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ANTONIO AUGUSTO DA COSTA
ABUSO DO DIREITO NO CÓDIGO CIVIL
LONDRINA-PR
2006
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ANTONIO AUGUSTO DA COSTA
ABUSO DO DIREITO NO CÓDIGO CIVIL
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Curso de Mestrado em Direito Negocial,
área de concentração em Direito Civil, da
Universidade Estadual de Londrina, como
requisito para obtenção do título de
mestre.
Orientador: Adauto de Almeida
Tomaszewski
LONDRINA-PR
2006
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COMISSÃO EXAMINADORA
______________________________________
Prof. Dr. Adauto de Almeida Tomaszewski
Universidade Estadual de Londrina
______________________________________
Profª Drª Valkíria A. Lopes Ferraro
Universidade Estadual de Londrina
______________________________________
Prof.(a) Dr.(a)______________________
Universidade ______________________
Londrina, 29 de junho de 2006
A Deus; aos meus pais; à minha Adriana; e
à Maria Fernanda que está por vir.
AGRADECIMENTOS
Ao professor Adauto de Almeida Tomaszewski: muito mais do que orientador,
grande exemplo de vida, pessoal e profissional; jurista e professor brilhante, que
soube despertar, com suas lições fundamentais, a reflexão crítica do Direito em seus
alunos.
À professora Valkíria A. Lopes Ferraro, pelas brilhantes aulas ministradas e
profícuas atividades universitárias desenvolvidas, o que a faz uma das mais queridas
e admiradas professoras; pelo incentivo ao magistério e pela amizade sincera que se
iniciou nas salas de aula e que perdurará fora delas.
Aos colegas de curso, um afetuoso abraço e a saudade de dias inesquecíveis.
À CAPES pelo incentivo sem o qual este trabalho possivelmente não seria
concluído.
À minha família de quem limitei o convívio pela causa abraçada e o propósito de
concluir o curso de mestrado.
Agradeço a todos os amigos que, a despeito de não serem citados, contribuíram
para a realização do projeto.
“Para a maioria dos homens, os direitos aparecem como o que eles podem fazer,
cobrar, exigir. (...) O mundo é organizado de tal forma que esses direitos, bilhões
de direitos, numa só cidade, - a propriedade dos prédios, dos móveis, das jóias,
as notas promissórias, as ações, o ordenado, a entrada dos teatros e cinemas, ...,
se lançam, se cruzam, sem que nunca se choquem, ou se firam. (...)
Mas o mundo jurídico não é assim. Nunca foi. Os direitos topam uns nos outros,
Cruzam-se. Molestam-se. Têm crise de lutas e hostilidades. Exercendo o meu
direito, posso lesar a outro, ainda se não saio do meu direito, isto é, da linha
imaginária que é o meu direito.”
(PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, 1951, P. 130/131)
COSTA, Antonio Augusto da. Abuso do Direito no Código Civil. 2006. 194 p.
Dissertação (Mestrado em Direito Negocial) – Universidade Estadual de Londrina.
RESUMO
Dissertação apresentada junto ao Curso de Mestrado em Direito Negocial, com área
de concentração em Direito Civil, tendo como linha de pesquisa “A nova ordem
contratual do Direito Obrigacional”. Analisa o instituto do abuso do direito no atual
Código Civil, conceituando-o e apresentando sua evolução histórica e teórica, até a
atual realidade brasileira de modernidade tardia no âmbito jurídico. Apresenta o
abuso do direito como uma cláusula geral. Fornece o conceito de abuso do direito,
como sendo o exercício pelo titular de um direito, que exorbita manifestamente os
limites impostos pelos fins social e econômico a que este direito foi criado, bem
como pela boa-fé objetiva e pelos bons costumes. Identifica os elementos que
compõem o conceito legal do abuso do direito. Demonstra os posicionamentos
doutrinários acerca da natureza jurídica do abuso do direito, nomeadamente a que o
considera ato ilícito. Aponta as conseqüências jurídicas do abuso do direito,
notadamente o dever de indenizar, caso o ato provoque algum dano, também a
tutela inibitória e de remoção do ilícito. Indica que não se aplica ao ato abusivo a
teoria da invalidade dos atos jurídicos. Apresenta pesquisa jurisprudencial acerca da
aplicação do instituto antes e após o advento do atual Código Civil, colecionando,
ainda, decisões de direito alienígena, propondo a quebra de paradigmas junto aos
aplicadores do direito pelo emprego do instituto do abuso do direito com vistas à
realização dos fins a que o mesmo foi criado, qual seja, incutir um senso de justiça,
eticidade, socialidade e equidade nas relações privadas.
Palavras-chave: Abuso do Direito. Ato ilícito. Fim social. Fim econômico. Boa-Fé
objetiva. Bons costumes.
COSTA, Antonio Augusto da. Law abuse in the Civil Code. 2006. 194 p. Dissertation
(Masters Degree Program in Negocial Law) Londrina State University
ABSTRACT
Dissertation presented at the Negocial Law Master’s Degree Program , with
concentration area in Civil Laws, with research line “The new obligatory |law contract
order”. It analyzes the law abuse in the present Civil Code, defining it and presenting
its historical and theoretical evolution until the present Brazilian reality of late
modernity in the judicial scope. It presents the law abuse, as a general clause . It
provides de law abuse concept as being an exercise of the law authority that clearly
exorbits the limits imposed by the social and economical purposes that it was
created, as well as by the objective good faith and by the good costumes. It
identifies the elements that constitute the legal concept of the law abuse. It shows
the doctrinaire positions about the judicial nature of law abuse, especially what it
considers an illegal act. It shows the judicial consequences of law abuse, also the
inhibiting tutoring and the removal of the illegal. It shows that the invalidity theory
does not apply to the judicial acts. It shows jurisprudential research about the
appliance of the institute before and after the creation of the present civil code, also
adding alien law decisions, suggesting breaking paradigms with the law appliers by
the use of the law abuse institute focusing the purposes that it was created for, that
is, insert a sense of justice, sociability and equity in private relations.
Key words: Law abuse, Illegal act, Social Purpose, Economical purpose. Objective
good faith. Good costumes.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...... ..................................................................................................11
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES .................................................................15
1.1. Conceituação do instituto .................................................................................15
1.2. Discussões a respeito da expressão “abuso de direito” ...................................17
1.3. Escorço Histórico .............................................................................................19
1.3.1. Evolução da teoria .........................................................................................19
1.3.2. Terra Brasilis ..................................................................................................26
1.4. Realidade brasileira...........................................................................................30
1.5. Teorias que fundamentam o abuso do direito ..................................................39
1.6. Alguns exemplos de abuso do direito em ordenamentos jurídicos alienígenas 45
1.7. Do abuso do direito processual ........................................................................49
2. ABUSO DO DIREITO COMO CLÁUSULA GERAL NO CÓDIGO CIVIL ............54
2.1. O sistema adotado pelo Código Civil de 1916 ..................................................54
2.2. O sistema adotado pelo Código Civil de 2002 ..................................................55
2.3. O abuso do direito como cláusula geral ...........................................................57
3.
ELEMENTOS QUE COMPÕEM O CONCEITO LEGAL DE ABUSO DO DIREITO .......59
3.1. “Também comete ato ilícito ...” .........................................................................59
3.2. “O titular de um direito que, ao exercê-lo...” ....................................................60
3.3. “Excede manifestamente...” ..............................................................................63
3.4. “Limites impostos...” .........................................................................................64
3.4.1. “Fim econômico...” .........................................................................................65
3.4.2. Fim “social...” .................................................................................................67
3.4.3. “Boa-fé...” ......................................................................................................72
3.4.4. “Bons costumes.” ..........................................................................................77
4. NATUREZA JURÍDICA DO ABUSO DO DIREITO NO CÓDIGO CIVIL ..............80
4.1. Do ato jurídico ilícito .........................................................................................81
4.2. Breves considerações sobre a ilicitude no atual Código Civil ...........................92
4.3. Críticas ao enquadramento pelo atual Código Civil da teoria ao abuso de direito
no título que trata dos atos ilícitos............................................................................94
4.4.Divergências doutrinárias acerca da aplicação da Teoria da Invalidade ao
Abuso do Direito...............................................................................................98
5. DO DEVER DE INDENIZAR O ABUSO DO DIREITO ...................................... 105
5.1. Da responsabilidade extracontratual objetiva no abuso do direito ................. 108
6. DA TUTELA INIBITÓRIA E DE REMOÇÃO DO ABUSO DO DIREITO ............ 112
7. ABUSO DO DIREITO NA JURISPRUDÊNCIA .................................................. 117
7.1. Antes do Código Civil de 2002 ....................................................................... 117
7.2. Após a vigência do atual Código Civil ............................................................ 121
7.3. No Direito português ...................................................................................... 123
7.4. O papel do jurista para a concreção do instituto ............................................ 125
CONCLUSÃO ........................................................................................................ 128
REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 131
ANEXO I ............................................................................................................. 139
ANEXO II ............................................................................................................ 149
ANEXO III ............................................................................................................ 192
INTRODUÇÃO
Em tempos de modernidade tardia, dentro de uma perspectiva de
crescente constitucionalização e de publicização do Direito Civil, com a intervenção
cada vez maior do Estado nas relações privadas, é grande a preocupação dos
juristas em consagrar a eticidade e a sociabilidade como instrumentos
condicionantes da aplicação do direito.
Não por outra razão, as legislações modernas, ao lado das normas
técnico-formalistas, vêm prevendo institutos agregadores de princípios valorativos
essenciais à afirmação da Justiça nas relações humanas. É o caso da Função
Social da Propriedade, da Função Social e Econômica do Contrato, do Princípio da
Boa-fé Objetiva, da Teoria da Imprevisão, da Excessiva Onerosidade, dentre outros.
Foi também nesse cenário que se positivou expressamente em
nosso ordenamento jurídico a Teoria do Abuso do Direito, construída sob a ilação:
“o meu direito termina quando começa o do outro”. É justamente na superação do
ideal pandectista e burguês de afirmação de liberdades públicas, em que se
edificaram direitos subjetivos absolutos intangíveis, que os imperativos da
convivência em sociedade inspiraram a moral hodierna a exigir uma relativização
dos interesses. E esta relativização veio codificada no atual Código Civil,
especialmente quando tratou da disciplina do abuso do direito.
Acerca do abuso do direito, e sua compreensão, mister que se traga
à colação a lição de Pontes de Miranda
1
:
Há limites aos direitos e há abusos sem transpassar limites. Não se
confundam limitação aos direitos e reação ao abuso do exercício do
direito, ou melhor, o exercício lesivo. Quando o legislador percebe
que o contorno de um direito é demasiado, ou que a força, ou
intensidade, com que se exerce é nociva, ou perigosa a extensão em
que se lança, concebe as regras jurídicas que o limitem, que lhe
ponham menos avançados os marcos, que lhe tirem um pouco da
violência ou do espaço que conquista.
_____________
1
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. 5ª ed.
tomo I. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 351-352.
Os Direitos são concedidos para a consecução da pacificação
social através da solução de conflitos. São criados para serem exercidos de maneira
justa, social e legítima e não para que sejam usados discricionariamente. O titular de
um direito, ao exercê-lo, não deve cometer excessos para fim diverso a que a lei se
destina, sob pena de passar do campo da licitude para o da ilicitude.
O ato abusivo do direito, aparentemente é legal, mas social,
econômica, ética e moralmente condenado, a ponto do legislador pátrio considerá-lo,
a partir do Código Civil de 2002, verdadeiro ato ilícito.
Inicialmente, cumpre ponderar que o instituto do Abuso do Direito
objeto do presente estudo é o previsto no Código Civil, ou seja abuso do direito
material, que não se confunde com o abuso do direito processual tratado no Código
de Processo Civil.
Com a entrada em vigor do atual Código Civil, nomeadamente do
instituto do abuso do direito, inovação trazida pelo nosso legislador no âmbito das
relações privadas, multiplicaram-se as críticas aos instituto, gerando grande
celeuma e intrincadas discussões acerca de sua natureza jurídica e repercussões
no mundo do direito.
Como era o tratamento dado ao instituto do abuso do direito antes,
e após o atual Código Civil? Seria o abuso do direito um ato lícito ou ilícito? Se ato
ilícito, de qual espécie? Teria como conseqüências a reparabilidade do dano
concomitantemente com a invalidade do ato? Seria suscetível, além de uma tutela
ressarcitória, também de uma tutela inibitória e de remoção do ilícito? A
responsabilidade civil decorrente do abuso do direito é objetiva ou subjetiva? Os
Tribunais pátrios têm aplicado o instituto?
A resposta a todas estas questões, repita-se, muito discutidas e
debatidas pelos juristas que se enveredam ao estudo do instituto do abuso do
direito, é o objeto do presente trabalho.
Some-se a tudo isso, que o Art. 187 é uma clausula geral das mais
ricas do Código Civil, sua redação é repleta de conceitos legais indeterminados e
conceitos determinados pela função que têm de exercer no caso concreto, o que
torna o instituto, ainda mais, um terreno fértil para a construção doutrinária e
jurisprudencial.
Dentro deste cenário, em que a legislação privada está se
adaptando tardiamente, o presente trabalho vem traçar o perfil do abuso do direito,
sua evolução histórico-jurídica até o estatuído no Código Civil de 2002, para
concluir pela sua atual natureza e conseqüências jurídicas.
No estudo deste novel instituto pouco explorado, o que Rui Stoco
chamou de “uma das questões mais complexas e controvertidas de que se tem
notícia no campo da dogmática jurídica”
2
, adota-se uma postura crítica, sempre
procurando utilizar a lente constitucional como filtro normativo para o entendimento
da matéria.
É o que se pretende: identificar o instituto do abuso do direito
material, sua evolução histórica e natureza jurídica, suas implicações teóricas e
práticas, abordando-se criticamente este instituto democrático, adrede aos mais
comezinhos princípios éticos e morais que o Direito sempre perquiriu e que, agora,
vem taxativamente previsto no atual Código Civil Brasileiro, necessitando de uma
análise acuidada.
1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
1.1 Conceituação do Instituto
É conveniente frisar quão árdua é a missão de estabelecer um
conceito ao instituto do abuso do direito, tendo em vista que esta tarefa vem
provocando constantes inquietações em toda a doutrina mundial.
No tocante à conceituação do abuso do direito no que atina ao
Código Civil, sua previsão no art. 187
3
dá o conceito legal do instituto:
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao
exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim
econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons-costumes.
2
STOCO, Rui. Abuso do Direito e Má-fé Processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 02.
3
Lei 10.406, de 10 de Janeiro de 2002.
Pelo Código, abuso do direito é o exercício de um direito que
exorbita manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela
boa-fé e pelos bons costumes.
Observa-se que o legislador optou por um sistema aberto de
definição do ato praticado em abuso do direito. Ao revés de descrever,
casuisticamente, suas hipóteses de incidência, deixou ao aplicador a possibilidade
de reconhecê-lo diante das lides cotidianas, preenchendo o conceito do que seja
exercício ilegítimo do direito.
Para fins de uma identificação preliminar do instituto, cumpre
colacionar escólios da lavra de renomados juristas. O civilista SILVIO RODRIGUES,
esclarece no que consiste o abuso do direito
4
:
“o abuso de direito ocorre quando o agente, atuando dentro das
prerrogativas que o ordenamento jurídico lhe concede, deixa de
considerar a finalidade social do direito subjetivo, e, ao utilizá-lo
desconsideradamente, causa dano a outrem. Aquele que exorbita no
exercício de seu direito, causando prejuízo a outrem, pratica ato
ilícito, ficando obrigado a reparar. Ele não viola os limites objetivos da
lei, mas, embora os obedeça, desvia-se dos fins sociais a que esta
se destina, do espírito que a norteia. (Direito Civil. São Paulo:
Saraiva, 1975, p. 49)
ÁLVARO VILLAÇA DE AZEVEDO exemplifica
5
:
“Quando um sujeito se investe de um poder para realizar um
interesse de outrem, pouco sobra relativamente a essa função, se
existe um vínculo marcante ao escopo. O poder pode ser exercido
somente para os fins, em razão dos quais foi atribuído; todo ato não
justificado com referência a essa finalidade, e que se desvie do
escopo, é considerado abuso”.
LOUIS JOSSERAND, indica qual a finalidade do instituto, de onde
_____________
4
Apud. STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.
767.
se extrai o conceito de abuso do direito, praticamente nos moldes adotados pelo
Código Civil de 2002
6
:
Los derechos subjetivos, valores sociales, productos sociales,
concedidos por la sociedad, no nos son atribuídos abstractamente y
para que usemos de ellos discrecionalmente, ad nutum; cada uno de
ellos está animado de cierto espíritu que no puede su titular
desconocer o disfrazar; cundo los ejercemos, debemos conformarnos
con este espíritu y permanecer en la línea de la institución; sin lo cual
apartaríamos el derecho de su destino, harámos mal uso de él,
abusaríamos, comenteríamos una culpa que comprometería nuestra
responsabilidad. De esta manera se pode de relieve la teoría del
abuso de los derechos (...).
7
É certo que, para conceituar um instituto, faz-se mister
primeiramente o seu estudo e análise minudentes, razão pela qual, para fins de
apresentar uma definição prévia e introdutória, notadamente quanto ao abuso do
direito material, previsto no Código Civil, objeto do presente estudo, pode-se dizer
que o abuso do direito é o ato realizado pelo titular de um direito, que, ao exercê-lo
com apoio em preceito legal, excede manifestamente os limites de seu direito, os
quais são determinados pelo fim social e econômico do direito, pela boa-fé e pelos
bons costumes. Ou seja, o titular de um direito cometerá abuso, quando, no
exercício anormal de seu direito, lesa o direito de outrem.
O abuso do direito corresponde, pois, ao exercício de um direito
subjetivo ou outras prerrogativas individuais de maneira exacerbada, ou seja, de
modo desconforme aos limites estabelecidos pelos fundamentos axiológico-
5
AZEVEDO, Álvaro Villaça (coordenador). Código Civil comentado: negócio jurídico. Atos jurídicos
lícitos. Atos ilícitos. Vol. II. São Paulo: Atlas, 2003. p. 365.
6
JOSSERAND, Louis. Derecho Civil. Revisado y completado por André Brun. Traducción de Santiago
Cunchillos y Manterola. Tomo II. Vol. I. Buenos Aires: Bosch Y Cia. Editores, 1950. p. 311/312.
7
No trecho, JOSSERAND quer dizer que os direitos subjetivos são concedidos pela própria
sociedade, não se admitindo seu uso de forma discricionária. Cada direito foi criado para um fim, e
quando se exerce este direito, não se pode afastar o seu uso com o fim para o qual foi concebido,
sob pena de se abusar do direito e incorrer em responsabilidade, sendo esta finalidade do instituto
do abuso do direito.
normativos inerentes ao direito ou prerrogativa individual exercitada.
1.2 Discussões a respeito da expressão “abuso de direito”
Conforme retro explanado, o conceito de abuso do direito, nos
moldes do Código Civil de 2002, é o exercício de um direito que exorbita
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé e
pelos bons costumes.
Daí surgem algumas controvérsias e celeumas acerca da
nomenclatura do instituto. Para os doutrinadores seguidores da corrente negativista,
especialmente PLANIOL, a primeira incongruência do termo “abuso de direito”
reside no fato de que, ao se iniciar o “exercício abusivo”, passa-se do campo da
licitude e se adentra no da ilicitude. Assim, não se abusaria do direito, mas sim, se
estaria exatamente cometendo um ato ilícito, contrário ao direito: ou seja, ninguém
usa e abusa de um direito ao mesmo tempo.
PLANIOL denomina o instituto de uma verdadeira inutilidade. É o
que narra SERPA LOPES, quando diz que M. Planiol encarou o instituto como uma
logomaquia resultante de sua própria denominação, além de importar em que se
possa admitir a existência de um ato bifronte; direito e não direito, conforme a
direção que lhe imprima a vontade das partes.
8
.
Como forma de refutar a tese de PLANIOL, o jurista JORGE
AMERICANO propôs uma análise gramatical e jurídica do termo. Após uma análise
_____________
8
SERPA LOPES, Miguel M. de. Curso de Direito Civil. 4ª ed. vol. I. Rio de Janeiro: Livraria Editora
Freitas Bastos, 1962. p. 542.
gramatical pondera
9
:
Ao que se vê, diccionairistas e encyclopeditas admittem a idéia de
abuso como correspondente á noção de excesso, e não a
consideram absurda quanto ligada ao próprio exercício da virtude; o
abuso será, nesse caso, o máo emprego da virtude; o abuso será,
nesse caso, o máo emprego da virtude, ou, si é possível dizel-o, o
seu desvirtuamento.
Assim, também no direito, direito diremos abuso o seu
desvirtuamento, o descomedimento no seu exercício, a indevida
applicação de um princípio, a consequencia exagerada que delle
tiramos.
Referido autor pondera, ao firmar que a noção do direito exclui a
noção de abuso, vez que o abuso desnatura o direito, fazendo com que ele o deixe
de ser. No entanto, a realidade fática demonstra que existem atos ilícitos com um
falso assento em direito, diversos do ato ilícito, que não possui nenhum assento em
direito. Não há um direito de abusar, mas sim um abuso no seu exercício, razão
pela qual logomaquia não existe, portanto, na locução “abuso de direito”.
10
Mas ainda pairam dúvidas no tocante à expressão “abuso de
direito”. PONTE DE MIRANDA adverte
11
:
A expressão “abuso de direito” é incorreta, pois existe “estado de
fato” e “estado de direito”; porém não “abuso de fato” ou “abuso de
direito”. Abusa-se de algum direito, do direito que se tem. (...)
Recebemo-la dos livros franceses e, lá, só se usa “abus du droit”.
Assim, buscando dar atenção à terminologia científica, sempre que
houver referência a este instituto, em comunhão com o ensinamento de PONTES
_____________
9
AMERICANO, Jorge. Do Abuso do Direito no Exercício da Demanda. 2ª ed. São Paulo: Saraiva &
Comp Editores, 1932. p. 4.
10
AMERICANO, Jorge. Do Abuso do Direito no Exercício da Demanda. 2ª ed. São Paulo: Saraiva &
Comp Editores, 1932.p. 5.
11
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª ed.
tomo I. Rio de Janeiro: Forense, 1958.p. 135.
DE MIRANDA, utilizar-se-á, no decorrer deste trabalho, a expressão “abuso do
direito”, ao invés de “abuso de direito”.
1.3 Escorço histórico
A fim de que se possa ter uma melhor noção do instituto em
comento, necessário de faz um estudo, ainda, que singelo, de sua evolução,
analisando-se as características do abuso do direito em distintos ordenamentos e
momentos históricos.
1.3.1 Evolução da Teoria
A atual concepção da Teoria do Abuso do Direito, conquanto muito
antiga, foi aperfeiçoada no século XIX, para fins de desenvolvimento e
aprimoramento do conceito de ato ilícito.
No entanto, a ampla maioria dos juristas que dedicaram seus
estudos ao abuso do direito, admite que a origem do instituto provém do Direito
Romano. Esta afirmação, a princípio, pode parecer incongruente, já que a rigidez na
aplicação da norma, bem como a presença de regras de cunho eminentemente
individualistas, são ínsitas ao Direito Romano.
Na península itálica, vigia o brocardo neminen laedit qui iure suo
utitur, o qual indicava que “a ninguém prejudica aquele que usa de seu direito”
12
.
Através deste princípio se justificava a aplicação da lei em qualquer circunstância,
pois, sob o amparo da lei, se estaria atuando conforme o Direito.
Igualmente, GAIO citado por ÁLVARO VILLAÇA DE AZEVEDO
13
,
_____________
12
CARVALHO NETO, Inácio de. Abuso do Direito. 3ª ed. Curitiba: Juruá, 2004. p. 23.
13
AZEVEDO, Álvaro Villaça (coordenador). Código Civil comentado: negócio jurídico. Atos jurídicos
lícitos. Atos ilícitos. Vol. II. São Paulo: Atlas, 2003. p. 362.
pontifica que nenhum dolo parece fazer quem usa de seu próprio direito: nullus
videtur dolo facere, qui suo iure utitur
14
.
O Direito poderia ser exercido sem limites, mesmo que em prejuízo
de outrem. Assim, se perpetrava uma série de desvios da finalidade a que a lei foi
criada, vez que o direito poderia ser manipulado para a satisfação de interesses, ao
contrário do seu real e efetivo fim: pacificação social através da solução dos
conflitos. Cada um poderia levar às últimas conseqüências a manifestação de suas
faculdades.
É igualmente verdadeiro que, concomitante à vigência do citado
princípio, no Direito Romano, em que pese não teorizado, princípios do abuso do
direito eram tratados pela doutrina dos jurisconsultos romanos. É o que se
depreende das máximas male enim nostro jure uti nom debemus
15
e malitiis non
este indulgendum
16
, que em vernáculo, podem ser traduzidas, respectivamente,
como “não devemos usar de nosso direito injustamente” e “não se deve ter
indulgências pelas maldades”.
Elucidativa a lição de RUI STOCO
17
, ao indicar que “Foi CÍCERO
quem teve a intuição do abuso ao afirmar: ‘Summum jus, summa injuria’ (‘do
excesso do direito resulta a suprema injustiça’)” . Segundo o citado autor, o Direito
Romano em sua evolução abandonou fórmulas rígidas, passando a atentar para
problemas sociais enfrentados em Roma, muito bem solucionados pela eqüidade e a
boa-fé.
Destas, entre outras adágias e parêmias, é que se deduz que foi no
_____________
14
Digesto, frag. 55, Liv. 50, Tít. 17, Gaio.
15
Inst., I, 8, 2.
16
CARVALHO NETO, Inácio de. Abuso do Direito. 3ª ed. Curitiba: Juruá, 2004. p. 24.
17
STOCO, Rui. Abuso do Direito e Má-fé Processual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2002.p.60
Direito Romano onde surgiram as primeiras noções históricas da necessidade de se
coibir o mau uso do Direito, em que pese, não existirem precedentes legislativos.
Veja-se a lição de SERPA LOPES
18
:
Não acreditamos que no Direito Romano houvesse uma idéia de
abuso de direito, no sentido do que modernamente é considerado
como tal. Entretanto, não se pode dizer que se tratasse de uma
concepção por completo desconhecida, já que, de um ponto de vista
geral, a própria noção de direito preponderante em Roma não podia
permitir fazer-se dêle um uso deslimitado , sob qualquer dos seus
aspectos. Assim, observam-se normas restritivas do seu exercício,
não só e precìpuamente nas relações de vizinhança, como ainda no
poder do senhor sôbre o escravo, no pátrio poder e no poder marital.
Apesar de tudo, a exacerbação do individualismo do Direito
Romano impedia o desenvolvimento do instituto como uma cláusula geral de
responsabilidade civil.
O extremo individualismo do Direito no século XIX não se
compadecia com a sobreposição de limites ao exercício dos direitos. Foi, então, que
os juristas repensaram o problema do exercício dos direitos subjetivos, a princípio no
da propriedade e depois em outros ramos do Direito, como o de família ou dos
contratos. Assim, veio, efetivamente, nascer os primeiros avanços consideráveis
para o desenvolvimento da Teoria do Abuso do Direito.
Como marco fundamental para o desenvolvimento da Teoria do
Abuso do Direito, está a teoria da ilicitude dos atos de emulação, desenvolvida na
Idade Média. Como necessidade de se impor limites ao exercício de direitos
subjetivos, o que se pode entender como a principal função do instituto do abuso do
direito, surgiu na idade média a denominada “emulatio”.
Por esta teoria se inquinava de ilicitude o ato praticado pelo
_____________
18
SERPA LOPES, Miguel M. de. Curso de Direito Civil. 4ª ed. vol. I. Rio de Janeiro: Livraria Editora
proprietário ou vizinho com o objetivo exclusivo de prejudicar terceiros, extrapolando
a finalidade social e econômica da propriedade.
O direito espanhol consagrou expressamente a proibição do ato
emulativo, adotando um princípio geral segundo o qual quem usa de seu direito não
pode fazer injustiça a outrem. Textualizava também, que qualquer homem pode
fazer o que desejar, mas deve fazer de modo que não traga dano ou prejuízo a
outrem.
Esta nova visão de reação ao individualismo, refutando a tese de
que um direito subjetivo estaria protegido em qualquer hipótese, ainda que dele
decorressem conseqüências injustas ou que maculassem a sociedade como um
todo, foi, na visão de EVERARDO DA CUNHA LUNA, o principal marco histórico da
Teoria do Abuso do Direito
19
.
O desenvolvimento da Teoria da Emulação e o aparecimento tímido
da Teoria do Exercício Abusivo do Direito influenciaram os primeiros textos
legislativos europeus, como o Código Civil da Prússia. Entretanto, com o Código
Napoleônico as Teorias tiveram um enfraquecimento, pois neste período primava-se
pela concepção individualista e metafísica dos direitos.
Ocorre que já se encontrava calcificado na sociedade o repúdio ao
exercício intencionalmente malicioso, anormal, anti-finalista dos direitos subjetivos. E
rapidamente a jurisprudência insurgiu-se contra tal prática, seguida de perto pela
doutrina e pelas novas legislações.
De fato, o desenvolvimento econômico e social culminou com o
surgimento de uma nova realidade, e o direito, que parecia uma poderosa arma
contra o absolutismo do Estado, passou a ser inconveniente, vez “que se
Freitas Bastos, 1962. p. 545.
demonstrou serem relativos não só o Poder do Estado, mas também os direitos
conferidos ao homem, limitados que estão pelas regras de convívio social.”
20
.
Neste sentido a lição de EVEARDO DA CUNHA LUNA
21
:
A relatividade do direito subjetivo aumenta quando as relações dos
indivíduos, em sociedade, vão se tornando cada vez mais
complexas; quando os interesses, em choque, crescem em número,
e a proteção dos direitos torna-se tarefa delicada e difícil. Nos
tempos modernos, podemos afirmar, a par das necessidades
coletivas, que se rebelam contra os individualismo tradicional, têm
levado os juristas ao reconhecimento de rigorosos limites, impostos
aos direitos subjetivos, as doutrinas da causa das obrigações, da
imprevisão, do riso, do enriquecimento e do abuso do direito. Por
serem relativos, os direitos subjetivos perdem, muitas vezes, o
caráter de direito, para transformarem-se, quando em exercício, em
atos contrários à ordem jurídica. Sem exceção, todos os direitos
subjetivos são relativos.
PEDRO BATISTA MARTINS, ao tratar da relativização dos direitos
subjetivos e do surgimento de institutos que visam limitar o exercício dos mesmos,
indica
22
:
Os direitos subjetivos perderam o cunho nitidamente egoísta que os
caracterizava: limitações mais ou menos extensas lhes foram
impostas em nome do interêsse coletivo, da ordem pública, dos bons
costumes; finalmente, com a doutrina da imprevisão, a da causa das
obrigações e, principalmente, com a do risco, a da instituição e a do
abuso do direito, aparelharam-se devidamente os tribunais para, na
aplicação, corrigir as imperfeições da lei e empreender a empolgante
tarefa da socialização do direito.
No desenvolvimento da Teoria do Abuso do Direito, pode-se dizer
que a jurisprudência antecedeu a doutrina, passando o tema a preocupar os juristas.
Mas foram as obras de SALEILLES e JOSSERAND, no final do século XIX, que
concretizaram a Teoria do Abuso do Direito, assinalando a relatividade dos direitos
19
LUNA, Everardo da Cunha. Abuso de Direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 46.
20
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. rev. aum. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 169.
21
LUNA, Everardo da Cunha. Abuso de Direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988.p. 42/43.
22
MARTINS, Pedro Baptista. O Abuso do Direito e o Ato Ilícito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Editora
objetivos e subjetivos preceituados no ordenamento jurídico. Especialmente
JOSSERAND, que afirmou ser o abuso do direito um ato contrário ao fim da
instituição jurídica, ao seu espírito e a sua finalidade.
Abordando a questão, SILVIO RODRIGUES foi enfático ao
afirmar
23
:
"Acredito que a teoria (do abuso do direito) atingiu seu pleno
desenvolvimento com a concepção de Josserand, segundo a qual há
abuso de direito quando ele não é exercido de acordo com a
finalidade social para a qual foi conferido, pois como diz este jurista,
os direitos são conferidos ao homem para serem usados de uma
forma que se acomode ao interesse coletivo, obedecendo à sua
finalidade, segundo o espírito da instituição".
Através de importante silogismo, CUNHA LUNA resume a essência
do abuso do direito
24
:
“O abuso de direito origina-se da relatividade dos direitos subjetivos –
O estudo que fizemos, neste primeiro título de trabalho, O direito, de
que se abusa, leva-nos a quatro conclusões fundamentais: 1.ª) o
direito é norma e faculdade; 2ª) as faculdades são contidas pelo
direito subjetivo; 3ª) os direitos subjetivos são relativos; 4ª) a
relatividade dos direitos subjetivos origina o abuso de direito.
CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, ao empenhar seus esforços no
estudo do abuso do direito, identifica o desenvolvimento da teoria no Direito Francês,
que teve na jurisprudência o alicerce para o despertar da teoria
25
:
Na expressão dos irmãos Mazeaud a caracterização da figura do
abuso de direito toma forma quando o autor do dano exerceu um
direito definido, mas além dos limites das prerrogativas que lhe são
conferidas. Quando alguém se contenta em exercer estas
prerrogativas estará usando o seu direito. Comete abuso quando as
Freitas Bastos, 1941. p. 11/12.
23
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: parte geral. 24 ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 311.
24
LUNA, Everardo da Cunha. Abuso de Direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 46.
25
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 1ª ed. Revista Eletrônica. Rio de Janeiro:
Forense, 2002. p. 19.
excede. Exemplificam: o proprietário tem direito de levantarem seu
terreno um tapume, mas se o eleva de maneira a causar sombra na
casa de seu vizinho; ou se um demandista, usando de todos os
recursos, retarda o encerramento de um processo - consideram que,
não obstante exerçam um direito, fazem-no de forma a causar dano
a outrem, e cometem abuso de direto, pelo qual serão obrigados a
reparar o dano (Mazeaud e Mazeaud, Responsabilité Civile, vol. I, n°
550). Igualmente lembra o exemplo, tirado da jurisprudência, de um
proprietário que ergueu em seu terreno postes de grande altura,
terminados por ponteiras de metal, impedindo que o vizinho usasse o
seu imóvel para aterragem de balões (ob. cit., n° 111).
Os tribunais franceses foram os que melhor trataram o assunto. A
título de exemplo Henri Capitant registra decisões da Corte de
Cassação, nas quais sobressai a idéia de abuso, quando o titular
ultrapassa as obrigações ordinárias de vizinhança, ou a utilização,
por um médico, de aparelhos de radiotermia que emitia ondas
prejudiciais à atividade de um vizinho, comerciante de aparelhos de
rádio (Henri Capitant, Les Grands Arrêts de la Jurisprudence Civile,
ps. 323 a 327 da ed. de 1970).
Cumpre registrar que esta teoria que afirma a existência do abuso
do direito, teve, na doutrina, várias críticas pela negação da existência do abuso do
direito. Inclusive, dividem-se, até hoje, os juristas quanto à espécie de
responsabilidade aplicada: objetiva ou subjetiva. Mas estes assuntos, juntamente
com os teóricos que fundamentam as teorias, que foram essenciais para o
desenvolvimento do instituto, serão tratados adiante em separado.
Outro registro histórico da Teoria do Abuso do Direito é encontrada
na lição de LINO RODRIGUES BUSTAMANTE, citado por CARVALHO NETO, que
cita o Direito Canônico e Muçulmano
26
:
“En la doctrina de los Padres de la Iglesia se contuvieron reglas de
restricción al uso y ejercicio de los derechos, principalmente respecto
al de propiedad. Por lo que se refere al Derecho musulmán, interesa
hacerse eco Del trabaho de Mahmoud Fartrhy, intitulado La doctrine
musulmane Del l’abuse des droits, publicado em 1903, em el que
anuncia al mundo que esta teoria tan laboriosamente elaborada por
la jurisprudência francesa, había sido desarrollada con anterioridad
_____________
26
CARVALHO NETO, Inácio de. Abuso do Direito. 3ª ed. Curitiba: Juruá, 2004. p.27.
por los jurisconsultos musulmanes”.
27
De todo o exposto, dessume-se que foi através de uma construção
jurisprudencial que surgiu o abuso do direito no estereótipo atual, onde uma pessoa
pode ser responsabilizada pelo mal que eventualmente cause a outrem, quando o
exercício de seu direito suplanta os fins sociais, fins econômicos, boa-fé e bons
costumes.
1.3.2 Terra Brasilis
Em nosso Direito Pré-codificado não se encontra qualquer registro
que aponte para a Teoria do Abuso do Direito. De igual forma o Código Civil de
1916, que não foi expresso ao dispor sobre o instituto. A par disso, na doutrina,
surgiram vozes no sentido de reconhecer a Teoria do Abuso do Direito através da
interpretação construtiva e indireta do Artigo 160, inciso I:
Art. 160. Não constituem atos ilícitos:
I – os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um
direito reconhecido.
A interpretação era feita através de uma construção lógica. Ou seja,
se não constituem atos ilícitos os praticados em exercício regular de um direito, por
conseguinte, os praticados em exercício irregular estariam na órbita da ilicitude.
Igualmente, civilistas identificaram nos Arts. 100, 526, 584, 585,
_____________
27
No trecho extraído da obra de BUSTAMANTE, há referências ao abuso do direito como decorrente
do direito canônico, especialmente quanto ao respeito à restrição ao exercício do direito de
propriedade. Traz referências de uma obra publicada em 1903 de um autor muçulmano que trata do
abuso do direito, dizendo que o direito muçulmano, antes mesmo do direito francês já havia
desenvolvido a teoria do abuso do direito.
587, 1530, 1531 do mesmo Código de 1916, uma fonte legal de obrigação por atos
abusivos. Esta interpretação era localizada no Art. 5º da Lei de Introdução ao Código
Civil e no Art. 20 da Lei de Falências (Dec. Lei 7.661/45)
28
.
Entende-se, pois, com o devido respeito ao posicionamento
doutrinário no sentido de identificar a Teoria do Abuso do Direito nos dispositivos
supramencionados, ainda que indiretamente, não é esta a interpretação que deve
prosperar. A Teoria do Abuso do Direito trata do exercício demasiado de um direito,
ou seja, o titular de um direito simplesmente o exerce de forma a extrapolar sua
finalidade social, econômica, boa-fé e bons costumes. Se referidas normas citadas
foram fruto de uma tentativa de coibir o abuso do direito, não é o caso. Se existe
norma proibitiva de referidas condutas, não há que se falar em abuso do direito, mas
sim em conduta expressamente contrária ao direito, com previsão típica.
_____________
28 Art. 100. Não se considera coação a ameaça do exercício anormal de um direito, nem o simples temor reverencial.
Art. 526. A propriedade do solo abrange a do que lhe está superior e inferior em toda a altura e em toda a profundidade, úteis
ao seu exercício, não podendo, todavia, o proprietário opor-se a trabalhos que sejam empreendidos a uma altura ou
profundidade tais, que não tenha ele interesse algum em impedi-los.
Art. 584. São proibidas construções capazes de poluir, ou inutilizar para o uso ordinário, a água de poço ou fonte alheia, a elas
preexistente.
Art. 585. Não é permitido fazer escavações que tirem ao poço ou fonte de outrem a água necessária. É, porém, permitido fazê-
las, se apenas diminuírem o suprimento do poço ou fonte do vizinho, e não forem mais profundas que as deste, em relação ao
nível do lençol d’água.
Art. 587.Todo o proprietário é obrigado a consentir que entre no seu prédio, e dele temporariamente use, mediante prévio
aviso, o vizinho, quando seja indispensável à reparação ou limpeza, construção e reconstrução de sua casa. Mas, se daí lhe
provier dano, terá direito a ser indenizado.
Art. 1530. O credor que demandar o devedor antes de vencida a dívida, fora dos casos em que a lei permita, ficará obrigado a
esperar o tempo que faltava para o vencimento, a descontar os juros correspondentes, embora estipulados, e a pagar as
custas em dobro.
Art. 1531.Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas, ou pedir mais do
que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o
equivalente do que dele exigir, salvo se, por lhe estar prescrito o direito, decair da ação.
Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se direito e às exigências do bem comum.
Art. 20. Quem pó dolo requerer a falência de outrem, será condenado, na sentença que denegar a falência, em primeira ou
segunda instância, a indenizar o devedor, liquidando-se na execução da sentença as perdas e danos. Sendo a falência
requerida por mais de uma pessoa, serão solidariamente responsáveis os requerentes.
De acordo com JUDITH MARTINS-COSTA
29
, o:
“art 187 não é, nem de longe, a “reprodução do art. 160, inciso I, do
Código de 1916 (cuja regra foi apreendida, de resto, no art. 188 do
novo Código), não estando, bem assim, limitado à versão subjetiva
da Teoria do Abuso, de construção francesa, mas à doutrina do
exercício inadmissível de posições jurídicas, que não se limita a
operar com a noção de “direito subjetivo”, preferindo a categoria das
“situações jurídicas subjetivas”, existenciais e patrimoniais”.
Diferentemente do que a doutrina considerava abuso do direito,
pela interpretação do Art. 160, inciso I, do Código Civil de 1916 e de diversos outros
artigos esparsos, o Código Civil instituído pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de
2002, em seu artigo 187, embora não tenha trazido sua denominação, conceituou e
qualificou o abuso do direito, erigindo o instituto à categoria de ato ilícito ao
prescrever que também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo,
excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela
boa-fé ou pelos bons costumes.
Notória a vantagem metodológica de se reconhecer, claramente,
em apenas um artigo, a incidência da Teoria do Abuso do Direito. Afastou-se a
invocação de dispositivos esparsos, que, porquanto não pertinentes exatamente ao
tema, enfraqueciam o reconhecimento e a aplicação do instituto, especialmente no
âmbito da jurisprudência pátria, resistente, ainda em larga escala, aos métodos de
interpretação sistemáticos-teleológicos.
Aponta-se, outrossim, como de extremo acerto, a previsão do
instituto no seio de cláusulas gerais. Obedece-se, assim, à eticidade, diretriz
fundamental do atual Código Civil, preconizada por MIGUEL REALE, permitindo a
_____________
29
MARTINS-COSTA, Judith. Breves anotações acerca do conceito de ilicitude no novo Código Civil
(estruturas e rupturas em torno do art. 187). Jus Navigandi, Teresina, a.4, n. 41, mai. 2000.
Disponível em: <http://1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?ie=513> Acesso em: 14 mar. 2005.
indeclinável participação dos valores éticos no ordenamento jurídico.
Referido artigo 187, cuja redação é inspirada no Código Civil
português, é cláusula das mais ricas do diploma civilista atual, porque reúne, em um
único dispositivo, os quatro princípios éticos que presidem o sistema: o abuso do
direito, o fim social, a boa-fé e os bons costumes. Bastaria acrescentar o da
supremacia da ordem pública para tê-los todos à vista. Insta esclarecer que esta
boa-fé, entendida como a boa-fé objetiva, vem trazer às relações jurídicas um novo
senso de honestidade, probidade, lealdade, integridade e eticidade, limitando,
consideravelmente, a autonomia da vontade na formação, vigência e extinção da
relação jurídica obrigacional.
Pelo Código Civil de 2002, o ato ilícito resultante do abuso do direito
gerador de dano a bem jurídico alheio, igualmente aos demais atos ilícitos, gera
responsabilidade civil decorrente da obrigação de indenizar, conforme prescreve o
Art. 927, indicando que aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a
outrem, fica obrigado a repará-lo.
A introdução do abuso do direito, no formato do Art. 187 é fruto das
diretrizes axiológicas que o legislador civil utilizou para a reforma e inclusão de
institutos insculpidos no estatuto atual. MIGUEL REALE, um dos responsáveis pelo
projeto do Código Civil de 2002, indica a quebra de paradigmas que condicionaram
a feitura do que o autor denomina de “constituição do homem comum”
30
:
Daí ficarem assentes estas diretrizes:
_____________
30
REALE, Miguel. Visão Geral do Novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, a.6, nº 54, fev. 2002,
Disponível em: < http://www1.jus.com.br/ doutrina/texto.asp?id=2718>. Acesso em: 06 mar. 2005.
(...)
C. Alteração geral do Código atual no que se refere a certos valores
considerados essenciais, tais como o de eticidade, de socialidade e
de operabilidade.
(...)
Não obstante os méritos desses valores técnicos, não era possível
deixar de reconhecer, em nosso dias, a indeclinável participação dos
valores éticos no ordenamento jurídico, sem abandono, é claro, das
conquistas da técnica jurídica, que com aqueles deve se
compatibilizar.
Não poderia ser diferente, vez que MIGUEL REALE, em sua teoria
tridimensionalista do Direito, conforme já comentado, consagra a ética como um
instrumento condicionante da aplicação da lei. Dentre os valores éticos, e também
sociais, a que se refere mencionado autor, estão a boa-fé, a função social do
contrato, a função econômica e os bons costumes, todos eles resguardados pelo
instituto do abuso do direito. Trata-se, nada mais do que um instituto agregador de
princípios valorativos essenciais à afirmação da Justiça nas relações humanas,
como sói foi criado e desenvolvido em sua evolução histórica, conforme já narrado.
1.4 Realidade Brasileira: intervenção estatal para limitação de direitos
subjetivos e redução de desigualdades sociais e econômicas através do
Direito.
Em razão da onda neoliberal que o mundo atravessa, é necessário
que se discuta a função do Estado e do Direito, bem como as condições e
possibilidades para se por em prática a democracia e os direitos fundamentais nos
negócios jurídicos celebrados entre particulares em países que recém saíram de
regimes autoritários, uma vez que o neoliberalismo tenta convencer que houve o fim
da modernidade (idéia que vem sendo aceita pela elite brasileira).
A modernidade, surgindo como um avanço, rompeu com o medievo,
nos legando o Estado, o Direito e as instituições. Em um primeiro momento, surge o
Estado Absolutista, passando para o liberal, o qual, posteriormente, transformou-se,
surgindo o Estado Contemporâneo. Referidas transformações são decorrentes
justamente da exasperação das contradições sociais decorrentes do liberalismo.
O Estado passa, pois, a ser o tutor e o suporte da economia e
aponta para objetivos totalmente contraditórios: por um lado, visa garantir a
igualdade de todos os indivíduos diante da lei; por outro, busca garantir a defesa do
capital contra as insurreições operárias.
Essa forma de Estado, também conhecido como Estado
Providência ou Social, foi estabelecido como forma de compatibilizar as promessas
da Modernidade com o desenvolvimento capitalista. Para os neoliberais, o Estado
Social não mais existe, eis que se trata de uma entidade nacional, portanto,
desconectada do mundo globalizado.
A globalização neoliberal-pós-moderna, conforme nos ensina
LENIO STRECK, “coloca-se como um contraponto das políticas do welfare state”
31
,
exteriorizando uma nova face do capitalismo internacional, trazendo fortes sinais de
retorno à pré-modernidade.
Há que se ressaltar, que nos países que efetivamente passaram
_____________
31
STRECK, L. L. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do
Direito. 5ª ed., revista, atualizada. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004. p. 23.
pela etapa do welfare state
32
as conseqüências da minimização do Estado foram
completamente diversas daqueles que países não passaram (como no caso do
Brasil). Isso porque nestes países, o Estado interventor-desevolmentista-regulador
serviu apenas às elites que dele tiraram proveito, realizando privatizações, divisões,
loteando o Estado com o capital internacional, com os monopólios e com os
oligopólios da economia.
Por esta razão é que se afirma que a modernidade no Brasil é
tardia e arcaica
33
. Em nosso país, as promessas da modernidade ainda não se
realizaram, ou seja, o Estado não se empenhou na redução das desigualdades.
Neste quadro, a solução que se tem apresentado é o retorno ao Estado neoliberal,
por paradoxal que possa parecer. Porém, referida solução não parece adequada,
eis que existe um imenso déficit social em nosso país, razão pela qual as
instituições da modernidade devem ser defendidas contra esse neoliberalismo pós-
moderno.
Justamente no momento em que as desigualdades crescem, o
Brasil se omite da realização de políticas públicas intervencionistas, em sentido
contrário ao que estabelece o ordenamento constitucional brasileiro, o qual aponta
para um Estado forte, intervencionista e regulador, ou seja: um Estado Democrático
de Direito.
_____________
32
A política do Welfare State, o Estado do bem-estar social, surgiu nos países europeus
devido à expansão do capitalismo após a Revolução Industrial e o Movimento de um
Estado Nacional visando a democracia. Seu início efetivo dá-se exatamente com a
superação dos absolutismos e a emergência das democracias de massa. O Welfare State
é uma transformação do próprio Estado a partir das suas estruturas, funções e
legitimidade. Ele é uma resposta à demanda por serviços de segurança sócio-econômica.
Surge justamente da necessidade de respostas às dificuldades individuais, visando
garantir a sobrevivência da sociedade com medidas intervencionistas por parte do Estado,
visando reduzir as desigualdades sociais.
Parece paradoxal (e de fato é), mas, no Brasil, a intervenção
jurídica do Estado cresce na proporção da redução da atividade econômica estatal
e do conseqüente aumento dos poderes privados nacionais e transnacionais.
A introdução explícita dos princípios sociais do contrato no Código
Civil de 2002 (função social e econômica do contrato, boa-fé objetiva, ética
contratual) chega com atraso de várias décadas e, por ironia da história, justamente
quando o país caminha nos passos do neoliberalismo.
No Brasil, a regulação da atividade econômica para conter (ou ao
menos controlar) os abusos dos poderes privados é medida que se impõe,
sobretudo em razão do crescimento da concentração empresarial e de capital e da
vulnerabilidade das pessoas que não detêm poder negocial.
Neste ambiente é que o Direito Civil, como regulamentador das
relações jurídicas quotidianas, busca implementar as promessas modernas:
intervencionismo estatal, repersonalização das relações jurídicas, publicização e
constitucionalização do direito civil, aplicação do instituto do abuso do direito,
buscando realizar a justiça social nas relações privadas.
