Os poetas já tinham adivinhado ou exprimido tudo isso por meio do glosar infinito
dos tormentos ou das contradições do amor. O que muda é a idéia ou o papel desse
mesmo amor. Na Renascença, com Bernadim Ribeiro e Camões, o amor torna-se
visão do mundo, na medida em que a saudade o sublima ou transfigura. A saudade já
não é objeto de controvérsia. É um sentimento avassalador que impregna as páginas
do mais belo livro alguma vez escrito em língua portuguesa, as Saudades, de
Bernadim Ribeiro, de uma melancolia suave e dilacerante, como se a saudade
mesma se tivesse volvido em escrita. Do mesmo modo, em Camões, em particular
nas Canções, a saudade converte-se em canto dedicado a uma ausência que não é
somente a do ser amado ou da pátria perdida, mas angústia do ser que vive, pela
primeira vez na cultura portuguesa, como “Filho do Tempo”, quer dizer, como seu
prisioneiro. Tudo se passa como se a saudade, consolação do inconsolável, tocasse
os limites da felicidade magoada que destila. Pode dizer-se que se operará nela
uma conversão, quando a saudade se confundirá com a aspiração à mais alta
realidade e se descobre como lembrança da verdadeira cidade – a Jerusalém
celeste – onde a ferida do amor humano e a ferida mais funda da nossa finitude
encontram remédio.
(LOURENÇO, 1999, p. 28)
Dessa forma, tencionamos encontrar em Camões talvez quase todos os elementos que,
convergidos, sejam capazes de nos levar a uma, provavelmente a maior, das matrizes
melancólicas da literatura portuguesa. Por motivos que pretendemos expor, a cultura
portuguesa encontra em Camões o seu Príncipe, colocado em pedestal em função de seu
desajuste com o próprio presente. E tudo o que sente é o desconcerto de estar no mundo, cuja
operacionalização realiza uma das mais notáveis fissuras entre o sujeito que se encontra diante
de um exercício que parece improdutivo: existir. Nas suas palavras este poeta de triste figura
melhor esclarece o que buscamos dizer:
Porque aqueles que estão na noite escura,
nunca sentirão tanto o triste abiso,
se ignorarem o bem do Paraíso.
Canção, nô mais, que já não sei que digo;
mas porque a dor me seja menos forte,
diga o pregão a causa desta morte.
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Ou ainda nos sonetos pungentes e cuja citação decerto ocuparia grande parte deste trabalho,
como, por exemplo, nos versos de No mundo quis um tempo que se achasse, ou até a
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CAMÕES, Luís Vaz de. Canções e Elegias. Direção Literária Dr. Álvaro Júlio da Costa Pimpão. Disponível
em http://www.bibvirt.futuro.usp.br/textos/autores/camoes/cancoeselegias/cancoeselegias_texto.html
acessado em 20 de novembro de 2005 às 02:50h.