Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
ALCOOLISMO, DOENÇA E PESSOA
UMA ETNOGRAFIA DA ASSOCIAÇÃO DE EX-BEBEDORES
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS
Edemilson Antunes de Campos
2005
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
ii
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
ALCOOLISMO, DOENÇA E PESSOA
UMA ETNOGRAFIA DA ASSOCIAÇÃO DE EX-BEBEDORES
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS
Tese apresentada
em cumprimento parcial às exigências do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),
para obtenção do grau de Doutor.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marina Denise Cardoso.
Edemilson Antunes de Campos
2005
ads:
Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária/UFSCar
C198ad
Campos, Edemilson Antunes de.
Alcoolismo, doença e pessoa: uma etnografia da
associação de ex-bebedores Alcoólicos Anônimos /
Edemilson Antunes de Campos. -- São Carlos : UFSCar,
2005.
206 p.
Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de São Carlos,
2005.
1. Antropologia. 2. Antropologia da saúde. 3. Alcoolismo
– aspectos sócio – culturais. I. Título.
CDD: 301 (20
a
)
Para Veridiana, minha mulher
e companheira de todas as horas
iv
Agradecimentos
Este trabalho é fruto de um encontro entre mim e a irmandade dos Alcoólicos
Anônimos. Todavia, durante a pesquisa, outros encontros também foram fundamentais
para a sua execução. Logo, não poderia de deixar de agradecer a todos aqueles que,
direta ou indiretamente, ajudaram na sua elaboração.
Em primeiro lugar, sou grato à orientação da Profa. Dra. Marina Denise
Cardoso, do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais – PPGCSo – da
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar –, pelo apoio e incentivo na elaboração,
inicialmente, do projeto de pesquisa e, posteriormente, desta tese. Sua dedicação, suas
sugestões e seu rigor intelectual foram valiosos na condução e realização desta
verdadeira aventura antropológica.
Sou grato também à professora Sylvie Fainzang, do Centre de Recherche
Médicine, Sciences, Santé et Société – CERMES – da École des Hautes en Sciences
Sociales – EHESS –, pela acolhida e pela orientação no período em que lá estive como
estagiário de doutorado. Sua colaboração foi preciosa para a definição de muitos dos
enfoques fundamentais desta pesquisa.
O contato com outras universidades e com professores na França foi importante
para a ampliação do campo de interlocução e para a obtenção de dados bibliográficos.
Quero, assim, agradecer aos professores: Afrânio Garcia, diretor do Centre de
Recherche sur le Brésil Contemporain – CRBC – da EHESS, pela acolhida e pelo apoio
na abertura de oportunidades de participação em encontros acadêmicos; Didier Fassin,
da EHESS, pela acolhida e interlocução durante seus seminários; Annie Hubert, diretora
de pesquisa do laboratório Sociétés Santé Développement, da Université Bordeaux 2,
pelo encontro que tivemos e pelos comentários sobre meu projeto de pesquisa, bem
como pelas indicações bibliográficas, que foram fundamentais para a ampliação de meu
campo de visão sobre as relações entre o consumo de bebidas alcoólicas e as formas de
sociabilidade.
v
Quero também agradecer às instituições brasileiras e francesas que deram apoio
à pesquisa: à UFSCar e ao PPGCSo, cujas instalações e cujo fecundo ambiente
intelectual possibilitaram a realização do presente trabalho. Um agradecimento à
EHESS, ao CERMES e ao CRBC pela acolhida nos seminários e nas pesquisas que lá
realizei. Agradeço também ao IREB – Institut de Recherches Scientifiques sur les
Boissons – , cujo valioso acervo foi fundamental para o levantamento de dados
bibliográficos para a pesquisa. Agradeço também à Maison du Brésil, pela acolhida no
período letivo 2002/2003, durante minha estada em Paris.
Durante a pesquisa, alguns contatos e encontros com pesquisadores de
universidades brasileiras também foram muito valiosos para a condução da pesquisa.
Quero agradecer, em especial, à professora Delma Pessanha Neves, do Programa de
Pós-graduação em Antropologia Social e Ciência Política da Universidade Federal
Fluminense – UFF –, que, sempre atenciosa, foi uma importante interlocutora,
permitindo-me o contato com um rico material bibliográfico, fundamental para as
reflexões aqui apresentadas. Agradeço também à professora Maria Helena Villas-Boas
Concone, do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP –, pelas discussões e sugestões em torno
de meu projeto de pesquisa.
Agradeço também aos professores Luiz Henrique de Toledo e Jacob Carlos
Lima, ambos do PPGCSo/UFSCar, pelas críticas e observações feitas durante o exame
de qualificação, cuja incorporação nesta tese são de minha inteira responsabilidade.
Obrigado também aos professores Maria Inês Rauter Mancuso (PPGCSo/UFSCar), Luiz
Henrique de Toledo (PPGCSo/UFSCar), Cynthia Andersen Sarti (UNIFESP) e Delma
Pessanha Neves (UFF-RJ) pelas valiosas críticas e sugestões quando da defesa da tese
no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UFSCar.
Não posso deixar de agradecer às instituições que, em momentos distintos,
deram apoio à pesquisa: ao CNPq, pela concessão de bolsa de pesquisa para realização
do projeto, e à CAPES, pela concessão de bolsa de estudos no exterior, para a realização
de estágio de doutorado “sanduíche” na EHESS, em Paris. Ambas as bolsas foram
imprescindíveis para o desenvolvimento do trabalho de pesquisa. É preciso reconhecer e
ressaltar que a política pública de apoio e fomento à pesquisa constitui uma ação
poderosa e fundamental para o desenvolvimento científico do País.
vi
Quero também agradecer a todos aqueles que ajudaram a mim e a minha esposa
durante o processo de mudança para a França e de retorno ao Brasil, como aos amigos
Ana Maria e Aloysio, André, Iara, Aldo, João Petrucio, Rayane, Pedroso e Kelen.
Agradeço também os parentes envolvidos nessa empreitada, em especial à tia Yara, ao
senhor Police e à dona Maú, à vovó Irene, ao Neto e à Silmara, a minha mãe Anézia e a
meus irmãos Edson e Silvia. A todos, o reconhecimento de que a ajuda e o apoio foram
fundamentais para aplacar a saudade provocada pelo o “exílio acadêmico”, durante o
tempo em que estivemos fora do País.
Aos amigos Benevides, Vanderlan e Josemar, companheiros solidários durante
nossa estada em Paris, com os quais compartilhamos momentos inesquecíveis,
recheados de conversas estimulantes, que deixaram saudades, o reconhecimento de que
nossa amizade será para sempre.
Agradeço também à amiga Ângela, cuja ajuda foi fundamental para o meu
aperfeiçoamento na língua francesa; ao amigo Amin Simaika, pela ajuda na tradução de
meu projeto de pesquisa; e aos amigos Alfredo Dias D’Almeida e Ana Paula Quadros
Gomes, que, com competência e paciência, fizeram a revisão desta tese.
Agradeço ao amigo Urias, que me abriu as portas do grupo Sapopemba de
Alcoólicos Anônimos, facilitando meu acesso a esse universo social. Agradeço,
especialmente, a todos os homens e a todas as mulheres que compartilharam comigo
suas dores e suas alegrias em sua luta cotidiana para manter a sobriedade; a todos os
membros de Alcoólicos Anônimos, aqui presentes através de seus depoimentos, que me
ajudaram a escrever esse trabalho, o meu mais sincero agradecimento.
Quero, enfim, fazer um agradecimento especial à minha mulher Veridiana,
companheira que sempre esteve próxima, nunca faltando com seu apoio e atenção, e que
aceitou embarcar em toda essa aventura, compartilhando comigo a cumplicidade do
olhar que descobre e revela os novos universos.
[...] o objeto da etnografia: uma hierarquia
estratificada de estruturas significantes em
termos das quais os tiques nervosos, as
piscadelas, as falsas piscadelas, as imitações,
os ensaios das imitações são produzidos,
percebidos e interpretados, e sem as quais
eles de fato não existiriam [...], não importa
o que alguém fizesse ou não com sua própria
pálpebra.
Clifford Geertz
[...] o objetivo último das ciências humanas
não é constituir o homem, mas dissolvê-lo.
Claude Lévi-Strauss
viii
Sumário
RESUMO...................................................................................................................................x
ABSTRACT............................................................................................................................. xi
LISTA DE QUADROS.......................................................................................................... xii
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................1
Capítulo 1
UM OLHAR ANTROPOLÓGICO SOBRE O ALCOOLISMO E OS
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS..................................................................................................6
1.1 A construção da “pessoa alcoólica”: um enfoque antropológico .................................10
1.2 A pesquisa de campo: encontrando os alcoólicos anônimos ........................................20
1.3 Um “não-alcoólico” em Alcoólicos Anônimos ............................................................27
Capítulo 2
O ÁLCOOL E O ALCOOLISMO: ENTRE O “DESVIO” E A “DOENÇA”.................33
2.1 Um “fléau” social..........................................................................................................39
2.1.1 As campanhas antialcoólicas no Brasil.................................................................44
2.2 Uma “doença da vontade” ............................................................................................47
2.3 O “mal” do alcoolismo e suas “causas”........................................................................52
2.3.1 Teoria da doença e estratégia terapêutica em A.A...................................................57
2.4 Delineando os contornos da “pessoa alcoólica” ...........................................................62
Capítulo 3
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS: A CONSTRUÇÃO DA DOENÇA ALCOÓLICA E
DO ALCOÓLICO COMO DOENTE...................................................................................67
3.1 Os doze passos na construção da “pessoa alcoólica”. ..................................................72
3.2 As doze tradições e as fronteiras simbólicas da irmandade..........................................82
3.3 Recuperação, serviço e unidade em A.A. ....................................................................86
3.4 O grupo de A.A.: uma rede de ajuda para o indivíduo doente .....................................90
ix
Capítulo 4
OLHANDO DE PERTO: RITUAIS TERAPÊUTICOS EM ALCOÓLICOS
ANÔNIMOS............................................................................................................................95
4.1 Reunião de entrega de fichas: uma celebração da sobriedade....................................101
4.2 O lugar do ritual em A.A. ...........................................................................................104
4.3 O espaço e o tempo ritualizados .................................................................................108
4.4 A linguagem do ritual .................................................................................................113
Capítulo 5
A LINGUAGEM DA DOENÇA EM ALCOÓLICOS ANÔNIMOS..............................117
5.1 O sistema dos Alcoólicos Anônimos..........................................................................122
5.2 Uma nosografia física e moral da doença alcoólica ...................................................126
5.3 O álcool, os nervos e o sangue: as representações da “pessoa alcoólica” ..................129
5.4 A lógica terapêutica dos Alcoólicos Anônimos..........................................................133
Capítulo 6
O ALCOOLISMO É UMA “DOENÇA DA FAMÍLIA” ................................................137
6.1 O homem alcoólico.....................................................................................................143
6.2 A mulher alcoólica......................................................................................................149
6.3 O alcoolismo é uma “doença contagiosa”?.................................................................152
6.3.1 O “contágio moral” do alcoolismo .....................................................................155
6.3.2 Alcoólicos Anônimos, família e recuperação.....................................................158
Capítulo 7
ALCOOLISMO, DOENÇA E PESSOA...........................................................................164
7.1 Alcoólicos Anônimos e sua eficácia terapêutica ........................................................166
7.2 Anonimato, identidade e pessoa .................................................................................173
7.3 O alcoolismo e as imagens do “eu” ............................................................................180
7.4 A fabricação da “pessoa alcoólica” ............................................................................184
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................193
BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................197
x
RESUMO
O objetivo deste trabalho é o de apresentar uma reflexão sobre o modelo
terapêutico construído pela irmandade de Alcoólicos Anônimos (A.A.) para dar conta
da chamada “doença do alcoolismo”, relacionando-o à fabricação de uma noção de
pessoa em seu interior, notadamente a partir da edificação da identidade de “doente
alcoólico em recuperação”.
A partir dos dados da pesquisa etnográfica realizada no grupo Sapopemba de
A.A., localizado na periferia da cidade de São Paulo, busca-se analisar o “problema” do
alcoolismo a partir de uma perspectiva êmica, isto é, tal como ele é pensado e gerido
por aqueles que se reconhecem como “doentes alcoólicos”. Com isso, pretende-se
articular as representações construídas sobre o álcool e o alcoolismo com a fabricação
de uma noção de “pessoa alcoólica”, de maneira a estabelecer contrastes com o campo
ideológico do individualismo moderno.
Ao longo deste trabalho, demonstra-se que, para os membros de A.A., a “doença
alcoólica” é entendida como uma “doença da família”, ou seja, uma doença que atinge o
indivíduo, mas também afeta a todos aqueles que estão a seu redor, sobretudo, seus
familiares. Com efeito, evidenciam-se as condições de possibilidade de “contágio” em
torno do alcoolismo, condições essas diretamente ligadas às representações construídas
sobre o alcoolismo, entendido como uma doença “física” e “moral”, e a seus efeitos
sobre o conjunto de relações sociais – familiares e profissionais – nas quais o ex-
bebedor está envolvido.
Em suas atividades e reuniões, os membros da irmandade se reconhecem como
“doentes alcoólicos em recuperação”, isto é, como portadores de uma doença incurável;
de um mal que está alojado dentro de cada um e com o qual deverão aprender a
conviver. Esse processo corresponde, fundamentalmente, à instauração de um peculiar
regime de alteridade, baseado na fabricação de um corpo e de um espírito doentes, no
qual a doença alcoólica é apreendida como um “outro” que cada dependente traz dentro
de si mesmo; condição essa que deve ser compartilhada com os demais membros do
grupo, possibilitando, assim, a manutenção da sobriedade e o resgate dos laços sociais,
perdidos no tempo do alcoolismo ativo, notadamente, na família e no trabalho.
Palavras-chave: Alcoólicos Anônimos; alcoolismo; doença; noção de pessoa.
xi
ABSTRACT
The major aim of this thesis is to introduce a reflection of the therapeutic model built
by the Alcoholics Anonymous (A.A.) fellowship to care for the so-called “alcoholism
disease” and to relate this model to the construction of the notion of the person as it appears in
this model, since it is related to the construction of the identity of an “alcoholic in recovery”.
Based on an ethnographic research carried out in the Sapopemba A.A. group located
in the outskirts of the city of São Paulo, we attempt to analyze the ‘problem’ of alcoholism
from an emic perspective, i.e., as it is thought of and managed by those who acknowledge
themselves as “alcoholics”. In this way we try to articulate the representations built on alcohol
and alcoholism by re-constructing the notion of alcoholic person, in order to set contrasts with
the ideological field of modern individualism.
The thesis also looks for to demonstrate that, for A.A. members, the “alcoholic
disease” is understood as a “family disease”, i.e., a disease that not only concerns the
individuals but also affects those around them, family members most of all. In fact, the
possibility of “contagion” around alcoholism is clearly identifiable. Such condition is directly
linked to representations built on alcoholism, understood as a “physical” and “moral” disease.
It is also linked to its effects on the set of social relationships – both familial and professional
– in which the ex-drinker is involved.
In their activities and meetings, the members of the fellowship acknowledge
themselves as “alcoholics in recovery”, i.e., as carriers of an incurable disease, a disorder
housed inside each of them with which they must learn to deal. Fundamentally, this process
corresponds to setting a peculiar regime of alterity, based on the construction of an ill body
and soul, in which “ex-drinker” is seen as another person that each alcoholic carries within;
this condition must be shared with the other group members to facilitate preservation of
soberness and recuperation of social bonds that were lost in the times of active alcoholism,
particularly within the family and in the workplace.
Key-words: Alcoholics Anonymous; alcoholism; disease; personhood.
xii
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Tempo entre ingresso e afastamento em A.A........................................................24
Quadro 2 – Tempo de permanência no grupo ..........................................................................24
Quadro 3 – Fichas de sobriedade (tempo/cor)........................................................................102
Quadro 4 – Expressões que designam a passagem de alcoólico ativo
para alcoólico em recuperação .............................................................................125
Quadro 5 – Expressões que designam o ato de beber ............................................................126
Quadro 6 – Nosografia do alcoolismo — sintomas físicos ....................................................127
Quadro 7 – Sintomas físicos x efeitos mentais.......................................................................127
Quadro 8 – Categorias morais x conseqüências.....................................................................128
Quadro 9 – Qualidades que compõem a “pessoa alcoólica” ..................................................190
1
INTRODUÇÃO
Este trabalho é o resultado de uma pesquisa etnográfica feita na irmandade de
Alcoólicos Anônimos (A.A.)
1
, que, todas as noites, reúne homens e mulheres para
compartilhar suas experiências com o objetivo de superar a chamada “doença do
alcoolismo”. Nele, discuto as relações entre o binômio alcoolismo/doença e a
construção de uma noção de pessoa no interior de A.A., a partir de uma análise dos
mecanismos simbólicos colocados em prática para fazer referência ao álcool e ao
alcoolismo.
Em um momento em que o “problema” do alcoolismo desperta a atenção das
autoridades responsáveis pelas políticas de saúde pública em vários países,
particularmente, no Brasil e os AAs se expandem em escala mundial e, notadamente, na
sociedade brasileira, pareceu-me fundamental compreender a maneira através da qual os
membros da irmandade orientam suas práticas tendo em vista sua recuperação, ao
mesmo tempo em que forjam uma representação específica da noção de pessoa,
reconhecendo-se como “doentes alcoólicos”.
Durante um ano freqüentei suas reuniões e conversei com os membros de um
grupo de A.A. localizado na periferia da cidade de São Paulo, visando compreender o
modo como eles vivenciam o alcoolismo e tentam mantê-lo sob controle, concebendo-o
como uma “doença incurável, progressiva e fatal”. Nesses encontros, verifiquei que o
alcoolismo é considerado um problema, na medida em que conduz aqueles que vivem
essa experiência a uma situação de marginalidade e de exclusão. É isso que os AAs
expressam em suas narrativas, nas quais procuram construir um sentido para suas vidas,
ressaltando as perdas provocadas pelo uso do álcool, notadamente, na família e no
trabalho e as conquistas obtidas após a entrada na irmandade.
1
Nas páginas seguintes, seguindo a maneira pela qual os membros de Alcoólicos Anônimos se referem à
irmandade, utilizarei as siglas A.A., para me referir à irmandade dos Alcoólicos Anônimos, e AAs,
quando me referir a seus membros. Para diferenciar de citações, as falas dos AAs serão sempre grafadas
em itálico.
2
Com isso, a medida em que o trabalho avançava percebi que as falas dos AAs
envolviam, sobretudo, referências às suas relações na vida familiar e profissional. Nas
reuniões, eles falavam de si mesmos e dos conflitos vividos no tempo em que faziam
uso do álcool, ao mesmo tempo em que ressaltavam a recuperação dos papéis sociais de
pai/mãe, esposo(a) e trabalhador(a). O programa de A.A. possibilitava, àqueles que
haviam tocado o chamado “fundo do poço”, a recuperação da responsabilidade pelo
cuidado de si e também de sua família.
Esse dado acabou dirigindo meu interesse também ao estudo da construção da
noção de pessoa dentro da irmandade e suas relações com o modelo terapêutico de
A.A.. Pois, se o alcoolismo é, como dizem os AAs, uma “doença” individual, ele
também é compreendido como uma “doença da família”, que afeta todos que vivem a
seu redor, notadamente, o cônjuge e seus filhos.
Dentro da irmandade se conjugam duas lógicas que presidem o processo
saúde/doença aqui estudado: de um lado, uma lógica que prioriza o indivíduo, tomando-
o como um “doente alcoólico em recuperação”, e centro articulador do modelo
terapêutico, e de outro, uma lógica hierárquica ligada aos valores “família” e “trabalho”,
que preside a fala da doença elaborada pelos AAs, na qual eles articulam e mobilizam
elementos do universo social no qual estão inseridos, atribuindo, assim, um sentido à
experiência do alcoolismo, ao mesmo tempo em que definem uma compreensão própria
de si mesmos.
Nesse sentido, este trabalho foi um mergulho para dentro desse universo, em
busca dos significados que o outro atribui à sua existência. Significados que, como
aponta Geertz (1989: 17) na epígrafe que abre este estudo, dão sentido aos atos
cotidianos, tornando-os inteligíveis para aqueles que os praticam. Trata-se, então, de
procurar entender um outro universo de significação, na tentativa de desvendar a lógica
que lhe é subjacente, a partir de um “diálogo” travado entre dois sujeitos, o pesquisador
e o pesquisado, reconhecendo os limites que essa relação impõe.
Uma das idéias fundamentais que norteiam as reflexões aqui apresentadas é a de
que a realidade nada seria não fosse esse conjunto de significantes, por meio do qual
eventos, fatos, ações e contextos são produzidos, percebidos e interpretados, e sem os
quais não existem como categorial cultural. Nessa linha, buscou-se ler e compreender
tanto a maneira como os AAs orientam suas práticas, tendo em vista sua recuperação,
como as categorias que compõem sua fala da doença, delimitando, assim, os contornos
3
de uma noção de “pessoa alcoólica” que deve se responsabilizar pelo cuidado de si e
pelo provimento de sua família. Optou-se, também, por traduzir as citações de
livros editados em língua estrangeira - listados na bibliografia - como forma de
ampliar o universo de possíveis leitores, incluindo aí os AAs que ajudaram na pesquisa.
O itinerário etnográfico, contudo, só se completa no momento da escrita, no qual
a etnografia se converte, para usar, ainda, uma expressão de Geertz (1997), em
“tradução”. Ou seja, é durante a escrita que os dados etnográficos são lapidados e
possibilitam entrever “a lógica das formas de expressão deles [os ‘nativos’], com nossa
fraseologia” (1997: 20). Dessa maneira, as formas de expressão e de pensamento
daqueles que se consideram como “doentes alcoólicos em recuperação” são tratadas
com seriedade, isto é, consideradas como “um objeto de descrição analítica e de
reflexão interpretativa” (1997: 231).
Nessa perspectiva, nas páginas seguintes apresenta-se, a partir dos dados
etnográficos, a conexão entre alcoolismo, doença e pessoa. O roteiro que nos servirá de
guia é composto de sete capítulos. No capítulo 1, apresenta-se o itinerário teórico e
metodológico da pesquisa em A.A., ressaltando as características do local onde se
desenrolou a prática etnográfica e a de seus atores, ao mesmo tempo em que se
discutem os limites da relação entre pesquisador e pesquisado dentro de uma associação
de ex-bebedores. Apresentam-se, ainda, as leituras feitas sobre o modelo terapêutico de
A.A. e suas relações com o processo de individualização vivido na modernidade,
buscando estabelecer contrastes com o campo ideológico do individualismo moderno.
No capítulo 2, apresentam-se os modos de compreensão do álcool e do
alcoolismo e também de suas estratégias terapêuticas, com ênfase especial tanto nos
esquemas de interpretação da doença como no modelo de A.A. e sua compreensão da
doença alcoólica, entendida como uma “doença inata, progressiva e fatal”, que leva o
alcoólico a perder o controle sobre o álcool. Busca-se estabelecer as relações entre as
representações elaboradas sobre o alcoolismo e a estratégia terapêutica, enfocando as
sociedades de temperança norte-americanas, o higienismo francês e as campanhas
antialcoólicas brasileiras do final do século XIX e início do século XX. Busca-se
também delinear os contornos da noção de pessoa elaborada dentro da irmandade, a
partir da construção da identidade de “doente alcoólico em recuperação”.
No capítulo 3, discute-se o modo como se delineiam as fronteiras da
irmandade, a partir de uma análise do programa de recuperação dos Doze Passos e das
4
Doze Tradições, demarcando seus limites em relação à sociedade em geral e enfocando
o “individualismo institucional” que se elabora em seu interior, essencial para a
construção da identidade do “doente alcoólico em recuperação” e da noção de pessoa
elaborada pela irmandade.
Já, no capítulo 4, aborda-se a reunião de recuperação de A.A., com ênfase nas
práticas e nos rituais realizados em seu interior, com o objetivo de dar conta da “doença
do alcoolismo”, ressaltando o modo através do qual os AAs constroem um significado à
experiência do alcoolismo, que orienta suas práticas tendo em vista à recuperação, ao
mesmo tempo em que reforçam os contornos da “pessoa alcoólica” dentro do grupo.
No capítulo 5, por sua vez, encontra-se a exposição da linguagem da doença
alcoólica elaborada em A.A., a partir de uma análise das categorias através das quais os
significados do alcoolismo são construídos. O modelo de A.A. é entendido, aqui, como
um sistema simbólico dentro do qual se constrói uma nosografia física e moral da
doença alcoólica, que envolve a totalidade da pessoa. Analise-se também a lógica
terapêutica do modelo de A.A., evidenciando sua relação com os valores “família” e
“trabalho”, através dos quais os conflitos vividos nos tempos do alcoolismo ativo são
traduzidos.
No capítulo 6, busca-se discutir as implicações da doença alcoólica sobre o
universo social no qual os AAs estão envolvidos, notadamente na família e no trabalho.
A partir da categorização do alcoolismo como “doença da família”, evidencia-se a
maneira como os membros do grupo mobilizam aspectos presentes no universo social
no qual estão inseridos para construírem um sentido para a experiência da doença.
Discutem-se, ainda, as bases da compreensão do alcoolismo como uma “doença
contagiosa”, que atinge o indivíduo ao mesmo tempo em que afeta a todos os que estão
ao redor, sobretudo a seus familiares.
No capítulo 7, acompanha-se mais de perto a construção da identidade de
“doente alcoólico em recuperação”, a partir de uma análise dos mecanismos simbólicos
colocados em prática para dar conta da “doença alcoólica”, com ênfase na análise tanto
da experiência do alcoolismo como uma “derrota total”, que conduz o alcoólico ao
chamado “fundo do poço”, como da questão do anonimato na irmandade. Enfim,
desenham-se os contornos da “pessoa alcoólica” fabricada dentro do grupo, enfatizando
o regime de alteridade instaurado pelo modelo terapêutico da irmandade, no qual o
indivíduo deve conviver com o mal do alcoolismo alojado em seu interior. A terapêutica
5
de A.A. é entendida, aqui, como um mecanismo ritual de estranhamento, que isola a
fração doente de si mesmo, representada na idéia de um mal que o indivíduo carrega
dentro de si, que faz parte dele, criando, assim, as condições necessárias para o controle
da doença e o conseqüente resgate de seu lugar no universo relacional da família e do
trabalho.
6
Capítulo 1
UM OLHAR ANTROPOLÓGICO SOBRE O
ALCOOLISMO E OS ALCOÓLICOS ANÔNIMOS
O alcoolismo é considerado um dos mais sérios problemas de saúde pública da
atualidade, despertando a atenção de autoridades médicas e sanitárias de diversos
países. Segundo os dados do I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas
Psicotrópicas no Brasil, realizado em 2001 pelo Centro Brasileiro de Informações sobre
Drogas Psicotrópicas — CEBRID (2002) —, da Universidade Federal de São Paulo —
UNIFESP —, em conjunto com a Secretaria Nacional Anti Drogas — SENAD —,
envolvendo as 107 maiores cidades do País, 11,2% da população brasileira são
dependentes do álcool (2002: 37), e a prevalência da dependência está na faixa etária de
18 a 24 anos, em um total de 15,5% (2002: 47).
Na França, um estudo conduzido pelo Institut National de la Santé et de la
Recherche Médicale (INSERM: 2003) aponta que, apesar de o consumo global de
álcool ter diminuído 40% nos últimos quarenta anos, cerca de 8,6% da população com
idade entre 12 a 75 anos tem algum problema relacionado ao álcool, o que totaliza
aproximadamente 5 milhões de pessoas, entre os quais 2 milhões são dependentes do
álcool (2003: 255). Já nos EUA, estudos epidemiológicos apontam para a prevalência
da dependência do álcool na faixa etária de 15 a 54 anos, atingindo cerca de 15% da
população geral (2003: 252).
Nesse cenário, a irmandade de A.A. tem se expandido em escala mundial,
fazendo parte do itinerário terapêutico de milhares de pessoas. Segundo Gabhainn
(2003), o número dos membros da irmandade tem crescido em progressão geométrica,
tendo passado de 100 membros, em 1940, para 476.000, em 1980; para 653.000, em
1983; e para 979.000, em 1990. Em 2002, estimava-se que o número de grupos de A.A.
em todo mundo fosse de pouco mais de 100 mil, totalizando 2.215.293 membros,
segundo dados do Escritório Mundial de Alcoólicos Anônimos. No Brasil, o primeiro
grupo surgiu em 1947 e, atualmente, há cerca de 5.700 grupos, perfazendo cerca de
7
120.000 membros, segundo dados do Escritório de Serviços Gerais de Alcoólicos
Anônimos.
Outro sinal da sua relevância é o surgimento posterior de outros grupos que
seguem o mesmo modelo terapêutico, o que faz de A.A. uma espécie de grandparent
dos grupos de mútua ajuda (Gilbert, 1991: 353) destinados ao tratamento de outras
“patologias”, tais como: os Narcóticos Anônimos, que congrega os dependentes
químicos e usuários de drogas; os Comedores Compulsivos Anônimos, que reúne
aqueles que sofrem de compulsão alimentar; o grupo Mulheres que Amam Demais
Anônimas, voltado para as mulheres com problemas afetivos e de relacionamentos; os
Neuróticos Anônimos, para os portadores de “doença mental e emocional”; os
Jogadores Anônimos, para os dependentes de jogos de azar; o Al-Anon, para os
familiares e os amigos de dependentes do álcool; etc.
A crescente expansão da irmandade também chamou a atenção da mídia
impressa
2
e visual, notadamente do cinema norte-americano (Room, 1989) e, nos
últimos anos, de algumas telenovelas brasileiras
3
, todas preocupadas em abordar a
temática do alcoolismo e o papel do modelo terapêutico praticado pelos AAs.
Erigido em objeto de estudo privilegiado da medicina epidemiológica e
psiquiátrica, a partir dos estudos pioneiros do médico sueco Magnus Huss, no século
XIX, o alcoolismo é tratado, em geral, como problema “patológico”, individual e social.
Com efeito, quer se trate do modelo médico-moral, cujas análises centraram-se no
chamado consumo excessivo de bebidas alcoólicas e serviram de base para as ações dos
movimentos de temperança e das ligas antialcoólicas do século XIX, que apareceram
principalmente na sociedade norte-americana (Blumberg, 1977; Soares, 1998), quer se
trate do modelo biomédico, preocupado com o estudo da “dependência alcoólica”, na
tentativa de traçar sua etiologia e formas de tratamento (Jellinek, 1960; Descombey,
1998; Vaillant, 1998), tais estudos sempre tratam o alcoolismo como problema
individual, entendido, respectivamente, sob a ótica do “desvio” e da “patologia”.
2
Destacam-se, nessa linha, as reportagens A luta contra o vício, Revista Veja, São Paulo, n.8, 96-103, 24
fev 1999 e A salvação pelo anonimato, Revista Carta Capital, São Paulo, n. 255, 8-15, 27 ago 2003.
3
Para uma análise da presença da temática do alcoolismo e do modelo terapêutico de A.A. nas
telenovelas brasileiras, ver: Campos, 2004a.
8
Nesse sentido, se é certa a prevalência do problema do alcoolismo nos dias
atuais, ainda são raros os trabalhos, no âmbito das ciências sociais, especialmente no
Brasil, que se ocupam tanto com o chamado uso “patológico” de bebidas alcoólicas
quanto das estratégias terapêuticas utilizadas pelos AAs para dar conta da “doença
alcoólica”, mesmo sendo conhecido o fato de que “o Brasil é um dos países com maior
número de grupos de A.A. no mundo” (Soares, 1999: 15)
4
.
Em geral, nas ciências sociais, como lembra Neves (2004), o alcoolismo aparece
como tema tangencial em estudos preocupados com a compreensão das formas e
maneiras de beber, de modo que o ato de beber é entendido, sobretudo, como um ato
social (Machado e Silva, 1978; Dufour, 1989; Guedes, 1997; Bernand, 2000; Magnani,
2003), sinalizando para os contextos nos quais o uso do álcool é valorizado e nos quais
opera como uma espécie de “lubrificante social” (Neves, 2004: 9) e favorece a
construção de laços de reciprocidade, constitutivos dos espaços de sociabilidade.
Ora, a equação alcoolismo/doença pode se revelar um importante objeto de
estudo, notadamente quando os próprios “nativos” entendem o alcoolismo como
doença. Mas tomar o alcoolismo como “doença” não significa necessariamente ratificar
o modelo biomédico, quando este é o ponto de vista dos entrevistados, tal como ocorre,
por exemplo, em A.A.. Durante suas reuniões, os ex-bebedores se reconhecem como
“doentes alcoólicos”: “Sou um doente alcoólico em recuperação e venho às reuniões
para deixar de ser aquele cachaceiro que eu era”, dizem os AAs, assinalando a
passagem de uma posição na qual o beber considerado abusivo é estigmatizado para
uma posição na qual o ato de beber é entendido de maneira “patológica”.
Nessa medida, o par alcoolismo/doença é relativizado e entendido dentro de um
contexto cultural específico. Os grupos de A.A. podem, então, ser compreendidos como
um universo social, com seus ritos, representações, símbolos e valores próprios, que
proporciona aos seus membros, tanto a possibilidade de reorganizarem suas condutas
como a de atribuírem significados próprios ao “problema” do alcoolismo, ao mesmo
tempo em que constroem uma representação específica de si mesmos.
4
É importante ressaltar, contudo, os esforços empreendidos nos últimos anos em Programas de Pós-
graduação de vários institutos vinculados às universidades brasileiras, com o intuito de preencher essa
lacuna, através do estímulo a pesquisas focalizadas na equação alcoolismo/doença e, sobretudo, na
atuação dos grupos de Alcoólicos Anônimos (cf. Barros, 2001; Garcia, 2004; Mota, 2004).
9
A irmandade torna-se, assim, um local privilegiado para o estudo das
representações e dos significados produzidos em torno da chamada “doença alcoólica”,
e suas relações com a construção da noção de pessoa. Isso porque, nos espaços
construídos pelos seus membros, são vivenciados, como sublinha Neves (2004), “os
modos de construção do alcoólico como identidade redentora, graças à entre-ajuda ou à
solução coletiva”
5
(2004: 12 – grifo do original), de forma que os associados podem
falar de si mesmos sem as pressões da culpa e do preconceito.
Ao analisar o modelo terapêutico de A.A., pode-se compreender o alcoolismo de
uma maneira êmica, isto é, tal como ele é pensado e gerido por aqueles que se
reconhecem como “doentes alcoólicos em recuperação”. Com isso, pode-se entender a
maneira através da qual os AAs abordam o alcoolismo, como eles o explicam, o
vivenciam e tentam superá-lo, concebendo-o como uma “doença crônica e fatal”, ao
mesmo tempo em que forjam uma compreensão específica de si mesmos.
O objetivo deste trabalho é examinar esse quadro, relacionando-o com a
construção da noção de pessoa. Trata-se de pensar não só no contexto da expansão de
A.A., mas, sobretudo, em seu modus operandi, através da análise dos mecanismos
simbólicos colocados em prática para dar conta do álcool e do alcoolismo, e que tornam
possível a construção de uma representação de si mesmos como doentes, ao mesmo
tempo em que se forja uma noção de pessoa dentro da irmandade.
Nessa linha, pretende-se contribuir para preencher a lacuna existente nos estudos
sobre o par alcoolismo/doença sob a ótica das ciências sociais, oferecendo uma
interpretação desse fenômeno a partir da maneira pela qual aqueles que se identificam
como “doentes alcoólicos” reinventam a experiência do alcoolismo, deslocando seu
discurso de uma posição de marginalidade social para uma posição na qual se vislumbra
a possibilidade de integração e resgate dos laços sociais.
5
Vale também recuperar a advertência de Neves (2004) sobre as dificuldades e os limites da investigação
antropológica, no contexto da investigação sobre alcoolismo, e a necessidade de se explicitar os contextos
culturais e simbólicos com os quais se constroem os significados sobre as diferentes formas e maneiras de
beber e suas interdições.
10
1.1 A construção da “pessoa alcoólica”: um enfoque antropológico
Mas qual a relação existente entre o alcoolismo, entendido como uma “doença
crônica e fatal”, de base genética, e a construção da noção de pessoa em A.A.? Como a
irmandade, entendida como uma entidade autônoma e auto-suficiente, sem vínculos
institucionais com o Estado, contribui para forjar uma representação própria da noção
de pessoa? Como seu modelo terapêutico contribui para (re)construção subjetiva de seus
membros?
Os AAs se ocupam, única e exclusivamente, da recuperação do indivíduo que
sofre do alcoolismo, considerado um “doente alcoólico em recuperação”. Seguindo suas
próprias tradições, a irmandade não se envolve em polêmicas públicas, sejam sobre as
causas do alcoolismo sejam sobre seus efeitos no organismo. Como conseqüência, seus
membros não se engajam em políticas sociais que visem estabelecer um controle social
sobre o consumo de bebidas alcoólicas.
Nessa linha, opera-se com um modelo cuja unidade central é o indivíduo,
valorizado em sua singularidade. Ao longo dos anos, um vasto repertório de expressões
foi criado e reproduzido no interior da irmandade, acentuando o caráter individual de
seu programa de recuperação: “A.A. é um programa egoístico” ou “Primeiro eu,
segundo eu, terceiro eu”. Todas essas falas ressaltam a necessidade de o indivíduo que
se considera doente se engajar no processo terapêutico, tornando-se responsável por sua
própria recuperação, reafirmando seu compromisso de evitar o “primeiro gole” a cada
24 horas.
Ora, essa centralidade no indivíduo nos leva a refletir sobre como o modelo de
A.A. se inscreve no interior do processo de individualização próprio das sociedades
modernas. A irmandade foi edificada durante as transformações que sacudiram a
sociedade norte-americana do final do século XIX e do início do século XX,
notadamente em torno do debate sobre o uso e os efeitos do consumo de bebidas
alcoólicas. Sua origem é protestante, e veio no bojo do debate em torno da temperança,
11
que resultou na promulgação da Lei seca nos Estados Unidos
6
. Seus fundamentos
pragmáticos, seu espírito associativista e sua relação com o modelo biomédico de
combate ao alcoolismo fazem da irmandade um empreendimento solidário aos valores
da sociedade que a produziu, tais como: a “autonomia”, a “escolha”, a “liberdade”, a
“responsabilidade” e a “vontade”, que há muito foram apontados por Tocqueville como
os valores característicos da modernidade.
Em seu livro De la démocratie en Amérique, publicado em duas edições
sucessivas, em 1835 e em 1840, Tocqueville aponta o modo como a sociedade norte-
americana edifica os pilares da democracia moderna, cujo fundamento principal está na
noção de indivíduo, considerado como um ser “autônomo e soberano”, ao mesmo
tempo em que reflete sobre as conseqüências do individualismo moderno (cf. Renaut,
1998: 25-38):
O individualismo origina-se da democracia e ameaça desenvolver-se
na medida em que as condições se tornam iguais [...] Na medida em
que as condições se tornam iguais, aumenta o número de indivíduos
que, já não sendo ricos ou poderosos o bastante para exercer grande
influência sobre o destino de seus semelhantes, conservaram ou
adquiriram, não obstante, instrução e bens suficientes para bastarem-
se a si mesmos. Nada devem a ninguém; habituam-se a se
considerarem sempre de forma isolada e até imaginam que seu destino
esteja em suas mãos. Assim, a democracia não só leva cada homem a
esquecer-se de seus antepassados, mas também lhe esconde seus
descendentes e o separa de seus contemporâneos; sem cessar, ela o
traz de volta para si mesmo, ameaçando enclausurá-lo na solidão de
seu coração
7
(Tocqueville, 1961: 144-145 – trad. minha).
O debate travado em torno do alcoolismo e de seus efeitos sobre a vida física e
moral do alcoólico envolvem, portanto, as relações entre o “livre-arbítrio” e a
“determinação”, entre a “vontade” e a “necessidade”, entre a “responsabilidade” e a
“dependência”, entre a “capacidade de escolha” e a “perda de controle” sobre o álcool.
6
A irmandade dos Alcoólicos Anônimos nasceu em 1935, em Akron, no Estado de Ohio, nos Estados
Unidos, após uma conversa entre um corretor da Bolsa de Nova York e um médico, ambos conhecidos,
respectivamente, como Bill Wilson e Bob Smith. Eles constataram que, por alguma razão até ali não bem
compreendida, conseguiam ficar sem beber durante bons períodos depois que passavam algum tempo
conversando e compartilhando seu problema. Após vivenciar uma verdadeira “experiência espiritual e
experimentar fortes sentimentos de triunfo, paz e serenidade”, segundo depoimento do próprio corretor,
ele decidiu trabalhar para que outros alcoólicos se beneficiassem com a descoberta e montou os primeiros
grupos.
7
Os textos em língua estrangeira citados ao longo deste trabalho, como destacamos na Introdução, foram
todos por mim traduzidos. Quando possível, cotejamos com traduções disponíveis em língua portuguesa.
12
Evidentemente, os valores que compõem o eixo semântico da modernidade não
foram inventados pelo A.A., mas são rearranjados em seu interior, delineando, assim, os
contornos de uma noção de pessoa que se faz necessário investigar.
Essa investigação ainda mais se justifica se levarmos em conta que alguns
comentadores tendem a inserir o modelo de A.A. no interior daquele eixo semântico,
acentuando, de maneira unívoca, o “caráter individualista” de seu programa de
recuperação.
Exemplo disso é a leitura que Giddens (1996; 1997) faz do papel desempenhado
por A.A. nos dias atuais. Para esse autor, o programa de recuperação da irmandade
favorece a “reflexividade” individual, na medida em que contribui para a ampliação da
autonomia de seus membros. A partir do intercâmbio de elementos da vida pessoal, a
irmandade possibilita uma maior interação entre os indivíduos, favorecendo seu
amadurecimento, dotando-os de mais autonomia.
Dessa perspectiva, a irmandade se constitui em um “cenário de ação”, no
interior do qual os indivíduos podem exercitar a reflexividade, tornando-se “agentes
responsáveis”
8
. Conversando e interagindo, através do intercâmbio de elementos de
suas vidas emocionais, os AAs podem superar os obstáculos impostos pelos chamados
vícios e comportamentos compulsivos.
Para Giddens, os chamados vícios e comportamentos compulsivos estão
diretamente ligados às estruturas da modernidade. Nesse sentido, “o vício, antes de ser
um fenômeno fisiológico, é um fenômeno social e psicológico(1997: 90). Com efeito,
a “compulsividade, em sentido mais amplo, é uma incapacidade para escapar do
passado” (1997: 85), estando diretamente ligada à tradição. Ou, como sugere Giddens,
na modernidade a tradição se transforma em compulsão. Ou seja, trata-se da natureza
obsessiva da modernidade, na qual os indivíduos repetem suas ações, mas agora sem o
sentido tradicional que as alimentava, constituindo-se, portanto, num poderoso
obstáculo à emancipação e à autonomia do sujeito. Nessa linha, a compulsividade pode
8
Para Giddens (1991:45): “a reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas
sociais são constantemente examinadas e reformuladas à luz de informação renovada sobre essas mesmas
práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter”. Nessa linha, o que caracteriza a modernidade não
é o apetite para o novo – como comumente de diz –, mas a suposição de uma reflexividade
indiscriminada, que inclui a reflexão sobre a natureza da própria reflexão. Nas sociedades modernas, o
passado não pode ser utilizado pelos agentes como única fonte de inspiração e sabedoria no
monitoramento de suas ações. No mundo moderno, os agentes sociais usam de sua capacidade reflexiva,
isto é, utilizam o conhecimento produzido sobre suas próprias práticas para (re)avaliá-las e justificá-las.
13
ser entendida como o outro lado da revolução cognitiva proposta pela modernidade,
impedindo os indivíduos de se tornarem mais conscientes e responsáveis pelas suas
ações.
As práticas e conversas estabelecidas no interior dos grupos são, então,
fundamentais para que os indivíduos, no sentido moderno do termo, tornem-se agentes,
capazes de monitorar reflexivamente suas ações.
Com efeito, seu modelo possibilita a realização de uma espécie de “democracia
das emoções”, capaz de conduzir os indivíduos a ter um bom entendimento de sua
própria constituição emocional (1996: 25). Os indivíduos que “são capazes de se
comunicar de maneira eficiente com os outros, em uma base pessoal, provavelmente
estão bem preparados para as tarefas e responsabilidades mais amplas da cidadania”
(1996: 25). Os AAs exercem, então, uma importante influência “democratizadora” no
interior das sociedades atuais “graças à própria forma de sua associação social” (1996:
138). Para Giddens (1996: 138) , o grupo:
Possui uma forma organizacional que inibe as hierarquias fixas. Ele [o
A.A.] propositadamente se dispõe a criar o máximo de espaço
discursivo para seus membros; além disso, também está interessado no
desenvolvimento de autonomia. A comunicação com os outros,
produzida por uma autocompreensão aumentada e para ela
contribuindo, é o meio pelo qual a pessoa que padece de um vício
torna-se capaz de superá-lo.
Além dessa função “democratizadora”, esse autor também ressalta o
importante papel de agente fiscalizador desempenhado pelos AAs, pois contestam
definições antes tidas como “oficiais”. Paralelamente a isso, eles também atuariam
como agentes equalizadores do poder técnico-científico, “importantes para arrebatar o
poder dos peritos e na recuperação leiga da perícia, de forma mais genérica” (1996:
139).
A análise que Giddens faz do modelo adotado pela irmandade se aproxima
muito de uma perspectiva que cada vez mais ganha espaço nas análises dos grupos de
apoio formados, sobretudo, pelos próprios doentes, a saber, a perspectiva do
empowerment. Vasconcelos (2003), em estudo sobre portadores de doença mental e
suas estratégias de tratamento, define o empowerment como: o “aumento de poder e
autonomia pessoal e coletiva de indivíduos e grupos sociais nas relações interpessoais e
institucionais, principalmente daqueles submetidos a relações de opressão, dominação e
14
discriminação social” (2003: 20). Para o autor, A.A. é um caso exemplar desse conceito,
na medida em que favorece o ganho de autonomia de seus membros, que encontram um
modo próprio para gerir a “doença do alcoolismo”, responsabilizando-se pelo cuidado
de si mesmos.
A leitura psiquiátrica de Edwards (1995) também acentua o caráter
individualista do programa de recuperação do alcoolismo de A.A.. Para ele, o programa
de recuperação é um “programa egoísta, no qual cada um busca a sobriedade por ele
mesmo, e não para agradar quem quer que seja, sem se manter refém do destino” (1995:
213). Nessa linha, o programa visa, notadamente, à autonomia do indivíduo, uma vez
que, ao partilhar suas experiências, o alcoólico está, na verdade, ajudando a si mesmo,
confirmando suas próprias forças. Com efeito, a tarefa da irmandade “não é [a de] fazer
proselitismo”, mas sim a de garantir a sobriedade e, conseqüentemente, a autonomia dos
membros da irmandade.
Tanto a análise de Giddens quanto a de Vasconcelos e a de Edwards enfatizam o
caráter “individualista-reflexivo” do modelo de A.A. e o conseqüente ganho de
autonomia por parte dos doentes alcoólicos, ao colocarem em prática o programa de
recuperação do alcoolismo da irmandade. Tudo se passa como se esse modelo fosse um
resultado da individualização do processo saúde/doença. Os AAs são, então,
identificados como agentes capazes de controlarem a “doença alcoólica”, recuperando,
assim, a autonomia perdida nos tempos do alcoolismo ativo. Ao contrário do indivíduo
dependente, que “perdeu o controle sobre o álcool”, tornando-se incapaz de controlar
sua vida seguindo sua própria vontade, os AAs são entendidos como “agentes
autônomos” que recuperaram a capacidade de “escolha” e o controle da própria
“doença”, responsabilizando-se pelo cuidado de si mesmos.
Todavia, se é certo que o indivíduo doente ocupa uma posição central no modelo
de A.A., atuando como eixo articulador em torno do qual se constrói toda sua estratégia
terapêutica, cabe avaliar a maneira como esse modelo sinaliza para uma construção
particular da noção de pessoa, estabelecendo contrastes em relação ao processo de
individualização da modernidade. Ao contrário do que concebem as leituras
anteriormente descritas, neste trabalho enfatiza-se a maneira pela qual o modelo
terapêutico da irmandade forja uma noção de pessoa diferencial, que relativiza o
processo de individualização, característico da modernidade.
15
Desde o estudo de Marcel Mauss (2001a), publicado originalmente em 1938:
Une catégorie de l’esprit humain — la notion de personne celle de “moi”, os estudos
sobre a noção de pessoa têm assumido uma posição de destaque dentro do campo
conceitual da antropologia. Em seu estudo, Mauss retoma o empreendimento
durkheiminiano de traçar uma história social das categorias do espírito humano,
aplicando-o à noção de pessoa. Assim, em vez de ser um dado a priori e de ter uma
validade universal, a noção de pessoa aparece como uma construção cultural, histórica e
social. Partindo de um fundo primitivo, no qual o indivíduo não se distingue do próprio
clã, Mauss aponta como a pessoa vai se destacando de seu enraizamento social para se
afirmar como categoria jurídica, moral e lógica (Goldman, 1996: 86). A compreensão
da noção de pessoa depende, então, de um inventário minucioso das formas adquiridas
por essa noção no interior das várias construções culturais (Velho, 1999).
Como já enfatizaram Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1979), o texto de
Mauss “assume o papel formador que as categorias coletivas de uma sociedade exercem
sobre a organização e a prática concreta nessa sociedade” (1979: 6 – grifo do original).
Nesse sentido, a noção de pessoa é entendida como uma categoria coletivamente
construída, que dá um significado ao vivido. Em outros termos: a noção de pessoa
assume a condição de categoria antropológica, isto é, a de uma unidade socialmente
investida de significação, cabendo à antropologia descrever os modos pelos quais as
diferentes culturas e grupos sociais a elaboram.
Essa relativização da noção de pessoa encontra eco na obra de Louis Dumont,
notadamente em sua definição teórica da “hierarquia” e a conseqüente especificação da
chamada “ideologia do individualismo”. É assim que, aprofundando a linha aberta por
Mauss, sua obra coloca no centro da reflexão antropológica a noção de indivíduo,
fundamento sobre o qual se eleva o edifício da modernidade.
Em os Essais sur l’individualisme: une perspective sur l’idéologie moderne
(1983), Dumont investiga as bases dessa noção de indivíduo, entendida como “valor”
articulador da experiência moderna. Contra a idéia de um indivíduo universal, sua obra
descortina as bases que fundamentam essa pretensa universalidade, a saber, a
“ideologia” própria à modernidade.
A noção de ideologia assume, aqui, um sentido distinto do caráter “negativo”
presente na tradição marxista. Em vez de um “véu” ou “câmara obscura” que encobriria
a realidade, a ideologia é vista como “um sistema de idéias e de valores que tem curso
16
em um dado meio social” (1983: 20). Mas, qual ideologia sustenta a moderna
concepção do indivíduo como valor supremo? A resposta é encontrada no
individualismo: “a ideologia moderna é individualista — sendo o individualismo
definido sociologicamente do ponto de vista dos valores globais” (1983: 21). Para
Dumont, portanto, o “valor ‘indivíduo’” compõe o eixo semântico em torno do qual se
estrutura toda cultura ocidental moderna
9
.
No Ocidente, a ideologia do individualismo assume um aspecto determinante,
elevando a categoria do indivíduo a um plano superior, diferenciando a cultura ocidental
de outras formações culturais. O valor indivíduo assume, então, o sentido da
“totalidade”; de um valor que engloba as experiências na vida social moderna,
acentuando, como lembra Duarte (1983: 2-27), o caráter paradoxal da modernidade
10
.
O paradoxo torna-se mais evidente se levarmos em conta sua “teoria da
hierarquia”, que opera como um “princípio estruturador dos sistemas sociais e [das]
visões de mundo em que prevalecem representações de ‘pessoa’” (Duarte, 2003: 175).
A hierarquia é entendida “como o princípio pelo qual toda a experiência humana
(intelectual ou prática) pressupõe uma distribuição diferencial (culturalmente definida)
do ‘valor’ no mundo, que permite justamente a orientação do sujeito em situação”
(Duarte, 2003: 175-176). É no interior dos sistemas holísticos que se elabora o sentido
da totalidade e são construídas as representações da pessoa que orientam os sentidos das
ações na vida social. É também pelo princípio da hierarquia que a vivência
propriamente cultural pode se incorporar em um “valor”, traduzindo de maneira
diferencial o sentido da totalidade, que caracteriza uma determinada configuração
9
Dumont recorre à antropologia comparativa para estabelecer a especificidade e a unidade da cultura
ocidental moderna. Com efeito, o autor traça uma comparação entre a sociedade ocidental e a sociedade
hindu, demonstrando que, enquanto na Índia impera um padrão holístico, cujo valor recai sobre a
totalidade social, no Ocidente impera a noção do indivíduo como valor supremo.
10
“Se acompanharmos a proposta de Dumont de entender a categoria religião como aquela que – no
universo do pensamento segmentado – mais se refere ao sentido da totalidade, do valor encompassador, e,
por outro lado, se aceitarmos como legitima a hipótese que o eixo semântico desse valor se armaria em
nossa cultura em torno da noção de Indivíduo, encontramo-nos com um curioso paradoxo [...], pois
teríamos como ‘totalidade’ justamente um princípio que a nega; como valor encompassador justamente o
que segmenta, privatiza, individualiza, e como religião, justamente o que seculariza, des-magiciza e
racionaliza” (Duarte, 1983: 6).
17
social. Paradoxalmente, na sociedade ocidental moderna, o princípio que traduz a
totalidade é justamente aquele que incorpora a parte, isto é, o indivíduo
11
.
A obra de Dumont aponta, assim, para a crítica da idéia substancialista de
indivíduo, isto é, de uma noção de indivíduo a priori, independentemente das condições
históricas e sociais. O empreendimento dumontiano, expresso, particularmente, em seu
livro Homo aequalis (2000), de procurar compreender “nosso tipo moderno de
sociedade”, fundada na igualdade, a partir de um modelo de sociedade baseado na
“hierarquia”, revelou a importância da aplicação do método antropológico comparativo
no estudo da construção moderna de indivíduo, elevando-o à condição de valor supremo
da modernidade, dissolvendo a clássica oposição entre igualdade e hierarquia. Em
suma, como explica Dumont (2000: 15), essa oposição,
trata de valores sociais gerais, englobantes, que devem ser
distinguidos claramente da simples presença de um traço e de uma
idéia num plano ou noutro da sociedade. Em um sentido mais amplo,
igualdade e hierarquia estão necessariamente combinados, de uma
forma ou outra, em todo sistema social.
Torna-se fundamental, portanto, a compreensão dos modos diferenciais de
construção da noção de indivíduo, integrado às representações e aos valores que
orientam as ações na vida social. Como lembra Velho: “Cabe distinguir o lugar do
indivíduo na construção social da identidade de qualquer grupo ou sociedade e o
desenvolvimento de uma ideologia individualista que, em princípio, estaria vinculada a
tipos particulares de experiência e história” (Velho, 1999: 44-45 – grifos do original).
Ora, o estudo do modelo terapêutico construído por A.A. para dar conta da
“doença alcoólica” pode ser uma via de acesso para a compreensão do modo diferencial
de construção dessa noção, a partir da fabricação da “pessoa alcoólica” no interior da
irmandade
12
. Em A.A. assiste-se à construção de uma noção de “doença alcoólica
11
Ainda segundo Duarte (1986a: 92): “Esse seria um dos sentidos mais profundos da teoria de Dumont
sobre a hierarquia: o de demonstrar que mesmo esta ideologia individualista que a nega não é senão em
última instância um seu caso particular e paradoxal. Como ocorre com as representações holistas e
hierárquicas ‘tradicionais’, também as nossas operam com as diferenças procurando uni-las sob a égide de
um ‘valor’. É nossa grande vantagem e nosso instigante enigma que esse valor totalizante seja a própria
parte, o próprio ‘indivíduo’”.
12
Como lembra Duarte (2003: 180), a experiência da saúde e da doença é uma importante via de acesso
no estudo das formas diferenciais de construção da noção de pessoa : “a experiência da saúde/doença
interpela a integralidade da identidade pessoal, impondo ações e reações mobilizadoras de sentido [...]
Põe em cena horizontes de significação e princípios de ação complexos e diferenciados, que o esquema
analítico da pessoa/indivíduo ajuda a compreender em nossa sociedade”.
18
crônica e fatal” e da identidade do “doente alcoólico em recuperação” no interior de
uma ordem própria, na qual se constroem os significados da experiência do alcoolismo.
Nas reuniões, os AAs reiteram sua condição de doentes, reconhecendo-se “impotentes
em relação ao álcool”, e que precisam de ajuda para sua recuperação. Nos relatos do
chamado “tempo da ativa”, no qual faziam um uso “compulsivo do álcool”, eles narram
a “perda de controle” sobre as doses ingeridas. Em outras palavras, eles narram como o
alcoolismo os conduziu à condição de heteronomia, na qual não podiam dirigir suas
vidas seguindo a própria vontade, tornando-se incapazes de escolher entre beber ou não
beber.
Como conseqüência, os AAs reconhecem que a chamada “doença alcoólica” os
conduziu à perda da “responsabilidade” tanto no cuidado de si quanto no provimento da
sua família através do trabalho. Reféns do álcool, eles reconhecem que chegaram ao
“fundo do poço”, isto é, que viveram “perdas relacionais”, rompendo todos os elos que
os ligavam aos amigos, à família e ao trabalho. Com isso, o alcoolismo revela sua dupla
face, isto é, uma “doença do indivíduo”, que conduz o doente a fechar-se sobre si
mesmo, encerrando-o no ciclo da dependência do álcool, mas que também é entendido
como uma “doença da família”, que afeta todos aqueles que vivem ao seu redor,
notadamente, cônjuge e filhos.
Nessa perspectiva, a recuperação só pode ocorrer dentro da irmandade, com a
ajuda do Poder Superior, consubstanciado nos depoimentos dos demais membros do
grupo. Ou seja, é só participando das reuniões e ouvindo os depoimentos dos demais
companheiros que os AAs podem recuperar a “responsabilidade” perdida no tempo do
alcoolismo ativo.
O modelo terapêutico da irmandade funda-se, assim, na relação de troca, na qual
o dar, o receber e o retribuir das experiências vividas constituem a base do laço social e
das relações de reciprocidade capazes de fazer os AAs manterem-se sóbrios. Como
assinala Godbout (2004a: 104),
[o modelo é] fundado sobre o princípio da dádiva. Uma pessoa que
aceita tornar-se membro deve reconhecer que é alcoólica e que ela não
pode se recuperar sozinha, que sua capacidade de se recuperar virá de
fora, de uma dádiva de uma força superior “tal como ela mesma a
compreende”.
19
Esse processo corresponde, fundamentalmente, à instauração de um peculiar
regime de alteridade, baseado na fabricação de um corpo e de um espírito doentes, de
maneira que a doença alcoólica é apreendida como um “outro” que cada dependente
traz dentro de si mesmo, que está alojado em seu interior; condição essa que deve ser
compartilhada com os demais membros do grupo, possibilitando, assim, a manutenção
da sobriedade.
Não estaríamos aqui justamente diante da fabricação de uma noção de pessoa
que problematiza a idéia de indivíduo como uma realidade a priori, ao mesmo tempo
em que relativiza a crença moderna na “indivisibilidade” e na “auto-suficiência” de uma
noção do próprio “eu”, considerado “autônomo” e “soberano”? O modelo de A.A.
parece indicar que a “capacidade de escolha” e a “responsabilidade” só podem ser
recuperadas dentro da matriz relacional da irmandade, a partir do reconhecimento das
próprias limitações e da impossibilidade de se enfrentar a doença do alcoolismo
sozinho.
A noção de “indivíduo responsável” pelo cuidado de si e de sua família só pode
florescer dentro do grupo, na comunicação com os demais membros que se encontram
na mesma situação, a partir do reconhecimento de que é necessário aprender a conviver
com um “outro dentro de si”, representado pela idéia de que se é portador da “doença
crônica e fatal” do alcoolismo. Somente assim, o indivíduo considerado doente pode se
responsabilizar pelo cuidado de si mesmo, ao mesmo tempo em que recupera os papéis
sociais de “pai/mãe”, “esposo(a)” e “trabalhador(a)”.
É nessa perspectiva que este trabalho busca caracterizar o diferencial da
construção da pessoa em A.A., relacionando-o à maneira como se dá organização social
da irmandade e, notadamente, à fabricação da identidade durante o processo terapêutico,
de modo a lançar contrastes ao individualismo, e assinalando as possíveis
(des)continuidades em relação ao campo ideológico moderno.
A definição dessa temática foi objeto de uma confluência de aspectos teóricos e
metodológicos que tornaram possível articular, a partir do trabalho etnográfico, as
práticas e os significados elaborados em torno do álcool e do alcoolismo, enfocando o
processo de construção social da identidade do “doente alcoólico em recuperação” e,
por essa via, da noção de pessoa. Vale a pena, portanto, retraçar o itinerário etnográfico
que resultou na sua realização.
20
1.2 A pesquisa de campo: encontrando os alcoólicos anônimos
O etnógrafo “inscreve” o discurso social: ele
o anota. Ao fazê-lo, ele o transforma de
acontecimento passado, que existe apenas
em seu próprio momento de ocorrência, em
um relato, que existe em sua inscrição e que
pode ser consultado novamente.
Clifford Geertz
Para dar conta dos objetivos propostos, realizamos uma pesquisa de campo,
entre setembro de 2001 e setembro de 2002, no grupo Sapopemba de A.A., que faz
parte do 42º distrito de Alcoólicos Anônimos do Estado de São Paulo, do Setor A –
Capital
13
. A escolha desse grupo deveu-se ao fato de se tratar de um já consolidado na
promoção de reuniões de recuperação, que acontecem desde de sua fundação, em 16 de
março de 1981.
Meu encontro com os Alcoólicos Anônimos ocorreu por intermédio de um
amigo que, durante uma conversa, na qual eu relatava meu interesse em fazer uma
pesquisa sobre o programa de recuperação do alcoolismo desenvolvido pela entidade,
disse-me conhecer um grupo próximo à sua residência, localizada na Vila Ema,
pertencente ao populoso distrito de Sapopemba
14
, na zona leste da cidade de São Paulo.
Ele também me disse que os AAs se reuniam todas as noites e que poderia lhes fazer
uma consulta sobre a possibilidade de eu realizar minha pesquisa ali. Após ele ter
consultado os membros do grupo, marcamos um dia para minha ida ao local.
No dia marcado, encontrei-o na estação do metrô Belém e seguimos de ônibus
para a sede do grupo. O percurso levou cerca de uma hora, e eu estava preocupado com
a pontualidade — é importante ressaltar que todas as reuniões em que tive a
possibilidade de participar começaram pontualmente às 20h —, pois não queria me
atrasar em meu primeiro encontro.
13
A irmandade de Alcoólicos Anônimos conta com 524 grupos em todo Estado de São Paulo,
organizados em 56 distritos, divididos em 11 setores. No setor A (Capital), existem 204 grupos de A.A.,
organizados em 19 distritos, segundo dados do Escritório de Serviços Locais - ESG/SP. Disponível em:
<www.aa-areasp.org.br/adm/grupos/listagem.asp?TIPO=DistritosGruposPorSetor&ID=2> Acesso em:
13.01.2005.
14
Segundo dados do IBGE e da Fundação SEADE, o distrito de Sapopemba é o segundo distrito
paulistano em densidade populacional, contando, em 2004, com 286.857 habitantes. Disponível em:
<www.seade.gov.br/produtos/msp/dem/dem9_008.htm> Acesso em 20.12.2004.
21
O itinerário percorrido foi revelando a paisagem típica das periferias das grandes
cidades. Posteriormente, percorrendo as ruas do distrito, foi possível discernir traços
importantes de sua formação social. O distrito de Sapopemba localiza-se em uma região
limítrofe com o parque industrial do ABC, conhecido pela grande concentração de
indústrias do setor automobilístico. Essa proximidade, decisiva para a configuração
social do distrito, foi responsável pelo fluxo migratório, a partir dos anos 1950, de um
grande contingente populacional, atraído pela promessa de melhores condições de vida.
O bairro concentra uma população majoritariamente trabalhadora, que depende
do próprio salário para sua reprodução social, e assemelha-se, em sua forma, aos bairros
vizinhos, delineando os contornos de uma paisagem composta por casas simples, ou
inacabadas, ou em processo de construção, e que servem de local de moradia, ao mesmo
tempo, para a própria família e para a de seus filhos, quando estes vêm a se casar.
Exemplo disso é o vivido por Jorge
15
, 63 anos, casado, 4 anos de A.A., taxista, que
mora com sua esposa e seus três filhos em uma casa onde, na parte cima, um cômodo
foi construído para abrigar sua outra filha, seu genro e seus dois netos.