É neste o panorama histórico brasileiro que deve ser interpretado o
instituto do abuso do direito, introduzido no atual Código Civil pelo artigo 187, cerne
do presente estudo, adequando-o aos princípios liberais (predominantes no Estado
liberal), notadamente o da autonomia da vontade, juntamente com o
intervencionismo estatal atualmente vivenciado por ocasião das disposições
consagradas no diploma civilista, que explicitamente albergou a aplicação dos
princípios sociais do contrato.
33
STRECK, L. L. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do
A autonomia da vontade do titular de um direito subjetivo deve ser
limitada, para que não se veja, e como de fato se tem visto na prática, abusos por
parte do detentor de um direito.
Como se diz em linguagem leiga: “o abuso do direito virou lei”. O
Estado interveio nas relações privadas para dizer: basta! Chega de tanta injustiça
com o uso do Direito! O Direito não foi criado para ser manipulado para a
consecução de fim diverso a que foi concebido.
E esta intervenção estatal é indispensável, forçosa, inevitável, fatal,
essencial e preciosa, na medida que nossa realidade neocapitalista impõe uma
economia calcada na liberdade contratual e enfraquecimento estatal. É um ideal
burguês que edificou direitos subjetivos absolutos, e que o Brasil, ainda, não
conseguiu superar.
Com muita propriedade, PEDRO BATISTA MARTINS pontifica essa
tendência intervencionista tendente a reduzir as desigualdades sociais e
econômicas, e que, em Terra Brasilis, no ramo do Direito, só agora, foi instituído
34
:
Uma vez que nem todos podem, a não ser em tese, gozar das
prerrogativas legais, usar de seus direitos civis, é necessário que
aqueles que se acham em condições de exercê-los não se
prevaleçam deles para a satisfação de interesses egoísticos nem
desnaturem, de qualquer modo, a sua destinação econômica e
social.
A teoria do abuso do direito é que está confiada a importante missão
de equilibrar os interesses em luta e de apreciar os motivos que
legitimam o exercício dos direitos, condenando, como ante-sociais,
todos os atos que, apesar de praticados em aparente consonância
com a lei, não se harmonizam, na essência, com o espírito e a
finalidade desta mesma lei.
Direito. 5ª ed., revista, atualizada. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004. p. 25.
34
MARTINS, Pedro Baptista. O Abuso do Direito e o Ato Ilícito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Editora
Freitas Bastos, 1941. p. 16.
Eis que, com o advento do atual Código Civil, a exemplo do Código
de Defesa do Consumidor, que também é posterior à Constituição Federal e alberga
diretrizes axiológicas constitucionais, exsurgem princípios até então presentes em
nível constitucional. Não obstante, pois, a indiscutível autonomia privada existente
nos contratos firmados por relações não albergadas pelo Código de Defesa do
Consumidor, esta não é absoluta, eis que o sistema jurídico em vigor interfere nas
hipóteses que envolvem questões atinentes à ordem pública.
Em razão das recentes e constantes modificações sofridas no
cenário econômico e político mundial, por óbvio também enfrentadas pelo Brasil, o
contrato vem sofrendo uma série de alterações conceituais e o antigo conceito de
autonomia plena da vontade, outrora ferrenhamente defendida, vem cedendo
espaço para institutos mais voltados para a realidade social que envolve os atores
relação contratual.
É cediço que após a promulgação da Constituição Federal de 1988,
foi o Código de Defesa do Consumidor que inaugurou doutrinas próprias da
modernidade que visam incutir igualdade e equilíbrio material nas relações entre
fornecedor e consumidor, caracterizando as tendências de intervenção do Estado
nas relações privadas. No âmbito do Direito Civil, especialmente nas relações
contratuais, somente agora, após a edição do Código Civil de 2002, é que se tem
notado, com maior incidência, a intenção do legislador em incutir nas relações
negociais as “promessas” da modernidade, especialmente, a defesa da parte mais
vulnerável da relação.
Assim, o Código Civil atual, seguindo a linha principiológica
constitucional, já consubstanciada no Código de Defesa do Consumidor, tratou de
institutos como a boa-fé objetiva, função social e econômica do contrato,
comutatividade, equidade, revisão contratual decorrente da imprevisão, onerosidade
excessiva, a doutrina do abuso do direito, dentre outros, redimensionando o
princípio da autonomia privada, antes tido como intangível.
Esta tendência de se fixar normas que denotam uma ingerência
cada vez mais presente por parte do Estado, é a promessa da modernidade. De
fato, segundo JUDITH MARTINS-COSTA, estes “novos princípios” repercutem na
legislação civil, a fim de torná-la adstrita a um conceito de justiça material, e não
meramente formal, dando-se prevalência a valores éticos e às técnicas legislativas
com eles compatíveis, como a utilização de cláusulas gerais e conceitos jurídicos
indeterminados
35
.
Conforme afirmou MIGUEL REALE
36
, foram diretrizes como a
eticidade, socialidade e operabilidade que orientaram o legislador na elaboração do
atual Código Civil. Estas diretrizes axiológicas, que repercutiram no contrato,
representam avanços e conquistas na legislação civil, afastando o viés individualista
do vetusto Código Civil, para adequá-lo à modernidade tardia brasileira, até então
carente de normas de caráter público aplicadas às relações negociais, notadamente
ao contrato, estatuto fundamental do Direito Privado.
A visão fanática que conferia poder absoluto à vontade individual e
à liberdade contratual, esvaziada de conteúdo axiológico e da idéia mais geral e
abstrata da justiça, foi substituída por normas superiormente imperativas, na
regulação dos contratos, restringindo a liberdade contratual pela adição de normas
_____________
35
MARTINS-COSTA, J. O Direito Privado como um “sistema em construção”: as cláusulas gerais no
Projeto do Novo Código Civil brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, a.4, n. 41, mai. 2000. Disponível
em: <http://1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?ie=513> Acesso em: 14 mar. 2005.
36
REALE, M. Visão Geral do Novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, a.6, nº 54, fev. 2002,
Disponível em: < http:// www1.jus.com.br/ doutrina/texto.asp?id=2718>. Acesso em: 06 mar. 2005.
de ordem pública.
E é justamente na (re)estruturação desses conceitos contratuais,
com tendências constitucionalizadoras e publicizadoras, que se intenta a
salvaguarda de interesses sociais mais significativos do que a autonomia privada, a
qual se vê limitada pela inclusão de novos paradigmas.
A autonomia privada sofre, pois, condicionamentos de ordem legal,
moral e pública, a fim de realizar um melhor equilíbrio social, não por uma mera
preocupação moral de impedir a exploração do fraco pelo forte, mas também, de
sujeitar a vontade dos contratantes ao interesse coletivo, no qual se inclui a
harmonia social.
A ingerência por parte do Estado na estruturação do conceito de ato
ilícito, instituindo o abuso do direito, tem em vista a salvaguarda de interesses
sociais mais significativos que a simples pretensão dos contratantes.
Não há que se perder de vista que o contrato, na qualidade de
instrumento essencial da organização social, deve evoluir sempre, como a própria
evolução da pessoa humana e suas relações intersubjetivas. A dinâmica própria da
sociedade e as realidades jurídicas que dela emanam, justificam a necessidade da
urgência desta releitura contratual, a fim de amoldá-lo aos novos anseios sociais.
Cumpre salientar, que as mudanças trazidas pelos institutos
civilistas do Código de 2002, nomeadamente pelo abuso do direito, aprimoraram as
relações jurídicas privadas, adequando seus limites à justiça social tão almejada
nos tempos modernos. Esta é a razão de ser dos princípios da boa-fé
(objetivamente considerada), da função social e econômica do direito e dos bons
costumes estarem inseridos no artigo 187 do Código civil como caracterizadores do
abuso do direito, todos limitadores da liberdade de contratar.
Esta nova organização principiológica revela, enfim, a feição
contemporânea do contrato e seu traço de adaptação e coerência com a pessoa
mais ética dessa pós-modernidade, centro de todo o interesse epistemológico do
direito atual.
A participação eminente da Constituição de 1988 no domínio das
relações civis (constitucionalização do Direito Civil) merece especial atenção, a
começar pelo Art. 1º, que, entre os fundamentos da República Federativa do Brasil,
situa “a dignidade da pessoa humana”, a qual, por essa razão, constitui o
pressuposto básico de todo o ordenamento jurídico.
LUIZ EDSON FACHIN, com peculiar doutrina voltada para uma
nova interpretação do contrato, afirma
37
:
Nos contratos, o sentido da comutatividade e da igualdade marca,
cada vez mais, a repressão das cláusulas abusivas e a tentativa de
impedir as desproporções, permitindo a revisão das equações
econômicas e financeiras dos contratos.
No que atina ao intervencionismo estatal, que para muitos
representa um problema, nos ensina professora GISELDA HIRONAKA
38
:
A intervenção legislativa do Estado assim levada a cabo fez florescer
um tempo novo, onde os malefícios do liberalismo jurídico foram
mitigados pela proteção social que se estendeu ao economicamente
mais fraco. As formas contratuais nas quais os direitos competiam
todos a uma só das partes e as obrigações só à outra parte, foram
repelidas severamente pelo que se convencionou chamar de
dirigismo contratual.
_____________
37
FACHIN, L. E. Teoria Crítica do Direito Civil: à luz do novo Código Civil Brasileiro. 2ª ed. rev. e
atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.p. 229.
38
HIRONAKA, G. M. F. N. Contrato: estrutura milenar de fundação do direito privado. Jus Navegandi,
Teresina, a. 7, n. 66, jun. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4194>.
Acesso em 25 de outubro de 2005.
Assim, se denota que com o advento do atual Código Civil não se
pode afirmar que houve rigorosas quebras de paradigmas, mas sim
aprimoramentos e incorporação ao Código Civil de comportamentos já há algum
tempo vigentes no seio social, como no caso do instituto do abuso do direito.
Chega-se a pensar que a limitação da vontade dos contratantes,
imposta por normas de ordem pública, poderia representar uma verdadeira “crise”
dos contratos. SAVATIER, citado por FLÁVIO TARTUCE, chega a profetizar que o
contrato tende a desaparecer, surgindo outro instituto em seu lugar
39
.
Ocorre que, a despeito de todas as transformações sofridas, não há
que se falar em “crise” no sentido de aniquilação da autonomia privada através do
instituto do abuso do direito. FLÁVIO TARTUCE, em comentário ao tema, explana
40
:
Na realidade, “crise” pode significar alteração da estrutura – e é
realmente isto que entendemos estar ocorrendo quanto ao tema - ,
uma convulsiva transformação, uma renovação dos pressupostos e
princípios da Teoria Geral dos Contratos, que tem por função
redimensionar seus limites e não extingui-los. Entendemos que o
contrato não está em crise, mas sim em seu apogeu como instituto
emergente e central no direito privado (TARTUCE, Flávio, 2003).
Se por um lado se tem a sociedade brasileira carente da realização
de direitos, por outro, tem-se uma Constituição Federal que garante esses direitos
da forma mais ampla possível. O Estado Democrático de Direito busca garantir um
mínimo de vida ao cidadão e à comunidade como um todo, sendo a lei um
instrumento de ação concreta do Estado, cujo método assecuratório de efetividade
é a promoção de determinadas ações pretendidas pela ordem jurídica.
_____________
39
TARTUCE, F. A Realidade Contratual à Luz do Novo Código Civil. Disponível em:
<http://mundojuridico.adv.br. Acesso em: 20 de out. 2005.
40
TARTUCE, F. A Realidade Contratual à Luz do Novo Código Civil. Disponível em:
<http://mundojuridico.adv.br. Acesso em: 20 de out. 2005.
Há que se interpretar o instituto do abuso do direito, como ato ilícito
e causa de invalidade do negócio jurídico, com base em uma hermenêutica pautada
em axiomas constitucionais (dignidade da pessoa humana, igualdade substancial e
solidariedade social), bem como levando-se em conta a realidade jurídica, política,
econômica e social brasileira. É preciso enxergar o contrato com “olhos de ver”,
rompendo, ainda que tardiamente, paradigmas tidos como pilastras inamovíveis do
direito privado.
A inserção no ordenamento civilista pátrio do instituto do abuso do
direito tende a solucionar (ou ao menos apaziguar) problemas sociais decorrentes do
abuso do poder econômico, por meio da limitação à autonomia privada e da
aplicação aos negócios jurídicos de um senso ético de resgate aos bons costumes.
1.5 Teorias que fundamentam o abuso do direito
Como decorrência de estudos promovidos por diversos juristas,
cânones do Direito, sobre a necessidade de se coibir o uso anormal de um direito,
surgiram diferentes teorias em torno do tema, afirmando ou negando a existência do
que se ousou denominar de abuso do direito.
Os seguidores das teorias que admitem a existência do abuso do
direito (teoria afirmativista), dividem-se em dois grupos: de um lado os que
vislumbram que o abuso do direito somente pode ser realizado se presentes dolo ou
culpa por parte do titular do direito que se abusa; de outro, aqueles que postulam a
desnecessidade do elemento subjetivo. Os primeiros são adeptos à teoria
subjetivista, e os segundos, à teoria objetivista. Por sua vez, a teoria que nega a sua
existência é denominada de negativista.
O abuso do direito teve sua autonomia científica negada por
aqueles que consideravam o direito subjetivo como absoluto e possuíam uma visão
eminentemente individualista do direito privado. Referido entendimento era seguido
pelos adeptos da teoria negativista.
A teoria negativista teve como seu maior representante Marcel
Planiol, o qual, na própria expressão “abuso de direito” vislumbrou uma contradição,
uma contradictio in adiectio, argumentando, para tanto, que a idéia de abuso
constitui a negação do direito, sustentando que tal instituto é uma logomaquia, pois,
se alguém usa de seu direito, o ato é lícito; se for ilícito é porque ultrapassa o direito,
procedendo o agente sem direito.
Para referido autor, citado por CAIO MÁRIO, o direito cessa onde
começa o abuso. Não se poderia, portanto, falar em uso abusivo de um direito, pois
um ato não pode, ao mesmo tempo, "ser conforme no direito e contrário ao direito”
41
.
No mesmo sentido raciocina BARASSI, também citado por CAIO MÁRIO, ao
considerar a fórmula intimamente contraditória em si mesma
42
.
A despeito da teoria desenvolvida pelos negativistas, urgia a
necessidade de se reconhecer que certos atos, ainda que aparentemente
estivessem de acordo com a lei, eram contrários à moral e aos princípios gerais do
direito, sendo, dessa forma, contrários ao próprio ordenamento jurídico, eis que o
mesmo não é formado apenas por normas postas, mas também por valores éticos
que norteiam toda a sociedade à qual se dirige.
Assim, além das teorias que negam a existência do abuso do
_____________
41
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 1ª ed. Revista Eletrônica. Rio de Janeiro:
Forense, 2002. p.19.
42
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 1ª ed. Revista Eletrônica. Rio de Janeiro:
Forense, 2002. p . 19.
direito, existem aquelas que sustentam a sua existência. São as teorias
afirmativistas, que se subdividem em subjetivista e objetivista.
Para a corrente subjetivista, mais tradicional, o abuso do direito
restará caracterizado quando o titular de um direito, além de exceder os limites de
seu exercício, o faça com a intenção de prejudicar, com o propósito de causar dano
a alguém. Há necessidade, pois, que o agente tenha plena consciência de que, ao
exercer seu direito, inicialmente legítimo, extrapolou os limites legais e lesionou o
direito de outrem.
Assim, para a teoria subjetivista, são três os elementos
caracterizadores do abuso do direito: o exercício de um direito, a intenção de causar
um dano e a inexistência de interesse econômico.
Segundo os ensinamentos de RUI STOCO, a teoria subjetivista
subdividiu-se em várias ramificações, por vezes exigindo o dolo (elemento volitivo
intencional) para a caracterização do abuso, por outras exigindo dolo e culpa, ou,
ainda, apenas esta em suas várias modalidades
43
.
Neste sentido é que ORLANDO GOMES afirma que os defensores
da teoria subjetivista oscilam entre o critério intencional e o técnico. Pelo primeiro, o
abuso do direito pressupõe o ânimo de prejudicar. Pelo segundo, apenas o exercício
culposo
44
.
Há que se ressaltar que, mesmo entre os defensores desta teoria,
não existe consenso quanto ao grau da culpa a ser considerado para a
caracterização do abuso do direito, nem quanto ao elemento anímico. O consenso
apenas existe quanto à exigência da ocorrência de dano ou prejuízo à pessoa
_____________
43
STOCO, Rui. Abuso do Direito e má-fé processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 69.
44
GOMES, Orlando. Introdução do Direito Civil. Atualização e notas por Humberto Theodoro Júnior.
atingida pelo ato.
Neste sentido, CLÁUDIO ANTONIO SOARES LEVADA leciona
45
:
Tais teorias têm em comum a necessidade de demonstração de
prejuízo por parte do atingido pelo ato que se quer imputar como
abusivo. Não se questiona se o direito foi desviado de sua finalidade
ou não, mas se vai examinar a intenção que moveu o agente, ou,
quando menos, se não agiu ele de forma manifestamente negligente
ou imprudente, caracterizando com a gravidade de sua culpa o
abuso de direito.
Entre aqueles que preconizam a adoção da teoria subjetivista,
pode-se mencionar CARBONNIER, citado por CAIO MÁRIO, quando afirma existir
abuso do direito "quando o titular o exerce com a finalidade única de prejudicar
outrem, sem interesse sério para si mesmo"
46
. Seguindo o mesmo ponto de vista,
ALEX WEILL e FRANÇOIS TERRÉ, igualmente citados por CAIO MÁRIO, atestam
que "a jurisprudência subordina a condenação por abuso do direito à existência de
uma intenção de prejudicar ou à má fé patente".
47
A partir do momento em que as idéias de responsabilidade objetiva
começaram a aflorar, principalmente na França, juristas, tais como SALLEILLES,
RIPERT e outros, começaram também a conceber um abuso do direito objetivo, isto
é, independentemente de qualquer finalidade ou intenção de prejudicar.
SALLEILLES considerava que o abuso do direito se configuraria simplesmente pelo
uso anormal do Direito; bastaria, portanto, para configurá-lo que o seu titular, ao
1ª edição eletrônica. Editora Forense: Rio de Janeiro, 2001. p. 69.
45
LEVADA, Cláudio Antônio Soares. Anotações sobre o Abuso de Direito. Revista de Direito Privado.
n. 11. Coord. Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002. p. 68/78. p. 70.
46
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 1ª ed. Revista Eletrônica. Rio de Janeiro:
Forense, 2002. p. 19.
47
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 1ª ed. Revista Eletrônica. Rio de Janeiro:
Forense, 2002. p.19.
exercê-lo, ultrapassasse determinados limites; o exercesse sem nenhuma finalidade
econômica, contrariando sua finalidade social, os bons costumes e a boa-fé.
Para os defensores da corrente objetivista, o elemento volitivo está,
pois, dispensado, bastando que o comportamento exorbitante do titular de um direito
cause um mal a outrem, independente da vontade do agente.
Entre aqueles que pretendem explicar objetivamente o abuso do
direito, duas são as principais correntes seguidas: uma afirma que o abuso do direito
consiste no exercício anormal de um direito; outra, que o ato abusivo resta
caracterizado quando deixe de atender à função para a qual o direito foi criado.
Essas duas correntes persistiram e persistem ainda hoje no campo
da doutrina e da jurisprudência; na vigência do Código Civil de 1916, essa questão
era muito discutida, porque não havia uma norma legal disciplinando o abuso do
direito. Ora a jurisprudência entendia que bastaria o mero exceder os limites, ora
entendia que era preciso a intenção de prejudicar.
O Código Civil de 2002 adotou a teoria objetivista com relação ao
abuso do direito. Não há, no art. 187, a menor referência à intencionalidade, ao fim
de causar dano a alguém; basta que se exerça o direito ultrapassando os limites ali
estabelecidos. Mesmo que o excesso tenha sido puramente objetivo, não haverá
nenhuma influência para descaracterizar o abuso do direito.
A maioria dos autores estão se manifestando no sentido de que se
tem no art. 187 um conceito objetivo de ato ilícito (ato ilícito em sentido lato), que
serve de embasamento para o abuso do direito.
Inclusive, a primeira Jornada de Direito Civil acolhe a teoria
objetivista, conforme o Enunciado n.º 37, que prevê: Art. 187: a responsabilidade
civil decorrente do abuso do direito independe de culpa, e fundamenta-se somente
no critério objetivo-finalístico.
48
Existe ainda, dentro da corrente objetivista, posicionamentos
doutrinários ditos “finalistas”, os quais entendem que há abuso quando o direito não
atende a sua finalidade, ou seja, não atende a função para a qual foi criado. E
entendimentos no sentido de que o abuso do direito fica caracterizado quando do
uso anormal do direito. Nestes, o principal defensor é SAILEILLES.
A diferença entre estas teorias que dividem a teoria objetivista é
tênue. SAILEILLES aduz que o ato abusivo é anormal, vez que contrário à finalidade
econômica e social do direito. É um ato sem conteúdo jurídico, vez que
economicamente reprovado e reprovado pela consciência pública. Vê-se que é um
critério eminentemente econômico.
Já a corrente finalista, parte não de critérios econômicos, mas sim,
éticos e morais. O abuso decorre do exercício que excede manifestamente as regras
sociais. Os direitos subjetivos têm, sobretudo, funções no seio social. Aqui, a ilicitude
está em relação de contrariedade entre a conduta humana e o fim pretendido pela
ordem jurídica.
1.6 Alguns exemplos de abuso do direito em ordenamentos jurídicos
alienígenas
Este capítulo é dedicado a incursões acerca da maneira pela qual
tem sido considerado o abuso do direito em ordenamentos jurídicos alienígenas,
notadamente a sua previsão legal, que demonstra soluções diversas dadas pela
_____________
48
Enunciado aprovado na I Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos
Judiciários do Conselho da Justiça Federal no período de 11 a 13 de setembro de 2002,
sob a coordenação científica do Ministro Ruy Rosado, do Superior Tribunal de Justiça.
Extraído do site do Conselho da Justiça Federal, http://www.cjf.gov.br, acesso em 20 de
teoria, confirmando que o abuso do direito ingressa em um dado sistema jurídico
ajustando-se, quase sempre, de acordo com as concepções políticas, econômicas e
sociais imperantes, também de acordo com a presença, maior ou menor, de
individualismo nas relações jurídicas privadas.
O Código Civil Suísso, de 10 de dezembro de 1907, estabelece no
Art. 2º o dever de exercer os direitos e executar as obrigações segundo as regras da
boa fé, acrescentando simplesmente que o abuso manifesto de um direito não é
protegido pela lei. Veja-se que, aqui, basta que o abuso seja manifesto para que se
lhe aplique a sanção legal, não importando o elemento subjetivo; adota-se, pois, a
teoria objetivista do abuso do direito:
Art. 2 ( B. Entendue des droits civils; I. Devoirs généraux
1 Chacun est tenu d’exerces ses droits et d’exécuter ses obligations
selon les règles de la bonne foi.
2 L’abus manifeste d’un droit n’est pas protégé par la loi.
49
O Código Polonês de Obrigações traz a estrutura de um abuso do
direito calcado na teoria subjetivista (dolo e culpa), bem como, em seu conceito traz
a necessidade de existir dano. É uma verdadeira cláusula de indenizar pelo
cometimento de abuso do direito. Neste sentido, o art. 135 do Código Civil da
Polônia prescreve:
“Art. 135. O que no exercício de seu direito, intencionalmente ou por
negligência, ocasiona dano a outro, que excede os limites fixados
pela boa-fé e pelo fim para o qual esse direito lhe foi conferido está
janeiro de 2006. Justificativa do Enunciado 37 no ANEXO III.
49
Tradução: Cada um deve exercer os seus direitos e executar as suas obrigações de acordo com as
regras da boa fé. Os abusos manifestos de um direito não é protegido pela lei.
obrigado a repará-lo.”
O Código Civil Grego, em seu artigo 281 preceitua que: O exercício
de um direito é proibido se ultrapassar manifestamente os limites impostos pela boa
fé ou pelos bons costumes, ou por seu fim econômico e social.
Clara a influência do Código Civil Grego na redação do art. 334 do
Código Civil Português – Decreto Lei n.º 47344 de 25 de novembro de 1966: Art. 334
– É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os
limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico
desse direito.
Analisando-se os artigos 334 do Código Civil Português e 281 do
Código Civil Grego, denota-se que nosso legislador se influenciou por estes
dispositivos, especialmente no que se refere à teoria objetivista, onde o ato abusivo
do direito prescinde da idéia de dolo ou culpa. São os que guardam maior similitude
com o vigente Art. 187 do Código Civil Brasileiro.
Também se encontra o instituto do abuso do direito inserido entre
os dispositivos dos Códigos Civis peruano, mexicano, venezuelano, turco, chinês,
dentre outros. É o que se verifica da doutrina de CARVALHO NETO
50
:
O Código Civil peruano, no seu artigo II do título primeiro estabelece:
“A lei não ampara o abuso de direito”.
O Código Civil mexicano, em seu artigo 1.912, dispõe: “Quando, ao
exercitar um direito, se causa dano a outrem haverá obrigação de
indenizá-lo se se prova que o direito só se exercitou com o fim de
causar dano, sem utilidade para o titular do direito”.
O Código Civil venezuelano, em seu artigo 1.185, estatui:
_____________
50
CARVALHO NETO, Inácio de. Abuso do Direito. 3ª ed. Curitiba: Juruá, 2004. p. 42.
O que com intenção ou por negligência causar dano a alguém, está
obrigado a repará-lo. Deve igualmente reparação quem haja causado
um dano a outro excedendo, no exercício de seu direito, os limites
fixados pela boa-fé e pelo objeto em vista do qual haja sido conferido
o direito.
O Código Civil da Turquia, no artigo 2º, reza: “Cada um está
obrigado, no exercício de seus direito e na execução de suas
obrigações, a submeter-se às regras da boa-fé. O abuso de direito
que prejudica a um terceiro não é protegido pela lei”.
O artigo 148 do Código Civil da China dispõe: “O exercício de um
direito não pode ter por fim principal prejudicar a outro”.
O critério adotado pelo Código civil da Prússia, nos §§ 36 e 37, foi o
seguinte:
O que exerce o seu direito, dentro dos limites próprios, não é
obrigado a reparar o dano que causa a outrem, mas deve repará-lo,
quando resulta claramente das circunstâncias, que entre algumas
maneiras possíveis de exercício de seu direito foi escolhida a que é
prejudicial a outrem, com intenção de lhe acarretar dano.
O direito argentino não andou alheio ao abuso do direito,
regulamentando-o:
Art. 1071. O exercício regular de um direito próprio ou o cumprimento
de uma obrigação legal não pode consistir em ato ilícito. A lei não
ampara o exercício abuso do direito. Considerar-se-á tal aquele que
contrarie so fins que visou reconhecer ou que exceda os limites
impostos pela boa-fé, a moral e os bons costumes.
Interessante frisar a lição de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, ao
se referir ao direito soviético
51
:
O Código Civil soviético assegura a proteção dos direitos, salvo na
medida em que sejam exercidos em sentido contrário à sua
_____________
51
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 1ª ed. Revista Eletrônica. Rio de Janeiro:
Forense, 2002. p. 19.
destinação econômica e social (art. 5°), o que levou Josserand a ver
aí a consagração da teoria do abuso de direito (Cours de Droit Civil
Positif Français, vol. 11, n° 437), embora René David haja observado
que o conceito, no direito soviético, reprime o abuso no sentido
econômico, diversamente do que se dá com o Código suíço, que
cogita do aspecto moral.
Pode parecer incongruente, mas na legislação Francesa não há
notícias do instituto do abuso do direito positivado. É o que informa RUI STOCO
52
:
Conforme anotou YASSIM (1980, p. 17), “As legislações da França,
Bélgica e Espanha não se ocupam do abuso do direito, apesar de
nesses países existir um forte movimento jurisprudencial e
doutrinário para a corporificação do princípio”.
Também o Código Civil da Bolívia prevê o instituto:
Art. 107. O proprietário não pode realizar atos com o único propósito
de prejudicar ou ocasionar danos a outrem, e, em geral, não será
permitido exercer seu direito de forma a contrariar o fim econômico
ou social em vista do qual foi conferido o direito.
O Código Civil Italiano, de 1942, não deu a importância merecida ao
instituto, relegando-o apenas aos direitos reais, ao prever: “Art. 833. Atos de
emulação - O proprietário não pode exercer seus atos que não tenham outro fim
senão que avariar ou acarretar prejuízos a outrem”.
São estas algumas demonstrações no direito alienígena de
dispositivos legais que tratam do abuso do direito.
A doutrina brasileira denominou de abuso do direito, sob uma
interpretação a contrariu sensu, o estatuído artigo 160, I, do Código Civil de 1916, no
entanto, conforme já demonstrado, e que agora se confirma, não havia, no Brasil,
uma regra expressamente consagradora da Teoria do Abuso do Direito.
_____________
52
STOCO, Rui. Abuso do Direito e Má-fé Processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 61-
62.
No Brasil, somente com o advento do Código Civil de 2002, é que o
instituto do abuso do direito passou a ser expressamente previsto, consagrando o
que há muito a doutrina e a jurisprudência reclamavam. Em que pese somente agora
o Brasil pretender resgatar os valores incutidos no instituto do abuso do direito,
trilhou no caminho certo, adotando os critérios e teorias mais aplaudidos.
1.7 Do abuso do direito processual
O presente trabalho versa estritamente sobre o abuso do direito
material, aquele previsto no Art. 187 do Código Civil Brasileiro. No entanto, cumpre
identificá-lo, diferenciando-o e comparando-o com o abuso do direito processual,
aquele previsto no Código de Processo Civil.
Em que pese possuírem regime e natureza jurídica diversos, ambos
os institutos são fruto das mesmas lutas pela limitação de direitos subjetivos e
combate ao uso abusivo de direitos. Inclusive, grande parte das obras utilizadas no
presente trabalho, versam justamente sobre o abuso do direito no Código de
Processo Civil, e identificam a mesma origem histórica e evolutiva dos institutos. Ou
seja, a Teoria do Abuso do Direito é uma só. Ocorre que seu campo de abrangência
é bastante amplo, repercutindo em diversos ramos do direito: Penal, Tributário,
Econômico, Financeiro, Trabalho, Processual Penal e Civil, Empresarial,
Administrativo.
E esta abrangência é tão ampla, a ponto de RUI STOCO dizer que
“Seria até escusado dizer que o abuso do direito poderá manifestar-se em qualquer
área do Direito, posto que truísmo”.
53
_____________
53
STOCO, Rui. Abuso do Direito e Má-fé Processual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
p. 62.
Para fim de delimitar o presente trabalho, buscar-se-á identificar o
abuso do direito material do Código Civil, diferenciando-o daquele previsto no
Código de Processo Civil.
O Código de Processo Civil alberga institutos que decorreram da
Teoria do Abuso do Direito que tratam basicamente de sua aplicação no exercício da
demanda. São exemplos: o abuso do direito de ação; abuso do direito de defesa;
abuso do direito de recorrer; abuso do direito de execução provisória.
O direito de ação é direito subjetivo, razão pela qual através do
instituto do abuso do direito procurou-se limitá-lo. O exercício do direito de ação,
quando realizado de forma a exorbitar os fins a que se destina, qual seja, deduzir a
pretensão do titular de um direito em juízo, foi, primeiramente, limitado pelo Código
de Processo Civil de 1939, que fazia alusão expressa ao abuso do direito:
Art. 3º. Responderá por perdas e danos a parte que intentar
demanda por espírito de emulação, mero capricho, ou erro grosseiro.
Parágrafo único. O abuso de direito verificar-se-á, por igual, no
exercício dos meios de defesa, quando o réu opuser,
maliciosamente, resistência injustificada ao andamento do processo.
A partir desse dispositivo, denota-se que abusa do direito da
demanda não só aquele que postula sua pretensão em juízo; também, pelo
parágrafo único acima citado, toda resistência que obstaculize a marcha processual,
realizada com a intenção de prejudicar, é suscetível de reparação por perdas e
danos.
Atualmente, com o Código de Processo Civil em vigência, referida
matéria foi elaborada, não se fazendo menção ao “abuso do direito”. No entanto, a
idéia de coibir os atos de emulação processuais praticados com má-fé, foi
denominada de litigância de má-fé, conforme conjugação dos Arts. 14, 16 e 17 do
referido diploma legal
54
.
Abusa do direito de postular em juízo aquele que tem a manifesta
intenção de prejudicar o demandado, propondo lides temerárias, mesmo carecedor
do direito pretendido. São deslealdades processuais que superam o senso normal
dos limites definidos pela lei processual.
Fala-se ainda no abuso do direito de recorrer, onde a parte,
procurando postergar um provimento jurisdicional definitivo, esquivando-se do
adimplemento de uma obrigação, procrastina o processo com recursos infundados.
No tocante ao abuso do direito de executar provisoriamente, na
visão dos irmãos MAZEAUD, citados por CAVALHO NETO, há abuso quando se
permite uma execução de um título judicial não transitado em julgado
55
. Esta visão
talvez, ao tempo em que foi desenvolvida (1931) até poderia possuir fundamento. No
entanto, em tempos de busca pela efetividade do processo, a execução provisória é
medida de celeridade e garantia de satisfação da pretensão do titular do direito
reconhecido no provimento jurisdicional.
Vislumbra-se, ainda, abuso do direito de defesa quando o
_____________
54 Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participarem do processo:
(...)
II – proceder com lealdade e boa-fé;
(...)
Art. 16. Responde por perdas e danos aquele que pleitear de má-fé como autor, réu ou interveniente.
Art. 17. Reputa-se litigante de má-fé aquele que:
I – deduz pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;
II – alterar a verdade dos fatos;
III – usar do processo para conseguir objetivo ilegal;
IV- opuser resistência injustificada ao andamento do processo;
V – proceder de modo temerário em qualquer incidente do processso;
VI – provocar incidentes manifestamente infundados;
VII – interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.
magistrado, diante de exceções substanciais infundadas e outros requisitos previstos
no Art. 273 do Código de Processo Civil, pode conceder a tutela antecipatória,
permitindo a satisfação antecipada do direito. Com isto, evita-se que um direito que é
evidente, tenha sua realização protelada com mecanismos processuais e produções
de provas que atrasam, consideravelmente, a satisfação da pretensão do titular de
um direito. Fruto, como já se disse, do que se denominou de efetividade do
processo, que possui, o mesmo senso ético que fundamenta o abuso do direito.
E cumpre frisar, que o processo, pelo caráter eminentemente
público de suas normas, tem como sujeito passivo, além da contra-parte, o próprio
Estado. Assim, conforme ocorre com o direito anglo-saxão, os atos atentatórios ao
exercício da jurisdição, chamados de contempt of court, que se estendem às
situações de real ofensa à ordem jurídica ocorrente no processo, são considerados,
por parcela da doutrina, de abuso do direito.
A jurisprudência cuidou de interpretar a aplicação do abuso do
direito processual, o que se depreende de diversos arestos que indicam,
taxativamente, o propósito de coibir o exercício do direito processual demasiado e
despropositado de seu fim
56
.
55
CARVALHO NETO, Inácio de. Abuso do Direito. 3ª ed. Curitiba: Juruá, 2004. p. 208.
56
116228726 – PROCESSUAL CIVIL – PETIÇÃO – DECISÃO DA QUINTA TURMA DESTA CORTE – ALEGADA
IRREGULARIDADE NA BAIXA IMEDIATA DOS AUTOS – NÃO-OCORRÊNCIA – ABUSO DO DIREITO DE RECORRER – 1. A
Quinta Turma desta Corte determinou a baixa imediata do RESP nº 378.450 e aplicou multa à Embargante pelo intuito
procrastinatório do feito, tendo em vista a oposição sucessiva de quatro embargos de declaração. 2. A incessante interposição
de petições com vistas a prolongar o exercício da prestação jurisdicional, impedindo o trânsito em julgado, não pode ser
acobertado pelo Judiciário. Precedentes desta Corte e do Supremo Tribunal Federal. 3. Agravo Regimental não provido. (STJ –
AGP 200401810781 – (3696 MG) – C.Esp. – Rel. Min. Edson Vidigal – DJU 29.08.2005 – p. 00133)
42081725 – ABUSO DE DIREITO – RECURSO MERAMENTE PROTELATÉRIO – INDENIZAÇÃO À PARTE CONTRÁRIA –
Ficando demonstrado que o recurso interposto objetiva unicamente retardar o andamento do feito, caracterizado se encontra o
abuso do direito de recorrer e, conseqüentemente, cabe indenização à parte contrária, prejudicada com o retardamento do
Conquanto não seja o foco principal do presente trabalho, somente
para fins de diferenciação, verifica-se que o Código de Processo Civil, na aplicação
de teorias do abuso do direito, possui forte tendência a valorizar o princípio da
probidade, descrevendo taxativamente condutas não permitidas e cominando a elas
sanções. Não trata do abuso do direito como uma categoria autônoma, mas traz
institutos inspirados na Teoria do Abuso do Direito, especialmente na vertente
subjetivista deste, que propugna dolo ou culpa para a configuração de ato abusivo.
feito. (TRT 5ª R. – AP 00225-2003-463-05-00-5 – (9.212/05) – 2ª T. – Relª Juíza Luíza Lomba – J. 12.05.2005)
130123836 – ABUSO DO DIREITO DE RECORRER – ARGUMENTAÇÃO INFUNDADA – MULTA – ARTIGO 557, § 2º, DO
CPC – APLICAÇÃO – O agravo interposto contra decisão amparada em jurisprudência pacífica e reiterada desta Corte, objeto,
inclusive, de enunciado de Súmula de jurisprudência uniforme, demonstra manifesto intuito de o agravante procrastinar o
andamento do processo, razão pela qual a aplicação da multa do § 2º do art. 557 do CPC é providência de natureza ético-
jurídica, imprescindível para se coibir o abuso do direito de recorrer, incompatível com os princípios norteadores do processo.
Agravo não provido. (TST – AERR 399453 – SBDI-I – Rel. Min. Milton de Moura França – DJU 05.11.2004)
69007920 – TUTELA ANTECIPADA – Contrato de transporte - Responsabilidade por acidente de trânsito - Lesões graves em
passageiro - Amputação parcial da perna - Necessidade de controle imediato e substituição eventual da prótese -
Adiantamento das despesas - Admissibilidade - Verossimilhança das alegações e prova inequívoca da lesão e do nexo causal -
Risco de prejuízo, caracterização do abuso do direito de defesa e também do propósito protelatório - Presença de todos os
requisitos para a antecipação da tutela, afastado o pedido de pensão mensal, considerado o fato de a vítima ser ainda
estudante, que não atende o requisito de urgência - Agravo parcialmente provido. (1º TACSP – AI 1315702-9 – (58533) – São
Paulo – 4ª C. – Rel. Juiz Aben-Athar – J. 24.11.2004)
187022214 – ATO ATENTATÓRIO À DIGNIDADE DA JUSTIÇA – CARACTERIZAÇÃO – IMPOSIÇÃO DE MULTAS – A
insistência do devedor em provocar a atividade jurisdicional, movimentando o aparato judiciário com pretensão manifestamente
infundada e procrastinatória, deve ser veementemente coibida, declarando-o, até mesmo ex officio, como praticante de ato
atentatório à dignidade da Justiça. Havendo inequívocos e inafastáveis prejuízos ao demandante favorecido pela decisão
sofismavelmente atacada pela parte contrária, criando inclusive embaraços à administração da Justiça e obrigando o Juízo a
despender gastos para a efetivação de inúmeros atos processuais, impõe-se no caso a aplicação dos arts. 600 e seguintes do
CPC, em face do abuso do direito subjetivo de ação. (TRT 12ª R. – AG-PET 00593-2002-020-12-00-3 –
(12529/20036167/2003) – Florianópolis – 3ª T. – Redª p/o Ac. Juíza Águeda Maria Lavorato Pereira – J. 02.12.2003) JCPC.600
2 ABUSO DO DIREITO COMO CLÁUSULA GERAL NO CÓDIGO CIVIL
2.1 O sistema adotado pelo Código Civil de 1916
Tendo como paradigma o Direito Civil Francês, então baseado nas
idéias difundidas pela Revolução Francesa, quando o homem passou a ser o centro
do mundo, capaz de ordená-lo com sua vontade e razão, o Código Civil de 1916
apresentava uma feição nitidamente individualista, onde os contratantes estavam
submetidos às disposições da avença, devendo esta ser interpretada sempre em
consonância com a vontade das partes.
Neste contexto, no referido diploma legal, a ausência de cláusulas
gerais era quase absoluta, eis que o conceito de justiça estava adstrito ao
cumprimento exato e integral das obrigações.
Porém, com o passar dos tempos, os princípios que presidiam a
codificação pretérita não mais correspondiam às relações sociais, políticas e
econômicas vividas no país, após quase um século de vigência do Código Civil de
1916. Era necessário, pois, que as regras civilistas fossem reelaboradas e os
princípios da autonomia privada e da obrigatoriedade dos contratos fossem
mitigados, dando lugar a mecanismos que pudessem fazer frente às tendências da
modernidade, conforme já discorrido.
Assim, surgiu a necessidade do Estado intervir nas relações
privadas e colocar nas mãos dos aplicadores da lei, verdadeiras janelas abertas para
a mobilidade que os casos concretos exigem. Para um Código com excessivo
rigorismo formal, praticamente sem referência à equidade, boa-fé, justa causa ou
quaisquer critérios éticos, a solução que se apresentava era a adoção de uma
técnica legislativa que permitiria ao Juiz não só o poder de suprir lacunas, como
também para resolver, onde e quando previsto, em conformidade com valores
éticos.
2.2 O sistema adotado pelo Código Civil de 2002: as cláusulas gerais
Como visto, o sistema individualista e fechado adotado pelo Código
Civil de 1916 não mais correspondia aos anseios da sociedade atual, urgindo a
necessidade de uma nova codificação.
Importante que, diante da cada vez mais crescente e veloz
evolução, o novo diploma civilista trouxesse, entre seus dispositivos, cláusulas por
meio das quais fosse possível se alcançar a inovação pretendida, atualizando seus
dispositivos, sem a necessidade de intervenção legislativa a cada simples mudança
ocorrida no contexto social, político ou econômico.
Neste sentido, GUSTAVO TEPEDINO afirma
57
:
_____________
57
TEPEDINO, Gustavo. O Código Civil, os chamados microssistemas e Constituição: premissas para
uma reforma legislativa: in Problemas de Direito Civil, Gustavo Tepedido (coord.) Rio de Janeiro:
Renovar, 2001, pp. 1 e ss. p. 8.
Parece indiscutível a necessidade de se desenvolver, por parte do
legislador e do intérprete, a técnica das cláusulas gerais, cuja adoção
evita as profundas lacunas causadas pela evolução da sociedade;
sendo impossível ao legislador acompanhar o passo dos
acontecimentos, e infrutífera a tentativa de tipificar a totalidade das
situações jurídicas que, assim como os bens jurídicos objeto do
direito, multiplicam-se a cada momento.
Assim é que o Código Civil de 2002 adotou o modelo de cláusulas
gerais, elevando referido diploma legal ao nível das legislações mais desenvolvidas
e avançadas.
Segundo a definição de JUDITH MARTINS COSTA
58
:
[...] a cláusula geral constitui uma disposição normativa que utiliza,
no seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente
“aberta”, “fluida” ou “vaga”, caracterizando-se pela ampla extensão
do seu campo semântico. Esta disposição é dirigida ao juiz de modo
a conferir-lhe um mandato (ou competência) para que, à vista dos
casos concretos, crie, complemente ou desenvolva normas jurídicas,
mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar
fora do sistema; estes elementos, contudo, fundamentarão a decisão,
motivo pelo qual não só resta assegurado o controle racional da
sentença como, reiterados no tempo fundamentos idênticos, será
viabilizada, através do recorte da ratio decidendi, a ressistematização
desses elementos, originariamente extra sistemáticos, no interior do
ordenamento jurídico.
A intenção do legislador ao incluir as cláusulas gerais dentre os
dispositivos do Código Civil, não foi a de solucionar todos os problemas da
realidade, mas a de permitir que no sistema jurídico de direito escrito, a criação da
norma esteja ao alcance do juiz, como um verdadeiro convite para uma atividade
jurisdicional mais criadora, destinada a complementar a legislação vigente com
novos princípios e normas.
A pretensão das cláusulas gerais não é dar resposta a todos os
_____________
58
MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um “sistema em construção”: as cláusulas gerais
no Projeto do Novo Código Civil brasileiro. Jus Navegandi, Teresina, a.4, n. 41, maio de 2000.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=513>. Acesso em: 08 nov. 2004.
problemas da realidade, uma vez que essas são progressivamente construídas pela
jurisprudência.
Ao lado das citadas vantagens das cláusulas gerais, JUDITH
MARTINS COSTA afirma que elas apresentam também a desvantagem de provocar
incertezas quanto ao estabelecimento de seus limites
59
:
Conquanto tenha a cláusula geral a vantagem de criar aberturas do
direito legislado à dinamicidade da vida social tem, em contrapartida,
a desvantagem de provocar – até que consolidada a jurisprudência –
certa incerteza acerca da efetiva dimensão dos seus contornos. O
problema da cláusula geral situa-se sempre no estabelecimento dos
seus limites. É por isso evidente que nenhum código pode ser
formulado apenas e tão somente com base em cláusulas gerais, por
que, assim, o grau de certeza jurídico seria mínimo.
Os elementos que preenchem o significado das cláusulas gerais
não são, necessariamente, jurídicos, podendo também advir de conceitos sociais,
econômicos ou morais.
Vários artigos do Código Civil de 2002 contêm cláusulas gerais.
Dentre elas, uma das que apresentam maior importância, é a que trata do instituto
do abuso do direito, à qual se limita a análise por se tratar do cerne do presente
estudo.
2.3 O abuso do direito como cláusula geral
Já vislumbrada, em capítulo anterior, a definição de abuso do direito
e suas principais características. Cumpre-se, agora, ainda que sucintamente, com
base nas singelas explanações acerca das cláusulas gerais, deter o foco do estudo
_____________
59
MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um “sistema em construção”: as cláusulas gerais
no Projeto do Novo Código Civil brasileiro. Jus Navegandi, Teresina, a.4, n. 41, maio de 2000.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=513>. Acesso em: 08 nov. 2004.
apenas à caracterização do abuso do direito dentre essas regras de significados
vagos e abertos.
SÉRGIO CAVALIERI FILHO, ao tratar do abuso do direito, aduz
60
:
Tem sido alvo de perplexidades o fato de ter o Código de 2002
elevado o abuso de direito ao nível de princípio geral. Alega-se que
constitui um verdadeiro perigo para a segurança das relações
jurídicas deixar todos os direitos individuais subordinados ao arbítrio
judicial; que a certeza do direito será posta em discussão se em linha
de princípio tiver o juiz a liberdade de sindicar discricionariamente o
mérito das modalidades de exercício do direito subjetivo por parte do
titular.
Afirmando a incoerência das críticas existentes, aduzindo ter
andado bem o legislador ao disciplinar o abuso do direito como uma cláusula geral,
o mesmo autor preceitua
61
:
A crítica, todavia, não procede, porque o Código – não só neste, mas
também em inúmeros outros pontos – aumentou consideravelmente
os poderes do juiz. Todos os negócios jurídicos terão, agora, que ser
interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua
celebração (art. 113); a liberdade de contratar será exercida em
razão e nos limites da função social do contrato (art. 421); os
contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do
contrato como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé
(art. 422). Em todos esses casos – repita-se - , e em muitos outros, a
lei estabeleceu como parâmetros de decisão da causa o prudente
arbítrio do juiz; os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e
da ponderação de valores, cada vez mais utilizados pelo Judiciário
até na solução de questões constitucionais, pelo quê não se pode ver
exagero algum na norma do art. 187 do Código Civil.
Arremata afirmando que “A primeira cláusula geral de
responsabilidade objetiva encontra-se no art. 927 do Código Civil, conjugado com o
art. 187, ao qual o primeiro se refere expressamente”.
62
_____________
60
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. rev. aum. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 173.
61
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. rev. aum. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 173.
62
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. rev. aum. São Paulo:
Assim, conclui-se pela relevância que o legislador dedicou ao
instituto do abuso do direito, cláusula geral das mais ricas, permeada por conceitos
legais indeterminados e conceitos determinados pelo caso concreto. Somente
assim, com esta técnica legislativa, é que se consegue aplicar o direito em sua
concretude, ofertando uma maior participação decisória aos magistrados.
3. ELEMENTOS QUE COMPÕEM O CONCEITO LEGAL DE ABUSO DO DIREITO
Malheiros, 2005. p. 173.
Consoante o artigo 187 do Código Civil “Também comete ato ilícito
o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos
por seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Este artigo,
comprovadamente uma cláusula geral, contém o conceito legal do instituto do abuso
do direito, trazendo em sua redação vários conceitos legais indeterminados.
Para fins de assimilação dos elementos caracterizadores do abuso
do direito, mister se faz desmembrar seu conceito legal.
3.1 “Também comete ato ilícito...”
Vê-se que o instituto do abuso do direito está disposto clara e
diretamente na parte geral do Código Civil, no Título III, que disciplina os atos ilícitos.
Primeiramente se conceitua o ato ilícito e seus elementos no artigo 186, para, logo
em seguida, se erigir uma nova conduta ilícita.
Ao dizer que “também comete ato ilícito” o legislador quis deixar
claro que criou um novo modelo de ilicitude. A Teoria do Abuso do Direito veio
expressa em um dispositivo previsto na parte geral, ou seja, é aplicada a todos os
ramos do direito civil, seja obrigações, direitos reais, família ou sucessões.
Oportunamente, por ocasião do estudo e análise da natureza
jurídica do abuso do direito no Código Civil, deter-se-á a identificar o ato ilícito
decorrente do abuso do direito. Por ora, apenas alerta-se ao fato de que o legislador
criou um novo modelo de ilicitude, com um arquétipo diverso do que a doutrina vinha
admitindo durante a vigência do código civil de 1916.
3.2 “o titular de um direito que, ao exercê-lo...”
O que o código denomina de “titular de um direito” é o que a
doutrina batizou de sujeito do direito. PAULO DOURADO DE GUSMÃO nos ensina
que sujeito de direito “é o titular do direito, isto é, a pessoa a quem a lei ou ato
jurídico dá o poder de exigir de outrem o cumprimento de uma obrigação ou que
pode dispor e desfrutar de uma coisa”.
