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Edmar Luis da Silva
Departamento de História
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte
2006
Compreender a vida, fundamentar a
História: “a crítica da razão histórica” em
Wilhelm Dilthey (1833 1911)
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Edmar Luis da Silva
Compreender a vida, fundamentar a
História: “a crítica da razão histórica” em
Wilhelm Dilthey (1833 1911)
Dissertação apresentada ao programa de
pós-graduação em História da UFMG
como parte dos requisitos para a
obtenção do título de mestre em História.
Orientador: Professor Doutor José Carlos
Reis
Departamento de História
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte
2006
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Dilthey es el filósofo más importante de la
segunda mitad del siglo XIX. Pero yo no he
conocido algo de la obra filosófica de Dilthey
hasta estos últimos cuatro años. De modo
suficiente no la he conocido hasta hace unos
meses. Pues bien, afirmo que este
desconocimiento me há hecho perder
aproximadamente diez años de mi vida. Por lo
pronto, diez años em el desarrollo intelectual
de ella, pero claro está que esto implica uma
perdida igual em las demais dimensiones.(José
Ortega y Gasset)
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Agradecimentos
Devo fazer alguns agradecimentos especiais às várias instituições e pessoas que
se tornaram fundamentais para minha formação e enriquecimento pessoal. Com especial
apreço agradeço à Capes pelo fomento com a bolsa de mestrado, ao CNPq pela bolsa de
iniciação científica, à Congregação dos Sagrados Estigmas pelos ensinamentos e
cuidado nos anos de seminário, ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
pelos anos de convívio, à Cultura Alemã pelas bolsas de estudo e contribuição para o
aprendizado da língua alemã, à Associação Cristã de Moços pelas viagens aos Estados
Unidos e à Associação Profissionalizante do Menor pelo primeiro emprego. Devo
também citar algumas pessoas que se tornaram verdadeiros protagonistas da minha
vida: Portília, Osmar, Elaine, Simone e Sidnei, minha família que me ensinou a escutar
e ser paciente. Ao meu orientador, e por vezes terapeuta, José Carlos Reis, à quem
agradeço pelo crédito, paciência e colaboração. Se essa dissertação obtiver algum
mérito esse se deverá exclusivamente à sua orientação. À Andrezza que no silêncio e
pelo sorriso me ensinou o que é o amor. Aos amigos de viagem nos EUA, Anderson
Real, Jardel Magela e outros tantos que ficaram pelo caminho. Em especial devo
mencionar o nome de Carolina Lima que nunca deixou de acreditar nos meus exíguos
talentos. Aos amigos de faculdade que acompanharam minha trajetória em atividades
acadêmicas e, principalmente, extra-acadêmicas: Fred, Alessandra, Daniel, Ismael,
Pedro Márcio, Luísa, Priscila, Pedro Araújo, Raphael, Carolina, Camila e tantos outros.
A todos os professores ao longo da minha formação, parentes e amigos. A todos, meus
sinceros agradecimentos.
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Resumo
Essa dissertação tem por objetivo discutir a natureza do conhecimento histórico na obra
do historiador e filósofo alemão Wilhelm Dilthey (1833 1911). Para tanto, lidamos
com suas principais obras que tratam do assunto, partindo de sua maior produção: a
Introdução às Ciências do Espírito. Mostramos que Dilthey apesar de não abrir mão do
termo ciência para definir a história, destaca as peculiaridades desse conhecimento
frente ao conjunto das chamadas ciências particulares. Mostramos também a aplicação
de seus métodos e a vivacidade de sua obra para a análise da produção historiográfica
de sua época, bem como suas contribuições para os atuais debates teóricos.
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Abstract
This thesis intends to discuss the nature of historical knowledge in the work of
the German historian and philosopher Wilhelm Dilthey (1833 1911). For this matter,
we discuss his main works that deal with this subject, starting from his biggest
production: the Introduction to the Human Sciences. We show that Dilthey emphasizes
the peculiarities of this knowledge in face of the group called particular sciences, even
he considers the history as a science. We also show the application of his methods e and
the vivacity of his work to search the historiographical production in his time and also
his contributions to the theoretical debates nowadays.
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Sumário
Introdução p. 8
Capítulo 1 Problemas Conceituais em Teoria da História p. 14
Parte 1.1 - A Teoria da História como Problema p. 14
Anti-especulativos p. 17
Collingwood p. 17
Burke p. 22
Burckhardt p. 27
Chartier p. 28
Críticos p. 30
Aron p. 30
Marrou p. 32
Rüsen p. 35
Parte 1.2 - A Situação da Teoria da História no início do século XIX p. 40
História da Teoria da História: o contexto de Dilthey p. 42
Hegel p. 42
A Reação da Alemanha à Expansão Francesa: a Escola
Histórica Alemã p. 45
Niebuhr, Wolf, Böeckh e Muller p. 46
Savigny, Grimm e Stein p. 48
Ranke p. 50
Parte 1.3 - Dilthey e a Teoria da História p. 52
Capítulo 2 A Fundamentação das Ciências do Espírito p. 64
A Tarefa p. 64
A Introdução às Ciências do Espírito p. 67
O Sonho de Dilthey p. 70
Breve História das Ciências Particulares do Espírito p. 74
A Questão do Objeto p. 92
A Questão Metodológica p. 107
Capítulo 3 A Teoria da História em Dilthey p. 123
A História e as Ciências do Espírito p. 123
A Especificidade do Conhecimento Histórico p. 131
Capítulo 4 Dilthey Historiador? p. 156
Dilthey Historiador p. 156
O Método Historiográfico de Dilthey: a biografia p. 159
A Compreensão do indivíduo e o juízo estético p. 171
Leibniz e sua Época p. 179
Goethe e sua Época p. 179
História, Hermenêutica e Poética: a novidade de Dilthey p. 186
Conclusão p. 191
Fontes p. 196
Volumes, livros e compilações p. 198
Bibliografia p. 199
8
Introdução
Esta é uma dissertação em teoria da história. Por meio dela, fazemos uma
discussão epistemológica acerca da natureza do conhecimento histórico na obra do
historiador e filósofo alemão Wilhelm Dilthey (1833 1911). Esse trabalho representa a
culminância de um processo que se iniciou ainda na graduação. Tivemos a oportunidade
de entrar em contato com a obra de Dilthey por meio da disciplina Teoria e
Metodologia da História ministrada pelo professor doutor José Carlos Reis e,
imediatamente depois, por meio de uma bolsa de iniciação científica sob a orientação do
mesmo professor. Desde aquela época enfrentamos grandes desafios, pois o espaço para
esse tipo de discussão é ainda bastante exíguo na academia.
Devido ao caráter teórico da discussão enfrentamos diversos obstáculos para
concretizá-la, uma vez que muitos historiadores não creditam a esse tipo de trabalho a
qualidade de historiografia. Essa área é ainda pouco trabalhada pelos historiadores.
Embora haja desde a Antiguidade historiadores que se preocupam com a discussão da
originalidade dos documentos, veracidade dos testemunhos e credibilidade dos escritos,
o trabalho teórico enfrenta atualmente várias dificuldades para se firmar. A partir do
século XVIII a teoria da história foi aproximada da filosofia, com destaque para a obra
de Hegel. Tanto que, até bem recentemente, o trabalho teórico era chamado de filosofia
da história graças ao grande impacto causado pela teoria desse filósofo acerca da
história. Devido a essa herança filosófica, muitos historiadores tornam-se resistentes à
reflexão teórica e afirmam que este trabalho é ofício dos filósofos. Por isso, os espaços
para a discussão teórica se limitam a uns poucos departamentos de história em todo o
Brasil. Os interlocutores muitas vezes são ainda os filósofos ou cientistas sociais.
Além dessa dificuldade inicial, tivemos que enfrentar um outro problema que foi
o de se trabalhar com um autor estrangeiro, e, mais, um filósofo pouco conhecido nos
9
circuitos acadêmicos brasileiros. Devido a esse desconhecimento tivemos que superar a
barreira lingüística, pois poucos textos foram traduzidos para o português. Tentamos
vencer tal dificuldade com a leitura das traduções em inglês e espanhol e, mais
recentemente, por meio do estudo da língua alemã que já se completa quase cinco anos.
Com isso, obtivemos uma noção básica da língua germânica e assim pudemos
concretizar a leitura de alguns pequenos textos capitais da obra diltheyana, tais como,
Ein Traum (O Sonho) e Entstehung die Hermeneutik (O Surgimento da Hermenêutica)..
Um último ponto nevrálgico que tivemos que enfrentar reza a respeito da
temática. Para muitos historiadores a questão acerca da natureza do conhecimento
histórico é um tema superado e, portanto, sem relevância operacional para a
historiografia. A questão da cientificidade do conhecimento histórico é irrelevante do
ponto de vista da história que parece estar reatando seus laços com a literatura. Muitos
historiadores bradam em alto tom de que devemos esquecer a ciência e buscar nas
nossas raízes literárias as características singulares do conhecimento que trabalhamos.
Diante de todos esses problemas a saída mais segura seria a de abandonar o tema
e nos enveredarmos por caminhos mais seguros. Contudo, desde os nossos primeiros
passos no campo da história, estávamos nutridos por uma angústia intelectual que
insistia em recolocar a questão da natureza do conhecimento ao longo de nossa
formação. Mais tarde, percebemos que tal angústia era, em menor ou maior grau, parte
constitutiva do trabalho de todo historiador. A operacionalização de conceitos e as
perguntas que levam os historiadores às fontes, no fim, tratam da especificidade e das
relações possíveis do conhecimento histórico com outros campos disciplinares. Por isso,
a dissertação de mestrado que ora apresentamos resulta não somente de um trabalho
pessoal e intelectual, mas, sobretudo, é produto de um sentimento curioso e de
10
insistência com o deliberado intuito de contribuir para o alargamento dos espaços de
discussão teórica em história.
O objeto de nosso trabalho é a obra de Dilthey. O tema é a história, ou melhor, a
natureza do conhecimento histórico. Perguntávamos de início se a história seria ou não
uma disciplina científica na obra de Dilthey. A pesquisa nos mostrou que a resposta a
essa questão não era tão simples e não poderia ser respondida de imediato. Tentamos
mostrar que, por mais que Dilthey não abra mão do termo ciência, a história é um tipo
de conhecimento com peculiaridades metodológicas que a aproxima de campos do
conhecimento aparentemente sem conexão. Dilthey chama os historiadores de artistas,
denunciando assim que a história compartilha elementos da arte, da poesia, da literatura,
da estética e outras áreas. Como pretendemos mostrar, a história utiliza uma ferramenta
metodológica que a aproxima bastante da dramaturgia: a representação. Os historiadores
representam em uma narrativa delimitada uma vida que durou anos ou acontecimentos
que se estenderam por séculos. É uma tarefa extremamente complexa e por isso o
historiador também tem em suas mãos categorias que o auxiliam no esforço de narrar a
vida.
Dilthey escreveu, no entanto, poucos artigos nos quais focasse explicitamente a
questão da natureza do conhecimento histórico. Como tentamos mostrar, desde os seus
primeiros textos, sua preocupação era fornecer às ciências do espírito, de recente
formação, um fundamento epistemológico que estabelecesse a sua originalidade, a sua
índole genuína, a sua autonomia, o caráter autóctone e irredutível dos seus problemas e
das suas realidades, a sua incomensurabilidade com as ciências da natureza. Tivemos,
portanto, que sacar sua discussão historiográfica nas entrelinhas de sua Introdução...
1
(sua principal obra) e relacionar com o trabalho de fundamentação das ciências do
1
Por questões de praticidade, utilizaremos a partir de agora a abreviação Introdução...
11
espírito a definição do seu conceito de história. Não foi uma tarefa fácil, mas também
nos apoiamos nos seus textos onde a discussão sobre a história aparecia mais
claramente. Lançamos mão principalmente do seu texto A Estruturação do Mundo
Histórico, bem como, pesquisamos algumas biografias que ele escreveu e análises
historiográficas de obras de historiadores de sua época. O hermetismo encontrado em
suas obras filosóficas cede lugar, em suas obras sobre a história, à uma clareza
surpreendente de afirmações. Entretanto, poderíamos comparar o nosso trabalho com o
de um arqueólogo que descobre um vestígio aqui e outro acolá para compor seu objeto.
Foi dessa forma que trabalhamos, mas ao fim, percebemos que, não obstante seu caráter
fragmentário e aparentemente caótico, a teoria diltheyana segue uma coerência
surpreendente.
Nossa dissertação está dividida em quatro capítulos. O primeiro trata dos
problemas referentes à discussão teórica na história. Problematizamos a discussão
teórica colocando em debate especialistas que discutem a reflexão teórica para saber se
é possível ou não ao historiador refletir sobre o conhecimento que pratica. Ao fim do
debate, fazemos um breve histórico da situação do conhecimento histórico à época de
Dilthey como forma de localização histórico-temporal de sua teoria. Ressaltamos as
relações de sua teoria com as discussões empreendidas em sua época, mas, sobretudo,
destacamos suas singularidades e pontos de distinção que o diferencia. É um capítulo
introdutório que busca a justificação teórica e histórica de nosso trabalho. Ao fim,
introduzimos de forma genérica as principais características da epistemologia
diltheyana.
No segundo capítulo, analisamos principalmente a principal obra de Dilthey:
Introdução às Ciências do Espírito (Einleitung in die Geisteswissenchaften). Primeiro,
nos detivemos nos documentos auto-biográficos que acompanham a edição espanhola
12
de 1949 relacionando sua temática com a do texto que eles introduziram. Depois, nos
enveredamos pela argumentação diltheyana tentando captar a singularidade da atuação
das ciências do espírito para explicitar os termos de sua fundamentação. Chegamos à
tríade operatória que toda e qualquer ciência do espírito deve lançar mão para abordar a
realidade, a saber, história-teoria-juízo prescritivo. Dilthey definiu claramente como
essa tríade atua na compreensão da realidade. Ressaltamos esse argumento, mas
acrescentamos uma outra argumentação que esclarece a forma como a compreensão
atua sobre a realidade. Como não nos ficou claro se a história seria ou não uma ciência
do espírito, tivemos que escrever um capítulo sobre o assunto.
No terceiro capítulo, problematizamos a relação da história com as ciências do
espírito com o objetivo de definir a natureza do conhecimento histórico. Tentamos
mostrar as peculiaridades metodológicas da história para compreender a realidade e as
singularidades dessa disciplina diante do conjunto das ciências particulares do espírito.
Chegamos ao terreno da biografia, pois em nossa pesquisa tornou-se explícito que o
método historiográfico diltheyano se apóia bastante nesse campo historiográfico como
forma de narração de uma trajetória humana. Apesar de Dilthey não abrir mão do
conceito de ciência em sua aplicação ao conhecimento histórico, a história é um campo
disciplinar que se distingue dos outros tantos, pois tenta narrar sinteticamente aquilo que
se passou outrora.
No quarto capítulo, exemplificamos a aplicação do método biográfico na análise
de dois personagens que contribuíram de alguma forma para a formação, segundo
Dilthey, do espírito alemão: Leibniz e Goethe. Escolhemos esses autores porque eles
representam a possibilidade de vivências completamente distintas mesmo diante de
contextos semelhantes. Com essas biografias, Dilthey ressalta a riqueza da vida
humana. Mais do que isso, Dilthey pretende provar que é na vivência cotidiana, nas
13
ações corriqueiras do cotidiano que podemos apreender a intensidade de um sujeito
histórico. No fim do capítulo, fazemos uma breve análise da novidade do método
diltheyano e a sua atualidade em relação à discussão da natureza do conhecimento
histórico empreendida pela a historiografia do presente.
Tentamos nesse trabalho mergulhar com a maior intensidade possível na
argumentação diltheyana. Incorremos no perigo de sermos seduzidos por suas
afirmações. Sabíamos dos riscos, mas tentamos aplicar nessa nossa análise uma
ferramenta metodológica aplicada por ele mesmo: a compreensão empática. Tomamos
sua obra compreensivamente, mas estivemos sempre atentos à necessidade objetiva da
argumentação científica. Esperamos não termos recaído no erro do anacronismo
conseqüência possível na aplicação da compreensão. Para tanto, nos apoiamos numa
vasta bibliografia crítica, na qual há a presença de muitos autores que Dilthey não
conseguiu tocar o coração, pelo menos, estes não o confessaram.
14
Capítulo 1 Problemas Conceituais em Teoria da História
Parte 1.1 - A teoria da história como problema
A teoria mantém com o conhecimento histórico uma relação tensa, mas ao
mesmo tempo, fecunda. A teoria orienta a pesquisa histórica nos seus mais diversos
campos. Todo e qualquer pesquisador em história lança mão de uma idéia que direciona
os rumos de sua investigação. A teoria questiona e mune de instrumentos o historiador
que pretende compreender o mundo. Não há pesquisa em história que prescinda de uma
perspectiva orientadora. O historiador ao utilizar conceitos e ao transformar os
documentos em historiografia já executa um trabalho teórico, pois lança mão de uma
idéia que norteia sua pesquisa. Essa idéia é fundamental para o início da pesquisa,
contudo o processo de investigação é dinâmico e ultrapassa a abrangência dessa teoria
inicial. À medida que a pesquisa se desenvolve, surgem novas perguntas e abordagens
fazendo atuar também aí a teoria. Assim, a teoria acompanha todo o trabalho do
historiador sem que muitas vezes ele se dê conta disso. (Reis, 2003. Rodrigues, 1978).
Teoria e história atuam de forma conjunta e colaboram mutuamente na
consecução do trabalho do historiador.
E decidirmo-nos por definir a natureza da
história, quer como uma ciência quer como um
simples de mera descrição de entidades ou
unidades individuais, particulares é
fundamentalmente seguir um critério teórico e,
portanto de esclarecimento de conceitos ou
filosófico. (Sousa, 1982, p. 27)
A utilização de conceitos, métodos e idéias é fundamental para o início,
desenvolvimento e resultado final da pesquisa. A teoria tem um caráter prático, pois
orienta no cotidiano o trabalho do historiador. Ela é um campo disciplinar
historiográfico que parte da vida para apreender a vida. Contudo, faltam entre os
15
historiadores, especialistas que trabalhem com as questões específicas de teoria.
Figuram entre os autores mais citados, especialistas de outras áreas, principalmente da
filosofia. A razão de isso acontecer é porque há poucos historiadores que se interessam
pela discussão e pela reflexão teórica, apesar de a utilizarem em todos os momentos do
seu trabalho. Até o século XIX a teoria era feita por filósofos, teólogos, filólogos,
cientistas sociais etc. Ela era utilizada como o instrumento de imputação de
regularidades escondidas por detrás dos fatos. Tinha a nobre missão de ordenar o caos
do mundo histórico, por meio de filosofias e meta-narrativas da história, garantindo
assim a “revelação” da verdade. A teoria da história era filosofia da história. (Reis,
2003)
A filosofia da história ganhou grande destaque no cenário intelectual europeu,
principalmente com a obra de Hegel. Contudo, os historiadores alemães se dedicavam
apenas à mera descrição factual da realidade sem, no entanto, ceder às pressões da
comunidade científica que a todo o momento inquiria: que tipo de conhecimento é a
história? Num contexto em que a prática filosófica era sinônima da teoria do
conhecimento, a pergunta ganhava importância cada vez maior, porque o rigor
empreendido por esses historiadores, ao desfazer a imagem do colecionador ocioso e do
antiquário, obrigava à definição epistemológica do seu campo de trabalho. Este
historiador não estava interessado em refletir sobre a natureza do conhecimento que
praticava. No máximo, buscava a refinação do método crítico que seria um instrumento
seguro para apreensão do objeto, por meio das fontes documentais. O pensamento
historiográfico dessa época é, sobretudo, anti-especulativo. (Sousa, 1982)
A teoria do conhecimento no século XIX tem um caráter eminentemente
epistemológico, isto é, o esforço teórico preponderante era feito para fundamentar
cientificamente o saber. No caso da história, a teoria tinha o objetivo de empreender um
16
sentido científico que desse coerência à massa documental compilada pelo historiador.
Contudo, desse trabalho se ocupava mais os filósofos do que propriamente os
historiadores de ofício. Comte, Marx, Nietzsche e Dilthey foram alguns dos que se
propuseram a refletir sobre a natureza do conhecimento aplicado à história. De fato,
(...) não se pode deixar de reconhecer que só
graças à cooperação da filosofia, a história
poderá contar com a sua teoria de orientação
e com a sua própria epistemologia. (Sousa,
1982, p. 40 e 41).
E esse auxílio filosófico será uma marca forte no pensamento historiográfico. Até hoje,
relega-se à teoria uma posição de fronteira entre a filosofia e a história, na qual o
estranhamento é mútuo. O historiador “prático” vê no teórico, um filósofo. O filósofo
de ofício enxerga, por sua vez, nesse mesmo intelectual, um discurso ainda de
historiador. O historiador especialista em teoria da história está na trincheira: ele parece
não conseguir resolver as angústias dos outros historiadores. Estes preferem solucionar
os problemas conceituais decorrentes de suas pesquisas, consultando o filósofo. Já o
filósofo, quando empreende um trabalho de história da filosofia, recorre ao historiador
de ofício e não ao teórico. (Chartier, 2002, p. 223)
É preciso dizer, no entanto, que
(...) certamente que não se poderá por em
dúvida que a teoria da história e a natureza do
conhecimento histórico requerem um estudo
fundamental tanto pelo estudo ou estudioso da
história, como pelo próprio historiador.
(Sousa, 1982, p. 7)
Sousa defende o estudo teórico como uma necessidade e obrigação do
historiador, mas é imperativo se questionar: pode o historiador elaborar teoricamente o
17
seu conhecimento? Qual a relevância da existência de um campo historiográfico
dedicado à reflexão sobre as condições da ciência histórica? Pode uma ciência não
refletir sobre o seu modo de conhecer? Propomos discutir essas e outras questões por
meio de um diálogo entre historiadores e especialistas no conhecimento histórico.
Escolhemos esses autores por alguns motivos básicos: primeiro, porque eles são
referências na discussão teórica, são nomes notadamente reconhecidos; em segundo
lugar, tratam em seus textos de questões diretamente relacionadas ao tema da nossa
dissertação: a natureza do conhecimento histórico e, por último, quase todos eles
mencionam a obra de Dilthey como referência da discussão teórica. Primeiramente,
analisaremos a posição do grupo que defende o trabalho teórico como função de
filósofos e sociólogos, denominamos esse grupo de anti-especulativos. Depois a
confrontaremos com as idéias dos historiadores que defendem a teoria como parte
fundamental do trabalho historiográfico, chamamos os componentes desse grupo de
críticos. No final, analisaremos a posição de Dilthey frente à reflexão teórica sobre o
conhecimento histórico.
Anti-especulativos
Collingwood
A expressão “filosofia da história” foi inventada, segundo Collingwood, por
Voltaire em 1765 quando intitulou de Filosofia da História o prefácio de sua obra
Ensaio sobre os costumes e o Espírito das Nações. (Collingwood, 1986; Sousa, 1982).
Com essa expressão, Voltaire pretendia designar a história crítica ou científica feita
pelos historiadores que não recorriam aos alfarrábios ou aos arquivos. (Collingwood,
1986, p. 7; Sousa, 1982). Depois de Voltaire, Hegel se apropriou da expressão para
conceituar o método filosófico adequado que busca esclarecer o sentido de uma história
18
universal que compreendesse a marcha do Espírito em busca da Liberdade.
1
No século
XIX, com o positivismo, essa filosofia torna-se o instrumento para descobrir as leis que
regiam a vida. A filosofia da história seria responsável em descobrir as leis causais e
explicações condicionais do conhecimento histórico. (Collingwood, 1986).
Um pouco antes de Voltaire cunhar o termo filosofia da história, Vico se
esforçava para considerar o conhecimento histórico em bases autônomas, levando em
conta as leis próprias do desenvolvimento humano, tal como Newton havia feito para a
física. Contudo, Vico não foi levado a sério por seus contemporâneos e as idéias dos
filósofos historiadores tiveram maior repercussão. Voltaire tentava mostrar com a
história, o desenvolvimento da humanidade operado pela razão ao longo do tempo. A
história seria o local onde o homem colocaria em ação seu princípio de perfectibilidade.
Já em território alemão, Herder atacava, em favor da história, a Crítica da Razão Pura
de Kant, dizendo que a linguagem tem prioridade à razão e a experiência é o seu motor,
bem como das noções de tempo e espaço.
A filosofia da história proclama que a história
se deve orientar em crítica aberta e direta
contra o providencialismo, exatamente porque
entende, em termos iluministas, que a razão é
o único poder absoluto, capaz de alimentar o
conhecimento humano, e que o progresso é a
mais real expressão da liberdade humana.
(Sousa, 1982, p. 87)
Logo depois dos ataques de Herder a Kant, Hegel se apresentou como o pensador que
melhor caracterizaria aquilo que foi conhecido como filosofia da história.
Assim temos que, Voltaire, Herder e Hegel analisam a história sob uma
perspectiva metafísica que tentava provar por meio da história a possibilidade do
1
Já em 1784, Herder emprega a mesma expressão no seu livro Idéias para a Filosofia da Humanidade.
Para mais detalhes, conferir Sousa, 1982, p. 13 e ss.
19
desenvolvimento humano. Essa filosofia da história idealista acreditava num fim moral
que poderia ser atingido por meio da história. No contexto iluminista do fim do século
XVIII
(...) todo o pensador que escrevesse sobre a
importância e significado da história tinha que
o fazer em termos racionalistas e demonstrar
elevado nível de atualização quanto à ciência
da natureza,pois se entendia que esta atingira
o auge da ciência em geral em perfeita
correspondência com o otimismo do poder da
razão como única fonte de pensamento e
conhecimento. (Sousa, 1982, p. 95).
Logo depois, sob uma outra perspectiva, o positivismo pretendeu superar o
pensamento metafísico, imputando à história regularidades que permitissem que seu
conhecimento fosse elevado à condição de ciência. Contudo, tanto na tradição
iluminista/idealista, quanto no positivismo, o termo exige melhor esclarecimento, pois,
segundo Collingwood,
(...) o espírito filosofante nunca pensa
simplesmente acerca de um objeto, pensa
também no seu próprio pensamento acerca
desse objeto. A filosofia pode ser chamada,
assim, um pensamento do segundo grau,
pensamento acerca do pensamento.
(Collingwood, 1986, p. 8)
Para Collingwood, um pensamento restritamente apoiado sobre a realidade ainda
não é filosófico. A filosofia é um pensamento que reflete sobre o pensamento. Nesses
termos, não se pode afirmar que o pensamento iluminista/idealista e positivista fosse
todo ele filosófico. O que se chama de filosofia da história é, em muitos autores dessa
época, apenas um trabalho de historiador. (Collingwood, 1986). Contudo, não se deve
confundir um pensamento histórico, com um pensamento filosófico. Para Collingwood,
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o historiador não está autorizado a fazer reflexões epistemológicas acerca do
conhecimento que produz. Para ele, enquanto a filosofia é um pensamento
descontextualizado, a história é obrigada a mostrar o lugar de onde fala, por
conseguinte, não pode ter como um de seus campos disciplinares a teoria da história. A
filosofia busca o sentido do pensamento em sua própria estrutura, sem contextualizá-lo.
O historiador não pode de maneira alguma trabalhar dessa mesma forma, mesmo que
faça uma reflexão sobre um pensamento de qualquer tipo, este deve estar
contextualizado e suas manifestações concretas devem aparecer por meio das fontes.
(Collingwood, 1986, p. 8).
Collingwood afirma que o pensamento do historiador é sempre relativo, isto é,
ele se remete a uma base factual. É um pensamento que se limita a tomar o passado na
sua singularidade. O trabalho do historiador serve de meio para a reflexão teórica. O
historiador não é um epistemólogo! Somente a filosofia pode realizar um trabalho
epistemológico na medida em que reflete sobre as condições do trabalho do historiador.
Por isso, Collingwood se pergunta: o que se pretende dizer com o termo filosofia da
história? Em que medida se pode afirmar que há uma filosofia da história?
(Collingwood, 1986, p. 10). Para ele, a filosofia da história é um ramo da filosofia tal
como a ética, a lógica etc. A filosofia da história é consonante a outros ramos da
filosofia. Por que, então, a filosofia da história ganhou tanto destaque na época de Hegel
e em todo o século XIX, quando deveria estar, na verdade, incluída numa teoria geral do
conhecimento que servisse a todas as outras disciplinas? Para Moreno, a resposta a essa
questão reside no fato de que a filosofia no século XIX se reduziu à condição de
epistemologia com o trabalho quase exclusivo de fundamentar o conhecimento e como a
história era um conhecimento em voga, a filosofia da história se torna a forma quase
exclusiva de se fazer filosofia. (Moreno, 1990; Collingwood, 1986).
21
A partir do século XVIII, a história passou a figurar como objeto da filosofia. O
grande destaque obtido pelo conhecimento histórico em detrimento do pensamento
abstrato faz com que a relação da história com a filosofia seja reformulada. À medida
que a história ganhava independência e se tornava uma disciplina, nascia com ela sua
teoria. Para Collingwood, história e teoria, mesmo que como ofícios distintos, estão
imbricados, pois o conhecimento não pode nascer sem pensar sobre as condições de sua
atuação. (Collingwood, 1986). Ele concorda que a teoria do conhecimento histórico é
fundamental, mas quem a elabora é o filósofo.
Não há dúvida que exemplos de pensamento
sobre a história que se ocupam de um
discorrer sobre a natureza, origem, validade e
desenvolvimento do próprio conhecimento
histórico têm sido uma das principais
manifestações de epistemologia que
caracteriza as doutrinas da filosofia da
história e do historicismo. (Sousa, 1982, p. 29)
O trabalho de uma teoria geral do conhecimento histórico nasce, como campo da
filosofia, em relação direta com o surgimento da disciplina histórica. Por isso, deve-se
pensar que a filosofia da história é um estudo específico, de um problema exclusivo: o
da natureza do conhecimento histórico. Dessa forma, apesar de Collingwood afirmar
que o conhecimento histórico nasce associado à sua teorização, os trabalhos são
complementares. A teoria é extremamente importante para se pensar a natureza do
conhecimento histórico, apesar de não ser feita pelo historiador. É o que Collingwood
faz em sua importante obra A Idéia de História - onde pretende estudar o conhecimento
histórico em sua natureza, objeto, método e valor é um trabalho de filósofo e não de
historiador. (Collingwood, 1986).
22
Burke
Peter Burke inicia seu texto História e Teoria Social perguntando-se: qual é a
utilidade da teoria social para os historiadores e qual a utilidade da história para os
teóricos sociais? (Burke, 2002, p. 11). Para entender a distinção feita entre história e
teoria social, Burke nos diz que a história utiliza conceitos, mas nem sempre recorre à
teoria e só em casos específicos lança mão de modelos. Na verdade, o historiador é
resistente à teoria e isso faz com que entre ele e o sociólogo seja travado um diálogo de
surdos, que nem sempre mantém a política da boa vizinhança. Pois enquanto a
sociologia se volta para a sociedade humana (no singular), para explicar sua estrutura e
formulações gerais, rejeitando as exceções, a história se volta para o estudo das
sociedades humanas (no plural) no qual são valorizadas as especificidades e os detalhes
das manifestações no tempo. Para o autor, então, na melhor das situações, as abordagens
seriam complementares. Mas por que há tanta discordância? Por que a oposição entre
essas disciplinas se desenvolveu? É possível superar esse antagonismo? Para responder
às questões, Burke retoma o processo histórico do desenvolvimento do pensamento
ocidental em três momentos: meados do século XVIII, século XIX e por volta dos anos
de 1920. (Burke, 2002, p. 14).
No século XVIII não havia oposição alguma entre a história e a sociologia, pois
esta última não existia. Os pioneiros dessa disciplina foram Montesquieu, Ferguson,
Millar e Adam Smith que, apesar de empreenderem pesquisas de grande relevância
sobre a sociedade, não se dispuseram a fundamentar o conhecimento que produziam.
Contudo, podem ser considerados como teóricos sociais, ou melhor em termos do
século XVIII historiadores filosóficos, pois elaboraram, sobretudo, obras teórico-
historiográficas, uma vez que suas análises teóricas contribuíram para a análise
histórica. O interesse maior desses pensadores era buscar o geral no particular, isto é, ao
23
invés de falarem das especificidades das manifestações exclusivas, pretendiam elaborar
as leis gerais que governavam os fatos. (Burke, 2002, p. 15).
No século XIX, a sociedade deixa de figurar como o objeto principal do
conhecimento histórico. Com Ranke a pesquisa se volta para o Estado e para a política.
A história política torna-se o modelo historiográfico por excelência. Ocorre então um
processo de distanciamento entre a história e a teoria social. Isso acontece por vários
motivos: os governos servem-se do conhecimento histórico para legitimar discursos
nacionalistas; o ensino da história é pragmático: incentiva a integração política sem
fazer referência alguma à produção social do conhecimento; a sociedade perde o
estatuto de objeto central, dando lugar ao Estado. O exemplo mais forte desses estudos
políticos da história se dá na Alemanha, pois ela era ainda um conjunto de pequenos
principados que almejava a condição de nação, para tanto, se servia da legitimidade
histórica a fim de construir sua identidade política. (Reis, 2003, p. 16).
A proliferação dos estudos históricos tem a colaboração decisiva de Ranke que
reformulou a metodologia da história, para que métodos e fontes pudessem
corresponder à verdade dos fatos. Ranke tinha a pretensão de conhecer a história em
seus próprios termos e sem interferências de paixões. Por isso, a documentação oficial
era o instrumento preferido, pois esta seria confiável, provável e a única capaz de fazer
com que a história recebesse o reconhecimento da comunidade científica. Passou-se a
buscar a objetividade em nome da integridade do método em detrimento da especulação
ociosa. Almejava-se a profissionalização da disciplina, por meio do rigor do método e a
verossimilhança das narrativas. Em contrapartida, a história social era, mesmo que com
alguns adeptos, alvo de crítica pelos historiadores de ofício e acusada de não ser
científica, pois social e político eram considerados aspectos distintos e a única história
objetivamente fundamentada seria a política. (Reis, 1999, p. 12. Burke, 2002, p. 18).
24
Depois de Ranke, segundo Burke, o historicismo do final do século XIX também
deu sua contribuição para a cisão entre a história e a teoria social. A sociologia praticada
por Comte era considerada como pseudo-científica. Dilthey e Croce foram uns dos que
recusaram o padrão de cientificidade aplicado pela sociologia e afirmavam que, se a
história buscava tornar-se ciência, deveria se afastar da sociologia comtiana. Essa recusa
da teoria social comtiana teria sido um auxílio fundamental para aumentar as rivalidades
entre historiadores e filósofos. (Burke, 2002, p. 19). Entretanto, como nos mostra Sousa,
essa disputa (Methodenstreit) se inicia antes do historicismo. De fato,
(...) antes mesmo da intervenção dos filósofos
Dilthey, Windelband e Rickert, a disputa
estabelece-se principalmente entre a nova
sociologia e a história, argumentando-se de
um lado que a sociologia trata da
generalização acerca dos acontecimentos
sociais e como o conhecimento religioso tende
para o conhecimento abstrato (por influência
acentuada da filosofia), enquanto do outro, se
insiste que a história trata especialmente dos
acontecimentos do passado, tendo unicamente
em atenção o seu aspecto de ocorrências
únicas, individuais, particulares. (Sousa, 1982,
p. 71).
Não obstante, nesse ínterim, havia um número considerável de intelectuais,
como Tocqueville, Marx, Smith e outros que, apesar de não serem necessariamente
historiadores de ofício, faziam pesquisas históricas de bastante consistência
metodológica. As análises eram muito mais amplas, estruturais e não se limitavam a
tomar a história sob a ótica dos particularismos. Eram sociólogos ou historiadores
filósofos que se utilizavam da história para apreender as regularidades e leis da vida
social humana. Tal situação de conciliação é ainda presente em autores como Durkheim
e Weber que tentavam uma aproximação amigável com a história. Seus trabalhos de
25
sociologia utilizavam os instrumentos da história como lugar de discussão conceitual,
bem como, para fundamentar empiricamente suas generalizações. Devido às pesquisas
históricas que fazia, Weber, segundo Burke, sempre se considerou historiador. (Burke,
2002, p. 19). Tais sociólogos elaboravam suas teorias baseadas numa vasta pesquisa
histórica. Buscavam conhecer o processo de evolução social, mas não prescindiam da
pesquisa histórica. Contudo, o passado era estudado não como um tempo a ser
venerado. Buscava-se, sobretudo, mudá-lo. Os conceitos utilizados pelo sociólogo
complementavam o trabalho do historiador, aliás, dava-lhe inteligibilidade, apreendendo
os fatos em suas regularidades e leis. Enquanto os historiadores mostravam, segundo
Burke, uma postura passiva em relação ao passado, sem refletir sobre ele, os sociólogos
se incumbiam de analisá-lo. As poucas teorias que o historiador utilizava em seu
trabalho eram tomadas de empréstimo da sociologia. (Burke, 2002).
Essa postura cordial não é, no entanto, mantida pelas gerações que se seguiram
aos trabalhos de Weber e Durkheim. Os sociólogos passaram a repudiar o passado. O
trabalho do historiador foi visto de forma pejorativa e digno de desdém. Sociologia e
história passam a travar uma briga de métodos (Methodenstreit). (Burke, 2002, p. 25). A
biblioteca foi trocada pelo laboratório (Piaget), os antropólogos passaram a fazer mais
pesquisa de campo e os sociólogos se interessaram muito mais por estudos
contemporâneos. A história era vista como um ofício de preguiçosos e curiosos que
pensavam poder se isentar do presente para poderem viver o passado. Para Burke, são
duas as razões que explicam o desprezo da sociologia pelos estudos históricos: o centro
de estudo sociológico migra da Europa para os Estados Unidos, onde os traços
históricos eram menos visíveis; e as disciplinas como economia, antropologia, geografia
e psicologia saem da tutela da história, na medida em que se profissionalizam. (Burke,
2002, p. 25).
26
Apesar disso, na França, iniciam-se os estudos histórico-sociais. Via-se a
necessidade de ampliar o campo de estudos da história e da sociologia. Há um retorno
de antigas abordagens em que convergem o teórico e o histórico. No século XX, a
Escola dos Annales ressalta a importância dos estudos interdisciplinares para a história.
Braudel dirá que história e sociologia devem caminhar juntas. São criadas várias
disciplinas que demonstram essa reaproximação: “sociologia histórica”, “antropologia
histórica”, “geografia histórica”, “economia histórica”. Ambos os lados viram que a
briga de métodos era improdutiva. A história desloca seu interesse do político para o
social e cresce com essa renovação. A sociologia retomando a dimensão do passado,
começa a ganhar mais status no meio acadêmico. Contudo, esse diálogo não foi feito
sem problemas. Os paroquialismos, as críticas e as divergências continuaram. Porém,
Burke alerta, sem combinar a história com a teoria, é provável que não consigamos
entender nem o passado, nem o presente. (Burke, 2002, p. 35).
A conclusão de Burke é então que a história não empreende trabalho teórico em
seu labor. Para ele, a compreensão conceitual que inclui a história na acepção de ciência
social é muito mais estudo do sociólogo e do filósofo da história do que do historiador,
que geralmente está inclinado ao estudo de problemas afastados da teoria e da
epistemologia. É possível empreender um diálogo entre a sociologia e a história quando
estas abordam um mesmo objeto, por exemplo, o pensamento social. Nesse caso, a
história investiga as categorias, os fatos e os acontecimentos de onde provém tal
pensamento. Já a sociologia se ocupa do estudo teórico e aplicável dos conceitos e
categorias desse pensamento social. É objeto exclusivo da sociologia, a natureza de
entidades abstratas, tais como sociedade, grupos, comunidades etc. Sousa ressalta que o
historiador deve lançar mão, na análise das situações concretas, de princípios analíticos
abstratos, provenientes da sociologia e das ciências naturais que são fundamentais para
27
garantir a cientificidade do conhecimento. (Sousa, 1982, p. 60). Essa idéia é confirmada
por Alex Callinicos, um autor marxista, para quem o historiador não consegue refletir
sozinho sobre os problemas teórico-metodológicos surgidos na pesquisa, por isso utiliza
teorias sociais para melhor dominar sua pesquisa. (Callinicos, 1995). O marxismo, por
exemplo, que é uma teoria social, não acredita que a teoria seja feita pelo historiador,
mas somente pelo sociólogo e pelo filósofo. Nesse sentido, a teoria tem um papel
auxiliar de esclarecer o que não pode fazer a pesquisa empírica. Para Burke, a história
se divorciou da teoria ainda no Iluminismo. A teoria da história tornou-se uma
disciplina à parte, a sociologia. Aliás, a disciplina histórica retomada por Ranke nasce
separada da teoria social. Portanto, não há como fazer teoria de dentro da história. A
postura adequada é, então, segundo essa visão, tomar emprestadas as generalizações
feitas pelos sociólogos. Assim temos que, enquanto a história compreende o passado, os
sociólogos refletem sobre suas leis. (Burke, 2002).
Burckhardt
Nessa mesma linha de raciocínio, Burckhardt afirma, ao discutir a relação da
história com a filosofia, que o termo filosofia da história é uma contradictio in adjecto.
(Burckhardt, 1961). Devido à distinção da natureza desses conhecimentos a expressão é
vazia de conteúdo. Para ele, a filosofia está epistemologicamente acima da história. Ela
quer decifrar o enigma da vida, sendo que a história só pode atingir esse objetivo de
maneira defeituosa e limitada. As filosofias da história tentavam elaborar um programa
geral da evolução mundial e imputar ao devir um sentido unívoco. Para elas, o tempo
tem uma marcha regular e o presente é o ápice de todo o desenvolvimento ulterior. As
filosofias da história tentam imputar à história uma regularidade ontológica. Já o
conhecimento histórico deve se interessar pela singularidade dos acontecimentos sem
28
recorrência a preceitos metafísicos. Em história, a presença do sujeito do conhecimento
é um pressuposto. De fato,
(...) nos relatos históricos, nosso desejo de
conhecimento objetivo defronta-se várias
vezes com uma alta muralha de intenções
subjetivas disfarçadas sob os trajes de
tradições que nos foram transmitidas através
dos séculos. (Burckhardt, 1961, p. 18)
Para Burckhardt, o objeto da história está muito bem definido. E o interesse pelas regras
historiográficas não é senão uma preocupação filosófica. História e filosofia têm
objetivos distintos: o filósofo reflete sobre a vida e busca suas leis, enquanto o
historiador tem a função de reunir o que ainda pode-se ver do passado: seus fragmentos.