Além de abrigo para o núcleo familiar, a casa também tem um papel importante,
funcionando, muitas vezes, como local de atividade econômica, na maioria das vezes
informal, um recurso utilizado como forma de aumentar a renda familiar
16
. São
pequenos estabelecimentos que oferecem os mais variados serviços, tais como: conserto
de sapatos, venda de salgadinhos, cabeleireiro, costureira, serviços de pedreiro, conserto
de geladeiras, de ferro de passar roupas etc. Aqui, mais uma vez é Jorge quem nos dá o
exemplo: ele me relatou que certa vez tinha resolvido comprar equipamentos para abrir,
em sua casa, um pequeno comércio de venda de salgados e lanches, que seria
administrado por ele e sua esposa. Com isso, ele esperava, ao mesmo tempo, aumentar a
renda familiar e deixar de trabalhar com o táxi, que dirigia há mais de 20 anos, deixando
para seu filho mais velho esse ofício. Após algum tempo, constatou-se que o negócio
não havia prosperado; resolveu-se, então, vender a geladeira e o fogão adquiridos e
fechou o estabelecimento. Jorge e sua esposa montaram um pequeno salão de
15
Atendendo à solicitação dos entrevistados, de preservação do “principio do anonimato”, os AAs são
tratados, aqui, por pseudônimos.
16
Segundo dados do IBGE e da Fundação SEADE, referentes ao Censo de 2000, 61,38% dos habitantes
do distrito de Sapopemba vivem com uma renda familiar que oscila na faixa de 2 a menos de 10 salários
mínimos. Já 18,08% da população vivem com renda familiar inferior a 2 salários mínimos. Disponíve;
em: <http://www.seade.gov.br/produtos/msp/ren/ren1_001.htm> (Acesso em 20.12.2004).
22
cabeleireiro, onde ela atualmente trabalha, para aumentar a renda familiar. Ele voltou a
dirigir o táxi à noite, enquanto o filho trabalha com o carro durante o dia.
A situação vivida por Jorge é emblemática da queda do número de empregos
formais, em função das sucessivas crises econômicas vividas nas últimas décadas. Estas
são responsáveis por colocar um contingente expressivo de trabalhadores da região na
situação de risco de perda do emprego, aumentando a fragilidade econômica em que
vivem. Percorrendo a avenida Sapopemba, que atravessa, em sua longa extensão, todo o
distrito, é possível constatar o aumento da atividade informal pelo grande número de
barracas de marreteiro que se distribuem em suas calçadas.
Nos últimos anos, ocorreu um avanço do setor de serviços na região, com a
abertura tanto de redes de fast-food como de grandes supermercados, o que contribuiu
para o aumento da oferta de empregos formais, mas essa oferta ainda está longe de
absorver um grande contingente de trabalhadores, na sua maioria com pouca ou
nenhuma especialização profissional
17
.
Mas viver no distrito de Sapopemba também permite formular uma visão própria
sobre a vida nas periferias das grandes metrópoles:
Eu percebo que nosso bairro é periferia. Então, na periferia, é aquela
dificuldade, a maioria da população toda desempregada. [...] Eu,
como sou daqui, cheguei aqui no bairro em 1970, já faz um bocado de
anos que eu faço parte desta comunidade [...] Eu vejo que não existe
um lazer na região, o lugar mais próximo é no parque do Carmo. Eu
vejo uma dificuldade de condução. Aqui em Sapopemba não tem um
posto de saúde (Paulo, 48 anos, casado, 22 anos de A.A., sapateiro,
entrevistado em 25 jan. 2005).
No olhar de Paulo, o bairro aparece classificado como periferia, cuja condição se
define através das dificuldades compartilhadas cotidianamente, dentre as quais se
destacam o desemprego e a falta de infra-estrutura de transporte e saúde, tornando mais
difícil a luta pela sobrevivência.
Segundo recorte feito a partir dos dados oficiais, relativos ao ano de 2002, o
distrito não contava com equipamentos culturais tais como, por exemplo: salas de
cinema, salas de teatro, casas de cultura, centros de cultura, museus e espaços e oficinas
17
Segundo dados do IBGE e da Fundação SEADE, em 2002, o setor de serviços foi responsável por
54,4% dos vínculos empregatícios formais, no distrito de Sapopemba, contra 16,3% da indústria.
Disponível em: <http://www.seade.gov.br/produtos/msp/emp/emp4_005.htm> (Acesso em 20.12.2004).
23
culturais
18
. Todavia, circulando por suas ruas, é possível visualizar uma sociabilidade
que se desenvolve em espaços de lazer, os quais instauram uma alteridade em relação ao
espaço doméstico e ao local de trabalho. Esse é o caso, por exemplo, dos bares, que, em
números expressivos, povoam suas esquinas e ruas. O bar aparece, muitas vezes, como
uma das poucas alternativas de lazer para os moradores da região.
O distrito abriga ainda uma escola de samba — a Combinados de Sapopemba
—, da qual fazem parte alguns membros de A.A., e cujos ensaios para o carnaval
mobilizam os moradores em seus momentos de lazer. No mês de junho, ocorre o
aniversário do distrito, que é comemorado em uma grande festa — a Festa de
Sapopemba —, engajando seus moradores nos preparativos necessários à sua
organização e realização. Há também uma igreja católica, centros espíritas e terreiros de
umbanda, que convivem com uma quantidade cada vez mais crescente de igrejas
evangélicas, instaurando um circuito religioso pelo qual seus moradores circulam,
participando de atividades que, muitas vezes, concorrem com as poucas opções de lazer
oferecidas na região. A igreja católica também abriga reuniões de Narcóticos Anônimos
e do Al-Anon, irmandades paralelas, dirigidas, como já foi dito, aos dependentes de
drogas e aos familiares e aos amigos de dependentes do álcool, respectivamente. Não
raro, também é possível ver algum membro de A.A. durante a missa, fazendo a
divulgação das reuniões do grupo.
Durante a pesquisa, constatamos, no chamado “livro de registro”
19
e, também,
em conversas com o coordenador e com o responsável pela manutenção da sala de
reuniões do grupo Sapopemba, um total de 86 pessoas registradas como membros
ingressantes no grupo. Destes, 81 são homens e 5 mulheres. A presença maciça de
homens é uma característica marcante dos grupos de A.A., o que também é confirmado
por Garcia (2004: 57-60) em sua pesquisa no grupo Doze Tradições, localizado no
município de São Gonçalo, no Estado do Rio de Janeiro.
18
Disponível em: <www.seade.gov.br/produtos/msp/cul/cul1_002.htm> Acesso em 20.12.2004.
19
Embora não faça um controle rigoroso da freqüência às atividades, o grupo Sapopemba mantém um
“livro de registro” no qual são anotados os nomes dos membros quando de sua entrada no grupo e,
também, daqueles veteranos que continuam participando das suas reuniões. Os AAs me disseram que esse
livro deve sua existência à “autonomia do grupo”, que pode decidir manter um controle desse tipo, caso
seus membros julguem necessário. Eles disseram, ainda, que, através desse livro, é possível saber a média
de membros que freqüentam o grupo, facilitando o repasse da contribuição do grupo aos órgãos de
serviços da irmandade. Além do livro de registro, há também um “livro de freqüência”, que os membros
assinam todos os dias, quando chegam para as reuniões.
24
Segundo as informações colhidas, dos 86 ingressantes, 37 deles se afastaram do
grupo: 36 homens e uma mulher. A grande rotatividade de membros é outra
característica presente no cotidiano da irmandade
20
. No caderno de ingresso, é possível
observar o seguinte o quadro, referente ao tempo existente entre o ingresso e o
afastamento do grupo:
Quadro 1 – Tempo entre ingresso e afastamento em A.A.
Tempo decorrido entre o ingresso no
grupo e o afastamento
Número de membros
Menos de 1 mês 00
entre 1 mês e 6 meses 15
entre 7 e 12 meses 13
entre 13 e 18 meses 07
entre 19 e 24 meses 02
Em relação aos membros que mantêm um vínculo permanente com a irmandade,
é possível estabelecer o seguinte quadro, segundo os registros mantidos pelo grupo:
Quadro 2 – Tempo de permanência no grupo
Tempo de permanência no grupo Número de membros
até um 1 ano 11
entre 2 e 5 anos 17
entre 6 e 10 anos 02
entre 11 e 15 anos 09
entre 16 e 20 anos 07
mais de 20 anos 03
Através da observação das atividades do grupo e também dos registros em seu
caderno de presença, constatamos que, nas reuniões de recuperação, há uma freqüência
média de 15 membros. Entre aqueles com os quais conversamos, 18 no total, apenas um
tem menos de 40 anos. Os demais estão em uma faixa etária que varia entre 40 e 73
anos. Esse dado também é confirmado por Garcia, que vê nele um indício de que a
20
Garcia (2004: 60-61) observa que, no grupo Doze Tradições, no ano de 2002, 5 membros não chegaram
a completar um mês de permanência; 4 atingiram 9 meses; 18 estão entre 1 e 9 anos; 11 têm entre 10 e 19
anos; e 4 têm 20 e 29 anos de permanência. Os motivos aventados para o afastamento de um membro do
grupo são, segundo comentários feitos por aqueles que permanecem, as chamadas “recaídas”, situação em
que o alcoólico volta a beber, a mudança para outros grupos ou a busca por outras opções de tratamento.
25
“maturidade física” é um fator relevante na “percepção das perdas e na decisão de filiar-
se à associação” (2004: 59 – grifo do original).
Todavia, se é certo que a elevada faixa etária dos AAs é um indicador de que a
“maturidade física” favorece a percepção das perdas acumuladas durante o chamado
tempo do “alcoolismo ativo”, isso se deve também ao fato de que o uso considerado
abusivo do álcool provoca efeitos danosos não só ao organismo do alcoólico, mas
sobretudo, à sua família. Logo, a elevada faixa etária parece também ser um indício da
percepção do elo existente entre os planos físico e moral que a “doença do alcoolismo”
envolve.
Entre os membros que contatamos
21
, é significativo o número de aposentados
(seis), os quais ainda continuam trabalhando em atividades informais, chamadas de
“bicos”, como forma de obter alguma renda. Destacam-se também cinco membros que
não têm vínculo empregatício formal: um marceneiro, dois pedreiros, um sapateiro e um
taxista. Em número menor (três), estão os que têm um emprego formal: um assistente
administrativo, um motorista e um zelador. Entre as mulheres, duas são “donas de
casa”, como elas próprias se consideram, uma é funcionária pública e uma está
aposentada.
A associação do uso de álcool às massas trabalhadoras constitui uma referência
consagrada no âmbito das pesquisas relativas aos sistemas de classificação e às relações
de poder, que visam estabelecer formas de controle social sobre os membros das
camadas populares
22
(Neves, 2004: 11). Contudo, ao se priorizar a escolha de um grupo
de A.A. sediado em um bairro popular, não se pretendeu, com isso, deduzir os
significados elaborados em torno da doença do alcoolismo da condição social de seus
membros. Trata-se sim, metodologicamente, de analisar, a partir de um caso concreto, o
modo como a fala da doença articula e mobiliza elementos do universo social no qual os
21
Como não foi possível entrevistar todos os membros do grupo, os dados apresentados referem-se
àqueles membros com os quais mantivemos contato nos dias em que participávamos das reuniões de
recuperação.
22
Para Neves (2004), um eixo de análise muito recorrente é aquele que associa o uso do álcool às massas
trabalhadoras, enfatizando as situações de precariedade socioeconômica, aglutinado-se em torno da
equação “pobreza, precariedade e alcoolismo”, acabando por legitimar intervenções sobre esse
contingente da população. Com efeito, “de um modo positivo, a associação tende a valorizar a relação
entre precárias e adversas condições de trabalho e o uso sistemático ou abusivo de álcool. De um modo
negativo, a associação tende a consagrar a articulação entre o uso abusivo de bebida alcoólica e a
imprevidência individual, incompatível com desempenhos de papéis de esposo, companheiro e pai”
(2004: 11).
26
AAs estão inseridos, permitindo-lhes atribuir um sentido à experiência do alcoolismo,
ao mesmo tempo em que definem uma compreensão própria de si mesmos.
Durante os depoimentos, os AAs destacam, sobretudo, as perdas acumuladas na
vida em família, durante o período ativo do alcoolismo. A esfera familiar é uma
referência fundamental para os membros do grupo. É significativo que a maioria se
tenha declarado casada. Entre os homens, nove se declararam casados, três, solteiros, e
um, viúvo. Entre as mulheres, duas se declararam casadas e duas viúvas. À exceção dos
solteiros, os demais declararam todos que têm filhos.
A metodologia de pesquisa contou, fundamentalmente, com a realização de
entrevistas e com a observação de diversas atividades promovidas pela irmandade dos
Alcoólicos Anônimos. Foram observadas as reuniões de recuperação do grupo (ver
capítulo 3), além de outras atividades promovidas pelo grupo, tais como: encontros,
reuniões de serviços, reuniões de unidade, reuniões temáticas, festas comemorativas do
aniversário do grupo etc. Nesses encontros, os AAs narram uns aos outros, em
verdadeiros depoimentos pessoais, feitos em primeira pessoa e chamados de “partilhas”,
suas experiências vividas antes e depois da entrada em A.A.
Já as entrevistas foram individuais e semi-estruturadas, e aconteceram, em sua
maior parte, em 2001 e 2002. Como forma de se obter um melhor controle sobre os
dados coletados, realizamos outras, no final do ano 2004 e início do de 2005. Ao longo
da pesquisa de campo, também foram entrevistados familiares de um dos AAs, sua
esposa e suas duas filhas, com a finalidade de avaliar as representações elaboradas sobre
o álcool, o alcoolismo e o programa de A.A. e suas repercussões na vida familiar de um
alcoólico. Essas foram as únicas entrevistas fora da sala do grupo.
A possibilidade de entrevistá-los ocorreu a partir da relação de afinidade
estabelecida entre mim e Jorge. Fui convidado a ir à sua casa em um domingo para
almoçar e depois “conversar” com sua esposa e suas filhas sobre o “problema que foi o
alcoolismo”. Fui recebido por sua esposa, que estava na cozinha, preparando uma
“galinhada” e, logo que cheguei, fui alertado para “não reparar na desarrumação”,
pois ela estava desde de cedo cozinhando. Esse encontro foi fundamental, pois me
permitiu vivenciar um aspecto importante que ordena a convivência cotidiana na família
de um morador do distrito de Sapopemba. Ser convidado para um almoço é um signo de
distinção, sobretudo, porque, como lembra Sarti (2005b: 61),
27
os papéis familiares complementam-se para realizar aquilo que
importa para os pobres, “repartir o pouco que têm” [...] Na mesma
medida em que a alimentação é a prioridade dos gastos familiares,
oferecer comida é também um valor fundamental, fazendo os pobres
pródigos em oferecê-la.
Durante a conversa com sua esposa e suas filhas, Jorge se ausentou da sala, o
que permitiu que elas ficassem “à vontade”, como ele mesmo fez questão de frisar,
para falar sobre os efeitos de seu alcoolismo na convivência familiar. Essas entrevistas
também foram semi-estruturadas, e os depoimentos foram todos transcritos.
As entrevistas individuais e com os familiares de um alcoólico foram
fundamentais para a pesquisa, pois permitiram uma aproximação mais intensa com os
membros do grupo. Com efeito, se, nas reuniões, foi possível delimitar a fala a respeito
da doença no interior do modelo terapêutico fornecido pela irmandade, nas entrevistas
individuais foi possível estabelecer um maior controle sobre os dados, de maneira a
compreender o modo como os alcoólicos elaboram uma compreensão própria do
programa de recuperação e de como este repercute em suas vidas, favorecendo a
construção da identidade de “doente alcoólico em recuperação” e, ao mesmo tempo, de
uma noção particular de pessoa.
1.3 Um “não-alcoólico” em Alcoólicos Anônimos
A realização de um trabalho de campo, contudo, não se limita à simples coleta
de dados para a pesquisa. Como lembra Geertz (1989: 29), o etnógrafo “inscreve o
discurso social” em suas anotações, transformando-o de acontecimento passado em um
relato que existe em sua inscrição. O trabalho de campo nos coloca, assim, diante do
universo do outro; e viver essa experiência da alteridade também implica um
questionamento sobre nós mesmos.
Vive-se, então, uma situação complexa, na qual o necessário engajamento
exigido para a compreensão do “ponto de vista dos nativos” também traz consigo a
problematização da questão epistemológica dos limites entre o pesquisador e o
pesquisado. Isso se torna mais evidente quando estamos diante de um grupo que faz
parte da mesma sociedade do pesquisador, a exemplo da irmandade de Alcoólicos
Anônimos.
28
Desde de minha chegada ao grupo, pude sentir o impacto de estar adentrando um
local onde eu representava o papel do “diferente”, do “estranho”; em uma palavra, do
“outro”. Primeiramente, fui apresentado como “professor” e “pesquisador” a Paulo, à
época secretário geral do grupo, que me recebeu muito bem, oferecendo-me café e
bolachas.
Mas logo percebi que minha presença chamava a atenção de todos, despertando
sua curiosidade. Eles queriam saber sobre o que era o meu trabalho, como eu ficara
sabendo da existência de Alcoólicos Anônimos e do grupo e o porquê de meu interesse
pelo alcoolismo. Meu amigo e Paulo me apresentavam a todos como professor e eu
respondia às perguntas do modo mais direto e simples possível, dizendo que tinha
interesse em conhecer melhor o modo como a irmandade tratava o problema do
alcoolismo e que iria escrever um livro sobre esse assunto. A princípio, essa resposta
satisfez a todos, que passaram a me tratar como alguém que ali estava para apreender o
programa de A.A.
Desde o primeiro momento, eu deixei claro quais eram meus interesses em
participar das reuniões do grupo. Todavia, o fato de eu ter sido apresentado ao grupo
por alguém que mantinha relações com os alcoólicos praticantes dos passos de sua
recuperação facilitou muito minha entrada nesse “outro” universo social. Isso ficou
claro quando visitei outros grupos, sempre por indicação do Paulo. Quando chegava ao
novo grupo, minha presença nas reuniões gerava um misto de curiosidade e
constrangimento entre os seus membros. Nesse sentido, posso dizer que não enfrentei
alguns dos problemas relatados por Garcia (2004) em sua pesquisa de campo, como o
de ter a presença freqüentemente questionada pelos membros do grupo, que ressaltavam
o fato de ela não ser um membro de A.A. (2004: 53).
Primeira lição de uma pesquisa de campo em uma associação de ex-bebedores:
não se deve jamais chegar em cima da hora às reuniões de recuperação. Os momentos
que antecedem a reunião são preciosos, uma vez que nos ensinam muito das práticas de
sociabilidade desenvolvidas entre os membros do grupo, com o intuito de reforçarem
seus laços, facilitando sua identificação com o perfil de “doentes alcoólicos em
recuperação”.
Depois de um dia de trabalho, ou de passar o dia procurando emprego, os
“companheiros” vão chegando e cumprimentando-se mutuamente. O momento que
antecede à reunião de recuperação é fundamental para o reforço dos laços de amizade e
29
solidariedade entre os membros do grupo que, descontraidamente, narram seu cotidiano,
abraçam-se e formam rodas para conversar. Aqui, o sentimento é de que fazem parte de
uma “família” e de que estão entre pares, o que é reforçado a cada gesto e palavra que
reafirma o pertencimento à irmandade. Sempre que há na sala a presença de um novato
ou de um provável ingressante, uma atenção especial é despendida com ele, e todos
afirmam que ele é “a pessoa mais importante daquela reunião”.
Embora meus interesses estivessem explicitados e minha participação nas
reuniões tivesse sido aceita, que posição eu ocupava no grupo, aos olhos dos membros
da irmandade? Que visão os alcoólicos têm daquele que está interessado em conhecer a
irmandade e seu programa de recuperação?
Foi em um desses momentos que antecedem as reuniões que as respostas
começaram a ficar mais claras, e vivi o que interpreto como sendo o instante de minha
“aceitação” pelo grupo. Eu estava parado, saboreando o café com bolachas, quando
Paulo virou-se para mim e disparou: “acho que você é um alcoólatra; você ainda não
assumiu, mas vai acabar assumindo; você diz que está fazendo pesquisa, mas você deve
ser um alcoólatra”. Depois disso, todos riram e passaram a conversar comigo de forma
afável e amiga. Nesse instante, ficou claro para mim que, ao mesmo tempo em que eu
buscava formular uma compreensão sobre o modelo terapêutico de A.A., os alcoólicos
também buscavam formular uma compreensão sobre minha presença naquele lugar.
Com isso, aprendi a segunda lição de uma pesquisa em uma associação de ex-
bebedores: a de que fazer um trabalho de campo nesse contexto significa fazer parte de
um sistema de troca, expresso em três “etapas”: visitante, amigo de A.A. e profissional
amigo de A.A., durante as quais se constrói a relação entre o pesquisador e seus
pesquisados.
O visitante é aquele que, ao chegar, é considerado um “estranho” e se interessa
em obter informações sobre as suas atividades e seu programa de recuperação do
alcoolismo. O amigo de A.A., por sua vez, é aquele que, ao conquistar mais a confiança
dos membros do grupo, passa a compartilhar de alguns valores e práticas e pode trazer
novas informações, podendo mesmo exercer um papel de divulgador da mensagem de
A.A., especialmente em locais nos quais os membros não consideram ir, em
cumprimento ao princípio do anonimato e ao modo de vida sugerido pelo processo
terapêutico. Já o profissional-amigo de A.A. é aquele que dedica parte de seu tempo,
30
como voluntário, à organização, participando de reuniões e atividades programadas pela
associação.
Essa relação foi se aprofundando, e ficou claro para mim que de um lado, os
membros do grupo aceitariam minha presença nas reuniões, possibilitando o meu acesso
às informações de que eu tanto necessitava para a realização de minha pesquisa; e, de
outro, eu passaria a ocupar a posição do amigo de A.A.
Algo muito semelhante foi vivido por Garcia (2004: 47-54) durante sua
pesquisa, na qual ela também fez parte do sistema de trocas de A.A., fundado na relação
entre o “dar” e o “receber”. Embora, em nenhum momento, essa relação tenha sido
estabelecida nos termos de uma necessidade, é importante lembrar que, como sublinha
Mauss (2001b: 159), o “dar” e o “receber” implicam numa obrigação de “retribuir”,
pois “a coisa recebida não é inerte” e carrega consigo, no caso de uma pesquisa em uma
associação de ex-bebedores, as representações sobre o álcool, o alcoolismo e sobre si
mesmo como doente alcoólico. Nesse sentido, é através da troca estabelecida na relação
entre o pesquisador e os membros de A.A. que a identidade do pesquisador é construída.
A pesquisa em uma associação de ex-bebedores também implica, como lembra
Fainzang (2002: 67), a exigência de o pesquisador reproduzir certas práticas durante as
atividades promovidas pelo grupo, como por exemplo, fazer a oração da serenidade, ao
início e término das reuniões, em pé. De modo que o pesquisador acaba por colocar em
prática certos códigos ritualizados, que assinalam seu envolvimento no sistema de troca.
Com isso, sua posição dentro da irmandade vai se consolidando cada vez mais, de
maneira a facilitar o acesso às informações necessárias para o trabalho, delimitando seu
“lugar” entre os nativos.
Ao fazer parte de A.A., o pesquisador interage com os membros do grupo,
participando de inúmeras atividades promovidas pela irmandade, tais como reuniões de
unidade em outros grupos, reuniões temáticas, visitas em clínicas de recuperação de
dependentes, reuniões com profissionais etc., que acabam por selar seu envolvimento,
ao mesmo tempo em que sua identidade é relocada e reafirmada.
Minha relação com Paulo é ilustrativa desse deslocamento identitário,
vivenciado na pesquisa de campo. Ao longo de meu trabalho, ele tornou-se um
verdadeiro colaborador de minha pesquisa, devido tanto à posição estratégica que
ocupava no grupo como ao fato de ser um alcoólico experiente na prática do programa
de recuperação, o que implicava uma certa liderança em relação aos demais membros
31
do grupo, facilitando minha inserção nas reuniões. Também demonstrou, desde o
primeiro momento, um grande interesse pelo meu trabalho, passando-me valiosas
informações, que foram muito úteis para o andamento da pesquisa.
Não raro, ele me indicava reuniões e atividades que seriam realizadas em outros
grupos na mesma região e em que, segundo ele, minha participação seria importante;
chegou mesmo a marcar, para mim, entrevistas com informantes-chave. Muitas vezes,
participei de reuniões só por ele ter insistido e consegui informações fundamentais para
o trabalho. Paulo se interessava pelos detalhes de minha pesquisa, procurando me
orientar quanto a aspectos relativos ao programa que eram, muitas vezes, obscuros para
mim.
Em várias ocasiões, ele me disse que, ali no grupo, eu era um “aluno”, e que eles
e os demais membros eram os professores, os “verdadeiros” especialistas no “assunto
do alcoolismo”, e iriam me apresentar os meandros desse universo. Ouvir isso num
grupo em que não há a presença de profissionais, tais como psicólogos, psiquiatras ou
médicos, soou estranho para mim, num primeiro momento. Mas, com o tempo, percebi
que, ao participar das reuniões e trocar experiências com alcoólicos na mesma situação,
o membro do grupo acumula um saber e um conhecimento sobre o tema do alcoolismo,
suas conseqüências e seu tratamento que fazem dele uma espécie de “especialista” no
assunto
23
. Ora, assumir o papel de “aluno” no grupo foi fundamental para meu
aprendizado de suas representações sobre o álcool, o alcoolismo e de si mesmos como
doentes alcoólicos em recuperação.
Conforme minha relação com Paulo se estreitava, cheguei a pedir para que ele
lesse alguns textos parciais, que eu tinha escrito, sobre minha participação nas reuniões
do grupo. Ele leu com interesse; e depois fazia críticas, algumas delas importantes para
o esclarecimento de minhas dúvidas e para o andamento da pesquisa.
23
Vale aqui a distinção proposta por Giddens (1997: 105) entre “especialistas” e “profissionais”, ao
retomar a distinção weberiana entre a “autoridade tradicional” e a “autoridade racional-legal”: “Não
devemos igualar especialistas e profissionais. Um especialista é qualquer indivíduo que pode utilizar com
sucesso habilidades específicas ou tipos de conhecimento que o leigo não possui. ‘Especialista’ e ‘leigo’
têm de ser entendidos como termos contextualmente relativos. Há muitos tipos de especializações, e o que
conta em qualquer situação em que o especialista e o leigo se confrontam é um desequilíbrio nas
habilidades ou na informação que para um determinado tipo de ação – torna alguém uma ‘autoridade’
em relação ao outro” .
32
Essa relação, construída entre mim e Paulo, também foi importante por trazer à
tona o que parece ser um aspecto fundamental em uma pesquisa etnográfica, e para o
que Geertz (1989: 32-34), de maneira muito feliz, chama a atenção, ao se referir à
natureza de um prolongado trabalho de campo: na etnografia, mais do que pensar sobre
os nativos, pensamos com os nativos.
Um exemplo disso eu vivi nos momentos em que fui convidado a participar de
reuniões temáticas, para discorrer sobre o tema de minha pesquisa. Sentado na “cadeira”
usada pelos membros do grupo para fazerem suas “partilhas” — termo utilizado para se
referir aos depoimentos feitos na reunião de recuperação —, eu falei por cerca de uma
hora sobre o trabalho que estava realizando, e depois fui “sabatinado”, como disseram
os presentes, sobre diferentes aspectos do programa de recuperação de A.A..
Esse momento foi por mim considerado fundamental para a pesquisa
etnográfica, já que nele foi possível confrontar-me com os membros do grupo, os quais
assumiram, de fato, a posição de sujeitos no processo de conhecimento, estabelecendo
uma relação de troca cujo fundamento é parte mesmo das suas práticas, na qual eles me
ajudaram em minha própria reflexão, ao mesmo tempo em que eu os ajudava a refletir
sobre suas práticas. Pode-se dizer, então, que nesse momento ocorreu a relativização de
um dos pilares sobre o qual se sustenta a posição “clássica” do sujeito do conhecimento
na pesquisa etnográfica, a saber: o poder que o pesquisador tem de observar e falar
sobre o outro.
Mas a etnografia também se relaciona ao conhecimento das representações
associadas ao álcool e ao alcoolismo que contribuíram para definir uma imagem
específica tanto dos bebedores como do uso considerado excessivo de bebidas
alcoólicas. É assim que a delimitação dos contornos da noção de pessoa em A.A.
também depende de uma análise dessas representações, que acabaram por situar o
bebedor entre o “desviante” e o “doente” e, por essa via, definiram o alcoolismo entre o
“desvio” e a “doença”. É isso que procuramos visualizar a seguir.
33
Capítulo 2
O ÁLCOOL E O ALCOOLISMO:
ENTRE O “DESVIO” E A “DOENÇA”
Lévi-Strauss (2003: 98-99) descreve a prática da troca de garrafas de vinho, feita
nos pequenos restaurantes da região francesa do Midi, para exemplificar o conceito de
reciprocidade.
Cada conviva come, se é possível dizer, para si, e a observação de um
dano na maneira pela qual foi servido desperta a amargura com
relação aos mais favorecidos e uma ciosa queixa ao dono da
restaurante. Mas, com o vinho, dá-se coisa inteiramente diferente. Se
uma garrafa for insuficientemente cheia, o possuidor dela apela com
bom humor para o julgamento de seu vizinho. E o dono da casa terá
de enfrentar não a reivindicação de uma vítima individual, mas a
repreensão comunitária. Isto acontece porque, com efeito, o vinho,
diferentemente do “prato do dia”, bem pessoal, é um bem social. A
pequena garrafa pode conter apenas um copo, que esse conteúdo será
derramado não no copo do detentor, mas no do vizinho. E este
executará, logo a seguir, um gesto correspondente de reciprocidade.
Que aconteceu? As duas garrafas são idênticas em volume e seu
conteúdo, de qualidade semelhante. Cada um dos participantes dessa
cena reveladora, afinal de contas, não recebeu nada mais do que se
tivesse consumido sua porção pessoal. Do ponto de vista econômico,
ninguém ganhou, nem perdeu. Mas é que na troca há algo mais que
coisas trocadas.
A troca de garrafas de vinho instaura um círculo que reforça os laços sociais
entre os convivas. Ora, desde Essais sur le don, de Marcel Mauss, sabemos que a troca
é uma modalidade fundamental do relacionamento humano, pois é através dela que o
laço social se constitui e se fortalece, operando como o fundamento da sociabilidade.
Nesse sentido, o exemplo citado demonstra bem como o ato de beber é, sobretudo, um
ato social, fundado em uma relação de troca com o outro, que torna possível a
construção de uma sociabilidade no interior da qual o uso do álcool é aceitável e
controlado.
34
Estudos etnográficos descrevem situações que revelam a diversidade das
maneiras sociais com que se constrói o beber coletivo. Bott (1987: 182-204), por
exemplo, relata o cerimonial kava, realizado pelo grupo polinésio dos Tonga, no qual
eles absorvem uma bebida cujas propriedades são anestésicas e tranqüilizantes. Em uma
grande cerimônia, as raízes do kava são moídas e trituradas por um círculo de homens,
considerados irmãos e dispostos segundo uma ordem na qual se combinam relações de
parentesco e hierarquias. Logo após, em absoluto silêncio, eles as misturam com água, e
a distribuem e a ingerem. Para a autora, a ingestão do kava é parte de um ritual que
tende a reviver o mito de origem da sociedade tonga, no qual seu primeiro monarca,
filho do deus céu, foi assassinado e devorado pelos seus irmãos. Seu pai, ao descobrir a
morte do filho, fez com que seus irmãos o regurgitassem, ressuscitando-o, para em
seguida proclamá-lo rei. É a partir desse momento que se organiza toda a hierarquia
social dos Tonga, na qual o grupo inferior é composto pelos irmãos submissos. Nesse
sentido, ao preparar e dividir o kava, a sociedade tonga recria e supera as tensões
presentes em seu cotidiano, retratadas na cerimônia em todos os seus detalhes.
Langdon (2001), por sua vez, descreve o ritual realizado na festa do kiki,
também conhecida como “farra dos índios”, feito pelos índios Kaingáng, da região sul
do Brasil, na qual a cachaça é utilizada na celebração das relações entre os vivos e os
mortos e entre as duas metades em que se divide esta sociedade. Para a autora:
O rito de beber pode fazer parte da expressão da própria sociedade, de
sua manifestação frente ao divino e a consciência coletiva [...] O rito
liga o grupo com o ciclo anual da natureza, sua mitologia, e as mortes
que aconteceram no período [compreendido] desde o último Kiki [até
o atual]. Ele é marcado por vários momentos rituais: tombar a árvore
do pinhão e fazer o cocho; preparar a bebida kiki, feita
tradicionalmente com mel, para sua fermentação na concha; e realizar
três noites de fogo, finalizando com uma viagem ao cemitério, na qual
cada metade do grupo reza sobre os túmulos dos mortos da outra
metade. Na volta, a concha, que estava coberta durante várias semanas
para fermentação, é aberta, e a comunidade festeja até que termina a
bebida [...] Hoje em dia, a cachaça acompanha quase todas as
atividades do rito e também é colocada junto ao mel na concha,
fazendo o rito ter a aparência de uma grande bebedeira. (2001: 85-86).
Para o observador que não entende o significado simbólico do rito, atingir um
estado de “embriaguez” parece ser a razão central de sua realização. Porém, o ato de
beber é aqui submetido à intenção principal dos rituais, que é a de solidificar os laços
35
sociais e, assim, reafirmar a identidade étnica do grupo através da relação com outros
grupos, com os mortos e com a natureza (Langdon, 2001:84-85).
Esses estudos demonstram a maneira como o ato de beber pode ser
coletivamente construído, submetido a regras fundadas no princípio da reciprocidade.
Cada sociedade constrói as regras que vão balizar o uso de bebidas alcoólicas,
regulando seus modos de produção e ingestão. Com efeito, o mesmo acontece entre nós,
quando bebemos com os amigos, após o trabalho ou em ocasiões festivas. Nesses
momentos, reafirma-se o princípio de reciprocidade, através da atualização de um
conjunto de regras e códigos que marcam, ao mesmo tempo, a periodização do tempo e
a construção dos espaços de sociabilidade — trabalho/lazer e trabalho/casa —, nos
quais o consumo de bebidas alcoólicas é valorizado.
Mas, se o álcool é considerado entre nós uma “droga lícita”, cuja produção,
comércio e ingestão são permitidas legalmente, seu uso exige um aprendizado dos
códigos e regras definidoras do “bem-beber”. Como sublinha Neves (2004: 8): “para
que as bebidas sejam acessíveis, é fundamental que se conheça o manual de produção,
de uso e ingestão”. O ato de beber, então, não pode ser considerado isoladamente, mas é
parte integrante das formas de controle social, que definem as regras sob as quais o uso
do álcool é considerado aceitável e estimulado.
Não é fortuito, então, que, na sociedade ocidental moderna, os bares sejam
considerados como um “contexto possível” para o uso do álcool, uma vez que no seu
interior o uso de bebidas alcoólicas opera como uma espécie de “lubrificante social”
(Neves, 2004: 8-9), possibilitando a interação entre os seus freqüentadores, favorecendo
a construção de redes de relações sociais, nas quais os bebedores criam vínculos a partir
de regras que definem o ritmo de uma alcoolização controlada.
É exatamente isso o que apresenta Dufour (1989) em seu trabalho sobre o
consumo de álcool na região de Provence, na França, no qual assinala que o café —
local onde os homens se reúnem, após uma jornada de trabalho, para o consumo de
bebidas alcoólicas — é o espaço da construção de uma sociabilidade, sobretudo,
masculina; um lugar privilegiado para as trocas e libações cotidianas. Para a autora
(1989: 81-83 – trad. minha): “através das maneiras de beber se desenham maneiras de
ser e de conceber suas relações com os outros”, o que faz do espaço do café uma espécie
de “micro-sociedade” . Logo,
36
o café não é apenas este espaço de reunião, de informação e
derecreação visível desde o início, mas também um lugar de iniciação
e de transmissão de normas coletivas, de onde se descola uma certa
maneira de ser em grupo, de ser entre homens e de ser um homem.
O bebedor deve respeitar, portanto, as regras de convivência que estabelecem o
modo do “bem beber”. Como sublinha Dufour (1989: 83 – trad. minha): “as maneiras
de beber — que obedecem a códigos muito complexos, moduláveis conforme o status
dos atores e as circunstâncias — são uma das aquisições indispensáveis à inserção na
sociedade masculina”, tanto para os estranhos como para os jovens.
Entre os antropólogos brasileiros, Machado da Silva (1978) ofereceu uma
contribuição pioneira ao analisar a produção de significados atribuídos ao “botequim”,
entendido tanto como espaço social consagrado ao uso de bebidas alcoólicas como o
local onde se constroem modos de percepção e controle sobre a alcoolização
considerada excessiva. Para ele:
Existe um tipo de freqüentador [do bar], este sim, bastante
marginalizado. Trata-se do indivíduo nos últimos estágios do
alcoolismo, que está invariavelmente muito embriagado. Nesses casos,
o freguês é de tal modo ridicularizado, as brincadeiras de que é vítima
são tão ofensivas que, na maioria das vezes, o indivíduo permanece no
botequim apenas o tempo necessário para consumir em cachaça o
pouco dinheiro que tem. E mesmo isto, quando a embriaguez não é
total, pois nesses casos o proprietário ou gerente se recusa a lhe
vender qualquer bebida (1978: 88).
Magnani (2003) também oferece uma rica etnografia sobre as formas de lazer na
periferia de São Paulo, na qual destaca o papel dos bares, local onde se desenvolve uma
sociabilidade, sobretudo, entre os homens nos meios populares:
Os bares são antes de mais nada lugares de encontro nos fins de
semana ou após a jornada de trabalho, quando a sinuca, o dominó ou
simplesmente o “mé”
24
ensejam longas discussões sobre a última
partida de futebol na vila e o desempenho de cada jogador, propiciam
a troca de informações sobre algum “trampo”, documentação,
qualidade e preço de materiais para construção etc. (2003: 115).
Guedes (1997) ressalta, por sua vez, o papel do bar como espaço central para a
produção e reprodução das relações sociais entre homens/trabalhadores. No espaço
24
“Corruptela de mel, que significa cachaça, aperitivo” (Magnani, 2003: 115 – nota 5).
37
social do bar, definem-se regras tácitas de conduta, que estabelecem formas de controle
sobre o consumo de bebidas alcoólicas entre seus freqüentadores. Com efeito, o
“autocontrole” é considerado um comportamento esperado dos homens que bebem. Não
por acaso, aqueles que se excedem nas doses ingeridas, são, em geral, discriminados e
marginalizados.
Neves (2004) também sublinha o papel dos bares na definição das regras do
“bem-beber”:
No bar, templo consagrado à alcoolização controlada, a bebida
estabelece entre os homens um jogo de trocas e vínculos sociais. Por
isso, o anonimato e o isolamento são provocativos da desconfiança, da
suspeita e da exclusão das redes de relações que se instituem entre
fregueses e donos de bar. A desvalorização do homem que
recorrentemente aí bebe sozinho evidencia a rejeição ao desvio
comportamental: o rompimento com as reciprocidades estabelecidas
nos bares (2004: 9).
Beber sozinho, separado dos amigos, significa uma recusa em ratificar os elos de
sociabilidade, e é considerado um “desvio”; uma ruptura da regra do “bem beber”, que
isola o bebedor, deslocando-o para a condição do “bêbado”, daquele que se nega
relacionar-se com o Outro. O estado de “embriaguez” indica, então, um comportamento
que rompe com as regras tácitas que regulam os espaços de sociabilidade construídos
em torno do ato de beber
25
.
Nesse sentido, a ruptura das regras tácitas do bem beber pode colocar o bebedor
em uma situação de marginalidade social e exclusão, tal como acontece, por exemplo,
com aqueles que fazem um uso considerado abusivo do álcool. Como sublinha
Ehrenberg (1991):
O bêbado não é aquele que consome muito, abusa da bebida, mas
aquele que se alcooliza sozinho, não se liga aos rituais coletivos e
termina por se excluir do grupo antes de conhecer a decadência física.
Não é a desmesura que conta, mas a relação social na qual ele se
inscreve. Em suma, o bêbado é aquele que, buscando a embriaguez
sem o laço social, se droga com o álcool (1991: 11 – grifos do original
– trad. minha).
25
É nesse sentido que a embriaguez, como lembra Dufour (1989: 83 – trad. minha): “não se mede pelas
quantidades de álcool ingeridas, mas pela qualidade dos comportamentos que ela suscita”.
38
O consumo de álcool passa a ser considerado um problema a partir do momento
em que a bebida deixa de operar como um mediador simbólico das relações sociais.
Isolado, o bebedor passa a ser o alvo de discriminações e resta estigmatizado. Com
efeito, o álcool é o mediador simbólico que opera tanto como elemento de integração
como de separação. Assim, como o sublinha Bernand (2000):
As bebidas alcoólicas reúnem propriedades simbólicas que pertencem
a dois registros distintos: aquele dos líquidos e aquele da embriaguez.
É justamente a conjunção dessas duas ordens que confere às bebidas
inebriantes sua singularidade e sua permanência através das idades.
Compreender essas qualidades implica explorar esta dupla relação que
une o álcool aos fluídos vitais, de uma parte, e ao delírio passageiro,
de outra parte (2000: 20 – trad. minha).
Nessa linha, o uso de álcool é considerado lícito, desde que se traduza em uma
não embriaguez ou em uma embriaguez controlada, isto é, aquela na qual o bebedor não
perde o controle sobre suas ações. É assim que as formas de compreensão do uso do
álcool e do alcoolismo podem oscilar, retomando uma expressão de Neves (2004), entre
a acusação e o diagnóstico ou, dito de outro modo, entre o “desvio” e a “doença”,
dependendo dos contextos em que se efetiva ou se nega seu consumo.
Ora, é na França e nos Estados Unidos, no final do século XIX e no início do
século XX, que vai ser travado um debate intenso e fundamental, envolvendo diversos
atores sociais, entre os quais escritores, cientistas e religiosos, em torno do consumo
considerado excessivo de bebidas alcoólicas, para a definição de formas de controle
sobre o uso do álcool e, particularmente, sobre os bebedores.
Entre os movimentos sociais que mais se destacaram no combate à alcoolização
considerada excessiva e às suas conseqüências orgânicas e morais, encontram-se os
chamados movimentos de temperança. No interior dessas associações foram forjadas
concepções marcantes e, às vezes, contraditórias, sobre o consumo de bebidas
alcoólicas; e, sobretudo, uma imagem específica do bebedor, particularmente daquele
que faz um uso considerado “abusivo” da bebida alcoólica, sendo visto ora como um
“desviante”, ora como um “doente”.
É no bojo dessa intensa polêmica que vão se desenvolver, de um lado, formas de
controle social sobre o ato de beber e o bebedor e, de outro, a concepção do alcoolismo
entendido como uma “doença crônica e fatal”, um estado de dependência que impede o
alcoólico de controlar as doses ingeridas, e que exige um autocontrole para sua
39
superação. Tratar, então, da “doença alcoólica” ou da “dependência do álcool” significa
falar das importantes transformações que sintetizaram uma verdadeira mudança de
paradigma
26
nas idéias formuladas em torno do álcool, do ato de beber, do alcoolismo e,
principalmente, sobre o bebedor, notadamente sobre aquele que faz um uso considerado
“abusivo” da bebida alcoólica.
É isso que analisaremos na seqüência, a partir das leituras feitas sobre o álcool e
o alcoolismo na sociedade francesa e norte-americana e sobre suas repercussões na
sociedade brasileira para, em seguida, delinearmos os contornos da noção de pessoa
elaborada pelo modelo de A.A., enfocando possíveis contrastes com o campo
ideológico da modernidade.
2.1 Um “fléau” social
A partir da segunda metade do século XIX, os efeitos do álcool sobre o
organismo começaram a chamar a atenção das autoridades médicas e sanitárias
francesas (Marrus, 1978: 288-289). Todavia, os médicos daquela época não estavam
propriamente interessados na “doença do alcoolismo”, mas sim nas conseqüências
provocadas pelo beber considerado excessivo, isto é, pela “embriaguez”
27
.
Nesse momento, a sociedade francesa vai desenvolver uma maneira muito
particular de compreensão do beber considerado abusivo, que será considerado pelas
autoridades sanitárias um verdadeiro “fléau”, isto é, um verdadeiro flagelo social,
responsável pela degeneração, sobretudo, do homem das classes populares. Alinhados
26
Entendo “paradigma” no sentido que Thomas Kuhn dá a esse termo: “considero ‘paradigma’ as
realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e
soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (Kuhn, 2000: 13).
27
A idéia de uma doença do alcoolismo surge na Europa a partir das pesquisas pioneiras do médico sueco
Magnus Huss, em 1852. Como sublinha Nourrisson (1990: 178 – trad. minha): “Magnus Huss (1807-
1890), médico-chefe do hospital Séraphin d’Upsala, a partir de um estudo clínico executado em um país
devastado pela água da vida de batata, definiu uma nova doença na nosografia de sua época, que ele
colocou entre as doenças por envenenamento, do mesmo modo que o saturnismo ou o ergotismo, e à qual
ele deu o nome de alcoolismo crônico”. Todavia, a idéia de uma doença alcoólica, entendida como
dependência do álcool, só tardiamente, por volta dos anos de 1950, vai se consolidar na França. Como
sublinha Cerclé (1998 : 24-25 – trad. minha ): “Os anos de 1950 viram a oficialização da luta contra o
alcoolismo (criação do Alto comitê de estudo e de informação sobre o alcoolismo, 1954-1989), mas
também a emergência do papel de clínicos, que se fixam com o objetivo de cuidar dos homens,
organizando em cada departamento dispensários e as primeiras curas de desintoxicação [por uso] de
disufirame, nome genérico de um medicamento aversivo ao álcool. A noção de cura torna-se fundamental
a partir daqueles anos”.
40
sob a ótica do higienismo, uma teoria sócio-médica que pretendia implantar uma
reforma social a partir da adoção de princípios de higiene tanto do ponto de vista moral
quanto médico (Nourrisson, 1990: 187), as autoridades médicas e sanitárias se voltam
contra a “embriaguez”, que é considerada como o “vício” que degenera o homem das
camadas populares e, por isso, deve ser combatido. Com isso, buscavam introduzir
mudanças nos hábitos e costumes, particularmente, das classes trabalhadoras,
consideradas “classes inferiores”
28
.
As idéias higienistas sobre os efeitos deletérios do álcool influenciaram de
maneira decisiva corações e mentes da sociedade francesa. Um exemplo dessa
influência é o romance L’Assommoir, do escritor Émile Zola, publicado em 1876-77, no
auge da divulgação das idéias higienistas na França. A descrição da degradação de uma
família operária, devido ao consumo do álcool, ajudou a consolidar a idéia de
degeneração associada ao beber excessivo.
Com efeito, se a obra de Zola causou escândalo, particularmente, na esquerda
política, pois colocava em dúvida a tese do sufrágio universal ao mostrar a fragilidade
das classes trabalhadoras (Marrus, 1978: 289), também ajudou a consagrar uma imagem
negativa do bebedor, sobretudo a daquele que bebe excessivamente, fazendo coro,
também, com aqueles que advogavam em favor da tese da “degenerescência
alcoólica”
29
.
Como bem mostrou Cerclé (1998: 22), é a associação entre a noção de
embriaguez, entendida como fléau social, e a tese da “degenerescência alcoólica” que
28
Em seu livro, Nourrisson descreve vários trabalhos dos médicos higienistas sobre problemas causados
pelo uso abusivo do álcool , entre os quais cita: “O médico Villermé, em estudo sobre os trabalhadores do
setor têxtil, determina os critérios de apreensão do fenômeno alcoólico. Sua severa constatação será
retomada ulteriormente e integralmente pelos movimentos antialcoólicos. Para ele, a embriaguez torna o
trabalhador preguiçoso, jogador, falante, turbulento; ela o degrada, o bestializa, arruína sua saúde, abrevia
sua vida, destrói seus costumes, agita, escandaliza a sociedade e impulsiona o crime. Pode-se afirmar, a
embriaguez [...] é o maior flagelo das classes trabalhadoras.” (Nourrisson, 1990: 187 – trad. minha).
29
Como sublinha Nourrisson, a tese da “degenerescência alcoólica” está presente na obra do médico
Benedict-Augustin Morel, publicada em 1857, cujo título é: Traité des dégénérescences physiques,
intellectuelles et morales de la race humaine. “Para Morel, o homem teria sido vítima de uma degradação
progressiva de suas qualidades, da qual a alienação representa o termo. [...] A solidariedade das causas
degenerativas não impede, entretanto, Morel de dedicar ao alcoolismo um lugar privilegiado. Mais que o
meio, o solo, o clima, a miséria ou a vida urbana, o alcoolismo parece um fato concreto, compreensível,
visível a todos. [...] Morel insiste sobre a noção da hérodo-degenerescência: ele reserva um capítulo
inteiro de sua obra à degenerescência hereditária nas crianças nascidas de pais dominados pelo alcoolismo
crônico [...] Singularmente, o alcoolismo dos parentes provoca uma degenerescência rápida e agravada
nas crianças [...] Esta teoria da degenerescência alcoólica conhece, portanto, um sucesso que ultrapassa
largamente os muros dos asilos. Ela seduz numerosos escritores, à direita como à esquerda, de Leon
Daudet à Émile Zola” (Nourrisson, 1990: 212-216 – trad. minha).
41
vai consolidar a idéia de que as classes trabalhadoras estariam condenadas por uma
espécie de hereditariedade mórbida
30
, de modo a justificar toda a sorte de controles
sociais que incidiriam sobre os mais pobres. Como sublinha Norrisson (1990: 188 –
trad. minha):
A embriaguez, mesmo quando ela era entendida de um ponto de vista
médico como o alcoolismo, não era outra coisa para os higienistas que
um vício que deveria ser vigorosamente combatido em nome da moral
e da saúde pública. Culpados de desregrar a sociedade, os jogadores e
bebedores são seres gangrenados; eles têm lama no lugar do coração.
Surge, nesse momento, movida pelas idéias higienistas, uma representação
profundamente negativa do bebedor excessivo, que vive, por isso, num estado de
embriaguez. Nas palavras de Nourrisson (1990: 196 – trad. minha),
O bêbado traz com ele a imagem de preguiçoso, daquele que gasta as
economias poupadas na bebida, de preferência a comprar seu pão, e
daquele cujos familiares suam em seu lugar. O homem que bebe, diz-
se, é um homem pouco ocupado e que insiste em provocar os outros a
brindar com ele.
As representações formuladas naquela época associavam o bebedor a um ser
“anti-social” que provoca a “desordem”; era, portanto, um “desviante” e um “perigo” a
ser combatido. Outra importante imagem, que vai marcar profundamente as
representações sobre o bebedor nos séculos futuros, é aquela que associa o bebedor à
figura do “criminoso”. O elo álcool-criminalidade é uma constante nas representações
sobre a violência presentes na França do século XIX, e será a partir da utilização de uma
rigorosa metodologia estatística que, supostamente, se encontrará a prova que faltava
para confirmar da relação alcoolização-violência
31
.
30
A representação do alcoolismo como uma doença transmissível geneticamente ainda continua muito
viva, sobretudo, nas classes populares. Durante a pesquisa etnográfica, os membros do grupo Sapopemba
de A.A., em alguns momentos, sugeriam, em suas narrativas, que eram filhos de pais e mães alcoólatras,
o que, talvez, explicasse o fato de também serem “doentes alcoólicos”.
31
Como explica Nourrisson (1990 : 203 – trad. minha): “Falta a todos os autores a prova decisiva para
confirmar que o desenvolvimento do alcoolismo provoca uma progressão da criminalidade: a estatística.
Enfim, uma circular de 22 de dezembro de 1906 vem sanar esta falta: o novo ministro da justiça, Louis
Barthou, ordena o emprego de fichas individuais para todos os culpados ou preventivamente detidos por
infrações aparentemente devidas a seu alcoolismo. As cifras permitem mensurar as condições de exatidão
desconhecidas até então, a ação do álcool sobre a produção mesma do crime e determinar, ao menos, a
relação dos alcoólicos e dos bêbados perseguidos com o efeito das circunstâncias pessoais que as
caracterizam”.
42
Mas, talvez, nenhuma outra representação tenha sido tão forte, nesse período,
quanto a que se derivou dos acontecimentos da Comuna de Paris de 1878. Após as
agitadas jornadas revolucionárias, há um recrudescimento das críticas antialcoólicas,
que buscam associar a imagem dos revolucionários ao consumo excessivo do álcool,
exigindo, com isso, uma luta contra a intemperança.
O século XIX é um século particularmente agitado. A lembrança da
“grande revolução” não cessa de obsedar aqueles que se reivindicam
como seus defensores. Estes últimos se liberaram muito
freqüentemente a uma revisão das jornadas revolucionárias com o
filtro do antialcoolismo [...] “A moralização das massas” torna-se um
objetivo prioritário, uma medida conservadora da ordem pública. Em
virtude disso, a luta contra a intemperança é muito cedo percebida
como um meio privilegiado de erradicar da consciência popular os
fermentos da revolução que aí se encontram (Nourrisson, 1990: 204 –
trad. minha).
A luta contra a intemperança, promovida durante esse furor antialcoólico contra-
revolucionário, vai consagrar a relação entre a temperança e a questão social. Na França
dos tempos revolucionários, lutar contra o álcool é uma questão social que implica a
construção de uma ordem moral capaz de controlar os supostos excessos. Ora, essa luta
é, sobretudo, uma luta política, que visa disciplinar os corpos e os espíritos
revolucionários, em oposição à suposta desordem moral causada pelo consumo de
álcool.
É assim que, no bojo dessa luta antialcoólica, surgem as primeiras sociedades
francesas de temperança. Em 1870, é fundada a Société Française de Tempérance
(STF), que será o embrião da luta antialcoólica na França. Entretanto, formada
prioritariamente por membros da elite intelectual, a STF em breve seria substituída por
uma nova associação mais aberta e com forte apelo popular: a Union Française
Antialcoolique (UFA), fundada em 1891 pelo Dr. Paul-Maurice Legrain
32
. De todos os
que se associavam, a UFA exigia, ao mesmo tempo, a abstinência de todas bebidas
destiladas (licores e absinto) e um uso “moderado” das bebidas fermentadas (cerveja,
cidra e vinho). As ações da UFA eram guiadas pelos preceitos: democracia,
32
“A sociedade [UFA] organiza muitas centenas de seções em toda a França e publica um periódico
mensal, O Álcool, como suplemento de um jornal para crianças. Na virada do século, ela contava com
40.000 membros efetivos. O apogeu do movimento antialcoólico coincide com o Congresso Internacional
contra o Alcoolismo, que ocorre em Paris em 1899” (Marrus, 1978: 292 – trad. minha).
43
descentralização e liberdade de consciência (Nourrisson, 1990: 228).
Outra importante associação antialcoólica é a Croix Blue, fundada em 1877 e
ligada ao protestantismo, considerada a primeira associação de ex-bebedores da
França
33
. A Croix Bleue é uma entidade abstinente e confessional, engajada na “cura”
da doença alcoólica, e acredita que o alcoolismo é uma “doença” cujas causas são de
ordem social, política e econômica. Logo, a ação antialcoólica é conduzida tanto contra
os poderes públicos como através de ações educativas, cujo objetivo é sensibilizar as
autoridades e a opinião pública sobre o “grave problema” do alcoolismo
34
(Jovelin e
Oreskovik, 2002: 132-133).
Apesar das diferenças quanto a até que ponto os bebedores devam se abster do
consumo de bebidas alcoólicas — enquanto a UFA pregava a abstinência total somente
das bebidas destiladas, a Croix Bleue pregava a abstinência total do uso de álcool —,
pode-se dizer que, na sociedade francesa, a luta contra a intemperança aponta para uma
concepção sobre a doença alcoolismo na qual as suas causas são de ordem social. O
higienismo elabora, portanto, uma teoria da doença exógena, já que as causas do
alcoolismo são exteriores ao indivíduo. Como conseqüência, a estratégia terapêutica
para dar conta do alcoolismo exigirá uma alteração do meio social em que vive o
alcoólico.
Um exemplo disso também está presente na associação francesa de ex-
bebedores Vie Libre, fundada em 1953 e até hoje um dos mais atuantes movimentos
antialcoólicos, que se define como “um movimento de bebedores curados, abstinentes
voluntários e de simpatizantes, trabalhando contra o alcoolismo, contra suas causas e
33
A associação Croix Bleue continua ativa até os dias atuais, lutando pela “cura” dos doentes alcoólicos.
Como explicam Jovelin e Oreskovic (2002: 131 – trad. minha): “A sociedade francesa Croix Bleue existe
desde 1877 e foi reconhecida de utilidade pública em 1922. Seus objetivos são essencialmente: contribuir
para a cura dos doentes alcoólicos, informar com um objetivo preventivo, incitar os poderes públicos a
tomar medidas concernentes à produção, à importação do álcool e à publicidade”. É possível estabelecer
uma comparação interessante entre a associação Croix Bleue e a irmandade dos Alcoólicos Anônimos.
Com efeito, embora ambas as associações promovam reuniões entre seus membros, que se ajudam
mutuamente, a associação Croix Bleue acredita que alcoolismo é uma doença que tem cura; já para os
AAs o alcoolismo é uma “doença incurável, progressiva e fatal”. Outro ponto importante que opõe as
duas associações de ex-bebedores é que, enquanto a Croix Bleue, embora seja independente das
organizações médicas políticas e sindicais, mantém um intenso debate público com os poderes públicos
na luta contra o alcoolismo, a AAs, como observa sua décima tradição: “não opina sobre questões alheias
à irmandade”, jamais se envolvendo em controvérsias públicas sobre o alcoolismo.
34
Movida por uma espécie de concorrência no campo religioso da luta antialcoólica, a igreja católica
também se engaja na luta contra o alcoolismo, através da associação Croix Blanche. Fundada em 1901, a
associação de ex-bebedores Croix Blanche é também abstinente e confessional, mas difere de sua co-irmã
protestante ao exigir que seus associados se convertam ao catolicismo.
44
pela promoção dos ex-bebedores” (Fainzang, 1996: 17 – trad. minha). Para Vie Libre, o
alcoolismo é uma doença cujas causas são sociais — a miséria e o desemprego etc. —,
atingindo principalmente os homens das camadas populares e exigindo um engajamento
na luta social e política para sua superação.
Ou seja, a sociedade é a responsável pelo alcoolismo, de maneira que o álcool é,
sobretudo, um instrumento de luta política, utilizado pelos “inimigos” das classes
trabalhadoras para corrompê-las e aliená-las (Fainzang, 1996: 68), além de falsear e
ajudar a encobrir a “verdadeira natureza” do homem. Nessa perspectiva, o alcoolismo
não é entendido como o fruto de uma “degenerescência moral”, como queria o
higienismo, mas traduz-se como a face de um mal cuja origem está na decadência social
em que vivem as camadas populares, a qual compromete, sobretudo, o ser humano
entendido como um homem livre, devendo, por isso, ser combatida e transformada.
2.1.1 As campanhas antialcoólicas no Brasil
O debate antialcoólico vivido na sociedade francesa teve grande repercussão e
influência no Brasil. Matos (2000) mostra que, nas primeiras décadas do século XX,
notadamente na cidade de São Paulo, ocorre uma intensa divulgação de campanhas
oficiais contra o uso do álcool, voltadas, sobretudo, para as classes populares, que
ajudariam a definir os contornos de uma representação específica sobre o álcool, o
alcoolismo e também sobre o bebedor, que faz um uso das bebidas alcoólicas
considerado excessivo.
O início desse século é marcado por uma grande expansão urbana na cidade de
São Paulo, que se torna um grande centro capitalista, no bojo do sucesso e das crises da
sociedade cafeeira. Como conseqüência das intempéries sazonais, responsáveis pela
oscilação no preço do café e do incremento da imigração, em proporções superiores às
possibilidades de emprego, a cidade de São Paulo assiste a um grande crescimento de
sua população, que acarreta graves problemas sociais.
Tudo se transforma rapidamente. Demolições e construções ditam o ritmo do
progresso, que vai redefinir o espaço urbano, marcando de forma definitiva o perfil da
metrópole. Novos bairros são criados, sobretudo, para atender às necessidades dos
novos moradores: os operários, que são, em sua maioria, imigrantes que vêm à cidade
45
em busca de novas oportunidades, redesenhando o mapa da cidade e definindo uma
nova circularidade, marcada por redes de relações que criam laços de solidariedade e
novas estratégias de sobrevivência
35
.
É nesse cenário que vai atuar um personagem central para a realização dos
sonhos modernizantes das elites brasileiras: o médico higienista e sanitarista
36
. A ação
do higienismo não se concentrará apenas em São Paulo. Exemplares, nesse sentido, são
os acontecimentos que resultaram na chamada “revolta da vacina”, que ocorreu na
cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, no ano de 1904. Os acontecimentos que
redundaram na revolta tiveram como pretexto a campanha de vacinação em massa
contra a varíola, desencadeada pela presidência da república e conduzida pelo médico
sanitarista Oswaldo Cruz. Como expõe Sevcenko (1984), a revolta também foi uma
reação contra uma política que, sob a égide do higienismo, visava estabelecer formas de
controle sobre as massas populares, alterando a geografia urbana da cidade, através de
uma reforma que visava à eliminação de bairros populares inteiros.
Nessa perspectiva, a exemplo do que ocorre na França, o discurso médico que
atua na sociedade brasileira também ordena e classifica as coisas e as pessoas, definindo
os perfis considerados indesejáveis, entre os quais destaca-se o do alcoólatra.
Nesse processo, os médicos assumiram vários papéis: como
higienistas e sanitaristas, combateram o alcoolismo com campanhas e
ações diversificadas; como legistas, discutiram as responsabilidades
dos alcoólatras e a relação álcool-violência-crime; também nos
hospitais e manicômios procuraram aperfeiçoar tratamentos para os
alcoólatras, além de lutar por instituições especiais para abrigá-los.
Esses papéis, algumas vezes, colidiam, gerando polêmicas, tensões e
diferentes interpretações. Nesse quadro, o papel dos médicos e
higienistas era de importância vital, já que consideravam o País na sua
vocação para o “progresso e para a civilização” (Matos, 2000: 27).
35
“A dinamização do processo de crescimento da cidade de São Paulo intensifica-se; a partir dos anos 20;
pretendia-se dar à cidade a aparência de uma metrópole moderna, civilizada, refletindo a riqueza
acumulada pela cafeicultura e pela indústria. Novas avenidas foram abertas, ricas residências construídas,
projetos de vilas operárias implementados, ações repressivas empreendidas contra os cortiços; procurava-
se isolar e afastar a pobreza urbana, considerada perigosa, particularmente depois das intensas
manifestações operárias e populares dos anos 1917-19” (Matos, 2000: 24-25).
36
Nas palavras de Matos, fica claro o papel de agente transformador do médico higienista: “Detentores do
monopólio do ‘conhecimento racional e cientifico’, os médicos se incumbem de indicar como e quando
agir, interceder e sanar. A intervenção médica foi concreta e continuada, tendo no higienismo uma das
bases de sua doutrina, e criando todo um conjunto de prescrições que deveriam orientar a vida. Regras de
higiene na cidade, no trabalho, no comércio de alimentos, no domicílio, na família e nos corpos, costumes
e hábitos, alimentação, cuidados com o corpo, prazeres permitidos e interditos, deveria seguir um
parâmetro: o médico” (Matos, 2000: 27).
46
O alcoolismo era considerado, sobretudo, uma patologia social, fundamento das
preocupações sócio-higiênicas do discurso médico. Para combatê-lo, usava-se um
“remédio” profilático, considerado eficaz: as campanhas antialcoólicas, voltadas,
sobretudo, para as classes populares, consideradas as mais vulneráveis ao mal, uma vez
que somente através da ação contundente sobre os “hábitos, o meio e a educação” seria
possível “evitar o aparecimento e a difusão do alcoolismo” (Matos, 2000: 29).
Desse modo, o movimento antialcoólico brasileiro se desenvolve, nas primeiras
décadas do século XX, no bojo do higienismo, para o qual a causa do alcoolismo se
situa no exterior: é o meio social, no qual vivem os pobres, que facilitaria seu
aparecimento e a sua difusão.
Assim, como destaca Matos, várias imagens negativas foram associadas ao
alcoolismo: “o discurso das campanhas era incisivo, identificando o alcoolismo com
‘flagelo’, ‘praga social’, ‘mal social’, ‘demônio da humanidade’, ‘veneno’, ‘gangrena
social’, ‘satânico vício’” (Matos, 2000: 29).
Todas essas representações associadas ao alcoolismo sugerem que, no Brasil, se
desenvolve uma concepção muito parecida com a da França: o alcoolismo é entendido,
sobretudo, como um problema cujas causas são sociais. Algumas idéias presentes no
debate travado na sociedade francesa também encontrarão na sociedade brasileira um
solo fértil para proliferarem, tais como, por exemplo, a tese do Dr. Morel sobre a
“degenerescência alcoólica”
37
. O objetivo era, como explica Matos, assegurar a
“preservação da família”. Por isso, em seu programa de combate ao alcoolismo:
Apareciam a chamada “eugenia positiva”, baseada na educação física
e moral, e, dentro dela, as campanhas antialcoólicas. A eugenia
preventiva propunha fazer profilaxia contra a decadência da raça,
tendo entre seus focos a luta antialcoólica. A eugenia seletiva tinha
por finalidade a restrição do nascimento de indivíduos degenerados e,
nesse sentido, pontuava o caráter hereditário e degenerativo do
alcoolismo (Matos, 2000: 49).