63
Estes sujeitos de direito, são aqueles que têm aptidão para serem
titulares de direitos e obrigações, de serem titulares de relações jurídicas. Estes
sujeitos das relações jurídicas são nada mais do que as pessoas, que podem ser
físicas ou jurídicas.
É importante que se faça um adendo, ao que EDSON FACHIN
tanto chama a atenção dos juristas: a reconstrução do sujeito de direito
64
. Essa
reconstrução se funda na compreensão do sujeito da relação jurídica dotado de
dignidade, não uma dignidade formal, mas sim substancial. É a recolocação do
indivíduo como ser coletivo, no centro dos interesses.
O titular de um direito deve respeitar o direito de outrem, à luz dos
valores constitucionais da dignidade da pessoa humana e solidariedade, respeitando
o fim social e econômico de seu direito, atentando para a boa-fé e para os bons
costumes.
JOSSERAND, citado por SERPA LOPES, faz referências à direitos
não causados, direitos abstratos, que ao serem exercidos não admitem abuso. São
os, por eles denominados de “direitos absolutos”, “direitos de espírito altruísta”,
_____________
63
GUSMÃO, Paulo Dourado. Elementos de Direito Civil. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1969.
p. 123.
64
FACHIN, L. E. Teoria Crítica do Direito Civil: à luz do novo Código Civil Brasileiro. 2ª ed. rev. e
atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 15.
‘direitos sem causa”, “direitos discricionários”, citados de exemplo o pátrio poder;
direito do condômino de a todo tempo exigir a divisão da coisa comum; o direito de
resposta; o direito de construir com uma distância regular
65
. A sistemática adotada
pelo Código Civil não fez distinção a quais direitos admitiriam, ou não, abuso. Além
do que, dificilmente pode-se imaginar um direito absoluto que não comporte
exceções. Até mesmo os direitos da personalidade e o poder familiar, antes ditos
absolutos, foram relativizados, existindo, perfeitamente, a possibilidade de abuso do
direito da personalidade e abuso do poder familiar.
Enquanto não extinto, todo direito subjetivo pode e deve ser
exercido, a qualquer momento. O titular deste direito é o juiz do seu exercício.
Conforme ensinamento de PAULO DOURADO DE GUSMÃO, o exercício do direito
subjetivo é o uso efetivo das faculdades e poderes nele contidos
66
. Referido autor
cita ainda a lição de COVIELLO acerca do exercício do direito
67
:
Está submetido a regras, que COVIELO bem sintetizou: “1) cada um
é livre para exercitar ou não seus direitos: o exercício do direito é
facultativo, não obrigatório, salvo no caso dos direitos que são
deveres ao mesmo tempo, como, p. ex., o pátrio poder; 2) o direito
permanece sempre o mesmo, ainda que não exercido; porém a falta
de prolongado exercício, por um tempo estabelecido pela lei, produz,
geralmente sua extinção, que não ocorre como pena da inércia, já
que o exercício do direito não constitui dever, mas sim por interêsse
social; 3) cada qual pode usar de seu direito, como melhor achar”,
não podendo, acrescentamos nós, usá-los anormalmente, isto é, com
intenção exclusiva de molestar, de causar lesões em outrem,
desviado de sua destinação econômico-social, sem interêsse
legítimo, de forma contrária aos bons costumes. Nas épocas de crise
econômica pode-se admitir que o não-exercício do direito de
propriedade, que causa prejuízo à produção, possa acarretar a sua
perda pela desapropriação pelo Estado (GUSMÃO, Paulo Dourado
de, 1969, p. 82/83).
_____________
65
LOPES, Serpa. Curso de Direito Civil. v. 1. 4ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1962. p.
269.
66
GUSMÃO, Paulo Dourado. Elementos de Direito Civil. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1969.
p. 82.
67
GUSMÃO, Paulo Dourado. Elementos de Direito Civil. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1969.
p. 82/83. Os destaques no texto não constam do original.
O exercício de um direito pode se dar pelo próprio titular ou por
meio de representação. Neste último caso, uma pessoa, representando outra,
pratica atos cujos efeitos devem recair sobre esta.
Com clareza HELOÍSA CARPENA nos ensina que
68
:
“Exercer legitimamente um direito não é apenas ater-se à sua
estrutura formal, mas sim cumprir o fundamento axiológico-
normativo que constitui estes mesmo direito, que justifica seu
reconhecimento pelo ordenamento, segundo o qual será aferida a
validade do seu exercício. A teoria do abuso do direito passa então
a rever o próprio conceito de direito subjetivo, relativizando-o.”
Questão tormentosa é se o não exercício de um direito subjetivo, ou
seja, a omissão, é suscetível de caracterização do abuso do direito. É o caso do
titular de um direito, que, ao não exercê-lo, excede manifestamente os limites
impostos pelo fim social do direito.
Quem se aventurou a tratar deste assunto foi HAROLDO
VALADÃO, que sofreu críticas de PAULO DOURADO DE GUSMÃO
69
:
Finalmente, não concordamos com HAROLDO VALADÃO ao admitir
a possibilidade de abuso do direito na omissão, ou seja, no não-
exercício do direito capaz de prejudicar a ordem econômica ou o
bem-estar geral. E não concordamos porque abuso supõe uso, isto
é, uso anormal. Não negamos que o não-exercício dos direitos possa
criar situações tão ou mais condenáveis e prejudiciais para a
sociedade do que o uso abusivo. Mas só êsse motivo não justifica a
deturpação da noção de abuso, que implica a de uso. Para tais casos
a lei tem outros remédios, como, por exemplo, no que diz respeito ao
não-uso do direito de propriedade, a desapropriação.
Importante destacar que não apenas o exercício de um direito pode
caracterizar ato abusivo, como também o seu não exercício, eis que tanto ação
quanto omissão são formas de exteriorização da conduta humana.
_____________
68
CARPENA, Heloísa. O abuso do Direito no Código de 2002: Relativização de direitos na ótica civil-
constitucional. A parte Geral do novo código civil: estudos na perspectiva civil-consitucional/ Coord.
Gustavo Tepedino. 2ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 380.
3.3 “excede manifestamente...”
Verifica-se na redação do art. 187 a expressão “excede
manifestamente”, que pode ser qualificada como um conceito legal indeterminado
pelo qual, o aplicador do direito, no caso concreto, irá determinar o seu sentido e
alcance.
O excesso é a demasia, a ultrapassagem do limite. Um direito é
exercido regularmente enquanto o mesmo cumpre algumas limitações, como o seu
fim social, econômico, a boa-fé e os bons costumes. A partir do momento em que o
direito deixa de obedecer estes limites, há uma deslocação do campo do exercício
normal do direito, para o campo do exercício anormal. Sai-se da esfera da licitude, e,
o que aparentemente é legal, passa a ter desvalor perante o direito.
E esse excesso deve ser manifesto, ou seja, deve ser patente,
claro, evidente, notório e flagrante. Por isto que o “excesso” não pode ser algo
subjetivo, ou seja, não pode sua identificação advir de conjecturas ou convicções
pessoais; deve vir revestido de elementos robustos que lhe dêem evidência e
destaque. Conforme ensinamento de CAVALIERI FILHO, a expressão excede
manifestamente
70
:
“figura no texto legal exatamente para impedir o excessivo
subjetivismo do juízes. Caberá ao julgador, apontar, em cada caso,
os fatos que tornam evidente o abuso do direito, com o quê se
evitará a temida arbitrariedade, ou o cerceamento do legítimo
exercício do direito”.
Muitas vezes o titular de um direito subjetivo, ao exercê-lo, provoca
69
GUSMÃO, Paulo Dourado. Elementos de Direito Civil. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1969.
um mal a outrem. Ocorre, que este mal, na maioria das vezes, é ínsito ao exercício
do direito, ou seja, é inevitável. O direito, muitas vezes para alcançar o seu fim social
e econômico não é cômodo para todas as partes. A pacificação social, algumas
vezes, é realizada mediante aborrecimentos e frustrações para alguém.
Ocorre que, outras vezes, quando a utilização do direito, ultrapassa
de forma flagrante limites impostos pelo fim econômico e social do direito, a boa-fé
objetiva ou os bons costumes, estar-se-á diante de um ato ilícito, tendo-se em conta
o seu exercício excessivo.
3.4 “limites impostos...”
Como já se apontou, os direitos são atribuídos ao sujeito de direito,
titular do direito, para por ele serem utilizados. Este exercício do direito se processa
de acordo com a sua destinação, não podendo ser exercido ilimitadamente, vez que
deve guardar as devidas proporções. Os direitos subjetivos, que têm característica
de relatividade do exercício, são o campo fértil onde se perpetram os maiores
abusos.
Para que se caracterize o abuso do direito, mister o
estabelecimento de limites ao exercício dos direitos subjetivos, limites através dos
quais o sujeito adentra no plano da antijuridicidade.
Assim, como forma de identificar o momento pelo qual o titular de
um direito ultrapassa o campo da licitude e adentra ao da ilicitude, foram
estabelecidos limites. E estes limites podem ser preenchidos a cada caso, como o
fim econômico e social do direito. Outros, devem ser respeitados no exercício de
70
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. rev. aum. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 173.
todo e qualquer direito subjetivo, como a boa-fé e os bons costumes.
3.4.1 “fim econômico...”
A função econômica e também a função social do direito inserem-
se no movimento da funcionalização dos direitos subjetivos. O exercício de um
direito subjetivo está condicionado pela sua função.
E o fim econômico do direito, é o proveito material ou vantagem que
o direito confere ao seu titular, ou a perda material resultante do não exercício do
direito. Nem todo direito tem fim econômico, como ocorre no Direito de Família.
Tome-se como exemplo o contrato. O contrato tem como veste
jurídica a circulação de riquezas, transferindo-as de um patrimônio para outro. O
contrato, assim, tem sua função econômica na sociedade e dela não pode se
desvirtuar. A partir do momento que o contrato perde este cunho, sua função
econômica de instrumentalizar a circulação de riquezas da sociedade, o Estado, por
meio de um instituto limitador da autonomia privada, intervém na relação havida
entre os particulares, erigindo determinada conduta como abusiva do direito.
Novamente elucidativas as lições de CAVALIERI FILHO ao
identificar o sentido e alcance do “fim econômico”, como elemento caracterizador do
abuso do direito
71
:
“Esse fim econômico tem grande relevância principalmente no Direito
Obrigacional. O contrato – ninguém contesta – é primeiramente um
fenômeno econômico, o jurídico vem depois, para dar segurança ao
econômico, aparar alguns excessos e traçar determinados rumos.
Então, o fenômeno econômico está na raiz do contrato. Não poderá o
titular de um direito contratual ir contra essa finalidade econômica,
porque seria contrariar a própria natureza das coisas.”
_____________
71
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. rev. aum. São Paulo:
Malheiros, 2005. 174.
E esta preocupação em proteger a função econômica do direito,
vem do fato de que o direito privado vem paulatinamente sofrendo influxos
publicizadores e constitucionalizadores. ARNOLD WALD explica essa mudança no
contexto jurídico
72
:
A sociedade necessita do bom funcionamento da circulação das
riquezas e da segurança jurídica baseada na sobrevivência de
relações contratuais eficientes e equilibradas. Num mundo em
constante transformação, o contrato deixa, de definir direitos
necessariamente imutáveis e situações jurídicas estratificadas para
ser um instrumento de parceria no qual as partes estabelecem um
determinado equilíbrio econômico e financeiro que pretendem
salvaguardar, fazendo as adaptações contratuais necessárias para
tal fim. Não desaparecem, pois, nem a autonomia da vontade, nem a
liberdade de contratar; ambas mudam de conteúdo e de densidade,
refletindo a escala de valores e o contexto de uma sociedade em
constante evolução e de um Estado que precisa e deve ser eficiente
por mandamento constitucional.
Essa nova ótica, adotada pela legislação brasileira, amplamente
contemplada no instituto do abuso do direito, já havia sido prevista na Constituição
Federal de 1998, quando em seu artigo 170, o legislador originário arquitetou
princípios gerais da atividade econômica, prevendo que a ordem econômica,
fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa , tem por fim
assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social,
observados os seguintes princípios: (...) III – função social da propriedade; (...) IV –
redução das desigualdades regionais e sociais;.
Pelo dispositivo constitucional descrito, denota-se uma ingerência
estatal nas relações econômicas, de modo que o direito sirva para atender sua
finalidade econômica, pautada, nos valores da existência digna do ser humano e
preservando a justiça social.
_____________
72
WALD, Arnold. A dupla função econômica e social do contrato. Revista Trimestral de Direito Civil. v.
17. Rio de Janeiro: Padma, 2000. p. 5.
3.4.2 Fim “social...”
Conforme já noticiado, o legislador teve a socialidade como diretriz
na elaboração do Código Civil de 2002. A socialidade aqui é vista como valor
essencial e princípio fundamental. Os problemas oriundos das relações jurídicas
privadas, atualmente, não importam somente às pessoas individualmente, mas
também e fundamentalmente, ao Estado e às comunidades.
Conforme nos ensina MIGUEL REALE, em artigo intitulado Visão
Geral do novo Código Civil
73
:
“A SOCIALIDADE – É constante o objetivo do novo Código no
sentido de superar o manifesto caráter individualista da Lei vigente,
feita para um País ainda eminentemente agrícola, com cerca de 80%
da população no campo.
Hoje em dia, vive o povo brasileiro nas cidades, na mesma proporção
de 80%, o que representa uma alteração de 180 graus na
mentalidade reinante, inclusive em razão dos meios de comunicação,
como o rádio e a televisão. Daí o predomínio do social sobre o
individual.
Alguns exemplos dados já consagram, além da exigência ética, o
imperativo da socialidade, como quando se declara a função social
do contrato...”.
O exercício dos direitos subjetivos, em decorrência destas
transformações sociais, altera-se para se adequar às exigências desta nova
realidade, passando a ser controlado e se submeter a uma série de imposições e
limitações, mais eqüitativas. Ora, em uma sociedade organizada, o exercício de
73
REALE, Miguel. Visão Geral do Novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, a.6, nº 54, fev. 2002,
Disponível em: < http://www1.jus.com.br/ doutrina/texto.asp?id=2718>. Acesso em: 06 mar. 2005.
direitos subjetivos não pode se desviar da função à qual foi confiado, sob pena de
seu titular desviar de seu destino, abusando do direito.
Tendo em vista a clara e inequívoca inspiração socializante do
código civil atual, os institutos tiveram que se despir do caráter individualista e primar
pelo social. Exemplo maior disso são os artigos 187 e 421 do Código Civil, que
prestigiam, efetivamente, a função social do direito.
Aclarando o significado da expressão fim social do direito,
CAVALIERI FILHO nos orienta
74
:
A questão, embora complexa, pode ser assim resumida. Toda
sociedade tem um fim a realizar: a paz, a ordem, a solidariedade e a
harmonia da coletividade – enfim, o bem comum. E o Direito é o
instrumento de organização social para atingir essa finalidade. Todo
direito subjetivo está, pois, condicionado ao fim a que a sociedade se
propôs. San Tiago Dantas assinala: “pode-se dizer que, hoje, mais
do que um direito subjetivo, o que se concede ao indivíduo é uma
proteção jurídica, ou pelo menos um direitos subjetivo que não tem
no arbítrio do titular a sua única medida, pois não poderá, em caso
algum, ser exercido contra a finalidade social que a lei teve em mira
quando o reconheceu e protegeu. Valer-se do direito para colimar
resultados contrários à sua instituição, eis o abuso do direito”.
Por exemplo, o contrato deve cumprir a sua função social. Com isto,
deve ser visto como um instrumento que visa promover as trocas econômicas de
forma mais justa, mas igualmente seguras. O contrato de compra e venda, por
exemplo, deve ser analisado sob a ótica de proporcionar o trânsito de riquezas, e
não de servir como forma de opressão e de alcance de fins diversos. Os maus
pagadores, os desonestos, os inadimplentes contumazes, não poderão se valer do
direito para tirar proveito da sua própria torpeza, sob pena de abusarem dele e
serem obrigados a indenizar os danos provenientes de sua conduta, objetivamente
considerada.
Sob a égide do Código Civil de 1916, o princípio que preconiza o
cumprimento, pelas partes, da palavra dada no momento da formação do contrato
(pacta sunt servanda), passava praticamente incólume na legislação civil, pois
praticamente não comportava exceções.
Não há dúvidas que o Código Civil de 2002 andou bem ao inovar a
disciplina contratual positivando o princípio da função social do contrato,
principalmente colocando-a como elemento caracterizador do abuso do direito. Ora,
pelos contratos, os homens devem compreender-se e respeitar-se, para que
encontrem um meio de entendimento e de negociação sadia de seus interesses e
não um meio de opressão. Para que esse espírito de fraternidade nos contratos se
preserve, o Estado lança mão de uma norma cogente – o abuso do direito -
interferindo nas contratações, com sua vontade soberana, para evitar lesões.
Outro exemplo, agora no âmbito dos direito reais, é a função social
da propriedade. O fim social da propriedade é alcançado com a limitação do direito
subjetivo do seu proprietário, o que se faz através da sua socialização (no sentido
social e não político). É a obrigatoriedade do sujeito de direito empregar a sua
riqueza na satisfação de seus interesses pessoais, sem deixar de reservar o dever
de satisfazer os interesses comuns, em benefício, também, do interesse social.
Se a propriedade se desvia desta finalidade, estar-se-á diante de
um ato abusivo. O caso célebre é aquele do indivíduo que colocou lanças em sua
propriedade porque o seu vizinho utilizava dirigíveis. Se por um lado o proprietário
tem direito ao uso e gozo de sua propriedade, podendo dela extrair a sua utilidade,
por outro não pode se valer dela para prejudicar outrem com seu exercício abusivo,
colocando lanças que não têm outra utilidade, a não ser a de emulação do direito
74
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. rev. aum. São Paulo:
alheio. Ao usar sua propriedade para cultivo, ou moradia, desempenha-se a função
que o direito lhe conferiu, ao contrário, comete abuso do direito.
Ainda, no que atina à função social do direito de propriedade, a
lição de ADAUTO TOMASZEWSKI
75
:
Como o mundo mudou, evoluiu, os efeitos foram facilmente
percebidos. Mesmo na vigência do nosso antigo Código Civil, a
propriedade foi sendo limitada por todos os lados. Isto foi identificável
nos momentos em que o proprietário deveria pedir autorização ou
submeter-se a uma eventual interdição.
Diante do interesse público, desaparecia a propriedade particular,
motivo pelo qual surgiram regulamentos sobre domínio das fontes,
das minas, do espaço aéreo, etc... . Tudo explicado pelo simples fato
de que todo indivíduo deve cumprir uma dada função na sociedade,
na razão direta do lugar que ocupa como detentor de riqueza. E
porque detém tal riqueza, pode cumprir tal tarefa, pois somente ele
pode aumentar a riqueza geral, fazendo valer o capital que detém.
Decorrente desta noção, a propriedade já não é mais um direito
subjetivo do proprietário, mas a função social do detentor da riqueza,
como afirmaram LANDRY, MAURICE HAURIOU e LÉON DUGUIT
ao longo de suas excelentes obras.
(...)
Foi inclusive com base nesta evolução que o novo Código, mais
precisamente no DIREITO DAS COISAS, trouxe uma certa
modernidade em relação ao antigo, até mesmo por efeito reflexo da
vigente Constituição Federal. A partir de então, o direito real é visto
em razão do novo conceito de propriedade, com base no princípio
constitucional de que a função da propriedade é social, superando-se
aquela antiga compreensão romana quiritária, decorrente do
interesse exclusivo do indivíduo, do proprietário ou do possuidor.
O proprietário que no uso de seu direito de propriedade, não a faz
cumprir sua função social, não merece a mesma tutela atribuída ao que utiliza sua
propriedade de forma adequada ao interesse social. É o caso da desapropriação,
onde a propriedade não basta que seja produtiva no sentido econômico do termo,
mas deve também realizar a sua função social.
Malheiros, 2005. p 178.
75
TOMASZEWSKI, Adauto de Almeida. Breves considerações sobre o direito das coisas no novo
Código Civil. Publicado no site Mundo Jurídico em 25 de setembro de 2003. Disponível em:
Igualmente, no tocante ao projeto parental, o abuso do poder
familiar pode ser entendido como violação da finalidade social do direito. A função
precípua do poder familiar é proporcionar ao pai usar de autoridade para impor
certas condutas ao filho, sempre no interesse do menor e para a formação de sua
integridade física e psíquica em desenvolvimento. A partir do momento em que o pai,
ou mãe, no exercício do poder familiar se desviar destas finalidades, estará
cometendo abuso.
Na contramão, respeitada doutrina impõe criticas o grau de
abstração desta norma, EVERARDO DA CUNHA LUNA, comungando do
entendimento dos irmãos MAZEAUD, anota
76
:
Para nós, no bom caminho de MAZEAUD et MAZEAUD, a teoria, que
se fundamenta no fim social do direito, se fôsse acolhida pelo direito
positivo, deixaria o juiz na mais absoluta perplexidade. Não que
devamos desconfiar do magistrado, em quem, ao contrário, devemos
depositar tôda a fé. Mas, como compreender o julgador o correto
sentido da expressão fim social do direito? Se a lei não diz, onde i-lo
buscar? Na moral? mas quê moral? a cristã? a materialista? na
política? ... mas quê política? a individualista? a socialista? O fim
social do direito para o juiz católico, é um; outro, para o magistrado
positivista, e bem outro, para o julgador socialista. Só um critério é
possível: o técnico. Claro que têm os magistrados liberdade de
decisão, mas obedecendo ao critério técnico, que é o critério da lei.
O poeta, o músico e o pintor são livres, quando nos comunicam,
através da arte, os seus sentimentos, mas, para o fazerem, obrigam-
se a seguir os princípios técnicos da poesia, da música e da pintura.
Não se julga inatingível a tarefa de perquirir, na realidade concreta,
os fins sociais do direito aplicado. Este grau de abstração da norma, que deverá ser
identificado concretamente pelo magistrado, já é, de outrora, bastante utilizado.
Conceitos de deixar margem de liberdade objetiva para o juiz interpretar o alcance
da norma são largamente utilizados em todos os ramos do direito. Inclusive, para
<http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 08 de novembro de 2004.
76
LUNA, Everardo da Cunha. Abuso de Direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 98/99.
valoração dos elementos intelectivos que compõem a lide, o juiz, em sua decisão,
deve motivar fundamentadamente o direito aplicável ao caso concreto. E esta
decisão poderá, ainda, em caso de insatisfação das partes, ser sujeita à revisão por
um colegiado. É o que nos ensina SILVIO RODRIGUES
77
:
Não que temamos demais o arbítrio do juiz: confiamos nele; é
indispensável não o prender a regras fixas. Ao menos é preciso que
ele saiba o que se lhe pede. Ora, o que se lhe pede? Pede-se-lhe
determinar a função social de um direito, de dizer com que escopo o
legislador reconhece a existência do direito de propriedade, do pátrio
poder etc. Uma tal questão não comporta solução sobre o terreno
jurídico, porque é imensa. O juiz, compelido a respondê-la, deverá
sair do domínio do Direito; ele cairá no domínio da política. Eis o
perigo do critério: um socialista terá o mesmo conceito sobre o fim
para o qual é conferido o direito de propriedade, ou o direito de
associação, que um adversário da doutrina de Karl Marx?
Evidentemente não. Defender a doutrina da finalidade social dos
direitos, não é absolutamente cair no socialismo, mas é compelir o
juiz a encarar o problema da responsabilidade sob o ângulo da
política.
O fim social do direito não está na mão do magistrado como uma
“carta branca” para que ele decida ao arrepio da lei e de princípios basilares do
direito privado, já sedimentados. Ele deve conjugar a sua intelecção com o fim
econômico a que se dirige o direito. A exemplo, o contrato, em que pese sua função
social e econômica, não deixou de exercer a sua finalidade econômica, o trânsito de
riquezas e refletir a liberdade individual, igualmente protegida constitucionalmente.
O que houve foi a agregação de valores que, apesar de já estarem
previstos da Constituição Federal, não haviam sido positivados. E, no Brasil, ainda,
se tem uma mentalidade de, no âmbito privado, evitar-se uma interpretação dos
institutos sob a ótica constitucional. A idéia foi atualizar e modernizar institutos,
promovendo uma releitura de seus princípios informadores, para que o direito
_____________
77
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Responsabilidade Civil. v.4. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 1962. p.
privado não seja alvo do cometimento de abusos e desvios da finalidade alvitrada
pelo interesse social.
E nunca é demais se repetir, nestes tempos de modernidade tardia,
que a busca pelo fim social do direito é medida das mais necessárias. A
determinação do fim social do direito é tarefa imposta ao magistrado. É sua função,
é seu mister. A função social do direito será, então, determinada no caso concreto,
de acordo com a realidade social, cultural e econômica vivida em dado momento
histórico. O abuso do direito consiste nessa atuação anti-social que deve ser aferida
pelo aplicador da lei.
3.4.3 “boa-fé...”
O art. 187 traz a boa-fé como limite ao exercício de direitos
subjetivos, não indicando qual a espécie, se subjetiva ou objetiva. A boa-fé é um
atributo natural do ser humano, um conceito ético e social que ingressou no
Ordenamento Jurídico como norma. E dentro do direito positivo pode ser
considerada sob dois ângulos: boa-fé objetiva e boa-fé subjetiva, cada qual com
conceitos e aplicações diferentes.
A boa-fé subjetiva é o comportamento do sujeito da relação jurídica,
isento de espírito lesivo e sem a consciência e vontade de prejudicar outrem. Diz
respeito ao estado psicológico e íntimo do sujeito. É a boa-fé da intenção, que deve
ser pura e isenta de dolo ou engano.
A civilista JUDITH MARTINS-COSTA expressa o significado da
boa-fé subjetiva, e o faz nos seguintes termos
78
:
56/57.
78
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado. 1ª ed. São Paulo: RT, 2000. p. 411/412.
A boa-fé subjetiva denota, portanto, primariamente, a idéia de
ignorância, de crença, ainda que escusável , acerca da existência de
uma situação regular, crença (e ignorância escusável) que repousam
seja no próprio estado (subjetivo) da ignorância (as hipóteses do
casamento putativo, da aquisição da propriedade alheia mediante a
usucapião), seja numa errônea aparência de certo ato (mandato
aparente, herdeiro aparente etc.). Pode denotar, ainda,
secundariamente, a idéia de vinculação ao pactuado, no campo
específico do direito contratual, nada mais aí significando do que um
reforço ao princípio da obrigatoriedade do pactuado, de modo a se
poder afirmar, em síntese, que a boa-fé subjetiva tem o sentido de
uma condição psicológica que normalmente se concretiza no
convencimento do próprio direito, ou na ignorância de se estar
lesando o direito alheio, ou na adstrição “egoística” à literalidade do
pactuado.
Já a boa-fé objetiva, não diz respeito ao elemento subjetivo do
sujeito da relação jurídica. A conduta do sujeito é analisada sob o aspecto objetivo, o
padrão de comportamento que homem correto possui. É uma norma de conduta que
determina como as partes devem agir conforme um padrão objetivo de conduta leal.
É um standard jurídico, um modelo, um arquétipo de conduta.
JUDITH MARTINS-COSTA, em obra específica sobre a boa-fé no
direito privado que não se poderia deixar de citar pela cientificidade e clareza de
raciocínio, indica distintas funções da boa-fé objetiva: cânone hermenêutico-
integrativo do contrato, a de norma de criação de deveres jurídicos e a de norma de
limitação ao exercício de direitos subjetivos
79
:
A boa-fé objetiva, por fim, implica na limitação de direitos subjetivos.
Evidentemente, a função de criação de deveres para uma das partes,
ou para ambas, pode ter, correlativamente,a função de limitação ou
restrição de direitos, inclusive de direitos formativos. Por essa razão
é alargadíssimo esse campo funcional, abrangendo, por exemplo,
relações com a teoria do abuso do direito, com a exceptio doli, a
inalegabilidade de nulidades formais, a vedação a direitos por
carência de seu exercício em certo tempo para além das hipóteses
conhecidas da prescrição e da decadência etc. Nesse panorama
privilegiarei, porém, a invocação de três hipóteses, quais sejam a
teoria do adimplemento substancial, em matéria de resolução de
_____________
79
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado. 1ª ed. São Paulo: RT, 2000. p. 454.
contrato, a invocação de regra do tu quoque, em matéria de oposição
da exceção de contrato não cumprido, e o venire contra factum
proprium, todas possíveis de ser englobadas na ampla categoria da
inadmissibilidade da adoção de condutas contrárias à boa-fé.
A partir do estudo da jurista mencionada, a boa-fé é apresentada,
p.ex. como norma que não admite condutas que contrariem o mandamento de agir
com lealdade e correção, pois só assim se estará a atingir a função social que lhe é
cometida. Bem como tem aplicação no campo contratual, especialmente quanto à
resolução do contrato, onde a boa-fé objetiva é tida como norma de
inadmissibilidade do exercício de direitos.
Mas, por não indicar a espécie, a qual boa-fé quis se referir o
legislador no artigo 187 do Código Civil?
O direito comparado nos mostra que o nosso legislador reproduziu
o modelo português de abuso do direito
80
, e lá, a boa-fé aplicada neste instituto é a
objetiva. Igualmente o Código Civil Grego adotou a teoria objetivista
81
, que, por sua
vez, influenciou a feitura do dispositivo legal português.
Inclusive, JUDITH MARTINS-COSTA justifica a necessidade e a
intenção do nosso legislador em se referir à boa-fé objetiva, ainda mais se se levar
em consideração as diretrizes da operabilidade, socialidade e eticidade utilizadas
como novos paradigmas para a releitura dos institutos privados
82
:
Uma e outra soluções, contudo, a par de dificultarem a
sistematização dos variados casos de inadmissibilidade do exercício
de direitos, estão ainda ancorados numa perspectiva subjetivista,
marcada pela relação entre o dogma da vontade e a construção do
direito subjetivo como a sua mais importante projeção. Por isso a
_____________
80
Art. 334 – É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites
impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito.
81
O artigo 281 do código civil grego preceitua que: O exercício de um direito é proibido se ultrapassar
manifestamente os limites impostos pela boa fé ou pelos bons costumes, ou por seu fim econômico
e social.
82
MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado. 1ª ed. São Paulo: RT, 2000. p. 456.
tendência, hoje é verificável, de sistematizar estes casos através do
recurso à boa-fé objetiva, caminho que se insere na tendência que
busca especificar os casos de aplicação da boa-fé objetiva, tornando
o princípio menos fluido e de acentuado caráter técnico.
Esta não é a visão de FRANCISCO AMARAL, que interpreta a boa-
fé prevista no artigo 187 como sendo, tanto a subjetiva como a objetiva
83
:
A boa-fé entende-se sob o ponto de vista psicológico ou subjetivo e
sob o ponto de vista objetivo. Psicologicamente, a boa-fé é um
estado de consciência, é a convicção de que se procede com
lealdade, com a certeza da existência do próprio direito, donde a
convicção da ilicitude do ato ou da situação jurídica. Objetivamente, a
boa-fé significa a consideração, pelo agente, dos interesses alheios,
ou a “imposição de consideração pelos interesses legítimos da
contraparte” como o dever de comportamento.
No sentido de que a boa-fé contida no conceito de abuso do direito
do artigo 187 se trata apenas da limitação de direitos subjetivos, amoldando-se,
perfeitamente, à uma das funções da boa-fé objetiva, é a lição de CAVALIERI
FILHO
84
:
A boa-fé a que o Código se refere no art. 187 não é a subjetiva –
posição psicológica, intenção pura e destituída de ma-fé, crença ou
ignorância de uma pessoa -, mas sim a boa-fé objetiva ou normativa,
assim entendida a conduta adequada, correta, leal e honesta que as
pessoas devem empregar em todas as relações sociais. (...)
Três são as funções da boa-fé objetiva no atual Código Civil: a
função interpretativa – regra de interpretação dos negócios jurídicos
(art. 113); b) função integrativa – fonte de deveres anexos dos
contratos (art. 422); c) função de controle – limite ao exercício dos
direitos subjetivos (art. 187). Em sua função de controle, que aqui
nos interessa, a boa-fé representa o padrão ético de confiança e
lealdade indispensável para a convivência social. As partes devem
agir com lealdade e confiança recíprocas. Essa expectativa de um
comportamento adequado por parte do outro é um componente
indispensável na vida de relação. Conforme já destacado, a boa-fé,
_____________
83
FRANCIULLI NETTO, Domingos, et al. O Novo Código Civil: Estudos em homenagem ao Professor
Miguel Reale. São Paulo: LTR, 2003.p. 162.
84
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. rev. aum. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 178/179. Os grifos não constam do original.
em sua função de controle, estabelece um limite a ser respeitado no
exercício de todo e qualquer direito subjetivo. E assim é porque a
boa-fé é o princípio cardeal do Código de 2002, que permeia toda a
estrutura do ordenamento jurídico, enquanto forma regulamentadora
das relações humanas. Considera-se violado o princípio da boa-fé
sempre que o titular de um direito, ao exercê-lo, não atua com a
lealdade e a confiança esperáveis.
No mesmo sentido PABLO STOLZE e RODOLFO PAMPLONA
85
:
Por meio da boa-fé objetiva, visa-se a evitar o exercício abusivo dos
direitos subjetivos. Aliás, no atual sistema constitucional, em que se
busca o desenvolvimento socioeconômico, sem desvalorização da
pessoa humana, não existe mais lugar para a “tirania dos direitos”.
Por isso, de uma vez por todas, não se pode mais reconhecer
legitimidade ou se dar espaço às denominadas “cláusulas leoninas
ou abusivas” (algumas são tão terríveis, que a denominamos
jacosamente, em nossas aulas “zoológicas”...), quer se trate de um
contrato de consumo, quer se trate de um contrato civil em geral.
(GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA Fº, Rodolfo, 2005, p. 86).
A par de todas as considerações feitas, tem-se a boa-fé objetiva
como elemento integrante do conceito de abuso do direito. E a mesma está a limitar
os interesses privados, impondo um comportamento ético e probo ao sujeito de
direito, que deve seguir um modelo de conduta pautada na lealdade, probidade,
transparência, assistência, confiança, entre outros princípios éticos.
3.4.4 “bons costumes.”
A eticidade é outra diretriz utilizada pelo legislador para a
elaboração do Código Civil atual. Para uma melhor elucidação da compreensão do
sentido e alcance do termo “bons costumes’, veja-se novamente a lição de
_____________
85
GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA Fº, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil:
Contratos. v IV. t. 1. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 86.
CAVALIERI FILHO
86
:
“Compreendem as concepções ético-jurídicas dominantes na
sociedade; o conjunto de regras de convivência que, num dado
ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e corretas
praticam. Haverá abuso neste ponto quando o agir do titular do
direito contrariar a ética dominante, atentar contra os hábitos
aprovados pela sociedade, aferidos por critérios objetivos e aceitos
pelo homem médio”.
Assim, os bons costumes nada mais são do que práticas
constantes, reiteradamente praticadas e aceitas no seio social. Na visão de
FRANCISCO AMARAL “significam o conjunto das regras morais aceitas pela
consciência social, correspondendo à moral objetiva, ao sentido ético impetrante na
comunidade social”.
87
Pelo que se denota, a título de exemplificação, todos os sujeitos de
um contrato que não observarem um senso ético, não agirem da forma pela qual a
sociedade reputa ética e moralmente correta, estará cometendo abuso do direito.
Cite-se o exemplo de uma pessoa que monta um “sex shop” em frente a um templo
religioso ou a um estabelecimento escolar infantil. Não há vedação legal expressa
para se estabelecer uma loja que comercialize produtos eróticos em frente uma
escola infantil ou um templo religioso. No entanto, rezam os bons costumes, ainda,
que imagens, adereços e referências ao erotismo e pornografia ferem os “bons
costumes”.
Assim, tem-se no termo “bons costumes” um conceito legal
determinado pela função que exerce em cada situação específica e não abstrata,
vez que é vago, impreciso e genérico, cabendo ao magistrado, no caso concreto,
_____________
86
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. rev. aum. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 180.
87
FRANCIULLI NETTO, Domingos, et al. O Novo Código Civil: Estudos em homenagem ao Professor
aferir, diante de valores tidos no seio social como éticos e morais, se referida
conduta feriu, ou não, os bons costumes.
Vale aqui a lição de JOSÉ AUGUSTO DELGADO
88
, que cita
NELSON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA ANDRADE NERY:
Há que se ter atenção, ainda, para o fenômeno que o Novo Código
Civil criou para ser resolvido pelo seu intérprete e aplicador. É o que
determina a transmudação dos conceitos legais indeterminados em
conceitos determinados pela função que exercem em cada situação
específica e não abstrata. A respeito, Nelson Nery Júnior e Rosa
Maria de Andrade Nery, ob. Cif, pg. 6, fazem as seguintes:
“Os conceitos legais indeterminados se transmudam em conceitos
determinados pela função que têm de exercer no caso concreto.
Servem para propiciar e garantir a aplicação correta, eqüitativa do
preceito ao caso concreto, Nos conteúdos das idéias de boa-fé (CC
422), bons costumes (CC 187), ilicitude (CC 186), abuso do direito
(CC 187) etc., está implícita a determinação funcional do conceito,
como elemento de previsão, pois o juiz deverá dar concreção aos
referidos conceitos, atendendo as peculiaridades do que significa
boa-fé, bons costumes, ilicitude ou abuso do direito no caso
concreto. Vale dizer, o juiz torna concreto, vivos, determinando-os
pela função, os denominados conceitos legais indeterminados. São,
na verdade, o resultado da valoração dos conceitos legais
indeterminados, pela aplicação e utilização, pelo juiz, das cláusulas
gerais. V. Larenz, Methodenlehre, cap. VI, 3, b, p. 482/483”.
E a justificativa na adoção deste conceito legal vem de MARIA
HELENA DINIZ, quando leciona
89
:
Deveras, a lei, por mais extensa que seja em suas generalizações,
por mais que se desdobre em artigos, parágrafos e incisos, nunca
poderá conter toda a infinidade de relações emergentes da vida
social que necessitam de uma garantia jurídica, devido à grande
exuberância da realidade, tão variável de lugar para lugar, de povo
para povo.
Miguel Reale. São Paulo: LTR, 2003. p. 163.
88
DELGADO, José Augusto. O Código Civil de 2002 e a Constituição Federal de 1988. Cláusulas
Gerais e Conceitos Indeterminados, 2003. Disponível em:
<http://www.classecontabil.com.br/servlet_art.php?id=118>. Acesso em 20 de maço de 2006.
89
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 3ª ed. São Paulo: Saraiva,
1991, p. 273.
Os bons costumes, são práticas reiteradas, constantes e notórias,
tidas no seio social como corretas. E é importante frisar, que os costumes variam de
cultura para cultura. Mais importante ainda é reconhecer que o Brasil é um país que
possui uma gama imensa de culturas, cada qual com práticas reiteradas no seio
social como corretas, e até mesmo contrapostas, ou seja, cada qual com seu
costume. Daí a sutileza do legislador, ao colocar no código, um termo que se ajusta
à nossa realidade social e cultural, que será determinado de acordo com o caso
concreto.
O Art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro (Decreto-
Lei nº 4.657/42) que reza que Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de
acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito, coloca o
costume como meio de se estabelecer, subsidiariamente, normas jurídicas, ou seja,
o costume é aplicado quando se esgotarem todas as possibilidades legais.
No abuso do direito o costume é forma imediata de se estabelecer
normas jurídicas. No artigo 187 há omissão quanto ao suporte fático hipotético e
abstrato. Deixa-se por conta dos “bons costumes” a definição dos conceitos e ações
do mundo dos fatos que irão incidir na norma. Ou seja, a lei coloca o costume como
fonte normativa imediata e direta: o titular de um direito que exorbita os bons
costumes incidiu na norma contida no artigo 187 do Código Civil. Aqui o costume é
classificado como da espécie secundum legem, ou seja, está previsto
expressamente na lei, que reconhece sua eficácia obrigatória.
4 NATUREZA JURÍDICA DO ABUSO DO DIREITO NO CÓDIGO CIVIL
O que se pretende neste capítulo é trazer considerações sobre a
natureza jurídica do abuso do direito, nomeadamente a dada pelo atual Código Civil.
Mas, antes de identificá-la e adentrarmos ao tema proposto, é necessário
primeiramente compreender a significação terminológica da “natureza jurídica”.
Muito se fala em natureza jurídica, mas pouco se transmite sobre o
seu significado. O dicionário AURÉLIO
90
dá a noção gramatical das palavras
“natureza” e “jurídico”, nos significados que aqui interessam:
Natureza (ê). [De natura + -eza] S.f. (...) 4. Espécie, qualidade: Vive
cheio de problemas de toda natureza. 7. Filos. Essência (5).
Jurídico. [Do lat. juridicu] Adj. 1. Relativo ou pertencente ao direito.
Por uma interpretação literal e gramatical da expressão “natureza
jurídica”, tem-se que ela é a espécie ou qualidade de algo relativo ou pertencente
ao direito. Ou melhor, é a qualidade de algo que está no mundo do direito.
Mas não é somente este o sentido e alcance da expressão. A
Academia Brasileira de Letras Jurídicas, em seu DICIONÁRIO JURÍDICO,
conceitua “natureza jurídica” como sendo “Filos. Diz-se da afinidade que um
instituto jurídico guarda para uma grande categoria jurídica por diversos pontos
_____________
90
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 1ª ed. 14ª impr.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 19xx, p. 808 e 964.
estruturais, de modo a nela poder ter ingresso classificatório.”
91
À apreciação terminológica natureza, conjugada à juridicidade, o
que nos interessa (natureza + jurídica), nos indica o dicionarista DE PLACIDO E
SILVA
92
:
Na terminologia jurídica, assinala, notadamente, a essência, a
substância ou a compleição das coisas. Assim, a natureza se revela
dos requisitos ou atributos essenciais e que devem vir com a própria
coisa. Eles se mostram, por isso, a razão de ser, seja do ato, do
contrato ou do negócio. A natureza da coisa, pois, põe em evidência
sua própria essência ou substância, que dela não se separa, sem
que a modifique ou a mostre diferente ou sem os atributos, que são
de seu caráter. É, portanto, a matéria de que se compõe a própria
coisa, ou que lhe é inerente ou congênita.
Identificar a natureza jurídica de um instituto é localizá-lo, dentro do
Ordenamento Jurídico, em que categoria jurídica o mesmo pertence, categoria esta
que contém institutos afins pelos pontos estruturais. A importância é a de que, se
um instituto possui os mesmos pontos estruturais, a ele é dado tratamento
semelhante por parte do direito.
Por uma interpretação sistemática, que é aquela que busca o
sentido e o alcance do preceito através da localização do instituto dentro do conjunto
do sistema, o abuso do direito, no atual Código Civil, é apenas ato ilícito. Ele está
previsto na Parte Geral, Livro III “Dos Fatos Jurídicos”, Título III “Dos atos ilícitos”.
Assim, tem-se a natureza jurídica outorgada ao abuso do direito no
atual Código Civil, ponto de partida para análise de suas implicações jurídicas, bem
como se verificará se, por possuir esta natureza jurídica, ao abuso do direito é dado
única e exclusivamente o mesmo tratamento do ato ilícito.
_____________
91
Dicionário Jurídico: Academia Brasileira de Letras Jurídicas/ J. m. Othon Sidou. 4ª ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1997. p. 530.
4.1 Do ato jurídico Ilícito
Identificar e conceituar o ato ilícito não é tarefa das mais fáceis. Em
seu estudo afloram celeumas e intrincadas discussões doutrinárias. Inclusive, sua
classificação é bastante complexa.
Inicialmente as palavras de SÉRGIO CAVALIERI FILHO
93
:
Chegamos, finalmente, ao ato ilícito, conceito da maior relevância
para o tema em estudo, por ser o fato gerador da responsabilidade
civil. Trata-se de uma conquista do Direito moderno, devida à obra
monumental dos pandectistas alemães do século XIX, que criaram a
parte geral do Direito Civil e, por conseguinte, deram-nos os
fundamentos científicos de toda a teoria da responsabilidade hoje
estudada. O Código Civil Alemão – BGB 1897 - foi o primeiro a
abandonar a tradicional classificação romana de delito e quase delito
e, no lugar dessa dicotomia, erigiu um conceito único – o conceito de
ato ilícito.
Mas e o conceito de ato ilícito? O próprio autor supracitado
questiona e fala da dificuldade da conceituação e a questão da ligação do conceito
de culpa ao ato ilícito
94
:
Mas o que se entende por ato ilícito? Inclui-se no seu conceito o
elemento culpa? Todos os autores reconhecem tratar-se de um
conceito complexo e controvertido. Assinala Caio Mário que a
construção dogmática do ato ilícito sofreu tormentas nas mãos dos
escritores dos séculos XVII e XIX e não melhorou muito nas dos
contemporâneos nossos; antes tem sidos de tal modo intrincada que
levou De Page a taxar de completa anarquia o que se passa no
terreno da responsabilidade civil, tanto sob o aspecto legislativo
quanto doutrinário, como, ainda, jurisprudencial.
Para melhor identificação do ato ilícito, propõe-se a sua localização
92
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. V. III e IV. Rio de Janeiro: Forense. 1989. p. 230.
93
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. rev. aum. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 29-30.
94
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. rev. aum. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 30.
no mundo dos fatos jurídicos.
Segundo o critério de classificação dos fatos jurídicos adotado por
PONTES DE MIRANDA, onde se leva em conta a conformidade e contrariedade do
fato jurídico com o direito, tem-se que os fatos jurídicos podem ser em
conformidade ao direito, ditos, assim, lícitos. Mas, “há outros, no entanto, cuja
concreção representa violação das normas jurídicas, e implica, assim, a negação do
direito; são os fatos contrários ao direito, geralmente chamados ilícitos”.
95
Tanto o ato ilícito como o ato lícito são jurídicos. Não se deve
confundir jurídico com ilícito. Assim o abuso do direito é um fato jurídico (lato
sensu), pois constitui o suporte fático de norma jurídica e, à sua concreção no
mundo recebe a incidência de norma, passando, então, a integrar o mundo jurídico.
Bem como, tem conseqüências nas relações jurídicas, na medida em que pode
criar, modificar ou extinguí-las.
Nas palavras de MARCOS BERNARDES DE MELLO
96
:
Parece-nos já haver deixado claramente estabelecido que jurídico
tem um sentido que abrange tudo aquilo, e somente aquilo, que, por
força da incidência da norma jurídica, entra no mundo jurídico. Para
se jurídico é preciso que o fato esteja previsto como suporte fáctico
de uma norma jurídica juridicizante e receba a sua incidência.
Ora, a ilicitude (=contrariedade a direito) constitui, exatamente,
elemento nuclear do suporte fáctico de uma série de atos e fatos que
estão regulados (previstos) por normas jurídicas, como são exemplos
os artigos do Código Civil sobre o ato ilícito e as normas penais em
geral. Além dessas, específicas, há a norma geral, implícita, segundo
a qual constitui o ilícito todo ato jurídico praticado em infração de
norma jurídica cogente. Dessas considerações parece resultar
evidente que, do ponto de vista do direito, não existe diferença
_____________
95
MELO, Marcos Bernardes. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Existência. 12ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 113.
96
MELO, Marcos Bernardes. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Existência. 12ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 115.
ontológica entre o lícito e o ilícito, uma vez que ambos são jurídicos
porque, e somente porque, recebem a incidência juridicizante de uma
norma jurídica. A diferença que existe entre eles é, em essência,
axiológica, nunca ontológica. E tanto é verdadeira essa observação
que um fato que hoje seja considerado (=valorado) ilícito pode,
amanhã, por modificações da norma jurídica, passar a ser
considerado lícito.
E continua do citado autor, com outro argumento para demonstrar a
juridicidade do ato ilícito
97
:
Sob este aspecto, o fato contrário a direito é tão jurígeno quanto o
fato jurídico lícito porque, se não cria um direito para quem o pratica,
o faz nascer para quem sofre as conseqüências. O sentido restritivo
que se dá ao adjetivo jurígeno, de fato que apenas gera direitos e
obrigações para o agente segundo a sua vontade manifestada, não
tem fundamento na realidade jurídica: jurígeno não é somente o que
cria direitos e obrigações queridos, mas o que cria direitos e
obrigações conforme a imputação do ordenamento jurídico, sejam ou
não queridos. Basta lembrar que mesmos dos atos jurídicos lícitos,
na sua mais lídima expressão voluntarista, o negócio jurídico,
nascem muitos direitos e muitas obrigações que não têm fundamento
no querer das pessoas, e sim nas imperiosas disposições
normativas. Não vemos, portanto, como aceitar a objeção.
Inclusive, estes argumentos que demonstram a juridicidade do ato
ilícito, por conseguinte do abuso do direito, são as mesmas teses que refutam a
teoria negativista do abuso do direito, conforme retro mencionado.
Prosseguindo no critério de classificação dos fatos jurídicos
adotado, após a identificação do fato jurídico lato sensu em conforme a direito e
contrário a direito, passa-se ao segundo um segundo elemento distintivo, qual seja,
a presença, ou não, de conduta humana volitiva à base do suporte fáctico. Há
alguns em que decorrem da natureza ou do animal, precindindo de um ato humano;
são os fatos jurídicos stricto sensu, lícitos e ilícitos. Outros, apesar de decorrerem
_____________
97
MELO, Marcos Bernardes. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Existência. 12ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 116.
de um ato humano, a vontade não é relevante, pois o resultado tem mais realce do
que a vontade; são os atos-fatos jurídicos, lícitos e ilícitos. Há outros em que a
vontade, além de relevante, constitui o cerne do suporte fáctico; são os atos
jurídicos lato sensu e atos ilícitos.
Por ora, após alocado o ato ilícito dentre os fatos jurídicos, e
constatado que o ato ilícito é jurídico, e que o mesmo importa em uma
contrariedade a direito, porque se configura em situações que consubstanciam a
não realização dos fins da ordem jurídica, cumpre descrevê-lo, vez que o mesmo é
o núcleo essencial do presente estudo.
As situações de violação da norma jurídica, portanto contrariedade
a direito que, quando praticadas ou relacionadas a alguém imputável, havendo
danos patrimoniais ou não, são ilícitas.