Chartier
Roger Chartier é ainda mais preciso nessa discussão sobre a relação da filosofia
com a história. Pergunta-se,
(...) em que e como a reflexão filosófica
permite elaborar melhor os problemas sobre
os quais tropeça hoje em dia todo trabalho
histórico concreto e empírico?
(Chartier, 2002,
p. 241).
Esse é um tema inquietante, há pouco consenso entre os historiadores a respeito dessa
relação. A filosofia parece despertar velhos fantasmas que não foram exorcizados.
Teme-se, sobretudo, as generalizações abstratas que tomam o conhecimento histórico
como instrumento para se alcançar a verdade por detrás dos fatos.
A história tal como se faz não atribui muita
importância, de fato, ao questionamento
clássico dos discursos filosóficos produzidos a
seu respeito, cujos temas parecem não ter
29
pertinência operatória para a prática
histórica.
(Chartier, 2002, p. 223) .
Além disso, o trabalho de história da filosofia faz uma análise eminentemente
internalista das doutrinas filosóficas.
Ao constituir a história da filosofia a partir da
própria interrogação filosófica, ao afirmar
não apenas a irredutibilidade do discurso
filosófico a qualquer determinação, mas
também, a própria impossibilidade de pensar
historicamente o objeto filosófico, atendendo a
que agir assim é na realidade destruí-lo, a
história filosófica da filosofia instituía uma
‘deshistoricização’ radical na sua prática.
(Chartier, 2002, p. 225).
Há, portanto, uma distância entre a prática filosófica e a histórica, mesmo que, por
vezes, haja preocupações coincidentes. O filósofo que investiga a história da filosofia
realiza seu trabalho sem levar em conta as discussões historiográficas dos historiadores.
O mesmo vale para o historiador que investiga sistemas de pensamento filosófico sem
muitas vezes lançar mão de reflexões filosóficas.
Podemos concluir dessa primeira posição dos anti-especulativos, que a discussão
teórico-metodológica é, apesar de tudo, de fundamental importância para a história.
Entretanto, há uma concordância entre os autores dessa linha que o trabalho teórico feito
pelo historiador é limitado. O profissional em história pode refletir sobre seu objeto,
mas está vedado a ele qualquer tipo de questionamento de ordem epistemológica, uma
vez que essa é uma corrente de pensamento da filosofia. Não é do ofício da história
operar o conhecimento de forma abstrata. O historiador está limitado ao que é
documentado e verossímil. O historiador pode até se utilizar do discurso filosófico para
melhor entender a natureza do seu conhecimento, mas a filosofia da história, praticada
30
na perspectiva hegeliana também não é recomendada, pois é uma visão metafísica da
história. A história não pode se fechar às reflexões que são feitas a seu respeito. Se a
história procura depurar seu instrumental teórico-metodológico, pode ser que a filosofia
tenha muito a contribuir para a resolução de problemas relativos à natureza do seu
conhecimento.
Críticos
Aron
Sob uma outra perspectiva, alguns autores também discutem essa relação da
história com a teoria. Um dos autores clássicos desse campo é Raymond Aron. Em seu
livro Dimensões da Consciência Histórica afirma que se a interpretação histórica está
orientada por valores, então, ela encerra uma concepção filosófica e está coordenada por
uma teoria. (Aron, 1992). Ele acredita que toda ação humana encerra um valor e por
detrás dele, há sempre uma idéia orientadora, uma teoria. Só por meio de uma teoria os
fatos históricos tornam-se inteligíveis na historiografia, por isso não há como
desvincular a produção histórica da teoria. Contudo, essa teoria é dispersa e
desarticulada. O historiador não se dá ao trabalho de refletir sobre elas em seu conjunto,
mas somente em produzi-las. A organização das teorias seria feita pelo filósofo que as
sistematiza. O historiador se limita em discursar sobre a singularidade do passado sem
se dar conta da composição da teoria que produz ou utiliza. Pois é certo que o
historiador relaciona os fatos e para isso precisa da teoria, mas nesse caso, a teoria é
vista mais como método do que propriamente como um campo do conhecimento
histórico. Por seu turno, o filósofo sabe que somente por meio de uma elaboração
teórica deliberada poderá alcançar a verdade dos fatos. (Aron, 1992).
31
Em Aron, os trabalhos do historiador e do filósofo mostram que investigação e
pensamento se situam em direções distintas. A teoria da história é um trabalho que vai
além da práxis do historiador, pois busca a constituição dos conjuntos e a determinação
do sentido. Os conjuntos são compostos pelas ações dos sujeitos que o historiador
investiga. Além disso, o conhecimento histórico pretende reconhecer o sentido do
acontecimento, pois pressupõe que este é sempre resultado da construção do espírito
humano. (Aron, 1992, p. 21). Em busca desse sentido, a teoria que o historiador utiliza
no cotidiano permite-o elaborar uma unidade que engloba realidades completamente
distintas umas das outras. O trabalho do historiador é, portanto, referente a um sentido e
a um conjunto, mas muitas vezes pouco afeito à teoria, o que lhe importa é a
compreensão do acontecimento em sua singularidade. Frente à realidade desarticulada,
fragmentada e sem inteligibilidade, o historiador elabora um conjunto discursivo
inteligível e integrado. Portanto, uma certa filosofia se encontra implícita em toda
história universal e esta filosofia se projeta sempre sobre os documentos. (Aron, 1992,
p. 23).
Essa filosofia da história referente ao conhecimento histórico é uma área do
conhecimento muito mais útil ao trabalho do historiador do que aquelas “filosofias da
história” de tradição hegeliana. De fato, como afirma Sousa, o termo filosofia da
história se remete a duas tradições: uma que se baseia na crítica do conhecimento
histórico, como historiografia e a outra que resgata a tradição metafísica da concepção
da história. (Sousa, 1982, p. 79). Mas a filosofia pela qual se interessa é aquela cuja
finalidade deve ser a fundamentação teórica do conhecimento histórico. E, portanto, se
essa for a postura e o pressuposto do investigador, não haverá problema algum em ser
chamado de filósofo da história. Outra foi a posição daqueles que se utilizaram do
material histórico para elaborar um discurso filosófico sem referência na vida, pois para
32
eles era importante menos a ação concreta dos sujeitos do que a verdade essencial que
estes comportavam. Empreenderam em última instância um discurso metafísico que
longe de legitimar a disciplina histórica, acabou suprimindo-a em nome das essências
não-reveladas. (Aron, 1992).
De outro modo, uma filosofia da história consciente é aquela que se sabe
histórica e plural. A própria filosofia está assentada num contexto histórico. É uma
experiência vivida e guarda interesses próprios do seu tempo. O pensamento não é algo
exclusivo de um grupo de pessoas responsáveis em dizer a verdade do mundo. A
elaboração teórica é fundamental para a história. Não se pode conformar com a idéia de
que o historiador não é capaz de refletir sobre o conhecimento que produz, pois como
Aron constata: a humanidade não se resigna a não pensar mais. (Aron, 1992, p. 27). A
história sem teoria não é capaz de se constituir como conhecimento. A história, quando
recusa para si o esforço da reflexão, talvez esteja assim deixando de assumir uma de
suas tarefas primordiais.
Marrou
Apesar de não conflitante com a posição de Aron, outra é a proposta de Marrou.
A respeito da teoria da história, Marrou lançava o seguinte questionamento: quais são
os graus de elaboração da verdade na história? Qual é o comportamento da razão em
sua aplicação à história? Essas questões levaram Marrou a uma constatação
constrangedora:
(...) a nossa profissão está cheia de servidões
técnicas; tende com o tempo a desenvolver no
prático uma mentalidade de inseto
especializado. Em vez de o ajudar a reagir
contra essa deformação profissional, o
positivismo dava ao sábio a tranqüilidade de
consciência. (Marrou, 1975, p. 8).
33
O historiador deve conhecer a estrutura do seu conhecimento, pois se assim não o fizer
limitar-se-á a aplicar regras pré-estabelecidas. Ao contrário, o positivismo apegado às
fontes e ao “tecnicismo” não creditava valor algum à reflexão teórica. O esforço dos
historiadores positivistas visava a elaboração científica do conhecimento e isso era feito,
sobretudo, em detrimento da especulação. Para Marrou o positivismo trouxe mais
prejuízo do que contribuições ao trabalho do historiador, reduzindo-o à condição de
“inseto especializado”. Contra essa postura positivista, Marrou profere: que ninguém
entre aqui se não for filósofo! (Marrou, 1975, p. 9). Isto é, o historiador torna-se
também filósofo na medida em que reflete sobre a natureza do seu conhecimento e
ofício. Todo historiador ao elaborar uma pesquisa deve ter em mente três orientações:
uma inquietação metodológica, estar ciente sobre o mecanismo que opera o
conhecimento e fazer um esforço de reflexão. Se assim o fizer, não submeterá seu
trabalho à pura especulação. Ao contrário da filosofia da história - nos moldes de Hegel
- em seu lugar, elaborar-se-ia uma filosofia crítica da história, que estivesse baseada na
história e tivesse como meta a fundamentação do conhecimento. Essa filosofia crítica da
história se preocuparia fundamentalmente em esclarecer, sistematizar e criticar o que se
conhece dos acontecimentos descritos e selecionados. (Sousa, 1982, p. 114).
A filosofia da história hegeliana pretendia chegar à verdade, utilizando a história
como instrumento. O conhecimento histórico a partir dessa concepção era visto como
uma espécie de oráculo. A história revelava a verdade das coisas e o historiador se
portava como um mediador entre os deuses e os homens. Pretendia-se resolver os
conflitos e problemas políticos por meio da consulta à história. Os tempos cada vez
mais confusos só prenunciavam a vinda do caos. Cabia então à história “apaziguar os
corações” frente às mudanças. Em nome disso fundou-se associações de história,
surgiram diversas correntes de pensamento referentes ao conhecimento, produziu-se
34
discursos sobre o passado sem precedentes. Ocorre, porém que a responsabilidade
atribuída à história foi exagerada. Houve uma espécie de “overdose” de história com
“efeitos colaterais”. No fim do século o conhecimento histórico produzido nos moldes
positivistas e idealistas se tornou objeto de ódio. O principal porta-voz dessa postura foi
Nietzsche. Contudo, as críticas nietzschieanas foram admoestadas por correntes que
reformularam as velhas concepções anacrônicas, retrógradas e dogmáticas. Frente às
críticas de homens como Nietzsche, tentava-se salvaguardar a posição privilegiada que a
história ocupou nos circuitos acadêmicos da época, mas ao invés de repensarem o
conhecimento, essas “filosofias” acabaram retroagindo no tempo, colocando a história
numa posição subalterna ao imperativo científico.
Nesse meandro aporta, segundo Marrou, uma das poucas “vozes” lúcidas do
último quarto do século: Dilthey. Em seu trabalho de 1875, Sobre o Estudo da História
das Ciências do Homem, da Sociedade e o Estado, Dilthey se insurge, à exemplo de
Nietzsche, contra o pensamento dogmático. (Dilthey, (1875) 1951). Dilthey toma o
conhecimento histórico de maneira a consertar seus vícios e dar-lhe um status de
disciplina. Kantiano, dedica-se a pensar as condições de realização do conhecimento
histórico, o que muito influenciou os historiadores da época. Sua proposta é de
elaboração teórica da história. Contra Hegel, retomando Kant, Dilthey quer elaborar
uma Crítica da Razão Histórica, uma teoria geral do conhecimento histórico. (Marrou,
1975, p. 16).
Marrou parte do pressuposto que uma filosofia crítica da história está
diretamente vinculada ao processo de fundamentação do conhecimento. Esse argumento
é reforçado por Sousa ao afirmar que, tanto para caracterizar a história como uma
ciência, como para falar de conhecimento de uma explicação histórica científica, há
que partir de uma teoria da história. (Sousa, 1982, p. 10). Essa teoria, a que Marrou
35
chama de filosofia crítica da história, teria seu maior representante em Dilthey. De fato,
antes de Dilthey propor a Crítica da Razão Histórica, as filosofias da história
predominavam tentando fazer corresponder essência e aparência, isto é, submeter as
manifestações históricas ao seu conteúdo ontológico. A crítica diltheyana pretende
fornecer material aos historiadores para que reflitam sobre a natureza epistemológica da
história. Para Marrou, Dilthey teria sido o primeiro a propor uma teoria do
conhecimento histórico e, portanto, exigido dos historiadores um esforço reflexivo que,
ao invés de atribuir à filosofia o papel teórico, coloca nas mãos do historiador o
instrumental necessário para a fundamentação do conhecimento que praticavam.
(Marrou, 1975).
Rüsen
Outro autor importante acerca da discussão teórica em história é Jörn Rüsen. Em
seu livro Razão Histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica
(Rüsen, 2001) ele afirma que todo o trabalho de história está motivado pela questão se a
história é cognitivamente possível. Além desta, a outra questão que se apresenta é: de
quê tipo é o conhecimento histórico? Essas questões só podem ser respondidas numa
análise teórica sistemática. O pressuposto assumido por ele é o de que a questão do
fundamento do conhecimento histórico e, por conseguinte, de sua cientificidade só pode
ser trabalhada numa teoria geral do conhecimento histórico. Para ele, a teoria da história
(...) se volta para os fundamentos da ciência
da história, sempre presentes e pressupostos
quando se faz pesquisa histórica e quando se
escreve história com base em pesquisa; ela
mostra ainda que e como está presente nesses
fundamentos a pretensão de racionalidade
com que o conhecimento científico opera.
(Rüsen, 2001, p. 13).
36
Uma teoria da história pergunta-se sobre a capacidade do conhecimento de se
fundamentar e criticar. Segundo o historiador alemão,
(...) a teoria vai além da práxis e pode, com
isso, basear-se nesta para evidenciar-lhe
cognitivamente os fundamentos que, por
exemplo, sem o resultado teórico ficariam
velados na práxis. O pensamento que se
desenvolve dessa maneira chama-se reflexão.
A teoria da história vai além da práxis dos
historiadores, colocando-a em evidência de
uma forma peculiar: como objeto do
conhecimento. (Rüsen, 2001, p. 26).
Além dessa parte da reflexão mais ampla, Rüsen acredita também que há um
momento de auto-reflexão no trabalho cotidiano dos historiadores. Ao mesmo tempo,
quanto mais o historiador se debruça sobre o mundo, mais elementos ele fornece para o
trabalho da teoria. A teoria é uma elaboração mais ampla do que aquilo que o
historiador faz cotidianamente. A reflexão cotidiana ganha “corpus” na teoria. Mas
Rüsen inova ao dizer que a reflexão sobre os fundamentos do conhecimento não é uma
atividade separada da prática. Quando o historiador no tratamento de suas fontes em um
arquivo se pergunta pelo sentido de sua produção, diretamente faz referência ao
fundamento do conhecimento, permitindo atuar aí a teoria. A teoria da história é, pois,
aquela reflexão mediante a qual o pensamento histórico se constitui como
especialidade científica. (Rüsen, 2001, p. 26). A auto-constituição do conhecimento
histórico se dá no trabalho de reflexão específica que deve nortear o trabalho do
historiador. A abordagem dos fatos só pode ser feita a partir de uma noção prévia
resultante da acumulação de conhecimento de base teórica. A teoria atua como a floresta
que agrega as árvores e não permite que a visão especializada ultrapasse os âmbitos
próprios da competência histórica. A consideração teórica está, portanto, em íntima
37
relação com os princípios da ciência histórica, mas quais são eles? Qual o papel da
teoria na sua relação com a ciência histórica? O que é a totalidade da ciência histórica
posta pela teoria? São essas questões que Rüsen pretende responder.
No princípio de sua elaboração a teoria tinha um caráter enciclopédico que
abrangia todas as especialidades. A teoria era uma espécie de manual que compilava o
resultado das pesquisas e estabelecia as diretrizes do trabalho do historiador. Na medida
em que o material do historiador aumentava, ficava cada vez mais difícil à teoria
abranger todas as formulações, por isso foi preciso uma decantação para se trabalhar
com o que fosse típico do conhecimento. A teoria começa, então, a tomar um caráter
constitucional que remetia aos princípios que surgiam do próprio fazer histórico, a
matriz disciplinar da história.
2
A teoria tem uma localização histórica e surge a partir da
necessidade mesma da pesquisa e não é algo imposto de fora. Ela deve mostrar os
fatores determinantes do conhecimento histórico que o delimitam, os elementos
interdependentes desse conhecimento e a dinamicidade dos seus princípios. Para saber
quais são esses princípios é preciso reconstruir a história desde os seus fundamentos.
(Rüsen, 2001).
O ponto de partida da história é a carência humana de orientação do agir frente
às ações do tempo. É daí que a ciência histórica se constitui como uma resposta
(intelectual) a uma carência (de orientação). Os homens procuram respostas diante da
vida que só podem ser respondidas com a constituição do conhecimento histórico. Para
a teoria isso é importante porque ela expõe o significado e o motivo de se pensar
historicamente. A teoria age, enquanto matriz disciplinar, portanto, na vida das pessoas
quando elas buscam no estudo do passado uma orientação segura. Os interesses
2
Rüsen explica que o termo é tomado de Thomas Kuhn em seu livro A Estrutura das Revoluções
Científicas. P. 29.
38
cotidianos e práticos marcam a forma como o pensamento histórico se inicia sem ainda
ser ciência. (Rüsen, 2001).
Surge então a questão: por que se fazer história depois que as carências
(interesses) são satisfeitas? Faz-se história para que os interesses sejam sistematizados
numa reflexão específica sobre o passado. O passado se torna história. As carências de
orientação dirigidas ao passado requerem critérios de sentido. Esses critérios regulam o
trato reflexivo dos homens sobre seu mundo. Definem o que deve ser interpretado para
orientar as pessoas em suas vidas práticas. De fato, todas as ações estão orientadas por
idéias que são o seu sentido. O agir humano é intencional e determinado por
significados. Essas idéias organizam a interpretação que os homens têm de dar de si-
mesmos. As idéias transformam as carências de orientação em interesses no
conhecimento histórico, organizam as experiências humanas em modelos de
interpretação e influenciam a vida a partir de suas perspectivas gerais orientadoras.
(Rüsen, 2001, p. 31).
Atendido esse critério da relevância do conhecimento, levanta-se outra questão
acerca da viabilidade de se conhecer o passado. As idéias em história devem levar em
conta as experiências concretas do passado. A forma como se reconhece o passado em
sua concretude é o que especifica o conhecimento histórico. O pensamento histórico
depende de interesse e idéias, mas a ciência histórica se caracteriza em sua
especificidade quando dá conta da realidade vivida, resultante da efetivação das idéias.
É nesse processo que entram os métodos que trabalham o passado em seus interesses e
intenções. Os métodos regulam o pensamento histórico e lhe permitem assumir o caráter
de pesquisa, mas o processo de conhecimento histórico não se esgota, mesmo quando as
idéias orientadas por interesses são transformadas em conhecimento empírico. O
conhecimento obtido se exprime na historiografia na qual
39
(...) as fórmulas de apresentação são
fundamentais. [E] com a historiografia o
pensamento histórico usa uma linguagem que
deve ser entendida como resposta a uma
pergunta.: a questão que busca orientação no
tempo. (Rüsen, 2001, p. 34).
Esses elementos constitutivos fundamentais do conhecimento histórico são
interdependentes e, portanto, formam um sistema dinâmico. Um círculo virtuoso. A
articulação deles especifica o conhecimento histórico. Além disso, esclarecem o
contexto onde se dá a relação da ciência com a vida prática e, fazem com que a história
contribua para mudança no cotidiano. Rüsen quer mostrar, com isso, que a teoria da
história é fundamental para a constituição da disciplina histórica, bem como que a
ciência histórica está baseada na realidade. Essa base mostra, por sua vez, a
dinamicidade do conhecimento e, por conseguinte, da sua matriz disciplinar, isto é, da
teoria.
O que se pode concluir a partir dessa discussão é que, seja de um lado ou de
outro, os autores dão grande crédito à reflexão teórica. Uns enfatizam a historicidade da
teoria que se remete aos primórdios do trabalho em história. Outros postulam que só se
pode falar em teoria da história quando há um esforço deliberado para fundamentação
desse conhecimento. Avaliando a posição, principalmente, do segundo grupo, pode-se
inferir também, que se o historiador se abandonar ao mero exclusivismo da descrição
factual, deixará em mãos alheias a responsabilidade de definição do fundamento (ou da
falta de) do seu conhecimento. Pode-se inferir, contudo, que
(...) o historiador não poderá falar de história
e proceder à investigação e explicação
históricas sem a existência de uma teoria geral
de orientação histórica que dirija seu
pensamento e ação de especialista. (Sousa,
1982, p. 50)
40
Mesmo que o historiador se recuse ao trabalho de reflexão especializada, ele não poderá
dissociar seu trabalho cotidiano da teoria, pois a prática historiográfica é, sobretudo,
teórica. Para se chegar a essa conclusão de que história e teoria estão imbricadas, um
longo percurso foi traçado e na base desse pensamento está, segundo Marrou, Dilthey.
Dilthey teria sido o primeiro a enfrentar o problema teórico da história, enfatizando as
particularidades desse conhecimento frente às imposições epistemológicas das ciências
naturais. Dilthey é o grande teórico da vida. (Ortega y Gasset, 1958; Zubiri, 1963, p.
255). Contudo, em meio ao predomínio do positivismo nos circuitos historiográficos,
Dilthey tornou-se um “cavaleiro da triste figura”, um “velho hermético e misterioso”
que recusava o sistema importado das ciências naturais. Devido a esse enfrentamento,
Dilthey permaneceu em toda sua vida num discreto anonimato. Mesmo que seja
precipitado dizer que a reflexão teórica em história tenha se iniciado com Dilthey,
atualmente, é possível encontrar citações cada vez mais recorrentes e um
reconhecimento da historiografia da importância desse autor para a história. Dilthey não
foi o único a discutir as questões referentes ao conhecimento, mas talvez seja um dos
mais incompreendidos autores de sua época. É justamente a vivacidade de seu
pensamento e a relevância de sua obra teórica que pretendemos analisar.
Parte 1.2 - A situação da teoria da história no início do século XIX
História da teoria da história: o contexto de Dilthey
A história era, até o século XVI, uma disciplina auxiliar das sete artes liberais
(gramática, retórica, dialética, aritmética, geometria, música e astronomia). Tais
disciplinas foram assim agrupadas segundo os critérios da escolástica, que foram sendo
superados com o surgimento da modernidade. No século XVII, a física social refutou os
métodos científicos medievais, colocando em voga a necessidade do experimento e da
41
comprovação como critério de objetividade. O homem passa a ser considerado como
uma máquina e os estudos voltados para “as coisas humanas” deveriam levar em conta
esse pressuposto. Já no século XVIII, os teóricos da física social passaram a seguir os
princípios da causalidade e das leis empíricas das ciências naturais. Saint-Simon
tentava, por exemplo, aplicar as leis de Newton para interpretar os fenômenos sociais,
bem como Fourier e Berkeley. A matemática, nas suas mais diversas nuanças, era
considerada a ciência por excelência. Vivia-se a época do pan-matematicismo. O
precursor da elaboração dessa crítica para as ciências da natureza foi Francis Bacon,
seguido por Leibniz, Pascal e Descartes. Apesar da valorização dos experimentos e das
pesquisas empíricas, o pensamento matemático desse período tinha na metafísica uma
grande aliada. Forma-se o que Dilthey chama de “metafísica naturalista”. Na
modernidade, a metafísica que se desprendia paulatinamente da teologia, alia-se à
filosofia e às ciências naturais. (Collingwood, 1986; Sousa, 1982; Reis, 2003).
Não se colocava em pauta a questão do conhecimento histórico. O trabalho
essencial da história à época era recordar e registrar o passado em seus verdadeiros
fatos, tal como eles aconteceram. (Collingwood, 1986, p. 79). Na concepção de Bacon,
por exemplo,
(...) via-se que a história tinha um programa
definido a redescoberta do passado mas
não tinha métodos ou princípio que tornassem
possível a execução desse programa.
(Collingwood, 1986, p. 80).
Mesmo os que se interessavam pelos estudos históricos não sistematizavam uma teoria
que pudesse ser um auxílio às suas pesquisas. A história era vista mais como objeto de
entretenimento do que propriamente um saber elaborado. Muitas vezes era julgada
como se fosse um saber antiquário e de colecionadores ociosos. A história havia
42
carregado desde Aristóteles a marca do estudo das singularidades e, por isso, até o
surgimento da filosofia da história, seus princípios eram eminentemente fatalistas.
Descartes dizia que a história não podia reivindicar a verdade, pois nunca alcança os
fatos tal como ocorreram. O mesmo Descartes que pretendeu criar um novo programa
para a filosofia, não o estendeu para a história, pois não acreditava ser essa, um ramo do
saber. (Collingwood, 1986, p. 82 ss.). Por seu aspecto desagregador, a história
representava um empecilho à ordem que a razão tentava imprimir ao mundo e a
desorganização frente a integração da natureza. A verdade como meta do conhecimento
não poderia ser conhecida pela história. Não poderia atingir o universal e não tinha
apreço filosófico adequado. Numa época de predomínio do discurso racional que visava
a resolução das contradições do mundo, a história era vista mais como um estorvo do
que um instrumento do conhecimento da verdade. (Reis, 2003)
O pouco de credibilidade que a história poderia solicitar seria sob a tutela da
metafísica. Só assim poderia se tornar um saber, no mínimo, mais interessante. Assim, a
história é submetida à Razão para ganhar inteligibilidade. As catástrofes que se
seguiram ao “desencantamento do mundo”, ocorrido após o ocaso da Idade Média, só
puderam ser resolvidas com um “reencantamento” operado pela Razão na modernidade.
A disciplina responsável por organizar e reencantar” o mundo foi a filosofia da história
e seu maior representante foi Hegel. (Reis, 2003).
Hegel
Hegel via na história a “marcha do espírito em busca da liberdade”. Quando se
busca a inteligibilidade da ação dos indivíduos na história o que se quer alcançar é o
universal que ela representa. O indivíduo é a expressão não só de si-mesmo, mas,
sobretudo, do “Espírito Universal”. O convívio entre os sujeitos só se realiza se for
43
possível a cada um ativar dentro de si o conteúdo universal do Espírito. O Espírito
precisa se realizar por meio da história que é sua expressão e quanto mais se
desenvolve, mais integrado se torna. O Espírito age na história de maneira negativa, isto
é, ele se dá à história negando a si-mesmo, saindo de sua condição de potência. Mas
como precisa se desenvolver, nega suas fases primitivas integrando-as numas mais
desenvolvidas. Esse processo de negação e integração é o que Hegel chama de
movimento dialético da história. (Hegel, 2001).
O que Hegel pretende com sua teoria é demonstrar
(...) que todo o desenvolvimento da
humanidade, através dos tempos, significaria
a passagem do estudo selvagem de liberdade
espontânea do homem para a sua submissão
às regras da sociedade e ao poder do Estado,
com o fim de atingir, como ‘plano da
Providência’, o Ideal supremo o
reconhecimento de Deus. (Sousa, 1982, p. 99).
Há uma conseqüência importante desses estudos hegelianos para a
historiografia: a história começa a ganhar atenção nos circuitos acadêmicos da
Alemanha. Mesmo que para imprimir-lhe uma lógica universal e submetendo-a a um
plano superior (metafísico), a história torna-se para Hegel uma disciplina privilegiada
que designa a expressão própria do desenvolvimento do Espírito. Ela é o próprio
recurso do Espírito para se integrar. Pode-se dizer que a história do mundo é a
exposição do espírito em luta para chegar ao conhecimento de sua própria natureza
.
(Hegel, 2001, p. 64). O Espírito em sua natureza primordial é ainda em-si. O Espírito
em-si é ainda carente de realidade, é o universal, o imanente. Sua segunda fase se inicia
quando se satisfaz, no seu contraste. Quando se dá à história. A história não é uma
realidade fora do Espírito, ela é o próprio Espírito em desenvolvimento. A negatividade
44
da história é parte componente da sua marcha. Para Hegel, portanto, não existe acidente
na história, pois ele é a própria ação racional do Espírito. A Razão é o agente subjetivo,
os desejos humanos, a subjetividade em geral, o conhecimento, a vontade no ser
humano e, por isso, os sujeitos devem buscar a consciência desse Espírito que nele atua,
para isso é fundamental a paixão. A história só é verdadeira quando motivada por uma
grande paixão histórica mundial, isto é, pela própria Razão. (Hegel, 2001).
Hegel imprime um funcionamento lógico à história. Para Dilthey, Hegel
ofereceu o método: a dialética (o que ele chama de método comparado); e o objeto da
história: o Estado que engloba todas as manifestações de uma época e seu posterior
discurso. O objeto dos historiadores que se seguiram a Hegel foi a “consciência total”
que o Estado agrega. A partir do caminho indicado por Hegel desenvolveram-se os
métodos que visavam as verdades gerais das épocas históricas. Dilthey considerava, no
entanto, que apesar da contribuição hegeliana aos estudos históricos, os prejuízos foram
enormes. Ele fez um discurso metafísico da história e ao invés de dar-lhe independência
limitou o trabalho do historiador. Mas seu discurso pareceu tão convincente que acabou
por influenciar uma série de historiadores e filósofos. Não só Hegel, mas toda a
historiografia da Ilustração colaborou para o fim do puro colecionamento e da
compilação em história. Além disso, a história deixou de ser um mero registro de fatos
para se tornar uma perspectiva da civilização européia. A filosofia toma o lugar que
antes era ocupado pela teologia, e por isso, ao seu método, foram acrescidos princípios
críticos e sociológicos. A separação da teologia obrigou a história a enfrentar novos
problemas e para tanto a especulação filosófica ganha um grande espaço,
principalmente com a “filosofia da história” de Hegel. A história serviria de base para
legitimar o progresso universal da razão iluminista. (Dilthey, (1883) 1949).
45
Daí que, como a teologia da história ou depois
a filosofia espiritualista da história de Hegel
consideravam apenas conhecidas ou reveladas
pela Providência essas causas, assim a
filosofia da história iluminista ou racionalista,
como ´nova história crítica´, em relação à
filosofia da Natureza, atribuía toda a
transformação e mudança da humanidade às
leis gerais e necessárias do Universo, de
harmonia com as novas descobertas científicas
de Galileu e de Newton. (Sousa, 1982, p. 67).
A reação da Alemanha à Expansão Francesa: a Escola Histórica Alemã
O imperativo da Razão, contudo, e seu projeto de liberdade acabaram causando
efeitos adversos. A Revolução Francesa que concretizava os desejos iluministas colocou
a filosofia contra a história.
A revolução aguçou as possibilidades
imaginativas do intelectualismo do século XIX
e Napoleão sacudiu a sonolência de muitos
povos europeus, imprimindo-lhes pelos olhos a
história universal. (Imaz, 1946, p. 17).
A revolução golpeou o passado, pois este representava o que era opressor e retrógrado.
Mesmo que Hegel tenha trazido a história à ordem do dia, ela era uma disciplina
instrumental, isto é, só servia ao conhecimento na medida em que compreendia o
processo de expressão do Espírito. A história praticada pelos historiadores representava
as nebulosidades do passado que deveriam ser extirpadas do mundo. A França e sua
revolução concretizavam o projeto de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, mas isso
em desfavor da história e, por isso, a reação dos historiadores não tardou. Uma geração
inteira de pensadores, principalmente alemães - não necessariamente historiadores
tomou o pensamento histórico contra a filosofia. (Kappler, 1997, p. 115).
Fatos importantes contribuíram para essa reação alemã: a fundação da
universidade de Berlim em 1810 por Wilhelm von Humboldt que reuniu intelectuais
46
das mais diversas áreas para organizar um discurso de legitimidade para a unificação do
vacilante Estado prussiano, pois a Revolução Francesa era vista com desconfiança e
representante da maior sorte de incertezas e violências. (Kappler, 1997, p. 478). O
receio em relação à Revolução aumentou quando as tropas francesas começaram a
avançar sobre a margem esquerda do rio Reno. A partir de 1803, Napoleão começou sua
investida contra os principados alemães, dominando rapidamente 112 pequenos estados
germânicos, formando em 1806 a Confederação do Reno que provocou a desarticulação
do Sacro Império Romano Germânico com a abdicação do imperador Francisco II. Os
alemães sentiam concretamente os efeitos do expansionismo francês. E se de início
havia alguma simpatia pelo processo revolucionário, essa deu lugar a um grande temor.
(Gooch, 1958).
Por seu turno, os intelectuais de Berlim e de outras universidades começaram a
se mobilizar para impedirem o avanço das tropas de Napoleão sobre seu território.
Alguns deles foram inclusive para as fileiras do exército de resistência, mas outros
tantos preferiram o combate por meio das idéias. Desperta-se um verdadeiro furor
patriótico nas universidades. Contra o projeto iluminista de destruição do passado, esses
professores alemães lançaram mão daquilo que consideravam a maior fonte de
legitimidade de sua nação ainda em formação: a história.
Niebuhr, Wolf, Böeckh e Müller
Niebuhr foi um dos primeiros a utilizar a história como instrumento de reação
contra o pensamento francês. Em suas pesquisas sobre Roma queria, sobretudo,
apreender as forças articuladoras de sua nação que remetiam aos tempos mais remotos.
Se, por um lado, sua “pesquisa patriótica” serviu para mobilizar os estudos em história
na Alemanha, de outro, acabou construindo um método crítico para lidar com a massa
47
documental que tinha à mão. A história é uma disciplina que se baseia nas fontes. O
conhecimento para ser bem sucedido deve tratar criticamente as fontes. Mesmo que as
fontes não possam revelar toda a verdade do passado, deve-se assumir uma postura
crítica diante delas para que os estudos históricos tenham maior legitimidade. (Gooch,
1958).
Niebuhr influenciou uma série de pensadores nesse período. Seguiu-se a ele F.
A. Wolf, August Böeckh e Otfried Müller que se dedicaram aos estudos sobre a Grécia.
Wolf estudava literatura e filologia clássica e sua maior intenção era elevar o
conhecimento da antiguidade à dignidade de ciência filosófico-histórica. (Gooch, 1958,
p. 34). Afirmava que deve-se evitar a mera acumulação de detalhes do mundo antigo,
sem ter uma idéia do espírito que os articula em um todo. (Gooch, 1958, p. 34). Os
documentos não deveriam ser meramente compilados, o estudioso tem que ser capaz de
criticar suas fontes. Tinha essa convicção tão clara para si-mesmo que ao considerar as
obras de Homero, lançou dúvidas sobre sua existência, uma vez que os estilos literários
utilizados na Ilíada e na Odisséia eram múltiplos e distintos. Todos os estudiosos de
Homero que se seguiram a ele, levaram em conta sua argumentação.
August Böeckh foi seu sucessor, porém dedicou-se aos estudos sobre a
economia grega. Afirmava que a prosperidade das polis gregas era resultado da eficaz
atuação do Estado. Esse argumento era muito difundido no início do século XIX, pois
os problemas enfrentados nessa época só poderiam ser resolvidos com a unificação dos
estados alemães, na configuração de um governo forte. A exemplo de Wolf, seu ponto
de vista era histórico, não estético; seu único fim, obter uma reconstrução objetiva de
um mundo desaparecido. (Gooch, 1958, p. 39). Para ele, o que importava era chegar a
um estudo rigoroso que esclarecesse o processo de desenvolvimento do mundo clássico.
48
Passava grande parte do seu tempo analisando os registros sobre economia da Grécia e
isso lhe conferiu um prestígio semelhante ao de Ranke.
O maior discípulo de Böeckh foi Otfried Müller. Müller era uma mente original
e criadora, fascinada pelos problemas especulativos e que gozava com as
generalizações audazes.
(Gooch, 1958, p. 43). Preocupou-se diretamente com a questão
metodológica dos estudos mitológicos para combater os que não acreditavam na
cientificidade dos estudos históricos. Para ele, o mito era a mais antiga poesia de um
povo, a criação de uma alma popular, a forma original de sua reflexão e sua
observação. (Gooch, 1958, p. 45). Não se contentou em estudar os gregos por meio dos
livros, sentiu-se na obrigação de ir à Grécia para tentar apreender de maneira mais
fidedigna a vida daqueles homens que ali viveram, mas ele acabou falecendo em meio
aos seus estudos, deixando inconclusas várias de suas pesquisas.
Savigny, Grimm e Stein
Além desses trabalhos sobre o mundo antigo, outros homens dessa época, em
outros campos do conhecimento, assumiram essa perspectiva histórica. Nas escolas de
direito, por exemplo, valorizava-se a história para esclarecer os conceitos próprios dessa
disciplina. Dizia-se o direito de um povo só pode ser compreendido por meio de sua
vida nacional. O direito natural deveria ceder lugar ao direito histórico. No campo da
jurisprudência o maior representante foi Savigny. Professor em Berlim, também
partilhava do entusiasmo patriótico da época da Guerra de Libertação. Por conta disso,
dizia
(...) a história é uma nobre instrutora e só
através dela pode manter-se vivo o contato
com a vida primitiva do povo. A perda desta
conexão despojaria o país da melhor parte de
sua vida espiritual. (Gooch, 1958, p. 57).
49
A história era o ponto de legitimidade dos seus estudos no campo do direito. A questão
não era submeter o direito alemão ao romano, mas mostrar a conexão desse presente
com o passado, onde ele ganha legitimidade.
Um outro jurista de grande notoriedade nessa época foi Jakob Grimm. Ele reunia
as qualidades criativas dos românticos e o pensamento sistemático dos historiadores,
filólogos e eruditos. Afirmava que os românticos ensinaram aos historiadores que esses
deveriam reconstruir a vida e os fatos dos povos. (Gooch, 1958, p. 63). Apesar de sua
formação jurídica, dedicou-se junto com seu irmão aos estudos sobre contos de fadas e
da poesia popular. Sua maior motivação, dizia, era a força que sua pátria lhe imprimia
por meio da sensibilidade de homens como Goethe e Schiller. Gooch afirma que
(...) mesmo que não tenha sido um historiador,
ofereceu aos historiadores a chave’ de
grandes setores da vida e o pensamento da
Alemanha medieval. (Gooch, 1958, p. 70).
O discurso histórico-nacionalista tentava ensinar ao povo alemão o amor e o
apreço a sua pátria. Era em vista de mobilizar os “jovens corações” que compunham as
fileiras do exército de libertação que a história era ensinada. Em 1814, Savigny propõe a
Grimm a formação de uma sociedade para se estudar a história da Alemanha e editar
todas as fontes referentes a esse assunto. O plano era fundar sociedades históricas em
todos os estados alemães, mas que também abarcasse a Áustria, a Suíça e os Países
Baixos. Era um projeto pretensioso e dado à sua magnitude, acabou não se efetivando,
pois, além do mais, a ajuda esperada do governo também não foi obtida. (Gooch, 1958).
Quando finalmente os exércitos napoleônicos foram expulsos da Alemanha, Karl
Reichs Freiher vom und zum Stein - um importante líder da resistência alemã decidiu
se retirar da vida pública para se dedicar ao estudo sistemático da história. Stein que
50
solicitou auxílio ao governo para levar a cabo uma rigorosa crítica das fontes não
conseguiu patrocínio ou mesmo atenção de nenhum dos principados. Não obstante, no
início de 1819 fundou em Frankfurt a “Sociedade para o Estudo da História da
Alemanha Antiga” que tinha um periódico para publicar as discussões e trabalhos da
sociedade. Propunha-se a escrita de uma História Monumental da Alemanha. A
primeira publicação teve a colaboração de Eichhorn, Schlosser, Wilken, Dahlmann,
Raumer, Heeren, Niebuhr, Humboldt, Jakob Grimm e Goethe. No entanto, Stein não
poderia contar com muitos outros. Os românticos pouco se dedicavam à história e os
historiadores encontravam-se demasiado ocupados. Stein teve ao seu lado um grupo
restrito de discípulos, entre eles estavam Pertz e Böhmer. (Gooch, 1958).
Ranke
Por essa época circulava nesse meio um jovem estudante de teologia e filologia
que iria figurar como o maior historiador de sua época: Leopold von Ranke. Diferente
de seus predecessores, não se interessou pela história devido aos acontecimentos
conseqüentes da “Guerra de Libertação”. Quando era professor de filologia em
Frankfurt viu-se cada vez mais próximo da história para que esta lhe auxiliasse em seus
estudos. Seu primeiro livro de história foi acusado de pouco apreço religioso e
filosófico. A essa acusação respondeu que foi exatamente a possibilidade de se fazer
uma pesquisa sem “contaminação” dos seus pensamentos contemporâneos que o levou à
história. Ao mesmo tempo, dizia que o labor na história era uma forma de manter
contato com Deus em suas manifestações. Valorizava os homens de ação. Considerava a
história como uma lição objetiva de religião e ética. Acreditava que o trabalho da
história era tão somente mostrar o que ocorreu.
51
Para Dilthey, ele foi o historiador que Goethe não pôde ser. Com a mesma
magnitude que a arte de Goethe fala do mundo, Ranke explica a história. Seu intuito era
compreender o que efetivamente se passou. Toma emprestado de Niebuhr o método
crítico para dar vida aos arquivos e à literatura. Contudo, não se preocupava com a
conexão espiritual dos fatos. Ao invés de integrar os acontecimentos e dissipar suas
diferenças, Ranke queria enfatizar a singularidade do que ocorreu. No lugar da história
especulativa de Hegel, propunha a correta compreensão da vida. Para ele, os conceitos
hegelianos eram demasiado abstratos e sem vida, por isso rompe com a filosofia
especulativa de Hegel. (Dilthey, (1910) 1978). Ranke tinha um veio poético que o
impulsionava a buscar o mundo de maneira intensa. Combina uma consciência poética
com a história. Acreditava, no entanto, que a história devia ser abarcada em sua
totalidade. Seu horizonte ainda é o da história universal; o que o faz vincular-se à
tradição anterior. Mas seu trabalho era, sobretudo, anti-especulativo. (Dilthey, (1910)
1978).
