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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGÜÍSTICOS E LITERÁRIOS
EM INGLÊS
A BATALHA DE MALDON
TRADUÇÃO E ALITERAÇÃO
Glauco Micsik Roberti
Tese apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Estudos
Lingüísticos e Literários em Inglês, do
Departamento de Letras Modernas da
Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, para obtenção do título
de Mestrado em Letras.
Orientador: Prof. Dr. John Milton
São Paulo
2006
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2
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS E LITERÀRIOS EM INGLÊS
A BATALHA DE MALDON
TRADUÇÃO E ALITERAÇÃO
Glauco Micsik Roberti
São Paulo
2006
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3
Agradecimentos
Ao prof. Dr. John Milton, por seus conselhos, pelo interesse e pela
amizade com que se dispôs a me orientar.
A Olaf Tryggvason, ao Ealdorman Byrhtnōð e a um poeta
desconhecido, sem os quais isto não seria possível.
À CAPES por seu auxílio.
A todos que estiveram ao meu lado e me apoiaram.
4
Als ikh kan”...
“Da forma que posso”
Jan van Eyck
Hige sceal þë
heardra,
heorte þë cënre,
möd sceal þë
märe,
þë üre mægen lÿtlað
Através da tradução retratamos o texto. O retrato que fazemos
da fonte depende de nossas escolhas e proposta. Uma das
melhores maneiras de comentar a tradução, como escreveria
em seus retratos, de sua simbólica germânica simplicidade
medieval, o mestre pintor Van Eyck, tão distante de nós em
sua habilidade, diria:
5
Sumário
Sumário........................................................................................5
Resumo.........................................................................................6
Abstract........................................................................................6
Apresentação...............................................................................7
Poesia e Aliteração....................................................................10
O Período Viking......................................................................15
A Língua Anglo-Saxã...............................................................21
Pronúncia..................................................................................23
A Literatura Anglo-Saxã.........................................................24
O Verso Anglo-Saxão...............................................................25
Manuscrito................................................................................30
A Batalha...................................................................................32
O Poema....................................................................................35
O Texto Medieval.....................................................................36
Outras Traduções.....................................................................38
Traduzindo Maldon.................................................................52
a- Léxico........................................................................53
b- Metro.........................................................................56
c- Aliteração..................................................................61
A Batalha de Maldon...............................................................67
Notas da Tradução...................................................................91
Considerações Finais..............................................................104
Referências Bibliográficas.....................................................106
6
RESUMO
Este trabalho consiste de uma tradução versificada de A Batalha de Maldon, poema
anglo-saxão no metro tradicional, composto no século X-XI a respeito da batalha
homônima entre dinamarqueses e anglo-saxões. Seu pressuposto fundamental é um
estudo das abordagens de tradução aplicáveis à poesia germânica antiga para a
produção de uma versão anotada em português, com a qual se procura reconstituir as
características do poema antigo. Esta abordagem leva aos argumentos finais acerca
desta possibilidade, em especial no que diz respeito à aliteração em português.
Palavras-chave: anglo-saxão, tradução, poesia aliterativa, inglês antigo, metro
tradicional.
ABSTRACT
This work consists in a verse translation from the Anglo-saxon of The Battle of
Maldon, old English poem written between the 10
th
and 11
th
centuries about the battle
between Danes and Saxons. The main goal is the study of different translation
theories which are related to the old Germanic poetic tradition as a mean to provide a
Portuguese language annotated version where the poem’s traits are reconstructed. This
procedure leads to the final argument, on the possibility of achieving alliteration in
Portuguese.
Key words: Anglo-saxon, translation, alliterative poetry, old English, traditional
metre.
7
Apresentação
No intuito de definir tradução, e tantos procuram fazê-lo, encontraria uma
dificuldade tal na procura de um aspecto, que acabaria sendo obrigado a perguntar, e
tantos o fizeram: trata-se de arte ou ciência ? ... e chegaria, com sorte a uma técnica ou
estudo, que nada mais seriam além de categorias mais amenizadas de uma, ou de
outra. Por falta de definição maior, de compreensão, algumas vezes, aqueles que a
estudam se vêem cercados por teorias, ciências e artes, e encurralados por numerosas
respostas.
No correr do tempo, filólogos, historiógrafos, tradutores, e cientistas de tantas
outras áreas encontraram-se em dúvida, e, incapazes de solucioná-las em separado,
foram obrigados a cooperar. Mais acentuadamente nos estudos arqueológicos,
filológicos, historiográficos, medievais e clássicos, diria, nos estudos que mais
obviamente visam a reconstituição (embora, em variadas instâncias, todos o façam)
nos voltamos a uma intersecção.
Defino a tradução como o estudo e busca dessa intersecção, de sentidos,
significados, culturas e formas.
Proponho ser esse um dos grandes pontos de interesse tanto dos estudos da
tradução quanto medievais.
1
Na desvantagem de não ser, ou na busca de um ser, tudo
englobar, atingimos um ponto em que nos damos conta de que a impossibilidade de
definição, decorre diretamente, de estarmos numa “encruzilhada de todas as coisas”, a
melhor maneira que encontro de definir o mundo de hoje, com sua identidade
fragmentada (Hall). No mesmo ponto estavam os estudiosos no princípio da Idade
Média: entremeados por um profundo conhecimento, tão desconexo, procuravam
compreender seu lugar, seguir adiante, como o fazem todas as novas ciências, estudos,
artes. Pois são sempre estes a mover, em novas relações, esta rede de fragmentos.
Como nas corporações e guildas medievais, e no trabalho dos artesãos, nosso
conhecimento se fechou em si mesmo, para inevitavelmente se reabrir.
1
Tomo a liberdade de incluir a Era Viking e a Idade da Trevas, e por vezes as origens germânicas
antigas, na esfera dos estudos medievais, primeiramente porque precedem e originam a Idade Média, e
em segundo lugar, por terem sido em grande parte abandonados nos estudos referentes ao período
clássico.
8
Identifico-me em especial com esta situação, acredito que todas as perguntas
tenham sido respondidas, em algum tempo, em algum lugar, e que portanto as
respostas não sejam encontradas só na releitura do cânone, de novo e sempre, mas na
busca do que é diferente, e na sua aplicação para o que é usual. Em outras palavras,
acredito ser essa a busca da tradução, não a perfeição, não um ideal de equivalência,
mas o pouco que possamos transportar até aqui, até hoje. Sem procurar transformar o
outro em nós mesmos, ou o oposto. Mais por uma vontade de continuar um processo,
um estudo, que atingir uma verdade. Em conversa informal, Maria Tymoczko diria,
com desculpas a possíveis falhas em minha interpretação: “Interessante, sobre os
estudos medievais, é que nunca paremos de aprender línguas”.
A Idade Média, nome bastante apropriado, é uma conexão, uma encruzilhada
de muitos caminhos, que tanto se tenta reduzir ao hoje, como conseqüência direta,
mas é provavelmente em nossa limitação que deixamos de compreendê-la, pois trata-
se de objeto tão mais abrangente.
É em um retrato incompleto que resumo meu trabalho, um retrato incompleto
dentre tantos outros, com imensas dificuldades. Em tantos outros trabalhos sobre essa
Idade, e em alguns especificamente sobre essa pequena batalha de Maldon, vi ainda os
aspectos dessa transição serem reduzidos a conceitos contemporâneos de crença,
tradição e nação. Procuro mostrar, um pouco mais, sobre como reduzimos,
esquecemos, freqüentemente na tradução, este objeto em função do óbvio de “nosso”
tempo, encerrado em um padrão então inexistente. Aprendi a ler o texto medieval
germânico em parte de sua simbólica simplicidade e escolhi um breve texto para
demonstrá-la. Procurei estudar suas línguas, sua poética, seu contexto e reproduzí-los,
no melhor de minha habilidade. O Brasil também ficou marcado pela mesma transição
inacabada da Idade Média, que não ocorreu aqui, mas resultou aqui.
Escolho um poema um tanto ignorado para uma tradução comentada, um
poema que, entretanto chamaria a atenção de poucos e grandes especialistas como
Scragg ou Tolkien. Maldon possui certo atrativo: compõe o seleto grupo de poemas
tradicionais de guerra, um gênero sem equivalente nas demais línguas indo-européias,
exceto pelo galês e gaélico, conhecido por representações vívidas e diálogos (embora
este não seja exatamente o caso), reforçados em sua simplicidade em padrões de
versificação, estrutura e dicção. Sua simbologia e padrões de conduta são, no entanto
mais complexos, aqui intercambiados e mesclados a valores cristãos e continentais. O
poema em si talvez não seja difundido, mas alguns de seus temas recorrem e ecoam
9
na literatura e na política, dois versos se destacam, dois versos e uma palavra:
ofermōd, tão simples quanto praticamente intradutível.
Além da produção de uma tradução comentada do poema anglo-saxão,
tenciono desenvolver e elucidar, no decorrer da dissertação, sem a pretensão de
esgotar o tema, a questão da possibilidade ou produtividade da aliteração em
português. Inicio o tema apresentando uma introdução à poesia aliterativa para depois
direcionar-me mais especificamente à língua e literatura anglo-saxãs, e à tradução
propriamente dita.
10
Poesia e Aliteração
Minha intenção neste capítulo é prover uma introdução aos usos da poesia
aliterativa e aliteração, como uma nota ao que representa à tradição literária como um
todo e em parte como justificativa a seu estudo.
A aliteração teve considerável importância para a maior parte das principais
tradições poéticas do mundo. À exceção da quase totalidade da poesia em línguas
semíticas e em farsi (persa), mas incluindo, por exemplo, as tradições chinesa e a
japonesa, onde predomina a poesia aliterativa até hoje, seu uso ainda é mais difundido
e duradouro que o da rima vocálica, muito embora tenha sido substituída por esta
última no sistema da maioria das línguas ocidentais nas quais se dera.
Há divergências quanto ao uso e incidência da poesia aliterativa em indo-
europeu, mas vários estudiosos contemporâneos, incluindo Calvert Watkins
2
, apontam
para o uso de repetições, propondo que elas tenham sido a origem da aliteração nos
exemplares mais antigos da poesia quantitativa em línguas desta família lingüística.
Watkins afirma que a aliteração tomaria a função de equivalência, e teria sido capaz
de promover-se ao aparato constitutivo da seqüência (Jacobson) quando se
produzissem as condições fonológicas e prosódicas apropriadas, o que, segundo ele,
não teria ocorrido isoladamente, como defendem alguns, mas em diferentes ramos em
épocas diferentes.
Temos evidências de um maior desenvolvimento da forma aliterativa nos
ramos itálico, até o início da expansão romana, germânico, no qual teve mais
profunda influência até o fim da Idade Média, e celta, no qual permanece em uso
paralelamente à rima final. A aliteração continuou a ser comum na maior parte das
línguas européias durante a época medieval, embora sua utilização tenha diminuído
gradativamente, em especial no que diz respeito às línguas românicas, nas quais deu
lugar à assonância e à rima final. O abandono da técnica foi particularmente
acentuado em castelhano e em português, enquanto que continuam a haver vários
exemplos de aliteração em Dante e nas obras de outros escritores italianos do período,
bem como na poesia francesa, até o século XVII.
2
Watkins, Calvert - How to Kill a Dragon – Aspects of Indo-European Poetics, Oxford University
Press, Oxford, 1995.
11
Nas línguas celtas, por sua vez, o uso da aliteração e do metro aliterativo
continuou paralelamente à rima final, em formas complexas ou híbridas como o metro
tradicional em gaélico irlandês, Rosc, e o elaborado Cynghanedd desenvolvido na
poesia galesa do século XIV.
No entanto, foi através das línguas germânicas que o uso da aliteração mais se
difundiu no ocidente até hoje. Goethe utilizaria-se tanto da aliteração quanto
Shakespeare, séculos depois, mesmo Rilke e Benn ainda fariam uso da fórmula das
três repetições em um verso, comum em composições feitas mais de mil anos antes.
Ex.: “Dann will ich gern zu grunde gehn!” – Goethe, Faust;
“Druch all den Frühling, kommt die fremde Frau.”
– Gottfried Benn,
Untergrundbahn.
Em 1987, numa introdução para alguns de seus próprios ensaios sobre a poesia
aliterativa inglesa, A.C. Spearing
3
comenta:
“The history of medieval alliterative poetry remains a subject of scholarly
controversy; but, superficially at least, it appears that about 1340, for unknown
reasons, there was a revival of writing in a verse-form which can be traced back to
nearly a thousand years earlier and which had flourished at a high level of artistry in
the anglo-saxon period; by the early sixteenth century, however, the writing of
unrhymed alliterative verse came to a complete halt, never to start again.”
John Scattergood
4
reconhece a validade do argumento mas destaca a
impossibilidade de precisarmos a relação entre o verso anglo-saxão e a tradição
aliterativa dos séculos XIV-XVI, muito embora sua semelhança formal seja inegável.
Ex.: “Norfolk sprang thee, Lambeth holds thee dead,
Clere of the County of Cleremont though hight;
Within the womb of Ormond race thou bred,
And saw’st thy cousin crowned in thy sight.”
– Henry Howard, Earl of Surrey (1517-1547)
3
Vários – Readings in Medieval Poetry – Cambridge Un. Press, Cambridge, 1987.
4
Scattergood, J & Scattergood, V.J. – The Lost Tradition: Essays on Middle English Alliterative
Poetry, Four Courts Press, Dublin, 2000.
12
A afirmação final de Spearing, a respeito do fim da poesia aliterativa, refere-se
a uma suposta preservação contínua da tradição, e não leva em conta escritores que
tenham-se utilizado de técnicas aliterativas e recriações nos últimos séculos. Não
poderíamos deixar de levar em conta a influência deste tipo de poesia na língua
inglesa, nem a influência exercida por ela sobre vários escritores. Mesmo que de
modo isolado, e por vezes periférico, a verdade é que a aliteração e certos elementos
da poesia aliterativa sempre estiveram presentes na literatura de língua inglesa.
No período de 1660 a 1780, aproximadamente, esse tipo de verso despertaria
novamente o interesse de vários escritores, tais como Dryden, Pope, Gay e Thomson.
A partir desta época, começaria a se difundir o estudo da língua e literatura anglo-
saxãs, que atingiria seu ápice no final do século XIX.
Tennyson publicaria sua tradução de “A Batalha de Brunanburh” em 1880, um
dos melhores exemplos de tentativa de reprodução da poesia aliterativa em inglês, na
qual usaria consistentemente a rima consonantal para conectar os meio-versos em
inglês. Ele escreveria depois: “When I spout my lines first, they come out so
alliteratively that I have sometimes no end of trouble to get rid of the alliteration”
5
. Na
mesma época, Hopkins também faria uso da técnica aliterativa em versos sem
contagem de sílabas.
Ex.: “Never had hunger
Slaughter of heroes
Slain by the sword-edge –
Such as old writers
Have writ of in histories –
Hapt in this isle, since
Up from the East hither” Alfred, Lord Tennyson
The Battle of Brunanburh
Nos Estados Unidos, Browning a emprega constantemente, combinando, por
exemplo, em “The bishop orders his tomb”, a tripla repetição tradicional em “st” com
outra aliteração: “and stretch my feet forth straight as stone can point”.
5
Tennyson, H – Memoir, 1897.
13
A poesia norte-americana do século XVIII, inspirada pela forma orgânica
proposta por Emerson
6
, acabou por trazer à tona, especialmente com Whitman, a
aliteração do verso livre, baseado em repetições e em um ritmo marcado, que tanto se
assemelharia ao verso aliterativo antigo. A concepção filosófica que partilhava, de que
a verdade é eterna, primordial e imutável, quando aplicada à poesia também remete ao
que é comum em épocas passadas.
Também Melville, mesmo como dissidente do trancendentalismo, preservaria
em sua obra algumas dessas características, como neste exemplo, em “Shiloh”, um
poema que se refere à batalha homônima que foi travada durante a guerra civil
americana:
Skimming lightly, wheeling still,
the swallows fly low
over the field in clouded days
the forest-field of Shiloh.
A partir do século XX, vários escritores e tradutores, especialmente de língua
inglesa e alemã, estudariam o anglo-saxão, que já fora incluído nos currículos de
muitas universidades, e produziriam inúmeras imitações e traduções do verso
aliterativo tradicional para as línguas modernas. O exemplo mais difundido foi o
“Seafarer”, de Ezra Pound, cuja publicação incentivaria uma série de tentativas de
reprodução ou recriações de poesia com características e princípios análogos por
autores diversos. Na Inglaterra, J.R.R. Tolkien, C.S. Lewis, W.H. Auden e Thom
Gunn, entre outros, iriam desenvolver, em poemas de autoria própria, suas tentativas
nesse sentido. Inversamente, a maior parte dos tradutores ainda optaria pela
domesticação para a versão de textos medievais em inglês.
Dentre os poetas contemporâneos, Heaney parece ser o principal expoente, ou
ao menos o mais conhecido autor a empregar a aliteração com regularidade. A
influência do anglo-saxão, que teve a oportunidade de estudar na universidade, é
indiscutível em sua obra, tendo despertado um novo interesse no verso tradicional. A
despeito das inúmeras críticas que recebe tanto por sua postura de “neutralidade
política”, por favorecer o verso de origem anglo-saxã ao verso irlandês, por, ao fazê-
6
Emerson, Ralph Waldo (1803-1882), filósofo, poeta e ensaísta norte-americano. Fundou o
transcendentalismo.
14
lo na tradução de Beowulf, atentar mais ao texto alvo que ao fonte, ele ainda é o mais
importante escritor ocidental a utilizar a aliteração na atualidade.
15
O Período Viking
“E da fúria dos nórdicos, livrai-nos, Senhor”. Assim descreveria um clérigo,
num relato, séculos depois, os ataques vikings à Bretanha, no início do período
Viking, segundo consta, no ano de 793 dC. Rumores de visões fantasmagóricas, de
“imensos redemoinhos e relâmpagos”, e de “dragões flamejantes voando nos céus”
espalharam-se pelas ilhas britânicas após este primeiro ataque ao lugar considerado
como o mais sagrado de toda a Inglaterra: a ilha de Lindisfarne, primeiro centro do
cristianismo na Britannia. No dia 8 de junho daquele ano, dezenas de guerreiros
vindos da Escandinávia desembarcaram de seus navios de velas quadradas e proas e
popas bem curvadas. Os tesouros do mosteiro de St. Cuthberth haviam sido saqueados
e os monges sobreviventes levados para que fossem vendidos como escravos.
A pedra comemorativa encontrada em
Lindisfarne, tendo de um lado esta procissão de sete
guerreiros armados, e do outro, a representação de uma
cruz entre o sol e a lua acima de dois vultos agachados,
foi certamente inscrita com a intenção de evocar o dia
do juízo final, quando nação se levantaria contra nação,
e tanto sol quanto lua seriam encobertos pelo
surgimento de uma cruz no céu, quando toda a humanidade sentiria pesar (Matheus
24:7, 29-30).
Não seria, no entanto, difícil, ao retirar a imagem de seu contexto religioso,
relacioná-la aos guerreiros vikings durante o ataque à Lindisfarne. Isso nos serve
como exemplo e base para uma recorrente leitura contemporânea a repeito do período,
segundo a qual, como destaca Simon Keynes
7
, suas vítimas, em especial os anglo-
saxões, não teriam dúvidas ao interpretar a causa das invasões: Alcuíno, erudito da
mesma Nortúmbria onde teriam se dado os primeiros ataques, não escondendo estar
ultrajado pelo que considerava uma execração do santuário por pagãos estrangeiros,
escolheu tratá-los, mesmo assim, como uma punição divina aos pecados e ao
comportamento do povo da Bretanha, como fez a maioria dos cronistas da época,
7
Keynes, Simon - “The Vikings in England” in Sawyer, Peter (org.) – The Oxford illustrated history of
the Vikings – Oxford University Press – Oxford – 1997.
16
quase que invariavelmente cristãos, usando-os como um pretexto para tentar
convencê-los a alterar seus costumes.
Tradicionalmente, historiadores têm considerado os vikings como bandos de
piratas ou bárbaros cruéis, violentos e gananciosos. Estudos historiográficos recentes
a respeito dos povos escandinavos vêm ganhando mais aceitação, ao apontar para uma
espécie de “propaganda enganosa” que teria encoberto características mais
significativas e imprescindíveis para a formação de uma imagem mais detalhada e
precisa.
À medida em que prestamos atenção às evidências da toponímia, às inscrições
rúnicas, aos versos dos Skalds (os bardos e compositores nórdicos) e de sua
contrapartida anglo-saxã, os Scops, e à outros relatos distantes do exagero dos
escritores monásticos cristãos, envolvidos em profunda aversão ao paganismo, (a
própria palavra já carregada do ponto de vista cristão) de quem herdamos boa parte do
material fundamental a essa leitura, poderemos admirar outros fatores constitutivos
da cultura do período viking: sua escultura e trabalho em metal, seus povoados e
cidades espalhados pelo mundo, as embarcações de uma cultura que alcançou a
América e desenvolveu na Islândia a primeira democracia representativa do mundo.
Muito além do paganismo, os monges tinham obviamente a lamentar o hábito
dos nórdicos em pilhar igrejas e mosteiros, fontes de riqueza tão inigualáveis quanto
desprotegidas, ao contrário de muitos templos muçulmanos e ortodoxos, dado serem
invariavelmente poupados de quaisquer conflitos entre cristãos.
Os Vikings, ao contrário dos seguidores de outras religiões, não possuiam
templos, mas interpretavam a divindade, como diria Eliade, numa sociedade sagrada,
em suas ações e cotidiano. Ao combater, carregavam amuletos ao deus da guerra e o
veneravam em práticas rituais, como no sacrifício ritual da “águia de sangue” que
consistia em abrir o peito e remover os pulmões da vítima, em geral um líder inimigo.