São ilícitas as seguintes situações, conforme ensina MARCOS
BERNARDES DE MELLO
98
:
(i) Todo ordenamento jurídico, com maior ou menor intensidade,
contém, como básico, o princípio da incolumidade das esferas
jurídicas individuais, consideradas estas, em sentido lato, o conjunto
de direitos e deveres mensuráveis, ou não, economicamente,
relacionados a alguém. Em conseqüência desse princípio,
concretizado na fórmula latina do neminem laedere, a ninguém é
dado interferir, legitimamente, na esfera jurídica alheia, sem o
consentimento jurídico, donde haver um dever genérico, absoluto, no
sentido de que cabe a todos, de não causar danos aos outros. Nada
impede, porém, que ato humano, consciente ou inconsciente, e
mesmo fato da natureza ou do animal, atinja esfera jurídica de
outrem, causando-lhe danos. (...) Mas não somente se há danos
materiais há ilicitude. Por isso, são também ilícitas situações em que:
(ii) nas relações jurídicas de direito relativo, ditas também de crédito
ou obrigações, o devedor: (a) descumpre a sua obrigação ou a
_____________
98
MELO, Marcos Bernardes. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Existência. 12ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 217-218.
cumpre mal (adimplemento ruim) e incide em mora; (b) culposamente
impossibilita a prestação;
(iii) o ato é realizado em violação de direito absoluto de natureza
pessoal, como os direitos da personalidade (= direito à vida, à saúde,
à liberdade, à honra, ao nome, à imagem, ao corpo), ou real (= direito
de propriedade, e. g.);
(iv) há infração de interesse juridicamente protegido que não constitui
direito subjetivo (caso dos chamados interesses difusos, que
preferimos denominar direitos transindividuais, de interesse religioso,
de interesse moral, e. g.);
(v) existe abuso ou exercício irregular do direito, como ocorre quando
o pai castiga imoderadamente o filho;
(vi) ou alguém pratica ato jurídico contrariando norma jurídica
cogente (e.g.. quando alguém firma contrato sobre objeto ilícito).
No tocante ao fato ilícito, a contrariedade ao direito, bem como a
imputabilidade do fato, são elementos de sua existência, sem os quais o mesmo
não é considerado jurídico, não surtindo, assim, qualquer efeito jurídico. Sem que
concorram estes dois elementos, concomitantes, não há ilicitude. Os demais
elementos, tais como o dolo, culpa, violação a direito absoluto, dever de indenizar,
dentre outros, que se agregam à contrariedade ao direito e à imputabilidade, são
apenas elementos completantes do cerne do suporte fático do fato ilícito.
Nesse aspecto, novamente MARCOS BERNARDES DE MELLO
99
:
Esses dados, porém, entram na composição do suporte fáctico das
espécies respectivas como elementos completantes do seu cerne
(núcleo), portanto, da contrariedade a direito e da imputabilidade que,
em todos eles, são pressupostos. Por isso, variam de espécie a
_____________
99
MELO, Marcos Bernardes. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Existência. 12ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 228.
espécie e não podem constituir o cerne do fato jurídico ilícito lato
sensu, mas, apenas, elementos que completam o núcleo de seu
suporte fáctico. Os fatos que permanecem constantes e inalteráveis
em todas as espécies de fato ilícito são a contrariedade a direito e a
imputabilidade do agente, razão pela qual consubstanciam a própria
essência da ilicitude, e representam a differentia specifica que a
caracteriza e a distingue dos fatos jurídicos lícitos.
Assim, quando a doutrina se refere à culpabilidade, ao dano ou ao
dever de indenizar como dados caracterizadores do ilícito, comete o
equívoco de confundir elementos completantes do núcleo do suporte
fáctico com o seu próprio cerne.
Desse raciocínio, denota-se que o fato ilícito não pressupõe,
necessariamente, o dano, vez que este não é elemento essencial, mas sim
completante.
Cumpre, agora tecer considerações acerca da taxinomia dos fatos
ilícitos, visando, com este sucinto estudo, identificar o abuso do direito como foi
categorizado no atual Código Civil: ato ilícito.
Como primeiro critério classificatório, levando em consideração a
natureza do direito ofendido (violado), ou melhor, do dever descumprido, os fatos
ilícitos podem ser absolutos ou relativos. Serão fatos ilícitos absolutos se entre o
agente do ato ilícito e o sujeito passivo existir uma relação jurídica de direito
absoluto, como de direito da personalidade e propriedade, por exemplo. Será fato
ilícito relativo, se há uma relação jurídica de direito relativo, resultante de um ato
jurídico lato sensu (ato jurídico stricto sensu ou negócio jurídico), é o caso do
descumprimento contratual. Nesta última, não é somente a chamada culpa
contratual que encerra ilícitos relativos, mas outras como relações de parentesco, de
tutela, curatela, gestão de negócios, etc.
Identificando-se a natureza do fato ilícito em absoluto ou relativo,
tem-se que a obrigação decorrente de ilícito absoluto é regida pelo Art. 186 ou 187
do Código Civil, já se o ilícito é relativo, a ele são aplicadas as normas próprias,
como por exemplo, a teoria geral do contrato. O que é muito importante, vez que
ambos os regimes jurídicos têm disciplinamentos diversos, inclusive no tocante à
prescrição.
Outro critério de classificação dos fatos ilícitos é aquele que toma o
suporte fáctico e a presença ou ausência de um ato humano volitivo. Assim, à
semelhança da clasificação dos fatos lícitos, o fato ilícito lato sensu pode ser
desmembrado em fato stricto sensu ilícito, ato-fato ilícito e ato ilícito lato sensu. São
fatos ilícitos lato sensu aqueles em que não há uma ação humana, mas a
juridicidade do fato está vinculada a alguém, criando obrigações a quem esteja a ele
ligado como imputável.
Quando alguém responde pelos prejuízos decorrentes de caso
fortuito, ou força maior, como nas hipóteses dos arts. 399, 492, § 1º, ex arg., 575.
667, § 1º, 862, 868 do Código Civil, por exemplo, caracteriza-se situação em que
puro evento da natureza caracteriza contrariedade a direito e, portanto, ilicitude.
100
No ato-fato ilícito há contrariedade a direito em decorrência de ato-
fato, ou seja, do ato humano em que a vontade é abstraída e não tem relevância,
importando mais os resultados fácticos do que a própria vontade. Há conduta
humana, mas a lei a recebe como avolitiva. Os dados psicológicos não são levados
em consideração, vez que a vontade não constitui elemento relevante do suporte
fáctico.
São exemplos de ato-fatos ilícitos
101
:
_____________
100
MELO, Marcos Bernardes. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Existência. 12ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 236.
101
MELO, Marcos Bernardes. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Existência. 12ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 237.
Quando alguém faz mau uso de sua propriedade e causa dano a
terceiro, há um ato-fato ilícito; não importa a vontade de prejudicar,
mas o simples fato do prejuízo (ou ameaça) à segurança, sossego e
saúde dos vizinhos. O mesmo ocorre quando alguém toma posse de
bem com violação da posse de outrem.
Na gestão de negócio iniciada contra a vontade manifestada ou
presumível do proprietário (Código Civil, art. 862) há também ato-fato
ilícito. É preciso notar que o ato-fato ilícito é constituído pelo início da
gestão. Se a gestão de negócios for iniciada regularmente, trata-se
de ato jurídico stricto sensu, e se ocorre alguma situação ilícita
durante a gestão, a hipótese é de ilícito relativo (...).
Já o ilícito lato sensu, diferencia-se das demais espécies ilícitas
pela relevância da vontade determinante da conduta, que inexiste no fato stricto
sensu ilícito e no ato-fato ilícito.
Constitui ato ilícito lato sensu toda ação ou omissão voluntária
culposa ou não, conforme a espécie, praticada por pessoa imputável
que, implicando infração de dever absoluto ou relativo, viole direito
ou cause prejuízo a outrem.
102
São dois os critérios para a classificação do ato ilícito.
Primeiramente o critério que considera a configuração dos elementos do suporte
fáctico de cada espécie de ato ilícito, segundo variações de elementos de imputação
e da natureza do direito ofendido ou do dever descumprido. Assim, o ato ilícito pode
ser civil ou criminal.
Aqui, nos interessa o estudo do ilícito civil, que se subdivide em ato
ilícito stricto sensu (absoluto) e ato ilícito relativo. O primeiro consiste naquela figura
definida no art. 186 do Código Civil, onde não há um dever resultante de relação
jurídica (com exceção das relações jurídicas onde há um sujeito passivo universal,
como no caso dos direitos reais e direitos da personalidade) e o segundo na quebra
_____________
102
MELO, Marcos Bernardes. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Existência. 12ª ed. São Paulo:
de um dever decorrente de negócio jurídico ou ato jurídico stricto sensu, este
também denominado de ilícito contratual.
O segundo critério de classificação do ato ilícito, é o que leva em
conta a sua eficácia jurídica produzida. Por este critério, o ato ilícito poderá ser
indenizativo, caducificante e invalidante. Será indenizativo quando seu efeito
consistir na geração de dever de indenizar os danos causados. Caducificante é o ato
ilícito cuja eficácia consisite na perda (caducidade) de um direito, como a “perda do
poder familiar nas situações do art. 1628 do Código Civil, bem assim os casos de
indignidade e de inabilitação do falido para exercer cargos públicos e o comércio,
por exemplo.”
103
Por fim, os invalidantes, que são atos de violação de direito, cuja
conseqüência seja sua invalidade. Por esta classificação, são ilícitos invalidantes os
atos nulos ou anuláveis, vez que, na opinião dos doutrinadores que defendem a
existência desta categoria, os atos inválidos constituem sanções que o sistema
jurídico impõe a essa espécie de ilicitude. A divergência doutrinária vem expressa na
doutrina de MARCOS BERNARDES DE MELLO
104
:
Essa categoria de ato ilícito é reconhecida por quase todos os
doutrinadores, desde quando consideram o ato inválido como
infingente da ordem jurídica. Apesar disso, recusam-se a classificá-
los como atos ilícitos. Outros doutrinadores, como Norberto Bobbio e
Herbert L. A. Hart, por exemplo, são mesmo explícitos em negar que
sejam tipicamente ilícitos os atos jurídicos eivados de nulidade. No
entanto, Pontes de Miranda e August Thon, dentre outros,
reconhecem a ilicitude de tais atos, sendo que o primeiro os
classifica, especificamente, como uma espécie de ilícito, a que
chama ilícito nulificante, sem, contudo, dedicar-se a discutir as
divergências doutrinárias a respeito.
Saraiva, 2003. p. 238-239.
103
MELO, Marcos Bernardes. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Existência. 12ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 247.
104
MELO, Marcos Bernardes. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Existência. 12ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 248.
Após a exposição da classificação das espécies de atos ilícitos,
aflora uma grande dificuldade em adequar o abuso do direito como uma das
espécies apresentadas.
O abuso do direito é um ato, pois decorre de um agir humano, onde
a vontade este no cerne do suporte fáctico. É, para efeitos do art. 187 do Código
Civil, um ato ilícito civil. Poderá ser absoluto ou relativo, conforme o caso. É
indenizativo, pois dele, conforme previsão expressa do art. 927 do Código Civil,
decorre o dever de indenizar. Pode, ainda, importar, conforme será adiante
analisado com mais acuidade, em invalidade do ato.
Malgrado o esforço em adequar o ato ilícito decorrente do abuso do
direito em alguma das categorias descritas, as classificações ora apresentadas não
são aptas a identificar precisamente o abuso do direito, razão pela qual, agora, após
a vigência do atual Código Civil, a revisão da classificação do ato ilícito é medida
que se impõe, criando-se, quem sabe, uma nova categoria de ato ilícito civil.
Por seguirem esta classificação, há críticas no sentido de que o
abuso do direito não seria ato ilícito. No entanto não é somente esta classificação
que prevalece.
SÉRGIO CAVALIERI FILHO fala do duplo aspecto da ilicitude
(objetiva e subjetiva), propondo uma classificação do ato ilícito que obedeça esta
dicotomia. Este autor classifica o ato ilícito em sentido estrito e amplo, uma
classificação que consegue açambarcar todas as espécies de ilícitos, inclusive o
abuso do direito. As palavras do autor
105
:
Esse duplo aspecto da ilicitude nos permite falar do ato ilícito
também com duplo sentido.
_____________
105
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. rev. aum. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 32-33.
Em sentido estrito, o ato ilícito é o conjunto de pressupostos da
responsabilidade – ou, se preferirmos, da obrigação de indenizar. Na
verdade, a responsabilidade civil é um fenômeno complexo de
requisitos diversos intimamente unidos; surge e se caracteriza uma
vez que seus elementos se integram. Na responsabilidade subjetiva,
como veremos, serão necessários, além da conduta ilícita, a culpa, o
dano e o nexo causal. Esse é o sentido do art. 186 do Código Civil. A
culpa está ali inserida como um dos pressupostos da
responsabilidade subjetiva. A culpa é, efetivamente, o fundamento
básico da responsabilidade subjetiva, elemento nuclear do ato ilícito
que lhe dá causa. Já na responsabilidade objetiva a culpa não
integra os pressupostos necessários para a sua configuração.
Em sentido amplo, o ato ilícito indica apenas a ilicitude do ato, a
conduta humana antijurídica, contrária ao Direito, sem qualquer
referência ao elemento subjetivo ou psicológico. Tal como o ato
ilícito, é também uma manifestação de vontade, uma conduta
humana voluntária, soe que contrária à ordem jurídica.
Diante da responsabilidade objetiva e subjetiva, diante ainda do
abuso do direito, o conceito de ato ilícito, tal como concebido pelos clássicos, tornou-
se insuficiente e insatisfatório para englobar todas as formas ilícitas.
Esta idéia de ato ilícito em sentido amplo é necessária, na medida
em que
106
:
o Código, após conceituar o ato ilícito em sentido estrito em seu art.
186, formulou outro conceito de ato ilícito, mais abrangente, no seu
art. 187, no qual a culpa não figura como elemento integrante, mas
sim os limites impostos pela boa-fé, bons costumes e o fim
econômico ou social do Direito. O abuso do direito foi aqui
configurado como ato ilícito dentro de uma visão objetiva, pois boa-
fé, bons costumes, fim econômico ou social nada mais são do que
valores éticos-sociais consagrados ela norma em defesa dos bem
comum, que nada tem a ver com culpa.
Esta classificação do ato ilícito com um duplo aspecto apresentada
por SÉRGIO CAVALIERI FILHO consegue atender a sistemática apresentada pelo
atual Código Civil, que apresenta um novo modelo de ilicitude. O abuso do direito
_____________
106
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. rev. aum. São Paulo:
está, assim, incluído na categoria jurídica de ato ilícito em sentido amplo, sua
natureza jurídica.
4.2 Breves considerações sobre a ilicitude no atual Código Civil
Reconhecer o abuso de direito como instrumento hábil a ensejar
indenização decorrente de responsabilidade civil é questão um tanto quanto
tormentosa, em razão da estreita separação entre o exercício regular de um
determinado direito e seu exercício abusivo.
A fim de melhor elucidar o tema ora proposto, necessário se faz
lembrar que a Teoria do Abuso do Direito não era expressamente abordada pelo
Código Civil de 1916, sendo que os doutrinadores vislumbravam sua existência na
dicção do artigo 160, inciso I, daquele diploma legal.
Extraía-se do aludido dispositivo, a contrario sensu, que os atos
praticados no exercício irregular de um direito seriam considerados como ilícitos.
Observe-se que o legislador de 1916 não consagrou diretamente a tese do abuso do
direito; ao contrário, equiparou-o ao ato ilícito, atribuindo responsabilidade ao titular
pelos danos causados a terceiros.
Esse tratamento legislativo em nada contribuiu para a difusão da
Teoria do Abuso do Direito em nosso ordenamento, fazendo com que, tanto a
doutrina quanto a jurisprudência pouco se ocupassem acerca de tão importante
instituto. Restou, assim, à jurisprudência, a árdua missão de estabelecer os
contornos e aplicações ao abuso do direito, evidentemente com dissonância entre os
entendimentos. Cabia, pois, aos Tribunais, buscar soluções satisfatórias para
situações concretas que não se amoldavam à teoria do ato ilícito.
Malheiros, 2005. p. 33-34.
Já o Código Civil de 2002 inseriu expressamente em seu corpo
normativo a previsão do abuso do direito, positivando aquilo que doutrina e
jurisprudência há muito preconizavam, muito embora não o tenha trazido em Título
próprio, tendo em vista que foi incluído no Título atinente aos atos ilícitos:
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao
exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim
econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
A despeito da aparente proximidade entre o abuso do direito
previsto no Código Civil de 1916 e aquele previsto no atual Código Civil, ambos, nem
de longe, se confundem. A regra do artigo 160, I do Código anterior foi apreendida
pelo artigo 188, I, do Código atual.
O abuso não mais aparece relacionado ao exercício irregular de um
direito ou prerrogativa individual, posto que passou a assumir função limitadora
destes, mediante a imposição de limites éticos, os quais serão estabelecidos
conforme a boa-fé objetiva, os bons costumes e a função social e econômica dos
direitos.
O Código Civil de 2002 rompeu com a vetusta construção
dogmática e ideológica que baseava a noção de ilicitude a partir do nascimento do
dever de indenizar.
Referida ruptura é facilmente verificada quando se analisa
comparativamente o artigo 159 do Código Civil de 1916 e o artigo 186 do Código
Civil de 2002: este não reproduz a previsão expressa na parte final daquele, qual
seja, “fica obrigado a reparar o dano”.
De acordo com a atual visão de responsabilidade trazida pelo atual
Código Civil, a obrigação de indenizar ganhou autonomia, sendo tratada em Título
próprio, distinto da ilicitude do negócio jurídico. A obrigação de indenizar atualmente
está expressa no artigo 927 do diploma civilista.
Vê-se, pois, o claro desfazimento do elo anteriormente existente
entre a ilicitude e o dever de indenizar, entre a ilicitude civil e o dano.
A visão clássica do direito civil, onde o patrimônio constituía sua
categoria principal, levou a doutrina a elaborar a Teoria dos Atos Ilícitos
fundamentada na noção de dano e responsabilidade, seguindo a tradicional
distinção entre responsabilidade contratual e extracontratual.
Em razão dessa conexão, a ilicitude civil era vista de forma
vinculada à culpa, ao dano e à conseqüência indenizatória, sendo mera condição da
responsabilidade, não possuindo campo operativo próprio. Ademais, através dessa
concepção, não era possível se vislumbrar aqueles casos em que o dever de
indenizar existe independentemente da prática de um ato ilícito.
O atual Código Civil rompeu com essa concepção clássica, tratando
o dever de indenizar em Título diverso da ilicitude e estatuindo a regra prevista no
artigo 187 (abuso do direito).
4.3 Críticas ao enquadramento pelo atual Código Civil da Teoria do Abuso do
Direito no título que trata dos atos ilícitos
É grande a discussão existente quanto à autonomia dogmática do
abuso do direito. O abuso do direito teria autonomia dogmática pelo argumento de
que seria uma categoria autônoma, distinta do ato ilícito, pois a natureza jurídica de
um instituto não pode ser determinada pela localização topográfica erigida pelo
Código Civil.
Dentre os adeptos à esta teoria que nega o enquadramento do
abuso do direito como ato ilícito HELOÍSA CARPENA, que assim se posiciona
107
:
Todo processo de construção doutrinária, aqui resumidamente
descrito, resultou em um conceito de ato abusivo que não se
confunde com o de ato ilícito. E esta distinção é particularmente
importante, visto que permite a exata compreensão do instituto.
O que diferencia as duas espécies de atos é a natureza da violação a
que eles se referem. No ato ilícito, o sujeito viola diretamente o
comando legal, pressupondo-se então que este contenha previsão
expressa daquela conduta. No abuso, o sujeito aparentemente age
no exercício do seu direito, toda via, há uma violação dos valores que
justificam o reconhecimento deste mesmo direito pelo ordenamento.
Diz-se, portanto, que no primeiro, há inobservância de limites lógico-
formais e, no segundo, axiológico-materiais. Em ambos, o agente se
encontra no plano da antijuridiciadade: no ilícito, esta resulta da
violação da forma, no abuso, do sentido valorativo. Em síntese, o ato
abusivo está situado no plano da ilicitude, mas com o ato ilícito não
se confunde, tratando-se de categoria autônoma da antijuridicidade.
No entanto, como já assinalado, a ilicitude no Código Civil tem um
duplo aspecto: ato ilícito em sentido estrito e amplo. O abuso do direito não é
categoria jurídica autônoma, vez que foi erigido como ato ilícito e deve ser entendido
como tal.
SÉRGIO CAVALIERI FILHO confirma, baseando seu entendimento
na doutrina do jurista lusitano ANTUNES VARELA
108
:
A segunda conclusão que se impõe é a de estar definitivamente
afastado o entendimento doutrinário, embora minoritário, de que o
abuso do direito não configura ato ilícito. A lei diz que o é, embora
com características próprias e conteúdo especial. Não se trata, aqui,
de ofensa frontal de um direito de outrem, nem da violação a uma
norma tuteladora de um interesse alheio, como ocorre normalmente
com todo e qualquer ato ilícito; mas do exercício anormal do direito
próprio. Enquanto no primeiro (ato ilícito) a conduta não encontra
_____________
107
CARPENA, Heloísa. O abuso do Direito no Código de 2002: Relativização de direitos na ótica civil-
constitucional. A parte Geral do novo código civil: estudos na perspectiva civil-consitucional/ Coord.
Gustavo Tepedino. 2ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 381.
108
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. rev. aum. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 171.
apoio em dispositivo legal e até praticada contra dever jurídico
preexistente, no segundo (abuso do direito) a conduta é respaldada
em lei, mas, como já ressaltado, fere ostensivamente o seu espírito.
O titular do direito, “embora observando a estrutura formal do poder
que a lei lhe confere, excede os limites que lhe cumpre observar, em
função dos interesses que legitimam a concessão desse poder. Há
uma ‘contradição entre o modo ou o fim com o titular exerce o direito
e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra
adstrito’”
Igualmente RUI STOCO, que refuta a tese de SILVIO DE SALVO
VENOSA e LIMONGI FRANÇA que negam ser o abuso do direito um ato ilícito
109
:
Preconiza VENOZA (1988, p. 261) que não se deve colocar o abuso
do direito dentro da categoria de atos ilícitos, pois nestes estará
sempre presente a ação ou omissão voluntária ou o conceito de
culpa, ocasionando violação de direito o prejuízo de outrem.
Entende que o abuso de direito se situa a meio caminho, ou seja,
“consiste em um ato jurídico de objeto lícito, mas cujo exercício
levado a efeito sem a devida regularidade, acarreta um resultado que
se considera ilícito”. Nesse mesmo sentido se posicionou o saudoso
e inesquecível LIMONGI FRANÇA (1977, p. 45), ao qual o autor por
último citado faz referência expressa ao posicionar-se.
Não obstante, VENOSA (ob. cit.) resta admitir que, “para efeitos
práticos, como o resultado é de um ato ilícito, os efeitos do abuso de
direito são os mesmos do ato ilícito”.
Impõe-se, mais uma vez, discordar desse entendimento.
Recorde-se que o novo Código Civil (Lei 10.406, de 10.01.2002)
situa o abuso do direito no campo dos atos ilícitos ao preceituar:
“comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social,
pela boa-fé ou pelos bons costumes”. (art. 187)
Como ficou esclarecido acima o ato originalmente lícito invade o
campo da ilicitude quando cometido com excesso ou abuso. Neste
_____________
109
STOCO, Rui. Abuso do Direito e Má-fé Processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 74.
momento torna-se antijurídico. Com esta qualificação converte-se em
ato ilícito.
Isto é de meridiana compreensão, razão pela qual não encontrou
forte disceptação da doutrina, salvo Pedro Baptista MARTINS (1947,
p. 84), que repudia a tese.
Ao contrário, é entendimento quase pacífico no meio jurídico, sendo
certo que de acordo com esta concepção, o elemento intencional,
consistente no animus nocendi, é que transforma em ato ilícito o
exercício do direito (este entendimento, entre outros, de SOUDART,
RIPERT, BONNECASE e SALEILLES).
No mesmo sentido JORGE AMERICANO
110
:
O abuso fórma modalidade especial do acto illicito exactamente
porque se acoberta num direito exercido pelo agente. A não ser
assim, não haveria razão para constatar taes requisitos, porque a
simples ausencia de direito, com damno para outrem, caracteriza a
generalidade dos actos illicitos.
JUDITH MARTINS COSTA, com clareza que lhe é peculiar, indica
o novo conceito de ilicitude no atual Código Civil, para o fim de espancar a idéia de
que o legislador se equivocou em erigir o abuso do direito como ato ilícito
111
:
Na insurgência de um novo Código, tão importante quanto prestar
atenção à sua letra é observar a sua estrutura: a estrutura “fala” e
devemos estar aptos a escutar a sua voz. Exemplo paradigmático
dessa eloqüência é o novo modelo de ilicitude civil, comandada pelos
arts. 186 e 187.
SÉRGIO CAVALHIERI FILHO, arremata
112
:
O art. 187 estabelece: “Também comete ato ilícito...” – esta
_____________
110
AMERICANO, Jorge. Do Abuso do Direito no Exercício da Demanda. 2ª ed. São Paulo: Saraiva &
Comp Editores, 1932. p. 40.
111
MARTINS-COSTA, Judith. Breves anotações acerca do conceito de ilicitude no novo Código Civil
(estruturas e rupturas em torno do art. 187). Elaborado em maio de 2003. Disponível em:
<http://mundojurídico.adv.br/html/artigos/documentos/texto382.htm. Acesso em: 08 nov. 2004.
112
CAVALIERI FILHO. Responsabilidade Civil no Novo Código Civil. Revista da EMERJ. v.6, n. 24.
2003. p.36.
expressão tem uma relevância enorme, porque anuncia um outro ato
ilícito, diferente daquele que foi conceituado no art. 186. E quem
cometer esse ato ilícito do art. 187, também vai ficar obrigado a
indenizar pela norma do art. 927.
A ilicitude do abuso do direito tem o seguinte sentido: o ato é lícito
no antecedente, mas, exorbitando limites legais, torna-se ilícito no conseqüente.
Este ilícito conseqüente, que tem natureza jurídica de ato ilícito lato sensu, é o
abuso do direito, embora com características e conteúdo diversos do ato ilícito stricto
sensu.
4.4 Divergências doutrinárias acerca da aplicação da teoria invalidade ao
abuso do direito
Ao se referirem ao Art. 187 do Código Civil, além do dever de
indenizar, parcela da doutrina
113
, cita como decorrências do ato abusivo a
invalidade do ato. Justifica-se esta afirmação na tese de que, se ação humana
exorbita seus fins sociais ou econômicos, contraria a boa-fé ou os bons costumes,
igualmente a caracterizar ato ilícito, agride a ordem jurídica como um todo, não
podendo subsistir.
Nesse sentido RUI STOCO
114
:
Não havendo dano, não há a reparar à aquele que foi atingido pelo
ato abusivo.
Contudo, ainda assim, impõe-se convir que um ato escorado no
direito positivo que, portanto, se mostra lícito na sua morfologia ou
aspecto formal, mas, na sua gênese ou formação, desborda para o
excesso abusivo, vicia-se e contamina-se. Nesse momento ingressa
no campo das nulidades, de modo que, como o prejuízo daí
decorrente só interessa ao terceiro prejudicado, a só ausência desse
_____________
113
Nelson Nery Junior, Rosa Maria Andrade Nery, Rosalice Fidalgo Pinheiro e Rui Stoco.
114
STOCO, Rui. Abuso do Direito e Má-fé Processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 67.
prejuízo não retira a eiva daquele ato, pois ofende o ordenamento
jurídico como um todo.
Antes de ofender o particular, o ato abusivo ofende a sociedade e a
higidez dele próprio.
Igualmente ROSALICE FIDALGO PINHEIRO
115
:
Mas ocorre que o abuso do direito sempre foi equiparado ao ato
ilícito, nos efeitos, ensejando, na maioria das vezes, a sanção
referida. Hoje, a ampliação de seu conceito tornou insuficiente este
regime repressivo, pois em muitos casos restaria ineficaz. Há
portanto, uma diversidae de sanções para o ato abusivo, à qual
poderia se recorrer para diferenciá-los.
Nesse sentido, nem sempre há que se aplicar a obrigação de
indenizar ao abuso do direito, sendo necessário que sobrevenha o
dano, tal qual como acontece com o ato ilícito. Assim alega-se a
respeito de algum vício, como aquele que se revela na realização d
eum negócio jurídico, ato jurídico, que se revela abusivo.
E a supracitada autora transcreve a doutrina de ANTUNES
VARELA, onde indica que
116
:
“... resta entretanto acentuar que os efeitos jurídicos do abuso do
direito não se confinam, como erroneamente poderia supor-se em
face da mais antiga jurisprudência francesa, à obrigação de indenizar
os danos causados a outrem pelo exercício do abuso do direito.
Podem ser outros, muito diferentes, os efeitos decorrentes da ofensa
do elemento axiológico-normativo do direito, consoante a natureza da
vilação cometida.”
Dessa forma, para esta corrente, ante a gravidade da violação, o
combate ao ato abusivo não pode se restringir a uma eventual ação de reparação
_____________
115
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. O Abuso do Direito e as Relações Contratuais. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002. p. 121-122.
116
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. O Abuso do Direito e as Relações Contratuais. Rio de Janeiro:
civil proposta por particular prejudicado. Deve ficar, outrossim, a cargo do Estado,
que poderá, nas mais diversas situações declarar de ofício as nulidades. Para
Nelson Nery
117
, a referida eiva encontraria fundamento legal no art. 166, inciso VI do
Código Civil.
Conforme já alinhado, compreendendo o abuso do direito
sistematicamente disposto dentro do Código Civil, identificando-o com os demais
institutos igualmente localizados e que lhes são correlatos, por se articularem de
uma maneira lógica, chega-se à conclusão de que o abuso do direito tem a natureza
jurídica de ato ilícito. E se é ato ilícito, dele decorrem as implicações jurídicas do
tratamento que o ordenamento dispensa ao ato em desconformidade com o direito.
Não por outra razão que o legislador incluiu no Art. 927 do Código Civil, que está
sujeito ao dever de reparar, tanto o ato ilícito do Art. 186 como o do Art. 187 do
Código Civil.
Nem se diga que ao abuso do direito se aplicam institutos como o
da invalidade do negócio jurídico, também aplicado aos atos jurídicos lícitos. Veja-se
os motivos pelos quais esta tese, que não se encontra semelhante nos manuais
utilizados para a consecução da presente dissertação, deve proceder.
O Código divide muito bem a Parte Geral em três livros:
primeiramente trata das pessoas; após, trata dos bens; e, por último, trata dos Fatos
Jurídicos, compreendidos como fatos jurídicos lato sensu.
Conforme o critério de classificação pontiana, adotada, dentre
outros seguidores de PONTES DE MIRANDA, por MARCOS BERNARDES DE
Renovar, 2002. p. 122.
117
NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria Andrade. Código Civil Anotado e legislação
extravagante. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 256.
MELO
118
e ANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO
119
, os Fatos Jurídicos Lato Sensu
podem ser: conforme o direito (lícitos) e contrários ao direito (ilícitos).
Os fatos jurídicos lato sensu conformes ao direito (lícitos)
subdividem-se em três categorias, seguindo ainda os critérios de classificação de
PONTES DE MIRANDA, em: fato jurídico stricto sensu; ato-fato jurídicos; e ato
jurídico lato sensu. O ato jurídico lato sensu, subdivide-se em: ato jurídico stricto
sensu e negócio jurídico.
Ao ato jurídico lato sensu o Código dispensou uma maior acuidade,
tendo em vista que nestes, o elemento volitivo está no cerno de seu suporte fático,
demandando uma série de questões que implicam um maior disciplinamento por
parte do legislador.
Os fatos jurídicos lato sensu contrários ao direito (ilícitos) também
se subdividem. Esta subdivisão e classificação será abordada posteriormente, o que
importa, no momento, é indicar que o ato ilícito de que o abuso do direito trata é uma
espécie de fato jurídico lato sensu contrário ao direito (ilícito).
Pois bem. No livro que trata dos fatos jurídicos lato sensu, o Código
dividiu-o em cinco títulos. Tratou primeiramente do fato jurídico que mais suscita
controvérsias e a intervenção do direito para a solução de controvérsias: o negócio
jurídico, que tem no contrato a sua expressão mais acabada.
Ao tratar do negócio jurídico (que é um ato jurídico lato sensu lícito)
açambarcou várias questões, como por exemplo, acerca da invalidade do negócio
jurídico (nulidade e anulabilidade), dedicando oitenta e um artigos para discipliná-lo.
_____________
118
MELO, Marcos Bernardes. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Existência. 12ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2003.
119
AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. 2.ed. São
Paulo: Saraiva, 1986.
No “Título II - Dos Atos Jurídicos Lícitos”, posterior ao tratamento do
negócio jurídico, o legislador dedicou apenas um artigo, noticiando no Art. 185 que
“Aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que
couber, as disposições do Título anterior.”
Merece destaque na redação do Art. 185 os termos “atos jurídicos
lícitos” e “Título anterior”. O primeiro termo destacado exclui a idéia de aplicação
para os atos jurídicos ilícitos, que são tratados no próximo título, o Título III “Dos atos
jurídicos ilícitos.” O segundo termo destacado, indica que a mesma disciplina
dedicada ao negócio jurídico (invalidade, p. exemplo) não é aplicada à outros fatos
jurídicos lato sensu, sejam lícitos ou ilícitos.
De fato, aos fatos jurídicos lícitos da espécie stricto sensu, não há
como verificar a sua validade ou invalidade, vez que elemento volitivo não está
presente em seu suporte fático. Os fatos jurídicos stricto sensu estão ligados a
algum acontecimento da natureza, que independe de um ato humano como dado
essencial. E nestes, por não haver elemento vontade, não há que se falar em
validade ou invalidade. Assim, um nascimento de um bebê, um vendaval que
provoca prejuízos, a produção de frutos, a aluvião, a avulsão não podem ser
invalidades.
O mesmo ocorre com os ato-fatos jurídicos, em que o elemento
volitivo também não está no suporte fático. Aqui, apesar de se tratar de uma ação
humana, a mesma não é relevante para a norma. A norma abstrai qualquer
elemento volitivo que houver. Assim, se um amental pinta um quadro, pouco importa
o seu elemento volitivo, assim, o quadro (este sim considerado) não pode ser nulo
ou anulável.
Exclui ainda, da aferição de validade ou invalidade, pela redação do
Art. 185 e as disposições sistemáticas que o legislador adotou, os fatos jurídicos lato
sensu ilícitos. Assim, pelo código, não se afere se um ato ilícito é nulo ou anulável.
Conseqüentemente, não se afere se o abuso do direito (ao ilícito que é) é nulo ou
anulável.
Neste sentido MARCOS BERNARDES DE MELO
120
:
Se o fato jurídico existe e é daqueles em que a vontade humana
constitui elemento nuclear do suporte fático (ato jurídico stricto sensu
e negócio jurídico) há de passar pelo plano da validade, onde o
direito fará a triagem entre o que é perfeito (que não contém qualquer
vício invalidante) e o que está eivado de defeito invalidante.
Inicialmente, é preciso destacar o que antes já foi referido de
passagem – os fatos jurídicos lícitos em que a vontade não aparece
como dado do suporte fático (fatos jurídicos stictu sensu e ato-fato
jurídico), como os fatos ilícitos lato sensu (inclusive o ato ilícito), não
estão, sujeitos a transitar pelo plano da validade, uma vez que não
podem ser nulos ou anuláveis.
E continua o autor
121
:
Nos fatos jurídicos em que a vontade não é elemento do suporte
fático e nos fatos ilícitos não há como pretender possam ser
inválidos. Quanto aos fatos jurídicos stricto sensu, que resultam da
juridicização de fatos da natureza ou do animal, e aos atos-fatos, que
são realidades físicas decorrentes da ação humana, até involuntária,
seria ilógico considerá-los deficientes e punidos com a invalidade
pelo direito. Um nascimento não pode ser nulo, como não pode ser
nula a semeadura que gerou a plantação. Aqui as realidades fácticas
impedem que se lhes negue validade.
Nos fatos ilícitos, a nulidade seria contra-senso porque resultaria
benefício àquele que praticou o ilícito.
No plano da validade é onde têm atuação as normas jurídicas
_____________
120
MELO, Marcos Bernardes. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Existência. 12ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 97
121
MELO, Marcos Bernardes. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Existência. 12ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 98 e 99.
invalidantes. A incidência delas se dá, na verdade, quando o suporte
fáctico ocorre, mas os seus reflexos, as suas conseqüências,
aparecem somente nesse plano.
Quanto aos fatos jurídicos stricto sensu, atos-fatos jurídicos, e fatos
ilícitos lato sensu, salvo lex specialis, basta que existam. Quer isso
dizer que essas especies de fato jurídico do plano da existência
ingressam, diretamente, no plano da eficácia e irradiam,
instantaneamente, a sua eficácia. Não estão, nem podem estar,
sujeitos a termos, condições ou quaisquer outras determinações que
atuem na sua eficácia.
Por aí denota-se que incutir a um ato abusivo do direito a pecha de
nulidade, é o mesmo que dar um prêmio ao titular do direito que abusou, vez que os
efeitos da invalidação de um negócio favorecem aquele que exorbitou os limites
impostos no art. 187.
O que se pode cogitar, é que, se constatado que em um negócio
jurídico existe um ato abusivo do direito, este negócio venha a ser nulificado por
outro dispositivo legal. Exemplificando, se um negócio jurídico contém cláusula que
fere o fim social do contrato, aplicando-se o Art. 421 do Código Civil, ter-se-á nula a
cláusula contratual. Ou, se determinado sujeito ao realizar um ato jurídico fere a boa-
fé objetiva, aplicar-se-ia o Art. 422 do Código Civil. Assim, na hipótese da lei ser
expressa quanto à ocorrência de invalidade de um determinado negócio ou ato
jurídico, aplica-se a teoria da invalidade.
O que não se pode confundir é o ato ilícito com o ato lícito.
Conforme já dito, o abuso do direito, como ilícito que é, não passa pelo plano da
validade. Basta que se constate que uma determinada conduta humana é relevante
para o direito, pois contrária ao mesmo e com agente imputável, que se estará
diante de um ato ilícito.
Exemplificando: a construção de uma mina d’água que seca a mina
da propriedade vizinha; é um ato aparentemente lícito, pois cada um tem o direito de
uso e gozo de sua propriedade, no entanto é ilícito, pois fere a fim social do direito
de propriedade. Não se pode dizer que o buraco no terreno que secou a mina do
vizinho é nulo ou anulável!
Agora, um contrato que prevê uma cláusula que fere os bons
costumes. Esta cláusula, por si, não é nula nem anulável. Não existe previsão legal
para a sua nulificação. Ocorre que, desta cláusula infere-se que há, por parte do
titular do direito que estipulou unilateralmente a cláusula, um excesso quanto aos
bons costumes e, portanto, abusa do direito. Neste caso, havendo danos, sejam
materiais ou morais, haverá reparação por parte do agente.
5 DO DEVER DE INDENIZAR O ABUSO DO DIREITO
Não lesar a ninguém, já dizia o brocardo romano denominado
neminem laedere. Igualmente era pronunciado que, caso houvesse uma lesão, o
dano deveria ser restituído em sua integralidade, completamente e por inteiro, o que
se infere do adágio restitutio integrum.
É justamente da conjunção destes princípios oriundos do direito
romano, que surge o dever de indenizar, como um princípio de ordem pública
definidor da responsabilidade civil.
Não é dado a ninguém agir ilicitamente, no entanto, quando, por um
ato ilícito, o seu agente causa um dano patrimonial, surge, imediatamente, um dever
de reparar este dano, restituindo-se o patrimônio do lesado ao status quo ante. Esta
idéia é baseada em um sentimento natural de justiça, pois o dano rompe com o
equilíbrio da relação social.
No instante em que se comete um ato ilícito gerador de dano,
imediatamente se forma uma relação jurídica obrigacional, que tem como fonte o ato
ilícito. Nesta relação jurídica, o dever do sujeito que cometeu o ato ilícito é de
indenizar pelos prejuízos. E esta indenização deve ser integral, completa (restitutio in
integrum), sendo que, indenizar pela metade, é responsabilizar a própria vítima pelos
danos.
É a idéia de que o dever de reparar surge do dano, e não da culpa.
É justamente esta a lição apresentada por SÉRGIO CAVALIERI FILHO
122
:
Observa o insigne Antônio Montenegro que a teoria da indenização
de danos só começou a ter uma colocação em bases racionais
quando os juristas constataram, após quase um século de estéreis
discussões em torno da culpa, que o verdadeiro fundamento da
responsabilidade civil devia-se buscar na quebra do equilíbrio
econômico-jurídico provocada pelo dano. A partir daí, conclui, a tese
de Ihering de que a obrigação de reparar nascia da culpa, e não do
dano, foi-se desmoronando paulatinamente. (Cavalieri Filho, Sérgio,
2005, p. 36)
No que atina ao dano, ADAUTO DE ALMEIDA TOMASZEWSKI
esclarece
123
:
Oriundo do latim damnum, dano, de forma genérica significa uma
ofensa, um mal; na área jurídica sua concepção chega a ser mais
ampla, uma vez que corresponde ao prejuízo originário de ato de
terceiro, quer pela sua ação ou omissão, diminuido ou afetando o
patrimônio juridicamente tutelado.
Nesta esteira, todo dano provocado contra o direito, “damnum
iniuriae datum”, comporta o ressarcimento ou indenização,
excetuando-se os decorrentes de força maior ou caso fortuito. (...)
Se formos buscar no Dicionário contemporâneo, a palavra DANO
importa em qualquer mal ou ofensa pessoal; também é empregada
no contexto de deteriorização; perdas e danos: a soma dada a
alguém para indenizar um prejuízo. Exposto como tal, demonstra a
amplitude da palavra dano.
É justamente da conduta lesiva de terceiro que diminui o patrimônio
de alguém que surge a idéia e concepção do dano. Mas o patrimônio de que se fala
não é somente o material, ou seja, o confronto entre o patrimônio realmente
existente após o dano e o que possivelmente existiria se o mesmo não se tivesse
_____________
122
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. rev. aum. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 36.
123
TOMASZEWSKI, Adauto de Almeida. Separação, Violência e Danos Morais. São Paulo:
PAULISTANAJUR LTDA., 2004. p. 242.
produzido
124
, mas também os não patrimoniais.
O patrimônio é o conjunto de bens de uma pessoa, sejam materiais
ou não materiais. Daí decorre que a noção de dano é muito mais ampla do que a
simples questão de diminuição financeiras (danos materiais), mas afetação do
patrimônio não material do sujeito. Este patrimônio não material, quando lesado,
gera o dano moral.
Não se pode confundir, danos imateriais, que não são suscetíveis
de reparação, mas sim de compensação, com os danos materiais, que devem ser
reparados a fim de que o sujeito lesado, seja integralmente satisfeito em seu
prejuízo patrimonial (restitutio in integrum).
Os danos materiais são aqueles que integram o complexo
pecuniário do sujeito, causando um prejuízo econômico ou pecuniário, mensurável
por cálculo aritmético. Já os danos morais, utilizados para designar todo dano “não
material”, referem-se aos prejuízos causados aos bens que não podem ser
mensurados economicamente, como a vida, o corpo, a reputação, a honra, o nome,
a imagem e outros bens jurídicos objetos dos direitos da personalidade.
O professor ADAUTO TOMASZEWSKI bem explica esta
diferenciação
125
:
Enquanto que no caso dos danos materiais a devida reparação tem
por escopo repor as coisas lesionadas ao seu statu quo ante, ou,
possibilitar à vítima a aquisição de outro bem semelhante ao
destruído, o mesmo não ocorre com relação ao dano eminentemente
moral, dada a impossibildade de se repor as coisas em seu estado
anterior. Desta forma, a reparação reside no pagamento de uma
soma pecuniária arbitrada pelo consenso do magistrado, de forma a
possibilitar ao lesado uma satisfação compensatória de sua dor
íntima.
_____________
124
TOMASZEWSKI, Adauto de Almeida. Separação, Violência e Danos Morais. São Paulo:
PAULISTANAJUR LTDA., 2004. p. 243.
125
TOMASZEWSKI, Adauto de Almeida. Separação, Violência e Danos Morais. São Paulo:
PAULISTANAJUR LTDA., 2004. p. 244.
Sinteticamente, enquanto uma reparação pretende repor o
patrimônio do lesado, a outra pretende compensar os dissabores
sofridos pela vítima, em virtude de uma ação do lesionador. Reside
aqui, então, a diferença básica entre o dano material e o dano moral,
porque as causas e efeitos são distintos. No primeiro, o que é
atingido é o bem físico, reparando-o ou a sua perda. No segundo,
fulmina-se o bem psíquico, tentando-se compensar através de uma
soma em dinheiro que assegure à vítima uma satisfação
compensatória.
E o dano, para ensejar a responsabilização civil de seu causador
deve decorrer (ter um nexo) entre uma conduta culposa (dolo ou culpa) ou de uma
circunstância legal que justifique a reparação, como uma circunstância meramente
objetiva. O abuso do direito é uma destas circunstâncias objetivas legalmente
impostas ao sujeito.
5.1 Da responsabilidade extracontratual objetiva no abuso do direito
A responsabilidade de que trata o art. 927 do Código Civil e que faz
remissência ao instituto do abuso do direito (art. 187 do Código Civil) é a
responsabilidade extracontratual, ou seja, aquela que não decorre da quebra de
deveres jurídicos de uma relação jurídica pré-existente.
É certo que a responsabilidade extracontratual tem por fonte a
imputação de um dever de indenizar independente da existência de um prévio
vínculo entre o agressor e o lesado, justificando-se, exclusivamente, pela ocorrência
de um dano imputável ao agressor.
Quanto ao tratamento dado pelo Código Civil, a responsabilidade
contratual, aquela fundada na quebra de um vínculo constituído a partir do poder de
autonomia privada, é fundamentada nos arts. 389 a 405, enquanto a
responsabilidade civil extracontratual é prevista nos arts. 186 a 188, como nos arts.
927 a 954, todos do Código Civil.
A responsabilidade extracontratual objetiva é aquela onde também
há a conduta ilícita, o dano e o nexo, somente não há o elemento culpa. A culpa é
essencial na conduta que fundamenta responsabilidade subjetiva. A culpa (dolo ou
culpa stricto sensu) poderá existir, mas, para o surgimento do dever de indenizar, a
mesma é prescindível. O que é indispensável é o nexo de causalidade entre a
conduta ilícita e o dano, logo, as causas de exclusão do nexo causal têm aplicação.
O Código Civil de 1916 era extremamente subjetivista. Já o atual
Código Civil ajustou-se à evolução do direito privado, especialmente as promovidas
no século XX decorrente das transformações sociais, que culminaram no
desenvolvimento da teoria do risco. SÉRGIO CAVALIERI FILHO esclarece
126
:
Embora tenha mantido a responsabilidade subjetiva, optou pela
responsabilidade objetiva, tão extensas e profundas são as cláusulas
gerais que a consagram, tais como o abuso do direito (art. 187), o
exercício de atividade de risco ou perigosa (parágrafo único do art.
927), danos causados por produtos (art. 931), responsabilidade pelo
fato de outrem (art. 932, c/c o art. 933), responsabilidade pelo fato da
coisa e do animal (...)
E continua o supracitado autor, indicando que nosso legislador, a
exemplo da moderna codificação civil, adotou a teoria objetivista
127
:
Depreende-se da redação deste artigo, em primeiro lugar, que a
concepção adotada em relação ao abuso do direito é a objetiva, pois
não é necessária a consciência de se excederem, com o seu
exercício, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou
pelo fim social ou econômico do direito; basta que se excedam esses
limites.
O Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal,
promoveu estudos em torno de aspectos polêmicos do atual Código Civil,
elaborando enunciados que serviriam de norte ao aplicador da lei. Justamente o art.
_____________
126
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. rev. aum. São Paulo:
Malheiros, 2005. p. 168.
127
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª ed. rev. aum. São Paulo:
187 foi um dos dispositivos legais alvo de discussões, onde ficou definido que se
tratava de responsabilidade objetiva, conforme Enunciado 37.
Na justificativa ao enunciado 37 se descreve os fundamentos para a
conclusão de que a responsabilidade decorrente do abuso do direito independe de
culpa. Veja-se excerto da justificativa
128
:
E, apesar de, topograficamente, incluído no título reservado ao ato
ilícito, fica evidente sua autonomia em relação a essa figura. Primeiro
porque, ao definir ato ilícito no art. 186, como já o fazia no vigente
art. 159, o legislador atrelou sua configuração à noção de culpa lato
sensu.
Todavia o mesmo não fez no concernente ao abuso de direito. A
simples interpretação literal do dispositivo sugere que a
caracterização do ato abusivo resulta de dados objetivos e, quando
não, de aspectos subjetivos totalmente diversos daqueles exigidos
para o ato ilícito como tal.
Melhor teria feito se tivesse consagrado o instituto em título próprio.
Entretanto, do modo como está posto, estampa-se um progresso, em
consonância com a moderna doutrina que trata do assunto.
Desse modo, tem-se que o abuso de direito prescinde da noção de
culpa, ou seja, não se indaga se o agente agiu intencionalmente, ou
se foi imprudente ou negligente ou imperito. Questiona-se se o ato
praticado extrapolou os limites impostos pelo seu fim econômico ou
social. E, no plano subjetivo, se houve má-fé ou feriram-se os bons
costumes.
Naturalmente que a boa ou má fé necessita de exame da
intencionalidade do ato, mas esta não direciona para o resultado
danoso, cinge-se tão-somente ao ato em si. É que, diversamente do
que ocorre com ato ilícito praticado com culpa, a previsão do dano é
elemento normativo do tipo. Tanto é assim que, no próprio texto do
art. 186, alude-se à violação de direito e à ocorrência de dano a
outrem.
Malheiros, 2005. p. 170.
128
Anexo III.
Reforça esse argumento o disposto no parágrafo único do art. 927 do
novo Código Civil, ao asseverar que haverá obrigação de reparar o
dano independentemente de culpa, nos casos especificados em lei.