Em meio a uma verdadeira trama discursiva, elaborada nas teias do higienismo,
o debate antialcoólico no Brasil afirmará uma imagem profundamente negativa do
bebedor. “Um ser degenerado”: é assim que se vão se delinear os contornos da imagem
37
Ver nota 29.
47
do bebedor, na qual ele estará associado àquele que vive num estado de marginalidade,
que beira a animalidade.
O uso do álcool apagava a inteligência no homem, acentuava a
mudança de caráter, provocando uma excitação fugaz, seguida de
abatimento nervoso, impulsões violentas, apatia considerável, cólera
intensa [...] O alcoólatra perdia toda a energia, noção de honra e de
conduta pública, do afeto pela família e amigos, das obrigações para a
sociedade, podendo caminhar para a obsessão, para o impulso
criminoso, além dos males que deixava para a prole (Matos, 2000:
61).
Em nosso país, segue-se o modelo que foi praticado na França, de maneira que a
tradição higienista também se preocupa em assegurar o papel da família, denunciando
os riscos que corriam essa instituição devido ao alcoolismo.
É importante ressaltar que essas idéias não surgiram isoladamente, mas estavam
adequadas ao caldo de cultura positivista e cientificista presente naquela época. A nós
interessa, porém, acentuar a lógica que rege o discurso médico higienista de combate ao
alcoolismo e que faz dele um “problema social”. No Brasil do início do século XX,
elabora-se uma teoria do alcoolismo na qual ele é definido como um problema cujas
causas são exteriores ao indivíduo; e o bebedor nada mais é que um desviante, alguém
que ameaça a estabilidade da família e a reprodução da ordem social.
2.2 Uma “doença da vontade”
Enquanto na França a luta contra a intemperança foi movida pelas idéias
higienistas, ajudando a promover a concepção do alcoolismo entendido como um
problema social, nos EUA os debates sobre os efeitos deletérios do consumo
considerado excessivo de bebidas alcoólicas, freqüentemente, giravam em torno do
bebedor e de seu grau de responsabilidade no ato de beber.
A princípio, forja-se uma concepção pela qual o bebedor é inteiramente
responsável pela embriaguez. O núcleo dessa concepção, que influenciou de maneira
decisiva as sociedades de temperança, baseia-se numa controvérsia filosófica,
importante naquela época, sobre a distinção entre o desejo e a vontade. Assim,
numerosos eram aqueles que se recusavam a separar o apetite pelo álcool da vontade
consciente de beber bebidas alcoólicas. Entre os partidários dessa concepção,
48
encontrava-se o teólogo americano Jonathan Edwards, que pregava a responsabilidade
moral do “pecador” como bebedor intemperante. Crítico do filósofo inglês John Locke,
o teólogo americano recusava-se a aceitar o hiato entre o desejo e a vontade, afirmando
ser impossível ao homem desejar algo contra sua vontade. Edwards denuncia, então,
que, “ao escolher beber ou se embriagar, o bebedor escolhe seu prazer” (Levine, 1978:
150).
Como sublinha Levine (1978: 144 – trad. minha):
Durante o século XVII e na maior parte do XVIII, a assunção era a de
que as pessoas bebiam ou não bebiam porque elas desejavam, e não
porque elas seriam “obrigadas” a fazê-lo. No pensamento colonial, o
álcool não ficava fora do controle da vontade; ele era viciante, e a
bebedeira habitual não era entendida como uma doença.
Na visão colonial, não havia nada inerente ao indivíduo ou à bebida que
impedisse alguém de beber moderadamente. Beber era, em última instância, um ato
sobre o qual o indivíduo possuía controle; a dependência do álcool não era conhecida e
a embriaguez era entendida como uma escolha, embora pecaminosa, que alguns faziam
por prazer (Levine, 1978: 150). Com fundamento na idéia da responsabilidade do
bebedor, não se admite a noção do alcoolismo como doença.
Tratava-se, portanto, de um modelo moral para compreensão do ato de beber e,
sobretudo, do beber excessivo. A responsabilidade pelo ato de beber recaía sobre o
indivíduo, cabendo a ele cultivar a temperança para o bem do corpo, da alma e da
sociedade. A causa da embriaguez situava-se na fraqueza individual do pecador.
Com efeito, o modelo moral de compreensão do consumo considerado excessivo
de bebidas alcoólicas forjou uma teoria da alcoolização de perspectiva endógena
(Cerclé, 1988), de modo que o bebedor é considerado responsável por seu ato.
Ao longo do século XIX, assiste-se a importantes transformações na sociedade
norte-americana. Desde a revolução que conduziu à independência, haviam ocorrido
importantes modificações em sua organização social, notadamente com o surgimento da
oposição entre a aristocracia colonial e o chamado “homem comum”, o common man,
uma espécie de ancestral do self-made man norte-americano, que fazia parte de uma
classe média em franca expansão. Assiste-se também a uma verdadeira guerra religiosa,
palco em que vão se opor progressistas e conservadores, os liberais e os partidários das
idéias calvinistas.
49
É nesse contexto que o médico norte-americano Benjamin Rush organiza as
idéias correntes em sua época e, ao estudar os efeitos do álcool sobre o pensamento e o
corpo humano, elabora um modelo “médico-moral” para compreensão do beber
excessivo. Em 1786, ele redigirá o primeiro tratado científico consagrado aos estados de
“alcoolização crônica”, impulsionando uma mudança de paradigma na compreensão da
alcoolização excessiva (Cerclé, 1998: 16). Para Rush, os bebedores são “dependentes”
da bebida alcoólica e essa dependência se desenvolve de uma forma gradual e
progressiva. No modelo desenvolvido por esse médico, destacam-se quatro pontos
essenciais:
Primeiramente, ele identificou o agente causal — os licores —; em
segundo lugar, ele, esclarecidamente, descreveu as condições do
bebedor como uma perda de controle sobre o ato de beber — como
atividade compulsiva —; em terceiro, ele declarou esta condição como
doença; e, em quarto, ele prescreveu a total abstinência como o único
caminho para a cura do bebedor (Levine, 1978: 152 – trad. minha).
O uso de bebidas alcoólicas e, sobretudo, o beber excessivo passa a ser
concebido como “doença da vontade” (Levine, 1978: 152); uma espécie de doença
(desease) mental capaz de conduzir o indivíduo que se expõe ao consumo de bebidas
alcoólicas a um beber contínuo e, conseqüentemente, à “perda de controle” (loss of
control) sobre o consumo do álcool.
O modelo elaborado por Rush renova o entendimento sobre a alcoolização
excessiva, de modo que ela passa a ser compreendida como doença que está diretamente
ligada à ação da bebida alcoólica. Desse modo, elabora-se uma teoria da doença
alcoólica exógena, uma vez que a causa do alcoolismo situa-se nas propriedades
farmacológicas das bebidas alcoólicas. (Cerclé, 1998).
As teses sobre as relações entre o uso do álcool e a intemperança, a definição do
beber excessivo como uma “doença da vontade”, as conseqüências sociais e individuais
do uso do álcool e a prescrição da “abstinência” total para o tratamento da alcoolização
crônica passaram a compor o núcleo central da ideologia do movimento de temperança
50
do século XIX
38
.
Esse movimento teve um papel importante na construção de uma representação
do beber excessivo como “doença” e na redefinição da imagem do bebedor. Como
sublinha Levine (1978: 144 – trad. minha): “Durante todo o século XIX, as pessoas
associadas ao movimento de temperança se perguntavam se a embriaguez intemperante
ou o beber habitual eram uma doença ou uma conseqüência natural do uso moderado de
bebidas alcoólicas”.
Entre os grupos de ajuda mútua dirigidos ao combate da alcoolização excessiva
que se destacaram como parte do movimento de temperança, está a sociedade
Washingtoniana (1840), composta, na sua maior parte, por trabalhadores. Os
washingtonianos propunham a reabilitação de bebedores habituais a partir de votos
públicos de abstinência. Cada membro deveria expor publicamente seus problemas com
o uso do álcool e fazer um voto de abstinência, renunciando à bebida alcoólica.
O modelo desenvolvido por Rush, inspirador das sociedades de temperança,
baseia-se na cisão entre desejo e vontade, de modo que o bebedor não era considerado
inteiramente responsável por sua embriaguez. Os efeitos farmacológicos do álcool é que
conduziriam o bebedor à perda de controle sobre as doses ingeridas. Como sublinha
Levine (1978: 148 - trad. minha), “esta distinção é a mais importante do pensamento
moderno; ela está no coração do conceito de adicção”
39
. A representação do beber
excessivo como uma “doença da vontade”, isto é, como dependência, envolve uma
redefinição da imagem do bebedor, na qual a idéia de “perda de controle” sobre o álcool
passa a ser primordial.
38
Como sublinha Levine (1978: 153 – trad. minha): “O movimento cresceu lentamente; nos primeiros
anos do século, ainda havia uma resistência considerável, até mesmo entre os grupos de elite, à
necessidade de abstinência. Mas, em meados dos anos 1830, mais de meio milhão de pessoas haviam se
empenhado em não ingerir bebida alcoólica, e o Movimento de Temperança se comprometera firmemente
com a necessidade de total abstinência de todas as bebidas alcoólicas”.
39
“A partir do século XIX, termos como ‘opressivo’, ‘esmagador’ e ‘irresistível’ foram usados para
descrever o desejo do bêbado pela bebida alcoólica. No período colonial, porém, quase nunca estas
palavras eram empregadas. Ao contrário, as palavras mais usadas eram amor e afeto, termos raramente
adotados nos séculos XIX e XX. Na definição moderna de alcoolismo, o problema não é que os
alcoólatras gostem de se embebedar, mas que não o podem evitar — eles não conseguem se controlar.
Talvez detestem mesmo se embebedar, e só desejem beber moderamente ou ‘socialmente’. Na visão
tradicional, porém, o pecado do bêbado era o amor pelo ‘excesso’ de bebida, a ponto da embriaguez”
(Levine, 1978: 148 – trad. minha).
51
Entretanto, a concepção de que o beber excessivo era fruto da escolha individual
não desapareceu completamente. Na verdade, ela está integrada ao interior de um
intenso debate em torno dos limites entre o “livre arbítrio” e a “necessidade”, entre a
“vontade” e a “determinação”, que vai definir os contornos da representação, ao mesmo
tempo, do alcoolismo e do alcoólico como doente.
Como resultado de toda essa discussão, assiste-se, no final do século XIX, a uma
onda proibicionista do comércio de bebidas alcoólicas.
Na última década do século XIX, a ideologia da temperança começou
a se deslocar de sua grande inclinação reformista para uma
preocupação obsessiva pela proibição. A mais antiga organização e,
sobretudo, as fraternidades, declinaram [...] No princípio do século
XX, sob a liderança da Liga Antitaberna, todas as atividades se
tornaram secundárias ao esforço de proibição [...] Desse modo, a
campanha de proibição do princípio do século XX enfocou outros
efeitos maléficos do álcool: o papel da bebida alcoólica nos acidentes
industriais e ferroviários; seus efeitos nos negócios e na eficiência do
trabalhador; seu custo para os trabalhadores e suas famílias; o poder e
a riqueza do “monopólio da bebida alcoólica”; e sobretudo o papel do
saloon como um lugar que dava origem ao crime, à imoralidade, à
agitação de operários e à corrupção política. [...] O bêbado veio a ser
visto cada vez menos como vítima e cada vez mais como
simplesmente uma peste e uma ameaça (Levine, 1978: 161 – trad.
minha).
O auge desse movimento ocorreu com a aprovação pelo Congresso dos Estados
Unidos, através de emenda à Constituição, em 1920, da “Lei Seca”, que proibia a
fabricação e venda de bebidas alcoólicas em todo o país. Com isso, a noção de
dependência do álcool passa a ocupar um papel secundário na ideologia de temperança,
preocupada cada vez mais com os malefícios sociais causados pelo álcool.
A “redescoberta” do alcoolismo, entendido como uma doença “crônica e fatal”,
que provoca a “dependência em relação ao álcool”, só aconteceu nos anos de 1930 e
1940, através, de um lado, do programa de recuperação do alcoolismo desenvolvido
pelos Alcoólicos Anônimos e, de outro, das pesquisas conduzidas pelo Yale Center of
Alcohol, dirigidas por E.M. Jellinek (Cerclé, 1998: 19 ; Levine, 1978: 162; Soares,
1999: 249), ambos responsáveis por mais uma mudança de paradigma na compreensão
da doença alcoolismo.
Assiste-se, então, a um enfraquecimento do movimento proibicionista; e ao
desenvolvimento da concepção “restritiva” da dependência alcoólica (Cerclé, 1998: 19).
52
Dali em diante, o álcool poderia ser considerado uma droga socialmente aceitável,
domesticada e que, por razões desconhecidas, provocava a dependência somente em
algumas pessoas, que teriam uma “predisposição orgânica” para desenvolvê-la. A essas
pessoas, e somente a essas, caberia a abstinência total do consumo de bebida alcoólica,
como forma de tratamento.
2.3 O “mal” do alcoolismo e suas “causas”
A preocupação fundamental de A.A. é com a manutenção da sobriedade de seus
membros, que são considerados “doentes alcoólicos em recuperação” e devem praticar
abstinência em relação ao álcool. A abstinência atua, ao mesmo tempo, como princípio
terapêutico e como valor a orientar a reorganização pessoal e coletiva da vida de seus
membros.
Não há, no entanto, em sua literatura oficial, uma definição explícita sobre as
causas do alcoolismo
40
. Essa ênfase no investimento terapêutico e a ausência de um
discurso etiológico claro e explícito na doutrina levaram a sociologia e a psiquiatria a
negligenciarem o estudo da teoria da doença alcoólica e de sua relação com as
estratégias terapêuticas adotadas pelos membros de A.A. com vistas à sua
recuperação
41
. Seguindo essa linha interpretativa, Saliba (1982: 81-82 – trad. minha)
sublinha ainda que:
Em Alcoólicos Anônimos [...] a questão patológica ocupa pouco
lugar, ao menos em sua faceta etiológica, em comparação com a
importância atribuída à denúncia do estilo de vida do alcoólico e da
decadência provocada pela bebida, de uma parte, e das perspectivas de
ação que aporta seu programa de reabilitação, de outra parte. A
40
“O A.A. não se questiona sobre as causas de sua doença, não questiona se há diferenças entre
alcoolismo primário e alcoolismo secundário, não questiona se há alcoólatras que podem voltar a beber
socialmente, não questiona qual é o momento em que o alcoólatra deve parar de beber e, sobretudo, não
questiona jamais a eficácia de sua filosofia de recuperação” (Barros, 2001: 57).
41
Para o psiquiatra Saliba (1982), a ausência de um discurso etiológico em Alcoólicos Anônimos faz com
que a maior parte de seus intérpretes se limitem a descrever o programa de recuperação de A.A., em
detrimento de uma análise da teoria da doença alcoólica: “Rapidamente tenta-se seguir sobre seus passos,
abandona-se a linguagem teórica em favor de uma descrição, mais ou menos detalhada, de seu
funcionamento, de suas atividades, ou de seus programas de recuperação. Como no processo de
alcoolização em seus discursos, o gesto prima e toda ‘mentalização’ se desvanece atrás da ‘ação’” (1982:
81 – trad. minha).
53
questão do porquê os interessa pouco. É, com efeito, o problema do
como que retém sua intenção. Como se encaminha em direção a esta
sorte de “destino” que é, segundo eles, o alcoolismo [...]; e, sobretudo,
como é possível se recuperar.
Para grande parte dos autores, o programa de recuperação do alcoolismo de A.A.
é entendido, fundamentalmente, como um programa de ação. Segundo Saliba, os
Alcoólicos Anônimos funcionam como uma espécie de “modelo antipsiquiátrico”
(1982: 82), que estabelece o primado da ação sobre a explicação das causas do
alcoolismo. Em suma, desenvolvem um programa de tratamento do alcoolismo
seguindo um “modelo imitativo, a saber: aquele do bom exemplo” (1982: 82), que deve
ser seguido pelo alcoólico que deseje se recuperar.
Para Mäkelä (1996: 18 – trad. minha), nesse programa, “a noção de ação é
crucial. Para os AAs não faz sentido elaborar sobre as possíveis razões do alcoolismo. O
que é necessário é que o alcoólico deve agir”. O alcoólico “deve agir, não bebendo o
primeiro gole, praticando os passos e transmitido a mensagem de A.A. ao alcoólico que
ainda bebe”.
A ênfase no postulado da ação é uma influência direta das idéias da filosofia
pragmática de Willian James sobre o programa de Alcoólicos Anônimos.
Como
sublinha Mäkelä (1996: 118 – trad. minha), “o tema central do pragmatismo é que as
idéias devem ser avaliadas por suas conseqüências práticas e por suas relações com os
interesses humanos”. Ou seja, os Alcoólicos Anônimos constroem um sistema no
interior do qual a experiência do doente alcoólico desempenha um papel central (Barros,
2001: 87-93; Soares, 1999: 266).
Todavia, o fato de A.A. não formular um discurso explícito sobre as causas do
alcoolismo não quer dizer que não possamos delinear os contornos de sua teoria da
doença alcoólica, definindo a maneira como seus membros entendem a “doença do
alcoolismo” e, ao mesmo tempo, como identificam a si mesmos como “doentes
alcoólicos” e traçam uma estratégia terapêutica para seu mal. Ou seja, existe uma
relação entre a teoria da doença alcoólica e as práticas adotadas pelos AAs em vista de
sua recuperação.
É preciso lembrar que, apesar da ausência de um discurso etiológico explícito, os
membros das associações de ex-bebedores “têm na realidade quase sempre uma
explicação a propor sobre seu alcoolismo, mesmo que eles se recusem freqüentemente a
54
dizê-la quando são interrogados durante uma entrevista formal” (Fainzang, 1995: 73 –
trad. minha).
Exemplo disso é a narrativa de Sônia, 66 anos, viúva, 15 anos de A.A.,
aposentada, na qual ela afirma que é uma “doente alcoólica em recuperação”, pois
cresceu num ambiente onde todos os irmãos bebiam: “eu era a caçula entre sete irmãos
e fui crescendo, meus irmãos todos bebiam, então eu fui crescendo naquele ambiente de
cachaça; para mim era uma coisa normal beber” (reunião de recuperação aberta, 16
mar. 2002), sugerindo que é na esfera familiar que se “situam” as causas de sua doença.
Durante sua “partilha”, na reunião citada, Sônia também fez referências aos
“amigos de trabalho” que, na hora do almoço, a convidavam para beber uma dose: “eu
só bebia na hora do almoço, com aquelas amigas que eu arrumei lá na firma”, e sugere
ainda que o alcoolismo teria uma “causa” social, relacionada ao problema do
desemprego:
Depois do último emprego que eu tive, eu vim a saber, dentro de uma
sala de Alcoólicos Anônimos, que nessa doença a pessoa não pode
ficar desempregada e nem perder a família, eu vim [a] saber [disso]
aqui dentro.[...] depois que eu perdi esse emprego, com o dinheiro da
indenização eu falei: vou descansar um mês, depois eu continuo
trabalhando. Mas que nada, companheiros; aí eu não consegui
trabalhar mais. Eu vivia para beber. Já não conseguia trabalhar
mais, não conseguia arrumar [trabalho], porque na situação [em]
que eu fiquei, como eu ia procurar um emprego?
Jorge, por sua vez, narra a trajetória que resultou no desenvolvimento de seu
alcoolismo, enfatizando a presença dos “amigos”, que já na adolescência
compartilhavam da bebida alcoólica:
Meu alcoolismo começou muito cedo. Eu comecei mais ou menos na
faixa dos 15 anos, quando comecei a jogar futebol e, quando acabava
o jogo, eu e meus amigos, nós tínhamos o costume de parar num
barzinho. Ali, o nosso diretor pagava para gente guaraná e a
molecada tomava o que queria. E tinha alguns garotos, que bebiam
refrigerante com pinga. E um dia, eu experimentei essa bebida com
pinga. Então, a mistura entre o gosto do refrigerante e o efeito do
álcool, eu achei que a gente ficava legal, e eu comecei bebendo aos
poucos e fui me aprofundando naquilo. Depois disso, em todos os
domingos, quando a gente ia jogar bola, nós não víamos a hora que
acabasse o jogo, para ir ao bar. Nós ficávamos bebendo muito, e
quando saímos dali saímos alegres (Jorge, entrevista em 25 de julho
de 2002).
55
Ele também faz referências ao uso do álcool, no momento em que começou a
trabalhar, junto com o pai: “Eu comecei trabalhar em uma colchoaria, depois que meu
pai faleceu. Mas antes disso, eu trabalhei um bom tempo com meu pai, que bebia
bastante. Ele bebia até ficar bêbado, ao ponto dele não dormir com minha mãe. Eles
dormiam em camas separadas” (Jorge, entrevistado em 25 de julho de 2002). Em
seguida, também enfatiza a presença do álcool tanto no local de trabalho como em casa:
Aos 20 anos, eu comecei trabalhar em uma vidraria, e nesse local
entrava a cachaça. Aí era a cachaça pura. Nós tínhamos uma garrafa,
que gente tomava direto. Mas, ela não fazia muito efeito, pois com o
calor da vidraria, a gente suava muito, e o álcool era todo eliminado
do corpo. Aos 23 anos, eu me casei e aí já era outra responsabilidade.
Eu passei a maneirar com a bebida. Nessa época, eu queria ficar sem
a bebida, mas eu já não conseguia. Eu sentia vontade de beber, eu
tinha que tomar uma pinga. Eu bebia para almoçar, para jantar. Até
que nasceu minha primeira filha, mas eu continuei no mesmo embalo.
Depois disso, eu comecei a me aprofundar na bebida. Eu comecei a
trabalhar junto com um amigo, e ele bebia. A gente sempre parava
num bar para fazer um lanche e ele tomava uma pinga e eu tomava
outra. E eu comecei a beber junto com ele. Aí todas as vezes que eu
chegava em casa, eu chegava meio alegre. Até o dia que eu tive uma
discussão com esse meu amigo e parei de trabalhar com ele. Mas, eu
sentia falta do álcool. Aí, eu ia para o bar sozinho e continuava
bebendo (Jorge, entrevista em 25 de julho de 2002).
Fainzang (1989) aponta que os esquemas interpretativos das causas das
doenças podem ser expressos em quatro modelos, não excludentes entre si: a “auto-
acusação”, na qual o doente se julga responsável pela emergência ou pelo agravamento
de sua doença, devendo, portanto, responsabilizar-se pelo cuidado de si; a “acusação de
um Outro próximo”, na qual o doente acusa um amigo ou familiar como responsável
por sua doença; a “acusação de um Outro distante”, na qual o doente acusa o outro
exterior a seu grupo familiar, ou a sua rede de relações sociais, ou ainda, a seu grupo
sociocultural, como responsável, seja por sua doença, seja pela doença de alguém
próximo — amigo, parente etc. —; e a “acusação da sociedade”, na qual o doente acusa
a “sociedade” (ou seus avatares: o “sistema”, o “mundo atual”, a “sociedade moderna”,
o “desemprego”) como responsável por seu mal ou pelo de alguém próximo (1989: 69-
86).
Ora, as narrativas de Sônia e de Jorge remetem a esses esquemas de
interpretação da doença, referindo-se tanto à “acusação do Outro próximo”, no qual os
amigos e familiares seriam os responsáveis pela “causa” da doença, como à “acusação
56
da sociedade”, quando afirma que o desemprego, sintoma de uma crise econômica e
social, seria a “causa” do alcoolismo.
As narrativas acima também sugerem uma reflexão sobre a maneira segundo a
qual os significados da doença são construídos dentro de A.A., relacionando-os com os
valores “família” e “trabalho”, que englobam as relações sociais nas quais seus
membros estão envolvidos. Nesse sentido, não é fortuito que Sônia sublinhe que “nessa
doença a pessoa não pode ficar desempregada e nem perder a família”, uma vez que
pode favorecer a progressão de seu alcoolismo. A perda do emprego, fruto de uma crise
econômica e social significa, aos olhos dos AAs, a possibilidade da perda da condição
de “trabalhador”, um drama que pode colocá-los em uma situação de liminaridade,
capaz de conduzí-los ao “primeiro gole” e, conseqüentemente, ao desenvolvimento de
seu alcoolismo. O mesmo pode ser dito em relação à “perda da família”, que significa a
perda do plano relacional básico de onde se irradiam as marcas definidoras da
identidade social dos membros do grupo. Logo, perder a família e o trabalho significa
perder as referências fundamentais para a constituição de sua identidade, que tem nos
papéis sociais de pai/mãe, esposo(a), trabalhador(a) seus contornos fundamentais
42
.
Garcia (2004: 140-143) apresenta uma rica etnografia, na qual se multiplicam os
exemplos de como, para os membros das camadas populares, a causa do alcoolismo está
ligada às situações de liminaridade vividas, sobretudo, pelos homens em sua trajetória
de socialização. Os exemplos apresentados pela autora apontam que os momentos
marcantes dessas situações liminares são, particularmente, tanto a “adolescência”,
vivida precocemente pelos jovens das camadas populares como a “entrada no serviço
militar”, que marca a passagem para o universo adulto. Nesses dois momentos, o jovem
na maioria das vezes faz uso do álcool dentro de um “ritual de iniciação”, definidor dos
contornos de sua identidade masculina (Garcia, 142-143).
É importante acrescentar também a essas situações descritas, aquela que marca a
passagem do jovem ao mundo adulto, através da entrada precoce no mundo do trabalho.
Nas camadas populares, os jovens são chamados muito cedo ajudar no orçamento
familiar, sendo, portanto, alçados precocemente à condição de “trabalhador”, na maioria
42
Mais adiante, no capítulo 6, analisaremos as representações e os significados do alcoolismo
relacionados aos valores “família” e “trabalho”, notadamente em relação a sua influência sobre a
construção da identidade social ligada ao exercício dos papéis sociais de pai./mãe, esposo(a) e
trabalhador(a).
57
das vezes de maneira informal. Com isso, o jovem deve assumir desde cedo também o
papel de “provedor”, que deve ajudar na manutenção da casa. Essa situação de
liminaridade expõe com clareza a importância do plano relacional da família na
definição dos contornos da identidade do homem das camadas populares. Apesar desse
momento crucial de entrada na vida adulta, ser vivido em meio a angústias e
ambigüidades, ele é revelador da importância que os valores “família” e “trabalho”
assumem na definição da identidade social entre os membros de A.A..
Mas como entender a existência de esquemas diferenciados de interpretação do
alcoolismo no interior de A.A.? Garcia chama a atenção para o fato de que as narrativas
dos membros “demonstram como o adepto da instituição dos Alcoólicos Anônimos
constrói a sua trajetória como uma história coletiva que pode ser atribuída ao alcoólico
(Garcia, 2004: 160 — grifo do original). Nesse sentido, pode-se dizer que a presença de
esquemas interpretativos da doença diferenciados, no interior de A.A., é parte integrante
do processo de construção de uma história coletiva, através da apropriação de aspectos
pertencentes às trajetórias individuais. Com isso, os AAs podem integrar suas histórias
individuais a uma nova ordem de significações, o que possibilita a reconstrução de sua
identidade, reconhecendo-se como “doentes alcoólicos em recuperação” e permitindo,
com isso, a elaboração de um sentido ligado à experiência do alcoolismo.
2.3.1 Teoria da doença e estratégia terapêutica em A.A.
Embora outras associações de ex-bebedores compartilhem a idéia de que
alcoolismo é uma “doença”, A.A. exerce um papel fundamental na sedimentação desse
conceito (Yalisove, 1998: 469-475), que assume uma feição particular em seu interior.
A definição do alcoolismo elaborada pela irmandade pode nos ajudar a definir os
contornos de sua teoria sobre a doença:
O que é o alcoolismo? Existem muitas e variadas interpretações sobre
o que é realmente o alcoolismo. A explicação que parece ter sentido
para a maioria dos membros de A.A. é que o alcoolismo é uma
doença; uma doença progressiva e incurável. Como algumas outras
doenças, porém, pode ser detida. Indo um pouco mais longe, muitos
membros de A.A. acreditam que a doença representa a combinação de
uma sensibilidade física ao álcool com uma obsessão mental pela
bebida que, apesar das conseqüências, não pode ser superada somente
pela força de vontade. Antes de haverem sentido a influência de A.A.,
58
muitos alcoólicos que não conseguiam abandonar a bebida se
consideravam moralmente débeis e possivelmente desequilibrados
mentais. O A.A. acredita que os alcoólicos são pessoas enfermas,
passíveis de recuperação se seguirem um simples programa, bem-
sucedido para mais de 2 milhões de homens e mulheres. Uma vez que
o alcoolismo se tenha fixado, não há pecado algum em ser doente. A
esta altura, o livre arbítrio inexiste e o sofredor já perdeu seu poder de
decidir se continua a beber ou não. O importante, porém, é encarar a
realidade da própria doença e aproveitar-se da ajuda disponível.
Também é necessário que exista o desejo de recuperar-se. A
experiência nos ensina que o programa de A.A. funcionará para
qualquer alcoólico, quando este for sincero em seu desejo de parar de
beber. Geralmente não funcionará para o homem ou a mulher que não
estejam absolutamente seguros de que querem parar (Alcoólicos
Anônimos, s/d).
O alcoolismo é representado, inicialmente, como o resultado de uma articulação
entre uma “sensibilidade física ao álcool” e “uma obsessão mental” em ingerir bebida
alcoólica, que impede o alcoólico de parar de beber. Também é comum encontrarmos
uma comparação entre o alcoolismo e uma espécie de “alergia ao álcool”
43
. Para A.A., é
possível ser um alcoólico sem jamais ter bebido, bastando, para isso, não ter tido
contato com a bebida alcoólica. Foi o que me disse Paulo, quando afirmou que:
existem pessoas aí que nasceu, viveu aí 80 anos, ele é um alcoólatra só que ele nunca
ficou bêbado. Por quê? Porque ele nunca entrou em contato com bebida alcoólica. É
essa predisposição orgânica” (Paulo, entrevistado em 22 jul. 2002).
A teoria da doença de A.A., de acordo com Fainzang (1996: 34), representa o
alcoolismo nos termos de uma “théorie de l’inné”, própria a uma tradição biologizante
largamente difundida nos Estados Unidos, segundo a qual ele é definido como uma
doença inata, de base “genética”, enraizada no organismo do alcoólico. Trata-se de uma
maladie de longue durée” (Saliba, 1982: 82); uma doença crônica de base orgânica e
mental que independe da “força de vontade” do alcoólico para sua superação e controle.
Para os AAs, o indivíduo não é responsável pela aquisição da doença. Esta é
remetida ao terreno da fatalidade e da aleatoriedade, pois independe tanto da vontade do
indivíduo como da quantidade de álcool ingerida. Como sublinha Marcos, 50 anos,
casado, 18 anos de A.A., aposentado, membro do Escritório de Serviços Gerais de
43
A idéia de que o alcoolismo seria o resultado de uma a obsessão mental, aliada a uma alergia do
organismo do alcoólico ao álcool, foi apresentada ao co-fundador de Alcoólicos Anônimos, Bill Wilson,
pelo médico Dr. Willian Silkworth. Nas palavras do médico: “Acreditamos que a ação do álcool sobre
estes alcoólicos crônicos é a manifestação de uma alergia, que o fenômeno da compulsão limita-se a essa
categoria de pessoas e jamais acontece com o bebedor moderado médio. Essas pessoas alérgicas nunca
podem, sem correr riscos, consumir álcool de qualquer espécie” (cf. Barros, 2001: 50-52).
59
Alcoólicos Anônimos (ESG): “um alcoólico não se torna alcoólico, ele é alcoólico”
(Marcos, entrevistado em 26 fev. 2002).
Uma vez que o alcoolismo tenha se fixado, o indivíduo doente perde o “livre
arbítrio”, isto é, o alcoólico é incapaz de escolher se continua a beber ou não, tornando-
se, então, “dependente” da bebida alcoólica.
Porque o alcoolismo é visto como uma doença cujas bases são orgânicas, o
modelo de A.A. pode desculpalizar o doente, pois ele não é responsável pela contração
de sua doença. O doente alcoólico é, sobretudo, um dependente do álcool, de modo que
a doença alcoólica constrange sua vontade, impedindo-o de agir de modo responsável.
Como dependente, ele não tem autonomia para escolher entre beber e não beber;
incapaz de seguir a própria vontade, não consegue controlar a quantidade de doses
ingeridas.
Mas A.A. também define o alcoolismo como uma “doença espiritual”, que se
articula à dimensão propriamente moral do indivíduo, alterando seu comportamento,
tornando-o “egocêntrico” e, com isso, afetando todas as dimensões de sua vida social.
Para a irmandade, a deterioração moral do alcoólico tem uma causa bem definida, a
saber: o egocentrismo
44
. Nesse sentido, o alcoolismo provoca um autocentramento do
alcoólico — o egocentrismo —, potencializando uma confiança ilimitada em suas
capacidades. Isolado e fechado em si mesmo, o alcoólico acredita que é capaz de
controlar o ato de beber a partir da própria vontade: “eu bebo quanto eu quero”, diz,
quando questionado sobre sua capacidade de controlar as doses ingeridas. Ora, o
“egocentrismo” do alcoólico, potencializado pelo uso do álcool, o faz acreditar-se
“onipotente” e “senhor de seus atos”. Com isso, ele nega para si mesmo e para os outros
que é portador da “doença do alcoolismo”. Como conseqüência, o alcoólico não vê o
Outro; nega a alteridade, fechando-se em seu próprio universo.
Movido pelo egocentrismo durante a fase ativa de seu alcoolismo, o alcoólico
vive fechado no círculo da dependência. Em outras palavras, vive uma espécie de
“insulamento”, de modo que seu universo reduz-se cada vez mais à relação com o
álcool, o que só faz aprofundar sua dependência, comprometendo sua responsabilidade
44
Para A.A., o egocentrismo é “a raiz de todos os problemas” do doente alcoólico: “não está a maioria de
nós preocupada consigo mesma, com seus ressentimentos ou sua auto-piedade? [...] Acima de tudo, nós,
alcoólicos precisamos nos libertar desse egoísmo. Precisamos fazê-lo, ou ele nos matará!” (Alcoólicos
Anônimos, 1994: 82-83).
60
tanto no cuidado de si como em relação à família e ao trabalho
45
. Em síntese, para A.A.
o alcoolismo é uma doença, fruto de uma “predisposição física aliada a uma obsessão
mental”, e, ao mesmo tempo, uma “doença espiritual”, que se restringe aos “limites
mais restritos da pessoa” (Duarte, 1976: 144), isto é, ao plano intrapessoal: o indivíduo
é aqui visto como totalidade “orgânico-espiritual”. A teoria do alcoolismo engaja os
indivíduos em toda sua complexidade físico-espiritual, apontando para as conexões e
fluxos que perpassam a totalidade da pessoa em suas dimensões física (corpórea),
mental e espiritual.
Nesse modelo de interpretação do alcoolismo, as “causas” da dependência do
álcool estão “situadas” no plano “físico” e “espiritual” do indivíduo, e não no exterior.
Como lembra Fainzang (1989: 71 – trad. minha): “este tipo de discurso está ligado à
observância de códigos, tais como vigiar-se, controlar-se, moderar-se”, próprios a um
esquema de interpretação da doença baseado na “auto-acusação”, cujo objetivo é tornar
o doente responsável por sua recuperação.
A teoria da doença de A.A. exibe, assim, uma característica inteiramente
particular, diferenciando-se das teorias da doença próprias aos modelos de compreensão
do alcoolismo descritos anteriormente. Enquanto no higienismo francês e no brasileiro
se elabora uma teoria da doença exógena, já que a acusação do alcoolismo recai sobre a
sociedade, A.A. desenvolve uma teoria da doença endógena, uma vez que o alcoolismo
é entendido como um problema do indivíduo.
Mas, antes de analisarmos como se processa a relação entre a teoria da doença
de A.A. e sua estratégia terapêutica para dar conta do alcoolismo, vale a pena colocar o
modelo uma vez mais em perspectiva com as sociedades de temperança.
Enquanto as sociedades de temperança, tais como os Washingtonianos, os Sons
of Temperance e os Goods Templars, elaboram uma teoria da doença exógena extensiva
(Cerclé, 1998), localizando as causas do alcoolismo nas propriedades farmacológicas
das bebidas alcoólicas, de modo que todo e qualquer bebedor, sem distinção, estaria
45
Uma visão semelhante é apresentada por Narcóticos Anônimos (associação que segue os mesmos
princípios de Alcoólicos Anônimos e é destinada à recuperação de adictos às drogas) para narrar o
insulamento vivido pelo dependente de drogas: “Sofremos de uma doença que se manifesta de maneiras
anti-sociais e que torna difícil a detecção, o diagnostico e o tratamento [...] Nossa doença nos isolava das
pessoas, a não ser quando estávamos obtendo, usado e arranjando maneiras e meios de conseguir mais
[drogas]. Hostis, ressentidos, egocêntricos e egoístas, nós nos isolávamos do mundo exterior [...] O
mundo se estreitava e o isolamento tornou-se a nossa vida. Usávamos [drogas] para sobreviver. Era a
única maneira de viver que conhecíamos” (Narcóticos Anônimos, 1993: 3-5).
61
ameaçado pela “doença progressiva e insidiosa” do alcoolismo, os AAs situam a doença
(incapacidade de controlar o desejo pela bebida) no organismo e no plano espiritual do
indivíduo, desenvolvendo uma teoria de doença endógena restritiva (Cerclé, 1998), uma
vez que somente alguns bebedores teriam uma predisposição orgânica para tornarem-se
dependentes do álcool.
Como resultado dessa diferenciação em torno das teorias da doença alcoólica,
ocorre também uma correspondente diferenciação nas representações do alcoolismo, da
“pessoa alcoólica” e das formas de tratamento. Embora tanto as sociedades de
temperança como os Alcoólicos Anônimos compartilhem da noção da dependência
entendida como perda de controle (loss of control) sobre o álcool e estabeleçam a
necessidade da abstinência total como princípio terapêutico, esta última possui um valor
diferente em ambas as associações.
As sociedades de temperança buscavam estabelecer um controle social sobre os
bebedores, através da exigência da abstinência. Trata-se, de fato, de um modelo médico-
moral, cuja ênfase recai sobre a embriaguez e sobre suas conseqüências físicas e sociais,
de modo que o alcoólico é concebido, em última instância, como um desviante.
Não podemos nos esquecer de que, nas sociedades de temperança, os votos de
abstinência eram feitos em confissões públicas, o que só reforçava o estigma e a
marginalização do alcoólico. Além disso, os partidários dessas sociedades acreditavam
terem descoberto nas bebidas alcoólicas a causa de todos os problemas sociais. Não por
acaso, um dos resultados do movimento de temperança foi o estabelecimento da Lei
Seca, que proibia a fabricação e o comércio de bebidas alcoólicas.
Já em A.A. o alcoolismo deixa de ser concebido como um desvio e passa a ser
entendido como um problema orgânico-espiritual, intrínseco ao indivíduo, alojado no
seu interior. O alcoólico adquire um status de doente, com uma positividade não
encontrada nas representações elaboradas pelas sociedades de temperança. E, por ser
um doente, o alcoólico pode reconhecer-se como um “doente alcoólico em
recuperação”, isto é, como portador de uma doença crônica que o acompanhará por toda
a vida, mas que pode ser controlada, fora da órbita estigmantizante e geradora de culpa
em que as sociedades de temperança o colocavam.
Para A.A., portanto, a experiência do “verdadeiro” alcoólico é irredutível e
intransferível, não podendo ser comparável à experiência do “bebedor moderado”.
Nesse sentido, o modelo adotado pressupõe um controle individual da doença alcoólica
62
(self-control), de modo que a exigência da abstinência apresenta-se, ao mesmo tempo,
como princípio terapêutico e um valor que, ao ser introjetado pelo doente alcoólico,
passa a nortear sua existência, possibilitando uma reorganização de sua experiência
individual e coletiva, através da atribuição de novos significados aos eventos vividos.
2.4 Delineando os contornos da “pessoa alcoólica”
O modelo terapêutico desenvolvido em A.A. funda-se, assim, num programa de
recuperação do alcoolismo altamente individualizado, cujo foco central é o indivíduo
tomado em sua singularidade, entendida, ao mesmo tempo, como unidade “físico-
espiritual”, no interior da qual “situa-se” a doença alcoólica, e como o centro articulador
de uma ordem de sentido, na qual a experiência do alcoolismo pode ser ressignificada.
Para a irmandade, uma doença individual exige um controle individual.
Mas qual a relação entre o modelo terapêutico adotado e o processo de
individualização em curso nas sociedades modernas? O programa de recuperação
reproduz no seu interior o “valor ‘indivíduo”, característico do campo ideológico
moderno? Quais as possíveis (des)continuidades entre esse modelo e a ideologia
individualista moderna?
Para Levine (1978), esse modelo deve ser compreendido como integrado às
transformações sociais pelas quais passou a sociedade norte-americana do final do
século XIX e início do XIX. Além de pertencerem a uma tradição biologizante, os AAs
participam também de um processo de individualização que se mostra bem revelador
sob o ângulo do debate em torno do alcoolismo e do processo saúde/doença.
No século XIX, a ideologia e as características estruturais da vida
deslocaram o lócus do controle social para o controle individual [...] A
invenção da adicção, ou a descoberta do fenômeno da adicção, no
final do século XVIII e começo do século XIX, pode ser
compreendida não apenas como uma descoberta médica e científica,
mas como parte de uma transformação nos fundamentos do
pensamento social em função de uma transformação da vida social e
na estrutura da sociedade (1978: 165-166 – trad. minha).
Herzlich e Pierret (1991) indicam, por sua vez, que a presença, cada vez mais
freqüente nos dias atuais, da “doença crônica”, redefine as relações entre o doente e a
medicina, delineando novos contornos para a compreensão do “papel do doente” no
63
processo terapêutico. Para os autores, o portador de uma doença crônica é considerado
como um “novo doente” que deve conviver com a realidade inelutável de que é portador
de uma doença incurável. Como conseqüência, o doente deve passar a “gerir a doença”,
responsabilizando-se pelo cuidado de si mesmo.
Para os doentes, atualmente, a passagem à gestão pessoal da doença
implica um novo modo de relação com o médico ou com a medicina
[...] O autosoignant afirma seu direito a ter, sobre seu corpo doente,
um discurso específico; e ele proclama a eficácia de se encarregar de
maneira autônoma de seu estado (Herzlich e Pierret,1991: 265 – trad.
minha).
Esse é o papel desempenhado pelos grupos formados por doentes, que buscam se
apoiar mutuamente:
O grupo, portanto, é, para os doentes, o meio de confirmar sua
intenção de cuidarem de si mesmo. Trocando seu saber uns com os
outros, eles o enriquecem e o afirmam. Eles reforçam, assim, o
controle de seu estado e, mais ainda, eles se afirmam na identidade
positiva que eles se propuseram a construir (Herzlich e Pierret, 1991:
274 – trad. minha).
No interior do grupo, o indivíduo pode compartilhar seus problemas, forjando,
ao mesmo tempo, uma compreensão própria e um discurso legítimo sobre sua doença,
de maneira a recuperar sua autonomia no cuidado de si mesmo.
É nessa linha que também Eric Gagnon (1995) analisa o processo de
individualização, relacionado à definição das normas de saúde vividas atualmente. Para
o autor: “a autonomia do paciente se apresenta, cada vez mais, ao mesmo tempo, como
condição da administração dos cuidados de saúde [...] e como finalidade dos cuidados
(curar é redescobrir sua autonomia)” (1995: 165 — grifos do original – trad. minha).
Nessa medida, a autonomia do doente torna-se, então, cada vez mais um sinônimo de
saúde. O binômio saúde/autonomia ocupa, assim, o centro do processo saúde/doença,
definindo, por oposição, a doença como dependência. Ser doente passa ser o mesmo que
ser dependente.
O modelo de A.A., por sua vez, redefiniu os termos da responsabilidade do
alcoólico no interior do processo terapêutico, de modo que, se indivíduo não é
responsável pela aquisição da doença alcoólica, ele o é por sua recuperação. É
exatamente isso que me disse Paulo (entrevistado em 22 jul. 2002): “Ninguém tem
64
culpa de ser alcoólico, eu não tenho culpa de ser alcoólico, meus pais não têm culpa,
ninguém tem culpa. Agora, eu teria uma grande culpa de ter conhecido Alcoólicos
Anônimos e ter morrido bêbado” .
O próprio Bill Wilson — co-fundador de A.A. — afirmava que não havia
oposição entre a teoria da doença de A.A. e o desenvolvimento da responsabilidade no
cuidado de si do doente alcoólico em recuperação:
Algumas pessoas se opõem firmemente à posição de A.A. de que o
alcoolismo é uma doença. Sentem que esse conceito tira dos
alcoólicos a responsabilidade moral. Como qualquer A.A. sabe, isso
está longe de ser verdade. Não utilizamos o conceito de doença para
eximir nossos membros da responsabilidade. Pelo contrário, usamos o
fato de que se trata de uma doença fatal para impor a mais severa
obrigação moral ao sofredor, a obrigação de usar os Doze passos de
A.A. para se recuperar
46
(Alcoólicos Anônimos, 1995: 32).
Para Wilson, não há oposição entre ser portador da “doença crônica e incurável”
do alcoolismo e, ao mesmo tempo, ser o único responsável por sua recuperação. Em
outras palavras: o único antídoto para o alcoolismo, entendido como dependência do
álcool, é o desenvolvimento da responsabilidade moral do doente alcoólico, que deve
cuidar de si mesmo, engajando-se no processo terapêutico, tendo em vista sua
recuperação.
Mas, se é certo que o modelo terapêutico de A.A. implica em um autocontrole
(self-control) por parte do doente alcoólico, é necessário analisar como esse modelo
responde às exigências do processo de individualização em curso na atualidade,
avaliando-se a maneira como se opera a construção da noção de pessoa no interior da
irmandade, delineando seus contrastes e seus limites em relação ao campo ideológico
moderno.
Ora, os AAs sabem que a recuperação do alcoolismo é uma tarefa árdua demais
para o alcoólico empreender sozinho, já que são grandes os riscos de uma “recaída”,
capaz de reascender a chama da dependência do álcool. Ou seja, a única saída para o
doente é, desde que haja o desejo de se recuperar, “encarar a realidade da própria
doença”, aceitando uma situação que ele não pode modificar, abstendo-se totalmente de
46
Na declaração do 30º aniversário de Alcoólicos Anônimos, feita durante a Convenção Internacional de
1965, encontra-se a afirmação da responsabilidade do alcoólico como membro de A.A.: “Quando
qualquer um, seja onde for, estender a mão pedindo ajuda, quero que a mão de A.A. esteja sempre ali. E,
por isso: Eu sou responsável” (Alcoólicos Anônimos, 1995: 332).
65
ingerir a bebida alcoólica e, ao mesmo tempo, aproveitar a ajuda disponível,
participando das reuniões de recuperação.
Para A.A., o doente não pode controlar as doses ingeridas seguindo apenas a
própria vontade. Logo, ele precisa de ajuda, proveniente da irmandade, da companhia
dos outros alcoólicos, que se encontram na mesma situação. Somente assim o alcoólico
pode se recuperar do alcoolismo, mantendo-se “sóbrio”. Como sublinham os AAs:
“parar de beber é fácil, o difícil é manter-se sóbrio”. O modelo terapêutico da
irmandade visa, sobretudo, à conquista da “sobriedade serena”, isto é, um “despertar
espiritual”, na “linguagem nativa”, capaz, ao mesmo tempo, de alterar os
comportamentos do alcoólico e de devolvê-lo à “sobriedade”.
É no interior do grupo, compartilhando com outros alcoólicos suas experiências
etílicas, que eles se identificam como doentes — como aqueles que trazem o mal dentro
de si — e que encontram a possibilidade de sua “aceitação” e controle. Opera-se, assim,
a reificação da noção de doença, que todos os membros da irmandade possuem, e, ao
mesmo tempo, edifica-se uma memória coletiva, fundada tanto na experiência passada,
cuja forma discursiva é dada pela expressão: “Eu era um bêbado”, como na experiência
presente, cuja feição semântica é reconhecida na expressão: “Eu sou um doente
alcoólico em recuperação”. Não por acaso, os AAs freqüentemente falam de si mesmos
referindo-se a uma segunda pessoa, que viveu num passado, mas que se encontra
adormecida no presente, de maneira que é necessário estar sempre vigilante, evitando o
“primeiro gole”.
Assiste-se, então, a um deslizamento simbólico no qual o alcoólico reconhece
que é incapaz de dar conta do alcoolismo sozinho, devendo compartilhar suas
experiências com os demais membros da irmandade. Com isso, o indivíduo pode se
reconhecer como um “doente alcoólico”, que deve aprender a conviver com o mal que
existe dentro si ao mesmo tempo em que recupera os laços sociais perdidos no tempo do
alcoolismo ativo, notadamente na família e no trabalho.
O modelo terapêutico de A.A. instaura, assim, um peculiar regime de alteridade
fundamental para a definição dos contornos da “pessoa alcoólica”, ao mesmo tempo em
que define uma construção do indivíduo a partir do reconhecimento de suas próprias
limitações. Em outras palavras: a emergência de uma individualidade responsável tanto
pelo cuidado de si como de sua família só é possível no interior da matriz coletiva e
66
relacional da irmandade, a partir de um mecanismo de incorporação da doença como
alteridade no próprio corpo de cada dependente.
É essa a pista que perseguiremos nas páginas seguintes, enfocando, na
seqüência, a construção da identidade do “doente alcoólico em recuperação” e,
conseqüentemente, a fabricação de uma noção particular de pessoa, a partir de uma
análise da organização social da irmandade e de seu programa de recuperação — “os
Doze Passos e as Doze Tradições” — bem como das práticas realizadas em seu interior
para dar conta da “doença do alcoolismo”.
67
Capítulo 3
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS:
A CONSTRUÇÃO DA DOENÇA ALCOÓLICA E DO
ALCOÓLICO COMO DOENTE
Eu sou portador da doença do alcoolismo;
uma doença que estava guardada dentro de
mim e que se manifestaria assim que eu
tivesse contato com a bebida alcoólica.
João, membro de A.A.
Eu aprendi dentro do A.A. a conhecer e
compartilhar esse Deus horizontal, que se
manifesta dentro de Alcoólicos Anônimos.
Esse Deus que, muitas vezes, me fala através
do depoimento de um companheiro.
Ricardo, membro de A.A.
O A.A. é, de acordo com sua literatura oficial, “uma irmandade de homens e
mulheres que compartilham suas experiências, forças e esperanças, a fim de resolver
seu problema comum e ajudar outros a se recuperarem do alcoolismo” (Alcoólicos
Anônimos, 1996). Seu modelo terapêutico é voltado, fundamentalmente, à recuperação
individual e pessoal de seus membros, que “parecem ter perdido o poder para controlar
suas doses ingeridas” (Alcoólicos Anônimos, 1997). O alcoolismo é entendido como
uma “doença incurável, progressiva e fatal”, de base “física e espiritual”, que se
caracteriza pela “perda de controle sobre o álcool”, levando o alcoólico a beber de
maneira compulsiva, podendo, com isso, conduzi-lo à “loucura” ou à “morte
prematura”.
O modelo terapêutico da irmandade conta com a participação dos AAs em
reuniões periódicas, cujo objetivo é também ajudá-los a evitar o “primeiro gole” e,
assim, a manter a sobriedade. As reuniões podem ocorrer em salas alugadas ou cedidas
por igrejas, escolas, instituições correcionais ou de tratamento. As chamadas “reuniões
68
de recuperação” podem ser de dois tipos: “fechadas”, compostas apenas por aqueles que
se consideram “doentes alcoólicos”; e “abertas”, destinadas a todos aqueles que desejam
conhecer a irmandade.
Além das reuniões específicas para recuperação, existem outras atividades que
são organizadas respeitando-se a autonomia dos grupos. Assim, cada um deles funciona
como uma “célula” que possui autonomia para organizar as atividades e reuniões que
julgar necessárias, desde que não afete a organização de outros grupos ou da irmandade
em seu conjunto. De modo geral, os tipos de reuniões organizadas são os seguintes:
Reuniões de Unidade (abertas ou fechadas): são de fato reuniões de
recuperação, nas quais dois diferentes grupos, de diferentes bairros ou
cidades, convidam-se para realizar uma reunião conjunta com membros
desses grupos;
Reuniões de literatura (abertas ou fechadas): dedicadas à discussão da
literatura de Alcoólicos Anônimos;
Reuniões temáticas (abertas): nas quais um membro ou um “profissional”
convidado disserta sobre um tema de interesse;
Reuniões de serviços (fechadas): são dedicadas à organização administrativa
do grupo e utilizadas para a eleição dos servidores responsáveis pelas tarefas
de manutenção do grupo.
Nessas reuniões, compartilham suas experiências, ajudando-se mutuamente a
encontrarem forças para superar a “doença alcoólica”. Assim, quando chegamos a uma
sala de A.A., seja para, por curiosidade, conhecer as atividades do grupo, seja para
buscar ajuda para o “problema” do alcoolismo, somos apresentados a um conjunto de
idéias e de procedimentos formulados, dizem seus membros, para dar conta da “doença
do alcoolismo” e ajudá-los a manter a sobriedade. Os AAs são unânimes em dizer que
“aprenderam” isso depois que chegaram ao grupo: “Quando cheguei aqui, aprendi que
era doente e impotente em relação ao álcool. Fiz minha parte e me mantenho sóbrio.
Venho para não esquecer que não posso beber” (Jorge, reunião de recuperação aberta,
14 fev. 2002).
Ao participar de suas atividades e reuniões, os AAs reiteram sua condição de
doentes alcoólicos e, conseqüentemente, o fato de não poderem ingerir bebida alcoólica.
69
A noção de que o alcoolismo é uma doença passa a operar como uma verdadeira idéia
reguladora e a orientar suas ações, possibilitando a reorganização de sua existência.
Embora não haja interesse em comprovar ou legitimar “cientificamente” a existência da
doença, ela ocupa uma posição central no interior do modelo terapêutico, permitindo
uma síntese das experiências vividas. Ela atua como uma categoria que permite aos
membros do grupo elaborarem um sentido para uma trajetória de queda e perda dos
laços sociais, vivida nos tempos do alcoolismo ativo, estimulando-os a se engajarem no
programa de recuperação da irmandade.
Ao longo dos anos, os AAs construíram uma densa rede prático-discursiva, no
interior da qual eles trocam suas experiências, apoiando-se mutuamente. Falando uns
aos outros nas reuniões de recuperação, eles possibilitam àquele que “perdeu o controle
sobre o álcool”, rompendo com as regras do “bem beber”, e ficou, por isso,
marginalizado, a formulação de um sentido para a sua experiência, baseado na
identificação com o exemplo dado pelos demais, e, assim, a reconquista da
responsabilidade no cuidado de si mesmo.
Garante-se a continuidade da instituição, através da (re)produção de suas idéias
e valores a partir de uma prática cotidiana que possibilita a adesão de novos adeptos, os
quais vão encontrar em A.A. um lugar onde o corpo e o espírito considerados
“enfermos” têm os recursos e o suporte necessários à sua recuperação.
A unidade da irmandade também é assegurada pela publicação de suas idéias e
de seus valores na chamada literatura de A.A., composta por folders de divulgação e
livros. As publicações são centralizadas e editadas na JUNAAB — Junta de Serviços
Gerais de Alcoólicos Anônimos do Brasil —, através de sua secretaria, denominada
ESG — Escritório de Serviços Gerais
47
—, responsável pela distribuição do material
por todos os grupos no País.
Esses textos e livros são traduzidos do inglês; alguns deles fazem uma referência
ao fato de terem sido “adaptados à realidade brasileira”; eles costumam ficar expostos
na sala de reuniões do grupo. Os livros trazem informações sobre os princípios que
balizam a organização, seu funcionamento interno e as relações externas que os AAs
mantêm com a sociedade em geral. Entre eles, destaca-se o chamado Livro Azul de
47
A JUNAAB é ligada ao Alcoholics Anonymous World Services, ou serviços mundiais de Alcoólicos
Anônimos. Seu escritório central — GSO —, com sede em Nova York, Estados Unidos, responde pela
organização e distribuição mundial da literatura da irmandade.
70
Alcoólicos Anônimos, escrito, em 1938, por Bill Wilson. Os livros narram o processo
de consolidação mundial da irmandade, através da fala de seus pioneiros e co-
fundadores.
Nos folders e folhetos encontram-se informações sintetizadas sobre a irmandade
e seu funcionamento interno, tanto para os recém-chegados como para o público em
geral, que deseje conhecê-la. Com uma linguagem direta e simples, eles são
freqüentemente distribuídos ao final das reuniões abertas e em atividades realizadas em
escolas, igrejas etc. Alguns deles, por exemplo, são dirigidos especialmente aos jovens e
aos especialistas que estão envolvidos no tratamento de portadores da “doença do
alcoolismo”, oferecendo, aos primeiros, uma lista de perguntas e respostas “simples e
ilustradas”, sobre “quando a bebida está se tornando um problema”, e terminando com
um com convite para virem conhecer a irmandade. Para os especialistas, a irmandade é
apresentada como uma “alternativa de apoio contínuo para a recuperação dos portadores
da doença”.
Os alcoólicos também contam com a publicação de boletins informativos e de
uma revista bimestral, todos sob a responsabilidade do comitê de publicações
periódicas. Através do boletim oficial de A.A., chamado de Bob Mural, em uma alusão
ao co-fundador Dr. “Bob”, os AAs mantêm-se informados sobre todas as atividades
desenvolvidas pela irmandade, seus eventos, encontros, suas convenções etc. Já na
Revista Vivência, são publicados, a cada edição, artigos escritos pelos alcoólicos ou
amigos de A.A., sobre um tema proposto por seu conselho editorial. Neles, são narradas
experiências práticas, vividas no programa de recuperação do alcoolismo. Há também
uma seção de cartas na qual os alcoólicos podem expressar suas opiniões sobre os
artigos publicados. Enquanto o boletim é distribuído gratuitamente a todos os grupos, a
revista Vivência é adquirida mediante assinatura. A irmandade também dispõe de um
site, cujo endereço eletrônico é: http://www.alcoolicosanonimos.org.br, e no qual
também é possível acessar todas as informações sobre as suas atividades.
Mas como os AAs constroem a eficácia de suas ações no controle da chamada
doença alcoólica? Como A.A. garante a adesão de seus membros a seu programa de
recuperação do alcoolismo? Quais os mecanismos que definem os contornos da
irmandade e que, ao mesmo tempo, legitimam as ações dos seus membros no sentido de
sua recuperação?
71
A irmandade utiliza todo recurso prático-discursivo presente tanto em sua
literatura como em suas atividades na formatação de seus princípios doutrinários, que
são referendados cotidianamente pelos membros dos grupos em suas ações. Com isso,
os seus membros reforçam seus laços e atualizam seus sentimentos de pertencimento a
uma instituição sólida e universal.
A publicação de relatos de experiências em primeira pessoa, nos quais se expõe
a vivência que cada um tem do programa de recuperação, também contribui para a
definição dos contornos da irmandade, legitimando as ações dos AAs no sentido da
recuperação. O editorial da revista Vivência de número 38, por exemplo, caminha nessa
direção, ao apresentar o sentido da publicação periódica a seus leitores: “Não um
manual. Jamais uma aula. Apenas o de sempre: nossas experiências pessoais,
depoimentos a respeito do tema. Vocês, fazendo a revista, na nossa tão conhecida e
eficaz Linguagem do Coração” (Alcoólicos Anônimos, 2000b: 10). A chamada
“linguagem do coração”, fundada na experiência vivida, favorece a identificação
consigo mesmo e como membros de A.A..
Na edição de número 78, por sua vez, a revista é definida como um “informativo
inspirador, mensageiro simpático e prestativo como um membro ou pessoa amiga — ou
mesmo um grupo de A.A. de qualquer tamanho” (Alcoólicos Anônimos, 2002: 50) e
como “uma reunião escrita”, uma “solução ideal para quem não pode assistir às
reuniões regularmente ou para quem deseja mais reuniões” (2002: 50). Além de
proporcionar um arquivo da história de A.A., uma vez que “espelha os acontecimentos
da Irmandade de Alcoólicos Anônimos no momento atual. É uma preciosa coleção das
experiências acumuladas ao longo dos anos” (2002: 51). A revista reforça o caráter
“endogâmico” da irmandade, na medida em que alimenta o auto-reconhecimento dos
AAs como “doentes alcoólicos”, que compartilham suas experiências na esperança de
se recuperarem do alcoolismo.
É assim que os membros da irmandade constroem uma moldura, sedimentada
em princípios doutrinários que balizam suas relações entre si e com a sociedade
envolvente. Com isso, edificam um espaço institucional no interior do qual põem em
prática os princípios de seu programa de recuperação e com cujas idéias e valores se
identificam, consolidando a reprodução da irmandade e contrastando-a, simbolicamente,
com a imagem das demais instituições e grupos sociais.
72
Na busca da sobriedade, a irmandade — que não mantém vínculos institucionais
com o Estado — utiliza um método totalmente não profissional, desenvolvendo um
programa de recuperação do alcoolismo baseado em um conjunto de procedimentos
voltados ao aprimoramento “espiritual” do indivíduo considerado doente. De um lado,
esse método inclui a admissão de que existe um problema, a busca de ajuda, a auto-
avaliação, a partilha em nível confidencial e a disposição tanto para reparar os danos
causados a terceiros como para trabalhar com outros alcoólicos que desejem se
recuperar. De outro lado, estão inclusas as relações que os AAs mantêm entre si e com a
sociedade em geral, estas reguladas a partir de um conjunto de preceitos que garantem a
unidade da irmandade. A reunião desses dois pólos forma a espinha dorsal do programa
de recuperação de A.A., também chamado de programa dos “Doze Passos e das Doze
Tradições” (Alcoólicos Anônimos, 2001).
A recuperação do indivíduo doente só pode ocorrer através de sua participação
nas atividades promovidas pela irmandade. É preciso, então, avaliar os limites
existentes entre o indivíduo e o grupo e entre este e a sociedade em geral, para
compreendermos as relações entre a construção da pessoa e a construção do corpo
coletivo da irmandade. Essa relação é regulada pelos princípios doutrinários da
irmandade, também chamados de “regras de ouro”, os quais estão expressos nos seus
Doze Passos e nas suas Doze Tradições, que analisaremos a seguir.
3.1 Os doze passos na construção da “pessoa alcoólica”.
“O único requisito para fazer parte de A.A. é o desejo sincero de parar de
beber”. Eis o que dizem os AAs quando indagados sobre as condições para se ingressar
no grupo. Certa vez, conversando com Paulo, ele me confirmou essa máxima, ao dizer
que é muito comum que esposas ou filhas procurem o grupo na busca de ajuda para
algum parente que apresenta problemas com o álcool: “Eu vou logo perguntando: ele
manifestou algum desejo em parar de beber? Se elas dizem não, eu digo que não
podemos fazer nada”.
73
Essa condição, contudo, não impede que muitos membros cheguem em A.A.
conduzidos por familiares ou por pressões sofridas em seu local de trabalho
48
. Aliás, são
freqüentes nas narrativas as alusões a tentativas, por parte de seus familiares, de
encaminhá-los para tratamento na irmandade. Sônia, por exemplo, expõe com clareza
essa situação:
E quis o Poder Superior que meu irmão ouvisse falar de Alcoólicos
Anônimos; e ele falou para mim: “você se arruma que eu vou te levar
num lugar aí para parar de beber”. Aí, ainda não tinha o grupo
Sapopemba, ele começou a andar comigo, a gente ia no grupo Vila
Rica, ia no grupo Belém, a todos esses grupos da redondeza ele me
levava. Mas, ele me levava, nós dois chegávamos na sala, sentávamos
lá no canto e ficávamos lá (Sônia, reunião de recuperação aberta, em
16 mar. 2002).
A própria Sônia reconhece que isso não adiantava, pois, embora sua família
insistisse para que ela parasse de beber, ela “não sabia o que era viver sem cachaça”:
Acho que meu irmão pensava que aquilo lá já era o tratamento, não
sei, eu não falava, mas no grupo Vila Rica eu encontrei um bom
apoio. Aí já conheci o Chico, que me deu muita assistência, como
todos os companheiros dão para gente. E foi onde eu fui me
encaixando em Alcoólicos Anônimos, mas eu ia para Alcoólicos
Anônimos porque minha família queria que eu parasse de beber, eu
não tava interessada, não tava mesmo, porque eu não sabia como era
a vida sem a cachaça. Eu bebi minha vida toda, eu pensava: “eu vou
parar de beber e o que eu vou fazer da vida?”.[...] Eu não sentava
nessa cadeira para falar as minhas coisas de jeito nenhum. O
companheiro Chico sempre me falava: “o dia que você sentar
naquela cadeira, você vai ficar em Alcoólicos Anônimos”. Ele falava
uma coisa tão verdadeira que eu fiquei mesmo; quando conheci não
fiquei, fiquei três anos na marra (Sônia, reunião de recuperação
aberta, 16 mar. 2002).