Se determinados costumes podem nos parecer excessivamente violentos, não é
claro serem demasiado diferentes na execução aos praticados durante a mesma época
por cristãos. Considerando o extermínio de quatro mil e quinhentos rebeldes da
Saxônia após sua captura, por Carlos Magno, anos antes dos primeiros ataques
vikings, temos que a principal, se não a única diferença no grau da violência praticada
pelos nórdicos e o das guerras entre cristãos tenha sido o fato de não pouparem a
igreja. Entretanto, se tomarmos como exemplo as Cruzadas, imediatamente
17
posteriores à era Viking, notaremos que, para os cristãos, isso quase nunca se aplicava
a outras religiões, e algumas vezes, nem mesmo aos ortodoxos.
Até o século XI, os escandinavos figurariam proeminentemente por pilhar e
saquear, bem como por serem navegadores, conquistadores, exploradores e guerreiros
exemplares, no entanto, muito antes disso, viajantes e comerciantes, que decerto
abriram as rotas para as investidas Vikings, já haviam deixado suas marcas. Num
túmulo feito entre os séculos VI e VII, na Suécia, isso seria evidenciado pelo achado
de uma estátua indiana de Buda.
No período pré-Viking, as semelhanças entre os estilos artísticos inglês e
escandinavo tornariam-se bastante evidentes. Se compararmos aos artefatos dos
cemitérios de Uppland, na Suécia, o elmo e escudo encontrados no barco fúnebre em
Sutton Hoo, um dos mais famosos sítios arqueológicos ingleses, perceberemos uma
semelhança mais profunda do que nos sugeriria sua herança cultural germânica em
comum, de séculos antes, de quando anglos, jutos e saxões partiriam dos arredores da
Jutlândia para as ilhas britânicas. É por esse mesmo motivo que Alcuíno, ao afirmar, a
respeito do ataque a Lindisfarne: “não se acreditava ser possível tal viagem”,
certamente não se referia à habilidade dos escandinavos em navegar. Como destaca
John Haywood
8
, o escritor tinha conhecimento das relações entre a Nortúmbria e a
Escandinávia, e estava, ao invés disso, chocado por não os terem impedido nem Deus
e nem os santos: se um lugar tão sagrado quanto Lindisfarne não estava seguro, lugar
nenhum estaria.
Se a grande maioria dos escandinavos no período Viking era certamente
composta de fazendeiros, artesãos e comerciantes pacíficos, cujas vidas seriam
raramente tocadas pela violência, não poderíamos ignorar a desenvoltura com que
suas forças eram capazes de combater, lideradas pela elite guerreira e acrescidos de
uma mobilidade impressionante dada por seus adaptáveis barcos e equipamento
reduzido. Sua sociedade era comandada por uma classe guerreira e dividida em clãs,
seus líderes invarialvelmente surgiam de disputas sucessórias nas quais tivessem sido
vitoriosos. Mesmo a monarquia na Escandinávia se desenvolvera nesse contexto de
disputa. Assim como era determinada a liderança entre os clãs, qualquer membro da
família real possuía direito à sucessão. No decorrer dos anos, as disputas aumentariam
em escala, grandes batalhas se desencadeariam paralelamente à união de diversos clãs
8
Haywood, John – The Penguin Historical Atlas of the Vikings – Penguin Books – Londres – 1995.
18
e à formação de exércitos temporários a partir de tropas locais e milícias. Líderes mais
hábeis, veteranos de muitas batalhas, adaptariam a tradição naval e guerreira à
habilidade de constituir esse tipo de formação para fins específicos, para então voltá-
la ao saque de seus vizinhos mais ricos, paralelamente diminuindo ou “exportando” os
crescentes conflitos internos dessa classe guerreira. Essa prática também não diferia
muito do que ocorreria aos cristãos durante as Cruzadas.
A palavra “Viking” em nórdico antigo, derivada provavelmente de “vik”, que
significa baía ou fiorde, não denominava o sujeito, mas a ação, assim originalmente
seria algo como “navegar entre fiordes”, e era, nas fontes escandinavas da época, o ato
de atacar. Àqueles que participavam do ataque, comumente se referiam a eles pela
expressão “fára í víkngr”, literalmente “viajando como viking” o que apontaria para a
transitoriedade de um “estado” viking mais que de uma identidade ou “ser” viking.
Em língua inglesa, do mesmo modo diríamos “gone berserk”, do nórdico “berserkr”,
pele de urso, vocábulo usado para denominar os guerreiros escolhidos de Odin
(Oðinn) os quais partilhavam da fúria em combate inspirada pelo deus, o que aparece
em diversas sagas islandesas.
9
Durante o reino de Beorhtric, de Wessex, três navios “dinamarqueses”
(provavelmente noruegueses de Hjartaland) foram recebidos pelo oficial Beaduheard
e seus homens, que, parecendo ter imaginado se tratarem de simples mercadores,
levaram-nos a uma propriedade real. Os supostos mercadores os mataram. Segundo as
crônicas anglo-saxãs, esses foram os primeiros navios de “dinamarqueses” a virem à
terra anglo-saxã. Três anos depois, segundo o mesmo relato, o rei Offa, de Mércia,
prepararia defesas costeiras, presumivelmente contra os nórdicos.
Durante a maior parte do século IX, os ataques vikings concentrariam-se na
Francia e Irlanda, alternando-se a outros alvos conforme acordos eram firmados e
conforme fortificavam-se as defesas. Pela primeira vez, na seqüência do período
inicial de ataques, modificou-se o objetivo dos escandinavos. O chamado Grande
Exército dinamarquês aportou na Inglaterra. Os quatro reinos anglo-saxões: Ânglia
oriental, Nortúmbria, Mércia e Wessex eram presas fáceis a suas aspirações.
9
Na tradição escandinava, a fúria berserkr seria o transe inspirado pelo deus, antes do combate, em
seus guerreiros escolhidos. Ela é a origem da expressão em inglês que uso para exemplificar o estado
passageiro í víkingr. Berserkr, ou ulfhednar (coberto de lobo) era o nome dado a estes guerreiros
escolhidos, os quais acreditava-se possuirem poderes sobrenaturais, semelhantes aos do “lobisomem”.
Por outro lado, a condição de ser um berserkr era hereditária, passada de um guerreiro a seu filho. Os
bersekir eram sempre empregados em número de 12 pelos reis escandinavos não convertidos ao
cristianismo. Eram soldados de elite, parte da vanguarda do exército e guarda-costas do rei.
19
Expansão, povoamento e colonização vikings espalhavam-se por milhares de
quilômetros sobre a mesma faixa de latitude, da qual faziam parte as ilhas britânicas.
Em quinze anos de campanha, de 865 a 880, cairiam, um a um, os reinos saxões. Pela
primeira vez, o país era unificado, dividido entre a dinastia de Wessex e o território
dinamarquês, Danelaw, ou Danelaga. No entanto, com o passar dos anos, e com a
partida do exército, de 902 a 919, Wessex conquistaria a totalidade de Danelaw até
954.
Até o reino de Æþelred, com duração de 26 anos, Wessex estaria livre dos
ataques vikings. No período de 980 a 991, retornariam à atividade, de forma
semelhante à época do interlúdio. Desta vez originados de Dublin e da Escandinávia,
os novos ataques precipitariam a paz entre Normandia e Inglaterra, talvez indicando
que alguns vikings já utilizassem a primeira como porto seguro.
A partir do ano de 991, os ataques nórdicos aumentariam gradativamente em
escala. Sucedeu um período similar ao de 865-80, com a chegada de uma frota de
mais de 90 navios, com entre dois e três mil soldados, à costa de Folkestone, liderada,
ao que consta, por Olaf Tryggvason, descendente de Harald “Bela Cabeleira”. Atacou
Kent e Sussex, para depois derrotar o exército anglo-saxão em Essex, nos arredores de
Maldon, o que resultaria na morte do Ealdorman Byrhtnoð. Olaf só retornaria à
Escandinávia mediante um maciço pagamento, totalalizando 22.000 libras em prata,
que poria um fim ao “grande terror que causaram ao longo da costa”.
Dois anos depois, contudo, Svein “Barba Forqueada” aliaria-se a Tryggvason
em nova série de ataques, eles iriam culminar no encontro entre Æþelred e Olaf, no
qual este concordaria em converter-se ao cristianismo, e retornar em “companhia” de
16.000 libras de prata à Noruega, enquanto Svein passaria cinco anos tentando
reconquistá-la. Este último retornaria à Inglaterra em 1003-4, 1006-7, e novamente,
após um intervalo no qual duas grandes invasões se seguiram: a de uma “grande
frota”, liderada por um certo Tostig, e a de um “imenso exército”, comandado por
Thorkell, o Alto. Thorkell “arrecadaria” um total de 69.000 libras em prata, aliando-se
a Æþelred pelas últimas 21.000.
O retorno de Svein marcaria sua coroação. (Thorkell, é claro, terminaria por
aliar-se ao lado vencedor) O trono seria herdado por seu filho, Cnut, que acabaria por
conquistar a Noruega das mãos de Olaf.
A batalha de Maldon é apenas o princípio do fim para o reinado de Æþelred,
marcado inicialmente por pilhagens e pelo pagamento de tributo, para então ser o alvo
20
de exércitos cada vez maiores, no que resultaria na disputa sucessória ao estilo
escandinavo, muito semelhante ao que se propagaria por toda a Europa nos séculos
seguintes. O eficiente Estado forjado por anglo-saxões, vikings e normandos seria o
precursor de um futuro modelo de Estado medieval, nascido da mescla das
características às quais tivera dificuldades em se adaptar. Maldon é um modelo de
resistência e mudança, que poderia ter evitado as conquistas, fosse empregado
sistematicamente. O resultado da batalha é pouco significativo, se considerarmos,
como o de Agincourt ou o Álamo, mas tornou-se, um modelo a ser recordado, de
conduta, de instituição, no futuro, de nação.
21
A Língua Anglo-Saxã
A língua anglo-saxã teve origem nas ilhas britânicas, resultante do contato
inicial que se dera entre os diferentes povos germânicos que lá se instalaram, no
período, convencionalmente atribuído, que iria aproximadamente de 450 d.C. a 1100
d.C.
Dentre os povos que fizeram parte desse contato, podemos citar como mais
numerosos saxões (provenientes do noroeste da atual Alemanha), anglos (norte da
Alemanha e sul da Jutlândia), frísios (Países Baixos e noroeste da Alemanha) e jutos
(extremo norte da Dinamarca).
Alistair Campbell
10
define o anglo-saxão (ou inglês antigo
11
, como também é
chamado) como “a língua vernácula germânica da Grã-Bretanha tal qual registrada em
manuscritos e inscrições anteriores ao ano de 1100”. Do ponto de vista da
classificação genética das línguas, podemos dizer tratar-se de uma língua indo-
européia do ramo germânico ocidental (ou continental) de subtipo anglo-frísio. Ela
apresenta muitas das características comuns às outras línguas pertencentes ao ramo
continental no mesmo período, é semelhante, em especial, ao saxão antigo, ao frísio, e
em menor escala, a ambos alto e baixo alemão antigos, enquanto que a incidência do
superestrato escandinavo aumenta progressivamente até os textos tardios.
O resultado dessas influências na língua inglesa moderna seria uma estrutura
continental, com empréstimos das línguas escandinavas ao vocabulário que,
finalmente, também teriam influência marcante sobre as formas verbais: no próprio
verbo to be, por exemplo, a conjugação no presente da 2ª. pessoa are advém da raiz
do nórdico antigo ert, e no anglo-saxão eart (temos em dinamarquês mod. er, sueco
mod. är, islandês mod. ert). É provável que neste caso, a necessidade de comunicação
e contato com os novos ocupantes das ilhas, por evidentemente ocorrer na 2ª. pessoa,
acabaria por substituir a forma antiga, de origem continental. Mesmo que
considerarmos a raiz anglo-saxã como de origem indo-européia, a assimilação da
10
A. Campbell – Old English Grammar – Clarendon Press, 1959; Alistair Campbell é autor, editor e
tradutor de inúmeros livros sobre o estudo do anglo-saxão, e foi amigo pessoal de J.R.R. Tolkien.
11
Procuro evitar a expressão inglês antigo(Old English) para me referir à língua anglo-saxã. A fórmula
tem cunho político e tende a ser uma tentativa de aproximar, agrupar e simplificar uma série de
influências em uma única vertente, que seria diretamente resultante em uma nação contemporânea e sua
cultura. Em minha opinião, dizer inglês antigo é domesticar e não leva em conta todas as influências e
perdas na formação do inglês ou Englishness.
22
forma are no plural é interessante, já que as três raizes continentais possíveis em
anglo-saxão (sind(on)/sint, bēon, wren) diferem em radical.
Até aproximadamente o ano 900 podemos distinguir quatro dialetos principais
para o anglo-saxão através de variações na grafia: os de Kent, Nortúmbria, Mércia e o
saxão ocidental (o dialeto com maior incidência de textos literários). Os dois
primeiros correspondem às regiões onde foram fundados reinos, respectivamente, por
jutos e anglos, enquanto que os dois últimos formaram-se em regiões de
predominância saxã.
A partir do ano 900 passa a haver uma forte influência do dialeto saxão
ocidental, em sua forma tardia, sobre todos os manuscritos, o que podemos atribuir, ao
menos em parte, à situação política do Reino de Wessex (localizado no sul e oeste da
atual Inglaterra), o único capaz de resistir às invasões vikings. Essa influência, no
entanto, é cada vez menos consistente, sendo assimilada de forma menos regular
conforme nos aproximamos do período saxão tardio. Isto é, temos a influência de um
dialeto de maior tradição literária sobre os outros dialetos, enquanto que há um
declínio na importância política do oeste somada à forte influência estrangeira e
invasões na região leste. A situação leva à combinação dos vários dialetos em um
padrão mais abrangente e derivado de todos eles, o que dificulta progressivamente
nossa capacidade em discerní-los.
‘Maldon’ não é uma exceção, e apresenta inúmeras ocorrências de variantes
tardias e saxão ocidental. Embora o uso seja bastante uniforme para um manuscrito do
período, se somarmos as variações dialetais às poucas, porém significativas
ocorrências de grafia oriental e empréstimos dinamarqueses, conforme destaca
Scragg, provavelmente o maior estudioso da obra e diretor da “Manchester University
Centre for Anglo-Saxon Studies”, poderemos concluir tratar-se muito provavelmente
de uma composição originária do leste (o que condiz com o local onde deu-se o
combate) e pouco anterior à adoção do padrão anglo-saxão tardio em Winchester.
Trataremos desta questão mais detalhadamente nas notas ao texto.
É importante destacar que a pronúncia anglo-saxã foi reconstituída a partir da
comparação das evidências de seus dialetos, com a ajuda do estudo de outras línguas
germânicas do período bem como de certos dialetos do inglês moderno.
Apresentaremos na seqüência um resumo das regras de pronúncia mais aceitas, que
23
facilitarão a leitura do texto fonte e o entendimento dos critérios de versificação
utilizados para a tradução.
Pronúncia
De acordo com regras de pronúncia comuns às línguas germânicas, todas as
palavras não iniciadas por um prefixo átono, em especial ge-, a-, be-, for-, têm como
tônica a primeira sílaba. Em geral, todas as letras são pronunciadas no anglo-saxão,
incluindo a semi-vogal w, (por exemplo em wrītan, escrever) o e final (heorte) e o h
mudo (hring). Segue um quadro fonético acompanhado de exemplos:
VOGAIS CONSOANTES
a [α] port. gato Þ / þ [θ] ingl.th
in
ā [α:] ingl. father Đ / ð [ð] ingl.th
ere
æ [æ] ingl. cat c [k]
[æ:] ingl.(aprox.) mare Ċ / ċ [t] ingl.ch
in
/ sueco lärar g []
e [] port. era Ġ / ġ [j] ingl.y
et
ē [e:] alem. Fehlen cg [d] ingl.edg
e
ea como æ + a sc [] ingl.ship
ēa como + a h
(antes de vogal) [h] ingl.heart
eo como e + a h
(mudo) [ç] alem.ich
ēo como ē + a ou [χ] alem.buch
i [] ingl. bid f, ð / þ e s
são sonoras
quando
ī [i:] ingl. See
estiverem entre
vogais
o [] port. bola ex. a-s. ofer
vr]
ō [o:] alem rot - consoantes duplas, ex. a-
s.
u [u] port. pulo sittan (sentar), possuem
som
ū [u:] ingl. mood duplo, semelhante ao
italiano.
y [y] alem. Sünde - as outras consoantes
soam
24
fr. tu como em português.
 [y:] alem. Süden
fr. rue
A Literatura Anglo-Saxã
A literatura anglo-saxã originou-se, paralelamente à língua, pela chegada das
tribos germânicas às ilhas britânicas no século V. Ela possuía um caráter próprio,
herdado de uma tradição germânica comum.
Exceto por fragmentos em suporte sólido, essa literatura, em seus mais de
trinta mil versos restantes, constitui a mais antiga vertente a ter sobrevivido. Isso se
deve em grande parte à apreciação monástica dos códices
12
e ao incentivo de reis
como Alfred ao aprendizado da escrita e da poesia para todos os extratos da
sociedade. Anteriormente, a literatura era mantida quase que unicamente como parte
da tradição oral, na qual o Scop, o bardo anglo-saxão, exercia o papel de educador e
preservador dos costumes e valores através das gerações.
A poesia era o meio mais apropriado para a expressão literária, e
originalmente, poderíamos dizer, a única forma de literatura indo-européia. As razões
para isso têm, em geral, caráter prático, e incluem a fácil memorização de um ritmo
marcado e o acompanhamento das apresentações com instrumentos musicais, em
especial a harpa.
13
É indiscutível que inúmeros dos poemas registrados em manuscritos fossem
versões de obras mais antigas, mantidas através da tradição oral desde muito antes de
seus correspondentes mais palpáveis existirem. Mesmo na literatura escrita,
desenvolvida até o fim do período inglês antigo, não podemos ignorar o uso de
expedientes retóricos e técnicas advindas da oralidade e da performance, como as
repetições e o uso freqüente de formas mnemônicas, que acabaram por permear
mesmo a prosa, de origem latina.
12
A maior parte dos manuscritos anglo-saxões retantes foram preservados em cópias que chegaram até
nós através dos códices em mosteiros.
13
Há poucas menções e referências à música anglo-saxã e aos instrumentos utilizados para o
acompanhamento da poesia. Em Beowulf a harpa é usada para este fim, mas não há nenhuma
informação quanto à técnica nesse ou em qualquer outro manuscrito conhecido.
25
Isso posto, parece-me muito pouco produtivo do ponto de vista do estudo
literário que se proponham traduções de poesia desta época em prosa, perdendo-se
todo o conteúdo cultural e tradicional de que está imbuída. Em vista da importância da
poesia para a sociedade anglo-saxã, e em virtude de um melhor entendimento dos
procedimentos desta tradução de “A Batalha de Maldon”, torna-se necessária uma
introdução aos aspectos centrais deste tipo de verso.
O Verso Anglo-Saxão
Trataremos neste capítulo de delimitar como referência os principais
procedimentos e características das composições anglo-saxãs, conforme o estudo
desenvolvido nos últimos duzentos anos. Sem procurar enumerar todas as regras em
sua complexidade ou, de maneira alguma, esgotar o tema, o objetivo é fornecer
indicações que sirvam de base ao detalhamento no capítulo sobre a tradução, onde
retomaremos o assunto conforme necessário.
Toda a poesia anglo-saxã de que se tem notícia segue um mesmo padrão
métrico no qual alternam-se as sílabas átonas e as tônicas. O verso é dividido em duas
partes semelhantes, chamadas meio-versos, cada uma das quais composta de duas
sílabas tônicas ou ascendentes e de um número maior ou igual de sílabas átonas a cujo
agrupamento damos o nome de queda.
14
Ex.: wīcinga werod, west ofer Pantan, (verso 97)
15
/ - - / - / - - / -
16
Podemos observar também que a ascendente recai, na maior parte das vezes,
sobre uma sílaba que apresente vogal longa, ou em determinados casos, em um som
14
A nomenclatura utilizada por mim é uma proposta de tradução baseada na versão mais aceita pelos
estudiosos em língua inglesa, visto que não temos registro de nenhum tratado métrico em anglo-saxão.
Também não tenho conhecimento de que haja uma versão anterior à minha destes conceitos em língua
portuguesa, no que se refere especificamente ao anglo-saxão. Seguem os termos em inglês,
acompanhados de minha tradução: line - verso, verse ou half-line - meio-verso, lift - ascendente, fall -
queda e caesura - cesura.
15
Os exemplos que aqui não possuem indicação de fonte foram tirados de “A Batalha de Maldon”.
16
As ascendentes são indicadas por “/”, as átonas por “-“ e a cesura por “”.
26
que se alongue por uma seqüência de duas sílabas com vogais curtas ou que se
estenda da ascendente para a sílaba átona seguinte. Adicionalmente, já que a poesia
germânica antiga tem como princípio e origem a tradição oral, o padrão de
ascendentes reproduz a prosódia. Assim sendo, a ênfase é dada à parte
semanticamente mais importante, tanto de vocábulos
17
, como de sentenças. Nas
sentenças isso significa a predominância de ascendentes em substantivos, adjetivos e
verbos no infinitivo, outros tipos lexicais tornam-se ascendentes quando há
necessidade de que sejam enfatizados, o que ocorre com menos freqüência, e, em
especial quando deslocados de sua posição usual dentro de uma frase.
