centro do palco, com dignidade não inferior à de um duque ou marquês. O
próximo capítulo tratará mais extensamente das implicações socioeconômicas do novo
gênero, tomando como ponto de partida a distinção entre romance e romanesco.
25
1.3. Romance e sociedade
Um dos poucos augustanos a deixar atrás de si um espécime bem acabado de prosa de
ficção foi o dramaturgo William Congreve, que antes de enveredar pelo teatro compôs
Incognita; Or, Love and Duty Reconciled; A Novel, publicando-a sob pseudônimo em 1692.
Semelhante em muitos sentidos a uma comédia da Restauração em forma narrativa, a obra é
mais conhecida hoje por seu “Prefácio ao leitor”, em que Congreve esboça uma distinção
precoce entre novel e romance. Sua idéia de novel é ainda influenciada pela nouvelle francesa,
mas os termos do prefácio são sugestivos:
Estórias romanescas [romances] consistem geralmente nos amores constantes e coragens
invencíveis de heróis, heroínas, reis e rainhas, mortais de primeira grandeza e assim por diante.
Nelas a linguagem exaltada, incidentes milagrosos e feitos impossíveis deslumbram e
surpreendem o leitor em irrefletido deleite (...) Romances [novels] são de natureza mais
familiar; aproximam-se mais de nós, representando intrigas na prática. Deleitam-nos com
incidentes e eventos singulares, mas não a ponto de serem totalmente incomuns ou inauditos —
eventos de tal natureza que, por não distarem do crível, tornam o prazer igualmente mais
próximo.
52
Essa tentativa de definição dos termos, que não sanará a ambigüidade persistente no século
XVIII, prefigura pronunciamentos futuros como o de Horace Walpole
53
e especialmente o de
Clara Reeve, em The Progress of Romance (1785):
52
“Romances are generally composed of the constant loves and invincible courages of heroes, heroines, kings
and queens, mortals of the first rank, and so forth; where lofty language, miraculous contingencies and
impossible performances elevate and surprise the reader into a giddy delight (...) Novels are of a more familiar
nature; come near us, and represent to us intrigues in practice; delight us with accidents and odd events, but not
such as are wholly unusual or unprecedented — such which, not being so distant from our belief, bring also the
pleasure nearer us.” Incognita, “Preface to the reader”. In Salzman (ed.), An Anthology of Seventeenth-Century
Fiction, p. 474.
53
Cf. o prefácio à segunda edição de The Castle of Otranto (1764).
26
O romance é um retrato da vida real e seus modos, e dos tempos em que ele é escrito. O
romanesco, em linguagem altiva e elevada, descreve o que nunca ocorreu nem provavelmente
ocorrerá. O romance faz um relato familiar daquelas coisas que transcorrem todos os dias diante
de nossos olhos, que podem ocorrer a nosso amigo ou a nós mesmos; e sua perfeição está em
representar cada cena de modo tão simples e natural, e fazer com que elas pareçam tão
prováveis, que nos deixemos persuadir (ao menos enquanto lemos) de que tudo é real, a ponto
de sermos afetados pelas alegrias ou angústias das pessoas na estória, qual fossem as nossas
próprias.
54
A prática de definir o romance por oposição ao romanesco tornou mais visível a
transição que vinha sofrendo a prosa de ficção inglesa nos tempos de Congreve. Para isso
contribuiu a estabilização taxonômica em fins do século XVIII, facilitada pela arte
assumidamente romanesca dos escritores góticos. Na França, por exemplo, o termo roman,
após um período de rejeição
55
, voltaria a vigorar com um sentido absolutamente diverso do
seiscentista, e como resultado a mudança genérica seria menos visível, embora igualmente
real. Em The Progress of Romance a distinção entre os gêneros já é exposta com suficiente
nitidez, e a fórmula de Clara Reeve se tornaria canônica, ressurgindo em versões mais
recentes. Lennard Davis, por exemplo, enumera nove diferenças fundamentais entre
romanesco e romance, como as de ambientação antiga ou recente, tratamento idealizado ou
realista e profissão de ficção ou veracidade. Especialmente interessante é a quarta distinção de
Davis: “O romanesco retrata a vida da aristocracia e destina-se a um leitor de alta classe; o
romance tende a ser mais classe média em escopo e volta-se a um público menos
54
“The Novel is a picture of real life and manners, and of the times in which it is written. The Romance in lofty
and elevated language, describes what never happened nor is likely to happen. The Novel gives a familiar
relation of such things, as pass every day before our eyes, such as may happen to our friend, or to ourselves; and
the perfection of it, is to represent every scene, in so easy and natural a manner, and to make them appear so
probable, as to deceive us into a persuasion (at least while we are reading) that all is real, until we are affected by
the joys or distresses, of the persons in the story, as if they were our own.” Citado por Paulson, op. cit., p. 12.
55
De 900 narrativas em prosa publicadas na França entre 1700 e 1750, somente cerca de meia dúzia assumiram a
classificação como roman. Pomeau e Ehrard, op. cit., p. 176.
27
aristocrático”
56
. A idéia aparece mais amplamente em Arnold Kettle, que classifica o
romanesco (excluída sua variedade em verso) como
a literatura não realista e aristocrática do feudalismo. Ela era não realista no sentido de que seu
propósito subjacente não era ajudar as pessoas a lidar de maneira positiva com o ofício de viver,
e sim transportá-las a um mundo diferente, idealizado, melhor que o delas. Era aristocrática
porque as atitudes que expressava e recomendava eram precisamente as atitudes que a classe
governante desejava incentivar (muitas vezes inconscientemente, sem dúvida) para que sua
posição privilegiada pudesse ser perpetuada.
57
Já o romance, para Kettle, é o gênero em que a burguesia replica ao universo romanesco da
aristocracia:
Para o burguês, como vimos, a sociedade feudal não era satisfatória, mas frustrante. E ele não
sentia impulsos de defender essa sociedade, e tampouco simpatia por uma literatura destinada a
recomendar seus valores e ocultar suas limitações. Pelo contrário, suas necessidades e instintos
o exortavam a expor e solapar as normas e convenções feudais. Diversamente da classe
governante feudal, ele não se sentia imediatamente ameaçado por revelações da verdade sobre o
mundo, e por isso não tinha medo do realismo.
58
56
O estudo de Davis procura a origem do romance no discurso a que ele chamou news/novel — ou “narrativa em
prosa impressa” (p. 44) —, cujo desmembramento faz surgir de um lado a história e o jornalismo, e de outro o
romance. A tese é de considerável interesse, mas parece-me demasiado restritiva. Eis o original: “The romance
depicts the life of the aristocracy and it designed for an upper-class reader; the novel tends to be more middle
class in scope and is geared to a slightly less aristocratic readership.” Davis, Factual Fictions: The Origins of the
English Novel, p. 40.
57
“Romance was the non-realistic, aristocratic literature of feudalism. It was non-realistic in the sense that its
underlying purpose was not to help people cope in a positive way with the business of living but to transport
them to a world different, idealized, nicer than their own. It was aristocratic because the attitudes it expressed
and recommended were precisely the attitudes the ruling class wished (no doubt usually unconsciously) to
encourage in order that their privileged position might be perpetuated.” Kettle, An Introduction to the English
Novel, V. 1, p. 31.
58
“To the bourgeois man, as we have seen, feudal society was not satisfying but frustrating. And he felt no
impulse to defend that society and no sympathy with a literature designed to recommend its values and conceal
its limitations. On the contrary his every need and instinct urged him to expose and undermine feudal standards
and sanctities. Unlike the feudal ruling class he did not feel himself immediately threatened by revelations of the
truth about the world and so he was not afraid of realism.” Kettle, op. cit., p. 38.
28
Aos dois modelos de prosa de ficção, portanto, correspondem dois universos distintos
de produção e consumo da literatura. A oposição usual entre romanesco e romance (haja ou
não descendência direta entre ambos) traz em seu bojo a oposição entre duas realidades
sociais distintas, de modo que a transição dos gêneros literários vincula-se necessariamente a
transformações socioeconômicas. É essa a premissa básica do já clássico A Ascensão do
Romance, de Ian Watt, publicado originalmente em 1957. O propósito de Watt foi diferenciar
o romance das formas anteriores de ficção em prosa — como o romanesco e a picaresca — e
apresentar as razões para que tais diferenças se produzissem na Inglaterra do século XVIII. O
que distinguiria a obra de autores como Defoe e Richardson era
a premissa, ou convenção básica, de que o romance constitui um relato completo e autêntico da
experiência humana e, portanto, tem a obrigação de fornecer ao leitor detalhes da história como
a individualidade dos agentes envolvidos, os particulares das épocas e locais de suas ações —
detalhes que são apresentados através de um emprego da linguagem muito mais referencial do
que é comum em outras formas literárias.
59
A expressão narrativa dessa premissa é o “realismo formal”, caracterizado pela rejeição dos
enredos tradicionais, pela apresentação de pessoas e circunstâncias específicas, pela
individualização dos personagens, por maior precisão no tratamento de tempo e espaço, e pela
linguagem referencial. Cada uma dessas características formais vinculava-se a tendências
filosóficas e processos sociais concomitantes. Entre as primeiras, Watt enfatiza sobretudo as
investigações de Locke sobre o conhecimento humano, que despertaram grande atenção para
problemas ligados ao individualismo. Entre as últimas, ele destaca o aumento da alfabetização
e a conseqüente consolidação de um novo público leitor; a progressiva importância de
capitalistas e comerciantes; e a secularização da sociedade.
60
O resultado é um elo simbiótico
entre a ascensão do romance e a mentalidade de classe média, entre forma literária e processo
social. A influência dessa tese deu grande alento aos estudos historicistas da gênese do
59
Watt, A Ascensão do Romance, p. 31.
60
Idem, capítulos 2 e 3.
29
romance, e desde então tornou-se difícil escrever sobre o assunto sem mencionar o precedente
de Watt. O conceito de realismo formal seria objeto de críticas e reformulações por parte de
teóricos posteriores, mas a relação entre literatura e sociedade manteve-se uma premissa
comum desse campo. Isso se evidencia em dois estudos recentes de grande fôlego, que partem
de Watt mas reformulam seu argumento: The Origins of the English Novel—1660-1740
(1988), de Michael McKeon, e Before Novels: The Cultural Contexts of Eighteenth-Century
Fiction (1990), de J. Paul Hunter. São dois estudos fundamentais para meu exame de
Gulliver, e merecem seções à parte.
1.3.1. McKeon
McKeon critica em Watt a diferenciação categórica entre romanesco e romance, já que
o romance do século XVIII preservava elementos romanescos e traços da ideologia
aristocrática. Ele também aponta a falta de evidências de que o espírito de classe média e o
individualismo moderno surgiram na época em que, segundo Watt, o romance ascendeu. O
objetivo de McKeon é justificar a complexidade do gênero em sua fase de formação e
reformular o vínculo entre a ascensão do romance e a da classe média. O ponto de partida é a
idéia de que o romance, como gênero, constitui uma abstração simples, “uma categoria
enganosamente monolítica que encerra um complexo processo histórico”
61
— categoria que
só pode ser formulada depois de uma longa preexistência. É essa preexistência que interessa a
McKeon. Ele retrocede da rivalidade crucial entre Richardson e Fielding (momento em que o
romance atinge sua identidade canônica) e se concentra no período entre 1600 e 1740.
Essa é uma época marcada pela instabilidade em categorias genéricas e sociais — pela
incerteza sobre como dizer a verdade nas narrativas e estimar a virtude dos indivíduos. Até o
fim do século XVI, verdade e virtude eram determinadas univocamente pela idéia de
linhagem, que pressupunha a veracidade dos textos por sua filiação à tradição e a virtude dos
indivíduos por sua ancestralidade genealógica. No século XVII, o prestígio da linhagem foi
abalado nos dois campos. A nova filosofia havia desacreditado as antigas autoridades, de
modo que invocá-las não era visto como garantia de verdade. E com a dissolução do conceito
de honra e a concessão abusiva de títulos nobiliárquicos sob os Stuarts, o status não era visto
61
McKeon, The Origins of the English Novel, p. 20.
30
como garantia de virtude. Deixou por conseguinte de haver um princípio que atendesse
simultaneamente a problemas epistemológicos e sociais, e eles acabaram se cindindo em
campos distintos, qual fossem questões sem relação mútua.
A instabilidade das categorias genéricas registra uma crise epistemológica, uma acentuada
transição cultural nas atitudes sobre como dizer a verdade na narrativa. Por conveniência,
chamarei ao conjunto de problemas associados com essa crise epistemológica “questões de
verdade”. A instabilidade das categorias sociais registra uma crise cultural nas atitudes sobre
como a ordem social externa se relaciona ao estado moral interno de seus membros. Por
conveniência, chamarei ao conjunto de problemas associados com esta crise social e ética
“questões de virtude”.
62
As origens do romance, para McKeon, consistem “no estabelecimento de uma forma
suficiente para a investigação simultânea de problemas epistemológicos e sociais análogos”
63
.
Em outras palavras, o romance vem resgatar o vínculo entre questões de verdade e questões
de virtude, o qual se desfizera com a obsolescência da idéia de linhagem. No período 1600-
1740 esses dois conjuntos de questões foram tratados a princípio como pertencentes a
universos estanques; com o tempo e com muita experimentação os escritores finalmente se
deram conta da analogia existente entre os dois universos.
Inicialmente, os conflitos paralelos decorrentes da crise epistemológica e da crise social
geram soluções autônomas para as questões de verdade e de virtude. No primeiro caso,
surgem novos modos de dizer a verdade na narrativa; no segundo, novos critérios para avaliar
a virtude íntima dos indivíduos. Tanto em um como em outro caso, a solução proposta não é
única. O que ocorre é uma dupla negação: a postura original A é negada por uma postura B, e
esta, por sua vez, é negada por uma postura C, que retoma ligeiramente os valores de A
64
.
62
“The instability of generic categories registers an epistemological crisis, a major cultural transition in attitudes
toward how to tell the truth in narrative. For convenience, I will call the set of problems associated with this
epistemological crisis ‘questions of truth.’ The instability of social categories registers a cultural crisis in
attitudes toward how the external social order is related to the internal, moral state of its members. For
convenience, I will call the set of problems associated with this social and ethical crisis ‘questions of virtue.’”
Idem, p. 20.
63
Ibidem, p. 410.
64
O esquema ABC não está em McKeon. Emprego-o para facilitar a explicação.
31
Em questões de verdade, a postura A é o que McKeon chama de “idealismo
romanesco”, que afirma a veracidade dos textos pelo recurso à tradição e às antigas
autoridades. A postura B, denominada “empirismo simplório”, refuta os princípios do
idealismo romanesco, denunciando as invenções da tradição e preferindo emular a história.
Surgem daí as afirmações de que narrativas ficcionais são a exposição de fatos absolutamente
reais — um meio de convencer os leitores de que a obra diz a verdade. A postura C, chamada
de “ceticismo extremo”, ataca a falsa historicidade dos empiristas e defende a busca não de
simulacros históricos, e sim da verossimilhança. As narrativas podem assumir-se ficcionais e
continuar dizendo a verdade, desde que tratem de questões ligadas à realidade. Ao adotar uma
crítica menos entusiástica, o ceticismo extremo fatalmente retoma algumas das características
do idealismo romanesco, sem deixar contudo de refutá-lo. Isso o situa a meio caminho entre
as duas outras posturas.
Em questões de virtude, a postura A é o que McKeon chama de “ideologia
aristocrática”, que defende a virtude de nascença e a respeitabilidade como acessório do
status. A postura B, denominada “ideologia progressista”, refuta a ideologia aristocrática em
prol da meritocracia, sustentando que a virtude não é apanágio do berço e deve ser medida de
acordo com o sucesso pessoal do indivíduo. Ocorre aqui o avanço da classe (respeitabilidade
socioeconômica) sobre o terreno do status (respeitabilidade de nascimento, ou honorífica). A
postura C, chamada de “ideologia conservadora”, acusa a ideologia progressista de
simplesmente substituir o nascimento pelo dinheiro, a medida mais comum do sucesso — e
por conseguinte do “mérito” — individual. Para os conservadores, o status costuma, sim,
proporcionar virtude, não pelo berço nobre, e sim pela educação esmerada que ele
proporciona a seus membros — educação de que os novos-ricos careciam. Ao adotar uma
crítica menos entusiástica, a ideologia conservadora fatalmente retoma algumas das
características da ideologia aristocrática, sem deixar contudo de refutá-la. Isso a situa a meio
caminho entre as duas outras posturas.
Essa breve exposição basta para sugerir a simetria existente entre questões de verdade e
questões de virtude. Um diagrama pode deixá-la mais clara.
32
Questões de Verdade Questões de Virtude
A
Idealismo romanesco Ideologia aristocrática
B
Empirismo simplório Ideologia progressista
C
Ceticismo extremo Ideologia conservadora
As duas colunas se espelham: a filiação ao empirismo simplório tende a acompanhar a
filiação à ideologia progressista, e o mesmo vale para as outras posturas. “No contexto da
primitiva narrativa moderna, escolhas epistemológicas têm relevância ideológica, e uma dada
explicação do significado da mobilidade social provavelmente implicará um certo
procedimento e compromisso epistemológico.”
65
Com o tempo, os escritores se deram conta
disso e perceberam que dificuldades relativas a questões de verdade podiam ser iluminadas
por reflexões sobre questões de virtude. A investigação simultânea desses dois campos passou
a ser empreendida tanto pela postura B como pela postura C. O romance assume sua
identidade “quando a confluência passa a ser feita com tal mestria que o conflito entre
empirismo simplório e ceticismo extremo, entre as ideologias progressista e conservadora,
pode ser incorporado numa controvérsia pública entre escritores que empregam
consabidamente métodos antitéticos para escrever o que se reconhece ainda assim como a
mesma espécie de narrativa”
66
. A cisão entre verdade e virtude volta a se fechar, e o romance
é seu elemento mediador.
É assim que McKeon procura resolver os problemas que apontara em Watt. A
permanência de elementos romanescos no século XVIII deve-se ao fato de que o ceticismo
extremo retoma certas características do idealismo romanesco, como a aceitação da
ficcionalidade. E a analogia entre problemas epistemológicos e socioéticos resgata e sofistica
a relação entre a ascensão do romance e a da classe média, pois esta é igualmente uma
abstração simples “cujas origens modernas mascaram uma considerável preexistência”
67
. O
espírito de classe média está por trás da crítica à tradição empreendida pela postura B, mas
65
Ibidem, p. 266.
66
“(…)when the conflation comes to be made with such mastery that the conflitct between naive empiricism and
extreme skepticism, between progressive and conservative ideologies, can be embodied in a public controversy
between writers who are understood to employ antithetical methods of writing what is nonetheless recognized as
the same species of narrative.” Ibidem, p. 266.
67
Ibidem, p. 22.
33
com o advento da postura C a ascensão do romance passa a incluir também autores
conservadores vinculados à aristocracia e amiúde avessos a esse espírito.
1.3.2. Hunter
Ao descartar o realismo formal e sugerir como denominador comum do romance a
analogia entre problemas epistemológicos e socioéticos, McKeon estabelece a continuidade
entre romanesco e romance e alarga o leque de obras que participaram das origens do gênero.
J. Paul Hunter será ainda mais eclético na variedade de obras estudadas, mas divergirá de
McKeon quanto à genealogia comum de romance e romanesco. “Se o romance precisa ser
diferenciado do romanesco, e se surgiu para proporcionar, na prática, uma alternativa ao
romanesco, não se segue necessariamente que ele descendeu do romanesco.”
68
Os propósitos
de Hunter, expostos extensamente na página xix de seu livro, incluem oferecer uma descrição
operacional do romance; reafirmar sua condição de gênero novo; incluir em seu processo de
formação autores não canônicos e até mesmo obras não ficcionais; evitar a idéia de romance
fundador
69
; e “mostrar como os leitores conquistam o poder de criar textos comunicando,
embora não necessariamente de modo consciente ou direto, suas necessidades e desejos
àqueles em condições de produzir livros”
70
. Com tudo isso ele pretende situar o romance
emergente no contexto mais amplo da história cultural, avaliando a influência, em sua
formação, de jornais, guias de conduta, materiais didáticos, elementos da cultura oral e outras
fontes.
Para definir aquilo cujas origens está buscando, Hunter elabora uma ampla descrição do
romance, retomando elementos do realismo formal de Watt mas complementando-os com
uma série de outras características. Estas se dividem em dois grupos: as comumente aceitas
pela crítica e as mais polêmicas ou menos comentadas. As primeiras são: contemporaneidade;
credibilidade e probabilidade; familiaridade (existência quotidiana e personagens comuns);
rejeição de enredos tradicionais; linguagem liberta da tradição; individualismo e
68
“If the novel needs to be distinguished from romance, and if the novel came to provide, in effect, an alternative
to romance, it does not necessarily follow that the novel descended from romance.” J. Paul Hunter, Before
Novels: The Cultural Contexts of Eighteenth-Century Fiction, p. 28.