Em Ranke, a história foi tomada no seu mais alto nível contra a filosofia. A
consciência histórica era o oposto da marcha do Espírito. O homem consciente de sua
historicidade é a condição das pesquisas feitas no século XIX. Hegel havia reduzido o
mundo histórico a uma conexão ideal. Contra Hegel e o projeto iluminista, os
historiadores começam então a questionar a possibilidade de objetividade do
conhecimento histórico. Para Dilthey, em Ranke e com a Escola Histórica a questão não
foi explicitada, ao invés de questionarem as bases do trabalho que realizavam,
contentavam-se somente em produzir. Os historiadores do primeiro quarto de século
acreditavam que elevar o conhecimento histórico à condição de ciência era garantir o
rigor do método crítico das fontes. Para Dilthey, essa foi a grande limitação desses
historiadores, faltava-lhes uma discussão conceitual. De fato,
52
(...) esta situação necessitava, portanto, de
esclarecimento filosófico e foi exatamente, o
que sucedeu com a intervenção epistemológica
e empírica ‘não metafísica’ de Dilthey, uma
vez que ele distinguiu as ‘ciências do espírito’,
como a história, das ciências naturais, porque
dizia o conhecimento nas primeiras
baseia-se na Verstehen (entendimento,
compreensão) das expressões humanas de
qualquer espécie, externas e objetivas, e não
como nas ciências naturais, na explicação
causal. (Sousa, 1982, p. 72).
Pois se a pesquisa histórica era realizada de forma cada vez mais sistemática, por outro
lado, o problema epistemológico da história não era colocado em pauta. Dilthey chegou
à conclusão de que a pesquisa histórica realizada dessa forma carecia de maior
legitimidade. A grande tarefa estava ainda por ser feita. (Dilthey, 1978; Reis, 1999).
Parte 1.3 - Dilthey e a teoria da história
Wilhelm Dilthey escreveu em 1903 o seguinte comentário sobre a época em que
estudou em Berlim:
Quando cheguei a Berlim por volta de 1850,
encontrava-se no auge o grande movimento
que realizou definitivamente a ciência
histórica e, por meio dela, as ciências do
espírito. (Dilthey, (1883) 1949, p. XV).
O trecho reproduzido acima compõe o discurso em ocasião do seu aniversário de 70
anos. Ao rememorar sua vida de juventude, um sentimento nostálgico o preenche,
principalmente quando se refere aos protagonistas desse episódio que colaboraram para
a profissionalização dos estudos históricos. Dizia que foram Jakob Grimm, Ranke,
Fichte, Hegel, Trendelenburg, Ritter, Humboldt, Savigny, Bopp, os responsáveis pela
53
constituição do conhecimento histórico e do seu espírito. O que mais o impressionava
era a paixão com que esses homens se entregavam às pesquisas com o deliberado intuito
de dar credibilidade aos seus trabalhos. Dava testemunho de que a constituição da
ciência histórica partiu dos alemães (...) [E com um entusiasmo ainda maior dizia] e me
coube a sorte inestimável de viver e estudar em Berlim por essa época. (Dilthey, (1883)
1949, p. XV). Ao mesmo tempo em que Dilthey faz questão de enumerar os
responsáveis pela fundação do conhecimento histórico moderno, de outro modo,
perguntava-se por que foi na Alemanha que esse empreendimento teve lugar. Quais as
condições que este país oferecia à época para realizar tal obra? Por que não foi em
outro país que a ciência histórica moderna encontrou sítio?
Segundo Dilthey o motivo que explica este fato é a constituição de uma
consciência histórica entre os alemães. De fato,
(...)Melanchton nos primórdios da
modernidade e Leibniz no meio da Ilustração,
mantiveram ou procuraram manter a unidade
dos elementos que no resto da Europa se
desagregavam. Esta integridade da
consciência histórica alemã a coloca em
condições favoráveis para reviver os
desgarramentos e para tentar as conciliações.
(Imaz, 1946, p. 120).
Porém, como alerta Gadamer, a consciência histórica não foi criação exclusiva dos
alemães, mas foi em território germânico que ela encontrou maior sistematicidade.
(Gadamer, 1998). De fato, foi com Dilthey que a consciência histórica ganhou um
sistema. Essa consciência oferece um saber acerca do homem, mas sem cair em um
individualismo esgotante; salva o indivíduo, mas injetando-lhe na comunidade, é dizer,
na história. (Cério, 1957, p. 408). Dilthey se questionava: quais são as condições de
atuação dessa consciência frente à realidade? Em que medida a consciência da
54
historicidade dos fatos garante ao investigador o fundamento do seu conhecimento?
Como conciliar a realidade marcada pela historicidade com a necessidade de
objetividade própria de todo conhecimento plausível? Onde estão os meios para
superar essa anarquia de convicções que nos ameaça com sua irrupção? (Dilthey,
(1883) 1949, p. XVII). Dilthey afirmava que esse era o problema de sua vida. E ao final
de sua carreira chegou à seguinte conclusão:
(...) durante toda a minha vida trabalhei na
solução de uma série de problemas que se
juntam a este. Vejo a meta. Encontro-me na
metade do caminho, espero que meus jovens
companheiros de jornada, meus discípulos,
cheguem até o fim. (Dilthey, (1903) 1949, p.
XVII)
Se Dilthey não foi capaz de alcançar a solução para esse problema, pelo menos,
em sua época, segundo Michael Löwy, foi o que melhor o formulou. (Löwy, 1985). Viu
a meta, mas não a alcançou. Ao invés de lançar uma resposta apressada e sem
fundamento para a questão, preferiu deixar o caminho a ser percorrido por seus
discípulos. Preferia a fama de um intelectual limitado do que a de um incoerente
(Ortega y Gasset, 1958). Contudo, pode-se dizer que, se a solução não foi por ele
encontrada, pelo menos uma estratégia de resposta ele montou. E essa estratégia foi
formulada ao longo de sua obra, por meio de uma teoria, uma epistemologia do
conhecimento da história.
A profissionalização dos estudos históricos no século XIX surge como uma
reação à especulação filosófico-idealista do século XVIII. Além da Escola Histórica
Alemã, o historicismo epistemológico alemão tem um papel central na formulação de
teorias sistemáticas sobre a história e o seu maior teórico nessa época foi, segundo
Sousa, Dilthey.
55
Não resta dúvida que a primeira reação
notável e sistemática contra tal visão
universal, espiritualista ou especulativa da
história se deve ao neokantiano Dilthey, com a
publicação de sua famosa obra Introdução às
Ciências do Espírito, em 1883. (Sousa, 1982,
p. 104).
Dilthey foi, de fato, um dos primeiros a levantar o problema da viabilidade
epistemológica do conhecimento histórico. Até a sua época, a história era vista como
um saber limitado, pois o seu objeto (vida histórica) era visto como algo que
desagregava a natureza das coisas. Sob esse ponto de vista, da natureza surgiria o único
conhecimento plausível, pois ela tem uma regularidade e uma exterioridade; enquanto a
história a corrompe. Dilthey ia de encontro a essa posição predominante. Se o
conhecimento da natureza era o ofício científico por excelência, Dilthey acreditava de
outro modo, que os estudos históricos poderiam alcançar o estatuto de ciência sem que,
para isso, tivessem que se submeter aos padrões teórico-metodológicos das ciências
naturais. Para mostrar, portanto, a especificidade e autonomia do conhecimento
histórico era preciso elaborar sua teoria. Seu projeto era ambicioso. Dilthey
complementa e sistematiza todas as idéias discutidas pelos historiadores que o
antecederam. Como nos lembra Rickman
(...) Dilthey está fazendo muito mais do que
justificar as visões de uma escola particular de
historiadores. Ele está se dirigindo para
problemas que surgiram das preocupações
amplamente partilhadas pelos historiadores.
(Rickman, 1988, p. 24).
Sabia da dificuldade de encontrar a solução para as questões que se impunham a tal
tarefa, mas decidiu enfrentá-las, mesmo correndo o risco de não encontrar uma resposta
satisfatória.
56
Mas se a teoria epistemológica da história surge no século XIX, por outro lado,
ela tem raízes fortes a partir de Kant. De fato, como confirma Collingwood,
A revolução copernicana de Kant continha
implicitamente uma teoria acerca da
possibilidade do conhecimento histórico, não
apenas sem o historiador abandonar o ponto
de vista da sua época, mas exatamente porque
ele não abandona esse ponto de vista.
(Collingwood, 1986, p. 82).
Kant desloca o foco do conhecimento do objeto para o sujeito. A atuação do
investigador sobre objeto não só acontece, como é fundamental para a efetivação do
sentido. Metodologicamente essa é uma mudança importante no campo da ciência, pois
a relação sujeito-objeto ganha outro sentido com Kant e é justamente essa, a grande
importância para os estudos ulteriores em teoria da história. Deve-se esclarecer, no
entanto, que Kant quando construía sua “revolução copernicana” não tinha em vista o
conhecimento histórico, mas sim a física (Collingwood, 1986).
A contribuição de Kant deu a Dilthey a intuição. Possibilitou a este formular as
questões kantianas, aplicando-as à história. Pois quando Dilthey se pôs a analisar os
trabalhos dos historiadores anteriores, percebeu que não tinham como preocupação um
programa epistemológico que visasse a elaboração de uma teoria do conhecimento
histórico. Esses historiadores que o precederam se limitaram em garantir a correta
explicação da realidade a fim de instruir os homens do presente. Dilthey buscava a
correta compreensão da realidade não só pela perspectiva metodológica, mas,
sobretudo, por meio de uma teoria da história, pois antes de qualquer coisa, os
historiadores deveriam se questionar sobre a viabilidade de sua disciplina. O método de
Dilthey é estritamente o histórico e, como tal, está sempre acompanhado por um outro
dito sistemático. No prefácio da Introdução... afirma
57
(...) o livro cuja primeira metade publico
agora enlaça um método histórico com outro
sistemático para tratar de resolver a questão
dos fundamentos filosóficos das ciências do
espírito com o maior grau possível de certeza.
(Dilthey, (1883) 1949, p. 3)
A teoria que ele propunha elaborar pretendia ir além da mera especulação filosófica
para assentar as bases do conhecimento. Não via nenhum problema da aproximação da
história com a filosofia, mas sabia que a especulação abstrata não seria a garantia para a
compreensão da vida.
A união entre a filosofia e a história foi sempre uma marca presente no trabalho
de Dilthey. Dilthey afirmava, quando jovem, que sua missão era encontrar um fio entre
história da cultura e a filosofia. (zwischen Kulturgeschichte und Philosophie ein Band
zu finden). (Apud: Cério, 1959, p. 208). Sem antes produzir muitos trabalhos sobre a
história, Dilthey se agarra ao problema do conhecimento, não como filósofo, mas,
sobretudo, como historiador. Dizia não valerá a pena ser um historiador se isso não for,
igualmente, um caminho para compreender o mundo.
(Apud: Plantinga, 1980, p. 11).
Dilthey assume numa carta para o pai que a união da história com a filosofia é o ponto
central de sua vida e de seus estudos. (Plantinga, 1980, p. 11). Mas ele mesmo esclarece
que chegou à filosofia a partir da história. E devido a esse caminho por ele traçado, o
seu trabalho filosófico pode ser caracterizado como uma epistemologia do
conhecimento histórico. Dilthey abre uma nova via de trabalho no campo da teoria do
conhecimento, dizendo que ele não era um intelectual preocupado em discernir uma
metodologia e teoria das ciências naturais.
Em sua construção teórica, por um lado, ele
sonha com ciência rigorosa, lógica e com
método empírico; por outro lado, ele é nutrido
de literatura, poesia, música e religião e se
58
recusa a transpor os procedimentos físicos às
ciências humanas. (Reis, 2003, p. 31)
O seu problema era a vida humana em sua historicidade e, por isso, teve que criar um
caminho próprio para trabalhar nesse campo, pois, até então, a história não era
reconhecida como ciência. O trabalho teórico e histórico em Dilthey é uma coisa só,
pois para ele, era impossível conhecer a vida humana sem lançar mão de uma idéia
norteadora. Para ele,
(...) a teoria do conhecimento nasceu da
necessidade de assegurar-se no oceano das
flutuações metafísicas, um pedaço de terra
firme, um conhecimento universalmente válido
de alguma amplitude. (Dilthey, (1894) 1951,
p. 199).
Em relação ao conteúdo historiográfico, ele não se diferenciou substancialmente
dos historiadores de sua época. Seus estudos se voltaram para a história da Alemanha,
seus grandes estadistas, homens importantes e grandes poetas. O que o particulariza é
essa preocupação epistemológica. Desde jovem acreditava poder chegar às bases de um
conhecimento cientificamente fundamentado sobre a história. O jovem Dilthey era, pois,
otimista e confiante sobre a possibilidade do conhecimento histórico
(Plantinga, 1980,
p. 14). Para Dilthey, o conhecimento histórico é motivado por uma perspectiva bastante
ampla, isto é, o historiador pretende conhecer, de certa forma, o segredo da vida, mas
sabe que o seu objeto nunca permitirá alcançar esse objetivo, por isso, o historiador
deve se contentar com o que ele pode compreender: a vida histórica.
Para Dilthey, a discussão epistemológica da história deveria ser o ponto de
partida de qualquer trabalho historiográfico. Ecoava em Dilthey ainda os ventos
positivistas. A exigência de um fundamento seguro para a compreensão da vida foi uma
59
marca peculiar do seu trabalho. Contudo, se o positivismo o inspirou, esta teoria não foi
capaz de resolver seus problemas de ordem epistemológica. Dilthey escolheu o caminho
mais tortuoso e menos seguro. Poderia ter se contentado (como os homens de sua
época) em produzir obras de história que o aproximaria da vida, mas tinha a convicção
de que, no campo do conhecimento das ciências humanas, uma tarefa essencial deveria
ainda ser cumprida: a criação de uma metodologia capaz de nos dar a vida em sua
integridade. Dilthey dizia
(...) a história nos faz livres ao elevar-nos
sobre a condicionalidade do ponto de vista
significativo surgido em nosso curso de vida.
Mas, ao mesmo tempo, seu significado é mais
inseguro. A reflexão sobre a vida nos faz
profundos, a história livres. (Dilthey (1910),
1978, p. 277)
A limitação de todas as teorias especulativas anteriores é que não se colocaram a
questão do conhecimento histórico, bem como a tarefa gnosiológica que dela resultava.
No máximo trataram especulativamente a vida histórica, mas eram céticos em relação à
idéia de constituição de um sistema de conhecimento próprio para a historiografia. Tais
teorias partiam de idéias pré-concebidas com vistas à apreensão de seu comportamento
na história e de como deveriam ser escritas. Alguns intelectuais de sua época, como
Droysen, Gervinus e Humboldt, ao invés de criticarem os pressupostos metafísicos e
acusar a incompatibilidade da Escola Histórica com o idealismo de Kant e Hegel,
acabaram por juntá-los, renovando assim o discurso metafísico e o teológico. (Dilthey,
(1910) 1978).
A epistemologia diltheyana tem, portanto, suas peculiaridades. Kantiano,
afirmava categoricamente que o conhecimento da história é resultado da relação do
sujeito com o objeto. Há uma relação vital entre o investigador e sua fonte. É uma
60
relação dialógica. Ambos partilham de uma situação histórica que, de uma forma ou de
outra, acabam por determinar suas características e os situam no desenvolvimento
histórico como um todo. Afirmava que o sujeito do conhecimento é um sujeito histórico
(dass das Subjekt als Subjekt historisch ist). (Apud: Cério, 1959, p. 3). Tanto sujeito
quanto o seu objeto são vidas dispostas em tempos e contextos diferentes, mas que
perecem à história. Por isso, contra os positivistas, Dilthey dizia que a relação entre o
sujeito e o objeto na história é um dos aspectos que diferencia os estudos das ciências
humanas, em relação às ciências naturais. Kant já demonstrava, mesmo estudando a
física, a importância do sujeito na formulação de uma explicação plausível dos
fenômenos sublunares. E isso fica mais evidente em relação à história, pois sujeito e
objeto têm identidades históricas. É impossível ocultar o sujeito, pois mesmo que o
discurso se pretenda objetivo, as escolhas dos signos lingüísticos para torná-lo
inteligível são do investigador. Falar em imparcialidade em história é um contra-senso.
Como acreditava Dilthey, é dar voz aos fantasmas.
Mesmo com essas considerações marcadamente teóricas, alguns dos seus
críticos afirmam que não é correta a designação para Dilthey de epistemólogo da
história. Para Plantinga, por exemplo, essa imagem não é adequada por duas razões: a
unidade de sua obra não se dá por conta de seu trabalho como filósofo da história, no
sentido hegeliano. Isto é, ele seria mais um historiador que quer compreender a vida, do
que propriamente um filósofo que busca as leis que regem o movimento dos sujeitos na
história. Ademais, ainda segundo Plantinga, Dilthey rejeitou o termo filosofia da
história, pois esta linha de pensamento tomava a história de maneira especulativa.
(Plantinga, 1980). A acepção de filosofia da história em Dilthey tem, no entanto, outras
características. Na época em que viveu, a filosofia era absorvida pela teoria do
conhecimento. Há uma diminuição extraordinária no interesse pelos estudos hegelianos
61
e idealistas. Em seu lugar, começou-se a perguntar pelos fundamentos do conhecimento.
É certo que não se pode dizer que Dilthey foi um filósofo hegeliano da história,
entretanto, uma idéia filosófica sempre motivou seu trabalho como historiador. A teoria
do conhecimento era o instrumento que ele utilizava para chegar à vida e não poderia
ser diferente. Dilthey viveu segundo os padrões de sua época e, por mais inovador que
fosse, suas questões são problemas de sua época. Moreno descreve da seguinte forma
esse contexto vivido por Dilthey:
(...) as lutas, a partir de 1848, pela liberdade
dos povos e a formação dos Estados Nacionais
da Alemanha e da Itália, o rápido
desenvolvimento econômico, o deslocamento
do poder das classes e a política nacional,
fizeram diminuir consideravelmente o
interesse pela especulação abstrata. (Moreno,
1990, p. 11).
Dilthey foi um homem de sua época. Os seus estudos históricos carregavam uma
motivação epistemológica, por isso, grande parte de sua obra é sobre a história do
pensamento, história das idéias e história do conhecimento.
Dilthey desenvolve sua vida universitária num
ambiente intelectual onde a filosofia
representa agora a consciência que tem o
investigador pela conexão, pelas razões
fundamentais, pelos métodos e pelos supostos
do conhecimento e, ali onde antes estava a
metafísica, desde Schleiermacher nos
encontramos com o problema das condições
que, como supostos de um proceder racional,
se encontram na base da atuação dos homens
e da sociedade. (Moreno, 1990, p. 14).
Dilthey é um epistemólogo diferenciado. As mudanças de concepção em relação ao
conhecimento influenciam diretamente os seus escritos. Tanto que, até 1883, Dilthey
62
havia escrito uma grande quantidade de textos de história, mas nenhuma obra de grande
fôlego havia sido publicada. A sua obra sobre Schleiermacher estava interrompida e em
1883 ele publica aquilo que seria a sua produção de maior sistematicidade em termos
epistemológicos: A Introdução às Ciências do Espírito. Nela, ele rejeitou a filosofia
especulativa idealista e todas as concepções metafísicas da história para elaborar uma
Crítica da Razão Histórica que fundamentasse as disciplinas responsáveis para
compreender a realidade, em especial a história. (Plantinga, 1980; Dilthey, (1910)
1978). Para ele,
(...) a realidade de todo acontecimento
humano e histórico converte em sua missão
alcançar sobre o material do mundo (dado)
um saber objetivo acerca da realidade
espiritual e da conexão de suas partes.
(Dilthey, (1910) 1978, p. 138).
A elaboração de uma teoria da história é, para Dilthey, uma missão. O programa
diltheyano poderia ser assim sintetizado:
(...) aproximar as ciências históricas,
antropológicas, culturais e sociais em um
trabalho interdisciplinar, unir teoria e
história, mostrando a interdependência do
saber sistemático e da descrição histórica;
discernir as proposições de validade universal
dos juízos historicamente condicionados e
sintetizar ‘fato’ e ‘dever’. (Reis, 2003, p. 94-
95).
O pressuposto fundamental é saber que tal teoria é historicamente limitada e só a partir
dessa admissão inicial pode o historiador extirpar do conhecimento quaisquer conceitos
coercitivos que limitam a expressão da vida. Uma teoria assim formulada tem a
vantagem de colocar a própria teoria como objeto do conhecimento histórico, posto que
63
também está submetida às vicissitudes do tempo. Não existe uma única teoria, mas
teorias da história que devem ser investigadas em seu percurso de desenvolvimento
histórico para se esclarecer o porquê da tentativa de submeter a história aos padrões
científicos das ciências naturais. Só a partir de uma análise histórica pode-se chegar a
uma correta compreensão da vida. (Dilthey (1883) 1949).
A investigação sobre a história em Dilthey está diretamente relacionada à sua
fundação de bases autônomas para a atuação das ciências do espírito. Sobre a
importância da história, Dilthey explica
(...) o método histórico segue a marcha do
desenvolvimento no qual a filosofia tem lutado
até agora para lograr semelhantes
fundamentos; busca o lugar histórico de cada
uma das teorias dentro deste desenvolvimento
e trata de orientar acerca do valor,
condicionado pela trama histórica destas
teorias, adentrando-se nesta conexão do
desenvolvimento quer lograr também um juízo
sobre o impulso mais íntimo do atual
movimento científico. Desta sorte, a exposição
histórica prepara o fundamento gnosiológico
que será objeto da segunda metade deste
ensaio. (Dilthey, (1883) 1949, p. 3).
A sua crítica seria o fundamento positivo para o conjunto de ciências que compreendem
a realidade humana. A teoria da história em Dilthey não é outra coisa, senão o
fundamento das ciências do espírito. Antes de prosseguirmos com esse argumento, é
preciso verificar qual foi o caminho percorrido por Dilthey para chegar a essa
conclusão. Para tanto analisaremos sua maior obra: A Introdução às Ciências do
Espírito.
64
Capítulo 2 A Fundamentação das Ciências do Espírito
A tarefa
O trabalho de fundamentação das ciências do espírito é a tarefa primordial da
teoria do conhecimento de Dilthey. Ele empenhou toda a sua vida intelectual para
mostrar no fim como as ciências do espírito se articulam em uma teoria e metodologia
independentes. Para cumprir tal tarefa, Dilthey partiu de uma exposição histórica do
problema do conhecimento aplicado à história. Dilthey acredita que todo e qualquer
campo do conhecimento deve ter seu percurso de desenvolvimento histórico investigado
para se ter idéia do estágio em que se encontra. Pode-se afirmar que a epistemologia de
Dilthey se articula pela aplicação do conhecimento da história na fundamentação das
ciências do espírito. (Moreno, 1990. Cério, 1959). A exposição histórica compõe e
sustenta seu projeto de fundamentação das ciências do espírito. Junto à teoria, ela se
torna o instrumento que estabelece as bases das disciplinas responsáveis por darem
inteligibilidade ao conjunto da realidade, pois a vida é preenchida por uma
complexidade de ações e indivíduos, impossível de ser apreendida por uma só
disciplina, necessitando assim de um corpo teórico que fundamente os seus diversos
conhecimentos.
Esta realidade é multifacetada, e se assemelha, segundo Dilthey, a uma “colcha
de retalhos”. Na base dessa realidade está o indivíduo. Em sua vivência ele se relaciona
com as mais diversas instituições criadas por ele, mas sem que se perca. A realidade é
resultado da inter-relação dos diversos sujeitos que exercem variados papéis sociais. A
primeira impressão é de que tal realidade não pode ser elevada ao conceito. O mundo
histórico-social é, aparentemente, caótico e parece escapar a toda e qualquer tentativa de
explicação científica, impondo um desafio àqueles que querem torná-lo inteligível.
Como é possível compreender esse mundo? Ele é passível de ser apreendido numa
65
narrativa científica? Tais questões são recorrentes em toda a carreira de Dilthey e
constituem não só problemas intelectuais, mas, sobretudo, a tarefa de sua vida.
Ainda jovem quando chegou a Berlim, Dilthey teve o privilégio (segundo o que
ele mesmo dizia) de conviver com homens de grande destaque intelectual em meados
do século XIX. Dilthey os chamava de os gigantes de Berlim: Humboldt, Savigny,
Jakob Grimm, Bopp, Böeck, Ritter, Trelendeberg e Ranke. O objetivo de sua estadia em
Berlim era concluir os estudos do seminário para se tornar pastor da igreja calvinista.
(Imaz, prólogo. In: Dilthey, 1951, p. VIII). No entanto, as amizades e a orientação de
seus professores fizeram com que se interessasse mais pela história e pela filosofia. E,
no lugar dos estudos teológicos, enveredou-se pelos trilhos da história do cristianismo.
Quando Dilthey começou a estudar a história do cristianismo primitivo, a primeira
questão que ele se fez, foi: como um historiador moderno poderia entrar nas mentes
daquelas pessoas e apreciar seus pontos de vistas e motivos. (Rickman, 1988, p. 15). A
influência desses tempos de juventude foi definitiva na sua vida, tanto que, após
concluir seus estudos, não prosseguiu na carreira eclesiástica, preferiu se tornar
professor. (Reis, 2003, p. 21. Cério, 1959)
A vida, tão bem programada pela tradição familiar, foi notadamente modificada
por uma “angústia” intelectual que colocava o problema do conhecimento como
prioridade. Começou a estudar, então, a história do pensamento teológico, ao mesmo
tempo em que lecionava e pesquisava de forma cada vez mais sistemática. Dormia seis
horas por dia e estudava cerca de quatorze horas. Tempo este entrecortado por seu
descanso de exatos quinze minutos após o almoço. Dizia que tinha pouco tempo para
sua tarefa. Era um espírito disciplinado! (Rickman, 1988; 1979) Produzia de maneira
voraz e incansável. E por que não editou seus escritos?: questionariam seus discípulos,
críticos e desafetos. (Reis, 2003, p. 21).
66
Dilthey não se preocupou em publicar suas obras. Sabemos, por meio das
publicações póstumas que sua obra é imensa. Os editores de suas obras completas nos
prometem a publicação de trinta e três volumes. Em vida, no entanto, Dilthey preferia a
discrição e o anonimato, tanto que publicou uma quantidade significativa de textos que
assinava sob o pseudônimo de Hoffner. Segundo Imaz, Dilthey não precisava de
publicidade, para ele era muito mais importante entender o problema da vida. (Imaz,
1946). Quando percorremos os volumes que compõem as obras completas de Dilthey,
percebemos um sem número de rascunhos, esquemas, esboços, introduções sem
nenhuma indicação de um sistema fechado. (Amaral, 1987, p. 2) E por isso nos
perguntamos: seria o anonimato de Dilthey uma forma de superar sua dificuldade de
criar um sistema filosófico próprio? Seria Dilthey um pensador incoerente, incapaz de
resolver suas contradições de pensamento?
Como nos mostra Amaral, Dilthey desde jovem sempre temeu as formulações
prematuras e unilaterais. Nesse sentido, afirmava
(...) nós desprezamos a construção, amamos a
pesquisa, temos um comportamento céptico em
relação à maquinaria de um sistema. Essa
sistemática e a dialética se nos apresentam
como uma poderosa máquina que trabalha no
vazio. Nós estaremos satisfeitos ao final de
uma vida longa, se tivermos gerado uma
multiplicidade de linhas de pesquisa que nos
conduzam ao mais profundo das coisas:
estaremos satisfeitos se morrermos em meio à
essa peregrinação. (Apud: Amaral, 1987, p.
3).
Por outro lado, como afirma Imaz, é possível perceber um programa coerente
nos trabalhos de Dilthey. Um sistema peculiar que se desenvolve desde a juventude. Na
sua aula inaugural de Basel, em 1867, por exemplo, anuncia um projeto pelo qual
67
pretendia resolver os problemas suscitados pelas discussões da Escola Histórica e pelo
positivismo. Esse projeto teria seu primeiro passo no resgate de Kant e sua questão
fundamental: a crítica do conhecimento. Em tal passagem ele definiu sua tarefa da
seguinte forma:
Prosseguir o caminho de Kant e fundamentar
uma ciência empírica do espírito humano em
colaboração com os investigadores de outros
domínios; trata-se de conhecer as leis que
dominam os fenômenos sociais, intelectuais e
morais. (Apud: Imaz, 1946, p. 64)
O plano de sua juventude era, então, fundamentar as ciências do espírito. De sua aula
em Basel, foram necessários ainda dezesseis anos de preparação para que Dilthey
publicasse em 1883 sua principal obra: a Introdução às Ciências do Espírito, pela qual
pretendia dar um termo às concepções metafísicas da realidade e fundamentar
epistemologicamente as ciências do espírito.
A Introdução às Ciências do Espírito a obra
Sobre a Introdução... disse Max Weber certa vez:
(...) é o primeiro estudo sério e de conjunto
onde se aborda o problema metodológico das
chamadas ciências do espírito em nossa
tradição ‘ciências morais e políticas’, que é
como começou a chamá-las Dilthey, seguindo
também a tradição francesa. (Apud: Imaz,
prólogo, p. XIII. In: Dilthey, (1883) 1949).
A Introdução... é um dos poucos livros editados e publicados por Dilthey em
vida. Além deste, publicou em 1870 a Vida de Schleiermacher e Vida e Poesia em
1905. A Introdução... é o primeiro volume de uma obra maior e mais abrangente que
68
tinha como meta compreender a vida e fundamentar cientificamente essa compreensão.
Os volumes seguintes não foram publicados. Sabe-se que ele nunca abandonou o
projeto e nele trabalhou incansavelmente produzindo esboços, fragmentos, rascunhos,
prólogos e introduções. Cerca de doze anos depois da Introdução Dilthey tinha a
intenção de reunir os escritos produzidos para publicá-los. Tais textos constituiriam um
terceiro livro, de caráter histórico e um quarto de caráter epistemológico e gnosiológico.
Infelizmente, não levou a idéia a cabo e sua morte em 1911 acabou interrompendo seu
projeto que estava por ser concluído. Por isso, muitos dos seus discípulos consideram o
seu falecimento prematuro, mesmo aos 78 anos de idade. Ortega y Gasset disse a
respeito de sua morte: Dilthey não teve tempo para fazer sua obra, porque o tempo que
teve foi um puro contratempo. (Ortega y Gasset, 1958, p. 210).
Imaz o compara a um arquiteto que constrói a casa com paciência e parcimônia,
tecendo sua obra sem se preocupar em dar-lhe uma forma precipitada. Dilthey preferia
constatar os problemas, inquiri-los e enfrentá-los do que, necessariamente, resolvê-los.
Uma resposta demasiado rápida poderia levá-lo a posições errôneas. Para ele, era
melhor andar num terreno movediço com o objetivo traçado, do que caminhar em terra
firme sem saber para onde o caminho leva. Por isso, o desprezo pelas sistematizações.
Sua obra é fragmentada, como o próprio movimento da vida. É confusa, nos oferece um
trabalho penoso e difícil para sistematizá-la. Seus editores enfrentam uma verdadeira
guerra contra seus escritos que parecem fugir dos sistemas e enquadramentos. É um
poeta que aborda a vida com espontaneidade e sentimento. De fato, Dilthey enaltece o
poeta que pode criar livremente sem as amarras da ciência. Na obra do artista e do poeta
aparece a verdadeira expressão da vida. O poeta não pode criar uma coisa que não seja
efetivamente sua. A tentativa de dissimulação está fadada ao fracasso, pois o poeta não
pode criar como um outro. A criação poética e artística é espontânea e mesmo a
69
imitação revela caracteres próprios do imitador e não do original. Pode-se copiar bem a
obra alheia, mas nunca fazê-la exatamente igual. (Dilthey (1883) 1949).
Contra o sistema científico de sua época, Dilthey apresenta uma obra que imita o
próprio fluxo da vida. Sua obra nunca chegou a um termo. A vida é como uma obra
artística sempre retocada e modificada.
Seu temperamento profundo de poeta o leva a
retocar incessantemente a forma plástica de
suas construções intelectuais e a rebuscar
constantemente na vida e na história novos
materiais de trabalho. (Imaz, Prólogo. In:
Dilthey, (1883) 1949, p. IX).
O objetivo maior de Dilthey era compreender a vida. Para isso queria mostrar as
condições sob as quais o conhecimento da vida seria possível. Nesse sentido, o plano de
sua obra comporia três partes: 1) a Introdução às Ciências do Espírito para mostrar a
necessidade de se fundamentá-las; 2) a Genealogia da Metafísica ou das falsas Ciências
do Espírito e 3) a Crítica da Razão Histórica, na qual estabeleceria os meios
epistemológicos positivos desse conhecimento. (Dilthey (1883) 1949. Imaz, 1946).
Como sabemos, apenas as duas primeiras partes foram publicadas. Seguir-se-iam
à Introdução... outros livros que demonstrariam o fundamento específico e apropriado
das ciências do espírito. Nunca vieram à público essas obras e o problema não foi
resolvido. Os seus tradutores e editores tentaram sistematizar rascunhos e textos avulsos
que indicam caminhos pelos quais Dilthey poderia ter encontrado uma solução coerente.
Devido a não resolução desse problema, há uma querela entre os estudiosos de Dilthey.
De um lado, há os que apontam ser a psicologia o verdadeiro fundamento metodológico
das ciências do espírito
1
e, de outro, os que afirmam ser a hermenêutica este
1
Sobre a importância da psicologia, ver Di Nápoli, 2000, p. 37.
70
fundamento. Segundo Di Nápoli, Heidegger estabelece duas fases no pensamento
diltheyano: uma psicológica (de juventude) e uma hermenêutica (de maturidade). (Di
Nápoli, 2000). Esses dois momentos seriam demarcados pelo texto O Surgimento da
Hermenêutica, publicado em 1900. Outros, como por exemplo Makkreel, Imaz, Cerío
acreditam, no entanto, que não existem dois momentos na obra de Dilthey, pois desde
sua juventude ele sempre fez pesquisas em hermenêutica e até sua velhice nunca deixou
de citar a psicologia. Seguimos essa segunda posição e preferimos acreditar que Dilthey
foi coerente com seu projeto, embora se enveredando por diversas áreas. A Introdução...
foi a obra da sua vida e, como pretendemos mostrar, suas incursões na literatura,
pedagogia, música, psicologia, hermenêutica tinham como alvo maior o conhecimento
da vida.
O Sonho
A Introdução... foi publicada em espanhol no ano de 1944 (tivemos acesso a
edição de 1949). Seu editor - Eugenio Imaz acrescentou à edição de 1949 alguns
documentos autobiográficos de Dilthey que foram compilados sob o título O Sonho de
Dilthey. São textos produzidos durante a última década do século XIX acompanhados
por um discurso proferido em 1903 por ocasião de seu aniversário de 70 anos. Há ainda
um prólogo de 1911 que acompanharia uma obra não publicada que seria denominada O
mundo espiritual. Introdução à Filosofia da Vida. (Imaz, 1946. Cério, 1959).
No ano de 1903, Dilthey apresenta, num simpósio filosófico por ocasião do seu
aniversário de setenta anos, as principais diretrizes de sua filosofia. Seu texto é um auto-
relato extremamente metafórico. Dizia que, há mais de dez anos havia se encaminhado
para o palácio do amigo Klein-Ols e que, como de costume, travou com ele uma
importante conversa sobre filosofia. Depois, foi se recolher num dos aposentos do
71
castelo, no qual estava disposto sobre a cama o quadro de Rafael: A Escola de Atenas.
Esse pintor tenta harmonizar por meio da arte, os diferentes sistemas filosóficos. Após
essa breve reflexão, finalmente, Dilthey dormiu. (Dilthey (1903) 1949).
Já no início do seu sonho, a conversa com seu amigo e a impressão do quadro
ficaram ressoando em sua mente e começaram a se misturar. Os filósofos citados, à
medida que conversavam, ganhavam corpo e vida. Pôde reconhecer, logo de início,
Bruno, Descartes, Leibniz e muitos outros que formavam um grupo à esquerda. À
medida que os filósofos entravam, os muros do templo iam se esfacelando e, na medida
em que se encontravam, o grupo aumentava. No lado direito, estavam Arquimedes e
Ptolomeu. Juntaram-se a eles, os filósofos que buscam uma explicação universal para as
coisas, sob a conexão de leis naturais. Esse é o grupo dos que subordinam o espírito à
natureza. Dilthey o chamou de materialista-positivista. Entre seus componentes estavam
D´Alembert e Comte. Este último é ouvido com muita atenção pelos restantes. (Dilthey
(1903) 1949).
No centro se formava um outro grupo onde se encontrava Sócrates, Platão, Santo
Agostinho e outros. A conversa desses homens girava em torno da possibilidade de se
unir a filosofia clássica com o cristianismo. Repentinamente, Descartes e Kant saem do
grupo dos matemáticos e se juntam a essa conversa. Imediatamente, formou-se outro
grupo em volta de Kant composto por Schiller, Fichte, Carlyle, Ranke, Guizot e outros
historiadores. (Dilthey (1903) 1949).
À esquerda se agrupavam Pitágoras e Heráclito que pareciam contemplar a
harmonia do universo. Para escutá-los, aproximaram-se Bruno, Espinoza, Leibniz e os
jovens Schelling e Hegel. Dilthey sentia nesses homens uma vocação poética escondida
sob seus sistemas. Juntou-se a eles Goethe que trazia consigo todos os seus
personagens: Fausto, Wilhelm Meister, Efigênia, Tasso etc. (Dilthey, (1903) 1949).
72
Os grupos se formavam e se desfaziam constantemente. Havia homens que
saltitavam de um grupo a outro, sem se fixarem em lugar algum. Pareciam querer
mediar um diálogo entre as correntes de pensamento, contudo, o esforço era inútil, pois
a medida que o tempo passava, os grupos se distanciavam. Dilthey corria para um e
outro na esperança de reconciliá-los, mas não obteve sucesso. As figuras começaram a
desaparecer até que, finalmente, Dilthey despertou do seu sonho. Olhou as estrelas que
ainda reluziam no céu e pensou o quão insondável era o universo. Sabia, no entanto, que
os homens nunca deixariam de tentar desvendá-lo. Religiosos, poetas e filósofos sempre
tentaram explicar o que havia sobre e sob as estrelas. E é isso o que importa na
investigação da vida: as visões de mundo (Weltanschauungen) dos homens. E mais,
toda concepção de mundo tem uma delimitação historicamente condicionada e,
portanto, é relativa e limitada. (Dilthey (1903) 1949).
A Dilthey não interessa o universo, mas as concepções que se tem dele. Toda
concepção de mundo se fundamenta dentro das limitações de nosso pensamento, logo,
são verdadeiras. Por isso, não há uma realidade única. Como dizia Dilthey não podemos
ver a luz pura da verdade, mas somente suas versões fragmentadas em raios de cor.
(Dilthey, (1883) 1949, p. XXIV). A realidade é como uma “colcha de retalhos” que é
construída lentamente, resultante de muitas contribuições e pode ser vista de diversas
maneiras. A riqueza de uma colcha não está na sua homogeneidade, mas sim na
possibilidade de junção dos mais diversos retalhos. Sua beleza reside na diferença, na
heterogeneidade. A colcha representa o mundo histórico porque é complexa e múltipla.
A forma da história se dá à medida que a vida segue seu transcurso. Cada experiência de
vida compõe o mundo histórico, tal como o retalho compõe a colcha. Assim, a história é
uma unidade composta pela diversidade. Porém, se por um lado a diversidade dos
73
retalhos poderia criar algo amórfico, por outro, passo a passo os retalhos vão ganhando
forma, tornando-se componentes de um todo integrado e belo. (Dilthey, (1903) 1949).
O pesquisador que investiga a história tem a difícil tarefa de compor o todo às
partes. Tal como ocorre na costura, o pesquisador precisa possuir uma noção prévia da
realidade que investiga. Essa antevisão é possível porque, da realidade, temos à mão
suas partes. Um conhecimento total da realidade em sua unidade é presunçoso e
impossível de ser realizado. Compreender significa deixar se seduzir pela beleza dos
detalhes. Mas, os retalhos sozinhos seriam descartados e perderiam a importância.
Isolados não teriam sentido. Porém, uma vez reunidos, colorem a colcha, dão-lhe forma
e estrutura.
Dilthey quer mostrar com essa metáfora que, para além de um mero jogo de
palavras, a composição do todo com as partes é um processo complexo e,
fundamentalmente, dinâmico. Essa dinâmica é o ritmo da história. Além disso, o Sonho
de Dilthey quer enfatizar a impossibilidade de conciliar sob um mesmo sistema as mais
diversas concepções de mundo forjadas ao longo da história. As teorias são
historicamente delimitadas e não conseguem explicar o mundo de forma absoluta. A
metafísica era uma concepção pretensiosa e impossível de se realizar. Não se pode
conciliar vidas tão diversas, o máximo que se pode fazer é propiciar a elas um diálogo
por meio da história. A unidade histórico-social pretendida pelo pensamento metafísico
não está dada a priori. O sujeito do conhecimento que toma a realidade já feita, tem uma
noção sintetizada dela. Ele sabe que a história é resultado de cada experiência de vida.
Ele não deve se preocupar em reduzir esses sistemas à uma explicação unívoca do
mundo, seu objetivo deve ser o de compreender o processo histórico de “costura” da
vida. Partindo desse pressuposto, ele entenderá que cada qual, em seu tempo, tem uma
visão diferente dessa “colcha” (história). O historiador que olha para o mundo já vivido,
74
deve saber que ele não pode abarcar de uma vez tudo o que ocorreu. O conhecimento
sempre se inicia pelas partes, pois nelas já está contida a noção do todo. Ignorante e
limitado é o tipo de pensamento que acredita poder esgotar os significados da história.
O historiador sabe da limitação do seu conhecimento, por isso, diante de um objeto já
pronto, ele se perguntará: em que contexto tal objeto foi criado? Quem são seus
agentes? Quais retalhos o compõem?
Breve história das ciências particulares do espírito
Cada uma das disciplinas das ciências do espírito é responsável pela
investigação parcial da realidade. As disciplinas são perspectivas, olhares distintos
utilizados para compreender as partes do mundo. Cada qual é uma visão de mundo
(Weltanschauung). É um olhar significativo que permite ao investigador interagir,
articular, mobilizar e compreender a vida histórica. Devido à parcialidade de sua
investigação, cada qual lança mão de instrumentos que facilitam o seu trabalho. As
metodologias podem ser até as mesmas, mas o enfoque é diferenciado nessa busca de
compreensão da vida.
Até a publicação da Introdução... Dilthey não havia definido o nome pelo qual
chamaria o conjunto das ciências que lidam com os estudos da história. Por vezes,
Dilthey utilizou ciências morais, históricas e, até mesmo, do espírito; mas é só na
Introdução... que ele vai lançar mão de uma escolha deliberada, explicando, inclusive, a
razão de tal escolha em detrimento de outras possíveis. Dilthey escolhe o nome de
ciências do espírito, pois para ele esta denominação aproxima-se de uma generalização
mais exata acerca daquilo que é possível compreender do mundo: a sua vida espiritual.