Na poesia anglo-saxã, damos o nome de cesura à divisão que se apresenta
entre os dois meio-versos. Em geral, cada meio-verso representa uma unidade de
sentido, complementada e alterada pelo meio-verso seguinte. A cesura é uma
indicação da mudança ou complementação do sentido, e é freqüentemente reforçada
por uma alteração ou quebra rítmica, em particular depois de cada terceiro meio-
verso.
Embora ela tenha clara importância na tradição oral e na performance,
trazendo a esta um caráter de “suspense”, devemos notar que na escrita, a cesura entre
os dois meio-versos tenha sido adotada muito posteriormente, para facilitar a leitura e
a escansão. Os escribas da época copiavam a poesia em linhas contínuas como as da
prosa (prática que poderia ser atribuída à economia, devida à raridade e custo do
pergaminho), embora alguns também usassem a pontuação para marcar unidades
métricas.
Outro aspecto fundamental da poesia anglo-saxã é a ausência da rima vocálica
final, tão característica da literatura ocidental contemporânea. Ao invés de rimas
vocálicas finais, a poesia anglo-saxã baseia-se em aliterações (também conhecidas
como rimas consonantais) entre as ascendentes. Seguindo um padrão semelhante ao
da quebra rítmica a cada quatro meio-versos, a rima consonantal se dá, idealmente,
entre as duas primeiras sílabas tônicas de um dado verso e a primeira ascendente de
seu segundo meio-verso, embora ocasionalmente também encontremos uma variante
que possua aliterações apenas na ascendente inicial de cada meio-verso.
17
A tonicidade nos vocábulos de origem germânica tem esta característica. A tônica ocorre na primeira
sílaba do radical (ou do radical principal, quando há mais de um) ou no prefixo, quando este altera o
significado do radical (em oposição a apenas adicionar significado a ele ou complementá-lo).
27
Ex.: wīs ealdorman, woruldġesliġ. (verso 219)
Há cinco padrões tradicionais para a disposição de ascendentes e quedas no
meio-verso anglo-saxão, sendo que salvo a mudança de ritmo e a obrigatoriedade das
aliterações, não há restrições quanto ao uso de qualquer combinação de tipos na
sequência dos poemas.
O primeiro estudioso a apresentar uma sistematização dos padrões métricos
anglo-saxões, no século XIX, foi Edward Sievers. Embora existam teorias mais
recentes, moldadas em diferentes princípios, sua classificação, adotada aqui, sofreu
poucas alterações e adições, e ainda é a mais aceita pelos especialistas da área. Sievers
denominou os cinco tipos de versificação A, B, C, D e E. A ordem das subdivisões
correspondendo, em linhas gerais, ao número de ocorrências de cada uma delas, indo
do tipo mais comum, A, ao menos usual, E.
Os modelos métricos encontram-se a seguir. Neles utilizo “x” para indicar a
sílaba em queda, já que essa notação também é comumente utilizada por especialistas,
e porque acredito facilitar a visualização. O conteúdo entre parênteses é opcional,
quaisquer sílabas opcionais podem ser utilizadas, a única restrição é o número
máximo delas. Notemos que todos os cinco tipos mencionados por Sievers estão
presentes em “A Batalha de Maldon”:
Tipo A
/ x ( x x x x ) / x
frēan tō ġefeohte, (meio-verso 12a
18
)
/ - - / -
gār tō gūþe. (meio-verso 13a)
/ - / -
hþene æt hilde. (meio-verso 55a)
/ - - - / -
18
Convencionalmente nos referimos ao primeiro meio-verso como “a” e ao segundo como “b”; Por
exemplo, o segundo meio-verso do verso 10 recebe a anotação “10b”.
28
Tipo B
( x x x x ) x / x ( x ) /
and tō þre hilde stōp; (meio-verso 8b)
- - - - / - /
þæt þū mōst sendan raðe (meio-verso 30b)
- - - / - / ˇ -
and þone gōdan forlēt (meio-verso 187b)
- - - / - - /
Tipo C
( x x x x x ) x / / x
ġedōn hæfde. (meio-verso 197b)
- / / -
þæt hī forð ēodon. (meio-verso 229b)
- - / / -
on burh rīdan, (meio-verso 291b)
- / / -
Tipo D
/ ( x x x ) / \ x
grim gūðplega, (meio-verso 61a)
/ / \ -
Offa þone slidan, (meio-verso 286a)
/ - - - / \ -
bord ord onfēng. (meio-verso 110b)
/ / - \
Tipo E
/ \ x ( x ) /
wælræste ġeċēas, (meio-verso 113b)
/ \ - - /
29
æscholt āscēoc: (meio-verso 230b)
/ \ - /
Outro desenvolvimento possível dos tipos A e D é a presença de uma, ou,
raramente, duas sílabas (se a esta queda coincidir o prefixo átono de uma palavra
composta) que componham uma queda precedendo a primeira ascendente, a que
damos o nome de anacrucis. Este elemento é desconsiderado na contagem de sílabas,
e é marcado por uma barra vertical na escansão.
Exs.: genered wið nīðe (Beowulf, meio-verso 827a, tipo A)
- | / ˇ - - / -
wiðhæfde heaþodēorum (Beowulf, meio-verso 772a, tipo D)
- | / - / ˇ - \ -
30
Manuscrito
Segundo Scragg
19
, a mais antiga descrição do poema, depois intitulado “A
Batalha de Maldon”
20
, a chegar até nós, é de Thomas Smith e foi publicada, em 1696,
no catálogo da biblioteca Cotton. Ela qualificava o poema como “um certo fragmento
histórico sobre Eadric, etc. Saxão.”. Mais acertada é a descrição de Humfrey Wanley,
de poucos anos depois: “um fragmento mutilado no início e no fim, seis folios
uniformes, nos quais é celebrado poeticamente, e no estilo de Cædmon, a coragem em
batalha contra os dinamarqueses por parte de Ealdorman Byrhtnoth, Offa e outros
aliados anglo-saxões.”
21
A única cópia conhecida do manuscrito a ter sobrevivido permanecia na
Biblioteca Britânica, em Londres, quando foi destruída durante o incêndio da coleção
Cotton, em 1731. Era umas das quatro, de um total de seis partes não relacionadas, a
serem completamente consumidas pelo fogo, restando-nos uma transcrição, também
única, atribuída a David Casey ou possivelmente ao antigo diretor da Cotton, John
Elphiston, cópia que posteriormente pertenceria ao historiador Thomas Hearne.
Hearne editou uma versão em prosa do poema, acompanhando a versão de
John of Glastonbury das “Crônicas Anglo-Saxãs”, em 1726. Sua edição continha
pequenos erros, em parte devidos à sua leitura da transcrição e também aos próprios
defeitos desta, em sua maioria solucionados por ele. A primeira versão data de 1834,
por Benjamin Thorpe, e foi basicamente a mesma a ser reeditada em antologias até
meados dos anos 30 quando N. R. Ker descobriu a transcrição original. Gordon em
1937 e Dobbie, em 1942, também fariam suas próprias interpretações. O presente
texto inclui as modificações mais aceitas, baseando-se principalmente no texto de
Scragg e na edição Oxford, incluindo a divisão em meio-versos, pontuação, marcação
das sílabas longas e emenda às abreviaturas. Adiciono, afim de facilitar a leitura,
pontuação nas letras g e c, conforme explicado no resumo para as regras do ítem
Pronúncia. Comentários acerca de novas propostas e decisões tomadas por mim, tanto
19
Scragg, D.G. - The Battle of Maldon, Manchester University Press, Manchester, 1981.
20
Os poemas encontrados em anglo-saxão nos pergaminhos não possuem títulos, a maioria deles, dos
quais este não é exceção, tendo sido atribuída durante o século XIX.
21
No original “Celebratur virtus bellica Beorhtnothi Ealdormanni, Offae et aliorum Anglo-Saxonum, in
praelio cum Danis” in Antiquae Literaturae Septentirionalis Liber Alter seu Humphredi Wanleii
Librorum Vett. Septentrionalium, qui in Angliae Blibliothecis extant, ... Catalogus Historico Criticus
(Oxford 1705), p. 232.
31
para a determinação de emendas ao texto, quanto para a tradução de acordo com estas
emendas, estarão inseridas nas notas à tradução.
32
A Batalha
Apesar da relativamente pequena importância estratégica atribuída à batalha
de Maldon, há inúmeras referências a ela. As versões C, D e E das “Crônicas Anglo-
Saxãs”
22
partilham o mesmo registro para o ano de 991. A primeira delas contém:
“Her wæs Ġypeswiċ ġehergod, and æfter þon swiðe raðe wæs Brihtnoð
ealdorman ofslegen æt Mældune. And on þam ġeare man ġerædde þæt man ġeald
ærest gafol Denescum mannum, for ðam miclan brogan þe hi worhton be ðam
særiman; þæt wæs ærest x ðusend punda. Þene ræd ġerædde ærest Syriċ arcebisceop.
“Neste ano Ipswich (Ġypeswiċ) foi saqueada, e pouco depois disso,
Ealdorman
23
Brihtnoð
24
foi morto em Maldon (Mældune). No mesmo ano, decidiu-se
pagar tributo aos dinamarqueses pela primeira vez, devido aos inúmeros danos feitos
por eles ao longo da costa; Foram inicialmente dez mil libras. O arcebispo Sigeric
25
(Syriċ) foi o primeiro a sugerir a ação.
26
Um retrato mais detalhado encontra-se no manuscrito A, que inclui o nome do
líder viking (Olaf Tryggvason) e das outras cidades atacadas antes de Ipswich
(Folkestone e Sandwich). O ano do registro, porém, consta como 994, embora haja
uma marca posterior indicando o ano de 991. Nas outras versões, o ano de 994 contém
o nome de Olaf e o tamanho da frota (93 ou 94 navios, em numerais romanos).
A data do combate pode ser determinada pelos registros do óbito de Byrhtnoð,
em um calendário Ely do século XII, em Cambridge, Trinity College 0.2.1, como 10
de agosto, e em um calendário Winchester do século XI, em Londres, British Library,
Cotton Titus D.xxvii, como 11 de agosto.
A mais antiga das fontes em latim é a “Vita Oswaldi”, escrita pelo monge
Byrhtferð em Ramsey entre 997 e 1005. Embora próximo aos fatos, essa obra contém
poucos detalhes e data a batalha em 988, incluindo a informação de que Byrhtnoð era
particularmente alto e tinha cabelos brancos, que lutou bravamente, e que o número de
22
O manuscrito F, em inglês e latim, contém uma versão reduzida do mesmo parágrafo. The Anglo-
Saxon Chronicle, ed. Benjamin Thorpe, Rolls Series, Londres, 1861.
23
Título anglo-saxão modificado gradualmente para Earl, em influência do nórdico Jarl.
24
Variante para o nome do Byrht-, devida à metástase e adotada como padrão a partir do século XI.
25
Então arcebispo de Canterbury.
26
A prática era bastante conhecida, mas o pagamento do chamado Danegeld (dinheiro dinamarquês) só
tornou-se regular a partir de então.
33
mortos era tão elevado, que mesmo os dinamarqueses teriam dificuldades em tripular
seus barcos. Seu estilo é marcadamente hiperbólico, e se fôssemos confiar no relato,
seria particularmente difícil entendermos a necessidade de um pagamento imediato na
soma de 10.000 libras.
Apenas dois outros textos em latim nos oferecem novas informações: A
Crônica de Florence de Worcester, provavelmente baseada em uma versão perdida
das Crônicas Anglo-Saxãs, na qual são mencionados dois líderes vikings: Justin e
Guðmund, e o fato de Byrhtnoð ser o Ealdorman de Essex. A outra fonte latina é o
Liber Eliensis, repleto de detalhes circunstanciais, não tão confiáveis devido à relação
entre Ely e a família do ealdorman, sepultado ali. O relato usa bastante da imaginação
do escritor e se apóia claramente em outras fontes, inclusive o próprio poema, como
destaca Scragg: a luta na ponte (pontem) e a menção a um pé de terra (unum possum
pedis) (cf. linhas 247 e 275 do poema) se encaixam muito bem. A descrição se alonga
em uma saga: os dinamarqueses perdem uma batalha e retornam quatro anos depois,
descobrem o comandante inimigo e o desafiam novamente. Scragg cita também
“nimia animositate” como provável equivalente para “ofermod” no poema ou para
uma tradição em comum. Ainda, uma tapeçaria, que teria sido presenteada ao
mosteiro de Ely pela viúva do ealdorman, à la Bayeux
27
, aumentaria a margem para
diferentes interpretações.
É certo que uma força anglo-saxã, liderada por Byrhtnoð, foi derrotada pelos
vikings às margens do rio Blackwater. Se, por um lado, não podemos confirmar o
ocorrido além disso, não há indicações de que os eventos descritos no poema não
sejam verdadeiros, sobretudo no que diz respeito à configuração da batalha, à
estratégia e à localização, para os quais, ao contrário dos discursos incluídos no
poema, não há necessidade artística alguma.
A descrição foi plausível e realista o bastante para despertar o interesse de
pesquisas topográficas e geológicas. Em 1925, E.D. Laborde propôs que os vikings
poderiam ter acampado na ilha Northey, a quase três quilômetros de Maldon, onde
uma antiga faixa de terra nordeste-sudoeste ainda é conectada ao banco sul durante a
baixa correnteza, o que, segundo Scragg, possibilitaria a travessia dos vikings a “oeste
do Pante”, na linha 97. Ainda segundo ele, a confluência das correntes ao longo da
passagem poderia explicar que se unissem como na linha 66. Embora não haja
27
Famosa tapeçaria retratando a batalha de Hastings, entre normandos e saxões, da qual provém muito
do conhecimento que se tem da organização militar da época.
34
evidência arqueológica para o local, esse tipo de ocorrência é comum ao longo do rio,
e as mudanças da configuração do terreno ao longo do tempo são muitas.
35
O Poema
O poema continua sendo uma das fontes mais detalhadas. O fragmento
começa com a força anglo-saxã movendo-se para engajar uma tropa viking, segundo a
decisão de um conselho de guerra (linhas 198-201). O exército é liderado por
Byrhtnoð, ealdorman de Essex, de acordo com documentos históricos, desde 956. O
rio Pante, agora chamado Blackwater, situa-se em Essex, enquanto que a cidade de
Maldon não é mencionada no texto remanescente.
O comandante Byrhtnoð posiciona seus homens desmontados em linha,
próximos às forças vikings. Os dois exércitos ficam divididos pela correnteza, e com a
baixa, por uma estreita faixa de terra de fácil defesa. Os vikings pedem tributo, o que
é recusado, e em seguida pedem por passagem livre até a margem, o que se realiza e é
criticado em caráter moral pelo poeta (linhas 89-90). O aspecto estratégico ou tático
deixa de ser levado em conta no restante do poema. Scragg considera a linha de
escudos (linhas 102, 242 e 277) um fundo poético recorrente, embora também seja
uma formação bastante tradicional de batalha. A ênfase é dada aos indivíduos, a
retribuição pela morte do sobrinho de Byrhtnoð, o próprio valor deste, que é
inicialmente bem sucedido para, depois, ser mortalmente ferido. O relato segue com a
reação à sua morte por parte de certos guerreiros, mencionados pelos nomes, à fuga de
um deles e de seus irmãos, e a resistência final e bravura ideal nas palavras e feitos de
certos vassalos.
36
O Texto Medieval
Antes de prosseguirmos mais pormenorizadamente com a tradução em si, é
importante ressaltar alguns aspectos básicos que envolvem o texto medieval e suas
dificuldades como conceito e estudo científico.
Se por um lado os estudos medievais continuam sua evolução já há séculos e
forneçam um arcabouço bastante sólido, apoiado em tantas evidências textuais e
materiais encontradas, não podemos nos esquecer das inúmeras lacunas a serem
preenchidas. Os fragmentos de que dispomos parecem ser quase sempre uma pequena
amostra da totalidade: relatos, cópias manuais de originais desconhecidos, muitas
vezes de 2ª. ou 3ª. mão, e partes resgatadas ou salvas do esquecimento mais por acaso
que por intenção. A questão é, que por mais precisa que possa ser nossa leitura das
evidências, ao nos afastarmos do positivismo da antiga filologia, aumentam os
obstáculos em reconstituir seu valor e especificidade.
Segundo comenta R. M. Liuzza
28
, tradutor de Beowulf para o inglês e
professor da University of Tennessee, o reconhecimento da instabilidade textual, como
marco fundamental da teoria pós-estruturalista a partir de Derrida, só pode fazer com
que os anglo-saxonistas estejam mais atentos ao trabalho de edição, tradução e
estabelecimento do texto material, ancorando “fragmentos a nossas ruínas”.
Mencionamos a pouco o caráter da literatura anglo-saxã, partilhada da indo-
européia, de que o texto nasça em função da oralidade. Como podemos reproduzir as
nuances de sentido dessa oralidade, como nos apercebermos dos diferentes tipos de
registro e entonação?
A literatura tradicional anterior à Baixa Idade Média, longe dos mosteiros,
onde viria a ser preservada, e do isolamento e individualidade do leitor moderno ou
contemporâneo, era a literatura da sociedade, e, sem autoria definida, pertencia ao
leitor e sua audiência. Se a autoria é quase sempre anônima, perdemos grande parte do
contexto em que foram escritas as obras. Para interpretá-las, dependemos de nosso
entendimento particular da sociedade da época, com todas as imperfeições e
predisposições de nosso próprio tempo.
28
R.M. Liuzza (Ed.) – “Introduction” in Old English Literature: Critical Essays – Yale University
Press, 2002.
37
Se, como nota Raymond Williams, teórico e um dos maiores historiadores
culturais britânicos, a palavra literature surge, originalmente, para designar a
habilidade ou capacidade de ler e escrever que hoje denominaríamos em inglês
literacy, por outro lado, como destaca Nicholas Howe
29
, a raiz indo-européia que deu
origem ao inglês moderno read, “ler” é a mesma do alemão moderno raten,
“aconselhar” equivalente do anglo-saxão rædan, “aconselhar, explicar o que é
obscuro, decifrar. Daí que a “leitura” nas sociedades tradicionais de origem indo-
européia diferisse de nosso conceito. Também “inscrever”, wrītan, era em anglo-
saxão um verbo relacionado às inscrições rúnicas em pedra. Pois runa significa
mistério, algo cuja interpretação dependia de um leitor especializado, que além de ler
pudesse atualizar sua simbologia. Acho apropriado citar Brian Stock, estudioso
canadense e um dos maiores especialistas em filosofia antropologia e literatura
medievais, embora refira-se neste trecho mais especificamente à Idade Média
propriamente dita:
“What was essential for a textual community, whether large or small, was
simply a text, an interpreter, and a public. The text did not have to be written; oral
record, memory, and reperformance sufficed. Nor did the public have to be fully
lettered. Often, in fact, only the interpres had a direct contact with literate culture,
and, like the twelfth-century heretic, Peter Waldo, memorized and communicated his
gospel by word of mouth.”
30
De modo inverso ao conceito de literatura, que se restringiu e especializou
com o passar dos séculos, a leitura e a escrita passaram a ser conceitos mais concretos
e abrangentes à medida que perdemos a noção do sagrado (Eliade). A evolução
posterior de rædan e wrītan como “ler/escrever a escrita comum”, que também
ocorreria com os equivalentes nórdicos antigos, é prova disso.
Com base nesses dados concluo que uma das principais chaves para a leitura
do anglo-saxão seja a manutenção dos vários sentidos que permeiam cada texto. Se
invariavelmente temos diversas possibilidades de leituras para cada manuscrito,
devemos tornar nossa leitura mais abrangente. Se dependiam de um interlocutor, de
um orador que lhes determinasse o sentido, não será o texto escrito a fazê-lo.
29
Nicholas Howe – “The Cultural Construction of Reading in Anglo-Saxon England” in The
Ethnography of Reading, ed. Jonathan Boyarin, pags. 58-79 – Berkeley, University of California Press,
1993.
30
Brian Stock – Listening for the text: On the uses of the Past – Baltimore, 1990.
38
Podemos traçar um paralelo com as peças de Shakespeare, ou a obra de Donne,
invariavelmente imbuídas de múltiplos sentidos, como são muitas cantigas em
português medieval. Seria ingênuo concluir que esta característica em comum fosse
apenas uma coincidência. Se a leitura filológica ignorou tanto tempo a multiplicidade
de sentido, só o fez por sua própria crença positivista, em sua própria visão pela qual
procurou transformar a idade das trevas em “preto no branco”.
A literatura medieval da época possuía então semelhanças a nosso conceito de
literatura, ela era reservada a poucos no que diz respeito àqueles que possuíssem a
capacidade de interpretá-la (embora talvez não de valorizá-la), mas por existir dentro
da prática social, pertencia obrigatoriamente a todos como tradição, muito embora, é
claro, seu caráter cultural e valor fossem diferentes dos do mundo contemporâneo.
Possuindo grande importância à educação, entretanto, era justamente na prática social
que mais diferia de nosso conceito de literatura, não era arte como a entendemos hoje,
mas artifício ao ensino da conduta cultural (embora não tão restritiva quanto
imaginamos) e, em sentido amplo, filosofia.
Tendo em mente as inúmeras dificuldades na leitura, o que dizer da tradução
do texto medieval anglo-saxão?
Outras Traduções
“The plant must spring again from its seed, or it will bear no flower”
Mary Shelley
Ao formalizar uma proposta para a tradução de “A Batalha de Maldon”,
procurei, em primeiro lugar, identificar as principais vertentes utilizadas para versão
da poesia medieval anglo-saxã bem como de outros textos os quais pudessem trazer
alguma espécie de contribuição ou equivalência em que basear-me. Tendo em vista o
caráter particular do metro anglo-saxão e sua origem na oralidade, meu objetivo
inicial seria preservar os traços distintivos mais pertinentes a este tipo de literatura,
comparando-os às soluções empregadas em traduções anteriores.