A adesão ao programa de recuperação é, então, uma das questões mais sérias
enfrentadas nas associações de ex-bebedores. Em A.A., evita-se emitir juízos de valor a
respeito de outros membros do grupo, notadamente de novatos. Diante de um provável
48
Durante o período da pesquisa de campo, conheci uma pessoa encaminhada pelo programa de
tratamento do alcoolismo da empresa na qual trabalhava. Trata-se de Lauro, 37 anos, casado, um ano de
A.A., metalúrgico, afastado do trabalho após ter sido diagnosticado como “alcoólatra”. Ele freqüentava as
reuniões regularmente. O coordenador carimbava e rubricava o atestado de presença fornecido pela
empresa. Mas, recentemente, conversando com Paulo, ele me disse que Lauro havia se afastado do grupo
e que tinha tido uma recaída, voltando a beber.
74
ingressante, os AAs utilizam a chamada estratégia da auto-revelação
49
como técnica de
abordagem. Essa estratégia persuasiva, como sublinha Barros (2001: 42),
é a essência da postura adotada nos grupos e consiste, em síntese, em
privilegiar o depoimento pessoal, sempre enunciado em primeira
pessoa, de caráter confessional, a respeito da experiência de cada
membro em relação tanto a seu período de sofrimento com a “doença”
quanto aos benefícios obtidos com a participação nos grupos.
Ricardo, 58 anos, casado, 20 anos de A.A., aposentado, define nos seguintes
termos a importância da abordagem e do trabalho feito dentro dos grupos para o sucesso
da irmandade:
Nada substitui esse contato pessoal, seja através de uma abordagem
bem-feita, seja através do trabalho feito em nossos grupos, quando os
companheiros chegam. Então o sucesso de Alcoólicos Anônimos se
explica muito por isso. Porque são pessoas com um problema
ajudando pessoas com o mesmo tipo de problema. Nós sabemos como
falar, como acolher o companheiro. (Ricardo, reunião temática em 09
jun. 2002).
Todo esse procedimento visa, sobretudo, criar as condições para que o provável
ingressante se reconheça como “doente alcoólico”. É através da identificação com as
palavras pronunciadas pelos alcoólicos que o novato assume sua condição de doente e
aceita a ser membro de A.A., passando a não depender da pressão de seus familiares
para freqüentar as reuniões. A fala de Sônia, ao final de sua partilha, é exemplar nesse
sentido:
Quando eu cheguei [à sala de Alcoólicos Anônimos] eles falaram
para mim que eu era a pessoa mais importante aquele dia, e eu
acreditei, fiquei e hoje eu fico por mim, não fico pela minha família,
não fico pelos meus irmãos que queriam que eu parasse de beber,
hoje eu vim com minhas próprias pernas e fico por mim hoje. E hoje
49
A estratégia de “auto-revelação” utilizada como técnica de abordagem aos novos membros de A.A.
diferencia-se, substancialmente, de outras técnicas, notadamente, os “confrontos” e “intervenções”,
utilizadas, particularmente, em meios médicos institucionais. Durante a pesquisa etnográfica, tive a
oportunidade de visitar a clínica de recuperação de alcoólicos e drogadictos “Bezerra de Menezes”,
localizada na cidade de São Bernardo do Campo, São Paulo, Brasil. Nessa clínica, é utilizada a técnica do
“confronto” como parte de uma estratégia terapêutica “comportamental-cognitiva” na qual se combinam
elementos do programa de recuperação de Alcoólicos Anônimos com aspectos da psiquiatria e psicologia.
Após um período de internação e desintoxicação, os pacientes alcoólicos e drogadictos são
“confrontados” com membros de sua família, com o objetivo de trazer à tona situações e momentos
vividos no tempo do alcoolismo ativo, como parte de uma estratégia que visa atuar no plano cognitivo-
comportamental do indivíduo.
75
eu posso dizer para vocês que eu sou feliz. Sou feliz só por não
precisar beber cachaça (Sônia, reunião de recuperação aberta, 16
mar. 2002).
Aqui, Sônia indica que freqüenta a irmandade por si mesma e não porque seus
familiares assim o desejam. Com isso, ela pôde integrar sua história individual a uma
nova ordem de significações, redefinindo sua identidade, reconhecendo-se como uma
“doente alcoólica em recuperação”. Como conseqüência, ela reconhece que é a única
responsável por sua própria recuperação.
O A.A. não exige de seus membros nenhuma filiação formal, bastando que o
ingressante afirme o desejo de se tornar membro da irmandade, participando de suas
atividades e reuniões. Essa política de livre adesão pode ser confirmada pelo slogan
presente em seus folhetos: “Se você quer beber, o problema é seu. Se você quer deixar
de beber, o problema é nosso”.
O programa de A.A. prega a total abstinência em relação ao álcool. Como
afirmam em seus folders de divulgação: “os membros simplesmente evitam o primeiro
gole, um dia de cada vez”. A manutenção da sobriedade é conseguida, de um lado, pela
participação nas reuniões do grupo e, de outro, pela prática do programa de recuperação
do alcoolismo, expresso nos Doze Passos e nas Doze Tradições.
Nesse sentido, a irmandade opera como um sistema cuja unidade primordial é o
indivíduo doente, valorizado em sua singularidade. Ao longo dos anos, algumas
expressões foram cunhadas e passaram a compor um vasto repertório, no qual se
enfatiza, como já dissemos, o caráter individual do modelo terapêutico da irmandade:
“AA é um programa egoístico”; ou “Primeiro eu, segundo eu, terceiro eu”.
A base de todo o programa de recuperação está expressa nos Doze Passos
(Alcoólicos Anônimos, 2001):
1. Admitimos que éramos impotentes perante o álcool — que tínhamos
perdido o domínio sobre nossas vidas;
2. Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia nos
devolver à sanidade;
3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na
forma em que O concebemos;
4. Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos;
76
5. Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano a
natureza exata de nossas faltas;
6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses
defeitos de caráter;
7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições;
8. Fizemos uma relação de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e nos
dispusemos a reparar os danos a elas causados;
9. Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que
possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem;
10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós
o admitíamos prontamente;
11. Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato
consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o
conhecimento de Sua vontade em relação a nós e forças para realizar essa
vontade;
12. Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes passos,
procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar esses
princípios em todas as nossas atividades.
Na literatura oficial, os Doze Passos são definidos como: “um grupo de
princípios, espirituais em sua natureza que, se praticados como um modo de vida,
podem expulsar a obsessão pela bebida e permitir que o sofredor se torne íntegro, feliz e
útil” (Alcoólicos Anônimos, 2001: 11). Na teoria de A.A., portanto, eles compõem um
conjunto de procedimentos que o alcoólico deverá seguir para alcançar sua sobriedade e
também a ascensão espiritual que lhe servirá de base. Em entrevista, Paulo reconheceu
nos seguintes termos o significado deles para a sua recuperação: “‘Os passos’ é onde
realmente está a minha recuperação. Os passos são a minha segurança. Os Doze
Passos me ensinam a viver” (Paulo, entrevistado em 25 jan. 2005). Através desses
princípios, ele encontra a segurança necessária para manter sua sobriedade, dentro de
um “novo” estilo de vida.
Mas, se aos olhos dos AAs os Doze Passos significam a possibilidade de
iniciarem uma nova trajetória sem a necessidade do uso do álcool, esses princípios
também podem nos ajudar a visualizar os contornos da noção de pessoa construída no
77
interior da irmandade. Se não, vejamos. Os passos são todos voltados para o indivíduo
doente, orientando a “mudança” que deve acontecer na vida do alcoólico a partir de sua
entrada no grupo. Em entrevista, Marcos sublinha exatamente esse aspecto, quando fala
da mudança que a prática deles pode operar em sua vida:
Eu só posso mudar somente a mim. O programa é todo voltado para
mim. Eu tenho que usar toda essa programação dos Doze Passos para
mim. Eu não tenho como mudar as pessoas. O máximo, se eu
conseguir, é a mim. A única pessoa que eu posso modificar em algum
aspecto é a mim mesmo (Marcos, entrevistado em 26 fev. 2002).
Os Doze Passos reforçam o caráter individual do modelo terapêutico da
irmandade, já que cada indivíduo deve vivenciá-los, objetivando uma mudança em seu
modo de vida, agora sem o uso de bebida alcoólica. Essa mudança se inicia com o
reconhecimento de que se é “impotente perante o álcool” e de que se “perdeu o
controle” sobre a própria vida, tal como expresso no primeiro passo. É isso o que afirma
Ricardo, quando fala sobre a importância desse passo no modelo terapêutico:
Eu fui apresentado aos Doze Passos de A.A. E aí eu comecei a ver que
as coisas eram bem diferentes do que eu realmente pensava. O
primeiro passo de A.A. me falava sobre a impotência perante o
álcool. A derrota total. A partir do momento em que eu admiti que o
álcool era mais forte do que eu, as coisas parece que mudaram.
Parou a briga com o álcool, eu parei de lutar. Não luto mais com o
álcool [...] Toda vez que eu tentei provar que eu era mais forte que o
álcool, eu acabei perdendo a briga. Eu me recordo do tempo do
alcoolismo ativo, em que eu entrava no bar às nove horas da manhã,
tomava uma pinga e depois eu ia até a sarjeta e vomitava; e voltava lá
de novo, e dizia para o dono do bar: “Põe outra”. Era uma coisa de
louco. Eu sempre tentei brigar com o álcool e sempre fui vencido. A
partir do momento em que eu admiti a minha impotência, em que eu
admiti que eu estava derrotado, parece que as coisas mudaram.
Nunca mais eu tive necessidade de beber. E houve realmente uma
mudança na minha vida. A partir dessa admissão, vem uma
libertação, para cada um de nós, dessa compulsão pela bebida. É um
princípio de humildade. Para nós, que éramos nossos deuses, termos
que admitir nossa impotência, e que não temos o domínio da vida...
(Ricardo, reunião temática, 09 jun. 2002).
Ricardo afirma que sua vida mudou somente a partir do momento em que ele
parou de “lutar contra o álcool”. Somente assim, ele conseguiu se libertar da
“compulsão pela bebida”. Nos tempos do alcoolismo ativo, ele acreditava poder
controlar o ato de beber segundo a própria vontade. O álcool, aqui, deixa de ser o
78
mediador da sociabilidade, criada pela reciprocidade vivida no ato de beber, para
assumir o papel de “vetor” do alcoolismo; um “outro” exterior, contra o qual o alcoólico
“luta”, tentando provar que é mais forte.
Aqui, o álcool, em vez de levar à troca e à sociabilidade, fecha o alcoólico no
ciclo da dependência, encerrando-o em uma “luta” que o conduz à derrota e à queda.
Durante esse período, como aponta Bateson (1977: 279), vigora uma estrutura
semântica baseada na “lógica do desafio”, presente na proposição “eu posso controlar o
ato de beber”, que se opõe à “lógica da derrota”, presente na idéia contrária, a do “eu
não posso”. Não por acaso, Ricardo insistia em “brigar” com o álcool, acreditando que
era mais forte, mas sempre acabava “perdendo a briga” e, conseqüentemente o controle
sobre a bebida e sobre a sua vida.
Os AAs dizem que dar esse passo é condição necessária para a recuperação.
Caso contrário, há sempre o risco de uma recaída. É significativo o modo como Ricardo
se refere a essa situação:
A nossa literatura já diz: nada de bom vai acontecer com o
companheiro que não admitir a sua derrota. De vez em quando me
perguntam: “Puxa, aquele camarada, com tantos anos de A.A.,
recaiu. O que foi que aconteceu?” Ele se esqueceu de praticar o
primeiro passo a cada 24 horas. Ele se esqueceu de que era impotente
perante o álcool. Os companheiros recaem porque se esquecem de
sua impotência diante do álcool. A própria doença nossa trabalha
contra. Aí, basta tomar uma só dose que o resultado é sempre o
mesmo: a recaída (Ricardo, reunião temática em 09 jun. 2002).
Nessa linha, é necessário que o alcoólico reconheça que foi “derrotado pelo
álcool” e que é refém de uma força que ele não consegue controlar seguindo apenas a
própria vontade. Isso é conseguido através da internalização da condição de doente,
obtida pela objetivação produzida pelo modelo biomédico da “doença do alcoolismo” e
pela troca de experiências com outros membros do grupo. Dentro desse regime de
alteridade, a luta contra o “outro” exterior, representado pelo álcool, é substituída pela
“convivência” com o “outro” interno, vivido simbolicamente através da condição de
portador da “doença alcoólica crônica e fatal”, reiterada e reificada cotidianamente nas
reuniões de recuperação:
79
Eu sou João, um doente alcoólico em recuperação. Eu agradeço ao
Poder Superior, companheiros e companheiras que me ajudam nessa
recuperação. Sou portador da doença do alcoolismo, uma doença que
tava guardada dentro de mim e que se manifestaria em qualquer
ocasião em que eu tivesse contato com a bebida alcoólica. Eu poderia
ter evitado tudo no mundo, mas um dia eu beberia, nem que fosse por
curiosidade, e aí estaria a conseqüência (João, 65 anos, viúvo, 12
anos de A.A., aposentado, reunião de recuperação aberta, 16 mar.
2002).
A idéia de doença é representada semanticamente pela proposição: “o alcoólico
sempre será um alcoólico”. Como sublinha Bateson (1977: 279 – trad. minha): “o
objetivo perseguido [no modelo de A.A.] é o de permitir que o alcoólico coloque seu
alcoolismo no interior de si mesmo”, incorporando-o através da idéia de que se é
portador de uma “doença incurável”, com a qual deve-se aprender a conviver.
Na troca de experiências entre os AAs, a condição de doente é reiterada, através
da lembrança permanente e repetida das experiências etílicas de cada indivíduo e do
caminho rumo à sobriedade, ancorada nos instrumentos fornecidos pelo grupo. De
acordo com Soares (1999: 260):
Contra a ameaça de que o esquecimento das condições de doente-
alcoólico facilite a tentação do primeiro gole, contra o perigo de que a
‘negação’da incapacidade de controlar a bebida leve o alcoólatra a
supor-se novamente senhor de sua vontade e capaz de prescindir do
poder superior — e do grupo —, os AAs cultivam um inventário de
experiências de que se valem tanto os novatos quanto o mais antigo
veterano, jamais liberto por completo das armadilhas insidiosas de sua
doença.
No modelo de A.A., então, o alcoolismo é entendido como um mal que o
indivíduo traz em si mesmo; que é parte dele, mas que pode ser controlado, desde que
ele aceite a existência da doença e a impossibilidade de enfrentá-la sozinho: “O fato é
que a maioria dos alcoólicos, por razões ainda obscuras, perde o poder de decisão diante
da bebida. Nossa assim chamada ‘força-de-vontade’ torna-se praticamente inexistente
[...] Não temos qualquer proteção contra o primeiro gole” (Alcoólicos Anônimos, 1994:
47). Por isso, é necessário realizar o segundo passo e acreditar em um “Poder Superior”,
capaz de devolver a “sanidade” àquele que sofre do mal do alcoolismo.
Ricardo fala nos seguintes termos sobre o segundo passo e sobre a necessidade
de se “render ao Poder Superior”:
80
O que mata o alcoólico não é bebida, mas sim o orgulho. É o fato de
ele não admitir que ele está derrotado e que precisa de ajuda. Eu fui
a última pessoa a admitir que eu tinha problema com a bebida e que
não tinha controle sobre a minha vida. Hoje eu penso que algumas
coisas eu posso tentar fazer da melhor maneira possível, mas outras
coisas independem da minha vontade. É preciso admitir um Poder
Superior. Eu fui um daqueles que teve que admitir que Alcoólicos
Anônimos é meu Poder Superior. É o grupo como Poder Superior. Eu
aprendi dentro do A.A. a conhecer e compartilhar esse Deus
horizontal, que se manifesta dentro de Alcoólicos Anônimos. Esse
Deus, que muitas vezes me fala através do depoimento de um
companheiro. Várias situações da minha vida eu consegui resolver
dentro de A.A. É Deus se manifestando através dos companheiros
(Ricardo, reunião temática, 09 jun. 2002).
Nesse contexto, não há outra saída para o alcoólico senão colocar em prática o
“princípio da humildade”, isto é, admitir que a vontade individual é impotente para
assumir o controle da própria vida e aceitar a ajuda de um Poder Superior. Mas, aceitar
a ajuda do Poder Superior significa, sobretudo, fazer parte do grupo de A.A., trocando
experiências com outros alcoólicos que vivem o mesmo problema. É no grupo que se
aprende a compartilhar esse “Deus horizontal”, que se “manifesta através do
depoimento de um companheiro”. Em outras palavras: é no grupo que os AAs se
ajudam mutuamente, integrando-se novamente ao círculo da troca, fundamento de todo
laço social. É através da troca de experiências que o indivíduo reitera sua condição de
doente, ouvindo a voz desse “Deus horizontal”, que fala através das “boas palavras”
trocadas cotidianamente nas reuniões de recuperação.
Mas reconhecer a “impotência diante ao álcool” e “render-se ao Poder Superior”
também significa evitar o “egocentrismo” e o “orgulho” atribuídos ao comportamento
do alcoólico nos tempos de seu alcoolismo ativo, quando, dizem os AAs, acreditavam
que tinham o controle e o domínio sobre todos os seus atos. Admitindo sua
“impotência” e “entregando sua vida” ao Poder Superior, tal como prevê o terceiro
passo, o alcoólico deixa de atuar de modo “egocêntrico” e reconhece “humildemente”
que é portador de uma “doença incurável”, da qual ele não é capaz de dar conta sozinho,
necessitando de ajuda. Segundo a literatura de A.A.: “Não poderíamos ter reduzido
nosso egocentrismo através de nossa vontade ou contando com nossa própria força.
Precisamos da ajuda de Deus” (Alcoólicos Anônimos, 1994: 83). O modelo adotado
ensina o alcoólico a reconhecer seus próprios limites, superando o “egocentrismo” dos
tempos do alcoolismo ativo. Certa vez, em uma conversa, Paulo reforçou essa idéia ao
dizer: “Se a mesa desta sala tem limites, o que dizer de nós, seres humanos?”.
81
É, então, somente através da submissão “humilde” ao Poder Superior que o
alcoólico pode resgatar a responsabilidade do cuidado de si próprio, mantendo a doença
sob controle. Humildade e responsabilidade são, então, dois valores axiais do modelo
terapêutico da irmandade. Como sublinha Soares (1999: 272-273):
A definição do alcoolismo dos AAs não supõe a responsabilidade do
doente pela aquisição de sua doença, mas remete, ao contrário, ao
terreno da fatalidade e da aleatoriedade. Iniciar o programa de
recuperação significa adotar duas atitudes aparentemente opostas. A
primeira, a humildade, significa reconhecer a impotência diante da
doença. Isso quer dizer que o alcoólico admite a doença e, mais do
que isso, aceita que não é responsável por tê-la “contraído”. A
segunda, a responsabilidade, significa o compromisso de tomar a
frente do processo de recuperação.
Mas não estaríamos aqui diante de uma construção diferencial da pessoa, cujas
características contrastam com o modelo individualista moderno? Como exposto até
aqui, assistimos à construção de uma noção de pessoa, fabricada dentro do grupo, que
relativiza a noção moderna de indivíduo “auto-suficiente”, “independente”,
“indivisível” e “soberano”.
Como assinala Godbout, o modelo de A.A. é fundado na “dádiva maussiana” e
exige que o indivíduo reconheça que é “impotente diante do álcool” e que,
conseqüentemente, não pode dar conta do alcoolismo sozinho. Para esse autor:
Um tal reconhecimento significa que a pessoa rompe com o
narcisismo do indivíduo moderno, que gera uma confiança sem limites
em suas capacidades pessoais de indivíduo “autônomo e
independente”
50
(2000a: 104 – trad. minha).
Trata-se, de um lado, de uma noção de “pessoa alcoólica” que traz o “outro”
dentro de si, objetivado na idéia de uma “doença crônica e fatal”, com a qual o alcoólico
deve aprender a conviver. De outro, trata-se de uma noção de pessoa que relativiza a
crença moderna do controle de si mesmo pela própria vontade. No modelo de A.A.,
afirma Bateson (1977: 269 – trad. minha), “ser vencido pelo álcool e estar consciente
disso constitui o primeiro passo de uma ‘experiência espiritual’. O mito do controle de
50
Ainda, segundo Godbout (2000b: 104 – trad. minha): “O indivíduo que adere ao A.A. troca a
consciência narcísica solitária do alcoólico pela consciência de fazer parte de um conjunto mais vasto ao
qual ela se entrega. Ele experimenta a extensão da consciência que acompanha a conexão a um sistema da
dádiva, e no qual ele encontra a força para enfrentar sua ‘doença’”.
82
si pelo próprio sujeito é, assim, demolido pela colocação em seu lugar de um poder
superior”.
É assim que, uma vez suavizado seu “egoísmo” e seu “ressentimento”, o
alcoólico pode agora se relacionar com o outro exterior, reconhecendo a alteridade, de
maneira a resgatar, na família e no trabalho, os laços que haviam sido rompidos no
tempo do alcoolismo ativo. Ora, o alcoólico agora pode “realizar um inventário moral
de si mesmo”, um “auto-escrutínio”, tal como expresso no quarto passo, e reforçado do
quinto ao décimo-primeiro passos. Basta olhar para dentro de si mesmo, através de uma
“viagem interiorizante”, que ele encontrará o mapa de suas imperfeições e seus
“defeitos de caráter”, podendo assim “reparar as faltas e os danos causados a outrem”.
É esse o significado do “despertar espiritual”; única maneira, segundo os AAs,
de devolver a sanidade e a serenidade ao doente alcoólico. Consciente de seus “defeitos
de caráter” e ajudado pelo Poder Superior, consubstanciado no apoio mútuo entre os
membros da irmandade, o alcoólico se reconhece como um “doente em recuperação” no
dever de ajudar outros alcoólatras que se encontrem na mesma situação, como reza o
décimo segundo passo.
Mas, para eles, a eficácia do modelo terapêutico depende, fundamentalmente, da
unidade da irmandade na realização de seu objetivo principal, qual seja, a recuperação
do indivíduo doente. Para isso, foram estabelecidas as chamadas Doze Tradições, que
analisaremos a seguir.
3.2 As doze tradições e as fronteiras simbólicas da irmandade
O modelo terapêutico de A.A. compreende uma organização social baseada na
unidade entre suas partes. Essa unidade é, como dizem os AAs, fundamental para o
desenvolvimento e reprodução da irmandade. Sua manutenção é obtida através de um
outro conjunto de preceitos, chamado de as Doze Tradições. São elas:
1. Nosso bem-estar comum deve estar em primeiro lugar; a reabilitação
individual depende da unidade de A.A.;
83
2. Somente uma autoridade preside, em última análise, ao nosso propósito
comum — Deus amantíssimo, que Se manifesta em nossa consciência
coletiva. Nossos líderes são apenas servidores de confiança; não têm poderes
para governar;
3. Para ser membro de A.A., o único requisito é o desejo de parar de beber;
4. Cada grupo deve ser autônomo, salvo em assuntos que digam respeito a
outros grupos ou A.A. em seu conjunto;
5. Cada grupo é animado de um único propósito primordial — o de transmitir
sua mensagem ao alcoólico que ainda sofre;
6. Nenhum grupo de A.A. deverá jamais sancionar, financiar ou emprestar o
nome de A.A. a qualquer sociedade parecida ou a empreendimento alheio à
Irmandade, a fim de que problemas de dinheiro, propriedade e prestígio não
nos afastem do nosso objetivo primordial;
7. Todos os grupos de A.A. deverão ser absolutamente auto-suficientes,
rejeitando quaisquer doações de fora;
8. Alcoólicos Anônimos deverá manter-se sempre não-profissional, embora
nossos centros de serviços possam contratar funcionários especializados;
9. A.A. jamais deverá organizar-se como tal; podemos, porém, criar juntas ou
comitês de serviços diretamente responsáveis perante aqueles a quem
prestam serviços;
10. Alcoólicos Anônimos não opina sobre questões alheias à Irmandade;
portanto, o nome de A.A. jamais deverá aparecer em controvérsias públicas;
11. Nossas relações com o público baseiam-se na atração em vez da promoção;
cabe-nos sempre preservar o anonimato pessoal na imprensa, no rádio e em
filmes;
12. Anonimato é o alicerce espiritual das nossas tradições, lembrando-nos
sempre da necessidade de colocar os princípios acima das personalidades.
Na literatura oficial, encontramos uma definição desses preceitos: “As doze
tradições dizem respeito à vida da própria irmandade. Delineiam os meios pelos quais
A.A. mantém sua unidade e se relaciona com o mundo exterior, sua forma de viver e
desenvolver-se” (Alcoólicos Anônimos, 2001: 11). Em entrevista, Paulo refere-se a elas
nos seguintes termos:
84
As tradições garantem a segurança da irmandade. É nas doze
tradições que se localiza a segurança de nossa irmandade. São elas
que dão total liberdade para os membros pensarem, falarem e agirem
livremente. Os grupos podem tomar suas decisões, desde que não
interfiram na autonomia de outros grupos. As doze tradições ensinam
a conviver, elas dizem respeito ao coletivo e ao grupo (Paulo,
entrevistado em 25 jan. 2005).
Na teoria nativa, portanto, as tradições ensinam os AAs a viver e a relacionar-se
com a sociedade em geral, garantindo os limites da irmandade, diferenciando-a de
outras instituições da sociedade civil. É através delas que os membros do grupo
aprendem a “conviver” entre si e com o mundo exterior, de maneira a exercitar a
liberdade de ação e pensamento, ao mesmo tempo em que desenvolvem o respeito
mútuo, fundamental para a manutenção da irmandade.
Uma análise mais acurada, porém, aponta para o sentido “político” presente nas
doze tradições. Trata-se de fabricar o “corpo coletivo” da irmandade, como um espaço
institucional, definindo o status do grupo e a forma de relacionamento que os AAs
devem manter entre si e com o mundo exterior. As tradições revelam-se pragmáticas
nas suas intenções, dizendo aquilo que a irmandade deve ou não fazer para se manter
unitária. Elas referem-se, portanto, à afirmação da unidade, entendida como um valor
fundamental para a sobrevivência e a reprodução do grupo. É nessa linha que devemos
entender a exigência para que os grupos sejam “autônomos e auto-suficientes”
financeiramente, bem como que evitem a “autopromoção”, não se envolvendo em
“controvérsias públicas”, preservando o “anonimato” de seus membros. Todo o esforço
é empreendido no sentido de se evitar as diferenciações internas, afirmando os valores
da irmandade.
Com isso, garante-se a permanência de uma instituição voltada exclusivamente
para a recuperação de seus membros, conseguida pelo partilhar de experiências comuns.
“Somente um alcoólico pode ajudar outro alcoólico”, dizem os AAs, reforçando a idéia
de que a irmandade depende si mesma para sobreviver. A reprodução social da
instituição não depende da interação com a alteridade exterior, mas desenvolve-se a
partir de “si mesma”, de uma unidade interna garantida tanto por suas tradições como
pela troca de experiências entre seus membros.
O modelo terapêutico, então, esfria a alteridade externa, mantendo-a em um grau
próximo de zero, de maneira que sua reprodução se dá nos moldes da divisão social por
solidariedade mecânica durkheiminiana, isto é, a partir de um mesmo núcleo pouco
85
aberto à interação com o outro exterior. Não por acaso, os AAs dizem que o grupo é
uma espécie de nova “família” para o alcoólico.
Desse ponto de vista, a reprodução da irmandade opera uma espécie de
“afastamento diferencial” em relação a outras instituições e sistemas de significação
também dedicados ao combate contra o alcoolismo. As tradições apontam para a
delimitação das “fronteiras simbólicas” da irmandade, diferenciando-a de outras ordens
de significados voltadas para a questão do alcoolismo.
Também é possível estabelecer um paralelo entre os Doze Passos e as Doze
Tradições. Enquanto os Doze Passos dizem respeito ao indivíduo doente, e são voltados,
preponderantemente, para a construção da “pessoa alcoólica” e sua espiritualidade, as
Doze Tradições dirigem-se para o mundo exterior, delineando os contornos da
irmandade. Os passos são voltados para dentro, para o interior da irmandade, falando
diretamente ao indivíduo doente, favorecendo, ao mesmo tempo, sua formação
espiritual e pessoal. Já as tradições são voltadas para fora, definindo os limites
institucionais da irmandade, contrastando-a com outras instituições da sociedade em
geral. As chamadas “regras de ouro” da irmandade formam, portanto, uma unidade de
contrários que garante, ao mesmo tempo, a reprodução do grupo e a elaboração da
identidade do “doente alcoólico em recuperação”; e, por essa via, garante ainda a
fabricação de uma noção de “pessoa alcoólica”.
A recuperação do indivíduo doente depende da unidade do grupo e de sua
afirmação diante de outras instituições, de maneira a permitir a reprodução dos
princípios que regem o modelo terapêutico de A.A. É somente assim que os AAs podem
se reconhecer como “doentes alcoólicos em recuperação”, para jamais se esquecerem de
que são “impotentes diante do álcool”. É também assim que eles constroem uma
moldura para si, sedimentada nos princípios doutrinários que balizam as relações de uns
com os outros e de todos juntos com a sociedade que os envolve.
Com isso, edificam um espaço institucional no interior do qual põem em prática
os princípios de seu programa de recuperação. Eles se identificam com as idéias e os
valores de tal espaço institucional, consolidando a reprodução da irmandade. Por meio
dessa identificação, também ficam aptos a contrastar a imagem da irmandade,
simbolicamente, com a das demais instituições e grupos sociais. A base sobre a qual se
assenta todo esse edifício é o grupo de A.A, o local, como dizem os AAs, “onde tudo
começa”.
86
3.3 Recuperação, serviço e unidade em A.A.
Para que um grupo assuma a “responsabilidade de transmitir a mensagem de
A.A. ao alcoólico sofredor que procura ajuda” (Alcoólicos Anônimos, 1996: 13), é
preciso que os AAs se ocupem das tarefas necessárias tanto para a organização de suas
atividades fundamentais quanto para a manutenção da sobriedade de seus membros, tais
como:
providenciar e manter a sala de reuniões;
programar as reuniões e atividades do grupo, mantendo um painel de avisos
para a fixação das notícias e dos boletins de A.A.;
disponibilizar a literatura aprovada pela Conferência de A.A.;
disponibilizar a publicação brasileira da irmandade, a revista Vivência, e
familiarizar os membros do grupo com ela;
garantir que haverá sempre água e café disponíveis no local das reuniões;
possibilitar aos alcoólicos o acesso às informações sobre o grupo e as
atividades gerais de serviços na área;
manter contato com os demais grupos de A.A., através do Escritório de
Serviços Gerais (Alcoólicos Anônimos, 1996: 14-29).
Em geral, o novato é instado a participar das atividades dos grupos após um
período de sobriedade
51
. Ele passa inicialmente por uma espécie de “reconhecimento”,
devendo tomar contato com a literatura da irmandade. Só depois de participar das
algumas reuniões ele pode se encarregar de algum dos “serviços” essenciais para o
funcionamento do grupo, entre os quais se destacam os postos de: coordenador;
secretário-geral; tesoureiro; representante nas reuniões intergrupais (RI), que participa
de reuniões de serviço com representantes de outros grupos para partilhar a experiência
de seu grupo na transmissão da mensagem de A.A.; representante de serviços gerais
(RSG), que representa o grupo na Conferência de Serviços Gerais de A.A.;
51
O período para que o alcoólico comece a assumir as atividades de manutenção do grupo pode variar de
grupo para grupo e depende, também, do desenrolar do tratamento. No grupo Sapopemba, esse período é
de três meses após a entrada na irmandade. Todavia, durante a pesquisa de campo, assisti a membros
assumindo a coordenação das reuniões após um mês de sobriedade.
87
representante da revista Vivência (RV), que é o responsável pela divulgação entre os
membros do grupo da revista brasileira de A.A.; representante do Comitê de Trabalho
com os Outros (CTO), responsável por fazer a divulgação da irmandade na comunidade,
notadamente, em escolas e nas igrejas, no horário da missa; e secretário de manutenção.
A escolha dos servidores é feita na chamada “reunião de serviços”. Observou-se
que o grupo Sapopemba fazia algumas diferenciações entre seus membros. As posições
que exigiam um maior domínio da leitura e/ou da escrita, em geral, eram atribuídas
àqueles com nível de formação escolar mais elevado ou com mais anos de prática do
programa de A.A. Já a função de manutenção da sala e preparo do café para as reuniões,
por exemplo, era ocupada por um membro com baixa escolaridade. Alguns membros
recusaram o papel de coordenador das reuniões, reconhecendo certas dificuldades de
leitura. Esse dado também foi observado por Garcia, em sua pesquisa no grupo Doze
Tradições, no qual as posições que demandavam relações externas e/ou domínio da
escrita também eram ocupadas pelos profissionais mais qualificados, com nível de
escolaridade mais elevado e/ou com mais anos de adesão. A posição de secretário de
manutenção, cuja função é cuidar da arrumação e limpeza da sala, era ocupada por
indivíduos semi-analfabetos, com maior dificuldade em articular o discurso (Garcia,
2004: 76).
Embora essas diferenciações existam, é importante salientar que não encontrei
em minha observação nenhuma diferenciação relacionada às atividades executadas
pelos homens e pelas mulheres. Em relação a esse aspecto, é importante retomarmos o
que diz Mäkelä (1996: 175 – trad. minha), quando se refere às posições do homem e da
mulher nos “serviços” em A.A.:
Na sociedade em geral, as mulheres são subordinadas aos homens, e a
divisão do trabalho é diferenciada: em parte alguma mulheres gozam
de um status igual ao do homem, e algumas tarefas pertencem à
mulher e outras aos homens. Na contramão, A.A. enfatiza que todos
os membros são iguais em seu alcoolismo e que nenhum é mais
alcoólico do que o outro. No interior de A.A., eles são também
persuadidos a acreditar que todas as tarefas dos serviços são
importantes tanto para o grupo quanto para a recuperação individual.
Ao servir café ou ao arrumar as cadeiras, eles sabem que estão agindo
de uma maneira igualmente valorizada.
88
No grupo Sapopemba, tanto os homens como as mulheres executam todas as
tarefas necessárias à manutenção da sala: limpam, varrem, fazem o café e deixam a sala
em ordem para a realização das reuniões, assumindo, assim, as tarefas essenciais para o
funcionamento do grupo
52
. Algumas reuniões de recuperação, que tive oportunidade de
observar, também eram coordenadas pelas mulheres que participam da irmandade.
Os escolhidos não são propriamente empossados num cargo, mas passam a ser
considerados “servidores de confiança” do grupo. Teoricamente, as posições descrevem
apenas “serviços e responsabilidades”, para os quais devem ser “eleitos” membros com
o único objetivo de assegurar o bem-estar do grupo em geral (Alcoólicos Anônimos,
1996:26).
Durante a pesquisa etnográfica, pudemos observar a enorme importância que
exercer os serviços no grupo tem na recuperação dos membros de A.A.. Eu procurava
chegar mais cedo às reuniões e logo era recebido pelo “servidor” responsável pela tarefa
de manutenção da sala de reuniões. Mauro, 72 anos, casado, 23 anos de A.A.,
aposentado, um membro “veterano” do grupo, me dizia satisfeito: “é importante para
minha recuperação ajudar os companheiros, receber; isso me ajuda também”.
A importância da prestação de serviços à irmandade remonta às suas origens e
foi sintetizada pelos co-fundadores como um dos três legados de A.A.: “Recuperação,
Serviço e Unidade”. O primeiro diz respeito ao compromisso do alcoólico de utilizar o
programa adotado para sua recuperação individual; o segundo refere-se às tarefas
executadas no interior da irmandade, deixando-a sempre em condições para receber
alguém que procure ajuda; e, enfim, o terceiro legado afirma a importância da unidade
da irmandade para a recuperação do indivíduo doente.
A recuperação de um alcoólico depende da manutenção da unidade do grupo, no
qual ele poderá readquirir a responsabilidade perdida nos tempos do alcoolismo ativo.
Embora o modelo seja centrado na recuperação individual de seus membros, estes só
podem controlar a doença do alcoolismo participando das atividades dentro da
irmandade. É isso que afirma Bill Wilson, ao se referir à importância do grupo para a
recuperação do alcoólico:
52
Embora as mulheres assumam as tarefas na organização do grupo Sapopemba, é importante ressaltar
que algumas delas encontram dificuldades devido ao fato de também terem de “cuidar de casa”. Certa
vez, em uma conversa, uma das mulheres que participa do grupo me disse: “Até que gostaria de assumir
os serviços e ajudar mais o grupo, mas tenho que cuidar também de meus filhos e netos” .
89
Aflora em cada membro a percepção de que ele não é senão uma
pequena parte de um grande todo [...] Ele aprende que o clamor dos
seus desejos e de suas ambições internas deve ser silenciado sempre
que possa prejudicar o Grupo. Torna-se evidente que o Grupo precisa
sobreviver para que o indivíduo viva (Alcoólicos Anônimos, 1996:
14).
É na relação entre o indivíduo e o grupo que os três legados se concretizam e
que se constrói a eficácia do modelo terapêutico, de maneira que o indivíduo só pode se
reconhecer como um “doente alcoólico em recuperação”, assumindo a responsabilidade
no cuidado de si mesmo, no interior da rede de ajuda vivida dentro da irmandade.
Assiste-se, assim, à concretização da máxima proposta por A.A. de que é preciso
que se coloque “os princípios acima das personalidades”. Somente dessa maneira, o
alcoólico pode readquirir a responsabilidade pelo cuidado de si mesmo na busca pela
sobriedade. Essa exigência nos coloca diante de uma forma específica, para usar a
expressão de Fassin (1996: 199- 281), de “gouvernement de la vie”. Ou seja, o
exercício da responsabilidade individual no cuidado de si mesmo se manifesta no
interior de um modelo de gestão coletiva da saúde, tal como o proposto pela irmandade.
Como afirma esse pesquisador (1996: 273 – trad. minha), trata-se nesse caso, “da
coexistência de interpretações e de políticas que se referem ao individual e ao coletivo,
ou mesmo à integração de normas e práticas de tipo individualista à gestão coletiva da
saúde”.
O modelo aponta para a existência de um elo intrínseco entre o indivíduo e o
grupo, sinalizando também para uma relativização da noção substantiva de indivíduo,
entendido como um ser autônomo e auto-suficiente. Como sublinha Castel, em
entrevista a Claudine Haroche: “um indivíduo não existe como uma substância e, para
que exista como indivíduo, é necessário ter suportes; é, portanto, necessário que se
interrogue sobre o que há ‘atrás’ do indivíduo, que lhe permite existir como tal”
53
(Castel e Haroche, 2001:13 — grifo do original – trad. minha).
É nesse sentido que devemos entender a exigência de que, em A.A., para que o
indivíduo floresça, é necessária a existência do grupo, que opera como um “suporte”
capaz de permitir o exercício da autonomia e da responsabilidade individual. Ainda,
53
Com explica Castel (2000: 30 – trad. minha), “o termo ‘suporte’ pode ter várias acepções [...] é a
capacidade de dispor de reservas que podem ser de tipo relacional, cultural, econômica etc, e que
constituem os fundamentos sobre os quais pode se apoair a possibilidade de se desenvolver as estratégias
individuais”.
90
segundo Castel (2001: 166 – grifo do original – trad. minha), “o indivíduo não é dotado
a priori de consistência”. Logo, ele necessita do apoio e da base fornecida pela matriz
coletiva e relacional da irmandade para desabrochar.
Nessa linha, para compreendermos a construção da pessoa dentro do modelo de
A.A. é necessário voltarmos nossas atenções para o grupo de A.A., pois é dentro da
matriz coletiva e relacional fornecida pelo grupo que o indivíduo pode florescer,
recuperando a responsabilidade no cuidado de si mesmo.
3.4 O grupo de A.A.: uma rede de ajuda para o indivíduo doente
Quando alguém entra em contato com o Escritório de Serviços Gerais de A.A.,
através de sua “linha de ajuda”
54
, com a intenção de obter informações sobre a
irmandade, em geral é encaminhado a um grupo localizado próximo à sua residência. O
grupo é considerado como a porta de entrada da irmandade; é o local onde seus
membros se reúnem para trocar suas experiências e colocar em prática seu programa de
recuperação.
O grupo é definido como a unidade básica de A.A., em que se iniciam os passos
da caminhada rumo à sobriedade. A formação de um grupo exige que sua necessidade
seja expressa por um conjunto de recursos, composto, “no mínimo, por dois ou três
alcoólicos; a cooperação de outros membros de A.A.; um local para as reuniões; uma
garrafa térmica de café; a literatura de A.A. e as relações de endereços de Grupos”
(Alcoólicos Anônimos, 1996: 23).
Os AAs costumam dizer que os grupos são a fonte de onde emana toda a
“responsabilidade final e autoridade suprema dos Serviços Mundiais” da irmandade, o
que faz desta uma “organização de ponta-cabeça” (Alcoólicos Anônimos, 1996: 13). É
dos grupos que emergem as decisões que vão orientar os rumos da irmandade. Aqui,
não há centralização de poder, de maneira que todos participam da escolha dos
representantes que atuam nas várias instâncias em que se divide a estrutura interna da
irmandade. Como explica Marcos, membro do ESG:
54
A “linha de ajuda” é o nome dado ao plantão telefônico de 24 h., localizado na sede do ESG., que
auxilia aqueles que necessitem obter informações sobre a irmandade.
91
Para a manutenção de nossa unidade, nós precisamos de nossos
organismos de serviços [...] cada grupo tem um representante de
serviços gerais, que representa a consciência do grupo; um
determinado número de grupos forma um distrito, com seu membro
coordenador de distrito, que representa a consciência coletiva de
determinado número de grupos; a reunião dos distritos forma um
setor, que tem um diretor geral. A reunião dos setores forma uma
área, cujo Comitê de Área é composto por dois delegados, um
coordenador, um secretário e um tesoureiro. Os dois delegados
representam a consciência coletiva da área perante a Conferência de
Serviços Gerais, responsável pela manutenção dos serviços na
irmandade. Da Conferência, são retirados dois delegados,
encaminhados à Conferência de Serviços Mundiais, realizada nos
EUA. Essa é uma divisão que facilita o trabalho e delega poderes.
Assim, as decisões circulam pelo mundo inteiro; essa é nossa unidade,
que permite que o coração de A.A. bombeie sangue por todas as
artérias. Assim, todos sabem o que acontece no mundo inteiro
(Marcos, entrevistado em 26 fev. 2002).
A metáfora orgânica usada por Marcos ilustra bem a interdependência entre a
parte — os membros do grupo — e o todo — a própria irmandade. O alcoólico é
incentivado a participar das atividades e a assumir suas responsabilidades em relação ao
grupo de base e à irmandade como um todo. No interior do grupo, ele participa
ativamente das tomadas de decisão, pelo voto, que traduz a chamada “consciência
coletiva”. Para os AAs, essa é a característica mais marcante da irmandade, a que faz
dela uma organização democrática. Segundo sua literatura oficial:
O trabalho essencial dos grupos de A.A. é realizado por alcoólicos que
estão, eles mesmos, se recuperando na Irmandade, e cada um de nós
tem o direito de realizar sua tarefa em A.A. da forma que achar
melhor, dentro do espírito das tradições. Isso significa funcionar como
uma democracia, sendo todos os planos de ação do grupo aprovados
pela voz majoritária (Alcoólicos Anônimos, 1996: 14).
Ora, a organização social de A.A. ressemantiza, em seu interior, os valores
próprios do individualismo moderno, característico das sociedades democráticas, a
saber: a igualdade e a liberdade. Como sublinha Dumont (1992: 52):
Nossas idéias cardinais chamam-se igualdade e liberdade. Elas
supõem como princípio único e representação valorizada a idéia do
indivíduo humano [...] Esse indivíduo é quase sagrado, absoluto; não
possui nada acima de suas exigências legítimas; seus direitos só são
limitados pelos direitos idênticos dos outros indivíduos.
92
Mas a presença dessa verdadeira “exaltação” dos valores da modernidade não
deve conduzir a uma leitura unívoca da relação entre o modelo de A.A. e a ideologia do
individualismo moderno. O próprio Dumont (1983: 32) alerta para a necessidade de se
evitar uma leitura definitiva em torno do individualismo moderno:
Para começar, procurou-se isolar o que é característico da
modernidade, em oposição ao que a precedeu e ao que com ela
coexiste, e descrever a gênese desse algo a que chamamos aqui
individualismo. Durante essa etapa, houve a tendência acentuada para
identificar individualismo e modernidade. O fato maciço que ora se
impõe é que existe no mundo contemporâneo, mesmo em sua parte
“avançada”, “desenvolvida” ou “moderna” por excelência, e até no
plano tão somente dos sistemas de idéias e valores, no plano
ideológico, alguma outra coisa que nada tem a ver com o que se
definiu diferencialmente como moderno. E bem mais que isso:
descobrimos que numerosas idéias-valores que se aceitavam como
intensamente modernas são, na realidade o resultado de uma história
em cujo transcurso modernidade e não-modernidade ou, mais
exatamente, as idéias valores individualistas e suas contrárias,
combinaram-se intimamente.
A análise que fazemos aqui da relação entre o modelo terapêutico de A.A. e os
valores da modernidade parece ser da mesma natureza. Trata-se da coexistência de
referências à “liberdade” e à “responsabilidade” do indivíduo em praticar o programa de
A.A. com uma ênfase no plano coletivo, na qual se afirma a necessidade do alcoólico
agir “dentro do espírito das tradições”. Nesse sentido, o exercício da individualidade só
pode ser dar no espaço coletivo e relacional oferecido pela irmandade.
Como foi dito, dentro do grupo, todos os AAs são considerados iguais, isto é,
todos são “doentes alcoólicos em recuperação” que participam ativamente da tomada de
decisões e, ao mesmo tempo, que têm autonomia para executar as tarefas propostas na
irmandade, desde que não contrariem suas tradições.
É importante também que eles freqüentem as reuniões, engajando-se nas
atividades de seu grupo base, local onde eles podem assumir responsabilidades, dentro
de uma rede de amizades:
Ao longo dos anos, a própria essência da força de A.A. tem pertencido
ao Grupo Base que, para muitos membros, se converte na sua família
ampliada. Isolados até certa época pela bebida, os membros
descobrem no Grupo Base um sistema de apoio, amigos sólidos e
contínuos e, muito, freqüentemente, padrinhos. Eles aprendem ainda,
em primeira mão, através dos trabalhos do Grupo, como colocar “os
93
princípios acima das personalidades”, objetivando transmitir a
mensagem de A.A. (Alcoólicos Anônimos, 1996: 21).
É dentro do grupo que o ex-bebedor, que viveu as perdas relacionais e estava
“isolado pela bebida”, pode encontrar o suporte necessário à sua recuperação, uma rede
de apoio, e pode criar laços de amizade, algo que era impensável nos tempos do
alcoolismo ativo. Durante o evento comemorativo dos 67 anos de A.A., Ricardo usou as
seguintes palavras para falar sobre sua experiência como membro:
Eu me lembro das duas primeiras impressões que me ficaram quando
eu cheguei no A.A. e assisti à minha primeira reunião. Primeiro, uma
esperança muito grande, para mim que cheguei completamente
desesperançado, achando que a vida não tinha mais sentido,
pensando várias vezes em morrer, várias vezes em me matar [...]
Chegando em A.A., eu encontrei a esperança; depois de muitos anos,
eu tinha a esperança de que minha vida podia mudar e de que eu
poderia viver uma vida feliz. E como eu percebi isso? Através dos
depoimentos dos companheiros; através de pessoas que tinham
chegado muito mais fundo do que eu; que tinham sofrido muito mais
do que eu. Eu que me considerava o maior sofredor do mundo [...] É,
através dos depoimentos dos companheiros, eu pude ver que havia a
esperança de uma vida nova, uma vida diferente, de uma vida feliz. E,
em segundo lugar, eu tive a sensação imediata de que eu tinha
encontrado a minha turma. Encontrei pessoas que falavam das
mesmas coisas que eu sentia. (Ricardo, reunião temática, 09 jun.
2002).
O grupo, portanto, assegura ao alcoólico o pertencimento a uma rede formada
por iguais, atualizando cotidianamente sua condição de “doente alcoólico em
recuperação”, pois a doença do alcoolismo é tornada presente a cada gesto e palavra.
Ao mesmo tempo, o alcoólico encontra o apoio necessário para manter seu mal sob
controle.
As reuniões oferecem também ao alcoólico a possibilidade da construção de
“sólidos” laços de amizade
55
, cujo caráter se diferencia da relação de dependência
vivida nos tempos do alcoolismo ativo, pois os laços de agora são fundados no
compartilhar de um mesmo “problema”. Os AAs consideram que, no bar, não tinham
amigos; e que todos os desprezavam quando se embriagavam. Paulo, por exemplo, é
enfático ao afirmar que: “todos que freqüentavam o bar sumiram quando precisei de
55
A noção de amizade é tomada aqui no sentido de philia, definido por Aristóteles: como uma relação
possível apenas entre aqueles que são considerados iguais e compartilham da mesma situação.
94
ajuda” (Paulo, entrevistado em 22 jul. 2002).
A fala dos AAs reforça, então, a idéia de que a freqüência à reunião os “ajuda”
em sua recuperação, pois, com o tempo, o local se converte numa espécie de “casa” do
alcoólico, onde se estabelecem relações de confiança entre os membros. Um exemplo
disso ocorreu durante a realização da pesquisa de campo quando, infelizmente, um dos
membros do grupo Sapopemba veio a falecer. Ele era casado com uma “companheira”
que também fazia parte grupo, e todos sabiam da dificuldade financeira que ela teria
para enterrar dignamente o falecido. Paulo não se conformou com a possibilidade de um
membro do grupo ser enterrado como indigente. De imediato, ele acionou os
companheiros do grupo e sua rede de ajuda e aqueles que tinham condições se
cotizaram, possibilitando a realização do enterro. Em uma das noites em que estive no
grupo, Paulo me narrou esse episódio e, ao final, me disse: “se algum dia eu precisar de
alguma coisa, sabe onde vou buscar ajuda? Aqui, junto aos companheiros do grupo.
Nesse pessoal, eu confio”.
Ao participar das reuniões, em contato com outros alcoólicos que sofrem do
mesmo problema, os AAs reencontram a “esperança” de uma vida “diferente e feliz”,
por meio das histórias de vida narradas pelos outros alcoólicos em recuperação. São
histórias do tempo do alcoolismo ativo e das conquistas obtidas após a entrada na
irmandade, com as quais se identificam, reorganizando suas vidas através da atribuição
de novos sentidos à sua experiência, ao mesmo tempo em que redesenham os contornos
de uma compreensão de si mesmos como portadores de uma doença que os
acompanhará por toda a vida, mas que pode ser controlada.
É, portanto, para a reunião de recuperação que devemos lançar nosso olhar na
tentativa de compreender as práticas e os rituais terapêuticos vivenciados dentro do
grupo de A.A.. Na reunião, os AAs constroem uma fala sobre a doença, fala essa que
lhes torna possível expressar suas aflições, ao mesmo tempo em que dá um sentido à
sua experiência com o alcoolismo e define, para eles, os contornos de uma noção de
pessoa dentro da irmandade. É isso que veremos nas páginas a seguir.
95
Capítulo 4
OLHANDO DE PERTO: RITUAIS TERAPÊUTICOS EM
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS
Eu freqüento as reuniões para não esquecer
que sou doente. Que tenho essa doença do
alcoolismo. Eu preciso ouvir os
companheiros, pois nosso remédio é a
palavra.
Nilson, membro de A.A.
Vinte horas. Ao som de uma campainha, tocada pelo membro de A.A. que nesse
dia ocupa o papel de coordenador, tem início mais uma reunião de recuperação do
grupo Sapopemba. Em uma pequena sala, alugada e mantida pelas contribuições dos
membros — o que é motivo de satisfação para todos, pois evidencia a conquista da
auto-suficiência do grupo —, reúnem-se, todos os dias, das 20h00 às 22h00, homens e
mulheres, com o objetivo de se apoiarem mutuamente para “evitar o primeiro gole” e,
assim, “manter a sobriedade”, conforme o relato de seus membros. O aluguel da sala
diferencia esse dos outros grupos de A.A., que se reúnem em salas cedidas por igrejas,
escolas etc.
Os “companheiros”, como eles próprios se intitulam, vão chegando e
cumprimentando-se mutuamente. Tomam café ou chá, comem biscoitos e, embora não
haja controle de freqüência às reuniões, assinam um caderno de presença, que será
usado pelo coordenador da reunião para indicar aqueles que vão fazer seus depoimentos
no dia. Palavras, abraços fraternos, apertos de mão, gestos e sorrisos são trocados,
revelando a satisfação por estarem se reencontrando em mais um dia de sobriedade.
No momento em que o coordenador toca a campainha, todos passam para a sala
da reunião, sentam-se e aguardam, em silêncio, o início de mais um dia de recuperação.
A reunião é um momento, no qual os membros do grupo reforçam seus laços de
reciprocidade, unindo-se em torno do desejo de manter-se sóbrios. É nela que os AAs
(re)afirmam o compromisso de evitar o “primeiro gole”, ao mesmo tempo em que se
96
definem as decisões, os conflitos são solucionados e se estabelece as relações de
lealdade que unem a todos em torno do objetivo comum da manutenção da sobriedade.
Como dizem os AAs, eles podem “desabafar” e falar sobre os “problemas”
causados pela “doença do alcoolismo”. Os membros do grupo podem, assim, falar de
suas dores, seus conflitos e, sobretudo, das perdas vividas no chamado tempo do
alcoolismo ativo. Eles também ressaltam as conquistas obtidas nesse “tempo de
recuperação”, no qual não mais fazem uso da bebida alcoólica. Na reunião são
construídos, portanto, os significados em torno da “experiência do alcoolismo”, que lhe
conferem uma dimensão terapêutica considerada eficaz pelos membros da irmandade.
Todas as práticas realizadas nesse momento delimitam os contornos de uma ordem
simbólica, no interior da qual os AAs elaboram um sentido para suas vidas, capaz de
devolver-lhes à sobriedade e, conseqüentemente, à vida familiar e profissional.
As reuniões costumam seguir um roteiro descrito em um folheto que fica na
mesa do coordenador e que é consultado por aqueles que são menos experientes na
prática da coordenação. Já os mais experientes, não fazem uso desse recurso. Com isso,
eles estabelecem uma diferenciação, buscando passar seu exemplo aos demais.
O coordenador lê um preâmbulo, que apresenta os objetivos da irmandade aos
visitantes e aos possíveis ingressantes:
Alcoólicos Anônimos é uma Irmandade de homens e mulheres que
compartilham suas experiências e suas esperanças a fim de resolver
seu problema comum e ajudarem a outros a se recuperarem do
alcoolismo. O único requisito para se tornar membro é o desejo de
parar de beber. Para ser membro de A.A. não há necessidade de
pagar taxas, nem mensalidade. Somos auto-suficientes, graças às
nossas próprias contribuições. O A.A. não está ligado a nenhuma
seita ou religião. A nenhum partido político, nenhuma organização ou
instituição. Não deseja entrar em qualquer controvérsia. Não apóia
nem combate quaisquer causas. Nosso propósito primordial é
mantermo-nos sóbrios e ajudar outros alcoólicos a alcançarem a
sobriedade.
Após a leitura, convida a todos a ficarem em pé e a fazerem a oração da
serenidade, que se encontra escrita num quadro pendurado na parede da sala, atrás da
mesa dele:
97
[...] Temos por hábito iniciar e encerrar nossas reuniões com a
oração da serenidade. Esta, que está exposta à minha cabeceira.
Vamos fazê-la em pé e pausadamente. Aqueles que quiserem e
souberem me acompanhem:
“Concedei-nos, Senhor, a serenidade necessária para aceitar as
coisas que não podemos modificar. Coragem para modificar aquelas
que podemos e sabedoria para distinguir uma das outras”.
Feita a oração, o coordenador convida o primeiro orador inscrito a ler a chamada
“reflexão do dia”. Essa reflexão está contida em um livro intitulado “Reflexões diárias”,
que faz parte da literatura oficial de A.A.. Esse livro contém mensagens referentes a
cada dia do mês, escritas a partir de passagens presentes em outros livros da irmandade.
Na página referente ao dia 14 de fevereiro, por exemplo, sob o título “Expectativas
versus exigências”, está escrito o seguinte comentário: “Convença todas as pessoas do
fato de que podem recuperar-se independentemente de qualquer outra pessoa. As únicas
condições são: confiar em Deus e retificar seu passado” (Alcoólicos Anônimos, 2000a).
O coordenador chama, então, pelo primeiro nome, cada um dos inscritos, para
fazer suas “partilhas”, pedindo que, se assim o desejar, tecer comentários sobre a
reflexão diária. As partilhas são ouvidas em silêncio por todos:
Meu nome é Hélio e sou um doente alcoólico [...] [Em A.A.] passei a
conhecer que sou doente e que não posso ingerir bebida alcoólica.
Graças a vocês e ao nosso Poder Superior, desde o dia 29 de outubro
de 1996, [em] que eu entrei por essa porta e descobri que sou doente
[...] O A.A. ajudou a estacionar o alcoolismo. Estacionar, pois o
alcoolismo não tem cura (Hélio, 63 anos, casado, 4 anos de A.A.,
pedreiro; reunião de recuperação aberta, 14 fev. 2002).
Meu nome é Aurélio, alcoólatra em recuperação. O A.A. foi o único
lugar em que me falaram que o alcoolismo era uma doença [...] O
alcoolismo leva à morte prematura [...] Em A.A. não tenho mais
vontade de beber. Eu sou um doente alcoólico e não posso beber o
primeiro gole (Aurélio, 49 anos, casado, 17 anos de A.A., pedreiro;
reunião de recuperação aberta, 14 fev. 2002).
As partilhas são pronunciadas em primeira pessoa e, inicialmente, os AAs
expressam sua condição de “doentes alcoólicos” e de “alcoólicos em recuperação”.
Como lembra Garcia (2004: 95), nesse momento, ele testemunha seus próprios atos e
reafirma o discurso institucional da irmandade. Ou seja, o alcoólico assume para si
mesmo e perante os demais membros do grupo sua condição de portador da “doença
incurável” do alcoolismo. Em seguida, ele agradece e afirma sua submissão ao Poder
98
Superior, o que comprova e confirma sua adesão ao programa de recuperação de A.A.,
reafirmando seu compromisso de não ingerir o “primeiro gole”. Durante as partilhas,
são dramatizados aspectos de suas trajetórias etílicas, com ênfase na experiência de
terem sido “derrotados pelo álcool” em suas tentativas de pararem de beber sem a ajuda
da irmandade.
Após uma hora da reunião, o coordenador evoca a sétima tradição da irmandade,
que afirma que todos os grupos de AA devem ser auto-suficientes, e passa a
“sacolinha”. As contribuições são voluntárias e o coordenador insiste em que elas
devem ser feitas somente pelos membros de A.A.. Ao presenciar os “companheiros” do
grupo contribuindo, muitas vezes somente com algumas moedas, freqüentemente sentia-
me constrangido por não poder contribuir, mas com o tempo entendi o valor simbólico
deste gesto de doar, não importando o valor. Embora a contribuição não seja
obrigatória, faz com que todos se responsabilizem pela manutenção da irmandade. Feita
a arrecadação, o coordenador faz uma pausa, na qual são servidos café, chá e biscoitos.
O “momento do cafezinho”, tal como é chamado por todos, reforça a
aproximação e os laços de solidariedade entre os AAs. Na literatura oficial de A.A.
(1996: 22), encontra-se uma definição da importância desse intervalo entre as reuniões:
Muitos membros de A.A. relatam que seus círculos de amizades se
ampliaram muito, como resultado da conversa ao redor do café, antes
e depois das reuniões. A maioria dos Grupos depende dos próprios
membros para preparar cada reunião, servir o café e fazer a limpeza da
sala. Você ouvirá freqüentemente os membros de A.A. afirmarem que
começaram a se sentir como participantes quando começaram a fazer
o café e a arrumar as cadeiras, fazendo ‘terapia ocupacional’. Alguns
recém-chegados acham que essas atividades amenizam sua timidez e
facilitam as conversas com outros membros.
Durante o cafezinho, conversa-se sobre assuntos que vão desde atividades
relacionadas à irmandade (reuniões de divulgação, reuniões temáticas e visitas a outros
grupos de A.A. etc) a comentários sobre o dia de trabalho, sobre futebol, a família etc.,
de forma descontraída, como no momento que antecede à reunião. É impossível não
notar o riso freqüente, presente nas brincadeiras feitas sobre os problemas relacionados
ao álcool, algo que contrasta com o tom sério e sóbrio da reunião de recuperação. Nas
palavras de Fainzang (1996: 142), o momento da “plaisanterie” é algo notável nas
reuniões de antigos bebedores, tais como os Alcoólicos Anônimos. Nesse momento, o
99
riso é portador de uma “função terapêutica: ele visa ‘desdramatizar’ a situação, ao
permitir àquele que a vive um distanciamento”
56
.
O “momento do cafezinho” não é isento de significados. Em sua análise do
grupo de ex-bebedores francês Vie Libre, Fainzang (1996: 146 – trad.minha) sublinha
que os momentos de ingestão de “bebidas não-alcoólicas” correspondem a uma espécie
de “celebração da abstinência”:
Ao beber festivo e embriagante [...] o movimento [de ex-bebedores]
opõe um beber sóbrio, fundado sobre princípios e convicções cuja
celebração é geradora não de embriaguês, mas de exaltação. Trata-se,
ao mesmo tempo, de estar feliz [...] mesmo com um copo d’água ou
um de suco de frutas, e de afirmar ao mundo (e à sociedade) o sentido
desta abstinência.
O “momento do cafezinho”, no qual todos bebem juntos, simboliza o fato de que
se abster do álcool não impede o indivíduo de ser sociável. Trata-se do “beber sóbrio”,
que se traduz na “participação de uma rede de significações articuladas a um objetivo
comum e no interior da qual a abstinência assume todo seu significado” (Fainzang,
1996:145-146 – trad. minha). Embora, como sugere Garcia (2004: 92-94), a
sociabilidade vivida nesse momento lembre em muitos aspectos a sociabilidade vivida
no bar — a descontração com que falam uns com os outros, as brincadeiras jocosas,
pelas quais põem à prova sua masculinidade etc. —, é preciso cautela ao fazer essa
aproximação. De fato, a camaradagem vivida nesse momento em nada faz lembrar os
tempos de “isolamento” e “solidão” próprios da fase ativa do alcoolismo e vividos no
bar.
Para os membros de uma associação de ex-bebedores, o bar não é o espaço de
sociabilidade ideal. Aqui o inverso é verdadeiro. Para os AAs, enquanto o “bar”
representa o espaço da dissociabilidade, a sociabilidade guiada pelo valor da abstinência
integra e restaura os vínculos perdidos no tempo do alcoolismo ativo. As partilhas são
eloqüentes nesse sentido, na medida que re-significam o “bar” como um espaço de uma
“sociabilidade negativa”. Segundo Fainzang (1996: 147-148 – trad. minha):
56
Em sua análise, Fainzang aproxima esse momento daquele narrado por Clastres no artigo “De que riem
os índios?”, no qual ressalta “a função catártica do mito que liberta uma paixão dos índios: a obsessão
secreta de rir daquilo que se teme” (apud Fainzang 1996: 142 – trad. minha).
100
O consumo de bebidas sóbrias não inverte a significação do consumo
de álcool. Ele está em um outro registro. Ele marca uma ruptura na
ordem de significações [...] A abstinência é, desde então, produtiva:
ela produz o reconhecimento e o laço social, de uma maneira tão
radical aos sujeitos que eram totalmente desprovidos ou excluídos. A
observância da abstinência é tornada possível por intermédio dos
benefícios que o ex-bebedor tira da adesão a uma nova cultura.
Trata-se, portanto, da afirmação de uma outra ordem de sentido, na qual uma
representação do alcoolismo, do álcool e de si mesmo é construída. Todavia é preciso
sublinhar: para os AAs, o objetivo do modelo terapêutico não é a abstinência, mas sim
alcançar a “sobriedade serena”. Com efeito, desenvolve-se na irmandade uma
verdadeira “cultura de recuperação”, fundada no valor da abstinência, que passa a
orientar as ações de seus membros, tendo em vista a sobriedade.
Após o intervalo, a reunião se reinicia, com mais uma hora de partilhas. Ao
final, o coordenador pede, caso se encontre na sala alguém que deseje usar a palavra e
fazer parte de A.A., que se dirija à frente, para receber a ficha de ingresso. Nesse
momento, o novato recebe das mãos do coordenador uma ficha de cor amarela, que
simboliza sua entrada no grupo, além de folders sobre o alcoolismo e as atividades da
irmandade. A presença de um provável ingressante em uma reunião do grupo é tratada
por todos como uma prioridade. Aliás, ao novato sempre é dito que ele é a pessoa mais
importante presente na reunião
57
. Às 22h00, o coordenador encerra a reunião, pedindo a
todos que o acompanhem na oração da serenidade.