De outra parte, a doutrina acerca do assunto, embora sustente que o
abuso de direito situar-se-ia muito melhor não como uma figura
jurídica, mas como um fenômeno social, reconhece que deve ser
visto como categoria jurídica.
O que importa é saber, do ponto de vista prático, como devem ser
regulados os seus efeitos. E, nesse ponto, por ser uma transgressão
de um direito, suas conseqüências deverão ser assemelhadas às
conseqüências mesmas do ato ilícito. Essa a lição de Sílvio de Salvo
Venosa (in Direito Civil, Teoria Geral. São Paulo: Atlas. 1984, pp. 435
e seguintes). Isso não significa circunscrevê-lo às noções de culpa e
dolo, pois, se assim fosse, bastaria a regulamentação específica do
ato ilícito.
Não obstante, RUI STOCO discorda da responsabilização objetiva,
o que o faz nos seguintes termos
129
:
Discordamos veementemente desse entendimento.
Lembro, utilizando de argumento lógico-formal, que se o ato ilícito
conceituado no art. 186 funda-se na culpa, posto que o novo Código
Civil consagrou a culpa como pressuposto da responsabilidade do
agente, não há como afirmar que o art. 187, que está situado no
Título III, relativo aos atos ilícitos, possa dispensar esse fundamento.
Veja-se a dicção do preceito: “também comete ato ilícito...”.
Ora, a que ato ilícito está se referindo o art. 187, se não aquele
definido imediatamente acima, no art. 186?
_____________
129
STOCO, Rui. Abuso do Direito e Má-fé Processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p.
806-808.
Direito, antes de tudo é lógica, coerência e bom senso.
No campo da incidência doa rt. 187, o abuso do direito só se
converte em ato ilícito se presente um dos atributos da culpa, tal
como previsto no art. 186: ação ou omissão voluntária, negligência
ou imprudência.
Significa que há de prevalecer a teoria subjetiva do abuso do direito,
a significar que este se caracteriza quando presente o elemento
intencional, ou seja, impõe-se que o agente tenha consciência de
que o seu direito, inicialmente legítimo e secundum legis, ao ser
exercitado, desbordou para o excesso ou abuso, de modo a lesionar
ou ferir o direito de outrem. O elemento subjetivo é a reprovabilidade
ou a consciência de que poderá causar algum mal, assumindo esse
risco ou deixando de prevê-lo quando devia.
No entanto, o posicionamento doutrinário pela teoria subjetiva é
minoritário e rechaçado com argumentos mais robustos e consentâneos com o atual
disciplinamento do abuso do direito no Código Civil.
O argumento que reforça a tese de que a responsabilidade civil do
abuso do direito é objetiva, é o fato de que, conforme já salientado, adota-se o
mesmo modelo legislativo importado do Código Civil português, onde a teoria
objetiva fundamenta a responsabilidade por abuso do direito
130
.
Além disso, o art. 187 que trouxe a figura do abuso do direito é um
novo modelo de ilicitude, com um novo arquétipo, uma conduta que o legislador
equiparou a ato ilícito.
_____________
130
Ver Anexo II, decisões do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal.
6 DA TUTELA INIBITÓRIA E DE REMOÇÃO DO ABUSO DO DIREITO
Conforme aludido em tópico anterior, uma das conseqüências do
ato abusivo é o dever de indenizar que incumbe àquele que o praticou, o qual se
efetiva por meio da tutela ressarcitória. E, para que haja o dever de indenizar, é
necessário que o ato ilícito tenha sido praticado e, conseqüentemente, tenha gerado
um dano ao ofendido. Inexistindo o dano, inexiste o dever de indenizar.
Porém, há determinados casos que, embora ainda não possibilitem
vislumbrar um ato ilícito, ensejam a possibilidade de tutela Estatal para impedir a sua
ocorrência, com respaldo na mera probabilidade de que este venha a acontecer.
Esta forma de prevenção de ilícitos se dá por meio da denominada Tutela Inibitória.
O conteúdo da Tutela Inibitória é claramente preventivo, eis que
visa efetivamente impedir a ocorrência de um ato ilícito. Não se fala, aqui, na
necessidade de verificação de um ato ilícito anterior, muito menos na necessidade
de se vislumbrar um dano ao detentor do direito violado, como ocorre nos casos das
ações ressarcitórias. Referida forma de ação se volta contra a mera possibilidade de
ocorrência do ilícito.
Vê-se, pois, que não se vislumbra apenas a desnecessidade de
ocorrência do dano para que este espécie de ação possa ser proposta. Dispensa
mesmo a ocorrência do ato ilícito. Neste sentido, LUIZ GUILHERME MARINONI
131
:
A distinção entre ilícito e dano abriu as portas para a doutrina
esclarecer que a tutela preventiva objetiva impedir a prática, a
continuação ou a repetição do ilícito. A diferenciação entre ilícito e
dano não só evidencia que a tutela ressarcitória não é a única tutela
contra o ilícito, como também permite a configuração de uma tutela
genuinamente preventiva, que nada tem a ver com a probabilidade
do dano, mas apenas com a probabilidade do ato contrário ao direito
(ilícito).
Dessa forma, a ação inibitória pode ser buscada em três momentos
distintos: para impedir a prática de ilícito, mesmo que nenhum ilícito anterior tenha
sido produzido; para obstar a repetição de um ato ilícito; para coibir sua continuação.
No primeiro aspecto, a missão imposta ao juiz é mais árdua, eis que a dificuldade
em se constatar a probabilidade de ocorrência de um ilícito sem que haja qualquer
ato anterior que aponte neste sentido é muito maior que nas outras duas hipóteses.
Embora a ação que visa interferir na esfera jurídica do réu antes
mesmo da ocorrência de qualquer ato ilícito anterior que fundamente o temor de que
_____________
131
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Inibitória: individual e coletiva. 3ª ed. rev, atual. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.p. 47.
mencionado ato possa voltar a ser praticado, seja a mais pura forma de Tutela
Inibitória, todas as modalidades apresentadas são demonstrações de verdadeira
efetividade do processo, pois a função primeira do Poder Judiciário deve ser a de
conferir tutela preventiva aos direitos e não a de ressarcir eventuais prejuízos
gerados em razão da sua violação.
A Tutela Inibitória se caracteriza, assim, como uma ação de
conhecimento preventiva, não se confundindo com ação declaratória (que visa
somente declarar acerca de uma relação jurídica), nem com ação cautelar (a qual
exige uma ação principal, sendo dela mero instrumento).
Em nosso ordenamento, a Tutela Inibitória está prevista no artigo
461 do Código de Processo Civil, o qual prevê que “na ação que tenha por objeto o
cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica
da obrigação, ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem
o resultado prático equivalente ao adimplemento”.
Mencionado dispositivo ainda confere ao juiz o poder de, segundo
as circunstâncias do caso concreto, impor multa diária ao réu (§ 4º) ou decretar
medida de execução direta (§5º), seja no curso do processo, seja na sentença, tudo
com o escopo de garantir a efetividade do processo.
Pelo dispositivo supra transcrito, conclui-se que a Ação Inibitória
visa obstar o ato ilícito, seja ele comissivo ou omissivo, isto é, tanto pode servir para
impor uma abstenção (um não-fazer), como pode determinar uma ação (um fazer).
Esta possibilidade fica ainda mais evidente quando se considera que o próprio artigo
461 do Código de Processo Civil dá ao juiz o poder de impor um fazer mesmo
quando a parte pleiteou um não-fazer, no intuito de viabilizar uma tutela jurisdicional
mais efetiva.
Mister que se ressalte a evidente distinção entre uma ação com
eficácia ilícita continuada, de uma ação continuada ilícita. No primeiro caso, está-se
diante de uma ação, cujo efeito ilícito perdura no tempo, porém a ilicitude não está
com ela relacionada, mas apenas com o efeito dela decorrente, que se propaga no
tempo. Na segunda hipótese, a ação ilícita é continuada e a ilicitude permanece na
medida em que a ação prossegue.
A Tutela Inibitória refere-se à ação ilícita continuada, e não ao ilícito
que tem seus efeitos prolongados no tempo. Esta espécie de tutela tem por
finalidade evitar o prosseguimento de um agir ou de uma atividade ilícita; só tem
cabimento quando se refere a um agir ou a uma atividade.
Quando o ato ilícito já houver sido praticado, estando presentes
apenas os seus efeitos, a medida cabível é a denominada Tutela de Remoção do
Ilícito. A diferença entre ambas reside, pois, na verificação ou não da prática de um
ato ilícito. Caso este ainda não tenha sido praticado, tem cabimento a Tutela
Inibitória – o ilícito que se deseja atingir está no futuro; caso já tenha ocorrido,
permanecendo apenas os seus efeitos, tem lugar a Tutela de Remoção do Ilícito – o
ilícito que se deseja atingir está no passado.
Citadas formas de ação se dirigem contra o ato contrário ao direito
em si, sendo que, por esta razão, não trazem entre os seus pressupostos o dano e o
elemento subjetivo (dolo ou culpa), relacionado à imputação ressarcitória.
Frise-se que, embora a tutela de remoção do ilícito sirva para
afastar os efeitos de uma ação ilícita que já ocorreu, a mesma não se confunde com
a tutela ressarcitória, pois, assim como na Tutela Inibitória, aqui não se exige a
ocorrência do dano, bastando a constatação do ato ilícito. Tratando da questão,
LUIZ GUILHERME MARINONI
132
assim se manifesta:
Importa notar, entretanto, que a tutela de remoção do ilícito, assim
como a tutela inibitória, não é uma tutela contra o dano. A tutela de
remoção do ilícito objetiva a remover ou eliminar o próprio ilícito, isto
é, a causa do dano; não visa ressarcir o prejudicado pelo dano. No
caso de tutela de remoção do ilícito, é suficiente a transgressão de
um comando jurídico, pouco importando se o interesse privado
tutelado pela norma foi efetivamente lesado ou se ocorreu um dano.
É nítida, pois, a diferença existente entre a tutela ressarcitória (para
reparação do dano), a tutela inibitória e a tutela de remoção do ilícito. Nestas, busca-
se evitar a ocorrência do dano, respectivamente antes ou após a verificação do ato
ilícito, ao passo que naquela, se busca corrigir o estrago por ele ocasionado.
Após estas breves considerações, fácil é constatar que as três
formas de Tutela Estatal são aplicáveis ao instituto do abuso do direito. Em relação à
possibilidade de aplicação da tutela ressarcitória, já se apresentou estudo em tópico
anterior. Quanto às outras duas, também não há que se negar a possibilidade de
sua utilização.
Restou evidente, no decorrer do presente estudo, que o abuso do
direito se caracteriza como um ato ilícito. Por se tratar de ato ilícito, a mera
probabilidade de sua ocorrência pode ensejar a propositura de Ação Inibitória para
coibir a sua prática. A intenção do autor, neste caso, é evitar que o abuso do direito
se consume, ou seja, que o ato ilícito aconteça.
Quanto à utilização da Tutela para Remoção do Ilícito, basta que
um ato abusivo tenha sido praticado e seus efeitos se protraiam no tempo, podendo
vir a causar um dano. Aqui, pretende o autor evitar que o abuso do direito, já
_____________
132
MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela Inibitória: individual e coletiva. 3ª ed. rev, atual. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 154.
cometido, gere danos à sua esfera juridicamente protegida.
7 ABUSO DO DIREITO NA JURISPRUDÊNCIA
Para fins de ilustrar o presente trabalho com exemplos práticos de
aplicação do instituto do abuso do direito, mister que se traga à baila julgados de
Tribunais de Cúpula pátrios e de Tribunais de outros países.
Apesar de ter como origem a jurisprudência, a aplicação do instituto
do abuso do direito pelos Tribunais como fundamento de direito para as decisões é,
ainda, e mesmo após o advento do atual Código Civil, por demais tímida. Na maioria
das vezes se utiliza apenas a expressão “abuso” como qualificação, ao invés da
aplicação do instituto jurídico propriamente dito.
Dedicando um estudo atualizado sobre o tema, HELOÍSA
CARPENA indica que na “maioria das decisões pesquisadas o abuso é relacionado
ao princípio da boa-fé, este atuando como parâmetro para definir os limites do
antijurídico.”
133
.
Apresentar-se-á, a fim de seguir a seqüência lógica por meio da
qual se procurou abordar o tema proposto, o modelo jurisprudencial brasileiro, antes
e após a vigência do atual Código Civil, fazendo uma breve comparação deste com
o modelo português, e, após, procurar-se-á apresentar um panorama crítico sobre o
papel social do jurista na efetivação do instituto do abuso do direito.
133
CARPENA, Heloísa. O abuso do Direito no Código de 2002: Relativização de direitos na ótica civil-
constitucional. A parte Geral do novo código civil: estudos na perspectiva civil-consitucional/ Coord.
7.1 Antes do Código Civil de 2002
O aresto que se transcreve a seguir é exemplo emblemático da
aplicação do abuso do direito na área contratual, acórdão do Conselho da
Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, proferido nos autos nº 599/96,
cujo relator é o jurista SÉRGIO CAVALIERI FILHO:
Ensino – Mensalidades escolares atrasadas – Retenção da
documentação necessária à transferência do aluno – Abuso do
Direito – Constitui abuso do direito reter o estabelecimento de ensino
a documentação necessária à transferência do aluno, a título de
compelir os responsáveis a pagarem as mensalidades escolares
atrasadas. A ordem jurídica vigente não autoriza fazer justiça com as
próprias mãos a pretexto do eventual exercício do direito de
cobrança, nem permite causar dano irreparável a outrem, como no
caso ocorreria se ficasse o aluno impedido de continuar os seus
estudos em outro colégio. Desprovimento do recurso. (Cavalhieri
Filho, Sergio, 2005, p. 175)
Em caso idêntico se manifestou o Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro:
MANDADO DE SEGURANÇA. MENSALIDADE ESCOLAR.
DÉBITO. DOCUMENTO ESCOLAR. RETENÇÃO INDEVIDA.
ABUSO DE DIREITO. SENTENÇA CONFIRMADA. Apelação Cível.
Mandado de Segurança. Atividade escolar desenvolvida por ente
particular. Função delegada pelo Poder Público. Cabível portanto, o
mandado de segurança. No mérito, a segurança dever ser
concedida, com confirmação da medida liminar. Pequena dívida
decorrente de mensalidade escolar, não justifica a retenção dos
documentos de conclusão do 2º Grau e do histórico escolar.
Comportamento que se reveste de abuso e, assim, não se sustenta
juridicamente. Sentença que se confirma. Improvimento da
apelação.
134
Da análise dos julgados supra, denota-se que entre os litigantes
havia uma relação jurídica contratual, um contrato de prestação de serviços
Gustavo Tepedino. 2ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 387.
134
TJRJ, 13ª Câmara Cível, Apelação Cível 2000.001.08132, Rel. Maurício G. Oliveira, Julg. 5.4.01.
educacionais, com a conseqüente contraprestação da obrigação de dar quantia
certa. Em ambos os casos, o aluno estava em mora com a prestação obrigacional,
consistente no pagamento de pecúnia. Como forma de “fazer justiça com as próprias
mãos”, o estabelecimento se negou a entregar os documentos que mantinha sob
sua custódia. Assim, julgando exercer seu direito de crédito, usurpou a finalidade
social do contrato de prestação de serviços educacionais. Valeu-se do contrato e da
notória hipossuficiência do aluno, para exorbitar os limites do direito de cobrança.
Veja-se também o exemplo de uma conduta, a princípio lícita, mas
que se torna ilícita posteriormente, conforme se infere de acórdão do Superior
Tribunal de Justiça
135
:
CONTA CORRENTE. Apropriação do saldo pelo banco credor.
Numerário destinado ao pagamento de salários. Abuso de direito.
Boa-fé. Age com abuso de direito e viola a boa-fé o banco que,
invocando cláusula contratual constante do contrato de
financiamento, cobra-se lançando mão do numerário depositado pela
correntista em conta destinada ao pagamento dos salários de seus
empregados, cujo numerário teria sido obtido junto ao BNDES. A
cláusula que permite esse procedimento é mais abusiva do que a
cláusula mandato, pois, enquanto esta autoriza apenas a constituição
do título, aquela permite a cobrança pelos próprios meios do credor,
nos valores e no momento por ele escolhidos. Recurso conhecido e
provido.
Veja-se a incidência do instituto contra danos a direitos da
personalidade, onde se buscava limitar direitos ou liberdades:
RESPONSABILIDADE CIVIL DE EMPRESA JORNALÍSTICA.
PUBLICAÇÃO JORNALÍSTICA. PUBLICAÇÃO OFENSIVA. HONRA
PESSOAL. ABUSO DO DIREITO DE INFORMAR. DANO MORAL.
INDENIZAÇÃO. Responsabilidade Civil. Notícias em jornal que vão
além da mera menção a relatório de comissão Investigatória de
Ilícitos Praticados por Policiais, imputando ao relatório de tal
Comissão recomendação de afastamento do autor e menção a bens
incompatíveis “a sua renda que não constam de tal relatório. Abuso
do direito de informar, que excede à liberdade de pensamento e de
imprensa protegidos pela Constituição Federal, caracterizando
_____________
135
STJ, 4ª Turma, RESP 250523/SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 18.12.00, p. 203.
violação à honra e imagem do ofendido, o que é vedado pela Carta
Magna, em seu artigo 5º, inciso X. Dever ressarcitório configurado.
Dano moral. Indenização. Arbitramento que deve se dar
considerando a gravidade da ofensa, a repercussão na órbita do
ofendido e a capacidade econômica do ofensor, sobretudo
sopesando que a vítima, então ocupante de cargo de comando da
Polícia Militar, deveria ser espelho para seus comandados. Aspecto,
ainda, tanto compensatório à vítjma, como punitivo ao ofensor, da
verba indenizatória, que, porém, não pode representar valor acima
do “prudente arbítrio” do julgador, que vem sendo preconizado pelo
STJ. Recurso Improvido.
136
Nas relações contratuais firmadas entre fornecedor e consumidor, a
incidência de abusos decorrentes da extrapolação de fins sociais e econômicos é
freqüente. A anormalidade do dano e o descumprimento de elementos éticos
indicam a abusividade. A título de exemplos:
RESPONSABILIDADE CIVIL. SERVIÇO DE PROTEÇÃO AO
CRÉDITO (S.P.C.). CADASTRO DE INFORMAÇÕES BANCÁRIAS.
COLOCAÇÃO INDEVIDA. ABUSO DO DIREITO. DANO MORAL.
OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR. CONDENAÇÃO SOLIDÁRIA.
PROVIMENTO PARCIAL. Responsabilidade civil. Danos morais.
Indevida negativação do nome do autor em instituição de proteção ao
crédito. Sentença que julga improcedente o pedido inicial, sob o
fundamento de que o autor não comprovara o pagamento da
totalidade do débito. Evidência de equívoco do banco no lançamento
da autenticação mecânica do recibo, além de abuso do exercício de
direito ao ser promovida a negativação do nome do autor por suposto
não pagamento da quantia de dez reais. Reforma da sentença.
137
4. Constitui-se em verdadeiro abuso de direito a negativação de
nome do mutuário nos cadastros restritivos de crédito, enquanto a
matéria estiver sub-judice. 5. Decisão impeditiva do abuso
homenageia os princípios constituicionais do contraditório e do
devido processo legal.
138
Ação de Indenização. Dano moral. Consumidor. Suspeita de furto em
supermercado. Exposição pública da situação. Submissão a revista
_____________
136
TJRJ, 18ª Câmara Cível, Apelação Cível 2000.001.15245, Rel. Binato de Castro, Julg. 6.11.01.
137
TJRJ, 17ª Câmara Cível, Apelação Cível 2001.001.09819, Rel. Des. Fabrício Bandeira Filho, Julg.
1.8.01.
138
TJRJ, 4ª Câmara Cível, Apelação Cível 2001.002.16595, Rel. Des. Mário dos Santos Paulo, Julg.
5.3.02.
pessoal. Abuso do direito de proteção à propriedade. Lesão à honra
e à imagem configurados. Sentença confirmada. 1. É natural que
supermercados previnam contra furtos de mercadorias, mas a
repreensão de suspeito de subtração de produto deve ser cautelosa,
sob pena de causar lesões à esfera da personalidade do consumidor.
Pessoa inocente que é abordada, sem escrúpulos, por segurança do
supermercado e submetida a revista pessoal, ficando exposta à
humilhação e ao constrangimento público, tem sua honra e a sua
imagem violadas, fazendo jus a compensação dos danos morais
sofridos (arts. 5º., X, CF e 6º, VI, CDC).
139
Destes, entre outros julgados dos mais diversos tribunais pátrios,
denota-se que o abuso do direito era utilizado mais como adjetivo de uma
ilegalidade, do que como instituto propriamente dito, em que pese alguns juristas
admitirem estar presente o instituto em vários dispositivos esparsos pelo Código Civil
de 1916.
7.2 Após a vigência do atual Código Civil
Após pesquisa em diversos Tribunais estaduais e federais e nas
superiores instâncias, no encalço de buscar a interpretação que se tem dado ao Art.
187 do atual Código Civil, constata-se que, apesar do número crescente de
demandas judiciais e questões de excessos manifestos aos limites impostos pela
boa-fé, fim econômico, fim social e bons costumes, o instituto do abuso do direito,
nomeadamente a aplicação do Art. 187, está sendo timidamente utilizado, para não
dizer inutilizado.
Some-se que, o Código Civil entrou em vigor apenas em 2003 e,
provavelmente, diante, talvez do desconhecimento do instituto e da morosidade do
Poder Judiciário decorrente do elevado volume de demandas judiciais, dos meios
_____________
139
TJPR, 7ª Câmara Cível, Apelação Cível 19395500, Rel. Des. Accácio Cambi, Julg. 20.5.02.
protelatórios de adiamento de decisões definitivas de mérito, e da falta de
aparelhamento do Poder Judiciário, os tribunais não tiveram oportunidade de se
manifestar quanto à interpretação do abuso do direito, de forma a constituir
jurisprudência sobre o assunto.
O magistrado Fernando Habibe, do Tribunal de Justiça do Distrito
Federal, enfrentou o tema
140
:
REVISÃO DE CONTRATO – BANCO DE DADOS – REGISTRO –
ABUSO DE DIREITO – 1 - A discussão da dívida em juízo inibe, em
princípio, a inscrição do nome do suposto devedor em cadastro
reservado a maus pagadores. 2 - O exercício de um direito qualquer,
sob pena de configurar-se abusivo, deve ser necessário para atender
a um legítimo interesse do seu titular, não podendo extrapolar os
limites impostos pelo seu fim econômico ou social (cód. Civil 187). 3 -
O legítimo interesse do titular de um crédito é o devê-lo satisfeito.
Para alcançar esse desiderato, não precisa inscrever o nome do
suposto devedor, que está questionando a dívida, no rol dos
inadimplentes. 4 - A dignidade da pessoa humana é um dos pilares
da nossa república; a moral constitui direito fundamental. É certo que
o patrimônio também ostenta dignidade constitucional. Cumpre
observar, porém, ser possível dispensar-se tutela liminar, provisória,
àqueles valores sem nenhum prejuízo para este último. A recíproca,
todavia, não é verdadeira.
Em seu voto, referido magistrado demonstra sensibilidade aos
valores constitucionais, enfatizando a doutrina do abuso do direito e valores
constitucionais como fundamento de sua decisão
141
.
_____________
140
TJDF – AGI 20040020081620 – 2ª T.Cív. – Rel. Des. Fernando Habibe – DJU 23.08.2005 – p. 251
141
O exercício de um direito qualquer, sob pena de configurar-se abusivo, deve ser necessário para atender a um legítimo
interesse do seu titular, não podendo extrapolar os limites impostos pelo seu fim econômico ou social (Cód. Civil 187).
A propósito, tenha-se presente a lição de CAIO MARIO:
“(...) o sujeito, que tem o poder de realizar o seu direito, deve ser contido dentro de uma limitação ética, a qual consiste em
cobrir [coibir] todo exercício que tenha como finalidade exclusiva causar mal a outrem (...)”.
Ora, o legítimo interesse do titular de um crédito é o de vê-lo satisfeito. Para alcançar esse desiderato, não precisa inscrever o
nome do suposto devedor, que está questionando a dívida, em cadastro reservado a maus pagadores.
Com efeito, o registro não é condição para o credor obter tutela judicial para o seu pretenso direito. Independentemente dele,
pode utilizar-se dos meios processuais que a lei põe ao seu alcance, inclusive, se título hábil possuir, a própria execução (CPC
558, 1º).
Não se equipara essa situação à do protesto, pois este gera efeitos jurídicos relevantes e necessários para resguardar direitos.
Também exemplo de utilização do Art. 187 é o acórdão da lavra do
Ministro Ruy Rosado de Aguiar, do Superior Tribunal de Justiça
142
:
CONDOMÍNIO – BEM INDIVISÍVEL – ALIENAÇÃO JUDICIAL –
CITAÇÃO DO CONDÔMINO – AUSÊNCIA – NECESSIDADE –
MORADIA DA FAMÍLIA – ABUSO DE DIREITO – "Condomínio. Bem
indivisível. Alienação judicial. Falta de citação do condômino.
Moradia da família. O condômino do imóvel indivisível que se quer
alienar judicialmente deve ser citado. Art. 1.105 do CPC. Servindo o
imóvel modesto para a moradia da ex-mulher e dos filhos do autor, a
imposição da perda do bem com a alienação forçada caracteriza
abuso de direito, pois a medida servirá apenas para preservar 25%
da propriedade do autor. Art. 187 do Novo Código Civil. Recurso
conhecido e provido.”
Outros exemplos, como se observa no Anexo I, em sua maioria,
decorrentes de relações entre consumidor e fornecedor, na verdade, não apontam
para o instituto do abuso do direito conforme previsão do Art. 187 do Código Civil de
2002, mas sim, como sinônimo da ilegalidade, confundindo-o com o conceito de ato
ilícito do Art. 186.
Assim, vislumbra-se pequenos avanços, praticamente
insignificantes. Prova de que ainda há muito que se caminhar para alcançar estes
intentos no Brasil, são as decisões juntadas, que demonstram uma cultura jurídica
de enxergar o abuso do direito como um adjetivo, uma qualidade do ilícito, ao invés
de desenvolver o instituto. São apenas passos isolados. Mas há muito que se
progredir no desenvolvimento da aplicação da Teoria do Abuso do Direito no cenário
pátrio, ao contrário do que ocorre em Portugal, de cujo ordenamento foi plagiado o
Em casos como o dos autos, a anotação no banco de dados traduz ilegítimo instrumento de pressão, de opressão, porque daí
não resulta nenhum benefício para o suposto credor ou para quem quer que seja, ocasionando, apenas, desastrosas
conseqüências para a parte contrária.
É preciso ponderar valores. E no caso concreto esse exercício não resulta na preterição de nenhum dos bens envolvidos.
De fato. A dignidade da pessoa humana é um dos pilares da nossa República; a moral constitui direito fundamental. É certo
que o patrimônio também ostenta dignidade constitucional. Cumpre observar, porém, ser possível dispensar-se tutela liminar,
provisória, àqueles valores sem nenhum prejuízo para este último. A recíproca, todavia, não é verdadeira.
142
STJ – REsp 367.665 – SP – 4ª T. – Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar – DJU 15.12.2003 – p. 314.
instituto previsto no Art. 187 do Código Civil Brasileiro.
7.3 No direito português
Em vigor há quase quarenta anos, o Código Civil Português,
instituído pelo Decreto Lei nº 47344 de 25 de novembro de 1966, albergou o instituto
do abuso do direito, sendo que sua aplicação vem sendo verdadeiramente
exercitada pela Jurisprudência lusitana, o que se depreende das decisões do
Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, verdadeiras aulas sobre o abuso do
direito.
Conforme já exposto, o Art. 334 do Código Civil lusitano orientou
nosso legislador na redação do Art. 187 do Código Civil de 2002, onde foram
adotados os mesmos critérios e teorias para aferição do ato abusivo. Razão pela
qual, o direito alienígena é fundamental para orientar o exegeta na aplicação da lei.
Das inúmeras decisões do Supremo Tribunal de Justiça de
Portugal, foram selecionadas várias decisões
143
, que demonstram a viabilidade e
possibilidade de aplicação prática do instituto do abuso do direito.
Dentre elas, cumpre transcrever um importante excerto de
fundamentação de voto, que serve de orientação para nossos Tribunais na aplicação
do instituto do abuso do direito:
O abuso do direito constitui assim um - limite normativamente
imanente ou interno dos direitos subjectivos, pelo que no
comportamento abusivo são os próprios limites normativo-jurídicos
do direito particular que são ultrapassados" - conf., neste sentido,
Castanheira Neves, in - Questão de Facto e Questão de Direito -,
pág 526, nota 46 cit no Ac STJ de 31-1-96, in BMJ nº 453, pág 517.
_____________
143
As decisões do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal estão no Anexo II.
A nossa lei adoptou a concepção objectiva do abuso do direito; isto
é, não exige que o titular do direito haja procedido com consciência
do excesso ou com «animus nocendi» do direito da contraparte,
bastando pois que tais limites sejam e se mostrem ostensiva e
objectivamente excedidos.
144
Além desta, outras decisões, muito elucidativas, constantes do
Anexo II deste trabalho, demonstram que o Tribunal de Cúpula lusitano, o Supremo
Tribunal de Justiça de Portugal, contribui para o desenvolvimento e efetivação dos
desígnios do instituto do abuso do direito, exemplo que deve ser seguido pelos
nossos juristas.
7.4 O papel do jurista para a concreção do instituto: responsabilidade social na
aplicação do Direito e formação de um novo modelo de pensamento jurídico
em torno do abuso do direito
Em que pese ter sua origem histórica na jurisprudência, o instituto
do abuso do direito não recebeu um tratamento merecido, ainda, nos tribunais
tupiniquins. Antes, durante a vigência do Código de 1916 justificava-se este quadro
diante da ausência de norma de incidência. Agora, com a previsão, diga-se,
inspirada no Direito português, não há justificativas pela sua não aplicação.
Conforme já salientado, cabe aos juristas, aplicadores do Direito,
interpretar e aplicar este instituto, cônscios de sua responsabilidade social. De fato,
conforme salientado no decorrer deste estudo, o Brasil enfrenta um período de forte
intervencionismo estatal na área jurídica, e um recrudescimento, cada vez maior, em
outros setores como o social e o econômico.
_____________
144
Acórdão 03 do Anexo II.
ROSALICE FIDALGO PINHEIRO alerta para a responsabilidade
social dos juristas, não para a “reprodução” de um sistema de aplicação do direito,
mas sim de “construção” e desenvolvimento do instituto do abuso do direito
145
:
Com um perfil “progressivo, ativo-produtivo, prático, destacam-se
novos modelos de pensamento jurídico, sob as vestes da
Jurisprudência dos Interesses e da Jurisprudência dos Valores ou
Valorações. O jurista é chamado a transpor os limites daquela
atuação, antes esboçada, voltando sua atenção para os “interesses”
e “valores” que os institutos jurídicos podem cumprir.
LENIO STREK nos remete a um universo em que a hermenêutica
se refere ao mundo prático em escólio de sua obra, que não poderia deixar de ser
citado
146
:
Assim, a partir disso, pode-se dizer que, no Brasil,
predomina/prevalece (ainda) o modo de produção de Direito
instituído/forjado para resolver disputas interindividuais, ou, como se
pode perceber nos manuais de Direito, disputas entre Caio e Tício ou
onde Caio é o agente/autor e Tício (ou Mévio), o réu/vítima. Assim,
se Caio (sic) invadir (ocupar) a propriedade de Tício (sic), ou Caio
(sic) furtar um botijão de gás ou automóvel de Tício (sic), é fácil para
o operador do Direito resolver o problema. (...)
Esta é a crise de modelo (ou modo de produção) de Direito,
dominante nas práticas jurídicas de nossos tribunais, fóruns e na
doutrina. No âmbito da magistratura – e creio que o raciocínio pode
ser estendido às demais instâncias de administração da justiça -,
Faria aponta dois fatores que contribuem para o agravamento dessa
problemática: “o excessivo individualismo e o formalismo na visão de
mundo: esse individualismo se traduz pela convicção de que a parte
precede o todo, ou seja, de que os direitos do indivíduo estão acima
dos direitos da comunidade; como o que importa é o mercado,
espaço onde as relações sociais e econômicas são travadas, o
individualismo tende a transbordar em atomismo: a magistratura é
treinada para lidar com as diferentes formas de ação, mas não
consegue ter um entendimento preciso das estruturas
_____________
145
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. O Abuso do Direito e as Relações Contratuais. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002. p. 417.
146
STRECK, L. L. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do
Direito. 5ª ed., revista, atualizada. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004. p. 34-36.
socioeconômicas onde elas são travadas. Já o formalismo decorre
do apego a um conjunto de ritos e procedimentos burocratizados e
impessoais, justificados em norma da certeza jurídicae da ‘segurança
do processo”. Não preparada técnica e doutrinariamente para
compreender os aspectos substantivos dos pleitos a ela submetidos,
ela enfrenta dificuldades para interpretar os novos conceitos dos
textos legais típicos da sociedade industrial, principalmente os que
estabelecem direitos coletivos, protegem os direitos difusos e
dispensam tratamento preferencial aos segmentos economicamente
desfavorecidos”.
E para viabilizar a atuação dos operadores do direito (praticantes,
aplicadores da lei, guardiões da doutrina, acadêmicos etc), apresenta-se novos
instrumentos, como as cláusulas gerais e conceitos legais indeterminados, outrora
esquecidos pelo Código Napoleônico, mas lembrados pelo BGB, e que, no Brasil,
não foram desenvolvidos e aplicados satisfatoriamente, em que pese o enorme
avanço do Código Civil de 2002 e a luta diuturna da doutrina civilista. Sua aplicação
exige uma nova postura dos juristas, “despindo-se das vestes de um sistema
fechado com vistas a se configurar como um sistema aberto”.
147
E essa responsabilidade social deve ter origem no “berço”, ou seja,
nas cadeiras das universidades, incutindo valores axiológicos como primeiro
fundamento de aprendizado para posterior aplicação do direito, para fins de
repersonalização do direito civil em um Estado Democrático de Direito como o Brasil,
onde o Direito deve ser visto como instrumento de transformação social.
É um problema seríssimo: por um lado tem-se uma sociedade
faminta pela realização de direitos, e de outro, um instituto que garante esses
direitos da forma mais ampla possível. O abuso do direito, como cláusula geral das
mais ricas, permeado por conceitos legais indeterminados e determinados pela
função que exercem no caso concreto, é terreno dos mais férteis para o alcance das
_____________
147
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. O Abuso do Direito e as Relações Contratuais. Rio de Janeiro:
distantes, mas tão almejadas, promessas da modernidade.
CONCLUSÕES
Ante ao exposto, conclui-se que o abuso do direito é um instituto
que demonstra a ingerência estatal nas relações privadas, limitando a autonomia da
vontade, sendo erigido – intencionalmente – pelo legislador como uma nova
categoria de ato ilícito, ampliando o conceito de ilicitude descrito nos moldes
tradicionais.
A evolução histórica e teórica apresentada, bem como a (ainda que
breve) menção a outros ordenamentos jurídicos alienígenas, faz conclusão pela
utilização do modelo grego e especialmente português do abuso do direito para a
redação do Art. 187 do Código Civil Brasileiro. Neste aspecto é que as decisões dos
Tribunais Portugueses se mostram de grande valia para orientação dos juristas
brasileiros para identificação e interpretação do Art. 187 do Código Civil.
A definição legal de abuso do direito é uma cláusula geral com
vários conceitos legais indeterminados e conceitos determinados pela circunstância
concreta, razão pela qual sua aplicação dependerá do senso de eqüidade e justiça
do aplicador do direito, que deve, antes de aplicar a lei, (re)conhecer a realidade
social, econômica, política e jurídica brasileira.
As conseqüências jurídicas do abuso do direito são as mesmas de
todo e qualquer ato ilícito: dever de indenizar, decorrente de responsabilidade
Renovar, 2002. p. 420.
objetiva, tutela inibitória e de remoção do ilícito. Nem se diga que do Art. 187 do
Código Civil decorre nulidade, pois o ato ilícito não adentra ao plano da validade.
A jurisprudência diz pouco, ou nada diz, sobre a aplicação do
instituto do abuso do direito. As parcas decisões encontradas são isoladas, e
demonstram que o profissional do direito (ainda) não está preparado para a
aplicação do instituto do abuso do direito, com vistas à realização dos fins a que o
mesmo foi criado, qual seja, incutir um senso de justiça, eticidade, socialidade e
equidade nas relações privadas
O direito, nascido da necessidade da sociedade obter pacificação
social através da solução de conflitos, não deve ser protagonista de desvios de
finalidade, consistentes na usurpação de seu fim social e econômico, boa-fé e bons
costumes no uso da norma. Pelo contrário, deve romper com as pilastras até então
inamovíveis do individualismo, que ainda se achavam impregnadas no Código Civil
novecentista e burguês, que desconhecia maiores limitações ao exercício de um
direito reconhecido por lei.
O instituto do abuso do direito é meio adequado para, através do
Direito – já que no Brasil as políticas públicas sociais e econômicas não foram
capazes – solucionar problemas decorrentes do exercício demasiado de direitos
subjetivos. Concebido como ato ilícito, o abuso do direito ainda não foi acolhido pela
jurisprudência, apesar de seu amplo campo de aplicação aos casos concretos.
Uma ação agressiva dos exegetas e aplicadores do Direito é
medida que se impõe: coragem para aplicar o instituto; interpretar o Artigo 187 à luz
da Constituição Federal e dos princípios e valores nela insculpidos; bem como,
(re)conhecer o atual momento histórico-jurídico vivenciado pelo Brasil, denominado
de modernidade tardia.
Na verdade, “sem olhos para ver (a letra) e sem ouvidos para ouvir
(o espírito) nada diremos ao art. 187, e ele nada nos dirá. E continuaremos,
resignadamente, a repetir que nada mudou, porque nada mudamos.
148
Seria o fim
do que não teve início.
O abuso do direito veio tardiamente. Mas antes tarde do que nunca.
Talvez (o que se confia), com este novel (para nós) instituto, as vetustas vestes que
obinubilam a visão dos juristas possam ser retiradas. É do nascimento de uma nova
visão voltada para valores axiológicos de índole constitucional (Constituição
democrática e garantista) que dependerá a efetividade do Art. 187.
ANEXO I
_____________
148
MARTINS-COSTA, Judith. Breves anotações acerca do conceito de ilicitude no novo Código Civil
(estruturas e rupturas em torno do art. 187). Elaborado em maio de 2003. Disponível em:
<http://mundojurídico.adv.br/html/artigos/documentos/texto382.htm. Acesso em: 08 nov. 2004.
ACÓRDÃOS DE TRIBUNAIS BRASILEIROS APÓS O ADVENTO DO NOVO
CÓDIGO CIVIL
149
01) 186037803 – DANO MORAL – INDENIZAÇÃO – FURTO EM SUPERMERCADO
– PRÁTICA IMPUTADA A MENORES – GERENTE QUE ANUNCIA A PRÁTICA DO
DELITO – FALTA DE PROVAS DE QUE A CONDUTA FOI PRATICADA PERANTE
O PÚBLICO – IMPROCEDÊNCIA NO JUÍZO A QUO – INSURGÊNCIA – MENORES
REVISTADOS POR POLICIAIS – AUSÊNCIA DE FURTO – ABUSO DE DIREITO
PRATICADO POR PREPOSTO DE SUPERMERCADO – MENORES EXPOSTOS A
RIDÍCULO – PREJUÍZO PSICO-SOCIAL DOS INFANTES – OFENSA À HONRA –
DANO MORAL EVIDENTE – QUANTIFICAÇÃO DOS DANOS MORAIS – FIXAÇÃO
QUE NÃO DESNATURE ASPECTO MORAL DA CONDENAÇÃO – PROCEDÊNCIA
DO PEDIDO – SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA REFORMADA – RECURSO
PROVIDO – É abuso de direito ofender honra íntima de menores que em
supermercado têm suas roupas revistadas por preposto de estabelecimento
comercial, expondo-os a vexame, em manifesto prejuízo psicossomático aos
infantes, quer porque não cometeram furto, quer porque, indevidamente, foram
enviados ao Conselho Tutelar da Cidade em viatura policial. A fixação pecuniária por
danos morais deve observar a posição econômica do ofensor e dos ofendidos e a
gravidade da culpa pela repercussão da ofensa aos menores, fixando-se um valor
indenizatório que não retire a essência moral do valor arbitrado.
150
02) 186012319 – LOCAÇÃO COMERCIAL – AÇÃO REVISIONAL CONEXA COM
AÇÃO DE DESPEJO C/C COBRANÇA DE CLÁUSULA PENAL – JULGAMENTO
SIMULTÂNEO – PROCEDÊNCIA DO PEDIDO REVISIONAL E IMPROCEDÊNCIA
DOS PEDIDOS DESALIJATÓRIO E DE COBRANÇA – INCONFORMISMO –
CONTRATO DE ADESÃO – OFENSA AO PRINCÍPIO DA LIBERDADE
CONTRATUAL – CENTRO COMERCIAL – INSERÇÃO DE CLÁUSULA
CONTRATUAL ESTABELECENDO RESTRIÇÃO À VENDA DE PRODUTOS DE
TERCEIROS – LIMITAÇÃO COMERCIAL IMPOSTA SOMENTE A UM LOJISTA –
ABUSO DE DIREITO E AFRONTA A BOA-FÉ CONTRATUAL – NULIDADE
RECONHECIDA – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO IMPROVIDO – Aderindo ao
contrato, o aderente não exterioriza autonomia e liberdade de contratar porque a
adesão é manifestação viciada. É abusiva e, conseqüentemente, nula - por abuso de
direito e violação ao princípio da boa-fé objetiva - a cláusula contratual imposta
somente a um lojista/locatário integrante de centro comercial quando os demais não
sofrem incidência da mesma cláusula, que estipula a comercialização exclusiva de
produtos de fabricação própria do lojista.
151
03) 132019069 – RESPONSABILIDADE CIVIL – DANO MORAL – Imputação de
débito já resgatado e anotação do nome da consumidora no rol de inadimplentes.
_____________
149
Todos os destaques no texto não constam do original, foram inseridos como forma de identificar o
instituto do abuso do direito, destacando os trechos mais significativos das ementas e votos.
150
TJSC – AC 1998.014464-7 – Seara – 2ª CDCiv. – Rel. Des. Monteiro Rocha – J. 16.12.2004.
151
TJSC – AC 02.018436-0 – Brusque – 2ª CDCiv. – Rel. Des. Monteiro Rocha – J. 18.11.2004.
Abuso de direito e ilegitimidade da inscrição. Ofensa à intangibilidade pessoal e aos
atributos da personalidade da devedora. Ofensas passíveis de qualificarem-se como
dano moral. Compensação pecuniária devida I. Deparando-se a consumidora com a
imputação de débito que havia resgatado e com a inserção do seu nome no rol dos
inadimplentes sem lastro material subjacente passível de legitimar essa anotação,
perdurando o registro por largo espaço de tempo, ficam caracterizados o abuso de
direito da credora e a ilegitimidade dos atos que praticara, pois vulneraram a
intangibilidade pessoal e patrimonial da devedora, deixando-a sujeita aos
constrangimentos, aborrecimentos, dissabores, incômodos e humilhações de ser
tratada como inadimplente e consumidora refratária ao cumprimento das obrigações
que lhe estão destinadas, qualificando-se o ocorrido como ofensa aos seus atributos
da personalidade e aos seus predicados intrínsecos, ficando patenteado que o dano
moral que experimentara é apto a gerar uma compensação pecuniária. II. Apuradas
a imputação de débito inexistente, porque já resgatado, e a ilícita anotação do seu
nome no rol dos inadimplentes, ficando qualificado o dano moral experimentado pela
consumidora, cuja caracterização na espécie se compraz com a mera ocorrência
dos atos que consubstanciaram-se no seu fato gerador, assiste-lhe o direito de
merecer a compensação pecuniária compatível com os danos havidos ante o
aperfeiçoamento do silogismo delineado pelo artigo 159 do Código Civil para que o
dever de indenizar resplandeça, ratificando-se a mensuração promovida na instância
originária por ter guardado conformação com o ocorrido, com as pessoas dos
envolvidos e com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. III. Recurso
conhecido e improvido. Unânime.
152
04) 713050 – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – Revisão contratual - Tutela antecipada
visando impedir a inscrição do nome do devedor no órgão de proteção ao crédito -
Cabimento - Recurso parcialmente provido - Ajuizada ação tendente a revisionar
cláusulas contratuais, caracteriza abuso de direito a negativação do nome do
acionante, justificando-se a suspensão de sua inscrição em órgão de proteção ao
crédito enquanto não julgada em definitivo a questão. (TJSP – AI 888953-0/8 – São
Paulo – 35ª CDPriv. – Rel. Des. Artur Marques – J. 21.03.2005)
132068918 – RESPONSABILIDADE CIVIL – SERVIÇOS TELEFÔNICOS –
DÉBITOS DESPROVIDOS DE CAUSA SUBJACENTE LEGÍTIMA – COBRANÇAS
INDEVIDAS E INSERÇÃO DO NOME DO CONSUMIDOR NO ROL DOS MAUS
PAGADORES – OFENSA À INTANGIBILIDADE PESSOAL E À CREDIBILIDADE –
DANO MORAL CARACTERIZADO – COMPENSAÇÃO PECUNIÁRIA DEVIDA – 1.
As insistentes cobranças de débitos inexistentes e a anotação do nome do
consumidor no rol dos inadimplentes, revelando falha nos serviços de telefonia que
lhe eram fornecidos, caracterizam-se como ato ilícito e abuso de direito,
qualificando-se como fato gerador do dano moral ante a afetação na sua
credibilidade, bom nome e decoro e dos transtornos, chateações e situações
vexatórias aos quais fora submetido em decorrência de ser qualificado como
inadimplente quando efetivamente não detinha essa condição. 2. Somente a
operadora de telefonia de longa distância que concorrera de forma imediata para os
atos ofensivos está revestida de legitimação para integrar a relação processual e
_____________
152
TJDF – ACJ 20020110043216 – 2ª T.R.J.E. – Rel. Des. Teófilo Rodrigues Caetano Neto – DJU
02.12.2002 – p. 41.
responder junto ao consumidor que fora por eles alcançado pelos efeitos deles
originários, assistindo-lhe, em contrapartida, o direito de reclamar junto à operadora
de telefonia local a composição dos prejuízos que experimentara em decorrência da
negligência em que incorrera ao habilitar de forma indevida uma linha telefônica e
lhe comunicar a habilitação, ensejando o lançamento do nome daquele que figurara
como seu usuário nos seus cadastros e como responsável pelos serviços através
dela fruídos. 3. Guardando a mensuração da compensação pecuniária derivada do
dano moral havido conformação com o ocorrido, com as pessoas das envolvidas e
com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, refletindo uma justa
penalização à ofensora pelo ilícito que praticara e pelo seu menosprezo para com o
bom nome alheio, e, de outra parte, uma compensação deferida à ofendida com um
lenitivo passível de amenizar os danos que sofrera, ratifica-se o importe aquilatado.
4. Recurso conhecido e improvido. Unânime.
153
05) 132068844 – CIVIL – CONSUMIDOR – NEGATIVAÇÃO NO SPC –
MANUTENÇÃO INDEVIDA DO NOME DE CLIENTE – CANCELAMENTO DE
COMPRA MAS MANTIDAS AS RESTRIÇÕES CADASTRAIS – AGRESSÃO AO
DISPOSTO NO ART. 43 §2º DO CDC – ABERTURA DE REGISTRO DE DADO
PESSOAL NÃO COMUNICADA AO CONSUMIDOR – INÉRCIA E NEGLIGÊNCIA
CONFIGURADAS – DEFEITO NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO – ABUSO DE
DIREITO – PREJUÍZO AO CONSUMIDOR – DANO MORAL CONFIGURADO –
ART. 186 C/C 927, CCB/02 – PRECEDENTES DAS TURMAS RECURSAIS –
CONSTRANGIMENTOS SUPORTADOS – MATÉRIA PACIFICADA – QUANTUM A
SER FIXADO EM SINTONIA COM OS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E
RAZOABILIDADE – 1 - A negativação indevida de nome de consumidor em
cadastros de proteção ao crédito acarreta, para o causador do ilícito, a obrigação de
reparar o dano moral, diante da lesão, injusta, àquele bem juridicamente tutelado,
que é o nome. 2 - A empresa prestadora de serviços é responsável pelos danos
causados por seus prepostos ou má por prestação de serviços (art. 7º parágrafo
único c/c art. 14, CDC - Lei nº 8078/90); risco da atividade empresarial (art. 927
caput e parágrafo único, do CCB/02). 3 - Patente a agressão ao disposto no art. 43
§2º do CDC a abertura de registro de dado pessoal não comunicada ao consumidor,
configurando negligência e defeito na prestação do serviço, além de abuso de direito
em prejuízo ao sistema protetivo do código consumeirista, evidenciando os
constrangimentos suportados. 4 - A responsabilidade in casu, como se trata de
relação de consumo, é objetiva e solidária (art. 7º parágrafo único do CDC).
Interessa ao consumidor a coleta da informação objetiva a seu respeito (conhecer
seu conteúdo), principalmente aquela que vai ser arquivada sobre sua pessoa,
justificando, por isso, o direito à comunicação do armazenamento, ao acesso a essa
informação e também à retificação. 5 - O quantum fixado na indenização de danos
morais deve atentar para as circunstâncias específicas do evento, para a situação
patrimonial das partes (condição econômico-financeira), para a gravidade da
repercussão da ofensa, atendido o caráter compensatório, pedagógico e punitivo da
condenação, sem gerar enriquecimento indevido, sempre em sintonia com os
princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Sentença reformada. Recurso
_____________
153
TJDF – ACJ 20040110878656 – 1ª T.R.J.E. – Rel. Des. Teofilo Rodrigues Caetano Neto – DJU
24.08.2005 – p. 93.
conhecido e provido. Unânime.