Dentre os exemplos coletados de tradução em língua inglesa, pude identificar
dois tipos mais numerosos: o primeiro deles, que não visa especificamente a tradução,
composto por críticos, que em sua maioria não tentariam traduzir mais do que alguns
versos por vez, e, mesmo quando chegam a fazê-lo, com o objetivo claro de ilustrar
39
argumentos sobre a obra, discordar de posições alheias e produzir versões
estritamente acadêmicas. A outra vertente é a vertente de tradutores, na maioria não
especializados em literatura medieval, ou de especialistas não contemporâneos, onde
incluiriam-se escritores chamados por editoras afim de realizar uma ou outra dessas
traduções, voltadas estritamente ao leitor comum ou ao canon literário. De modo geral
estes dois tipos encerram os extremos de possibilidade: o primeiro visando quase que
unicamente o conhecimento e o segundo, a facilidade ou familiaridade de leitura.
Em minha proposta, procuro afastar a tradução dos extremos. Em uma versão
cartesiana, o texto corre o risco de perder-se em sua totalidade, em especial no que diz
respeito à pluralidade do texto medieval, pela necessidade de determinar seu conteúdo
sem margem para dúvidas.
31
Octavio Paz no artigo “Traducción: literatura y
literalidad” escreve sobre o fato de a poesia possuir múltiplos e mutáveis significados,
ao contrário da prosa. Se muitos especialistas procuram definir o significado e
explicá-lo, meu esforço seria de, inversamente, manter a fluidez e mobilidade de
sentidos.
No segundo contexto, o das traduções comercias, a particularidade é perdida
em função da clareza e identidade com a literatura e cultura contemporâneas. Creio
que o uso do viés extremo faz com que a obra seja perdida como tal.
Buscando as traduções de grandes editoras inglesas e americanas, que
partilham meu segundo tipo, sem grande surpresa confirmamos as hipóteses de Venuti
e Lefevere, de haver um alto grau de domesticação, tanto formal quanto lexical,
advinda da reintrodução da literatura medieval (e não só dela) ao contemporâneo, ao
aceito, uma “preservação da tradição pelo constante ato de rescrevê-la”. Anglo-saxão
torna-se inglês, simples e indissoluvelmente:
“...it lives singly, as an English language poem”--James Wood, The Guardian
“... (it) has the virtue of being both direct and sophisticated, making previous versions
look slightly flowery and antique by comparison.”--Claire Harman, Evening Standard
“... (the translator) has caught the balance of these things brilliantly; he has made a
masterpiece out of a masterpiece."--Andrew Motion, Financial Times
31
É útil destacar que em textos acadêmicos recentes, a tradução tem dado lugar a explicações
complexas do original, e os vocábulos são listados em forma de glossário.
40
A tradução de “Beowulf”, por Seamus Heaney, é um ótimo exemplo disso, ele
próprio deixa óbvia sua estratégia facilitadora e orientada à língua alvo:
“In one area, my own labours have been less than thorough-going. I have not
followed the strict metrical rules that bound the Anglo-Saxon scop. I have been guided by the
fundamental pattern of four stresses to the line
, but I allow myself several transgressions. For,
example, I don’t always employ alliteration
, and sometimes I alliterate only in one half line.
When these breaches occur, it is because I prefer to let the natural ‘sound of sense’
prevail
over the demands of the convention.”
Heaney se utiliza de várias das estratégias poéticas presentes no texto fonte,
mas tudo em função do que chama “directness of utterance”, destacando esse caráter
direto como a mais importante característica do verso anglo-saxão. Concordo com
Heaney no que diz respeito a este ponto, mas ignorar outras particularidades do verso
em função desta única só pode ser considerada uma explicação conveniente para um
estratégia facilitadora: (...) “What I was after first and foremost was a narrative line
that sounded as if it meant business and I was prepared to sacrifice other things in
pursuit of this directness of utterance”. Sua tradução, ao contrário do texto fonte, se
apresenta de forma bastante irregular (segundo ele, suas aliterações variam do
sombrio ao substancioso) se a considerarmos poeticamente e a compararmos ao
original, variando do verso quase livre:
Hwæt w G r-Dena in g ar-dagum (verso 1)
Þ
od-cyninga þrym gefr non,
H
p æþelingas ellen fremedon
So. The Spear-Danes in days gone by (verso 1)
and the kings who ruled them had courage and greatness.
We have heard of those princes’ heroic campaigns.
Ao metro regular com aliterações:
41
The fórtunes of wár fávoured Hróthgar (verso 64)
the híghest in the lánd, would lénd advíce (verso 172)
and fínd fríendship in the Fáther’s embráce (verso 188)
Lefevere afirma que “Tradução é reprodução, refração”. Segundo ele, os
textos, ao serem rescritos, processados para uma determinada audiência ou adaptados
a um modelo poético pré-estabelecido são refratados.
Em “Literary Theory and Translated Literature”
32
, diz: “Let´s take a classic,
any classic (...) Chances are that we did not first come into contact with it in its
unique, untouchable, ‘sacralized’ form (...) Rather, for most, if not all of us, the
classic in question quite simply was to all extents and purposes its refraction”. Ele
considera a refração como a “...estratégia a longo prazo, da qual a tradução é apenas
uma parte, que tem o fim de manipular a obra estrangeira a serviço de algo que possua
valor para a cultura nativa”
33
.
Temos daí, que todo o texto canônico, e a própria tradução seria utilizada para
sua canonização, é refratado em diversas formas. “Uma tradução bem sucedida é
julgada de acordo com sua fluência, sua naturalidade... Uma estratégia de fluência
implica em rescrever o texto em língua ou linguagem diferente para a circulação em
uma cultura diferente, mas este mesmo processo resulta em um auto-
aniquilamento”,
34
diria Venuti. Este auto-aniquilimento, portanto, uma pasteurização
da tradução em um modelo pré-estabelecido. Com base nesta teoria, procurarei evitar
anular o texto fonte, tendendo sempre mais ao estrangeirismo que à domesticação.
Recordei-me da experiência da literatura gaélico-irlandesa medieval, na
análise pós-colonialista de Maria Tymoczko, que considero esclarecedora no sentido
da tradução de textos medievais, e imaginei poder traçar um paralelo: da mesma
maneira com que se apagavam, na tradução, os traços reprováveis do ponto de vista
colonialista, se apagavam os traços reprováveis do ponto de vista dos que a sofriam.
Segundo a autora, as próprias traduções servem, no estudo das línguas mortas, como
32
Lefevere, André – Translation, Rewriting and the Manipulation of Literary Fame, Routledge,
Londres, 1992.
33
Lefevere, André – Essays in Comparative Literature: a Systems Approach, Papyrus, Calcutta, 1988.
34
Venuti, Lawrence - The Translation Studies Reader, Routledge, Londres, 2000.
42
um arcabouço que influenciaria novas traduções, o que implica, portanto, na criação
de uma tradição. Se aplicarmos aqui uma análise nesse contexto, como o faz
Tymoczko,
35
concluiremos que é como se os novos valores desenvolvidos e
importados pelas sociedades de língua inglesa fossem impostos sobre uma tradição
primordial que poderia, de outra forma, ser reconhecida como “bárbara”, ou, no
mínimo, estrangeira e reprovável dentro de uma tradição domesticadora.
A relação domesticadora imposta culturalmente ignoraria a fonte em função de
sua centralização. Seu resultado, assim, acaba sendo o mesmo em relação a quaisquer
culturas, tanto as tidas como estrangeiras quanto as nacionais, cujos valores passam a
ser ainda mais restritos como modelo de cultura, de nação. Com efeito, não haveria
diferença significativa entre uma tradução a partir do anglo-saxão quanto do islandês
antigo. Tomando a título de exemplo as duas estrofes finais do “GestaÞáttr” (i.e. “a
seção dos convidados”), um dos textos mais importantes do Hávamál do Edda
poético, a principal coletânea medieval islandesa, notamos a mesma perda de
características, as quais procuro preservar abaixo, em português (as aliterações
principais estão em itálico):
Deyr , Morre o gado,
/ - / / - /
deyja frændr, amigos morrem,
/ - / - / - /
deyr sjálfr it sama, tudo morre um dia,
/ - / - - / / - / - - /
en orðstirr mas a glória
- / - - - /
deyr aldregi, nunca morre,
- - / - - /
hveim er sér ðan getr. daquele que bem a tem.
- - - / - / - - - - / - /
Deyr fé, Morre o gado,
35
Tymoczko, Maria - Translation in a Postcolonial Context, St. Jerome, Manchester, 1999.
43
deyja frændr, amigos morrem,
deyr sjálfr it sama. Tudo morre um dia.
ek veit einn Uma coisa sei,
at aldri deyr: porém, nunca morre:
Dómr um dauðan hvern. A honra de cada homem morto.
1- Cattle die, 2- Cattle die, 3- Cattle die,
kindred die, kinsmen die, kinsmen die,
every man is mortal: one dies oneself likewise, the self must also die;
but the good name but fame but glory
never dies never dies never dies,
of one who has done well. for him who gets good fame. for the man who is
able to
(...) (...) (...) achieve
it.
But I know one thing I know one thing I know one thing
that never dies: which never dies: which never dies:
The glory of the great dead. The judgement on each dead man
The reputation of each
man.
As traduções são respectivamente de: (1) W.H Auden e Paul B. Taylor, Norse
Poems, Faber & Faber, Norfolk, 1983, onde há maior perda semântica, (2) Jónas
Kristjánson e Peter Foote, Eddas and Sagas, Hið islenska Bókmenntafélag, Reykjavik,
1997, onde há maior uso de repetição e rimas no lugar de aliterações, e (3) Carolyne
Larrington, The Poetic Edda, Oxford University Press, 1996, onde é maior a perda
rítmica e das aliterações em troca do significado.
Meschonic destacaria a importância da não adequação do texto ao leitor, e de
se evitar a anexação cultural do texto. Procurei reproduzir o verso anglo-saxão no
português, e não o oposto, mantendo, à medida do possível, o conteúdo e as relações
que o envolvem. Escolhi sinônimos que respeitassem a sonoridade e ritmo do original,
sem alongar o texto em explicações e parábolas internas, que o descaracterizariam.
Procurei uma linguagem direta em si, mas não óbvia, (como muitas vezes ocorre) ao
44
leitor do português. Louis Kelly menciona “a forma orgânica” (...) ”desenvolvida a
partir das próprias características da obra a ser traduzida, e não uma forma que siga
um padrão tradicional...”.
Em oposição à domesticação da maior parte das versões em língua inglesa
busquei outras, em português, que proporcionassem uma maior liberdade na
reprodução do estilo antigo. John Milton aponta, em “Translation Theory in Brazil”,
para a inversão da posição da tradução no país: “(...) Venuti bemoans the lack of value
given to the foreignizing translator who emphasizes formal qualities. The present
situation in Brazil seems to be a reversal of this ‘normal’ situation: two translators of
poetry who do indeed emphasize formal elements and whose translations are part of
the foreignizing tradition are currently the most highly considered translators.”
No entanto, até onde pude determinar, a única tradução de poesia anglo-saxã
em língua portuguesa (salvo pequenos trechos em citações, ainda assim muito raros) é
uma edição brasileira de Beowulf
36
, o maior poema já encontrado na língua fonte.
Como consta das notas da edição, ela deriva da versão em inglês. Na bibliografia
encontramos: Garmonsway, G. e Simpson, J. – Beowulf and its Analogues, Londres,
1968 e Clark Hall, J. E Wrenn, C.L. – Beowulf and the Finnesburg Fragment, trans.
Modern English Prose, Londres, 1950.
O texto alvo em português apresenta um grau equivalentemente alto de
domesticação, maior ainda, se considerarmos as atuais traduções para o inglês. Apesar
de incluir numeração de linhas, esta não corresponde aos versos do original. Não há
qualquer tentativa de versificação ou aliteração, e ainda que haja o empréstimo de
imagens e de léxico, estas quase que invariavelmente são de origem clássica (num
sentido mais abrangente). A linguagem se destaca ainda mais, por seu teor hiperbólico
e abundância de qualificativos, ausentes no manuscrito (aqui em itálico).
Comparemos aqui esta tradução com o mesmo trecho por Frederick Rebsamen, um
dos tradutores acadêmicos mais conhecidos em língua inglesa, em especial devido à
sua fidelidade à métrica e ao léxico anglo-saxões. Fato curioso é a presença da mesma
tradução Beowulf and its Analogues, na bibliografia do livro de Rebsamen
37
:
36
Ary Gonzalez Galvão – Beowulf – Hucitec, São Paulo, 1992.
37
Frederick Rebsamen – Beowulf – An updated verse translation – Perennial Classics, Nova Iorque,
1991-2004.
45
Apressando-se, atroz inimigo, pisou no solo
imaculado, e feroz, avançava; de seus olhos
ignívomos chama lúgubre expelia; viu então no
imponente átrio um grupo de jovens guerreiros
adormecidos, belos e impubescentes companheiros –
todos grandes e bravos cavaleiros; seu coração
então exultava – horrível monstro – sedento da
carnificina andrófaga. E desejou devorar cada
corpo adormecido à sua frente antes de o dia raiar;
leapt into the hall loomed with blood-rage 725
aching with life-lust from his eyes shone forth
a fearful glowering fire-coals smouldering.
Near him he spied sleeping together
close war-brothers waiting peacefully
prime for plucking. He exploded with fury 730
growled with greed-hunger glared all around him
burning to separate bodies from life-breath
drain blood-vessels before breaking of day.
É particularmente notável nesta versão que os adjetivos hiperbólicos
substituam invariavelmente os adjetivos descritivos, característicos do anglo-saxão e
adicionem um julgamento de valor em relação ao dragão, também ausente no texto
fonte. A ação e as imagens, que recebem todo o peso em Beowulf, são assim
atenuadas. Algumas vezes, onde é narrada uma batalha, ou a morte de um
personagem, o tradutor omite ou suaviza os detalhes ‘sangrentos’ em metáforas. A
opinião do autor pode fazer parte do verso tradicional, mas podemos dizer que nunca
há omissão de detalhes ou “censura” relativas às descrições de estado ou ação na
narrativa. Vejamos mais um exemplo seguido da tradução de Heaney, aqui, bastante
fiel semanticamente:
Então Hildeburgh
com Hnaef pediu que cremassem o corpo do seu
filho nas flamas da pira funerária; pediu que
46
o colocassem no seu leito ao lado do tio;
Then Hildeburh ordered her own
son’s body be burnt with Hnaef’s
the flesh in his bones to sputter and blaze
beside his uncle’s.
Continuando com a análise das traduções em português, um ensaio muito mais
aplicável e interessante é o Qohélet,
38
de Haroldo de Campos. Sua ressalva, incluída
abaixo, da introdução do livro, além de fazer parte de seu conceito de transcriação,
precede e nos dá pistas a respeito das tendências mais atuais da tradução com base
filológica:
“As traduções aqui coligidas são ensaios. Não têm, de modo algum, a
desmesurada ambição de restituir uma suposta autenticidade da língua original, nem
do ponto de vista filológico, nem do ponto de vista hermenêutico. Não aspiram a
repristinar nenhuma verdade textual. Não se nutrem de nenhuma visão purista.
Tão somente, buscam reconfigurar uma imagem possível da linguagem do
original, convocando, para isso, os recursos da poesia moderna, no empenho de
resgatar a poeticidade do texto do fundo mortiço ou edulcorado das versões
convencionais em português. Seus resultados finais devem ser avaliados em nossa
língua, como trabalho de recriação poética que nela se perfaz, levando-a, quando
necessário a extremar seus limites”.
Guardadas as proporções, mesmo muitas de minhas reservas sejam
provavelmente devidas à falta da leitura da versão em hebraico, são muitas as
semelhanças entre o Qohélet de Haroldo e a poesia germânica tradicional. O poema
gnômico, ou nas palavras de Campos, sapiencial, é recorrente em ambos os tipos de
poesia e certos usos partilhados, como o da repetição retórica. Na poesia anglo-saxã e
nórdica, pode-se dizer, o conteúdo filosófico é uma parte necessária a qualquer obra,
sua atualização e interpretação através da leitura, imprescindível à comunidade. O
valor do texto sagrado em hebraico pode diferir, mas sua apresentação é semelhante,
Martin Buber, por exemplo, tentaria resgatar a oralidade (Gesprochenheit) na mesma
38
Haroldo de Campos – Qohélet / O-que-sabe – Poema Sapiencial, com uma colaboração especial de J.
Guinsburg, Perspectiva, São Paulo, 1991.
47
tradução do hebraico em alemão. Mesmo o tipo literário aliterativo, que em hebraico
(ou em português), segundo os especialistas, não é costumeiro, é empregado por
Haroldo de Campos com grande naturalidade. Estudos culturais demonstram várias
semelhanças entre as culturas judaica e germânica antigas, desde Yggdrasil, a árvore
dos nove mundos e as nove sephiroth da árvore da vida na Cabala, mas
permaneçamos analisando a tradução:
Melhor um bom nome § que um perfume nobre §§§
E o dia morrer §§ que o dia nascer
A adoção de sinais disjuntivos (§§§ §§ §) para as pausas produz um efeito
quase equivalente ao da cesura anglo-saxã. A cadência marcada exclui do sistema a
idéia de enjambement, exatamente o que ocorre neste tipo de literatura. O rigor
métrico é mantido em função das pausas e de um sistema limitado de combinações
possíveis de pausas, sem que haja um número específico para o verso na tradução. O
conceito de Campos, o qual elucida com explicações a partir da teoria de Meschonnic
em sua proposta de “um sistema de brancos, um ritmo tipográfico, visual”, parece
provir das “tomadas de fôlego” (Atemholen) de Buber, não é coincidência que a
primeira tentativa tenha partido de um tradutor alemão, língua cuja prosódia
assemelha-se ao idioma de Maldon.
Eis um mal §§ eu o vi § sob o sol §§§
E ele avulta § sobre-humano
A aliteração de “vogais longas” nas sequências de vogais e ditongos em
português também se repete acima, assim como, algumas vezes, a coincidência do
padrão de duas ou três aliterações por verso:
E além delas § meu filho fique claro §§§
Fazer livros em excesso § não tem alvo §§
e excesso de estudo § entristece a carne
Do viés que poderíamos chamar de filológico-platônico, a transcriação é
excluída como objetivo, o efeito de apagamento das pistas de um terminus
48
contemporâneo, fixo em sua imagem, impede que sejam projetadas ao ponto de uma
recriação. Na introdução de Steiner ao The Penguin Book of Modern Verse
Translation,
39
de 1966, o poema existe estaticamente, enquanto que o tradutor
transforma e perde esta totalidade ideal, numa segunda língua. É importante apontar a
óbvia tendência da coleção ao não incluir o texto fonte, apenas a tradução.
É só com a relativização da visão filológica dos últimos anos, que não mais
tem por alvo uma verdade absoluta e inalcançável, que abrimos caminho para novos
pontos de vista.
Mesmo que não partilhe completamente do impulso, de fundo ideológico, da
recriação, é difícil ignorar a possibilidade trazida com o modernismo, de que a poesia
assuma as características de outras poéticas sem que haja necessariamente uma quebra
com a tradição vigente, permitindo que uma obra seja escrita dentro de um sistema
interno à ela própria. A literatura minoritária, ou distante em formato, tem espaço para
desenvolver-se, expandindo seus horizontes através das versões em moldes
estrangeirizadores.
Tento desenvolver um modelo que reproduza as qualidades da poesia em
Maldon no português. Também seria possível, dado o esforço prático de realizá-lo, em
quaisquer outras línguas, desde que superado o obstáculo inicial da aceitação e dadas
as limitações práticas de cada idioma. Como exemplo, tomei conhecimento há pouco,
de ao menos uma tentativa de reproduzir a poesia ocidental, em seus moldes, no
japonês. É esta a contribuição de meu trabalho, o reconhecimento de efetividade e
obstáculos da tradução entre sistemas poéticos, por meio da prática.
Campos discorre sobre o português do Brasil como um “idioma plástico para a
tradução e aberto ao impacto fecundante da língua estranha, seja sonora, seja
sintaticamente”. Seguindo seus passos, entendo que a sonoridade e a construção das
sentenças seja reprodutível dentro de uma formalização tradutória, e que o idioma
possa propiciar ferramentas e influenciar nas decisões envolvidas neste processo. Em
minha formalização, diferentemente de Campos, e em função dele, vejo ser necessário
conter a inovação lexical, tanto para não colocar-me indelevelmente dentro da
categoria da recriação, quanto para deixar transparecer a oralidade presente na
construção do texto fonte.
39
Various – The Penguin Book of Modern Verse Translation, Penguin, Londres, 1966.
49
O dramaturgo inglês John Millington Synge incluiria dentre as falas de uma
personagem: “A translation is no translation... unless it will give you the music of a
poem along with the words of it”. Haroldo de Campos privilegia o que é poeticamente
mais eficaz, em suas próprias palavras, no sentido poundiano da operação poética, em
uma “conjugação de melopéia e logopéia”. Deixa-se levar pelo jogos de figuras
sonoras e de palavras. Ambas as operações são pertinentes tanto em suas propostas
como na literatura germânica tradicional, onde o ritmo e métrica têm a maior
importância, bem como a poesia da gramática (Jakobson), com seu método proposital
de proporcionar duplos sentidos entre código de conduta e praticidade, cristianismo
ou deuses e valores tradicionais, e significados flutuantes que se intercalam no
decorrer dos versos são simbolicamente importantes.
Voltando-me para esse tipo de tradução, passo inevitavelmente por Pound e
The Seafarer, traduzido por ele do anglo-saxão. O autor moderno foi criticado, acima
de tudo, pelos erros de vocabulário. Como demonstram outros autores, entre os quais
o professor de anglo-saxão Michael Alexander, como uma tradução no “exame da
palavra”, Seafarer é um fracasso, mas em termos poéticos, é um sucesso.
40
wuniað Þā wācran ond Þās woruld healdaÞ, (verso 86)
brūcað Þurh bisgo. Bld is ġehnġed
Waneth the watch, but the world holdeth.
Tomb hideth trouble. The blade is layed low.
mantêm os fracos o mundo e o fazem
através do trabalho. Renega-se a honra
A opção de Pound é a de substituir o conteúdo lexical por vocábulos em inglês
que possuam uma sonoridade semelhante. Pois as críticas que recebe deixam de notar
em sua maioria, a verdadeira diferença de estilo e estrutura, que gira em torno da
mudança no emprego da logopéia do texto antigo. Enquanto este último é apoiado na
sequência de sentenças para a formação e multiplicidade de sentido, quase sempre de
cunho lógico e argumentativo, na obra de Pound a formação de imagens constitui o
40
As citações em português sobre Pound foram retiradas de John Milton – Tradução: teoria e prática,
2ª. Ed., Martins Fontes, São Paulo, 1998.
50
sentido, ao serem encadeadas pelo leitor moderno. As imagens concretas da fanopéia
talvez sejam diversas demais para a tradução, só imitáveis pelo encaixe preciso das
partes, assim sendo, ao fragmenta-las, cria uma nova totalidade e cumpre seu objetivo:
“Make it new”.
Borges critica o metro germânico antigo e o kenning (descrito no próximo
capítulo) ao considerá-los predecessores da metáfora, mas devemos entender que a
metáfora é da natureza da inovação, e a poesia antiga é tradicional, mesmo quando
inova, o faz de acordo com as regras pré-estabelecidas.
Ezra Pound transporta as imagens para a literatura moderna, e este é seu
trunfo. Ele escolhe The Seafarer como um modelo das aspirações, sentimentos e
incertezas que existem em comum entre as duas épocas e culturas, e transporta-as da
coletividade anglo-saxã para a modernidade ao afirmar ter descoberto neste trabalho a
química nacional inglesa (“the English national chemical”).
Outra fonte necessária é Tolkien, de fato especialista e escritor. Evitou a
tradução em si, compondo seus livros em uníssono com a literatura antiga. Ao
contrário do que pensam alguns, traduzia do anglo-saxão, seus manuscritos parciais
ainda podem ser encontrados em algumas bibliotecas inglesas, mas traduzia apenas
como exercício. “O esforço de traduzir, ou de melhorar uma tradução”, diria Tolkien,
“é valioso, não só pela versão que produz, tanto quanto pelo entendimento do original,
que desperta”.
Reproduzia por vezes a métrica e as aliterações em seus escritos, o caráter da
obra literária antiga e de sua visão original dela. Ele compara a poesia anglo-saxã ao
trabalho de construção em pedra. Coloco o cerne de traduzir a linguagem desta poesia
em algum lugar entre as duas últimas correntes mencionadas por mim. De um lado a
recriação das ruínas da literatura tradicional que possa resistir, ou existir poeticamente
em nosso tempo e de outro as exigências de que a criação seja uma reconstrução
sólida e apoiada em seus alicerces e princípios. O que faço aqui é um exercício para
encontrar este ponto de equilíbrio, uma breve descrição de suas vantagens e limitações
e um prefácio à reaproximação de técnicas poéticas deixadas no tempo. Mais
especificamente, além de uma tradução comentada, a intenção se desdobra no estudo
da aplicabilidade da aliteração, como ferramenta da tradução em língua portuguesa.
51
Traduzindo Maldon
Comentarei a seguir as dificuldades encontradas por mim e as adaptações mais
importantes que tive de proceder durante o processo de tradução, exemplificando-as
com o texto nas duas versões. Ao traduzir qualquer poema anglo-saxão em versos,
independentemente da proposta adotada, os três processos cruciais nos quais devemos
nos concentrar dizem respeito à métrica, à aliteração e ao léxico.
Para Tolkien, “o inglês antigo (ou anglo-saxão) não é uma língua muito difícil,
mas negligenciada por muitos que se ocupam do longo período histórico em que foi
falada e escrita”. Em sua opinião, o que “não é fácil”, é a “linguagem e composição”
de seus versos.
Somadas às imperfeições e limitações de nossa compreensão do antigo, faltam
a nós, muitas vezes, elementos que possibilitem identificar o significado preciso (por
vezes qualquer significado, além do fornecido por pura especulação e contexto),
registro e raridade das unidades lexicais. O autor ironiza, dizendo que o aprendizado
de novas palavras que nunca mais nos serão necessárias é uma das dificuldades
(acidentais) apresentadas pelo verso antigo, entretanto, conforme diz, ela é necessária,
se pretendemos uma “tradução verdadeira em efeito”.
Destaquei antes não concordar plenamente com uma visão filológica purista,
mas concordo com a necessidade de esgotar as possibilidades do entendimento antes
de optar por determinado significado. A interpretação deve ser “também científica e
cultural. O tradutor deve testar as interpretações intuitiva, poética e psicológica dos
textos à luz do que se sabe... em tais disciplinas como história, direito, arqueologia e
economia.”
41
41
In Tymoczko, Maria - Translation in a Postcolonial Context, St. Jerome, Manchester, 1999.
52
a- Léxico
A título de exemplo, traduzo a palavra ċellod, no verso 283, uma ocorrêcia
única em todo o corpus anglo-saxão, imaginando que seja uma transcrição errada
42
de
ċelċed, variante de ċealċed, “esbranquiçado, pintado de branco”. Minha acepção
apoiada na grafia semelhante e na única certeza que tenho: de tratar-se de um adjetivo
referente à palavra
bord, “escudo”.
Outro tipo de problema surge do aparato poético tradicional, em especial, com
os compostos descritivos. Jorge Luis Borges, em sua História da Eternidade,
43
cita o
nome pela qual são mais conhecidos: kenningar, do islandês “caracterizações” ou
“modelos”. O escritor argentino, apesar de adotar uma atitude um tanto irônica e
crítica em relação a elas, chegando a considerá-las “primitivas precursoras” das
metáforas, reconhece seu valor métrico e a importância dos compostos na poesia de
tradição germânica em geral.
Ao contário de algumas de suas afirmações, partes de compostos podiam ser
mudados afim de que conotações diferentes fossem dadas a palavras comumente
utilizadas, tornando-as quase metáforas, e também para que essas pudessem ser
adaptadas à métrica e em aliterações. Volto a destacar que o fator determinante da
diferença na contextualização das duas formas, metáfora e kenningar, é a inovação,
poeticamente necessária à primeira e vedada à segunda. Os kenningar são “inovados”
paralelamente a outros compostos ou significado tradicionais pré-existentes para
serem aceitos dentro da mesma tradição.
Um terço do léxico de Beowulf consiste de compostos cuja grande maioria
não ocorre fora de poemas ou mesmo em qualquer outro texto remanescente, tornando
difícil determinarmos seu valor original. Em “A Batalha de Maldon” há pelo menos
um desses exemplares:
Feorhhūs feorh – vida / hūs – casa a casa da vida = corpo
42
É importante saber que erros de transcrição são freqüentes em todo tipo de literatura transmitida por
meio de manuscritos, seja por falta de conhecimento ou dificuldades de cunho prático.
43
Borges, Jorge Luis – História da Eternidade, trad. Carmen Cirne Lima de Historia de la eternidad,
Globo, São Paulo, 2001.
53
Para ilustrar a “inovação” tradicional, encontramos em Beowulf um paralelo
poético:
Bānhūs bān – osso / hūs – casa a casa dos ossos = corpo
Além da dificuldade de entendimento, que podemos incluir numa categoria
equivalente à dos vocábulos raros ou únicos, reserva feita à derivação do significado,
proporcionada neste caso por efeitos de sentido desconhecidas à língua moderna, este
tipo de composto representa também um problema tradutório.
A língua portuguesa tem, na criação de compostos, uma opção muito mais
limitada que a de qualquer língua germânica. Em inglês raramente diríamos serem
estranhos, embora estejam ainda longe da naturalidade. Na tradução, esta composição
chega a ser uma exclusividade transcriativa dos irmãos Campos, que aumentaram o
campo significativo na literatura, mas reduziram o recurso prático do tradutor à
categoria de falta de inventividade ou individualidade.
Pelo uso de tais compostos, a ausência da autoria seria reforçada, também
talvez um senso de identidade e tradição (Campos) e a força da brevidade anglo-saxã.
O que me impede de empregá-los é a perda da naturalidade que percebo em
português, a quebra do ritmo da língua e a perda da construção do significado. Para
isso teria de acreditar na tradição literária em português do Brasil, e acredito que ela
seja composta tanto de partes desconexas que de tradição. A adaptação do ritmo ao
metro limitaria-se ao número de compostos, que não é grande em Maldon, o que
causaria inconsistências nos modelos de meio-versos. A construção do significado
apontaria para uma imagem figurativa, enquanto que no texto fonte, as palavras
compostas são invariavelmente substantivos concretos.
Enxergo uma solidez semântica em construções descritivas como a de “casa da
vida” ou “lobos da morte”, respectivamente, feorhhūs e wælwulfas, que mantém as
elevações de tom em substantivos e um fortalecimento da interpretação remetendo ao
concreto, mas em contextos específicos encontro alternativas em nomes simples. Esse
é o caso de ofermōd (verso 89), que converto em “audácia”:
Ða se eorl ongan for his ofermōde
ālfan landes tō fela lāþere ðēode.
54
Ofereceu, então, o lorde, por audácia,
terras demais aos odiados homens.
Literalmente mōd (ing. mod. mood), algo como “ânimo, ímpeto ou coragem” e
ofer, (ing. mod. over) “demais”. Há apenas quatro ocorrências do substantivo em
anglo-saxão; esta, uma em glossário e outras duas em manuscritos em prosa onde
refere-se ao demônio. A tradução mais usual aponta para o sentido de orgulho
(Tolkien usa “overmastering pride” em seus comentários),
44
e são vários os artigos
onde tentam definir todo o poema em função desta palavra.
Fiz minha escolha, audácia, tendo em vista mais a sequência do texto que a
palavra em si, embora não me distancie muito de seu significado literal. Espero
proporcionar um sentido inicialmente dúbio a ser esclarecido com a opinião do autor
no verso seguinte, com ...landes tō fela, que traduzi literalmente como terras
demais
. A palavra que utilizei favorece o contexto, e expressa em português, ao
menos em minha opinião, um ápice positivo ou negativo conforme o contexto.
Uma outra categoria de compostos muito particular é a dos nomes próprios
anglo-saxões. Resisto à tentação de traduzí-los e desconheço traduções versificadas
onde procure-se manter este efeito a partir de quaisquer línguas germânicas antigas:
ao contrário da prosa, o metro não comportaria o alongamento.
Quase a totalidade dos nomes germânicos possui significados compostos; no
caso de guerreiros, seus nomes são derivados de palavras relativas às armas e ao
código de conduta. Não posso deixar de notar a coincidência irônica do nome de
Byrhtnōð: “iluminadamente intrépido”. De modo semelhante, as linhagens de
nobreza de alguns países empregaram o método (por exemplo na Dinamarca). Ainda
hoje, em islandês, usam-se nomes próprios tradicionais patronímicos. Nas línguas
eslavas, em especial o russo utiliza ambos o sobrenome e o patronímico.
A dificuldade aumenta com a prática bastante comum da aliteração dos nomes
em um mesmo clã, relativa antes de tudo à proximidade de parentesco. Opto por
manter os nomes originais. A aliteração entre nomes é um subterfúgio relativamente
comum de scops e skalds.
44
J.R.R Tolkien – “The Homecoming of Beorhtnoth Beorhthelm’s Son” in Tree and Leaf, Harper
Collins, Londres, 2001.
55
A conversão de nomes em equivalentes em português seria contrária à
tendência estrangeirizadora que prefiro. A tentativa de manter a grafia original, muitas
vezes adotada por tradutores em inglês (imagino que no intuito da identidade com os
escritos dos historiógrafos) me pareceu mais acertada em princípio, mas à volta com
sugestões e comentários acerca da dificuldade em pronunciá-los, busquei uma
alternativa. Minha opção foi transcrever os nomes próprios numa aproximação ao
português, uma técnica adotada por Campos em Qohélet. “Bertnod” passa a ser o
nome do líder anglo-saxão. Simplifico as aspirações, exceto pelo H inicial.
Ainda em se tratando do vocabulário, é preciso lembrar que não há
equivalência possível em nenhuma língua moderna ocidental quanto ao número de
sinônimos e variações para substantivos simples no campo semântico do combate e no
que se refere ao código de conduta, objetos e valores sociais relativos a ele. A riqueza
da variação de palavras anglo-saxãs com este fim será necessariamente reduzida.
b- Metro
Procurei manter a mesma distribuição de subtipos métricos na tradução, sendo
que o resultado alcança quase a totalidade do texto alvo. Recordemos que a unidade
fundamental do metro anglo-saxão é o meio-verso. Ao acompanhar a distribuição de
meio-versos, acompanho a prosódia e efeito sequencial do texto fonte com suas
quebras de ritmo. Inverto por vezes a posição de palavras de acordo com os limites da
língua portuguesa para manter aliteração e metro, evitando fazê-lo nas quebras.
Ilustrarei a tradução do metro com os mesmos exemplos que usei na
explicação dos subtipos:
Tipo A
/ x ( x x x x ) / x
Encontrei apenas uma grande dificuldade em transportar o tipo, mais usual,
para o português: o de realizar a primeira ascendente na primeira sílaba do verso. É
falsa a impressão que tive, num primeiro momento, de que as poucas preposições e
conjunções do texto fonte seriam um problema quando omitidas na língua alvo. As
ocorrências, mantida a concisão, são equivalentes em número e recaem na maior parte
das vezes no final dos meio-versos ou no início de versos tipo B ou C. O real
impedimento é a quantidade (relativamente) pequena de vocábulos em nossa língua
56
que possuam a primeira sílaba tônica. Valho-me da licença provida pela existência da
anacrucis para justificar uma sílaba em queda na primeira posição do verso, que sou
obrigado a usar em cerca de metade das vezes. Outra hipótese aplicável seria a
transformação do tipo A em B no texto resultante. A concessão que faço é uma perda
em relação à raridade do recurso em anglo-saxão, mas uma perda pequena e
inevitável. Reduzo o ruído a um mínimo ao decidir usar a anacrucis, por permitir
apenas uma sílaba de margem.
frēan tō ġefeohte, (meio-verso 12a)
/ - - / -
em luta pelo líder;
- / - - - / -
gār tō gūþe. (meio-verso 13a)
/ - / -
consigo ao combate.
- / - - / -
hþene æt hilde. (meio-verso 55a)
/ - - - / -
combatam e caiam.
- / - - / -
Tipo B ( x x x x ) x / x ( x ) /
O segundo caso representa o tipo mais adaptável em português, pouquíssimas
vezes há qualquer necessidade de acréscimo de sílabas (note que um desses casos é o
do segundo exemplo abaixo, onde faço uma escolha semântica). É mais comum em
meus escritos a presença de uma queda final, de apoio, mas o recurso em si existe no
57
original e em outros manuscritos (novamente o segundo exemplo). Limito esta
variação a uma sílaba como permitido na língua fonte.
and tō þre hilde stōp; (meio-verso 8b)
- - - - / - /
e seguiu à batalha;
- - / - - / -
þæt þū mōst sendan raðe (meio-verso 30b)
- - - / - / ˇ -
que deveriam trazer, sem demora,
- - - - - - / - - / -
and þone gōdan forlēt (meio-verso 187b)
- - - / - - /
a desgarrar-se do mestre,
- - - / ˇ - - / -
Tipo C ( x x x x x ) x / / x
O tipo a seguir torna-se mais usual nas línguas germânicas à medida que nos
aproximamos da Baixa Idade Média e populariza-se. Ele continua em voga até hoje na
maioria desses idiomas, tanto como efeito de estilo na prosa como em expressões
populares cristalizadas (outros tipos de verso tradicional também foram preservados
desta forma). Ele provavelmente deriva de junção da prosódia, como a que acontece,
por exemplo, em:
B + A = x / x x / + / x x / x (uma decorrência posterior seria / x x /).
A combinação de uma oxítona e uma palavra com a primeira sílaba tônica não
é das mais usuais em português, o que me obriga, quase que invariavelmente, a incluir
uma sílaba de apoio entre duas tônicas. O resultado é um verso tipo B. Vejamos
abaixo:
ġedōn hæfde. (meio-verso 197b)
58
- / / -
e benefício feito.
- - - / - / -
þæt hī forð ēodon. (meio-verso 229b)
- - / / -
avançando à frente.
- - / - / -
on burh rīdan, (meio-verso 291b)
- / / -
regressar à cidade,
- - / - - / -
Tipo D / ( x x x ) / \ x
Os meio-versos D oferecem o mesmo desafio dos do subtipo A, embora em
todos os exemplos abaixo tenha sido bem sucedido na manutenção da ascendente
inicial. A disposição ascendente/descendente é característica dos vocábulos
compostos com prefixo tônico seguidos de tônica secundária no radical. Procuro a
mesma sensação e duração com uma ascendente acompanhada do alongamento de
uma vogal com ~, ou seguida das nasais N ou M.
grim gūðplega, (meio-verso 61a)
/ / \ -
guerra sangrenta,
/ - - / \
Offa þone slidan, (meio-verso 286a)
/ - - - / \ -
Offa atingira, em guerra, 285b
/ - - / - \ -
59
bord ord onfēng. (meio-verso 110b)
/ / - \
cravam escudos.
/ - - / -
Tipo E / \ x ( x ) /
Raramente presente, o tipo E é o mais complexo para tradução. Começado de
ascendente/descendente e terminado em ascendente, pode servir de demonstração
para praticamente todos os problemas descritos de A até D. Nos dois meio-versos
emprego as vogais de apoio inicial e final, e alongo as descendentes com nasalização.
wælræste ġeċēas, (meio-verso 113b)
/ \ - - /
fulmíneo descanso,
- / \ - / -
æscholt āscēoc: (meio-verso 230b)
/ \ - /
erguendo a lança de freixo:
- / - \ - - / -
Além de ser o foco de meus esforços, a aliteração exige o maior empenho do
tradutor para solucionar-se a partir de qualquer dos idiomas germânicos antigos.
c- Aliteração
Em linhas gerais, a aliteração germânica é a concordância dos elementos
tônicos consonantais. Ela é caracterizada como rima consonantal em oposição à rima
60
vocálica, presente na maior parte das línguas ocidentais modernas, embora seja
importante notar que o valor consonantal inicial possa ser vazio, favorecendo-se neste
caso a ocorrência de aliteração com vogais longas ou ditongos iniciais.
Ex.: Ōswold and Ēadwold ealle hwīle, (verso 304)
Ôsvold e Êadvold ambos irmãos,
(...todo o tempo,)
Os elementos que constituem o verso anglo-saxão seguem um padrão de
aproximação fonética no qual as consoantes são convencionalmente agrupadas.
Segundo este padrão, sons consonantais semelhantes podem ser utilizados e também
formam aliteração, como por exemplo, entre f e þ ou þ e ð, ou por vezes entre as
líquidas r e l, antecedidas de uma consoante em comum, como hr e hl. Neste último
caso, é recorrente a extensão, mesmo que não obrigatória, após uma consoante
comum seguida de vogal. Exs. heor
ðwerod e holdost (verso 24); hearde e hilde
(verso 33); bærst, bordes e byrne (verso 284). O mesmo não ocorre com as
seqüências consonantais iniciadas por s. Tradicionalmente não há paridade em sc (
), sp, st e s.
Na tradução faço adaptações semelhantes entre v e f, e no uso da letra r. No
exemplo abaixo também procurei reproduzir a presença dos vocábulos em r que
reforçam o padrão aliterativo:
Ex.: Corvos em círculo, em coro grasnavam. (verso
106)
A águia aguça os sentidos; Gritos, em terra ecoam !
Deixam das mãos duros dardos,
Þr wearð hrēam āhafen, hremmas wundon,
earn ses ġeorn; wæs on eorþan ċyrm.
Hī lēton þā of folman fēolhearde speru,
61
Tomando como base o princípio pelo qual a aliteração ocorre na primeira
sílaba tônica do verso anglo-saxão, outra oposição pertinente é dada entre os tipos de
rima inicial (também “head-rhyme”), aplicado ao verso germânico, e final. Tolkien
45
afirma, ao compará-las, que a rima inicial é mais breve e de incidência muito variável,
o que fortaleceria o conteúdo sonoro da mesma, impedindo a concordância
meramente visual ou de equivalência restrita, mais apropriada à rima final. A
repetição da sonoridade encurta a distância de referência entre palavras e parece uní-
las, dando a nós a impressão de brevidade.