69
Nisso ele coincide com McKeon. Ver The Origins of the English Novel, p. 267.
70
“show how readers gain the power to create texts by communicating, though not necessarily consciously or
directly, their needs and desires to those in a position to make books”. Hunter, op. cit., p. xix.
34
subjetividade; empatia e vicariedade; coerência e unidade de concepção; inclusividade,
digressividade e fragmentação; e autoconsciência quanto à inovação e à novidade. As
características do último grupo, que a crítica costuma evitar por serem comprometedoras para
a visão estável do gênero, mas que aparecem nele com freqüência, são o maravilhoso; o tabu;
a vida privada; o teor individualista; a mediação com o público; a epistemologia; as estórias
internas; as interpolações discursivas; e o tom didático
71
. Para Hunter, essa descrição
operacional, que não procura ser uma definição essencialista do gênero, deve ser levada em
conta em qualquer teoria de origens que pretenda fazer jus à complexidade do romance em
seus primórdios. O problema que se impõe, então, é o seguinte: de que maneira essas
características ganharam forma e convergiram num novo gênero literário significativo e
duradouro? Hunter procura retratar esse processo recriando a consciência cultural dos leitores
da época e explorando outras espécies de escritos em que tais características vinham se
formando gradualmente, em resposta aos interesses e desejos do novo público — escritos que
constituem fontes negligenciadas da origem do romance.
Na linha de Ian Watt, Hunter reapresenta com cifras atualizadas o fenômeno do
crescimento do público leitor nos séculos XVII e XVIII. Segundo estimativas recentes, 25%
dos homens adultos na Inglaterra sabiam ler em 1600; e entre 70% e 80% em 1800. Em 1675
entre dois terços e três quartos da evolução já haviam ocorrido. Uma vez que as altas camadas
já eram alfabetizadas, esses novos leitores encontravam-se em maioria na classe média
72
, e
vinham proporcionar uma audiência para formas literárias com pouca penetração nos
corredores da elite. Os diferentes desejos desse público — e por “desejo” Hunter entende um
fenômeno cultural e comunal, e não apenas um aspecto da psicologia individual
73
— norteiam
os rumos da escrita. Autores com inclinações inovadoras se empenharam em sondar as
expectativas dos leitores e deixaram que elas influíssem em sua produção literária. Boa parte
dos novos leitores, por exemplo, eram jovens provindos do campo para mudar de vida após
gerações de existência rural, ou filhos alfabetizados de pais analfabetos. Entre os fatores que
determinavam seus desejos estavam a perda dos elos afetivos da vida do campo, o
71
Muitas dessas características pediriam elucidações inevitavelmente longas. Sugiro ao leitor interessado que as
consulte na fonte; ver p. 30 e seguintes.
72
Idem, p. 66.
73
Idem, p. xix.
35
desaparecimento dos contos de fadas e o rompimento com o passado tradicional
74
. Em sua
busca por desvendar o mundo das pessoas adultas e saber como agir frente às expectativas
sociais, eles recorriam a uma variedade de formas literárias de conteúdo orientador — guias
de conduta, retóricas didáticas, livros de providência e finalmente romances
75
. Em outra parte,
Hunter observa:
Muitos leitores de romances eram decerto jovens; a maioria dos romances era sobre jovens
prestes a tomar decisões importantes na vida sobre a carreira, o amor ou ambos, e parecia
voltada a leitores em situações similares. (...) [O]s romances se tornaram, para dezenas de
milhares de rapazes e moças na Inglaterra setecentista, guias para muitas decisões práticas na
vida, equivalentes das estórias familiares e da tradição oral em gerações anteriores, e de filmes e
livros de auto-ajuda em gerações posteriores.
76
Como resultado das novas tendências, Hunter identifica duas ondas de inovação
literária, em 1690 e em 1740. “O movimento da virada do século não legou muito coisa de
mérito duradouro, embora a maioria das obras literárias celebradas do início do século XVIII
tenha sido escrita em reação a ele.”
77
O contra-ataque augustano e a falta de concepção, por
parte dos inovadores, de como devia ser uma nova literatura, minimizaram os efeitos dessa
onda. A segunda onda, mais decisiva, é a que inclui Fielding e Richardson. Entre ambas,
surgiram quatro tipos de textos em que as características do romance se fermentariam: textos
jornalísticos, com sua preocupação com eventos correntes; textos didáticos, com sua ênfase
no aconselhamento; escritos privados e pessoais, em que os autores se empenhavam em
estabelecer a integridade das vidas individuais; e narrativas em perspectiva destinadas a tornar
74
Ibidem, p. 161.
75
Ibidem, p. 92.
76
“Certainly many readers of novels were young; most novels were about young people on the verge of making
important life decisions about love or career or both, and most seem aimed at readers in similar situations (...)
[N]ovels became, for tens of thousands of young men and woman in eighteenth-century England, guides to many
practical decisions about life, the equivalent of family stories and oral tradition in earlier generations and os self-
help books and films in later ones.” J. Paul Hunter, “The Novel and Social/Cultural History”. In CCEN, p. 20.
77
“Not much of enduring merit came from the turn-of-the-century claim, although most of the celebrated literary
works of the early eighteenth century were written in reaction to it.” Hunter, Before Novels, p. 11.
36
coerentes eventos ou fatos aparentemente sem sentido
78
. Os quatro tipos se manifestavam na
forma de tratados religiosos, poemas, peças, panfletos, narrativas curtas e longas, antologias,
coletâneas e periódicos. Os romancistas, embora não tenham desenvolvido sua arte pela mera
reunião das características dessas formas, escreviam para um público que havia encontrado
nelas seu primeiro material de leitura
79
. Eles respondiam, portanto, a um contexto cultural
determinado por mudanças socioeconômicas e dominado por textos não necessariamente
literários. Hunter dedica um espaço considerável a explorar a relevância de algumas dessas
formas — os diários pessoais, as autobiografias, a história, a biografia e os relatos de viagens
— para a consolidação das características enumeradas em sua descrição operacional.
O contexto cultural incluía decerto a literatura polida, a que muitos dos novos escritores
tentavam se alçar. Mas os augustanos se opuseram às expectativas do grande público, vendo
nelas, com justiça, uma ameaça aos valores tradicionais em termos literários e sociais.
Rejeitando a oportunidade que o novo mercado apresentava, autores como Dryden e Pope
atacaram com virulência os escritores do submundo — que, para Hunter, representavam o
futuro literário.
É entre esses excluídos que uma nova concepção, conducente a novas formas, pode se
desenvolver. Nem sempre é fácil defender as realizações de gente como Flecknoe, Wotton ou
Theobald (embora uma amostra bastante boa da inovação moderna possa ser reunida em
Shadwell, Dunton, Defoe, Haywood e Cibber), mas eles estavam ajudando a definir direções
que representariam uma nova sensibilidade para a nova era, e que significariam em última
instância um espaço para os romances.
80
_____
78
Idem, p. 86.
79
Ibidem, p. 217.
80
“It is among these outcasts that a new outlook, conducive to new forms, can develop. It is not always easy to
defend the accomplishment of the likes of Flecknoe, Wotton, or Theobald (although a pretty good representation
of modern novelty might he assembled from Shadwell, Dunton, Defoe, Haywood, and Cibber), but they were
helping to define directions that meant a new sensibility for the new age and that ultimately meant a place for
novels.” Idem, p. 163.
37
McKeon via na prosa de ficção anti-realista uma das faces da exploração simultânea de
problemas epistemológicos e sociais que caracterizou, em seu entender, a gênese do romance.
Hunter reduz consideravelmente o papel dessa forma no processo de constituição do gênero,
mas enfatiza igualmente seu caráter reacionário diante da literatura progressista. Pertençam ou
não à genealogia do romance, obras como A História de John Bull são uma réplica a
tendências populares que não apenas ameaçavam uma tradição literária já frágil, mas punham
em risco valores aristocráticos que vinham sendo abalados pelo fortalecimento de uma nova
classe de capitalistas e homens de negócios. Nas palavras de John Richetti:
Muitos romances não apenas representam indivíduos das classes ou fileiras médias da
sociedade; eles retratam, na maioria dos casos, tentativas de alcançar status (ou riqueza ou
poder) por intermédio da virtude e da ação isoladas e individuais, como opostas à herança ou ao
envolvimento coletivo. (...) Nesse mundo, o investidor e empreendedor ousado e versátil é um
grande herói, (...) e alguns se converteram, por meio do trabalho duro, da sorte ou amiúde do
suborno e da corrupção, em grandes lordes e aristocratas. Nessa emergente ordem
socioeconômica, o status está à venda (...).
81
Em muitos casos o herói dos romances passará bem ainda que sem títulos nobiliárquicos. Nas
páginas iniciais de Robinson Crusoé encontramos uma ilustração explícita dessa revalorização
social, quando o pai do narrador lhe diz
que a minha era a condição média, ou o que se pode chamar de estrato superior da vida baixa —
que, como ele constatara em sua longa experiência, era a melhor condição do mundo, a mais
adequada à felicidade humana, não estando exposta às misérias, agruras, labores e sofrimentos
da parte mecânica da humanidade, nem comprometida pelo orgulho, luxúria, ambição e inveja
81
“Many novels not only represent individuals from the middling ranks or classes of society; they depict more
often than not attempts to acquire status (or wealth and power) through isolated and individual virtue and action
rather than by inheritance or through corporate involvement. (...) In this world, the daring and resourceful
investor and entrepreneur is a great hero, (...) and some men transformed themselves by hard work, luck, or often
enough by bribery and corruption into great lords and aristocrats. In this emerging socioeconomic order, in fact
but also in imagination, status if for sale (...).” John Richetti, “Introduction”, in The Cambridge Companion to
the Eighteenth-Century Novel, p. 7.
38
da parte superior da humanidade.
82
82
“(…) that mine was the middle state, or what might be called the upper station of low life, which he had found,
by long experience, was the best state in the world, the most suited to human happiness, not exposed to the
miseries and hardships, the labour and sufferings of the mechanic part of mankind, and not embarrassed with the
pride, luxury, ambition, and envy of the upper part of mankind.” Defoe, Robinson Crusoe, p. 6.
39
1.4. Recapitulação
Após essas considerações preliminares, que não pretenderam ser breves nem simples, é
interessante fazermos um balanço de nossa posição.
O romance forma-se paulatinamente numa época em que a respeitabilidade literária
depende de vínculos com a aristocracia e da aceitação de princípios neoclássicos mais gerais.
A elite literária da Era Augustana constituía um círculo fechado que dificultava o acesso de
escritores sem formação clássica ou com propósitos inovadores. Com o tempo, o aumento do
número de leitores nas camadas média e inferior gerou um mercado para textos menos
interessados na tradição e nas formas neoclássicas e mais voltados a questões de
individualismo e vida quotidiana. Como mostra Hunter, as características que definiriam o
romance em sua forma consumada haviam resultado do intercâmbio entre os desejos
conscientes ou inconscientes do público e a experimentação de autores marginais — em
outras palavras, de um contexto cultural motivado por transformações históricas. Tais
características se revelaram em formas anteriores de grande apelo popular, e foram notadas
pelos círculos cultos. A prosa de ficção que então se desenvolvia (e que foi designada nessa
fase pelos mais variados nomes) foi condenada por sua incompatibilidade com os princípios
neoclássicos e por suas tendências socialmente subversivas, vinculada como estava à
mentalidade de classe média.
A atitude dos augustanos foi de rejeição, mas eles descobririam nisso a fragilidade de
seu apego à tradição. O credo neoclássico jamais teve pleno vigor entre eles, e na década de
1720 suas formas davam sinal de esgotamento. O envolvimento da aristocracia com a
literatura também se tornava menos direto, e a queda do patronato enfraqueceu a posição dos
augustanos. A relevância de McKeon para meu estudo está na idéia de que os autores
conservadores, em seu esforço por combater as tendências progressistas, precisaram
reformular, à luz dos novos desenvolvimentos, um credo tradicional então insustentável.
Afastando-se da tradição, eles a usaram não obstante como um meio de combater as novas
tendências. Resultou daí uma variedade de prosa de ficção sem grande realismo formal,
praticada por autores não vinculados ao espírito de classe média. Esses autores, adeptos do
ceticismo extremo e da ideologia conservadora, responderam ao “gênero” que já enxergavam
nas narrativas pretensamente verazes dos progressistas. Se suas obras raramente chegam a
40
constituir romances, elas representam um contrapeso à tendência que passa por Defoe e
culmina em Richardson.
Esse é o espaço de Swift e é o espaço de As Viagens de Gulliver.
41
PARTE 2
Swift e Gulliver
42
2.1. As raízes de Gulliver
O livro foi publicado em 28 de outubro de 1726, sob o auspicioso título de Travels into
Several Remote Nations of the World (Viagens a várias nações remotas do mundo). O autor
era um certo Lemuel Gulliver, cirurgião de bordo e capitão de vários navios. Até então
ninguém nunca ouvira falar dele — o que parecia natural, já que estivera tanto tempo ausente.
Em questão de dias ele se tornou assunto obrigatório de cafés, periódicos e clubes literários.
“Do nível mais alto ao mais baixo ele é universalmente lido, do conselho do gabinete ao
berçário. É consenso entre os políticos que o livro está isento de reflexões particulares, mas
que a sátira das sociedades humanas em geral é por demais severa. Não que não encontremos,
de quando em quando, gente de maior perspicácia em busca de alusões particulares a cada
folha; e é bastante provável que se publiquem chaves para projetar luz sobre os intuitos de
Gulliver.”
83
A popularidade inicial não foi efêmera. Os dois meses seguintes trouxeram duas
reimpressões, e em 1727 o livro foi “corrigido”, serializado e traduzido para o francês, o
holandês e o alemão. Ele superaria a vendagem de Robinson Crusoé e se tornar o maior best
seller inglês do século XVIII. O tom tumultuoso dessa carreira foi ditado desde o início, com
a polêmica sobre quais seriam os alvos do livro e com que justiça eram atacados. A princípio
Swift foi cauteloso e preservou o anonimato, mas em dezembro de 1727 assumiu a autoria
numa carta a Benjamin Motte, o editor. Em 1735 Gulliver foi reimpresso em Dublin por
George Faulkner, incluindo dessa vez passagens mais acerbas que Motte eliminara por
prudência de sua edição. Nesses anos de grande tensão no mundo editorial, era praxe julgar os
produtos literários de acordo com sua bandeira política. Os conhecidos elos de Swift com os
tories confirmaram as reservas dos whigs, e estes retaliaram com virulência. Por décadas a fio
a atividade crítica julgaria Gulliver como documento político, e seu valor como obra literária
só receberia uma atenção marginal. Quando feita pela crítica whig, a análise do livro se
83
“From the highest to the lowest it is universally read, from the Cabinet-council to the Nursery. The Politicians
to a man agree, that it is free from particular reflections, but that the Satire on general societies of men is too
severe. Not but we now and then meet with people of greater perspicuity, who are in search for particular
applications in every leaf; and it is highly probable we shall have keys published to give light into Gulliver’s
design.” Carta de John Gay a Swift, 17 de novembro de 1726. In GT, p. 266.
43
convertia num exercício de aviltamento, e muito da fama de misantropo que coube a Swift se
deveu à mistura deliberada entre suas opiniões e as de Gulliver, como se o livro fosse um
manifesto franco e direto das visões do autor — enfim, um panfleto político. A idéia é
parcialmente verdadeira, mas obscurece os fatos de que Gulliver não é um porta-voz de Swift
e de que este último, para além de suas motivações políticas, também estava empenhado
numa importante campanha cultural — campanha que incluiu nesses anos a Duncíada, de
Pope, e A Ópera do Mendigo, de Gay. As Viagens de Gulliver são, sim, um documento
político, mas não constituem uma expressão direta das convicções pessoais de Swift, nem se
restringem ao campo da política. Com o tempo, a crítica passaria a dar atenção a outros
aspectos do livro, reconhecendo que em Gulliver confluem interesses políticos e culturais
cujas raízes em grande medida se entrelaçavam.
O período de composição do livro foi por muito tempo um objeto de conjectura. Desde
a publicação das cartas de Swift a Charles Ford, em 1935, sabemos que ele foi escrito na
Irlanda entre 1721 e 1725 e corrigido provavelmente até sua publicação. Após seis anos de
quase absoluto silêncio, durante os quais Swift se concentrara em seus deveres como deão da
Catedral de São Patrício, esse período assinalou seu retorno ao campo da polêmica impressa.
Mas o material que ele utilizou em Gulliver não provinha necessariamente dos anos de
escritura. Note-se, por exemplo, o papel proeminente da guerra no fio satírico do livro — e
todavia a Grã-Bretanha na década de 1720 estava sob a política de paz de Walpole. O mesmo
não se pode dizer do período que precedeu o silêncio autoral de Swift: os últimos anos da
rainha Ana, desfecho da Guerra da Sucessão Espanhola. É a esse período — e
especificamente aos anos entre 1710 e 1714 — que remonta não somente a crítica de Swift à
guerra, mas também a essência de sua sátira política e literária.
2.1.1. Raízes políticas
A escolha dos anos 1710-1714 não é casual. Nessa época Swift esteve em Londres em
missão da igreja e firmou os principais elos políticos e literários de sua carreira,
respectivamente com os tories e o Scriblerus Club. Dessa época datam os conhecidos retratos
de Jervas, em que vemos Swift no auge de suas forças, empenhado na luta pelos valores que
lhe eram mais caros. Tais valores (essencialmente a supremacia da igreja anglicana, o ideário
44
conservador e a concepção augustana de literatura) enfrentavam então um momento crítico.
Contra eles se elevavam as reivindicações dos dissidentes, o poder liberal dos novos
capitalistas e uma nova corrente literária que, como já pudemos verificar, vinha se afirmando
junto ao público burguês. Num dos períodos mais claramente bipartidários da história inglesa,
era natural que os conflitos religioso, político e literário convergissem na oposição mais
elementar entre tories e whigs. Swift, originalmente associado aos últimos, acabou atrelando
seu destino ao dos primeiros.
Isso não envolveu necessariamente uma traição de princípios. Antes de mais nada, não é
tarefa simples determinar se Swift era por definição tory ou whig, especialmente em se
considerando o sentido instável desses termos na época
84
. Em sua biografia de Swift, o Dr.
Johnson observaria: “ele reteve por toda a vida a disposição que atribui ao Homem da Igreja
Anglicana — a de pensar em comum com os whigs do Estado e com os tories da Igreja”
85
.
Tornou-se comum definir as inclinações de Swift por meio dessa fórmula, já que ela resolve a
inconsistência entre seu apoio à Igreja Anglicana (típico dos tories) e à supremacia do
legislativo (típico dos whigs). O próprio Swift nos autoriza a pensar assim numa passagem
das Memoirs Relating to the Queen’s Last Ministry:
Familiarizado desde há muito com os autores gregos e romanos, e sendo portanto um amante da
liberdade, descobri-me bastante propenso a ser o que denominam um whig em política; de mais
a mais, eu julgava impossível, com base em qualquer outro princípio, defender ou aceitar a
revolução; em matéria de religião, porém, eu me confessava um membro da Alta Igreja, e não
concebia como alguém que trajasse o hábito clerical poderia agir de outro modo.
86
84
Cf. David Oakleaf, “Politics and History”. In CCJS, p. 38.
85
“he continued throughout his life to retain the disposition which he assigns to the Church-of-England Man, of
thinking commonly with the Whigs of the State, and with the Tories of the Church”. Samuel Johnson, “Swift”,
em The Lives of the Poets, p. 221. Ver de Swift The Sentiments of a Church-of-England Man, with Respect to
Religion and Government (1711).
86
“having been long conversant with the Greek and Roman authors, and therefore a lover of liberty, I found
myself much inclined to be what they called a Whig in politics; and that, besides, I thought it impossible, upon
any other principle, to defend or submit to the revolution: But as to religion, I confessed myself to be an High-
Churchman, and that I did not conceive how anyone, who wore the habit of a clergyman, could be otherwise.” In
David Nokes, Jonathan Swift: A Hypocrite Reversed, p. 56.