Ao final, todos ajudam na arrumação da sala, deixando-a em ordem para o dia
seguinte. Eventualmente, alguns membros conversam entre si; são feitas as despedidas,
com votos de “boa-noite” e “até amanhã”, numa alusão ao provável encontro na noite
seguinte. As conversas podem se prolongar: caso alguns membros morem na mesma
região, é provável que caminhem juntos para casa ou dêem carona um ao outro.
57
Certa vez, eu presenciei uma situação que exemplifica bem a importância dada pelos membros do
grupo a um provável ingressante. Em uma segunda-feira, dia de reunião de literatura, na qual os AAs
estudam temas presentes na literatura da irmandade, ao perceberem a presença de uma pessoa nova no
grupo, eles alteraram imediatamente o formato da reunião e passaram aos depoimentos pessoais, nos
quais narraram as perdas vividas nos tempos do alcoolismo ativo e as conquistas obtidas após a entrada
na irmandade.
101
4.1 Reunião de entrega de fichas: uma celebração da sobriedade
Entre os vários tipos de reunião realizados pela irmandade, uma merece um
destaque especial, a saber, a chamada “reunião de entrega de fichas”. Trata-se de uma
reunião aberta, na qual são forjadas importantes representações sobre o álcool, o
alcoolismo e sobre o alcoólico, entendido como um “doente alcoólico em recuperação”.
Nela, os AAs, seus amigos e seus familiares celebram o “tempo de sobriedade”,
conquistado após a entrada no grupo.
Embora os AAs repitam que devem se abster do uso do álcool um dia de cada
vez, evitando “só por hoje” o “primeiro gole”, as fichas recebidas marcam
simbolicamente o “tempo da sobriedade”, possibilitando ao alcoólico uma reconstrução
de sua história de vida. Durante a “partilha”, o alcoólico relembra as perdas vividas no
tempo do alcoolismo ativo e as conquistas após a prática do programa de recuperação.
Como diz Paulo, “o programa de A.A. não é só para parar de beber. O A.A. ajuda a
manter a sobriedade”. Com efeito, se a expressão “só por hoje” marca o “tempo da
abstinência”, exigindo uma renovação diária do compromisso de se evitar o uso de
bebida alcoólica, as fichas recebidas significam a reafirmação do objetivo principal do
modelo terapêutico, isto é, a manutenção da sobriedade.
No grupo Sapopemba, essa reunião faz parte de seu calendário de atividades e
ocorre geralmente no último sábado de cada mês. Todo mês, são definidos os nomes
daqueles que irão receber as fichas e também do alcoólico a ser homenageado durante a
reunião. O responsável pela organização do grupo anota e grava os nomes dos
companheiros nas fichas, indicando a respectiva data de ingresso e a do aniversário,
além do tempo total de sobriedade. Já a homenagem, em geral, é feita a um membro
veterano do grupo, com 10 anos ou mais de sobriedade. Em sua partilha, ele ressalta sua
vida de dor, perdas e sofrimento antes de conhecer o programa de recuperação de A.A. e
suas conquistas após a entrada na irmandade. Diante de outros membros do grupo, de
seus familiares e de visitantes, ele reforça o legado de A.A., reafirmando os significados
construídos coletivamente em torno do álcool e do alcoolismo. Ao término do encontro,
ele é novamente chamado e lhe é entregue um presente, uma lembrança em nome de
todos os companheiros. Todos o cumprimentam, reforçando, assim, os laços que os
unem à irmandade.
102
A relação dos membros que vão receber as chamadas “fichas da sobriedade” em
um determinado mês é obtida a partir do “livro de registro” de ingresso, no qual se
encontra a relação de nomes com as respectivas datas de entrada no grupo. Esse livro é
usado como referência para definir os membros que ainda mantém um vínculo com a
irmandade e, por isso, recebem, das mãos de seu padrinho, ao final de cada partilha,
uma ficha, cuja cor corresponde ao tempo de sobriedade.
O padrinho é, em geral, um membro do grupo com mais tempo de sobriedade,
escolhido pelo alcoólico, e que será o responsável por aconselhá-lo durante sua
trajetória rumo à sobriedade. Sua intervenção é importante nos momentos de “crise de
abstinência”, durante os quais o alcoólico pode sofrer uma “recaída”.
As fichas da sobriedade são de plástico em cores diferentes, cada uma
obedecendo a uma escala que marca o tempo de sobriedade do alcoólico:
Quadro 3 – Fichas de sobriedade (tempo/cor)
Tempo de A.A. Ficha de cor
Ingressante Amarelo
1 mês Verde
3 meses Azul
6 meses Rosa
9 meses Vermelha
1 e 2 anos Verde/Madrepérola – luxo
3 anos Marrom/Madrepérola –luxo
4 anos Vermelho/Madrepérola –luxo
5 anos Branca/Madrepérola – luxo
6 anos Amarelo-claro/Pérola –luxo
7 anos Azul-claro/ Pérola – luxo
8 anos Amarelo-ouro/Pérola – luxo
9 anos Laranja/Pérola – luxo
10 anos Ouro-velho/Pérola-luxo
15 anos Azul/Pérola-luxo
20 anos Lilás/Pérola-luxo
25 anos Vermelho/Pérola-luxo
30 anos Azul e Branca/Pérola-luxo
fonte: Escritório de Serviços Gerais de A.A. – ESG
Essas reuniões obedecem a uma seqüência semelhante às das reuniões de
recuperação, feitas todos os dias, e se repetem em todos os grupos de A.A.. Garcia
(2004: 92), contudo, observa uma situação específica do grupo denominado Doze
Tradições, na qual o “alcoólico passivo” — termo utilizado pela autora para se referir ao
103
“doente alcoólico em recuperação” — pode solicitar uma alteração no dia de
recebimento da ficha, devido à “falta de apoio na família”. Nesses casos, a entrega de
fichas ocorre em uma reunião fechada, durante os dias úteis da semana
58
. Embora, em
minha pesquisa, não tenha observado nenhuma situação semelhante, ela pode ser
entendida como parte da autonomia dos grupos para definir a forma de suas reuniões.
A reunião de entrega de fichas reafirma a identidade do “doente alcoólico em
recuperação”, selando seu pertencimento ao grupo. Também pode ser pensada, como
veremos a seguir, como um ritual, no qual são dramatizados os significados em torno do
álcool e do alcoolismo, que ajudam, ao mesmo tempo, a definir uma compreensão sobre
si mesmo e a delimitar os contornos da própria irmandade
59
.
Ao final da reunião, são servidos sucos e refrigerantes, acompanhados de
salgados e bolo feitos pelos membros do grupo e seus familiares. Trata-se, novamente,
de um “beber sóbrio” que reforça a relação dos AAs entre si e deles com seus familiares
e amigos. Nesse contexto, revive-se o circuito da troca, no qual o dar e o receber
definem a reciprocidade necessária para o reforço os laços sociais.
Ao contrário da reunião de recuperação, na qual todos os AAs ocupam uma
posição de igualdade entre si ao proferirem suas partilhas, a celebração da sobriedade
também define as afinidades e as hierarquias no interior do grupo. Assim, na celebração
festiva é possível observar os membros mais antigos do grupo reunidos entre si,
enquanto os novatos buscam uma maior aproximação com seus respectivos padrinhos.
Abraços, gestos de amizade, palavras e sorrisos traduzem o caráter
comemorativo desse momento, no qual os AAs brindam e celebram, junto com os
amigos e familiares, a manutenção da sobriedade.
58
Garcia (2004: 92) também aponta situações nas quais o homenageado escolhe uma data comemorativa,
solicitando que a reunião seja em um dia da semana e aberta a amigos e convidados.
59
A cerimônia de entrega de fichas é tratada por Garcia (2004: 91-92) como um “ritual” que traz fortes
marcas da representação do álcool e do alcoolismo, ao mesmo tempo em que celebra o tempo de
abstinência do alcoólico. Já em sua análise, Fainzang (1996: 99-102) se refere apenas à cerimônia La
remise de la carte rose como um ritual. Trata-se de uma cerimônia na qual, após seis meses de sua
entrada no grupo, o ex-bebedor recebe uma carta rosa, que confirma sua abstinência em relação ao álcool,
reafirmando sua ligação com o grupo Vie Libre.
104
4.2 O lugar do ritual em A.A.
O relato da reunião de recuperação e da reunião de entrega de fichas possibilita
uma aproximação com o contexto etnográfico em que me envolvi durante as muitas
horas de pesquisa de campo.
Nesses encontros, os AAs compartilham suas experiências individuais
histórias de vida do tempo em que faziam uso do álcool e da recuperação —, falam de
suas aflições, de suas dores, de seus conflitos e, sobretudo, de suas “perdas relacionais”,
sofridas na família e no trabalho, em tempos do alcoolismo ativo. Eles falam também de
suas alegrias e conquistas, notadamente da recuperação de seus vínculos familiares e de
trabalho, após a entrada na irmandade. Trata-se de um momento no qual todos celebram
e atualizam os princípios que presidem ao modelo de A.A..
É no interior dessa arquitetura que se define o contexto prático-discursivo no
qual se desenrolam os rituais terapêuticos, em torno dos quais o modelo da irmandade
constrói sua eficácia. As reuniões de recuperação constituem um poderoso mecanismo
para a ritualização dos princípios da associação, por meio do qual comunicam e
legitimam sua condição de “doentes alcoólicos em recuperação”, ao mesmo tempo em
que garantem sua unidade.
Mas esses encontros podem ser entendidos como um ritual? Qual o lugar do
ritual no modelo terapêutico da irmandade? Essas questões têm chamado a atenção dos
pesquisadores que estudam as associações de ex-bebedores. Exemplo disso é o trabalho
de Fainzang (1996: 97-99) que, ao delimitar os fundamentos que possibilitariam a
edificação de uma cultura de abstinência no grupo Vie Libre, analisa a reunião dessa
entidade como uma “prática ritualizada”, evitando tratá-la propriamente como um ritual:
Não é suficiente que uma palavra ou um gesto desempenhem um
papel específico para constituir um ritual. É necessário que estes
elementos sejam a tal ponto portadores de sentido que sua supressão
retire o sentido da cerimônia ou do ato praticado. O fato de eles se
repetirem e que tenham uma função não é suficiente para os fazer
entrar na categoria dos ritos. É, portanto, mais exato falar de prática
ritualizada, que de um ritual no sentido estrito, na medida em que a
repetitividade dos gestos e dos elementos que as compõem não são
suficientes para dar um sentido específico e unívoco ao conjunto da
seqüência. (1996: 97 – trad. minha).
105
Seguindo esse raciocínio, Garcia (2004: 80) também evita tratar as reuniões de
recuperação de A.A. como rituais, ressaltando sua maleabilidade e mutabilidade:
Apesar de seguirem uma ordem padronizada e conter elementos
portadores de significados como em um ritual, estas reuniões,
previstas na programação terapêutica da instituição, sofrem alterações
e retematizações, de acordo com o contexto e os elementos que a
compõem, a cada ato.
Embora seja certo que as reuniões das associações de ex-bebedores possam ser
retematizadas e sofrer variações que, no caso específico de A.A., obedecem à autonomia
dos grupos, as interpretações acima avaliam as práticas terapêuticas das respectivas
entidades a partir de seus aspectos formais, definindo seus ritos e rituais no contexto de
uma análise morfológica de seus elementos constitutivos. Acredito, porém, ser
necessário uma avaliação mais precisa das práticas terapêuticas presentes em A.A. para
se compreender o lugar que o ritual ocupa dentro de seu modelo terapêutico.
Para tanto, é fundamental um retorno a Mauss e seu livro La Prière, publicado
em 1909, no qual busca definir “qual espécie de atos os ritos constituem” (Mauss, 2002:
35 – trad. minha). Embora interessado, particularmente, no âmbito religioso, Mauss
reconhece que os atos, mesmo quando individualizados, também podem ser entendidos
como rituais, na condição que “existam neles alguma coisa de regulamentado,
regrado”
60
(2002: 36 – trad. minha). O que distingue os atos cotidianos, as festas e os
jogos dos ritos é que os primeiros não são eficazes por si mesmos, dependendo das
circunstâncias em que são praticados; não possuem, segundo Mauss (2002: 36 – trad.
minha), uma “verdadeira eficácia material”
61
. Já os ritos são eficazes por si mesmos e
são capazes de “exercer uma ação sobre certas coisas”, de maneira que “um rito é uma
ação tradicional eficaz”.
60
“Os usos da polidez, aqueles da vida moral, têm formas tão fixas como os ritos religiosos os mais
caracterizados. E, de fato, tem-se freqüentemente os confundidos com estes últimos. Esta confusão não é,
aliás, sem fundamento, em certa medida. É certo que o rito se religa ao simples uso por uma série
ininterrompida de fenômenos intermediários. Freqüentemente, aquilo que é uso cotidiano aqui é um rito
alhures; aquilo que foi um rito torna-se um uso etc.” (2002: 36 – trad. minha).
61
Mauss delimita a especificidade dos ritos, comparando-os com os atos cotidianos de polidez: “Mas, o
fato que os diferencia, é que no caso dos atos de polidez, de costumes etc, o ato não é eficaz por si
mesmo. Isso não quer dizer que ele seja estéril em conseqüências. Somente seus efeitos importam,
principalmente ou exclusivamente, não devido a suas qualidades próprias, mas àquilo que ele prescreve.
Ao contrário, os ritos agrários, por exemplo, têm, para aqueles que o praticam, efeitos provocados pela
natureza mesma de sua prática. Graças ao rito as plantas crescem. Sua virtude deriva não apenas do fato
dele estar em conformidade com certas regras dadas, ela deriva ainda, e sobretudo, dele próprio. Um rito
tem, portanto, uma verdeira eficácia material” (Mauss, 2002: 36 – trad. minha).
106
Percebe-se que esse autor não se interessa apenas pelos aspectos morfológicos
do rito, mas por sua eficácia, não apenas real, mas sim pela maneira como ela é
concebida:
Portanto, é considerando não apenas a eficácia ela mesma, mas a
maneira pela qual esta eficácia é concebida que nós poderemos
encontrar a diferença específica [do rito] (...) A eficácia emprestada ao
rito não tem nada de comum com a eficácia própria dos atos que são
materialmente realizados. Ela é representada nos espíritos como
inteiramente sui generis, porque se considera que ela vem
inteiramente de forças especiais que o rito teria a propriedade de
movimentar. Ainda que o efeito realmente produzido resultasse dos
movimentos executados, haveria rito se o fiel o atribuísse a outras
causas. Assim, a absorção de substâncias tóxicas que produz
fisiologicamente um estado de êxtase é um rito para aqueles que
imputam este estado não a suas causas reais, mas às influências
especiais (2002: 37 – grifos do original – trad. minha).
Nesse sentido, o rito não se caracteriza apenas pelos seus aspectos formais, mas
sobretudo, por sua capacidade de suscitar a crença em seus efeitos, assumindo, assim,
um caráter simbólico. Os ritos têm sua eficácia ligada diretamente a certas práticas
simbólicas capazes de reafirmar a crença daqueles que os vivenciam.
Aprofundando a linha seguida por Mauss, a obra de Mary Douglas também é
uma referência segura para se pensar o rito como uma “ação simbólica eficaz”, capaz de
provocar uma “mudança na experiência vivida” (apud Segalen, 1998: 17 – trad. minha).
Em seus estudos sobre os rituais de pureza e impureza, a autora mostra que o rito
também não pode ser analisado exclusivamente dentro do domínio religioso: “Para se
estudar os rituais de poluição, é necessário buscar compreender as idéias que uma
população pode ter da pureza como uma parte de uma totalidade mais vasta” (Douglas,
2001: 22).
Nessa perspectiva, os ritos visam proporcionar uma unidade à experiência
vivida, cujo sentido é eminentemente simbólico:
Os ritos de pureza e de impureza dão uma certa unidade à nossa
experiência. Longe de serem aberrações que desviam os fiéis do
objetivo central da religião, eles são atos essencialmente religiosos.
Por meio deles, as estruturas simbólicas são elaboradas e exibidas à
luz do dia. No quadro dessas estruturas, os elementos díspares são
relacionados e as experiências díspares adquirem um sentido (2001:
24).
107
Aqui também o rito não é definido apenas a partir de seus aspectos
morfológicos, mas sim como um elemento simbólico, capaz de classificar e ordenar o
cotidiano, integrando as práticas sociais dentro de uma ordem de sentido. Como
sublinha Segalen: “existe rito aqui onde se produz um sentido” (1998: 18 – trad. minha).
Essa é, aliás, segundo Douglas (2001: 81), a característica demasiadamente humana:
Animal social, o homem é um animal ritual. Suprima uma certa forma
de rito, e ele reaparecerá sob outra forma com tanto mais vigor quanto
mais intensa for a interação social. Sem cartas de condolências ou de
felicitações, sem cartas postais ocasionais, a amizade de um amigo
distante não tem uma realidade social. Não existe amizade sem ritos
de amizade. Os ritos sociais criam uma realidade que, sem eles, nada
seria. Pode-se dizer sem exagero que o rito é mais importante para a
sociedade que as palavras para o pensamento. Porque, pode-se sempre
saber alguma coisa e só depois encontrar as palavras para exprimir
aquilo que se sabe. Mas, não há relações sociais sem atos simbólicos.
Ora, as reuniões praticadas pelos AAs parecem se enquadrar perfeitamente na
definição do rito e dos rituais feitas tanto por Mauss como por Douglas. Nas reuniões,
os alcoólicos dramatizam suas experiências, revivendo através de suas narrativas o
“mito” de origem da irmandade expresso em seus doze passos e nas suas doze tradições.
Os AAs assumem para si mesmos e perante os demais companheiros que são “doentes
alcoólicos em recuperação”, isto é, “impotentes perante o álcool” e incapazes de
administrar suas vidas, devido os problemas provocados pelo uso compulsivo de
bebidas alcoólicas. Eles também reconhecem que foram “derrotados pelo álcool” e que
necessitam da ajuda de um Poder Superior para a sua recuperação; fazem ainda um
inventário moral dos danos causados a outrem no tempo do alcoolismo ativo e assumem
a necessidade do ressarcimento das pessoas lesadas e, enfim, transmitem a mensagem
da irmandade a outros “doentes alcoólicos” que se encontram na mesma situação.
Como conseqüência, os membros do grupo reafirmam seu pertencimento a A.A.,
introjetando seu modelo terapêutico, revivendo-o a cada narrativa. As reuniões de
recuperação são, portanto, verdadeiros rituais terapêuticos, capazes de permitir aos AAs
resignificar suas experiências, dentro de uma ordem simbólica, no interior da qual elas
adquirem um sentido
62
.
62
Mais adiante no capítulo 7 (tópico 7.2), analisaremos a questão da entrada do bebedor no grupo de A.A.
e a construção da identidade do “doente alcoólico em recuperação” como um “ritual de passagem”, nos
moldes definidos por Van Gennep e retomados por Turner (1974).
108
Assim, estamos próximos da definição dos ritos e dos rituais feita por Douglas
(2001: 82,83), que os entende como uma unidade espaço-temporal que
desempenham um papel criador ao nível dos atos. O ritual permite
concentrar a atenção na medida em que ele fornece um quadro,
estimula a memória e liga o presente a um passado pertinente. [...]
Não basta, portanto, dizer que os rituais nos ajudam a viver com mais
intensidade uma experiência que teríamos vivido de qualquer maneira.
O rito não é comparável as ilustrações que acompanham as instruções
escritas para se abrir uma lata de conserva. Se não fosse mais do que
isto, se não fosse mais que um mapa ou um diagrama, num estilo
dramático, daquilo que já sabemos, ele viria sempre após a
experiência. [...] Os ritos não desempenham esse papel secundário.
Pode bem ser que se antecipem e nos permitam formular a nossa
experiência, ou ainda que nos dêem a consciência de fenômenos que,
sem eles, nunca conheceríamos. O rito não só exterioriza a
experiência, não só a ilumina, como a modifica pela própria maneira
como a exprime. [...] Sem rito, certas coisas não seriam jamais
experimentadas. Os acontecimentos que ocorrem em série adquirem
um sentido a partir da relação que tem com outros acontecimentos da
mesma série.
As reuniões de A.A. são rituais, nos quais o espaço e o tempo atuam como
categorias coletivamente construídas, delimitando uma ordem de sentido na qual cada
atitude, gesto e palavra desempenha um papel significativo para a concretização de uma
efetiva “cultura de recuperação”. Nessa medida, o relato etnográfico permite entrever
uma configuração espaço-temporal que garante a unidade da reunião de recuperação,
capaz de possibilitar aos AAs atribuir um sentido às suas experiências etílicas.
A seguir, vejamos como se organiza essa configuração espaço-temporal, bem
como se constrói a linguagem através dos quais o ritual terapêutico da irmandade se
expressa e garante sua eficácia.
4.3 O espaço e o tempo ritualizados
Ao chegar ao grupo, os AAs se reúnem em uma ante-sala, também chamada
“sala do cafezinho”, que dá acesso à sala onde ocorre a reunião de recuperação. Ao lado
da porta de entrada, encontra-se o “livro de freqüência”, que todos assinam no momento
em que chegam para a reunião. Há também uma pia e, ao lado, um fogão, no qual
Mauro — o “servidor” responsável por abrir a sala —, “passa” o café que os membros
do grupo beberão antes, no intervalo e depois da reunião de recuperação. Todos dizem
109
que o café preparado por Mauro é inconfundível e sabem quando não é ele quem o
prepara
63
.
Encontra-se também uma mesa com as garrafas térmicas e com um pote com
biscoitos, comprados com o dinheiro arrecadado durante a reunião. Do lado oposto ao
fogão, encontra-se um armário, no qual são guardados: o material de divulgação do
grupo, utilizado pelos membros do CTO na divulgação do programa da irmandade na
comunidade, as fichas da sobriedade, distribuídas nas reuniões de entrega de fichas e
relatórios com balanço da irmandade, distribuídos pelo ESG, que dá conta de suas
atividades.
Antes da reunião, o clima é de descontração. Os AAs se abraçam e se
cumprimentam entre si, reforçando os laços que os unem à irmandade. Em pé, eles
conversam sobre os afazeres diários, sobre a vida em família, sobre o trabalho, sobre a
procura de emprego e também sobre as atividades da irmandade. A separação entre
ante-sala do cafezinho e a sala da reunião é feita por uma divisória, que delimita o
espaço de ritualização do programa de A.A..
A sala onde se desenrola a reunião de recuperação pode ser chamada de “espaço
ritualizado” porque remete a uma ordem espacial na qual se dramatizam os princípios
que regem o A.A.. Aqui, todos os elementos são ordenados para garantir ao alcoólico
uma identificação com o modelo terapêutico proposto pela instituição. O ambiente é
“sóbrio”: todas as suas paredes são “decoradas” com quadros e objetos pertencentes à
irmandade. Há dois quadros, um com os Doze Passos e outro as Doze Tradições de
Alcoólicos Anônimos, um mural de aviso com notícias do Escritório de Serviço Gerais
de A.A. e vários cartazes com dizeres que, além de darem as boas-vindas aos novatos,
estimulam os membros do grupo a continuarem sua recuperação, ajudando-os a manter
a sobriedade: “Foi bom você ter vindo”; “Evite o primeiro gole”; “Só por hoje”; “Vá
com calma, mas vá”; “Mais participação, melhor recuperação”; “Sem honestidade, não
há sobriedade”; “Viva e deixe viver” e “O silêncio faz parte da nossa recuperação”.
Do lado oposto à entrada da sala, encontra-se a mesa do coordenador da reunião,
responsável por chamar cada membro para fazer sua partilha, marcando o tempo de
cada fala e zelando para que todos os inscritos possam trocar suas experiências. Em
geral, cada membro dispõe de 15 minutos para fazer sua partilha, marcados por um
63
Na descrição apresentada por Garcia (2004: 92) do grupo Doze Tradições, essa atividade é excercida
pelo coordenador do dia da reunião, o que não ocorre no grupo Sapopemba.
110
relógio situado acima da porta que dá acesso à sala e fica em frente à mesa do
coordenador. Na mesa, encontram-se expostos alguns livros da literatura de A.A., uma
tabuleta indicando aos presentes se a reunião é aberta ou fechada, a sacola que será
passada para recolher as contribuições ao grupo e uma caixa com as fichas de
sobriedade. Atrás da mesa, encontra-se uma janela, através da qual é possível ouvir o
alarido da avenida Vila Ema, com seu movimento frenético e também os cânticos
vindos de uma igreja evangélica vizinha ao grupo. Acima da janela, há uma tabuleta
com a inscrição da oração da serenidade, que pode ser lida por aqueles que ainda não
estão familiarizados com seus dizeres (ver na seqüência o item 4.4).
Na outra parede, encontra-se afixado um quadro porta-objeto, fechado à chave,
com alguns artigos pertencentes à irmandade e alguns livros que podem ser comprados.
Ao lado, há um quadro-negro, com a descrição das atividades a serem realizadas pelos
grupos no mês corrente, tais como: reuniões de unidade, reuniões de literatura,
reuniões temáticas etc. Um outro mural com a descrição da prestação de contas do
grupo, relacionando os gastos e o total arrecadado durante o mês, completa a decoração
das paredes da sala reunião. Há também uma prateleira com alguns dos “presentes”
recebidos pelo grupo nas reuniões de unidade e na festa de seu aniversário. É comum a
troca de “presentes” entre os grupos que se convidam para realizar a reunião de unidade
em conjunto
64
.
Sobre a mesa do coordenador encontra-se uma toalha com o símbolo da
irmandade: um triângulo com um círculo ao meio, onde está inscrita a sigla: A.A.. Em
cada um dos lados do triângulo, há a inscrição dos três legados da irmandade:
Recuperação, Unidade e Serviço.
Ao lado da mesa encontra-se a cadeira que é usada pelo ex-bebedor durante sua
partilha. Sua posição é estratégica: de frente para todos membros, que ficam sentados
em outras cadeiras, enfileiradas umas atrás das outras, de modo a que todos possam ver
a face daquele que está partilhando e vice-versa. Com isso, reforça-se a identificação
entre os membros do grupo, sugerindo que ali eles estão entre pares.
Vive-se, ali, o que é descrito pelos AAs como o “efeito espelho”, isto é, a
identificação com as histórias e as experiências dos outros membros que estão na
64
Durante a pesquisa, participei de reuniões, nas quais os membros do grupo visitante trocaram
“lembranças” com o grupo Sapopemba, reforçando dessa maneira os laços de reciprocidade, que
reafirmam o pertencimento à irmandade de A.A.
111
mesma situação
65
, em que são ressaltadas as perdas relacionais vividas nos tempos do
alcoolismo ativo. Falam também das perdas dos amigos, da família e do trabalho,
evidenciando os chamados “defeitos de caráter” que os conduziram à ruptura com os
valores que regulam sua vida social. Com isso, os AAs configuram a fala da doença,
uma linguagem que denota os significados em torno da experiência do alcoolismo. Em
suas partilhas, é possível observar a expressividade de suas faces no momento em que
ao dirigir-se aos companheiros, os membros do grupo exacerbam seus “defeitos” e
assumem seus “erros”, ao mesmo tempo em que afirmam a importância de A.A. para
sua recuperação.
Uma das manifestações mais importantes dessa identificação se traduz na crença
compartilhada entre eles de que “somente um alcoólico pode ajudar outro alcoólico a se
recuperar”, reforçando o sentido da ajuda mútua praticada pela irmandade: “ajudar outro
alcoólico a se recuperar é a melhor maneira de eu manter minha própria sobriedade”.
Uma forma importante de potencialização do efeito espelho, encontrada em
grupos da região metropolitana de São Paulo, é dada pela presença de membros
pertencentes predominantemente à mesma classe social. Embora essa não seja uma
regra, foi possível constatar na pesquisa etnográfica que os membros do grupo
Sapopemba eram todos trabalhadores de baixo poder aquisitivo e moradores da mesma
região, o que favorecia a identificação entre as histórias de vida narradas durante a
reunião de recuperação. A identidade de “doente alcoólico em recuperação” se
sobrepõe, assim, à identidade social de trabalhador(a).
Barros (2001: 48) destaca que nos Estados Unidos é possível encontrar grupos
que potencializam o efeito espelho através da construção de uma identidade formada
dentro de grupos constituídos por origem étnica. Isso ocorre, por exemplo, em Los
Angeles, onde hispânicos tendem a se reunir em diferentes grupos de A.A., a partir de
critérios tais como: nacionalidade, nível de escolaridade e tempo de residência no país.
65
O chamado “efeito espelho” também pode ocorrer em situações nas quais o alcoólico se vê diante de
um acontecimento que o remete ao tempo em que fazia uso de bebida alcoólica. Exemplo disso ocorreu
durante uma reunião, na qual uma pessoa alcoolizada estava presente na sala e insistia em fazer uso da
palavra. Diante de um constrangimento geral, o coordenador conduziu a reunião até o final sem que
aquela pessoa fizesse uso da cadeira. Todavia, um dos membros do grupo disse, em seu depoimento, que
aquela era a reunião mais importante de sua vida, pois ele estava “diante daquilo que era há 24 horas
atrás”. Era a manifestação do “efeito espelho”, que possibilitava que ele visse seu passado refletido na
imagem daquele que havia perdido o controle sobre o álcool.
112
Na França, também é possível encontrar grupos de A.A. que seguem uma
orientação similar. Há, em especial, grupos anglófonos e hispânicos, cujos membros são
imigrantes que encontram na identidade lingüística e étnica uma forma de se reunirem e
continuarem a praticar o programa de recuperação da irmandade.
Em São Paulo, observa-se também a existência dos chamados “grupos de
propósitos especiais”, compostos prioritariamente por mulheres ou por homossexuais
alcoólicos. Nesses grupos, a identidade de doente alcoólico em recuperação alia-se à
identidade orientada pela sexualidade. Certa vez, indaguei a um membro do ESG se os
grupos de propósitos especiais não contradizem a máxima de que todos em A.A. são
“doentes alcoólicos”. Ele me respondeu que o objetivo da irmandade é proporcionar um
tratamento para o alcoolismo, e que nesses grupos seus membros se sentiriam mais “à
vontade” para partilhar suas experiências, evitando a manifestação de eventuais
preconceitos.
Dessa maneira, a identidade de “doente alcoólico em recuperação” é sempre
ressaltada como a marca distintiva dos membros de A.A. Ao se reunir para celebrar a
sobriedade, os AAs reforçam seus laços, identificando-se entre si como portadores da
doença do alcoolismo.
A descrição da sala de reuniões do grupo Sapopemba se assemelha, nos aspectos
relativos à decoração, à realizada por Garcia (2004: 56) em sua pesquisa no grupo Doze
Tradições. Uma diferença a ser assinalada é que, ao contrário do observado no grupo
Sapopemba, no grupo estudado pela pesquisadora não há uma cadeira ao lado da mesa
do coordenador para que os membros do grupo façam seus depoimentos: os adeptos
posicionam-se ao lado ou em frente à mesa do coordenador, mas permanecem em pé,
referindo-se a essa posição como “cabeceira de mesa”, termo que também não encontrei
entre os membros do grupo.
Essa recorrência no modo como o espaço é organizado nos grupos de A.A.,
garantindo uma unidade espacial, é um dado fundamental da pesquisa etnográfica e
aponta, como sugere Garcia (2004: 57), para “a universalização não somente das idéias
e das práticas, mas também do [seu] espaço de atualização”, dando aos AAs uma
sensação de familiaridade independente do grupo ao qual ele se apresente.
Juntamente com uma delimitação espacial específica, o relato etnográfico
permite entrever também uma espécie de divisão temporal marcante, em quatro
períodos, a saber:
113
Antes da reunião: momento no qual os membros do grupo se encontram na
ante-sala, cumprimentam-se com abraços e palavras afetivas, tomam um café
e comem biscoitos, preparados pelo membro responsável por abrir a sala;
Durante a reunião: transcurso da reunião de recuperação, com a realização da
oração da serenidade; logo após, todos, em silêncio, ouvem as partilhas dos
“companheiros” chamados pelo coordenador;
Intervalo da reunião: após uma hora de reunião, depois de ser feita a
arrecadação voluntária de fundos para a manutenção da sala, os membros do
grupo se reúnem para tomar um cafezinho e conversar;
Depois da reunião: ao final da reunião, após executarem novamente a oração
da serenidade, os membros do grupo ajudam a arrumar e a fechar a sala e
partem para suas casas na esperança de se reencontrarem no dia seguinte
para a celebração de mais um dia de sobriedade.
Em cada um desses momentos são desenvolvidas atividades que definem uma
forma específica de regulação do tempo, que propicia uma disciplina e uma ordem
fundamentais para a recuperação do alcoólico. Cada gesto e cada palavra atualizam os
princípios da irmandade, favorecendo a integração de seus membros e reafirmando seu
compromisso em manter-se sóbrio. Ao regular o tempo dessa maneira, garante-se a
unidade da reunião ao mesmo tempo em que se consolidam e se reforçam as práticas
necessárias para se alcançar a tão “sonhada” sobriedade. Trata-se, portanto, de uma
configuração espaço-temporal que permite aos AAs reconhecerem-se como parte de
uma cultura regida por valores próprios, que orientam suas ações no sentido de uma
nova vida, através da manutenção da sobriedade.
4.4 A linguagem do ritual
No início da reunião de recuperação, como vimos, o coordenador convida todos
os presentes a que o acompanhem, em pé e pausadamente, na realização da oração da
serenidade. O mesmo gesto é repetido ao final da reunião, quando novamente todos os
presentes são convidados a fazer a oração em pé.
114
Essa oração ocupa um lugar central na ritualização do modelo de A.A.. Sua
origem, segundo Barros (2001: 91-93), é controversa, mas tudo indica que ela
provavelmente foi redigida, em duas versões, por Reinhold Niebuhr, um teólogo
evangélico e ministro da ordem Sínodo Evangélico Alemão da América do Norte, em
1926 e em 1934. De todo modo, o que importa é que, após a sua difusão, ela veio a se
integrar ao conjunto de procedimentos praticados pelos AAs na sua luta para manter a
sobriedade, compondo um dos principais mecanismos simbólicos do modelo terapêutico
da irmandade.
Desde Mauss (2002), sabemos que a prece ou a oração é um “rito oral” que
ocupa um papel central nos fenômenos da vida religiosa. Quando realiza uma oração, o
fiel mobiliza o pensamento e a ação em um único e mesmo movimento, de modo a
evocar as potências sagradas, na crença de obter algum resultado.
Na prece, o fiel age e pensa. E ações e pensamentos estão unidos
estreitamente, em um único e mesmo tempo, a um momento religioso
[...] A prece é uma palavra. Ora, a linguagem é um movimento que
tem um objetivo e um efeito; ela é sempre, em ultima instância, um
instrumento de ação [...] Falar é, ao mesmo tempo, agir e pensar: eis o
porquê de a prece se referir ao mesmo tempo à crença e ao culto
(2002: 6 – trad. minha).
A prece pode ser entendida como uma linguagem ritual, isto é, um fenômeno
social que traduz em seu interior a dimensão simbólica do fenômeno religioso. Através
da prece, o fiel evoca as palavras consideradas sagradas para o grupo social ao qual
pertence. De acordo com Mauss: “ainda que a prece seja individual e livre, e mesmo
que o fiel escolha a seu gosto os termos e o momento, não há no que ele diz senão frases
consagradas; e ele não fala senão coisas consagradas, isto é, sociais” (2002: 19 – trad.
minha).
A prece revela sua dimensão simbólica, permitindo a fusão da dimensão social e
individual do fenômeno religioso. Ao fazer uma oração, o fiel se integra à matriz
coletiva do ritual, reconhecendo-se como parte de uma totalidade religiosa. Como
sublinha Mauss (2002: 23 – trad. minha):
Quanto às preces que, compostas pelos indivíduos, entram nos rituais,
a partir do momento em que elas são recebidas, cessam de ser
individuais [...] Quando eles falam, são os deuses que falam através de
suas bocas. Eles não são simples indivíduos: eles são, eles próprios,
forças sociais.
115
Ora, parece ser exatamente esse o significado da oração da serenidade. Ela
delineia as margens do espaço e do tempo ritualizados no interior dos quais os AAs
trocam suas experiências, na esperança de alcançarem a sobriedade. Com efeito, a partir
do momento em que o coordenador da reunião convida a todos para o acompanharem
na oração, os membros do grupo ficam em pé, alguns com olhos fechados, outros com a
cabeça flexionada, e a pronunciam pausadamente.
A forma como a oração é pronunciada por todos, em voz alta e em uníssono, é
também reveladora do papel simbólico que ela desempenha no conjunto da reunião:
integrar o indivíduo à dimensão coletiva da irmandade para que ele seja parte de uma
totalidade que o ultrapassa, mas que encontra sua possibilidade de manifestação e de
realização nas suas palavras e nas de outros dos membros do grupo.
É por isso que, na passagem em epígrafe deste capítulo, Nilson, 50 anos,
solteiro, 7 anos de A.A., marceneiro, aponta o único “remédio” de que dispõe para se
proteger do alcoolismo, a saber: a palavra
66
.
É, portanto, narrando uns aos outros suas histórias de vida dos tempos do
alcoolismo ativo que os AAs enunciam as palavras que eles não devem jamais esquecer.
Porque se esquecer de que é doente significa correr o risco de uma “recaída”, o que
pode ser fatal. E o único antídoto de que dispõem os AAs para se protegerem do
66
A possibilidade de “cura” pela palavra tem um equivalente no repertório terapêutico construído na
cultura indígena. Ferreira (2003) relata, em sua pesquisa sobre as conseqüências do uso abusivo de
bebidas alcoólicas em populações indígenas, que os Mbyá-Guarani elaboram uma teoria da doença
alcoólica segundo a qual as causas do alcoolismo estão ligadas diretamente ao processo de contato
interétnico, repercutindo tanto sobre a noção de pessoa como sobre a organização social deste grupo
étnico. Com efeito, a “doença do alcoolismo” se articula à própria cosmologia e mitologia Mbyá-Guarani,
assumindo uma feição muito particular nesse grupo indígena. Para os Mbyá-Guarani, a proteção às
doenças em geral, entre as quais está o alcoolismo, se dá através dos rituais de cura e prevenção
realizados na Opy — casa da reza —, o espaço sagrado, onde o karaí —xamã — pode se ligar
espiritualmente a Nhanderu — Deus, o nosso Pai —, e realizar os rituais de prevenção, o diagnóstico e a
cura das doenças. No espaço sagrado da Opy, as crianças indígenas “aprendem os cantos (poraí) e as
danças (jerojy) sagrados. Também ali escutam, através das boas palavras, os conselhos do karaí que as
orientam a não beberem” (2003: 11 — grifos meus). Os locais onde não existe Opy, portanto, são mais
suscetíveis ao desenvolvimento da “doença do alcoolismo”. Pois, como explica Ferreira: “encontram-se
sem a proteção divina e à mercê de muitos perigos: doenças, mortes, brigas e outras calamidades. É
também nesses locais que as ‘festas de branco’ tornaram-se práticas correntes, substituindo, por vezes, os
rituais tradicionais” (2003: 11). O karaí é, portanto, aquele que fala as boas palavras que podem prevenir
e curar as doenças. Nesse sentido, pode-se estabelecer uma importante diferença entre a estratégia
terapêutica Mbyá-Guarani e a dos AAs. Enquanto, para os primeiros, as “boas palavras” são proferidas
exclusivamente pelo karaí, que, a exemplo do xamã analisado por Lévi-Strauss (1974), detém a
autoridade, oferecendo ao doente uma linguagem através da qual ele dá um sentido para seu mal, já que
mantém um contato direto com a divindade, em A.A. o doente alcoólico faz uso direto da palavra, não
havendo nenhuma mediação entre o doente e o Poder Superior.
116
esquecimento da “doença do alcoolismo” é a construção de uma memória coletiva,
enunciando uns aos outros as “boas palavras” que podem ajudá-los na recuperação.
Mas, se do ponto de vista morfológico, a oração da serenidade se integra à
reunião de recuperação, definindo as balizas temporais que delimitam seus contornos, a
quem se destina seu conteúdo?
A oração pronunciada a uma só voz é dirigida ao Poder Superior, com o objetivo
de rogar por uma mudança no comportamento do alcoólico. A exemplo da prece que,
como descreve Mauss (2002: 43 – trad. minha), “é um rito religioso, oral, que age sobre
as coisas sagradas”
67
, visando obter algum resultado, a oração da serenidade roga por
uma alteração na vida do alcoólico a partir de sua relação com o Poder Superior. Como
no rito oral, aqui toda a energia do ritual é canalizada à potência divina, na esperança de
livrar o alcoólico da compulsão pela bebida.
É assim que os binômios que a formam, “serenidade/aceitação”,
“coragem/mudança” e “sabedoria/discernimento”, indicam, também, a centralidade que
o indivíduo doente ocupa no modelo de A.A.. Com efeito, eles são todos destinados
diretamente ao alcoólico, que deve aceitar serenamente sua condição de doente, ao
mesmo tempo em que deve ter a coragem de mudar seus comportamentos, reparando os
danos provocados a outrem devido ao seu alcoolismo. Mas isso só pode ser conseguido
com discernimento e sabedoria, procedimentos fundamentais para ajudar o alcoólico a
recuperar o lugar perdido nos tempos do alcoolismo ativo.
67
“A prece é antes de tudo um meio de agir sobre os seres sagrados; é a eles que ela influencia, é neles
que ela suscita modificações. Isso não quer dizer que ela não tenha nenhuma repercussão no domínio
comum; aliás, não há, verdadeiramente, rito que não sirva de alguma maneira ao fiel. Quando se ora,
espera-se geralmente algum resultado de sua prece, para alguma coisa, ou por alguém, não se ora senão
para si mesmo” (Mauss, 2002: 42).
117
Capítulo 5
A LINGUAGEM DA DOENÇA EM ALCOÓLICOS
ANÔNIMOS
Como ficou demonstrado, o modelo terapêutico construído pela irmandade é
fundado na construção ritual da noção de doença alcoólica. Através de sua literatura
oficial, de suas atividades, de seus encontros e de suas reuniões, os AAs delineiam os
contornos institucionais da irmandade, ao mesmo tempo em que essa noção é reificada,
adquirindo a objetividade necessária para que o ex-bebedor se identifique como “doente
alcoólico em recuperação”. Isso envolve a construção de um universo simbólico
próprio, de significados do alcoolismo e do próprio alcoólico como doente. Mas como,
no plano simbólico, esse processo de construção do alcoólico como doente se efetiva?
Alguns pesquisadores o entendem como sendo uma “conversão” vivida pelo
bebedor que adere aos princípios da irmandade. Essa é, por exemplo, a leitura que
Garcia faz do programa de recuperação de A.A., através do qual o “alcoólico ativo se
converte em alcoólico passivo” (2004: 101 — grifos do original), libertando-se da
compulsão pela bebida. Para a autora, durante as reuniões de recuperação, “o alcoólico
passivo constrói o passado para realizar o futuro como um convertido que, a cada
apresentação de si, reafirma a eficácia da instituição Alcoólicos Anônimos e a sua
conversão” (Garcia, 2004: 35 — grifos do original).
Os AAs viveriam, assim, um processo análogo àquele vivido pelos pentecostais,
em sua luta para superar o alcoolismo. Ainda, segundo Garcia:
Os integrantes de Alcoólicos Anônimos também acreditam na sua
fraqueza pela bebida. Afirmam que são impotentes perante o álcool e
precisam da ajuda de um poder superior para lutarem contra isto.
Como os pentecostais, também evitam os ambientes que possam
provocar o desejo de beber e, sob uma nova concepção de relação com
o mundo, reinterpretam e reconstroem suas vidas e sua identidade [...]
E, se o religioso reafirma constante e publicamente a sua conversão,
também o integrante da instituição Alcoólicos Anônimos converte-se
118
a cada reunião pelo gesto simbólico, solidificado na expressão: Evite o
primeiro gole, por 24 horas (2004: 100 — grifos do original).
Da mesma maneira que os pentecostais param de beber ao se converterem aos
planos de Deus
68
, os AAs também acreditam que são impotentes para enfrentar sozinhos
o mal representado pelo álcool. Estes também precisariam da ajuda de um poder
superior, consubstanciado nas trocas de experiências feitas dentro do grupo, para
poderem se converter em “alcoólicos passivos”.
Para Garcia, a diferença entre os dois “sistemas de crenças” residiria na
compreensão que ambos desenvolvem sobre o alcoolismo. Para um membro de A.A., a
“crença consiste em que o mal do alcoolismo encontra-se dentro dele, é uma doença
biológica, da qual não pode fugir” (Garcia, 2004: 100); já os pentecostais crêem que o
alcoolismo é uma “obra do espírito maligno”, de maneira que sua libertação depende do
engajamento nas práticas religiosas que visam edificar a obra de Deus.
A construção da identidade do alcoólico, pensada nos termos de uma conversão,
remete à discussão sobre a “natureza religiosa” do modelo de A.A.. É nessa linha que
Blumberg (1977) aponta a influência que os chamados grupos Oxford exerceram sobre
os AAs
69
. De origem cristã, esses grupos se dedicavam à recuperação de alcoólicos a
68
Mariz (1994) chama a atenção para o fato de que os pentecostais, membros das camadas populares,
elaboram um discurso sobre o alcoolismo no qual o consumo incontrolado de bebida alcoólica é
interpretado como obra de um “espírito maligno”, a ação de um “espírito mau”, do “inimigo oculto”;
enfim, uma obra do “demônio”, que conduz o bebedor è dependência do álcool. Segundo a autora (1994:
218), os pentecostais “consideram que, por traz de uma aparente busca por distração e prazer, de ‘amigos’
que empurram para o mau caminho e, também, de toda uma sociedade sem fé, estaria o verdadeiro
responsável pelo alcoolismo, como por todo o mal do mundo — o demônio”. O bebedor que faz um uso
considerado excessivo do álcool está, então, sob o domínio de uma “força maior”, que o impede de parar
de beber, desviando-o do caminho do “bem”. Como antídoto ao alcoolismo, o bebedor deve se submeter
às “regras” e aos “planos de Deus”, representados no mundo terreno através da ação da igreja. Ou seja, “a
libertação da bebida pela igreja não representa apenas uma forma de sair da dependência, mas um novo
estilo de vida, uma nova concepção de mundo, de eu, de liberdade, enfim, uma nova episteme” (1994:
207-208 — grifos do original). Trata-se, então, de uma conversão a um novo estilo de vida, através da
qual o alcoolismo — a obra do “espírito maligno” — é combatido pela edificação da obra de Deus.
69
Barros (2001: 85-87) refere-se nos seguintes termos à influência dos grupos Oxford sobre o modelo de
Alcoólicos Anônimos: “O movimento [que deu origem aos grupos Oxford] foi fundando por volta de
1920 e, na década de 1930, estava no auge de sua influência. Nos primeiros anos, denominava-se
Irmandade Cristã do Primeiro Século, até 1928. Em 1938, o nome Grupos Oxford foi mudado para
Movimento de Rearmamento Moral [...] Os grupos Oxford baseavam-se em seis princípios, cuja
influência nos Doze Passos de AA é evidente: (1) Os seres humanos são pecadores; (2) É possível mudar
os homens; (3) A confissão é requisito prévio para a mudança; (4) A alma mudada tem acesso a Deus; (5)
A era de milagres está de volta; (6) Os que mudaram devem mudar os outros (...) Vem também dos
grupos Oxford a denominação ‘irmandade’, que os AAs adotaram, assim como inúmeros outros grupos
anônimos de auto-ajuda, em seqüência”.
119
partir de uma doutrina espiritualista que consistia na confissão dos defeitos de caráter e
na reparação de danos cometidos a terceiros. Antze (1987) descreve, por sua vez, o
modelo de A.A. como um modelo de conversão religiosa, derivado da teologia
protestante tradicional. Para o autor, há uma homologia entre o modelo dramático do
alcoólico e o drama protestante do pecado e da salvação. Fainzang (1996:110-111 –
trad. minha) também chama atenção para o seu caráter, ao mesmo tempo,
“espiritualista” e “religioso”:
A característica espiritualista, senão religiosa, de um grupo como os
Alcoólicos Anônimos é incontestável [...] A característica
espiritualista do A.A. impregna a totalidade de sua prática e de sua
filosofia. Os testemunhos dos alcoólicos, além de constatarem sua
“ressurreição”, também revelam que eles se sentem objeto de um
milagre, e as reuniões terminam com uma curta prece, chamada de
“oração da serenidade”, pronunciada em pé por toda a assistência. A
filosofia de A.A. se nutre dos valores cristãos como o devotamento ao
outro, e a ética inculcada pela comunidade dos AAs é inteiramente
fundada sobre as noções de humildade, de perdão, de serviço,
recorrendo às práticas tais como: as confissões, as preces, os
testemunhos e as missões proselitistas.
Essas leituras apontam para uma relação de homologia entre A.A. e os grupos
religiosos, ressaltando a “religiosidade” e a “espiritualidade” como características
principais da irmandade, de maneira que, tanto a chamada “filosofia” como as práticas
realizadas em seu interior para dar conta do álcool e do alcoolismo são interpretadas à
luz do campo religioso, constituindo uma espécie de “religiosidade laica” (Fainzang,
1996: 109-118), aspecto fundamental para tornar possível a conversão do “alcoólico
ativo” em “alcoólico passivo”.
Todavia, é preciso cautela na aproximação entre A.A. e os grupos pertencentes
ao campo religioso, uma vez que também há entre ambos diferenças importantes. De
um lado, nota-se que os AAs revelam uma forte vocação “endogâmica”, na qual o
“proseletismo” praticado é fundamentalmente voltado para dentro de si mesmo,
dirigindo-se a seus membros, objetivando sua reprodução enquanto instituição. Suas
práticas ligam-se à própria teoria da doença, presente em seu modelo terapêutico, que,
como vimos, entende o alcoolismo como uma “doença endógena”, incorporada ao
organismo do alcoólico. Dessa maneira, a irmandade diferencia-se, por exemplo, dos
pentecostais, cujo proseletismo é praticado, sobretudo, para “fora”, buscando atrair
novos adeptos para o grupo. Aqui, a prática terapêutica também se relaciona à “teoria”
120
que os pentecostais formulam sobre do alcoolismo, na qual este não é entendido
propriamente como uma doença, mas está ligado à ação do elemento sobrenatural,
sendo, portanto, exógena.
A leitura do modelo de A.A., entendido apenas como uma matriz religiosa,
também não abarca o processo lógico de construção simbólica da identidade do “doente
alcoólico em recuperação”. Ora, desde a Introduction à l'ouevre de Marcel Mauss,
escrita por Lévi-Strauss, em 1950, uma das tarefas principais da antropologia é
“procurar a origem simbólica da sociedade” (Lévi-Strauss, 2001: XVII). Partindo do
modelo elaborado pela lingüística saussuriana, Lévi-Strauss visa analisar a vida social
nos moldes de uma “teoria da comunicação” (1974: 100), de maneira que, a exemplo da
linguagem, o social aparece como um campo autônomo, isto é, como um sistema cujos
termos mantêm entre si relações diferenciais através das quais é possível descortinar a
produção dos significados elaborados em seu interior. Com isso, opera-se uma
verdadeira inversão em relação à concepção durkheiminiana do fato social, na qual as
representações próprias às formas de classificação são pensadas e “organizadas de
acordo com o modelo fornecido pela sociedade” (Durkheim e Mauss, 1990: 189).
Abre-se, assim, a possibilidade da formulação de uma “teoria simbólica da
sociedade” a partir de uma relação de homologia estabelecida entre o plano simbólico e
o universo social:
É da natureza da sociedade que ela se exprima simbolicamente em
seus costumes e nas suas instituições; ao contrário, as condutas
individuais não são jamais simbólicas por elas mesmas: elas são os
elementos a partir dos quais um sistema simbólico que não pode ser
senão coletivo, se constrói (Lévi-Strauss, 2001: XVI).
A vida social tem uma natureza simbólica que permite aos membros de uma
dada sociedade formularem uma compreensão sobre a realidade em que vivem, ao
mesmo tempo em que orienta suas ações. É desse modo que se afirma o caráter
sistêmico do simbolismo, de maneira a abarcar todas as manifestações da cultura. Nas
palavras de Lévi-Strauss (2001: XIX):
Toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas
simbólicos, na primeira linha dos quais se colocam a linguagem, as
regras de matrimoniais, as relações econômicas, a arte, a ciência, a
religião. Todos esses sistemas visam exprimir certos aspectos da
realidade física e social e, mais ainda, as relações que esses dois tipos
121
de realidade mantêm entre si e que os próprios sistemas simbólicos
mantêm uns com os outros.
A cultura é entendida, então, como um sistema simbólico a partir do qual os
sujeitos constroem os conteúdos significativos sobre sua existência. Em outras palavras:
trata-se de uma ordem de significados, no interior da qual seus membros elaboram uma
compreensão da realidade e orientam suas práticas. Esse também é o sentido que
Shalins (2003a: 7-8) dá à vida social culturalmente ordenada, sintetizado na expressão
“razão simbólica”, que toma como a “qualidade decisiva da cultura [...] não o fato de
essa poder conformar-se a pressões materiais, mas o fato de fazê-lo de acordo com um
esquema simbólico definido, que nunca é o único possível”.
Como conseqüência, “o social deixa de se extrair do domínio da qualidade pura
[...] e torna-se um sistema, entre cujas partes podemos descobrir conexões,
equivalências e solidariedades” (Lévi-Strauss, 2001: XXXIII). Pensar a cultura é, então,
pensar o processo lógico que lhe é subjacente, de maneira a descortinar as relações
estabelecidas entre os termos que constituem um determinado sistema simbólico. Trata-
se de enfatizar a disposição relacional que os termos que compõe um dado sistema
simbólico mantêm entre si, e que, como unidade analiticamente construída, tornam
possível a sua singularização diante de outros sistemas de diferenças que operam na
vida social
70
.
É nessa linha que procuramos entender o modelo terapêutico de A.A.,
enfocando-o como uma unidade analítica; um sistema no qual a dimensão simbólica é a
chave para a compreensão da relação entre os significados e as práticas que
condicionam o processo saúde/doença no seu interior. A irmandade é pensada aqui
como uma cultura, no sentido estabelecido por Lévi-Strauss (1974: 351-352), a saber:
70
É importante frisar que a compreensão da noção de cultura como uma unidade simbólica, que
utilizamos para analisar o modelo de A.A., não deve negligenciar as relações que os “sistemas
simbólicos”, próprios das sociedades complexas, mantêm uns com os outros. Nesse sentido, cabe lembrar,
como faz Guedes (1997: 26), “que qualquer cultura se realiza na permanente atualização e recriação deste
sistema de diferenças, o que inclui as diversas possibilidades de sua própria modificação [...] só podendo
ser cristalizada e isolada analiticamente”. De outro lado, é preciso também reconhecer a existência, dentro
de uma determinada unidade de análise, de outros conteúdos significativos, próprios a outros sistemas de
significação. Ainda, segundo Guedes (1997: 27), “a acumulação de trabalhos antropológicos em
sociedades complexas tem acentuado o problema de fazer corresponder um determinado sistema
simbólico a uma unidade sociológica que o realize exclusiva e prioritariamente, não faltando, para
correlação feita, em termos empíricos, contra-exemplos incisivos que apontam quer as possibilidades de
extensão dos significados analisados a outras unidades sociológicas, quer a presença, na unidade
recortada, de significados outros, não estritamente vinculados àquele sistema analiticamente distinguido”.
122
como “todo conjunto etnográfico que, do ponto de vista da investigação, apresenta
afastamentos significativos”, operando como uma referência simbólica na organização
dos significados elaborados em torno da “doença do alcoolismo” e, conseqüentemente,
da noção de pessoa. Vejamos, a seguir, o modo como o sistema simbólico de A.A. é
elaborado, e que linguagem é colocada em prática para dar conta do álcool e do
alcoolismo.
5.1 O sistema dos Alcoólicos Anônimos
A apreensão do modelo de A.A. como um sistema remete ao elo existente entre
o plano simbólico e as práticas individuais, de modo que o consumo compulsivo de
álcool pode ser entendido nos moldes de uma totalidade ou daquilo que, para Mauss,
compõe o “fato social total”. Como sublinha Lévi-Strauss (2001: XXV): “o fato social
total não chega a ser total pela simples integração dos aspectos descontínuos [...] é
preciso também que ele se encarne em uma experiência individual”
71
. Para aprendermos
o modo como os significados sobre o alcoolismo são elaborados, orientando as ações
dos AAs no sentido da recuperação, é necessário voltar nosso olhar para as experiências
trocadas entre os membros do grupo durante as reuniões de reuniões de recuperação.
Nas reuniões, os AAs trocam suas experiências dos tempos do alcoolismo ativo,
bem como as conquistas vividas com manutenção da sobriedade:
Meu nome é Aurélio, um doente alcoólico em recuperação que
freqüenta as reuniões para deixar de ser bêbedo. Para deixar de ser
cachaceiro [...] O Aurélio era compulsivo por cachaça. O álcool
estava me dominando. Eu já tava completamente dominado pelo
álcool. Na ativa, eu fui agressivo com minha saúde. Desenvolvi uma
hipertensão. Quando bebia perdia tudo, deixava de lado a família, os
amigos, o trabalho. Com A.A. consegui manter minha família, meus
amigos. Agora tenho tudo [...] É preciso ter consciência da doença,
do que ela causa (Aurélio, reunião de recuperação aberta, 14 fev.
2002).
71
Ainda segundo Lévi-Strauss (2001: XXVI): “a única garantia que podemos ter de que um fato total
corresponde à realidade [...] é que ele seja apreensível de uma experiência concreta: primeiro, de uma
sociedade localizada no espaço e no tempo, mas, também, de um indivíduo qualquer de uma dessas
sociedades”.
123
Uma análise das partilhas feitas durante as reuniões de recuperação revela que,
embora fundadas na experiência intransferível da dor e do sofrimento, elas utilizam um
código comum e específico para expressar os dilemas e embaraços da prática social e o
confronto cotidiano entre as situações vividas e os valores próprios do contexto sócio-
cultural em que vivem. Em outras palavras: os AAs elaboram uma linguagem própria
para significar a experiência do alcoolismo, que possibilita, ao mesmo tempo, uma
compreensão de seu estado de saúde e uma interpretação para seu mal.
Byron Good (1994) chama a atenção, a partir dos resultados de pesquisa
etnográfica feita em pequenas vilas no Irã, com o objetivo de interpretar o “sofrimento
cardíaco” (heart distress) entre seus habitantes e suas relações com a medicina
hipocrática, para o fato de que os significados da doença, presentes na fala do doente,
são construídos no interior de uma “rede semântica” (semantic network). Ou seja, os
contornos da doença são delineados a partir do “ponto de vista nativo”, através de um
conjunto de símbolos-chave que compõem uma rede de significações
72
.
No grupo de A.A., a experiência do alcoolismo é interpretada a partir de uma
linguagem própria a uma ordem de sentido, dentro da qual seus conteúdos significativos
são construídos, ao mesmo tempo em que se fabrica a identidade do “doente alcoólico
em recuperação”. Nessa medida, o alcoolismo é entendido dentro de um quadro cultural
diferencial, de maneira que o modelo terapêutico da irmandade compõe um “sistema
simbólico” que possibilita aos AAs edificarem uma rede de significados em torno da
experiência da doença, na qual constroem uma representação específica de si mesmos.
Busca-se neste trabalho justamente mapear as categorias, expressões e metáforas
constitutivas da linguagem própria ao sistema de A.A., visando esclarecer os
significados elaborados em torno do álcool e do alcoolismo que informam sobre a
construção da noção de pessoa no interior da irmandade. Na partilha feita por Aurélio,
reproduzida acima, encontram-se grifadas algumas das categorias e expressões que
compõem um quadro amplo de referências, que será apresentado aqui de um modo
propositadamente formal, o que implicará, em larga medida, agrupá-las e
recontextualizá-las segundo nossos princípios de classificação formal.
72
Para Good (1994: 54), “a análise de uma rede semântica permite registrar sistematicamente os
domínios de sentidos associados aos símbolos-chave e aos sintomas em um léxico médico, domínios que
refletem e provocam os modos de vida e as relações sociais, e faz da doença uma ‘síndrome de
significação e experiência’”.
124
O primeiro indício para elaboração desse quadro encontra-se no leque variado de
expressões e metáforas — espaciais, orgânicas — de que o grupo lança mão para se
referir ao indivíduo portador da doença alcoólica e ao alcoolismo. Trata-se, em um
primeiro momento, de expressões que se referem ao chamado tempo do “alcoolismo
ativo” e que indicam tanto um modo particular de significar a experiência do beber
considerado excessivo — a saber: “bebedeira” e “embriaguez” — como reforçam a
situação de marginalidade em que os AAs se encontravam antes de entrarem para a
irmandade, traduzida nas imagens do “bêbado”, do “cachaceiro” e do “pinguço”.
Essas expressões estão diretamente ligadas ao espaço do bar, local onde ocorre o
consumo de álcool, aqui representado, fundamentalmente, pela cachaça; bebida de alto
teor alcoólico e baixo custo, acessível à maioria dos membros do grupo e aos moradores
do distrito de Sapopemba. Do consumo considerado abusivo da cachaça, ou pinga,
como é comumente conhecida, derivam um leque de categorias de forte apelo
estigmatizante, indicando a ruptura com as regras do “bem-beber”.
As figuras do “bêbado”, do “cachaceiro” e do “pinguço” apontam, então, para a
força do estigma, nos moldes assinalados por Goffman (1975: 13), isto é, “um atributo
que lança um profundo descrédito” sobre aquele que é discriminado. Para o autor (1975:
11-12):
a sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de
atributos considerados como comuns e naturais para os membros de
cada uma dessas categorias. Os ambientes sociais estabelecem as
categorias de pessoas que têm probabilidade de serem neles
encontrados.
Dessa maneira, o estigma refere-se à “[...] situação do indivíduo que está
inabilitado para a aceitação social plena” (1975: 7). Aquele que bebe de um modo
considerado excessivo e rompe com as regras de reciprocidade que definem o “bem-
beber” passa a sofrer e incorpora o estigma que o condena à marginalização.
Em um segundo momento, encontra-se um conjunto de expressões ligadas ao
chamado “tempo da recuperação”, que indicam uma percepção do ato de beber
considerado excessivo, na qual este passa a ser entendido nos moldes objetivados pelo
modelo biomédico, isto é, como a “doença do alcoolismo”, uma “doença crônica e
fatal”, de base física e mental, traduzida nas expressões: “compulsividade pelo álcool”,
“obsessão pelo álcool” e “dependência do álcool”. Associado a essas expressões,
125
encontra-se também um conjunto de categorias que definem os contornos de si mesmo
como um “doente alcoólico”: “alcoólatra”, “compulsivo pelo álcool”, “dependente do
álcool”. Ao lado destas, registra-se também a utilização da categoria “bêbado seco”,
para indicar uma compreensão de si mesmo segundo a qual o alcoólico, embora não
faça mais o uso do álcool, ainda não mudou seu comportamento, continuando a agir
como nos tempos do alcoolismo ativo. Ela traduz a dimensão do alcoolismo que os AAs
chamam de “espiritual”, ligada às atitudes e comportamentos que devem ser
modificados para se atingir a sobriedade.
O quadro formal se completa com um outro leque de expressões intermediárias
que indicam a passagem do “tempo do alcoolismo ativo” para o “tempo da
recuperação”, forjando, assim, uma representação específica de si mesmo, como
podemos ver a seguir:
Quadro 4 –
Expressões que designam a passagem de alcoólico ativo para alcoólico em recuperação
Tempo de
alcoolismo
ativo
Fase intermediária
Tempo de
recuperação
Bêbado Dominado pelo
álcool
Impotente diante
do álcool
Bêbado seco
Cachaceiro Louco pelo álcool Derrotado pelo álcool Dependente do
álcool
Pinguço Refém do álcool Aquele que sofre de
perda de controle
perante o álcool
Compulsivo pelo
álcool
Alcoólatra
Doente alcoólico
Paralelamente a esse quadro — em que se percebe uma progressão da esquerda
para a direita e de cima para baixo —, parece emergir um outro, em torno do ato de
beber, que também indica a transição de uma visão estigmatizante para uma perspectiva
própria à tradição do discurso biomédico, remodelando a experiência do beber
considerado excessivo, que passa a ser entendido como “doença alcoólica crônica e
fatal”:
126
Quadro 5 – Expressões que designam o ato de beber
Visão
estigmatizante
Visão
biomédica
Bebedeira Dependência do álcool
Embriaguez Compulsividade pelo álcool
Obsessão pelo álcool
Doença alcoólica
Mas, como o sistema de A.A. se articula às experiências vividas pelos membros
do grupo, definindo os significados do alcoolismo, ao mesmo tempo em que traça os
contornos da “pessoa alcoólica”? A resposta depende de uma análise da “nosografia”
que os AAs elaboram sobre o alcoolismo, a partir de seus “sintomas” físicos e morais.
