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sob a ótica do higienismo, uma teoria sócio-médica que pretendia implantar uma
reforma social a partir da adoção de princípios de higiene tanto do ponto de vista moral
quanto médico (Nourrisson, 1990: 187), as autoridades médicas e sanitárias se voltam
contra a “embriaguez”, que é considerada como o “vício” que degenera o homem das
camadas populares e, por isso, deve ser combatido. Com isso, buscavam introduzir
mudanças nos hábitos e costumes, particularmente, das classes trabalhadoras,
consideradas “classes inferiores”
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.
As idéias higienistas sobre os efeitos deletérios do álcool influenciaram de
maneira decisiva corações e mentes da sociedade francesa. Um exemplo dessa
influência é o romance L’Assommoir, do escritor Émile Zola, publicado em 1876-77, no
auge da divulgação das idéias higienistas na França. A descrição da degradação de uma
família operária, devido ao consumo do álcool, ajudou a consolidar a idéia de
degeneração associada ao beber excessivo.
Com efeito, se a obra de Zola causou escândalo, particularmente, na esquerda
política, pois colocava em dúvida a tese do sufrágio universal ao mostrar a fragilidade
das classes trabalhadoras (Marrus, 1978: 289), também ajudou a consagrar uma imagem
negativa do bebedor, sobretudo a daquele que bebe excessivamente, fazendo coro,
também, com aqueles que advogavam em favor da tese da “degenerescência
alcoólica”
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.
Como bem mostrou Cerclé (1998: 22), é a associação entre a noção de
embriaguez, entendida como fléau social, e a tese da “degenerescência alcoólica” que
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Em seu livro, Nourrisson descreve vários trabalhos dos médicos higienistas sobre problemas causados
pelo uso abusivo do álcool , entre os quais cita: “O médico Villermé, em estudo sobre os trabalhadores do
setor têxtil, determina os critérios de apreensão do fenômeno alcoólico. Sua severa constatação será
retomada ulteriormente e integralmente pelos movimentos antialcoólicos. Para ele, a embriaguez torna o
trabalhador preguiçoso, jogador, falante, turbulento; ela o degrada, o bestializa, arruína sua saúde, abrevia
sua vida, destrói seus costumes, agita, escandaliza a sociedade e impulsiona o crime. Pode-se afirmar, a
embriaguez [...] é o maior flagelo das classes trabalhadoras.” (Nourrisson, 1990: 187 – trad. minha).
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Como sublinha Nourrisson, a tese da “degenerescência alcoólica” está presente na obra do médico
Benedict-Augustin Morel, publicada em 1857, cujo título é: Traité des dégénérescences physiques,
intellectuelles et morales de la race humaine. “Para Morel, o homem teria sido vítima de uma degradação
progressiva de suas qualidades, da qual a alienação representa o termo. [...] A solidariedade das causas
degenerativas não impede, entretanto, Morel de dedicar ao alcoolismo um lugar privilegiado. Mais que o
meio, o solo, o clima, a miséria ou a vida urbana, o alcoolismo parece um fato concreto, compreensível,
visível a todos. [...] Morel insiste sobre a noção da hérodo-degenerescência: ele reserva um capítulo
inteiro de sua obra à degenerescência hereditária nas crianças nascidas de pais dominados pelo alcoolismo
crônico [...] Singularmente, o alcoolismo dos parentes provoca uma degenerescência rápida e agravada
nas crianças [...] Esta teoria da degenerescência alcoólica conhece, portanto, um sucesso que ultrapassa
largamente os muros dos asilos. Ela seduz numerosos escritores, à direita como à esquerda, de Leon
Daudet à Émile Zola” (Nourrisson, 1990: 212-216 – trad. minha).