45
E todavia essa fórmula desconsidera a estreita ligação então vigente entre Igreja e Estado. Ser
um whig em política significava aprovar um sistema de empréstimos públicos que submetia o
Estado à influência do Banco da Inglaterra e por conseguinte de capitalistas de origens
presbiterianas. Esses financistas naturalmente pressionavam o parlamento por maior
tolerância aos dissidentes, abalando com isso a estabilidade da Igreja Anglicana. Durante suas
negociações prévias com os whigs, Swift já havia constatado que o preço destes para as
concessões fiscais requeridas pela Igreja da Irlanda seria a suspensão da Lei do Teste
Sacramental em território irlandês — o que na prática equivaleria a abrir os escalões do
governo a todas as seitas protestantes que ele desprezava
87
. Por outro lado, embora a oposição
partidária entre whigs e tories estivesse então no auge, sua oposição ideológica já não era tão
absoluta como na época da Crise da Exclusão (1679-1681), quando mais não fosse porque a
idéia de submissão a um rei por direito divino saíra de cena: os tories do novo reinado —
excetuada sua ala radical — não desejavam abolir a Revolução de 1688, mas modificá-la em
prol dos proprietários de terras
88
. Isso significa que associar-se aos tories já não significava
renegar a revolução (ou, em outras palavras, a restrição dos poderes do rei pelo parlamento).
Quando Swift descobriu em Robert Harley um secretário de Estado moderado, afável, culto e,
acima de tudo, disposto a negociar sem exigir concessões nocivas à Igreja, ele não teve
dúvidas e apostou a sorte com os tories
89
.
A situação nos anos 1710-1714 pode ser resumida assim: uma guerra custosa e
prolongada grassava na Europa, alinhando a Inglaterra, a Holanda e o Império num esforço
por impedir a anexação do legado espanhol pela França de Luís XIV. Esse conflito, conhecido
como Guerra da Sucessão Espanhola (1701-1713), foi o tema central da discussão política no
reinado de Ana. O envolvimento direto da Inglaterra tinha a aprovação dos comerciantes
londrinos, que lucravam imensamente com os esforços bélicos, e era condenado pela gentry,
que penava sob uma taxação crescente em tempos de recessão agrária. Os interesses da esfera
comercial estavam incorporados nos whigs, que propeliram a máquina de guerra até 1710; os
da gentry eram promovidos pelos tories, que a partir de 1710 se empenharam em negociar a
87
A importância dessa lei na decisão de Swift de se afastar dos whigs fica patente em A Letter on the
Sacramental Test (1708).
88
G. M. Trevelyan, England Under the Stuarts, p. 392.
89
Cf. The Journal to Stella, nas seções de setembro de 1710.
46
paz. Dois fatores tornaram especialmente clamorosa a disputa entre as duas facções: o
primeiro foi a Lei Trienal de 1694, que resultou em eleições parlamentares mais freqüentes e
deixou o governo mais vulnerável a flutuações de ânimo no eleitorado; o segundo foi a
caducidade da Lei de Licenciamento em 1695, que suspendeu a censura estatal e deu novo
alento à imprensa periódica. Ambos os partidos se valeram da recém-adquirida liberdade de
imprensa para assegurar o favor da opinião pública, e o resultado foi uma época de ouro para
a panfletagem política. Robert Harley e Henry St. John
90
, líderes dos tories que venceram as
eleições em 1710, teriam a seu serviço alguns dos mais talentosos panfletistas políticos da
história inglesa — entre os quais Defoe e Swift.
A ligação de Swift com os tories envolveria portanto a composição de panfletos
anônimos destratando os whigs e os esforços de guerra. Os principais desses textos foram os
que ele escreveu para o periódico The Examiner (1710-11) e panfletos independentes como
The Conduct of the Allies (1711), cujo objetivo era reduzir os escrúpulos do público no caso
de uma paz unilateral com a França, que deixaria ao léu os aliados britânicos. Essa atividade,
longe de venal, permitia a Swift dar vazão a um desprezo sincero pelos capitalistas urbanos:
Há vinte anos a nação tem gemido sob o fardo intolerável daqueles que lhe sugam o sangue em
proveito próprio. Promovemos guerras apenas para encher os bolsos de especuladores.
Revisamos nossa constituição e, graças a um grande e unívoco esforço nacional, asseguramos
nossa sucessão protestante, somente para nos tornar ferramentas de uma facção que se arroga
todo o mérito do que foi um ato da nação. Somos governados por arrivistas que vêm abalando
os alicerces de nosso sistema social e substituindo a influência da gentry fundiária pela de uma
classe de homens que descobre seus lucros em nossos males. Se o ministério recém-deposto
representava algo, era isso. E a mudança que ora adveio despertará na nação o senso de seus
erros, restabelecerá a devida influência da gentry e nos livrará do enxame pestilento de
especuladores confederados com os whigs (...) homens que, com o espírito de merceeiros, vêm
moldar regras para a administração de reinos.
91
90
Respectivamente os futuros conde de Oxford e visconde de Bolingbroke.
91
“For twenty years the nation has groaned under the intolerable burden of those who sucked her blood for gain.
We have carried on wars, that we might fill the pockets of stock-jobbers. We have revised our Constitution, and
by a great and united national effort, have secured our Protestant succession, only that we may become the tools
47
Ficam claras aqui as principais simpatias de Swift: ele está ao lado dos grandes proprietários
de terras — a seu ver os verdadeiros donos da nação —, e vê nos novos capitalistas londrinos
uma súcia de aproveitadores que se apossou do poder da gentry sem herdar-lhe as
responsabilidades. Essa é uma posição perfeitamente compatível com um “homem da Alta
Igreja”, já que os comerciantes ricos eram em grande parte membros de seitas dissidentes cujo
acesso a outras profissões fora barrado pela legislação. Outros princípios — como a oposição
à permanência do exército em tempos de paz, a crítica ao excesso de poder do executivo e a
defesa de uma política não intervencionista — já vinham sendo absorvidos pelos tories
moderados desde os tempos de Guilherme III
92
. Swift, por tudo isso, não estava renegando
seus princípios ao se pôr a serviço de Harley. Não se entenda, tampouco, que ele fosse uma
espécie de empregado do ministério. Swift sempre exigiu que Harley o visse como um aliado
numa missão comum. Em The Journal to Stella, a coletânea de cartas que escreveu a Esther
Johnson durante sua longa estada em Londres, ele deixou claras suas esperanças de se alçar a
uma alta posição — talvez a um bispado — no caso de sucesso dos tories
93
. Mais do que suas
convicções religiosas e políticas, estavam em jogo suas ambições de carreira.
Os tories, no entanto, vinham fazendo uma cartada perigosa. O favor de uma rainha
anglicana e avessa à guerra os amparava pelo momento, mas Ana não viveria muito. A
sucessão ao trono no caso de ela morrer sem filhos fora definida pela Lei de Estabelecimento
de 1701: a coroa caberia ao eleitor de Hanôver, descendente direto de Jaime I. Ficavam
excluídos da linha de sucessão quaisquer católicos, inclusive o filho de Jaime II, que então
vivia na corte francesa e tinha o apoio de Luís XIV. O dilema dos tories foi que, ao
promoverem o fim da guerra à revelia dos aliados, eles se indispuseram com o futuro rei
of a faction, who arrogate to themselves the whole merit of what was a national act. We are governed by
upstarts, who are unsettling the landmarks of our social system, and are displacing the influence of the landed
gentry by that of a class of men who find their profit in our woes. If the late discarded Ministry represented
anything, they represented this: and the change that has now come, will awaken the nation to a sense of its
mistakes, will recover the rightful influence of the landed gentry, and will rid us of the pestilential swarm of
stock-jobbers who are confederate with the Whigs.” The Examiner, XXI. Em Henry Craik, The Life of Jonathan
Swift, V. I, p. 267.
92
Ian Higgins, “Swift’s Politics: A Preface to Gulliver’s Travels”, reproduzido em Claude Rawson (ed.),
Jonathan Swift: A Collection of Critical Essays, p. 185; e David Nokes, op. cit., p. 270.
93
The Journal to Stella, XVI, 17 de fevereiro de 1711.
48
hanoveriano, que então lutava ao lado do Império. Mais que isso: a casa de Hanôver tinha
interesse em que a guerra prosseguisse até depois da morte de Ana, o que manteria o
pretendente Stuart associado aos inimigos da nação inglesa e reduziria suas possibilidades de
reclamar a coroa. O resultado era que “qualquer paz seria jacobita por implicação”
94
. Os
tories, que desde há muito eram considerados jacobitas pelos whigs, viram-se obrigados a
considerar em segredo a sucessão de Jaime III, que Bolingbroke tentou inutilmente dissuadir
do credo católico. Harley, ponto de conexão entre a ala radical de seu partido e os whigs,
manteve um jogo duplo que iludiria a muitos, inclusive a Swift. Seu partido se via
paradoxalmente na condição de um defensor da Igreja Anglicana que cortejava um sucessor
católico. Quaisquer esperanças que eles tivessem de fraudar os termos da sucessão foram
arruinadas pela morte súbita de Ana. Os whigs souberam se valer da ocasião, e a sucessão de
Jorge I de Hanôver ocorreu sem percalços. Harley foi confinado à Torre, Bolingbroke exilou-
se na França e os tories recuaram para um plano secundário do qual não sairiam senão meio
século mais tarde.
Swift foi enredado na desgraça do partido. Em 1713 já ficara claro que seus anseios de
sagrar-se bispo eram vãos, e ele se resignou ao decanato da Catedral de São Patrício, numa
Dublin que detestava. Sua pena também silenciara: o panfleto The Public Spirit of the Whigs
(1714), que ele compusera em resposta a Steele durante a polêmica da sucessão, desagradara
às autoridades por deslustrar os lordes escoceses, e a identidade do autor foi posta a prêmio
95
.
Desde antes da queda sua confiança na proteção do ministério já estava abalada. Ele regressou
à Irlanda sob suspeitas de jacobitismo, e durante anos teria sua correspondência pessoal
esmiuçada às ocultas por agentes do governo. Não voltaria a publicar tão cedo. Esse silêncio
se explica, como se vê, por um misto de precaução e desilusão. Em 1714 tinha fim sua fase de
esplendor. Sem que Swift soubesse, seu regresso a Dublin seria definitivo. Salvo por raras
visitas à Inglaterra, ele permaneceria na Irlanda até seus últimos dias, “para morrer feito um
rato envenenado numa toca”
96
.
Entre 1715 e 1720 ele não publicou mais nada; não significa, contudo, que não tenha
94
Kenyon, Stuart England, p. 343.
95
Cf. Paul Hyland, “Richard Steele: Scandal and Sedition”, em Writing and Censorship in England, p. 67-69.
96
Carta a Bolingbroke, 21 de março de 1729.
49
escrito nada. Dessa época datam várias obras de publicação posterior, entre as quais a History
of the Four Last Years of the Queen, as Memoirs of that Change Which Took Place in the
Queen’s Ministry in the Year 1710 e An Enquiry into the Behaviour of the Queen’s Last
Ministry. São textos históricos que buscam inocentar o ministério a que ele estivera associado
nos anos anteriores; na época, eram impublicáveis. Este fato demonstra que para Swift o
debate entre whigs e tories estava longe de encerrado. O que faltava era trazê-lo de novo à
arena pública. E isso Swift faria após seu sucesso inicial nas questões da Irlanda. A
indignação pelo modo como o governo inglês tratava o país que lhe coubera como lar acabou
rompendo seu silêncio. Ele promoveu uma verdadeira batalha impressa contra as restrições
comerciais impostas à Irlanda, contra o absenteísmo dos governantes, contra a submissão do
parlamento irlandês ao inglês — e, mais essencialmente, contra um governo corrupto que se
perpetuava sob o amparo dos dois primeiros Jorges. “O que ele de fato ganhou com seu
envolvimento na política irlandesa foi uma plataforma da qual confrontar seus velhos
inimigos do establishment whig na Inglaterra”
97
. Em 1724 ele logrou um de seus maiores
sucessos com as Drapier’s Letters, uma série de panfletos em forma epistolar que mobilizou a
opinião pública irlandesa contra a adoção de uma moeda de cunhagem inferior que lhes seria
imposta pelo governo inglês. A importância das Drapier’s Letters transcendeu em muito a
questão pecuniária que lhes dera origem: elas constituíam um manifesto da resistência
irlandesa aos abusos de um governo whig que tratava a Irlanda como uma colônia sem
arbítrio. A lenda do nacionalista deão de São Patrício deveu muito a esse episódio, e foi com
esse novo estímulo que Swift deu início à redação de As Viagens de Gulliver, culminação
portanto da prolongada campanha que seu autor vinha promovendo desde os fatídicos anos do
ministério tory
98
.
2.1.2. Raízes literárias
O que talvez intrigue é que Swift, que em questões políticas pronunciara-se sobretudo
97
David Nokes, “Swift and the Beggars”, reproduzido em Harold Bloom (ed.), Jonathan Swift: Modern Critical
Views, p. 134.
98
Cf. Ricardo Quintana, Swift: An Introduction, p. 22; Irvin Ehrenpreis, The Personality of Jonathan Swift, p. 84-
85; Simon Varey, “Exemplary History and the Political Satire of Gulliver’s Travels”, in GGT, p. 48;
50
em panfletos dissertativos, tenha optado em Gulliver por uma narrativa ficcional. Procurar
pronunciamentos de Swift sobre o valor desta ou daquela forma literária costuma ser um
exercício frustrante. Quando muito ele comenta questões de estilo, como em A Proposal for
Correcting, Improving and Ascertaining the English Tongue (1712) e A Letter to a Young
Gentleman, lately entered into Holy Orders (1720). O texto que durante muito tempo
constituiu um de seus testemunhos mais detalhados sobre questões literárias — A Letter of
Advice to a Young Poet (1721) — é hoje tido como apócrifo. O que nos restam são sobretudo
juízos avulsos e o que se pode deduzir de sua prática como escritor. As preferências que daí
resultam são escrupulosas. Ao teatro, por exemplo, Swift não ia, e sabemos que só leu as
peças de seu amigo Congreve por uma curiosidade ociosa
99
. E à prosa de ficção de seu tempo
ele em geral se mostra hostil. Nas Directions to Servants, encontramos a seguinte
recomendação (jocosa) às tutoras ou governantas:
Façam com que as senhoritas leiam romances ingleses e franceses, histórias romanescas
francesas e todas as comédias escritas na época dos reis Carlos II e Guilherme, para abrandar-
lhes a natureza e deixá-las de coração terno.
100
A Letter to a Young Lady sugere igualmente a incompatibilidade entre moças e romances; em
notas manuscritas intituladas Hints: Education of Ladyes, ele escreveu: “Nada de romances
franceses, e poucas peças para as senhoritas”
101
; e a criada que causou o incêndio no palácio
de Lilliput estava distraída “lendo um romance”
102
. Igualmente sugestivo é o histórico de
leituras e o acervo da biblioteca de Swift. Um levantamento feito por Brean Hammond com
base numa lista deixada por Swift e nos inventários de seus livros revela um relativo descaso
pela produção mais recente de obras de imaginação. Em 1696/7, suas leituras incluíram
Homero, Petrônio, Horácio, Virgílio, Lucrécio, Cícero, Eliano, Diodoro Sículo, São Cipriano
99
Cf. The Journal to Stella, carta XXXIII, p. 322.
100
“Make the misses read French and English novels, and French romances, and all the comedies writ in King
Charles II. and King William’s reigns, to soften their nature, and make them tender-hearted.” In Eddy (ed.),
Swift’s Satires and Personal Writings, p. 250.
101
“No French Romances, and few plays for young Ladyes.” Cf. Turner (ed.), Gulliver’s Travels, p. 301.
102
“reading a romance”. GT, I, v.
51
e Santo Irineu; e entre escritores ingleses recentes, Temple (seu patrão), Burnet e Blackmore
(dois autores que ele desdenhava, e que provavelmente lera por sarcasmo). Sua biblioteca era
bem abastecida de historiadores e teólogos, mas deficiente em outros sentidos. Shakespeare e
Butler, por exemplo, não figuram em nenhum dos inventários disponíveis. “Isso tudo
confirma que a biblioteca de Swift não era primariamente a de um literato: e por esta
observação sensacional quero dizer que ele não colecionava energicamente as obras de
imaginação de autores contemporâneos.”
103
Não significa que Swift não lesse tais autores;
eles simplesmente não atendiam a seus critérios seletivos. “Ele havia lido Defoe, mas não o
queria em suas estantes.”
104
Para além disso, as leituras e a biblioteca de Swift sugerem que a
prosa de ficção, tal como praticada em seu tempo, não era de modo algum o gênero em que
ele pretendia aplicar suas forças.
Antes de se tornar o satirista e panfletista político que tomou Londres de assalto em
princípios do século XVIII, Swift tivera ambições literárias mais ortodoxas. Nascido e criado
em condições medianas, ele ambicionou o prestígio dos luminares das letras da Restauração.
Assim confessou a Pope:
“E digo-lhe ainda que, desde menino, todos os meus esforços por destacar-me se deveram à
falta de título e fortuna, para que eu pudesse ser tratado como um senhor pelos que fizessem
conta de meus talentos — se justa ou injustamente, não importa. E com isso, a reputação por
espírito ou erudição faz as vezes de uma faixa azul ou de um coche de três parelhas”
105
A ambição de Swift é a do augustano por excelência, e ele cresceu envolvido pela atmosfera
do neoclassicismo e do culto aos antigos. A formação que ambicionava lhe foi proporcionada
pelo convívio com Sir William Temple, esse famoso defensor da Antigüidade, a quem ele
103
“All of these confirm that Swift’s library was not primarily that of a literary man: by which sensational
remark, I mean that Swift did not energetically collect the writings of contemporary imaginative writers.”
Hammond, “Swift’s Reading”. In CCJS, p. 75.
104
“He had read Defoe, but he did not want him on his shelves.” Idem, p. 85.
105
“I will farther tell you that all my endeavours from a boy to distinguish myself, were only for want of a title
and fortune, that I might be used like a lord by those who have an opinion of my parts; whether right or wrong, it
is no great matter; and so the reputation of wit or great learning does the office of a blue ribband, or of a coach
and six horses.” Carta a Pope, em 5 de abril de 1729. In Craik, The Life of Jonathan Swift, V. I, p. 170.
52
serviu como secretário entre 1689 e 1699. A rica biblioteca de Temple e o mundo polido de
Moor Park cimentaram seus interesses. Podemos inferir daí que o desprezo corrente pela
prosa de ficção influiu em sua formação. Luciano, Rabelais e Cervantes estavam entre seus
favoritos, mas nesse caso o registro é outro: nesses autores a ficção está a serviço da sátira, e
não incorre na problemática mistura de estilos. Ademais, eles o ajudariam a descobrir sua veia
satírica. Até então as tentativas literárias de Swift haviam sido comportadas — e de sobejo
frustradas, como observou famosamente o Dr. Johnson:
Desde cedo Swift começou a achar ou a sonhar que era poeta, e escreveu odes pindáricas a
Temple, ao rei e à Sociedade Ateniense (...). Contaram-me que Dryden, após examinar esses
versos, disse: “Primo Swift, você jamais será um poeta”; e que tal denúncia foi o motivo da
perpétua malevolência de Swift para com Dryden.
106
Swift acabaria descobrindo que sua voz era outra, e já nos anos de Moor Park compôs
as duas grandes sátiras que seriam publicadas em 1704: O Conto do Tonel e A Batalha dos
Livros. Juntamente com os Bickerstaff Papers, essas sátiras o tornaram famoso em Londres e
o agraciaram junto à intelectualidade da época. O vínculo com Harley lhe permitiu passar das
sátiras e dos poemas cômicos a projetos mais sérios, como sua Proposal for Correcting,
Improving and Ascertaining the English Tongue (1712). “Minha carta ao Lorde Tesoureiro
sobre a língua inglesa está agora nas prensas, e permito que meu nome seja incluído ao final,
coisa que jamais fiz em minha vida”
107
. Nessa mesma época veio-lhe o anelo de compor
seriamente obras históricas. “Suspeitamos que sua ambição não era tanto escrever As Viagens
de Gulliver como escrever uma história de seu tempo menos implacavelmente whig do que a
106
Swift began early to think, or to hope, that he was a poet, and wrote Pindarick Odes to Temple, to the King,
and to the Athenian Society (…). I have been told that Dryden, having perused these verses, said, ‘Cousin Swift,
you will never be a poet’; and that this denunciation was the motive of Swift’s perpetual malevolence to
Dryden.” Johnson, “Swift”, em The Lives of the Poets, p. 195.
107
Na verdade ele assinara a Ode to the Athenian Society e a dedicatória das obras de Temple, mas
aparentemente preferia esquecer o fato. No original: “My letter to Lord Treasurer, about the English Tongue, is
now printing; and I suffer my name to be put at the end of it, which I never did before in my life.” The Journal to
Stella, carta XLIV, p. 437.
53
de Burnet.”
108
Talvez tenha sido esse o momento em que Swift chegou mais perto de
concretizar suas grandes aspirações como homem de letras.