5.2 Uma nosografia física e moral da doença alcoólica
Quando falam sobre o alcoolismo, os AAs mobilizam um rico conjunto de
categorias para expressarem suas aflições e os efeitos do álcool sobre seu organismo e,
consequentemente, que provocaram a sua deterioração. Paulo relata esses efeitos nos
seguintes termos:
Eu acordava de manhã e sentia aquelas dores na barriga, no
estômago; eu precisava vomitar, e só depois que eu bebia aquilo
passava [...] Eu comecei a ter ânsias às três horas da manhã,
constantemente; mesmo se eu não tivesse bebido, vinha aquela ânsia.
Me dava água na boca. Chegava oito e meia da manhã, não dava: e
eu tinha que beber para ficar legal. Já tinha que beber. Eu já bebia de
manhã mesmo. Eu era muito relaxado com meu físico (Paulo,
entrevistado em 22 jul. 2002).
Hélio também descreve os efeitos físicos e mentais de seu alcoolismo,
ressaltando os lapsos de memória, também chamados de “apagamento”:
Eu já estava conversando sozinho, tendo visões e delírios [...] Na fase
ativa de meu alcoolismo, eu falava sozinho e delirava [...] Fui
perceber que as coisas estavam ficando feias quando no dia seguinte
às minhas bebedeiras as pessoas vinham me falar o que eu tinha feito
e eu não lembrava de nada [...] Certo dia cheguei do serviço e passei
a mão numa garrafa de cachaça e estava vazia; perguntei para minha
esposa cadê a cachaça que estava aqui; ela me disse que eu tinha
127
bebido tudo de manhã e eu não me lembrava de nada (Hélio,
entrevistado em 25 jul 2002).
Durante as partilhas é comum ouvirmos, ainda, que o alcoolismo provoca o
“inchaço das mãos e das pernas”, “ânsias e náuseas”, “dores de barriga e de estômago”,
e “tremores”, que só cessam após a ingestão de uma dose de bebida alcoólica. Os AAs
traçam, então, uma nosografia da doença do alcoolismo a partir de “sintomas”
orgânicos, que podem ser agrupados, progressivamente, como no quadro abaixo:
Quadro 6 – Nosografia do alcoolismo — sintomas físicos
Ressaca Tonturas Perda da força física Tremores Inchaço mãos e
rosto
Náuseas Enfraquecimento Alergia Hipertensão
Cirrose
Associado à sintomatologia orgânica, também encontramos um leque variado de
expressões que se referem aos efeitos mentais do uso do álcool, que alteram o
comportamento do alcoólico:
Quadro 7 – Sintomas físicos x efeitos mentais
Ansiedade Euforia Desequilíbrio Depressão Alucinações
Insegurança Agitação Perda de controle
de si mesmo
Estado vegetativo Delírios
Medo Irritação Perda de memória Tremores
Sufoco Nervoso Apagamento Loucura
Agressividade
Ligada a essa sintomatologia física e mental, também se observa, na fala dos
AAs, uma rica expressão de “sintomas” morais que apontam para os efeitos do
alcoolismo no campo de relações nas quais o alcoólico está envolvido, notadamente no
trabalho e na família.
Os membros do grupo evocam os efeitos do álcool e do alcoolismo sobre a
família nos seguintes termos: “O bêbado é um ladrão da família”; “Eu tirava o prazer
da família” e “O alcoolismo é uma doença da família”. A doença do alcoolismo
extravasa os limites do indivíduo para afetar, sobretudo, o núcleo relacional no qual o
alcoólico está inserido, conduzindo-o a uma ruptura de seus laços familiares e de
128
trabalho: “Quando bebia perdia tudo e deixava de lado a família, os amigos, o
trabalho”; “Quando bebia eu não via meus filhos, eu não me relacionava com minha
mulher. Perdia tudo. Só queria a bebida”.
Esse conjunto de expressões e categorias morais pode ser agrupado segundo o
quadro abaixo:
Quadro 8 – Categorias morais x conseqüências
Categorias
morais
Efeitos
morais
Efeitos
sociais
Efeitos
profissionais
Efeitos
familiares
Orgulho Sarjeta moral Sarjeta social Sarjeta
profissional
Brigas do casal
Onipotência Desequilíbrio
moral
Perda dos amigos Perda do trabalho Conflitos com os
filhos
Egocentrismo Perda da força
moral
Perda da família
Ressentimento Desmoralização Doença da
família
Na linguagem da doença formulada pelos AAs, o alcoolismo assume os
contornos de uma perturbação físico-moral
73
, afetando tanto o âmbito físico/orgânico
como o âmbito relacional. A chamada doença do alcoolismo é traduzida tanto a partir de
seus efeitos sobre o organismo, atingindo o âmbito físico e mental da pessoa, como a
partir de seus efeitos sobre o plano moral, afetando, sobretudo, o âmbito relacional da
família.
Os AAs dizem que, no tempo do alcoolismo ativo, eram “relaxados com o
físico” — “Eu olhava no espelho e percebia que eu estava morrendo. Aquele rosto
inchado e envelhecido pelo álcool...” (Paulo, entrevistado em 22 jul. 2002) —, e que
necessitavam ingerir a bebida alcoólica para que as ânsias, as náuseas e os tremores
cessassem.
As “alucinações”, os “delírios” e os “tremores” são os signos mais
característicos dessa fase, que denotam o alcoolismo como um estado de “dependência
do álcool”. O ato de beber já deixou de ser um ato de prazer e tornou-se uma
73
As “perturbações físico-morais” são entendidas, aqui, no sentido proposto por Duarte (2003: 177) e
dizem respeito “às condições, situações ou eventos de vida considerados irregulares ou anormais pelos
sujeitos sociais e que envolvam ou afetem não apenas sua mais imediata corporalidade, mas também sua
vida moral, seus sentimentos e sua auto-representação”.
129
necessidade orgânica: “Às vezes, eu saia de casa e dizia para mim mesmo que eu não ia
beber, mas de repente, quando eu percebia, eu já estava com um copo na mão,
bebendo” (Hélio, entrevistado em 25 jul. 2002). Entre os signos da dependência
destacam-se os tremores: “Às vezes eu acordava de manhã tremendo, minhas mãos não
paravam, e só depois que eu bebia é que eu melhorava” (Paulo, reunião de recuperação
aberta, 17 abr. 2002). “O tremor da mão é estigmatizado como a expressão tangível de
um não-controle de si, e por extensão, de uma dependência” (Fainzang, 1996: 56 – trad.
minha).
A perda de controle (loss of control) sobre o álcool é narrada de maneira a
enfatizar o estado de dependência em que se vive: “Eu percebi que eu estava
dependente do álcool quando tentei parar de beber e não consegui. Eu não conseguia
dar sustentação a esse parar de beber” (Paulo, entrevistado em 22 jul. 2002).
A perda de controle de si mesmo também é expressa através dos efeitos mentais
do álcool, notadamente do chamado delirium tremens: as visões de animais, as
alucinações, os delírios vividos pelo bebedor na fase ativa do alcoolismo. Nesse
momento, o bebedor revela uma incapacidade em controlar seus pensamentos que, no
limite, pode conduzir à própria “loucura”, estágio final, ao lado da “morte prematura”, o
que os AAs indicam ser o destino daqueles que não procuram ajuda.
Mas, principalmente, o alcoolismo impede o alcoólico de escolher entre beber e
não beber. É nesse contexto que devemos entender as categorias e expressões que
denotam o modo como o ato de beber deixou de ser um ato de vontade própria para se
transformar em dependência: “impotente diante do álcool” e “derrotado pelo álcool”.
Em outras palavras, o alcoolismo define-se como uma “doença” que se manifesta pela
“perda de controle sobre o álcool”, o que faz do doente alguém “impotente” e
“derrotado”, que não consegue agir segundo sua própria vontade.
5.3 O álcool, os nervos e o sangue: as representações da “pessoa
alcoólica”
As referências orgânicas que os AAs utilizam para falar sobre seu alcoolismo
também sinalizam para o modo como a doença alcoólica afeta sua força e o seu vigor,
comprometendo a substância do corpo doente, enfraquecendo-o.
130
O par força/fraqueza é central para o reconhecimento de um funcionamento
normal do organismo, mantendo uma relação direta com as representações construídas
em torno das relações entre o “álcool”, os “nervos” e o “sangue”. A relação entre esses
três elementos é parte freqüente das representações construídas pelos AAs. Paulo, por
exemplo, deixa entrever o modo como o alcoolismo afetou seus nervos, enfraquecendo
seu corpo:
Meus nervos me bloquearam. Eu fiquei na cama fazendo minhas
necessidades; na cama, eu; um cara barbudo, peludo como eu, virou
criança. Eu não tinha mais forças. Minha mãe tinha que me limpar.
Veja o ponto a que eu cheguei bebendo (Paulo, entrevistado em 22 jul.
2002).
A literatura antropológica tem se ocupado dessa relação, ressaltando o modo
como os indivíduos elaboram uma interpretação própria para os efeitos do álcool sobre
os nervos bem como sobre suas conseqüências na vida social do bebedor. Seguindo o
modelo sugerido por Setha Low (apud Fainzang, 1996: 70), os nervos são entendidos
como uma categoria cultural, coletivamente construída, compondo um sistema
simbólico, através do qual os indivíduos podem expressar e significar suas aflições
74
.
Nessa linha, Fainzang (1996: 69-82) aponta para a complexidade dos elos que
unem o álcool e os nervos nas representações dos ex-bebedores, membros do grupo Vie
Libre, que constituem um esquema próprio de causalidade, elaborado para dar conta da
doença do alcoolismo. Segundo a autora, esse esquema de “causalidade” pode ser
expresso de duas maneiras, contraditórias entre si: ora os nervos “estão doentes” (1996:
70) e são entendidos como a causa da alcoolização e do alcoolismo, ora eles são
“afetados” pelo álcool, em decorrência de um beber considerado excessivo. As
representações dos efeitos do álcool sobre o organismo também podem variam caso o
bebedor seja um homem ou seja uma mulher:
74
Segundo Low, a categoria “nervos” é culturalmente elaborada a partir de três níveis: “1) os sintomas
são exprimidos conforme as modalidades culturais por meio do corpo como um sistema simbólico, 2) os
sintômas são culturalmente selecionados e identificados no quadro da teoria da doença e das regras
culturais da etiologia, e 3) os sintomas têm significações sócio-culturais baseadas nos valores da
sociedade e no sistema social” (Apud, Fainzang, 1996: 70 – nota 1 – trad. minha).
131
os homens têm os nervos fragilizados pelo álcool, mas não são jamais
os nervos doentes que permitem explicar seu comportamento. Nas
mulheres, os nervos são naturalmente vulneráveis, senão doentes; nos
homens, os nervos são deteriorados pelo álcool (Fainzang, 1996: 73 –
trad. minha).
De todo modo, Fainzang compreende as referências aos nervos encontradas nas
falas dos ex-bebedores como um indício, uma linguagem que denota o estado de
dependência do bebedor: “os nervos são idioma ou uma metáfora da perda de controle
de si. Eles traduzem o fato de ‘não ser mais si mesmo’” (1996: 73 – trad. minha).
No Brasil, a temática dos “nervos” foi amplamente analisada por Duarte (1986,
1994) em sua pesquisa sobre o processo de construção das identidades sociais e sua
relação com a construção da noção de pessoa nas classes trabalhadoras urbanas no
município de Niterói, Estado do Rio de Janeiro. O trabalho etnográfico realizado em
torno da chamada “doença nervosa” conduziu o autor a uma compreensão dos “nervos”
entendidos como um código cultural de expressão das camadas populares brasileiras.
Para Duarte (1986: 10),
os nervos e sua corte de derivados, com suas respectivas esferas
semânticas e sentidos diferenciais, atravessam todos esses infinitos
recortes analíticos em que nos habituamos a conduzir o exercício de
compreensão do social. Estavam em jogo as relações de trabalho
assim como a sociabilidade vicinal, as representações da saúde assim
como as religiosas, o jogo dos papéis familiares assim como a relação
com as instituições e códigos dominantes; enfim, o quotidiano e o
ritual, a norma e o desvio, a regra e o desempenho.
As referências aos “nervos” encontradas entre os trabalhadores urbanos
configuram, segundo Duarte, um modo diferencial de ordenar e significar suas aflições,
que redefine a compreensão que têm de si mesmos e da própria vida social. Nesse
sentido, o código do “nervoso” se liga diretamente às representações construídas sobre a
pessoa, operando como elemento mediador entre os planos “físico” e “moral”. Ao
contrário do antigo modelo humoral, para o qual o “sistema nervoso” era entendido de
maneira universal, sendo o mesmo para todos, o código do nervoso, presente nas
representações das camadas populares brasileiras, aponta para a variabilidade dos
modelos culturais, construídos dentro de uma lógica hierárquica. Com efeito, a chamada
“doença dos nervos” aparece como uma perturbação que atualiza a antiga locução
“físico-moral”, articulando os dois campos constitutivos da pessoa: de um lado, o plano
físico e corpóreo, e, de outro, o plano moral — como, na nossa tradição, o antigo
132
“espiritual”, e o recente “psíquico”. Os “nervos” adquirem, aqui, o caráter de “mediador
de todo esse conjunto semântico, de fio mediador entre o físico e o moral [...] tão
radicalmente separados e estandartizados na tradição cartesiana” (Duarte, 1994: 85).
Nessa perspectiva, as representações sobre o nervoso edificadas nas camadas
populares brasileiras sinalizam para uma construção diferencial da pessoa, solidária a
valores e princípios próprios em oposição ao modo individualista característico do
campo ideológico moderno:
Os nervos são pensados como um meio físico de experiências tanto
físicas quanto morais – em perfeita oposição à idéia de psiquismo,
concebido para se substituir ao antigo nível moral e estabelecer sobre
o físico uma nova hegemonia. Os nervos são uma típica representação
relacional da pessoa, enquanto o psiquismo é uma representação
individualizada, associável às marcas ideológicas mais amplas da
modernidade ocidental
75
(Duarte, 1994: 85).
A fala de Paulo, citada acima, parece conter os elementos que relacionam os
efeitos do álcool sobre os “nervos”, no campo das perturbações físico-morais. Em um
primeiro momento, a ação do álcool compromete toda a substância corpórea, levando o
alcoólico à total paralisia. Fraco e sem forças sequer para cuidar de si, o alcoólico se vê
reduzido a um estado de dependência do outro — do cônjuge ou dos familiares.
Depender do outro é algo insuportável para a crença moderna na auto-suficiência do
indivíduo, que deve ter controle sobre si mesmo.
O bloqueio dos “nervos”, contudo, não traduz apenas um sintoma da “perda de
controle de si mesmo”, característico do estado de dependência do álcool, como pode
sugerir uma leitura individualizante do modelo terapêutico da irmandade, mas significa,
sobretudo, o reconhecimento da incapacidade moral de assumir o papel social de
“trabalhador” e, conseqüentemente, de prover o sustento de sua família.
Nessa medida, os “nervos” cumprem um papel fundamental nas representações
sobre a “pessoa alcoólica” formuladas pelos ex-bebedores, permitindo uma
comunicação entre os órgãos do corpo, regulando o funcionamento normal do
organismo, ao mesmo tempo em que aparece ligado diretamente ao âmbito moral de
suas vidas, regulando o exercício dos papéis sociais vividos na família e no trabalho.
75
Ainda, segundo Duarte (1994: 85): “Parece haver uma certa corelação entre a utilização do código do
nervoso e um modo cultural associado à relacionalidade, à complementariedade e à hierarquia. O modo
que se lhe opõe – mutualista, singularizante e individualizante – expressa-se de modo privilegiado através
das representações psicologizadas da pessoa.”
133
A comunicação entre os órgãos se faz através da ação do sangue que, por sua
mobilidade, percorre todo o organismo, garantido a unidade da substância corpórea. O
álcool, porém, na visão dos AAs, é um líquido que “contamina” o sangue,
comprometendo, sobretudo, os nervos, enfraquecendo e paralisando o alcoólico, que
perde a capacidade de cuidar de si. Como lembra Fainzang (1996: 76 –trad. minha):
O sangue é, ao mesmo tempo, vetor da impureza do álcool, que ele
transporta até o cérebro e aos nervos, e ele mesmo, uma das vítimas da
intoxicação alcoólica. O sangue é entendido como uma substância que
se difunde e nutre os outros órgãos. Desde o momento em que ele é
infectado pelo álcool, tudo se passa como se os dois líquidos
percorressem o mesmo trajeto. A substância álcool se infriltra nas
veias e termina por tomar o lugar do sangue.
Não é fortuito, portanto, que a única maneira de se combater o alcoolismo, para
os AAs, seja através da abstinência total do uso do álcool, entendida também como
responsável por manter a pureza do sangue.
Mas para os AAs, “perder o controle de si mesmo” significa, sobretudo, perder a
qualidade moral de cuidar de si e de prover sua família através do trabalho. A
articulação entre álcool/nervos/sangue e sua relação com a substância corpórea liga-se,
assim, ao plano moral, uma vez que incide sobre a força física do alcoólico, colocando
aquele que deveria cuidar de si e de sua família na condição de dependente do outro.
O alcoolismo é, então, uma doença cujos sintomas articulam os planos físico e
moral da vida do alcoólico. Essa articulação é operada, sobretudo, através dos “nervos”,
que não só fazem a comunicação entre os órgãos do corpo, mas também atuam como
elemento mediador entre os planos físico e moral da “pessoa alcoólica”.
5.4 A lógica terapêutica dos Alcoólicos Anônimos
A maneira pela qual os AAs significam a experiência da doença oferece uma
referência para pensar o mundo social onde estão inseridos, que se articula à sua
condição social e constitui um modo de responder a ela. Não por acaso, a esfera familiar
e do trabalho ocupa uma posição central nas suas representações formuladas tanto sobre
as “causas” do alcoolismo (ver tópico 2.3) como sobre os “efeitos” do álcool e do
134
alcoolismo, cuja ameaça reside justamente na possibilidade de se dissolver os laços de
reciprocidade e os códigos de lealdade implicados nas relações familiares
76
.
Isso explica também o fato de que a lógica que preside a fala da doença dos
membros da irmandade ser uma lógica hierárquica, semelhante à do código do
“nervoso”. Em vez de uma ênfase apenas na “perda do controle de si”, que a
aproximaria da ideologia do individualismo moderno, a fala da doença elaborada pelos
AAs traz consigo uma representação do alcoolismo que obedece a uma lógica
hierárquica ligada aos valores “família” e “trabalho”, que estruturam e englobam o
conjunto das relações sociais vivenciadas pelos membros grupo, e através dos quais o
próprio modelo terapêutico de A.A. é apreendido e praticado.
Essa mesma lógica está presente também no pensamento médico-hegienista
francês, que, como vimos no capítulo 2 (tópico 2.1), teve uma importante influência na
definição das representações sobre o álcool e o bebedor na sociedade brasileira
77
. Dessa
maneira, as representações elaboradas em torno do alcoolismo remetem a uma
configuração da “pessoa alcoólica” relacionada ao desempenho do papel social do
“homem provedor”, responsável por cuidar de si e de prover sua família.
Mas, qual é a lógica operada no modelo terapêutico da irmandade? Em A.A.
opera-se a conjugação de uma lógica individualizante, ligada à construção da identidade
de “doente alcoólico”, um indivíduo portador da doença incurável do alcoolismo e uma
lógica hierárquica, ligada aos valores “família” e “trabalho”, que estruturam o universo
social no qual os AAs estão inseridos e através dos quais os conflitos vivenciados nos
tempos do alcoolismo ativo são traduzidos. A lógica terapêutica de A.A. consiste, então,
em conjugar a construção de uma noção de “indivíduo doente” ao exercício de seus
76
Como lembra Sarti (2005: 52): “Num país onde os recursos de sobrevivência são privados, dada a
precariedade de serviços públicos de educação, saúde, previdência, amparo à velhice e à infância,
somados à fragilidade dos sindicatos e partidos políticos como instrumentos de mediação entre o
indivíduo e a sociedade, enfim, diante da ausência de instituições públicas eficazes [...] o processo de
adaptação ao meio urbano e a vida cotidiana dos pobres, inclusive os nascidos na cidade, é
estruturalmente mediado pela família. Suas relações fundam-se, portanto, num código de lealdade e de
obrigações mútuas e recíprocas próprio das relações familiares, que viabilizam e moldam seu modo de
vida também na cidade, fazendo da família e do código de reciprocidade nela implícito um valor para os
pobres”.
77
Segundo Duarte (1994: 87) os saberes médico-higienistas do século XIX também possibilitaram a
conversão do “sistema mecanista integrado dos nervos— o “sistema nervoso” —, formulado no século
XVIII, e que serviu de suporte a uma representação do sujeito, entendido como “imanente”, “autônomo”
e “universalmente idêntico”, para uma lógica hierárquica, relacional, baseada na exacerbação das
diferenças, própria ao modelo da “degenerescência” (ver nota 29). Como vimos, no modelo médico-
higienista, ocorre uma redefinição da imagem do bebedor que passa a ser visto como um ser degenerado,
uma ameaça à família e à ordem social.
135
papéis sociais no universo relacional da “família” e do “trabalho”, de maneira a fazer a
mediação entre os planos físico e moral da pessoa, possibilitando ao “doente alcoólico”
reconhecer-se na imagem do “homem provedor”.
Uma imagem expressiva dessa mediação está associada à ação do álcool sobre
os nervos, e liga-se à imagem do bebedor que não tem controle sobre si mesmo e,
conseqüentemente, não consegue manter-se em pé e dorme, freqüentemente, nas “ruas”,
caído no chão. É isso o que se depreende da fala de João sobre os tempos de seu
alcoolismo ativo, em que muitas vezes não conseguiu entrar dentro da própria casa,
dormindo na rua:
Eu senti que eu estava dependendo do álcool e que estava decadente;
foi quando, uma vez, eu cheguei em casa e não consegui abrir o
portão para entrar, e dormi do lado de fora do portão. O pessoal que
passava indo para o trabalho, eu lembro, um cara passou e apontou o
dedo para mim, eu vi, eu estava acordado, só não tinha força para
levantar; ele disse: “olha o bêbedo onde dormiu”. Aí eu senti que
minha situação estava triste (João, entrevistado em 24 ago. 2002).
Essa fala é emblemática sob vários aspectos. Fica claro, de um lado, como a
“dependência do álcool” compromete a “força física” do bebedor, impedindo-o de se
levantar e obrigando-o a dormir fora de casa. De outro, dormir na rua reforça o estigma
pertencente à imagem do “bêbado” que não consegue entrar dentro da própria casa, em
oposição à imagem do “trabalhador”, do homem responsável, que acorda cedo para ir ao
trabalho e prover o sustento de sua família.
Dormir na rua, nos bancos de jardins e praças, é um signo da ruptura com o
suporte relacional da família, que dá ao alcoólico a possibilidade de se reconhecer como
“homem digno”. Não é a casa, como nos ensina Da Matta (1997), o espaço no qual nos
construímos como pessoas morais, pertencentes a um grupo em que nos reconhecemos?
A casa confere uma forte dignidade moral àqueles que nela habitam. Nela, o homem é
reconhecido como “pai”, “esposo”, “chefe de família” e toda uma ordem de categorias
que, diferentemente da rua, lhe garante autoridade e reconhecimento. Como o lembra
Sarti (2005b), o uso do álcool pode comprometer, justamente, o exercício da
“dignidade” do homem:
A casa é onde [se] realizam o projeto de ter uma família, permitindo
[...] a realização dos papéis centrais na organização familiar, o de pai
de família e o de mãe/dona-de-casa. Esse padrão ideal pressupõe o
papel masculino de prover teto e alimento, do qual se orgulham os
homens [...] Assim, para constituir a “boa” autoridade, digna da
136
obediência que lhe corresponde, não basta ao homem pegar e botar
comida dentro de casa e falar que manda. Para mandar, tem que ter
caráter, moral. Assim, o homem, quando bebe, perde a moral dentro
de casa. Não consegue mais dar ordens (2005b: 62-63 – grifos do
original).
Na fala de João, dormir na rua significa fazer parte de um mundo indiferenciado
e impessoal, do “mundo da rua” no qual se é “ninguém”. Na rua, ele não encontra mais
o lugar da autoridade que exerce na família. Sua tristeza reflete o sentimento de
“fracasso”, por não cumprir com sua “obrigação” de prover sua família com teto e
alimento, uma vez que os homens se sentem responsáveis pelos rendimentos familiares.
Trata-se, assim, do sentimento de “perda da dignidade” e do reconhecimento da “sarjeta
moral” em que se encontra.
O alcoolismo assume, aqui, toda a dimensão de uma doença que articula os
planos físico e moral da pessoa, impedindo o alcoólico de agir de modo “responsável”.
Quando falam da doença e dos dissabores enfrentados nos tempos do alcoolismo ativo,
os AAs traçam os contornos precisos de uma imagem de si mesmos como “dependentes
do álcool”, isto é, como aqueles que perderam a responsabilidade, ao mesmo tempo,
relativa a cuidar de si mesmos e a prover suas famílias, através do trabalho.
É por isso que, certa vez, Paulo me disse que a “recuperação de um alcoólatra é
a recuperação da família”. Isso porque a doença do alcoolismo não atinge apenas o
indivíduo, mas afeta a todos aqueles que estão a seu redor, notadamente, à sua família.
Se o alcoolismo é uma “doença do indivíduo”, ele é tamm uma “doença da família”.
137
Capítulo 6
O ALCOOLISMO É UMA “DOENÇA DA FAMÍLIA”
[O alcoolismo] é a doença da família; a
doença é da coletividade. A doença é do
indivíduo, só que afetando esse indivíduo,
ela afeta tudo.
Paulo, membro de A.A.
Durante a pesquisa etnográfica, freqüentemente ouvi os AAs se referirem ao
alcoolismo como uma “doença da família”, um mal que atinge ao mesmo tempo o
indivíduo e todos os que estão a seu redor, notadamente sua família e os presentes em
seu local de trabalho, deteriorando os vínculos sociais e afetivos. Paulo confirma essa
idéia ao relatar sua compreensão da “doença do alcoolismo”:
Nós temos nossa terceira tradição que diz: “para ser membro de A.A.,
o único requisito é o desejo de parar de beber”. Agora, nem todos
chegam em A.A. com esse desejo de parar de beber. A maioria chega
aqui forçado, porque a doença, ela não é individual, a doença é da
família, a doença é da coletividade. A doença é do indivíduo, só que,
afetando esse indivíduo, ela afeta tudo (Paulo, entrevistado em 22 jul.
2002).
Essa definição é significativa, pois indica com precisão a maneira pela qual o
alcoolismo é entendido: como uma doença que extravasa o limite intrapessoal, afetando
diretamente o núcleo relacional familiar do alcoólico. Embora a terceira tradição da
irmandade indique que, para ser membro de A.A., é necessário que o alcoólico
manifeste o “desejo de parar de beber”, Paulo sugere que a doença alcoólica não é
apenas um mal individual, mas sim um mal da “coletividade”, notadamente do círculo
de relações familiares nas quais o alcoólico está inserido. O alcoolismo provoca a
decadência física e moral do alcoólico, levando-o à perda da família e da inserção na
sociedade e no mercado de trabalho: Aqui [em Sapopemba] muitos são
desempregados, principalmente aqueles que chegam a Alcoólicos Anônimos. Através do
138
alcoolismo, eles perderam seus empregos, perderam suas famílias, eles chegam aqui
todos detonados” (Paulo, entrevistado em 25 jan. 2005).
Nas reuniões de recuperação, os AAs confirmam essa idéia ao ressaltar,
sobretudo, a “perda da família” nos tempos do alcoolismo ativo:
Boa noite a todos meu nome é Alberto, também sou um alcoólatra e a
minha primeira investida no A.A. foi por necessidade. Eu trabalhava
na C.M.T.C.
78
e vivia muito prejudicado pelo álcool. Eu fazia muitas
palhaçadas e muitas besteiras, até que um dia eu ia descendo do
ônibus no ponto final e vi um papel no chão com aquela frase: “Se
você quer beber o problema é seu. Se você quer parar de beber, o
problema é nosso”. E eu vim aqui no grupo Sapopemba em 1992, mas
eu não aceitei o programa, porque na reunião eu vi que todo mundo
tinha perdido alguma coisa. Como eu ainda não tinha perdido nada,
eu não aceitei o programa [...] Não basta você sentar aqui e parar de
beber. É preciso que você se modifique, que ajude os outros que estão
com o mesmo problema, que procure novos companheiros, e eu não
fiz nada disso, só parei de beber. As coisas complicaram depois que
eu saí da C.M.T.C. e fui trabalhar em São Bernardo. Lá eu pegava às
17 horas e parava às 2 horas da manhã. Eu não tinha como
freqüentar uma sala de A.A., pois eu tirava folga na terça, quarta ou
quinta-feira, e nesse dia eu estava todo estourado, cansado, sem
cabeça para mais nada. Aí, automaticamente, apareceram os velhos
amigos me convidando para beber uma cachaça, e assim eu voltei a
beber e fiquei na ativa por volta de 7 anos. E agora eu voltei para o
A.A., mas agora eu voltei na dor, já não foi por amor, porque tudo
aquilo que eu ouvi falar no grupo Sapopemba aconteceu comigo. Eu
achava que não aconteceria, mas aí eu perdi a esposa, perdi a
dignidade, perdi o caráter, perdi minha família; eu perdi tudo
(Alberto, 52 anos, casado, 10 anos de A.A., motorista, reunião de
recuperação aberta, 9 mar. 2002).
A narrativa de Alberto reforça o elo físico e moral próprio à doença do
alcoolismo; uma doença que conduz o alcoólico à perda de sua família e,
conseqüentemente, de sua “dignidade”. Fica claro que o alcoolismo é entendido como
uma doença que afeta diretamente a esfera do trabalho, impedindo o alcoólico de
trabalhar e, conseqüentemente de cuidar de si e de sua família. Com isso, ele não se
reconhece mais com um “homem digno”, isto é, com um trabalhador responsável por
prover o sustento de sua família.
Mas como entender essa referência à ordem moral familiar no interior do
modelo terapêutico de A.A.? Herzlich (1984) mostra, em um estudo feito originalmente
78
Antiga Companhia Municipal de Transportes Coletivos, reponsável pelo transporte coletivo na cidade
de São Paulo.
139
na década de 1960, que a linguagem da doença não é apenas a linguagem em relação ao
corpo, mas sim à vida social e às relações sociais, nas quais o doente está envolvido.
Para a autora:
A interpretação coletiva da doença se efetua nos termos que, em
sentido próprio, acusam a sociedade ou a ordem social [...] Através de
nossas concepções da doença, nós falamos de fato de outra coisa: da
sociedade e de nossas relações sociais. É porque exige uma
interpretação que a doença torna-se o suporte de um sentido, um
significante cujo significado é a relação do indivíduo com a ordem
social (1984: 202 – trad. minha).
Nesse sentido, as representações da saúde e da doença compõem um sistema de
valores e de práticas que tanto inauguram uma ordem, no interior da qual os indivíduos
orientam suas ações em um determinado meio social, como asseguram a formação de
um código comum; um campo semântico que permite a comunicação e as trocas
simbólicas entre os membros de um determinado grupo social. As representações sobre
a saúde e a doença são, então, parte integrante de um sistema classificatório regido por
coordenadas físicas e morais, capaz de modelar e dar forma às aflições vividas pelos
doentes.
Ao se dizerem doentes, os membros de um determinado grupo social estão
afirmando a relação conflituosa que mantêm com o meio social em que vivem. Nas
palavras de Adam e Herzlich (1994: 63-64):
Em todas as sociedades, as doenças, e mais particularmente algumas
delas, são interpretadas de maneira específica e estão prenhes no
imaginário coletivo, mas a própria noção de doença serve também de
suporte à expressão de crenças e valores mais amplos.
Não é por acaso, então, que os alcoólicos constroem uma fala da doença na qual
esta aparece associada aos conflitos com os valores e as regras da vida social, os quais
envolvem, sobretudo, a esfera familiar e do trabalho. Mesmo sabendo que A.A. define o
alcoolismo como uma “doença genética e orgânica”, quando falam do mal que os aflige,
os AAs falam de si mesmos e dos conflitos vividos no meio social em que vivem. A fala
da doença proporciona, então, uma linguagem através da qual os membros do grupo
podem dar um sentido às suas aflições e aos conflitos enfrentados no âmbito relacional
da família e do trabalho, que operam como valores estruturantes e englobantes do
conjunto das práticas vivenciadas no meio social no qual os AAs estão inseridos.
140
Aqui, também é importante ouvirmos as palavras de Sahlins (2003b: 7), para
quem os significados produzidos no interior de uma ordem cultural são constantemente
reavaliados pelos agentes em suas ações em confronto com o mundo. Se, “por um lado,
as pessoas organizam seus projetos e dão sentido aos objetos partindo das compreensões
preexistentes da ordem cultural [...] Por outro lado, os homens criativamente repensam
seus esquemas convencionais”
79
.
A expressão “doença da família” indica um modo particular de os AAs
entenderem e significarem a experiência do alcoolismo, no interior do modelo
terapêutico da irmandade. Certa vez, em uma conversa com Paulo, indaguei se essa
definição estava presente na literatura oficial da irmandade. Como resposta, ele me
disse: “Não, isso você só encontra aqui [no grupo Sapopemba], essa é uma definição
nossa”. Logo, se é certo que A.A. é uma ordem de significação no interior da qual são
construídos os significados em torno do álcool, do alcoolismo e de si mesmo, entendido
como um “doente alcoólico em recuperação”, seus membros têm uma maneira própria
de significarem suas experiências etílicas, articulando e mobilizando elementos
característicos do universo social no qual estão inseridos, notadamente os valores
família e trabalho, que estruturam e orientam suas práticas sociais.
A esfera familiar opera aqui como uma referência simbólica fundamental,
através da qual os AAs formulam um significado às suas aflições, ao mesmo tempo em
que delineiam os contornos de sua identidade e da noção de pessoa. A literatura
antropológica tem evidenciado o papel central ocupado pela família nas relações sociais
e na definição da identidade social, sobretudo entre os membros das camadas populares.
Zaluar (1994) apresenta um rico levantamento etnográfico, através do qual
confirma o valor da família e da identidade social de “trabalhador” para os moradores
de bairros populares. Para a autora:
O trabalhador respeitável é membro de uma família para cuja
sobrevivência concorre aumentando a renda familiar. O respeito que
tem por si próprio e pelos outros advém daí. É esta obrigação com os
demais membros da família, em especial quando ele é o provedor
principal, que o faz aceitar como positivo o trabalho (Zaluar, 1994:
89).
79
Ainda segundo Sahlins (2003b: 10): “Os homens em seus projetos práticos e em seus arranjos sociais,
informados por significados de coisas e de pessoas, submetem as categorias culturais a riscos empíricos.
Na medida em que o simbólico é, deste modo, pragmático, o sistema é, no tempo, a síntese da reprodução
e da variação”.
141
Nessa linha, a família não pode ser reduzida a uma invenção burguesa, mas
comporta uma constelação de diretos e deveres, criando um espaço de reciprocidade e
elos de obrigações entre seus membros, o que faz do âmbito familiar um centro
fundamental na irradiação dos valores definidores da identidade e da noção de pessoa
entre os membros das camadas populares.
Sarti (2005a; 2005b) também oferece uma contribuição importante em sua
pesquisa sobre a importância da esfera familiar na definição, ao mesmo tempo, de uma
ordem moral e do universo simbólico entre moradores da periferia de São Paulo. Para
essa pesquisadora, a família opera como uma referência simbólica central nos meios
populares, de maneira que o espaço familiar pensado “como uma ordem moral, constitui
o espelho que reflete a imagem com a qual os pobres ordenam e dão sentido ao mundo
social” (2005b: 22).
Ainda segundo Sarti (2005b: 139-143), o universo simbólico da família, com
seus códigos de reciprocidade e obrigações, é parte integrante da complexa formação
histórica da sociedade brasileira, possibilitando aos “pobres” um princípio organizador
de sua percepção do mundo. A família, com seus códigos e obrigações, é pensada como
uma linguagem que articula os elementos da vida social, permitindo a seus membros
atribuir um sentido à vida, ao mesmo tempo em que definem os contornos de sua
identidade social
80
.
Nessa perspectiva, a família converte-se em uma esfera central para construção
da identidade social de seus membros, sobretudo entre as camadas populares. Mais do
que um núcleo para a sobrevivência material e espiritual de seus membros, a esfera
familiar é o “substrato de sua identidade social [e] sua importância não é funcional, seu
valor não é meramente instrumental, mas se refere à sua identidade de ser social e
constitui a referência simbólica que estrutura sua explicação do mundo” (Sarti, 2005b:
53).
Duarte (1986), por sua vez, afirma, a partir da oposição individualismo-
hierarquia, proposta por Dumont (ver capítulo 1), a centralidade do “valor-família” na
definição de um padrão cultural hierárquico entre os membros das camadas populares,
80
Para Sarti, “a família como ordem moral [...] torna-se uma referência simbólica fundamental, uma
linguagem através da qual os pobres traduzem o mundo social, orientando e atribuindo significado a suas
relações dentro e fora de casa” (2005b: 86 – grifo do original).
142
fundamental para delinear os contornos da identidade social e da noção de pessoa em
seu interior.
Para esse pesquisador, “o ‘valor-família’ abarca um certo número de qualidades
distribuídas entre seus componentes e que lhe concedem sua preeminência enquanto
foco da identidade social” (1986: 175). Nas camadas populares, portanto, o “valor-
trabalho”, fundamental na definição da condição de “trabalhador” e de “homem
provedor”, é encapsulado pelo “valor-família”, centro irradiador e foco principal na
definição da identidade dos membros desse grupo social.
É assim que a condição de “chefe de família” e de “trabalhador” correspondem a
qualidades que se imbricam na definição e na estruturação da identidade e da noção de
pessoa do homem das camadas populares (Guedes, 1997; Sarti, 2005b). A identidade de
“trabalhador” e a de “provedor” compõem, então, um signo de uma auto-identificação
positiva, sobretudo para os homens, que os faz aceitar muitas vezes a rudeza de seu
cotidiano.
Ora, o alcoolismo vai comprometer justamente essa construção da identidade,
impedindo o alcoólico de trabalhar e, conseqüentemente, de prover o sustento de sua
família. Assim, pensar o indivíduo é pensar também o universo relacional da família,
uma vez que é daí que se irradiam as marcas fundamentais de sua visão de mundo e que
se desenham os contornos de sua identidade, ligadas ao desempenho dos papéis sociais
de “pai/mãe”, de “esposo(a)”, de “trabalhador(a)”.
A categoria “doença da família” também possui um valor heurístico, uma vez
que possibilita uma avaliação dos modos diferenciais através dos quais o alcoolismo
afeta tanto o “homem alcoólico” como a “mulher alcoólica”. Dentro da família, as
relações entre o homem e a mulher são marcadas por uma assimetria e uma
complementaridade que podem ser traduzidas na diferenciação hierárquica existente
entre a “casa” e a “família”:
Existe uma divisão complementar de autoridade entre o homem e a
mulher na família que corresponde à diferenciação entre casa e
família. A casa é identificada com a mulher e a família com o homem.
Casa e família, como mulher e homem, constituem um par
complementar, mas hierárquico. A família compreende a casa; a casa
está, portanto, contida na família (Sarti, 2005b: 63).
O alcoolismo vai afetar justamente o conjunto das relações familiares nas quais
os alcoólicos estão inseridos, embaralhando a “ordem moral” própria à esfera da
143
família. O alcoolismo vai subverter, então, os papéis sociais do homem e da mulher,
instaurando a desordem no interior desse universo relacional, onde cada qual deve
ocupar o seu lugar. Seja para o “homem alcoólico”, seja para a “mulher alcoólica”, o
alcoolismo entendido como uma “doença da família” traduz a “desordem moral” que se
instaura na rede familiar, obrigando seus membros a redefinirem suas posições.
A maneira pela qual o alcoolismo afeta o conjunto das relações familiares nas
quais os alcoólicos estão inseridos, ao mesmo tempo em que redefine os contornos de
suas identidades e da noção de pessoa fabricada dentro do grupo, é discutida a seguir.
6.1 O homem alcoólico
Em entrevista, João deixa entrever a maneira como o alcoolismo atinge o
“homem alcoólico”, afetando seus laços sociais, sobretudo, na família e no trabalho:
O alcoolismo me afetou principalmente na família e no trabalho.
Primeiro com a família, porque eu passei a ser aquele homem
descompromissado; aquele homem com quem não se pode contar.
Isso me criou um problema muito sério, pois a própria família não
acreditava mais em mim, e eu também não. O alcoolismo me
atrapalhava. A bebida passou a ser dona da minha vontade. Eu não
tinha mais vontade própria. Embora eu não quisesse, mas ela me
levava a beber. Aí eu perdia completamente a noção daquilo que eu
queria fazer. Na fábrica foi a mesma coisa: eu tinha minhas
atribuições junto aos demais companheiros mas, de acordo com
minha bebedeira, ninguém podia contar comigo. Eu passei a ser um
homem inútil na equipe. E aí eu sinto que eu mesmo perdi o domínio,
perdi a credibilidade, eu perdi o interesse, eu perdi a força de
vontade, eu perdi a força física (João, entrevistado em 24 ago. 2002).
Na fala acima o alcoolismo é representado, notadamente, como a falência da
“força física” e da “responsabilidade”, constrangendo a vontade do alcoólico (“A bebida
passou a ser dona da minha vontade. Eu não tinha mais vontade própria”), impedindo-
o de assumir os papéis sociais de “pai”, “esposo” e “trabalhador”.
Grande parte da tematização sobre o alcoolismo, particularmente entre os
homens das camadas populares, passa, ao mesmo tempo, pelas questões da
"responsabilidade" e da "força física", de maneira que o uso álcool ocupa um papel
ambíguo, operando ora como um “estimulante” para trabalhos mais pesados e menos
144
qualificados, ora como um problema que compromete a responsabilidade no
cumprimento do dever.
Boltanski (2004) enfatiza que, entre os homens nos meios populares, o uso do
álcool aparece freqüentemente associado à idéia de “força”, e é normal seu consumo,
particularmente, antes das refeições, como forma de “abrir o apetite”. A representação
do álcool como fortificante liga-se a uma representação do corpo como “instrumento”
básico para o exercício de trabalhos pesados e menos qualificados. De acordo com esse
autor (2004: 142): “a experiência que os membros das classes populares têm do corpo
tende a se concentrar na experiência que têm de sua força física, ou seja, de sua maior
ou menor aptidão a fazer funcionar o corpo e a utilizá-lo o mais intensamente e o mais
longo tempo possível”.
Duarte (1986), por sua vez, aponta que o par força/fraqueza é “um referencial
básico para a definição de qualidades diferenciais da pessoa e, neste caso,
primordialmente do homem, que como trabalhador, tem na força ‘muscular’ um de seus
atributos ideais básicos” (1986: 145 – grifos do original). A qualidade da força física é
um atributo diferencial na definição das qualidades da pessoa, sobretudo, entre os
homens das camadas populares. Um homem forte — no sentido de sua força física — é
aquele apto para exercer as duras tarefas impostas pelo mundo do trabalho, ao mesmo
tempo em que pode prover o sustento de sua família. Em contraposição:
Um homem fraco (neste sentido muscular) encontra-se em uma
situação virtualmente desprivilegiada, não só pelo que virá a enfrentar
objetivamente em sua luta pelo trabalho, como pelo que isso sempre
envolverá de uma avaliação diminuidora pelos seus próprios pares ou
pelas mulheres, entre as quais se medirá sua conveniência como
cônjuge potencial. Essa fraqueza muscular poderá, além do mais, ser
encarada como um sinal dessa outra fraqueza mais abrangente, que
consiste numa virtualidade da exposição à doença (Duarte, 1986: 145-
146 - grifos do original).
Um “homem forte” é aquele considerado apto para trabalhar, de maneira que a
“força física” passa a ser concebida como um sinônimo de “saúde”, adquirindo, assim,
um “valor moral”:
O trabalho vale não só por seu rendimento econômico, mas por seu
rendimento moral, a afirmação para o homem, de sua identidade
masculina de homem forte para trabalhar [...] Essa disposição é
vivida como o fundamento de sua autonomia. Para tê-la, no entanto, é
145
preciso saúde, um valor relacionado ao trabalho. O corpo é o
instrumento, não apenas para sobreviver, mas para mostrar-se forte.
Também a saúde tem um valor moral
81
(Sarti, 2005b: 90-91 - grifos do
original).
A idéia de força física ocupa uma posição central no conjunto das
representações que os AAs formulam sobre o alcoolismo, repercutindo diretamente
sobre a construção da pessoa, relacionando-se à “substância” do corpo doente. A doença
alcoólica conduz justamente à “perda da força física”, e é sentida pelo alcoólico como
um entrave à utilização de seu corpo, notadamente como “instrumento de trabalho”.
Como conseqüência, o alcoólico sente-se “enfraquecido” e impedido de cumprir seus
deveres de “trabalhador”.
Deixar de trabalhar significa, sobretudo, não cumprir seu papel moral de
“homem provedor”. Pois, como lembra Sarti (2005b: 95 - grifos do original), “na moral
do homem, ser homem forte para trabalhar é condição necessária, mas não suficiente
para a afirmação de sua virilidade. Um homem, para ser homem, precisa também de
uma família”. Ou seja, ele precisa assumir a condição de “chefe de família”, isto é, a
condição daquele que tem a obrigação moral de provê-la através de seu trabalho
82
.
Dessa maneira, a “moral do homem forte” articula-se à “moral do provedor”, definindo
de um modo particular os contornos da identidade e da pessoa relacionada ao “homem
alcoólico”, entendido como aquele que é responsável tanto pelo cuidado de si como
pelo provimento de sua família.
As relações entre as chamadas “ética do trabalho” e a “ética do provedor” de
membros das camadas populares foram analisadas por Zaluar (1994), para quem as
representações construídas em torno do trabalho oscilam entre uma “visão escravista
com sinal negativo”, disseminada, sobretudo, pelos mais jovens, e a “concepção do
trabalho como valor moral, sustentada pelos pais de família e suas mulheres”. Nessa
81
Sarti (2005b: 95) ressalta o “valor moral” que o trabalho tem, sobretudo, entre os homens das camadas
populares: “O valor moral do trabalho, com o benefício que dele decorre, não se inscreve, então, apenas
dentro da lógica do cálculo econômico do mercado. Através do trabalho, os pobres constroem uma idéia
de autonomia moral, atualizando valores masculinos como a disposição e a força (não só física, mas
moral), que fazem do homem homem”.
82
É importante frisar que a “família” é entendida aqui nos moldes de Sarti (2005b: 85 – grifos do
original), isto é, como uma totalidade definida “em torno de um eixo moral. Suas fronteiras sociológicas
são traçadas a partir de um princípio da obrigação moral, que fundamenta a família, estruturando suas
relações. Dispor-se às obrigações morais é o que define a pertinência ao grupo familiar”.
146
medida, e apesar dessa ambigüidade, o que levaria os trabalhares urbanos a aceitarem as
condições muitas vezes degradantes a que são submetidos no mundo do trabalho é a
preponderância da figura moral do “provedor”, que passa a um signo de auto-
identificação positiva, possibilitando ao trabalhador pobre alcançar sua “redenção moral
e, portanto, a dignidade pessoal” (1994: 120-121).
Sarti, diferentemente, enfatiza a equivalência existente entre a “ética do
provedor” e a “ética do trabalho”, de maneira que é no entrelaçamento entre as lógicas
que regem essas duas éticas que se constrói a identidade do homem das camadas
populares. Para a autora:
A ética do trabalho constitui-se em “ética do provedor”, pelo modo
particular como é formulada essa ética pelos trabalhadores pobres, a
partir, precisamente, de uma concepção do trabalho e das relações de
trabalho em que fatores econômicos se articulam aos elementos
morais para atribuir valor a essa atividade, que, assim, resulta de um
entrelaçamento de lógicas distintas (2005b: 97).
É seguindo a linha traçada por Sarti que podemos entender o elo tecido pelos
AAs entre os planos “físico” e “moral” do alcoolismo, que relaciona a valorização da
“força física” ao exercício da responsabilidade no cumprimento do dever. Enfraquecido
pelo “uso compulsivo do álcool”, o alcoólico não pode mais fazer um uso instrumental
de seu corpo ficando, assim, impedido de cumprir com sua responsabilidade em relação
à família e ao local de trabalho. O dependente do álcool vive, portanto, uma espécie de
“falência da responsabilidade no cumprimento do dever” (Duarte, 1986: 259), de modo
que o alcoolismo faz brotar a irresponsabilidade nos territórios por excelência da
responsabilidade, isto é, na família e no trabalho
83
.
Nesse quadro, o alcoolismo entendido como uma “doença da família” aponta
para uma dupla conexão: a do “efeito físico”, representado pela deterioração e pelo
enfraquecimento do organismo (“eu perdi a força física”), e a do “efeito moral”, visível
na forma como esse enfraquecimento repercute sobre a totalidade da pessoa, fazendo
brotar a irresponsabilidade nos territórios onde deve reinar a responsabilidade,
notadamente a “família” e o “trabalho” (“eu passei a ser aquele homem
83
As representações sobre o alcoolismo construídas pelos AAs, relacionadas, particularmente, à
articulação entre os planos físico e moral da doença alcoólica, foram analisadas por mim em artigo
publicado nos Cadernos de Saúde Pública. Ver Campos, 2004 .
147
descompromissado”;“a própria família não acreditava mais em mim”; “eu perdi a
credibilidade”; “eu passei a ser um homem inútil na equipe”; “ninguém podia contar
comigo”). Para os AAs, “perder a força física” significa, sobretudo, a perda da
qualidade moral de “homem provedor”, isto é, daquele que tem a responsabilidade
moral de cuidar de si mesmo e de sua família através do trabalho.
A perda da condição de “chefe de família” provocada pelo alcoolismo abala,
então, a autoridade moral do homem, levando à perda de sua “força moral”. É
exatamente isso o que encontramos na fala de João, ao se referir aos efeitos do uso do
álcool sobre sua relação com seus filhos:
Na minha família, meu filho menor me dizia: “tá bêbado” e o outro:
“já bebeu sua pinga”, quer dizer, desmoraliza a gente. A gente fica
sem força moral. A minha filha também já não acreditava mais em
mim. Eu prejudicava, porque eu bebia e falava coisas que devia e
coisas que não devia, porque o álcool desarma o cérebro (João,
entrevistado em 24 ago. 2002).
O álcool age diretamente sobre o “cérebro”, órgão vital responsável pelo
controle de si mesmo. Desarmado pela ação do álcool, o cérebro não comanda mais as
reações do alcoólico, que deixa, então, de agir de modo responsável, introduzindo um
elemento de “desordem” na esfera familiar, alterando os elos de obrigação e as relações
hierárquicas entre seus membros. Dessa maneira, o uso do álcool retira a “força moral”
do alcoólico perante seus familiares, de modo que ele não pode mais exercer a
autoridade moral de “pai” perante seus filhos.
O consumo do álcool marca uma oposição instauradora e fundamental expressa
nos pares “homem/mulher” e “rua/casa”, que norteia as visões sobre os efeitos do
alcoolismo sobre a rede de relações familiares na qual o alcoólico está inserido. Assim,
a lógica que associa o homem à rua é também ameaçadora da ordem do espaço familiar,
podendo comprometer seu papel de “chefe da família” no interior da casa.
Todavia, quando o alcoólico não cumpre mais seu papel de provedor, isso leva a
um rearranjo das relações entre o homem e a mulher no interior da casa. É comum,
nesse caso, que a mulher exerça sua autoridade na família e passe a controlar o dinheiro
recebido pelo marido: Eu estava no fundo do poço, mas a firma, através da assistente
social, segurava meu pagamento; ela não entregava meu pagamento para mim. Ela
148
entregava para minha mulher, que cuidava de tudo” (João, entrevistado em 24 ago.
2002)
84
.
O alcoolismo ou, como dizem os AAs, a “doença da família”, afeta diretamente
a construção da identidade do homem alcoólico e, por essa via, fere sua noção de
pessoa. Guedes aponta a relação entre o uso do álcool e a construção tanto da identidade
social como da noção de pessoa entre os homens trabalhadores. Para a autora, dentro
desse grupo social:
São as implicações do alcoolismo crônico que são consideradas
problemáticas [...] O limite, na verdade, do consumo do álcool situa-se
num outro lugar. Enquanto o desempenho dos papéis de
homem/trabalhador não é afetado, não há vergonha ou demérito
público nesta situação. O bêbado, o alcoólatra é aquele que está, por
isso, impedido de trabalhar e, conseqüentemente, impedido de fazer-se
respeitar dentro da família [...] É a impossibilidade de manutenção do
trabalho e do sustento da família que faz a diferença entre o
comportamento masculino esperado e reprovado (Guedes, 1997: 149-
150 – grifos meus).
Sarti, por sua vez, mostra que o retrato do “bom marido”, na visão das mulheres,
freqüentemente está associado àquele que não faz uso do álcool e cumpre seu papel de
provedor:
No caso do homem, o “bom trabalhador”, além de ser aquele que tem
disposição para trabalhar, é sobretudo o “bom provedor”. Importa que
ele traga dinheiro para dentro de casa [...] Assim, o “bom marido” é
sempre descrito como aquele que trabalha, não joga e não bebe.
Embora o jogo e a bebida sejam definidos como a transgressão
exemplar às regras familiares, incansavelmente reiterados como tal,
sua condenação recai sobre o fato de que essas atividades significam o
desvio do dinheiro, rompendo os preceitos de seu papel de provedor
(Sarti, 2005b: 96 – grifos meus).
84
O exercício da autoridade “dentro de casa” pela mulher pode ocorrer no momento em que o homem
não cumpre com seus “deveres” em relação à sua família. Sarti (2005b: 55-56) relata em sua pesquisa um
episódio no qual a autoridade do homem perante sua família foi “destituída”, de maneira que sua mulher e
suas filhas se aliaram, reagindo à violência doméstica: “O pai pegou um facão [...] e veio na direção de
uma das filhas. A mãe interferiu e, junto com as filhas, conseguiu dominá-lo e tirar-lhe o facão, que
passou para a mão das mulheres da casa, simbolizando o momento de inversão na vida desta família.
Quem manda aqui agora somos nós, diz a mãe. Com as filhas já crescidas e trabalhando, o precisamos
mais dele” (2005b: 56 – grifos do original). O exercício da “autoridade” do homem dentro da família
depende, assim, de sua legitimidade, de modo a garantir a “obediência” da mulher e dos filhos. Com isso,
“o episódio revela que o pai, ao longo da vida familiar, abusou das prerrogativas de sua posição de
autoridade em relação à família, sem cumprir com os deveres que correspondem a essa posição. O
dinheiro que ganhava não era suficiente para manter sua família e ele sempre bebeu” (2005b: 57).
149
João confirma esse retrato do “bom marido” quando se refere ao modo como sua
esposa falava com ele, nos tempos de seu alcoolismo ativo:
Um dia, minha esposa se virou para mim e disse: “Onde está aquele
homem com quem eu me casei, de terno, gravata e colete? Aquele
trabalhador? Olha que traste você virou. Olha o que a bebida está
fazendo com você”. Isso me doeu bastante. E ela encerrou dizendo:
“Você se transformou numa sucata humana”. E o homem ser
chamado de sucata humana é terrível. Aí me doeu bastante. Aí eu
percebi que precisava de ajuda (João, entrevistado em 24 ago. 2002).
O ato de beber é considerado um problema a partir do momento em que afeta as
relações sociais nas quais o alcoólico está inserido, impedindo-o de trabalhar e,
conseqüentemente, de prover teto e alimento à sua família. A “dor” sofrida por João
reflete o reconhecimento da perda de sua “autoridade moral” de prover sua família
através do trabalho, exatamente no momento em que sua esposa lhe pergunta onde está
“aquele trabalhador” com quem havia casado, comparando-o a uma “sucata humana”.
O “homem alcoólico” vê, assim, comprometida sua vida “física” e “moral”,
representada, particularmente, pela perda de suas qualidades morais, notadamente como
“pai”, “esposo” e “trabalhador”.
6.2 A mulher alcoólica
Enquanto, para o “homem alcoólico”, o alcoolismo provoca a deterioração
“física” e “moral”, traduzida na perda da responsabilidade moral no cuidado de si e de
sua família, expressa na sua condição de “homem provedor”, as implicações do
alcoolismo para a “mulher alcoólica” assumem um aspecto particular, traduzindo, em
larga medida, os efeitos do uso do álcool sobre sua posição no interior da esfera
familiar. Garcia aponta que, na visão dos integrantes do grupo Doze Tradições, em
geral, “beber de forma abusiva e em botequim” é uma característica tipicamente
masculina, compondo um discurso cuja lógica obedece ao “modelo do provedor, que
tem a seu lado um modelo de mulher ilibada e filhos” (Garcia, 2004: 155). Com isso,
reforça-se entre os AAs a imagem da mulher cujo lugar por excelência é a casa, zelando
pela ordem do lar e cuidando dos filhos. Segundo a autora:
150
A mulher que bebe abusivamente não aparece como alcoólatra no
discurso dos homens e no seu próprio. Para eles, beber é um
comportamento esperado no homem. Para a mulher, o ato de beber em
ambiente público, não importando a modalidade, constitui
transgressão, reconhecida pela categorização mulheres que bebem
(2004: 155 – grifos do original).
Na fala dos membros do grupo Sapopemba também se encontra um leque de
representações que reforçam a idéia de que “lugar de mulher é em casa”. Exemplo disso
é a fala de Sônia, na qual discorre sobre o tempo de seu alcoolismo ativo:
Boa noite a todos, sou Sônia, alcoólatra, e venho a essas reuniões
para não voltar a beber cachaça; e, graças ao Poder Superior, não
bebi hoje e não tive vontade de beber. E eu estou aqui, gente, para
agradecer ao Poder Superior que me tirou da lama, me tirou do
sufoco que eu vivia; não sei se eu vivia ou vegetava. Até então, eu não
sabia que o alcoolismo era uma doença; nunca ninguém me falou que
era uma doença. Eu era taxada lá fora como pinguça, sem-vergonha.
Eu tava até acreditando que eu era mesmo, porque eu não conseguia
viver sem a cachaça. E, não conseguindo viver sem cachaça, eu já
não trabalhava mais, e eu não fazia mais nada, eu vivia em função de
beber. E eu não sabia que tinha um lugar para a gente estacionar o
alcoolismo e fui bebendo a minha juventude, não pensei em casar,
não pensava em nada, só pensava em beber (Sônia, reunião de
recuperação aberta em 16 mar. 2002).
Além de revelar a força do estigma associado à “mulher que bebe”, essa fala
também é emblemática na medida em que deixa entrever uma representação da mulher
que faz um uso considerado abusivo do álcool como uma mulher “sem vergonha”. Ou
seja, a mulher que bebe compulsivamente comporta-se de maneira oposta à mulher
considerada “honesta”, isto é, aquela que cumpre seu papel social de “esposa” e “mãe”,
zelando pela ordem da casa, de maneira a que tudo permaneça em seu lugar. Como
lembra Sarti (2005b), a mulher desempenha na família um papel diferencial e
complementar em relação ao homem, de maneira que é justamente de sua condição de
“dona de casa” ou de “chefe da casa” que se irradiam as marcas fundamentais de sua
autoridade no espaço da casa. Para a autora, a autoridade da mulher “vincula-se à
valorização da mãe, num universo simbólico em que a maternidade faz da mulher,
mulher, tornando-a reconhecida como tal, senão ela será uma potencialidade, algo que
não se completou” (2005b: 64).
Fonseca (2004), em seu estudo sobre as relações de gênero e violência em
grupos populares, aponta que, entre as mulheres, associada ao papel de “esposa” e
151
“mãe”, também se encontra a possibilidade de construção da própria idéia de “honra”,
aqui “entendida como o esforço em enobrecer a própria imagem segundo as normas
socialmente estabelecidas” (2004: 15). Ou seja, uma mulher “honrada” deve ser uma
“mãe devotada” e uma “dona de casa” que zela pelos filhos e pelo marido. Não é por
acaso, então, que Sônia, durante seu alcoolismo ativo, diz não ter pensado em se “casar”
e constituir uma família, o que aprofunda ainda mais o seu estigma como uma mulher
que não cumpriu com seu papel social de “esposa” e “mãe”
85
.
Em seguida, ela fala sobre o modo como o alcoolismo afetou suas relações com
a família:
Meus irmãos todos casaram e eu fiquei com minha mãe e já comecei a
beber. Comecei a beber uma... comecei a beber uma cuba, uma
coisinha leve. Quando eu me vi, eu já tava na cachaça; mas até então
eu ainda trabalhava, cuidava da minha mãe, cuidava de mim; mas
quando eu quis parar, não deu mais (Sônia, reunião de recuperação
aberta, 16 mar. 2002).
O alcoolismo deteriora a responsabilidade, traduzida na incapacidade de
trabalhar, de cuidar de si mesma e de sua mãe. Como conseqüência, a doença alcoólica
se traduz numa “doença da família”, afetando todos aqueles que convivem com a
“mulher alcoólica”:
Em 1974, a minha mãe faleceu. Aí é que o bicho pegou: eu tive que
morar com meu irmão e minha cunhada; eu, no auge da cachaça,
naquele auge mais alto mesmo. Aí ninguém me suportava, porque eu
tinha que beber, eu já bebia de manhã e a qualquer hora. Eu tirava o
prazer da família. Então, se uma irmã não me queria na casa dela,
me mandava para a casa da outra, um cunhado não me queria e me
mandava para a casa do outro. E foi assim a minha vida (Sônia,
reunião de recuperação aberta, 22 mar. 2002).
O alcoolismo tornou a presença de Sônia indesejada por seus irmãos, de maneira
que ela foi “mandada” de uma casa para outra, quebrando-se, assim, os laços de
solidariedade existentes entre irmãos consangüíneos, já que ela “tirava o prazer da
família” e ninguém mais a “suportava”. Como lembra Fonseca (2004: 75), nesse
85
Segundo Fonseca (2004: 32): “O motivo do casamento vai muito além da ordem material. Ao casar, a
mulher tem esperança de alcançar não só uma certa satisfação afetiva, mas também um status respeitável.
Imagina-se sempre que, se uma mulher está só, é porque não consegue arranjar um homem”.
152
contexto “os laços consangüíneos são privilegiados, porque são considerados os únicos
que permanecem”, suplantando os laços entre parentes afins.
O alcoolismo afeta, portanto, o papel que se espera que a mulher cumpra na
esfera familiar. Ao falar sobre seu alcoolismo, Joana, 50 anos, viúva, 11 anos de A.A.,
funcionária pública aponta que, no “início”, bebia com o marido, mas, depois, perdeu o
controle sobre o álcool, o que afetou sua vida profissional:
Eu fui uma pessoa que sofreu muito em perdas e fez a família sofrer.
Porque, no meu início eu só bebia nos finais de semana, junto com
meu marido, mas jamais pensei que eu fosse uma doente alcoólatra.
Bebi durante um bom tempo, mas quis o Poder Superior que eu
passasse por tudo que eu passei, porque eu tentei, muitas vezes, parar
de beber sozinha. Mas, nessas tentativas, nunca consegui. Eu sempre
trabalhei na área hospitalar. Eu cheguei a um ponto que eu já estava
levando bebida alcoólica no serviço. Eu costumo dizer que esse foi
meu sofrimento maior. A minha filha sempre falava que eu estava
bebendo demais. Eu sempre tinha a resposta clássica de toda bêbada:
“bebo com meu dinheiro, não bebo às custas de ninguém. Se vocês
estiverem achando ruim, a porta da rua é serventia da casa. Afinal de
contas vocês moram na minha casa” (Joana, reunião de recuperação
aberta, 22 maio 2005).
O problema do alcoolismo, então, começou a aparecer no momento em que ela
não conseguia mais “parar de beber sozinha”. A identidade da “doente alcoólatra” liga-
se, assim, à identidade social da mulher que, não conseguindo controlar as doses
ingeridas, não ocupa mais seu papel no âmbito da família, isto é, não age mais como
uma “trabalhadora” e “dona de casa”, que deve cuidar dos filhos.
6.3 O alcoolismo é uma “doença contagiosa”?
A categoria “doença da família” sugere ainda uma discussão sobre a natureza
“contagiosa” do alcoolismo. Freqüentemente, os AAs dizem que seu alcoolismo
provocou danos “físicos” e “morais” em seus familiares: “Eu tenho um filho que é
doente mental, acho que fui eu que criei essa doença nele, por causa do álcool”. Ou
ainda: “minha mulher está nervosa, ficou neurótica com meu problema de alcoolismo”.
As queixas se estendem aos cônjuges e filhos, que também se reconhecem como
“vítimas” do alcoolismo, o que dá a este uma dimensão não apenas individual, mas
também coletiva. Exemplo disso é uma carta escrita pela filha de um membro do grupo,
153
à qual tive acesso durante a pesquisa, na qual se pode ler: “Quando você desce para o
bar, eu morro de preocupação, porque, se você chegar ruim, será mais um dia de
briga; olho no relógio de 5 em 5 minutos. A minha mãe às vezes chora de nervoso
(Carta escrita em 14 mar. 2002). Ao final da carta, a filha pergunta: “Será que você não
se cansa de viver em brigas com a família?” A esposa de Jorge também se refere à
influência do alcoolismo de seu marido sobre seu “corpo” e sua “família”: “Eu vivi
quase 18 anos em depressão, depressiva; eu não ligava muito para a casa, não ligava
para os filhos, eu comecei a largar tudo também. Meu medo era que meus filhos
começassem também a beber” (Antônia, 46 anos, cabeleireira, entrevistada em 08 set.