Conforme John Milton
46
, Jorge Luis Borges procurou inverter o papel da
tradução, ao insistir que os tradutores de sua obra fizessem uso do vocabulário anglo-
saxão em inglês fornecendo uma nova roupagem à ela, “which may or may not be a
little loose”. Segundo Ben Belitt
47
ao comentar o trabalho com o autor argentino:
“Simplify me. Modify me. Make me stark. My language often embarrasses
me. It's too youthful, too Latinate. I love Anglo-Saxon. I want the wiry, minimal
sound. I want monosyllables. I want the power of Cynewulf, Beowulf, Bede. Make
me macho, gaucho and skinny”. (Belitt: 21)
Borges fornece um precedente produtivo no que diz respeito a relacionar o
anglo-saxão e o castelhano. Ele se apercebeu do efeito poético anglo-saxão e
tencionou que fizessem o caminho inverso do aqui proposto para reproduzí-lo em sua
obra: uma tradução dela em inglês, que privilegiasse os aspectos poéticos anglo-
saxões, em suas palavras, “macho... gaucho and skinny”. No entanto, por mais ou
menos que a roupagem se adapte ao texto de Borges, devemos manter em mente que,
ao contrário do que pensam muitos tradutores de língua inglesa, o inglês moderno não
equivale ao anglo-saxão. Os monossílabos são relativamente comuns nessa língua
antiga, mas na verdade são muito mais comuns em inglês moderno. A quantidade de
polissílabos, então, se aproxima muito mais do ocorrido em português. A brevidade
advém mais do ritmo marcado, da forma métrica e principalmente da aliteração, ao
abreviar e sustentar o peso e extensão da linguagem. Seria tão plausível traduzir
Borges em inglês “saxonizado” quanto escrevê-lo “anglicizando” o castelhano.
45
Tolkien, J.R.R. – The Monsters and the Critics and Other Essays, Harper Collins, Londres, 1997.
46
Milton, John – “Make me Macho, Make me Gaucho, Make me Skinny”, texto eletrônico.
47
Belitt, Ben – Adam’s Dream, Grove Press, Nova Iorque, 1978.
62
A tradução em inglês de Morte e vida severina de João Cabral de Melo Neto,
por John Milton reflete um aspecto semelhante ao da intenção de Borges, mas parece
melhor adaptada ao propósito, mesmo que . Ao servir-se de um vocabulário de origem
anglo-saxã para verter a poesia em versos curtos, direta e retórica, de Cabral, é fácil
estabelecer uma co-relação possível de estilo, tema e forma, coloquialidade e concisão
entre o original e a tradição anglo-saxã.
Ex.: - E foi morrida essa morte, - And was this death died?
irmãos das almas, Brothers of the souls,
essa foi morte morrida Was this death died,
ou foi matada? Or was he killed?
- Até que não foi morrida, - No, it wasn’t died,
irmão das almas, Brothers of the souls
esta foi morte matada, This death was killed
numa emboscada. In an ambush.
Outro expediente de que me utilizei na tradução tem relação direta com a
adaptação do verso aliterativo anglo-saxão ao português. A aliteração no verso
tradicional pressupõe ambos os traços inicial
48
e tônico, o que representa uma
dificuldade prática na língua portuguesa, na qual, o número de vocábulos com
tonicidade inicial é reduzido. Alterno na tradução o uso de conteúdo inicial tônico,
inicial seguido de sílaba tônica e tônico não inicial com o intuito de não optar por um
vocábulário menos usual, com o qual perderia a simplicidade e possivelmente o ritmo
do texto fonte.
Ex.: Lá estavam com Vúlfstan guerreiros ferozes,
Através do reforço da sensação de brevidade, podemos inferir que a principal
função métrica da rima anglo-saxã tradicional é a de conectar os dois padrões
independentes em um verso completo, no que é auxiliada pela rede significativa. Ela
se apresenta, quanto à disposição, em ao menos uma das ascendentes de cada meio-
verso, sendo que a ascendente a aliterar no segundo meio-verso é invariavelmente a
primeira.
48
O traço inicial é parte tanto da estrutura do verso quanto dos vocábulos na aliteração.
63
Para exemplificar a dificuldade da transição da prosódia anglo-saxã para a
maior parte das línguas modernas, farei um caminho inverso ao de lingüistas que
procuram reconstituir a prosódia de línguas e dialetos diacronicamente a partir da
poesia: utilizarei um trecho de Tolkien
49
para analisá-lo poeticamente. Aqui ele
ironiza um crítico, que teria informado a seu público que Beowulf, e com ele toda a
literatura anglo-saxã, seria apenas ‘small beer’, dizendo:
“Yet if beer at all, it is a drink dark and bitter: a solemn funeral-ale with the
taste of death. But this is an age of potted criticism and pre-digested literary opinion;
and in the making of these cheap substitutes for food translations unfortunately are too
often used.
O autor reproduz muitas vezes em seus próprios escritos em prosa o efeito da
poética anglo-saxã, um efeito retórico marcado em seu ritmo pela aliteração. Da
mesma forma que em inglês moderno, na língua portuguesa é incomum haver uma
queda na entonação final antes da última, ou ocasionalmente, em períodos longos, da
penúltima sílaba tônica. Ao separar os períodos em duas metades (Yet...bitter,
a...death), a aliteração “drink dark” é complementada por “death” no final da segunda
metade. Na sequência (But...opinion, and...used) ocorre o mesmo com as aliterações
“potted”, “pre-digested opinion” e “for food”, “unfortunately” “often”. Ao contrário
de línguas germânicas mais tradicionais, como por exemplo o alemão, onde a última
sílaba tônica de um período alonga a queda da entonação (ou, em períodos compostos
a eleva em função do início do período seguinte), o inglês e o português favorecem a
elevação final do tom.
A estrutura verbal germânica, que transporta os verbos subordinados,
infinitivos e formas menos carregadas ao final de uma sentença é marca de ritmo, e
daí deriva o que considero a maior dificuldade da tradução do verso tradicional
aliterativo em português: o de manter o mesmo padrão de ascendentes A A A X, A X
A X ou X A A X (A – ascendente com aliteração, X – ascendente sem aliteração). A
manutenção constante do ritmo causaria a inversão de palavras na mesma medida, o
que seria, em minha opinião, demasiado artificial, não deixo de usar inúmeras
inversões em minha estratégia estrangeirizadora, mas procuro limitá-las a cerca de
metade do texto. O padrão alternativo que emprego em cerca de 40% do texto é A A
X A, A X X A e X A X A.
49
Tolkien, J.R.R. – The Monsters and the Critics and Other Essays, Harper Collins, Londres, 1997.
64
Ex.: O filho de Élfritch incitou-os à frente,
Com isso encerro meus comentários acerca dos problemas tratados. Segue a
tradução propriamente dita e as notas ao texto:
65
brocen wurde.
Hēt þā hyssa hwæne hors forltan,
feor āfsan, and forð gangan,
hicgan tō handum and tō hiġe gōdum.
þā þæt Offan mġ rest onfunde,
þæt se eorl nolde yrhðo ġeþolian,
hē lēt him þā of handon lēofne flēogan
hafoc wið þæs holtes, and tō þre hilde stōp;
be þām man mihte oncnāwan þæt se cniht nolde
wācian æt þām wīġe, þā hē tō wpnum fēng.
Ēac him wolde Ēadrīċ his ealdre ġelstan,
frēan tō ġefeohte, ongan þā forð beran
gār tō gūþe. Hē hæfde gōd ġeþanc
þā hwīle þe hē mid handum healdan mihte
bord and brādswurd; bēot hē ġelste
þa hē ætforan his frēan feohtan sceolde.
Đā þr Byrhtnōð ongan beornas trymian,
rād and rdde, rincum thte
hū hī sceoldon standan and þone stede healdan,
and bæd þæt hyra randas rihte hēoldon
fæste mid folman, and ne forhtedon nā.
þā hē hæfde þæt folc ġere ġetrymmed,
hē līhte þā mid lēodon þr him lēofost wæs,
þr hē his heorðwerod holdost wiste.
Þā stōd on stæðe, stīðlīċe clypode
wīcinga ār, wordum mlde,
sē on bēot ābēad brimlīþendra
rænde tō þām eorle, þr hē on ōfre stōd:
"Mē sendon tō þē smen snelle,
hēton ðē secgan þæt þū mōst sendan raðe
66
beagas wið gebeorge; and eow betere is
þæt ġe þisne gārrs mid gafole forġyldon,
þon wē swā hearde hilde dlon.
Ne þurfe wē ūs spillan, ġif ġē spēdaþ tō þām;
wē willað wið þām golde grið fæstnian.
Ġyf þū þat ġerdest, þe hēr rīcost eart,
þæt þū þīne lēoda lsan wille,
syllan smannum on hyra sylfra dōm
fēoh wið frēode, and niman frið æt ūs,
wē willaþ mid þām sceattum ūs tō scype gangan,
on flot fēran, and ēow friþes healdan."
Byrhtnōð maþelode, bord hafenode,
wand wācne æsc, wordum mālde,
yrre and ānrd āġeaf him andsware:
"Gehrst þū, slida, hwæt þis folc seġeð?
Hī willað ēow tō gafole gāras syllan,
ttrynne ord and ealde swurd,
þā hereġeatu þe ēow æt hilde ne dēah.
Brimmanna boda, ābēod eft onġēan,
seġe þīnum lēodum miccle lāþre spell,
þæt hēr stynt unforcūð eorl mid his werode,
þe wile ġealgean ēþel þysne,
Æþelredes eard, ealdres mīnes,
folc and foldan. Feallan sceolon
hþene æt hilde. Tō hēanliċ mē þinċ
þæt ġē mid ūrum sceattum tō scype gangon
unbefohtene, nū ġē þus feor hider
on ūrne eard in becōmon.
Ne sceole ġē swā sōfte sinċ ġegangan;
ūs sceal ord and ecg r ġesēman,
67
grim gūðplega, r wē gofol syllon."
Hēt þā bord beran, beornas gangan,
þæt hī on þām ēasteðe ealle stōdon.
Ne mihte þr for wætere werod tō þām ōðrum;
þr cōm flōwende flōd æfter ebban,
lucon lagustrēamas. Tō lang hit him þūhte,
hwænne hī tōgædere gāras bēron.
Hī þr Pantan strēam mid prasse bestōdon,
Ēastseaxena ord and se æschere.
Ne mihte hyra niġ ōþrum derian,
būton hwā þurh flānes flyht fyl ġenāme.
Se flōd ūt ġewāt; þā flotan stōdon ġearowe,
wīcinga fela, wīġes ġeorne.
Hēt þā hæleða hlēo healdan þā bricge
wigan wīġheardne, se wæs hāten Wulfstān,
cāfne mid his cynne, þæt wæs Cēolan sunu,
þe ðone forman man mid his francan ofscēat
þe þr baldlīcost on þā bricge stōp.
Þr stōdon mid Wulfstāne wigan unforhte,
Ælfere and Maccus, mōdiġe twēġen,
þā noldon æt þām forda flēam ġewyrcan,
ac hī fæstlīċe wið ðā fnd weredon,
þā hwīle þe hī wpna wealdan mōston.
þā hī þæt ongēaton and ġeorne ġesāwon
þæt hī þr bricgweardas bitere fundon,
ongunnon lyteġian þā lāðe ġystas,
bdon þæt hī ūpgangan āgan mōston,
ofer þone ford faran, fēþan ldan.
Ða se eorl ongan for his ofermōde
ālfan landes tō fela lāþere ðēode.
68
Ongan ċeallian þā ofer cald wæter
Byrhtelmes bearn (beornas ġehlyston):
"Nū ēow is ġermed, gāð riċene tō ūs,
guman tō gūþe; god āna wāt
hwā þre wælstōwe wealdan mōte."
Wōdon þā wælwulfas (for wætere ne murnon),
wīcinga werod, west ofer Pantan,
ofer scīr wæter scyldas wēgon,
lidmen tō lande linde bron.
þr onġēan gramum ġearowe stōdon
Byrhtnōð mid beornum; hē mid bordum hēt
wyrcan þone wīhagan, and þæt werod healdan
fæste wið fēondum. þā wæs feohte nēh,
tīr æt ġetohte. Wæs sēo tīd cumen
þæt þr fġe men feallan sceoldon.
Þr wearð hrēam āhafen, hremmas wundon,
earn ses ġeorn; wæs on eorþan ċyrm.
Hī lēton þā of folman fēolhearde speru,
grimme ġegrundene gāras flēogan;
bogan wron bysiġe, bord ord onfēng.
Biter wæs se beadurs, beornas fēollon
on ġehwæðere hand, hyssas lāgon.
Wund wearð Wulfmr, wælræste ġeċēas,
Byrhtnōðes mġ; hē mid billum wearð,
his swustersunu, swīðe forhēawen.
þr wearð wīcingum wiþerlēan āġyfen.
Ġehrde iċ þæt Ēadweard ānne slōge
swīðe mid his swurde, swenges ne wyrnde,
þæt him æt fōtum fēoll fġe cempa;
þæs him his ðēoden þanc ġesde,
69
þām būēne, þā hē byre hæfde.
Swā stemnetton stīðhicgende
hysas æt hilde, hogodon ġeorne
hwā þr mid orde rost mihte
on fġean men feorh ġewinnan,
wigan mid wpnum; wæl fēol on eorðan.
Stōdon stædefæste; stihte hī Byrhtnōð,
bæd þæt hyssa ġehwylċ hogode tō wīġe
þe on Denon wolde dōm ġefeohtan.
Wōd þā wīġes heard, wpen ūp āhōf,
bord tō ġebeorge, and wið þæs beornes stōp.
Ēode swā ānrd eorl tō þām ċeorle,
ġþer hyra ōðrum yfeles hogode.
Sende ðā se srinċ sūþerne gār,
þæt ġewundod wearð wiġena hlāford;
hē scēaf þā mid ðām scylde, þæt se sceaft tōbærst,
and þæt spere sprengde, þæt hit sprang onġēan.
Ġegremod wearð se gūðrinċ; hē mid gāre stang
wlancne wīcing, þe him þā wunde forġeaf.
Frōd wæs se fyrdrinċ; hē lēt his francan wadan
þurh ðæs hysses hals, hand wīsode
þæt hē on þām frsceaðan feorh ġerhte.
ðā hē ōþerne ofstlīċe scēat,
þæt sēo byrne tōbærst; hē wæs on brēostum wund
þurh ðā hringlocan, him æt heortan stōd
tterne ord. Se eorl wæs þē blīþra,
hlōh þā, mōdi man, sde metode þanc
ðæs dæġweorċes þe him drihten forġeaf.
Forlēt þā drenga sum daroð of handa,
flēogan of folman, þæt sē tō forð ġewāt
70
þurh ðone æþelan æþelredes þeġen.
Him be healfe stōd hyse unweaxen,
cniht on ġecampe, sē full cāflīċe
brd of þām beorne blōdiġne gār,
Wulfstānes bearn, Wulfmr se ġeonga,
forlēt forheardne faran eft onġēan;
ord in ġewōd, þæt sē on eorþan læġ
þe his þēoden r þearle ġerhte.
Ēode þā ġesyrwed secg tō þām eorle;
hē wolde þæs beornes bēagas ġefecgan,
rēaf and hringas and ġerēnod swurd.
Þā Byrhtnōð brd bill of scēðe,
brād and brūneccg, and on þā byrnan slōh.
Tō raþe hine ġelette lidmanna sum,
þā hē þæs eorles earm āmyrde.
Fēoll þā tō foldan fealohilte swurd;
ne mihte hē ġehealdan heardne mēċe,
wpnes wealdan. þā gt þæt word ġecwæð
hār hilderinċ, hyssas bylde,
bæd gangan forð gōde ġefēran;
ne mihte þā on fōtum leng fæste ġestandan.
Hē tō heofenum wlāt:
"Ġeþancie þē, ðēoda waldend,
ealra þra wynna þe iċ on worulde ġebād.
Nū iċ āh, milde metod, mste þearfe
þæt þū mīnum gāste gōdes ġeunne,
þæt mīn sawul tō ðē sīðian mōte
on þīn ġeweald, þēoden engla,
mid friþe ferian. Iċ eom frymdi tō þē
þæt hī helsceaðan hnan ne mōton."
71
Ðā hine hēowon hðene scealcas
and bēġen þā beornas þe him biġ stōdon,
Ælfnōð and Wulmr bēgen lāgon,
ðā onemn hyra frēan feorh ġesealdon.
Hī bugon þā fram beaduwe þe þr bēon noldon.
þr wearð Oddan bearn rest on flēame,
Godrīċ fram gūþe, and þone gōdan forlēt
þe him mæniġne oft mēar ġesealde;
hē ġehlēop þone eoh þe āhte his hlāford,
on þām ġerdum þe hit riht ne wæs,
and his brōðru mid him bēġen ærndon,
Godwine and Godwīġ, gūþe ne ġmdon,
ac wendon fram þām wīġe and þone wudu sōhton,
flugon on þæt fæsten and hyra fēore burgon,
and manna mā þonne hit niġ mð wre,
ġyf hī þā ġeearnunga ealle ġemundon
þe hē him tō duguþe ġedōn hæfde.
Swā him Offa on dæġ r āsde
on þām meþelstede, þā hē ġemōt hæfde,
þæt þr mōdelīċe manega sprcon
þe eft æt þearfe þolian noldon.
Þā wearð āfeallen þæs folces ealdor,
Æþelrēdes eorl; ealle ġesāwon
heorðġenēatas þæt hyra heorra læġ.
þā ðr wendon forð wlance þeġenas,
unearge men efston ġeorne;
hī woldon þā ealle ōðer twēga,
līf forltan oððe lēofne ġewrecan.
Swā hī bylde forð bearn Ælfrīċes,
wiga wintrum ġeong, wordum mlde,
72
Ælfwine þā cwæð, hē on ellen spræċ:
"Gemunu þā mla þe wē oft æt meodo sprcon,
þonne wē on benċe bēot āhōfon,
hæleð on healle, ymbe heard ġewinn;
nūġ cunnian hwā cēne s.
Iċ wylle mīne æþelo eallum ġecþan,
þæt iċ wæs on Myrcon miccles cynnes;
wæs min ealda fæder Ealhelm hāten,
wīs ealdorman, woruldġesliġ.
Ne sceolon mē on þre þēode þeġenas ætwītan
þæt iċ of ðisse fyrde fēran wille,
eard ġesēcan, nū mīn ealdor liġ
forhēawen æt hilde. Mē is þæt hearma mst;
hē wæs gðer mīn mġ and mīn hlāford."
Þā hē forð ēode, fhðe ġemunde,
þæt hē mid orde ānne ġerhte
flotan on þām folċe, þæt sē on foldan læġ
forweġen mid his wpne. Ongan þā winas manian,
frnd and ġefēran, þæt hī forð ēodon.
Offa ġemlde, æscholt āscēoc:
"Hwæt þū, Ælfwine, hafast ealle ġemanode
þeġenas tō þearfe, nū ūre þēoden līð,
eorl on eorðan. Ūs is eallum þearf
þæt ūre ġhwylċ ōþerne bylde
wigan tō wīġe, þā hwīle þe hē wpen mæġe
habban and healdan, heardne mēċe,
gār and gōd swurd. Ūs Godrīċ hæfð,
earh Oddan bearn, ealle beswiċene.
Wēnde þæs formoni man, þā hē on mēare rād,
on wlancan þām wicge, þæt wre hit ūre hlāford;
73
forþan wearð hēr on felda folc tōtwmed,
scyldburh tōbrocen. Ābrēoðe his anġin,
þæt hē hēr swā maniġne man āflmde!"
Lēofsunu ġemlde and his linde āhōf,
bord tō ġebeorge; hē þām beorne oncwæð:
"Iċ þæt ġehāte, þæt iċ heonon nelle
flēon fōtes trym, ac wille furðor gān,
wrecan on ġewinne minne winedrihten.
Ne þurfon mē embe Stūrmere stedefæste hælæð
wordum ætwītan, nū mīn wine ġecranc,
þæt iċ hlāfordlēas hām sīðie,
wende fram wīġe, ac mē sceal wpen niman,
ord and īren." Hē ful yrre wōd,
feaht fæstlīċe, flēam hē forhogode.
Dunnere þā cwæð, daroð ācwehte,
unorne ċeorl, ofer eall clypode,
bæd þæt beorna ġehwylċ Byrhtnōð wrċe:
"Ne mæġ nā wandian sē þe wrecan þenċ
frēan on folċe, nē for fēore murnan."
Þā hī forð ēodon, fēores hī ne rōhton;
ongunnon þā hīredmen heardlīċe feohtan,
grame gārberend, and God bdon
þæt hī mōston ġewrecan hyra winedrihten
and on hyra fēondum fyl ġewyrcan.
Him se ġsel ongan ġeornlīċe fylstan;
hē wæs on Norðhymbron heardes cynnes,
Ecglāfes bearn, him wæs Æscferð nama.
Hē ne wandode nā æt þām wīġplegan,
ac hē fsde forð flān ġenēhe;
hwīlon hē on bord scēat, hwīlon beorn tsde,
74
fre embe stunde hē sealde sume wunde,
þā hwīle ðe hē wpna wealdan mōste.
Þā ġt on orde stōd Ēadweard se langa,
ġearo and ġeornful, ġylpwordum spræċ
þæt hē nolde flēogan fōtml landes,
ofer bæċ būgan, þā his betera leġ.
Hē bræċ þone bordweall and wið þā beornas feaht,
oðþæt hē his sinċġyfan on þām smannum
wurðlīċe wreċ, r hē on wæle lġe.
Swā dyde Æþerīċ, æþele ġefēra,
fūs and forðġeorn, feaht eornoste.
Sibyrhtes brōðor and swīðe mæniġ ōþer
clufon ċellod bord, cēne hī weredon;
bærst bordes læriġ, and sēo byrne sang
gryrelēoða sum. þā æt gūðe slōh
Offa þone slidan, þæt hē on eorðan fēoll,
and ðr Gaddes mġ grund ġesōhte.
Raðe wearð æt hilde Offa forhēawen;
hē hæfde ðēah ġeforþod þæt hē his frēan ġehēt,
swā hē bēotode r wið his bēahġifan
þæt hī sceoldon bēġen on burh rīdan,
hāle tō hāme, oððe on here crincgan,
on wælstōwe wundum sweltan;
hēġ ðeġenlīċe ðēodne ġehende.
Ða wearð borda ġebræċ. Brimmen wōdon,
gūðe ġegremode; gār oft þurhwōd
fġes feorhhūs. Forð þā ēode Wīstān,
Þurstānes sunu, wið þās secgas feaht;
hē wæs on ġeþrange hyra þrēora bana,
r him Wīġelines bearn on þām wæle lġe.
75
þr wæs stið ġemōt; stōdon fæste
wigan on ġewinne, wīġend cruncon,
wundum wēriġe. Wæl fēol on eorþan.
Ōswold and Ēadwold ealle hwīle,
bēgen þā ġebrōþru, beornas trymedon,
hyra winemāgas wordon bdon
þæt hī þr æt ðearfe þolian sceoldon,
unwāclīċe wpna nēotan.
Byrhtwold maþelode bord hafenode
(se wæs eald ġeneat), æsc ācwehte;
hē ful baldlīċe beornas lrde:
"Hiġe sceal þē heardra, heorte þē cēnre,
mōd sceal þē māre, þe ūre mæġen ltlað.
Hēr līð ūre ealdor eall forhēawen,
gōd on grēote. Āġ gnornian
sē ðe nū fram þis wīġplegan wendan þenċeð.
Iċ eom frōd fēores; fram iċ ne wille,
ac iċ mē be healfe minum hlāforde,
be swā lēofan men, licgan þenċe."
Swā hī Æþelgāres bearn ealle bylde,
Godrīċ tō gūþe. Oft hē gār forlēt,
wælspere windan on þā wīcingas,
swā hē on þām folċe fyrmest ēode,
hēow and hnde, oðþæt hē on hilde ġecranc.
Næs þæt nā se Godrīċ þe ðā gūðe forbēah…
76
…foi quebrado.
Comandou a cada um que deixassem seus cavalos,
e ao pô-los em fuga, fossem em frente,
atentos, à boa coragem, e a tudo, que à mão estivesse.
Foi então, deu-se conta, o filho de Offa,
não toleraria seu líder, falta ao dever,
deixou que do braço voasse, seu querido falcão,
através da floresta, e seguiu à batalha;
Assim souberam, o jovem soldado
não desistiria do combate, desembainhada sua arma.
A ele, Êadritch também, ansiava seguir,
em luta pelo líder; Levava uma lança,
consigo ao combate. O coração apreciava a coragem
e enquanto nas mãos, pudesse manter,
escudo e espada, estaria cumprida,
a palavra ao seu líder, de que lutaria.
Bertnod, pouco depois, preparou seus homens,
cavalgando em comando, começou a instruí-los
sobre como ocupar ou manter posição,
que empunhassem, sem descuidos, as tiras de escudos,
forte e firmemente, e de forma alguma, tivessem medo.
Ao ter, em boa ordem estas suas tropas,
desmontou em meio àqueles que lhe eram mais caros,
onde sabia, estava, sua guarda pessoal.
Mas ergueu-se, das margens do rio,
o mensageiro, um viking, fazendo-se ouvir,
proclamando ameaças a plenos pulmões,
arauto pirata, ao líder, em pé sobre a margem:
77
"Enviam-me a vocês, os bravos navegantes,
e me ordenam dizer (que) deveriam trazer, sem demora,
tesouro por segurança; E assim, melhor lhes será,
compensar com tributo este combate,
a fazer-nos partilhar dura batalha.
Destruição não nos é necessária se são tão ricos;
Queremos o ouro em acordo de trégua.
Se puder decidir, ser mais importante,
para o seu povo, se redimir,
entregar ao julgar, dos navegantes,
por riqueza, amizade, fazendo conosco, a paz,
Concordamos deixá-los, partir daqui pelo mar,
e, com suas moedas, viajar, manter sua paz."
Bertnod falou, o escudo ergueu,
levantou sua lança, e em suas palavras,
resoluto, em ira, deu a resposta:
"Ouça, navegante ! O quê diz nosso exército?
Querem trazer em tributo lanças em riste,
veneno em lâmina e velhas espadas,
botim que a ti caberá em batalha !
Homem do mar, mensageiro, anuncie,
dê a seu povo palavras hostis,
de que aqui se mantém, líder e tropa, incólumes,
defendem e lutam por seu lar ancestral,
pela terra de Ételred, lorde meu,
por seu povo... e solo. Pereçam pagãos,
combatam e caiam. Com suas moedas,
vergonha seria voltar aos navios
sem ter lutado, tendo tão longe chegado,
78
tendo adentrado nossa terra.
Não farão facilmente fortuna nenhuma;
Antes lâmina e lança a pacificar a luta,
guerra sangrenta, ante agraciar com tributo !"
Ordenou aos soldados seguir, alçando escudos,
alinhando-se, e a todos frente à água do rio.
Não poderiam cruzar de tropa à outra;
Enquanto o canal se inundava onda à onda,
fechava a corrente. Até conseguirem,
tanto depois lanças travar.
Mantiveram-se, o Pante, em poderosa corrente,
ocidentais saxões e os dos barcos de freixo, imóveis.
Mas ninguém feriria algum outro dos homens,
a não ser que o fim na ponta da flecha, viesse.
A cheia os deixou; E se acharam dispostos,
Muitos dos vikings, certos do avanço.
Disse aos heróis que defendessem a ponte,
o veterano era bravo, chamado de Vúlfstan,
como todo o seu clã, e como filho de Tchêolan,
derrubou o primeiro, a passar pela ponte,
a se atrever a pisar a trilha da lança.
Lá estavam com Vúlfstan guerreiros ferozes,
Élfere e Maccus, corajosos amigos,
A quem não veriam fugir às margens,
mas aos inimigos, manter afastados,
enquanto em armas, as mãos estivessem.
Ao perceber, que aqueles, na ponte aos quais se opunham,
os guardas, é claro, eram grandes guerreiros,
79
os odiados estranhos encontraram ardil,
pediram passagem aonde pudessem,
trazer as tropas, através do canal.
Ofereceu, então, o lorde, por audácia,
terras demais aos odiados homens.
Começou a falar frente as águas frias
pelo filho de Bertelm os homens ouviam chamar:
"O caminho está livre, venha até nós.
Homens, às armas ! Apenas a deus é sabido,
Quem, neste campo, irá conquistar a vitória."
Moveram-se os lobos da morte sem temer meio à água,
a horda de vikings, a oeste do Pante,
sobre a água brilhante, nos braços, escudos,
da frota à terra, todos traziam.
Opunham-se prontos, a postos em fúria,
deu ordens aos homens; Contra o inimigo,
Bertnod, o bravo, a barreira de batalha formou,
o exército, em guarda. A guerra era próxima,
e glória em batalha. Era o tempo chegado,
aos condenados à morte, de cair em combate.
Corvos em círculo, em coro grasnavam.
A águia aguça os sentidos; Gritos, em terra ecoam !
Deixam das mãos duros dardos,
afiados em facas, voam vis;
Arqueiros se ocupam, cravam escudos.
A carga é cruel, caem os homens,
deixam soldados, de ambos os lados.
Ferido é Vúlfmer, fulmíneo descanso,
ao sobrinho de Bertnod; A lâmina o abre,
80
fere fundo, o filho da irmã.
Daí aos vikings, vingança se deu.
Ouvi dizer, que da espada de Êadverd,
foi tão grande o golpe, ao guerreiro atingir,
que sem ser poupado, aos pés lhe caiu;
Seu comandante comendou-o por isso,
a este seu pagem, quando pôde.
Assim dispuseram-se decididamente
combatentes em batalha, prontamente competiam,
para primeiro poderem, com ponta ou espada,
tomar a vida de vencidos guerreiros,
de destinos, por arma decisos; Desciam os mortos ao chão.
Mantinham-se os bravos; Incitava-lhes Bertnod,
dizendo aos combatentes que estivessem atentos,
Se sobre os da Dinamarca, desejassem, a glória da luta.
Avançou o veterano, arma à frente,
em guarda o escudo, galgando a um soldado.
Assim resoluto, o senhor ao camponês,
um ao outro, ansiavam o mal.
A lança do sul arremessou, o homem do mar,
e ferido foi, de fato, o lorde;
escorou com o escudo, até escapar, quebrar a ponta,
a lança moveu, livrou-se dela.
Enfureceu-se o herói; Infincou ele a ponta
no orgulhoso dos vikings, o qual havia, lhe ferido.
Hábil, o homem, alçou franca lança
e apontando com pulso, perfurou-lhe o pescoço,
alcançando a vida do veloz agressor.
Mais um segundo seguiu disparando;
81
Partindo a armadura, feriu-o no peito
pelos anéis da cota, em seu coração,
mortífera lança. O mais feliz era o lorde,
sorriu o homem, valente, disse ao destino obrigado,
pelo trabalho do dia, do senhor concedido.
Deixou um guerreiro, o dardo guiar,
voar das mãos, vencer distância,
ao nobre senhor de Ételred vassalo.
Junto a ele, jovem em luta,
meio maduro, tirou do homem
a ponta sangrenta sem hesitar,
o valente Vúlfmer, filho de Vúlfstan,
fez viajar de volta a lança;
Fincada ficou, fundo na terra,
cairia aquele a calar o lorde.
Alguém seguia ao senhor, usando armadura,
para dele tirar todo que fosse valor,
espada entalhada, anéis, vestimentas.
Bertnod brandiu da bainha a lâmina,
lustrosa e larga, levou-a à cota.
Porém muito rápido, o preveniu um outro,
e cortando-lhe o braço, barrou o golpe.
Deitou em terra a lâmina dura,
pois o punho dourado, não podia manter,
e perdeu o controle. Proferiu palavras ainda,
o guerreiro grisalho, gritou aos bravos,
que seguissem em frente seus valentes soldados;
Nem passo a mais os pés dariam.
Fitou o céu, falou heróico:
"Agradeço a Ti, Senhor de tudo,
82
tantas vitórias que, em vida, tive.
Necessito agora, caro Senhor,
que bem receba meu espírito,
que minha alma possa partir a Ti,
a teu domínio, mestre dos anjos,
e em paz viaje. E peço ainda,
que inimigos, do inferno, a mim não possam impedir !"
A ele cortaram combatentes gentios,
e ambos guerreiros, seu corpo guardavam,
junto a seu mestre, dentre os mortos deitaram,
Élfnod e Vúlmer a vida entregaram.
Então fugiram, da batalha, os que lá ficar, não desejavam.
Os filhos de Odda, entre os primeiros na fuga,
para longe da guerra Gódritch, a desgarrar-se do mestre,
que tantas vezes cavalos lhe dera;
Saltou sobre aquele que lhe comprou o comandante.
Com tudo aquilo de que não tinham direito,
com ele os irmãos, ambos correram,
Gódvine e Gódvitch; A guerra pouco importava,
buscaram abrigo e da batalha voltaram-se,
pelas vidas fugiram e em refúgio safaram-se,
e muitos mais, a quem marchar caberia,
se de algum ganho guardassem lembrança,
de toda bondade e benefício feito.
Pois nesse mesmo dia mais cedo, disse Offa,
em seu conselho, ao se encontrarem,
que lá a coragem, confirmaram muitos,
mas quando necessário nunca a teriam.
O lorde caíra, o líder do exército,
súdito de Ételred, visto por todos,
83
oficiais e servos, seu senhor sucumbia.
Avançavam ainda valentes vassalos,
Apressaram-se à frente, fortes, sem medo;
Um ou outro ansiavam todos:
deixar a vida ou o companheiro vingar.
O filho de Élfritch incitou-os à frente,
de guerreiro as palavras, proferiu ainda jovem,
Élfvine falava, com valor declarou:
"Lembro dos tempos em que sentados em bancos,
hidromel bebíamos, bravatas contávamos,
sobre luta acirrada, heróis no salão;
Veremos agora os verdadeiros bravos, quem são,
e recito assim de quem descendo,
que era em Mírcon de grande família;
Meu avô era Êalrrelm chamado,
sábio oficial, em fortuna próspero.
Não necessito reprovação de ninguém,
desejasse deixar de defender este exército,
ou regressar a minha terra, agora, que meu líder se deita,
morto em batalha. Maior meu lamento;
era tanto família quanto meu lorde."
E foi à frente, renovada a fúria,
com a ponta da arma alcançou o inimigo,
trouxe ao solo um soldado dos deles,
atingiu o navegante. Reuniu novamente,
companheiros, amigos, avançando à frente.
Falou Offa, erguendo a lança de freixo:
"Você, Élfvine fez-nos todos os servos
voltar a lutar, o lorde é em terra
84
e por nosso nobre senhor, é a nós necessário,
encorajarmos todos uns aos outros.
Enquanto em guerra, guerreiros consigam,
ter e manter, machete em mão,
lança, ou boa espada. A nós, traiu Gódritch,
da maior covardia, a do filho de Odda.
Creram homens demais, em montaria tão bela,
que a levar o cavalo, nosso lorde seria;
Dividiu-se o exército, desse modo,
a linha de escudos, despedaçada. Maldito seja,
por ter feito tantos homens fugirem !"
Lêfsunu falou, levantou alto,
o escudo em defesa; Respondeu ao guerreiro:
"Juro daqui não fugir, uma jarda que seja,
não me mover, senão em frente,
retribuir em batalha a meu bondoso senhor.
Nem irão em Sturmer, repreender a mim
ou julgar-me meu povo, pois meu protetor, está morto.
Não irei para longe sem meu lorde,
para casa, do combate, carregarei uma arma,
lança ou lâmina de ferro." Lutou ferozmente,
sem escapar considerar, caminhou resoluto.
Dunnere disse, brandindo um dardo,
simples camponês, a todos pediu,
a cada um em batalha, que a Bertnod vingassem:
"Tencionem honrar, contra o inimigo,
sem de maneira alguma hesitar, ou temer pela vida."
E então avançaram, sem que a vida importasse;
85
A companhia começou o duro combate,
aos enfurecidos lanceiros, ordenava seu Deus,
deviam vingança, pela vida do lorde,
e a seus inimigos, inflingir destruição.
Um prisioneiro também, ajudando a eles;
Descendente forte dos de Nordúmbron,
filho de Édgelaf, seu nome era Écheferd.
Não hesitou em atos de guerra,
atirava flechas, sempre adiante;
Alvejava ora homens, ora escudos,
de quando em quando, como podia,
enquanto pôde, a arma empunhar.
Adiantava-se ainda Êadveard o alto,
pronto e disposto, em exultantes palavras, dizia,
que não lhe poriam para trás, nem um palmo de terra,
ao superior sobre o solo, não poderia escapar.
Quebrou a linha de escudos e lutou contra os homens,
com valor, os navegantes, e sobre eles vingou
ao doador de tesouros, até deitar entre os mortos.
O mesmo fez Éteritch, soldado exemplar,
lutava valente por fás investiu,
o irmão de Síbert e muitos mais.
Em combate, os bravos, partiram brancos escudos;
A borda quebrou, e cantou, a cota de malha,
a canção de terror. Offa atingira, em guerra,
algum marinheiro, que veio em terra,
o companheiro de Gadde ganhava o solo.
Rápido, repartido em combate, o corpo de Offa;
Porém cumpria a promessa ao lorde,
86
como mantinham diante do anel
deveriam os dois regressar à cidade,
sãos e salvos, ou perecer em combate,
no campo de guerra, morrer sangrando;
Foi, ao lado do lorde, levado ao chão, e deixado;
Estilhaçados escudos ! Espreitavam, os navegantes,
enfurecidos soldados, trespassavam lanças,
a casa da vida. Avançava Vístan,
contra as tropas, o filho de Túrstan;
Três deles matou naquele tumulto,
antes de morto o descendente de Vígelin.
Foi sangrenta disputa; Suportavam firmes
combatentes em guerra. Guerreiros tombavam,
fatigados, feridos, ao fim, mortos ao chão.
Ôsvold e Êadvold ambos irmãos,
todo o tempo, exortavam os homens;
aos companheiros pediam, em palavras, aos seus,
que quando necessário soubessem resistir,
e sem piedade, aplicassem, golpes de espada.
Bertvold disse, com escudo erguido,
com arma em riste, aos guerreiros,
o veterano vassalo, incitava valente;
"Mais alta deve ser a coragem, o coração, o mais resistente,
o espírito deve ser o maior, quando nossa força, diminui.”
Aqui jaz nosso mestre, morto e em pedaços,
bom homem no barro: Quem deste combate
pensar em partir, que sempre lamente.
Eu sou velho em vida; Não virei a deixá-la,
somente ao lado do lorde meu,
87
tão caro senhor, tencionaria tombar."
A eles encorajou, o filho de Ételgar,
Gódritch, à luta, lançando dardos,
lanças da morte voavam sobre os vikings.
Seguiu entre os soldados, de tal exército,
talhou e derrotou, até deitar no conflito.
Certo era, não ser o tal Gódritch, a deixar a guerra...
88
1. - Como mencionado, as linhas da abertura do poema foram perdidas.
Podemos deduzir que tratassem de uma descrição da forma como foram reunidas
as tropas sob o comando de Byrhtnōð (Bertnod), Ealdorman de Essex (para
uma descrição do título e sua origem, vide verso 6) e de sua marcha até as
proximidades de Maldon;
- O sujeito do verso, Hēt, refere-se a Bertnod.
2. - hyssa hwæne, literalmente “cada (um) dos jovens” tem sentido
abrangente, na maior parte das vezes, não indicando inexperiência (ele é acrescido
de unweaxen na linha 152, para obter esse efeito), mas para indicar oposição à
velhice, algumas vezes com ironia, ou para significar simplesmente guerreiro,
soldado. Decidi omitir o qualificativo em função de não alongar o verso,
preferindo apenas cada um, afim de manter a continuidade do relato.
3. - hors forl
tan, “que deixassem seus cavalos”: não há
informações certas a respeito da fyrd, a milícia local a compor a maior parte do
exército anglo-saxão, que nos indique lutarem à cavalo. Na maioria das vezes,
aparentemente, os cavalos eram um eficiente meio de transporte para a
movimentação de tropas e comando, mas sabemos que em sua maioria, com
exceção talvez de unidades especializadas da milícia, as tropas lutariam a pé. Do
mesmo modo, os vikings não realizavam combates navais, a menos que fossem
forçados, entre eles atavam vários navios em linha para a luta corpo-a-corpo.
4. - hicgan tō handum and tō hiġe gōdum, lit. atentos às mãos e à
elevada coragem: preferi alterar a ordem e manter o conteúdo expressivo em
função do metro, quanto ao sentido, é mais provável que a expressão significasse
algo como “buscar meios para demonstrar coragem através de atos”, mas não pude
encontrar um equivalente satisfatório.
5. - Decidi manter a duplicação da letra f, já que não altera a pronúncia
em português do nome Offa, e permite a manutenção da grafia original. Repito o
mesmo processo em todas as ocorrências semelhantes.
89
6. - O original eorl indica o título de ealdorman, numa adaptação do
título escandinavo jarl. Há uma discussão quanto à datação do poema, de acordo
com a introdução da palavra, mas não é certo, como alguns afirmam, que
possamos calcular que sua introdução tenha acontecido apenas no início do
reinado de Svein. A introdução da palavra pode ter ocorrido diferentemente em
diferentes regiões, e a pouca evidência quanto à variante deste poema não
corrobora a hipótese. Quanto à tradução, optei por substituir os títulos anglo-
saxões e referências por qualificativos tais como líder, aqui aplicado.
7. - Altero a disposição do verso original por questões semânticas,
transferindo a palavra falcão, hafoc, para o verso anterior. Na língua anglo-saxã
era permitido, muitas vezes, que o qualificativo ou quantitativo fosse deixado
isolado, subentendendo-se o substantivo. É muitas vezes característico do verso
anglo-saxão que a ligação do primeiro e segundo meios de verso tenham
significado completo (ex. deixou que do braço... voasse, seu querido
falcão
), e o primeiro meio verso seguinte complemente o significado (ex.
através da floresta
), ou o altere, introduzindo um certo suspense ou surpresa à
narrativa. Procuro, sempre que possível, manter a característica em português.
8. - Levar um falcão no punho ao cavalgar era símbolo de prestígio e
patente entre os membros da aristocracia como retratado na tapeçaria de
Bayeux.
Libertá-lo, aqui, é uma demonstração de lealdade e prontidão.
- O falcão e outras aves de rapina são comumente utilizadas na
simbologia poética germânica como presságios de combate e morte.
9. - cniht refere-se a alguém com pouca experiência militar, e pode
significar servo, pagem ou rapaz, jovem. Aqui a palavra está relacionada a m
ġ:
parente, filho ou sobrinho. Decidi-me por filho, em função da aliteração com
Offa
, e por jovem soldado para o primeiro caso, tanto porque era costume que
adolescentes participassem em batalhas acompanhando os mentores quanto pela
90
própria especificidade posterior do sentido da palavra que originaria, no inglês
moderno, knight.
29. - Snelle não é uma aliteração.
30. - Escolhi a forma deveriam, pois semelhantemente ao português,
mōst pode tanto indicar formalidade quanto ironia, segundo a hipótese
apresentada por Mitchell, pois partilha ambos os significados de “dever” e de
“permissão” (may e must em inglês moderno.