Mas os projetos não vingaram: a proposta filológica não teve o apoio do governo e os
textos históricos, após escritos, seriam engavetados. Depois da queda dos tories em 1714, o
apoio político ao exercício das letras (dependente como fora da oposição entre os dois
partidos) entrou em decadência. Walpole só contrataria panfletistas baratos e confiaria no
suborno como alavanca de influência. Um número excessivo de escritores passou a disputar
um número reduzido de patronos das artes, e como resultado a senda literária da Restauração
foi se estreitando. O autor que até então praticara os gêneros polidos confiando no esteio
firme da corte viu-se dependente da venda dos livros, o que significava compactuar em certa
medida com os gostos do grande mercado
109
. Muitos encontraram uma saída para o dilema no
sistema de subscrição: o autor, antes de empreender um projeto, recolhia assinaturas de
leitores interessados, que deviam pagar metade do valor final de venda. Com isso era possível
garantir de antemão a viabilidade do livro e selecionar o público para o qual se escrevia. Foi a
subscrição que assegurou a independência autoral de Pope, graças ao sucesso estrondoso de
suas traduções de Homero. Já outros autores preferiram fazer concessões. É nessas
circunstâncias que os escritores cultos passam a aceitar a prosa de ficção como uma opção
artística e economicamente interessante. Sintomas disso são o fato de que Fielding escreva
romances depois que o teatro se torna impraticável e que Johnson componha Rasselas para
pagar o enterro da mãe. Swift, que desde o declínio dos tories vinha evitando publicar,
retornou ao prelo já sob o novo clima. As Viagens de Gulliver, que Ehrenpreis considerou a
“sublimação de panfletos e fragmentos suprimidos”
110
, representaram um desvio de rota
motivado pelas preferências do público e pelo desejo de se fazer ouvir mais amplamente.
Mas a escolha da prosa de ficção, e mais particularmente do relato de viagens, foi tudo,
menos dócil. Swift tinha perfeita ciência da associação dessa forma com a classe mercante de
108
“One suspects that his ambition was not so much to write Gulliver’s Travels as to write a history of his own
times less relentlessly whiggish than Burnet’s”. Hammond, op. cit., p. 81.
109
Cf. Pat Rogers, “Books, Readers and Patrons”, in FORD, Boris (ed.) From Dryden to Johnson; Hauser,
História Social da Arte e da Literatura, VI, 2; Humphreys, “The Literary Scene”, in FORD, Boris (ed.), op. cit.,
e The Augustan World — Life and Letters in Eighteenth Century England, p. 93.
110
“a sublimation of the supressed pamphlets and fragments”. Ehrenpreis está pensando especificamente em
Lilliput. The Personality of Jonathan Swift, p. 91.
54
seus inimigos. Os motivos que o levaram ainda assim a escolhê-la remontam aos tempos do
Scriblerus Club. A primeira onda de inovação literária descrita por Hunter tinha um forte
pendor whig. Ela constituiu uma alternativa ao augustanismo proposta por escritores que se
empenharam em “identificar as formas e modelos literários adequados a uma nação que, com
a Revolução Gloriosa de 1688, alcançara a liberdade política e entrara em posse de si
mesma”
111
. A escolha desse marco histórico como data de renovação literária era muito
significativa. Ao passo que os augustanos viam o ponto de transição em 1660 e tinham em
Carlos II seu herói, esses novos autores (como Sir Richard Blackmore, Charles Gildon e John
Oldmixon) optavam alternativamente por 1688 e Guilherme III — o que implicava a
tolerância religiosa, o estímulo ao comércio e o combate à França. Eles desconsideravam o
vínculo com a Antigüidade e buscavam seu material e sua inspiração na nova Inglaterra, em
seus feitos, seus generais, sua grandeza. Essa opção antitradicionalista foi combatida pelos
tories e especialmente pelo Scriblerus Club, a associação literária concebida por Swift e Pope
em 1714 como antídoto à predominância dos whigs nos cafés. Formado por Harley, Pope,
Swift, Gay, Parnell e Arbuthnot, o Scriblerus Club se dedicou a aviltar seus oponentes
literários com o mito do borra-papéis, um mito essencialmente tory que
afirmava deplorar a moderna cultura inglesa e a escrita que ela havia fomentado. Alienada do
que havia de melhor nas tradições clássica e nativa, essa escrita era apresentada como obra
menos de artistas que de mercadores de palavras. Ela por conseguinte estava presa à
mediocridade.
112
O principal produto do clube seriam as Memoirs of Martinus Scriblerus, escritas em
colaboração pelos membros e publicadas em 1741 na edição das obras completas de Pope.
Seu propósito era “ridicularizar todos os falsos gostos em erudição, na figura de um homem
111
“to identify the literary forms and models appropriate to a nation which, with the Glorious Revolution of
1688, had grasped its political liberty and entered into possession of itself.” David Womersley, no prefácio a
Augustan Critical Writing, p. xiv.
112
“it claimed to deplore modern English culture and the writing it had fostered. Estranged from the best in both
the classical and the native traditions, this writing was presented as the work of tradesmen in words rather than
artists. It was consequently imprisoned within mediocrity.” Womersley, op. cit., p. xiv.
55
de suficiente capacidade que se houvesse aprofundado em toda arte e ciência, mas
insensatamente em ambos os casos”
113
. O movimento dos scriblerianos constituía no campo
literário algo similar à reação tory no campo político. Um de seus produtos tardios — a
Duncíada de Pope — é uma aberta flagelação de escritores associados às novas tendências
(entre os quais encontramos Defoe
114
). A queda do ministério foi entretanto fatídica: ela levou
ao desmembramento do Scriblerus Club e, assim como havia debilitado a panfletagem
política, atravancou o projeto de reforma literária.
As Memoirs of Martinus Scriblerus continuaram a ser compostas muito lentamente,
com contribuições ocasionais de um que outro membro. Um dos capítulos previstos na sátira
geral envolveria as viagens de Martinus a diversos países. Swift, cuja participação no projeto
era ocasionalmente solicitada nas cartas de Arbuthnot, provavelmente pretendia se incumbir
da descrição dessas viagens — algo que já lhe passara pelo espírito e que de resto estava mais
de acordo com seus talentos que os demais elementos das Memoirs
115
. A idéia teria de esperar
que ele recobrasse o ânimo da escrita. Em Gulliver Swift retomaria esse ponto de partida,
refinando-o e conferindo-lhe fôlego e intensidade. A obra que acabou escrevendo transcende
em muito as “viagens” originais, mas preserva elementos scriblerianos, sobretudo no Livro
III. E a proposta básica igualmente se preservou. “As Viagens de Gulliver são totalmente
scriblerianas em suas atitudes intelectuais básicas e até mesmo, excetuadas as referências às
questões irlandesas, em seus específicos objetos de sátira.”
116
Isso tudo significa que Swift
não recorreu ao relato de viagens por alguma confiança recém-descoberta no valor desse
gênero. O germe de Gulliver era por natureza combativo, e cresceu com a obra. A prosa de
ficção de Swift não compactuaria com a de seu tempo, pois a sua era uma adesão deletéria —
a adesão, por assim dizer, de um vírus.
_____
113
“to have ridiculed all the false tastes in learning, under the character of a man of capacity enough; that had
dipped into every art and science, but injudiciously in each”. Joseph Spence, com base em confidências de Pope,
em Anecdotes, Observations, and Characters, of Books and Men, seção I. In MMS, p. 363.
114
“The Dunciad”, II, v. 147. Pope, Selected Poetry, p. 141.
115
Os trechos de sátira científica cabiam naturalmente a Arbuthnot, e outros tópicos, como a crítica e a poesia, já
haviam sido suficientemente cobertos por Pope e Gay. Cf. Kerby-Miller, MMS, p. 316.
116
Gulliver’s Travels is thoroughly Scriblerian in its basic intellectual attitudes and even, with the exception of
the references to Irish affairs, in its specific objects of satire.” Kerby-Miller, MMS, 320.
56
Tais as raízes políticas e literárias de Gulliver. Vê-se que elas se ligam intimamente: a
postura de Swift como escritor reflete seu vínculo duradouro com uma certa classe e um certo
partido. Ao ganharem expressão no livro, sua crítica política e sua crítica literária preservaram
os laços originais. Isso significa que em Gulliver — para empregar os termos de McKeon —,
o meio de dizer a verdade na narrativa associa-se a uma certa estimativa da virtude dos
indivíduos. E é a isso que me voltarei agora.
57
2.2. Verdade e virtude
Hoje nós geralmente sabemos, antes mesmo de ler o livro, que Gulliver é o gigante em
terra de anões. Mas qual terá sido a reação do leitor de 1726, que abordou o texto sem
sobreaviso? Podemos imaginá-lo adquirindo seu exemplar ou tomando-o emprestado (os
livros afinal eram caros), percorrendo os parágrafos biográficos que abrem a narrativa e,
desde que fosse um leitor experimentado, deixando-se tomar pelo déjà vu — pela impressão
de que repetiam-se ali as viagens descritas por Richard Hakluyt ou William Dampier. Ele
provavelmente alargaria os olhos ao primeiro naufrágio e então depararia este trecho, em que
Gulliver está estendido, imóvel, numa costa anônima:
Passado pouco tempo senti que algo vivo se movia em minha perna esquerda, algo que,
avançando gentilmente por meu tórax, chegou-se-me próximo ao queixo. Nisso, baixando meus
olhos tanto quanto pude, percebi que era uma criatura humana com menos de seis polegadas de
altura, de arco e flecha na mão e aljava nas costas. Entrementes, senti pelo menos outros
quarenta da mesma espécie (ao que conjecturei) seguindo-se ao primeiro.
117
A pergunta é: como reagiu nosso leitor hipotético? Quero presumir que continuou lendo, a ver
se Gulliver tresvariava ou se realmente vira os homenzinhos. A primeira hipótese ele logo se
vê forçado a descartar. Os parágrafos que se seguem são obstinadamente factuais: Gulliver
não parece estranhar de modo algum os prodígios que relata. Ele prossegue em seu estilo
detalhista e pés-no-chão, contando como os liliputianos o dominaram, deram-lhe de beber
num tonel e finalmente o carregaram até sua capital, num colossal engenho para o transporte
de toras. Tudo isso no tom de quem narra um passeio no parque.
117
“In a little time I felt something alive moving on my left Leg, which advancing gently forward over my
Breast, came almost up to my Chin; when, bending my Eyes downwards as much as I could, I perceived it to be
a human Creature not six inches high, with a Bow and Arrow in his Hands, and a Quiver at his Back. In the
mean time, I felt at least forty more of the same kind (as I conjectured) following the first.” GT, I, i, p. 17.
58
2.2.1. Viagens verdadeiras?
Então o leitor se pergunta: isso tudo é verdade?
Se nos limitássemos ao método de exposição, poderíamos responder que sim. O livro
procura por todos os meios rechaçar a incredulidade, começando já pelo mistério que
envolveu sua publicação. Swift preferiu proteger-se sob um pseudônimo durante as
negociações com Benjamin Motte, o editor. Pope lhe contaria que “Motte recebeu a cópia
(segundo me disse) sem saber de onde nem de quem, entregue em sua casa no escuro, por um
coche; calculando o tempo, verifico que foi depois que você deixou a Inglaterra”
118
. A cópia
das Viagens foi acompanhada por uma carta de “Richard Sympson”, escrita, por precaução,
na caligrafia de Gay. Sympson declarava que seu primo, o capitão Lemuel Gulliver, lhe
confiara havia anos o relato de suas viagens, que ele convenientemente abreviara para levar a
público, desde que um editor assaz disposto o aceitasse. Motte aceitou o manuscrito, e a
primeira edição saiu com um prefácio de Sympson comunicando ao leitor a proveniência do
texto e esboçando a vida do “autor”. Lemuel Gulliver seria natural da cidade puritana de
Banbury, onde havia de fato uma família com esse nome. Em 1728, por exemplo, foi
sepultado no cemitério local um Samuel Gulliver, e até hoje várias lápides mantêm legível o
nome da família
119
.
As Viagens, até prova em contrário, eram obra portanto de um viajante real, que naquela
época vivia recolhido próximo a Newark. Na “Carta do Capitão Gulliver a seu primo
Sympson”, incluída na edição de 1735, sabemos também que esse viajante era primo de
William Dampier, o celebrado corsário cuja New Voyage Round the World (1697) foi em seu
tempo o mais célebre de todos os relatos de viagens. Gulliver era ademais conhecido por seu
amor à verdade: em Redriff, onde vivera muitos anos, tornara-se proverbial dizer que algo era
“tão verdadeiro como se o Sr. Gulliver o houvesse dito”
120
. Cioso dessa reputação, ele próprio
afirmará mais de uma vez seu compromisso com a verdade:
118
“Motte receiv’d the copy (he tells me) he knew not from whence, nor from whom, dropp’d at his house in the
dark, from a Hackney-coach: by computing the time, I found it was after you left England.” Carta da Swift em
16 de novembro de 1726, in GT, p. 266.
119
Cf. Turner (ed.), Gulliver’s Travels, p. 291.
120
“it was as true as if Mr. Gulliver had spoke it”. “The Publisher to the Reader.” GT, p. 5.
59
Eu talvez pudesse, como outros, ter-te assombrado com estórias estranhas e improváveis; mas
preferi relatar fatos corriqueiros, na maneira e no estilo mais simples, porquanto meu propósito
não era te divertir, mas informar-te.
121
A preocupação com a plausibilidade não se revela somente em testemunhos diretos. O
livro está repleto de artifícios autenticadores. O mais evidente deles é a profusão de detalhes.
Gulliver é um narrador metódico que despeja sobre o leitor toda sorte de minúcias,
presumivelmente extraídas de seu diário de viagens
122
. Sabemos, por exemplo, que na
primeira viagem ele partiu de Bristol em 4 de maio de 1699; recebemos pormenores sobre os
ventos, sobre as distâncias percorridas, sobre a latitude (a longitude ainda não era medida com
precisão nessa época); sabemos quando Gulliver voltou e onde desembarcou. E tudo isso se
repete nas demais viagens. Para tornar o estilo de Gulliver mais compatível com o de um
homem de sua condição, Swift recorreu a uma linguagem sem adornos, e chegou a plagiar
toda uma página da Mariner’s Magazine, usando e abusando da terminologia náutica
123
. O
livro além disso é rico em descrições pormenorizadas e catálogos de objetos, em ocorrências
banais e observações sem conseqüência.
Esses detalhes são em grande parte desnecessários ao desenrolar da ação, mas é
justamente nisso que consiste sua serventia. A inclusão de minúcias secundárias tinha um
efeito de que os escritores do século XVIII estavam bem cientes:
Como se avirá então [o narrador] para enganar-vos? Eis como: ele cumulará seu relato de
pequenas circunstâncias tão ligadas ao tema, de traços tão simples, tão naturais e todavia tão
difíceis de imaginar, que sereis forçado a dizer convosco: Por fé que isso é verdade; não se
121
“I could, perhaps, like others, have astonished thee with strange improbable tales; but I rather chose to relate
plain matter of fact, in the simplest manner and style; because my principal design was to inform, and not to
amuse thee.” In GT, IV, xii, 245.
122
O diário não ocupa, como em Robinson Crusoé, uma posição muito visível no livro de Swift; mas Gulliver o
considera, ao lado da boa memória, o requisito indispensável para escrever nesse gênero. Seu diário é
mencionado três vezes. Ver GT, I, ii, p. 31; IV, iii, p. 198; e IV, xii, p. 246.
123
Trata-se do segundo parágrafo da viagem a Brobdingnag.
60
inventa esse tipo de coisa.
124
O efeito que Diderot descreve pode ser ilustrado por um excerto de um dos escritores que
melhor souberam empregá-lo. O narrador neste caso é um soldado inglês em Paris, e recebe
de um pajem desconhecido a notícia de que seu capitão o chama. Ele é conduzido a um
aposento escuro onde três homens lutam, e no calor da refrega acaba matando um deles.
A surpresa do fato, e o inesperado abate do homem por um desconhecido que surgira ninguém
sabia como, apaziguou os outros dois, que me encaravam atônitos. Por essa altura eu já
constatara que meu capitão não estava ali, e que algum estranho acidente me trouxera ao local.
Eu falava mal o francês, e supunha que eles não falassem inglês. Por isso voltei-me em direção
à porta, procurando o pajem que ali me conduzira; mas não avistando ninguém e estando a
passagem livre, fugi o mais rápido que pude, sem dizer palavra. Tampouco os dois cavalheiros
fizeram menção de deter-me.
O leitor naturalmente gostaria de saber quem era o pajem, com que propósito iludiu o
narrador e que conseqüências teve o homicídio. Mas em vão: após duas páginas o incidente é
esquecido, para não ser mais mencionado. A conclusão é que, se o episódio fosse fictício, o
narrador cuidaria de arredondá-lo ou de vinculá-lo mais organicamente à narrativa; da
maneira como está, ele só pode ser verdadeiro. Uma conclusão natural: o excerto pertence às
Memoirs of a Cavalier (1720), de Defoe, livro que por mais de 60 anos foi aceito como uma
autobiografia genuína datada do século XVII
125
.
Em Gulliver não há exemplos tão drásticos de pormenores dispensáveis, mas por toda
124
“Comment s’y prendra donc [le conteur] pour vous tromper? Le voici: il parsèmera son récit de petites
circonstances si liées à la chose, de traits si simples, si naturels, et toutefois si difficiles à imaginer, que vous
serez forcé de vous dire en vous-même: Ma foi, cela est vrai; on n’invente pas ces choses-là.” Diderot, Les Deux
Amis de Bourbonne, p. 47.
125
“The Novelty of the Adventure, and the unexpected Fall of the Man by a Stranger come in no Body knew
how, had becalmed the other two, that they really stood gazing at me. By this Time I had discovered that my
Captain was not there, and that 'twas some strange Accident brought me thither. I could speak but little French,
and supposed they could speak no English; so I stepped to the Door to see for the Page that brought me thither:
but seeing no body there, and the Passage clear, I made off as fast as I could, without speaking a Word; nor did
the other two Gentlemen offer to stop me.” Defoe, Memoirs of a Cavalier, p. 17.
61
parte o detalhe menor se imiscui:
Propus deixar meus bens sob custódia como pagamento pelo frete: mas o capitão protestou que
não receberia um tostão. Despedimo-nos cordialmente, e consegui que ele prometesse visitar-
me em minha casa em Redriff. Contratei um guia com cavalo por cinco xelins, que tomei
emprestados do capitão.
126
O leitor passaria bem sem saber quanto cobrava o guia e por que meios Gulliver conseguiu o
dinheiro; tampouco lhe diz respeito a promessa do capitão, que jamais será cumprida. Mas a
cena perderia em vividez se tais detalhes fossem suprimidos: são eles que a colorem e a
tornam crível, tão crível quanto um relato veraz. “Mesmo Robinson Crusoé (embora relatando
eventos muito mais prováveis) dificilmente supera Gulliver em seriedade e verossimilhança
narrativa”, observaria Sir Walter Scott
127
.
Além do detalhismo, a narrativa de Gulliver comporta outros artifícios autenticadores.
Em mais de um momento a estória estabelece vínculos com o mundo real. Os nomes dos
navios em que Gulliver parte — Swallow, Adventure, Hopewell — eram todos de navios
verdadeiros. As terras descritas situam-se em regiões convenientemente afastadas mas muito
reais, e em geral Gulliver se preocupa em explicar por que elas eram desconhecidas na
Europa. Brobdingnag, por exemplo, não fora antes tocada pelos europeus por ser uma
península isolada por vulcões altíssimos e mares bravios;
donde não posso senão concluir que nossos geógrafos na Europa muito se enganam ao supor
que nada há salvo o mar entre o Japão e a Califórnia; pois sempre fui de opinião que cumpre
haver um balanço de terra como contrapeso ao grande continente da Tartária. Eles deveriam por
conseguinte corrigir seus mapas e cartas, unindo essa vasta faixa de terra à parte noroeste da
126
“I offered to leave my Goods in Security for Payment of my Freight: but the Captain protested he would not
receive one Farthing. We took kind leave of each other, and I made him promise he would come to see me at my
House in Redriff. I hired a Horse and Guide for five Shillings, which I borrowed of the Captain.” GT, II, viii, p.
124.
127
“Even Robinson Crusoe (though detailing events so much more probable,) hardly excels Gulliver in gravity
and verisimilitude of narrative.” Scott, Life of Swift. In TCH, p. 293.
62
América, para o que me predisponho a prestar-lhes assistência.
128
A proposta se assemelha às sugestões que Dampier fizera aos hidrógrafos para corrigir a
extensão dos Oceanos Índico e Atlântico
129
, e constitui um traço usual dos relatos de viagens
reais.
Outro fator que contribui para a verossimilhança é a consistência dos mundos visitados.
Uma vez ditadas as regras desses mundos, elas são observadas com razoável rigor. Em
Lilliput e Brobdingnag as proporções entre o protagonista e os nativos estão o tempo todo em
evidência. Os gigantes de Rabelais, por exemplo, só são gigantes quando convém à sátira; em
outros momentos seu gigantismo é convenientemente esquecido. Não se explica, por
exemplo, como Pantagruel flertava com as moças ou visitava o interior das universidades
européias. Mas ficamos sabendo como Gulliver se alimentava, como conseguia roupas, como
se abrigava dos elementos, como via e julgava seres e objetos tão maiores ou tão menores que
ele, e como estes o viam e julgavam. E a consistência não se limita a questões de proporção.