154
06) 1602015919 – SFH – TABELA PRICE – CAPITALIZAÇÃO DE JUROS – IPC DE
MARÇO/90 – LIMITAÇÃO DA TAXA DE JUROS EM 10% – CONTRATO ASSINADO
SOB A ÉGIDE DO DECRETO 63.182/68 – NÃO INCIDÊNCIA DO ART. 478 DO CC
– 1. O Sistema Francês de Amortização (Tabela Price), previsto no contrato em
análise, corresponde à legislação aplicável, porque pressupõe o pagamento do valor
financiado em prestações periódicas, iguais e sucessivas, constituídas por duas
parcelas - Amortização e juros -, a serem deduzidas mensalmente, por ocasião do
pagamento. 2 Sem a comprovação de que o sistema de amortização utilizado
importe violação de Lei ou de norma infralegal, ou, ainda, de que a respectiva
cláusula, que prevê a aplicação da Tabela Price, à qual o mutuário adere, configure
flagrante abuso de direito ou enriquecimento ilícito do Mutuante, não há falar em
ilegalidade. 3. A maior evidência de que há desequilíbrio na fórmula de amortização
adotada é a ocorrência de amortização negativa, ou seja, o pagamento de prestação
insuficiente para abater a parcela de capital necessária à amortização real da dívida,
o que representa ameaça à quitação do contrato no prazo acertado, caracterizando
violação do contido no art. 5º da Lei nº 8.692/93. 4. Isto, porque os juros excedentes
serão cumulados, gerando os efeitos da capitalização mensal, configurando prática
vedada pelo ordenamento jurídico pátrio. 5. No presente caso, os documentos
acostados aos autos, em especial a planilha de evolução do financiamento (fls. 45-
48), evidenciam que as amortizações realizadas ao longo da contratualidade foram
negativas, sendo necessária a revisão dos valores contratados e da sistemática de
amortização (Tabela Price), em todo o período da contratualidade, de modo que seja
restabelecida a composição das prestações e dos juros, nos limites que permitam a
redução gradual da dívida. 6. No concernente à atualização monetária do saldo
devedor, no período de março/90, deve obedecer a incidência da variação do IPC
(84,32%), face à relação existente entre a indexação os contratos do SFH e os
índice de remuneração dos depósitos da caderneta de poupança, bem como dos
saldos das contas vinculadas ao FGTS, que são as fontes originárias dos recursos
destinados à habitação. 7. Firmado o contrato antes da Lei nº 8682/93, que
estabeleceu juros de 12% ao ano, aplica-se a limitação do Decreto nº 63.182/68 que
é de 10% ao ano. 8. Não há que se falar em aplicação do art. 478 do CC, porquanto
a hipótese presente não se trata de Resolução contratual e sim de revisão. 9.
Recurso da CEF parcialmente provido.
155
07) 224272 – PROCESSO CIVIL – DANO MORAL – ACUSAÇÃO DE FURTO –
OFENSA PRATICADA PELA EMPREGADORA – ALEGAÇÃO DE EXERCÍCIO
REGULAR DE DIREITO – ABUSO DO DIREITO – REQUISITOS DO ATO ILÍCITO –
QUANTUM DA INDENIZAÇÃO – RECURSO IMPROVIDO – I - A simples iniciativa
de se solicitar providências policiais mesmo causando dano não leva
necessariamente à indenização. Assim, muito embora se reconheça que a apelante
_____________
154
TJDF – ACJ 20040111248158 – 2ª T.R.J.E. – Rel. Des. Alfeu Machado – DJU 10.08.2005 – p.
108.
155
TRF 4ª R. – AC 2002.71.11.006395-9 – 3ª T. – Rel. Juiz Fed. Joel Ilan Paciornik – DJU
21.09.2005 – p. 621.
ao solicitar providências policiais agiu no exercício regular de seu direito, afere-se
que a mesma abusou do pretenso direito, excedendo manifestamente os limites
impostos. Em verdade, a apelante não só tomou providências quanto ao
desaparecimento do bem, como também afirmou para outras pessoas que a autora
havia subtraído o relógio de sua residência. II - O dano moral tem fundamento no
direito da personalidade; trata-se, pois, da dor da vítima quanto a humilhação e
constrangimento acarretados. III - Cabe ao julgador o dever avaliar e sopesar a dor
do ofendido, a fim de propiciar-lhe o adequado conforto material como forma de
compensação, levando-se em conta o potencial econômico e social da parte
obrigada, bem como as circunstâncias e a extensão do evento danoso. No particular,
o quantum arbitrado pelo MM. Juiz a quo busca, com rigor, compensar o dano
sofrido com a eminente função preventiva e educativa do dano moral. IV - Recurso
improvido.
156
08) 216218 – APELAÇÃO CÍVEL – DIREITO DE VIZINHANÇA – ABUSO DO
DIREITO DE PROPRIEDADE – Bar que, sem alvará, promove shows de música ao
vivo madrugada adentro, com prejuízo para o sossego da vizinhança. Ação, com
pedido de imposição de obrigação de não fazer, com cominação de multa, bem
como com pedido reparatório por dano moral. Sentença que julga procedente em
parte o pedido. Apelos. Agravo retido contra a decisão que substitui a figura do
sócio-gerente pela da sociedade comercial, que não existia, porém, à época da
propositura de demanda. Indícios de tentativa, pelo réu, de frustrar futura execução,
uma vez que inexiste patrimônio em nome da sociedade. Provimento parcial do
agravo retido, para que figurem, no pólo passivo, tanto o nome do réu originário,
como da sociedade posteriormente constituída. Desnecessidade de nulidade do
feito, em face da decisão retro, uma vez que a defesa realizada aproveita a ambos
réus, tendo sido efetuada por patrono com procuração outorgada, tanto pelo réu
originário, tanto como pessoa natural, quanto na qualidade de sócio-gerente da
pessoa jurídica. Inteligência do art. 244 do CPC. Rejeição da preliminar de
ilegitimidade passiva, matéria superada pelo julgamento do agravo retido. Mérito.
Vasto conjunto probatório, justificando a correção do entendimento da sentença em
sua fundamentação. Verba reparatória de 100 salários mínimos, que se justifica, em
seu aspecto punitivo, ante o comportamento altamente reprovável dos réus, no
decorrer da lide, inclusive desrespeitando medida cautelar e ensejando prisão.
Pretensão autoral de majoração do valor indenizatório, que não se justifica, eis que
bastante o montante determinado pelo Juízo. Condenação em litigância de má-fé
desnecessária, tendo-se em vista que os réus somente mobilizaram o arsenal
processual disponível, dada a exigência do devido processo legal, tendo já sido
penalizados pela prisão e pela pesada condenação imposta na sentença.
Provimento parcial do agravo retido. Preliminar rejeitada. Improvimento de ambos
recursos de apelação.
157
_____________
156
TJDF – AC 2004.01.1.036712-6 – 1ª T.Cív. – Rel. Des. Hermenegildo Gonçalves – DJU
25.08.2005 – p. 129.
157
TJRJ – AC 20.046/02 – 15ª C.Cív. – Rel. Des. José Pimentel Marques – DJRJ 10.02.2004 – p.
368.
09) 1400455985 – CIVIL – CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS – ECT –
INADIMPLÊNCIA – LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ – IMPUGNAÇÃO DO VALOR DA
CAUSA – PROCEDIMENTO INADEQUADO – LEGALIDADE DA MULTA
CONTRATUAL – 1. Não restou configurada má-fé processual por parte da autora,
pois a inicial preenche todos os requisitos exigidos pelo art. 282, do CPC e a
omissão quanto a existência de acordo estabelecido entre as partes não configura,
in casu, uma conduta típica. 2. Pelas circunstâncias que cercam o fato e por tudo
que foi produzido no feito conclui-se que não houve abuso de direito com violência à
direito do réu, mormente quando o próprio Digesto Processual impõem a este o ônus
de provar a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor
(art. 333), e, ainda, porque a omissão da autora não trouxe qualquer prejuízo
processual, sendo o caso de aplicar-se a Súmula 159 do STF, verbis: "Cobrança
excessiva, mas de boa fé, não dá lugar às sanções do Art. 1.531 do Código Civil. " 3.
A singela e genérica alegação de que houve má-fé não é suficiente para impor-se tal
condenação, principalmente quando no apelatório não há sequer indicação de quais
incisos do referido artigo 17 do CPC restaram vulnerados. Neste sentido a decisão
do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, RESP 314.470/RJ, Rel. Ministro Edson
Vidigal, DJ 20.08.2001. 4. A via adequada para impugnar o valor da causa seria
através de petição apartada, oferecida no prazo da contestação, a ser protocolada,
distribuída por dependência e autuada como incidente processual, permanecendo
apensa à principal e julgada anteriormente à esta. Desta feita, não há que se falar
em omissão do Juízo a quo em apreciar a impugnação ante a inobservância do
procedimento adequado (STJ, AR 164/SP, Rel. Ministro Adhemar Maciel, Primeira
Seção, DJ 05.03.1990). 5. Ainda que em observância ao preceito constitucional (art.
5º, inciso LXXVIII) Que orienta no sentido do máximo aproveitamento dos atos
processuais, e ciente de decisões do Colendo STJ excepcionando e acolhendo a
impugnação ao valor da causa quando não autuada em apenso, mas aduzida em
preliminar (RESP 256157/SP, DJ 01.4.2002), no caso sub examen tal não seria
possível, isto porque o apelante tanto na contestação quanto no apelo deixou de
fundamentar e demonstrar qual o valor entendia correto. 6. Se mostra legítima a
cobrança da multa prevista no contrato no caso de inadimplemento da obrigação.
Nesse eito, a jurisprudência do STJ já se firmou no sentido de que, na conformidade
da Lei 6.840/80 e do Decreto-Lei 413/69, art. 58, é legítima a cobrança da multa de
10% no caso de inadimplemento da obrigação, desde que estipulada no contrato. 7.
Recurso conhecido e desprovido.
158
10) 1302007264 – ADMINISTRATIVO – MANDADO DE SEGURANÇA – DIREITO
DE OBTER IMFORMAÇÕES DO PODER PÚBLICO PARA EVENTUAL
PROPOSITURA DE AÇÃO JUDICIAL – ART. 5º, XXXIII E XXXIV, LETRA "B", DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL/1988 – POSSIBILIDADE – 1. A negativa das repartições
públicas, que têm o dever de atender pedido de informações que lhes seja
formulado, exceto aquelas cujo sigilo é imprescindível à segurança da sociedade e
do estado, constitui abuso de direito o não fornecimento das informações de
_____________
158
TRF 2ª R. – AC 1999.02.01.054615-0 – 8ª T.Esp. – Rel. Des. Fed. Poul Erik Dyrlund – DJU
08.09.2005 – p. 189.
interesse legítimo do cidadão, conduta que viola a garantia inscrita no art. 5º, XXXIII
e XXXIV, letra "b", da Constituição Federal/1988. 2. Constatado que não se trata de
caso de informações sigilosas necessárias à segurança da sociedade, ou do estado,
é dever da administração pública fornecer informações ou documentos solicitados
pelo administrado para a defesa e esclarecimento de situações de seu interesse,
ensejando o controle jurisdicional pela via do mandado de segurança, a sua
negativa. 3. Remessa oficial improvida.
159
11) 1700312165 – SEGURADORA – VEÍCULO DE CARGA – DEMORA NO
CONSERTO – CONDENAÇÃO DA EMPRESA SEGURADORA AO PAGAMENTO
DE LUCROS CESSANTES – NULIDADE DA CITAÇÃO IMPROCEDENTE PELO
COMPARECIMENTO DA PARTE RÉ – Improcede a preliminar de ilegitimidade ativa
por constar no contrato de seguro o nome do proprietário do veículo. Também é de
se rejeitar a alegada carência de ação por não abrangidos os lucros cessantes na
apólice de seguro porque não se trata de indenização contratual, mas
extracontratual decorrente de conduta lesiva da seguradora em providenciar o
conserto do veículo sinistrado. O recibo de quitação assinado pelo segurado não
impede o segurado de vir a juízo em face do princípio constitucional da
inafastabilidade do Poder Judiciário. Quanto à juntada da apólice improcede a
irresignação por trazida aos autos pela parte demandante, além do que tal
providência incumbe à seguradora nos limites do seu ônus probatório. Evidenciado
abuso de direito da seguradora em ultimar o conserto de veículo utilizado para carga
de mercadoria, além de prazo razoável, deve indenizar o consumidor lesado. A
demora da seguradora não pode ser definida como risco do seguro não coberto pela
apólice, pelo que não incide a norma do art. 1.460 do NCCB. Demonstrado o nexo
causal entre o dano – lucros cessantes e o fato ilícito – demora abusiva da
seguradora em liberar o conserto do veículo, resta configurada a pretensão
indenizatória. Lucros cessantes demonstrados por provas contábeis devem ser
indenizados. Desnecessária a juntada de declaração de Imposto de Renda e outros
documentos. Os conhecimentos de transporte de carga de período anterior e de
outro veículo similar no período em que o caminhão ficou parado, são documentos
hábeis para a prova dos lucros cessantes. O arbitramento do lucro líquido em 40%
do total bruto constitui valor adequado, mormente que utilizado para fins fiscais.
Recurso improvido.
160
12) 116215603 – AGRAVO REGIMENTAL – RECURSO ESPECIAL NÃO ADMITIDO
– OMISSÃO INEXISTENTE – FUNDAMENTOS NÃO IMPUGNADOS – SÚMULA Nº
288/STF – 1. O Tribunal de origem enfrentou, uma a uma, todas as preliminares
suscitadas no recurso de apelação, além de, no mérito, conter devida
fundamentação. Não há falar, assim, em negativa de prestação jurisdicional. 2. Para
se aferir a alegação de julgamento extra petita, indispensável o exame da petição
inicial da ação. A ausência do traslado de referida peça faz incidir a Súmula nº
_____________
159
TRF 5ª R. – REOMS 2004.81.00.002515-0 – (91338) – CE 1ª T. – Rel. Des. Fed. Ubaldo Ataide
– DJU 13.09.2005 – p. 480.
160
TJRS – Proc. 71000554329 – 3ª T.R.Cív. – Relª Desª Maria José Schmitt Santanna – J.
15.03.2005.
288/STF. 3. Quanto ao protesto, reconheceram os julgadores que "correto o protesto
ofertado pelo requerido", sendo certo que "o aforamento do protesto contra
alienação de bens é o exercício regular de um direito, ausente o alegado abuso de
direito" (fl. 31). O recorrente não menciona qualquer dispositivo legal que disponha
de forma contrária, deixando de impugnar devidamente essa afirmação. 4. Agravo
regimental desprovido.
161
13) 224272 – PROCESSO CIVIL – DANO MORAL – ACUSAÇÃO DE FURTO –
OFENSA PRATICADA PELA EMPREGADORA – ALEGAÇÃO DE EXERCÍCIO
REGULAR DE DIREITO – ABUSO DO DIREITO – REQUISITOS DO ATO ILÍCITO –
QUANTUM DA INDENIZAÇÃO – RECURSO IMPROVIDO – I - A simples iniciativa
de se solicitar providências policiais mesmo causando dano não leva
necessariamente à indenização. Assim, muito embora se reconheça que a apelante
ao solicitar providências policiais agiu no exercício regular de seu direito, afere-se
que a mesma abusou do pretenso direito, excedendo manifestamente os limites
impostos. Em verdade, a apelante não só tomou providências quanto ao
desaparecimento do bem, como também afirmou para outras pessoas que a autora
havia subtraído o relógio de sua residência. II - O dano moral tem fundamento no
direito da personalidade; trata-se, pois, da dor da vítima quanto a humilhação e
constrangimento acarretados. III - Cabe ao julgador o dever avaliar e sopesar a dor
do ofendido, a fim de propiciar-lhe o adequado conforto material como forma de
compensação, levando-se em conta o potencial econômico e social da parte
obrigada, bem como as circunstâncias e a extensão do evento danoso. No particular,
o quantum arbitrado pelo MM. Juiz a quo busca, com rigor, compensar o dano
sofrido com a eminente função preventiva e educativa do dano moral. IV - Recurso
improvido.
162
14) 87019933 – DANOS MORAIS – ACUSAÇÃO INJUSTA DA PRÁTICA DE
ILÍCITO PENAL – A imputação de crime de furto, roubo ou apropriação indébita feita
ao empregado pelo empregador, sem que haja certeza absoluta do fato,
submetendo-o à situação vexatória e permitindo o seu conhecimento por outras
pessoas, em completo desrespeito à sua integridade moral e à sua imagem,
caracteriza abuso do direito, resultando fatalmente em ofensa à honra, passível de
reparação.
163
15) 216218 – APELAÇÃO CÍVEL – DIREITO DE VIZINHANÇA – ABUSO DO
DIREITO DE PROPRIEDADE – Bar que, sem alvará, promove shows de música ao
vivo madrugada adentro, com prejuízo para o sossego da vizinhança. Ação, com
_____________
161
STJ – AGRAGA 200400126007 – (585742) – RS – 3ª T. – Rel. Min. Carlos Alberto Menezes
Direito – DJU 27.06.2005 – p. 00370.
162
TJDF – AC 2004.01.1.036712-6 – 1ª T.Cív. – Rel. Des. Hermenegildo Gonçalves – DJU
25.08.2005 – p. 129.
163
TRT 12ª R. – RO-V 07066-2001-001-12-00-0 – (12017/2004) – Florianópolis – 3ª T. – Relª Juíza
Lília Leonor Abreu – J. 13.10.2004
.
pedido de imposição de obrigação de não fazer, com cominação de multa, bem
como com pedido reparatório por dano moral. Sentença que julga procedente em
parte o pedido. Apelos. Agravo retido contra a decisão que substitui a figura do
sócio-gerente pela da sociedade comercial, que não existia, porém, à época da
propositura de demanda. Indícios de tentativa, pelo réu, de frustrar futura execução,
uma vez que inexiste patrimônio em nome da sociedade. Provimento parcial do
agravo retido, para que figurem, no pólo passivo, tanto o nome do réu originário,
como da sociedade posteriormente constituída. Desnecessidade de nulidade do
feito, em face da decisão retro, uma vez que a defesa realizada aproveita a ambos
réus, tendo sido efetuada por patrono com procuração outorgada, tanto pelo réu
originário, tanto como pessoa natural, quanto na qualidade de sócio-gerente da
pessoa jurídica. Inteligência do art. 244 do CPC. Rejeição da preliminar de
ilegitimidade passiva, matéria superada pelo julgamento do agravo retido. Mérito.
Vasto conjunto probatório, justificando a correção do entendimento da sentença em
sua fundamentação. Verba reparatória de 100 salários mínimos, que se justifica, em
seu aspecto punitivo, ante o comportamento altamente reprovável dos réus, no
decorrer da lide, inclusive desrespeitando medida cautelar e ensejando prisão.
Pretensão autoral de majoração do valor indenizatório, que não se justifica, eis que
bastante o montante determinado pelo Juízo. Condenação em litigância de má-fé
desnecessária, tendo-se em vista que os réus somente mobilizaram o arsenal
processual disponível, dada a exigência do devido processo legal, tendo já sido
penalizados pela prisão e pela pesada condenação imposta na sentença.
Provimento parcial do agravo retido. Preliminar rejeitada. Improvimento de ambos
recursos de apelação.
164
16) INDENIZAÇÃO – DANO MORAL – REPORTAGEM TELEVISIVA – IMPUTAÇÃO
DE PARTICIPAÇÃO EM QUADRILHA DE ESTELIONATÁRIOS – FATO
INEXISTENTE – ABUSO DE DIREITO – Dever de indenizar o dano moral
decorrente. Cerceamento de defesa. Não ocorrência. Pedido de suspensão da ação
civil até o julgamento da ação penal instaurada contra os infratores. Indeferimento,
tendo em vista a não participação do autor na prática do delito. Preliminar de
ilegitimidade passiva acobertada pela coisa julgada. Matéria já decidida em sede de
agravo de instrumento. Sentença devidamente fundamentada. Recurso desprovido.
Manutenção do valor da indenização. Ausência de pedido de redução. 1. Se o autor
não tinha qualquer participação com os elementos que foram presos, mas mesmo
assim o seu nome foi incluído na notícia como se fosse um dos criminosos, cabe à
emissora de televisão que divulgou a matéria indenizar os danos morais causados
ao autor, eis que a repórter que transmitiu a notícia foi negligente e imprudente ao
relacionar o nome do autor com a prática de crimes que ele não cometeu. Era dever
da repórter, ao divulgar a notícia sobre a prisão dos meliantes, investigar por que
motivo o veículo do autor tinha sido apreendido pela polícia e também por que sua
carteira de identidade encontrava-se recolhida na delegacia de polícia. Ao divulgar a
notícia inverídica sobre o autor, inclusive afirmando que ele também tinha sido
preso, o que, pois, não era verdade, a notícia causou ao autor constrangimento,
humilhação, sofrimento e vergonha, enfim, causou dano moral. 2. Como o autor não
foi denunciado na ação penal, eis que não teve qualquer participação na prática dos
_____________
164
TJRJ – AC 20.046/02 – 15ª C.Cív. – Rel. Des. José Pimentel Marques – DJRJ 10.02.2004 – p.
368.
delitos imputados aos elementos que foram presos, correta a decisão que indeferiu o
pedido da ré para que a ação de indenização por danos morais fosse suspensa até
o julgamento da ação penal. O indeferimento do pedido de suspensão da ação civil
não configurou cerceamento de defesa. 3. Uma vez analisada e rejeitada em sede
de agravo de instrumento a preliminar de ilegitimidade passiva suscitada pela
emissora de televisão, que quis atribuir a culpa pela transmissão da notícia
inverídica à polícia, não cabia ao juiz de primeiro grau examinar novamente essa
preliminar ao exame de mérito da questão na sentença. 4. Como a parte ré não
pediu na apelação para reduzir o valor da indenização do dano moral, fixado em
cinqüenta mil reais, mantém-se o valor arbitrado, eis que não cabe a redução ser
feita de ofício pelo magistrado. 5. A liberdade de imprensa deve ser exercida com
consciência e responsabilidade, em respeito à dignidade alheia, para que não
resulte em prejuízo à honra, imagem e ao direito de intimidade da pessoa abrangida
na notícia, hipótese em que o exercício regular de um direito converte-se em abuso
de direito.
165
17) CIVIL – MORA CONTRATUAL – CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
MÉDICOS – Negativa de atendimento a contratada faltando três dias para término
do prazo do convênio, ou seja, no prazo de vigência. Abusividade. Descumprimento
do pactuado. Constrangimentos suportados. Abalo íntimo e pesar. Abuso de direito.
Dignidade da pessoa humana. Incidência do CDC - Lei nº 8078/90. Prestação de
serviços ineficiente, inadequada e defeituosa. Dano moral configurado. Manutenção
do quantum fixado. Precedentes das turmas recursais. Impossibilidade de majoração
em sede de contra-razões. Recurso conhecido e improvido. Unânime.
166
18) PROCESSO CIVIL – AGRAVO DE INSTRUMENTO – NEGATIVA DE
PROVIMENTO – AGRAVO REGIMENTAL – CONSUMIDOR – INSCRIÇÃO NO
CADASTRO DE INADIMPLENTES – DISCUSSÃO DO MONTANTE DA DÍVIDA EM
JUÍZO – ABUSO DE DIREITO – SÚMULA 83/STJ – DESPROVIMENTO – 1 - Este
Tribunal já proclamou o entendimento no sentido de que o registro do nome do
consumidor, como devedor inadimplente, no Serviço de Proteção ao Crédito, quando
o valor da dívida está sendo discutido em juízo, representa abuso de direito.
Precedentes (RESP nºs 191.326/SP e 170.281/SC). 2 - Aplicável, portanto, à
hipótese, o enunciado sumular de nº 83/STJ. 3 - Agravo Regimental conhecido,
porém, desprovido.
167
_____________
165
TJDF – APC 20000110786057 – 1ª T.Cív. – Rel. Des. Roberval Casemiro Belinati – DJU
30.08.2005 – p. 103
.
166
TJDF – ACJ 20030110837908 – 2ª T.R.J.E. – Rel. Des. Alfeu Machado – DJU 29.08.2005 – p. 89.
167
STJ – AGA 520678 – RS – 4ª T. – Rel. Min. Jorge Scartezzini – DJU 06.12.2004 – p. 00320.
ANEXO II
ACÓRDÃOS SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
168
– PORTUGAL
169
01) Processo: 05A1798
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDES MAGALHÃES
Descritores:CONTRATO. GARANTIA BANCÁRIA. DECLARAÇÃO NEGOCIAL.
INTERPRETAÇÃO. ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: SJ200506220017986
Data do Acordão: 22/06/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7961/03
Data:09/12/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário :
I - Há que interpretar por modo correcto o contrato de garantia bancária (suas
cláusulas) por modo a não esquecer a diferença entre garantia de bom cumprimento
contratual e garantia de subsistência de oferta em concurso público de a empreitada.
II - A interpretação da declaração negocial tem por objectivo fixar o seu sentido e
alcance juridicamente decisivos, sendo a justiça o seu fundamento necessário
(justiça do caso concreto).
III - O comportamento abusivo outra coisa não é senão o exercício de um
direito aparente: trata-se de um comportamento que exibe a forma, a aparência
de um direito que, na verdade, não existe.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
_____________
168
Extraídos do site http://www.stj.pt.
169
Todos os destaques no texto não constam do original, foram inseridos como forma de destacar os
trechos mais significativos das ementas e votos.
O Município de Lisboa, em 10/12/2001 intentou acção ordinária contra o Banco A,
S.A. pedindo a condenação desta a pagar-lhe 22.999.876$00 e juros.
Contestou a Ré que, além do mais, deduziu o incidente de intervenção acessória
provocada de B, sociedade Metropolitana de Construções, S.A., tendo esta
contestado também.
Findos os articulados foi proferido despacho saneador sentença a julgar a acção
improcedente.
Inconformada com tal decisão apelou o Autor sem êxito, recorrendo agora de revista.
Formula nas suas alegações as seguintes conclusões:
«...
I. A garantia bancária autónoma prestada pelo A a favor do Município de Lisboa
realizava a função de garantia de subsistência da oferta da B no concurso público;
II. Tratando-se de uma garantia de subsistência da oferta, a perda da caução pode
ocorrer, nos termos do art. 103°, n° 3 do Dec.-Lei n° 235/86, de 18 de Agosto, pelo
facto de não se ter celebrado o contrato de empreitada, por motivo imputável ao
concorrente, conforme sucedeu;
III. O n° 3 do art. 103° do Dec.-Lei n° 235/86 não deixa dúvidas quanto à
circunstância de o adjudicatário perder a favor do dono da obra a caução prestada
se o contrato de empreitada não se vier a celebrar por motivo que ao primeiro seja
imputável;
IV. No caso, a não celebração do contrato de empreitada ficou exclusivamente a
dever-se ao facto de a B não ter a sua situação contributiva regularizada perante a
Segurança Social, o que impedia o Município de Lisboa de com ela contratar;
V. Sendo que a B tinha a obrigação de manter a sua proposta;
VI. Pelo que o Município de Lisboa podia legitimamente accionar a garantia bancária
de que era beneficiário;
VII. Ao não entender assim, o douto Acórdão recorrido violou as normas dos arts.
92°, n° 1 e 103°, n° 3 do Dec.-Lei n° 235/86, de 18 de Agosto, e do art. 15°, al. a) do
Dec.-Lei n° 411/91, de 17 de Outubro;
VIII. E mais: o douto Acórdão recorrido violou igualmente as normas dos arts. 236°,
n° 1 e 334° do Código Civil;
IX. O primeiro preceitua que o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que
seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, o sentido que da mesma seja
razoável retirar ou presumir e não aquele que o declarante pretende ter querido
atribuir-lhe;
X. Deste modo, uma garantia bancária autónoma prestada para garantir a
subsistência de uma proposta efectuada no âmbito de um concurso público não
pode ser interpretada no sentido de só poder ser accionada se o contrato tiver sido
celebrado;
XI. A garantia bancária autónoma em causa deve ser antes interpretada de acordo
com a finalidade para que foi prestada e o momento em que tal ocorreu, bem como
em função do condicionalismo jurídico aplicável;
XII. Segundo o próprio texto da garantia, a mesma correspondia ao «depósito de
garantia definitivo para a empreitada»;
XIII. O montante da garantia - 29.999.876$00 - mostra bem, por comparação com o
valor da proposta da B - 599.997.516$00 -, a referida finalidade de caução;
XIV. Do que resulta a completa irrelevância da não celebração do contrato de
empreitada para a possibilidade de ser exigido o cumprimento da garantia de
subsistência da proposta;
XV. Por último, temos que também não podem quer o banco emitente da garantia
quer a entidade que a entregou para caucionar a subsistência da sua proposta
pretender que a mencionada garantia apenas seria accionável após a celebração do
contrato de empreitada;
XVI. Pois tal representa um manifesto abuso de direito (art. 334° do Código Civil),
por contrariedade com a posição assumida no concurso, de que ao Supremo
Tribunal de Justiça cabe conhecer.»
Corridos os vistos, cumpre decidir.
É a seguinte a matéria de facto provada:
«...
2.1) O Banco C emitiu e constituiu a garantia n° 02/1000019845 cujo teor
corresponde ao conteúdo do documento de folhas 21 e 22 dos autos.
2.2) A Câmara Municipal de Lisboa, lançou um concurso público de empreitada para
a Construção do ... do Casal Vistoso, através do Anúncio 39/93, publicado na III
Série, n.° 129 de 3.6.1993.
2.3) Nesse mesmo anúncio o acto público de concurso foi marcado para as 9.30
horas do dia 20 de Julho de 1993.
2.4) Em 21.12.1993 foi elaborada a informação que consta a folhas 53/54 dos autos;
2.5) Em 25.01.1994 o Gabinete de Estudos e Planeamento da C.M.L. emite parecer
sobre a adjudicação da empreitada à B, informação n.° 239/GEP/DPPC/94, que se
alcança a folhas 55/57 dos autos.
2.6) Este parecer foi levado à votação na reunião da Câmara Municipal de Lisboa,
através da proposta 106/95, e foi aprovada em 8.3.95.
2.7) Pelo ofício n.° 951493/DD de 28.3.1995 foi a B "notificada" de que foi aprovada
a sua proposta para a Empreitada n° 5/DD/93 -"Construção do Pavilhão ..... do Casal
Vistoso".
2.8) Na mesma data do anterior, recebeu, ainda, o oficio n.° 95/494/DD, com
comunicação para realização do depósito definitivo de Esc. 29.999.786$00, que
constitui a garantia para essa Empreitada.
2.9) A data limite para a apresentação do depósito de garantia era o dia 17.4.1995.
2.10) Em 17.4.1995 a B enviou a garantia bancária n.º 02/1000019845, emitida pelo
C, pelo valor de 5% da empreitada.
2.11) A B foi "notificada" da minuta do contrato através do ofício n° 74 da CML, com
data de 16.8.95, cujo teor consta a folhas 64 dos autos.
2.12) O teor de tal minuta corresponde ao conteúdo do documento de folhas 65/67
dos autos.
2.13) A B respondeu à CML por ofício cujo conteúdo corresponde ao teor do
documento de folhas 68 dos autos.
2.14) Em 10.10.95 através dos serviços de Notariado da CML a B foi "notificada"
para o seguinte: "Queiram indicar quem vem assinar e se estão interessados em
assinar no dia 20.10.95 às 15h.
2.15) Por acordo entre a CML e a B a data marcada ficou sem efeito.
2.16) Em 8.4.96 a B devia ao Centro Regional de Segurança Social de Lisboa e Vale
do Tejo a quantia de 356.091.758$00.
2.17) A "B" SA fez correr processo especial de recuperação de empresa que teve os
seus termos nesta Vara (então Juízo) e secção, com o n° 276/96.»
Feita esta enumeração, e delimitado como está o objecto do recurso pelas
conclusões das alegações do recorrente, Município de Lisboa, começaremos por
dizer que este carece de razão.
Com efeito, há desde logo que acentuar que a garantia bancária prestada pelo A
(doc. de fls. 12) visava o incumprimento do contrato de empreitada a celebrar entre o
Município de Lisboa e a B - Sociedade Metropolitana de Construções, S.A. (e não
que esta última criasse condições necessária à celebração do contrato).
Sucede, porém, que tal contrato não chegou a ser celebrado, tendo ficado provado
que por mútuo acordo entre o Município de Lisboa e a B foi dada sem efeito a data
marcada para a assinatura de tal contrato.
Por outro lado a não concretização do contrato de empreitada entre a B e o
Município de Lisboa é apenas imputável a este último por não ter acatada nem
sequer um dos diversos prazos que ao tempo a lei impunha que acatasse (v. art.ºs
81 e seguintes do D.L. 235/86 de 18/8 então em vigor).
Estamos em face de uma garantia de cumprimento do contrato de empreitada (e não
de garantia de subsistência de oferta), sendo também de salientar que,
contrariamente ao alegado pelo recorrente, se não provou que a não celebração do
contrato se ficou a dever ao facto de a B não ter a sua situação contributiva
regularizada perante a Segurança Social, o que impedia o Município de Lisboa de
com ela contratar.
E porque assim é, evidente se torna que não há legitimidade para este último
accionar, a garantia bancária em causa.
É esta a solução a que conduz o sentido decisivo de declaração negocial em
análise, face ao preceituado no art.º 236º n.º 1 C. Civil, que consagra a doutrina da
impressão do destinatário.
Como se sabe a interpretação da declaração negocial tem por objectivo fixar o seu
sentido e alcance juridicamente decisivos, sendo a justiça o seu fundamento
necessário (justiça do caso concreto).
Refere ainda o recorrente Município de Lisboa que há um manifesto abuso de direito
(art.º 334º C. Civil) por parte do A e da B na sua pretensão de não poder accionar-se
a mencionada garantia.
Já se viu do que se deixou dito que não colhe a tese do recorrente em que tal
alegação assenta, sendo apenas de recordar que o abuso de direito é um limite
normativo imanente ou interno dos direitos subjectivos - pelo que no
comportamento abusivo são os próprios limites normativo-jurídicos do direito
particular invocados que são ultrapassados.
O comportamento abusivo outra coisa não é senão o exercício de um direito
aparente: trata-se de um comportamento que exibe a forma, a aparência de um
direito que, na verdade, não existe (Questão de Facto - Questão de Direito ou o
Problema Metodológico da Juridicidade, pág.ªs 526 e nota 46, Almedina).
Por tudo o exposto, e sem necessidade de mais amplas considerações, improcedem
as conclusões das alegações do recorrente, sendo de manter o decidido no acórdão
recorrido, que não cometeu nulidades nem violou preceitos legais, "maxime" os
invocados pelo recorrente.
Decisão:
1 - Nega-se a revista.
2 - Sem custas por o recorrente estar isento.
Lisboa, 22 de Junho de 2005
Fernandes Magalhães,
Azevedo Ramos,
Silva Salazar.
02) Processo: 05B398
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores:ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento:SJ200504070003982
Data do Acordão: 07/04/2005
Votação:UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 527/04
Data:29/09/2004
Texto Integral:S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário :
I. Só existirá, em princípio, abuso do direito, quando, admitido um certo direito
como válido (isto é não só legal, mas também legítimo, razoável) todavia, no
caso concreto, ele aparece exercitado em termos clamorosamente ofensivos
da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito.
II. Não age com abuso do direito, mas antes no exercício normal de um direito
de aquisição o cônjuge que, sete meses depois de dissolvido o matrimónio, e
já depois de aceite que a casa de morada de família se destinava a ser fruída
pelo outro cônjuge, se propôs adquirir o respectivo imóvel por escritura
pública.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. "A" intentou, com data de 14-6-00, acção ordinária contra B, pedindo a
condenação deste a reconhecer que:
a) - os bens que identifica no art. 8° da petição não integram o activo do património
comum do extinto casal;
- os bens constantes do art. 27° têm o valor ali indicado;
- os bens indicados nos arts. 28°, 30° e 31° integram o activo do património comum;
- o recheio do estabelecimento "Eureka " integra o activo do património comum; e
que
- do património comum faz parte a quantia de 529.626$50;
b) - a entregar os bens relacionados sob os artigos 15° e 32°; e
- a restituir o valor do trespasse ao património comum.
Alegou, para tanto, e em síntese que:
- o casamento celebrado entre as partes foi dissolvido por decisão judicial, tendo, em
consequência, sido requerido inventário para partilha dos bens;
- existem bens que nunca deviam ter sido relacionados pelo seu marido, enquanto
cabeça de casal e em relação a outros bens entende haver excesso de
relacionação.
- há falta de relacionação de outros bens que indicou.
4. Contestação o Réu por impugnação, na qual concluiu pela improcedência da
acção, formulando ainda pedido reconvencional no qual peticionou metade do valor
referido, dado que se trataria de actividade comercial exercida por ambos.
5. Na réplica, a A. concluiu como no articulado inicial, tendo porém, e
posteriormente, vindo alterar o pedido e a causa de pedir, solicitando se declarasse
que:
- por escritura celebrada em 13-7-94, a A. adquirira a propriedade da fracção que
identificou no articulado inicial; e que
- a mesma não integrava o património comum do extinto casal.
6. A esse último pedido respondeu o R., deduzindo ainda pedido reconvencional no
qual requereu se declarasse ser o mesmo proprietário da controvertida fracção.
7. Por sentença de 23-10-03, o Mmo Juiz de Viana do Castelo julgou a acção
parcialmente procedente e, em consequência, declarou que:
- o bem indicado sob a verba n.° 108° foi herdado pela A. e não integra o activo do
património do extinto casal;
- os bens relacionados no art. 27° da petição inicial têm o valor indicado em sede de
factos provados;
- o recheio do estabelecimento Eureka e móveis referidos no quesito 140° integram
o activo do património comum do extinto casal; e
- que a A. é a proprietária da fracção designada pela letra BF, correspondente ao
quinto andar direito trás, no bloco torre, destinado a habitação com uma varanda e
um lugar de garagem na cave, do prédio urbano constituído em propriedade
horizontal, sito no lugar da Abelheira, São Vicente, Urbanização Capitães de Abril,
freguesia de santa Maria Maior - BF, inscrito na matriz respectiva sob o art. 2.669° e
inscrito na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo;
Mais condenou o R. a restituir ao património comum o valor do trespasse do
estabelecimento Eureka e a reconhecer tal direito, absolvendo, no restante, o R. do
pedido;
E, finalmente, julgou improcedente o pedido reconvencional formulado por B, dele
absolvendo a Ré.
8. Inconformado com tal decisão, dela veio o Réu apelar, mas o Tribunal da Relação
de Guimarães, por acórdão de 29-9-04, negou provimento ao recurso, assim
confirmando a decisão recorrida.
9. De novo irresignado, desta feita com esse aresto, dele veio o mesmo Réu recorrer
de revista para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formulou as seguintes
conclusões:
1ª- O Tribunal não tem elementos probatórios para concluir que "o recheio do
estabelecimento Eureka e móveis referidos no quesito 140° integram o activo do
património comum do extinto casal";
2ª- Cabia à recorrida a alegação e prova dos factos constitutivos do direito que se
arroga - e que se trata da peticionada "restituição do valor do trespasse ao
património comum"- nos termos do n.º 1 do artigo 342° do Código Civil, e, não tendo
estes conseguido fazê-lo, aquele pedido não pode proceder, face às regra sobre o
ónus da prova. Por outro lado,
3ª- Não foram alegados pela recorrida quaisquer factos atinentes à aquisição
originária do imóvel;
4ª- Na falta de outros elementos, o Tribunal não pode concluir, sem mais, pela
propriedade da fracção a favor da recorrida e muito menos condenar o recorrente a
reconhecer esse direito, quando é este quem lá habita, por força da aquisição em
inventário e ainda do deferimento da providencia cautelar referida nos autos;
5ª- A recorrida, com a presente acção pretende obter para si uma vantagem
patrimonial ilegítima, pois que sabe muito bem que a fracção era então bem comum
do casal e que não lhe pertence;
6ª- Ao celebrar unilateralmente a escritura, já depois de dissolvido o casamento, e
depois ao instaurar a presente acção, pretendendo reaver parte do que cedeu por
meio de licitações, através de um procedimento a todos os títulos condenável,
excedeu os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, abusando de
direito;
7ª- A errada apreciação, ponderação e sustentação determina a nulidade do acórdão
proferido, uma vez que não atendeu a elementos probatórios fornecidos, baseou-se
em pressupostos processuais e factuais comprovadamente errados, não observa
preceitos legais e regulamentares, em violação da lei substantiva e do processo, não
se pronunciando, por isso, sobre as questões que lhe foram colocadas, violando os
preceitos dos art°s 668º, 721°, 722° do CPC e 334° e 342° e, estes do CC).
10. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar.
11. Em matéria de facto relevante, remete-se para o elenco dado como assente pela
Relação - conf. artº 713º, nº 6, aplicável "ex-vi" do artº 726º, ambos do CPC.
Direito aplicável.
12. Objecto da revista:
São as seguintes as questões suscitadas pelo recorrente nas respectivas
conclusões de revista:
- falta de elementos probatórios para concluir que "o recheio do estabelecimento
Eureka e móveis referidos no quesito 140° integram o activo do património comum
do extinto casal";
- não satisfação pela A. ora recorrida do ónus da prova, que sob si impendia, acerca
da peticionada "restituição do valor do trespasse ao património comum";
- falta de alegação pela A. de quaisquer factos atinentes à aquisição originária do
imóvel, pelo que o tribunal não poderia assim concluir, sem mais, pela propriedade
da fracção a favor da recorrida e muito menos condenar o recorrente a reconhecer
esse direito, quando é este quem lá habita, por força da aquisição em inventário e
ainda do deferimento da providencia cautelar referida nos autos;
- a A. pretende obter para si uma vantagem patrimonial ilegítima, pois que sabe
muito bem que a fracção era então bem comum do casal e que a mesma lhe não
pertence;
- a A. agiu com abuso do direito ao celebrar unilateralmente a escritura, já depois de
dissolvido o casamento, e depois ao instaurar a presente acção, pretendendo reaver
parte do que cedeu por meio de licitações, através de um procedimento a todos os
títulos condenável, excedendo assim os limites impostos pela boa-fé e pelos bons
costumes;
- o acórdão recorrido é nulo, uma vez que não atendeu a elementos probatórios
fornecidos, baseou-se em pressupostos processuais e factuais comprovadamente
errados, não observou preceitos legais e regulamentares, em violação da lei
substantiva e do processo, não se pronunciando, por isso, sobre as questões que
lhe foram colocadas, violando os preceitos dos art°s 668º, 721°, 722° do CPC e 334°
e 342° e, estes do CC.
13. Nulidade do acórdão.
Sustenta o recorrente que acórdão recorrido é nulo, uma vez que não atendeu a
elementos probatórios fornecidos, baseando-se em pressupostos processuais e
factuais comprovadamente errados, não observou preceitos legais e
regulamentares, em violação da lei substantiva e do processo, não se pronunciando,
por isso, sobre as questões que lhe foram colocadas, violando os preceitos dos art°s
668º, 721°, 722° do CPC e 334° e 342°, estes dois últimos do CCivil).
Sem qualquer razão, porém.
O recorrente confunde manifestamente nulidade do acórdão por omissão ou
excesso de pronúncia com hipotéticos "erros de julgamento" relativos à
fixação/assentamento dos factos materiais da causa, só sindicáveis em sede de
mérito, que não em sede de mera forma.
14. Matéria de facto.Poderes de cognição.
Perante a Relação, o Réu, ora recorrente, sustentou que as respostas aos quesitos
27° a 125° não se compadeceriam com a prova produzida, nomeadamente em face
da avaliação feita em Janeiro de 2002 (conclusões 1ª a 6a), havendo, de resto,
contradição entre as respostas aos quesitos 1° e 2°, deve prevalecer aquela e ser
parcialmente revogada a sentença (conclusões 7ª e 9ª). E mais: que as respostas
aos quesitos 134° a 140° não se coadunariam com a prova produzida, de resto não
objecto da respectiva análise crítica, com excesso de pronúncia e em violação das
regras sobre ónus probatório.
A Relação entendeu, todavia, que não era de alterar/modificar as questionadas
respostas.
Para o não uso dessa faculdade, esclareceu a Relação que o ora recorrente não deu
oportuno e cabal cumprimento ao disposto no art. 690-A CPC, nem se tendo, por
isso, procedido à gravação da prova produzida em audiência, sendo que o ora
recorrente não deduziu qualquer reclamação às respectivas respostas (artº 653°).
Considerou a Relação que, no fundo, o que o recorrente pretendia então, - e
continua agora a pretender diga-se de passagem - é questionar o princípio da
liberdade de julgamento e da livre apreciação da prova (artº 655°) prova essa
baseada essencialmente de natureza testemunhal, e inexistindo qualquer outro
elemento processualmente adquirido que pudesse inculcar decisão de sentido
contrário, não havendo a Relação descortinado qualquer contradição lógica entre
respostas aos quesitos.
Abra-se aqui um parêntesis para observar que sem embargo de haver decidido pela
incoerência de uma tal contradição, entendeu a Relação que o tribunal de 1ª
instância havia incorrido em erro material, (lapso manifesto), assim procedendo
desde logo, e a título oficioso, à respectiva rectificação em ordem a que se devesse
passar a ler-se: "quesito 1°: não provado, à excepção da verba n° 108 que é provado
e ao 2°: não provado".
Ora, nunca é demais salientar que Supremo, como tribunal de revista que é, só
conhece, em princípio, de matéria de direito, limitando-se a aplicar definitivamente o
regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal
recorrido - artºs 26º da LOTJ99 aprovada pela L 3/99 de 13/1 e 729º nº 1 do CPC;
daí que o eventual erro na apreciação das provas e na fixação da matéria de facto
pelo tribunal recorrido só possa ser objecto do recurso de revista quando haja
ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a
existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (art.s 721, nº 2
e 722º, nºs 1 e 2, do CPC); excepções esta últimas que claramente não ocorrem no
caso «sub-judice».
Não cabe nos poderes do Supremo Tribunal de Justiça censurar o não uso pela
Relação da faculdade de alterar/modificar as respostas dadas aos quesitos pelo
Tribunal Colectivo.
O que o Supremo poderia sindicar, isso sim, era o bom ou mau uso (formal) dos
poderes de alteração/modificação da decisão de facto que à Relação são conferidos
nas restritas hipóteses contempladas nas três alíneas do nº 1 do artº 712º do CPC;
como a Relação não exercitou tal faculdade, a factualidade dada por si como
assente - assim confirmando a já elencada como provada pelo tribunal de 1ª
instância - terá de permanecer agora como incontroversa.
15. Abuso do direito.
Quanto ao aventado abuso de direito relativamente à declaração da titularidade
da fracção da fracção imóvel BE entendeu - e bem - a Relação não se
descortinar a respectiva ocorrência, nos termos e para os efeitos do art. 334 do
C. Civil.
Alega o recorrente que a A., ora recorrida, ao celebrar unilateralmente a
escritura já depois de dissolvido o casamento, e já depois de instaurada a
presente acção, pretenderia reaver parte do que cedeu por meio de licitações,
pelo que terá adoptado "um procedimento a todos os títulos condenável" (sic).
Na realidade, a A., com data de 13-7-94, (ou seja, sete meses depois de
acordado o divórcio e aceite que a casa de morada de família se destinava a
ser fruída pelo ora recorrente), é que declarou adquirir por escritura pública, o
prédio em apreço pelo preço de 6.000.000$00, mediante a negociação de
adequado financiamento bancário (5.400.000$00).
Mas trata-se, em boa verdade, do exercício normal de um direito de aquisição.
O âmago do conceito de abuso do direito, encontra-se lapidarmente balizado
(então ainda «de jure constituendo») pelo Prof Manuel de Andrade in "Teoria
Geral das Obrigações", Coimbra, Almedina, 1963, pág 63, para quem " grosso
modo, existirá um tal abuso, quando, admitido um certo direito como válido
(isto é não só legal, mas também legítimo, razoável) todavia, no caso concreto,
ele aparece exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça (ainda
que ajustados ao conteúdo formal do direito) " (sic),
O que não é manifestamente o caso dos autos, pois que se não surpreende de
forma alguma nessa forma de aquisição - o recorrente não o demonstra - "o
exercício de um direito em termos manifestamente ofensivos da boa fé, dos
bons costumes ou do fim económico e social desse direito", ou seja uma não
actuação legítima e conforme os padrões ético-sociais dominantes.
16. Caso julgado.
Quanto à excepção dilatória de caso julgado por alegada existência de diverso título
aquisitivo anterior dessa fracção, a mesma não se verifica, porquanto, por decisão
judicial de 16-10-97, prolatada no inventário para separação de meações, as partes
foram remetidas para os competentes meios comuns no que tange à relação de
bens apresentada, decisão processual essa (ela sim) com eficácia vinculativa iter
partes.
E só em caso de um desfecho positivo dessa (futura) acção proponenda, as partes
se poderiam vir a confrontar com a necessidade de uma partilha adicional.
Mas também nessa situação de não vislumbraria a chamada "tripla identidade" a que
se reporta o artº 497 do CPC.
17. Decisão:
Em face do exposto, decidem:
- negar a revista;
- confirmar, em consequência, o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 7 de Abril de 2005.
Ferreira de Almeida,
Abílio Vasconcelos,
Duarte Soares.
03) Processo: 02B2967
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores:ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento:SJ200211130029672
Data do Acordão: 13/11/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 550/02
Data:11/04/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CCIV66 ART334.
Jurisprudência Nacional: AC STJ PROC1334/01 2SEC DE 2001/06/07.
AC STJ PROC284/02 2SEC DE 2002/03/07.
AC STJ PROC3293/01 2SEC DE 2001/11/22.
Sumário :
I - A nossa Lei adoptou a concepção objectiva do abuso de direito - não exige
que o titular do direito proceda com consciência do excesso.
II - Abusa do direito o proprietário que pede a demolição de uma edificação
feita pela proprietária do prédio contíguo numa placa de um anexo daquele
quando, 14 anos antes - altura em que era arrendatário, não só consentiu nela
como ajudou na sua construção.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. A e B propuseram, nas Varas Cíveis do Porto, contra C acção ordinária, pedindo
que a Ré fosse condenada a:
a)- ver declarado o direito de propriedade dos AA sobre o prédio constante dos itens
1 ° e 2° da petição inicial, em toda a sua extensão, em todos os seus elementos e
dentro das suas confrontações incluindo sobre a parte do imóvel que a Ré ocupa,
isto é, a placa onde a Ré edificou a dita construção;
b)- ver declarada a sua posse insubsistente, ilegal e de má-fé;
c)- desocupar e a restituir aos AA a parte do imóvel que ilicitamente ocupa,
entregando-lha livre de pessoas e coisas;
d)- demolir a construção edificada e repor a placa no estado em que se encontrava
anteriormente, vedando-a com tela impermeabilizada, arranjando o interior do anexo
para eliminar o salitre e os fungos e pintá-lo, ou em alternativa, pagar aos AA a
quantia de 470.000$00, acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e
integral pagamento, correspondente ao montante necessário para a demolição da
construção e reparação da placa e do interior do anexo - (sic).