2002).
Mas o alcoolismo é uma “doença contagiosa”? Quando indagados sobre o
assunto, os AAs apontam que é na “família” e nas relações de “trabalho” que o
alcoolismo se mostra mais “contagioso”. Paulo vai além e traça um paralelo sugestivo
entre o alcoolismo e a AIDS:
Eu vejo o pessoal preocupado com a AIDS e há realmente a
necessidade de ter essa preocupação com a AIDS, porque é uma
doença também supercontagiosa. Mas o alcoolismo é mais contagioso
do que a AIDS. Por exemplo, se eu fosse um aidético, eu só
transmitiria minha doença para uma outra pessoa se eu tivesse um
contato direto. E o alcoólatra? É indiretamente que ele atinge as
pessoas. É indiretamente que aquela empresa, em que aquele
alcoólico trabalha, começa a não produzir. Ele tá afetando os
companheiros de trabalho. E há o contágio dentro de sua própria
casa. Porque o alcoolismo é a doença da família (Paulo, entrevistado
em 22 jul. 2002).
As palavras de Paulo são importantes, pois sugerem pistas que podem nos ajudar
a pensar uma “teoria cultural do contágio” a propósito do alcoolismo, distante das
acepções biomédicas. Seguindo a trilha aberta por Douglas (1992), na pesquisa em que
examina a elaboração de uma “teoria cultural do contágio”, no contexto da AIDS,
Fainzang (1996: 93 – trad. minha) afirma que uma teoria do contágio no contexto do
alcoolismo deve partir “do exemplo de uma doença não contagiosa de um ponto de vista
médico, para mostrar suas características contagiosas nas representações dos sujeitos e,
por extensão, o que pode exprimir a idéia de contágio de um ponto de vista
antropológico”. Nessa linha, “a definição antropológica da idéia de contágio deve se
154
liberar de suas dimensões médicas e dar conta das representações, as quais ela converte
em objeto de estudo, visando propor uma nova acepção”.
Ora, uma doença não-contagiosa, do ponto de vista médico, pode assumir um
caráter contagioso nas representações formuladas pelos portadores desta. É exatamente
isso que Paulo sugere ao propor uma comparação entre o alcoolismo e a AIDS. Essa
comparação carrega importantes representações sobre o problema do “contágio” e da
“transmissão” tanto da AIDS como do alcoolismo. Assim, ao contrário do que supõem
as concepções biomédicas, que circunscrevem o contágio ao âmbito biológico e
fisiológico, atestado clinicamente, Paulo supõe que o alcoolismo, embora não seja
transmitido, possa ser contagioso, afetando, sobretudo, aqueles que são mais próximos
do alcoólico, isto é, seus familiares, seus amigos e seu ambiente trabalho.
O modelo de contágio presente nas representações formuladas por Paulo difere,
então, da idéia de uma contaminação direta. Ou seja, ele não sugere que os familiares e
amigos do alcoólico passem a beber como o doente, mas sim que eles sejam afetados
pela doença do bebedor. Essa definição do contágio mostra-se, portanto, plenamente
coerente com a teoria da doença alcoólica de A.A., uma vez que, sendo o alcoolismo
considerado uma “doença inata e incurável”, ela não pode ser transmitida a ninguém. O
“contágio” só pode ocorrer na forma da afetação, principalmente, da esfera familiar e do
ambiente de trabalho do alcoólico.
Assim, sob a ótica das representações do contágio presentes na narrativa de
Paulo, opera-se uma inversão entre o alcoolismo e a AIDS: enquanto o alcoolismo seria
“contagioso”, mas não transmissível, a AIDS seria “transmissível”, mas não
contagiosa
86
.
Nas representações sobre o contágio formuladas pelos AAs, por seus cônjuges e
filhos, encontram-se “sintomas” que se referem principalmente aos “nervos”,
sinalizando para o modo como o alcoolismo afeta os familiares do doente alcoólico. É,
portanto, através de “sintomas”, tais como: o “nervoso”, a “angústia”, as “neuroses”, a
“depressão”, a “doença mental”, a “violência doméstica” etc., que o alcoolismo se
revela como uma “doença da família”.
86
Fainzang (1996: 93 – trad. minha) indica que a classificação da AIDS como uma “doença transmissível
e não contagiosa” traduz, em grande medida, “o temor das reações de medo e de evitação que seu uso
engendraria na população”.
155
6.3.1 O “contágio moral” do alcoolismo
Diante desse quadro, qual é a lógica subjacente à concepção de contágio
elaborada pelos AAs e seus cônjuges? Como a “doença da família” afeta a entourage do
bebedor?
Fainzang (1996: 87-88 – trad. minha) chama a atenção para o fato de que o
“contágio” provocado pelo alcoolismo pressupõe não apenas uma proximidade “física”,
mas também “social”:
Se as condições de possibilidade do contágio comportam a divisão de
um mesmo espaço físico, do mesmo ar, elas implicam, além disso,
necessariamente, a divisão de um mesmo espaço social. A transmissão
da doença de um corpo a outro não se faz ao acaso, pela simples
proximidade corporal. É necessário que haja uma proximidade social,
sendo aquela do cônjuge exemplar a este respeito, uma vez que ele
divide com o bebedor não apenas o mesmo ar, o mesmo espaço
doméstico, poluído pelo hálito do bebedor, mas também o mesmo
destino; o espaço doméstico sendo superposto ao laço matrimonial ou
àquele criado pela vida comum.
É dentro do ambiente familiar, no qual bebedor e cônjuge compartilham o
mesmo “teto” e dividem o mesmo destino, que o “contágio” vai se manifestar mais
intensamente. É nele também que bebedor e cônjuge, juntamente com seus filhos,
dividem não só o mesmo “ar”, mas também as mesmas dores e angústias provocadas
pela doença. Nesse sentido, o contágio opera integrando a dimensão “física” e “moral”
do alcoolismo, de maneira que seus vetores principais são o “odor” e, mais
particularmente, o “hálito” do alcoólico
87
. Vários membros do grupo Sapopemba
salientaram as queixas feitas por suas esposas devido ao mau cheiro exalado durante o
alcoolismo ativo: “minha esposa reclamava do meu mau cheiro, já que eu não tomava
banho”. Ou ainda: “Às vezes eu bebia e chupava uma bala para tirar o cheiro; mas,
certo dia, eu cheguei em casa e minha esposa disse: ‘Você bebeu hoje’. Eu disse que
87
As representações sobre o contágio a partir de “vetores” tais como o “odor” e o “hálito” remetem, como
lembra Fainzang (1996: 86 – trad. minha): “às teorias aéreas em virtude das quais o ar que envolve o
ambiente transmite a doença de uma pessoa infectada para outra que respira o mesmo ar, ou às teorias da
contagiosidade, notadamente, a doutrina das emanações corpusculares, as quais se associavam, nos
séculos XVII e XVIII, à difusão dos odores corporais, pelos quais se explicava o contágio sem contato
direto”.
156
não, mas ela sentiu o cheiro. Acho que é pelo nariz que esse cheiro sai” (Jorge,
entrevistado em 25 jul. 2002).
O cônjuge também se queixa dos odores exalados pelo alcoólico. A esposa de
Jorge, por exemplo, afirma:
Às vezes, ele chegava e eu é que tirava o sapato dele e botava ele na
cama, senão ele dormia no chão [...] Tinha dias que ele chegava e do
jeito que estava deitava na cama, fedendo, e eu tinha que agüentar
aquela coisa horrorosa, podre, mas eu aceitava; mas chegou uma
hora que eu não aceitei mais (Antônia, entrevistada em 08 set. 2002).
É o odor exalado pelo alcoólico que revela seu estado patológico e,
conseqüentemente, a poluição/impureza de seu corpo. Como sublinha Fainzang (1996:
88):
A esposa percebe seu corpo invadido, investido pelo álcool, o qual ela
teme carregar o traço: o odor. O odor do bebedor (exemplificado pelo
seu hálito) é, ao mesmo tempo, o testemunho de seu estado patológico
(ele é um signo que os cônjuges tomam [...] para diagnosticar uma
recaída) e da impureza do corpo do bebedor. Desde então, o contágio
é tanto desta impureza como da doença.
Nessa perspectiva, mesmo na ausência de relações sexuais ou de qualquer
contato físico entre os cônjuges, o alcoolismo pode ser “contagioso” devido,
fundamentalmente, ao laço social estabelecido entre o casal. Ou seja, no alcoolismo “o
‘contágio’ não se faz pelo sangue ou esperma, mas pelo laço social” (Fainzang, 1996:
94); o contágio se manifesta pela vivência comum entre o alcoólico e sua família.
O cônjuge também reconhece que a impureza do álcool “contamina” os laços
familiares, deteriorando-os. É o que sugere a esposa de Jorge: “a bebida é um problema
para qualquer família; é uma doença, realmente; a bebida afeta seu emocional; o lar, o
alicerce que você planeja construir, ele volta a zero. A bebida não mexe só com ele, ela
mexe com todos” (Antônia, entrevistada em 08 set. 2002). Ela relata também que o
marido costumava beber em casa, causando danos a toda a família: “Ele trazia a bebida
e guardava; quando a gente menos esperava, ele já estava bêbado. Foi uma vida muito
dolorosa para gente”.
Como reação a essa situação, os familiares se afastam, ou surgem ameaças de
separação, que demoram ou nunca chegam a se concretizar. É preciso lembrar, como o
faz Fonseca (2004: 31), que o casamento é, entre os membros das camadas populares,
157
um signo de status para a mulher, cuja auto-estima advém quase que exclusivamente
“de suas tarefas domésticas na divisão do trabalho: ela deve ser uma mãe devotada e
uma dona-de-casa eficiente”, o que, muitas vezes, leva a esposa suportar as agressões e
hostilidades provocadas pelo alcoolismo de seu marido.
Paulo, por exemplo, narra que sua mulher foi embora, após as sucessivas “brigas
do casal”:
Em relação à minha família, eu percebia que eu estava perdendo
minha mulher, que eu estava perdendo meus filhos, eu sentia que
estava perdendo [...] É a mesma coisa de você estar com a mão cheia
de areia e você sentir a areia escapar pelos seus dedos. O
relacionamento com minha esposa... Eu sempre fui desses bêbedos
agressivos, não tinha limite, a ofendia sempre. Até o dia que minha
mulher foi embora, ela e meus filhos foram embora (Paulo,
entrevistado em 22 jul. 2002).
É comum ouvirmos relatos que indicam que as esposas, como forma de protestar
e para rejeitar essa situação de submissão, passaram a se negar a dormir na mesma cama
do marido alcoolizado, o que não deixava de provocar a irritação do alcoólico: “Eu
passei a beber pesado, e comecei a implicar com a mulher. Minha mulher não
agüentava o cheiro, o bafo de bebida, e eu queria ter relação e ela não aceitava. Ela
começou a dormir em outra cama, e eu ficava revoltado” (Valter, 50 anos, casado, 3
anos de A.A., zelador, entrevistado em 24 jul. 2002).
Antônia diz que passou a dormir no quarto de sua filha: “Eu cheguei a falar
para ele ir para o A.A. e que, se ele não parasse de beber, eu iria me separar dele. Eu
cheguei a me separar fisicamente dele. Foi preciso. Eu passei a dormir com minha
filha” (Antônia, entrevistada em 8 set. 2002). Nesse instante da entrevista, a filha, que
estava sentada ao lado de sua mãe, passa a narrar a reação violenta de pai:
Já fazia um tempo que minha mãe estava dormindo comigo, tentando
fazer com que ele fosse para o A.A. para ela voltar a dormir com ele,
mas ele não queria. Teve um dia que ele disse que não estava mais
agüentando aquela situação e saiu. Depois ele voltou e eu acho que
tinha bebido alguma coisa, porque ele já voltou alterado. Aí, ele foi
para meu quarto, onde minha mãe estava dormindo comigo e ele veio
com tudo e quebrou a porta, querendo pegar minha mãe a força.
Nesse dia, veio até polícia em casa. Ele quebrou a mesa, quebrou a
cadeira. Ele foi super agressivo (Bruna, 20 anos, balconista,
entrevistada em 8 set. 2002).
158
Dormir no quarto da filha, separada de seu marido, é um signo da reação da
esposa que, embora não tenha forças para se separar definitivamente, nega-se a se
submeter às agressões praticadas pelo marido. Dessa maneira, além de uma reação à
impureza do corpo do alcoólico, o cônjuge também reage ao “contágio moral”
provocado pelo alcoolismo, que afeta sua família e cujos efeitos conduzem às agressões
físicas e à violência doméstica. Na seqüência, Antônia me diz ainda que, depois desse
dia, ela procurou um advogado, para encaminhar a separação de seu marido. Diante da
decisão de sua esposa, Jorge resolveu procurar a ajuda em A.A.
6.3.2 Alcoólicos Anônimos, família e recuperação
Todo esforço do modelo terapêutico de A.A. será, portanto, o de combater o
“vetor” do alcoolismo, isto é, o álcool. É isso o que sugerem os membros do grupo:
“Numa sala de A.A., a gente só fala de álcool. O álcool está todo dia aqui. Ele está lá
fora, mas ele está aqui dentro também. Ele é o nosso maior inimigo. Nós temos que
falar dele, para lembrarmos que ele existe” (Valter, entrevistado em 24 jul. 2002). Não
por acaso, “evitar o primeiro gole” é a máxima que norteia o comportamento do doente
alcoólico em recuperação, contribuindo para engajar todos os membros do grupo em
torno do valor e do princípio da abstinência; única maneira concebida para combater o
alcoolismo e seus efeitos físicos e morais.
Contudo, não basta somente evitar o álcool através da abstinência. É preciso,
também, dizem os membros do grupo, evitar tudo que está relacionado ao álcool. O
álcool, entendido como portador da impureza, “contamina” também os locais onde é
consumido. É por isso que o programa de recuperação do alcoolismo também é
chamado pelos AAs como um “programa de evitações”, no qual o doente deve evitar
“os velhos hábitos”, “os velhos amigos” e “os antigos lugares” que estava acostumado a
freqüentar nos tempos do alcoolismo ativo.
A representação do álcool como elemento “impuro” remete às análises de
Douglas (2001) sobre as prescrições e proscrições que visam proteger os indivíduos da
doença ou do mal nas sociedades tradicionais. Esse conjunto de “regras de evitação”
descreve e organiza o mundo social, tornando possível estabelecer uma ordem em
oposição ao caos contra o qual se confronta a experiência vivida. Como mostra essa
159
pesquisadora, a propósito dos ritos de pureza e impureza, esse esforço de construção da
ordem social pode ser compreendido “sobre dois planos, um funcional e outro
expressivo”:
Em um primeiro momento [...], os indivíduos procuram influenciar o
comportamento de seus semelhantes. O poder político é geralmente
precário, e os chefes primitivos não são exceções à regra. De sorte que
suas pretensões legítimas se apóiam sobre sua crença nos poderes
extraordinários que emanam de sua pessoa, das insígnias de sua
função ou das palavras que eles pronunciam. Sendo assim, a ordem
social é mantida graças às penas em que incorrem os transgressores
[...] Essas penas são uma ameaça que permite ao indivíduo exercer
sobre o outro um poder coercitivo [...] Essas crenças são uma
linguagem poderosa de exortação recíproca. Concebe-se facilmente a
utilidade das crenças relativas à poluição em um diálogo no qual cada
um reivindica ou contesta um certo status na sociedade. Mas, quando
essas crenças são estudadas mais de perto, descobre-se que os contatos
considerados como perigosos carregam consigo uma carga simbólica.
Certas poluições servem de analogias para exprimir uma idéia geral da
ordem social (Douglas 2001: 25).
As interdições relativas à pureza e à impureza asseguram uma inteligibilidade do
mundo social, permitindo aos indivíduos atribuírem uma ordem de sentido que organize
a experiência vivida. Nessa linha, como sugere Fassin (1996: 211 – trad. minha): “os
conjuntos de prescrições e proscrições próprios de cada sociedade revelam,
simultaneamente, sua teoria e sua prática da ordem social, a maneira pela qual ela é
representada e a forma pela qual ela se ime”. Ora, a evitação do álcool entre os AAs
também revela uma forma específica de ordenação do mundo social, delimitando, por
exemplo, os espaços que podem e que não podem ser freqüentados, e as pessoas com
que se deve passar a conviver. A impureza associada ao álcool revela, assim, uma lógica
classificatória que possibilita a construção simbólica da experiência do alcoolismo,
dentro de uma ordem capaz de mantê-lo sob controle.
Mas, se o alcoolismo é uma “doença da família”, a recuperação do alcoólico
envolve a recuperação de todos que estão ao seu redor. Em várias entrevistas, os AAs
salientaram a mudança das relações familiares após terem iniciado o programa de A.A.
Exemplo disso é a fala de Joana, quando aponta que na irmandade encontrou uma “nova
família” e que hoje vive tranqüila na companhia de seus filhos e netos:
160
Eu costumo dizer que eu tenho a minha família, mas que ao ingressar
em A.A. eu ganhei uma família imensa, irmãos e irmãs que eu ainda
não conheço, mas que já tem um lugarzinho dentro do meu coração.
Que é graças a vocês que hoje a minha família é uma família feliz,
uma família tranqüila. Eu tenho dois netos adolescentes, uma neta
com 15 anos e um neto com 14 e uma com 4 anos que, graças ao
Poder Superior, não chegou a ver a avó bêbada. Mas os meus netos
hoje se sentem orgulhosos da avó ser um membro de A.A. (Joana,
reunião de recuperação aberta, 22 maio 2005).
A “mulher alcoólica”, que fazia uso compulsivo do álcool, resgata sua
identidade social de “mãe” e, também de “avó”. Ela resgata sua “auto-estima”,
identificando-se novamente como a “chefe da casa”, zelando, agora, pelos netos.
Essa fala também é significativa na medida em que situa com precisão a
centralidade que o universo relacional da família ocupa nas representações dos
membros do grupo. O A.A. é entendido como uma “família imensa”, no interior da
qual todos são reconhecidos como “irmãos e irmãs”, que mantêm relações de afinidade
e de reciprocidade entre si. As relações dentro do grupo são entendidas seguindo o
modelo da família fundado em um código de lealdade e de obrigações mútuas e
recíprocas. Ora, segundo Sarti (2005b: 52)
88
, a família e o código de reciprocidade nela
implícito operam como um valor para os membros das camadas populares, viabilizando
e moldando seu modo de vida e sua visão de mundo, de maneira que acaba também por
configurar a representação que o modelo terapêutico de A.A. tem para seus membros.
A fala de Jorge também aponta para a centralidade da família, demonstrando que
um processo semelhante é vivido pelos homens que, dentro do grupo, conseguem
resgatar sua identidade social de “provedor”:
Antes de Alcoólicos Anônimos eu só pensava no bar. Quando chegava
do trabalho, eu não parava cinco minutos em casa e já ia para o bar.
Muitas vezes, eu chegava em casa bêbado e nem tomava banho;
dormia de qualquer jeito. Quando acordava, era aquela ressaca [...]
Hoje eu chego em casa, beijo meus filhos, converso com eles, com
minha mulher. Agora, por exemplo, eu estou pagando a formatura de
minha filha. Hoje, sóbrio, eu consigo conversar com meus filhos.
Tudo isso eu devo ao Poder Superior e a Alcoólicos Anônimos (Jorge,
entrevistado em 25 jul. 2002).
88
Ver nota 76.
161
Ao reconhecer-se doente, Jorge passa a (re)significar o conjunto de relações em
que está envolvido, separando, de um lado, o “bar”, o “boteco”, espaço da “ativa”, em
que as relações eram mediadas pelo uso do álcool, e, de outro, a “casa”, espaço das
relações familiares, em que é agora valorizado:
Fui fazer uma experiência, eu fui no bar que eu costumava ir, fui
jogar um bilhar com os caras lá. Justamente o parceiro que estava
jogando comigo estava totalmente bêbado, mas bêbado, bêbado, que
quase não parava em pé. Mas só de falar com ele, aquele cheiro me
fez um mal que me embrulhava meu estômago. Eu sei que eu fui
obrigado a parar o jogo e ir embora que eu não agüentei ficar ali,
não dava mais para mim. Saí fora do bar, eu fui para casa e falei
para minha mulher: “Foi o tempo que eu gostava de bar, porque hoje
o bar não dá mais para eu freqüentar. Porque a bebida não tá com
nada. Se eu fiz muita coisa errada, hoje eu até peço desculpas para
você, porque, olha, agüentar um bêbado não é fácil, e hoje eu percebi
isso” (Jorge, entrevistado em 25 jul. 2002).
O modelo terapêutico de A.A. permite também que ele recupere sua autoridade
de “pai” e de “provedor” diante de sua esposa e seus filhos. Isso fica claro no momento
em que Jorge fala de sua preocupação com seu filho, que está desempregado:
Eu quero ajudar meu filho a arrumar um emprego. A vida dele agora
é ficar dentro de casa. Ontem ele foi na cidade levar uns currículos
[...] E, o pior de tudo é que se eu vou falar com ele, ele começa a
chorar e me diz: “É, pai, agora dá para a gente conversar, porque
hoje o senhor não bebe mais, graças a Deus, o senhor não bebe, e a
gente pode conversar”. Aí, eu respondo para ele: “Em parte você tem
razão, se fosse o tempo em eu bebia já tinha te tocado o pé no seu
nariz e te mandado para a rua procurar trabalho”. Então, hoje eu só
posso agradecer tudo o que aconteceu na minha vida, que se
modificou bastante (Jorge, entrevistado em 25 jul. 2002).
Dentro do grupo de A.A., o alcoólico pode resgatar as relações familiares
perdidas nos tempos da ativa. Com isso, se restabelece a “hierarquia familiar”,
reafirmando as fronteiras entre o homem e a mulher no âmbito da família. O “doente
alcoólico em recuperação” pode reconhecer-se como o “homem provedor”, isto é, o
“chefe da família”, o homem responsável pelo cuidado de si e de sua família,
convivendo ao lado de sua esposa, que passa a agir novamente como “dona de casa”:
162
As pessoas falam que A.A. não dá nada financeiramente para pessoas.
Eu vou explicar porque dá, não direta, mas indiretamente: eu gastava
metade do meu salário com bebida, e passei a não gastar. Eu jogava
com a mesma compulsão da bebida. Mas, depois que entrei em A.A.
eu passei a não gastar e o dinheiro foi sobrando. Eu me reintegrei
com a minha família e minha mulher passou a participar, ela passou
a controlar o dinheiro. Nós passamos a trabalhar juntos. Eu trazia o
dinheiro e ela administrava. A maior alegria minha dentro de A.A. foi
quando a assistente social me entregou o pagamento pela primeira
vez e falou: “agora eu confio que você vai levar para a sua esposa”.
Quando eu cheguei em casa, dei o dinheiro para minha mulher.
Aquele foi o dia mais importante da minha vida. Naquele dia, eu
ganhei o maior prêmio de todos (João, entrevistado em 24 ago.
2002)
89
.
Todavia, a recuperação de um alcoólico não é isenta de conflitos, enfrentados,
sobretudo, após o resgate da autoridade presente na figura do “esposo” e do “pai”. Certa
vez, Paulo me disse que o convívio com sua esposa estava “difícil”, uma vez que ela,
sendo membro de uma seita evangélica, queria que ele abandonasse o grupo de A.A. e
passasse a freqüentar a igreja.
Uma situação conflituosa semelhante também é vivida entre Jorge e seus filhos,
o que também gera uma tensão na sua relação com sua família. Ele conta que seus filhos
estão freqüentando um grupo religioso que existe no bairro onde moram: “Todo dia
agora, quando chego em casa, meus filhos vão ao Johrey; o meu filho mais velho está
desempregado e vai ao Johrey direto, em vez de arrumar um trabalho”. A filha mais
nova, por sua vez, afirmou em sua entrevista: “meu pai melhorou muito depois de
entrar em A.A., mas por outro lado, ele agora está insuportável; ele pega no pé da
gente; ele não consegue ver outra coisa que não seja A.A. Ele fala de nossa religião,
mas A.A. para ele também é uma religião” (Bruna, entrevistada em 08 set. 2002).
O conflito entre Jorge e seus filhos revela a centralidade ocupada pelo plano
relacional da família, que acaba por envolver todo o processo terapêutico vivenciado
dentro de A.A. Ao começar a freqüentar o grupo, Jorge torna-se mais exigente em
relação a seus filhos, tendo recuperado a “autoridade paterna”, perdida nos tempos do
alcoolismo ativo. Ele recupera o papel social de “pai” na relação com seus filhos, o que
acaba gerando conflitos e tensões na esfera familiar. Em outras palavras: ele recupera
89
Um elemento importante que fundamenta a autoridade da mulher está, segundo Sarti (2005b: 64), “no
controle do dinheiro, que não tem relação com sua capacidade individual de ganhar dinheiro, mas é uma
atribuição de seu papel de dona-de-casa”. Para uma análise sobre a questão da ‘autoridade” da mulher em
sua relação com o homem na família ver Zaluar (1994).
163
sua posição de “chefe da família” e, conseqüentemente, a “responsabilidade” de cuidar
de seus filhos. Não por acaso, diante da autoridade e da responsabilidade paterna
recuperada, os filhos de Jorge protestam e dizem que “ele agora está insuportável”,
pois, como eles dizem: “Ele não pára de pegar no pé da gente!”
No interior de A.A., a identidade construída pela patologia articula-se à
identidade social, ligada aos valores próprios ao universo social no qual os AAs estão
inseridos. A identidade de “doente alcoólico em recuperação”, traduzida na imagem do
indivíduo doente, que traz o mal do alcoolismo alojado dentro de si, encontra uma
versão moral expressa nas identidades sociais: de “chefe de família”, de “dona de casa”,
de “trabalhador(a)”, de “pai de família”, de “provedor”.
É isso, por exemplo, que Paulo sugere: “Depois que eu conheci Alcoólicos
Anônimos, eu passei a ter uma vida diferente. Depois de muito tempo separado, eu
voltei a conviver. Hoje, com meu trabalho, eu consigo manter minha família. É essa a
condição que A.A. dá” (Paulo, entrevistado em 25 jan. 2005). Ele recupera sua
identidade social de “trabalhador” e de “chefe de família”, ao mesmo tempo em que se
reconhece na identidade de “doente alcoólico”, reafirmada por todos membros do
grupo, durante as reuniões de recuperação. Dessa maneira, o homem, ao admitir que é
portador da “doença crônica e fatal do alcoolismo”, pode resgatar sua identidade social
de “provedor”, isto é, de homem responsável pelo cuidado de si e pelo de sua família.
Nesse contexto, ser um “provedor” é um signo da recuperação do alcoólico e de
sua família. O modelo terapêutico de A.A. possibilita que o alcoólico reconstrua os
vínculos familiares e profissionais pelo cultivo de sua responsabilidade. Para os AAs, a
responsabilidade não é uma categoria “ético-abstrata”, mas sim a “responsabilidade-
obrigação” para consigo mesmo e pelos atos cometidos nos tempos do alcoolismo ativo,
sobretudo, se esses atos provocaram danos a terceiros, que deverão, agora, ser
reparados. Em outras palavras: a responsabilidade é uma categoria relacional por
excelência, um valor ético-moral que articula os planos físico e moral da doença
alcoólica. À imagem do “homem descompromissado”, “dependente do álcool” e que
tem sua vontade dominada pela bebida, contrapõe-se a imagem do “homem
responsável”, membro de A.A., que se responsabiliza pelo cuidado de si mesmo, ao
mesmo tempo em que cumpre seus deveres em relação à sua família.
164
Capítulo 7
ALCOOLISMO, DOENÇA E PESSOA
Como suportar em mim este estranho? Esse
estranho que eu mesmo era para mim?
Como não o ver? Como não o conhecer?
Como ficar para sempre condenado a levá-lo
comigo, em mim, à vista dos outros e, no
entanto, invisível para mim?
Luigi Pirandello
Eu me tornei um homem só com quatro,
cinco, oito, dez personalidades. Me tornei
um homem sem personalidade. O alcoolismo
foi me tirando a personalidade.
João, membro de A.A.
A entrada em um grupo de A.A. introduz o ex-bebedor em uma ordem de
significados que permite a (re)construção de sua identidade, ao mesmo tempo em que
delineia os contornos de uma noção de “pessoa alcoólica”. A identidade de “doente
alcoólico em recuperação” é construída no interior de um sistema simbólico cujas
categorias permitem aos membros do grupo formularem uma compreensão da realidade
em que vivem e também de si mesmos, orientando suas práticas com vistas à
recuperação.
Como vimos no capítulo 2, em diversos estudos, a temática da identidade
aparece associada, em grande medida, ao papel desempenhado pelo consumo coletivo
de bebidas alcoólicas em sua construção. Dependendo do modo como o bebedor se
relaciona com as regras tácitas do “bem beber”, sua identidade pode oscilar entre a do
“desviante” e a do “doente”.
Mas, ao contrário da identidade do “desviante”, edificada pelo pensamento
médico-higienista, que condenava o bebedor a uma posição estigmatizante e de
marginalidade, o modelo de A.A. confere uma positividade à identidade de doente,
165
alterando significativamente sua relação com o próprio mal, sua identidade social, seu
status, modificando o lugar social atribuído aos portadores da “doença do alcoolismo”.
Em A.A. opera-se, então, um deslocamento simbólico em relação tanto à
identidade do bebedor como em relação ao alcoolismo. Ou seja, observa-se uma clara
distinção entre uma perspectiva estigmatizante, segundo a qual o bebedor é definido
como “bêbedo”, “cachaceiro”, “pinguço” e uma outra, próxima do modelo biomédico,
segundo a qual o bebedor é definido, fundamentalmente, como um doente. O bebedor
deixa de ser visto como um “desviante”, para ser entendido como um “doente
alcoólico”, um “dependente do álcool”. Esse deslocamento gera, conseqüentemente,
uma reconstrução do sentido da experiência do alcoolismo, que passa a ser entendido
como uma “doença orgânica e espiritual”.
A realidade simbólica é, aqui, fundamental para entendermos a conexão entre a
realidade social e a construção da identidade, que passa a ser entendida como categoria
coletivamente construída, deixando de ser uma noção que se confunde com a realidade
concreta. Como sublinha Lévi-Strauss (1983: 332), “a identidade é uma espécie de lugar
virtual ao qual é indispensável nos referirmos para explicar um certo número de coisas,
mas sem que ele tenha uma existência real”.
Nessa medida, pensá-la significa em ir além de suas formas presentes, buscando
entendê-la de maneira integrada aos esquemas de pensamento e classificação
socialmente construídos, tal como ocorre dentro da irmandade. As representações e as
práticas, condicionando-se mutuamente, determinam o processo saúde/doença dentro de
A.A., de modo que a doença do alcoolismo é social e simbolicamente construída, tanto
por coordenadas físicas quanto morais, através das quais seus membros inserem e
modulam sua individualidade.
As representações construídas em torno do binômio alcoolismo/doença também
favorecem a fabricação de uma noção de “pessoa alcoólica”. Como vimos ao longo
deste trabalho, os membros de A.A. têm sua individualidade modulada no interior do
modelo terapêutico da irmandade, de maneira que a noção de pessoa forjada relativiza
os pressupostos da ideologia moderna. Em vez de uma noção de indivíduo autônomo,
autodeterminado e universalmente idêntico, edifica-se uma noção de “pessoa alcoólica”,
diferencial e relacional, que deve aprender a conviver com o mal dentro de si. Trata-se,
portanto, de uma noção de pessoa construída dentro de um meio cultural específico, e
166
que está diretamente ligada à construção simbólica do processo saúde/doença dentro da
irmandade.
A edificação da identidade de “doente alcoólico em recuperação” e a fabricação
da “pessoa alcoólica” devem ser compreendidas de maneira integrada aos esquemas de
pensamento e classificação construídos em A.A.. O modelo terapêutico da irmandade
promove a consolidação da representação do alcoolismo como uma “doença” e,
conseqüentemente, da identidade de “doente alcoólico”, reificada nas reuniões de
recuperação. Trata-se, assim, de um fenômeno de classificação e valoração e, por essa
via, de construção simbólica da pessoa, que possibilita aos AAs formular uma
compreensão da realidade em que vivem e sobre si mesmos, ao mesmo tempo em que
orienta suas práticas em vista da recuperação.
Assim, vejamos como a identidade de “doente alcoólico em recuperação” é
construída no interior de um sistema cuja dimensão simbólica é a chave para
compreendermos o processo saúde/doença no interior da irmandade, enfocando os
mecanismos colocados em prática para dar conta do álcool e do alcoolismo,
notadamente, a metáfora do “fundo do poço” e a questão do “anonimato”. Em seguida,
analisaremos a construção simbólica da “pessoa alcoólica” que deve aprender a
conviver com o mal dentro de si, de maneira a recuperar os laços rompidos,
notadamente, na família, durante os tempos do alcoolismo ativo.
7.1 Alcoólicos Anônimos e sua eficácia terapêutica
As partilhas feitas nas reuniões de recuperação revelam toda a plêiade de
significados que recobrem a experiência do alcoolismo para os membros de A.A. Nelas,
os AAs são unânimes em indicar uma espécie de “limiar do sofrimento” a que chegaram
antes de entrarem para a associação. Trata-se do momento descrito, metaforicamente,
como o “fundo do poço”.
Essa situação-limite e derradeira é vivida sob a forma de múltiplas perdas,
enfrentadas durante a fase ativa do alcoolismo, envolvendo, notadamente, o plano
relacional familiar do alcoólico, englobando também o sofrimento decorrente dessas
perdas. Garcia (2004: 105-117) também apresenta uma rica etnografia, na qual se
167
multiplicam os exemplos das “perdas” vividas pelos alcoólicos quando chegam à
situação derradeira do “fundo do poço”. Trata-se de perdas acumuladas tanto no “plano
relacional básico” da família como em relação à própria “reprodução física” do
alcoólico, que reforçam a articulação física e moral da doença do alcoolismo. E é a
partir de um déclic (Fainzang, 1996: 54), isto é, da tomada de consciência dessas
perdas, que o alcoólico se dá conta de que é incapaz de parar de beber, reconhecendo-se,
portanto, como um “dependente da bebida alcoólica”.
Os AAs usam a imagem do “fundo do poço” justamente para denotar esse ápice,
que antecede a decisão de fazer parte do modelo terapêutico da irmandade. Com lembra
Garcia (2004: 100), embora a noção do “fundo do poço” faça parte de outros sistemas
para caracterizar uma recuperação ou mudança de uma trajetória, para os AAs “expressa
a potencialidade de construção de um novo estilo de vida, pela adesão [...] a um novo
universo social”.
É importante frisar, porém, que essa decisão não é apenas um ato mental, isto é,
não se trata apenas da “tomada de consciência” das perdas acumuladas no tempo do
alcoolismo ativo. É necessário, sobretudo, que essas perdas sejam vividas pelo
alcoólico. Em outras palavras: é preciso que o alcoolismo seja vivido como experiência
de dor e sofrimento, através das quais os alcoólicos precisam necessariamente passar,
para que, aí sim, tomem consciência de que são incapazes de controlar as doses
ingeridas.
A metáfora do “fundo do poço” dá conta exatamente da experiência do
alcoolismo; uma experiência vivida, que pode, por isso mesmo, torna-se um objeto do
pensamento, favorecendo a produção de significados sobre a experiência da doença
90
.
É, portanto, central no modelo terapêutico de A.A., expressando a decadência “física” e
“moral” do indivíduo e a situação de liminaridade social em que se encontra, permitindo
90
Como assinala Paul Ricouer (1976), as metáforas não são apenas ornamentos nos discursos, mas
oferecem uma inovação semântica. Nesse sentido, as metáforas são um importante instrumento
discursivo, por meio do qual os indivíduos constroem e expressam suas aflições, permitindo a elaboração
de um sentido para suas experiências da doença, estendendo as possibilidades de produção dos
significados, a partir de uma inovação semântica. Para Alves e Rabelo (1999: 173-174), as metáforas
desempenham um papel central nas narrativas de aflição estendendo “os sentidos habituais para domínios
inesperados, oferecendo assim uma ponte entre a singularidade da experiência e a objetividade da
linguagem, das instituições e dos modelos legitimados socialmente. Tecidas em uma narrativa, as
metáforas dão forma ao sofrimento individual e apontam no sentido de uma determinada resolução desse
sofrimento: permitem aos indivíduos organizar sua experiência subjetiva, de modo a transmiti-la aos
outros – familiares, amigos, terapeutas – e a desencadear nestes uma série de atitudes condizentes como a
nova situação apresentada”.
168
ao alcoólico uma síntese de seu estado de dependência e o reconhecimento de que
“perdeu o controle sobre o álcool”, possibilitando a expressão de suas aflições e a
elaboração de um sentido para experiência do alcoolismo. Nesse instante, como dizem
os membros de AA, o bebedor sente que é “impotente diante do álcool” e que é
necessário procurar ajuda.
É necessário reconhecer que se é impotente, que se “perdeu o controle” sobre a
própria vida, para que a recuperação seja possível. Durante as reuniões de recuperação,
os AAs reforçam essa idéia reafirmando que não podem controlar o ato de beber
seguindo a própria vontade: “Quando seguíamos nossa vontade as coisas não
funcionaram; ela nos levou ao fundo de poço (Hélio, reunião de recuperação aberta
em 22 maio 2002). Ou ainda:
Aqueles que afirmam que podem se recuperar do alcoolismo sozinho
acho que ... é mentira. Eu estava todo dominado pelo álcool. Eu
estava no fundo do poço. Um poço estreito e eu não conseguia sair
sozinho. Até que com a mão, o Poder Superior, Ele me colocou na
borda do poço (Jorge, reunião de recuperação aberta em 08 set. 2002).
O “fundo do poço” é também a expressão, no plano da experiência vivida,
daquilo que o primeiro e o segundo passos do programa de recuperação de A.A.
exigem, isto é, o reconhecimento da própria impotência diante do álcool e a necessidade
de um Poder Superior para devolver a sanidade ao alcoólico. “A experiência do fracasso
não serve apenas para convencer o alcoólico que alguma mudança é necessária, mas ela
é, ela mesma, a primeira etapa desta mudança” (Bateson, 1977: 269 – trad. minha). É,
portanto, através da dor de uma perda e do sofrimento que daí decorre, que pode brotar
a possibilidade de recuperação do alcoolismo.
A pesquisa etnográfica também revela a maneira pela qual a expressão “fundo
do poço” se articula à noção de pessoa, delineando os contornos de uma construção
subjetiva, englobada pelos valores “família” e “trabalho”. Ao narrar sua trajetória rumo
ao “fundo do poço”, Sônia enfatiza a “fuga” de sua família e o reencontro com os
Alcoólicos Anônimos:
Aí eu fiquei rodando o mundo, dormindo na rua, fugindo da minha
família, mas o Poder Superior estava preparando para mim e esse
irmão meu me achou na rua, na sarjeta e falou para mim: “Você não
quer voltar para Alcoólicos Anônimos”? E aí eu voltei com ele para a
mesma sala, aonde eu sai um dia casada e sem beber. Voltei aquele
169
trapo. Voltei mesmo no fundo do poço, mas eu acreditei
companheiros, eu acreditei que era aqui o meu lugar, se eu quisesse
ser gente novamente. E hoje eu tô tão feliz; tão feliz companheiros de
permanecer com vocês [...] Sou feliz só por não precisar beber
cachaça. E quero agradecer ao coordenador e desejar muitas 24
horas de sobriedade a mim e a todos (Sônia, reunião de recuperação
aberta, 16 mar. 2002).
Essa narrativa é emblemática do modo como o “valor família” é estruturante da
trajetória de decadência “física” e “moral” vivida por Sônia. Ela diz que vivia “fugindo
de sua família e “dormindo” nas ruas, demarcando, assim, uma ruptura com o universo
familiar e, sobretudo, com o papel social que se espera que uma mulher cumpra dentro
dessa esfera, qual seja, o de “mãe” e “dona de casa” (ver capítulo 6 – tópico 6.2). Esse é
o sentido do fundo de poço vivido por Sônia: uma perda do “lugar” social vivido no
âmbito da família, e que foi recuperado com a ajuda do irmão, que a levou novamente
ao grupo de A.A. É no grupo, do qual um dia ela saiu “casada e sem beber”, e voltou
no fundo do poço, que ela encontra as condições para recuperar seu lugar, e se
reconhecer novamente como “gente”, isto é, como uma pessoa moral, capaz de
reassumir seus papéis sociais perdidos no tempo da ativa. Em outras palavras, agora ela
pode novamente se reconhecer como “mãe”, “esposa” e “trabalhadora”.
A entrada no grupo de AA só ocorre no momento em que Sônia chega ao “fundo
do poço”, isto é, depois que acredita que seu lugar é no grupo, na companhia dos
demais companheiros. Mas, para chegar até esse momento, ela contou com a ajuda do
“Poder Superior”, o que tornou possível seu retorno ao grupo. Depois de viver a
experiência da queda e da decadência física e moral, ela aceita que é “impotente diante
do álcool” e que precisa de ajuda para sua recuperação. O que a deixa feliz, uma vez
que agora não “precisa beber cachaça” e está junto de seus companheiros na busca da
sobriedade.
Ora, tocar o “fundo do poço” significa assumir que o alcoólico foi “derrotado
pelo álcool”, que não há outra saída senão admitir que a vontade individual é impotente
para assumir o controle da própria vida e aceitar a ajuda de um Poder Superior. Nota-se
que há uma relação de complementariedade entre a experiência de tocar o “fundo do
poço” e a necessidade de se “render” a um Poder Superior. Como sublinha Bateson
(1977: 291 – trad. minha): “‘Tocar o fundo’ e ‘se render’ permitem ao alcoólico
descobrir uma relação favorável com este Poder. Opor-se a este Poder significa, para os
humanos e, muito particularmente, aos alcoólicos, ir à catástrofe”.
170
O alcoólico precisa, para sair do “poço”, reencontrar seu “lugar” na totalidade
social. Durante uma reunião de recuperação, a fala de Jorge expressa bem essa idéia:
“Outro dia conversando com minha filha ela me disse: ‘pai, você sabe onde é seu
lugar; seu lugar é no grupo de A.A.’. Era isso mesmo; eu sei que meu lugar é aqui na
sala de A.A., com meus companheiros” (Jorge, reunião de recuperação aberta em 24 jul.
2002). É necessário que o indivíduo viva em harmonia com o Poder Superior, pois se
opor a ele significa continuar preso ao ciclo da dependência, que pode levá-lo à morte.
O par alcoolismo/doença remete, assim, à relação indivíduo/Poder Superior,
mediatizada pelo grupo
91
.
Em suas partilhas, os AAs reconhecem a importância do Poder Superior, para a
recuperação dos papéis sociais perdidos nos tempos do alcoolismo ativo: Quando
cheguei em A.A. estava no fundo do poço e graças ao Poder Superior e a Vocês hoje eu
tenho tudo. Minha preocupação hoje é com minha família, meu trabalho e com A.A.”.
Os valores família e trabalho encontram-se, aqui, perfeitamente articulados à construção
da identidade de doente alcoólico fornecida pelo grupo. Os AAs vivem ocupados em
controlar a doença do alcoolismo, ao mesmo tempo em que cuidam do provimento de
suas famílias. Cuidar de si e de sua família tornam-se aspectos fundamentais da
construção subjetiva do alcoólico, o que significa a recuperação dos papéis sociais de
“pai/mãe”, esposo(a), trabalhador(a).
A imagem do “fundo do poço” marca a entrada em um novo universo social: o
grupo de A.A., no qual o alcoólico se encontra com outros alcoólicos com histórias e
trajetórias semelhantes à sua. A identificação entre os membros do grupo,
proporcionada pelo pertencimento a uma nova ordem de sentido, permite a elaboração
da identidade de “doente alcoólico em recuperação”, que passa agora a compor o
referencial central de uma verdadeira “identidade existencial” (Mäkelä, 1996: 99),
possibilitando a ruptura com o “tempo do alcoolismo ativo” e a reorientação de suas
ações em vista da conquista da sobriedade.
91
No Livro Azul de Alcoólicos Anônimos, encontra-se explicitado esse elo de mediação entre o
indivíduo e o Poder Superior: “o alcoólico, em algumas ocasiões, não tem as defesas mentais eficazes
contra o primeiro gole. A não ser em casos raros, nem ele nem qualquer outro ser humano pode
providenciar tais defesas. Sua defesa precisa vir de um Poder Superior” (Alcoólicos Anônimos, 1994:
65).
171
Através da troca de experiências no interior do grupo, o alcoólico descobre a si
mesmo, num universo de iguais
92
.
Como explica Drulhe (1988: 322 – trad. minha), em
seu estudo sobre mulheres alcoólicas e os grupos de ex-bebedores: “cada uma se
reconhece na biografia das outras, e isso favorece a descoberta de um elemento parcial,
mas fundamental de sua identidade: o estigma agora escondido do alcoolismo”.
Os AAs constroem, então, a eficácia de seu modelo terapêutico a partir de um
sistema simbólico construído coletivamente através das trocas de experiências entre
todos os membros do grupo. Aqui, vale traçarmos um paralelo entre a “eficácia” do
sistema de A.A. e a “eficácia do feiticeiro”, da maneira como esta foi analisada por
Lévi-Strauss (1974). Para o autor, não é tão importante entender os mecanismos
objetivos que possibilitam a cura pelo xamã: “a eficácia da magia implica na crença da
magia [...] já que a situação mágica é um fenômeno de consensus...” (1974: 192-193). O
que é relevante, portanto, é o reconhecimento social da eficácia anterior do xamã
enquanto curandeiro. Na “cura xamanística”, o xamã fornece ao doente uma linguagem,
a partir da qual ele pode “tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos
afetivos, e aceitáveis para o espírito as dores que o corpo se recusa a tolerar” (1974:
226).
Diferentemente do “complexo xamanístico” analisado por Lévi-Strauss, no
modelo de A.A. não encontramos a presença do xamã, do curandeiro e de nenhuma
outra alteridade embutida em outros modelos terapêuticos. Todavia, sua “eficácia”
deve-se à sua capacidade de produzir um reconhecimento entre os membros do grupo,
através da produção de significados e consensos em torno das experiências
compartilhadas mutuamente. A irmandade oferece aos alcoólicos a possibilidade de
construírem uma linguagem da doença que articula aos valores estruturantes do
universo social no qual estão inseridos, e através da qual suas aflições e suas perdas
relacionais, sobretudo na família e no trabalho, podem ser traduzidas. Compartilhando
92
A associação dos Narcóticos Anônimos (N.A), que trata de dependentes químicos e segue o modelo de
tratamento dos Doze Passos e Doze Tradições, também vê nessa relação especular entre os adictos em
recuperação uma das chaves para o êxito de N.A. e, conseqüentemente para a construção da identidade do
“adicto em recuperação”: “Começamos a tratar a nossa adicção parando de usar. Muitos de nós
procuraram respostas, mas fracassaram em encontrar qualquer solução prática, até que encontramos uns
aos outros. Quando nos identificamos como adictos, a ajuda torna-se possível. Podemos ver um pouco de
nós mesmos em cada adicto e ver um pouco deles em nós. Nosso futuro parecia desesperador, até que
encontramos adictos limpos, dispostos a partilhar conosco. A negação da nossa adicção manteve-nos
doentes, mas nossa honesta admissão da adicção permitiu-nos parar de usar. As pessoas de Narcóticos
Anônimos disseram-nos que eram adictos em recuperação, que tinham aprendido a viver sem drogas. Se
eles tinham conseguido, nos também conseguiríamos (Narcóticos Anônimos, 1993: 8 – grifos meus).
172
entre si a experiência das perdas acumuladas durante o “tempo da ativa”, os AAs
encontram a linguagem necessária para se reconhecerem como “doentes alcoólicos em
recuperação”, isto é, um indivíduo que traz o mal do alcoolismo dentro de si, mas que
encontra no grupo a possibilidade de dar um sentido à experiência da doença.
Não por acaso, os alcoólicos dizem: “foi depois que descobri uma sala de A.A. e
que o alcoolismo é uma doença que eu passei a dar um sentido a minha vida”. Essa é
“magia” produzida pelos AAs: construir um sistema simbólico, no qual todos são
“xamãs” e “curandeiros” de si mesmos, na medida em que se instaura um regime de
alteridade que possibilita a reafirmação cotidiana de sua condição de doente, comum a
todos os membros da irmandade. É através da fala cotidianamente repetida das perdas
relacionais vividas no tempo do alcoolismo ativo que os membros constroem uma
linguagem da doença, através da qual se identificam uns com os outros, reafirmando sua
condição de “doentes alcoólicos”.
É por isso que a eficácia do modelo não é contestada nem quando ocorre um
caso de “recaída”, isto é, quando um membro do grupo volta a beber, rompendo com a
abstinência necessária para a manutenção da sobriedade. Freqüentemente, ouvi dos
membros da irmandade as seguintes assertivas sobre aqueles que “recaíram”: “Ele não
freqüentava as reuniões e não praticava o programa de recuperação”; “Ele só veio
pegar a ficha de um mês e nunca mais voltou”. Os casos de “recaída” são atribuídos aos
indivíduos, nunca colocando em xeque o sistema. A linguagem dos AAs é uma
linguagem ritual, cuja eficácia liga-se à dimensão coletiva de seu modelo terapêutico.
Se alguém recai e volta a beber, isso só confirma a necessidade de os AAs continuarem
atentos e evitarem o “primeiro gole”, responsável por reacender a chama da
dependência do álcool.
Ao ingressar em A.A., aquele que era estigmatizado pelo uso abusivo do álcool e
vivia uma decadência física e moral, que o havia conduzido a um isolamento e a um
estado de marginalidade social, descobre-se agora igual a muitos outros com histórias e
trajetórias semelhantes à sua. No interior do grupo, o alcoólico pode expor suas dores e
narrar sua experiência sem ser estigmatizado e discriminado. Com isso, o alcoólico
descobre-se como fazendo parte de um “grupo de pares”, que compartilham de uma
mesma ordem de significações, o que reforça, ao mesmo tempo, sua identificação como
portador da doença do alcoolismo.
173
7.2 Anonimato, identidade e pessoa
Cada um tem a sua hora e a sua vez
João Guimarães Rosa. A Hora e Vez de
Augusto Matraga
A construção da identidade do “doente alcoólico em recuperação”, portanto,
está no coração dos mecanismos simbólicos pertencentes ao modelo de A.A. para dar
conta do alcoolismo. Mas por que os ex-bebedores devem permanecer anônimos? No
programa de recuperação dos Doze Passos e das Doze Tradições, o anonimato é
definido, na décima segunda tradição, como o “alicerce espiritual das nossas tradições,
lembrando-nos sempre da necessidade de colocar princípios acima das personalidades”.
Devido à exigência do anonimato, é comum, por exemplo, vermos apenas as silhuetas
dos AAs em programas de entrevistas na mídia televisiva. Esse princípio é motivo de
controvérsia entre as associações de ex-bebedores, como o Vie Libre, que o rejeita,
alegando que é “sinônimo de uma concepção do alcoolismo como vício”
93
(Fainzang,
1996: 103).
O anonimato está integrado ao modelo terapêutico de A.A. que, ao contrário do
grupo Vie Libre, não vê possibilidade de cura para o alcoolismo. Para os AAs, o
anonimato é “o signo da abnegação da pessoa, elemento fundamental de um programa
espiritual orientado na direção do reconhecimento de sua impotência e da necessidade
de ser ajudado pelo Poder Superior” (Fainzang, 1996: 104 – trad. minha).
Essa questão tem um importante papel simbólico no modelo de A.A.,
relacionando-se também com a fabricação da noção de pessoa no grupo, já que,
reconhecida a impotência do eu em dar conta da doença do alcoolismo, o anonimato é o
sinal da rendição a um Poder Superior, que conduz também à suavização do “egoísmo”.
Não podemos nos esquecer de que o “egocentrismo”, próprio aos tempos do alcoolismo
93
Segundo a literatura do grupo Vie Libre: “Não se pode se esconder de uma doença. Não se deve ter
vergonha de ser doente. Os Alcoólicos Anônimos querem guardar o anonimato. Quando eles passam na
televisão, é como uma sombra chinesa para que ninguém possa lhes reconhecer. Por quê? Porque eles têm
vergonha. Mas, quando se tem vergonha, é quando se pensa que o alcoolismo é um vício. Ele não é um
vício, é uma doença” (cf. Fainzang, 1996: 103 – trad. minha).
174
ativo, impede o alcoólico de reconhecer que é doente e que precisa de ajuda em sua
recuperação.
O próprio Bill Wilson reconhece que o anonimato é “o maior símbolo de
abnegação que nós conhecemos” (apud Bateson, 1977: 293). Mais do que proteger o
alcoólico da vergonha ou da denúncia, trata-se de um dispositivo para lutar contra a
“mise en vedette” pessoal, isto é, uma forma de combater o cultivo da personalidade
que é, segundo Bateson (1977: 292-293 – trad. minha), “o maior perigo espiritual para o
membro em questão, porque ele não pode se permitir um tal egoísmo”, sem que
coloque em risco sua recuperação”.
94
Atuando como um “dispositivo anticarismático” (Soares, 1999: 266), o
anonimato também impede as diferenciações no interior da associação. Todo o esforço
do programa de A.A. é no sentido de se evitar as diferenças de status entre os membros
no interior do grupo: tanto o membro novato recém chegado ao grupo como o mais
antigo se identificam como “doentes alcoólicos em recuperação” que se abstiveram “só
por hoje” do primeiro gole. Lasselin e Fontain (1979: 86 – trad. minha) destacam que,
no interior do grupo, o alcoólico: “reencontra, ou melhor, encontra aquilo que estava
desde sempre perdido, uma aproximação da identidade. Entre os alcoólicos, ele existe;
ele é alcoólico e alcoólico sempre [será]”.
Como conseqüência, o alcoólico pode construir sua identidade, acrescentando à
sua identidade pessoal uma coletiva, fornecida pela associação. O que pode ser notado
na própria maneira como os membros de A.A. se identificam durante as reuniões de
recuperação: “Meu nome é Paulo, um alcoólico em recuperação” ou “Meu nome é
Jorge, um doente alcoólico em recuperação”. O processo de nomeação identitária
caracteriza-se por afirmar o pertencimento ao grupo e a condição de “doente alcoólico
em recuperação”.
Mas não estaríamos aqui diante de uma troca da dependência do álcool pela
dependência do grupo? Fainzang (1996: 111) faz essa leitura, quando afirma que os
membros de A.A., ao se submeterem ao Poder Superior, não fazem mais do que trocar
94
Como sublinha Bateson (1977), os riscos desse cultivo do egoísmo estão sempre presentes na trajetória
da recuperação: “Graças à reputação e ao sucesso da organização, os membros de A.A. podem ser
tentados a se servir de seu pertencimento a esta organização como de um trunfo nas relações públicas, em
política, no domínio da educação e em outros domínios ainda. Bill W., o co-fundador da organização, se
deixou ele mesmo tomar, logo no início, por esta tentação [...] além disso, para a organização, em seu
conjunto, seria fatal estar implicada na política, em controvérsias religiosas e em reformas sociais”
(1977: 292-293 – trad. minha).
175
uma dependência por outra, substituindo o álcool por um novo mestre: Deus. Como
conseqüência, a autora destaca que, enquanto o modelo terapêutico de A.A. “reforça” a
dependência, aqui entendida como “submissão” a um novo mestre, o grupo Vie Libre
almeja a “emancipação do sujeito”, recusando toda e qualquer forma de “escravidão”:
A submissão à fatalidade da doença em A.A., manifesta na oração da
serenidade, é totalmente recusada por Vie Libre. Vie Libre associa sua
luta contra o alcoolismo à recusa da dependência e à escravidão.
Enquanto A.A. busca encontrar um novo mestre, Vie Libre busca a
emancipação. O álcool não é aqui substituído por Deus ou por uma
outra força espiritual à qual o bebedor doravante se alienaria, mas por
uma busca de liberdade (1996: 115).
Fainzang não percebe que a diferença entre a dependência ao álcool e a
“submissão” ao Poder Superior é, em primeiro lugar, ratificada pelas práticas mantidas
no interior do grupo de A.A., notadamente durante as reuniões de recuperação. Com
efeito, elas são de natureza completamente diferente das relações estabelecidas durante
o tempo do alcoolismo ativo. A esse respeito são importantes as considerações de
Drulhe (1988: 323-324 – trad. minha), nas quais recusa a tese da dependência do
alcoólico em relação ao grupo. Para o autor, é justamente a possibilidade de dividir uma
experiência de vida comum que permite aos alcoólicos desenvolverem uma memória
coletiva, que é a condição para uma socialização em torno do valor da abstinência:
Reivindicar seu passado e sua identidade de alcoólico é o que lhes
permite justificar sua recusa presente do álcool; se o grupo permite
aos ex-bebedores estruturar suas lembranças e dar um sentido a sua
vida passada e presente, a socialização que se elabora no grupo de
mútua ajuda, não é a da dependência. Ao contrário, ela exprime a
complementariedade que existe entre os homens.
Em vez de propor um simples substituto para o álcool, ao qual os AAs se
alienariam, o grupo de A.A. possibilita a criação de um novo laço social, que permite ao
alcoólico resignificar sua experiência passada em torno dos valores da abstinência e da
sobriedade, fazendo-o redescobrir os valores da amizade e da responsabilidade. Como
explica Jovelin e Oreskovic (2002: 138 – trad. minha): “Durante as reuniões, são
criados laços de sociabilidade entre os ex-bebedores. Camaradagem, amizades e
afinidades novas se constroem dentro de uma rede que tem em comum apenas seu
alcoolismo passado e sua abstinência presente”.
176
Além disso, um outro aspecto deve ser destacado: enquanto no período do
alcoolismo ativo o doente alcoólico vive um insulamento, isto é, uma espécie de
dessocialização que o isola e o mantém preso no circulo da dependência, os valores da
abstinência e da sobriedade, que norteiam as ações no interior do grupo, são um
sinônimo de socialização, que permite ao alcoólico recuperar os laços sociais perdidos
no passado.
Nesse sentido, o princípio do anonimato não significa uma recusa pura e simples
das individualidades e das histórias individuais. Nas reuniões de recuperação, os AAs
enunciam uns aos outros suas histórias de vida do tempo do alcoolismo ativo e da
sobriedade, tornando possível uma reconstrução identitária assentada em uma memória
coletiva, que reforça sua condição de portador da doença incurável do alcoolismo.
Trata-se de conter o “egocentrismo”, que torna o alcoólico irascível diante da evidência
de sua doença. O anonimato patronímico é, então, um signo de pertencimento ao grupo
e da “aceitação” de que se é um doente alcoólico.
Não se trata da troca da dependência do álcool pela dependência em um Ser
Superior ou do grupo. Trata-se sim, de um sistema simbólico que possibilita a
fabricação da pessoa pelo grupo, através da construção de um regime de alteridade que
opera a ressemantização dos valores característicos do campo ideológico moderno, a
saber: a “escolha”, a “liberdade”, a “responsabilidade” e a “vontade”. Nesse sentido,
submeter-se ao Poder Superior é, para os AAs, condição sine qua non para recuperação
da “liberdade”, da “responsabilidade” e da “capacidade de escolha”. Na literatura de
A.A., lemos:
[...] precisamos parar de bancar de Deus [...] Depois, resolvemos que
dali em diante, neste teatro da vida, Deus seria o nosso Diretor. Ele é o
Chefe, nós somos Seus agentes. Ele é Pai, nos somos Seus filhos. A
maioria das boas idéias é simples, e este conceito foi a base de um
novo e triunfante arco através do qual chegamos à liberdade
(Alcoólicos Anônimos, 1994: 83 – grifos meus).
A entrada no grupo e a conseqüente submissão ao Poder Superior permitem a
passagem, aqui simbolizada na idéia de um “arco”, que garante ao “doente alcoólico em
recuperação” recuperar a sua “responsabilidade” e sua “liberdade de escolha”.
Os ex-bebedores se reconhecem como fazendo parte de uma ordem, no interior
da qual eles podem estabelecer uma relação de cooperação com seus pares,
redesenhando os contornos da noção de pessoa. É assim que a liberdade perdida nos
177
tempos da ativa pode ser recuperada, juntamente com a responsabilidade pelo cuidado
de si.
É dessa maneira que podemos entender as palavras de Ricardo, durante a
reunião de aniversário dos 66 anos de fundação do A.A. mundial: “Dizem que agora eu
sou dependente do grupo de A.A. O problema é que antes eu não podia escolher se ia
ou não beber e agora eu posso escolher ser membro de A.A.” (Ricardo, reunião
temática em 09 jun. 2002). E, também o que afirma João, quando fala da “escravidão”
que vivia nos tempos de seu alcoolismo ativo: “eu não conseguia realizar nada; eu
vivia no mundo da escravidão; eu cheguei à dependência; e o homem, quando ele
depende, ele não tem mais domínio, ele é um escravo daquela dependência: eu cheguei
à escravidão do álcool” (João, entrevistado em 24 ago. 2002) .
A relação entre anonimato, identidade e a construção da noção de pessoa
também se relaciona à questão dos “ritos de passagem” vividos nas associações de ex-
bebedores. Para Fainzang (1996: 107), contudo, o modelo de A.A. não possibilitaria
uma mudança de status do bebedor, de modo que o anonimato somente reforçaria sua
condição de “doente alcoólico em recuperação”. Enquanto na associação Vie Libre, o
bebedor, após o tratamento, muda seu status, assumindo a condição de “bebedor
curado”, em A.A, o ex-bebedor permanece sempre com o status de “doente alcoólico”,
uma vez que o alcoolismo é entendido como uma doença incurável.
Embora a afirmação da identidade de “doente alcoólico em recuperação” seja
um aspecto central do modelo de A.A., não se descarta a questão dos ritos de passagem
e a conseqüente mudança de status do bebedor. Com efeito, é possível analisar o
momento da entrada do bebedor no grupo como um “rito de passagem”, nos moldes
definidos por Van Gennep e retomados por Turner (1974: 116-117), ao apresentar as
três fases que caracterizam esses ritos:
A primeira fase (de separação) abrange o comportamento simbólico,
que significa o afastamento do indivíduo ou de um grupo, quer do
ponto fixo anterior na estrutura social, quer de um conjunto de
condições culturais (um “estado”), ou, ainda, de ambos. Durante o
período “liminar”, de intermédio, as características do sujeito ritual (o
“transitante”) são ambíguas; ele passa através de um domínio cultural
que tem poucos, ou quase nenhum, dos atributos do passado ou do
estado futuro. Na terceira fase (reagregação ou reincorporação),
consuma-se a passagem. O sujeito ritual, seja ele individual ou
coletivo, permanece num estado relativamente estável mais uma vez, e
em virtude disto, tem direitos e obrigações perante os outros, de tipo
claramente definido e “estrutural”, esperando-se que se comporte de
178
acordo com certas normas costumeiras e padrões éticos, que vinculam
os incumbidos de uma posição social a um sistema de tais posições.
Nesse sentido, a trajetória do bebedor até entrar na irmandade refere-se ao tempo
do alcoolismo ativo, no qual ele vivia sob a pressão do estigma e em um estado de
marginalidade e exclusão social. O bebedor vive um processo de contínuas perdas
relacionais — perda da família, dos amigos e do trabalho —, até tocar o “fundo do
poço”.
Nesse estado, o bebedor rompe os laços familiares e profissionais, perdendo seu
lugar social, de maneira que não mais exerce seus papéis de “pai” e “mãe”, ou de “chefe
de família” e de “dona de casa”. Aqui, o bebedor se destaca de sua matriz social,
passando a ocupar um estado intermediário, caracterizado pela marginalidade e pela
exclusão. Não por acaso, ele se encarna nas figuras do “bêbado”, do “cachaceiro” e do
“pinguço”, todos personagens que vivem à margem das relações sociais valorizadas no
universo ao qual os membros do grupo pertencem, e que denota a perda de status do
bebedor. Da mesma forma que o célebre personagem Augusto Matraga, imortalizado na
novela de Rosa (2001), o bebedor encontra-se completamente apartado de seu fundo
social, atingindo o chamado fundo do poço
95
.