Os acontecimentos têm uma coerência muito rara nesse gênero. Quando Gulliver avança em
missão militar contra o império de Blefuscu (I, v), ele protege os olhos das setas inimigas com
um par de óculos que trazia ao bolso; longe de constituir um improviso, esse par de óculos é o
mesmo que havia anteriormente escapado à vistoria dos liliputianos (I, ii). Se demonstra ao
imperador o uso da pólvora (I, ii), Gulliver também se preocupa em explicar como ela não se
molhou no naufrágio. Se os Houyhnhnms têm enigmáticos artigos manufaturados — como
casas e coches puxados por Yahoos —, ficamos sabendo que eles são habilíssimos com seus
cascos, chegando à façanha de passar um fio pelo buraco da agulha (IV, ix)
130
.
Por fim, Gulliver procura conquistar a cumplicidade do leitor demonstrando ele próprio
uma ocasional surpresa. Eis sua reação ao ser albergado entre os Houyhnhnms:
128
“whence I cannot but conclude, that our Geographers of Europe are in a great Error, by supposing nothing but
Sea between Japan and California; for it was ever my Opinion, that there must be a Balance of Earth to
counterpoise the great Continent of Tartary; and therefore they ought to correct their Maps and Charts, by
joining this vast Tract of Land to the North-west parts of America, wherein I shall be ready to lend them my
Assistance.” GT, II, iv, p. 92.
129
Dampier, A New Voyage Round the World, X, pp. 196-201.
130
Não se sabe como Swift pretendia que fosse pronunciado o nome dos cavalos, mas tornou-se convencional a
pronúncia whinnim, o que remete ao verbo to whinny (“relinchar”).
63
Receei que meu cérebro houvesse sido perturbado por meus sofrimentos e infortúnios. Levantei-
me e observei o aposento onde fora deixado só: era mobiliado como o primeiro, salvo que de
maneira mais elegante. Esfreguei os olhos mais de uma vez, mas os mesmos objetos se me
apresentavam. Belisquei os braços e os flancos para acordar, na esperança de estar num
sonho.
131
Mais adiante, quando Gulliver adquire rudimentos da linguagem e começa a contar sua
história ao mestre Houyhnhnm (IV, iii), este duvida que possa haver um outro país além dos
mares. O leitor inglês, que tem sua própria existência posta em dúvida, é obrigado a censurar
o ceticismo desinformado. Com essa hábil manobra, o narrador o predispõe à credulidade.
Para os céticos obstinados ele só teria desprezo:
Se a censura dos Yahoos pudesse de algum modo afetar-me, eu teria grande motivo de queixa,
já que alguns deles têm a audácia de considerar meu livro de viagens uma mera ficção nascida
de meu cérebro, e chegam ao ponto de insinuar que os Houyhnhnms e Yahoos não têm mais
existência do que os habitantes de Utopia.
132
Gulliver, em suma, é um narrador extremamente cioso da veracidade, e procura
credenciar o relato de suas viagens com uma vasta gama de artifícios autenticadores. À
pergunta de nosso leitor hipotético — “Isso tudo é verdade?” — podemos oferecer esta
resposta parcial: Gulliver faz o possível para que pareça verdade.
Ao que o leitor fatalmente replicará: “E todavia ele mente!”.
131
“I feared my Brain was disturbed by my Sufferings and Misfortunes. I roused my self, and looked about me in
the Room where I was left alone: this was furnished like the first, only after a more elegant manner. I rubbed my
Eyes often, but the same Objects still occurred. I pinched my Arms and Sides to awake myself, hoping I might
be in a Dream.” GT, IV, ii, p. 194.
132
“If the Censure of the Yahoos could any way affect me, I should have great Reason to complain, that some of
them are so bold as to think my Book of Travels a mere Fiction out of mine own Brain, and have gone so far as
to drop Hints, that the Houyhnhnms and Yahoos have no more Existence than the Inhabitants of Utopia. GT, “A
Letter from Capt. Gulliver, to his Cousin Sympson”, p. 256.
64
2.2.2. Viagens imaginárias
Um elemento fundamental de As Viagens de Gulliver é a incompatibilidade entre o
arcabouço realista da narrativa e o conteúdo que esse arcabouço se presta a transmitir. De um
lado temos a proveniência atestada do manuscrito, as profissões de veracidade, a riqueza de
detalhes secundários, a precisão temporal e geográfica e a coerência interna; de outro, temos
homens de seis polegadas ou sessenta pés de altura, uma ilha voadora, uma raça de imortais,
cavalos falantes e outros “fatos corriqueiros”. Não há dúvida: estamos na província da viagem
imaginária.
Em sua tentativa de classificar Gulliver dentro desse subgênero, William A. Eddy
dividiu as viagens imaginárias entre românticas e filosóficas; as viagens filosóficas, por sua
vez, foram subdivididas em fantásticas e realistas. Nessa classificação As Viagens de Gulliver
ocupam um lugar ambíguo, pois embora sejam em substância fantásticas, sua forma narrativa
é realista — “o tipo de narrativa de uma viagem real, caracterizada pelas experiências comuns
e invariáveis do marujo ordinário”
133
. Num salto de imaginação, é como se tivéssemos as
viagens de Simbá narradas por William Dampier
134
.
Que Swift tenha optado pelo subgênero da viagem imaginária é, como vimos,
compreensível. O artifício estava previsto no projeto das Memoirs of Martinus Scriblerus.
Ademais, as vantagens desse gênero para o comentário político e cultural eram evidentes. A
viagem imaginária como mecanismo satírico já era conhecida desde os tempos de Luciano de
Samósata, cuja História Verdadeira procurava ridicularizar relatos falsificadores como os de
Ctésias, Heródoto ou até mesmo Ulisses. Ela passara por Rabelais e Cyrano de Bergerac, e
vinha tendo uma voga crescente nos séculos XVII e XVIII
135
. Sucessos como O Espião nas
133
“the type of narrative of actual travel, distinguished by the standard, invariable experiences of an ordinary
seaman”. Eddy, Gulliver’s Travels: A Critical Study, p. 29.
134
Por falar em Simbá, embora admita-se uma certa influência geral das Mil e Uma Noites sobre Swift, há uma
possível influência particular que ainda não vi apontada por nenhum crítico. A história da mulher que desdenhou
o primeiro-ministro de Laputa para viver com um lacaio que a maltratava pode ter sido inspirada num episódio
das Noites na versão de Galland. Ver a “Histoire du Jeune Roi des Îles”, em Les Mille et Une Nuits, p. 64.
135
Confira-se o abrangente estudo de Philip Babcock Gove, The Imaginary Voyage in Prose Fiction, que
enumera 215 viagens imaginárias publicadas entre 1700 e 1800. Minhas observações sobre o
desenvolvimento do gênero nessa época baseiam-se em
Ralph E. Tieje, The Prose Imaginary Voyage before
65
Cortes dos Reis Cristãos (1684), do genovês Gian-Paolo Marana, e as Cartas Persas (1721),
de Montesquieu, ilustrariam bem a eficácia do método — que consistia basicamente em
submeter a realidade a um olhar estranho, exaltando-lhe os absurdos. O sucesso de Cyrano,
particularmente, ajudou a ampliar o escopo da viagem imaginária para além dos confins da
utopia. Depois da época de More o interesse narrativo desse gênero passou a disputar terreno
com a mensagem filosófica. Uma espécie de propósito ulterior se preservou em muitos casos,
mas a utopia genuína se tornou rara e perdeu-se em elementos ambíguos e trechos distópicos
— como em The Isle of Pines (1668), de Henry Neville
136
. No início do século XVIII a
viagem imaginária deixara de ser um mero enquadramento para o diálogo filosófico (como
em More e Campanella) e se tornara efetivamente uma estória. Sua finalidade predominante
seria a sátira, e nisso consistia seu atrativo para Swift. Em abril de 1711 ele mencionou a
Stella uma sugestão que dera a Steele para um número do Spectator, “sobre um indiano que
supostamente escreveria suas viagens à Inglaterra. Lamento que ele a tenha tido. Eu pretendia
escrever um livro sobre o assunto”
137
. Em Gulliver Swift inverteria o enfoque, enviando um
inglês a países estranhos que, não obstante, representam em muitos sentidos sua terra natal. A
pílula da sátira seria adocicada pela riqueza ficcional que nessa época caracterizava o gênero;
e a ficção, como em Luciano ou Rabelais, se justificaria por estar a serviço da sátira.
Mas por que asseverar a veracidade de uma narrativa tão evidentemente falaciosa?
Luciano, por exemplo, após denunciar os falsificadores de relatos, declara: “Minha maneira
de mentir é muito mais honesta que a deles; pois há pelo menos um ponto em que serei
verídico, e é em reconhecer que sou mentiroso”
138
. Já Gulliver faz precisamente o contrário,
embora suas chances de iludir o leitor não sejam maiores que as de Luciano. As razões para
1900 (1917), que Gove resume nas páginas 92-96. Aos interessados é útil saber que o livro de Gove inclui
longas citações não traduzidas em francês, alemão e holandês, além de passagens mais breves em outros
idiomas, o que pode limitar sua utilidade.
136
O texto de Neville vem atraindo interesse por prenunciar certos elementos de Robinson Crus. Cumpre
advertir, porém, que sua versão mais comum (incluída por Philip Henderson em Shorter Novels: Seventeenth
Century) elimina as ambigüidades de sentido ao suprimir a importante “Carta de Van Sloetten”, que emoldura a
narrativa de Pines. A versão completa foi incluída por Susan Bruce em Three Early Modern Utopias (ver
bibliografia).
137
The Journal to Stella, XXI, 28 de abril de 1711. O texto de Steele saiu no Spectator Nº 50.
138
“Ma manière de mentir est beaucoup plus honnête que la leur; car il y a du moins un point où je serai
véridique, c’est en avouant que je suis un menteur.” Luciano de Samósata, Histoire Vraie (versão francesa de
Émile Chambry), p. 32.
66
sua atitude são sugeridas na terceira parte, quando ele conferencia com figuras da
Antigüidade:
Ali descobri a velhacaria e ignorância dos que pretendem escrever anedotas, ou histórias
secretas; que remetem tantos reis ao túmulo com um cálice de veneno; que repetem discursos
entre um príncipe e um primeiro-ministro, quando não havia testemunhas; que descerram os
pensamentos e gabinetes de embaixadores e secretários de Estado; e que têm o perpétuo
infortúnio de estar equivocados.
139
Este é um dos momentos em que a voz de Gulliver deixa de ser a do cirurgião e marujo e se
confunde com a do homem de letras que o imagina. Swift via com desconfiança e aversão o
gênero das histórias secretas, com suas descrições pseudoverazes de eventos absolutamente
imaginários — eventos que acabavam, não obstante, se imiscuindo nas páginas da história. A
ambigüidade entre fato e ficção não era apanágio das histórias secretas: era comum em muitas
outras formas, como por exemplo os falsos relatos de viagens a terras remotas. Motivados
pelo sucesso de autores como Dampier, muitos escritores passaram a satisfazer a curiosidade
pública descrevendo a fauna, a flora, os povos e os costumes de países distantes sem o
inconveniente de visitá-los. A desconfiança com relação a esse ardil atingiu um pico em 1704,
quando foi desmascarado o então famoso George Psalmanazar, um francês que se passava por
formosino e que publicou em Londres uma detalhada descrição de Formosa, jactando-se de
sua veracidade
140
. Os scriblerianos tinham um olho nessa tendência, e as viagens de Martinus
destinavam-se em parte a atacá-las (“Que outros mortais se debrucem sobre mapas e engulam
as lendas de viajantes mentirosos”
141
). Enquanto redigia Gulliver, Swift se ocupou com a
leitura de relatos de viagens
142
, entre os quais talvez estivesse Robinson Crusoé
139
Here I discovered the Roguery and Ignorance of those who pretend to write Anecdotes, or secret History; who
send so many Kings to their Graves with a Cup of Poison; will repeat the discourse between a Prince and Chief
Minister, where no Witness was by; unlock the thoughts and cabinets of Ambassadors and Secretaries of State;
and have the perpetual Misfortune to be mistaken.” GT, III, viii, p. 170.
140
An Historical and Geographical Description of Formosa, an Island Subject to the Emperor of Japan (1704).
141
“Let other Mortals pore upon Maps, and swallow the legends of lying travellers.” MMS, II, p. 101.
142
Ver carta a Vanessa em 13 de julho de 1722.
67
considerado por seu “editor” uma “justa história de fatos; tampouco há nela qualquer
aparência de ficção”
143
. Por essa época já se sabia que Robinson Crusoé era, sim, ficção, e
muitas das outras viagens lidas por Swift deviam ser igualmente imposturas. Ele recorreria a
um método sutil para desmascará-las — o mesmo método que já empregara em mais de uma
sátira: adotar a voz de seu adversário para proferir absurdos.
Ao contrapor o realismo dos relatos de viagens às aventuras absolutamente improváveis
de Gulliver, Swift está exaltando o caráter enganoso daquele. Como ele demonstra, as
convenções realistas podem perfeitamente ser postas a serviço da falsidade. Exemplos disso
abundam nas Viagens. Num certo momento (I, viii), Gulliver relata suas experiências em
Lilliput aos marinheiros que o resgatam, e como prova de sua veracidade tira dos bolsos
minúsculos bois e carneiros. Nessa passagem Paul Turner incluiu a seguinte nota:
como o leitor não pode ver os carneiros e bois, essa prova de veracidade é equivalente à de
Luciano quando, após relatar as mais desvairadas estórias sobre a sociedade lunar, ele conclui:
“Bem, assim eram as coisas na Lua. Se você não acredita, vá e veja com seus próprios olhos”.
144
Mais adiante (II, iii) Gulliver oferece uma prova mais palpável de suas viagens, declarando
haver exposto em vários lugares da Europa os ferrões das vespas gigantes que matara em
Brobdingnag; quem os quisesse ver podia procurá-los no Gresham College, sede da Real
Sociedade. (E fatalmente os veria, pois lá se encontravam reproduções ampliadas de muitos
insetos — interesse que Swift julgava dos mais fúteis.) Lembremo-nos ainda da seriedade
com que Gulliver refuta os boatos de que tivera um caso com a esposa de Flimnap, o
tesoureiro de Lilliput. “Admito que ela vinha amiúde à minha casa, mas sempre publicamente,
e nunca sem outras três pessoas no coche, que eram de uso sua irmã e sua jovem filha, além
de algum amigo próximo.”
145
Essa circunspecção denota franqueza, mas omite o fato
143
Defoe, Robinson Crusoé, “Preface”, p. 3.
144
“since the reader cannot see the sheep and cattle, this proof of veracity is equivalent to Lucian’s when, after
telling some very tall stories about lunar society, he concludes: ‘Well, that is what it was like on the Moon. If
you don’t believe me, go and see for yourself’.” Turner (ed.), Gulliver’s Travels, p. 307.
145
“I own she came often to my House, but always publicly, nor ever without three more in the Coach, who were
usually her Sister and young Daughter, and some particular Acquaintance.” GT, I, vi, p. 54.
68
elementar de que a Sra. Flimnap tinha seis polegadas de altura. Em todos esses casos o
aparente apego de Gulliver pela verdade é acompanhado pela exposição inadvertida de
absurdos. Também pode ser acompanhado pela mais pura irrelevância. A Real Sociedade
havia exortado os viajantes a ser muito minuciosos no registro de dados. Foi isso que motivou
a precisão do relato de Dampier, por exemplo. Gulliver, seguindo o mesmo conselho, é
devotamente meticuloso:
Ocultei-me entre duas folhas de azeda, e ali aliviei as necessidades da natureza.
Espero que o gentil leitor me perdoe por alongar-me neste e em outros detalhes do tipo,
que, por insignificantes que pareçam a mentes vulgares e chãs, certamente ajudarão o filósofo a
alargar seus pensamentos e sua imaginação e a aplicá-los no benefício da vida pública e
privada.
146
Ao longo das Viagens o conflito entre o conteúdo e as convenções realistas sugere que
artifícios como o manuscrito original, o “autor” recolhido, a profusão de detalhes e os
vínculos com o mundo real não eram garantia alguma de veracidade ou valor documental.
Eles constituíam antes um disfarce para que a ficção tentasse invadir o nobre terreno da
história. Essa é uma infração que Swift via como grave, e que As Viagens de Gulliver em
momento algum cometem. O livro, apesar dos artifícios autenticadores, assume de diversas
maneiras seu caráter ficcional. A mais evidente é o conteúdo extravagante, mas há outras.
Fica claro, pelas passagens acima, que a voz do narrador é amiúde desacreditada pela ironia
de fundo. E Swift procurou confirmar por outros meios a distância entre criador e criatura.
More, na composição de seu livro, procurara deixar indícios “que habilitassem aos mais cultos
enxergarem através do véu do simulacro”
147
; em Utopia temos um rio Anidro (“sem água”),
um rei Ademos (“sem povo”) e o relator Hitlodeu (“mercador de disparates”). Swift fez algo
muito similar. O nome Gulliver (que só aparece no frontispício, não ocorrendo nenhuma vez
146
“I hid my self between two Leaves of Sorrel, and there discharged the Necessities of Nature./I hope the gentle
Reader will excuse me for dwelling on these and the like Particulars, which, however insignificant they may
appear to groveling vulgar Minds, yet will certainly help a Philosopher to enlarge his Thoughts and Imagination,
and apply them to the Benefit of Public as well as private Life.” GT, II, i, p. 78.
147
More, em carta a Peter Giles, Utopia, p. 187.
69
no texto) pode significar simplesmente gullible (“crédulo”, “simplório”)
148
. Para reforçar a
sugestão, a edição de 1735 trouxe um retrato imaginário de Gulliver ornado pela inscrição
“Splendide Mendax” (“mentiroso esplêndido”). A expressão provém de uma ode de Horácio
em que uma mulher comete perjúrio para evitar que seu pai lhe mate o marido. A mentira,
nesse contexto, se torna uma forma de retidão, e “ressuscita a complexa confiabilidade moral
de Gulliver, no momento mesmo em que desabona sua veracidade narrativa”
149
. Em outras
palavras, as mentiras de Gulliver podem ser o veículo para a transmissão de verdades mais
amplas.
2.2.3. O viajante imaginário
Quando Swift entra em campo para combater os viajantes de sótão que se pretendiam
verazes, ele se empenha também em refutar sua visão progressista de mundo. Para o primeiro
objetivo, ele tomou emprestada a mesma postura epistemológica que pretendia desmentir.
Para o segundo, ele recorre ao mesmo herói que tenciona desvirtuar. Desde os primeiros
parágrafos ficamos sabendo que Gulliver é o terceiro filho de uma família modesta de
extração puritana, e que seu histórico é o do homem de classe média. Uma possibilidade que
já ocorreu à crítica é a de que a abertura autobiográfica seja uma alegoria da carreira de
Defoe
150
. É certo que Gulliver, em sua busca pela prosperidade nos mares, remete
inicialmente a Robinson Crusoé. Num sentido mais amplo, ele remete também a outros
narradores autobiográficos por cuja consciência individual o mundo se refletia. Vale lembrar
que a narrativa em primeira pessoa era o artifício mais conveniente para o autor que desejasse
afirmar a autenticidade de seu relato. Por meio dela era possível invocar a convenção do
manuscrito autobiográfico ou do diário de bordo. O enredo básico desse tipo de narrativa
consistia num tortuoso caminho rumo à prosperidade ou à remissão; o “autobiógrafo”, que
148
Gullible nessa época seria um neologismo criado a partir do verbo to gull. A palavra só surge de fato no
século XIX. Cf. A. D. Nuttall, “Gulliver among the horses”, in Rawson (ed.), Jonathan Swift: A Collection of
Critical Essays, p. 256.
149
“resurrects Gulliver’s complicated moral reliability even as it impeaches his narrative veracity.” Janine
Barchas, “The Paratext of The Travels: Gulliver’s Many Faces”. In GT, p. 476.
150
John Robert Moore, “A DeFoe Allusion in Gulliver’s Travels”. Cf. Hunter, “Gulliver’s Travels and the
novel”, in GGT, p. 74.
70
escrevia tempos depois dos eventos narrados, e a quem a experiência trouxera sabedoria,
podia julgar moralmente o passado, condenando ou aprovando como melhor lhe conviesse.