+++ -
33. - Muitos especialistas argumentam que só existam registros de d
lon
(ou deal), com o significado de desferir ou distribuir golpes a partir do século
XIV. Em nórdico antigo, o verbo deila possui dois significados: partilhar e
competir/lutar. Concordo com a possibilidade, levantada por Robinson, de que a
forma hilde d
lon seja baseada em um modelo escandinavo. Acrescento que
possam ser ambos originados de um modelo em comum de que não tenhamos
notícia, por ter possivelmente caído em desuso. Analisando as duas propostas,
procurei evitar algo como a fazer-nos duros... golpes desferir em favor de a
fazer-nos partilhar... dura batalha
, que além de a mim parecer mais fiel,
encaixa-se melhor no metro tradicional na medida em que formam duas frases
completas, a primeira complementando a seguinte.
34. - Optei por Destruição não nos é necessária... se são tão ricos,
ao invés de minha primeira tentativa ... dado serem tão ricos. Ġif (inglês
moderno if) já significava se, embora tenha origem provável no verbo ġiefan
(dar/conceder), mas a aliteração me pareceu melhor em “…ção não… se são
tão…”, e pela ocorrência da variante Ġyf dois versos depois, para a qual optei
novamente em traduzí-la por
se.
91
47. -
ttrynne é metafórico, e quer dizer “mortal” ou “venenoso”,
enquanto que ealde se refere geralmente a “antigo”, num sentido mais positivo,
em oposição a “velho”. Scragg menciona o valor dado a espadas antigas tanto na
convenção literária quanto de fato: por toda a Idade Média, espadas pertencentes a
guerreiros famosos e feitas por mestres armeiros conhecidos eram renomadas e
muito apreciadas. Preferi manter, entretanto, a ironia e o duplo sentido, possíveis
e, segundo minha interpretação, mais apropriados.
*** 48. - Concordo com Cyril Brett, ao enxergar uma ironia adicional
no discurso de Bertnod: þā hereġeatu, significando ambos “botim” ou
“tributo” e “armaduras”, ou seja, que as armaduras não caberiam em batalha aos
vikings, somente as armas. Não consegui reproduzí-la especialmente devido ao
caráter da negação, difícil de se realizar em português como tal. Optei pelo sentido
mais óbvio.
67. - tōgædere (depois together) quer dizer aproximadamente “juntos e
em oposição”, ou, como também é utilizado, para indicar confronto (a palavra em
português tem etimologia semelhante). Omiti e substituí por travar, o verbo
bēron (bear), aplicado às lanças.
68. - Repete-se o efeito mencionado na nota do nono verso:
mid prasse
bestōdon.
A palavra refere-se tanto ao rio quanto a ambos os exércitos. Alterei a
ordem na tradução da frase para manter a seqüência do significado.
69. -
ord, geralmente “ponta”, parece assumir o significado de “formação
de batalha”, “exército”. æschere é um qualificativo que significa “de freixo”:
subentende-se (cf. Gordon) uma anglicização que se refira à expressão askr, em
nórdico antigo, “navio feito de freixo”. Opto por deixar explícito o nome em e os
dos barcos de freixo
. Ambos os qualificativos reproduzem a característica
destacada em 7, sobre a troca do substantivo por adjetivo, onde eu incluiria os
adjetivos substantivados.
92
75. - Emprego acentos nos nomes próprios para destacar a sílaba tônica e
facilitar a leitura, mesmo correndo o risco de parecer, por vezes, redundante.
Campos utiliza-se do mesmo expediente em Qohélet, fugindo, como faço, das
regras do português normativo quando julga necessário.
76. - Literalmente “valente com os seus (sua família)”, removi a
redundância de wīġheardne e cāfne para especificar o sentido adquirido por
mid em como todo o seu clã.
86. - Temos apenas duas outras palavras documentadas que se assemelhem
ao radical de lyteġian. A mais próxima é o adjetivo lytiġ, usado
predominantemente em contexto religioso como “engenhoso, ardiloso,
inteligente”. A outra belytegade, que ocorre uma única vez como o passado de
“seduzir, ludibriar, encantar”. Segundo a opinião de Scragg, o poeta nos diz aquilo
que precisamos saber, que os vikings agiram, em suas palavras, “treacherously”. A
meu ver, não me parece ser mais reprovável, na descrição do autor, que o orgulho
e atitude de Bertnod, como retomarei em seguida. Adoto a solução ardil, um
tanto mais neutra.
89. - Se o poema fosse resumido a uma só palavra, na opinião dos críticos,
esta palavra certamente seria
ofermōde, cujo significado literal é “impetuosidade
(ou coragem) demais”.
É ocorrência freqüente na forma de adjetivo, (embora, em
anglo-saxão seja algumas vezes difícil determinar com certeza a classe do nome)
como “orgulhoso”, mas limitada a três evidências como substantivo, para o qual
deduzimos um significado de “orgulho condenável”, uma em glossário, e outras
duas em poemas religiosos, onde se refere a satã. Tentativas foram feitas em
realizar uma leitura positiva do trecho, mas não há embasamento para que isso se
confirme. O verso seguinte, ...landes tō fela, traduzido quase que literalmente
por mim como terras demais, expressa reprovação, como Tolkien deixa claro
em The Return of Beorhtnoth. Na falta da facilidade em criar compostos, ou
reproduzí-los, em português, optei por audácia, esperando que o contexto seja
93
suficiente ao mesmo tempo para proporcionar um sentido dúbio a ser esclarecido
com a opinião do autor no verso seguinte, ao menos com o mesmo grau de
precisão tido por quem estuda anglo-saxão. Compartilho da opinião de alguns de
que o poeta proclame um sentimento de resistência aos vikings, em oposição a
aceitar o pagamento de tributos, e ao mesmo tempo não dê importância a
determinados valores e comportamentos tidos como honrosos e justos pela classe
guerreira, na busca da vitória, com exceção da coragem em batalha.
*** - Tolkien discorda em
91. - Uma ocorrência única é a palavra ċeallian, “chamar”, “gritar”
cognato aceito como de origem comum (em oposição a ser um empréstimo) à do
nórdico antigo
kalla. Apaguei-lhe a importância, trocando-a pelo óbvio falar, em
função da aliteração. Adiciono
chamar à tradução do verso seguinte para
compensar pela perda de significado.
- cald geralmente ocorre na poesia com sentido de “mau-agouro” ou
“dor” e usualmente não tem como referente o clima propriamente dito.
Novamente tento contextualizar a palavra, o que me parece, reproduz um pouco
do efeito negativo, se imaginarmos o chamado dirigindo-se às águas frias.
96. - Mantive o sentido literal de
wælwulfas, os lobos da morte, por
sua especificidade. É um composto bastante significativo, pois faz menção aos
nórdicos e à tradição germânica. Como mencionado anteriormente, certas forças
de combate vikings adotavam o título de
ulfhednar “cobertos de lobo” ou
berserkr “pele de urso” (origem da palavra inglesa berserk), indicando uma
espécie de herança do clã e, mais especificamente, paterna, que acabaria por
originar lendas semelhantes à do lobisomem. A simbologia para os animais era
bastante desenvolvida entre os germânicos, sendo que o urso, e mais ainda, o lobo,
exemplificado na mitologia por Fenrir, ocupavam uma posição de destaque como
símbolos de poder, geralmente destrutivo. Com a introdução do cristianismo,
primeiro anglo-saxões, e também, posteriormente, os escandinavos, não veriam
mais com bons olhos a “fúria do lobo”, a comparação com o animal, quando feita
a uma pessoa, adquiriria uma conotação negativa.
94
102. - O composto wīhagan é único, lit. “cerca de combate”. Por
dificuldades quanto à forma de composição germânica em relação ao português,
prefiro transformar estes modelos, salvo casos especiais, em conjuntos de palavras
relativamente usuais, tanto para manter seu sentido simbólico, tal qual o original,
quanto para não criar formas poéticas de caráter contemporâneo a partir de
palavras que serviriam para preservar a tradição. Se procuro reproduzir a métrica
em suas regras tradicionais, procuro reproduzir o efeito reduzido da inovação no
vocabulário neste tipo de poesia, onde a ênfase, na verdade, é dada às imagens
simbólicas e na representação do ideal e tradicional.
106. - Uma descrição tradicional de batalha se inicia aqui, com ruídos e aves
buscando presa nos mortos. Aves são comumente representadas no Martelo de
Þór
(Thor), amuleto utilizado pela grande maioria dos guerreiros nórdicos. As
aves, em especial o corvo, representam a vigilância e os olhos de Oðinn (Odin),
sempre acompanhado por dois deles, a morte, da qual se alimentavam, e o
julgamento final, numa conjunção dos dois significados. Além disso, e pelos
mesmos motivos, o estandarte dos reis nórdicos (bem como de muitos
pretendentes e vassalos), era a representação de um corvo. Segundo a lenda, levar
o estandarte em batalha trazia a vitória àqueles que o seguissem, e a morte àquele
que o carregasse. O escritor parece estar tanto utilizando a simbologia tradicional,
quanto o reflexo dessa simbologia em ambos os lados do combate.
108. - Scragg sugere que
fēolhearde, comparado a irenheard, presente em
Beowulf, signifique “hard as a file”. B.S. Phillpotts compara a palavra ao nórdico
antigo hneitir þél harðari “sword harder than a file”. Divido o significado em dois
versos, e modifico para: duros dardos,…afiados em facas por fēolhearde
speru,… grimme ġegrundene (cruelmente afiadas).
115. - Não temos nenhum dado sobre a família de Bertnod, o que nos
impede de confirmar a versão do poema. Tacitus (Tácito) deixa claro em seu
Germania que havia uma relação muito próxima entre um homem e o filho de sua
95
irmã, swustersunu, ao que tudo indica, responsável por sua educação e
treinamento. Aparentemente, esta relação ainda existia entre os anglo-saxões,
devido à ênfase dada à retribuição por sua morte, por parte de seu escudeiro (verso
121: būēne/ būrþegn).
122. - Stemn é variante de stefn, podendo significar um grupo de pessoas
fazendo um trabalho ordenado ou organizado em turnos, ou uma “armação”,
“formação”, geralmente utilizada para navios. Sweet escolhe “stand firm” para
stemnetton,
cuja ocorrência mais próxima é o médio inglês de Saint Katherine:
steventið. Escolho dispuseram-se, uma palavra que tem sentido de organização
e se encaixa ao posicionamento militar.
132. - Mantenho a oposição no mesmo meio verso com o senhor ao
camponês.
A palavra ċeorl não reproduz o significado depreciativo de sua
derivada contemporânea churl.
134. - A lança do sul, sūþerne gār, se refere ao feitio por armeiros
francos, bastante renomados.
135. - Em exceção ao comentário à nota do sexto verso, preservo na
tradução o título de lorde, absorvido pelo português. Procuro fazê-lo quando
equivale no original ao anglo-saxão hlāford > ing.mod. lord, como acontece
aqui.
Hlāf significa “pão” ou “comida”, e ord “fonte” ou “doador”.
140. - Novamente
francan alude a algum tipo de dardo ou lança de
arremesso feita na “Francia”.
142. - Afim de não prejudicar a compreensão do verso, já poeticamente
carregado na primeira metade por alcançando a vida. Elimino os traços do
composto
f
rsceaðan, que equivale em seu sentido literal a agressor veloz.
96
149. - A palavra drenga é um empréstimo do nórdico antigo drengr,
“guerreiro”, que mantenho pelo efeito da aliteração. No anglo-saxão e no médio
inglês pode ter tido uma conotação da ordem de “homem livre de classe inferior”,
advinda da organização da sociedade escandinava na época. É legendária a
afirmação atribuída a um viking durante uma invasão ao reino dos francos, ao lhe
perguntarem quem seria seu líder: “Somos todos iguais”.
166. - A cor amarela, fealo, representa a empunhadura dourada da espada
em fealohilte swurd, mas se opõe a gyldenhilte ou a gylden hilt, como
ocorre em
Beowulf. A simbologia anglo-saxã para a palavra, da qual derivam os
vários significados do inglês moderno para “yellow”, é de escuridão, podridão,
negatividade, tristeza. Como não poderia expressar a oposição em português,
preferi representar a perda do mais positivo “punho dourado” em
Deitou em
terra... a lâmina dura,
/ pois o punho dourado,... não podia manter.
Modifiquei a ordem por este efeito, trocando as posições entre “lâmina dura” e
“punho dourado”.
175. - Scragg aponta o paralelismo à prece compilada por H. Logeman em
Anglo-Saxonica Minora, Anglia 12 (1889), pág.509, onde se lê:
“forgif me ... þonne ic scyle of þisse weorulde feran þæt þu þonne
minum gaste onfó mid sibbe and ic hine mote ðe bebeodan þelæs þe hi(m) se
awyrgda gast sceaþðan mote”.
“conceda-me ... quando precisar deixar este mundo, que recebas meu
espírito e que seja permitido a mim que o confie a ti, para que o não possa ferí-lo o
espírito amaldiçoado”.
215. - Nas traduções em inglês costumam preferir “now (one) is able to test
who is brave”. Scragg sugere “now whoever is brave is able to prove it”. Prefiro
um tom intermediário, como o de Griffiths: “now we can discover, who really has
courage”, que além de mais apropriado, parece acompanhar melhor o metro e o
ritmo.
97
217. - Myrcon é a região da Mercia (em inglês), Mércia. Translitero os
nomes geográficos antigos com base no anglo-saxão, neste caso para Mircon.
219. - Alguns compostos acabam enfraquecidos e incorporados sem
destaque para o significado, como ocorre nos freqüentes usos de woruld-. Esta,
porém, é a única evidência de woruldġes
liġ, para a qual indico fortuna
simbolizando o mundo material. É quase certo que não se refira a uma oposição ao
espiritual, e para tanto opto por ser mais discreto.
221. - Traduzo fyrd simplesmente por exército, por falta de opção melhor e
em consonância com a mesma decisão de não utilizar títulos pessoais
exclusivamente anglo-saxões (vide versos 6, 135).
- A fyrd era a milícia local, composta por um homem para cada cinco
“hides” de terra. Por sua vez, uma “hide” teria o tamanho das terras alocadas a
cada família camponesa. As armas e o treinamento da fyrd ficavam a cargo do
senhor, mas, como indicam os dados disponíveis, no decorrer da Idade Média,
muitas formações de milícia eram melhor treinadas que os exércitos regulares,
depois introduzidos.
227. - um soldado dos deles: on þām folċe (daquele exército). A
palavra refere-se tanto a povo, clã ou tribo (inglês moderno “folk”) quanto a
exército, sendo uma construção neutra, utilizada para ambos os exércitos e povos
(cf. versos 22, 241 e 227, 259). É claro aqui que se refira aos oponentes. Evito
alongar demais o verso por tê-lo feito em um soldado, concentrando o
significado na seqüência, como compensação.
236. - Em português, até onde sei, a palavra machete é empréstimo
francês, de palavra, que, por sua vez, deriva do gótico makeis. A palavra anglo-
saxã mēċe deriva da mesma palavra em gótico. Repito empréstimo por
empréstimo, já que ambos partilham da mesma origem.
98
239. - Mesmo com as formações dispostas e divididas em clãs, unidades
locais e de seguidores pessoais, continuava sendo difícil reconhecer um guerreiro
à distância, como freqüentemente seria o caso do líder. A tapeçaria de Bayeux
retrata o futuro rei William erguendo o elmo para mostrar às tropas estar vivo.
261. - hīredmen podia significar companhia, homens do clã, ou guarda
pessoal, como deveria ter sido sinônimo de heorðwerod, no entanto foi o
primeiro significado que evoluiu para o inglês moderno, e é o que me parece mais
apropriado aqui.
266. - Translitero Norðhymbron (Nortúmbria) como Nordúmbron
coerentemente com minhas opções anteriores ao adaptar as referências geográficas
anglo-saxãs.
275. - É bastante comum a substituição de flēon “fugir”, por flēogan
“voar” em anglo-saxão, atribuída a erro ou confusão. Aparentemente esta é a
origem da expressão inglesa equivalente. Traduzo-a por escapar, recolocando-a
no verso 276.
277. - Busco não alongar o verso com linha de escudos por bordweall,
lit. “parede de escudo(s)”. A proposta de a palavra se referir à proteção de um
escudo não me parece razoável no contexto, ao invés disso, opto por fazer menção
à formação de batalha, comum em ambos exércitos.
281. - Emprego o incomum fás, por combinar em significado e pronúncia a
fūs
. A palavra em português significa “o que é justo”, e o anglo-saxão significa
tanto “preparado, bravo, disposto” quanto “prestes a morrer”, de acordo com o
ideal germânico da morte em batalha, também diria “correto, justo”. Não
encontrei registro de relação etimológica a respeito dos dois, mas não me
surpreenderia que tivessem origem comum.
99
283. - Não fica claro o sujeito da frase, se toda a linha 282, ou se apenas
“muitos outros”. Produzi um novo sujeito, “os bravos”, o que não soluciona o
mistério, mas facilita a aliteração com “brancos”.
- Embora não haja explicação etimológica para ċellod, que interpreto
segundo a única proposta que não envolve invenção pura (a partir da certeza de
ser um adjetivo referente a bord, escudo), a de que seja uma leitura errada de
celced, variante de cealced, “esbranquiçado, pintado de branco”.
284. - Deixo borda por læriġ. Não há certeza sobre a etimologia, mas uma
anotação sobre a palavra latina “ambiuntur” onde se lê “syn emblærgide” é a
melhor indicação disponível. Aqui há novamente relação com “escudo”, pelo
genitivo.
285. - A canção de terror é o bastante interessante composto
gryrelēoða, referindo-se ao ruído feito pela armadura atingida. A palavra ocorre
apenas mais uma vez em Beowulf, quando Grendel grita em sua luta contra a
personagem principal. É por compostos como este, além de me parecer demasiado
limitador, em especial em relação à poesia medieval em geral, que discordo de
Borges quando se refere pejorativamente à poeticidade dos compostos germânicos
ou kenningar.
291. - Aqui a “cidade” deve ser a cidade natal de Bertnod e não Maldun.
A variante burh (de burg) desperta interesse por se assemelhar em pronúncia ao
neerlandês.
297. - Aplico, para a única ocorrência conhecida de feorhhūs, o mesmo
tratamento que para os outros compostos significativos, transformando a em a
casa da vida
. Gostaria de destacar que a maioria dos compostos germânicos
tradicionais transforma uma palavra concreta em uma expressão entre o concreto e
o abstrato, com o mesmo valor, mas em um “matiz” diferente.
100
- Wīstān (Vístan) é Þurstānes sunu (o filho de Túrstan) de
acordo com o modelo seguido no restante do poema. Ele é mencionado novamente
como Wīġelines bearn, no verso 300. A palavra pode significar filho ou
descendente, mas por falta de evidência de que Wīġelin (Vígelin) seja outro
nome para
Þurstān (há evidências de tanto homens quanto mulheres conhecidos
por dois nomes) preferi escolher
descendente, que, em qualquer caso, continuará
correto.
Obs.: Scragg atribui a variação sunu (verso 76), suna (mais comum no
século XI, verso 298) a um erro de transcrição por parte de Elphinston, conhecido
por preferir esta troca de vogais.
+++ Notes on the ‘warrior compounds’
304. - Inverto aqui os meio-versos ambos irmãos, e todo o tempo, para
facilitar a aliteração do primeiro com Ôsvold e Êadvold, sem que haja perda
semântica.
101
Considerações Finais
São pouquíssimas as traduções no Brasil de textos medievais ou
escritos no período que antecede imediatamente a Idade Média. Tenho a
intenção de contribuir à leitura e à prática da tradução em português
relacionados a este tipo de texto. O texto medieval apresenta
características muito particulares, problemas e desenvolvimento únicos
em suas relações lingüísticas e literárias, que passam desapercebidos num
vazio criado entre a modernidade e o clássico.
Por ser um estudo especificamente voltado para esta tradução, é
apenas uma indicação do que pode ser alcançado e produzido no estudo do
texto medieval. O contato cultural da época e a adaptação progressiva de
valores antigos e clássicos a uma nova realidade criou uma grande
multiplicidade de variações que se refletem nas diversas literaturas,
deixando seus traços contemporâneos, mas da mesma forma abandonando
parte da riqueza lingüística e literária. O resgate destes modos de
expressão contribuem para a evolução de nossa própria cultura e
literatura, e a expandem. Um dos meios mais adequados para que isto
aconteça é a tradução, em sua habilidade de transportar o ‘novo’ entre as
culturas. O texto medieval é, em realidade, o mais permeável à
reinterpretação, seu estado ‘inacabado’ é testemunho disso, resultante do
processo iniciado na Idade das ‘Trevas’ que leva à fragmentação dos
impérios e à contrução de pequenos estados independentes física e
culturalmente.
A aliteração é uma destas formas de expressão cultural com raízes
indo-européias a perder parte de sua importância e prestígio nas línguas
ocidentais. Ela permanece um campo muito pouco explorado não só no
102
âmbito dos Estudos da Tradução, como da própria teoria lingüística e
literária. É uma das ferramentas mais abrangentes e universais da
literatura, na qual ainda hoje se apoiam muitos sistemas poéticos. Espero
ter demonstrado ao menos a possibilidade de seu emprego nas literaturas
românicas, nas variantes de origem ibérica e, em especial no português,
onde nunca se tornou um aspecto amplamente utilizado.
Através do levantamento dos aspectos mais centrais da língua e
poesia anglo-saxã, da tradução de um de seus textos mais difundidos e
conhecidos pudemos provar que o estudo formal pormenorizado do texto
antigo pode nos fornecer indicações quanto as próprias limitações de
nossa língua e direcionar-nos para alternativas viáveis de tradução. Além
disso, a tradição dos estudos da tradução no Brasil, nos fornecem todo o
arcabouço necessário para a inovação da versão estrangeirizadora que
possa reconstituir qualquer viés poético e significativo.
103
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