O espírito não é abstrato e formal, mas em
relação com a vida. Dilthey redefine o
conceito de espírito, procurando não recair na
75
metafísica. Não se trata de uma entidade
transcendente ou imanente, a-histórica e
atemporal. ‘Espírito’ quer dizer ‘expressões
humanas’, individuais e sócio-históricas,
temporais. O mundo do espírito é o das
objetivações da vida interna, da vida criadora,
individual e singular. (Reis, 2003, p. 33 e 34).
Apesar de serem utilizadas como sinônimas, as ciências da sociedade, moral, história e
cultura limitam-se ao aspecto exterior da vida. São imprecisas, pois partem de conceitos
ligados às expressões externas. Sociedade, cultura, moral e história são manifestações e
experiências humanas resultantes da atuação de um indivíduo, de uma vida interna.
Toda e qualquer expressão ou criação advém do mundo interno (do espírito), pois cada
experiência humana ganha dentro do espírito e dentro da vida, uma apreensão particular,
um significado próprio. Com efeito, o sentido maior da vida reside na leitura que o
indivíduo faz do mundo. Essa leitura é uma tomada de posição do sujeito frente ao
mundo. Os acontecimentos exteriores são sintetizados de forma original em cada vida
espiritual e essa síntese original é o objeto sui generis das ciências particulares do
espírito. (Dilthey (1883) 1949).
Dilthey não fecha o quadro das disciplinas que compõem as ciências do espírito.
Contudo, ao longo de sua obra, esclarece quais seriam as mais destacadas. São elas: a
moral, a política, a música, a poética, o direito, a economia, a filologia, a psicologia, a
história. Apesar do destaque dessas disciplinas todo e qualquer campo do conhecimento
que investiga o mundo humano em sua particularidade histórico-espiritual pode ser
considerado como uma ciência particular do espírito. É certo que há outros critérios que
as ciências devem seguir, mas a característica fundamental é de que elas tenham por
objeto o mundo humano. (Dilthey, (1883) 1949).
76
Tal definição das ciências humanas só pôde ser feita com a superação da
metafísica. A metafísica dominou o pensamento ocidental desde os gregos. Dilthey
afirma que a vontade de se conhecer o mundo humano sempre existiu. De forma
sistemática, desde os tempos da filosofia clássica grega havia ciências que buscavam
compreender o ser humano. Cada uma trabalhava, no entanto, isoladamente tentando
fornecer a forma mais correta de apreensão da vida. Não havia a necessidade de
formulação de um corpus teórico que servisse à todas as ciências que estabelecesse seus
métodos, conceitos, objetos etc. O pensamento trabalhava sob a tutela da metafísica.
Essas disciplinas estavam desde os tempos mais remotos submetidas aos padrões
científicos estabelecidos pela metafísica. A metafísica era designada, inicialmente,
como filosofia primeira, aquela que seria anterior à primeira ciência particular, a física.
Por isso, o nome meta-física. (Reis, 2003, p. 39). A metafísica articulava todas as
ciências sob seus desígnios. O pensamento trabalhava sob a tutela dessa filosofia
primeira. A metafísica era responsável por preencher as lacunas do conhecimento e tudo
funcionava de acordo com os seus pressupostos. Os fatos deveriam de uma forma ou de
outra, serem enquadrados num esquema previamente estabelecido. A metafísica
dominou de forma opressora o pensamento ocidental até o fim da Idade Média.
Contudo, a metafísica não foi única em todos os lugares. Os sistemas variaram e se
adaptaram às mais diversas situações.
A história do pensamento é uma luta perene
em que cada sistema, uma espécie de ser vivo,
colide com outros em vista do poder e da
explicação mais apta do enigma da vida.
(Dilthey, (1911) 1992, p. 11).
Ao analisar historicamente o percurso de desenvolvimento da metafísica
(Dilthey, (1883) 1949), Dilthey nota que esse domínio não se deu sem resistências. O
77
ceticismo foi seu maior algoz. O ceticismo em suas mais diversas facetas tentou
demonstrar a insuficiência do conhecimento metafísico. Essa resistência foi
fundamental para minar as bases de sustentação da metafísica, mas foi necessário
esperar o início da modernidade para que ela recebesse ‘ataques mais consistentes’.
Dilthey é resistente ao pensamento metafísico, mas para mostrar como e em que medida
a metafísica não servia mais de base às ciências do espírito, ele reconstruiu seu percurso
histórico. Para Dilthey era preciso tomar a metafísica como um acontecimento
historicamente delimitado, pois só assim seria possível mostrar suas limitações.
Kantiano, Dilthey se posiciona criticamente em relação à metafísica,
Porque não se tratará de refutar, mediante
uma demonstração abstrata, a metafísica,
senão de compreendê-la, de dar-se conta, ao
revivê-la como uma etapa histórica do
desenvolvimento intelectual da humanidade.
(Imaz, 1946, p. 107).
A metafísica enquanto conhecimento das formas não condicionadas, das determinações
universais do ser, é uma etapa limitada no desenvolvimento intelectual humano.
(Dilthey, (1883) 1949).
No período medieval o pensamento metafísico uniu-se à experiência religiosa.
Dilthey chama essa época de etapa religiosa ou teológica da metafísica. A criação
própria da metafísica, que se pode comparar com a da metafísica antiga é o mundo das
substâncias espirituais. (Imaz, 1946, p. 128). O mundo medieval atendia a um plano
que deveria se cumprir e cujas chaves fundamentais estavam na queda, redenção e juízo
final. A metafísica tornou-se o discurso eclesiástico que sustentava o poder da Igreja
que perdurou quase imbatível até o início da modernidade com a Reforma Protestante.
78
A modernidade não traz somente uma visão particular da sociedade e as mais
variadas ações que ali são travadas, ela se torna palco da atuação de um novo sujeito
histórico: o homem moderno. Esse homem consegue conciliar as influências ainda
presentes do pensamento cristão e a vontade de conhecer o mundo humano. A arte
representa, inicialmente, a desvinculação do homem moderno da tutela do imperador e
do papa. Mesmo que muitos temas religiosos ainda sejam tematizados nas pinturas, há
uma presença cada vez mais marcante de temas profanos e clássicos. Há uma certa
independência na produção artística da época, posto que as variadas instâncias sociais,
às quais os homens estão vinculados ganham cada vez mais autonomia. Além do
renascimento, a reforma protestante foi fundamental para a desestabilização da
metafísica, bem como a ciência que se fundamentará em outros pressupostos. A ciência
terá a necessidade de fundamentação experimental de todo enunciado. Na idade
moderna, o mecanismo substitui a divindade. O mundo é visto como um todo que
funciona mecanicamente e que é explicado racionalmente. Não há um deus, ou um ser-
imóvel que coordena as ações humanas. O teocentrismo dá lugar ao antropocentrismo.
O mundo é explicado por relações causais e necessárias. Contra a metafísica e
sua dependência divina, o mundo moderno procurou estabelecer as bases de uma teoria
do conhecimento.
A ruína da metafísica não havia deixado aos
homens do Ocidente mais que os fragmentos
do mundo, construídos pelas ciências desde
seus pontos de vista rigorosos, mas, por sua
vez parciais e secundários. Os problemas
radicais e primordiais que sempre haviam
ocupado à filosofia tiveram que concentrar-se
e disfarçar-se na forma de Teoria do
Conhecimento, cuja missão era dar um
fundamento último às ciências. (Ortega y
Gasset, 1958, p. 212).
79
Como Dilthey pôde analisar, a modernidade não trouxe o fim definitivo da metafísica.
Ela ganhou novas facetas. Em certos momentos ela se disfarçou sob o discurso da
Filosofia da História, em outros ela se transformou em teoria do conhecimento com a
missão de superar o caráter fragmentário que as ciências forneciam da realidade. Na
Alemanha a metafísica transformou-se em filosofia da história, principalmente na figura
de Hegel; e na Inglaterra e França surgiu a sociologia positivista com as obras de Comte
e Stuart Mill. A filosofia da história não é, no entanto, criação exclusiva da Alemanha.
Segundo Dilthey, ela deu seus primeiros passos ainda na antiguidade com os padres da
Igreja: São Clemente e Santo Agostinho, mas foi desenvolvida por Vico, Lessing,
Herder, Humboldt e Hegel. O cristianismo via na história uma conexão interna que
articulava o homem em momentos decisivos: criação, queda e juízo final. A filosofia da
história cristã acreditava que haveria na história uma força sobrenatural, a Providência.
(Dilthey, (1883) 1949).
A filosofia da história tem, no entanto, limites que a impedem de realizar um
conhecimento aceitável da vida: 1º) ela desconhece a verdadeira conexão do mundo
histórico que só pode ser demonstrada por meio de uma atitude auto-reflexiva da vida
sobre a vida. Dilthey acredita que o reconhecimento da historicidade de sua proposta
resultava na recusa dos seus pressupostos; 2º) ela pretende atingir o verdadeiro sentido
da história, o que é uma contradição, pois existem verdades históricas, ou melhor,
concepções historicamente delimitadas. A filosofia da história não atribui valor algum
ao que os homens fizeram em diferentes épocas; 3º) ela se fundamenta numa concepção
religiosa da realidade, ela é o discurso filosófico da teologia; e 4º) seus métodos são
limitados, lançam mão de generalizações, abstrações, noções universais. Os sujeitos não
têm lugar de atuação e são meros coadjuvantes do processo histórico. Por todos esses
80
motivos, a filosofia da história é um discurso limitado e inadequado. A respeito disso,
Dilthey chegou à seguinte conclusão:
O pensador que tem como objeto o mundo
histórico deve encontrar-se em relação direta
com o material bruto da história e dominar
todos os seus métodos. Tem que submeter-se à
mesma lei do trabalho áspero com o material
a que se submete o historiador. Converter em
uma conexão o material que já está formado
em um todo artístico pela visão e o trabalho
do historiador, valendo-se de proposições
psicológicas ou metafísicas, é trabalho
condenado à esterelidade. Se se fala de
filosofia da história, não pode ser mais que a
investigação histórica com propósito filosófico
e com recursos filosóficos. (Dilthey, (1883)
1949, p. 94-95).
O passo seguinte foi dado pela sociologia comtiana e pela Escola Histórica Alemã.
(Dilthey, (1883) 1949, p. 94).
As ciências naturais passam a atender o desejo de segurança frente ao mundo em
constante mudança. A teoria do conhecimento parecia dar aos homens a garantia de
encontrar o fundamento sobre o qual se resguardava o conhecimento. O positivismo de
Comte não fez mais do que dar publicidade a esse desejo. Comte quer, no entanto,
combater a metafísica. Acreditava que as verdades estão conectadas aos períodos que se
sucedem historicamente. Cada estágio da história encerra uma verdade que é superada
pelo desenvolvimento do ser humano que caminha para um fim moral-racional. Dessa
forma, acreditava que estava estabelecendo o verdadeiro fundamento das ciências
histórico-sociais. Comte luta contra a metafísica que insistia em propor verdades
transcendentais ao percurso histórico. Para ele, a metafísica estorva o desenvolvimento
da verdadeira ciência positiva, pois acaba submetendo o conhecimento aos preconceitos
religiosos que prescindem da razão - a verdadeira ferramenta para se conhecer a
81
verdade. Em Comte, as ciências do espírito estão conectadas sob a garantia dos padrões
metodológicos e teóricos das ciências naturais e é só por meio desse pressuposto que se
pode chegar a um conhecimento científico da realidade histórico-social. (Dilthey,
(1883), 1949, p. 93).
Comte propunha com a sua sociologia dissipar “as névoas da metafísica”. O
Espírito hegeliano e/ou a Razão kantiana eram demasiado abstratos e não atendiam aos
interesses científicos da sociologia. As ciências sociais deveriam buscar a sua
fundamentação nos modelos nomotéticos das ciências naturais e seus critérios
metodológicos. Pois, de fato, a vida humana é a extensão de uma natureza harmônica
que a tudo gera. A vida psíquica, por exemplo, não poderia ser estudada isoladamente
sem seu aporte biológico. Aliás, na concepção comtiana, a psicologia é uma ciência
biológica e não espiritual. Como nos lembra Dilthey
(...) o ponto de vista de Comte, que trata de
submeter o espírito ao conhecimento natural,
considera que o estudo do espírito humano
depende da ciência fisiológica e as
uniformidades que podemos perceber na
sucessão de estados espirituais são efeitos da
uniformidade nos estados do corpo, negando
deste modo que se possa estudar por si a
legalidade dos estados psíquicos. (Dilthey,
(1875) 1951, p. 393).
A regularidade do mundo natural ordenaria todo o mundo histórico-social. A existência
do mundo psicológico está condicionada ao seu “corpus” fisiológico. O mundo social só
existe por conta da natureza que lhe precede. Por isso, a disciplina básica e fundamental
para o conjunto das ciências sociais é a biologia. Comte tem uma concepção biológica
da sociedade.
82
O positivismo de Comte e o evolucionismo de
Spencer seguem o critério anterior da teologia
da história, como da filosofia da história, em
atribuírem à ativação do desenvolvimento
histórico um móbil, com a diferença que antes
no século XVIII tal móbil era de
características fantásticas, misteriosas, enfim,
especulativo-imaginárias, por ser
supranatural ou fatalista, e agora, para os
positivistas e evolucionistas, era cosmológico,
universal, em termos metafísicos, ou
simplesmente um fator ´positivo´ que se
explica pela aplicação do princípio de
causalidade e das leis científicas em termos
naturalistas.” (Sousa, 1982, p. 56)
Para Dilthey, essa concepção biológica das ciências humanas renova a
metafísica que Comte pensava ter superado, pois a natureza é entendida como uma
categoria universal que submete à sua lógica todo o mundo histórico-social. A natureza
aparece como uma entidade imune a qualquer tipo de consideração subjetiva. É uma
concepção áspera da natureza, no fim, uma natureza sem vida. Áspera metafísica
naturalista eis o verdadeiro fundamento de sua sociologia. (Dilthey, (1883) 1949, p.
108). Esse argumento é reforçado por Sousa, ao afirmar que
(...) a filosofia positivista da história é
metafísica, porque Comte, como Hegel, não
explica qualquer fenômeno a não ser pelas
grandes visões imaginárias, ideais e
universalistas, servindo-se da história para
localizar e desenvolver as suas divagações.
(Sousa, 1982, p. 103)
O primeiro ataque mais contundente de Dilthey contra a teoria positivista de
Comte está em seu texto de 1875. Neste texto, Dilthey ressalta a importância da
psicologia como a ciência que estuda a individualidade dos personagens históricos.
Nessa época a psicologia parecia fornecer a Dilthey os melhores instrumentos para se
83
estudar o espírito histórico. Mas era um estudo ainda propedêutico, Dilthey não
fundamentou e explicou como a psicologia atuaria como ciência basilar das ciências do
espírito. Contudo, julgava precipitado submeter os estados psíquicos aos biológicos
como garantia de fundamento para os estudos em ciências humanas. Ele afirmava que
(...) o suposto da condicionalidade exclusiva
dos estados psíquicos pelos fisiológicos não é
senão uma conclusão precipitada baseada em
fatos que, segundo o juízo de fisiólogos sem
prejuízos, não permitem nenhuma decisão. A
outra afirmação, que a percepção interna é
impossível e estéril tem sido derivada de uma
análise imprecisa e confusa do processo, que
em modo algum demonstra a impossibilidade
do mesmo; e tampouco se demonstra fazendo
ver a imperfeição dos resultados obtidos até
agora. O grande movimento da ciência
psicológica inglesa e alemã desperta
esperanças bem distintas nas mentes
destacadas dedicadas à matéria e só o futuro
poderá dizer-nos se de tais trabalhos surgirão
uma psicologia associacionista, cujas leis
possuem validade absoluta e, ao mesmo
tempo, sejam fecundas para a explicação do
particular. (Dilthey, (1875) 1951, p. 394).
Por ainda atuar no terreno da metafísica, os conceitos das ciências naturais não eram
suficientes para solucionar o problema da formulação da fundamentação das ciências do
espírito. Diante dessas concepções não haveria como promover qualquer saber acerca
do espírito, da vida interna dos indivíduos. O conhecimento metafísico não passaria de
uma “restauração artificial” da teologia. Da mesma forma, o mundo espiritual estaria
submetido às entidades abstratas que não passariam de conceitos hipotéticos. A
fundamentação das ciências do espírito teria que ser formulada segundo as
especificidades do mundo humano que expressam sua historicidade. É preciso, enfim,
tornar possível o conhecimento do mundo histórico. As ciências do espírito não
84
possuem uma uniformidade objetiva tal como era pretendida pelas ciências naturais, a
partir da qual poderia ser estruturada. Elas têm uma forma própria de desenvolvimento a
partir da vivência humana. Por isso não estão constituídas dentro de um sistema bruto e
fechado, pois tais ciências se fundamentam na espontaneidade da vida. Seus conceitos e
denominações se firmam sobre a história. A objetividade do conhecimento na história é
específica e se diferencia das ciências naturais. Sujeito e objeto se reconhecem e se
comunicam, porque são vidas que se expressam. A teoria da história fixa de maneira
singular a relação entre sujeito e objeto. Na verdade, essas duas dimensões são
inseparáveis e são pressupostos básicos para as ciências do espírito, residindo
justamente nesse aspecto sua especificidade. (Dilthey, (1883) 1949).
Stuart Mill fez avançar essa análise ao recusar a metafísica comtiana. Reconhece
uma certa autonomia das ciências sociais, pois a vida social possui uma independência
em relação à natureza. A vida social apesar de ser gerada a partir da natureza torna-se
cada vez mais complexa na medida em que se afasta dela. No entanto, a falta de uma
teoria própria das ciências sociais, fez com que estas tivessem que se submeter aos
métodos das ciências naturais. Mill acreditava que fosse possível estabelecer as leis
causais da história partindo de um método psicológico. Sob a influência de Adam Smith
acreditava que as leis do mundo histórico são estabelecidas pela psicologia. Mas esta
psicologia é naturalista, explicativa, fisiológica e não poderia servir de fundamento para
as ciências do espírito. (Dilthey, (1883) 1949).
Mill reconhece plenamente a independência
das razões explicativas das ciências do
espírito, mas subordina seus métodos ao
esquema que ele desenvolveu baseando-se no
estudo das ciências da natureza. Até podemos
dizer que nada produziu tanto efeito em sua
Lógica como a intenção do famoso capítulo
final que trata de deslocar os métodos
desenvolvidos pela técnica das ciências da
85
natureza ao campo das ciências do espírito.
(Dilthey, (1875) 1951, p. 395).
O método de Mill e Comte é, portanto, limitado. Ambos colocam a sociologia
numa relação de dependência com as ciências naturais. Possuem uma concepção
naturalista da sociedade. As ciências sociais são tributárias das ciências naturais, pois
carentes de métodos e conceitos próprios. Dilthey talvez não perceba que a diferença da
concepção desses cientistas com a dele é que a vida social para Comte e Mill é também
harmônica, como a natureza. A sociedade possui suas leis a serem investigadas por suas
ciências. Natureza e sociedade se justapõem e se explicam. Por seu turno, Dilthey
acredita que a sociedade é dinâmica e em quase nada se parece com a natureza. Dilthey
também acha que a natureza é tranqüila e imune à intervenção humana. Aqui aparece
sua influência romântica que vê na natureza uma harmonia que o homem pode vir a
estorvar. Portanto, conclui, aos moldes kantianos que não se pode conhecer a natureza
em seu nexo interno, pois nós não a criamos. (Dilthey, (1883) 1949).
No lugar, pois de deixarmo-nos assinalar o
caminho por esses modelos metódicos em cujo
teor haveria que estabelecer as relações
causais explicativas dos fatos históricos das
ciências morais e políticas, parto da
investigação da história e da tarefa delineada
a este ramo. (Dilthey, (1875) 1951, p. 384).
Para Dilthey, apesar do avanço obtido pelos positivistas em relação à metafísica, esses
não foram capazes de perceber a particularidade das ciências do espírito. Deveriam
iniciar seu trabalho destacando a multiformidade dessas ciências em suas
especificidades, mas acabaram por submeter o conjunto das ciências humanas a padrões
metodológicos estranhos.
86
A complexidade da realidade humana escapa
a toda explicação natural. Não se pode
explicar a liberdade do homem e suas criações
por leis naturais. O homem não é só objeto da
ciência, mas condição da ciência. A ciência
positiva reduzia a vontade humana a um certo
número de fatores para poder controlar a
ação humana. O homem é criador e a
‘ciência’, no sentido naturalista, não poderia
conhecê-lo. (Reis, 2003, p. 64-65).
Nessa mesma época, a Escola Histórica Alemã tentava provar algo diferente em
relação às ciências do espírito. Mesmo sob a influência da metafísica, representada na
Alemanha pela obra de Hegel, os representantes dessa escola foram capazes de estudar a
história criando metodologias específicas de abordagem do material histórico,
desenvolvendo-o como em nenhuma outra época. Os componentes dessa escola
conseguem notar e valorizar a consciência histórica e dão passos fundamentais para a
emancipação da ciência histórica. Contudo, fazia isso baseada num empirismo radical
em que as fontes históricas tinham um valor em si-mesmas. Acreditava-se que o
passado explicava exclusivamente o presente e as chaves dos enigmas do presente eram
dadas pelo passado. Faltava-lhe, segundo Dilthey, a conexão analítica dos fatos da
consciência, isto é, os historiadores não estavam preocupados com o fundamento
filosófico da história, não se utilizavam das ferramentas oferecidas pela psicologia,
enfim, eram bons historiadores na prática, mas faltava-lhes um pensamento
sistematizador. Esses homens viviam numa época em que a filosofia idealista alemã era
ainda bastante forte. Mas a peculiaridade de seus trabalhos reside justamente no fato de
recusarem como ponto de apoio, qualquer teoria especulativa acerca da história. A
questão do fundamento histórico não era o maior problema teórico deles.
Para Dilthey, metafísicos e positivistas
erraram, uns, quando admitiram a existência
87
de uma realidade que transcendia toda
determinação psicológica e histórica, outros,
quando acreditaram que só a consciência
transcendental neokantiana ou o método
hipotético dedutivo estruturavam os dados da
experiência. (Reis, 2003, p. 72).
Onde está o fundamento do conhecimento da vida, uma vez que nem a metafísica,
tampouco positivistas e historiadores da escola histórica puderam demonstrá-lo? A
resposta de Dilthey a essa questão está no seu prólogo à Introdução..., em que ele
afirma ser os fatos de consciência o ponto sob o qual se apóia o conhecimento da
realidade.
Só na experiência interna, nos fatos da
consciência encontrei um ponto seguro onde
fundamentar meu pensamento, e espero
confiantemente que nenhum leitor duvide,
neste terreno, à força da demonstração. Toda
ciência é ciência da experiência, mas toda
experiência encontra sua conexão original e a
validade que esta lhe presta nas condições de
nossa consciência, dentro da qual se
apresenta: na totalidade de nossa natureza.
(Dilthey, (1883) 1949, p. 5).
Essa é uma conclusão bastante contundente de Dilthey. Poucas frases de Dilthey são tão
precisas e concludentes quanto esta do Prólogo à Introdução... Nesse momento, ele não
tem dúvida de que os fatos de consciência constituem o objeto das ciências do espírito e
que, portanto, a psicologia descritiva seria a ciência fundamental que nos possibilitaria
compreender a vida.
A análise destes fatos constitui o centro das
ciências do espírito, e assim, correspondendo
ao espírito da escola histórica, o
conhecimento dos princípios do mundo
espiritual permanece dentro deste mesmo
88
mundo e as ciências do espírito constituem
dessa forma um sistema autônomo. (Dilthey,
(1883) 1949, p. 5).
O interesse de Dilthey não se localiza somente num aspecto da vida. Se os fatos
da consciência são fundamentais para apreensão de uma realidade, Dilthey nos mostra
que esses fatos são leituras do mundo. O perigo do solipsismo de uma teoria que
direciona a vida para a vida é eminente. Porém, Dilthey se remedia quando em ensaios
posteriores mostra a segurança do mundo exterior. (Dilthey, (1890) 1951).
Para a mera representação do mundo exterior
[a realidade] não é mais que um fenômeno,
mesmo que para nosso ser inteiro volitivo,
afetivo e representativo se nos dá, ao mesmo
tempo que nosso eu, e com tanta segurança
como este, a realidade exterior (é dizer, outra
coisa independente de nós, sejam quais forem
suas determinações especiais); portanto, se
nos dá como vida e não como mera
representação. (Dilthey, (1883) 1949, p. 6).
Como Dilthey tenta mostrar em seu Sonho, as ciências do espírito não possuem uma
unidade estrutural estática, a partir da qual poderiam ser enquadradas com o objetivo de
serem apreendidas pelo conhecimento natural. Elas têm uma forma própria de
desenvolvimento e de se relacionarem com a realidade. As disciplinas foram articuladas
ao longo da história por interesses diversos e com objetivos distintos. Essas articulações
tiveram em cada época um significado próprio e localizado. Por meio de um histórico
das ciências particulares do espírito, Dilthey quer entender o motivo pelo qual a
metafísica serviu de base para o conhecimento até o século XIX.
O caráter prolixo da parte histórica não se
deve unicamente às necessidades de uma
introdução, senão que obedece também a
89
minha convicção acerca do valor que
corresponde à percatação histórica junto à
gnosiológica. (Dilthey, (1883) 1949, p. 7).
Só por meio de uma avaliação histórica da metafísica, pode-se refutá-la. Assumindo
diferentes formatos, as disciplinas tinham uma utilização instrumental para a metafísica,
pois ao fim e ao cabo, o que se pretendia alcançar era a verdade que essas disciplinas
escondiam. O objetivo era homogeneizar a realidade por meio de um discurso universal.
Entretanto, o ocaso da metafísica e o surgimento da consciência histórica trouxeram
para Dilthey a certeza de que a realidade está em constante mudança e, portanto, as
ciências que pretendem investigá-la estão também sujeitas a essa mesma lei histórica.
Dilthey entende que a realidade não é homogênea, tampouco poderiam ser as
ciências que a investigam. Nenhuma ciência é capaz de apreender o todo da vida
histórica. Há apenas visões parciais da realidade ou “leituras”. As teorias acerca da vida
histórico-social fazem recortes na massa terrivelmente complicada dos fatos que lhes
interessam para poderem penetrar nela. (Dilthey, (1883) 1949, p. 85). Cada sujeito
histórico compreende o mundo de uma forma diferente. E, se pensarmos que as
disciplinas resultam do esforço de várias pessoas e épocas, podemos concluir que é
impossível às disciplinas chegarem à compreensão total do mundo.
Dilthey retoma aqui o argumento do conhecimento do criador, formulado por
Vico e Kant. Segundo esse pensamento, o sujeito só pode conhecer aquilo que ele
mesmo criou. Nesse sentido, o único conhecimento plausível da realidade histórica, só
pode ser empreendido por aqueles que nela se encontram, por meio de instrumentos que
eles mesmos criaram: as ciências particulares do espírito. Essas ciências relacionam-se
com a realidade histórico-social, com os indivíduos que as criam e com as outras
ciências particulares. Toda ciência carrega uma concepção de mundo e uma leitura da
90
realidade, por isso uma ciência nunca conseguirá abordar por completo a história. Uma
disciplina científica nos possibilita a compreensão de algum objeto, mas isso se dá de
forma parcial. Contudo, na medida em que ela articula uma leitura da realidade,
permite-nos não só ter uma idéia do que ocorreu no passado, como também, esclarecer
pontos de sua própria época. (Domingues, 2004; Lage, 2003).
Dilthey rompe com o modo pelo qual os pensadores da Escola Histórica Alemã
tratavam a pesquisa histórica. Para Dilthey, a preocupação com a formação do Estado
alemão era exagerada. O conhecimento histórico era condicionado por demais. Dilthey
acreditava que o conhecimento da realidade deveria servir à vida. Para ele, deve-se ter
em mente que o conhecimento é um instrumento que a vida utiliza para se auto-
conhecer. Dilthey acreditava que o conhecimento da realidade deveria servir à vida. O
que deveria ficar claro é que o conhecimento é um instrumento da vida para se auto-
conhecer (Selbstbesinnung). A história não tem uma finalidade pragmática, isto é, não
pode ser monopolizada para infirmar qualquer visão política em detrimento de outras
interpretações.
O utilitarismo inglês seria o grande responsável por esse pragmatismo da história
que, segundo julgava Dilthey, era nocivo ao conhecimento, pois busca encontrar as
razões práticas pelas quais as coisas funcionam ou devem funcionar. Contudo, para
Dilthey não há razão prática a priori ou posteriori, pois a vida é sempre histórica e sua
finalidade reside em si-mesma. A história é vida e para conhecê-la é necessário mais do
que a religião, metafísica, o idealismo ou a ciência natural; é preciso sentimento e
empatia, isto é, o sujeito deve abrir-se ao objeto, de tal modo que sua compreensão
ultrapasse o que uma relação meramente cognitiva possibilitaria. Para tanto, ele propõe
que se leve em conta aspectos volitivos e sentimentais. O sujeito histórico é uma vida
integrada, conectada, estruturada, composta de diversas qualidades que são os meios
91
pelos quais ele se relaciona com o mundo. Por causa dessas peculiaridades, as ciências
particulares se diferenciam bastante das ciências naturais. (Dilthey, (1883) 1949).
Talvez Dilthey tenha super valorizado um certo pragmatismo presente nos
trabalhos dos historiadores da Escola Histórica. De certa forma, as intuições conceituais
e as teorias que Dilthey foi capaz de fazer, sejam resultado do trabalho prático desses
historiadores. Dilthey seria o grande sistematizador dessa escola, mas sua limitação
seria o fato de acreditar demais na influência de correntes de pensamento estrangeiras
sobre os historiadores alemães. Contudo, talvez tenha um pouco de razão ao afirmar que
a falta de discussão teórica entre esses homens seja o limite dos seus trabalhos.
Em seu importante texto de 1875, Dilthey é ainda mais preciso sobre o limite das
teorias da filosofia da história, da escola histórica e do positivismo. Para ele,
(...) a filosofia da história, tal como se entende
até hoje, é uma falácia, o mesmo que a
filosofia da natureza; sobre a base de uma
olhada resumida da matéria já tratada e
artisticamente agrupada pelos historiadores,
não se pode inferir, pelos muitos elementos
psicológicos, lógicos e metafísicos que se
mesclem, mais que meias verdades. É possível
que com essas visões cheguemos a perceber
relações causais exatas, mas não podem ser
comprovadas mais que em virtude de métodos
históricos-críticos que se orientam como
pontos reconhecidamente decisivos, pela
análise e investigação. Porque o passo da
possibilidade de uma relação causal à
demonstração de sua realidade é a precisa
tarefa das investigações particulares, e o
descuido desta demonstração metódica de
enlace causal é uma das falhas mais
recorrentes e, ao mesmo tempo, mais fatais da
historiografia que aplica o padrão metódico
mais rigoroso para a comprovação de cada
fato, ainda que, pelo que se refere às relações
causais, que são as que em definitivo nos
demonstra a história, se contente em satisfazer
com uma grande liberdade artística para
tratar os fatos e desembaraçar os quadros
92
históricos sobre a base de uma
verossimilhança interna. Neste ponto a
história necessita urgentemente de um reforço
de sua consciência lógica. (Dilthey, (1875)
1951, p. 387-88).
A escola histórica foi capaz de superar o pensamento metafísico em vários pontos. A
teoria comtiana trouxe para a terra problemas referentes ao conhecimento histórico.
Contudo, em ambos os casos o ganho foi limitado. Por conta da aproximação das
ciências do espírito aos padrões científicos das ciências naturais, a história foi
naturalizada. Para Dilthey, a historiografia da época era carente em relação à discussão
teórico-conceitual necessária a toda e qualquer ciência. A metafísica idealista foi
questionada, mas restava ao conhecimento histórico resolver problemas relativos a
especificidade de seu objeto e método. (Dilthey, (1875) 1951).
A questão do objeto
O objeto das ciências particulares é a vida histórico-social, o conjunto das
experiências vividas ou vivências (Erlebnis). A vivência é a expressão de uma ação
humana. Todas as vivências constituem e são constituídas na vida. A vida é o fluxo
partilhado das atividades e das experiências dos homens que, no seu todo, constituem a
trama da história, na sua diversidade social e na sua particularidade humana. A vida, no
entrosamento de ação e compreensão, imbui, atravessa e percorre todos os nexos da
humanidade; as suas expressões ou manifestações incluem signos, símbolos, o discurso
oral e a escrita, as práticas sociais etc. Tais expressões da vida se dão na história. A
história é o palco das manifestações de vida. Não há qualquer determinação supra-
histórica da vida investigada pelas ciências do espírito. Dilthey não investiga a vida
como uma realidade biológica, mas como espírito histórico. Dilthey afirma que a
vivência histórica (Erlebnis) é a base comum de todas as ciências do espírito.
93
O individual, o singular histórico oferece para
cada ciência particular do espírito e o
singular se vai captando em máxima
aproximação graças aos esquemas que
oferecem as ciências sistemáticas. (Imaz,
prólogo. In: Dilthey, (1910) 1978, p. XVIII)
Sobre essa base as ciências do espírito atuam compreensivamente e, por isso, devem
buscar uma fundamentação epistemológica também comum. Todas elas se fundam na
vivência, na expressão de vivências e na compreensão dessa expressão. (Dilthey,
(1910) 1978, p. 92). Junto à vida está também a sua forma de compreensão. Ser e saber
estão intrinsecamente relacionados. O objeto das ciências do espírito tem suas
peculiaridades, mas é preciso esclarecê-lo, conceituá-lo e diferenciá-lo do objeto das
ciências naturais. O grande problema a ser resolvido por hora é: o que significa a vida
para Dilthey? Essa caracterização espiritual da vida pode excluir a natural? Em que
medida as ciências do espírito podem rdar relevo a singularidade do espírito humano
sem fazer referência ao seu suporte natural? Algumas considerações de maturidade nos
ajudam a pensar o caminho que Dilthey seguiu no esforço de definição da vida:
A raiz última da mundividência é a vida.
Espalhada pela terra em incontáveis decursos
vitais singulares, vivida de novo em cada
indivíduo e, visto que se subtrai à observação
como simples instante do presente, retida no
eco da recordação, por outro lado, por se ter
objetivado nas suas manifestações, é mais
plenamente apreensível, segundo toda a sua
profundidade, na compreensão e na
interpretação do que em toda a percepção e
captação da própria vivência a vida
encontra-se presente no nosso saber em
formas inumeráveis e, no entanto, mostra por
toda a parte os mesmos rasgos comuns.
(Dilthey, (1911) 1992, p.111).
94
A vida é, sobretudo, algo que cada indivíduo sente dentro de si enquanto experiência
vivida. Só temos um sentimento da vida quando a vivemos, quando a experimentamos.
A vida é o dado primeiro e ponto de partida, e
especialmente, base de todo o conhecimento.
Sem embargo, a vida nos é trágica e
misteriosa porque não nos é acessível ela em
si-mesma, senão tão somente nos produtos de
seu curso. (Cerío, 1957, p. 410).
Temos um sentimento da vida sempre relacional, isto é, a vida só pode ser sentida na
relação com o mundo exterior e com outras pessoas. Essa relação com o exterior
provoca nos sujeitos os mais diversos sentimentos. Ela é fundamental para a
constituição da história. A história resulta da atuação dos sujeitos, portanto, ela é o
espaço onde a vida é compartilhada. Para Dilthey, é difícil pensar uma vida isolada. Um
indivíduo perdido numa ilha torna-se natureza e cria hábitos estranhos, mesmo que tal
experiência seja efetivamente possível, a sociabilidade possibilita vivências muito mais
ricas. Esse mundo exterior exerce, no entanto, uma pressão sobre o indivíduo. Cada um
deve aprender como viver em sociedade e como se relacionar com as outras pessoas.
Não é uma tarefa simples a adequação das vontades individuais com as possibilidades
oferecidas pelo mundo circundante. Por isso Dilthey utiliza-se do termo Ausdruck
(expressão) que tem uma conotação de reação a uma pressão exterior, para mostrar que
as expressões humanas são produtos de uma relação tensa do indivíduo com o mundo.
Quando o indivíduo consegue se relacionar com esse mundo e ser feliz, isso
significa que ele conseguiu adequar as suas vontades com o mundo. Tal sujeito tem
consciência de sua experiência e de suas limitações. O indivíduo sabe que “está-aí”
graças à experiência que ele tem da vida. Essa consciência possibilitada pela
experiência histórica faz com que a vida torne-se plena de sentido. O sujeito que
95
consegue refletir sobre sua situação histórica é aquele capaz de compreender e se
relacionar com a alteridade. Dilthey acredita que só a consciência de nossa realidade
histórica, pode nos dar o conhecimento do mundo e, por conseqüência, a liberdade. De
fato,
(...) da reflexão sobre a vida nasce a
experiência da vida. Os acontecimentos
singulares que o feixe de impulsos e
sentimentos em nós suscita na sua confluência
com o mundo circundante e com o destino
convertem-se nela num saber objetivo e
universal. (Dilthey, (1911) 1992, p. 112).
As experiências de vida constituem todas e quaisquer expressões que, por intenção ou
não, se tornam compreensíveis. Por isso, é preciso salientar, a vida só ganha sentido
dentro do mundo criativo dos homens. Esse sentido significa que tal expressão pode ser
comunicável e compreendida. Dilthey não fala de um sentido metafísico ou ontológico,
mas sentido histórico, vivido, compartilhado e expressado. Só podemos compreender a
vida espiritual de um sujeito porque ela se expressa histórico-socialmente.
Os sujeitos se relacionam e formam laços (conexões) dos mais diversos tipos:
familiares, institucionais, profissionais, amorosos etc. Eles criam, mas ao mesmo tempo,
são influenciados por essas conexões que formam uma conexão maior: uma sociedade,
um período histórico, um contexto etc. Sob essa teia, os indivíduos vivem e interagem,
pois este mundo torna-se familiar quanto mais os sujeitos forem capazes de
compreender-se mutuamente. Mas cada um dá um sentido particular à experiência que
ele vive dentro de um determinado contexto. E por mais que haja conexões
significativas entre as vidas, as possibilidades de vida são múltiplas e indetermináveis.
Como acredita Cerío,
(...) se Dilthey não tivesse descoberto que toda
a atividade da vida é uma trama conexa, de
96
modo que nada fique isolado, senão em
essencial referência aos demais, cairia no
solipsismo, num absoluto concretismo ou
radical mudez do conhecer. (Cerío, 1957, p.
415).
A dinamicidade da vida torna peculiar o objeto das ciências do espírito. Podemos
reconhecer uma estrutura estável, conexões efetivas e identidade nas expressões
históricas, mas a marca mais contundente da vida é sua historicidade. A natureza da
vida espiritual é complexa e do ponto de vista das ciências naturais é contraditória. Tal
contradição não pode ser superada, pois é justamente ela que caracteriza o que é próprio
do humano. Assim temos que o que nos constitui como seres históricos é a
(...) validade universal e a vontade em nós de
algo firme, o poder da natureza e a autonomia
da nossa vontade, a limitação de cada coisa
no tempo e no espaço e a nossa faculdade de
ultrapassar os limites. (Dilthey, (1911) 1992,
p. 114).
O que dá suporte a essa característica peculiar do ser humano é aquilo que Dilthey
chama de “referência vital”.
Dilthey se refere ao conceito de “referência vital” (Lebensbezüge) para dizer que
ela forma a base das ciências do espírito. Tudo aquilo que é peculiar ao humano se
baseia nessa referência. O historiador, ao descrever situações e personagens históricos,
despertará com tanto maior força a impressão da vida real quanto mais nos faça ver
estas referências vitais. (Dilthey, (1910) 1978, p. 155). Essa referência vital é o
princípio das experiências dos sujeitos. A experiência individual se ratifica nessa
generalidade. Isso não é uma abstração tipológica que absorve os sujeitos nela
97
envolvidos. Mas é o conjunto comum criado a partir das experiências dos indivíduos ali
presentes. São criações da vida comum, em comunidade.
Na experiência da vida há uma série de enunciados que correspondem às mais
diversas formas de agir diante da própria vida. Esses enunciados são o conhecimento da
realidade e a valoração, isto é, o ato de atribuição de valor; e o estabelecimento de
condutas necessárias para se alcançar finalidades. Esses enunciados estão dispostos em
relação aos outros e se determinam. E ganham sentido na vida de cada sujeito histórico
que também é chamado de unidade vital.
Cada unidade vital é um sujeito singular. É um homem-tipo em que se realizam
conexões possíveis da vida. Cada sujeito é uma possibilidade de vida diferente. Cada
um constrói a sua própria história, mas é capaz de compartilhá-la e torná-la apreensível.
É um homem-tipo, pois é um exemplo de como é possível viver um mesmo período
histórico sob uma outra perspectiva, com outras motivações e experiências.
Cada sujeito é uma possibilidade vital diferente e singular e que ganha sentido
particular dentro do mundo que o cerca. Não só sua vida é especial, mas também o seu
tempo histórico e ambos merecem a atenção do historiador caso queira investigá-lo.
Ademais,
(...) o historiador deve compreender toda a
vida dos indivíduos tal como se manifesta em
um determinado tempo e um determinado
lugar. Pois, toda a conexão que marcha dos
indivíduos, aos sistemas culturais e às
comunidades, até chegar, finalmente, à
humanidade, constitui precisamente a
natureza da sociedade e da história. (Dilthey,
(1910) 1978, p.158).
98
Os sujeitos históricos são os indivíduos, com suas particularidades e, por extensão, as
comunidades e os sistemas culturais por eles criados.
Dilthey ressalta a importância do sujeito no processo do conhecimento, pois se
de um lado, ele tem como objeto a realidade histórica, de outro, a forma como ele vai
abordá-la está condicionada por seu mundo histórico-social. A visão do investigador,
segundo admite Dilthey, é sempre parcial. Como conjugar, porém, essa parcialidade do
trabalho do investigador e a necessidade de se alcançar um conhecimento histórico
objetivo? Dilthey responde que:
(...) a vida e a experiência da vida constituem
a fonte sempre fluente da compreensão do
mundo histórico-social; a compreensão vai
penetrando na vida cada vez a novas
profundidades; somente em sua ação sobre a
vida e a sociedade cobram as ciências do
espírito sua significação maior. (Dilthey,
(1910) 1978, p. 161).
Mesmo que a história consiga congregar as vidas singulares, para muitos sujeitos
essa vida comunitária é forçosa e difícil. A temporalidade da existência humana faz com
que muitos busquem para além do que é humano um “porto seguro” que lhes forneça
algo estável, imprimindo sentido às suas existências delimitadas historicamente. Os
sujeitos devem, no entanto, ter, sobretudo, disposições vitais diante do mundo. Ele deve
ter consciência de que o conhecimento mais estável que ele pode ter do mundo é o
histórico. A historicidade deve ser assumida como algo positivo, é aquilo que o
caracteriza como tal. Os indivíduos devem se assumir como seres históricos e ser
agentes históricos. Um homem ativo torna o mundo familiar e pouco estranho, assim,
compreende-o e poucas coisas lhe surpreendem. Quanto mais o mundo o envolve, mais
o sujeito amplia sua existência em relação ao seu exterior. Todo agir é uma atividade
99
teleológica, isto é, tem uma finalidade primordial, qual seja, de se conectar ao todo real
que lhe atribui sentido.
O indivíduo é, ao mesmo tempo, um elemento
nas interações da sociedade, um ponto em que
cruza os diversos sistemas destas interações,
reage com uma direção volitiva e com uma
ação consciente sobre os efeitos das mesmas e,
por outra parte, é uma inteligência
contemplativa, investigativa. (Dilthey, (1875)
1951, p. 401-02)
Assim o mundo torna-se cognoscível na conexão mútua dos indivíduos. A vida
histórico-social só é possível devido à nossa capacidade de compreensão do outro.
Somos capazes de produzir linguagens e, por isso, de nos inteirarmos uns com os
outros. A compreensão é, sobretudo, uma disposição vital.
As ciências do espírito devem então se basear nessa capacidade que o homem
possui de compreender para fundamentar-se enquanto conhecimento autônomo. Para
Dilthey, retomando Vico e Kant, as ciências só podem investigar aquilo que o homem
criou. Kantiano, Dilthey recusa a possibilidade de se alcançar as essências pelo
conhecimento, mas é também anti-kantiano, pois acredita que a história não pode ser
compreendida valendo-se o pesquisador de juízos sintéticos a priori, pois a realidade
não é meramente epifenômeno. (Dilthey, (1883) 1949).
Dilthey quer compreender a individualidade histórica em sua integridade, a
partir de sua unidade psicofísica. Toda a realidade é apreendida dentro da consciência
individual do sujeito que integra o mundo segundo representações próprias e singulares.
As expressões prescritas no tempo são todas originárias de um mundo subjetivo e
interno. Ao mesmo tempo em que o indivíduo histórico é a base sobre a qual os fatos
100
históricos ganham sentido, ele é também um organismo natural, pois nasce, cresce e se
desenvolve de forma natural (animal) e se relaciona com o curso de sua vida de forma
também natural, isto é, tem necessidades biológicas e que são, em última instância,
caracteres vitais, fundamentais para sua existência. Por isso, pode-se dizer que a vida
espiritual tem sua base na natureza, no seu corpus fisiológico. Todas as ações,
expressões e manifestações são formas de materialização de algo dentro do organismo
que as gera. (Dilthey, (1883) 1949).
A vida espiritual é uma parte da unidade psicofísica do indivíduo e essa vida
espiritual nos é dada por meio da compreensão. Somos capazes de reviver estados
espirituais alheios, mas não os naturais. Contudo, essa vida espiritual tem origem na
constituição natural do indivíduo. Mas essa vida possui um movimento complexo que a
desenvolve na medida em que se afasta da natureza. O homem como unidade de vida se
nos apresenta tanto como um complexo de matizes espirituais até onde nosso
conhecimento nos possibilita alcançar quanto um corpo natural até onde nossa
capacidade sensível nos permite sentir. Não obstante, a manifestação da vida espiritual
nunca se dá no mesmo instante que uma ação fisiológica do corpo. Independentemente
do mundo natural e suas manifestações, só somos capazes de compreender a vida
interna de um sujeito a partir de nossas próprias experiências internas que concebem o
estado alheio por meio da consciência. Logo, as manifestações de vida dos outros só
existem para o sujeito segundo sua capacidade de apreendê-las. (Dilthey, (1883) 1949).
Os atos externos são materializações do espírito. O mundo tal como o vejo em
seu percurso temporal e desenvolvimento não é outra coisa senão uma conseqüência da
vida do espírito. O pesquisador das ciências humanas deve, portanto, se voltar para as
expressões históricas sempre em vista de sua matriz espiritual. Já o cientista da natureza
se preocupa somente com o materializado, enquanto objeto natural e bruto. Em ciências
101
humanas, o cientista parte de uma materialidade objetivada para, no fim, alcançar o
sentimento, a vida que está ali por detrás. As ações do espírito são, no limite,
manifestações da natureza em desenvolvimento, ao mesmo tempo em que, as ações
naturais são condições da vida espiritual. Contudo, Dilthey não está interessado em
investigar as bases naturais da vida, este trabalho já era feito pelas ciências naturais.
Mesmo que haja essa relação com a natureza, a vida histórica nasce de um sentimento
espiritual. Com efeito,
(...) sobre essa base natural, uma ação
recíproca mais íntima e em grau mais
determinado de consciência de coopertença,
devido à semelhança e também à recordação
de ascendência de parentesco vai se dando um
novo sentimento de comunidade que é
condicionado pela sociedade a qual o
indivíduo está inserido. (Dilthey, (1883) 1949,
p. 75).
A vida de um sujeito ganha autonomia frente ao mundo natural e esferas mais poderosas
começam a influenciá-la e determiná-la. A relação volitiva de dominação e dependência
encontra seus limites na esfera da liberdade interior. (Dilthey, (1883) 1949, p. 75). Se
pudéssemos explicar essa liberdade interior somente utilizando conceitos abstratos e
naturais não seria necessária a consecução da tarefa de distinção das áreas do
conhecimento. Contudo, a imprevisibilidade da vida humana faz com que a sua
apreensão seja diferente das ciências naturais.
Não é tão simples, entretanto, essa diferenciação de objeto das ciências do
espírito e das ciências naturais. Esse mundo interior recebe influência da natureza e
sobre ela também age, mas essa ação é, muitas vezes, inconsciente. As determinações
biológicas do sujeito possibilitam-no viver os sentidos múltiplos, históricos e
espirituais. Não que a natureza determine o que o sujeito será, ela é tão somente o aporte
102
fisiológico da vida. Em última instância, o que ela nos possibilita é viver a vida. Em
termos de objeto, ciências do espírito e ciências naturais não se diferenciam
estritamente, pois ambas podem tomar a vida de um sujeito como ponto de investigação.
Natureza e espírito agem no mundo em conjunto e só por operações abstratas podemos
separá-las.
Todos os objetos das ciências morais têm por
fundamento um conjunto fisiológico. A
fonética se apóia sobre a fisiologia vocal, o
olhar sobre o globo ocular, a afetividade
sobre as glândulas endócrinas, o pensamento
sobre o sistema nervoso. Os fatos espirituais
estão associados aos materiais em todas as
ciências do espírito. (Reis, 2003, p. 101).
Podemos perceber, portanto, que os estudos da natureza servem de base para o
conhecimento espiritual e as ciências do espírito dependem do conhecimento da
natureza. Essa natureza que determina o que é o homem e como se desenvolve; e este,
no seu desenvolvimento, está impregnado pelas leis da natureza. (Dilthey, (1883) 1949).
Dilthey admite, portanto, que a investigação das ações do espírito não pode
simplesmente ignorar o aspecto físico da vida. Esse aspecto fisiológico da vida humana,
contudo, só ganha sentido à medida que o sujeito é capaz de apreendê-lo. Se não é dado
à consciência, não ganha significado algum para o sujeito. A natureza sem consciência
não passa de um objeto das ciências naturais e, portanto, não pode ser conhecida dentro
do conjunto das ciências espirituais. Como nos lembra Hilton Japiassu,
(...) o ser humano, orgânico em sua estrutura,
é cultural em seu desenvolvimento. O limiar da
humanidade coincide com o advento da
linguagem, que funda uma nova relação do
homem consigo mesmo e com o mundo. A
linguagem suscita uma consciência da
consciência. A história introduz, sobreposta à
103
hereditariedade natural, uma hereditariedade
cultural. Esboça assim, uma nova dimensão da
consciência humana. (Japiassu, 1978,
p.103/104).
Portanto, a vida humana, para além de seu “corpus” orgânico, se desenvolve
culturalmente ao criar linguagem e, com ela, o sentido. O mundo espiritual se apóia na
natureza, mas não deriva dela. A natureza histórica do homem representa sua natureza
superior. (Dilthey, (1889) 1954, p. 378). Mas, afinal, entre natureza e espírito, há uma
continuidade ou descontinuidade? Dilthey afirma a descontinuidade da vida espiritual
frente à natureza, mas o risco de recaída na metafísica era iminente (Reis, 2003, p.
127), pois o mundo espiritual se descontextualiza e se torna manifestação da
transcendência. A esse impasse Dilthey vai responder que não existe nem continuidade
ou descontinuidade, mas relação. O mundo espiritual tem uma independência relativa. O
que o diferencia é a capacidade do ser humano de se expressar, comunicar e
compreender. Não há uma hierarquia entre a natureza e o espírito, eles têm sentidos
específicos dentro de suas realidades cognitivas. Dilthey enfatiza a diferença entre as
ciências. O espiritual não anula o natural ou vice-versa. Dilthey não pretende
dicotomizar a vida humana justapondo o espiritual ao natural, mas, pelo que vimos,
procura relacioná-los sem que se ignorem. A proposta diltheyana é tomar os estudos
sociais na singularidade que estes requisitam. Pois estas ciências têm como objeto a
vida histórico-social. Dilthey queria entender essa vida em sua realidade autêntica e
singular e não em sua natureza ontológica ou transcendental. (Dilthey, (1883) 1949).
No mundo histórico não existe nenhuma
causalidade científico-natural porque causa,
no sentido desta causalidade, implica que
provoque efeitos necessariamente, com ordens
e leis; a história sabe unicamente de relações
104
de fazer e padecer, de ação e reação. (Dilthey,
(1910) 1978, p. 221).
Essa vida histórica é constituída pelos indivíduos que se misturam e entretecem.
O mundo humano, numa primeira impressão, parece imerso num caos inapreensível,
mas é exatamente isso que faz sua riqueza e o torna sedutor. Esse mundo
(...) é conexão da realidade, molde de valores
e reino de finalidades, e todo ele em
proporções de uma riqueza infinita, dentro da
qual vai se modelando a personalidade em
relação com o todo. (Dilthey, (1883) 1949 p.
XVIII).
Esse mundo histórico é formado pelos indivíduos. Os sistemas culturais, políticos e
sociais surgem do entrelaçamento e das necessidades que as pessoas têm. O direito, a
política, as instituições religiosas, a moral etc. encontram-se fundamentados em
necessidades historicamente delimitadas. No fim, temos que, para compreender essas
organizações externas da sociedade, devemos entender o funcionamento da consciência
humana e os conceitos formulados por meio das necessidades práticas dos sujeitos. O
mundo histórico é formado pelo sujeito seja quando este resiste às pressões externas,
seja quando se integra. No fim, portanto, é a consciência individual que sintetiza os
acordos feitos socialmente e faz com que os sujeitos os cumpram ou não. Nesse sentido,
as ações históricas são sempre resultados da atuação individual, seja quando o sujeito
empreende sentido à realidade dentro de si-mesmo, seja quando o sujeito reage ao seu
mundo externo.
Cada indivíduo e cada época descobrem no
outro e no passado virtualidades de si mesmo.
A limitação do seu ser é ao mesmo tempo a
105
condição de sua dilatação até os limites da
história universal. (Reis, 2003, p. 152).
A interação dos sujeitos seja entre si, seja com a realidade histórica gera a
dinâmica da história. A articulação dos indivíduos resulta na formação de grupos que
compartilham uma série de afinidades e se vêem como semelhantes. O indivíduo capta-
se a si-mesmo sempre em relação com os outros. (Cerío, 1957, p. 412). Dentro dessa
comunidade produzem significados particulares os quais, em conjunto, são chamados de
cultura. É a partir disso que Dilthey afirma que as duas finalidades máximas da vida
humana são: viver em sociedade, produzindo e reproduzindo-a; bem como fazer
história. Estar na história, ser um sujeito histórico, saber da historicidade de sua vida,
enfim, ter consciência histórica; essas são as peculiaridades da vida humana. Pois o
sujeito não se insere nessa dinâmica histórico-social ao acaso.
O poder desatado de suas paixões, o mesmo
que sua necessidade íntima, seu sentimento de
comunidade converte-no, que é um elemento
integrante da trama desse sistema, em um
membro da organização exterior dos homens.
(Dilthey, (1883) 1949, p. 54).
A partir dessas considerações Dilthey chega à seguinte conclusão:
(...) o centro, portanto, de todos os problemas
concernentes a um semelhante fundamento das
ciências do espírito reside na possibilidade de
um conhecimento das unidades psíquicas de
vida e nos limites desse conhecimento.
(Dilthey, (1883) 1949, p. 73).
As ciências do espírito devem desenvolver suas terminologias próprias para que
reforcem seu objetivo de ter domínio sobre seu campo de atuação.
106
(...) a conexão total que compõe a realidade
histórico-social tem que ser objeto de uma
consideração teórica que se oriente para
explicar essa conexão. (Dilthey, (1883) 1949,
p. 95).
A compreensão da realidade só poderia ser levada a cabo pelas ciências particulares do
espírito, mas essas deveriam estar fundamentadas epistemologicamente, pois
(...) a complexa realidade suprema da história
só pode ser conhecida por meio das ciências
que investigam as uniformidades dos fatos
mais simples em que podemos decompor essa
realidade. (Dilthey, (1883) 1949, p. 97).
Esperamos ter mostrado com essa reflexão a diferença de abordagens das ciências do
espírito e das ciências naturais frente ao objeto: vida. Dilthey não pretendeu hierarquizar
esses grupos de conhecimento, uma vez que
(...) assim como ele não acredita que haja leis
universais que valham para todo tempo, lugar
e sociedade, assim como ele defende a
alteridade do passado e a diversidade dos
valores culturais, ele propõe que se busque
estabelecer entre as ciências humanas e
naturais uma relação de diferença, de
alteridade, para que nenhuma destas formas
de abordar o mundo se sobreponha à outra.
(Reis, 2003, p. 100).
Mesmo que haja pontos de apoio mútuo, não há como fundi-las com o pretenso intuito
de garantir uma fundamentação epistemológica segura, imprimindo nelas um caráter
científico a partir do empréstimo de conceitos e certas características que não lhes
seriam especificamente dadas. Pois
107
(...) a vivência é uma realidade absoluta no
sentido de que permite fincar pé seguro
porque coincidem perfeitamente o sujeito e o
objeto; uma experiência última, pois não se
pode ir mais além; uma conexão estrutural,
pois sempre se dá em devir: um presente em
precipitação. (Imaz, prólogo. In: Dilthey,
1951, p. XIV).
Enfim, é possível dizer a partir de Dilthey que a vida é a realidade sobre a qual
autam as ciências do espírito e como não se pode ir além dela para buscar seus
fundamentos, a vida é o fundamento último das ciências do espírito. Nesse sentido,
Cerío ressalta que
(...) a vida é a última realidade que não apela
a nenhuma outra por detrás de si. Logo, na
vida mesma tem que estar a solução; é dizer,
em seu curso, em sua história, que não é outra
coisa que a justificação que a vida faz de si-
mesma. (Cerío, 1957, p. 423).
A questão metodológica
As ciências modernas começam a se formar a partir da dissolução da metafísica
medieval. O objeto dessas ciências é a natureza, por isso são chamadas de
Naturwissenchaften. No final do século XIX
(...) atravessavam a época de maior poderio
sobre a vida intelectual que nunca havia
experimentado. A atitude mental que elas
representam e a idéia do real que está
implícita em seus métodos eram consideradas
como a norma vigente. (Ortega y Gasset, 1958,
p. 215)
As ciências do espírito só começam a ser articuladas mais tarde, pois até os finais do
século XVIII, trabalhava-se em ciências humanas sem a preocupação de se perguntar
108
pelo fundamento do conhecimento que se praticava. Dilthey, inconformado com essa
atitude, questiona-se: como se ocupar de um ofício em que não está clara a natureza
desse conhecimento, de seu objeto, sua metodologia e, enfim, sua especificidade?
Conhecer a realidade sem saber quais são os instrumentos que se tem à mão é o mesmo
que caminhar às escuras. Viver, elaborar os meios de investigação possíveis da vida e,
por fim, compreendê-la é o percurso necessário do sujeito que investiga a história.
(Dilthey, (1883) 1949).
Os positivistas acreditavam, no entanto, que - para a compreensão da realidade -
as ciências naturais forneceriam os instrumentos mais apropriados, seguros e confiáveis.
As ciências naturais por disponibilizarem os métodos científicos de maior rigor e
precisão, forneceriam o modelo a ser seguido por todas as áreas do conhecimento: a
explicação. Por isso, a proposta de Dilthey era pouco aceita e seguida. Dilthey recusa
esse modelo metodológico baseado na explicação e propõe em seu lugar a compreensão
empática da vida. Dizia,
(...) só podemos explicar mediante processos
puramente intelectuais, mas a compreensão a
fazemos mediante à cooperação de todas as
forças do âmbito humano na captação. E para
compreender partimos da conexão do todo,
que se nos dá de uma maneira viva, fazendo
assim apreensível o singular. O fato de que
vivemos na consciência da conexão do todo
nos permite compreender uma proposição
singular, um gesto ou uma ação determinada.
Todo pensar psicológico oferece este traço
fundamental, a saber, que a captação do todo
torna possível e determina a interpretação do
singular. Se a reconstrução da natureza
humana pela psicologia quer ser algo são,
vivo, fecundo para a inteligência da vida, terá
que basear-se no método original da
compreensão. (Dilthey, (1894) 1951, p. 222).
109
A ciência era, à época, geralmente designada como um conjunto de proposições
cujos elementos eram conceitos determinados, constantes e de validade universal.
Segundo o modelo do positivismo, as ciências do espírito caberiam, com algumas
adaptações, dentro desse padrão metodológico. Essas disciplinas, para serem
reconhecidas como ciências rigorosas deveriam respeitar os mesmos critérios
epistemológicos das ciências naturais. Dilthey se opõe a essa idéia, pois, como
procuramos mostrar anteriormente, devido à peculiaridade do seu objeto, as ciências do
espírito possuem um padrão metodológico bastante diverso.
O objeto das ciências do espírito é a vida histórica, a realidade histórica. Para
Dilthey, o método deve ser capaz de expressar a singularidade desse objeto, isto é, deve
ser também uma expressão histórica. E
(...) só porque na vida e na experiência
contém-se toda a conexão que se apresenta
nas formas, princípios e categorias do
pensamento, só porque se podem mostrar
analiticamente na vida e na experiência, existe
um conhecimento da realidade. (Dilthey,
(1892) 1951, p. 185).
Nesse sentido, a explicação utilizada à época era insuficiente, pois visava, sobretudo, a
neutralidade histórica. Um discurso científico deveria valer para todos e em todos os
lugares. Por seu turno, a compreensão visa o sentido do objeto. Um sentido oculto que a
compreensão quer revelar. Desde os tempos de juventude, Dilthey dava uma conotação
hermenêutica à ação compreensiva. Acreditava que não era possível neutralizar o
sujeito, mas também sabia que não existia um sentido único nos acontecimentos.
Portanto, um método próprio para as ciências do espírito seria aquele que respeitasse a
situação histórica da vida em sua complexidade e multiplicidade. A compreensão é uma
110
operação metodológica que carrega consigo três tipos de conexões: intelectiva, afetiva e
volitiva. Por isso, ela não é um procedimento meramente racional, pois o ser humano
não se reduz à sua capacidade de intelecção. Por partir do pressuposto de que o ser
humano é um todo em que cooperam para sua constituição aspectos intelectivos,
afetivos e volitivos, Dilthey acredita que o método das ciências do espírito deve
resguardar todos esses aspectos da vida. (Dilthey, (1883) 1949).
O método também deve ser múltiplo, isto é, ele deve se adaptar às mais diversas
situações. E o único método capaz de se adaptar às mais diferentes situações da vida
seria a compreensão. É a compreensão o método que consegue variar conforme a
maneira e a importância das manifestações da vida. Dilthey em seu texto A
Compreensão dos Outros e suas Manifestações de Vida mostra-nos como a
compreensão (Verstehen) está relacionada com a vida histórica (Erlebnis) e sua
expressão (Ausdruck). (Dilthey, (1910) 1986). Essa capacidade de variação da
compreensão começa nas situações cotidianas, nas quais são expressadas as mais
diversas formas de conceitos e juízos. Dilthey nos explica que tais conceitos são
produtos extensos do pensamento e se referem à validade do pensamento independente
do contexto em que aparecem, permitem a identificação dos interlocutores porque são
formulações comuns tanto a uns quanto a outros e expressam um pensamento comum,
válido e lógico. Contudo, nada revelam da personalidade do sujeito que o anuncia. Uma
operação aritmética numa aula de matemática, por exemplo, será possivelmente
entendida pelos alunos, mas nada nos dirá da personalidade da professora que a explica.
Atua aí o que Dilthey denomina como compreensão elementar. (Dilthey, (1910) 1986).
A compreensão elementar funciona no cotidiano e na vida corriqueira. Ela
trabalha também por comparação e analogia, isto é, o sujeito compara o conceito dado,
com os seus conhecimentos prévios até que o desconhecido se torne familiar. Ela
111
permite-lhe o diálogo e a convivência com as pessoas no dia a dia. Um conceito se
tornará familiar na medida em que ele puder ser comparado a outros que o sujeito
possui. Nenhum juízo ou conceito está desvinculado de um contexto e pode estar
acompanhado por uma ação. A ação já se encontra num nível de complexidade maior do
que um juízo. Não está revelada se uma ação nasce com a intenção de se comunicar,
mas em sua expressão carrega embutida uma linguagem e, portanto, algo já
comunicável. A ação se relaciona com o nexo de vida que a exprimiu. Por mais
espontânea que seja, ela revela algo próprio desse nexo vital, por isso permite-nos o
acesso à vida interna do sujeito e ao seu mundo espiritual. A limitação da ação é que ela
é capaz de somente nos revelar esse mundo interno (que é produtor da ação), mas do
mundo externo (seu contexto histórico), pouco nos é dito e só de forma limitada
poderemos saber algo sobre o contexto no qual o sujeito se insere. Mas é exatamente
isso que Dilthey busca por meio da compreensão: a vida em sua integridade total. Sobre
a ação atua ainda uma compreensão de tipo elementar, pois ela não requisita maiores
instrumentos para ser dada ao entendimento. Uma ação é ainda compreendida por meio
da analogia. A compreensão elementar é um importante auxílio no convívio social. Ela
aproxima as pessoas que sem um esforço mais elaborado, conseguem se entender. A sua
carência pode trazer sérios problemas de convívio e inviabilizar a vida social. A
experiência vivida sem compreensão não se realiza e o resultado pode ser o
aniquilamento mútuo. (Dilthey (1910) 1986).
Acima das ações e dos conceitos estão as expressões de vivência. Essas
expressões nascem com a intenção exclusiva de se comunicar. O interlocutor quer se
tornar inteligível aos seus destinatários. Uma expressão tem um sentido que quer ser
comunicado. É uma situação bastante complexa e revela plenamente a condição do
sujeito que a criou. Um livro, uma poesia, uma obra de arte são exemplos de expressões
112
que comunicam não só aspectos do contexto em que foram criadas, mas, sobretudo, a
síntese original que o sujeito é capaz de formular deste contexto. Mas uma única
expressão não revela exclusivamente o que o sujeito é. A expressão está vinculada a
outras que nos ajudam a compreender o mundo. Devido à imensidão de possibilidades
comunicativas que a expressão traz, é impossível compreender uma vida em sua
integridade total. O caminho entre a expressão e a compreensão não é facilmente
percorrido. Entre a intenção e a recepção pode haver desvios, fissuras, dissimulações e
outros ruídos que atrapalham a compreensão do sentido, por isso deve atuar aí uma
compreensão superior. (Dilthey, (1910) 1986).
A compreensão superior nasce do estranhamento. Alguma coisa aconteceu que
não permite a integração do significante ao significado. É preciso investigar e pesquisar
para que o sentido seja reintegrado. São necessárias provas, pois a relação entre a
manifestação de vida e a vida interna não se efetivou. Uma compreensão superior é,
sobretudo, coerente e articulada. Mas não é uma operação meramente lógico-abstrata. A
compreensão é uma experiência de vida, que surge da própria vida e
(...) as experiências da vida não são [meros]
produtos do pensamento. Não brotam da
simples vontade de conhecer. A apreensão da
realidade é um momento importante na sua
configuração, mas, no entanto, é apenas um.
Promana da conduta vital, da experiência da
vida, da estrutura da nossa totalidade
psíquica. A elevação da vida à consciência no
conhecimento da realidade, na valoração da
vida e na realização volitiva é o lento e árduo
trabalho que a humanidade prestou no
desenvolvimento das concepções da vida.
(Dilthey, (1911) 1992, p. 120).
113
Uma expressão pode ser vivida, intuída e sentida antes de ser, propriamente,
compreendida. De fato, a compreensão já atua nessas ações menos racionais, pois a
compreensão é antes de tudo uma experiência de vida. Na base da compreensão
superior está a elementar e não há como desvinculá-las. Por isso, um método que valha
para a revelação do sujeito é aquele que integra a vida simples aos fatos mais complexos
e gerais. Um método que parta da experiência pessoal do sujeito. Em ciências humanas,
o sujeito deve estar familiarizado com as experiências metodológicas que tem à mão.
Com efeito,
(...) compreendemos uma ação humana dada,
se pudermos aplicar a ela uma generalização
baseada na experiência pessoal. Podemos
aplicar tal regra se formos capazes de
internalizar os eixos da situação. (Abel, 1974,
p. 189).
O foco da compreensão é sempre a singularidade da vida humana. Mesmo nas
formas superiores, quando se parte de algo mais geral, visa-se a obra individual. O
indivíduo é o único valor absoluto a ser apreendido. Esse indivíduo se relaciona com os
outros e faz parte de um contexto historicamente delimitado. É uma síntese do mundo
que compartilha. Um indivíduo é uma unidade original perante a diversidade que o
circunda. Só podemos compreendê-lo por esse aspecto íntegro por meio da colaboração
das mais diversas ciências. O sujeito tem uma infinidade de atitudes diante do mundo
que nem sempre podem ser apreendidas por um único método. A colaboração dos mais
diversos saberes ajuda-nos a compreender a originalidade de uma vida. Por isso é tão
importante o trabalho interdisciplinar nessa difícil tarefa de se compreender a história.
(Dilthey (1910) 1986; (1883) 1949).
114
Como existem variadas disciplinas dentro do quadro metodológico dessas
ciências há diferentes gradações de compreensão superior. Há a transposição, a
revivência, a recriação e, finalmente, a interpretação. Na transposição o sujeito se
transfere ao objeto, porque todas as referências das ações estão presentes e disponíveis.
Um determinado objeto que possa ser retomado em suas próprias condições, poderá ser
transposto. Dilthey acredita que só por meio de uma auto-biografia poderá se ter à mão
condições similares às descritas acima. Pois, nesse terreno a alma percorreu um trilho
conhecido no qual já antes gozou e sofreu, exigiu e agiu, em circunstâncias de vida
semelhantes. (Dilthey, (1910) 1986, p. 280). Isso nunca acontece de forma absoluta, o
sujeito do conhecimento acaba atribuindo expressões do seu mundo ao do outro. Uma
transposição é mais uma abertura ao mundo do outro, do que propriamente um
deslocamento de contexto ou época, pois dado o limite de nossa própria vida, o outro
nos ajuda a compreender algo que, de certa forma, já sabemos, pois está em nossa vida.
Como nos lembra Abel,
(...) a operação da Verstehen se baseia na
aplicação da experiência pessoal à conduta
observada ou suposta, se pudermos fazer um
paralelo entre qualquer uma delas e algo que
por auto-observação sabemos que ocorre.
Ademais, desde o momento que a operação
consiste na aplicação de conhecimentos que já
possuímos, não pode servir como mero
descobrimento. Quando muito, só pode
confirmar o que já sabemos. (Abel, 1974,
p.194).
A revivência é uma outra forma de compreensão. A revivência é uma operação
que tenta seguir a linha dos acontecimentos que vão da intenção à consecução da ação.
Mas não é um procedimento somente intelectual, é algo que acontece a todo momento,
pois o ato comunicativo nos exige a capacidade de reviver a ação descrita numa
115
expressão. Numa cena teatral, por exemplo, mesmo que a experiência apresentada seja
completamente diferente de tudo aquilo que o sujeito já viveu, pela imaginação e
analogia, o sujeito é capaz de revivê-la em seu espírito. Por isso, se emociona, chora ou
se alegra. A revivência amplia o universo de experiência de cada vida. Assim, os artistas
e historiadores têm uma missão bastante similar em relação à compreensão do outro e a
revivência de estados alheios: permite-nos passar por experiências não oferecidas por
nossas condições históricas. (Dilthey, (1910) 1986, p. 281).
A revivência não é uma migração do sujeito à situação do objeto. Na verdade, o
estado alheio é recriado dentro do espírito do sujeito. Nem mesmo em condições ótimas,
poderíamos reviver plenamente a vida do outro, o que se tem, portanto, é uma recriação
a partir dos elementos que o outro oferece. Não obstante, o nosso espírito se amplia
diante da expressão do outro, ele pode nos provocar emoções as mais variadas possíveis
e nos ajudar a nos conhecer melhor. A possibilidade de recriação de estados alheios é
uma das operações mais intensas da vida e é ela que nos permite conhecer o outro. E, de
fato, como nos lembra Reis,
O conhecimento nas ciências do espírito só
será possível se o eu puder se colocar,
empaticamente, no lugar do outro,
conhecendo-o assim pelo interior. Se isto não
for possível, as ciências do mundo humano
serão também impossíveis. Para que as
ciências humanas existam, este conhecimento
pelo interior deve ser possível. (Reis, 2003, p.
194)
Além desses diferentes graus de compreensão, existe um último ainda a
considerar: a interpretação ou exegese. Ele se diferencia dos outros porque tem uma
elaboração técnica mais apurada. A revivência, a recriação e a transposição dependem
bastante de um dom individual. Mas Dilthey tem por objetivo delinear uma metodologia
116
tecnicamente elaborada para que sirva de fundamento para o conjunto das ciências do
espírito e, por isso, esses diferentes níveis de compreensão são limitados. Por seu turno,
a interpretação passou por um longo período de construção e se encontra num nível
relativamente satisfatório para que possa valer como metodologia peculiar para as
ciências do espírito. A interpretação atua como uma técnica de compreensão de
expressões escritas. Seu objeto são os relatos escritos. A ciência que agrega suas
técnicas é a hermenêutica. (Dilthey (1910) 1986, p. 283).
Em O Surgimento da Hermenêutica, Dilthey mostrou o desenvolvimento
histórico dessa ciência que saiu da condição de técnica de revelação de mensagens do
Oráculo, passando para a condição de ciência da interpretação, com recursos cada vez
mais sofisticados. (Dilthey, (1900) 2003). A hermenêutica estabelece o conjunto de
regras necessárias à compreensão do mundo histórico, mas há limites em sua atuação:
ela não consegue esgotar o sentido do mundo alheio. Entre a vida e a interpretação
existem lacunas que nunca serão preenchidas. Mesmo com todo o desenvolvimento da
hermenêutica, sempre haverá mistérios que não poderão ser revelados e a ciência nunca
esgotará a capacidade imaginativa do ser humano. Ao invés de o sujeito tomar esse
limite como obstáculo, deve tê-lo como pressuposto, pois talvez assim possa estabelecer
um conhecimento mais sincero, mais próximo à vida. (Dilthey, (1900) 2003).
A compreensão só recupera o conteúdo da
experiência do outro. Compreende-se o
sentido sem querer existir com ele. E
compreendemos as ações dos outros sem
precisar realizá-las. Uma coincidência
absoluta da experiência interna do eu e do
outro não é possível, pois não há
conhecimento sem algum distanciamento entre
sujeito e objeto, mesmo se o objeto é um outro
sujeito. (Reis, 2003, p. 183).
117
Dilthey não foi o primeiro a utilizar o método da compreensão. Vico, bem antes
dele, já o utilizara, tendo sido talvez o seu criador. (Abel, 1974). Mas a tradição alemã
foi responsável por dar sistematicidade à compreensão e a consolidou como um
importante instrumento em ciências humanas. Dilthey foi um dos seus maiores teóricos.
Ele foi responsável por sistematizar uma teoria que se tornou referência na tradição
hermenêutica. O seu texto O Surgimento da Hermenêutica de 1900 marcou época no
desenvolvimento desse conceito. Reis nos mostra que o tema da compreensão em
Dilthey é amplo e atinge todas as áreas das ciências humanas. A questão metodológica
pressuposta nele, nos faz resvalar em áreas de grande tensão, a saber, a relação do
racional e irracional, ciência e arte, psicologia e história, interpretação e exegese etc. A
busca pela correta compreensão da vida, levou Dilthey a terrenos poucos seguros, numa
época em que a ciência era exata e ‘verdadeira’. Talvez seja esse o motivo que explique
porque o problema da compreensão e da hermenêutica ficou tanto tempo relegado ao
limbo. (Reis, 2003, p. 178). O ponto de destaque da teoria diltheyana foi aproximar o
método, da vida. Sobretudo, a compreensão hermenêutica seria uma forma do
investigador buscar o sentido do texto da vida histórica. Essa vida é um grande texto a
ser compreendido. A vida tem a sua coerência, é ela que o investigador deve
compreender, antes mesmo e através do texto. (Dilthey, (1900) 2003).
A compreensão é a capacidade que o investigador possui de atualizar no seu
espírito algo que se passou. Os fatos podem ser reproduzidos de certa forma em nossas
próprias vidas.
Todos os fatos nela [história] nos são
compreensíveis; sobre a base da percepção
interior de nossos próprios estados os
podemos reproduzir em nossa representação
até um certo ponto, acompanhá-los com ódio e
amor, com alegria apaixonada e com todo o
118
jogo de nossos sentimentos, porém
contemplamos esse mundo em que nos
percebemos a nós mesmos como elementos que
atuam entre outros elementos. Porque este
mundo nosso é a sociedade e não a natureza.
(Dilthey, (1875) 1951, p. 399).
A peculiaridade do objeto e a singularidade do método permitem a Dilthey
delinear as características próprias das ciências do espírito.
As ciências do espírito, tais como são e como
atuam em virtude da razão da coisa mesma
que tem operado na história, abarcam três
diferentes classes de enunciados. Um deles
expressa algo que se oferece à percepção;
contém o elemento histórico do conhecimento.
O outro desenvolve o comportamento uniforme
dos conteúdos parciais da realidade que foram
isolados pela abstração: constitui o elemento
teórico das mesmas. A última classe expressa
juízos de valor e prescreve regras: abarca o
elemento prático das ciências do espírito.
Fatos, teoremas, juízos de valor e regras,
estão aqui as três classes de enunciados que
compõe as ciências do espírito. E a relação
entre a orientação histórica do estudo, a
teórico-abstrata e a prática, penetra como
uma circunstância fundamental comum em
todas as ciências do espírito. A captação do
singular e do individual constitui nelas uma
meta última, não menos que o desenvolvimento
das uniformidades abstratas. (Dilthey, (1883)
1949, p. 35).
Por se fundamentar na vida histórica, toda e qualquer ciência tem um aspecto histórico.
As ciências do espírito têm uma conexão com a realidade histórico-social. Elas se
fundamentam em fatos históricos, bem como nas leis que regem esta realidade e com as
regras das sociedades criadas para que os homens alcancem seus objetivos. A vida
119
histórica é o ponto a partir do qual, qualquer ciência inicia suas considerações. É a
própria realidade que busca inteligibilidade. Mas o elemento histórico é apenas um
aspecto. Completa-o o elemento teórico. A ciência que parte da história deve
empreender uma operação de síntese que prescreva as principais características de uma
disciplina. É um elemento abstrato, mas muito importante na compreensão da vida, pois
ela permite a apuração de métodos que enfrentem os desafios impostos pelo mundo e o
estabelecimento de regularidades por meio do pensamento. (Dilthey (1883) 1949).
O último elemento fundamental das ciências do espírito é o juízo de valor. Ele
prescreve regras de conduta, é o elemento prático de toda ciência. Dilthey acredita que o
conhecimento deve servir à vida, pois é sua fonte. A prescrição de regras não é absoluta,
é apenas uma referência para a ação dos homens que podem segui-las ou não. Mas ao
fim, toda ciência deve mostrar a que veio. (Dilthey, (1883) 1949).
Com isso fecha-se o círculo dos elementos metodológicos básicos das ciências
do espírito. Dilthey tem consciência de que esse modelo operacional utilizado pelas
ciências do espírito é também uma teoria com uma situação histórica, mas a vantagem
desse modelo é que ele se fundamenta na história e não em preceitos metafísicos e/ou
ontológicos. Por isso, a peculiaridade epistemológica deve ser ressaltada pois o
pressuposto dessas ciências é outro e, por isso, não podem ser reduzidas aos paradigmas
das ciências naturais. Essas três classes de enunciados (história, teoria e juízo)
constituem um procedimento metodológico peculiar que toda a ciência do espírito deve
obedecer para apreender a realidade. Esses elementos só podem ser relacionados por
meio de uma auto-reflexão que não é outra coisa, senão a Crítica da Razão Histórica.
Dilthey acentua a relatividade de toda a forma
de vida histórica, dando ênfase ao
desaparecimento da validade absoluta de
qualquer tipo particular de constituição de
vida, religião ou filosofia e apontando a
120
consciência histórica como aquela capaz de
destruir a fé na validade universal de qualquer
das filosofias que pretenderam erigir sistemas
de concepção do mundo. (Amaral, 1993, p.
76).
Só essa crítica pode resolver a tarefa de conhecer a realidade e elevar esse conhecimento
a uma teoria objetivamente fundamentada. (Dilthey, (1883) 1949, p. 35-6).
A solução dessa tarefa poderia designar-se
como crítica da razão histórica, é dizer, a
capacidade do homem para conhecer-se a si-
mesmo e à sociedade e a história criadas por
ele. (Dilthey, (1883) 1949, p. 117).
a crítica da razão histórica pode compreender a vida em suas articulações,
pois como vimos, a história é uma conexão (Zusammenhang). A experiência vivida
(Erlebnis) é o elemento básico da vida que se dá à expressão (Ausdruck), onde atua a
compreensão (Verstehen).
Assim, pois, temos que a conexão da vivência,
expressão e compreensão constitui o método
próprio pelo qual se nos dá o humano como
objeto das ciências do espírito. As ciências do
espírito se fundam, portanto, nesta conexão de
vida, expressão e compreensão. Uma ciência
corresponde ao grupo das ciências do espírito
quando seu objeto nos é acessível mediante à
atitude fundada na conexão de vida, expressão
e compreensão. (Cério, 1959, p. 428).
Nesse momento Dilthey nos oferece novos elementos analíticos como base das
ciências do espírito. Em 1883, na Introdução... Dilthey mostrou a articulação dos
121
elementos histórico, teórico e prático, mas somente em 1810, com a publicação do seu
texto Estruturação do Mundo Histórico Dilthey nos deu mais elementos dessa
articulação da vida com o conhecimento, dessa crítica da razão histórica.
E certamente, esta conexão da vida, expressão
e compreensão não abarca somente os gestos
e palavras, com os quais se comunicam os
homens, ou as criações espirituais
perduráveis, nas quais se abrem à
compreensão as profundezas do criador, ou as
objetivações constantes do espírito em
formações sociais, mediante às quais se
transparecem o comum do ser humano e se
nos oferece com certeza intuitiva, senão que
também a mesma unidade vital psicofísica se
conhece a si-mesma para essa dupla relação
entre vivências e compreensão, da conta de si-
mesma no presente, se encontra a si-mesma na
memória como algo passado; mas na medida
em que trata de reter e captar seus estados, na
medida em que encaminha a atenção para si-
mesma, impede-se de ver também os limites
estreitos de semelhante método instrospectivo
do conhecimento de si-mesmo: unicamente
suas ações, suas manifestações de vida
fixadas, os efeitos delas sobre os demais,
instruem o homem acerca de si-mesmo; assim
aprende a conhecer a si-mesmo pelo círculo
da compreensão. (Dilthey, (1910) 1978, p.
107).
Assim temos que as ciências do espírito só poderão ser articuladas por meio de
uma crítica da razão histórica se forem capazes de demonstrar a conexão que perpassa
toda vida humana. Tanto em seus elementos característicos básicos, como em sua
conexão triádica, podem as ciências do espírito encontrar a peculiaridade de sua
atuação. Tais modelos servem para Dilthey ilustrar como em ciências humanas há uma
estreita vinculação da vida com o conhecimento e somente se a teoria for capaz de
respeitar essa relação, poderá garantir um fundamento objetivamente válido para as
122
ciências do espírito. (Dilthey (1883), 1949). A esse respeito, Rickman se manifestou da
seguinte forma:
No meu ponto de vista, Dilthey produziu a
mais coerente, compreensível, científica e
frutífera filosofia dos estudos humanos na
história do pensamento. Muitos pensadores
acerca desse assunto estão, desde a sua época,
seguindo seu rastro. (Rickman, 1988, p. 164).
123
Capítulo 3 A Teoria da História em Dilthey
A história e as ciências do espírito
É a história uma ciência particular do espírito? Pode-se dizer que o
conhecimento histórico se fundamenta na conexão vivência-expressão-compreensão?
De quê tipo é o conhecimento elaborado pelo historiador? Qual é o estatuto desse
conhecimento para Dilthey? Pode-se dizer que a teoria diltheyana sobre a história é uma
teoria do conhecimento histórico?
Essas questões são pontos a partir dos quais podemos entender melhor o
conceito de história em Dilthey. Para Dilthey a história é a fonte das ciências do
espírito. Dilthey dizia que o que um homem é só sua história pode dizer (Dilthey,
(1883) 1949, p. XXV). Dilthey era um historicista pleno, pois partia do pressuposto de
que todo e qualquer conhecimento em ciências humanas é histórico. Ele acreditava que
o conhecimento do passado era possível. (Reis, 2003). Dilthey é notadamente
reconhecido como um dos maiores representantes do historicismo alemão do século
XIX. Ele faria parte do movimento que Reis chamou de historicismo epistemológico
com contaminações filosóficas. (Reis, 2003, p. 31). Essa posição está de acordo com a
teoria de Manuel Cruz que afirma ser epistemológico o historicismo de Dilthey. Além
do historicismo epistemológico, haveria um ontológico e outro cosmológico
1
. Mas o
nosso interesse se limita ao trabalho de Dilthey e não nos cabe seguir adiante nessa
discussão.
Apesar dos múltiplos significados que esse termo recebeu, há um consenso entre
os investigadores em ciências humanas de que pensadores como Vico e Herder, o
movimento da Escola História Alemã e pensadores como Dilthey, Droysen, Croce e
1
Segundo Manuel Cruz, o maior representante do historicismo ontológico seria Hegel e do cosmológico
seria Darwin. O ontológico deriva da crença de que a essência (o ser) das coisas no mundo é a
historicidade. Por seu turno, o cosmológico acredita que o desenvolvimento da natureza é um processo
histórico. (Cruz, 1991).
124
outros; constituíram um movimento intelectual chamado de historicismo (Historismus
na Alemanha). Não existe um historicismo ideal e puro. Ao contrário, cada autor deu
um significado próprio para o seu trabalho. Contudo, algumas características
fundamentais básicas são estendidas a todos autores historicistas. Para eles:
* a história humana é marcada pelo devir.
* não existem valores ou verdades eternas.
* cada fato histórico tem sua singularidade e particularidade.
* não existe uma natureza humana.
* o homem social é um ser histórico.
* os fenômenos relativos ao ser humano são históricos.
* a concepção histórica do mundo substitui a teológica.
O historicismo epistemológico é, segundo Cruz, fundamentalmente
antropológico, isto é, trata da historicidade em relação à vida humana. (Cruz, 1991).
Acreditam que toda e qualquer ação humana seja historicamente delimitada. (Reis,
2003, p. 8 e ss.)
O historicismo acredita que investigador e objeto investigado são, cada qual,
frutos de um determinado momento histórico, são produtos históricos. Seguindo as
lições de Vico, os historicistas acreditam que, para nós, seres humanos, a única
realidade passível de ser investigada é a vida histórica, sujeita às vicissitudes do tempo.
O tempo histórico é o da vida, e a vida é histórica. O tempo e a história em Dilthey têm
uma conotação antropológica, isto é, a vida humana é aquilo que produz o tempo. O
tempo não é uma categoria transcendental à vida. É a vida histórica que institui o tempo.
O tempo é o próprio devir histórico. Ele é a categoria da vida que nos diz de sua
situação no presente, no passado e no futuro. Graças a esse constante fluir da vida no
tempo, só podemos conceber a história numa operação arbitrária, ou seja, congela-se
125
um momento dessa vida que passa, para apreender seu sentido, mas a vida continua,
indiferente à intervenção abstrata. O conhecimento intervém na vida em um momento
singular tentando compreendê-la. Esse é o grande desafio em ciências humanas:
conhecer a vida em constante mudança. (Dilthey, (1910) 1978).
Dilthey foi um dos principais teóricos do século XIX a tratar do problema da
historicidade da vida. Mas há uma polêmica em torno de sua obra, pois muitos dos seus
leitores afirmam que ele talvez não seja historicista e tampouco tenha elaborado uma
teoria do conhecimento histórico. Segundo Carvalho, não há uma preocupação em
Dilthey com a historiografia e seu fundamento. Tampouco, pode-se dizer que a história
seja uma ciência do espírito, pois o tripé metodológico história-teoria-prática que
fundamenta a atuação das ciências do espírito sobre a realidade não sustenta o
conhecimento elaborado pelo historiador. A história se limitaria à compreensão da vida
histórica, mas não elabora uma teoria e nem prescreve qualquer juízo para a vida
prática. A história seria, no máximo, uma disciplina auxiliar das ciências do espírito,
pois forneceria a estas o material da realidade. O trabalho da história termina onde o das
ciências começa. (Carvalho, 1993).
A historiografia não possui as características
básicas definidoras das ciências teóricas do
espírito. A historiografia obviamente não é
nem uma ciência de sistema cultural, nem uma
ciência da organização externa da sociedade.
(Carvalho, 1993, p. 38)
Carvalho nos faz retomar o debate que apontamos no primeiro capítulo a respeito da
teoria da história. Sua conclusão é, no entanto, contrária à nossa afirmação de que
Dilthey elaborou uma teoria do conhecimento histórico. Segundo a perspectiva de
Carvalho, em Dilthey não há uma teoria da história, pois o saber histórico não é
126
científico e, por conseguinte, ao historiador está vedado o uso de reflexões a partir das
quais poderia pensar sobre os objetos e metodologias específicas do conhecimento
histórico. A história se limitaria à apreensão do singular, do individual e não pode
lançar mão de generalizações explicativas que se impõem à vida. Para Carvalho, em
Dilthey, conclui-se que a história não é ciência, e sim uma arte. (Carvalho, 1993, p. 42)
Temos algumas ressalvas em relação a essa idéia. A definição de ciência que o
autor utiliza é limitada e remete somente a uma obra teórica: a Introdução... Como
ressaltamos anteriormente, as principais reflexões de Dilthey sobre a disciplina histórica
estão presentes principalmente em O Mundo Histórico e em suas obras historiográficas.
A partir da análise dessas obras, podemos dizer já, de antemão, que a definição do
campo específico de atuação da história foi uma preocupação recorrente em seu
trabalho. Como afirma Spranger a história é o ponto principal para entender a obra de
Dilthey. Só na história se alcança um conhecimento da vida. (Apud: Cério, 1959, p. 2).
Georg Misch, seu genro, também dizia: a poética, juntamente com a teoria da história
era o germe de suas idéias sobre a vida e a compreensão da vida. (Apud: Cério, 1959,
p. 3). A teoria das ciências do espírito deve ser considerada a par e par com sua teoria
sobre a história. (Sousa, 1982, p. 18). Há ainda um sem número de leitores
2
que
afirmam ser a história o grande ponto de apoio da teoria do conhecimento de Dilthey.
Como mostramos no capítulo anterior, uma ciência do espírito não se define
exclusivamente por seu aspecto histórico, teórico e prático, mas, sobretudo, por sua
articulação metodológica com a vida. O termo ciência em Dilthey é polissêmico, mas a
constante referência à articulação vivência, expressão e compreensão nos dá uma pista
de que é por esse terreno que sua idéia se define. O certo é que, até a consecução da
Introdução... ainda ecoava em Dilthey ressonâncias do positivismo, mas já a partir da
2
Cerío indica uma lista enorme de leitores de Dilthey que mostram ser a história o ponto de partida de
sua obra teórica. Para mais detalhes, ver: Cério, 1959. Principalmente o primeiro capítulo.
127
última década do século XIX, Dilthey retoma seus estudos na área da poética, estética e
hermenêutica, que havia deixado de lado para a consecução da Introdução.... Portanto,
para entendermos o que Dilthey quer dizer com ciência histórica é preciso ter em mente
essas novas leituras e abordagens. Ademais,
(...) considerar a história uma ciência é
atribuir-lhe fundamentalmente um sistema de
conhecimento em cuja estrutura se definam
não só um objeto específico e uma
metodologia própria, mas também a sua teoria
geral de orientação, como sucede em qualquer
ciência seja natural ou social. (Sousa, 1982, p.
40 e 41)
Dilthey não nos oferece em sua obra uma definição pronta e acabada do seu
conceito de história. Ele não abriu mão do termo ciência para definir essa disciplina que
atua sobre a realidade. Porque uma disciplina cientificamente fundamentada é aquela
capaz de elaborar gnosiologicamente o seu método, o seu objeto e, portanto, sua teoria.
Dilthey é um pensador de sua época. Contudo, em relação à ciência que se praticava à
sua época, ele tinha grandes desconfianças em relação à sua capacidade de explicar a
realidade histórico-social. Apesar de não se desvincular do termo, Dilthey dedicou-se
com afinco para demonstrar as peculiaridades do conhecimento histórico. Por
conseguinte, ele teve que, não só definir em que sentido emprega o termo ciência, bem
como explicar a aplicação deste no conhecimento da vida. (Dilthey, (1883) 1949).
A história é o estudo do singular no tempo. Acreditava-se à época que a história
seria uma disciplina com a função estrita de descrever as ações humanas no tempo. Não
se pode negar que ela tenha, de fato, uma função descritiva, pois expõe o transcurso
histórico das ações humanas. A história é responsável por mostrar como a consciência
histórica atua na apreensão da vida, por isso, como disciplina descritiva, ela é
128
fundamental para a teoria do saber das ciências do espírito em dois sentidos: em
primeiro lugar, demonstra as conexões e rupturas entre os tempos históricos distintos,
isto é, a história nos permite estabelecer as relações possíveis entre os diversos
momentos históricos e, em segundo lugar, explicita como o saber se situa histórico-
socialmente. A história nos possibilita compreender o desenvolvimento histórico, bem
como a singularidade de uma época histórica. Portanto, quando se trata de descrever
historicamente a produção das ciências do espírito, o que se quer buscar é a conexão que
essas ciências estabeleceram ao longo da história e saber quais as normas de
pensamento que as instituíram em diferentes épocas. Ao mesmo tempo, a história atua
como auxiliar no trabalho de esclarecimento de como essas ciências se vincularam à
vida e dela receberam influências que determinaram sua atuação. Dilthey enfatiza nesse
momento que a ciência, além de articular conceitos, é resultado, sobretudo, da vida. A
ciência não é um mero instrumento especulativo e de imputação da verdade, mas é a
forma pela qual o conhecimento da vida se torna possível. (Dilthey, (1910) 1978)
Na obra O Mundo Histórico
3
, Dilthey nos diz que as ciências do espírito e a
história atuam de forma conjunta na compreensão da realidade. Em nenhum momento,
Dilthey hierarquiza esses campos disciplinares. A história não está a serviço da
elaboração teórica e sistemática das ciências do espírito, ou pelo menos, não é essa a sua
função primordial. Damos razão a Carvalho quando ele afirma que a história da
Introdução... é uma disciplina auxiliar das ciências do espírito. (Carvalho, 1993).
Contudo, em O Mundo Histórico Dilthey coloca a história no mesmo patamar cognitivo
das ciências do espírito. Em primeiro lugar, ele enquadra a história dentro do grupo das
ciências do espírito ao afirmar logo de início o seguinte: nas últimas décadas tem tido
lugar interessantes debates acerca das ciências da natureza e das ciências do espírito
3
Esse livro traz textos e reflexões sobre o conhecimento histórico feitos, sobretudo, em meados de 1910.
129
e, sobretudo, em torno da história. (Dilthey, (1910) 1978, p. 99). Contudo, em páginas
posteriores Dilthey afirma que ciências do espírito e história têm funções próximas, mas
distintas. As ciências do espírito se incumbem da estruturação ideal do mundo
histórico, já a história tem o trabalho de organizar o saber da históra acerca do decurso
histórico no qual foi surgindo pouco a pouco o mundo espiritual. (Dilthey, (1910) 1978,
p. 109). Essas disciplinas estão separadas, mas encontram no mundo espiritual o fio que
as interliga. História e ciências do espírito se complementam mutuamente. Ambos os
campos do conhecimento se articulam no esforço de apreensão da vida. A história seria
a disciplina que conecta a vida em suas diversas instâncias. Com efeito, a história,
estudo do singular, é a que oferece o material às disciplinas sistemáticas, que
encontram seu objeto no mundo histórico. (Imaz, 1946, p. 101). A história tem a tarefa
de mostrar as conexões efetivas ao longo do tempo. A história seria, então, podemos
concluir, o fundamento das ciências do espírito. Ela é o modelo a qual todas as outras
disciplinas seguem. Assim, para se conhecer os mais diversos aspectos da realidade,
todos os pesquisadores em ciências humanas devem se tornar historiadores. Só a
história pode dizer ao homem o que ele é. (Dilthey, (1910) 1978).
O pesquisador em ciências humanas, portanto, deve ser, também, historiador. Só
a pesquisa histórica e a noção da historicidade dos fatos humanos podem nos libertar da
opressão intelectual imposta pela metafísica. A história liberta o homem dos grilhões
supra-históricos.
Falando de uma maneira mais genérica,
podemos dizer que o homem, atado e
determinado pela realidade da vida, é
colocado em liberdade, não somente pela arte,
como é expressado amiúde, senão também
pela compreensão do histórico. E esta ação da
história que não tem sido vista por seus
detratores mais recentes, se amplia e se
130
aprofunda a cada nova etapa da consciência
histórica. (Dilthey, (1910) 1978, p. 241).
O verdadeiro fundamento sistemático pretendido pelas ciências do espírito, só poderia
ser dado, portanto, pela história que articula de maneira ímpar a vivência, a expressão
e a compreensão. Kant dizia, segundo Dilthey, que a única ciência merecedora de
atenção seria aquela que mostra ao homem o que ele é. E se a história é essa disciplina
basilar das ciências do espírito, só ela pode nos ensinar o que efetivamente somos: seres
históricos. (Dilthey, (1875) 1951, p. 376).
É inútil, como fazem alguns, desprender-se de
todo o passado para reiniciar a vida, sem
algum prejuízo. Não é possível desentender-se
do que ocorreu, os deuses do passado se
converteram então em fantasmas. A melodia
de nossa vida leva a companhia do passado. O
homem se liberta do tormento do momento e
da fugacidade de toda alegria somente
mediante a entrega aos grandes poderes
objetivos construídos pela história.
Entreguem-se a eles, e não à subjetividade do
arbítrio e do gozo, somente assim
procuraremos a reconciliação da
personalidade soberana com o curso cósmico.
(Dilthey, (1883) 1949, p. XXV)
A história não tem, entretanto, uma serventia meramente funcional para as
ciências do espírito, isto é, ela não pode ser caracterizada como aquele conhecimento
responsável por analisar exclusivamente o desenvolvimento histórico das disciplinas.
Enquanto conhecimento objetivamente fundamentado, a história não pode ser reduzida
a uma função de organização do caos da realidade por meio do seu trabalho no arquivo.
Dilthey critica aqueles que assim pensam. Afirma que a pretensão dos filósofos em
elaborar teoricamente o material artisticamente agrupado pelos historiadores,
131
imputando-lhes verdades filosóficas, resultou na criação de um novo gênero da
alquimia. O filósofo deve realizar as operações do historiador sobre a matéria-prima
dos vestígios históricos. Tem que ser ao mesmo tempo historiador. (Dilthey, (1875)
1951, p. 377). Todo pesquisador deve ser historiador para poder ser capaz de analisar a
matéria da vida. De fato,
(...) assim como a historiografia parece ser a
primeira ciência do espírito, que surge no
tempo com seu afã desinteressado de
contemplação, será também a que tornará
possível idêntica constituição para as demais
ciências do espírito. (Imaz, 1946, p. 69. Grifo
nosso).
Por mais que a história estabeleça as possíveis conexões entre épocas, instituições e
pessoas, a sua grande tarefa é, no entanto, fundamentar todo o conjunto das ciências do
espírito. Todo e qualquer cientista em ciências humanas é, antes de tudo, um
historiador. A história é a disciplina que torna possível a fundamentação de todas as
outras ciências. Dilthey acreditava tanto nisso que quando se propunha a estabelecer o
fundamento de uma determinada disciplina, seu ponto de partida era sempre a
compreensão histórica de tal campo do conhecimento. O pressuposto fundamental de
Dilthey era de que não há conhecimento plausível em ciências humanas sem que, antes,
se estabeleça a história desse conhecimento. É preciso se perguntar, no entanto, como a
história executa esse trabalho. Quais materiais ela dispõe para fundamentar as outras
disciplinas? É exatamente sobre essas questões que pretendemos refletir agora.
A especificidade do conhecimento histórico
A concepção de história diltheyana era, sobretudo, anti-idealista, anti-naturalista
e anti-positivista, mas todas essas correntes de pensamento eram extremamente
132
importantes em sua época. Por isso, não deixou de ecoar nele preceitos, principalmente,
positivistas, tanto que, era muito atraente para Dilthey a idéia de “conexão”
(Zusammenhang). Segundo Dilthey, a realidade pode ser compreendida tomando-se
suas conexões de sentido. Cada gesto, ato, expressão, sentimento é significativo. O
significado conecta as partes de um momento e o integra ao mundo histórico. A vida é
permeada de conexões que permitem que sujeitos dispostos longitudinalmente e espaço-
temporalmente possam compreender aquilo que ocorreu. A conexão da vida tem suas
características: ela é vivida, teleológica, una e causal. A vida guarda elementos
conectados ao longo do seu desenvolvimento. A vivência permite que sejam formados
os mais diversos pontos de síntese tornando possível assim a sua compreensão. A
conexão é uma síntese inteligível e estrutural da vida. Frente à diversidade das
manifestações e a espontaneidade das reações dos sujeitos, há momentos em que a vida
demonstra-se integrada e compreensível; e é justamente porque existem conexões é que
podemos empreender um discurso sobre a experiência humana. Apesar de parecerem
estranhos ao mundo do espírito, esses conceitos de que Dilthey lança mão são amostras
de que certos procedimentos metodológicos das ciências naturais não são estranhos às
ciências do espírito. Contudo, o ponto de partida é outro. Tais conceitos surgem da vida
e são dinâmicos. (Dilthey, (1910) 1978, p. 92 93).
O saber histórico visa compreender esse nexo efetivo (aquilo que de fato
ocorreu) da realidade. Dilthey acredita que onde há vida, há significado e há conexão e,
portanto, podemos compreender.
O que nós vivenciamos não se perde, mas
permanece na lembrança. A vida, usando uma
metáfora de Dilthey, é como um simples colar
de pedras. Elas estão justapostas uma após a
outra, mas há um fio que as une, organizando-
as. O fio é o nexo da vida. (Nápoli, 1999, p.
196).
133
O historiador tem a função (artística) de conectar esse fio. Ele faz um trabalho de síntese
dos momentos significativos da trama histórica. O que possibilita a apreensão das
conexões da vida é o método da compreensão. Essas conexões integram o tempo
presente no decurso histórico. Justamente porque o historiador é um sujeito histórico,
pode ele compreender a história, pois de uma forma ou de outra ele está conectado com
a vida que investiga. O historiador quer compreender a vida em sua temporalidade e
devir e, para isso, privilegia as inscrições do homem ao longo do tempo: o vestígio
histórico. Esse vestígio é a parte segundo a qual podemos compreender um todo maior.
Essa relação da parte com o todo que permite a compreensão histórica e ela que articula
a atuação de todas as ciências do espírito.
Se considerarmos agora a conexão interna das
ciências do espírito, que descansa na relação
entre vivência e compreensão, vemos que se
apóia em três princípios fundamentais: a
profundidade subjetiva da vivência faz
possível a interpretação das objetivações da
vida; a compreensão do singular e o geral se
condicionam mutuamente; a compreensão de
uma parte do curso histórico se aperfeiçoa
com a referência da parte ao todo, e o todo
pressupõe a compreensão das partes. (Cério,
1957, p. 418).
O vestígio histórico é caracterizado por sua perenidade, pois atravessa períodos e épocas
e possibilita ao investigador ter uma idéia do que ocorreu outrora. Ele remonta a um
outro mundo que o historiador desconhece. Esse desconhecimento não é, no entanto,
absoluto. Dilthey acreditava que não existe na história objeto integralmente
desconhecido, pois algo assim não poderia ser dado à linguagem humana. Mesmo uma
vida remota é passível de nos despertar emoções e nos incitar a curiosidade. Como
compreendê-la?: pergunta-se o historiador. Dilthey nos sugere uma estratégia: o
134
historiador deve ser capaz de transferir sua experiência vivida para o mundo
investigado, por meio da compreensão. O historiador deve tentar se colocar no lugar do
outro (Sichhineinversetzen) para reviver (Nacherleben) a experiência desse outro, mas
sem prejuízo de sua identidade. Precisamente graças a esta revivência, devemos ao
historiador e ao poeta a aquisição e ampliação da vida espiritual. (Cério, 1959, p. 481).
Essa transferência é uma ação a partir do mundo do historiador em direção ao mundo
desconhecido.
Por mais diferentes que sejam os homens em
suas sociedades, culturas e épocas, subsiste
em todos a possibilidade da expressão e da
compreensão recíproca. O reino do Espírito, o
mundo histórico é um mundo de sentido, em
que a comunicação é possível e se realiza.
Quanto maior é a diferença entre os homens,
mais necessária a comunicação se torna e
mais intensa é a compreensão do outro. (Reis,
2003, p. 30)
A compreensão da vida é uma atitude para além do limite do pensamento. Ela busca o
sentido da vida. É a atividade de tornar o exterior interior, na qual, através da
representação do objeto, surge a imagem do eu, que acontece a autoconsciência.
(Nápoli, 1999, p. 196). O historiador deve ter a ciência de que ele próprio é um
personagem histórico, por isso está sujeito às forças espirituais de sua época e da
história, e é por meio desta condição que interpreta o mundo. Seu objeto também é
sujeito a essas forças históricas.
A compreensão é um encontrar-se do eu com o
tu, o espírito se encontra a si-mesmo em
etapas cada vez mais altas de conexão; esta
identidade do espírito no eu, e no tu, em cada
sujeito de uma comunidade, em cada sistema
cultural, finalmente, na totalidade do espírito
e da história universal torna possível a
135
cooperação das diversas aportações nas
ciências do espírito. (Dilthey, (1910) 1978, p.
215).
O objeto da história é a experiência vivida, que resulta da atuação conjunta de um
sujeito frente a outro e de ambos frente ao mundo. A experiência vivida é um nexo
efetivo, uma conexão efetiva, uma expressão significativa e estruturada. Todo e qualquer
fenômeno histórico é constituído por uma expressão e por uma estrutura. A estrutura é
uma conexão significativa de caráter objetivo que aproxima vivências afins. (Nicol,
1989). A experiência vivida é sempre resultado da atuação do sujeito sobre o mundo e
deste sobre o sujeito. O sujeito internaliza os acontecimentos exteriores, por meio de
uma operação que Dilthey chama de interiorização (Innewerden). (Nápoli, 2000, p. 86).
Ele primeiro percebe o objeto exterior e na medida em que essa percepção (Perceptio) é
internalizada e ganha sentido para o sujeito, ela torna-se, então, experiência vivida.
(Nápoli, 2000, p. 87). Assim, todo e qualquer objeto exterior estabelece primeiro uma
relação sensorial com o sujeito e depois de internalizada ganha um sentido particular e
amplia a vida do indivíduo. O resultado dessa ampliação é a expressão (Ausdruck)
daquilo que o sujeito viveu. Uma experiência vivida resulta necessariamente em uma
expressão histórica.
Essa relação com o mundo exterior se estende também ao conhecimento
histórico. O historiador deve ser capaz de perceber a relação do sujeito com o mundo
exterior, distinguindo o que é próprio de um e outro. Esse método analítico é aquilo que
Dilthey chama de observação trocada (wechselnde Betrachtung): segundo o qual a
relação entre o indivíduo e o mundo exterior é determinada sobretudo por meio de
trocas de percepções. De fato,
Dilthey está convencido de que no
conhecimento histórico há uma conexão ativa
136
entre as forças estritamente individuais e um
conjunto de fatores, de certo modo, supra
individuais. (Cério, 1959, 83).
O historiador deve ser capaz de articular e ponderar essas duas forças que se
articulam no mundo histórico: a individual e a geral. Ele tem um grande desafio, pois
deve ser capaz de perceber como uma determinada expressão ocorreu em determinado
momento e como isso se relaciona com o tempo que lhe antecedeu e sucedeu. Esse
acontecimento passado não está isolado no tempo. Se há cisões no tempo, existem
também várias conexões e pontos que se interligam. Compreender essas articulações e
esses pontos significativos não é uma tarefa simples. O historiador deve mobilizar uma
série de métodos que contribuam para a melhor compreensão do seu objeto. E por mais
que ele saiba que entre um indivíduo e o seu contexto exista uma relação, não se pode
estabelecer causas eficientes e necessárias que expliquem de forma exata o que se
passou. O conhecimento histórico é limitado e interminável. Mas quanto mais tivermos
a capacidade de articular diferentes métodos, maior será a compreensão da vida. Por
conseguinte, o historiador lança mão de vários procedimentos para a compreensão desse
tempo pretérito: crítica, interpretação, explicação, comparação, descrição e
compreensão, bem como utiliza categorias que brotam da própria vida. Existem
diversos modos de captação da realidade Os conceitos que designam tais modos chamo-
lhes de categorias. (Dilthey (1910) 1978, p. 216). Cada procedimento será utilizado
segundo circunstâncias específicas, podendo haver uma interlocução entre eles, para que
o sujeito do conhecimento consiga abranger o máximo possível do seu objeto, no
entanto, e é preciso frisar, essa compreensão nunca é total e completa. Em história não
conseguimos apreender a vida passada em sua integridade, é um conhecimento limitado,
mas dentro dessa limitação o historiador pode construir uma narrativa coerente e
137
verdadeira do real, por isso os procedimentos metodológicos que há pouco citamos
ajudam o historiador a tornar sua narrativa verossímil.
Nos comportamos frente à vida, seja a minha
própria ou a alheia, compreendendo. E este
comportamento se leva a cabo com categorias
peculiares, estranhas ao conhecimento da
natureza. (Dilthey, (1910) 1978, p. 221).
Dilthey demonstra que cooperam para o conhecimento da vida dois grupos de
categorias: as formais e as reais. As formais são conceitos abstratos, expressões lógicas
que constituem as condições formais (linguagem técnica) tanto do compreender como
do explicar, tanto das ciências do espírito, quanto das ciências naturais. As categorias
reais são conceitos provenientes da experiência vivida. Elas surgem como regularidades
dinâmicas que funcionam das mais diversas formas, mas que permitem obter uma idéia
daquilo que ocorreu. (Dilthey, (1910) 1978, p. 221). As categorias formais são comuns
ou podem coincidir em diversos campos do conhecimento, mas as reais só se dão no
mundo vivido, como experiência vivida. Por isso, o método historiográfico de Dilthey
opera sobre a realidade por meio de categorias formais, mas sobretudo, por meio das
reais que são conexões da própria vida, são fios que ajudam na inteligibilidade do
objeto. Por meio das categorias, é possível ao historiador intervir na realidade
utilizando-se dessas conexões operatórias. As categorias são tipos, conexões regulares,
por meio das quais, o historiador busca a compreensão do mundo. São exemplos de
categorias: vida, experiência vivida, temporalidade, geração, continuidade histórica,
época histórica, causalidade, significado etc. (Dilthey, (1910) 1978).
Em primeiro lugar, o historiador deve partir da consideração temporal do seu
objeto. A primeira categoria da vida é a temporalidade, a vida é um devir constante, um
rio em constante fluxo. Como nos lembra Rickman,
138
(...) a história, na perspectiva de Dilthey nos
dá mais do que informações sobre nós
mesmos. A consciência histórica libera a
mente do dogmatismo. Nos afasta do
relativismo histórico e por isso a
temporalidade tem autoridade sobre qualquer
sistema de pensamento. (Rickman, 1988, p.
16).
É certo que a conexão psíquica do indivíduo é um importante objeto da compreensão,
contudo, a vida de um sujeito é circunscrita historicamente. Devemos considerar então a
historicidade dessa conexão que se dá na consciência do sujeito, pois ela está
determinada por uma época. É uma consciência histórica, uma vida histórica, tal como
todas as suas criações no mundo exterior. É um devir no tempo, uma obra inacabada e
histórica. Essa categoria se aplica sobretudo na biografia. Dilthey parte da análise das
condições histórico-temporais de uma vida, pois acredita que o sujeito deve ser situado
em relação ao mundo em que vive. Para ele, o mundo histórico tem uma determinação
importante na constituição da personalidade dos indivíduos. Um sujeito relaciona-se
com o mundo de forma tensa, mas essa relação resulta em influências mútuas que, de
um lado, constitui a dinâmica de um determinado contexto e que, de outro, torna-se um
importante aporte na identidade do sujeito. (Dilthey, (1910) 1978).
Esse sujeito está condicionado por forças de um mundo externo que é o lugar
onde os homens se constituem e se diferenciam uns dos outros nos sistemas culturais, ao
mesmo tempo em que, só mesmo historicamente, ganham autonomia e se constroem.
Quer dizer que tanto essas unidades vitais, quanto as associações que englobam os
indivíduos, só podem ser concebidas historicamente. Portanto, as ciências do espírito
são resultados da atuação histórica do indivíduo no mundo. São elas mesmas
experiências históricas que mudam. (Dilthey, (1883) 1949, (1910) 1978).
139
A historicidade da vida não é, no entanto, algo absoluto. A vida tem uma
unidade que permanece e é essa permanência da unidade vital que caracteriza a
realidade histórico-social que se configura assim graças à conservação e conformação
dos indivíduos a ela. São as ciências particulares que separam essa realidade. Mas elas
próprias são constituídas por indivíduos que são sua base e ao mesmo tempo só podem
ser constituídas dentro da própria realidade histórica. É por meio de uma consideração
histórica dos tempos, inclusive do seu próprio tempo, que o historiador poderá
compreender seu objeto de maneira mais correta e abrangente. A consciência histórica
permite ao historiador relativizar seu próprio ponto de vista em relação ao passado, do
qual temos somente vestígios. (Dilthey, (1883) 1949).
Uma segunda característica importante do método biográfico de Dilthey é a
análise da atitude individual frente a essas condições externas e históricas. Para Dilthey
todo e qualquer sujeito quer ser feliz, almeja a integração da sua vida com o mundo,
mas o mundo é um ‘corpo’ estranho que precisa ser internalizado. Para superar a
diferença desse mundo exterior o sujeito se posiciona de modo compreensivo, mas não
para se submeter. A diferença é integrada, mas a identidade e a individualidade do
sujeito são mantidas. O mundo é, aparentemente, o mesmo, mas cada um se relaciona
com ele de forma original. Cada sujeito é uma experiência vivida singular e sobre cada
um deve residir uma análise historiográfica. (Dilthey, (1883) 1949; (1910) 1978).
Segundo Cério, essa relação entre individualidade-exterioridade é possível por
conta das conexões que cada um é capaz de fazer. O historiador compreende por meio
da conexão. Toda vicissitude da vida é uma trama conexa em que tudo se insere numa
referência essencial com o todo. (Leão, 1997, p. 38). O mundo não é um aglomerado de
situações dispersas. Para Dilthey, os fatos acontecem de forma integrada e conectada. O
mundo é uma conexão espiritual, posto que seja passível de ser compreendido. É essa
140
conexão do indivíduo com o mundo que dá a sua inteligibilidade. A complexidade do
mundo se dá em partes conectadas, inteligíveis e integradas. Talvez resida nessa
integração um resquício de preceitos positivistas na teoria historiográfica de Dilthey.
Contudo, essa conexão é histórica, dinâmica, complexa, espiritual e vital. Essa conexão
não tem uma determinação natural e/ou a priori, ela é resultado da relação do sujeito
com o mundo. É uma exigência da convivência social, pois sem conexão não há
compreensão, e sem compreensão não há diálogo possível. (Cério, 1959. Dilthey,
(1910) 1978).
Outro procedimento adotado pelo historiador é a crítica documental. Desde sua
juventude, Dilthey estava acostumado a lidar com documentos e sabia da importância
desse material para compreender a história. Aquilo que o historiador procura pode estar
no conteúdo do documento, mas nem sempre os seus escritos “formais” e “oficiais”
revelam a vida que pretende entender. Por isso, Dilthey tinha especial apreço pelos
arquivos pessoais dos indivíduos que investigava, pois era, sobretudo, nos silêncios e
sentimentos puros presentes nas reticências, rascunhos, frases incompletas, cartas
pessoais onde o historiador poderia apreender o sentido do mundo espiritual do sujeito.
Estes documentos não-oficiais, literários, são mais espontâneos e, portanto, mais
próximos da vida. (Dilthey (1889) 1954).
Até o momento, poderíamos demarcar a estratégia de análise histórica de
Dilthey, da seguinte forma: deve-se partir das condições históricas de um sujeito para
conhecê-lo mais profundamente. Como isso é possível? Por meio da análise documental
presente, principalmente, nos arquivos pessoais e literários dos sujeitos. Essa vida está
incluída num contexto objetivamente determinado do passado. Este contexto é o que
Dilthey chama de espírito objetivo. Sob sua tutela o passado se torna presente e,
portanto, duradouro. E a vida se objetiva, se historiciza e se expressa. O espírito
141
objetivo é o resultado da criação de cada um inscrito em determinadas funções e
enquadramentos estabelecidos pelo contexto que o envolve. É o meio compartilhado
sob o qual as pessoas se compreendem e se espírito humano que circunscreve o campo
de atuação do sujeito. De fato, desde a infância, comunicam. (Dilthey (1910) 1978).
A compreensão da vida funciona como a possibilidade que historiador tem de
organizar o mundo histórico. O historiador articula os tempos históricos diversos, não
por mérito próprio, mas porque a vida está articulada. A vida é um nexo vital
(Lebenszusammenhang). A articulação que define o indivíduo se torna consciente para
nós através do pensamento, ao longo da vida. (Nápoli, 1999, p. 197). O pensamento só
pode representar a vida, porque é um fato da vida. A história pretende compreender a
unidade original de uma vida dentro desse contexto. Essa unidade é dinâmica, se forma
processualmente e nunca está completa. É uma conexão destacada do espírito objetivo,
pois um indivíduo não está isolado. Ele expressa uma experiência comum conjugada
com sua individualidade. O indivíduo, enquanto manifestação do espírito está
enquadrado em um tipo de ação determinada pela esfera comum. Temos, então, nessa
relação indivíduo/contexto o todo das manifestações. Uma frase, por exemplo, é
compreensível porque todas as pessoas pertencentes àquele contexto, compartilham dos
signos responsáveis por sua inteligibilidade. É através dessa experiência comum
(espírito objetivo) que temos a relação da manifestação da vida e a consciência. Há uma
unidade de compreensão entre os membros do processo do conhecimento, pois
compartilham do mesmo universo cultural. Por isso, o historiador pode destacar um
indivíduo deste contexto, pois a partir deste, pode inferir, pelo menos por analogia, a
vida dos outros indivíduos nesse contexto. Como nos lembra Imaz, o historiador pode
focalizar sua análise em um indivíduo e, por analogia, descobrir relevantes aspectos da
vida de outros indivíduos situados no mesmo contexto. Essa seleção deve ser feita para
142
que o investigador possa compreender o nexo efetivo histórico-social, do qual o objeto é
uma expressão. O historiador deverá ser, sobretudo, um artista para levar a cabo tal
tarefa. Ele escolhe, delimita, circunscreve, sempre de acordo com sua intuição, uma
intuição artística. (Imaz, 1946; Dilthey, (1910) 1978).
O historiador toma consciência dos fatos passados por meio da memória
presente nos vestígios. Essa tomada de consciência para Dilthey é muito mais um
sentimento perante o mundo do que meramente uma operação lógico-abstrata. Esse
sentimento integra o historiador ao mundo. Dilthey acredita que há uma grande conexão
entre os tempos históricos. Todas as vidas estão conectadas nessa história universal.
Somos em primeiro lugar seres históricos, antes de sermos historiadores da história e
somente porque somos seres históricos é que podemos ser historiadores da história.
(Leão, 1977, p.32). Cada época é expressão de uma parte do mundo e ganha sentido na
análise do processo histórico. O que garante, portanto, a compreensão de uma vida
distante do sujeito é a sua historicidade, sua integração num momento histórico. O
historiador é um mediador, colaborador (Mitarbeitander) (Cério, 1959) que contribui
para a maior integração dos sujeitos com a história. É um mediador do passado. O
historiador tem a nobre função de nos lembrar do que se passou. Ele colabora com a
vida, para que esta se integre e se torne plena. Quando, por meio da história, nos
abrimos à alteridade, e ela a nós, o nosso mundo se amplia, conhecemos melhor o outro
e a nós mesmos.
Para o historiador nato, apreender a vida do
outro não é um meio, mas um fim que se basta.
A arte do historiador, o conhecimento do
outro no passado, não é utilitarista. A história
não serve para controlar a vida, no futuro. O
historiador é movido por uma necessidade
profunda e nobre. Ele oferece à vida o
conhecimento da vida. (Reis, 2003, p. 214).
143
As individualidades dispostas em outros tempos e épocas nos dão a consciência de
novas possibilidades de vida.
Para Dilthey, a compreensão do outro exige
uma abertura do intérprete a ele. O intérprete
deverá dedicar-lhe sua ´atenção´, que significa
recebê-lo com os sentidos do corpo e a
sensibilidade do espírito. O intérprete
procurará apreender a alteridade em sua
diferença e complexidade. Esta abertura não
significa passividade do intérprete. Este
receberá o outro com sinais ostensivos de não
resistência, de olhos e braços abertos. O
coração entreaberto. As ciências humanas não
podem pretender o domínio e controle técnico
do seu objeto, que é um sujeito, mas devem se
abrir a ele, propondo-lhe o diálogo. (Reis,
2003, p. 201).
Essa alteridade tem, contudo, uma vontade própria e resiste à vontade do
indivíduo. A relação do sujeito com o outro é uma troca de pressão. Reconhecê-lo como
diferença e resistência é saber de seu valor e de sua importância. O compreender dirige-
se para a cultura do outro, o que só é possível com a relativização dos próprios
valores, costumes e normas da cultura do eu. (Nápoli, 1999, p. 22). Cada sujeito
colabora de maneira distinta para a consecução do nexo histórico-social. A contribuição
é singular e se dá por meio da expressão. A expressão (Ausdruck) é uma reação a uma
pressão exterior, seja ela positiva ou negativa. O indivíduo sempre reage, pois ele é um
impulso vital.
Dilthey nos lembra que ao estudarmos nós-
mesmos e os outros, nós não estamos lidando
com algo que possa ser manipulado e
experimentado. Os homens têm sua própria
vida, um ponto de vista próprio, a partir do
qual se expressa e ao qual nós temos que
ouvir. (Rickman, 1979, p. 8).
144
A compreensão é, antes de tudo, uma experiência de vida, uma atitude diante do
outro. Para além de um método singular das ciências humanas, ela prescreve uma
relação de identidade com a alteridade. A compreensão ajuda-nos a nos relacionar com
o mundo. Mesmo a alteridade longínqua pode ser tomada pela compreensão. O grande
desafio do historiador consiste em tornar familiar algo estranho, para tanto, a
compreensão é o seu método mais poderoso. Esse estranho é inteligível, pois é também
identidade, uma vida preenchida de conexões significativas. Toda e qualquer vida
humana é em suas expressões uma conexão de sentido. O historiador deve ter a
sensibilidade de articular as partes desse nexo. Esse nexo efetivo é a identidade dos
acontecimentos, é aquilo que dá uma característica própria para cada uma das ações
humanas. Em relação ao movimento histórico do mundo social, há pelo menos dois
tipos de nexo efetivo: um resultante da formação de uma força de resistência à
mudança, que gera desconforto; e, outro, que aceita a mudança, é otimista, quer seguir
adiante.
No nexo efetivo dos grandes acontecimentos
universais as relações de pressão, tensão,
sentimento de insuficiência da situação
existente constituem a base para a ação que é
sustentada por sentimentos positivos de valor,
por fins a perseguir, por metas a lograr.
(Dilthey, (1910) 1978, p. 190).
A articulação do indivíduo com o mundo é tensa e complexa. O indivíduo pode até estar
motivado por um impulso que o leva ao mundo, mas esse contexto exterior resiste à
presença do indivíduo. O indivíduo sofre, mas quer ser feliz, quer se integrar e, por isso,
mesmo quando resiste acaba sendo influenciado pelo mundo que o circunda. Ele não
pode viver isoladamente, fora da história ou da sociedade. O mundo acaba
determinando, de uma maneira ou de outra, o que o indivíduo é. Mas essa determinação
145
nunca é completa, os indivíduos que vivem num dado momento, não são iguais, por
mais que se assemelhem em ações e reações. Dessa maneira,
(...) cada homem concreto, individual é, pois, o
produto dessa simbiose entre sua época, o
momento histórico em que vive e sua própria
consciência, ou seja, as condições interiores
espirituais, com as quais também convive. O
homem é, pois, objetividade do mundo e
subjetividade da consciência. (Carino, 2000, p.
164).
A inteligibilidade de uma vida reside na relação entre conexão individual e consciência
histórica. Cada sujeito é resultado de duas percepções: uma interna, coincidente, da
identidade e a outra externa, da diferenciação, da alteridade. Assim, há uma natureza
dupla na vida humana movida pela
(...) relação entre o movimento incansável que
há nela e a quietude e a firmeza; a relação
entre a força e o arbítrio da individualidade e
o todo que a informa e determina; a relação
entre o imutável dentro de nós e o
desenvolvimento, entre a originalidade da
personalidade e as influências externas.
(Dilthey, 1953, p. 161).
O que os homens têm em comum são conexões psicológicas e as uniformidades da vida
psíquica que se entretecem num meio cultural donde surgem uniformidades com as
quais cada sujeito se identifica, posto que, cada qual, é criador e criatura dela. No fim
teríamos que
(...) no particular é possível identificar o
universal, da mesma forma que o universal só
se constitui enquanto tal pela soma de
particularidades que lhe dão um dado
significado, até porque para cada universal
tem-se muitas variações de particularidades
integradas num momento de representação
146
dessas diversas universalidades. (Penna,
2001/2002, p. 142).
A história ganha seu sentido mais profundo na individualidade, na vida
historicamente construída e, por isso, pode-se tomá-la como objeto de pesquisa.
A história de uma vida é a história da
representação das suas relações com as
circunstâncias físicas e espirituais em que ela
se desenvolve. (Carino, 2000, p. 165).
Porém, uma investigação de um indivíduo sempre revela mais do que o sujeito é: nela
aparecem interseções com outras vidas, com outros sujeitos, pois cada indivíduo é
sempre produto de relações e práticas culturais. Portanto,
(...) não é cada vida, em si, que interessa à
história, mas o que essa vida tem de típica.
Existem certas características únicas de cada
indivíduo; porém, esse mesmo indivíduo
partilha com outros certas características
comuns; estas, por sua vez representam o
‘espírito da época’ em que a vida é vivida,
com os ingredientes devidos de cada cultura.