Essa visão retrospectiva e esclarecida constituía um eficiente filtro ideológico. Robinson
Crusoé era uma espécie de “diário das virtudes mercantis”
151
— esse tipo de virtude que
McKeon associou à ideologia progressista. Em Gulliver, porém, a fidelidade a esse modelo é
apenas aparente. A promessa implícita na abertura — de um retorno triunfante após várias
peripécias — não se cumpre. O narrador é muito ineficaz como herói progressista,
fracassando não somente no requisito do progresso, mas também no do julgamento
retrospectivo.
Em primeiro lugar, Gulliver não prospera e não aprende. Na abertura da quarta viagem,
após tanto tempo como cirurgião de bordo, ele finalmente recebe a proposta de ser capitão de
um navio, mas o sucesso não dura duas páginas: um motim o destitui da posição e ele é
abandonado em desgraça no país dos Houyhnhnms. Não somente sua condição não melhora,
como seu espírito até esse momento não guarda marcas da experiência. As viagens se
sucedem sem que haja um verdadeiro movimento no tempo
152
. Embora o caráter do narrador
sofra trancos (veja-se mais abaixo), após cada retorno voltamos a encontrar na abertura
seguinte o mesmo Gulliver, “condenado pela natureza e fortuna a uma vida ativa e
irrequieta”
153
.
“Permaneci em casa com minha esposa e meus filhos por cerca de cinco meses, numa condição
das mais felizes, se eu pudesse ter aprendido a lição de perceber quando estava bem.”
154
O movimento do livro é, enfim, cíclico. Procuraremos em vão, na viagem a Laputa, indícios
de que o narrador já passou por Lilliput e Brobdingnag. Somente o livro II guarda
reminiscências claras de fatos anteriores, necessárias neste caso ao efeito satírico. Se em
151
Título de um ensaio que Italo Calvino dedicou a Defoe, em Por que ler os clássicos.
152
A esse respeito, cf. Ehrenpreis, “Show and Tell in Gulliver’s Travels”, in GT, pp. 450-467.
153
“condemned by Nature and Fortune to an active and restless Life”. GT, II, i, p. 69.
154
“I continued at home with my Wife and Children about five Months, in a very happy Condition, if I could
have learned the Lesson of knowing when I was well.” GT, IV, i, p. 187.
71
Lilliput o leitor vê que o orgulho e a ambição podem brotar em criaturas desprezíveis, em
Brobdingnag ele é subitamente posto no papel dessas criaturas. A conclusão é que tudo o que
vale contra os liliputianos vale igualmente contra os europeus. A lição, se se imprime no
leitor, não o faz todavia em Gulliver: este é justamente o livro em que seus elogios à pátria
são os mais desmedidos. A experiência em Lilliput não serviu de nada para seu
engrandecimento de espírito. É apenas na quarta viagem que testemunhamos uma verdadeira
renovação pessoal, e não se trata da típica remissão moral de tantas narrativas da época. O
personagem que deveria encerrar suas andanças num estado de maior discernimento só
degenera em misantropia. O esperado elogio às virtudes do homem que percorre o mundo e
domestica a natureza não se concretiza, e em seu lugar temos uma declaração de ódio à
humanidade. Igualmente ausente é o entusiasmo mercantil. Dampier, por exemplo, recomenda
repetidamente o fortalecimento mundial do comércio inglês, e só tem olhos para o
intercâmbio de bens: mesmo os animais e as plantas interessam-lhe como mercadorias. Em
Gulliver inexistem as costumeiras sugestões de expedições exploratórias ao governo. O livro
se encerra com um manifesto contra o colonialismo, especificamente contra o tratamento
dispensado pela Inglaterra à Irlanda. O comércio e a prosperidade a ele associada só figuram
no livro em cores negativas.
Em segundo lugar, a visão retrospectiva é muito problemática no caso de Gulliver. Nas
autobiografias ficcionais da época o protagonista costuma estar presente de duas maneiras
simultâneas: como o jovem estouvado que age e como o homem ponderado que narra, e é da
interação entre as ações do primeiro e o julgamento do segundo que resulta o significado
moral da obra. Nas Viagens tal interação raramente ocorre. O relato foi escrito cinco anos
após o retorno definitivo de Gulliver à Inglaterra (IV, xi). Nessa época ele já era o misantropo
que havia deixado a contragosto o país dos Houyhnhnms e que só com dificuldade tolerava a
vizinhança das pessoas. No entanto, sem consultarmos o livro IV ou as cartas de Gulliver,
jamais suspeitaríamos que os livros I-III foram escritos por um misantropo. O tom é
incompatível com o caráter final do narrador. O velho Gulliver jamais escreveria um trecho
como este, em que o rei de Brobdingnag acaba de cobrir os ingleses de reprimendas:
Nada, salvo um extremo amor pela verdade, poderia ter-me impedido de omitir esta parte de
minha estória. Seria vão demonstrar meus ressentimentos, que eram sempre convertidos em
72
ridículo; e fui forçado a agüentar com paciência enquanto meu nobre e amado país era tratado
tão injuriosamente.
155
Falta aqui o proverbial “eu era jovem e não sabia”. Sentimos a mesma ausência de julgamento
retrospectivo até meados do livro IV, quando a transformação moral de Gulliver tem início.
Isso ocorre porque Gulliver não descreve os acontecimentos como os vê em sua posição de
memorialista, mas como os vira no momento em que eles tinham lugar. Os julgamentos e as
ações pertencem quase sempre ao mesmo Gulliver — o Gulliver do passado. Não temos com
isso um narrador que, como bom herói progressista, reconsidere seus atos à luz da experiência
adquirida. Mesmo que seu estado final não fosse a misantropia, ele seria incapaz de extrair um
corolário ideológico das atribulações que descreve. Há basicamente duas razões para esse
problema de ponto de vista. A primeira é a estrutura episódica do livro: as quatro viagens são
quase que unidades autônomas, e quando Swift concebeu as primeiras ele provavelmente não
pensara ainda no desfecho da quarta. A segunda razão é que a idéia de consciência individual
era vista com aversão por Swift e por muitos augustanos, para quem
tentativas de ler o mundo e seu propósito mediante o registro de impressões sensórias e a
atribuição de qualidades simbólicas a coisas e eventos (como ocorre em Robinson Crusoé e na
tradição emblemática representada por meditadores meletéticos como Robert Boyle) [são] enfim
um modo arrogante, interesseiro e até mesmo solipsista de encarar o mundo.
156
Acrescente-se ainda que o individualismo, para Swift, estava associado a seitas dissidentes de
tendência calvinista, com sua ênfase na autonomia do intercurso entre Deus e o fiel e seu
conseqüente descaso pela igreja estabelecida. Era, em suma, uma tendência rebelde e
155
“Nothing but an extreme Love of Truth could have hindered me from concealing this Part of my Story. It was
in vain to discover my Resentments, which were always turned into Ridicule; and I was forced to rest with
Patience, while my noble and beloved Country was so injuriously treated.” GT, II, vii, p. 111.
156
“attempts to read the world and its purpose through the recording of sense impressions and the imparting of
symbolic qualities to things and events (as done in Robinson Crusoe and in the emblematic tradition represented
by meletetic meditators like Robert Boyle) is [sic] finally an arrogant self-serving, even solipsistic way of
regarding the world.” J. P. Hunter, “Gulliver’s Travels and the Novel”, in GGT, p. 68.
73
subversiva. Por tudo isso, Swift não se preocupou em adotar o modelo da consciência
individual senão superficialmente, e como resultado seu narrador não pôde temperar o relato
de acordo com suas idiossincrasias.
Isso não comprometeria necessariamente a coerência moral da narrativa: se o narrador é
omisso, poderíamos perfeitamente nos contentar com os julgamentos do jovem Gulliver.
Ocorre, porém, que Gulliver é inconsistente não apenas como narrador, mas também como
protagonista. Observei mais acima que seu caráter não sofre uma evolução rumo a uma
condição final. Resta dizer que tal “caráter” tampouco se preserva. A verdade é que Gulliver
não possui estabilidade suficiente para que uma evolução seja discernível, nem para que lhe
atribuamos uma personalidade fixa. Ele sofre modulações bruscas e freqüentes, para as quais
não existe nenhuma causa externa visível. Num momento ele é o observador perspicaz que
enxerga nitidamente a corrupção à sua volta; em outro, é um tolo que sem perceber elogia a
mesma corrupção. Na mesma situação podemos vê-lo ora sensato, ora ingênuo, ora
inadvertidamente irônico. Um exemplo é seu tratamento da justiça inglesa. Neste trecho ele a
critica, comparando-a com a de Lilliput:
E essa gente considerou uma prodigiosa falha de política entre nós quando lhes contei que
nossas leis eram impostas somente por penalidades, sem menção alguma de recompensas. É por
esse motivo que a imagem da justiça, em suas cortes de judicatura, é formada com seis olhos,
dois na frente, dois atrás e um de cada lado, para denotar circunspecção; e com um saco de ouro
aberto na mão direita e uma espada embainhada na esquerda, para demonstrar que ela se dispõe
mais a recompensar do que a punir.
157
Mais adiante sua atitude crítica desaparece:
Passei então às cortes de justiça [inglesas], sobre as quais os juízes, esses veneráveis sábios e
157
“And these People thought it a prodigious Defect of Policy among us, when I told them that our Laws were
enforced only by Penalties, without any Mention of Reward. It is upon this account that the Image of Justice, in
their Courts of Judicature, is formed with six Eyes, two before, as many behind, and on each Side one, to signify
Circumspection; with a Bag of Gold open in her Right Hand, and a Sword sheathed in her Left, to show she is
more disposed to reward than to punish.” GT, I, vi, p. 49.
74
intérpretes da lei, presidiam, para determinar disputas sobre os direitos e propriedades dos
homens, bem como sobre a punição do vício e a proteção da inocência.
158
E em seguida dá lugar à ironia involuntária (o trecho a seguir pretende ser lisonjeiro):
Vossa Excelência ora há de saber que esses juízes são pessoas designadas para decidir quaisquer
controvérsias relativas à propriedade e ao julgamento de criminosos, sendo escolhidos dentre os
mais hábeis advogados, quando envelhecidos ou preguiçosos; e, por se haverem inclinado
durante toda a vida contra a verdade e a eqüidade, sentem uma necessidade tão fatal de
favorecer a fraude, o perjúrio e a opressão, que eu soube de alguns que recusaram grandes
subornos do lado em que estava a justiça para não ofenderem sua profissão com atitudes
incompatíveis com sua natureza ou seu ofício.
159
As oscilações de caráter de Gulliver tornam complexo seu estatuto como personagem. Ele não
é nem “plano” nem “redondo”, para usar os termos de Forster
160
: não se limita a uma única
idéia ou qualidade, nem envolve uma variedade delas. Ele é antes um complexo de
características muitas vezes incompatíveis que se sucedem no tempo, sem a necessidade de
influxos exteriores. Se o misantropo que rememora não é capaz de proporcionar ao leitor o
tipo de orientação moral que as autobiografias tipicamente ofereciam, esse protagonista tão
instável tampouco servirá de guia.
A biografia narrada em primeira pessoa por um herói esclarecido de classe média é,
assim, uma convenção que Swift adota somente para subvertê-la. Não significa, porém, que os
158
“I then descended to the Courts of Justice; over which the Judges, those venerable Sages and Interpreters of
the Law, presided, for determining the disputed Rights and Properties of Men, as well as for the Punishment of
Vice and Protection of Innocence.” GT, II, vi, p. 107.
159
“Now your Honour is to know, that these Judges are Persons appointed to decide all Controversies of
Property, as well as for the Trial of Criminals, and picked out from the most dexterous Lawyers, who are grown
old or lazy; and having been biassed all their Lives against Truth and Equity, lie under such a fatal Necessity of
favouring Fraud, Perjury, and Oppression, that I have known some of them refuse a large Bribe from the Side
where Justice lay, rather than injure the Faculty, by doing any Thing unbecoming their Nature or their Office.”
GT, IV, v, p. 210.
160
E. M. Forster, Aspects of the Novel, p. 73ss.
75
acontecimentos em Gulliver sejam isentos de um juízo direto — em outras palavras, que o
livro “mostre” mas não “conte”
161
. Ocorre apenas que esse juízo, que o narrador e o
protagonista não conseguem nos oferecer, acaba provindo de outra direção. O significado dos
eventos é sugerido por uma outra presença no texto — a mesma presença que nos permite
saber que a narrativa é falsa, apesar das afirmações de Gulliver em contrário. Essa outra voz
— cujo distanciamento de Gulliver varia e nem sempre é nítido — é a do satirista. Trata-se da
única voz consistente no desenrolar das viagens, e a ela podem sacrificar-se outras
considerações, como a coerência psicológica do narrador.
[Gulliver] fala como o faz não por ser tal e qual personagem, desenvolvendo-se ou modulando
desta ou daquela maneira, e adotando tons de voz que respondam a mudanças e pressões em
suas circunstâncias e seu temperamento, mas porque Swift o está usando para projetar
propósitos satíricos mais amplos, numa manipulação da indireta irônica, e não do ponto de vista
característico dos romances.
162
A instabilidade do caráter de Gulliver se explica pela variedade de enfoques satíricos que
Swift adotou, às vezes ridicularizando o mundo através da visão do narrador, e outras vezes
ridicularizando o próprio narrador por sua falta de visão. “[Gulliver] é em grande medida o
que quer que Swift deseje ou precise que ele seja a cada momento da narrativa; ele é mais
uma figura retórica do que humana”
163
. Gulliver constitui assim mais uma das personæ de
Swift, ao lado de Isaac Bickerstaff, do compilador do Conto do Tonel e do autor da Modesta
Proposta. A lista é instrutiva: vemos nela um vidente que expõe ao ridículo a astrologia, um
erudito cuja obra desqualifica a erudição e um proponente que faz lamentar a publicação de
propostas. No caso de Gulliver, o que temos é um viajante imaginário sem sucesso e sem
161
Sobre a distinção usual entre “mostrar” e “contar”, cf. Wayne C. Booth, The Rhetoric of Fiction; Booth trata
de Gulliver no capítulo 11 da parte III.
162
“He speaks as he does not because he is such and such a character, developing or modulating in this or that
way, adopting tones of voice that respond to changes and to pressures in his circumstances or temperament, but
because Swift is using him to project larger satiric purposes, in a manipulation of ironic indirection, not of
novelistic point of view.” Claude Rawson, “Reflections on Swift’s ‘I’ Narrators”, in GT, p. 487.
163
“He is pretty much whatever Swift wants or needs him to be at any given point in the narration; he is more of
a rhetorical figure than a human one.” J. P. Hunter, “Gulliver’s Travels and the later writings”, in CCJS, p. 227.
76
mensagem positiva — um herói das viagens progressistas que põe em descrédito as
convenções dessas mesmas viagens.
2.2.4. A alternativa conservadora
A subversão dos métodos de seus rivais é a forma que Swift encontrou de desacreditar
os relatos autobiográficos pseudoverazes e ao mesmo tempo “dizer a verdade na narrativa”.
Qual é então essa verdade, que terá de ser transmitida pela sátira e que por implicação deve
ser diversa da dos heróis progressistas? Já ficou evidente que o que estava em jogo não era
uma mera opção epistemológica, mas um conflito entre duas visões de mundo antagônicas.
Swift procurou atacar a ideologia progressista e contrapor-lhe uma alternativa conservadora,
mas enfrentou o dilema comum dos satiristas — o de saber demolir mais do que construir
164
.
Os veredictos negativos da sátira são muito claros; mais difícil é extrair dela uma mensagem
construtiva.
Desde muito cedo apontou-se o parentesco de As Viagens de Gulliver com o gênero
utópico. Muitas das propostas dispersas pelo livro — como a eugenia, a igualdade de
instrução entre os sexos e a educação com exercícios físicos — encontram paralelos na
República ou na Cidade do Sol. Thomas Sheridan, pai do dramaturgo e biógrafo de Swift,
escreveu em 1784 que a quarta viagem “destina-se evidentemente a mostrar em que consiste a
real dignidade e perfeição da natureza do homem, e a apontar os meios pelos quais ela pode
ser atingida”
165
. Essa, todavia, era uma convicção de que nem todos partilhavam. O biógrafo
inaugural de Swift, o conde de Orrery, foi talvez o primeiro a duvidar da exemplaridade dos
Houyhnhnms, cujas virtudes consistiriam na mera incapacidade de praticar o mal
166
. A
seriedade dos modelos sugeridos no livro se mostraria muito mais duvidosa que a dos
descritos por Hitlodeu na Utopia. Até que ponto Swift desejava que o rei de Brobdingnag ou
164
São os termos com que Macaulay se refere a Voltaire em sua biografia de Frederico II. Cf. Ensaístas Ingleses.
São Paulo: Clássicos Jackson, 1970, p. 232.
165
“is evidently designed to show in what the true dignity and perfection of man’s nature consists, and to
point out the way by which it may be attained.”
The Life of the Reverend Jonathan Swift. Em TCH, p. 234.
166
Remarks on the Life and Writing of Dr. Jonathan Swift, Dean of St. Patrick’s, Dublin (1752). Em TCH, p.
127.
77
os cavalos inteligentes da quarta viagem fossem vistos pelos leitores como padrões louváveis
de conduta? No que toca aos Houyhnhnms, a questão permanece até hoje em aberto. Mas uma
coisa é certa: qualquer que tenha sido a opinião de Swift sobre os modelos e preceitos
apresentados por Gulliver, eles nunca causaram grande impressão. Nem poderiam, imersos
como estão sob uma massa de impropérios. Leitores escandalizados como Thackeray
167
ilustram o fato de que os Yahoos sempre se impuseram com maior força à imaginação pública
do que os Houyhnhnms. Se é verdade que a grande sátira, mais que denegrir, deve propor
soluções, também é verdade que as conjecturais soluções propostas em Gulliver não têm o
mesmo peso que os retratos da vileza humana que amargam suas páginas. A impressão
comum do leitor que acaba de fechar o livro não é a de quão virtuoso o homem pode ser, mas
a de quão vicioso ele é. Como diria Swift, seu principal propósito era “vexar o mundo, e não
diverti-lo”
168
. Essa é uma diferença essencial entre As Viagens de Gulliver e obras mais
claramente utópicas, como A República ou as Novas de Nenhures, de William Morris: na
comparação entre o mundo real e o ideal, a ênfase de Swift recai sobre o primeiro. O lado
utópico do livro serve como elemento de contraste que realça os contornos de seu lado
antiutópico. Gulliver é, como resultado, um livro intrinsecamente pessimista.
As razões para isso eram muitas. Em 1721, quando Swift pôs mãos à redação, os tories
praticamente inexistiam como partido parlamentar, e sua influência no campo padecia com a
compra generalizada de votos, facilitada pelo alargamento do prazo entre as eleições (1716) e
pela ação de grandes magnatas como o duque de Newcastle. O sistema de Dívida Nacional
que ligava o Estado ao Banco da Inglaterra foi preservado, e com a influência do capital
urbano as leis de repressão à dissidência religiosa começaram a cair — o que serviu para
fortalecer os dissidentes e debilitar ainda mais os tories. Acrescente-se ainda a concessão
calculada de sinecuras e a prática do apadrinhamento para garantir uma maioria whig nos
Comuns. Ao contrário do que então se sugeria
169
, as instâncias executiva e legislativa na
Inglaterra estavam longe de separadas, já que os membros do gabinete — como os secretários
167
Para a visão de Thackeray sobre Swift, ver The English Humorists of the Eighteenth Century e os capítulos XI
(livro I) e II (livro III) de Henry Esmond.
168
“to vex the world rather than divert it”. Carta a Pope, em 29 de setembro de 1725. In GT, p. 261.
169
V. Montesquieu, O Espírito das Leis, II, VI.
78
de Estado, o lorde chanceler e o primeiro-ministro — eram igualmente parlamentares, o que
comprometia a função das câmaras de restringir o poder executivo. Seguros do apoio dos
financistas, do parlamento e do eleitorado, os whigs se perpetuavam viciosamente no poder,
dando continuidade, na visão de Swift, ao sistema perverso que interrompera em 1714 um
projeto tory para salvaguardar a hierarquia social e a cultura. As Viagens de Gulliver são a
retomada desse projeto numa fase de desencanto.
Verifiquemos agora como esses problemas ganham expressão no livro. Já vimos que
Gulliver, embora seja a princípio uma imitação do herói progressista, não possui um caráter
definido. Sujeito como está às exigências da sátira, ele oscila entre dois extremos, em um dos
quais é objeto da sátira, sendo no outro o observador do ridículo alheio. Allan Bloom (para
quem o livro é uma “descrição da natureza humana, e particularmente do homem político, à
luz da grande cisão”), resumiu o esquema da seguinte maneira:
A fórmula é simplesmente esta: quando [Gulliver] é bom, os outros são maus; quando ele é
mau, eles são bons. Os outros maus se encontram nos livros I e III, que tratam do
reconhecidamente moderno. Os outros bons figuram nos livros II e IV, que estão, no mínimo,
distantes da modernidade.
170
A divisão é um pouco simplista, pois o enfoque satírico muda até mesmo dentro de cada
viagem. A primeira metade do capítulo VI (parte I), por exemplo, interrompe a sátira com
uma passagem utópica. No terceiro livro, vemos Gulliver ora como crédulo (ao louvar os
Struldbruggs), ora como sensato (ao ver com admiração os primorosos domínios de Lorde
Munodi). Mas a fórmula de Bloom proporciona um bom ponto de partida, sobretudo por
chamar a atenção para o contraste entre a boa antigüidade e a modernidade corrupta. Quando
Gulliver é bom (como na maioria das passagens em Lilliput ou Laputa), o que vê são abusos
de poder, corrupção, desvarios intelectuais e empreendimentos absurdos. Quando ele é mau, o
170
Gulliver’s Travels is a discussion of human nature, particularly of political man, in the light of the great
split.” “The formula is simply this: when he is good, the others are bad; when he is bad, they are good. The bad
others are found in books I and III, which treat of the recognizably modern. The good others are in books II and
IV, which are, at the least, removed from modernity.” Alan Bloom, “An Outline of Gulliver’s Travels”. In WJS,
p. 649.
79
que vê são arranjos sociais desejáveis nos quais não encontra espaço, sendo como é um
representante da Inglaterra e mais particularmente de sua camada progressista. Em um e outro
caso, a ênfase recai sobre o lado negativo — que, escusa-se dizer, tem muito de whig. Nos
trechos utópicos quem está em destaque é o observador, manifestação literária da mentalidade
de classe média; nos trechos antiutópicos, é o observado, reprodução da sociedade inglesa em
cores exóticas mas reconhecíveis.
As passagens que criticam o novo princípio de poder na Inglaterra são muitas; recorde-
se, por exemplo, a afluência do partido Slamecksan (os whigs) em Lilliput, embora o
Tramecksan seja reconhecidamente mais conforme à antiga constituição (I, iv); a ingratidão
da rainha pelos esforços de Gulliver, no que é geralmente visto como uma alegoria das ações
de Bolingbroke (I, v)
171
; o descaso pela agricultura tradicional em Balnibarbi (III, iv); o vil
apreço dos Yahoos por pedregulhos coloridos (IV, vii); e as conversas de Gulliver com o rei
de Brobdingnag. Este último caso traz um exemplo que merece citação extensa. Durante cinco
audiências Gulliver retratou de modo idealista sua terra natal, após o que o rei, que se ocupara
em tomar notas, passa a apresentar suas dúvidas.
Ele passou em seguida à administração de nosso tesouro, dizendo julgar que minha memória me
falhara, porquanto eu computara nossos impostos em cerca de cinco ou seis milhões ao ano, mas
à minha menção dos gastos ele notara que estes perfaziam amiúde mais que o dobro; e as notas
que havia tomado eram muito precisas nesse sentido, já que ele esperava, segundo me disse, que
o conhecimento de nossa conduta lhe pudesse ser útil, cumprindo-lhe assim não se enganar nos
cálculos. Mas se o que eu lhe havia dito era verdade, ele não concebia como um reino podia
dissipar seu patrimônio qual fora um particular. Perguntou-me quem eram nossos credores, e
onde encontrávamos dinheiro para pagá-los. Admirou-se de me ouvir falar em guerras caras e
onerosas — certamente que éramos um povo belicoso, ou vivíamos entre péssimos vizinhos, e
nossos generais seriam por necessidade mais ricos que nossos reis. Perguntou-me que negócios
tínhamos fora de nossas ilhas, salvo nos misteres do comércio, de tratados ou da defesa costeira
por nossas frotas. Acima de tudo, assombrou-se de me ouvir falar de um exército mercenário
171
A esse respeito, ver J. A. Downie, “The Political Significance of Gulliver’s Travels; Quintana, op. cit., p.
150; e Ehrenpreis, op. cit., p. 84.
80
permanente em tempos de paz, no seio de um povo livre.
172
Neste parágrafo concentram-se críticas ao sistema da Dívida Nacional, à Guerra da Sucessão
Espanhola, ao suposto projeto de enriquecimento pessoal do duque de Marlborough
(comandante das forças aliadas durante a guerra) e à manutenção do exército após a cessação
de conflitos. Gulliver, que neste trecho é inconsciente dos defeitos de seu povo, só consegue
manifestar pasmo quando o rei expressa dúvidas como a de “se um estranho de bolsa opulenta
não poderia levar os eleitores comuns a escolhê-lo em vez do próprio senhor, ou do mais
considerável gentil-homem das redondezas”
173
. O retrato ideal pintado pelo protagonista
padece sob a crueza do bom senso do rei, para o prejuízo dos ingleses.
Passagens como esta se repetem e acumulam, maculando a dignidade de ministros,
juristas, nobres, mercadores, médicos e até mestres de dança. O efeito geral é muito pouco
lisonjeiro para a Inglaterra progressista. O rigor da sátira deve então ser compensado por um
modelo corretivo, proporcionado neste caso pelos “outros bons” — os habitantes de
Brobdingnag e os cavalos falantes. Que tal modelo não recebe grande destaque é algo que já
observei. Mas de que natureza é esse contraponto positivo na sátira? Mesmo uma rápida
leitura revela que Swift não contrasta os males da civilização com as virtudes do bon sauvage.
Em Brobdingnag e no país dos Houyhnhnms o que vemos não são arranjos “naturais”, mas
sociedades sofisticadas purgadas de excessos — em outras palavras, modelos de civilização
não corrompida. Se na obra de Defoe encontramos pouca simpatia pela natureza intocada e
grande admiração pelo engenho interventor do homem
174
, na de Swift encontramos não o
172
He fell next upon the Management of our Treasury; and said, “he thought my Memory had failed me, because
I computed our Taxes at about five or six Millions a-year, and when I came to mention the Issues, he found they
sometimes amounted to more than double; for the Notes he had taken were very particular in this Point, because
he hoped, as he told me, that the Knowledge of our Conduct might be useful to him, and he could not be
deceived in his Calculations. But, if what I told him were true, he was still at a loss how a Kingdom could run
out of its Estate, like a private Person.” He asked me, “who were our Creditors; and where we found money to
pay them?” He wondered to hear me talk of such chargeable and expensive Wars; “that certainly we must be a
quarrelsome People, or live among very bad Neighbours, and that our Generals must needs be richer than our
Kings.” He asked, what Business we had out of our own Islands, unless upon the Score of Trade, or Treaty, or to
defend the Coasts with our Fleet?” Above all, he was amazed to hear me talk of a mercenary standing Army, in
the midst of Peace, and among a free People.” GT, II, vi, p. 109.
173
“whether a Stranger, with a strong Purse, might not influence the vulgar Voters to choose him before their
own Landlord, or the most considerable Gentleman in the Neighbourhood?” Idem, p. 108.
174
Isso se observa idealmente em A Tour Through the Whole Island of Great Britain.
81
retorno à natureza, mas o receio quanto aos abusos desse engenho.
Se ao fim [Gulliver] desenvolve uma aversão avassaladora por tudo o que há em sua terra, isso
não ocorre porque a Europa sofra os males da civilização, mas por estar perdendo sua
civilização e tombando num estado de corrupção degenerada. Não há talvez nenhuma outra
viagem imaginária tão livre quanto As Viagens de Gulliver de quaisquer laivos de
antitradicionalismo e com tão poucos ou tão mínimos detalhes de primitivismo cultural.
175
O que há de utopia em Gulliver é assim estritamente tradicional: os traços dos “outros
bons” são traços de uma aristocracia ideal que, no entender de Swift, constituía o melhor dos
governos. Nobres cujo poder fosse fundado na posse de terras, e cuja educação esmerada os
fizesse “conselheiros natos do rei e do reino”
176
; cuja altivez externa, como no caso dos
Houyhnhnms, fosse um indício de virtude interna
177
; que fizessem do governo uma arte
límpida e sem mistérios escusos, assistidos nisso por uma fidalguia rural especialmente
preparada
178
. A “política da nostalgia” — a crença numa idade de ouro em que a Inglaterra
fora regida por uma aristocracia rural assaz habilitada — era invocada costumeiramente pelos
tories para criticar o governo de Walpole
179
. Tratava-se de um modelo com o qual nenhum
governo real poderia concorrer, e cujos proponentes ignoravam por conveniência os entraves
práticos de sua aplicação. O que lhes interessava era o contraste entre real e ideal, e o
conseqüente agigantamento das falhas dos whigs.
Esta vaga insinuação de crença na justiça de uma estratificação tradicional e aristocrática é
175
“If in the end [Gulliver] develops an overwhelming aversion to everything at home, it is not because Europe
suffers the evil of civilization, but because it is losing its civilization and falling into a state of degenerate
corruption. There is perhaps no other imaginary voyage as free as Gulliver’s Travels of anything resembling
anti-traditionalism, and very little or even the minor details of cultural primitivism.” Quintana, op. cit., p. 157.
176
GT, II, vi, p. 106. Para a idéia de que Swift via como subversiva a separação entre a posse de terras e a posse
de poder político, cf. Myrdin Jones, “Swift, Harrington and Corruption in England”.
177
Cf. McKeon, The Origins of the Enblish Novel, p. 346.
178
Cf. Samuel Holt Monk, “The Pride of Lemuel Gulliver”, em WJS, p. 639, e GT, II, vi, p. 107.
179
W. A. Speck, “Politics”, em Pat Rogers (ed.), The Eighteenth Century, p. 100-101.
82
inteiramente consistente, como argumentei, com a ideologia conservadora. É uma ficção
socialmente útil, uma fé prudentemente instrumental que germina no solo deixado pelas flores
da crença progressista depois que a crítica conservadora, para a sua própria satisfação, as
desenraizou.
180
A sociedade dos cavalos falantes, principal elemento utópico do livro, não é necessariamente
um modelo a ser seguido. Sua função na narrativa constitui o principal motivo da polarização
ocorrida durante o século XX entre as assim chamadas escolas de interpretação branda e
rígida
181
. Os adeptos da escola rígida declaram que os Houyhnhnms são de fato um padrão de
virtude, ao passo que os da escola branda os vêem como outros tantos objetos da sátira. A
despeito de quem tenha razão, o fato é que ainda que a sociedade dos cavalos seja apresentada
como exemplar, seu ideal de razão absoluta e supressão das emoções é humanamente
inimitável. Eles são no máximo um modelo para fins de comparação. “Os Houyhnhnms são
menos uma afirmação do que o homem devia ser que uma afirmação do que ele não é.”
182
E
essa impraticabilidade dos modelos caracteriza de modo geral o contraponto positivo na sátira
de Gulliver.
O fato é que Swift, embora invocasse as virtudes da aristocracia ideal, já não tinha
ilusões quanto à aristocracia real de seu tempo. Em seu Essay on Modern Education (1728)
ele ataca a má formação dos nobres, que a seu ver fora corrompida em meados do século
XVII pela morte de muitos luminares da nobreza na revolução e pelo novo status do homem
de armas devido às guerras anglo-holandesas. Confiantes em sua excelência por nascimento,
os nobres descuravam de educar-se devidamente, abrindo espaço aos “novos homens” de
origem plebéia. Nas quarta viagem há um trecho em que se contrasta a nobreza ideal dos
Houyhnhnms com a nobreza real da Inglaterra. Quando Gulliver menciona os nobres ingleses
180
“This ghostly insinuation of belief in the justice of a traditional, aristocratic stratification is entirely consistent,
I have argued, with conservative ideology. It is a socially useful fiction, a cautiously instrumental faith that
germinates in the soil left by the flowers of progressive belief once the conservative critique has, to its own
satisfaction, quite deracinated them.” McKeon, op. cit., p. 344.
181
O conceito dessa divisão foi proposto em 1974 por James L. Clifford, no ensaio “Gulliver’s Fourth Voyage:
‘Hard and Soft Schools of Interpretation’”.
182
“[T]he Houyhnhnms are not a statement of what man ought to be so much as a statement of what he is not.”
Claude Rawson, “Gulliver and the Gentle Reader”, em WJS, p. 693.
83
a seu mestre, este inicialmente se deixa iludir pelos conceitos vigentes entre os cavalos, mas
Gulliver logo emenda
que a nobreza, entre nós, era algo totalmente diverso da idéia que ele dela fazia; que nossos
jovens nobres eram instruídos desde a infância no ócio e na luxúria; que, tão logo lhes
permitissem os anos, consumiam seu vigor e contraíam doenças odiosas entre fêmeas lascivas; e
que, quando suas fortunas estavam à beira da ruína, esposavam (meramente pelo dinheiro)
alguma mulher de nascimento espúrio e constituição enferma, que detestavam.
183
A degeneração abria caminho para homens da pior espécie (e Swift tinha em mente Walpole):
O palácio de um primeiro-ministro é um seminário para formar outros em seu próprio ofício: os
pajens, lacaios e porteiros, ao imitarem seu mestre, tornam-se ministros de Estado em seus
vários distritos, e aprendem a excelir nos três ingredientes principais da insolência, da mentira e
do suborno. Por conseguinte, têm uma corte subalterna que lhes é feita por pessoas da melhor
posição; e às vezes, por força de destreza e impudência, chegam gradualmente a sucessores de
seu senhor.
184
Esta virulência não carece de certo ressentimento pessoal:
A pior marca que se pode receber [de um ministro de Estado] é uma promessa, especialmente se
confirmada por uma jura — após o que o homem sábio se retira, renunciando a toda e qualquer
183
“that Nobility, among us, was altogether a different Thing from the Idea he had of it; that our young
Noblemen are bred from their Childhood in Idleness and Luxury; that, as soon as Years will permit, they
consume their Vigour, and contract odious Diseases among lewd Females; and when their Fortunes are almost
ruined, they marry some Woman of mean Birth, disagreeable Person, and unsound Constitution (merely for the
Sake of Money), whom they hate and despise.” GT, IV, vi, p. 217.
184
“The palace of a chief Minister is a Seminary to breed up others in his own Trade: the Pages, Lackeys, and
Porters, by imitating their Master, become Ministers of State in their several Districts, and learn to excel in the
three principal Ingredients, of Insolence, Lying, and Bribery. Accordingly, they have a subaltern Court paid to
them by Persons of the best Rank; and sometimes by the Force of Dexterity and Impudence, arrive, through
several Gradations, to be Successors to their Lord.” Idem, p. 216.
84
esperança.
185
Num ensaio que se tornou famoso, George Orwell exaltou (em termos por vezes contestáveis)
o perfil reacionário de Swift. Eis uma passagem de especial interesse:
Ele é um anarquista tory que despreza a autoridade enquanto descrê da liberdade, e preserva a
visão aristocrática embora veja claramente que a aristocracia existente é degenerada e
desprezível. Quando Swift profere uma de suas características diatribes contra os ricos e
poderosos, provavelmente devemos, como sugeri mais acima, dar um desconto pelo fato de que
ele próprio pertencia ao partido menos bem-sucedido e estava pessoalmente desapontado.
186
Não me parece que Swift, admirador da república romana, possa ser designado como
anarquista, nem que fosse descrente da liberdade. Mas o excerto é ainda assim penetrante. A
filiação de Swift à “política da nostalgia” resulta tanto de sua natural inclinação conservadora
como dos dissabores que ele sofreu após a queda do ministério. O azedume particular de seus
escritos deve muito a essa identificação pessoal com o destino de uma classe e seus
princípios. Que a fidalguia rural permanecesse a principal força econômica durante o século
XVIII é um fato que não teve lugar na crítica de Swift, cujos olhos se voltavam em outra
direção, oscilando entre um presente corrupto e um passado irrestaurável.
A superação dos tories pelos whigs em 1714 constituíra um duro golpe para os
princípios ideológicos e as ambições pessoais de Swift. Em sua condição de excluído ele
interpretou a história segundo uma ótica conservadora cujo vínculo com a tradição se
desfizera, mas cujo apego a um modelo ideal de virtude preservara-se como trampolim para a
185
“The worst Mark you can receive is a Promise, especially when it is confirmed with an Oath; after which,
every wise Man retires, and gives over all Hopes.” Ibidem, p. 215.
186
“He is a Tory anarchist, despising authority while disbelieving in liberty, and preserving the aristocratic
outlook while seeing clearly that the existing aristocracy is degenerate and contemptible. When Swift utters one
of his characteristic diatribes against the rich and powerful, one must probably, as I said earlier, write off
something for the fact that he himself belonged to the less successful party, and was personally disappointed.”
Orwell, “Politics vs. Literature: An Examination of Gulliver’s Travels”, em The Collected Essays, Journalism
and Letters of George Orwell. Vol. IV., p. 216.
85
crítica aos valores progressistas. A robinocracia da década de 1720 só veio confirmar seus
receios da preponderância do partido whig, e após seus primeiros sucessos nas polêmicas
impressas da Irlanda ele retomou a discussão que abandonara com a queda do ministério. A
oposição aos valores progressistas condicionou tanto o conteúdo como a forma das Viagens
de Gulliver, retomando em partes um antigo debate político e literário, e retomando-o com um
teor negativista — o teor de quem vê o mundo antigo dando lugar a um outro mundo,
corrupto e decadente.
86
PARTE 3
Conclusão
87
3.1. Conclusão
Não seja o primeiro por quem o novo é tentado,
E tampouco o último a pôr o velho de lado.
187
Pope, “An Essay on Criticism”, 335-6.
A época de Swift é uma época de transformações, em que os modelos antigos estão
perdendo a validade e abrindo espaço a modelos novos nem sempre atraentes. Esse dilema
está no cerne de As Viagens de Gulliver. Swift representa um dos lados do debate então
fremente, e, se fiz freqüentes alusões a Defoe, não o fiz porque ele seja o alvo específico da
sátira de Gulliver, mas porque representa idealmente o outro lado. Como observou Nigel
Dennis:
Swift é o autor gentil-homem cujo lar de escolha é a sociedade e a esfera dignificada dos bem
educados e bem nascidos; Defoe é o nativo de Grub Street, pai de tudo o que é mais ruidoso e
livre no jornalismo moderno (...), e investe em direção aos tempos modernos na mesma
proporção em que Swift recua para a época anterior. Quando temos em mãos a obra-prima de
cada um, seguramos as metades de um pomo — o pomo da discórdia que, em sua inteireza,
representa a Inglaterra do século XVIII.
188
Robinson Crusoé e As Viagens de Gulliver, obras à primeira vista tão similares — ambas são
relatos de náufragos escritos tardiamente por polemistas à beira dos 60 anos, e partilharam o
187
“Be not the first by whom the new are tried, / Nor yet the last to lay the old aside.”
188
“Swift is the gentleman-author whose chosen home is society and the dignified sphere of the well-educated
and well-born; Defoe is the born gander of Grub Street, the father of all that is noisiest and freest in modern
journalism. (...), and he presses forward into modern times proportionately as Swift fights backwards into the
time behind him. When we hold each man’s masterpiece in our hands we hold the halves of one apple — the
apple of discord that in its wholeness, represents the England of the eighteenth century.” “Defoe and Swift”, in
WJS, p. 662.
88
fado comum de se tornarem clássicos juvenis —, registram e ilustram num microcosmo a
grande crise de seu tempo. Elas funcionam qual fossem proposição e réplica. As implicações
de Robinson Crusoé para a esfera conservadora eram nítidas. Ao tratar do trajeto de Defoe da
panfletagem aos romances, Paula Backscheider observou:
Nas histórias secretas ele passava amiúde de acontecimentos reais para acontecimentos que
podiam ser reais e para incidentes que ele desejava fossem reais; todos tinham os mesmos
propósitos políticos e morais. Ele ficou mais e mais disposto a usar eventos para ilustrar idéias
específicas. Suas obras de propaganda se tornaram mais e mais longas. (...) Certo de um
mercado para o que quer que escrevesse, Defoe começou a se comprazer e, sem mais desculpas,
a subordinar a verdade histórica a considerações ideológicas e pessoais.
189
A pretensão de veracidade — de que o que se escreve “não é uma estória, mas uma
História”
190
— tinha amiúde fins casuísticos. No caso de Defoe isso fica especialmente claro,
já que sua prosa de ficção brotou pouco a pouco de sua atividade como polemista,
preservando o enviesamento original. Seus heróis, com suas aventuras “reais”, pareciam
provas genuínas do valor do empreendedorismo. Por essa altura a busca de um meio comum
para o tratamento simultâneo de problemas epistemológicos e sociais estava adiantada, e o
falso historicismo se associava mais e mais aos valores progressistas. As convenções
narrativas de Robinson Crusoé eram vistas como daninhas pela elite intelectual porque
constituíam a expressão literária da mentalidade de classe média. Na réplica que Swift
ofereceria, a crítica ao etos burguês se associaria a uma atitude epistemológica específica.
Essa réplica, no entanto, está marcada pelo fato gerador da crise: a caducidade dos valores
tradicionais.
A virtude da aristocracia vinha cedendo lugar à dos empreendedores, e isso se refletia
189
“In secret histories he often moved from real events to events that might be real to incidents that he wished
real; all had the same political and moral purposes. He became more and more willing to use events to make
particular points. His propaganda works become longer and longer. (...) Sure of a market for whatever he wrote,
Defoe began to indulge himself and to subordinate historical truth unapologetically to ideological and personal
considerations.” Backscheider, Daniel Defoe: His Life, pp. 410-411.
190
“is not a Story, but a History”. Defoe, Roxana, p. 35.
89
necessariamente na literatura. A estória romanesca, ficção da honra aristocrática, era uma
relíquia da Restauração (capítulo 1.2). O apego a esse gênero em pleno século XVIII seria um
saudosismo caduco como o de Dom Quixote. Não por acaso, o Female Quixote (1752) de
Charlotte Lennox ridicularizaria o gosto anacrônico pelos heróis do filão seiscentista. Não só
o romanesco perdera seu espaço, como a literatura palaciana e o credo neoclássico estavam se
esgotando, em razão da brecha crescente entre escritores e nobres e da incerteza com que o
neoclassicismo se assentara na Inglaterra desde o início (capítulo 1.1). Sem um piso firme na
tradição — fosse o vínculo entre posse de terras e posse de poder, fosse a literatura romanesca
ou palaciana — os tories e os augustanos precisaram ajustar-se aos novos tempos e participar
também eles do movimento de renovação, submetendo-o porém a sua própria crítica. Eles
empreenderam uma renovação moderada que preservava o que parecia válido na tradição,
como meio de refrear os excessos progressistas. E fizeram-no sobretudo quando seu objetivo
era contrastar os bons modelos do passado com a degeneração presente. O que se resgatava de
outros tempos não precisava se refletir na realidade, desde que servisse de munição. Assim
como os tories atacavam os whigs com base num ideal de nobreza que se perdera num
passado utópico (capítulo 2.4), os autores augustanos, ao julgarem a literatura popularesca,
invocavam normas neoclássicas que eles próprios não aceitavam de todo (capítulo 1.2). Como
resultado, em muitos momentos a resposta desses conservadores foi mais eficiente em
denunciar os problemas do progresso do que em propor modelos alternativos.
Muito eficientes como crítica da modernidade, As Viagens de Gulliver são todavia
ambíguas quando se trata de oferecer soluções válidas. Já o vimos no plano político, mas o
mesmo vale no literário. As Viagens de Gulliver não fundam um gênero novo, nem filiam-se a
alguma corrente alternativa com uma proposta estética autônoma. O livro, afinal, é
famosamente uma sátira. Esse termo, que na Antigüidade havia nomeado um gênero, passara
com o tempo a designar meramente uma atitude retórica
191
, a atitude de expor um réu ao
julgamento do leitor, induzindo-o a absolver ou condenar — e, no caso de Gulliver, a
condenar. O que Swift fez foi transplantar essa intenção retórica do tradicional poema
augustano — como MacFlecknoe ou An Epistle to Dr. Arbuthnot — para a mesma prosa de
ficção que ele punha no banco dos réus. No esforço por se apropriar das convenções das
191
Cf. James Sutherland, English Satire, p. 5, e Ian Jack, Augustan Satire, 97-99.
90
formas modernas, o livro se afastou drasticamente dos padrões augustanos. Enumeremos
algumas regras neoclássicas: unidade de concepção, linguagem decorosa, expurgo dos
detalhes secundários, consistência na caracterização dos personagens... onde fica Gulliver em
meio a tudo isso? Podemos responder que está em viagem a novos territórios, que deixou o
reduto estrito do augustanismo e invadiu a província de seus inimigos. “Taticamente, Swift
como satirista é um quinta-coluna que adota o uniforme do oponente para sabotar por dentro a
fortaleza.”
192
Ao afastar-se da base da tradição e engalfinhar-se com as novas formas em seu
próprio território, Swift fez de seu livro um ato de destruição que, após a remoção dos
destroços, não se ocupou necessariamente de reconstruir. Ele recorreu, é certo, a muitas
convenções preexistentes — o ridículo rabelaisiano, o relato utópico, a viagem imaginária —,
mas o que criou foi um espécime exótico, e não um ramo frutífero. Daí as dificuldades da
crítica de classificar As Viagens de Gulliver de forma definitiva. Trata-se afinal de uma obra
que subsiste não tanto pelo que propõe, como pelo que rejeita. É um livro combativo desde
suas raízes — as desiludidas raízes do reinado de Ana —, que manteve em tempos posteriores
o projeto scribleriano de responder às novas vozes da literatura. É, enfim, um livro que não
procura tanto ser uma certa coisa, como não ser uma outra.
Que outra coisa era essa? As convenções que As Viagens de Gulliver combatem não
caracterizavam apenas Robinson Crusoé ou os relatos de viagens em geral, aos quais
principalmente me ative. Basta repassá-las e seu verdadeiro alcance fica evidente: o que Swift
está renegando são narrativas pseudoverazes em primeira pessoa cujo conteúdo fica
submetido ao crivo de uma consciência individual e cujos traços comuns são o interesse num
destino pessoal, a associação com o mundo real, a ênfase em detalhes da vida quotidiana, a
precisão temporal e geográfica, e a linguagem referencial. São, enfim, as características de
uma prosa de ficção em desenvolvimento que, num estágio posterior de maturação,
constituiria o que conhecemos inequivocamente como o romance (capítulo 1.3).
J. Paul Hunter observa que “certos críticos de Swift têm assomos de apoplexia quando a
mera idéia de paródia é mencionada nas proximidades de As Viagens de Gulliver
193
. Embora
192
“Tactically, Swift as a satirist is a fifth-columnist, adopting his opponent’s uniform in order to sabotage from
within the fortress.” Probyn, Jonathan Swift: The Contemporary Background, p. 4.
193
“some Swift critics lurch toward apoplexy when the very idea of parody is broached within reaching distance
of Gulliver’s Travels”. Hunter, “Gulliver’s Travels and the Novel”, in GGT, pp. 65-6.
91
eu não tenha usado a palavra até aqui, ela deve ter ocorrido mais de uma vez ao leitor: a Parte
2, para darmos às coisas seus devidos nomes, foi em grande medida um estudo dos métodos
paródicos em Gulliver. A paródia — “a adoção e o exagero conscientes das convenções e
excessos estilísticos de obras ou gêneros literários identificáveis”
194
— foi um recurso a que
Swift recorreu repetidamente ao longo de sua carreira. O Conto do Tonel parodia as
excentricidades de autores do século XVII
195
; o Argument against abolishing Christianity
parodia em variados níveis o estilo dos polemistas cristãos; os Bickerstaff Papers parodiam os
almanaques populares e sua dose de astrologia. Outros exemplos são A Meditation upon a
Broomstick, Mr. Collins’ Discourse on Free-Thinking e a Modesta Proposta. A paródia era
uma arma que se ajustava muito bem aos propósitos de Swift, autor que raramente recorria à
invectiva direta
196
e que preferia arremedar pejorativamente seus adversários. Essa, como
espero ter demonstrado, é uma das estratégias principais de As Viagens de Gulliver. Se existe
certa relutância crítica em reconhecer o elemento paródico no livro, ela se deve a dois
equívocos possíveis que devemos evitar: o primeiro é considerá-lo unicamente como paródia
— como uma paródia persistente e prolongada; o segundo, apontado entre outros por Hunter,
é julgar que seus trechos paródicos aludem sempre a uma mesma obra. Em Gulliver a paródia,
como de resto a alegoria e o enfoque satírico, é inconsistente. O segundo capítulo da viagem a
Lilliput, por exemplo, encerra-se com um inventário do que Gulliver levava nos bolsos ao
naufragar, e que Hunter considera uma alusão paródica aos atulhados bolsos de Robinson
Crusoé; no terceiro capítulo a chave é outra: passamos à corrupção da corte, e o tom, embora
satírico, já não é paródico — já não envolve a imitação deliberada dos excessos de outras
obras. Tais lapsos na paródia são freqüentes. Quanto ao segundo problema, As Viagens de
Gulliver não parodiam especificamente Robinson Crusoé nem qualquer obra. Seu alcance é
mais geral:
O exemplo dos bolsos alusivos sugere que As Viagens de Gulliver são, entre muitas outras
194
“the conscious adoption and exaggeration of the conventions and stylistic excesses of identifiable literary
works or genres”. Roger D. Lund, “Parody in Gulliver’s Travels”, in Approachings to Teaching Swift’s
Gulliver’s Travels, p. 81
195
Cf. Ronald Paulson, “The Parody of Excentricity”, in Bloom (ed.), Jonathan Swift: Modern Critical Views.
196
Cf. Bullitt, Jonathan Swift and the Anatomy of Satire, p. 38.
92
coisas impressionantes, uma paródia cumulativa genérica ou classista não somente das
narrativas de viagens em si, mas também de uma classe maior e emergente de narrativas
ficcionais em primeira pessoa que fazem asserções extraordinárias quanto à importância do
contemporâneo, da cognoscibilidade de grandes padrões cósmicos mediante a experiência
pessoal, da significância do indivíduo e das possibilidades imperialistas da mente humana —
uma paródia classista, em suma, do que hoje vemos como o romance e as premissas que o
possibilitam.
197
Tudo isso, para retomar os termos de McKeon, ocorre às vésperas da obtenção da
identidade canônica por parte do romance. Nesse momento o vínculo entre questões de
verdade e questões de virtude é muito forte: a antiga crítica de Swift à ideologia progressista
encontra vazão numa forma que, em essência, parodia os desvarios do empirismo simplório
— numa paródia não contínua, mas intermitente, e não de uma dada obra, mas das
convenções soltas de um futuro gênero. O resultado é um consórcio simbiótico entre a
ideologia conservadora e o ceticismo extremo, com a conseqüente retomada parcial dos
valores da tradição (cf. p. 37). Se as características do romance em formação constituem a
expressão literária de um novo modo de pensar, o que encontramos em Gulliver é a expressão
reformulada de um pensamento mais tradicional. Em ambos os casos a escolha do modelo
literário atrela-se inextricavelmente a um certo juízo social. No plano literário Gulliver é uma
resposta sofisticada a um gênero em busca de sofisticação, a réplica paródica de um
augustanismo que rui e cujas formas tradicionais, por si só, já não bastam para o embate
crítico numa época de decadência palaciana e popularização das letras, e que por isso mesmo
precisa aderir parcialmente às regras do novo jogo. O livro não é ainda uma proposta de
renovação, um exemplo a ser imitado: é um palco em que as novas tendências e convenções
tropeçam em suas próprias fragilidades. No plano social, Gulliver representa a atitude de toda
uma classe que vinha então perdendo as rédeas do poder e que assistia com amargura à
197
“The example of the allusive pockets suggests that Gulliver’s Travels is, among many other impressive
things, an accreting generic or class parody not only of travel narratives per se but also of a larger developing
class of first-person fictional narratives that make extraordinary claims for the importance of the contemporary,
the knowableness through personal experience of large cosmic patterns, the significance of the individual, and
the imperialistic possibilities of the human mind—a class parody, in short, of what we now see as the novel and
the assumptions that enable it.” Hunter, op. cit., p. 69.
93
ascensão de arrivistas que, sem título e sem sangue, alçavam-se à preeminência social e
política. Esses novos homens e seu novo gênero servem de sujeito e objeto em As Viagens de
Gulliver, e fazem-no para seu próprio deslustre. O que resta, depois desse exercício de
desabono, são sérias dúvidas quanto à possibilidade de corrigir as estruturas sociais e reajustar
os rumos da literatura.
_____
Mas isso não é tudo. Não pretendo deixar a impressão de que Gulliver foi uma mera
reação acerba ao romance, sem mais conseqüências. Basta pensar em Fielding, Sterne,
Johnson e até mesmo Goldsmith para saber que a história do romance no século XVIII não se
limitou às narrativas pseudoverazes nem às ficções de honra da classe mercante. A entrada em
campo de escritores com históricos diferentes, mas com confiança no valor do novo gênero,
submeteu-o a uma transformação duradoura. Se Swift não apresentou uma alternativa
consistente ao romance progressista, ainda assim ele apontou caminhos para novos autores.
Não o fez, porém, pelo caminho das paródias positivas que Bakhtin identificou na cultura
popular medieval e que “corporificavam, materializavam e ao mesmo tempo aligeiravam tudo
o que tocavam”
198
. O século XVIII, com seu “utopismo abstrato e racionalista”, já havia
abandonado totalmente o espírito cômico e solidário do riso medieval, insistindo tão-somente
no aviltamento do objeto parodiado. Em Swift a rejeição dos traços parodiados é
incondicional; nele, como em Voltaire, “o positivo é exterior ao riso e confina-se no domínio
da idéia abstrata”
199
. Se Gulliver teve também um lado construtivo, isso ocorreu não por
alguma ambigüidade da paródia, mas sim por um paradoxo:
[O] paradoxo da paródia, pelo qual a paródia cria novas expressões a partir da expressão de que
procura escarnecer, significa que ela preserva tanto quanto destrói, ou, antes, que preserva no
momento mesmo em que destrói — e com isso o parasita tem ocasião de servir ele próprio
198
Bakhtin, A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, p. 72.
199
Idem, p. 100.
94
como hospedeiro.
200
A paródia, por definição, não é uma reprodução idêntica do objeto parodiado: a
destruição que ela provoca depende de sua distinção em certos sentidos. E Gulliver deixou
raízes na medida em que se distinguiu do romance em formação. Trata-se de uma obra que,
embora caçoe das narrativas de seu tempo, é também uma narrativa com atrativos capazes de
envolver os leitores — demonstra-o sua conversão em clássico da literatura juvenil —, salvo
que com outra atitude epistemológica. Nesse sentido postura de Swift assemelha-se
curiosamente à de Shaftesbury, autor com quem ele se parece bem pouco. Para criticar os
modernos desvios de gosto, Shaftesbury escolhe como exemplo ilustrativo os livros de
viagens. Esse gênero tergiversa com dados sobre “estalagens e ordinárias, barcos e balsas de
passagem, tempo bom e ruim”, estendendo-se em descrições “da dieta, dos hábitos corporais,
dos perigos pessoais e dos infortúnios do autor em terra e mar”, apenas para iludir o leitor e
conduzi-lo a alguma grande cena de ação povoada de monstros. “De bestas monstruosas ele
passa a homens ainda mais monstruosos. Pois nessa raça de autores o mais completo e de
mais alto nível é o capaz de dizer as coisas mais desnaturadas e monstruosas”
201
. Os relatos de
viagens, enfim, são um gênero escrito por autores sem gênio para leitores de mau gosto.
É o mesmo gosto que nos faz preferir uma história turca a uma grega ou romana, um Ariosto a
um Virgílio, e um romance ou novela a uma Ilíada. Não fazemos o menor caso do caráter ou
gênio de nosso autor, nem estamos curiosos por ver quão hábil ele é no julgamento dos fatos ou
quão engenhoso na textura das mentiras. Pois fatos relatados ineptamente, embora com a maior
sinceridade e boa fé, podem se mostrar a pior espécie de logro; e puras mentiras, judiciosamente
200
“[T]he parodic paradox, by which parody creates new utterances out of the utterances that it seeks to mock,
means that it preserves as much as it destroys — or rather, it preserves in the moment that it destroys — and thus
the parasite becomes the occasion for itself to act as a host.” Dentith, Parody, p. 189.
201
“inns and ordinaries, passage boats and ferries, foul and fair weather, with all the particulars of the author’s
diet, habit of body, his personal dangers and mischances on land and sea.” “From monstrous brutes he proceeds
to yet more monstrous men. For in this race of authors he is ever completest and of the first rank who is able to
speak of things the most unnatural and monstrous.” Shaftesbury, “Advice to an Author”, in Characteristics of
Men, Manners, Opinions, Times (1711). In ECCE, p. 208.
95
compostas, podem nos ensinar a verdade das coisas, mais que qualquer outro método.”
202
Esta última passagem sugere uma alternativa ao simulacro da verdade — alternativa a que
McKeon chamou ceticismo extremo, e que consiste na refutação das pretensões historicistas
em prol de uma narrativa que, embora assumidamente ficcional, aborde problemas do mundo
real. Essa é a estratégia que os céticos encontram de “dizer a verdade na narrativa”. E é a
estratégia que justifica a incursão de Swift pela prosa de ficção. Ele de modo algum negava o
valor da fábula como transmissora de lições morais; em sua Letter to a Young Gentleman, ele
observa: “Fui mais bem entretido e informado por um único capítulo do Progresso do
Peregrino do que por algum longo discurso sobre a vontade e o intelecto ou sobre idéias
simples ou complexas”
203
. A ficção, para Swift, é tolerável desde que não invada a província
da história e desde que instrua o leitor, indo além do deleite. Em sua crítica ao falso
historicismo dos escritores progressistas, Swift retorna portanto a uma atitude epistemológica
mais antiga — que é a de Luciano e Rabelais, mas é também a das parábolas bíblicas, a de
Esopo e, por incrível que pareça, a da própria estória romanesca em sua variedade histórica
(cf. p. 24). A esse respeito McKeon comenta:
[A]o subverter a epistemologia empírica, Swift contribui, tão plenamente quanto Defoe o faz ao
favorecê-la, para o crescimento das idéias modernas do realismo e da espiritualidade
internalizada do estético. A pedagogia parabólica de Swift pode justificar tacitamente seu
retorno a uma atitude anacrônica quanto ao modo de dizer a verdade na narrativa, em partes,
porque conquistou o direito de fazê-lo mediante a evisceração autoconsciente da alternativa
mais moderna.
204
202
“It is the same taste which makes us prefer a Turkish history to a Grecian or a Roman, an Ariosto to a Virgil,
and a romance or novel to an Iliad. We have no regard to the character or genius of our author, nor are so far
curious as to observe how able he is in the judgment of facts, or how ingenious in the texture of his lies. For facts
unably related, though with the greatest sincerity and good faith, may prove the worst sort of deceit; and mere
lies, judiciously composed, can teach us the truth of things beyond any other manner.” Idem.
203
“I have been better entertained, and more informed, by a Chapter in the Pilgrim’s Progress, than by a long
Discourse upon the Will and the Intellect, and simple or complex ideas.” In Eddy (ed.), Swift’s Satires and
Personal Writings, p. 287.
204
“[B]y subverting empirical epistemology, Swift contributes, as fully as Defoe does by sponsoring it, to the
growth of modern ideas of realism and the internalized spirituality of the aesthetic. Swift’s parabolic pedagogy
96
No decorrer do século a pretensão de veracidade acabará saindo de cena, e a capacidade
do romance de refletir ficcionalmente sobre a “natureza humana” e o mundo real será
reconhecida. Gulliver, se não chegou a constituir um espécime genuíno de romance
conservador, foi não obstante um precedente conspícuo. Seu exemplo está presente em
Fielding e em outros autores que praticaram o romance a sério mas renunciaram aos clamores
de veracidade. Swift é um dos elos lógicos entre a obsolescente literatura neoclássica e o
gênero em ascensão, e ocupa com relação a Fielding uma posição similar à de Defoe com
relação a Richardson. A diferença essencial é que ele não apostou no futuro da forma, e como
resultado Gulliver ficou perdido entre dois tempos — entre o tarde demais e o demasiado
cedo.
O futuro lhe daria herdeiros mais diretos: obras como Erewhon, de Samuel Butler,
1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Huxley, serão tributárias evidentes de
seu ilustre predecessor. As sementes deixadas por Swift também chegaram a terrenos menos
evidentes, germinando na obra de escritores tão variados como Laurence Sterne e H. G.
Wells. O que disse Claude Rawson do Conto do Tonel pode aplicar-se também a Gulliver:
“[F]oi a extraordinária elaboração de um estilo paródico por Swift que criou paradoxalmente
novas possibilidades de auto-expressão para o mesmo modernismo a que ele estava
resistindo.”
205
Observei em certo momento que a adesão de Swift à prosa de ficção era a
adesão de um vírus. Mas a forma soube absorver o vírus e desenvolver anticorpos,
fortalecendo-se em conseqüência. As Viagens de Gulliver parodiam e ilustram de um
fôlego a nova tendência, e, no ato mesmo de refutá-la, inadvertidamente a enriquecem. É esse
o seu papel ambíguo na conturbada história do romance inglês.
É assim que fica Gulliver nessa história.
can tacitly justify its return to an anachronistic attitude toward how to tell the truth in narrative in part because it
has, as it were, earned the right to do it through a self-conscious evisceration of the more modern alternative.”
McKeon, The Origins of the English Novel, p. 351.
205
“[I]t was Swift’s extraordinary elaboration of a parodic style that paradoxically created new possibilities of
self-expression for the very modernism he was resisting.” Rawson, “Introduction”, em Jonathan Swift: A
Collection of Critical Essays, p. 7.
97
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