Alegaram, para tanto, e em síntese, que:
- são donos do prédio urbano, identificado no artigo 1º da petição, por o terem
comprado por escritura outorgada em 2-8-99 e por usucapião;
- já nele habitavam desde 12-5-71 na sequência de um contrato de arrendamento
celebrado com a anterior proprietária;
- a Ré, que habita num prédio contíguo, há cerca de 14 anos, sem autorização da
anterior proprietária ou dos AA, ocupou a placa do anexo situado nas traseiras do
prédio actualmente deles e aí efectuou uma pequena construção, onde se encontra
instalada uma casa de banho e uns arrumos;
- em Agosto de 1999, interpelaram a Ré para abandonar o referido espaço e demolir
a construção nela edificada;
- a Ré, apesar de o ter prometido, não procedeu à demolição e a casa de banho por
ela construída está a provocar danos no anexo.
2. A Ré, na sua contestação, alegou, em resumo, e além doa mais, que, há cerca de
14 anos, ela e seu falecido marido - com o consentimento e colaboração dos AA -,
procederam à construção da mencionada placa no anexo situado nas traseiras do
prédio deles e depois aí construíram a casa de banho, pelo que solicitou a
improcedência da acção.
3. Os AA, na réplica, mantiveram a sua posição inicial .
4. O Mmo Juiz da 6ª Vara Cível da Comarca do Porto, por sentença de 21-12-01,
reconheceu o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio identificado nos artºs 1º
e 2° da petição inicial e condenou a Ré a reparar o tecto e paredes do anexo situado
nas traseiras do prédio dos AA., procedendo à limpeza do tecto e paredes do interior
do dito anexo, para eliminar o salitre e os fungos.
Absolveu, porém, a Ré das restantes parcelas do pedido.
5. Inconformadas, apelaram os AA, solicitando se condenassem os RR na totalidade
do pedido, mas o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 11-4-02, negou
provimento ao recurso, reiterando a asserção de que os AA, ao formularem o pedido
de demolição da construção, cuja edificação foi por eles autorizada e incentivada, há
14 anos, incorreram em abuso de direito, na modalidade de - venire contra factum
proprium -.
6. De novo irresignados, desta feita com tal aresto, dele vieram os AA recorrer de
revista para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formularam as seguintes
conclusões:
A) - O actual exercício do direito de reivindicação pelos recorrentes não constitui um
abuso de direito, porque os recorrentes não excederam quaisquer limites impostos
pela boa-fé ou pelos bons costumes, uma vez que não traíram a boa-fé, nem
actuaram em sentido contrário a qualquer expectativa que criassem na recorrida;
nem excederam os limites impostos pelo fim social ou económico do direito de
propriedade, pois o exercício do direito de reivindicação, sequela do direito de
propriedade, é perfeitamente normal e, muito menos, se verifica um excesso
manifesto, como a lei exige;
B) - Nem o actual exercício do direito de reivindicação pelos recorrentes integra a
modalidade de abuso de direito, - venire contra factum proprium -, porque o
consentimento anterior dos recorrentes objectivamente interpretado em face à lei
não seria exercido pois não obteve consentimento do então proprietário do prédio
em causa, que a recorrida bem conhecia, a Venerável Irmandade da Nossa Senhora
da Lapa, nem os recorrentes, na ocasião meros inquilinos, adoptaram, então ou
posteriormente, qualquer comportamento susceptível de induzir tal confiança na
recorrida;
C) - Os recorrentes, à data da ocupação da placa do anexo sito nas traseiras do seu
prédio, eram meros inquilinos, portanto com poderes de disposição limitados em
relação ao prédio, e nem sonhavam que uma dia seriam seus proprietários . E, na
sua convicção, a oposição àquela ocupação teria de passar pela intervenção do seu
então proprietário, o que condicionava a sua actuação, pois tal entidade era não só
sua senhoria, como também entidade patronal do recorrente marido;
D) - O direito de propriedade é um dos direitos a que a lei reconhece maior liberdade
de actuação e decisão, pois confere ao seu titular a universalidade de poderes que
ao prédio se podem referir, sendo o direito de reivindicação a expressão mais
dinâmica da sua estrutura para prossecução do interesse do proprietário ;
E) - O exercício do direito de reivindicação pelos recorrentes não pretende prejudicar
a recorrida, não compromete o gozo de qualquer direito daquela, nem existe
qualquer desproporção entre a utilidade do exercício do direito de reivindicação
pelos recorrentes e as consequências que a recorrida tem de suportar ;
F) - Ainda que o actual exercício do direito de reivindicação pelos recorrentes fosse
considerado contraditório ao anterior consentimento dos recorrentes à ocupação
feita pela recorrida, o que não se concede, sempre tal contradição seria aparente
porquanto aquela reivindicação estaria justificada pelos prejuízos que, entretanto, a
construção edificada veio trazer aos recorrentes ;
G) - E porque tal ocupação trazia prejuízos aos recorrentes, desde o momento em
que adquiriram a propriedade do imóvel em causa, livre de quaisquer ónus ou
encargos, sempre vêm exigindo à recorrida a restituição daquele espaço ;
H) - Mesmo que na altura em que a recorrida e seu marido ocuparam parte do prédio
em questão, os recorrentes já fossem seus proprietários, sempre estariam em
condições de exigir a entrega da parte ocupada, a todo o tempo ;
Iria contra o espírito do nosso sistema jurídico que a mera tolerância dos
recorrentes, mesmo que fossem proprietários, conferisse à recorrida um direito
vitalício e ainda para mais gratuito de detenção da placa;
É que é contrária à ordem pública que alguém se vincule indefinidamente por um
contrato obrigacional, ainda por cima gratuito.
E depois, a ser acolhido outro entendimento, tomar-se-ia um obstáculo a que de
futuro os cidadãos usem de tolerância e benevolência nas suas relações sociais
I) - A ocupação da placa dos recorrentes pela recorrida não tem qualquer título que a
justifique, nem pode produzir os efeitos que se pretende no acórdão recorrido pois
não existe nenhum estado de confiança da recorrida a ser protegido;
Tal ocupação viola o direito de propriedade dos recorrentes;
E a recusa da restituição de tal espaço corresponde à negação do seu direito de
propriedade;
J) - Assim, ainda que se recuse a demolição da construção edificada pela recorrida
não se poderá recusar aos recorrentes a restituição daquele espaço, sua
propriedade, porque tal pedido não corresponde a qualquer abuso de direito;
K) - Pelo exposto, o douto acórdão viola o artigo 1131º, aplicando indevidamente o
artigo 334º do mesmo diploma, que não tem aqui aplicação.
7. Contra-alegou a Ré, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido, para o que
formulou as seguintes conclusões:
1ª- O exercício do direito de reivindicação formulado pelos recorrentes configura -
abuso de direito -, na modalidade de - venire contra factum proprium". Os
recorrentes actuaram contra as expectativas que criaram na recorrida, utilizaram o
seu direito fora das condições em que a lei o permite, o que tem por efeito a falta do
próprio direito. Neste sentido, o Prof. Vaz Serra, in - Abuso de Direito -, n° 8;
2ª- Decidiram muito bem os Venerandos Desembargadores em terem concluído que
os recorrentes, ao formularem o pedido de demolição da construção que autorizaram
e incentivaram há já 14 anos, têm a sua actuação incursa na figura do abuso de
direito, na modalidade do - venire contra factum proprium -;
3ª- O abuso de direito manifesta-se em - venire contra factum proprium", isto é,
quando a conduta anterior do titular do direito, objectivamente interpretada em face
da lei, dos bons costumes e da boa fé, legitima a convicção de que tal direito não
será exercido, pois que, então, a ulterior atitude do titular que tal convicção desminta
passa a ser reportada, objectivamente, como desleal, ofensiva dos bons costumes e
da boa fé;
5ª- Contrariamente ao afirmado pelos recorrentes, não se está perante uma
recorrida usurpadora e despida de título ;
6 -Não houve, pois, qualquer violação do artº 1311° do C.Civil, nem o artº 334° do
mesmo código foi aplicado indevidamente.
8. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
9. Em matéria de facto relevante, deu a Relação como assentes os seguintes pontos
:
1º- Os AA são donos e legítimos proprietários do prédio urbano, composto por casa
de dois pavimentos, com quintal, destinado a habitação, sito na Travessa ...., n°....,
freguesia de Cedofeita, Porto, por o haverem adquirido à sua anterior proprietária a
Venerável Ordem de Nossa Senhora da Lapa, conforme declarado em escritura
pública outorgada a 2-8-99, lavrada a fls. 5 e 6 do Livro de notas 17-C do 2° Cartório
Notarial do Porto, sendo que a dita aquisição está registada a favor dos AA pela Ap.
14 de 05/08/99 a fls. 154 do Livro G sob o n° 105979;
2º- O predito prédio acha-se descrito na competente Conservatória do Registo
Predial do Porto sob o n° 6318 a fls. 53 do Livro B-18 e inscrito na respectiva matriz
sob o art - 6734 ;
3º- Os AA, por si e antepossuidores, há mais de 30 anos, praticam sobre o aludido
prédio actos próprios e inerentes a verdadeiros proprietários, designadamente,
pagando as suas contribuições, tudo isto à vista de toda a gente, sem qualquer
oposição e interrupção e na convicção de que o prédio lhes pertence;
4º- Por contrato escrito celebrado em 12-5-71, os AA tomaram de arrendamento o
ajuizado prédio, dado pela Venerável Ordem de Nossa Senhora da Lapa, para sua
habitação, conforme documento junto a fls. 14 dos autos;
5- A Ré habita há cerca de 35 anos o prédio sito na Travessa ....., n° ....., freguesia
de Cedofeita, Porto, contíguo ao dos AA ;
6º- Há cerca de 14 anos a Ré procedeu à edificação da placa no anexo situado nas
traseiras do prédio dos AA, ocupando-a, estando aí edificada uma construção, onde
se encontra instalada uma casa de banho e uns arrumos;
7º- Já em Agosto de 1999 os AA interpelaram a Ré para abandonar o predito espaço
e para o repor como estava aquando da ocupação, demolindo a edificação sobre a
dita placa ;
8º- Os AA deram o seu consentimento e ajudaram a Ré a edificar a construção
referida em 6º ;
9º- A edificação na placa do anexo situado nas traseiras do prédio dos Autores, onde
se encontra instalada uma casa de banho e uns arrumos, provoca infiltrações de
humidades no tecto e paredes do referido anexo ;
10º- Para a demolição da predita construção e consequente vedação do terraço com
tela impermeabilizada, limpeza do tecto e paredes do interior do anexo articulado,
para eliminar o salitre e os fungos e sua pintura, é necessário despender a quantia
de 250.000$00.
Passemos agora ao direito aplicável.
10. O «thema decidendum» circunscreve-se à matéria da excepção peremptória
inominada de abuso do direito que as instâncias deram como verificada, na parte em
que os AA, ora recorrentes, impetraram a condenação dos RR à demolição da
construção, cuja edificação havia sido por eles autorizada e incentivada, há cerca de
14 anos .
Haviam com efeito alegado os AA ora recorrentes que - a Ré, que habita num prédio
contíguo, há cerca de 14 anos, sem autorização da anterior proprietária ou dos AA,
ocupou a placa do anexo situado nas traseiras do prédio actualmente deles e aí
efectuou uma pequena construção, onde se encontra instalada uma casa de banho
e uns arrumos - (sic) .
Que dizer ?
Estatui o artº 334° do C.Civil, que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando
o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons
costumes ou pelo fim social ou económico desse direito» .
Tal como se considerou, v.g, nos Acs deste Supremo Tribunal de 7-6-01, in
Proc 1334/01 e de 7-3-02, in Proc 284/02, ambos da 2ª Sec, «o abuso do direito
pressupõe um excesso ou desrespeito dos respectivos limites axiológico-
materiais, traduzido na violação qualificada do princípio da confiança, sendo
que, para que tal aconteça, não se torna necessário que o agente tenha
consciência do carácter abusivo do seu procedimento, bastando que este o
seja na realidade» - conf., neste sentido, o Prof Galvão Teles, in - Obrigações -,
3ª ed, pág 6.
Situação que logo se configura quando o titular do direito se deixa cair numa
longa inércia sem a respectiva exercitação, susceptível de criar na contraparte
a convicção ou expectativa fundada de que esse direito não mais será
exercido, e que a sua posição jurídico-substantiva se encontra já consolidada,
nela investindo, em conformidade, as suas expectativas e até o seu capital;
violação drástica do princípio da confiança, que a doutrina sintetiza na máxima
- venire contra factum proprium -.
Quer a doutrina, quer a jurisprudência, são concordantes em que, para se
concluir por tal ilegitimidade se torna necessária a verificação cumulativa de
três pressupostos : uma situação objectiva de confiança digna de tutela
jurídica e tipicamente consubstanciada numa conduta anterior que,
objectivamente considerada, seja de molde a despertar noutrem a convicção
de que o agente no futuro se comportará coerentemente de determinada
maneira ; que, face à situação de confiança criada, a outra parte aja ou deixe
de agir, advindo-lhe danos, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada ; ou
seja, frustrada a boa-fé da parte que confiou. (Conf. Baptista Machado, in -
Tutela de Confiança" - RLJ, Anos 117º e 118º, páginas 322 e 323 e 171 e 172,
respectivamente ) .- conf., ainda, o Ac do STJ de 22-11-01, in Proc 3293/01 - 2ª
SEC).
O abuso do direito constitui assim um - limite normativamente imanente ou
interno dos direitos subjectivos, pelo que no comportamento abusivo são os
próprios limites normativo-jurídicos do direito particular que são
ultrapassados" - conf., neste sentido, Castanheira Neves, in - Questão de Facto
e Questão de Direito -, pág 526, nota 46 cit no Ac STJ de 31-1-96, in BMJ nº 453,
pág 517.
A nossa lei adoptou a concepção objectiva do abuso do direito; isto é, não
exige que o titular do direito haja procedido com consciência do excesso ou
com «animus nocendi» do direito da contraparte, bastando pois que tais
limites sejam e se mostrem ostensiva e objectivamente excedidos.
O - venire contra factum proprium - traduz, pois, o exercício de uma posição
jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo
exercente. O Prof Menezes Cordeiro, in - Da Boa-fé no Direito Civil - pág 752 e
segs refere, a este respeito, que - o investimento da confiança, por fim, pode
ser explicitado com a necessidade de, em consequência do factum proprium a
que aderiu, o confiante ter desenvolvido uma actividade tal que o regresso à
situação anterior, não estando vedado de modo específico, seja impossível em
termos de justiça -.
Ora, o que nos mostram os autos?
Não vem mais controvertido o direito de propriedade dos AA., ora recorrentes, sobre
o espaço que é ocupado pela construção levada a cabo pela Ré e seu falecido
marido, de resto desde logo reconhecido pela decisão de 1ª Instância.
O que os AA. ora recorrentes pedem é - repete-se - que a Ré, ora recorrida, seja
pura e simplesmente condenada a demolir e desocupar a construção, realizada há
14 anos, com o consentimento e ajuda deles mesmos AA, sem que se haja provado
que, durante aquele longo lapso temporal, alguma vez se hajam por alguma forma
(«factis vel actis») oposto sua utilização.
E, tal como bem observa a Relação, a circunstância de até 2-8-99 os AA serem
apenas arrendatários do prédio em causa, tal não constituía, de per si, obstáculo a
que pudessem solicitar judicialmente a restituição do espaço ocupado pela Ré,
conforme resulta do artigo 1037° nº 2 do C. Civil.
Temos pois de concluir que a exercitação pelos AA., ora recorrentes, do seu direito a
pedir (também) a demolição pura e simples da construção cuja edificação foi por
eles autorizada, incentivada e até auxiliada há 14 anos, integra abuso de direito na
modalidade do - venire contra factum proprium -, nos termos e para os efeitos do artº
334º do C. Civil, tal como vem decidido pelas instâncias .
11. Assim havendo decidido neste pendor, não merece o acórdão revidendo
qualquer censura, assim improcedendo todas as conclusões da alegação dos
recorrentes.
12. Decisão:
Em face do exposto, decidem :
- negar a revista ;
- confirmar, em consequência, o acórdão recorrido .
Custas pelos recorrentes .
Lisboa, 13 de Novembro de 2002
Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida,
Abílio Vasconcelos Carvalho,
Manuel Maria Duarte Soares.
04) Processo: 04S2603
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MARIA LAURA LEONARDO
Descritores:ABUSO DE DIREITO.
RESCISÃO PELO TRABALHADOR.
RETRIBUIÇÃO. FALTA DE PAGAMENTO.
Nº do Documento: SJ200411170026034
Data do Acordão: 17/11/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 5798/03
Data:02/02/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário :
1. Para aferir da legitimidade ou ilegitimidade do exercício de um direito,
fornece a lei três conceitos: boa fé, bons costumes e o fim social e económico
do direito.
2. A manifestação mais clara do abuso do direito é a chamada conduta
contraditória (venire contra factum proprium) em combinação com o princípio
da tutela da confiança.
3. A “neutralização do direito” é considerada, em geral, como uma modalidade
especial da proibição do venire contra factum proprium.
4. Não constitui abuso de direito a rescisão do contrato de trabalho por parte
do trabalhador/motorista, com fundamento no não pagamento de parte do
subsídio de agente único – situação que já não era inédita -, estando esse
trabalhador ao serviço da entidade patronal há cerca de 27 anos e a 3 anos e
três meses da reforma e ainda que haja manifesta desproporção entre o valor
da indemnização (por antiguidade) e o montante em dívida e aquele subsídio
tenha sido acordado por valor superior ao que resultaria da aplicação da
respectiva CCT.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça
I - "A", residente no Lugar de Sampaio, em Penajóia, Lamego, instaurou acção
declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho,
contra B, com sede na Rua Alexandre Herculano, nº ....., ....., Porto, pedindo se
declare que rescindiu com justa causa o contrato de trabalho celebrado com a ré e
que esta seja condenada:
- a reconhecer que o autor tinha direito a receber mensalmente o acréscimo de 25%
sobre a remuneração normal, com base em 8 horas diárias, a título de remuneração
como agente único, com repercussão nas férias e nos subsídios de férias e de Natal;
- a pagar-lhe as quantias de € 478,51, a título de trabalho suplementar, e €
20.558,44, a título de indemnização pela rescisão do contrato de trabalho com justa
causa, todas estas quantias acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde a
citação até efectivo e integral pagamento.
Alega, em síntese, que foi contratado pela ré para exercer as funções de motorista e
que, a partir de Novembro de 1995, passou a acumular essas funções com as de
cobrador-revisor, auferindo pelo facto de ser agente único um acréscimo diário de
25% sobre 8 horas; que, pelo facto de a ré em Maio de 2001 não ter efectuado o
pagamento integral desse subsídio, correu termos um processo administrativo que
terminou por acordo, em que a ré se comprometeu a pagar o subsídio de agente
único, vencido até 31.10.01, em prestações. Mais alega que a ré, não obstante ter
feito tal acordo, continuou a não pagar o valor das 8 horas diárias de agente único
nos meses de Novembro, Dezembro de 2001 e Janeiro de 2002 e no subsídio de
Natal e de férias de 2001, razão pela qual o autor rescindiu o contrato com efeitos a
partir de 28.02.02.
Na contestação, a ré defendeu-se por impugnação e excepção, sustentando que o
autor não trabalhava todos os dias e que, por isso, o subsídio de agente único não
era calculado com base em 8 horas diárias, mas em 4; que, ao rescindir o contrato à
beira da reforma e nas circunstâncias em que o fez, o autor agiu com manifesto
abuso de direito.
Houve resposta.
Saneado o processo e discutida a causa, foi proferida sentença que, julgando a
acção parcialmente procedente, condenou a ré a pagar ao autor:
- € 20.501,88, a título de indemnização por antiguidade pela rescisão do contrato de
trabalho com justa causa;
- € 478,51, a título de trabalho suplementar;
- e os respectivos juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral
pagamento.
Inconformada, a ré interpôs recurso da decisão, mas sem sucesso, limitando-se a
Relação a julgar a apelação improcedente e a confirmar a decisão recorrida.
De novo irresignado, a ré vem pedir revista, concluindo as suas alegações do
seguinte modo:
1ª) O Tribunal recorrido não podia julgar no sentido de haver justa causa para a
rescisão do contrato, devendo, antes, concluir no sentido da existência de "abuso de
direito" da parte do autor;
2ª) Com efeito, este atingiria a sua reforma em 19/05/2005, o que significava que se
encontrava a "escassos dias" de a obter, pois para isso necessitaria apenas de
trabalhar 3 anos e 3 meses, tendo em atenção a data da rescisão apresentada pelo
mesmo;
3ª) O autor pede uma indemnização no montante de € 21.036,95, porque a ré lhe
devia €: 179,67;
4ª) A ré propôs ao autor, em sede de "Audiência de Partes", a sua reintegração,
acrescida de uma indemnização no montante de €: 5.000,00, mais o pagamento da
retribuição em débito, o que este veio a declinar em absoluto;
5ª) Não parece ser grave a falta da ré e muito menos servirá de fundamento para o
exercício do direito de rescisão por parte do autor;
6ª) Pelo contrário, o autor excedeu os limites da boa fé e abusou do direito;
7ª) Na verdade, por acordo celebrado entre a ré e o autor nos Serviços do Ministério
Público do Tribunal de Trabalho de Lamego, em processo administrativo datado de
08/01/2002, as partes estabeleceram o pagamento do subsídio em falta até Outubro
de 2001, não fazendo qualquer referência aos meses subsequentes, uma vez que
os mesmos ultrapassavam o objecto do pedido;
8ª) Contudo ficou estabelecido entre as partes que até ao final do mês de Março de
2002 seriam pagos todos os valores em causa ao autor e aos restantes colegas, o
que não poderia ter sido efectuado em data anterior, tal como tinha acontecido com
os meses de Maio a Outubro de 2001, por dificuldades de ordem financeira;
9ª) Para demonstrar toda esta situação, atente-se no facto de o autor ter aceite, no
mencionado processo administrativo que correu termos neste Tribunal, ser pago
somente a partir do mês de Março de 2002, conforme consta do acordo junto aos
autos, cujo teor se tem aqui por integralmente reproduzido;
10ª) Vir o autor exigir à ré o pagamento de 8 horas diárias, quando sabia que apenas
prestava em média 2 horas diárias é manifesta má fé e falta de lisura e transparência
por parte do autor, sendo certo que a ré, ao longo de mais de 30 anos, nunca deixou
de lhe pagar o justo salário, a que acresce o facto de o autor se encontrar prestes
atingir a sua reforma;
11ª) O depoimento da testemunha do autor, de nome C expressou toda a má fé e
abuso de direito do autor;
12ª) Só com presunções à revelia de qualquer facto concreto é que se pode concluir
que o exercício do direito não foi abusivo;
13ª) E o mais grave que tem toda esta situação, é que ex-colegas do autor, ao
serviço da ré na presente data, estão de "olhos postos" no presente processo e,
conforme o resultado, poderão vir no futuro, apresentar os seus pedidos de rescisão
contratual, mesmo que esteja em causa o atraso no pagamento de "alguns euros";
14ª) Assim e nesta perspectiva, entende a ré que, mesmo que seja sancionada pelo
atraso no pagamento do subsídio de agente único no valor de € 179,67, nunca a
indemnização poderá ser fixada no montante de € 21.036,95, mas noutro que seja
proporcional e adequado à situação em causa.
Não houve contra-alegações.
No seu douto parecer, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta pronuncia-se no sentido
de ser negada a revista.
II – O que importa resolver
Fundamentalmente isto: se ao rescindir o contrato de trabalho, ao abrigo da Lei nº
17/86 (LSA), o autor actuou com abuso de direito.
III - Os Factos
1. A ré exerce a actividade de transportes rodoviários pesados de passageiros.
2. O autor foi admitido ao exercício da ré em Maio de 1974, por contrato verbal e por
tempo indeterminado, com a categoria profissional de motorista afecto ao serviço
público, acompanhado por um cobrador-bilheteiro, competindo-lhe zelar pelo bom
funcionamento, conservação da viatura e proceder à verificação directa dos níveis
de óleo, água e combustível.
3. A partir da data referida em 2.), o autor passou a exercer as indicadas funções de
motorista sob a autoridade, direcção e fiscalização da ré.
4. Era a ré que indicava o traçado rodoviário e os destinos a atingir pelo autor,
dentro dos horários por ela pré-estabelecidos.
5. Como contrapartida pelo exercício da sua actividade profissional, o autor auferia,
ultimamente, o quantitativo mensal de € 513,76 ilíquidos de salário base, acrescido
de € 80,82 de diuturnidades (6 diuturnidades de € 13,47, cada) e, bem assim, os
subsídios de férias e de Natal, de valores iguais.
6. O autor está sindicalizado no Sindicato dos Trabalhadores de Transportes
Rodoviários e Urbanos do centro, o qual é filiado na FESTRU.
7. O autor tinha como dias de descanso semanal o domingo e complementar o
Sábado.
8. O local de trabalho do autor vinha sendo, há cerca de 30 anos, a cidade de
Lamego, sendo nesta que habitualmente iniciava e terminava, diariamente, o
serviço.
9. O autor praticava o horário de 40 horas semanais, distribuídas por cinco dias, de
segunda a sexta-feira, entre as 07,00 e as 18,30 horas.
10. A partir de Novembro de 1995, a ré deixou de ter cobradores-bilheteiros ao seu
serviço, extinguindo esses postos de trabalho.
11. A partir da mesma data, a ré na secção de Lamego, deixou de ter trabalhadores
ao seu serviço com a categoria de cobrador-bilheteiro.
12. Tendo sido o autor, a partir da mesma data, que passou a desempenhar as
funções que anteriormente competiam ao cobrador-bilheteiro, durante o exercício da
actividade de motorista.
13. A partir da mencionada data e em consequência de um acordo que celebrou,
nesse sentido, com o autor, a ré passou a pagar-lhe o serviço de agente único (pelo
serviço que anteriormente era desempenhado pelo cobrador-bilheteiro) a 25% sobre
as 8 horas diárias, independentemente do número de horas de serviço por ele
prestadas.
14. A evolução salarial do autor ao serviço da ré foi a seguinte:
- Março de 1995: salário de 87.550$00 + 15.540$00 (diuturnidades) = 103.090$00
- Março de 1996: salário de 90.200$00 + 15.840$00 (diuturnidades) = 106.040$00
- Março de 1997: salário de 92.000$00 + 15.840$00 (diuturnidades) = 107.840$00
- Março de 1998: salário de 94.500$00 + 16.020$00 (diuturnidades) = 110.520$00
- Março de 1999: salário de 97.500$00 + 16.020$00 (diuturnidades) = 113.520$00
- Março de 2000: salário de 100.000$00 + 16.020$00 (diuturnidades) =116.020$00
- Março de 2001: salário de 103.000$00 + 16.200$00 (diuturnidades) =119.020$00.
15. A ré, até Maio de 2001, pagou ao autor a remuneração correspondente a agente
único à referida razão de 25% sobre oito horas diárias.
16. No final de Maio de 2001, o autor recebeu a informação escrita que se encontra
junta a fls 19, cujo teor aqui se dá por reproduzido, na qual a ré comunicava,
designadamente, que pretendia “implementar a uniformização do subsídio de agente
único”, de modo a ser “pago a todos os motoristas pelo mesmo critério.”
17. Nesse mês de Maio de 2001, o autor trabalhou 21 dias, a 8 horas diárias, e a ré
pagou-lhe apenas 72 horas de agente único.
18. Perante este facto, por carta registada com A/R, datada de 08/06/2001, o autor
enviou à ré (assim como outros trabalhadores) a missiva junta a fls. 22, cujo teor
aqui se dá por integralmente reproduzido, na qual, designadamente, solicitava a esta
que procedesse, até final de Junho de 2001, ao pagamento da parte da
remuneração de agente único do mês de Maio anterior que não lhe foi paga.
19. Como a ré nada fez, o autor comunicou aquele facto ao IDICT, delegação de
Lamego, tendo corrido termos nos Serviços do Ministério Público do respectivo
Tribunal um processo administrativo que terminou com o acordo entre autor e ré,
datado de 08/01/2002, cuja cópia consta de fls. 24 e que aqui se dá por reproduzido.
20. A ré também não pagou ao autor o serviço de agente único nos meses de
Novembro e Dezembro de 2001 e Janeiro de 2002, nem o incluiu nos subsídios de
férias e de Natal referentes àquele primeiro ano, pelo valor das 08 horas diárias.
21. Perante esta situação, o autor, por carta registada com A/R, datada de
18/02/2002, rescindiu o contrato de trabalho em causa, nos termos que constam do
documento junto a fls. 25, cujo teor aqui se dá por reproduzido, no qual dava
conhecimento à ré, designadamente, que cessaria as suas funções no dia
28/02/2002.
22. O autor deu a conhecer ao IDICT aquela rescisão, por carta registada com A/R.
23. A partir de 28/02/2002, o autor não mais prestou serviço à ré.
24. Entre 01/11/2001 e 28/02/2002, mais propriamente durante 62 dias úteis, o autor
trabalhou a mais, em cada um deles, um hora e meia.
25. No início de Março de 2002, a ré pagou ao autor os valores correspondentes à
remuneração de agente único, a 25% sobre 08 horas diárias, dos meses de
Novembro, Dezembro, subsídio de férias e subsídio de Natal de 2001, Janeiro e
Fevereiro de 2002.
26. Todos os serviços efectuados pelo autor tinham cobrança de bilhetes ou
verificação dos passes de alunos.
IV – Apreciando
O Tribunal da Relação, considerando que se mostravam verificados os pressupostos
previstos no artº 3º da LSA, concluiu, tal como fizera a 1ª instância, que o autor tinha
rescindido o contrato de trabalho com justa causa.
Entendeu ainda, contrariamente ao defendido pela ré, que o comportamento do
autor não era subsumível ao artº 334º do CC.
O objecto do recurso circunscreve-se à questão do abuso do direito. A “justa causa”
não é, em si, uma questão colocada pela recorrente. O que esta defende é que
havendo abuso de direito não se pode sustentar que houve rescisão com justa
causa.
Debrucemo-nos, antes de mais, sobre as conclusões 4ª, 8ª e 11º da alegação da
recorrente.
Pretende esta demonstrar a falta de lisura do autor através dos factos que menciona
naquelas duas primeiras conclusões (ter ficado estabelecido, em processo
administrativo, que os valores em falta, por dificuldades de ordem financeira, seriam
pagos até final de Janeiro de 2002 e ter o autor aceite, no mencionado processo
administrativo, ser pago somente a partir do mês de Março de 2002 - 8ª concl.; não
ter o autor aceite, em sede de "Audiência de Partes", a proposta da ré no sentido da
sua reintegração, com o pagamento de uma indemnização no montante de €
5.000,00, mais o pagamento da retribuição em débito - 4ª concl.) e do depoimento
da testemunha do autor, de nome C, aludido na 11ª conclusão.
Quanto à matéria vertida na 8ª conclusão, dir-se-á que o único acordo que consta
dos autos é o que se mostra fotocopiado a fls 24, que teve lugar em 8.01.2002, nos
serviços do MP, no Tribunal de Trabalho de Lamego. Ora, o que dele resulta é que
as partes se conciliaram relativamente «aos créditos emergentes de acertos de
agente único, com 8 horas diárias, correspondentes aos 12º, 13º e 14º meses do
ano de 1999 e 2000 e horas extras até ao dia 31.10.2001 constantes do contrato de
trabalho, desistindo o autor da propositura da correspondente acção emergente do
CIT contra a requerida». Ou seja, em lado nenhum do acordo consta – nem resulta
da matéria provada – que ficasse estabelecido entre as partes que todos os valores
em falta, inclusive os vencidos posteriormente a 31.10.01, só fossem pagos a partir
do mês de Março de 2002 por dificuldades financeiras da ré. Acontece que o
fundamento da rescisão do contrato foi a falta de pagamento do subsídio de agente
único relativo aos meses posteriores a Outubro de 2001, concretamente, Novembro
e Dezembro de 2001 e Janeiro de 2002 e a sua repercussão no subsídio de férias e
de Natal. Por isso, se entendeu no acórdão recorrido que este circunstancialismo
fáctico (apenas) permitia concluir que, quando o autor solicitou o patrocínio do MP
para peticionar créditos emergentes do contrato de trabalho, ainda não se haviam
vencido as prestações que haviam de servir de fundamento à rescisão do contrato.
Ora, não estando provado que a conciliação abrangesse os créditos vencidos
posteriormente a 31 de Outubro de 2001, cai por terra a argumentação da ré,
alicerçada no pressuposto duma situação que não coincide com a realidade
apurada.
Quanto aos factos constantes da conclusão 4ª - não ter o autor aceite, em sede de
"Audiência de Partes", a proposta da ré no sentido da sua reintegração, com o
pagamento de uma indemnização no montante de € 5.000,00, mais o pagamento da
retribuição em débito – bastará dizer que os mesmos não constam do elenco dos
provados, nem transparecem de qualquer acto do processo.
Finalmente, quanto à conclusão 11ª - que contém um juízo de valor sobre o
depoimento de uma testemunha - entendemos que tal invocação é, no mínimo,
descabida, face aos limitados poderes do STJ, enquanto tribunal de revista (artº
729º do CPC).
Posto isto, vejamos, então, se houve abuso de direito da parte do autor ao rescindir
o contrato de trabalho.
Para aferir da legitimidade ou ilegitimidade do exercício de um direito, fornece
a lei três conceitos: boa fé, bons costumes e o fim social e económico do
direito (artº 334º do CC).
A boa fé pode ser encarada objectivamente (como norma de conduta) ou
subjectivamente (como estado de espírito). Exprimem-se estas duas
dimensões, falando numa actuação segundo a boa fé ou de boa fé.
É a face objectiva deste conceito que está contemplada no artº 334º do CC.
Neste sentido, o conceito traduz, ele próprio, um princípio geral do direito.
Enunciando-o, o legislador apela à ética jurídica que exige que cada um
proceda de modo honesto e leal, mantendo nas relações com os outros a
palavra dada e a confiança. Será de acordo com esta normatividade exterior -
conteúdo do princípio da boa fé objectivado pela convivência social – que o
julgador irá preencher valorativamente o correspondente conceito jurídico
(boa fé, enquanto conceito indeterminado).
Quanto aos bons costumes, há que entendê-los como um conjunto de regras
de convivência que num dado tempo e lugar as pessoas honestas e correctas
aceitam partilhar. Esse conjunto de normas constitui a ordem pública moral.
Será, assim, contrário aos bons costumes o exercício de um direito que viole
normas elementares impostas pelo decoro social. Só aqueles (boni mores)
podem servir de critério para efeitos do citado artº 334º.
Sabido que cada direito possui uma função instrumental própria, que justifica
a sua atribuição ao titular e define o seu exercício, deve tal exercício respeitar
a finalidade social ou económica tida em vista pelo legislador na
regulamentação do respectivo instituto.
Se os limites em que a lei encerra o exercício do direito forem ultrapassados
(de forma manifesta), há abuso de direito.
Como sublinha Pessoa Jorge, a sanção contra o abuso de direito tem uma
finalidade diferente do recurso à equidade; com esta pretende evitar-se a
injustiça a que conduz, em certos casos a aplicação concreta da norma; aquela
pretende impedir que a norma seja desvirtuada no seu real sentido e alcance.
Num caso afasta-se a norma; no outro quer-se aplicar a norma, mas com plena
fidelidade ao seu espírito. (1)
Resumindo:
Para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há
que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na
colectividade; quando esses limites decorrem do fim económico e social do
direito impõe-se apelar para os juízos de valor positivo consagrados na própria
lei (2).
Sem esquecer, porém, que, traduzindo-se a atribuição de um direito no
reconhecimento da supremacia de certos interesses sobre outros com eles
conflituantes, só o exercício que exceda manifestamente aqueles limites pode
ser considerado ilegítimo.
A manifestação mais clara do abuso do direito é a chamada conduta
contraditória (venire contra factum proprium) em combinação com o princípio
da tutela da confiança (exercício dum direito em contradição com uma conduta
anterior em que a outra parte tenha confiado, vindo esta com base na
confiança gerada, e de boa fé, a programar a sua vida e a tomar decisões).
Como figuras próximas, temos a renúncia e a neutralização do direito.
Segundo Baptista Machado, esta última figura é considerada, em geral, como
uma modalidade especial da proibição do venire contra factum proprium e
ocorre quando se verificam cumulativamente as seguintes circunstâncias: o
titular dum direito deixa passar longo tempo sem o exercer; com base neste
decurso do tempo e com base ainda numa particular conduta do dito titular ou
noutras circunstâncias, a contraparte chega à convicção justificada de que o
direito já não será exercido; movida por esta confiança e com base nela, essa
contraparte orienta em conformidade a sua vida, tomando medidas ou
adoptando programas, de sorte que o exercício tardio e inesperado do direito
lhe acarretará uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado (RLJ
118/228).
Voltando ao caso dos autos.
Não há dúvida que o acordo celebrado em 8.01.02, entre autor e ré, contemplou
apenas as prestações em dívida – relativamente ao subsídio de agente único –
anteriores a 1 de Novembro de 2001.
Por outro lado, resulta da matéria provada que, nessa data, estavam também em
falta outras prestações - relativamente aos meses de Novembro e Dezembro de
2001 e a não inclusão do valor desse subsídio (de agente único) nos subsídios de
férias e de Natal desse ano, pelo valor das 08 horas diárias - e, ainda, que as
quantias correspondentes não se mostravam liquidadas, em 28.02.02, altura em que
o autor declarou rescindir o contrato de trabalho, ao abrigo do disposto no artº 3º-1
da LSA.
Igualmente decorre da matéria provada que, na data da declaração de rescisão, se
encontrava por pagar o serviço de agente único relativamente aos meses de Janeiro
e Fevereiro de 2002.
Do que se trata de saber é se, no circunstancialismo apurado, o exercício do direito
de rescisão por parte do autor é abusivo.
Entendemos que não.
Antes de mais, a declaração de rescisão não representa uma atitude
contraditória (venire contra factum proprium) relativamente ao acordo
celebrado em 8.01.02. Com efeito, a celebração deste acordo por parte do autor
não é uma conduta que, objectivamente considerada, seja de molde a criar a
convicção de que ele, coerentemente, no futuro, não exerceria o direito de
rescisão do contrato de trabalho relativamente a salários em atraso não
abrangidos por aquele acordo (situação objectiva de confiança). Tão-pouco se
poderá configurar como um investimento merecedor de tutela jurídica o não
pagamento das remunerações em falta (nem em Janeiro, nem em Fevereiro de
2002), considerando que esse não pagamento correspondia a uma tomada de
posição da ré (organização do seu plano de vida) baseada na situação de
confiança gerada pela celebração daquele acordo. Nem há razões que
permitam sustentar a boa fé da ré.
Face aos factos provados, fica igualmente patente que não se verificam os requisitos
da «neutralização do direito».
Também não se pode concluir que, ao rescindir o contrato nas apontadas
circunstâncias, o autor tenha excedido – muito menos de forma manifesta - os limites
impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico do direito.
A recorrente defende posição contrária, argumentando:
- estar o autor a escassos dias de obter a sua reforma, o que aconteceria em
19/05/2005;
- haver desproporção entre o valor da indemnização - € 21.036,95 – e o montante
em dívida - € 179,67;
- nunca a ré ter deixado de pagar ao autor, ao longo de mais de 30 anos, o justo
salário;
- vir o autor exigir à ré o pagamento de 8 horas diárias, quando sabia que apenas
prestava em média 2 horas por dia;
- haver ex-colegas do autor, ao serviço da ré na presente data, a aguardar o
resultado deste processo e que poderão vir no futuro, apresentar os seus pedidos de
rescisão contratual.
Não procede tal argumentação.
Além de não se poder sustentar que, no momento da rescisão, o autor estava a
escassos dias de obter a reforma (segundo a própria recorrente, ainda necessitaria
de trabalhar 3 anos e 3 meses), a verdade é que o direito de rescisão conferido pelo
artº 3º-1 da LSA não está condicionado pela distância a que o trabalhador está do
termo da sua vida activa. Recorrer ao instituto do abuso de direito para afastar a
tutela do direito relativamente aos trabalhadores com mais tempo de serviço seria,
no mínimo, discriminatório.
Também não colhe o segundo argumento. É evidente que haverá sempre uma
desproporção entre o valor do salário (ou parte do salário) em atraso e o montante
da indemnização devida no caso de rescisão do contrato ao abrigo da citada
disposição e que essa desproporção será tanto maior quanto maior for a antiguidade
do trabalhador. Simplesmente, como doutamente se sublinha na sentença da 1ª
instância, um trabalhador pelo facto de “ter muitos anos de casa” (no caso concreto,
quase 28 anos), não pode ter menos direitos que um trabalhador recém-contratado.
Ou seja, o direito a uma elevada indemnização por antiguidade não converte em
ilícita (abusiva) a rescisão do contrato feita ao abrigo daquela disposição. A
entender-se doutro modo, seria um convite para o empregador ser menos diligente a
pagar os salários aos trabalhadores mais antigos. Ora, não foi esta seguramente a
intenção do legislador. Com efeito, é conhecida a finalidade visada pela Lei 17/86:
proteger os trabalhadores contra o flagelo dos salários em atraso e, em certa
medida, pressionar a entidade patronal a cumprir a correspondente obrigação,
reconhecendo-se como jurídica, social e moralmente inaceitável a existência de
trabalhadores com salários em atraso, em empresas em laboração. E, porque se
considerou que a falta de pagamento, mesmo duma parcela da retribuição, tinha
reflexos negativos na vida dos trabalhadores, foi a primitiva redacção do citado artº
3º-1 alterada, deixando o direito à rescisão ou à suspensão de estar dependente de
dois prazos distintos: 90 ou 30 dias, consoante o montante em dívida fosse ou não
inferior ao valor duma retribuição mensal, respectivamente (o prazo passou a ser
único – 30 dias).
No caso dos autos, afigura-se claro que a falta de pagamento atempado do subsídio
de agente único tinha reflexos negativos na vida do autor e da sua família, face ao
montante do seu salário base (na altura, € 513,76), sendo, por isso, legítimo (e não
abusivo) que, não querendo tolerar por mais tempo o atraso no pagamento de parte
da retribuição, tivesse lançado mão do direito conferido pelo citado artº 3º-1.
Perde assim sentido a alegação da recorrente quando afirma não ser grave a sua
falta e que a mesma não pode servir de fundamento para o exercício do direito de
rescisão por parte do autor (ver conclusão 5ª, supra em I).
Igualmente não viola o princípio da boa fé, os bons costumes ou o fim social e
económico do direito, a rescisão do contrato pelo autor, em 2002, tendo a ré
cumprido as suas obrigações durante cerca de 27 anos. Na verdade, o autor limitou-
se a reagir, em termos legais, contra um comportamento ilícito da ré, comportamento
que nem sequer era inédito, uma vez que em Maio de 2001 e nos meses seguintes
até Outubro do mesmo ano, face ao que resulta do acordo junto a fls 24, já a ré
havia deixado de pagar ao autor a totalidade do dito subsídio, sendo certo que,
nessa altura, o autor não rescindiu o contrato, embora pudesse fazê-lo.
Quanto à argumentação de que o autor apenas prestava em média 2 horas diárias –
além deste facto não estar demonstrado – dir-se-á que o mesmo é irrelevante, dado
que ficou provado que a ré se obrigou a pagar ao autor o subsídio pelas funções de
agente único, 25% sobre 8 horas diárias, independentemente do número de horas
de serviço prestado. Embora na cláusula 16ª-3 da CCT, aplicável ao caso, publicada
no BTE, nº 8, 1ª série, de 29.02.80, se estabeleça que aquele subsídio é relativo ao
«tempo efectivo de serviço prestado na qualidade de agente único, com o
pagamento mínimo correspondente a 4 horas de trabalho diário nessa situação», a
verdade é que as partes afastaram tal regulamentação, estabelecendo um regime
mais favorável ao autor/trabalhador, ao abrigo do disposto no artº 14º-1 do DL 519-
C1/79, de 29.12.
Ora, podendo a ré obrigar-se nos termos em que se obrigou, tinha o autor direito a
exigir o cumprimento dessa obrigação, sem que tal exigência significasse a violação
de regras éticas elementares, como seja a da lealdade nas relações entre as
pessoas. Na verdade, a vinculação assumida por negócio jurídico válido passa a ter
o valor duma norma. Por isso, como sublinha Baptista Machado, não se pode dizer
que, ao tutelar a vinculação negocial, o direito está a tutelar a confiança que o
promissário tem na promessa que lhe foi feita, mas sim o que é de direito, o que tem
qualidade normativa, conferindo-lhe a necessária garantia jurídica.
Assim, perante o incumprimento da ré (não pagamento do subsídio com base em 8
horas de trabalho, sendo indiferente que o serviço efectivo prestado tivesse duração
inferior), era lícito ao autor, verificados que fossem os pressupostos previstos no artº
3º-1 da LSA, rescindir o contrato.
O último argumento – haver ex-colegas do autor, ao serviço da ré na presente data,
a aguardar o resultado deste processo e que poderão vir, no futuro, apresentar os
seus pedidos de rescisão contratual – é totalmente irrelevante. Não se podem retirar
direitos a um credor para evitar que o devedor seja confrontado com posteriores
exigências de outros credores.
Face a tudo o que vem exposto, também caem por terra as conclusões 12ª (que só
com presunções à revelia de qualquer facto concreto é que se pode concluir que o
exercício do direito não foi abusivo) e 14ª (redução da indemnização a um montante
proporcional e adequado à situação em causa) da recorrente.
V- Decidindo
Nestes termos, acordam em negar a revista e em confirmar o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 17 de Novembro de 2004
Maria Laura Leonardo
Vítor Mesquita
Fernandes Cadilha
-----------------------
(1) “Ensaios sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 1968, nota 166.
(2) Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 10ª ed, pgs 544 e sgs, e M.J.
Almeida e Costa, “Direito das Obrigações”, 10ª ed., pg 70 e sgs, entre outros.
05) Processo:02B3659
Nº Convencional: JSTJ000
Relator:EDUARDO BAPTISTA
Descritores:ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento:SJ200301090036592
Data do Acordão: 09/01/2003
Votação:UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1836/02
Data:18/04/2002
Texto Integral:S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática:DIR CIV - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CCIV66 ART334.
Sumário :
I - Em negociações livres, nenhuma parte está obrigada a acolher servilmente, a
posição da contraparte.
II - Não pode considerar-se excessiva e injustificada a exigência da ré expo de que
os termos em que a autora podia continuar a laborar na parcela de terreno que vinha
ocupando fossem reduzidos a um protocolo, em que se discriminassem as
condições e o tempo em que o poderia fazer.
III - Embora os direitos de uso privativo de bens dominiais na área da expo98
tenham sido extintos pelo Dec-Lei 207/93 de 14.06, e a autora conhecesse desde
1991 a possibilidade de o terreno em causa ser abrangido pela Expo98, não era a
ré, que já prolongara a desocupação, obrigada a conceder mais tempo para o efeito.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de
Justiça:
1 - "A - Construção de Embarcações em Plástico Reforçado, L.da", Autora na acção
declarativa ordinária, em que é Ré "B, SA" e que correu termos pela 1ª Secção do 6º
Juízo Cível (actualmente 6ª Vara Cível) de Lisboa, inconformada com o acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 18 de Abril de 2002, que julgou
improcedente a apelação interposta pela ora Recorrente e confirmou a sentença,
proferida na 1ª instância, que absolvera a Ré do pedido de pagamento de uma
indemnização civil de 692.939.810$00 e por outros danos, cuja liquidação remetia
para execução de sentença, mantendo a condenação da Autora no pagamento de
uma indemnização de 300.000$00, referente ao pedido reconvencional, dele veio
recorrer, de revista, para este Supremo Tribunal.
A Recorrente apresentou alegações, que concluiu da forma seguinte:
"1ª - A Recorrente, alegando comprovados fundamentos, os factos e os documentos
abrangidos pela douta ESPECIFICAÇÃO alíneas I), N), P), Q) , R) e S), as respostas
"PROVADO" aos quesitos 29 e 33 e o documento n.º 30/PI de fls.188 e 189, provou
que
1.1. - Que a declaração formal, subscrita pessoalmente pelo Presidente do Conselho
de Administração da Recorrida notificando a Recorrente para entregar a parcela em
causa em 31 de Março de 1994, aliás acatada, enfermava afinal de gravíssima falta
de verdade, porquanto os factos supervenientes demonstraram que a mesma
entidade pudera sem prejuízo próprio ter feito essa notificação para 31 de Março de
1995.
1.2.- Tal declaração falha de verdade levou a Recorrente a entregar a par-cela em
31 de Março de 1994;
1.3. - Perdendo, consequentemente, um ano de laboração fabril (31/03/94 a
31/03/95), a conclusão da embarcação "...." , a conclusão da embarcação "....." e
finalmente o próprio estaleiro.
"2ª - A Recorrida não juntou, em contrário, o "calendário de demolições e
construções no que respeita à área onde se encontrava o estaleiro" -quesito 78 - que
somente por tal documento poderia ser provado.
"3ª - Nem a resposta "PROVADO" a tal quesito poderá subsistir com base no
testemunho de duas únicas testemunhas da Recorrida - Eng.º C e Dr. D - in
FUNDAMENTAÇÃO fls. 853.
"4ª - É aliás incompatível logicamente com o facto de em 31 de Março de 1995, a
parcela ainda estar ocupada com as construções desmontáveis da Recorrente -
resposta "PROVADO" ao quesito 79 -, quer por serem as construções desmontáveis,
quer por a penhora não impedir a sua remoção a requerimento do fiel depositário.
"5ª - Nestes termos é infundado que a Recorrente pudesse causar o mínimo prejuízo
à Recorrida.
"6ª - A falta de verdade na declaração subscrita pelo Presidente do Conselho de
Administração, no exercício do direito de propriedade, EXCEDE
MANIFESTAMENTE LIMITES IMPOSTOS PELA BOA FÉ E PELOS BONS
COSTUMES, cominados pelo disposto no Código Civil Art. 334.
"7ª- Tendo-a Recorrente aceite por verdadeira e acatado como suposto exercício
lícito de direito alheio, face ao qual estaria em posição de correcta sujeição.
"8ª- Somente um ano após, pôde a Recorrente conhecer ao falta de verdade da
citada declaração do Presidente do Conselho de Administração da Recorrida e o
consequente prejuízo de um ano de laboração perdido, e contabilizar os comerciais
prejuízos demais consequentes.
"9ª- Quer a aliás douta sentença, quer o aliás venerando acórdão, além de não
terem realmente julgado a acção intentada tal como articulada pela recorrente sua
autora, antes se deixaram enredar na contra acção, articulada sem nexo legal com a
primeira, pela Recorrida e alimentada na confusão do Direito Administrativo com o
Direito Civil.
"10ª- Consequentemente, ambos os arestos enfermam de nulidade por violação do
disposto no C.P.C. Art.º 668° n.º 1 alíneas b) e d), nomeadamente quanto ao pedido
B- b 2 "..." PTE: 106.820.0000$00 - inpetitório inicial - fls. 12 verso.
"11ª- Consequentemente, são ambos os arestos nulos, pelo que deverão ser
declarados nulos ex-vi Art. 668 nº 1, com as legais consequências.
"12ª- Sem prejuízo do definitivo julgamento da presente revista na parte do Direito
aplicável à causa, tal qual definida na P.I., no douto Despacho Saneador,
nomeadamente quanto à aplicação do disposto no C.C. Art.º 334.º, competência do
Tribunal e adequada forma de processo".
A Recorrida apresentou contralegações.
Nas suas contralegações, a Recorrida sustenta o acórdão recorrido, defendendo que
ele fez correcta aplicação da lei pertinente aos factos provados, pelo que deverá ser
confirmado e que o recurso de revista interposto carece de bom fundamento, pelo
que deverá ser desatendido.
Foram recolhidos os legais vistos dos Ex.mos Juízes Conselheiros-Adjuntos.
Mantendo-se a regularidade formal da lide, há que conhecer do mérito do recurso.
2 - Há que verificar quais os factos relevantes para apreciar e decidir o presente
recurso.
2.1 - Das instâncias vieram apurados os seguintes factos relevantes:
"1) A Autora é uma empresa de construção de embarcações em plástico reforçado a
fibra de vidro. [A) da Especificação].
2) Sempre exerceu a sua indústria no estaleiro de construção naval que construiu na
parcela de terreno nº 2415 do domínio público, com área de 5327 m2, situada em
Olivais, Beirolas, Freguesia de Santa Maria dos Olivais, Rua da Cintura do Porto de
Lisboa, junto à Doca dos Olivais, Topo Norte, 1800 Lisboa. [B) da Especificação].
3) Parcela essa cedida e construção do estaleiro autorizada pela Administração do
Porto de Lisboa, por deliberação tomada em sua sessão de 20 de Janeiro de 1983
sobre o assunto nº 65 da respectiva acta. [C) da Especificação]
4) Com base nessa deliberação foi instruído o processo administrativo n. 1477/GP e
passada em 4 de Dezembro de 1987 a licença de utilização n. 981 da referida
parcela a favor exclusivo da Autora. [D) da Especificação]
5) A Ré foi constituída como sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos
pelo Dec-Lei n. 88/93 de 23 de Março. [E) da Especificação]
6) Simultaneamente, pelo Dec-Lei n. 87/93, da mesma data, foi aprovada a
localização da B e logo tomadas medidas preventivas para a respectiva área,
definida no seu anexo I. [F) da Especificação]
7) A Ré, logo em Junho seguinte, obteve pelo Dec-Lei n. 207/93 de 14 de Junho a
propriedade da parcela, que tinha sido cedida à Autora pela Administração do Porto
de Lisboa e incluída naquela área. [O) da Especificação]
8) A Ré enviou à Autora cartas, datadas de 22.6.93 e 28.6.93, de teores iguais às de
fls. 41/42 e 43/44. [H) da Especificação]
9) Datados de 15.7.93 a Autora enviou à Ré os faxes e documentos de fls. 45 a 49
cujos teores aqui se reproduzem. [I) da Especificação]
10) Datada de 11.8.93, a Autora enviou à Ré carta de teor igual à de fls. 50 e 51,
carta essa acompanhada dos documentos de fls. 54. [N) da Especificação]
11) Seguiu-se, pelo menos, uma reunião entre Autora e Ré. [O) da Especificação]
12) Datada de 2.9.93 a Autora enviou à Ré carta de teor igual à junta a fls. 55 a 57,
acompanhada do documento de fls. 58 a 60 intitulado " Avaliação das Imobilizações
Corpóreas da A" e bem assim como de todos os documentos de fls. 61 a 74. [P) da
Especificação]
13) Datada de 19.11.93 a Ré enviou a Autora a carta de fls. 75/76 onde se diz: "Na
sequência do Dec-Lei 207/93 de 14.6, por força do qual foram extintos todos os
direitos de uso privativo sobre bens dominais situados na zona de intervenção da B,
foi-vos oportunamente comunicada a autorização para continuarem a ocupar a
parcela objecto da licença agora extinta até 32.12.1993. Os estudos, entretanto
desenvolvidos permitem agora estabelecer, em termos definitivos, o prazo e as
condições em que deverá ser feita a desocupação dos terrenos:
1) Em 31.3.94, o terreno deverá estar totalmente desocupado de bens e materiais.
2) Pela ocupação precária da parcela objecto da licença extinta deverá a "A -
Construção de Embarcações em Plástico Reforçado, Lda." pagar à "B, S.A." a
quantia mensal de 259.501$00 acrescida da importância em dívida desde 14 de
Outubro de 1993.
3) O pagamento deve ser efectuado da forma seguinte:
a) Até 10 de Dezembro de 1993, as quantias respeitantes aos meses de Novembro
e Dezembro e aos dias 14 a 31 de Outubro, no montante de 657.403$00
b) A 20 de Dezembro e, posteriormente, até ao dia 20 de cada mês, a quantia
respeitante ao mês seguinte.
4) A partir de 31 de Março de 1994, a B, S.A. procederá à desocupação dos
terrenos, sendo V. Ex.as responsáveis por todas as despesas a realizar para o
efeito.
Com os melhores cumprimentos (...)". [O) da Especificação) 14] Datada de 24.1. 94
a Ré enviou à Autora carta de fls. 77 com os seguintes dizeres:
"O Presidente do Conselho de Administração do "B, S.A.", no uso dos poderes que
lhe são conferidos pelo n. 2 do art.º 7° do Dec-Lei 88/93 de 23/3 e pelo n. 1 do artº
4° do Dec-Lei 354/93 de 9.10, notifica a A - Construção Embarcações Plásticas
Reforçado, Lda. e o Senhor E, na qualidade de gerente, da referida Sociedade, de
que:
1) Até 31.3.94, o terreno objecto da licença extinta pelo Dec-Lei n. 207/93, de 14/6,
deverá estar totalmente desocupado de bens e materiais.
2) - A partir de 1 de Abril de 1994, a B, S.A. procederá a diligências que forem
necessárias para obter a desocupação e disponibilidade do terreno em questão.
3) O agora notificado é responsável por todas as despesas com a operação, nos
termos do artigo 157° do Código de Processo Administrativo, obedecendo a
respectiva cobrança coerciva ao disposto no Código de Processo das Contribuições
e Impostos (...). [ R) da Especificação]
15) A Autora dirigiu ao Chefe de Repartição de Finanças do 19° Bairro Fiscal de
Lisboa aos 30.9.94, carta de teor igual à de fls. 181 cujo o teor aqui se reproduz. [S)
da Especificação]
16) Habilitou todos os trabalhadores ao Fundo de Desemprego. [T) da
Especificação]
17) Instalou uma sede provisória para responder pelas suas obrigações legais e
contratuais. [U) da Especificação]
18) Comunicou-se por carta circular com todos os credores, fornecedores e
armadores. [V) da Especificação]
19) A Autora, de acordo com o previsto no contrato referente ao "...", chegou a
receber do armador, em sede de adiamento, um valor superior a 20.000.000$00. [Y)
da Especificação]
20) Houve a necessidade de acelerar os trabalhos. (resposta aos quesitos 1 ° a) e
10°)
21) A natureza das construções, as exigências técnicas e as precauções de
segurança ditavam uma cadência nos trabalhos. [resposta ao quesito 1 ° b)]
22) Um trabalhador tirou férias em 21.02.1994. (resposta ao quesito 2°)
23) O encarregado fabril pediu a rescisão do seu contrato de trabalho, depois de ter
conseguido novo posto de trabalho. (resposta ao quesito 6°)
24) Os armadores das embarcações em construção exerceram pressão sobre a
Autora para garantirem a entrega das embarcações antes de 31 de Março de 1994.
(resposta ao quesito 9°)
25) A autora, lançou à água, entre a comunicação da extinção da licença de
utilização feita pela ré - Junho de 1993 - e a data notificada - 31 de Março de 1994 -
as embarcações de pesca:
"Bate a Asa", 10,15 f.f
"Xavier José", 10, 15 f.f
"Tó Manel", 10,50 f.f
" Luz do Talismã", 8,45 f.f. (resposta ao quesito 12°)
26) Os gerentes da autora procuraram encontrar lugar onde reconstruir o seu
estaleiro e reiniciar a sua actividade fabril. [resposta ao quesito 28° a)]
27) Decorrido quase um ano sobre a entrega da parcela em causa e do estaleiro à
Ré, e da embarcação "..." ao seu armador, na data da propositura desta acção ainda
a parcela em causa se encontra ocupada com o estaleiro da Autora - construções
desmontáveis, contentores e moldes. (resposta ao quesito 29°)
28) A embarcação "..." ficou em condições de ser lançada à água pelo armador e
pela firma que o concluiu - a "INAVE"-, em fins de Novembro de 1994. (resposta ao
quesito 30°)
29) A ré permitiu que a "INAVE" continuasse a construção da dita embarcação no
estaleiro da autora até que esta estivesse em condições de ser lançada ao mar.
(resposta ao quesito 31º)
30) Em Fevereiro do ano seguinte -1995 - a dita embarcação ainda estava em
acabamentos finais na Doca do Poço do Bispo. (resposta ao quesito 32°)
31) Em Fevereiro de 1995 as construções e utensílios do estaleiro - moldes,
contentores e construções desmontáveis, etc. - ainda se encontravam na parcela em
causa. (resposta ao quesito 33°)
32) Já estavam concluídos, para a embarcação "...", o projecto e a traçagem de
metade da construção correspondendo a esta fase um período de trabalhos de 4
meses de acordo com o cronograma de fls. 54. (resposta ao quesito 39°)
33) Em Março de 1994, aquando do encerramento da actividade, a autora tinha um
crédito de IVA de 13.120.540$00. (resposta ao quesito 46°)
34) A partir de 1991 a Autora conhecia a possibilidade de o terreno em causa ser
abrangido pela área de implementação da "B, S.A." e a possibilidade de ser obrigada
a desocupá-lo. (resposta ao quesito 53°)
35) Conforme solicitado pela ré na sua carta de 12 de Junho de 1993, deu-se início
ao processo de contactos directos com a autora na pessoa dos seus representantes
os quais reuniram por diversas vezes, tendo ocorrido uma reunião em 21.7.93 e
outra em 12.08.93 (resposta ao quesito 55°).
36) Um dos problemas com que a autora se deparava era a necessidade de
relocalização da sua actividade. (resposta ao quesito 56°)
37) A ré desenvolveu várias iniciativas no sentido da relocalização da actividade da
autora e a autora colocou sucessivos obstáculos. (resposta ao quesito 57°)
38) A ré manteve a abertura para o encontro de uma solução que salvaguardasse os
interesses de ambas as partes. Para esse efeito, pretendia a celebração de um
documento (protocolo) que traduzisse e fixasse a solução encontrada,
principalmente no que respeitava, às condições e momento da desocupação efectiva
do terreno. (resposta ao quesito 58°)
39) No início do mês de Março, a ré foi contactada pelos armadores do único barco
que permanecia ainda em construção, a firma Aguiar & Aguiar os quais vinham
solicitar, pessoalmente, que fosse encontrada uma solução que permitisse a
conclusão da construção da embarcação, uma vez que a autora se encontrava já
com um atraso superior a dez meses nos seus trabalhos (tratava-se de um contrato
de 1991 com um prazo de construção previsto para 16 meses), com os
consequentes prejuízos para os armadores, que não poderiam suportar
financeiramente a perda do navio. (resposta aos quesitos 60° e 61º)
40) Em Março de 1993 a expectativa de conclusão dos trabalhos apontava para o
mês de Maio de 1994. (resposta ao quesito 62°)
41) O navio "..." corresponde a um contrato de 1991 com um prazo de construção
previsto em 16 meses e tratava-se de uma embarcação de grande envergadura, em
que se encontravam já investidos nesse momento quase centena e meia de milhares
de contos, do armador e do IFADAP. (resposta ao quesito 63°)
42) No final do mês de Março de 1994, a embarcação encontrava-se numa fase de
construção que não permitia já o seu transporte para outro estaleiro. (resposta ao
quesito 64°)
43) Restavam apenas, como alternativas, terminar no local a sua construção ou
considerá-la totalmente perdida. [resposta ao quesito 64° a)]
44) A sociedade Direito ao Trabalho, com o acordo da A, comprou a posição de uma
outra entidade armadora de uma embarcação que se encontrava já em construção
nos estaleiros da autora - o navio Zim-brapesca. (resposta ao quesito 65°)
45) A autora, pelo menos desde de 1985 não efectuava os pagamentos à Segurança
Social; não pagou a contribuição autárquica de 1991; tinha dívidas para com os CTT
referentes a 1984 e 1985; tinha dívidas para com o Fundo de Desemprego
referentes a 1985 e 1986; e não pagava as taxas devidas à APL desde Janeiro
1993. (resposta ao quesito 70°)
46) Em virtude da actuação da autora, a ré sofreu prejuízos com atrasos nos seus
trabalhos. (resposta ao quesito 71 º)
47) A verba referida em Y) foi totalmente aplicada no projecto e desenhos entregues
na Inspecção de Navios e Segurança Marítima, na traçagem do plano geométrico à
escala de 1: 1 que ocupava toda uma nave coberta, nas cópias em plástico
remetidas para o carpinteiro, nas madeiras por este compradas, no molde do convés
e castelo, e noutras despesas. (resposta ao quesito 72°)
48) A embarcação com o termo de construção previsto para Maio de 1994 que é
referida no cronograma anexo ao doc. n. 20 da Contestação é o "..". (resposta ao
quesito 73°)
49) A embarcação com o termo de construção prevista para Abril de 1995 que é
referida no cronograma anexo ao doc. n. 20 da contestação é o "...". (resposta ao
quesito 74°)
50) A Ré procedeu à alteração do seu calendário de demolições e construções no
que respeita à área onde se encontrava o estaleiro. (resposta ao quesito 78°)
51) O estaleiro da Ré foi objecto de penhora pela Fazenda Nacional, não tendo sido
encontrado comprador para o mesmo, tendo a Ré acabado por adquiri-lo por
300.000$00 no final do 1º trimestre de 1995. (resposta ao quesito 79°)
2.2 - Dado que a ora Recorrente arguiu as nulidades do acórdão recorrido do
"C.P.C. Art.º 668° n.º 1 alíneas b) e d), nomeadamente quanto ao pedido B- b 2 "..."
PTE: 106.820.0000$00 - in petitório inicial - fls. 12 verso", que, alegadamente,
também se verificavam na sentença pro-ferida em 1ª instância, importa também fixar
alguns factos indispensáveis para fazer esta apreciação.
Nas conclusões das alegações que a Autora, ora Recorrente, apresentou na
apelação que interpôs, suscitou esta as seguintes três questões:
Que se deve declarar a "procedência de todos os pedidos constantes da petição
inicial", pois verificar-se-ia o alegado abuso de direito, por parte da Ré-Apelada; Que
os pedidos reconvencionais devem ser julgados improcedentes; E que os
depoimentos de duas testemunhas não podem ser valorizados, por falta de
idoneidade destas, devendo "tais depoimentos ser substituídos pela prova
concretizada na " especificação, e nos muitos depoimentos citados nos autos - por
aplicação ao caso do disposto no C.P.C. Art. 712º, n. 1 alínea a)".
No douto acórdão recorrido, o Tribunal da Relação apreciou as seguintes questões:
Se havia abuso de direito por parte da Ré, que "constituía a causa de pedir na
presente acção", concluindo pela negativa; Apreciou a procedência da reconvenção;
E apreciou a pretensão da Apelante ver alterada a matéria de facto.
No final concluiu pela improcedência da apelação, com confirmação da sentença
recorrida.
3 - Encontrados estes factos relevantes, há que apreciar as questões suscitadas
pela Recorrente, que são, no essencial, as seguintes:
Apreciar se houve as referidas nulidades do acórdão recorrido;
Apreciar a questão da eliminação dos depoimentos de duas testemunhas arroladas
pela Ré e alteração da resposta dada ao quesito 78º;
E apreciar se a acção é procedente, por ter havido abuso de direito por parte da
Recorrida.
3.1 - Antes de entrar em maiores análise, importa recordar alguns princípios básicos
dos recursos em geral e dos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça em
especial.
Os recursos destinam-se a reapreciar as questões decididas no Tribunal recorrido e
não a emitir julgamento sobre questões novas, salvo se estas forem de
conhecimento oficioso (art.s 676º, n. 1 e art. 684º, n.s 2 e 3 do Cód. Proc. Civil) (1).
Ora, no caso sub Júdice, a Recorrente coloca algumas questões novas, que não
apresentou no Tribunal da Relação, como sejam se determinados factos só podiam
ter sido provados por certos documentos e se deve alterar-se a resposta ao quesito
78º; Que a douta sentença proferida em 1ª instância enferma de nulidade.
Pela razão exposta este Supremo Tribunal não poderá conhecer delas.
Mas, em breve parêntesis, dir-se-á que não se conhece norma legal (e a Recorrente
também não a indica) que exija, para as matérias indicadas pela Recorrente, um
determinado tipo de prova, designadamente de natureza documental.
Acresce, que este Supremo Tribunal, como tribunal de revista, tem que aceitar a
matéria de facto fixada nas instâncias (2), não lhe cabendo a ele sindicar essa
matéria, em relação decidido no Tribunal da Relação (art. 729º, n. 2 e art. 722º, n. 2,
do Cód. Proc. Civil).
No douto acórdão do Tribunal da Relação, ora em recurso, entendeu-se que a
matéria de facto comprovada era a que nele se descreveu e nele não se fez uso dos
poderes contidos no art. 712º, n.s 1 e 4 do mesmo diploma legal, pelo que não pode
este Tribunal pronunciar-se sobre esses factos nem sobre as conclusões de facto
que a Relação retirou dela.
Vale isto por dizer que, também por esta razão, não serão apreciadas as questões
do valor do depoimento de determinadas testemunhas, da idoneidade destas e da
alteração da resposta dada a um quesito.
3.2 - De seguida, há que apreciar se o acórdão recorrido enferma de quaisquer
nulidades, designadamente das previstas no art. 668º, n. 1, al.s b) e d) do Cód. Proc.
Civil.
Tais nulidades resultariam de no acórdão recorrido se ter ignorado que, em Março
de 1994, estava ainda em construção a embarcação "...", a que se referia o pedido
B.b.2 da petição inicial, tendo-se nele afirmado que "Em Março de 1994, a única
embarcação ainda em construção era o "...".
As nulidades arguidas são a falta de fundamentação de facto e de direito [al. b)] e,
embora a Recorrente não o diga expressamente, no referente à mencionada al. d),
considera-se que ela estará a referir-se à omissão de pronúncia.
Serão estas duas nulidades que se apreciarão seguidamente.
3.2.1 - Como se sabe, a sentença é, na sua estrutura lógica, tradicionalmente vista
como um verdadeiro silogismo (o chamado "silogismo judiciário"), cuja premissa
maior é constituída pela norma legal aplicável, a premissa menor é constituída pelos
factos apurados no processo e a conclusão é constituída pela decisão proferida (3).
As nulidades (em rigor, são causas de anulabilidade da decisão) previstas nas al.s b)
a e) daquele n. 1 dizem respeito à estrutura lógica ou aos limites da decisão (4) , e
nada têm a ver como "o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não
conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do
silogismo judiciário" (5).
A nulidade da falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito, que
justificam a decisão [al. d)] diz respeito à omissão de indicação ou explicitação
daquela estrutura lógica da sentença e as nulidades da omissão - tal como a de
excesso de pronúncia - [al. d)] diz respeito aos limites da decisão (6), querendo-se
dizer, respectivamente, que há uma deficiência na construção da estrutura lógica da
sentença ou do acórdão, ou que não se conheceu de todas as questões que se
deviam conhecer - ou, no caso do excesso de pronúncia, conheceu de questões de
que não se podia conhecer.
3.2.2 - Arguiu a Recorrente a nulidade da falta de fundamentação do acórdão
recorrido, prevista no art. 668, n. 1, al. b) do Cód. Proc. Civil, como vimos em 1.
Segundo esta al. b), constitui nulidade da sentença, no caso em apreço do acórdão,
ou do despacho (art. 666, n. 3 do mesmo Código) a falta de especificação dos
"fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão".
Esta norma deve ser conjugada com o disposto no art. 659º, n. 2 do Cód. Proc. Civil,
onde se estabelece a obrigação do juiz fundamentar de facto e de direito as suas
decisões judiciais, designadamente a sentença, cuja infracção se comina com a
nulidade da decisão.
Segundo este n. 2, o juiz deve "discriminar os factos que considera provados e
indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes".
No entanto, vem sendo uniformemente entendido que apenas a absoluta falta ou
completa ausência de fundamentação, de facto ou de direito, constitui esta nulidade
(7) e que, por isso, não constitui nulidade uma fundamentação sumária, deficiente ou
mesmo errada (8) e (9).
Ora, como se pode ver por uma sumária análise do acórdão recorrido, este contém a
enumeração dos factos que foram considerados provados, como contém uma
exaustiva apreciação do direito que é aplicável ao caso em apreço, relativamente a
uma das questões apreciadas e que as restantes duas também trazem
fundamentação jurídica, para além de ter remetido para a sentença recorrida, que
está profusamente fundamentada.
Não se verifica, portanto, no acórdão recorrido a nulidade da omissão de
fundamentação de facto ou de direito.
3.2.3 - Nos termos da al. d) do n. 1 do art. 668º do Cód. Proc. Civil, há nulidade da
sentença se o juiz deixou de apreciar qualquer questão que devesse conhecer.
Esta nulidade, geralmente designada por omissão de pronúncia, está relacionada
com o disposto no art. 660 do Cód. Proc. Civil, constituindo a sanção para a sua
inobservância.
Segundo este art. 660º, o tribunal deve apreciar, além das questões que possam
levar "à absolvição da instância" (cujo conhecimento tenha sido relegado para final
ou que sejam supervenientes) e das que "a lei lhe permitir ou impuser o
conhecimento oficioso", deve resolver "todas as questões que as partes tenham
submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada
pela solução dada a outras" (n.2).
Têm-se suscitado dificuldades em fixar o exacto conteúdo das "questões a resolver"
que devem ser apreciadas pelo juiz na sentença, sendo certo que há acentuado
consenso no entendimento de que não se devem confundir as "questões a resolver"
propriamente ditas com as razões ou argumentos, de facto ou de direito, invocados
por cada uma das partes, para sustentar a solução que defende a propósito de cada
"questão a resolver" (10), sendo certo que a nulidade não se verifica quando o juiz
deixe de apreciar algum ou todos os argumentos invocados pelas partes,
conhecendo contudo da questão.
É ainda de salientar que "questão a resolver", para os efeitos do art. 660º do Cód.
Proc. Civil, é coisa diferente de "questão" jurídica (v.g., determinação de qual a
norma legal aplicável e qual a sua correcta interpretação (11) que, como fundamento
ou argumento de direito, pudesse (ou até, devesse) ser apreciada no âmbito do
conhecimento da "questão a resolver". A melhor resolução da "questão a resolver"
deveria, porventura, levar à apreciação de várias "questões" jurídicas, como válidos
argumentos e como fundamentos da decisão sobre a "questão a resolver"; Se o juiz
não apreciar todas essas "questões jurídicas" e não invocar todos os argumentos de
direito, que cabiam na melhor ou mais desejável fundamentação da sua sentença ou
acórdão, mas vier a proferir decisão, favorável ou desfavorável à parte, sobre a
"questão a resolver", haverá apenas fundamentação pobre ou, no máximo, falta de
fundamentação, mas não omissão de pronúncia.
O Prof. Dr. Alberto dos Reis, a propósito do critério de reconhecimento do que se
deve entender por "questão a resolver", pondera "as questões suscitadas pelas
partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem
põe a questão (sujeitos), qual o objecto dela (pedido), mas também qual o
fundamento ou razão do pedido apresentado" (12). Deverá, assim, o juiz apreciar,
para efeitos daquela identificação, "todos os pedidos deduzidos, todas as causas de
pedir e excepções invocadas" (13), além das questões que forem de conhecimento
oficioso.
Ou seja, terá o intérprete a identificar, caso a caso, quais as "questões" que lhe
foram postas ou de conhecimento oficioso e que deverá decidir. No caso dos
recursos, esta análise recairá, essencialmente, sobre as conclusões das alegações
de recurso.
Deste modo, analisando as conclusões das, aliás doutas, alegações da apelação
interposta, pudemos identificar, as questões indicadas em 2.2.
Ora, como vimos, a Autora e ora Recorrente ancora todas as suas pretensões
indemnizatórias na existência de abuso de direito, por parte da Ré-Recorrida, ao
exigir-lhe a entrega das instalações onde tinha o seu estaleiro em Março de 1994.
No acórdão recorrido, apreciou-se se houve ou não abuso de direito por parte da
Ré-Recorrida, concluindo-se que não houve qualquer abuso de direito.
Deste modo, ficou prejudicado o conhecimento especificado de todos e cada um dos
pedidos formulados pela ora Recorrente, como resulta do já citado art. 660º (in fine)
do Cód. Proc. Civil, pelo que o Tribunal da Relação não tinha já que se pronunciar
sobre eles, designadamente sobre o pedido indemnizatório referente à embarcação
"...".
As restantes duas questões foram expressamente apreciadas no acórdão recorrido.
Não incorreu, portanto, o acórdão recorrido na arguida nulidade da omissão de
pronúncia.
3.3 - Cabe agora apreciar se houve, por parte da Recorrida, abuso de direito em
notificar a Autora para entregar o local onde estava instalado o seu estaleiro em
Março de 1994, para, em caso afirmativo, ver se há fundamento para condenar a
Recorrida a pagar-lhe as indemnizações pedidas.
O abuso de direito, como se diz no acórdão recorrido, é também "uma forma
de antijuricidade ou ilicitude, que, desde que se verifiquem os requisitos gerais
da responsabilidade civil, pode dar lugar à obrigação de indemnizar.
Importa, por isso, caracterizar o abuso de direito.
Nos termos do art. 334º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito,
quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos
bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Para que se possa falar de abuso de direito, impõe-se, portanto, a verificação
cumulativa dos seguintes requisitos: Existência do direito; Exercício desse
direito; Excesso, como esse exercício, dos limites impostos pela boa fé, pelos
bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; E que tal
excesso seja manifesto.
Ou seja, como anotam os Mestres Pires de Lima e Antunes Varela (14), para
que haja abuso de direito basta que, objectivamente, o exercício do direito
feito, ou pretendido, exceda manifestamente os limites postos a esse exercício
pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse
direito. Isto é, o abuso de direito "pressupõe logicamente a existência do
direito (direito subjectivo ou mero poder legal), embora o titular se exceda no
exercício dos seus poderes. A nota típica do abuso de direito reside, por
conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a
prossecução de um interesse que exorbita o fim próprio do direito ou o
contexto em que ele deve ser exercido" (15). Importa, portanto, que o titular do
direito invocado se proponha exercê-lo "em termos clamorosamente ofensivos
da justiça" (16).
Para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há
que lançar mão dos valores éticos predominantes na sociedade e para os
impostos pelo fim social ou económico do direito, "deverão considerar-se os
juízos de valor positivamente consagrados na lei" (17) .
Para que o exercício de um direito seja abusivo, é preciso que o titular,
observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda
manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses
que legitimam a concessão desse poder (18) e (19); Ou seja, finalmente como
se disse atrás, que o direito seja exercido em termos clamorosamente
ofensivos da justiça.
Vista a caracterização do abuso de direito, importa ver se o quadro factual
apurado nos autos permite concluir, que a Recorrida agiu em abuso do seu
direito de propriedade sobre a parcela de terreno, em que a Autora-Recorrente
tinha instalado o seu estaleiro.
Ficou provado que, a partir de 1991, a Autora conhecia a possibilidade de o terreno
em causa ser abrangido pela área de implementação da "B" e a possibilidade de ser
obrigada a desocupá-lo (cfr., n. 34 de 2.1 e a resposta ao quesito 35º).
Provou-se ainda que a Ré, em cartas datadas de 22.6.93 e 28.6.93, comunicou à
Autora a necessidade de conseguir uma rápida desocupação dos solos (cfr., o n. 8
de 2.1).
A Ré enviou ainda à Autora a carta de 19.11.93 na qual estabelece o prazo até
31.3.94, para esta proceder à desocupação da parcela (cfr., o n. 13 de 2.1),
comunicação que reiterou em 24.01.94 (cfr., o n. 14 de 2.1).
Durante esse período ocorreram diversos contactos entre a Ré e a Autora,
nomeadamente os referidos no n. 35 de 2.1.
Nessa altura, os gerentes da Autora procuravam encontrar lugar onde reconstruir o
seu estaleiro e reiniciar a sua actividade fabril (cfr., o n. 26 de 2.1), que era um dos
problemas com que a Autora se deparava (cfr., o n. 36 de 2.1).
Mas também ficou provado que a Ré desenvolveu várias iniciativas no sentido da
relocalização da actividade da Autora, tendo esta colocado sucessivos obstáculos
(cfr., o n. 37 de 2.1).
Mais se provou que a Ré manteve abertura para encontrar uma solução, que
salvaguardasse os interesses de ambas as partes. Para esse efeito, pretendia a
celebração de um documento (protocolo), que traduzisse e fixasse a solução
encontrada, principalmente no respeitante às condições e momento da desocupação
efectiva do terreno (cfr., o n. 38 de 2.1).
Em Março de 1994, a única embarcação ainda em construção era o "...", tendo os
respectivos armadores - a firma "F" - contactado pessoalmente a Ré no sentido de
ser permitida a conclusão da construção, que se encontrava com um atraso superior
a 10 meses, perspectivando-se a sua conclusão para Maio de 1994 e já não era
possível removê-la para outro local (cfr., os n.s 39, 40, 42 e 43 de 2.1).
A Ré permitiu que a "INAVE" continuasse a construção da embarcação "..." no
estaleiro da Autora, até que a mesma pudesse ser lançada à água, o que só
aconteceu em Novembro de 1994 (cfr., os n.s 28 e 29 de 2.1).
Quanto ao facto de em Fevereiro de 1995 ainda se encontrarem na parcela as
construções e edifícios do estaleiro (cfr., os n.s 27 e 30 de 2.1), tal resultou do facto
de existir uma penhora da Fazenda Nacional sobre o mesmo e que apenas foi
desbloqueada pela ré, no primeiro trimestre de 1995, vendo-se obrigada a adquiri-lo
pelo montante de 300.000$00 (cfr., o n. 51 de 2.1).
De tudo quanto se deixou dito resulta que a ré, durante todo o processo, procurou
encontrar soluções no sentido de minimizar eventuais danos para a autora,
nomeadamente procurando soluções para a relocalização das instalações da autora
- ao que esta sempre levantou obstáculos - e tentou celebrar um protocolo (à
semelhança da maior parte das empresas na situação da autora - fl.s 367 a 436) que
permitisse à autora, em condições a acordar, prolongar por mais algum tempo a
ocupação da parcela de terreno, o que ela não aceitou, sendo também certo que a
manutenção na parcela das construções do estaleiro, até ao primeiro trimestre de
1995, se ficou a dever ao facto de a Fazenda Nacional ter penhorado o estaleiro da
Autora, levando a Ré-Recorrida a proceder à alteração do seu calendário de
demolições e construções, no que respeita à área onde se encontrava o estaleiro
(cfr., o n. 50 de 2.1).
Adianta-se ainda que carecem de qualquer fundamento sério as razões invocadas
pela Autora para defender a inaceitabilidade do protocolo pretendido pela Ré, pois,
em negociações livres, nenhuma parte está obrigada a acolher, servilmente, a
posição da contraparte e não se pode considerar exigência excessiva e injustificada
da Ré a pretensão de que os termos, em que a Autora podia continuar a laborar na
parcela de terreno que vinha ocupando, fossem reduzidos a um protocolo, em que
se descriminassem as condições e o tempo em que o poderia fazer.
Significa isto que não se vê que a Ré-Recorrida, em toda a sua actuação,
relacionada com a desocupação da parcela de terreno em que estava instalado o
estaleiro da Autora, tenha excedido os limites impostos pela boa fé, os bons
costumes ou pelos fins sócio-económicos do direito de propriedade, atentas as
circunstâncias e finalidades com que este lhe foi conferido; E, ainda menos, se pode
concluir, que a actuação da Recorrida tenha excedido tais limites de forma manifesta
ou clamorosamente ofensiva da justiça.
Isto é, a Ré não agiu em abuso de direito.
Constatando-se que a Ré não agiu com abuso de direito, falharam as bases em
torno das quais a Recorrente alicerçou as suas pretensões indemnizatórias, ficando,
por isso, prejudicado o seu conhecimento.
3.4 - Em face de tudo quanto ficou exposto, concluímos que as pretensões
formuladas pela Recorrente nas conclusões da sua, aliás douta, alegação não são,
numa parte, susceptíveis de apreciação por este Supremo Tribunal, são
improcedentes ou ficaram prejudicadas pela solução dada a questões anteriores.
Significa isto que não se vê que o douto acórdão recorrido tenha feito errada
aplicação das normas legais apontadas pela Recorrente - ou de quaisquer outras
que lhe coubesse aplicar - pelo que deverá ser inteiramente confirmado.
Ao invés e por esse motivo, deverá julgar-se improcedente o presente recurso de
revista.
4 - Pelo exposto, acorda-se em negar a revista pretendida e confirma-se
inteiramente o acórdão recorrido.
Custas pela Recorrente.
Lisboa, 9 de Janeiro de 2003
Eduardo Baptista,
Moitinho de Almeida,
Joaquim de Matos.
--------------------------
(1) Cfr., entre muitos, o Ac. deste Supremo de 25.2.97 (Proc. n. 604/96 - 1ª Secção),
in "Sumários de Acórdãos do STJ", Fevereiro de 1997.
(2) Entre muitos, cfr. os recentes Ac.s do STJ de 05.07.2001 (Revista n.º 1751/01 -
7ª Secção), in "Sumários..." cit., Julho de 2001, de 27.09.2001 (Revista n.º 2115/01 -
7ª Secção), in "Sumários...." cit., Setembro de 2001, de 10.01.2002 (Revista n.º
3642/00 - 2.ª Secção), in "Sumários...." cit., Janeiro de 2002 e de 19.02.2002
(Revista n.º 3379/01 - 1.ª Secção) in "Sumários...." cit., Fevereiro de 2002.
(3) Cfr., Manuel de Andrade, in "Noções Fundamentais de Direito Civil", 1976, pág.
294 e Antunes Varela, J. M. Bezerra e S. Nora, op. cit., pág.s 679/680.
(4) Cfr., Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, in "Código de
Processo Civil Anotado", vol. 2º, 2001, pág. 669.
(5) Cfr., Antunes Varela e outros, op. cit., pág. 686.
(6) Cfr., Lebre de Freitas e outros, op. e vol. cit.s, pág. 669.
(7) Cfr., entre muitos, os Ac.s do STJ de 3.7.73, in "BMJ" n. 229º, pág. 155, de
15.3.74, in "BMJ" n. 235º, pág. 152, de 14.5.74, in "BMJ" n. 237º, pág. 132, de
13.10.82, in "BMJ" n. 320º, pág. 361.
(8) Cfr., entre muitos, os Ac.s do STJ de 28.2.69, in "BMJ" n. 184º, pág. 253, de
8.4.75, in "BMJ" n. 246º, pág. 131, de 5.1.84, in "Rev. Leg. Jur.", ano 121º, pág. 305,
de 5.6.85, in "Ac.s Doutr.", n. 289º, pág. 94.
(9) No caso de fundamentação errada estar-se-ia perante um erro de julgamento e
não de uma nulidade.
(10) Cfr., o Prof. Dr. Alberto Reis, in "Cód. Proc. Civil Anotado", vol. V, pág. 143 e,
entre muitos, os Ac.s do STJ de 6.1.77, in "BMJ" n. 263º, pág. 187, de 5.6.85, in
"Ac.s Doutrinais" n. 289º, pág. 94, de 11.11.87, in "BMJ" n. 371º, pág. 374 e de
27.1.93, in "BMJ" n. 423º, pág. 444.
(11) Porventura, recorrendo aos elementos relevantes para a sua interpretação e
fazendo a análise das várias posições que sobre ela tenham sido tomadas pela
doutrina e pela jurisprudência.
(12) Cfr., op. e vol. cit.s, pág. 53.
(13) Cfr., Lebre de Freitas e outros, op. e vol. cit.s, pág. 670.
(14) In "Cód. Civil Anotado", vol. I, pág. 298.
(15) Cfr., Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. I, pág. 300.
(16) Cfr., Menezes Cordeiro, in "Da Boa Fé no Direito Civil", vol. II, pág. 661, Cunha
de Sá, in "Abuso de Direito", pág. 454, Coutinho de Azevedo, in "Do Abuso de
Direito", pág. 56 e os Ac.s deste Supremo Tribunal de 7.10. 88, in "BMJ" n. 380º,
pág. 362 e de 21.9.93, in "Col. Jur. - STJ", ano I, tomo 3º, pág. 19.
(17) Cfr., Pires de Lima e Antunes Varela, op., vol. cit.s, pág. 299 e Almeida Costa, in
"Dir. Obrigações", pág.s 65 e 845.
(18) Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. I, pág.s 498 e 499.
(19) Cfr., os Ac.s deste Supremo Tribunal de 3.4.86, in "BMJ" n. 356º, pág. 315, de
25.7.86, in "BMJ" n. 358º, pág. 470, de 7.10.88, in "BMJ" n. 380º, pág. 362, de 4.3.97
(Revista n. 694/96), in "Sumários de Acórdão do STJ", Março de 1997, de 9.12.99
(Revista n. 870/99), in "Sumários...." cit., Dezembro de 1999 e de 20.3.2001 (Revista
n. 286/01), in "Sumários...." cit., Março de 2001.
06) Processo:99A409
Nº Convencional: JSTJ00037112
Relator:FERNANDES MAGALHÃES
Descritores:ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento:SJ199905250004091
Data do Acordão: 25/05/99
Votação:UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 765/98
Data:05/11/98
Texto Integral:N
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática:DIR CIV - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CCIV66 ART334.
Sumário :
Actuar com abuso do direito - por representar um verdadeiro venire contra
factum próprio - a parte que, decorridos mais de 10 anos depois de haver
conferido expressa autorização à contraparte para, através de um seu
logradouro, aceder a uma pequena construção para depósito de botijas de gás
existente em outras fracções (que pela segunda, veio, a ser arrendada no
pressuposto da subsistência de tal autorização) vem agora, ao arrepio da
actuação objectiva de confiança por si criada, pedir a condenação do
beneficiário a abster-se de usar tal logradouro para o transporte daquelas
botijas.
07) Processo:97B518
Nº Convencional: JSTJ00033505
Relator:COSTA MARQUES
Descritores:ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento:SJ199711130005182
Data do Acordão: 13/11/97
Votação:UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 836
Data:19/12/96
Texto Integral:N
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática:DIR CIV - DIR REAIS.
Legislação Nacional: CCIV66 ART334 ART1311.
Sumário :
A relevância do abuso de direito na modalidade do venire contra factum
proprium, a chamada conduta contraditória, supõe a verificação de vários
pressupostos entre os quais se salienta a situação objectiva de confiança:
prática de um acto (factum proprium) gerador de um previsível comportamento
futuro, concretamente adequado ao primeiro.
08) Processo:066024
Nº Convencional: JSTJ00024087
Relator:JOSE FERNANDES
Descritores:ABUSO DO DIREITO.
ACÇÃO DE ANULAÇÃO. DIREITO DE
PREFERÊNCIA.
Nº do Documento:SJ197603230660241
Data do Acordão: 23/03/76
Votação:UNANIMIDADE
Texto Integral:N
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática:DIR CIV - DIR CONTRAT.
Legislação Nacional: CCIV66 ART334 ART1687.
Sumário :
Constitui abuso de direito instaurar acção em que a autora pede a anulação da
venda feita pelo marido, não com a intenção de evitar que o património
conjugal fique comprometido por efeito de tal negócio mas unicamente com o
fim de prejudicar ou eliminar o direito de preferência do arrendatário comercial
do prédio vendido.
09) Processo:072014
Nº Convencional: JSTJ00014642
Relator:LUIS GARCIA
Descritores:ABUSO DE DIREITO.
ARRENDAMENTO. QUESTÃO NOVA. MA-FE.
PETIÇÃO INICIAL. DESVALORIZAÇÃO DA MOEDA. ACTUALIZAÇÃO DA
INDEMNIZAÇÃO. ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTANCIAS.
Nº do Documento:SJ198507110720142
Data do Acordão: 11/07/85
Votação:UNANIMIDADE
Texto Integral:N
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática:DIR CIV - TEORIA GERAL.
DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CCIV66 ART265 N1 ART267 - ART269 ART280
ART334 ART562 N2 ART569.
CPC67 ART456 N2.
Sumário :
I - Diz-se ilegitimo o exercicio de um direito quando o titular exceda
manifestamente os limites impostos pela boa fe, pelos bons costumes ou pelo
fim social ou economico desse direito (abuso do direito) por isso, sendo
ilegitimo o direito exercido pela re, e nulo o contrato de arrendamento.
II - A ma fe existe não so pela forma como a re agiu, abusando do direito ao celebrar
o arrendamento, como tambem por ter deduzido oposição cuja falta de fundamento
não ignorava.
III - Para que em recurso se possa actualizar indemnização por desvalorização da
moeda, ou alteração das condições, era necessario que isso se tivesse solicitado no
pedido de acção e que isso tivesse sido objecto ou devesse ter sido objecto da
decisão recorrida, sob pena de se considerar "questão nova", vedada ao
conhecimento do Supremo.
10) Processo:081178
Nº Convencional: JSTJ00013134
Relator:MIGUEL MONTENEGRO
Descritores:ABUSO DO DIREITO.
CONCEITO.
Nº do Documento:SJ199201070811781
Data do Acordão: 07/01/92
Votação:UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 1034/90
Data:19/03/91
Texto Integral:N
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática:DIR CIV - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CCIV66 ART334.
Sumário :
Não ha abuso de direito quando dele apenas se pretendem tirar os efeitos que
a lei confere.
11) Processo:073094
Nº Convencional: JSTJ00008271
Relator:AURELIO FERNANDES
Descritores:ABUSO DE DIREITO.
REQUISITOS. CONSTRUÇÃO DE OBRAS.
CASO JULGADO. DESPACHO SANEADOR. DEMOLIÇÃO DE OBRAS.
LICENCIAMENTO DE OBRAS. CAMARA MUNICIPAL. QUESTÃO NOVA.
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Nº do Documento:SJ198604080730941
Data do Acordão: 08/04/86
Votação:UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N356 ANO1986 PAG314
Texto Integral:N
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática:DIR CIV - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: DL 37575 DE 1949/10/08 ART2.
CPC67 ART664 2PARTE ART677 ART682 N1
CCIV66 ART334.
Sumário :
I - Ao definir os requisitos do abuso do direito, dispõe o artigo 334 do Codigo
Civil que e ilegitimo o exercicio de um direito quando o titular exceda
manifestamente os limites impostos pela boa fe, pelos bons costumes ou pelo
fim social ou economico desse direito.
II - Não se ve em que e que a exigencia de demolição de uma construção, na
parte em que se encontra ilegalmente implantada, possa exceder - e muito
menos por forma manifesta, como exige aquele preceito - esses limites,
nomeadamente os impostos pelo fim social do direito que o autor pretende
fazer valer.
III - O facto de o respectivo projecto ter sido aprovado pela competente Camara
Municipal e irrelevante para o efeito pretendido pelos reus, isto e, para obstar a
demolição, pois, de concessão de licença camararia para construção urbana assenta
tão-so na verificação de determinados pressupostos tecnicos e urbanisticos, nada
tendo a ver com a observancia ou inobservancia dos direitos de outrem, podendo
assim colidir com certas prescrições legais gerais ou violar certos limites legais.
IV - E que, como e evidente, as Camaras Municipais não são, nem actuam,
nomeadamente no licenciamento de quaisquer obras de construção urbana de sua
competencia, como organismos do Estado.
V - Não recorrendo os vencidos quanto a decisão no despacho saneador-sentença,
não podem em recurso para o Supremo Tribunal de Justiça voltar a equacionar a
mesma questão por transitada em julgado, nos termos do artigo 677 do Codigo de
Processo Civil.
VI - Não pode o Supremo Tribunal de Justiça conhecer de materia não alegada nos
articulados, porque tratando-se de materia nova, não foi, nem obviamente podia ter
sido, considerado pelas instancias - artigo 664, 2 parte, do Codigo de Processo Civil.
ANEXO III
JUSTIFICATIVA DO ENUNCIADO N.º 37 DA I JORNADA DE DIREITO CIVIL
PROMOVIDA PELO CENTRO DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS DO CONSELHO DA
JUSTIÇA FEDERAL
170
Enunciado 37. Arts. 186 e 187: A responsabilidade civil decorrente do abuso
de direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-
finalístico.
João Maria Lós: Desembargador do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul.
JUSTIFICATIVA
O novo Código Civil brasileiro trará significativo avanço ao
consagrar, como figura autônoma, o abuso de direito, ainda que o tenha qualificado
como ato ilícito.
Com efeito, o art. 187 do novel Código Civil prevê: “Também
comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente
os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
_____________
170
Enunciado aprovado na I Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos
Judiciários do Conselho da Justiça Federal no período de 11 a 13 de setembro de 2002, sob
a coordenação científica do Ministro Ruy Rosado, do Superior Tribunal de Justiça. Extraído
do site do Conselho da Justiça Federal, www.cjf.gov.br, acesso em janeiro de 2006.
costumes.”
Diferentemente do previsto no art. 160, I, do atual Código, o abuso
de direito passará a ser conteúdo de norma expressa. Não resultará de uma análise
a contrario sensu. Ou seja, seria lícita a conduta não-abusiva. Além disso, seus
preceitos normativos, de ordem ontológica e cunho subjetivo, fixados no texto no
art. 187, deram os contornos precisos do instituto do abuso de direito.
E, apesar de, topograficamente, incluído no título reservado ao ato
ilícito, fica evidente sua autonomia em relação a essa figura. Primeiro porque, ao
definir ato ilícito no art. 186, como já o fazia no vigente art. 159, o legislador atrelou
sua configuração à noção de culpa lato sensu.
Todavia o mesmo não fez no concernente ao abuso de direito. A
simples interpretação literal do dispositivo sugere que a caracterização do ato
abusivo resulta de dados objetivos e, quando não, de aspectos subjetivos
totalmente diversos daqueles exigidos para o ato ilícito como tal.
Melhor teria feito se tivesse consagrado o instituto em título próprio.
Entretanto, do modo como está posto, estampa-se um progresso, em consonância
com a moderna doutrina que trata do assunto.
Desse modo, tem-se que o abuso de direito prescinde da noção de
culpa, ou seja, não se indaga se o agente agiu intencionalmente, ou se foi
imprudente ou negligente ou imperito. Questiona-se se o ato praticado extrapolou
os limites impostos pelo seu fim econômico ou social. E, no plano subjetivo, se
houve má-fé ou feriram-se os bons costumes.
Naturalmente que a boa ou má fé necessita de exame da
intencionalidade do ato, mas esta não direciona para o resultado danoso, cinge-se
tão-somente ao ato em si. É que, diversamente do que ocorre com ato ilícito
praticado com culpa, a previsão do dano é elemento normativo do tipo. Tanto é
assim que, no próprio texto do art. 186, alude-se à violação de direito e à ocorrência
de dano a outrem.
Reforça esse argumento o disposto no parágrafo único do art. 927
do novo Código Civil, ao asseverar que haverá obrigação de reparar o dano
independentemente de culpa, nos casos especificados em lei.
De outra parte, a doutrina acerca do assunto, embora sustente que
o abuso de direito situar-se-ia muito melhor não como uma figura jurídica, mas
como um fenômeno social, reconhece que deve ser visto como categoria jurídica.
O que importa é saber, do ponto de vista prático, como devem ser
regulados os seus efeitos. E, nesse ponto, por ser uma transgressão de um direito,
suas conseqüências deverão ser assemelhadas às conseqüências mesmas do ato
ilícito. Essa a lição de Sílvio de Salvo Venosa (in Direito Civil, Teoria Geral. São
Paulo: Atlas. 1984, pp. 435 e seguintes). Isso não significa circunscrevê-lo às
noções de culpa e dolo, pois, se assim fosse, bastaria a regulamentação específica
do ato ilícito.
Conclui-se, portanto, com Sílvio de Salvo Venosa: O projeto, de
forma elegante e concisa, prescinde da noção de culpa (...) para adotar o critério
objetivo-finalístico.
Fica, portanto, válida a afirmação feita supra de que o critério de
culpa é acidental e não essencial para a configuração do abuso (op.cit., pág. 442).
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