(Carino, 2000, p. 167).
Esse espírito da época é composto por diversos campos que, em conjunto,
formam um sistema coerente.
É nele que se depositam os elementos comuns
da vida em uma cultura. Esse espírito permite
que seja possível a comunicação entre os
homens, de modo que cada um entenda o que o
outro faz e diz. O espírito objetivo é como que
o horizonte histórico-cultural no qual os
homens de uma comunidade estão inseridos;
diria que é por isso que os indivíduos são
semelhantes, isto é, compartilham coisas
comuns e entendem-se reciprocamente.
(Nápoli, 1999, p. 200).
147
O Espírito Objetivo é o lugar do mundo compartilhado, onde o eu e o outro se
relacionam e se comunicam, porque ambos se reconhecem nesse lugar. A atuação
histórica dos indivíduos forma um sistema. Só que não há como compreender todo o
sistema em que o sujeito vive, por isso, a separação dos nexos efetivos feita pelas
ciências particulares do espírito é o fato metodológico fundamental para a compreensão
da realidade. Esses nexos são: educação, história, vida econômica, direito, funções
políticas, religiões, a vida social, a arte, a filosofia e a ciência. Cada nexo realiza um
aspecto da vida e é responsável por uma parte da vida. Cada qual é um processo
singular. Mas cada sistema é resultado da atuação individual, da manifestação vivida
que pode ser conhecido por vários indivíduos. Por isso,
(...) aqui está o fundamento do mundo social e
histórico, que diferencia a alma humana da do
animal, porque, se o mundo dos fatos culturais
pode ser conhecido por vários indivíduos que
o partilham, então ele pode ser conhecido
universalmente. Isso quer dizer que as
semelhanças das experiências de vivências, em
que cada um de nós, segundo Dilthey, pode se
encontrar na sua maior profundidade em
outras pessoas. (Nápoli, 1999, p. 108).
Dilthey não só se preocupou em analisar as especificidades das ações históricas
dos sujeitos particulares mas, sobretudo, como os indivíduos em relações mútuas
constituem organizações culturais e sociais que possuem as mesmas características do
humano, quais sejam, perecidade, corruptibilidade, efemeridade etc. Sem dúvida, na
formação dessas instituições as pessoas são mobilizadas e tornam-se partes
fundamentais das mesmas e, não obstante, a condição temporal humana. Dilthey está
certo de que as instituições criadas por ele também assim o são, mesmo que a força
daquele grupo pareça inabalável. Todas as categorias referentes à unidade individual
148
psicofísica estão presentes nas criações culturais. Essas expressões não são mais do que
extensões das experiências vividas pelos indivíduos e mantêm uma constante relação
viva com os sujeitos que as criaram. A crítica da razão histórica é a possibilidade efetiva
de se compreender tanto a vida individual na sua especificidade, quanto os movimentos
externos culturais criados pelo conjunto das individualidades. Tais sistemas culturais
são históricos e sempre abrangem novos espaços e também outros grupos de pessoas.
Eles não são estaticamente constituídos e por isso estão em constante processo de
diversificação histórica. Eles são, dessa forma, sempre algo novo. Como já bem
esclarecido - esperamos tê-lo feito esses sistemas só existem em função da vida de um
sujeito, de uma vida particular. E, portanto, é o sujeito histórico que dá a dinâmica do
funcionamento da sociedade e é ele e com todo seu arcabouço vital, no fim, o objeto
primordial do conhecimento histórico. Com efeito,
(...) o sistema conceitual das ciências
sistemáticas do espírito (incluindo a história)
está referido, em último termo, à
irracionalidade da marcha individual do
histórico. Por isso a revivência é o alfa e o
ômega de toda hermenêutica. (Imaz, prólogo.
In: Dilthey, (1910) 1978, p. 263).
Acontece que, compreender os momentos históricos parece nos levar à um
terreno extremamente complexo e caótico. Há na história algo que una definitivamente
todo esse complexo vital aparentemente confuso e ilógico? Para Dilthey, na base de
toda ação histórica, está a própria vida. A
(...) vida é a plenitude, a diversidade, a
interação em todo o uniforme que os
indivíduos vivem. Por sua matéria é uma
mesma coisa com a história. Em todo ponto da
149
história há vida. E na história se compõe de
vida de todas as classes com as relações mais
variadas. A história não é mais do que a vida
captada do ponto de vista do todo da
humanidade, que constitui uma conexão.
(Dilthey, (1910) 1978, p. 281).
Dilthey chega à conclusão de que pode em cada momento histórico compreender
a sua particularidade histórica, pois nas relações específicas daqueles indivíduos com o
mundo, em torno deles são travadas vivências diversas, mas que só são possíveis de
ocorrer ali, por isso, só podem ser compreendidas dentro daquele universo. E como o
próprio Dilthey nos lembra esta grande realidade histórica só pode ser compreendida
como realidade histórica tal em seu contexto histórico. (Dilthey, (1883) 1949, p.78). A
realidade é o resultado da contribuição de cada indivíduo. Cada vida tem um significado
próprio, mas articulado ao seu tempo. Esse significado é um fio, um nexo que relaciona
os acontecimentos da vida. O significado dá sentido à vida que não é um simples fluir
desconectado, mas algo interativo, relacionado e objetivado. Todas as suas
manifestações se localizam num determinado âmbito histórico-social. Esse indivíduo o
recria através de sua atuação. Contudo, essa sua (re)criação não é original, pois todo
indivíduo realiza em si determinações de um sistema cultural que lhe envolve e
circunda. Cada nexo então se situa numa realidade e é resultado da ação individual.
(Dilthey, (1883) 1949).
Uma outra propriedade do nexo efetivo é que ele é a realização da atuação de
vários sistemas culturais. O indivíduo pertence a diversos nexos efetivos. A realidade é
plural e o indivíduo é dinâmico. O indivíduo reside e atua entre esses nexos. Há aqueles
que apenas os recebem, há os que os recriam e há ainda os que os inovam. Mas todos
eles põem em funcionamento uma vontade de agir que torna tenso o convívio com a
realidade circundante. A realidade é criação, recriação e desenvolvimento. Cada
150
indivíduo quer se assegurar na vida e ser feliz. Dentro de cada sistema cultural os
indivíduos criam uma ordem de valores, regras a serem seguidas, pois são esses
sistemas que possibilitam uma vida tranqüila, regrada e bem situada. (Imaz, 1946).
Cada nexo efetivo contém, em suas partes, seus valores e fins. Essas partes têm
cada qual seu significado. E os acontecimentos históricos são significativos porque
mantém uma conexão com o nexo efetivo. O significado atua na conexão dos nexos
efetivos. Não podemos nos separar da estrutura, mas cada nexo singular tem sua
existência própria. A filosofia é, por exemplo, um nexo efetivo. Ela mesma é o resultado
de diversas contribuições, de manifestações particulares. Ela tem um significado
próprio, mas seu significado é resultado da reunião de vários pontos de vista. A filosofia
não tem fundamento em si-mesma, mas tem base na realidade temporal, no mundo.
Mesmo a filosofia universal está determinada por este pressuposto. O que vale para a
ciência, religião e outros tantos sistemas culturais. (Amaral, 1994).
A história é então o resultado da ação espontânea, individual e vinculação ao
todo, ao histórico, ao comum. É uma interação entre a parte e o todo. Temos aí
constituído o círculo da realidade. Cada comunidade está orientada por um fim. Isso faz
com que uma se diferencie da outra, mesmo que permaneçam condicionadas por dois
aspectos: a atuação individual e a coerção social. A história está orientada por fins, pois
cada nexo efetivo realiza um objetivo peculiar determinado em cada época. O
movimento histórico é teleológico, mas essa teleologia é historicamente delimitada,
realiza um objetivo histórico. É uma direção incerta, que se dá a partir dos nexos
efetivos singulares.
O sentido da história será buscado no que é contínuo, permanente e estrutural. O
sentido se situa no que é comum, na interação individual com o todo. Esse sentido se
situa no individual, bem como na estrutura dos nexos efetivos. O sentido dá
151
inteligibilidade ao ocorrido e ao que ocorrerá. Assim, a análise do mundo histórico deve
mostrar o sentido que o engendra. A história tem a função de compreender o sentido do
mundo histórico, mas não a cumpre por meio de um procedimento meramente
especulativo. O conhecimento histórico nasce, sobretudo, da vontade que os sujeitos
têm de conhecer o sentido da vida. Por isso, a história conhece algo de absoluto.
Se a vivência é o fato original da experiência
própria, e a compreensão é a parte para a
captação dos demais, é graças a que uma e
outra encontram que tudo se nos dá em
conexão. Mas dita conexão não é meramente
causal, senão significativa. Esta categoria de
significado está na mesma linha de
importância que a: vivência, compreensão e
conexão. (Cério, 1957, p. 421).
Isso a faz relacionar-se com o teleológico ou metafísico. Mas a história conhece apenas
a manifestação histórica do universal e não o seu todo. A história compreende o que é
histórico.
O patente da história haverá que buscá-lo no
que se dá de contínuo, no que retorna sempre
nas relações estruturais, nos nexos efetivos, na
formação de valores e fins neles, na ordem
interna que mantém entre si; desde a estrutura
da vida individual até a última unidade que lhe
abarca o todo. (Dilthey, (1910) 1978, p. 197)
Ao mesmo tempo em que,
(...) ao perseguir a marcha da formação de
tais valores, bens ou normas absolutos [a
história] observa em vários deles como foram
produzidos pela vida e como sua postulação
incondicional foi possível pela limitação do
horizonte da época. (Dilthey, (1910) 1978, p.
197).
152
O historiador compreende a história que se efetivou, mas almeja o absoluto, o
real total. Um mundo espiritual é um nexo estrutural formado por nexos individuais. Há
características gerais que imputam sentido na história, mas cada uma é uma síntese
própria e individual. Na formação desse contexto há regularidades pressupostas. A
história funciona como algo articulado, na qual todas as partes são importantes. A
estrutura total faz com que em cada momento anterior esteja pressuposto o antecessor.
Há uma relação de dependência que deve ser esclarecida no estabelecimento da
inteligibilidade histórica. Contudo, cada etapa tem seu momento particular, como
articulá-la com o todo? Dilthey responde essa questão dizendo que a articulação está na
própria vida. Toda e qualquer ação tem um sentido inteligível, integrado ao mundo
histórico e, por isso, pode ser compreendido. (Dilthey, (1910) 1978).
Além disso, o historiador pode articular as épocas dispostas historicamente,
porque entre os tempos históricos há uma conexão significativa. Aí temos o outro
aspecto do mundo histórico: o todo temporal que, contudo, pode ser desmembrado em
períodos. Cada época tem sua própria identidade que acaba por submeter todas as
pessoas que ali se situam. Tem seu próprio espírito. O sentido do indivíduo se dá na sua
relação com sua época. Cada época encontra seu limite num horizonte vital: seu
pensamento, sentimento e crença. O horizonte vital é aquilo que identifica o indivíduo
como tal, numa época.
Existe nela uma relação entre vida,
referências vitais, experiência de vida e
formação de idéias que sustentam e vinculam
os indivíduos dentro de um determinado
círculo de modificações da captação de
objetos, da formação de valores e da proposta
de fins. Há fatalidades inexoráveis que regem
os indivíduos. (Dilthey, (1910) 1978, p. 202).
153
O exemplo que ele vai utilizar é o da Ilustração alemã. Para ele, havia uma
unidade interna na qual todos os aspectos da vida individual estavam entrelaçados: o
caráter racional do homem.
O indivíduo realiza seu fim quando,
emancipado pela razão, provoca em si o
senhorio da razão sobre as paixões, e este
poder da razão se manifesta como perfeição.
(Dilthey, (1910) 1978, p. 204)
Leibniz é a expressão máxima da unidade desse período, uma conexão racional
que influenciou todos os âmbitos da vida histórico-social: poesia, religião, política. O
caso é típico da Alemanha, onde se realizou como em nenhum outro lugar essa unidade
racional da Ilustração.
Se nos perguntarmos agora como é possível
delimitar uma tal unidade em meio ao “calor”
do acontecer que, na Alemanha, marcha
ininterruptamente produzindo mudanças
contínuas, teremos que dizer que todo nexo
efetivo carrega a lei em si-mesmo e que a teor
dela, suas épocas são por completo diferentes
das épocas de outros nexos. (Dilthey, (1910)
1978, p. 209)
O sentido do mundo espiritual se deve a condicionalidade dos indivíduos e das
manifestações de vida. Parte-se do indivíduo para apreender as regularidades, o que
poderá nos permitir tomar conclusões objetivas. As regularidades da vida formam,
portanto, o primeiro objeto. Mas ela própria é conexão de individualidades.
A energia produtiva de uma nação em uma
época determinada se alimenta, sobretudo, da
mesma circunstância, é dizer, do fato que os
homens da mesma se encontram limitados
dentro de seu horizonte; seu trabalho serve à
realização daquilo que significa a direção
154
fundamental da época. (Dilthey, (1910) 1978,
p. 210)
O estudo da história se baseia no nexo efetivo da realidade. O conceito geral de
uma época forma um tipo, um homem típico.
A diversidade de manifestações neste domínio
se agrupa em volta de um centro que constitui
o caso ideal, no qual a contribuição se
realizou por completo. (Dilthey, (1910) 1978,
p. 213)
Esse caso ideal Dilthey o chama de homem típico. Esse indivíduo realiza de forma
sintética possibilidades múltiplas de sua época. Ele se destaca perante os outros, não por
diferenciar-se daquilo que os outros fazem, mas, ao contrário, por expressar bem as
potencialidades do seu mundo, aquilo que caracteriza sua época histórica. (Cério, 1959).
Em cada época, surgem indivíduos que conseguem se destacar frente aos outros, mas
não porque são tipos que repetem aquilo que o mundo faz, mas destacam-se pela
originalidade de suas vidas que, mesmo diante das diversidades, nos fascinam com suas
ações e resumem em si as possibilidades de vivências de uma época. Não obstante,
numa mesma época podem surgir diferentes sujeitos, com diferentes características que,
no entanto, se tornam homens típicos, sujeitos originais. De fato, cada sujeito é um
homem-típico e pode ser investigado, pois nos fornecerá uma leitura de uma época.
Dilthey quer dizer com isso que a análise histórica passa pelo indivíduo, pela vida
singular e, por isso, da mesma forma em que é possível compreender uma época por um
sujeito importante, pode-se investigar o mundo em que os sujeitos pouco se destacam.
Na verdade, pra Dilthey, todo e qualquer sujeito pode ser biografável.
Antes de Weber, Dilthey já se utilizava do conceito de tipo como um
instrumento para compreender melhor a vida em foco. De fato,
155
(...) é a visão típica que permite representar a
vida em suas diferenças e similitudes. O tipo
preenche o mesmo papel do conceito:
condensa a experiência penetrando-a com a
inteligência. O tipo é uma representação geral
que produz a individuação na arte e na
compreensão histórica. (Reis, 2003, p. 207).
Mas esse tipo nunca é o mesmo. Sob a influência de uma mesma época, pode-se agir
distintamente frente à realidade. A Ilustração Alemã não determinou igualmente o que
os homens fizeram. Apesar de estarem dispostos em contextos temporais distintos,
Leibniz e Goethe viveram sob a influência de pensamentos racionalistas, por isso é
muito mais digno de admiração aquilo que eles fizeram que os destacaram frente aos
outros. É preciso entender a singularidade da vida desses homens, para tanto é preciso
resgatar a conexão original de suas vidas, bem como o espírito objetivo que os abrangia.
Por isso, Dilthey se interessou especialmente pela biografia. A biografia, como um
relato de uma vida singular, permitiria a ele, ver em que medida o sujeito se articula ao
mundo exterior. Se Dilthey foi de fato um historiador, pode-se dizer que seu método
historiográfico foi a biografia. Analisemos mais detidamente essa questão.
156
Capítulo 4 Dilthey historiador?
Dilthey historiador
Pode-se dizer que Dilthey foi um historiador? Haveria Dilthey criado e aplicado
uma teoria da história? Sabemos que ele é um dos maiores representantes do
pensamento historicista alemão e a discussão que teve lugar no século XIX acerca da
cientificidade da história ganha fundamental impulso com a publicação do conjunto de
sua obra. Seus discípulos têm dificuldade de chegar a um consenso se Dilthey partiu da
filosofia para chegar à história, ou o contrário. Ortega y Gasset afirma que Dilthey era
muito mais claro em sua obra histórica do que na filosófica.
Dilthey, que em seus escritos propriamente de
filosofia, usa uma elocução etérea e
dificilmente captável, é em sua obra histórica
de uma sobriedade de alusões aos
fundamentos sistemáticos em que se inspira e
ao sentido que levam, quase desesperante.
(Ortega y Gasset, 1958, p. 136).
Os primeiros trabalhos de Dilthey em história são sobre a história do cristianismo. Sob
as influências de Ranke, Jakob Grimm, Böeckh e Mommsen, interessou-se
especialmente pelos primórdios do cristianismo. Dilthey começou sua carreira
intelectual como teólogo e a terminou como historiador. Em suas primeiras aulas num
Gymnasium em Berlim, dava aulas de, entre outras disciplinas, de história, mas não de
filosofia. E enquanto estudava na universidade, era professor assistente nos seminários
de Ranke. (Cério, 1959). Ademais, o constante contato com os membros da Escola
Histórica e, por meio dela, com a literatura, poesia e a história; fez com que Dilthey se
enveredasse pelo mundo da história. Desde os primeiros contatos, Dilthey se
incomodava explicitamente com a falta de interesse pela discussão teórica entre os
157
historiadores. E, por isso, acreditava que sua missão era justamente completar por meio
da teoria aquilo que os historiadores faziam na prática.
Dilthey acreditava que teoria e prática estão intimamente relacionadas. Por isso,
as suas reflexões teóricas só podem ser melhor compreendidas em suas obras ditas
práticas ou históricas. Seus trabalhos ditos empíricos são corroborações de suas
reflexões teóricas e, por isso, contêm pontos fundamentais para a compreensão de sua
obra como um todo. Seu interesse pela história não é simplesmente subsidiário. Os
estudos feitos por ele acerca de pensadores e seus contextos, bem como de
acontecimentos históricos são partes integrantes de uma teoria complexa que não se
explica facilmente ou com análises prematuras. A teoria e a história ocuparam-no por
quase todo o tempo de sua vida e ambas são decisivas para deixar inteligível sua obra.
São complementares e não e se excluem. Uma teoria do conhecimento possível em
Dilthey só pode ser analisada se considerarmos a atuação dessas duas disciplinas na
formação de sua personalidade intelectual. É sabido, entretanto, que ele é muito mais
conhecido por suas reflexões teóricas do que por seus estudos de história. (Rickman,
1979).
Porém, mais importante que o estudo
propriamente filosófico, foi em Dilthey a
formação cultural em geral, graças à qual
entrou em contato com a história da arte, da
estética, dos costumes, da sociedade e da
mentalidade; tal é o terreno que nutriu sua
especulação. (Centro de Estudos Filosóficos
de Gallarate, 1986, p. 346).
Dilthey foi um historiador e a sua obra teórica se deveu ao fato de que, ao fim e ao cabo,
ele buscava a correta compreensão da vida.
158
Os interesses filosóficos de Dilthey
aumentaram a partir dos seus estudos iniciais
em história. Foi com o peculiar problema da
História em mente que Dilthey julgou
necessário formular uma teoria das ciências
do espírito (Geisteswissenchaften). (Makkreel,
1992, p. 45)
Incansável, dedicou-se ao trabalho de investigar personagens históricos que
contribuíram de uma forma ou de outra para a constituição do espírito alemão. Grande
parte dos personagens que ele estuda é de origem germânica. Por meio dos seus
trabalhos, enaltece a contribuição dos mais diferentes pensadores, ao longo da história,
que possibilitaram o surgimento na Alemanha de um movimento que se ergue sobre o
augúrio de fundamentar cientificamente o conjunto das ciências históricas. Por isso,
escreveu sobre Leibniz, Frederico o Grande, a Música Alemã (Bach, Heinrich Schütz,
Händel, Haydn, Mozart e Beethoven), Kant, Goethe, Hegel, Schleiermacher, a Escola
Romântica Alemã, Lessing, Martinho Lutero, dentre outros. Contudo, não ignorou a
produção de outros países nas pessoas de Shakespeare, Moliére, Voltaire, Vittorio
Alfieri, Rousseau, Balzac, Charles Dickens, D’Alembert, Cervantes etc. O método de
predileção sua é a biografia. Na maioria das vezes, os títulos que precedem os seus
textos são: “Leibniz e sua época”; “Goethe e sua época”; “Shakeaspeare e seu tempo”;
nesses termos, tentaremos mostrar que um entendimento de uma vida histórica só pode
ser bem sucedida precedida de uma análise do contexto histórico desse indivíduo. A sua
obra historiográfica é vasta, mas aqui nos limitaremos à análise de dois trabalhos: um
sobre Leibniz e outro sobre Goethe. Essas duas figuras foram destacadas porque
viveram, mesmo em tempos diferentes, e guardadas as devidas proporções históricas,
sob o contato com o espírito da Ilustração. Leibniz é um cientista otimista em relação à
realizações científicas. Goethe é o grande nome do romantismo alemão. Leibniz
159
acreditou e se decepcionou com os homens. Goethe questionava a ciência e queria falar
dos sentimentos humanos. (Dilthey, (1883) 1949).
Antes, no entanto, de analisarmos as biografias desses intelectuais, algumas
considerações acerca do método biográfico diltheyano são importantes.
O método historiográfico de Dilthey - a biografia
Biografia significa, na sua etimologia, o relato de uma vida ou, como diria
Dilthey, descrição escrita acerca de uma unidade individual. Historiograficamente, a
biografia é o relato de uma determinada prática cultural de um sujeito, isto é, a síntese
de como um sujeito histórico apreende a sua realidade cultural e atribui sentido a esse
mundo exterior. Uma biografia é o relato de como a realidade histórica se dá ao
indivíduo. É um instrumento de análise de como um indivíduo se relaciona com a
sociedade e incorpora por meio da sua vida os elementos próprios dela. A biografia é,
segundo Carino, um
(...) instrumento tanto mais importante quanto
mais variado, quanto mais ‘caleidoscópico’,
ou seja, rico em formas e ‘cores’,
correspondentes à variedade de apropriações
culturais individuais, às formas originais
como as vidas concretas são vividas.
(Carino,2000,p.163).
Ela nos remete a um contexto social do qual o sujeito não é somente uma expressão
destacada, mas um exemplo típico. Escrever sobre a vida de alguém nos permitiria sair
do isolamento do presente, remetendo-nos ao tempo da alteridade. Dar voz ao outro,
escutá-lo, respeitá-lo na sua diferença, no limite, seriam esses os objetivos e as
conseqüências diretas da biografia.
160
As biografias já foram, no entanto, utilizadas para falar da vida dos grandes
heróis. Eram transcrições dos seus feitos e formas de exaltação de suas características
peculiares e magníficas. Determinadas correntes historiográficas relativamente recentes
deram, por sua vez, um papel marginal à biografia, pois esta, muitas vezes, era recheada
de um estilo demasiado literário, sem as coerências inerentes ao ofício do historiador.
De fato,
os trabalhos clássicos da tradição da História
Social, seja oriundos da vertente da
historiografia dos Annales, seja produzidos
pela vertente marxista ou marxiniana,
ignoram ou pouca relevância dedicaram às
biografias consideradas talvez uma
modalidade menor de estudo histórico. (Penna,
2001/2002, p. 127).
Essa atitude dos historiadores em relação à biografia tem mudado bastante
atualmente, pois o interesse pelas vidas individuais tem crescido bastante. Hoje tanto o
faraó como o escravo que empurrou a pedra para construir a pirâmide ganham e têm
importância no estudo do passado. Vemos, portanto, que
(...) a receptividade das biografias cresceu
consideravelmente nessas últimas décadas,
paralelamente com o decréscimo do interesse
em relação ao estudo da ação dos estados,
governos, regimes políticos e, até mesmo, de
instituições tradicionais, tais como igrejas e
corporações militares. (Penna, 2001/2002, p.
128).
Faz-se necessário nos perguntarmos, no entanto: até que ponto a biografia é um
instrumento historiográfico capaz de dar a Dilthey a certeza da correta forma de se
narrar uma vida? A biografia parece reduzir a história a uma fragmentação de unidades
161
individuais isoladas impossíveis de serem conhecidas. Essa unicidade da biografia seria
um objeto confiável para o historiador? O isolamento que a biografia possa
eventualmente causar não seria um obstáculo à compreensão da vida? Carino ainda
acrescenta:
Como fazer dessa vida única, fonte para a
interpretação da marcha da história, cuja
pretensão ao status científico obriga-a a pagar
tributo à generalização? (Carino, 2000, p.
163).
Há uma tensão que acompanha a obra de Dilthey em que o individual e o geral são
confrontados a todo o instante. Dilthey se perguntava: como estabelecer o limite daquilo
que é próprio do particular e do que é geral? O que é todo e o que é parte? Mesmo que
possamos estabelecer, separadamente, o que é uma coisa e o que é outra, como
poderíamos estar autorizados a escrever acerca da vida de um sujeito, destacando-o
como “biografável” e outros não? Regina Xavier nos coloca também alguns importantes
problemas que julgamos fundamentais para se tomar criticamente o gênero biográfico:
Como lidar com aspectos aparentemente
desconexos e com todos os elementos, tantas
vezes contraditórios, de uma existência? Como
evitar também, ao buscar uma valorização das
experiências, não operar uma reificação dos
indivíduos romantizando suas vidas? E mais.
Se todos os indivíduos podem vir a ser
importantes como não se perder em suas
particularidades, como não construir uma
história fragmentada? Se cada indivíduo nos
remete a um mundo singular, como pretender
compreender a história em sua totalidade ou
mesmo em suas continuidades? (Xavier, 2000,
p. 164).
Até que ponto a vida individual poderia explicar um tempo histórico dado?
162
Ditlhey tinha essas questões em mente ao empreender os relatos biográficos
como método historiográfico.
No trabalho sobre Schlosser, podemos ver
uma realização prática do método histórico
com o qual haverá de estudar a obra de um
historiador: a biografia. (Cério, 1959, p. 54).
Já em seu trabalho sobre Novalis
É consciente de que não faz um trabalho
literário no sentido de história da literatura.
Sua ambição é mais profunda, é estritamente
um trabalho de interpretação histórica. (Cério,
1959, p. 75).
Quando Dilthey analisa a obra de Novalis, por exemplo, aplica a esse estudo o
conceito de geração. Segundo a definição da época, uma geração duraria cerca de 80
anos e para entender um determinado indivíduo, deveria-se caracterizá-lo frente às
influências externas dadas em sua época. Novalis viveu, por sua vez, no mesmo período
histórico que Schleiermacher, Hegel, Schlegel, Hölderlin e outros; e pode-se notar
características similares nas teorias desses homens. Contudo, a ênfase diltheyana recai,
sobretudo, naquilo que o sujeito tem de original, pois na história não há como pressupor
diante de certas condições, um mesmo e único efeito sobre os indivíduos. (Cério, 1959).
Dilthey acreditava que era possível compreender o indivíduo em suas
singularidades. Em meio ao mundo que muda, Dilthey buscava apreender a vida. Nesse
sentido, afirmava que sua missão não é a de escrever a história de um povo
determinado, senão a história de certas idéias que permanecem não obstante as
mudanças culturais. (Apud: Cério, 1959, p. 61). Se a mudança é o caráter basilar do
processo histórico, Dilthey acreditava que muitas coisas tendem a permanecer. O sujeito
163
muda, mas ainda o reconhecemos. O mundo em volta do indivíduo, por mais influência
que sobre ele exerça, não garante tudo aquilo que ele é ou foi. Mas não é fácil definir o
que é próprio do mundo e o que é próprio do indivíduo. Como estabelecer as conexões
entre os sujeitos? Ele não pretendia repetir as soluções apressadas dos historiadores de
sua época que se contentavam em apenas compilar documentos e descrever os fatos. Foi
um crítico contundente, por exemplo, de Burckhardt, a quem considerava um grande
historiador, mas limitado em relação ao trabalho teórico. Dilthey afirmava que todo e
qualquer método deve salvaguardar o indivíduo e a conexão exterior.
Segundo Imaz, o método diltheyano é o histórico-evolutivo, isto é, Dilthey se
utiliza da biografia para mostrar como uma vida em constante interação com o mundo
histórico muda, absorve aquilo que lhe é imposto e consegue se diferenciar e garantir
sua identidade. O desenvolvimento da obra de um autor é dado, sobretudo, na história,
na sua vida histórica. O método biográfico de Dilthey pretende valorizar a dimensão do
sujeito e do contexto em que este se encontra. Um dos seus primeiros textos versava
sobre o teólogo Nietzsch, neste texto ele explicita a importância do contexto histórico na
determinação de suas teorias, bem como as contribuições do sujeito para a formação do
espírito histórico de sua época. Compreender esse duplo aspecto da vida é a finalidade
de todo historiador, segundo Dilthey. (Cério, 1959). Com efeito, mais do que sua
produção, Dilthey julgava importante ressaltar como a vida de um pensador era
fundamental na produção de sua obra. Ser e saber se mesclam numa união tipológica
que dá conta da apreensão mais abrangente do que é produzido. O método diltheyano é
o de comparação e de conexão entre conhecimento produzido e a vida de uma pessoa.
Pois, por detrás de toda ação humana (de toda expressão) existe um ponto de origem
mobilizador, que é a vida da própria pessoa. Ao avaliar o contexto e a produção de
Goethe e outros poetas, dizia:
164
Entre a vida, o pensamento e a obra dos
grandes poetas há uma relação. Esta se
estende desde os conceitos gerais de uma
época, contidos nas ciências e na filosofia, até
o enlace das cenas de um drama e a forma dos
versos. Esta relação manifesta o ideal da vida
do poeta, mediante o qual se une com a
totalidade do mundo moral de sua época.
(Dilthey, 1963, p. 7-8).
O que Dilthey quer provar nas suas obras, ditas historiográficas, é o
entrelaçamento necessário entre a vida dos sujeitos, suas produções e o momento
histórico em que vivem. Dilthey acredita que o conhecimento histórico articula com
nenhum outro, forças estritamente individuais com conjunto de fatores de ordem geral.
A história consegue relacionar com bastante propriedade as partes ao todo. (Cério,
1959, p. 83). Essa forças supra-individuais não impõe, no entanto, limites ao sujeito.
Elas são, ao contrário, aquilo que permite ao sujeito ser aquilo que ele é. Elas permitem,
como numa produção artística, ao artista reunir os elementos básicos para que execute
sua obra. E dessa forma, podemos compreender, por exemplo, a existência de Goethe
dentro de um contexto específico. Mas o contexto não é o único fator a explicar a
realidade. Pois ao mesmo tempo atua a genialidade individual. Isso explica o porquê da
existência somente de Fausto e não de tantos outros. Dilthey estabelece que a atenção
deve estar voltada para as peculiaridades da vida do indivíduo. A vida humana é
resultado dessa relação peculiar dele com o mundo. Uma coisa ajuda a explicar a outra.
Mas se pensássemos que as razões que esclarecem a produção e a vida de um sujeito se
encontram somente no contexto em que viveu, teríamos bastante dificuldade de reunir
as condições de vida desse sujeito e a compreensão ficaria comprometida. Por seu turno,
Dilthey acredita que há uma articulação entre os tempos históricos, pois se de um lado
cada cultura é produzida historicamente (dentro de um tempo); de outro modo, há
características comuns entre as diversas culturas que permitem comunicarem-se. Nesse
165
sentido, a linguagem é um elemento importante da vida humana, pois ela permite que
cada época consiga desvendar o que o outro quer dizer porque pode não só se expressar
por meio da linguagem como compreendê-la.
Quando Dilthey dedica grande parte de sua obra à investigação da produção
poética quer nos dizer que a poesia é uma forma privilegiada de expressão da vida
humana. A poesia seria, no fim, a maneira mais elevada de objetivação do espírito em
forma de linguagem. Ela é uma coincidência entre espírito (vida interna) e expressão. O
poeta manifesta, a partir de sua genialidade, o mais profundo sentimento humano da
existência. Pois a linguagem, para Dilthey, é apenas a reunião de símbolos que não
conseguem se expressar por conta própria. Tudo que nós vemos no mundo é símbolo de
algo que não podemos conhecer em sua verdade, em sua essência, a poesia por se
expressar justamente por meio de metáforas, ganha uma importância maior dentre as
outras formas de expressão. Diferente da religião e da metafísica, a poesia tem a
peculiaridade de nos remeter a um mundo fantástico da própria humanidade. É a partir
dos termos da própria vida que a poesia procura passar sua mensagem.
Pois Shakespeare e Rousseau, Goethe e
Schiller não se deleitam simplesmente com as
imagens, senão que expressam por meio delas
algo que poderia chamar-se compreensão do
mundo. (Dilthey, 1963, p.9).
Goethe é um autor peculiar devido aos seus estudos históricos e o desenvolvimento de
uma concepção histórica própria. Nesses termos,
(...) a visão histórica é, para Goethe, a
projeção para o passado de sua reflexão sobre
a vida, a captação das formas permanentes da
humanidade e de suas relações e, em último
resultado, uma interpretação completamente
166
universal da vida mesma. A captação das
formas constantemente recorrentes da
existência individual e de seu desenvolvimento
absorvia de tal modo sua alma, que a
humanidade e seu progresso, o estado como
valor próprio e seu poder eram, para ele,
abstrações vagas e simples espectros.
(Dilthey, 1953, p. 164).
Goethe estaria, portanto, preocupado com a investigação da vida singular, segundo suas
especificidades. Por isso, deu um impulso grande e importante ao desenvolvimento da
biografia enquanto método historiográfico. Tinha uma capacidade particular para os
estudos biográficos e sua obra ‘Poesia e Verdade’ faz época na história da
interiorização biográfica do homem sobre si-mesmo e sua relação com o mundo.
(Dilthey, 1953, p. 164).
A poesia era o próprio método compreensivo. A compreensão empática está no
cerne da expressão poética. A compreensão está relacionada com a capacidade de
imaginação. O poeta quando cria um texto, de certa forma, está recriando um outro
mundo. Coloca para si certas possibilidades de vida que nunca poderia ter vivido
pessoalmente. O poeta transfere sua experiência interna à experiência alheia para
compreendê-la. Tenta se aproximar o mais possível para compreender o outro.
Compreender significaria para Goethe a possibilidade de ampliar a sua existência e
aumentar sua experiência de vida. Por isso,
A grandeza singular de sua poesia pessoal se
deve a que, nela, o mais pessoal se encontra
intimamente unido a tudo o que, partindo dos
movimentos mais gerais, se incorpora a seu
ser como parte dele. Precisamente por isso,
porque os fenômenos espirituais mais
importantes se converteram para ele em
vivência própria, podiam associar-se a seu
destino mais pessoal e podiam emocionar e
comover. Assim e somente assim foi possível
167
que surgisse o maior poema criado depois de
Shakeaspeare, o Fausto. (Dilthey, 1953, p.
167).
Sendo a poesia uma manifestação do espírito tão elevada e que envolve tantas
peculiaridades, é o poeta, por seu turno, um grande gênio que consegue expressar a
partir de seus sentimentos, através das palavras, uma maneira singular de se
compreender o mundo. O poeta, para Dilthey, consegue sintetizar como nenhum outro o
que poderia fazer a ação humana e a vida histórica que se expressam no tempo. Com
vistas a esse princípio, Dilthey, buscando entender esse mundo humano, lança-se no
terreno da poética através dos seus autores para, no fim, corroborar seu plano da
Introdução às Ciências do Espírito.
A compreensão do indivíduo e o juízo estético
O pesquisador não pode “enlaçar” todo o real, pois na operação científica, o
sujeito do conhecimento é remetido para diversos nexos efetivos (nexos de sentido
não causais como em Kant). Já os poetas estão autorizados a utilizar a fantasia (recurso
disponível na realidade para todos) e é por meio dela que conseguem recriar o mundo
em que vivem. Utilizando-se das mesmas ferramentas que os outros homens usam, eles
conseguem dar uma nova configuração para a vida. O mesmo acontece com os artistas
que lançam mão da sensibilidade estética. Dilthey acredita que o pesquisador em
ciências humanas deveria também utilizar dessas ferramentas, pois afirma que,
(...) tampouco podemos separar o juízo
estético da consideração de uma parte da
história; este juízo já se encontra na base do
interesse que faz destacar uma obra da
corrente do indiferente. Não podemos
estabelecer nenhum conhecimento causal
168
exato que excluiria o (juizamento) juízo
estético. E este conhecimento por nenhuma
fórmula química pode se separar do
conhecimento histórico, na medida em que
quem conhece seja um homem por inteiro. E,
sem embargo, o juízo estético, as regras, tal
como se entrelaçam na conexão deste
conhecimento, formam por outra parte uma
terceira classe autônoma de proposições que
não pode derivar das outras duas. Já o vimos
ao iniciar essa investigação. Somente nas
raízes psicológicas poderá dar-se semelhante
conexão, mas a estas raízes não chega mais
que essa auto-reflexão que vai mais adiante do
que as ciências particulares. (Dilthey, (1883)
1949, p. 92)
Essa pré-disposição da fantasia nos homens é denominada por Dilthey de sensibilidade
estética. Funciona dentro da vida espiritual como o juízo moral e motivação para a ação.
De fato, só a vida espiritual dá conta de explicar porque uma poesia cria determinados
efeitos mesmo fora do contexto em que foi engendrada. A vida espiritual condiciona,
em última instância em dois pontos as obras poéticas: a) a poesia é sempre fruto da
época em que foi produzida e b) a natureza da atividade espiritual que tem produzido
essas criações opera segundo as leis que regem em geral a vida espiritual. (Dilthey,
(1883) 1949, p.92). Por fim, Dilthey vai acrescentar uma terceira condição que é o juízo
estético, pois é ele que elabora as “leis” que separam, por exemplo, a obra do artista das
dos outros e esse juízo está imbuído por sua historicidade e não pode ser separado das
duas outras condições.
A expressão poética seria a ação mais plena de sentido na história, pois mesmo
que queira dissimular, está condicionada por um período histórico dado e seu autor faz
parte de um universo cultural que acaba por influenciar sua obra. A arte fala do mundo
interno do artista, por causa de sua sensibilidade estética. O historiador deve também
estar motivado por essa pré-disposição ao fantasioso e extraordinário para compreender
169
melhor seu objeto. Assim, a história estaria muito mais próxima da arte do que do
discurso científico. Mas como ciência, a história tem em sua base a mesma conexão que
compõe as ciências particulares. Sua conexão é tripla: 1) a conexão causal concreta de
todos os fatos e mudanças dessa realidade; 2) as leis gerais que regem essa realidade e
3) com o sistema de valores e imperativos implicados na relação dos homens com a
conexão de seus objetivos. (Dilthey, (1883) 1949).
Somente a consciência histórica das ciências do espírito pode apresentar a
conexão desse mundo histórico-social e seu trabalho é uma grande elaboração artística.
Porque a realidade histórica só pode ser retratada dentro desse mundo do espírito.
E nossa visão de todo o humano não só está
interessada em representá-lo, mas [também]
apreender todo ânimo, a simpatia, o
entusiasmo, no qual Goethe viu com razão o
fruto mais belo do estudo histórico. (Dilthey,
(1883) 1949, p. 94)
A consciência individual é importante para Dilthey porque ali está a origem de todo o
complexo histórico. E o senso de vida precisa ser preenchido pela imaginação do
historiador. (Makkreel, 1992, p. 56). Além disso, a consciência formula estratégias
diversas de se entender a realidade, como por exemplo, a poesia que compreende o
mundo através do extraordinário, trabalho semelhante que deve ser feito pelo
historiador. Mas a imaginação para não ser arbitrária, guia-se por uma psicologia que
descreve regularidades na experiência interna. (Dilthey, (1883) 1949; (1894) 1951).
O historiador deve se entregar ao mundo histórico. Como historicista, Dilthey
(...) espera que o historiador possua um
coração bastante sensível e um espírito
bastante aberto para conceber, sentir e
receber todas as paixões humanas, sem tê-las
provado. (Reis, 2003, p. 11)
170
Posto que o mundo interno do espírito tem uma realidade muito diferente do mundo
exterior que não permite aproximação, Dilthey acredita que esse mundo interno faz com
que o historiador esteja propenso ao extraordinário.
Quando revivemos um passado pela arte da
atualização histórica, somos instruídos da
mesma forma que o teatro da vida; nosso ser
se dilata e forças psíquicas mais poderosas
que as nossas próprias exaltam nossa
existência. (Dilthey, (1883)1949, P. 94).
Os pressupostos comtianos e hegelianos estavam, portanto, limitados, porque
suprimiam os indivíduos com o objetivo de extraírem da história, leis, regras, estruturas,
enfim, categorias estranhas à própria vida. Pensar que a partir de abstrações puras e
imateriais fosse possível conhecer a história foi um equívoco atroz. O historiador
consegue, ao contrário, perceber o vínculo entre o singular e o universal, mas deve-se
admitir - não é uma tarefa tão simples.
A conexão total que compõem a realidade
histórico-social tem que ser objeto de uma
consideração teórica que se oriente para
explicar essa conexão. (Dilthey, (1883) 1949,
p.95)
Resumindo, nas palavras de Dilthey,
(...) a complexa realidade suprema da história
só pode ser conhecida por meio das ciências
que investigam as uniformidades dos fatos
mais simples em que podemos decompor essa
realidade. (Dilthey, (1883) 1949, p. 97).
Esses fatos mais simples são as vidas singulares. Dilthey não pretendia compreender as
estruturas gerais do mundo, mas os seus fragmentos, porque supunha que ao fazê-lo,
171
teria uma idéia do todo. Seguindo Schleiermacher acreditava que um indivíduo é aquilo
que articula o mundo.
Para Dilthey, uma vida humana, a vida de um
influente pensador em particular, é um
microcosmo que reflete o macrocosmo do
trabalho social e cultural em volta dele, ele é
parte de um movimento intelectual e político o
qual ajuda a dirigir;e da tradição ele ajuda a
perpetuá-la ou lhe dá um novo sentido.
(Rickman, 1979, p. 33).
Vejamos como Dilthey tratou, na prática, essa questão.
Leibniz e sua época
Dilthey mergulha profundamente na individualidade de Leibniz, relacionando-o
com seu contexto histórico. Ele elabora uma biografia atípica desse pensador. O
indivíduo só pode ter sua vida devidamente esclarecida se primeiramente for feita uma
breve análise de sua época. O contexto de Leibniz é o século XVII. Este século, para
Dilthey, representa a ascensão da ciência moderna, da otimização do intelecto humano
na abordagem do real e de uma ampliação da visão do mundo. É o momento em que a
ciência dá seus primeiros passos para se desvincular da metafísica e do pensamento
religioso. (Dilthey, (1900) 1947)
O início da modernidade é marcado pela refutação à predominância da Igreja
Católica como detentora do saber. A religiosidade apesar de não deixar de ser
importante é apenas mais uma esfera do mundo real. A economia, a política, a
sociedade, etc; se autonomizam e não necessitam mais do aval religioso para funcionar.
Assim, a forma como os homens olhavam para si-mesmos e para o mundo modificou-se
172
consideravelmente. Essas mudanças ocorridas não se deram passivamente, instaura-se
uma crise no pensamento com implicações nos mais diversos níveis da sociedade.
Somente por meio da ação da ciência e do pensamento filosófico foi possível
“salvar” a Europa da crise de pensamento que enfrentava na época da Reforma
Protestante. Se havia uma consciência religiosa comum à sociedade que cerceava o
trabalho científico e, portanto, uma visão mais clara da história; esse obstáculo deixa de
existir com o advento da modernidade. Dilthey tem uma percepção entusiástica da
modernidade. (Dilthey, (1900) 1947).
Essa ciência moderna, contudo, vive contemporaneamente com a religião, mas é
um “novo cristianismo” que abre possibilidades à reflexão filosófica e ao experimento
laboratorial. Aliás, o surgimento de inúmeras associações científicas fora dos circuitos
universitários é um sintoma do esgotamento do modelo explicativo da realidade adotado
durante a Idade Média.
A ciência no século XVII representou o domínio da natureza e a direção da
sociedade por meio das ciências apostadas no estudo da lei que rege todo o universo.
(Dilthey, (1900) 1947, p. 12). O gênio humano pôde alcançar sua autonomia com
Kepler, Galileu, Descartes e Leibniz, representantes fidedignos dessa época. Por meio
do trabalho dos cientistas a humanidade passou a utilizar a ciência para submeter o
mundo. A inteligência e a genialidade convergiam em pressupostos comuns do fazer
científico. O entusiasmo de Dilthey ao falar desse período é explícito. Para ele, todas as
forças se voltavam para o bem científico e todos trabalhavam harmoniosamente para um
mesmo fim: o progresso e o desenvolvimento da humanidade.
A ciência é capaz de fornecer as certezas que antes as oferecia a religião. A
ciência parece conseguir dar as respostas plausíveis à contingência dos fatos e à sua
instabilidade. Pelo sucesso conseguido para esse fim, as ciências naturais passaram a
173
predominar como a forma explicativa mais eficaz do real. Os progressos científicos
davam ao homem a sensação de que ele poderia dominar cada vez mais a natureza,
controlando-a, manipulando-a, mensurando e antecipando o real. Essa concepção
científica se estendeu também à política. Tenta-se criar um Estado racional, no qual
todos os indivíduos ali envolvidos deveriam ser compreendidos. Para essa missão
Hobbes e Spinoza propuseram-se descobrir as leis que articulam a vida em sociedade.
Esse modelo científico adotado era fundamentalmente metafísico. As respostas
que buscavam e as explicações fornecidas extrapolavam o âmbito da história. Contudo,
a metafísica de Hobbes, Spinoza e Descartes era limitada e por isso pôde ser superada
por Leibniz. Foi ele mesmo o responsável para o revigoramento da metafísica e ao
trazer novos conceitos e novas formas analíticas, Leibniz apresenta-a com ainda mais
vigor e poderio.
A preocupação de Dilthey com a metafísica tem um motivo muito particular,
pois ele acreditava que, somente com o seu desenvolvimento histórico, seria possível ao
pensamento humano almejar ir mais longe. Se a metafísica não servia descobriu-se
depois como um modelo definitivo de explicação da história, pelo menos no século
XVII, foi ela quem pôde garantir, em grande medida, um trabalho dedicado e promissor
da ciência. Vários homens colaboraram para esse fim. De fato, o trabalho coletivo foi
fundamental para o desenvolvimento científico. Dilthey ressalta a todo momento a
importância do trabalho em grupo que colaborou para um mesmo fim científico. Em sua
opinião a ciência pode ser mais bem trabalhada se houver uma comunidade que discuta
e trabalhe junto para a ciência. Em todos os tempos da história da cultura humana, de
que sabemos alguma coisa, deparamos com comunidades de homens colaborando no
trabalho científico. (Dilthey, (1900) 1947, p. 19).
174
Até o séc. XVII as comunidades estiveram sempre a serviço de alguma
comunidade religiosa, de uma cidade, de um político ou de um pressuposto metafísico.
Contudo, já neste século, a ciência trabalha com finalidades técnicas que cooperam
diretamente para o desenvolvimento cultural. Nesse sentido até mesmo
(...) as poucas pessoas que dedicaram a sua
vida a esta nova ciência estavam em ligação
umas com as outras, para além de todos os
limites idiomáticos e nacionais. (Dilthey,
(1900) 1947, p. 20).
Esses grupos acabaram por dar origem às associações científicas. No grupo, havia mais
respaldo e interlocução. Tais associações foram fundamentais para o desenvolvimento
científico. Os cientistas do período foram, no entanto, perseguidos por causa de suas
idéias. Muitos acabaram morrendo em conseqüência de seus trabalhos. Muitos
acabaram se refugiando sob a tutela do Estado Moderno Absolutista que surgia e graças
a essa união a ciência conseguiu galgar espaços antes fechados. De fato,
(...) o Estado Moderno e a ciência moderna,
sentiram-se solidários, e as academias foram
naturalmente os órgãos por intermédio dos
quais esta aliança se afirmava e atuava.
(Dilthey, (1900) 1947, p. 24).
Como exemplo dessa empreitada surgiu a Royal Society de Londres.
Esta nasceu duma associação particular de
cientistas, que se formara cerca de 1645,
depois elevada a instituição oficial na
Restauração dos Stuart. (Dilthey, (1900)1947,
p. 25).
175
Dilthey ao tratar de um determinado período histórico, o faz como se fosse um
espectador privilegiado daqueles fatos. Tal como uma testemunha, descreve os
acontecimentos com intimidade privilegiando detalhes só possíveis para os que ali
viveram. Seu estilo de escrita é diferente e inovador. As instituições e os
acontecimentos são tomados como sujeitos históricos, cheios de sentimentos e
intenções, como se pode verificar nessa passagem a seguir:
Em todas estas sociedades reinava o mesmo
clima moral, o profundo sentimento de uma
criação, expressão em todas as suas partes da
vontade divina, animada por esta, e de que o
homem tudo conseguiria abismando-se no seu
universo e cumprindo religiosamente os seus
deveres profanos: poder e sapiência,
felicidade e virtude, inteligência de Deus e
beatitude divina. (Dilthey, (1900) 1947, p. 29).
A ciência e a colaboração dos cientistas acabaram por inspirar a política, pois a
crença na coletividade e o firme propósito de poder realizar os objetivos que se
propunham, davam o exemplo de que o trabalho cooperativo podia realizar um sem
número de ações. Nesse sentido, o desenvolvimento da ciência colaborou para a
construção de um sentimento nacional. A formação coletiva da ciência acabou
influenciando e dando exemplos para a sociedade que deveria também constituir em
seus componentes um sentimento coletivo de cooperação e colaboração mútua.
Mas como se comportam os sujeitos históricos dentro desse contexto? Quais são
suas possibilidades de atuação? O que sentem? O que fazem? Pensando nessas questões
Dilthey escreve a biografia de Leibniz. Contudo e é preciso alertar para quem
esperava um livro cheio de detalhes sobre sua vida íntima, quedará decepcionado, pois
esses não são tratados. Dilthey se preocupa em mostrar, sobretudo, como Leibniz foi
176
produto de seu tempo. Um homem com endereço e com possibilidades de ação
delimitadas por seu contexto histórico.
Para Dilthey, Leibniz foi o filósofo que melhor conseguiu realizar a missão de
elevar sua época à consciência de si-mesma com uma preocupação analítico-sistemática
própria. Ele teve uma relação íntima com seu tempo.
Leibniz estava relacionado com todos os
conhecimentos científicos de sua época como
nenhum outro homem dos tempos modernos.
(Dilthey, (1900) 1947, p. 36).
Seu objetivo era relacionar a explicação mecânica do universo com a espiritualidade
religiosa tão cara nos meios protestantes dos quais fazia parte. Para ele, o universo é
harmonioso e submete tudo e todos. O significado do universo está no fato de ele ser a
realização de todos os graus da força, da vida, da perfeição e da felicidade. (Dilthey,
(1900) 1947, p. 37). Leibniz acreditava numa humanidade universal que deveria ser
constituída sob uma liderança: a Europa. Tal convergência se daria pela ciência e não
pela política como tentava fazer a política francesa. Leibniz via na expressão católica e
na pretensão imperialista de Luíz XIV uma ameaça à harmonia do progresso contínuo
que deveria ser percorrido pela humanidade. Por isso, valorizou bastante a autonomia e
a língua alemã. Para Dilthey, havia uma consciência política deliberada em Leibniz
criada, sobretudo, contra as ambições políticas francesas. Frente às ameaças
provenientes do outro lado do Reno, Leibniz se reconhecia antes de tudo como um
alemão, como se fosse possível afirmar tal identidade em pleno século XVII.
Leibniz teve uma vida política conflituosa, morreu sem amigos e teve poucos
admiradores. Teve uma vida beirando a tragédia. Morreu sem esposa ou filhos.
Trabalhou incessantemente para a fundação da Academia de Berlim e na prescrição de
177
suas atribuições. Como falar de uma ciência e uma Academia alemã num momento em
que os Estados encontravam-se fragmentados? Havia algum tipo de unidade científica
na Alemanha que pudesse pretender a universalidade? A ciência alemã não tinha uma
existência objetiva, mas era algo vislumbrado por Leibniz. Ele estava envolvido
diretamente com o empreendimento de forjá-la. Cuidou pessoalmente dos trâmites
burocráticos para a fundação da Academia de Berlim: Carta de Fundação, a Instrução
Geral da Associação e sua nomeação para presidente.
A Associação abrangeria todo âmbito das
ciências matemáticas e físicas e das suas
aplicações técnicas, propondo-se ao mesmo
tempo cultivar as Letras, nomeadamente a
língua alemã e a história da Alemanha,
profana e religiosa. (Dilthey, (1900) 1947, p.
55).
Para Leibniz uma academia deveria colocar em prática um diálogo entre os cientistas e
servir de divulgação cultural para os mais diversos lugares. A Associação serviria para a
configuração de uma identidade nacional mediada pela ciência. Nesse sentido, estaria
em sintonia com a própria ordem do universo. Sua finalidade maior seria o
desenvolvimento do espírito humano a partir do trabalho dos alemães. O espírito
científico deveria guiar a sociedade para um auto-entendimento final pleno de
racionalidade e liberdade racional.
Dilthey discute o financiamento governamental para a institucionalização da
Academia e o jogo político ali envolvido. Sabia que uma associação não surge apenas
com boa vontade, mas são necessários recursos que lhe assegure o funcionamento. Essa
disposição em fundar uma associação acabou por colocá-lo numa trama política com
resultados traumáticos para sua vida pessoal. De fato,
178
(...) em vida, Leibniz sofreu muitos insucessos
e insultos. Nunca lhe custou esquecê-los. A
ingratidão da Academia prussiana, porém,
essa magoou-o profundamente. (Dilthey,
(1900) 1947, p. 57).
Sua morte foi solitária e triste. Morreu sozinho, mas o legado de sua obra
rompeu fronteiras temporais. O clima científico que pairava em sua época propiciou o
desenvolvimento da ciência. Mesmo os séculos de revoluções, guerras, conflitos, etc.,
que marcaram e mancharam de sangue a Europa não iriam impedir uma abordagem
cada vez mais eficaz do real pela ciência. Na Alemanha, em especial, após o Tratado de
Westfália deu-se início a uma época de tolerância que permitia a convivência das ordens
religiosas e as instituições científicas. Um espírito científico ansioso por novas
descobertas não excluía o sentimento religioso. Após a morte de Leibniz segue-se uma
aliança entre a Renascença, um novo Cristianismo e a ciência moderna. O
protestantismo pareceu ser a marca sob a qual deveriam se voltar essas correntes tão
heterogêneas.
Por essas peculiaridades históricas, Dilthey faz um elogio à nobiliarquia alemã.
Seu profundo apego moral permite aos nobres a conciliação de uma religiosidade e do
pensamento racional.
As suas criações musicais, literárias e
filosóficas atestam a conquista pessoal duma
consciência acerca do significado do mundo e
da vida. (Dilthey, (1900) 1947, p. 69).
O iluminismo alemão tem origem na contribuição de um cristianismo filtrado pelo
protestantismo e o desenvolvimento de um pensamento científico que quis, sobretudo,
desvelar os grandes mistérios que cercam a natureza das coisas. Para esse objetivo a
obra de Leibniz foi única.
179
Goethe e sua época
Escrever uma biografia como recurso historiográfico é organizar a complexidade
da vida individual e dar inteligibilidade àquilo que, aparentemente, está desconexo.
Além de Leibniz, escolhemos também a análise sobre Goethe por três motivos básicos:
primeiramente, porque a influência de Goethe sobre a concepção de Dilthey de história
é de tal importância que, no limite, só poderíamos entender o conceito diltheyano de
história se entendermos em quais pontos Dilthey recupera Goethe para falar do mundo
humano; em segundo lugar, há longas considerações de Dilthey, em várias de suas
obras, sobre a vida e a poesia de Goethe; e, por fim, Goethe é considerado pelo próprio
Dilthey pai da literatura alemã e no contexto de formação do estado nacional alemão,
onde a questão da identidade nacional era discutida, pelo menos nos circuitos
intelectuais, esse trabalho ganha uma importância sem igual.
Sem fazer análises pormenorizadas da vida de Goethe, Dilthey tece comentários
teóricos de sua produção poética, como ela foi importante como expressão de um tempo
histórico dado e de que maneira essa sua produção poética dialogou com sua época.
Goethe começou a produzir na época da Ilustração Alemã. Lessing que era um
importante pensador desse período estava no auge de sua produção poética quando
Goethe iniciou seu trabalho. Ao invés de assimilar ou deixar-se cooptar pelo
pensamento predominante, Goethe se opõe ao racionalismo da época. Dilthey destaca
esse fato como algo memorável e único na história da literatura dizendo que de fato
(...) a luta de sua imaginação poética com a
Ilustração e até com o espírito da mesma
ciência da época constitui um espetáculo sem
igual na história da literatura. (Dilthey, 1953,
p. 127).
180
Porém, poderia Goethe estar completamente imune ao pensamento científico de sua
época? Como veremos as peculiaridades da nova perspectiva poética elaborada por
Goethe tem relação com os elementos específicos de seu tempo. Nesses termos, Dilthey
quer compreender a obra de Goethe não simplesmente por suas obras, mas por sua vida.
“A obra de sua vida”.
A personalidade, as relações tecidas sob ela,
sua formação, ocupam o lugar central do
conceito de vida de Goethe. Seu modo de
conceber as coisas humanas esteve
condicionado sempre por aquilo que pôde
adquirir em suas experiências pessoais da
vida. (Dilthey, 1953, p. 162).
A produção poética de Goethe é, sobretudo, fruto do conhecimento dele acerca de sua
época e de suas convicções contrárias ao pensamento ilustrado. Dilthey defende a
hipótese de que a poesia goethiana é sobretudo conseqüência de sua vida e das diversas
relações travadas com seu mundo histórico, pois
O ponto de partida da criação poética é
sempre a experiência da vida, como vivência
pessoal ou como compreensão da de outros
seres, presentes ou passados, e dos
acontecimentos em que estes seres cooperam.
(Dilthey, 1953, p. 140).
Mais do que isso, há uma relação tensa com este mundo, pois só a superação do
pensamento ilustrado poderia abrir as portas para sua criação poética.
Essa relação com seu mundo histórico antes de dissolvê-lo na diversidade de sua
obra, propicia a formação de sua unidade. Há uma teleologia na vida de todas as pessoas
que faz com que as suas ações, mesmo que sempre novas, tornem-se sempre
reconhecíveis. A finalidade da ação nova só pode ser compreendida no conjunto da vida
181
do sujeito que lhe imprime sentido. As produções poéticas de Goethe são reconhecíveis
como sendo suas porque seguem e são circunscritas por uma unidade, uma coerência ou
por um “nexo de fim”.
Quando tentamos expor a relação que existe
em Goethe entre a vida, a experiência da vida,
a fantasia e as obras poéticas volta a
surpreender-nos acima de tudo a maravilhosa
unidade e harmonia que há nesta existência. A
vida deste poeta é um processo de crescimento
regido por uma lei interna e quão simples é
esta lei e com que regularidade e constância
atua. (Dilthey, 1953, p. 142).
As ações individuais carregam em si o sentido que lhes são próprias e realizam-no no
decorrer da vida e, portanto, não podem ser antevistas, antes do fato, pois o sentido de
uma vida só se realiza historicamente. Por exemplo, o poeta expressa por meio da
poesia e do texto literário a sua visão acerca do mundo. A poesia é, por seu turno,
representação e expressão da vida. Expressa a vivência e representa a realidade
externa da vida. (Dilthey, 1953, p. 127). As poesias elaboradas por um autor ganham
sentido no conjunto de sua obra. Assim, podemos diferenciar as poesias de Goethe das
de Shakeaspeare.
A vida de uma pessoa tem uma conexão que só pode ser compreendida ao longo
da história desse sujeito. Algo deve lhe parecer sempre permanente, perene, constante,
imperecível, pois isso lhe dá identidade. Essa identidade se dá também no “confronto”
do sujeito com a realidade exterior e com outros sujeitos.
Sua identidade se dá na vida, dentro de seu
meio cultural, [é dado também] o sentimento
de sua existência, uma atitude e uma posição
ante os homens e as coisas em volta; estes
homens e estas coisas exercem sobre ele uma
pressão ou lhe infundem uma força e alegria
182
de viver, postulam dele algo e ocupam um
lugar em sua existência. Deste modo, cada
coisa e cada pessoa cobram uma força e um
matiz próprios que lhe prestam seus nexos
vitais. (Dilthey, 1953, 128).
É bastante curioso na obra de Dilthey a constante recorrência ao exemplo da
relação do sujeito com o mundo em sua volta. É uma relação de reciprocidade que acaba
por encetar em ambos, aspectos de um e de outro. O contexto histórico-social de um
sujeito é importante para defini-lo, mas isso só não basta para o compreendermos. Pois
o que o torna um indivíduo diferente dos demais? Cada indivíduo tem uma maneira
própria de imprimir sentido à sua vida e expressá-la, mesmo que em uma geração os
sujeitos experimentem a vida nas mesmas condições, haverá sempre algo que os
diferenciarão. Os poetas destacam-se, particularmente, pela capacidade peculiar de
narrar a vida, dar a vida à linguagem. A narração é, não obstante, uma representação
dessa mesma vida que nunca se apresenta da mesma forma, à uma mesma consciência e,
tampouco, para uma outra pessoa. A representação de algo que passa necessariamente
pela capacidade de recordação e assimilação é como uma obra artística. De fato, a
representação é sempre uma criação simbólica (ou fantástica, como prefere Dilthey).
Assim,
(...) do mesmo modo que não se dá uma
imaginação que não se apoie sobre a
memória, não há tampouco memória que não
encerre já algo de fantasia. (Dilthey, 1953, p.
131).
A criação poética não se limita ao pragmatismo da vida. Apesar de surgir dentro
da intensidade do espírito criativo humano, ou seja, da vida; sua origem reside naquilo
que não é convencional e que poucos podem enxergar: na alma, no inconsciente. Para
183
Dilthey é uma maneira singular de contemplação da linguagem. A poesia é uma forma
que o poeta encontrou para se expressar e, enquanto tal é uma linguagem que fala do
poeta, de sua vida e do seu tempo. A poesia é, nesses termos, sempre representação e
leitura de um tempo histórico e por mais que lance mão de recursos não muito
convencionais é a vida historicamente delimitada o seu fundamento. O poeta consegue
mobilizar os signos lingüísticos criando possibilidades imagéticas nunca antes
imaginadas. O poeta é original, um gênio!
O gênio, por trás da poesia, no entanto, é um sujeito historicamente delimitado.
A poesia não nasce de um espírito transcendental e a-histórico, pelo contrário, ela tem
origem a partir da visão de mundo de uma pessoa. Por exemplo, só podemos
compreender a poesia de Goethe se, ao mesmo tempo, nos voltarmos para quem ele foi
em vida, pois para a consecução de qualquer obra humana o sujeito utiliza de todos os
recursos que dispõe seja em sua vida, seja em seu tempo histórico. Vida e poesia se
entretecem em sua obra, é difícil separar vida e obra, há uma integração plena e original,
mas isso ao invés de ser um empecilho torna-se, por outro lado, uma das coisas que
Goethe tinha de mais admirável, pois
(...) nos anos de impetuosa força juvenil,
exaltava nele até o infinito a alegria e a dor;
todo o real se envolvia para ele no véu da
beleza e lhe conferia o dom de encantar e
comover o mesmo a homens e a mulheres.
(Dilthey, 1953, p. 139).
Os anos de juventude de Goethe foram demasiado angustiantes. Não se sentia satisfeito
com coisa alguma que fazia. A casa do seu pai não lhe agradava, a vida rotineira da
sociedade cortesã de Leipzig era para ele um peso. A posição de advogado sem
nenhuma causa tornava a vida naquele lugar, insuportável. A monotonia de sua vida
184
fazia com que recorrentemente ele se perguntasse pelo sentido da vida. Goethe buscava
compreendê-la, refletindo sobre ela, contemplando-a, enfim, vivendo-a. Várias de suas
correspondências mostram como ele entendia a sua própria vida, a dos outros e o mundo
externo. A poesia é uma forma que Goethe encontrou para falar de seu mundo interno,
dos conflitos, ambições, angústias, anseios, medos, enfim, de sua própria personalidade.
Para isso soube utilizar a linguagem como ninguém. Goethe mandava como um rei
neste mundo da linguagem. (Dilthey, 1953, p. 135). É audacioso e rompe com a
linguagem tradicional. Mais do que isso, a poesia fora para ele a forma mais elevada de
compreensão do mundo.
Goethe seria fundamental para compreendermos a poesia não só alemã, bem
como a européia a partir de então. Sob sua influência, o romantismo vai se opor ao
racionalismo iluminista. Nesses termos,
(...) toda evolução espiritual da Europa
transcorreu logo sob a influência desta nova
força histórico-universal. Desta posição
cumpriu Goethe a suprema missão poética de
compreender a vida por si mesma e de expô-la
assim em sua beleza e em sua dignidade. O
dom poético não é, para ele, mais que a
suprema manifestação de um poder criador
que atuava já em sua vida mesma. A vida, a
formação, a poesia se converte em uma nova
conexão que tem no estudo científico sua base.
(Dilthey, 1953, p. 143).
Goethe levou à cabo muitos trabalhos históricos, não como historiador, mas como
artista. É bastante interessante e revelador a análise de Dilthey dos trabalhos históricos
de Goethe, pois demonstra aqui que estava atento à concepção contemporânea de
ciência histórica que exigia do historiador um distanciamento do objeto, almejando uma
imparcialidade. O historiador teria que ser capaz de “desligar-se” do mundo histórico e
185
olhá-lo de fora. Assim, para os critérios de cientificidade do século XIX, Goethe não
seria um historiador, pois recusa a separação entre sujeito e objeto.
Transfere diretamente a este toda sua
experiência da vida e o converte assim em
algo atual. Admira e se instrui. E como a
personalidade ocupa o lugar central em sua
concepção da vida, é ela, sobretudo, a que
busca no passado. (Dilthey, 1953, p. 163).
A experiência de vida de Goethe não é, porém, o único fator a explicar a
natureza de sua poesia. Vê-se que em fase mais madura a sua poesia adquire uma certa
objetividade, tornando-se algo para além de um mera narração da realidade, mas uma
atitude compreensiva do mundo. É uma forma de concepção do mundo que se forma a
partir da vida do poeta, mas não se reduz somente à ela, necessitando assim de uma
fundamentação científica. Esse fator era, sobretudo, uma necessidade, uma vez que a
poesia goethiana fora elaborada num contexto e numa época de grande desenvolvimento
científico. A poesia de Goethe nasce no momento em que a explicação científica da
realidade substituía a religiosa. A ciência emancipa o homem. (Dilthey, 1953, p. 170).
Goethe, portanto, não estava imune às influências de sua época, mas ao recebê-las,
potencializou-as e adequou-as à poesia. Dessa forma, a base de seu método consistia
sempre em perceber a realidade, vivê-la e compreendê-la. (Dilthey, 1953, p. 171).
A atitude artística e o pensamento objetivo em Goethe tinham similar
importância na formação de sua poesia. O pensamento objetivo era fruto, no entanto,
sobretudo, da intuição pessoal junto à realidade, por isso aquelas ciências que não
tinham exemplo algum correspondente na realidade, isto é, na experiência da vida, não
eram válidas dentro de sua concepção epistemológica. A peculiaridade de Goethe o
distingue de vários outros poetas, pois é o primeiro que eleva conscientemente a poesia
ao órgão de uma compreensão objetiva do mundo. (Dilthey, 1953, p. 180).
186
História, hermenêutica e poética: a novidade de Dilthey
A análise biográfica feita por Dilthey tem a pretensão de resolver uma tarefa
bastante complexa, a saber, como os elementos dispersos de um tempo histórico são
articulados num espírito dado e conseguem assim formar um todo original? Devido a
esse desafio, o historiador deve ter uma sensibilidade artística. A representação artística
da realidade sempre será uma grande tarefa da historiografia, que não poderá ser
desvalorizada pelo afã generalizador de alguns investigadores recentes, ingleses e
franceses. (Dilthey, (1883) 1949, p. 93-94). Do poeta e do historiador esperamos que
nos digam como vivemos, lutamos, gozamos e padecemos. Estes homens são
responsáveis para nos dar uma imagem do mundo e, portanto, de nós mesmos. (Dilthey,
(1883) 1949). Essa representação artística significa que o historiador é capaz de
compreender a singularidade da vida humana e, por isso, está tão próximo da poesia,
por exemplo. Segundo Cério, para Dilthey, a poesia e a música possibilitaram ao
homem adentrar nas mais profundas camadas da vida, onde conceitos abstratos não
eram capazes de atingir. (Cério, 1957). Dilthey afirmou em alguns momentos de sua
obra que Goethe foi, nesse sentido, um grande historiador. Goethe soube superar as
dificuldades do trabalho histórico, com uma peculiar imaginação artística. Nem sempre
aquilo que o historiador procura está explícito no documento. É, sobretudo, nos
silêncios e lacunas do documento que o historiador pode descobrir a conexão original da
vida, por isso o exemplo de Goethe é único.
Dilthey não chegou a essa conclusão de forma aleatória. Foram os trabalhos
sobre Schleiermacher e, posteriormente, sobre Goethe e Leibniz que lhe deram a
intuição. Os vestígios pessoais, não oficiais estão muito mais próximos da vida. Na
linha de raciocínio diltheyana,
187
Resulta evidente que não só as expressões
humanas na forma de documentos e
monumentos, mas até todas as formas de
expressão artística são fontes fundamentais
para a investigação e explicação históricas.
(Sousa, 1982, p. 69)
Mas é preciso também um sistema criterioso de pesquisa para preencher as frestas, por
isso a hermenêutica era um instrumento tão precioso. Dilthey concebia a vida como um
texto articulado e significativo. Por seu turno, a hermenêutica aplicada à história
forneceria ao historiador o método mais eficaz de compreensão da vida.
Dilthey foi o primeiro pensador a aproximar a hermenêutica do terreno da
história. A inovação causada por sua teoria foi única e, por isso, ele está na base de
muitas correntes historiográficas da chamada História Cultural. (Pesavento, 2004). A
história é um conhecimento hermenêutico, porque busca o sentido oculto, lacunar da
vida histórica. Esse sentido é contextual, mas é também original, pois nenhum indivíduo
é igual ao outro. Ao contrário, os indivíduos resistem uns aos outros. Eles se
relacionam, mas o convívio é, muitas vezes, tenso. Por isso, a atitude compreensiva é
tão importante e exige, no mínimo, uma atitude sensível para que o outro seja dado à
voz. Só a compreensão nos salva do espírito trágico que governa a modernidade, na qual
a solidão isola, a perecidade aniquila e a mudança não permite consistência nas
relações. A teoria histórico-compreensiva não tem a pretensão de eternizar o homem,
mas possibilita ao homem se aproximar da vida, por meio de conexões que integram,
aproximam e relacionam os homens.
s só poderemos compreender a experiência
da vida, quando dispusermos de uma
capacidade a mais do que o pensar, isto é,
quando tivermos a fantasia. (Nápoli, 2000, p.
61).
188
Dilthey mostra em sua Poética que a experiência vivida é constituída por
representações, emoções e volições. Por isso, atua na compreensão dessa experiência, o
componente imaginativo que pode ser sistematizado pela estética. De fato,
Sua teoria da expressão poética não apenas
melhor exemplifica a estrutura histórica da
práxis humana, ela está intimamente
relacionada à sua teoria da compreensão
histórica. (Owensby, 1988, p. 501).
Owensby defende, à exemplo de Makkrell, que a estética está em íntima relação
com a idéia de compreensão histórica. De fato, desde a Introdução..., Dilthey
recorrentemente ressalta a importância de componentes poéticos como suportes da
compreensão histórica. Seu texto de 1887 - que propunha provar o enquadramento da
poética dentro do quadro das disciplinas das ciências do espírito nos dá importante
pistas acerca desse assunto. (Dilthey, (1887) 1951).
A teoria compreensiva tem uma importância ético-política ímpar para o mundo
atual.
Como o centro da compreensão está na vida
como um todo estruturado, mas sempre
resultando da relação entre individualidades,
é possível perceber a conexão entre a ética e a
teoria compreensiva. O que, para Dilthey, se
deve procurar compreender não é só o mundo
do indivíduo, mas ele próprio inserido no
mundo: suas idéias, ações e suas criações na
inter-relação com o mundo e com os outros.
(Nápoli, 2000, p. 15).
A teoria da história é uma teoria compreensiva, hermenêutica, científica,
estética, psicológica e contém elementos poéticos. Para Dilthey,
189
O sujeito do conhecimento é, primeiro, um
conjunto psíquico, uma experiência interna
total, incapaz de separar a sua esfera
cognitiva da esfera afetiva, da esfera da
vontade, da esfera política etc. Para conhecer
um objeto, primeiro, o sujeito precisa admirá-
lo, desejá-lo! O sujeito conhece afetivamente.
Ele ama ou odeia o seu objeto com o apoio de
categorias cognitivas. (Reis, 2003, p. 107).
Dilthey buscou compreender a vida em sua singularidade e mesmo cumprindo as
exigências do pensamento científico, trouxe para o terreno da história critérios
científicos peculiares. Dilthey acreditava que a tarefa de sua vida era encontrar um
fundamento seguro para as ciências do espírito. À medida que desenvolvia suas
pesquisas a necessidade do fundamento foi cedendo espaço a uma tarefa mais ampla:
mostrar como o conhecimento da vida é possível e as peculiaridades desse
conhecimento baseadas nas mais diversas instâncias da vida, que não somente a ciência.
Frente à posição positivista de Comte, Spencer e Stuart Mill; frente ao idealismo de
Kant, Fichte e Hegel; frente à Escola Histórica Alemã do início do século XIX, Dilthey
propôs o conhecimento da vida, antecipando em quase cem anos o atual debate acerca
da natureza do conhecimento histórico, cujo principais personagens são: Michel
Foucault, Roger Chartier, Carlo Ginzburg, Hayden White, Paul Ricoeur etc.
O seu método exige do historiador um talento,
uma rara arte pessoal: a revivência do
passado em sua integralidade. Talvez se possa
dizer, com algum exagero, que ele já seria um
cinéfilo antes do cinema. Para ele, a história
deveria fazer o que faz o cinema: uma
reconstituição minuciosa, sutil, delicada,
intensa, em movimento dramático,
emocionada, de vidas determinadas. Talvez
seja por terem compreendido isso que muitos
historiadores também têm trocado a
historiografia pela linguagem cinematográfica
e teatral. E a história tem reatado suas
190
relações com a literatura, com a poesia, com a
dramaturgia. Os historiadores, hoje, confiam
muito no conceito de ‘representação’, que tem
um aspecto cênico de revivência, que teve
papel central na construção diltheyana. (Reis,
2003, p. 35 e 36).
Devido à novidade de sua proposta, Dilthey foi considerado um homem fora do seu
tempo. Menos radical do que Nietzsche compartilhou com este muitas posições que
foram relegadas ao ostracismo durante a época em que viveram. Foram necessários
bons anos para que esses homens recebessem seu devido valor. Dilthey não nos deu o
alfa e o ômega do conhecimento histórico, mas sua contribuição foi única e ainda
estamos por descobrir o ponto em que queria chegar. A meta que ele havia deixado para
seus discípulos alcançarem, ainda está por ser atingida.
191
Conclusão
Dilthey foi um intelectual extremamente preocupado com a vida dos homens no
tempo. Os problemas sociais, políticos, econômicos e diplomáticos provocavam em
Dilthey o desejo de tratar de assuntos referentes à organização dos Estados e da vida das
pessoas em sociedade. Esses problemas persistem, mesmo com novas roupagens, em
nossos dias e nos forçam a pensar a respeito das questões relativas ao preconceito,
discriminação, racismo, pobreza, terrorismo, fome etc. Se a ciência natural é capaz de
produzir engenhocas cada vez mais sofisticadas, no entanto, ainda somos atribulados
por problemas que se estendem por séculos resultantes da incapacidade dos homens em
gerir a vida humana social. São ainda incertas a força e a diferença que as ciências
humanas podem causar na sociedade, mas a necessidade de organização e de mudança
para um mundo melhor, tornam extremamente relevante a obra de Dilthey (Rickman,
1979).
Os temas tratados por Dilthey nunca foram tão atuais. O homem parece ter um
domínio técnico sobre a natureza cada vez mais apurado, mas isso não significa que ele
esteja preocupado deliberadamente com essa natureza que explora. Os problemas
ambientais se agravam cada vez mais e o capital parece ditar as leis das relações sociais.
Incorremos num grande perigo! Dilthey diria. Por mais sedutor que seja esse avanço
científico, não conseguimos lidar com problemas de convívio humano e a intolerância
tem se tornado a tônica das relações entre civilizações diferentes.
O mundo da alteridade está cada vez mais próximo pelos meios virtuais. O outro
provoca sentimentos novos e sensações exóticas, mas preferimos que ele permaneça
como estrangeiro e, se possível, bem longe de nós. À olhos nus não percebemos sua
existência. Revestimos o outro, o diferente, a alteridade, os pobres, os desgraçados, os
estrangeiros, os miseráveis com uma espécie de camada especial que os tornam
192
invisíveis na vida real, mas que, ao mesmo tempo, podem ser vistos esteticamente
reproduzidos por fotos, manchetes, imagens virtuais de nossas câmeras digitais e pela
internet. Quando nos é possível ver de perto esse outro, estranhamos suas formas.
Quando tiramos sua maquiagem, nos espantamos com suas rugas e marcas do tempo. O
outro é estranho, mas ao invés de tentarmos superar essa estranheza, preferimos nos
fechar em nossas acomodações cada vez mais reforçadas contra a presença desse outro.
Contudo, o historiador não pode se isentar da possibilidade de lidar com o diferente. O
historiador tem a nobre missão de tornar próximo aquilo que está distante. Mas a tarefa
é ainda desafiante. Os historiadores ainda se perguntam: como é possível a compreensão
desse outro?
Dilthey chamava a atenção de que compreender o outro exige, no mínimo, uma
atitude de respeito e tolerância. Compreender não é perdoar. Não se pode reduzir o
sujeito do conhecimento à vida do outro. O que Dilthey vislumbra ser possível é que,
por meio da compreensão, teremos, pelo menos, a possibilidade do diálogo. Muitos
conflitos que se seguem atualmente poderiam ser evitados se os homens aceitassem a
possibilidade do diálogo. Nesse sentido, os historiadores teriam muito para contribuir
para os nossos dias. O historiador é um mediador da história. Não porque ele nos ensina
lições do passado para agirmos diferente. Mas porque, em seu trabalho, concretiza-se o
diálogo e a compreensão.
Compreensão pressupõe abertura, tolerância, respeito, diálogo e ética. Dilthey
nos ensinou que toda e qualquer vida humana é passível de ser relatada. Cada sujeito
histórico representa uma possibilidade de vida diferente, uma potência de vida distinta e
singular. Um indivíduo encerra em sua vida experiências que qualquer outro poderia
também viver. Justamente por serem vidas históricas, podemos compreender os sujeitos,
mesmo os que vivem em territórios remotos ou em tempos distantes. Se as suas
193
expressões de vida nos são ainda presentes, podemos refazer, mesmo que parcialmente,
o percurso dessa vida.
Dilthey nos alerta que no processo da compreensão o sujeito não abre mão de
sua identidade. Justamente porque ele não pode deixar de ser quem ele é, é que a
compreensão se torna possível. A necessidade de compreensão e, por conseguinte, do
diálogo se dá porque a alteridade é mantida. Um mínimo de diferença é necessário para
que o outro nos chame a atenção. Como os sujeitos são sempre diferentes uns dos
outros, haverá sempre a necessidade da compreensão.
Alguns autores afirmam que Dilthey chegou a essa convicção porque ele ainda
falava de um terreno metafísico, onde as vidas estariam congregadas e compartilhariam
suas experiências. A possibilidade de compreensão se realizaria porque haveria a
contribuição de cada sujeito, que estaria motivado por uma força extra-histórica, um
espírito compreensivo. Segundo essa concepção, Dilthey seria metafísico porque
acreditaria numa humanidade universal. Seus conceitos pressuporiam um sentido a-
histórico e universalista. Dilthey teria construído uma crítica metafísica da metafísica.
Dilthey haveria cometido o pior dos deslizes, por não ter confessado sua convicção
metafísica. Ele seria ainda um religioso que acreditava na salvação por meio da história.
Acreditamos que tal perspectiva é pouco generosa com a obra de Dilthey. É
certo, que não podemos nos esquecer de que Dilthey era um homem do século XIX,
viveu num seminário religioso, os homens de sua família foram capelães de cortes
nobiliárquicas e seu interesse pela história começou com a análise dos primórdios do
cristianismo. Contudo, poucos em sua época combateram com tanta veemência os
pressupostos metafísicos. Dilthey tinha verdadeira ojeriza ao pensamento metafísico.
Por conta disso, ele fez uma verdadeira apologia da história, creditando a esta a
responsabilidade quase exclusiva de se conhecer a realidade humana. Dilthey levou às
194
últimas conseqüências a possibilidade do conhecimento da história. Seu combate o
coloca na base de correntes de pensamento conhecidas como pós-estruturalistas.
Dilthey teria sido um dos precursores da história cultural que hoje se encontra em voga
nos circuitos historiográficos. Tal reconhecimento não se daria se ele ainda fosse um
pensador metafísico. Mesmo que tenha sido, ele inaugurou uma nova forma de se lidar
com esse tipo de pensamento: o tratamento histórico de toda e qualquer manifestação
humana.
Por ter acreditado demais na história Dilthey foi criticado por correntes
cientificistas de sua época e seu trabalho foi acusado de ser desorganizado e não
obedecer a um sistema. Mesmo diante das críticas, Dilthey permaneceu firme no
propósito de conhecer a vida e fundamentar a história. A necessidade de se firmar uma
base do conhecimento histórico talvez denuncie os ecos do positivismo em sua obra.
Entretanto, uma certa sedução pela vida é sempre explicitada em seus trabalhos. Dilthey
era pianista e conhecia a música e a poesia de boa qualidade. Tal marca artística é
possível ser percebida em seus escritos. Dilthey admirava aspectos do conhecimento
pouco importantes na sua época, tais como, a fantasia, a vontade, o desejo, o
significado, a irracionalidade, a vida íntima do sujeito, a vida interna, a loucura, a
intuição artística etc. Por ter sido tão inovador, os seus contemporâneos não poderiam
-lo compreendido melhor. Hoje sabemos que os problemas e discussões que ele
suscitou são produtos de sua época, mas a paixão que tinha pela vida o diferencia dos
homens dos circuitos acadêmicos de então que estavam demasiadamente preocupados
com a depuração científica.
Por conta dessa paixão pela vida, Dilthey se assemelhe a Nietzsche. No entanto,
Dilthey compunha os círculos de uma nobreza alemã decadente que ainda agonizava
num ambiente liberal. Nietzsche tem um espírito mais desprendido e é mais contundente
195
em suas afirmações contra o cientificismo. Nietzsche toma a vida contra o
conhecimento histórico praticado à época. Dilthey ainda acredita na epistemologia.
Nietzsche talvez tenha conseguido dar o passo que Dilthey não foi capaz. Mas ambos
falam com paixão da vida. E se a história tiver alguma utilidade, esta deve ser para a
vida. Se a história não for capaz de servir à vida, não será necessária estudá-la,
pesquisá-la ou conhecê-la. A vida é o único aporte seguro do conhecimento histórico,
tudo o mais é sua criação. Quanto mais distantes estivermos da vida, mais pobres nos
tornaremos. Enquanto não aprendermos de que a vida concreta é aquilo que nutre o
conhecimento, enquanto não percebemos que por detrás dos números e conceitos estão
vidas, enquanto não nos dermos conta de que as estatísticas falam de vidas, enquanto
estivermos falando de neutralidade do conhecimento, menos apaixonados seremos e,
portanto, menos o conhecimento histórico será importante.
A crise atual do conhecimento histórico talvez pudesse ser resolvida se
estivéssemos mais atentos àquilo que compõe os nossos escritos: a vida. Contudo, ao
invés de tomarmos e discutirmos com paixão o conhecimento que produzimos,
preferimos nos contentar com a produção de textos esteticamente compostos para que
vendam e se tornem lindos objetos de vitrines e estantes, como objetos de fetiche
intelectual. Se não formos capazes de falar da vida, não valerá a pena dedicarmo-nos à
história, pois o que fomos e o que somos, diria Dilthey, só a nossa vida pode nos dizer.
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