Nesse momento, ele sente que é “impotente diante do álcool” e decide procurar
ajuda para sair dessa situação. Aqui, se confirma a máxima repetida por Matraga, e que
serve de epígrafe a esse tópico, segundo a qual “cada um tem a sua hora e a sua vez”, e
sabe o momento de procurar ajuda. É nesse instante que o bebedor realiza a passagem
de um estado de marginalidade para uma fase de liminaridade, que se inicia com a
95
Esse paralelo entre a trajetória do bebedor que rompe com a matriz social a qual pertence e o
personagem de Guimarães Rosa – presente em sua novela A Hora e Vez de Augusto Matraga - parece
muito sugestiva para pensarmos a construção da noção de pessoa em A.A.. É bem conhecida a trajetória
de construção do personagem Augusto Matraga, que ao passar por vários estágios vê seu nome e seu
status social se modificar, passando de Nhô Augusto, um fazendeiro senhor da terra e dos destinos alheios
para o de Augusto Matraga, cujo nome, nas palavras de Guimarães Rosa, “não é nada”. Como indica Da
Matta (1997b: 303-334), a novela oferece a possibilidade de interpretação da trajetória do personagem
central – Augusto Matraga – a partir do modelo indivíduo/pessoa e os rituais de passagem. Para o autor:
“enquanto o nome Nhô Augusto aponta para a ordem social e para uma posição superior na hierarquia, o
nome Matraga revela a marginalidade de quem vagou como indivíduo no meio dos pobres, da natureza e
dos bandidos” (1997b: 318 – grifo do original). Todavia, diferentemente do que sugere Da Matta, ao
propor que Matraga encarna a figura do renunciante, recusando-se a retornar ao mundo do qual partiu,
tornando-se cada vez mais individualizado, o que nossa pesquisa etnográfica revela é que, em A.A., o
alcoólico só encontra a possibilidade de reconstrução subjetiva ao aceitar a condição de indivíduo doente
e, consequentemente, recuperar os papéis sociais no universo relacional da família e do trabalho.
179
reconstrução de sua identidade, agora de “doente alcoólico”, e permanece durante toda
sua recuperação. A situação vivida pelo alcoólico recém-ingressante em um grupo
exemplifica esse momento de liminaridade, a partir do instante em que ele recebe, das
mãos de seu “padrinho”, a ficha que simboliza seu ingresso no grupo, mas não assume
nenhuma função na organização interna do grupo. Durante essa fase, o novato mantém
uma relação mais direta com seu padrinho, que, por ser um membro veterano, com mais
tempo de sobriedade, o orienta no aprendizado dos princípios do programa de
recuperação dos Doze Passos e das Doze Tradições, e o ajuda a se familiarizar com o
modelo terapêutico da irmandade. O padrinho opera, assim, como um mediador que
revela uma diferenciação e uma espécie de hierarquização nas relações entre os
membros do grupo
96
.
Nessa fase, o alcoólico se individualiza na companhia de outros que sofrem do
mesmo problema. Ele se reconhece, portanto, como um “doente alcoólico em
recuperação”, um indivíduo portador da doença incurável do alcoolismo, o que é
confirmado a cada depoimento e a cada narrativa feita todos os dias nas reuniões de
recuperação.
Essa condição é reforçada pelo princípio do anonimato, que impede as
diferenciações de status dentro do grupo, denotando que todos estão na mesma situação.
Ora, o anonimato opera como um princípio individualizante, marcando a passagem para
uma noção de indivíduo doente, compartilhada por todos os membros de A.A.. É
somente nesse momento que o alcoólico pode recuperar os vínculos perdidos no tempo
da ativa, notadamente na família no trabalho.
Consuma-se, assim, a passagem da pessoa ao indivíduo e, deste à “pessoa
alcoólica”. Em outras palavras: o anonimato opera a passagem do “bêbado”, isto é,
daquele que perdeu sua posição social dentro da esfera familiar e do universo do
trabalho ao “doente alcoólico”, e conseqüentemente, à recuperação dos laços sociais,
perdidos no tempo do alcoolismo ativo, configurando os contornos da “pessoa
alcoólica”: um indivíduo doente que recupera o status vivido no universo social ao qual
ele pertence, norteado pelos valores da família e do trabalho.
96
Aqui, é impossível não se lembrar das análises de Da Matta (1997b: 232-238) sobre as relações entre
indivíduo e pessoa na sociedade brasileira. Para o autor, a figura do padrinho traduz exatamente a posição
desse mediador diferencial, que introduz a hierarquia em uma sociedade de iguais.
180
Ao entrar em A.A., o alcoólico pode, enfim, construir sua identidade, afirmando
sua diferença em relação ao restante da sociedade, formada por não-alcoólicos. Certa
vez, durante uma conversa, Paulo me perguntou: “Sabe qual a diferença que existe
entre nós dois? É que você é capaz de beber uma cerveja e esquecer que bebeu; eu não
sou capaz de esquecer. Eu tenho que reconhecer que sou doente e que eu sou diferente
de você”. Paulo sabe que não pode se esquecer de evitar o “primeiro gole”, uma vez que
sua condição de portador da doença do alcoolismo é cotidianamente lembrada através
das “partilhas” dos companheiros do grupo. É assim que o sistema de A.A. possibilita a
produção de um “discurso legítimo” sobre a doença alcoólica, contrastando a identidade
do alcoólico daquela do não-alcoólico, o que torna possível a identificação de seus
membros entre si, reconhecidos, agora, como “doentes alcoólicos em recuperação”.
Mas é somente após tomarem consciência de que são “doentes alcoólicos” e que
precisam de ajuda, que os AAs iniciam sua caminhada rumo à sobriedade, redefinindo,
assim, a compreensão que têm de si mesmos. A construção simbólica da “pessoa
alcoólica” está, portanto, no centro do modelo terapêutico elaborado por A.A. para dar
conta do álcool e do alcoolismo. São esses os passos que acompanharemos a seguir.
7.3 O alcoolismo e as imagens do “eu”
Paulo narra nos seguintes termos o momento em que percebeu que havia
chegado ao “fundo do poço”, devido a seu alcoolismo:
A gota d’água foi o dia em que eu trabalhei a noite e estava passando
pelo processo do delírio, conversando sozinho, tendo visões, deitava e
não conseguia dormir, conversava com pessoas que eu via. Eu me
deitei e meu filho começou a chorar, eu levantei peguei ele no colo e o
coloquei no berço e fui dormir. Eu tinha trabalhado à noite, eu estava
alcoolizado e estava passando por esse processo de delírio, e ele
começou a chorar de novo. Eu levantei disposto a fazer uma coisa:
matar meu filho. Veja bem o ponto que o alcoolismo me levou
(Paulo, entrevistado em 22 jul. 2002).
A imagem do “fundo do poço”, analisada anteriormente, traduz a situação
derradeira a que chegou o bebedor, sua decadência “física” e “moral”, antes de procurar
a ajuda em um grupo de A.A.. A fala de Paulo expõe as conseqüências de seu
alcoolismo: de um lado, seus efeitos “mentais”: “delírios”, “insônia” e “visões”, que
181
denotam sua dependência do álcool e, de outro, suas conseqüências no plano “moral”: o
momento em que, “alcoolizado” e em “processo de delírio”, pensou em “matar” o
próprio filho, que chorava no berço.
Os efeitos “mentais” e “morais” do uso do álcool denotam que o alcoólico
“perdeu o controle sobre si mesmo”, que está dependente e age de um modo
incontrolável, guiado por seu alcoolismo. Não por acaso, Paulo conclui sua narrativa
dizendo: “veja bem o ponto a que o alcoolismo me levou”. Trata-se de um “eu
alcoolizado” que, guiado pelo alcoolismo, faz coisas “inimagináveis”, de tal maneira
que o bebedor não mais se reconhece em seus atos.
Fainzang (1996: 53-68) oferece uma rica etnografia sobre o modo como os
membros da associação de ex-bebedores Vie Libre definem a si mesmos como
alcoólicos, ressaltando que “é a incapacidade de discernir o que se faz do que não se faz,
[entre] o bem e o mal, que caracteriza a seus olhos o alcoólico, cujos signos são também
sintomas da doença” (1996: 57 – trad. minha).
Aos olhos dos AAs, as alterações de seus comportamentos também são
reconhecidas como a experiência da doença, que compromete, sobretudo, as relações
familiares e sociais nas quais estão envolvidos. A degradação das relações familiares se
expressa, entre outras maneiras, através da “agressividade”, característica do
comportamento do alcoólico durante a fase ativa de seu alcoolismo: “eu já não
suportava as pessoas chegarem para mim e falarem: ‘pôxa Paulo, viu o que você fez
ontem?’ Eu brigava; ficava agressivo. Eu era aquele cara super violento. Às vezes eu
passava dos limites, às vezes eu arrebentava o bar todo” (Paulo, entrevistado em 22 jul.
2002).
Os AAs freqüentemente narram as mudanças em seu comportamento,
provocadas pelo uso do álcool, com o sentimento de que, quando bebiam, agiam de um
modo irreconhecível, de que não “eram mais eles mesmos”: “Depois que eu tomava a
primeira e a segunda, eu me transformava naquilo que eu achava que eu era” (Aurélio,
reunião de recuperação aberta em 14 fev. 2002). Ou ainda: “O álcool me tirou minha
consciência. Me tirou a consciência de mim mesmo. Eu já não sabia mais quem eu era”
(Nilson, reunião de recuperação aberta em 22 maio 2002).
Essa “perda de si”, ou a sensação de que já “não se é mais o mesmo”, é
traduzida pelas “mentiras” ditas pelo alcoólico, que não aceita sua condição de doente:
182
“Fui agressivo com minha saúde. Mentia para todos: para o médico, para minha
família, minha mulher. Fui para o hospital. Ficava umas 3 horas e depois era liberado”
(Valter, entrevistado em 24 jul. 2002). Ou ainda, como lembra Joana:
Meu sofrimento começou quando eu comecei a esconder a bebida,
minha filha achava e jogava fora. Eu já tinha compulsão muito forte
pelo álcool. Tinha que correr para comprar outra, mudar de lugar e
ela sempre achando e jogando fora. Até que um dia eu consegui achar
um esconderijo que ela jamais encontraria, como de fato nunca
encontrou. Comecei a esconder a bebida dentro da minha bolsa
(Joana, reunião de recuperação aberta, 22 maio 2002).
As mentiras são um efeito do alcoolismo que traduz a “duplicidade” vivida pelo
dependente. Mente-se aos familiares e aos médicos, escondem-se as “garrafas”
compradas, em uma tentativa de esconder que ainda se continua a beber.
Na fala dos AAs existe, portanto, o reconhecimento de que, bebendo, o “eu” se
manifesta na forma de um “outro”. Uma vez alcoolizado, o alcoólico não sabe mais
quem é. Ou seja, ele vive uma espécie de “estranhamento de si mesmo”, não se
reconhecendo em suas ações. O alcoólico...
Faz coisas absurdas, incríveis e trágicas, quando bebe. É um
verdadeiro “Dr. Jeckyll and Mr. Hyde” [O médico e o monstro, de
Stevenson]
97
. Raramente está só “um pouco alto”. Está sempre
bêbado, num grau maior ou menor de loucura. Seu temperamento,
quando bebe, lembra muito pouco sua verdadeira natureza
(Alcoólicos Anônimos, 1994: 45 – grifos meus).
97
Como lembra Fainzang (1996: 58), a imagem do Dr. Jekyll e Mr. Hyde é freqüentemente evocada pelos
membros das associações de ex-bebedores, para expressar as mudanças de seus comportamentos durante
o alcoolismo ativo. Com efeito, o livro de Stevenson narra a história de um médico — o Dr. Jekyll —,
que, após beber uma “poção”, tem seu comportamento e sua personalidade tão transformados que se torna
um “outro” Mr Hyde, que, em tudo, contraria sua “natureza” original. Vale retomar a célebre
passagem do clássico de Stevenson (1995: 83), na qual a personagem, Dr. Jekyll, após beber a “poção”,
descreve o “outro” lado de si mesmo, representado por Mr. Hyde: “O lado maléfico de minha natureza,
para o qual eu agora havia transferido o poder de se manifestar, era menos robusto e menos desenvolvido
do que o bom, que eu acabava de destituir. No curso de minha vida, que havia sido, afinal, em nove partes
sobre dez, uma vida de esforço, virtude e controle, ele tinha sido menos exercitado e muito menos
exaurido. Daí, acho eu, deu-se que Edward Hyde era muito menor, mais leve e mais jovem do que Henry
Jekyll. Do mesmo modo com que o bem resplandecia no semblante de um, o mal estava inscrito franca e
evidentemente no rosto do outro. Além disso, o mal (que eu devo ainda acreditar ser o lado letal do ser
humano) havia deixado naquele corpo uma marca de deformidade e decadência. Ainda assim, quando
olhei para aquela imagem vil no espelho, não tive consciência de nenhuma repugnância, mas sim de uma
boa acolhida. Este também era eu”.
183
O alcoólico vive um conflito interior, uma luta interna entre duas frações do
“eu”, uma duplicidade interior; de maneira que existe um “outro em si mesmo” que ele
não consegue controlar. O “eu” aparece aqui cindido, dilacerado, dividido em duas
metades em conflito. O alcoólico, sob efeito do álcool, muda seu comportamento,
transformando-se no seu contrário: um “outro”, que em nada lembra seu caráter original
ou sua “verdadeira natureza”. Ou, nas palavras de Fainzang, “o alcoólico é um outro
ser, invertido em relação à sua natureza original” (1996: 65 – trad. minha), quando está
sob o efeito da bebida alcoólica. O alcoolismo, ao obliterar a “verdadeira natureza” do
alcoólico, faz com que ele viva em meio à “dissimulação” e à “manipulação”, cujos
emblemas são, por exemplo, as constantes mentiras ditas para esconder a própria
doença.
Na fase ativa de seu alcoolismo, o alcoólico encontra-se em meio a uma relação
conflituosa entre duas frações do “eu”: o “eu sóbrio” e o “eu bêbado” (percebido como
um “outro”). E é no interior desse regime de alteridade que se opera a construção
simbólica da pessoa dentro do grupo, estabelecendo os contornos do que podemos
chamar de uma “teoria nativa da pessoa”, que pode ser sintetizada na maneira como os
AAs se identificam ao iniciarem suas “partilhas”: “Meu nome é Mauro, um doente
alcoólico em recuperação, que freqüenta essa reunião para deixar de ser aquele
bêbado, aquele cachaceiro que eu era. É como se tivéssemos uma passagem; uma
“conversão” do “eu bêbado” para o “eu sóbrio”.
Seja DAR o “doente alcoólico em recuperação”, ES o “eu sóbrio” e EB o “eu
bêbado”, a teoria nativa da “pessoa alcoólica” pode ser expressa na seguinte fórmula:
DAR = ES - EB
Isso condiz com a crença arraigada na indivisibilidade do eu, assentada na
ideologia moderna do individualismo. Aos olhos dos AAs, a nova pessoa tende a manter
a unicidade do “eu”, a ser “coerente” consigo mesma. Na teoria nativa, a nova pessoa,
tomada pela expressão “doente alcoólico em recuperação”, se constrói em torno da
passagem do “tempo do alcoolismo ativo” para o “tempo da sobriedade”, a partir de
uma transição do passado, em que prevalecia a imagem de um “eu bêbado/cachaceiro”,
para o presente, quando se assiste à presença dominante de um “eu sóbrio”, garantindo,
assim, a “unificação” da personalidade.
184
Tudo se passa como se os AAs estabelecessem um corte temporal entre um
“antes”, um tempo pretérito — “o tempo da ativa”, “dos velhos caminhos”, “das velhas
amizades”, “dos velhos hábitos”, “o tempo da onipotência e da manipulação”, em que
era favorecido o desenvolvimento de uma doença que sempre esteve presente, latente, à
espera de se manifestar —, e um “depois”, um tempo presente — “o tempo da
sobriedade”, “o tempo das reuniões”, “da prática dos Doze Passos e das Doze
Tradições”, “o tempo de se evitar as velhas amizades, os velhos caminhos e os velhos
hábitos”, “o tempo da humildade e serenidade” — enfim, um “tempo do agora”, no qual
se deve renunciar “só por hoje” ao contato com o álcool.
7.4 A fabricação da “pessoa alcoólica”
Partimos, no início deste trabalho, em busca da compreensão da articulação
existente entre o par alcoolismo/doença e da definição da noção de pessoa no modelo
terapêutico de A.A.. Para isso, adentramos no universo social construído pelos membros
da irmandade dos Alcoólicos Anônimos, participando de seus rituais terapêuticos,
particularmente de suas reuniões de recuperação.
Passamos a conviver na companhia daqueles que se identificam como doentes
alcoólicos em recuperação, buscando entender esse outro universo de significação
construído em torno da “experiência do alcoolismo”, entendida como uma “doença
crônica e fatal” capaz de levar seu portador ao chamado “fundo do poço”, isto é, às
perdas relacionais, sobretudo, na esfera familiar e no trabalho.
Nesse encontro, foi possível compreender o problema do alcoolismo a partir do
“ponto de vista do nativo”, desvendando os processos de construção de significado do
fenômeno por ele vivido. Em A.A., como destacado nos capítulos 5 e 6, o alcoolismo é
entendido como uma doença do indivíduo e, ao mesmo tempo, da família, que se
propaga pelo “contágio” social.
A estratégia terapêutica se baseia na construção da identidade de “doente
alcoólico em recuperação”, a partir de mecanismos simbólicos colocados em prática
para dar conta da “doença alcoólica”, entre os quais se destacam a noção de “fundo do
poço” e a questão do anonimato.
185
O modelo de A.A. cria, assim, as condições necessárias para a construção de
uma ordem que possibilita ao alcoólico atribuir e organizar um sentido à sua
experiência, apreendida, agora, como doença. Nas reuniões do grupo, formula-se um
discurso, sobre o alcoolismo e seus efeitos “físicos” e “morais”, que permite aos AAs se
reconhecerem nas experiências vividas, que são mutuamente compartilhadas.
A irmandade opera, então, como uma ordem moral no interior da qual a
experiência da “anomalia” adquire um sentido. Como lembra Douglas (2001: 58):
“Existem várias maneiras de lidar com as anomalias. Negativamente, podemos ignorá-
las, percebê-las; ou, ainda, percebê-las e condená-las. Positivamente, podemos enfrentar
deliberadamente a anomalia e tentar criar uma nova ordem do real, onde a anomalia se
possa inserir.”
Quando falam do mal que os aflige, os AAs falam, sobretudo, dos conflitos
enfrentados com os valores e as regras da vida social, nas quais estão envolvidos. A fala
da doença é uma fala sobre si mesmo, constituindo uma referência simbólica
fundamental, uma linguagem que permite organizar e dar um sentido à experiência
vivida, ao mesmo tempo em que delineia os contornos de si mesmos entendidos como
“doentes alcoólicos” e se fabrica a noção pessoa dentro do grupo.
Mas quais são os contornos dessa “pessoa alcoólica” fabricada dentro da
irmandade? Qual a relação entre a noção de pessoa produzida dentro do modelo de A.A.
e a ideologia do individualismo moderno? Ora, se é certo que a “teoria nativa” enfatiza
o aspecto individualista da noção de pessoa, reproduzindo em seus contornos o “valor
indivíduo”, característico do campo ideológico moderno, a partir dos dados
etnográficos, podemos estabelecer uma teoria antropológica da “pessoa alcoólica” que
efetivamente contraste com a ideologia do individualismo, conferindo, assim, uma
especificidade ao modelo terapêutico de A.A.. Para tanto, retomemos um pouco mais a
maneira como os AAs descrevem sua trajetória etílica:
Quando bebi pela primeira vez, eu achei ter tomado um estimulante.
Houve uma reação muito forte em mim. Uma troca de personalidade,
uma troca de comportamento. Eu me senti um outro homem.
Inicialmente, eu parecia ter descoberto uma forma de vida que me
agradava. Foi uma euforia tremenda. Eu era tímido e eu me livrei da
timidez. Me soltei perante a sociedade. Me desinibi por completo.
Essa foi uma fase que não durou muito não. Logo vieram as
conseqüências, e o alcoolismo foi aumentando e veio uma segunda
fase do alcoolismo, que foi a falta de personalidade. Eu dependia
muito do meu estado de espírito, dependia muito da quantidade que
186
eu bebia, do lugar que eu estava eu agia de uma maneira. Eu me
tornei um homem só com quatro, cinco, oito, dez personalidades. Me
tornei um homem sem personalidade fixa. O alcoolismo foi me
tirando a personalidade (João, entrevistado em 24 ago. 2002).
A fala de João apresenta os dois regimes de alteridade vinculados ao consumo
de álcool, que ajudam a apreender os novos contornos da teoria da “pessoa alcoólica”
construída dentro do grupo. Em um primeiro momento, trata-se de um regime de
alteridade produtivo, no qual o ato de beber conduz à troca com o “outro” e, portanto, à
sociabilidade (eu outro). A exemplo dos “convivas” citados por Lévi-Strauss (cf.
Capítulo 2), que reforçam seus laços à medida que trocam o vinho à mesa, o álcool atua
como um desinibidor que leva ao “outro”, fortalecendo os laços sociais. Em uma
reunião de recuperação, João narra nos seguintes termos as reações quando de seu
“primeiro gole”:
Ao ter contato com a bebida alcoólica, inicialmente, eu tive diversas
reações. Em uma das reações que eu tive, eu pensei ter tomado um
estimulante tamanha foi a mudança que o alcoolismo me fez. Eu era
aquele cara tímido, aquele cara sossegado e rapidamente fiquei
falante, fiquei um cara completamente diferente. Ali tinha se
manifestado a mudança no comportamento do ser humano, no
momento em que eu tomei aquele primeiro gole (João, reunião de
recuperação aberta, 31 ago. 2002).
O álcool tem um efeito estimulamente, de maneira que o bebedor se sente
“eufórico”, superando sua “timidez” (“eu me soltei perante a sociedade”) e
estabelecendo uma relação de reciprocidade, fundamental para construção de sua
identidade (“Eu me senti um outro homem”; “Ali tinha se manifestado a mudança no
comportamento do ser humano”).
Em um segundo momento, trata-se de um regime de alteridade destrutivo, no
qual o álcool e sua ingestão são identificados e percebidos na experiência como
“doença” resultante da progressão do alcoolismo. Com efeito, o ato de beber conduz
agora ao “outro em si mesmo” (eu = outro), que enfraquece a troca, colocando o
bebedor em uma espécie de curto-circuito simbólico, no qual ele passa a simbolizar a
totalidade sozinho, perdendo os laços que o ligavam a seu grupo social, isto é, ele perde
os amigos, a família e o trabalho, ao deixar de se integrar, podendo chegar mesmo à
“loucura” ou à “morte prematura”.
187
Assiste-se a um dilaceramento do “eu” (“Eu me tornei um homem só com
quatro, cinco, oito, dez personalidades”), isto é, à fragmentação do sujeito, na qual
“vários eus” passam a disputar a primazia de uma só pessoa, ameaçando sua integridade
(“Me tornei um homem sem personalidade”). Essa fragmentação contraria por
completo a idéia, de forte tradição ocidental, da indivisibilidade do indivíduo. Diante
desse fato empírico, o processo de fabricação da “pessoa alcoólica” pode ser
relativizado e pensado, a partir da seguinte expressão:
DAR = ES + EB
A noção de pessoa, aqui, é pensada em meio ao dilaceramento e à fragmentação
do sujeito, provocados pela doença, acentuando o estranhamento de si mesmo (“O
alcoolismo foi me tirando minha personalidade”). Esse, inclusive, é o sentido presente
na imagem, citada acima, do conflito entre o Dr. Jekyll e Mr. Hyde, que ilustra o
comportamento do alcoólico na ativa. O “doente alcoólico em recuperação” aparece,
portanto, fracionado entre o “eu sóbrio” e o “eu(s) bêbado(s)”, vivendo um conflito que
compromete a troca com o outro, de maneira que ele passa a negar a alteridade exterior,
fechando-se no círculo da dependência.
Mas, como o modelo terapêutico de A.A. possibilita a reconstrução subjetiva de
seus membros? Que processo simbólico, subjacente a esse modelo, permite ao alcoólico
recuperar os laços sociais, notadamente na família e no trabalho?
O modelo possibilita a reconciliação dos dois regimes de alteridade — um
produtivo e outro destrutivo — através da compreensão da troca como o fundamento
tanto da sociabilidade como da recuperação do cuidado de si e das relações sociais
perdidas no tempo do alcoolismo ativo. A troca vivida dentro do grupo torna possível a
fabricação da “pessoa alcoólica”, a partir da construção simbólica de uma fração do
“eu” — o “eu bêbado” — como o “outro bêbado” —, criando assim a alteridade
necessária em todo processo identitário —, que é internalizada e compartilhada por
todos os membros de A.A. O “eu bêbado” passa por um processo de objetivação,
apreendido a partir dos “sintomas” físicos e morais da doença, ganhando, assim, um
“corpo” e um “espírito” doentes.
A alteridade inscrita simbolicamente nas falas de cada um dos AAs funda a
possibilidade de se pensar numa noção de pessoa que passa agora a incorporar o “outro”
188
no seu interior. Com isso, a alteridade é internalizada, reinstaurando, dentro de cada um,
a cisão entre eu/outro — o fundamento para a troca. Vive-se uma “troca” do doente com
o próprio corpo doente, uma espécie de “reciprocidade negativa”, a criação de um
“amigo formal” que lembra, a todo momento, ao “eu sóbrio”, que ele não pode beber,
devendo manter-se sóbrio. Por isso, o “primeiro gole” é fatal. Ele restaura uma espécie
de “dádiva venenosa”, relação que é estabelecida com o próprio corpo, quebrando a
“reciprocidade negativa” estabelecida com esse “outro bêbado” e devolvendo o
alcoólico ao círculo da dependência, no qual ele, fragmentado em vários “eus”, volta a
simbolizar a totalidade, sozinho, rompendo a comunicação com o próprio grupo e,
particularmente, com a família.
Pode-se afirmar, assim, que o modelo terapêutico de A.A. não visa apenas à
individualização do processo saúde/doença. Trata-se um processo simbólico de
construção da pessoa, no qual, de um lado, a fração do “eu” considerada doente — o
“outro bêbado” — é individualizada, a partir dos “sintomas” físicos e morais da doença;
e, de outro, a fração sadia do indivíduo — o “eu sóbrio” — é compartilhada por todos
os membros do grupo, sendo reconhecida como o “eu verdadeiro” — a “verdadeira
natureza” — do alcoólico.
Nessa perspectiva, a reconstrução subjetiva dos membros do grupo só ocorre
quando se instaura a alteridade no interior de si mesmo. É necessário, portanto,
reconhecer esse “outro bêbado” dentro de si mesmo, diferenciando-o, contrastivamente,
da fração saudável do “eu” — o “eu sóbrio”. Em suas falas, os AAs têm um modo
muito particular para se referir a esse “outro bêbado”, chamando-o de o “bêbado seco”.
Essa categoria nativa é fundamental dentro do modelo terapêutico da irmandade, pois
sintetiza os chamados “defeitos de caráter” que fazem parte do comportamento do
alcoólico e que devem ser avaliados e modificados através do auto-escrutínio.
Para os AAs, o alcoólico que pára de beber e não altera suas atitudes comporta-
se como um “bêbado seco”, isto é, um indivíduo que está em abstinência, mas continua
com os mesmos comportamentos dos tempos do alcoolismo ativo. Nas palavras do co-
fundador de A.A., Bill Wilson:
É evidente que a harmonia, a segurança e a eficiência futuras de A.A.
dependerão muitíssimo da manutenção de uma atitude passiva em
todas as nossas relações públicas. Essa é uma tarefa difícil porque, em
nossos dias de bebedeira, éramos inclinados à zanga, à hostilidade, à
revolta e à agressão. Mesmo estando agora sóbrios, os velhos padrões
189
de comportamento ainda estão dentro de nós até certo ponto, prontos
para explodir com qualquer boa desculpa (Alcoólicos Anônimos,
1995: 56 – grifos meus).
A categoria nativa do “bêbado seco” diz respeito àquele indivíduo que, embora
em abstinência, acredita que não precisa de ajuda e continua reproduzindo os
comportamentos da ativa
98
. Ela representa a fração “doente” de um “eu” que busca
alcançar sobriedade, mas que não pode ser extirpada, manifestando-se através dos
“velhos padrões de comportamento” que ainda se encontram latentes “dentro” do
alcoólico. Paulo assim sintetiza essa idéia:
Sem modificação não há recuperação. Para haver recuperação há a
necessidade de uma modificação. E o bêbado seco é aquele que só
parou de beber, os comportamentos e as atitudes dele continuam
todos como de um bêbado [...] É aquele sujeito que simplesmente
parou de beber. O A.A. requer de mim modificação em todos os
sentidos. Com o bêbedo seco não houve uma mudança [...] Existe uma
chave, que é o símbolo da boa vontade, mas ela não abre de fora,
essa chave é interna, pois é dentro de você que tem que abrir, que é
para fazer uma limpeza, para que os velhos comportamentos não
venham a se manifestar. O bêbedo seco não fez esse trabalho interno,
ele só parou de beber. Se fosse só para eu parar de beber em A.A., eu
preferia ter morrido bêbado (Paulo, entrevistado em 22 de jul. 2002).
A recuperação do doente alcoólico depende, assim, de uma “modificação” em
seu comportamento, impedindo que as velhas atitudes, características do “bêbado seco”,
tornem a vir à tona. É necessária uma “modificação interna”, expressa através da
imagem da “chave”, o símbolo da “boa-vontade” que permite uma abertura por dentro.
98
Um exemplo, ao mesmo tempo sugestivo e curioso, sobre a síndrome do “bêbado seco”, foi sugerido
pela professora Katerine van Wormer (2002), ao analisar a biografia e os discursos do presidente
americano George W Bush, notadamente sobre a guerra do Iraque e o combate ao terrorismo
internacional. Como é sabido, Bush é alcoólatra e deixou de beber depois de freqüentar o A.A.; mas, com
o passar do tempo, parou de participar regularmente das reuniões de recuperação. Como vimos no modelo
terapêutico da A.A., os dependentes do álcool, mesmo que não façam uso do álcool, continuam sendo
alcoólatras, pois o alcoolismo é uma doença incurável. Logo, o dependente deve praticar o programa dos
Doze Passos e das Doze Tradições e freqüentar as reuniões de recuperação pelo resto de sua vida. Se
deixar de praticar o programa, o alcoólico pode desenvolver o comportamento do “bêbado seco”, cujas
características Wormer (2002 :2 – trad. minha) descreve: “Os traços do bêbado seco consistem em: auto-
estima e pomposidade exageradas, impaciência, comportamento infantil, comportamento irresponsável,
irracionalidade, projeção, reações exageradas”. Para Wormer (2002: 7 – trad. minha), o presidente
americano apresenta “claramente todos esses traços [...] Bush manifesta todos os padrões clássicos do que
os alcoólicos em recuperação chamam de ‘o bêbado seco’”. De fato, sem negligenciar outras variáveis
importantes e fundamentais para se entender o cenário internacional, tais como de ordem geopolítica e
econômica, a leitura de Wormer sugere um interessante aporte aos estudos sobre as relações entre a
subjetividade e política.
190
Somente dessa maneira o alcoólico pode fazer uma “limpeza” dentro de si, para que os
velhos comportamentos não voltem a se manifestar.
É importante ressaltar o peso que Paulo dá ao significante “modificação”, cujo
significado é o de “alterar” e “mudar” os “velhos comportamentos”, que nunca são
completamente eliminados, mas continuam a fazer parte das ações daquele que, muito
embora não faça mais uso do álcool, ainda se comporta como nos tempos da ativa.
É assim que se redefinem os contornos da noção de pessoa no interior de um
processo simbólico, que os AAs constroem, a partir da fabricação da identidade do
“doente alcoólico em recuperação”, composta pela “convivência” entre duas frações do
“eu”: o “eu sóbrio” e o “bêbado seco”. Por isso, o indivíduo doente não pode se
esquecer de que deve evitar o “primeiro gole”. Há sempre o risco de o “bêbado seco”
vir à tona, com seus comportamentos irascíveis e sem controle. Em outras palavras: para
que o indivíduo doente mantenha sua sobriedade, é preciso conviver com o “bêbado
seco” que há dentro dele, deixando-o adormecido e sob controle.
É através da categoria “bêbado seco” que os AAs significam a alteridade que
trazem dentro si, dando a ela uma morada em seu corpo e espírito, considerados
doentes, ao mesmo tempo em que lhe atribuem uma série de qualidades morais que
exacerbam o individualismo, diferenciando-a das qualidades do “eu sóbrio”. A seguir,
pode-se visualizar algumas qualidades distintivas das duas frações que compõem a
“pessoa alcoólica”:
Quadro 9 – Qualidades que compõem a “pessoa alcoólica”
Outro bêbado (“bêbado seco”) Eu sóbrio
Egocentrismo Altruísmo
Orgulho Humildade
Hostilidade Amizade
Ressentimento Ajuda
O modelo terapêutico de A.A. isola a fração do indivíduo que se expressa pela
doença, de maneira a reordenar as qualidades características da “pessoa alcoólica”,
alocando-as diferencialmente nas duas frações — doente e sadia — do “eu”. Com
efeito, desenham-se os contornos de uma “pessoa alcoólica”, na qual as qualidades
“negativas” do individualismo são concentradas na fração considerada doente (outro
191
bêbado/bêbado seco) enquanto as qualidades “positivas” são projetadas na fração sadia
do “eu” (eu sóbrio), que passa a ser reconhecida como o “verdadeiro eu”. Assim, ao
invés do “egocentrismo” típico do “bêbado seco”, o “eu sóbrio” cultiva o “altruísmo”;
ao invés do “orgulho”, ele cultiva a “humildade”; ao invés da “hostilidade”, ele cultiva a
“amizade”; e, ao invés do “ressentimento”, o “eu sóbrio” pratica a “ajuda” ao outro
alcoólico que ainda sofre.
Essa é a novidade que os AAs trazem, juntamente com seu programa de
recuperação do alcoolismo, revelando um modo particular de desenhar os contornos da
“pessoa alcoólica”, a partir de um modelo terapêutico que delimita e isola a fração
doente do indivíduo, dotando-a da objetividade necessária para seu controle, ao mesmo
tempo em que faz uma espécie de crítica aos fundamentos da modernidade, através da
instauração, de forma definitiva, da alteridade no interior do próprio sujeito, que deve
conviver com o outro dentro de si.
Seja BS o “bêbado seco”, o modelo de construção da “pessoa alcoólica” pode,
enfim, ser definido pela seguinte fórmula:
DAR = ES +BS
O modelo, portanto, não reunifica a subjetividade. Ele abre a possibilidade de
sua reconstrução através do gerenciamento de seu fracionamento, permitindo aos
indivíduos orientarem suas ações tendo em vista sua recuperação, o que só pode ser
feito graças à ajuda mútua dentro do grupo. É através do gerenciamento das frações do
“eu” que a “abstinência” e a “sobriedade” tornam-se valores diferenciais, que passam a
definir o sentido das ações dos membros da irmandade, visando à sua recuperação.
A recuperação do alcoólico significa, então, o reconhecimento desse “outro
dentro si mesmo” (“outro bêbado” ou o “bêbado seco”). Somente assim o alcoólico
pode cuidar de si mesmo e religar os fios que haviam sido rompidos na vida social,
notadamente com a família e o trabalho:
O A.A. dá condição de eu reestruturar minha vida. Quando se fala da
recuperação de um alcoólatra, não é a recuperação de uma só
pessoa, é a recuperação da família. Com o bêbado seco não há essa
possibilidade, pois ele não fez a reparação dos danos causados aos
outros (Paulo, entrevistado em 22 jul. 2002).
192
A construção simbólica da “pessoa alcoólica” opera a convivência entre as duas
frações do “eu”, tornando possível estabelecer uma interface entre os planos físico e
moral da pessoa, de maneira que o alcoólico pode cuidar de si mesmo, ao mesmo tempo
em que repara os “danos causados aos outros”, readquirindo a responsabilidade pelo
cuidado de si mesmo e de sua família. O ex-bebedor readquire, assim, sua capacidade
de DAR — fundamento da reciprocidade —, reconhecendo-se como um doente
alcoólico em recuperação, ao mesmo tempo em que reassume sua posição de “chefe de
família”, isto é, daquele que dá “teto, alimento e respeito”, responsabilizando-se pelo
provimento de sua família.
Assim caminham os membros de Alcoólicos Anônimos: no dia-a-dia, evitando
“só por hoje” o “primeiro gole”. A cada noite, nas reuniões de recuperação, os AAs
trocam uns com os outros palavras e abraços, na celebração de mais um dia de
sobriedade, reafirmando sua identidade de “doente alcoólico em recuperação”, ao
mesmo tempo em que define os contornos de uma noção particular de pessoa. É assim
que eles edificam, um dia de cada vez, uma efetiva cultura de recuperação, no interior
da qual cuidam de si mesmos, (re)significam suas experiências e resgatam seus laços
familiares, na esperança de alcançarem a sobriedade serena.
193
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Certa vez, Paulo me falou sobre o que chamou do “segredo” do programa de
recuperação de A.A.: “No grupo, nós damos, de graça, aquilo que de graça nos é
dado”. Ele se referia à troca de experiências feitas nas reuniões, nas quais os AAs se
ajudam uns aos outros, de maneira gratuita, a manterem a sobriedade. No grupo, os
alcoólicos se doam uns aos outros, compartilhando suas experiências, de modo que
ajudar o outro significa retribuir o que de graça se recebe: ninguém melhor que um
alcoólico para ajudar o alcoólico que ainda sofre, porque, ao fazê-lo, ele estará ajudando
a si mesmo, confirmando e mantendo sua sobriedade.
Paulo sintetiza, assim, o princípio básico sobre o qual se assenta todo o modelo
terapêutico da irmandade, qual seja, o princípio da reciprocidade, a troca, envolvendo o
dar, o receber e o retribuir das experiências vividas, que possibilita a recuperação da
auto-estima e o rearranjo dos laços sociais perdidos nos tempos do alcoolismo ativo.
Todos sempre “devem”, a si mesmos e ao grupo. A troca é, aqui, o fundamento da
sociabilidade, uma forma privilegiada de recuperação, através da qual os alcoólicos
compartilham entre si suas experiências etílicas, reconhecendo-se como doentes e
terapeutas de seu próprio mal. Não por acaso, os AAs entrevistados se referem ao grupo
como uma “família”, dentro da qual todos mantêm entre si relações de lealdade e de
reciprocidade. É justamente por eles terem a troca como fundamento de sua recuperação
que a ajuda que se prestam um ao outro representa, ao mesmo tempo, uma ajuda a si
mesmos, reforçando a própria sobriedade.
A troca de experiências contribui para criar uma memória coletiva, um
repertório comum, que fortalece a adesão ao modelo terapêutico e a conseqüente
disposição de se evitar o uso do álcool. Em vez de ficar no esquecimento, a sobriedade é
mantida pela lembrança sempre repetida das desventuras com a bebida, vividas por cada
um dos membros do grupo. Os AAs cultivam, assim, um inventário de experiências
comuns, que serve de antídoto à tentação do “primeiro gole”.
194
Através da mútua ajuda praticada durante as reuniões, os alcoólicos tomam para
si a responsabilidade pelo controle da “doença alcoólica”. A fala de cada membro é um
fio que se entrelaça aos outros na construção de uma verdadeira rede de reciprocidade,
que serve de referência ao conjunto da irmandade. Dentro de um espaço e de um tempo
ritualizados, os membros do grupo falam em nome de si mesmos e de toda a irmandade,
enunciando uns aos outros as “boas palavras” que podem livrá-los, “só por hoje”, do
contato com a bebida alcoólica.
A irmandade opera, para usar uma expressão de Mauss (2001b: 151), como um
“sistema de prestações totais”, isto é, um sistema no interior do qual seus membros
criam entre si laços de reciprocidade, na medida em que falam uns aos outros sobre o
mal que buscam evitar. Trata-se de um sistema simbólico, dentro do qual os AAs se
reconhecem como “doentes alcoólicos em recuperação”: indivíduos doentes que trazem
o mal dentro de si. O modelo de A.A. instaura um peculiar regime de alteridade a partir
de um mecanismo de incorporação da doença, que passa a ser entendida como a
“alteridade” presente no corpo de cada alcoólico. Jorge enuncia nos seguintes termos
esse processo de “incorporação” da doença:
Eu só olho o grupo na minha frente. É uma coisa gostosa. É um Poder
Superior maravilhoso que me traz aqui todos os dias. Eu não consigo
mais viver sem a sala de A.A.. Na hora da reunião, tem uma coisa
que incorpora em mim. Eu não tenho vontade de beber, o que é
importante. Hoje eu sou um cara feliz, porque eu não bebo cachaça
(Jorge, reunião de recuperação aberta, 14 fev. 2002).
Os AAs constroem uma rede de reciprocidade, no interior da qual atualizam sua
condição de doentes. Eles só podem assumir a doença alcoólica para si mesmos se esta
for presentificada e reafirmada diante dos outros alcoólicos durante as reuniões. Não é
por acaso, então, que Jorge diz que na hora da reunião “tem uma coisa” que o
“incorpora”, que passa a fazer parte dele. Trata-se do reconhecimento da doença, da
internalização da condição de doente, reafirmada cotidianamente dentro do grupo.
Nas reuniões e nos rituais vivenciados na irmandade, assiste-se à construção da
identidade de “doente alcoólico em recuperação”, através de um processo simbólico, no
qual a doença é percebida como um “outro” cuja morada é o próprio corpo do alcoólico.
O indivíduo encontra, dessa maneira, um lugar para o corpo e para o espírito, ambos
enfermos, reconciliando-se consigo mesmo e com seus familiares. Esse é o passo
195
fundamental dado pelos AAs na fabricação da “pessoa alcoólica”, cujos contornos são
delineados a partir do reconhecimento da doença como alteridade, a fim de estabelecer
uma troca com o próprio corpo individual, mas que é coletivizado nas histórias de vida
compartilhadas todos os dias.
É a partir do reconhecimento do “outro” (a doença alcoólica) dentro de si mesmo
que o alcoólico pode reatar os laços sociais desfeitos no “tempo da ativa”. Pois, se o
alcoolismo é uma “doença do indivíduo”, os AAs também o consideram como uma
“doença da família”, como uma enfermidade física e moral que abarca a totalidade da
pessoa, afetando todos aqueles que convivem com o alcoólico, sobretudo seus
familiares.
Dessa maneira, a fala da doença articula e mobiliza os elementos característicos
do universo social no qual os membros do grupo estão inseridos, configurando uma
linguagem através da qual suas aflições e suas perdas relacionais são traduzidas, ao
mesmo tempo em que define uma imagem específica de si mesmos como “doentes
alcoólicos”. A linguagem da doença envolve a vida dos alcoólicos em sua totalidade
física e moral, permeando a construção de sua identidade social de pai/mãe, esposo(a) e
trabalhador(a).
Em recuperação, os AAs podem reconstruir sua identidade social, atribuindo um
sentido à experiência da doença e definindo uma compreensão própria de si mesmos
como “doentes alcoólicos em recuperação”, indivíduos que reconhecem humildemente
terem sido “derrotados pelo álcool” e que são incapazes de dar conta do alcoolismo
sozinhos, necessitando, por isso, de ajuda.
Definem-se, assim, os contornos da “pessoa alcoólica”, que deve conviver por
toda a vida com um “outro dentro de si mesmo”. Os AAs têm uma maneira própria para
se referir a essa alteridade interior, reconhecida através da categoria “bêbado seco”.
Através de um mecanismo ritual de estranhamento, no qual o alcoólico não se
reconhece mais em suas ações, o modelo de A.A. isola essa fração doente do próprio
“eu” (o bêbado seco), oferecendo uma ordem moral no interior da qual a doença
alcoólica pode ser controlada. O modelo terapêutico de A.A. não possibilita a
reunificação da subjetividade, mas sim permite um gerenciamento dessa cisão interior,
convertendo a fração doente de si mesmo na alteridade necessária para a reafirmação de
sua própria identidade.
196
Essa perspectiva ratifica a crítica maussiana à idéia de indivíduo como realidade
a priori, ao afirmar a especificidade da “pessoa alcoólica” fabricada dentro do regime
de alteridade elaborado na irmandade, notadamente a partir da construção da identidade
do “doente alcoólico em recuperação”. Mais do que um resultado da individualização
do processo saúde/doença, A.A. é um constructo simbólico que atua no registro da
subjetivação da doença, permitindo ao alcoólico reconstruir sua identidade e, por essa
via, delinear os contornos de uma nova construção subjetiva.
O modelo da irmandade assume, assim, toda a sua especificidade, relativizando
a ideologia do individualismo através de um processo de fabricação da pessoa ligado à
construção social e simbólica da identidade de “doente alcoólico”, de maneira que o
controle da doença se faz através de sua incorporação como uma alteridade fundamental
na construção identitária.
Com isso, o modelo de A.A. permite o gerenciamento do fracionamento interno
ao sujeito, possibilitando ao “doente alcoólico em recuperação” manter a “fração”
doente que existe dentro de si sob controle. Dessa maneira, a “abstinência” e a
“sobriedade” podem assumir a posição de valores capazes de orientar as ações dos AAs,
tendo em vista a recuperação.
Mas a recuperação de um alcoólico significa também a recuperação de seus
laços familiares. A construção da pessoa também envolve o resgate das identidades
sociais de pai/mãe, esposo(a) e trabalhador(a), articulando os planos físico e moral da
vida do alcoólico. Assim, se o modelo terapêutico da irmandade é voltado para a
recuperação do indivíduo considerado doente, visando restabelecer sua responsabilidade
no cuidado de si, através da abstinência em relação ao álcool, a fala da doença elaborada
em seu interior enfatiza a recuperação das “perdas relacionais” vividas, sobretudo, na
esfera familiar.
É assim que, todos os dias, os AAs celebram a sobriedade e identificam-se como
“doentes alcoólicos em recuperação”, (re)desenhando, dessa maneira, os contornos da
“pessoa alcoólica” dentro de um modelo terapêutico no qual relacionar-se com o outro
significa, fundamentalmente, um voltar-se para si mesmo.
197
BIBLIOGRAFIA
ADAM, Philippe e HERZLICH, Claudine (1994). Sociologie de la maladie et de la
médicine. Paris: Nathan. Edição em língua portuguesa: ADAM, Philippe e
HERZLICH, Claudine. Sociologia da doença e da medicina. trad. Laureano Pelegrin,
Bauru, SP: EDUSC, 2001.
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS (s/d) Uma democracia que deu certo, folder para
divulgação.
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS (1994). A história de como milhares de homens e
mulheres se recuperaram do alcoolismo. São Paulo: CLAAB – Centro de
Distribuição de Literatura de A.A. para o Brasil.
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS (1995). Na opinião do Bill: o modo de vida de AA. São
Paulo: CLAAB – Centro de Distribuição de Literatura de AA para o Brasil.
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS (1996). O Grupo de AA: onde tudo começa. São Paulo:
JUNAAB - Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos.
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS (2000a) Reflexões diárias , São Paulo: JUNAAB - Junta
de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos.
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS (2000b). Nossa grande reunião Brasileira. Vivência
Revista Brasileira de Alcoólicos Anônimos, São Paulo, n. 63, jan-fev, p.10-13.
ALCOOLICOS ANÔNIMOS (2001). Os doze passos e as doze tradições. São Paulo:
JUNAAB – Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos.
ALCOÓLICOS ANÔNIMOS (2002). Doze maneiras de usar a Vivência. Vivência –
Revista Brasileira de Alcoólicos Anônimos, São Paulo, n.78, jul-ago., p.50-51.
ALVES, Paulo César e RABELO, Miriam Cristina (1999). Significação e metáforas na
experiência da enfermidade. In. RABELO, Miriam Cristina; ALVES, Paulo César; e
198
SOUZA Iara Maria, Experiência da doença e narrativa. Rio de Janeiro: FIOCRUZ,
p.171-185.
ANCEL, Pascale e GAUSSOT, Ludovic (1998). Alcool et alcoolisme: pratiques et
representations. Paris: L’Harmattan.
ANTZE, P. (1987). Symbolic Action in Alcoholics Anonymous, In: DOUGLAS, Mary
(ed.), Constructive drinking: perspectives on drink from anthropology. Cambridge
University Press/Maison dês Sciences de l’Homme, 149-181.
BARROS, L. F. (2001). A alquimia dos grupos anônimos de auto-ajuda. Tese
(Doutorado) Universidade de São Paulo. 2.v.
BATESON, Gregory (1977). La cibernétique de “soi”: une théorie de l’alcoolisme.
Vers une écologie de l’esprit. 1, Paris: Seuil.
BERNAND, Carmen (2000). Boissons, ivresses et transitions. Revue Autrement.
n.191, 13-53, février.
BLUMBERG, Leonard (1977). The ideology of a therapeutic social movement:
alcoholics anonymous. Journal of Studies on Alcohol. v. 38, n.11, p.2.122-2.143.
BOLTANSKI, Luc (2004). As classes sociais e o corpo. 3 ed., (trad.) Regina A
Machado, São Paulo: Paz e Terra.
BOT, Elizabeth (1987). The Kava cerimonial as a dream structure, in Constructive
drinking: perspectives on drink from anthropology. Cambridge: Cambridge
University Press/Maison dês Sciences de l’Homme, 182-204.
CAMPOS, Edemilson Antunes de. (2004a) Alcoolismo e identidade na teledramaturgia
brasileira: o caso da telenovela Celebridade – 2003. Revista Communicare. Centro
Interdisciplinar de Pesquisa, Faculdade Cásper Líbero, v.4, n. 1, p.69-85.
CAMPOS, Edemilson Antunes de (2004b). As representações sobre o alcoolismo em
uma associação de ex-bebedores: os Alcoólicos Anônimos. Cad. Saúde Pública.
set./out., v. 20, n. 5, p.1.379-1.387.
CASTEL, Robert e HAROCHE, Claudine. (2001). Propriété privée, propriété sociale
et propriété de soi: entretiens sur la construction de l’individu moderne. Paris:
Fayard.
199
CASTELAIN, Jean-Pierre (1985). Ils s’enivraient d’amitié, de paroles... Informations
sociales. n.8, p.31-38
CASTELAIN, Jean-Pierre (1989). Manières de vivre, maneière de boire: álcool et
sociabilité sur le port. Paris: Editions Imago.
CASTELAIN, Jean-Pierre (1990). Vers une anthropologie du boire. In: CARO. Guy
(org) De l’alcoolisme au bien boire. 1, Paris: L’Harmattan, p. 70-72.
CEBRID – Centro de Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (2002). I
Levantamento Domiciliar sobre Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil: estudo
envolvendo as 107 maiores cidades do País — 2001 —, São Paulo: Universidade
Federal de São Paulo/SENAD.
CERCLE, Alain (1998). L’Alcoolisme. Paris: Flammarion
DA MATTA, Roberto (1997a) A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no
Brasil, 5. ed., Rio de Janeiro: Rocco.
DA MATTA, Roberto (1997b) Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia
do dilema brasileiro. 6 ed., Rio de Janeiro: Rocco.
DESCOMBEY, Jean-Paul (1998). L’Homme Alcoolique. Paris: Odile Jacob.
DOUGLAS, Mary (1987). Constructive drinking: perspectives on drink from
anthropology. Cambridge: Cambridge University Press/Maison dês Sciences de
l’Homme.
DOUGLAS, Mary (1992). Risk and Blame: Essay in cultural theory. London/New
York, Routledge.
DOUGLAS, Mary (2001). De la souillure: Essai sur les notions de pollution et le
tabou. trad. Anne Guérin, Paris: La Découverte. Edição em língua portuguesa:
DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo: ensaio sobre as noções de poluição e tabu. trad.
Sonia Pereira da Silva, Lisboa: Edições 70, s/d.
DUARTE, Luiz Fernando Dias (1983). Três ensaios sobre pessoa e modernidade.
Boletim do Museu Nacional. n.41, Rio de Janeiro, agosto.
200
DUARTE, Luiz Fernando Dias (1986a). Classificação e valor na reflexão sobre
identidade social. In: CARDOSO, Ruth (org.) A aventura antropológica: teoria e
pesquisa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 69-92.
DUARTE, Luiz Fernando Dias (1986b). Da vida nervosa da classe trabalhadora. Rio
de Janeiro: Zahar.
DUARTE, Luiz Fernando Dias (1994). A outra saúde: mental, psicossocial, físico-
moral? In. ALVES, Paulo Cesar e MINAYO, Maria Cecília (org.). Saúde e doença:
um olhar antropológico. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, p.83-90.
DUARTE, Luiz Fernando Dias (2003). Indivíduo e pessoa na experiência da doença.
Ciência e Saúde Coletiva. v. 8, n. 1, p.173-183.
DUFOUR, Annie-Hélène (1989). Café des hommes en Provence. Terrain. 13 (Boire),
p.81-86.
DURKHEIM, Émile e MAUSS, Marcel (1990). Algumas formas primitivas de
classificação. In: RODRIGUES, José Albertino (org.). Durkheim. São Paulo: Ática,
Col. Grandes Cientistas Sociais, p. 183-203.
DURKHEIM, Émile (2003). Les formes élémentaires de la vie religieuse. 5. ed.,
Paris: PUF.
DRULHE, Marcel (1988). Mémoire et socialisation. Femmes alcooliques et
associations d’anciens buveurs. Cahiers internationaux de sociologie. v. LXXXV,
p.313-324.
DUMONT, Louis (1983). Essais sur l’individualisme: une perspective sur
l’anthropologie moderne. Paris: Seuil. Edição em língua portuguesa: DUMONT,
Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna.
trad. Álvaro Cabral, Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
DUMONT, Louis (1992). Homo Hierarchicus: o sistema das castas e suas
implicações. São Paulo: EDUSP.
DUMONT, Louis (2000). Homo aequalis: gênese e plenitude da ideologia
econômica. Trad. José Leornardo Nascimento, Bauru, SP: EDUSC.
201
EDWARDS, Griffith. (1995) O tratamento do Alcoolismo. 2. ed., São Paulo: Martins
Fontes.
EHRENBERG, Alain (1991). Un monde de funambules, Individus sous influence:
drogues, alcools, médicaments psychotropes. Paris: Éditions Esprit, p.5-28.
FABRE-VASSAS, Claudine (1989). La boisson de ethnologues. Terrain. n.13, p.5-14.
FAINZANG, Sylvie (1989). Pour une anthropologie de la maladie en France: un regard
africaniste. Cahiers de l’homme, Paris: Ed. de l’École des Hautes Études en Sciences
Sociales.
FAINZANG, Sylvie (1995). Une anthropologie du dé-boire. Journal des
anthropologues. n. 60, Montrouge: AFA-EHESS, p.71-76.
FAINZANG, Sylvie (1996). Ethnologie des anciens alcooliques: la liberté ou la
mort. Paris: PUF.
FAINZANG, Sylvie (2002) De l’autre côté du miroir: réflexions méthodologiques et
épistémologiques sur l’ethnologie des anciens alcooliques. In: GHASARIAN, Christian
(org.) De l’ethnographie à l’anthropologie réflexive: nouveaux terrains, nouvelles
pratiques, nouveaux enjeux. Paris: Armand Colin, p. 63-71.
FASSIN, Didier (1996), L’espace politique de la santé – essais de généalogie, Paris,
PUF.
FERREIRA, Luciane Ouriques (2003). A pessoa Mbyá-Guarani e a emergência da
“cura do beber”: as múltiplas causas do beber e as conseqüências desencadeadas pelo
uso abusivo de bebidas alcoólicas – RS. In: V REUNIÃO BRASILEIRA DE
ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL, Anais... Florianópolis, SC, 30 nov. 03 a 02 dez.
03 Disponível em: http://www.antropologia.com.br/tribo/vram/.
FONSECA, Claudia. (2004) Família, fofoca e honra: etnografia de relações de
gênero e violência em grupos populares, 2 ed., Porto Alegre: Editora da UFRGS.
GABHAINN, Saorise Nic (2003). Assessing sobriety and successful membership of
Alcoholics Anonymous. Journal of Substance Use. n. 8, 55-61.
GAGNON, Eric (1995). Autonomie, normes de santé et individulaité In. CÔTÉ, Jean-
Pierre (direction), Individualisme et individualité. Québec: Éditions du Septentrion.
202
GARCIA, Angela Maria (2004). E o verbo (re) fez o homem: estudo do processo de
conversão do alcoólico ativo em alcoólico passivo. Niterói: Intertexto.
GEERTZ, Clifford (1989). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC.
GIDDENS, Anthony (1991). As consequências da modernidade. SP: UNESP.
GIDDENS, Anthony (1996). Para além da esquerda e da direita: o futuro da
política radical. (trad.) Alvarto Hattnher, São Paulo: Ed. UNESP.
GIDDENS, Anthony. (1997). “A vida em uma sociedade pós-tradicional”. In BECK,U.;
GIDDENS, A;. e LASH, S. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na
ordem social moderna. São PAULO: UNESP.
GILBERT, Francis S (1991). Development of a “steps questionnaire”. Journal of
Studies on Alcohol. v.52, n.4, 353-360.
GODBOUT, Jacques T (2000a) Le don, la dette et l’identité: homme donator vs
homme oeconomicus. Paris: La Decouvert.
GODBOUT, Jacques T. (2000b) L’esprit du don. Montreal-Boreal: La Decouvert.
GOLDMAN, Marcio (1996). Uma categoria do pensamento antropológico: a noção de
pessoa. Revista de antropologia. v.39, n.1, p. 83-109.
GOOD, Byron J. (1994). Medicine, racionality, and experience: an anthropological
perspective. Cambridge University Press.
GOFFMAN, Erwing (1988). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade
deteriorada. 4.ed., Rio de Janeiro: TLC.
GUEDES, Simoni Lahud (1997) Jogo de corpo: um estudo de construção social de
trabalhadores. Rio de Janeiro: EDUFF.
INSERM (Institut National de la santé et de la recherche médicale) (2003). Dommages
sociaux, abus et dépendance. Paris: Les editions Inserm.
203
JELLINEK, E.M. (1960). The disease concept of alcoholism. New Haven
(Connecticut): Hilhouse Press.
JOVELIN, Emmanuel e ORESKOVIC, Annabelle (2002). De l’alcoolisme à
l’abstinence. Paris: Édition ASH.
HERZLICH, Claudine (1984). Médicine moderne et quête de sens: la maladie signifiant
social, In. AUGE, Marc e HERZLICH, Claudine (orgs.). Le sens du mal:
anthropologie, histoire, sociologie de la maladie. Paris: Editions des Archives
Contemporaines, p.189-215.
HERZLICH, Claudine e PIERRET, Janine (1991). Malades d’hier, malades
d’aujourd’hui: de la mort collective au devoir de guérison. Paris: Éditions Payot.
HERZLICH, Claudine (1996). Santé et maladie: analyse d’une représentation
sociale. 2. ed., Paris: Editons de l’École des Hautes Études em Sciences Sociales.
KUHN, Thomas (2000). A estrutura das revoluções científicas. 5. ed., Perspectiva:
São PAULO.
LANGDON, Esther Jean M. (2001). O que beber, como beber e quando beber: o
contexto sócio-cultural do alcoolismo entre populações indígenas. In:
COORDENAÇÃO NACIONAL DE DST E AIDS / MINISTÉRIO DA SAÚDE. Anais
do seminário sobre alcoolismo e vulnerabilidade às DST/AIDS entre os povos
indígenas da macroregião Sul, Sudeste e Mato Grosso do Sul. Brasília, p. 83-97.
LASSELIN, Michel & FONTAN, Michel (1979). Pour une étude analytique des
mouvements d’alcooliques abstinents. Revue de l’alcoolisme. 25, n.2, p. 83-91.
LÉVI-STRAUSS, Claude (1974). Anthropologie structurale. Paris: PLON. Edição em
língua portuguesa: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. 2. ed., trad.
Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.
LÉVI-STRAUSS (org.) (1983). L’identité, Paris: PUF.
LÉVI-STRAUSS, Claude (2001). Introduction a l’œuvre de Marcel Mauss,
Sociologie et anthropologie. Paris: PUF, p. 9-52. Edição em língua portuguesa: LÉVI-
STRAUSS, Claude. Introdução à obra de Marcel Mauss. trad. Paulo Neves, São
Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 11-46.
204
LÉVI-STRAUSS, Claude (2003). As estruturas elementares do parentesco. 3 ed.,
Petrópolis: Vozes.
LEVINE, Harry Gene (1978). The Discovery of addiction: changing conceptions of
habitual drunkennes in América. Journal of Studies on Alcohol. vol. 39, n.1, p. 143-
174.
MAGNANI, José Guilherme Cantor (2003). Festa no pedaço: cultura popular e lazer
na cidade. 3 ed., São Paulo: Huicitec.
MÄKELÄ, Klaus (1996). Alcoholics Anonymous: as mutual-help movement: un
study in eight societies. Wisconsin: University of Wisconsin Press.
MARIZ, Cecília Loreto (1994). Nem anjos nem demônios: interpretações
sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis, RJ: Vozes, p. 204-224.
MARRUS, M. R. (1978) L’alcoolisme social à la belle époque, In. L’Halaine des
faubourgs. Recherches, n.29, p. 285-314.
MATOS, Maria Izilda Santos de (2000). Meu lar é o botequim: alcoolismo e
masculinidade. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
MAUSS, Marcel (2001a). Une catégorie de l’esprit humain: la notion de personne,
celle de “moi”, Sociologie et anthropologie, 9 ed., Paris: PUF, p. 331-362.
MAUSS, Marcel. (2001b) Essais sur le don. Forme et raison de l’échange dans les
sociétés archaïques. Sociologie et anthropologie, 9 ed., Paris: PUF, p.145-279.
MAUSS, Marcel (2002) La prière. In: TREMBLAY, Jean-Marie (org.). Classiques des
sciences sociales. 1-92, 3 oct. Disponível em
<http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/index.html>.
Acesso em 20 dez. 2004.
MOTA, Leonardo Araújo. (2004). A dádiva da sobriedade: a ajuda mútua nos
grupos de alcoólicos anônimos. São Paulo: Paulus.
NARCÓTICOS ANÔNIMOS (1993) [trad. do livro Narcotics Anonymous.
Chaatsworth, Califórnia: Narcotics Anonymous World Service, Inc.]
205
NEVES, Delma Pessanha (2004). Alcoolismo: acusação ou diagnóstico?. In. Caderno
Saúde Pública. jan./fev., vol. 20, n.1, p. 7-14.
NOURRISSON, Didier (1990). Le buveur du XIXº siècle. Paris: Albin Michel.
RENAUT, Alain (1998). O indivíduo: reflexões acerca da filosofia do sujeito. (trad.)
Elena Gaidano, Rio de Janeiro: DIFEL.
RICOEUR, Paul (1976). Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de
significação. Lisboa: Edições 70.
ROOM, Robin (1989). Alcoholism and Alcoholics Anonymous in U.S Films, 1945-
1962: The Party Ends for the “Wet Generations” Journal of Studies on Alcohol. v.50,
n.4, p. 368-382.
ROSA, João Guimarães. A Hora e Vez de Augusto Matraga, Sagarana, Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2001, pp. 363-413.
SAHLINS, Marshall (2003a). Cultura e razão prática. (trad.) Sérgio Tadeu de
Niemayer, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
SAHLINS, Marshall (2003b). Ilhas de história. (trad.) Barbara Sette, Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed.
SALIBA, Chalif (1982). La cure de désintoxication alcoolique et ses prolongements.
Lyon: Press Universitaire de Lyon.
SARTI, Cynthia Andersen (2005a) Família e individualidade: um problema moderno.
In: CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. A família contemporânea em debate.
São Paulo: EDUC/Cortez, 39-49.
SARTI, Cynthia Andersen (2005b). A família como espelho: um estudo sobre a
moral dos pobres. 3. ed., São Paulo: Cortez Editora.
SEEGER, Anthony, DA MATTA, Roberto e CASTRO, Eduardo Viveiros de (1979). A
construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Boletim do Museu
Nacional, Antropologia, n. 32, 1-19, Rio de Janeiro, maio.
SEGALEN, Martine (1998). Rites et rituels contemporains, Paris: Edition Nathan.
206
STEVENSON, Robert Louis (1995). O médico e o monstro – Dr. Jekyll e Mr. Hyde.
(trad.) Flávia Villas Boas, Rio de Janeiro: Paz e Terra.
SEVCENKO, Nicolau (1984). A revolta da vacina: mentes insanas em corpos
rebeldes. São Paulo: Brasiliense.
SOARES, Barbara Musumeci (1999). Mulheres invisíveis: violência conjugal e novas
políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
TOCQUEVILLE, Aléxis (1961). La démocratie en Amérique, II, Paris: Gallimard.
TURNER, Victor (1974). O processo ritual: estrutura e antiestrutura. (trad.) Nancy
Campi de Castro, Petrópolis: Vozes.
VAILLANT, George E. (1999). A história natural do alcoolismo revisitada. Porto
Alegre: Artmed.
VASCONCELOS, Eduardo Mourão (2003). O poder que brota da dor e da opressão:
empowerment, sua história, teorias e estratégias. São Paulo: Paulus.
VELHO, Gilberto (1999). Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da
sociedade contemporânea. 5 ed., Rio de Janeiro: Zahar.
WORMER, Katherine van (2002). “Dry Drunk” Syndrome and George W. Bush.
Counter punch. 1-7, 11 out. Disponível em
<http://www.counterpunch.org/wormer1011.html>.
YALISOVE, Daniel (1998). The origins and evolution of the disease concept of
treatment. Journal of Studies on Alcohol. July: 469-475.
ZALUAR, Alba (1994). A máquina e a revolta: as organizações populares e o
significado da pobreza. 2ed., São Paulo: Brasiliense.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo