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A AUTOCONSCIÊNCIA POÉTICA DE ÁLVARES DE AZEVEDO
por
LILIANE MACHADO
(Departamento de Letras Vernáculas)
Dissertação apresentada como exigência
parcial para a obtenção do grau de Mestre
em Letras Vernáculas, subárea Literatura
Brasileira, sob a orientação do Prof. Dr.
Wellington de Almeida Santos.
Faculdade de Letras – UFRJ
Dezembro/2005
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EXAME DE DISSERTAÇÃO
MACHADO, Liliane. A Autoconsciência Poética de Álvares de Azevedo. Orientador:
Wellington de Almeida Santos. Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2006.
Dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Wellington de Almeida Santos
(Orientador)
Prof. Dr. Antônio Carlos Secchin
Prof
a
. Dr
a
. Angélica Maria dos Santos Soares
Prof. Dr. Francisco Venceslau dos Santos
(Suplente)
Prof. Dr. Alcmeno Bastos
(Suplente)
Examinada a Dissertação, em 21/02/2006.
Conceito:
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A Júlia.
3
Agradecimentos
Agradeço a Pedro, pela paciência e incentivo em
todos os momentos.
A minha mãe, Anna, e a meu pai, Josino, pela ajuda
nunca negada.
Ao professor Wellington de Almeida Santos, pela
orientação constante e atenciosa.
Aos meus amigos Adriana Maria Almeida de
Freitas, Teresinha Bregalda, Renata Lopes
Marafoni e Arthur Perez.
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SINOPSE
Estudo sobre a autoconsciência poética da obra de
Álvares de Azevedo, marcadamente dos textos da
Lira dos Vinte Anos, a partir da verificação da
influência das leituras literárias, feitas pelo autor,
em seus poemas, das estratégias de intertextualidade
parafrásica e parodística e da reflexão acerca dos
conceitos de poeta e de poesia efetuada.
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RESUMO
MACHADO, Liliane. A autoconsciência poética de Álvares de Azevedo. Orientador:
Wellington de Almeida Santos. Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2005.
Dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira.
Este trabalho tem por objetivo investigar a autoconsciência poética da obra de
Álvares de Azevedo, utilizando como corpus central os poemas da Lira dos vinte anos.
Para tanto, três caminhos de leitura foram tomados.
O primeiro deles procurou trazer à tona a discussão, travada
metapoeticamente na obra de Azevedo, acerca dos conceitos de poesia e de poeta,
comprovando a preocupação do autor não com o seu fazer literário, mas também
com o lugar do artista e da arte em seu tempo.
O segundo buscou comprovar a forte influência, verificada implícita e
explicitamente, que a própria literatura exerceu na produção poética azevediana, que,
por isso, configura-se, desde a sua gênese, como trabalho literário consciente, distante
da ilusão mimética.
O terceiro caminho referiu-se à verificação da intertextualidade empreendida
na obra poética do autor, seja em textos de linha monofônica ou parafrásica, nos quais
a voz do cânone sentimental romântico ecoa de maneira dominante, seja em textos de
linha polifônica ou parodística, nos quais, ao lado da voz canônica, ecoa a voz
dissonante, estabelecendo um jogo irônico-humorístico que evidencia profunda
(auto)reflexão poética.
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ABSTRACT
MACHADO, Liliane. A autoconsciência poética de Álvares de Azevedo. Orientador:
Wellington de Almeida Santos. Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2005.
Dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira.
The main subject of this monograph is to research into the poetical
selfconsciousness in Álvares de Azevedo's works, using the poems found in Lira dos
vintes anos. For that, three ways of reading were taken.
The second waye try to ascertain the implied and explicity strong influence that
Literature itself had on the azevedian poetry, wich configurates itself since its origins
as a conscious literary work away from mimetic ilusion.
The third way refers to the intertextuality inside the poetical work of Azevedo,
be it in a monophonic or paraphrastic way, in wich the voice of the romantic canon
echos in a dominant way, be it in poliphonic or parodistc texts, in wich, besides the
canon, sounds a dissonant voice, establishing a ironic-humoristic game wich shows a
profound (self-)reflection on poetry.
The first way discusses the concepts of poetry and poet, metapoeticaly
inscribed in Azevedo's works, proving the concern of the author not only on his
production, but also about the artist and the art itself in his time.
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.......................................................................................................10
2. AS REPRESENTAÇÕES DA FIGURA DO POETA E DA POESIA NA LIRA
DOS VINTES ANOS................................................................................................21
2.1 O cânone e a multiplicidade no Romantismo.................................................21
2.2 A visão idealizada do poeta na Lira dos vinte anos.........................................25
2.3 O poeta visto sob o prisma da ironia...............................................................34
3. A INFLUÊNCIA DA LEITURA LITERÁRIA EM ÁLVARES DE
AZEVEDO...............................................................................................................54
3.1 “Idéias íntimas”: a confidência da influência.................................................60
3.2 O “Frontispício” de O Conde Lopo: um caso interessante de autoconsciência
poética.................................................................................................................68
4. OS EIXOS PARAFRÁSICO E PARODÍSTICO: AS ESTRATÉGIAS DE
RETOMADA METAPOÉTICA DE ÁLVARES DE AZEVEDO......................76
4.1 Explicando o posicionamento...........................................................................76
4.2 A primeira parte da Lira: o eixo parafrásico..................................................81
4.3 Sob a égide de Caliban: o eixo parodístico da Lira........................................90
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................111
BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................113
8
A história da influência
literária frutífera (...) é uma história
de angústia e caricatura auto-
salvadora, de distorção, ou perverso e
deliberado revisionismo, sem o qual a
poesia moderna não poderia existir.
Harold Bloom
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1. INTRODUÇÃO
Ao lermos boa parte da fortuna crítica de Álvares de Azevedo, saltam aos olhos as
abordagens que o apresentam, sobretudo, como poeta adolescente, cuja obra volta-se para
questões ingênuas, que deixam antever a imaturidade de um escritor marcado pela morte
precoce. O amor à mulher inacessível, que transforma a relação do eu-lírico com a figura
feminina em algo que extrapola a realização possível, e a conseqüente inexperiência sexual,
relacionada também a uma permanente tensão moral entre o desejo erótico e a idolatria à
pureza feminina imaculável, são, com freqüência, as linhas apontadas como as mais
tipicamente azevedianas, ao lado, é claro, do mal-do-século byroniana. De fato, tais temas
aparecem na obra do poeta, entretanto não nos parece que sejam os traços que melhor
caracterizem sua poética.
Desde Silvio Romero, por quem nos foi apresentado, na sua História da Literatura
Brasileira, de 1888, como “a figura simpática do sonhador da Lira dos vinte anos ou como
“um mancebo de vinte anos, quase virgem de sentimentos” até Manuel Bandeira, na
Apresentação da poesia brasileira, de 1944, que via em sua poesia “a frescura das suas
confissões de adolescente” predominou, ainda que implicitamente, a idéia de que a obra
poética de Álvares de Azevedo era resultado, principalmente, de sua condição e
sensibilidade juvenis.
Instaura-se, comumente, uma leitura que estabelece entre a vida do poeta e sua obra
um forte vínculo. Como se considera a poesia de Azevedo uma poesia de adolescente,
natural que seja também uma poesia de cunho autobiográfico, que expresse, mormente, as
angústias dessa fase da vida. Talvez onde mais claramente percebamos essa concepção, seja
no ensaioAmor e Medo”, de Mário de Andrade. Lá, a obra é usada, muitas vezes, para se
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descobrir a vida do poeta, como se a primeira fosse o testemunho e a expressão simples da
segunda. É por isso que Mário de Andrade, observando as poesias amorosas de Azevedo,
tira conclusões como a seguinte: O amor sexual lhe repugnava, e pelas obras que deixou é
difícil reconhecer que tivesse experiência dele (ANDRADE, 1978, p. 204).
Se no artigo de Mário de Andrade a visão biográfica acerca da gênese da poesia de
Álvares de Azevedo ganha forma mais bem acabada, ela aparece também em muitos outros
textos críticos. Na Formação da literatura brasileira, de Antônio Cândido, assim se
comenta a relação estreita entre a obra de Azevedo e a sua vida (como aconteceria com
qualquer escritor romântico):
Sentiu e concebeu demais, escreveu em tumulto,
sem exercer devidamente o senso crítico, que
possuía não obstante mais vivo do que qualquer
poeta romântico, excetuando Gonçalves Dias.(...) E
sabemos que se a obra de um clássico prescinde
quase por completo o conhecimento do artista que
a criou, a dos românticos nos arrasta para ele,
graças à vocação da confidência e a relativa
inferioridade do verbo ante a insofreada
necessidade de expressão.(CANDIDO, 1981, p.
178)
Concordamos, em muito, com a citação acima, porém parece-nos que é equivocado
acreditar que as produções poéticas azevedianas surjam de um impulso de origem
biográfica e que pretendam expressar, mesmo nas poesias mais claramente líricas, angústias
que derivem da relação do poeta com sua vida de homem, como outros críticos vêem.
Para nós, ao contrário do que se falou sobre Álvares de Azevedo, a repulsa pelas
mulheres paulistas, o amor intenso pela mãe e pela irmã Maria Luisa, o temperamento
tímido ou boêmio etc. não são os principais elementos geradores dos poemas de Azevedo.
11
Por isso, também não nos parece relevante a discussão sobre a sinceridade ou o
do poeta em relação ao que canta, sobre a veracidade ou não da experiência de vida que
vira motivo de poesia. A vida, no sentido biográfico, não nos parece ser aquilo que
impulsiona a poesia de Azevedo, daí porque não cabe procurarmos em seus textos
sinceridade e fidelidade à experiência ou criticá-lo por ser um adolescente ingênuo que quer
se fazer passar por pervertido
1
.
Dos dados biográficos, aquele que nos assemelha o mais pertinente para
alcançarmos a compreensão do projeto criador de Álvares de Azevedo é o que diz respeito
à sua verdadeira obsessão pela leitura e pelo conhecimento literário. Luciana Stegagno-
Picchio, na sua História da literatura brasileira, de 1997, comenta a gênese da poesia de
Álvares de Azevedo como estreitamente ligada às influências literárias do autor:
Paulista de nascimento e de aculturação acadêmica,
iria concluir aos vinte e um anos incompletos, ceifado
por um tumor, uma parábola literária nascida sob o
signo de Byron e em geral dos românticos ingleses,
mas nutrida de cultura francesa (Musset, Nerval,
Vigny, Gautier, mas também Lamartine e Victor Hugo),
alemã (Hoffmann e Goethe) e quiçá também italiana
(Leopardi).(STEGAGNO-PICCHIO, 2000, p. 98)
Silvio Romero identificava como grande qualidade de Azevedo o fato de que
arranca-nos de vez da influência exclusiva portuguesa (ROMERO, 1980, p. 949), por ser
leitor voraz dos bons escritores gregos, latinos, ingleses, italianos, alemães e franceses,
especialmente Shakespeare, Tasso, Byron, Werner, Musset, Victor Hugo e Sand, seus
1
Mário de Andrade foi o que mais o criticou quanto ao que chamava de fingimento: “É o caso ainda
especialmente de Álvares de Azevedo. E tendo morrido moços, no geral poetaram como moços, muito
embora finjam às vezes formidável experiência de vida. Como é ainda especialmente o caso do nosso
Macário.” (ANDRADE, 1978, p. 203)
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autores prediletos (ROMERO, 1980, p. 949). José Veríssimo o como mais que assíduo
leitor, e diz que era um devorador de livros, ainda na idade em que a tal apetite não pode
corresponder igual capacidade de assimilação (VERÍSSIMO, 1969, p. 200). Parece-nos
que é justamente nesse dado, observado por praticamente todos que estudaram a obra de
Azevedo, que se encontra a chave para a sua compreensão. Assim Antônio Cândido, na
Formação da literatura brasileira, refere-se ao forte vínculo existente entre a fixação pela
leitura e a experiência biográfica de Álvares de Azevedo:
Álvares de Azevedo sofre, como o adolescente, o
fascínio do conhecimento e se atira aos livros com
ardor, mas, ao mesmo tempo, é suspenso a cada passo
pela obsessão de algo maior, a que não ousa entregar-
se: a própria existência, que escorrega entre os dedos
inexpertos.(CANDIDO, 1981, p. 179)
De sua experiência de leitor, e não de sua imediata experiência de vida, é que vêm
as poesias de Álvares de Azevedo. Se a experiência de vida de alguma forma gera a poesia
de Azevedo, é porque a experiência de leitura a autorizou, é porque, em seus sentimentos e
vivências individuais, Álvares de Azevedo reconheceu os mesmos motivos que o
envolviam em suas leituras.
A influência literária é flagrante, mesmo em uma leitura superficial dos textos de
Azevedo. Nosso poeta produziu uma obra altamente dialógica, embebida em referências
literárias que vão desde as epígrafes - é raro localizar um poema que não a apresente - a
as citações explícitas das influências de outros poetas nos textos de Azevedo, demonstrando
consciência do dialogismo, da intertextualidade empreendida.
O lirismo da confidência, expressão emprestada de Antônio Cândido, parece-nos
que se transforma, em Álvares de Azevedo, na confidência da influência. A confidência,
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inequívoca em Azevedo, é, sobretudo, a confidência da gama enorme de sentimentos e
reações surgidos da experiência leitora do poeta e que, muitas vezes, ajudaram-no até a
mensurar sua própria vivência.
Não se quer dizer, com isso, que não haja na poesia de Azevedo uma profunda
subjetividade, uma expressão claramente egóica. Ao contrário, poderíamos dizer que o
subjetivo ganha ainda mais intensidade na obra de Álvares de Azevedo, justamente por ela
ser o resultado franco das influências literárias recebidas pelo poeta.
Concordamos em reconhecer, em Álvares de Azevedo, um alto grau de predomínio
da subjetividade, mesmo diante de outros poetas românticos. A realidade objetiva
praticamente desaparece na obra de Azevedo. José Veríssimo, em sua História da
literatura brasileira, de 1916, faz o seguinte comentário sobre o distanciamento de nosso
poeta da realidade objetiva:
Eram raros nele os temas objetivos vulgares em
Magalhães, Porto Alegre e Gonçalves Dias e menos os
temas retóricos ou adequados às ampliações poéticas,
tão ao gosto destes, inclusive o último. Quando
casualmente os tratava, ou incidentemente lhe
acudiam, envolvia-os com o sentimentalismo romântico
(...) (VERÍSSIMO, 1969, p. 201)
Da mesma maneira, Luciana Stegagno-Picchio (1997), acentua o subjetivismo de
Azevedo:
Sempre ausente a natureza, dado que o poeta tem
olhos para si mesmo: seu eu íntimo, mas também o seu
quarto, os seus livros, o seu charuto e o seu
cachimbo.(STEGAGNO-PICCHIO, 2000, p. 99)
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Evidentemente, o predomínio da subjetividade sobre temas objetivos ou de fácil
expansão retórica, que percebemos na obra de Álvares de Azevedo e que foi apontado nas
citações anteriores, liga-se ao fato de ser nosso poeta representante da geração ultra-
romântica. Parece-nos, no entanto, que tal subjetividade apresenta, em Álvares de Azevedo,
uma essência particular que diferencia sua obra da de outros ultra-românticos, por mais
subjetivos que também tenham sido. José Veríssimo, na obra citada, aponta, de certa
maneira, essa distinção, sem citar as causas que encontramos. Vejamos:
Mostra-se Álvares de Azevedo poeta pessoal e
subjetivo, como não fora talvez nenhum antes dele e
raros o seriam depois. Impressões da natureza ou de
arte não lograva nunca objetivá-las. Transfundiam-se-
lhe naturalmente em íntimas sensações, por via de
regra dolorosas. É neste período, o primeiro que quase
unicamente canta o amor, que fica alheio à natureza
que o cerca ou à nação a que pertence.(VERÍSSIMO,
1969, p. 201)
A constatação de José Veríssimo sobre o grau maior de subjetividade que detecta na
poesia de Azevedo em relação à de poetas anteriores e mesmo posteriores, para nós, está
ligada ao fato de a subjetividade azevediana ser mais distante da realidade objetiva do que a
de outros poetas. Enquanto Casimiro de Abreu emociona-se com uma paisagem ou com
uma lembrança infantil, Fagundes Varela emociona-se com a morte de seu filho e Junqueira
Freire, com a contradição íntima entre a vida espiritual e o desejo sexual, que, em última
análise, são ainda elementos da realidade objetiva, embora transfigurados pela sensibilidade
de cada poeta, Álvares de Azevedo emociona-se com a leitura de um texto. A realidade
objetiva aparece por tabela, estando, assim, em um segundo plano, pois, no máximo, foi
aquilo que gerou o impulso lírico do autor lido por Azevedo.
15
A influência da leitura literária na obra de Álvares de Azevedo não é um cacoete da
época, nem se caracteriza como imitação de modelos que diminuem o gênio. Na verdade,
faz parte do próprio projeto criador do poeta, que a desenvolve conscientemente. A
consciência de que a leitura literária é uma grande influência para a criação de seus textos
está claramente colocada no “Prefácio” à Segunda Parte da Lira dos vinte anos. A título de
comprovar a distinção que dissemos existir entre a essência da subjetividade expressa na
obra de Álvares de Azevedo e na de outros poetas românticos, gostaríamos de apresentar
um pequeno cotejo entre o “Prefácio” de Azevedo citado e o “Prólogo” aos Primeiros
Cantos, de Gonçalves Dias. Tomamos justamente Gonçalves Dias por ser um dos poetas
românticos brasileiros mais conscientes de seu trabalho literário. Vejamos o que o poeta
maranhense escreve acerca de seu processo criativo:
Dei o nome de Primeiros Cantos às poesias que agora
publico, porque espero que não serão as últimas.
Muitas delas não têm uniformidade nas estrofes,
porque menosprezo regras de mera convenção; adotei
todos os ritmos da metrificação portuguesa, e usei
deles como me pareceram quadrar melhor com que eu
pretendia exprimir.
Não têm unidade de pensamento entre si,
porque foram compostas em épocas diversas debaixo
de céu diverso e sob a influência de impressões
momentâneas. (...)
Com a vida isolada que vivo, gosto de afastar
os olhos de sobre nossa arena política para ler em
minha alma, reduzindo à linguagem harmoniosa e
cadente o pensamento que me vem de improviso, e as
idéias que em mim desperta a vista de uma paisagem
ou do oceano – o aspecto enfim da natureza.(...)
(DIAS, 1959, p. 101, grifos nossos)
Percebemos que a busca da liberdade de expressão romântica, para Gonçalves Dias,
corresponde a um domínio da subjetividade (da inspiração momentânea) na produção
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poética. Essa subjetividade, conforme vemos na parte grifada, é fruto do contato do Eu com
a realidade aparente (uma paisagem ou o oceano), descontada a sociedade, desconsiderada
como objeto poético.
em Álvares de Azevedo, a realidade aparente, o mundo objetivo (a natureza ou a
sociedade), não são apontados como responsáveis pela construção da subjetividade do
poeta. Sobre isso, vejamos o seguinte fragmento do “Prefácio” citado, extraído da Obra
Completa, da Editora Nova Aguilar, que identificaremos a partir de agora, em qualquer
citação de obra do autor, pela sigla OC:
Cuidado, leitor, ao voltar esta página!
Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico.
Vamos entrar num mundo novo, terra fantástica,
verdadeira ilha Barataria de Don Quixote onde Sancho
é rei; e vivem Panúrgio, sir John Falstaff, Bardolph,
Fígaro e Sganarello de D.João Tenório: a pátria de
Cervantes e Shakespeare.
Quase que depois de Ariel esbarramos em
Calibã.
A razão é simples. É que a unidade deste livro
funda-se numa binômia. Duas almas que moram nas
cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta
escreveram esse livro, verdadeira medalha de duas
faces.
Demais, perdoem-me os poetas do tempo, isto
aqui é um tema, senão mais novo, menos esgotado ao
menos que o sentimentalismo tão fashionable desde
Werther e René.
Por um espírito de contradição, quando os
homens se vêem inundados de páginas amorosas,
preferem um conto de Boccaccio, uma criatura de
Rabelais, uma cena de Falstaff no Henrique IV de
Shakespeare, um provérbio fantático daquele polisson
Alfredo de Musset, a todas as ternuras elegíacas dessa
poesia de arremedo que anda na moda (...) (OC, 2000,
p. 190)
17
Como prefácio ou prólogo às suas obras, ambos os textos têm evidentemente um
caráter metapoético. Porém, enquanto em Gonçalves Dias a poesia se destaca dela mesma
para ser encarada como verdadeira expressão de uma subjetividade criada a partir da
relação do sujeito com o mundo, em Álvares de Azevedo, ela pode ser explicada a partir
do próprio mundo literário. O processo criador é traduzido metapoéticamente. Começa o
“Prefácio” por uma reveladora referência à própria materialidade do texto Cuidado,
leitor, ao virar essa página! mostrando, o poeta, consciência completa de seu fazer
literário. A partir de então somos alvo de uma enxurrada de referências literárias que visam
explicar o caráter dúbio da obra que se apresenta ao leitor.
Também Gonçalves Dias, em seu Prólogo, desejava mostrar a falta de unidade das
poesias que compunham sua obra, mas o fez atribuindo a causa à multiplicidade de reações
que ele tem em contato com o mundo (foram compostas em épocas diversas debaixo de
céu diverso – e sob a influência de impressões momentâneas). Já em Álvares de Azevedo, a
causa do dualismo é a presença de suas duas almas: uma, sentimental, à moda de Werther
ou de René, e outra, fantástica, embebida do Cervantes de Quixote e do Shakespeare de
Falstaff. O poeta não muda de tom porque algo da realidade aparente o motiva, mas o faz
por razões literárias e fruidoras. Como poeta, ora se influencia por textos sentimentais, ora
se deixa contaminar por textos dessacralizantes. A causalidade estabelecida é bastante
ilustrativa desse processo: o que o move a mudar é o fato de os homens estarem fartos de
páginas amorosas e desejarem um conto de Boccaccio ou uma caricatura de Rabelais, são,
portanto, demandas literárias. Dessa forma, não temos em Álvares de Azevedo uma poética
que pretenda expressar uma subjetividade “objetiva”, mas uma subjetividade “literária” e
“fruidora”.
18
Conseqüência dessa profunda relação do poeta com o literário, surge na obra de
Álvares de Azevedo uma forte tendência à consciência do fazer poético. São inúmeros os
textos em que se trava a discussão metapoética, em que se enfoca o ser poeta ou a essência
da poesia, apresentando ao leitor um panorama lúcido das relações não da poesia
consigo mesma, como também dela com o meio social da época.
Quando se fala em autoconsciência poética, em metapoesia, costuma-se referir a
uma postura modernista diante da arte, como nos lembra Benjamin, em seu famoso artigo
“A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica (BENJAMIM, 1987), ao tratar
da crise da representação do objeto e da perda da aura da obra de arte, a partir do advento
das novas técnicas de reprodução. Naquele momento, quando a arte se afastou da
representação mimética da realidade, ocorreu, como resultado, a auto-reflexão, a auto-
referência. A arte se especializou nela mesma, voltando-se para si. Oposta a esse processo,
a tradição literária, anterior à arte moderna, caracterizava-se como predominantemente
representativa ou mimética, encontrando seus temas e objetos fora dela mesma, na
realidade objetiva ou subjetiva. Na nossa compreensão, Álvares de Azevedo antecipa a
perspectiva moderna ao romper com a poesia representativa, ao afastar-se da referenciação
ao objeto, ao colocar em crise a poesia de temas miméticos, para produzir, conscientemente,
uma “poesia da poesia”.
É, portanto, nesse sentido que gostaríamos de estudar a obra de Álvares de
Azevedo, vendo-a como uma poesia altamente dialógica e intertextual, produzida por um
poeta muito consciente de seu processo metapoético.
Para tanto, separaremos nosso estudo no que consideramos três pontos centrais do
processo apontado: (1) a problematização dos conceitos de “poeta” e de “poesia”, (2) a
constatação de que a poesia de Álvares de Azevedo é conscientemente dialógica,
19
resultando, em muito, das influências literárias recebidas pelo autor e (3) a investigação da
relação dialógica mantida pelo texto do autor, ora monofônica (ou parafrásica), ora
polifônica (ou parodística).
O corpus sobre o qual nos voltaremos são as poesias da Lira dos vinte anos.
Eventualmente, alguns outros textos de Álvares de Azevedo poderão ser citados como
exemplos que respaldem nossa leitura da obra citada como centro de nosso estudo.
20
2. AS REPRESENTAÇÕES DA FIGURA DO POETA E DA POESIA NA LIRA DOS
VINTE ANOS
Nesse capítulo, buscaremos verificar como são representadas, na obra
autoconsciente de Álvares de Azevedo, a figura do poeta e da própria poesia.
Como vimos, a poesia azevediana é extremamente voltada para sua própria
realidade de linguagem, revelando seu desejo de ser reconhecida como arte, essência
fictícia, elaboração criativa e criadora. Nesse contexto, é natural que em muitos momentos
Álvares de Azevedo estenda sua verve crítica e teórica sobre os próprios conceitos de poeta
e de poesia.
Para observarmos como tais conceitos são problematizados na obra de Álvares de
Azevedo, precisamos, no entanto, compreender que esses são conceitos construídos
historicamente. A função da poesia e o papel do poeta estão intrinsecamente ligados à
sociedade em que se inserem. Por isso, começaremos nosso estudo fazendo um breve
apanhado de informações sobre o momento estético do qual historicamente participa a obra
de Álvares de Azevedo.
2.1 O cânone e a multiplicidade do Romantismo.
O Romantismo, estilo a que se vincula Álvares de Azevedo, é um movimento
literário múltiplo, difícil de ser compreendido como singularidade. Não é à toa que alguns
se referem a ele como Romantismos, uma vez que a diversidade, a pluralidade, parece ser
sua marca fundamental.
21
Na verdade, filosoficamente, o Romantismo se estrutura exatamente a partir de uma
visão de mundo que rompe com os padrões universais, preconizados pela ótica clássica, à
qual se opõe. O mundo do século XVIII acreditava na uniformidade da Razão, que ligava
em uma matriz Razão, Natureza e Sujeito, regidos os dois últimos por leis universais e
generalizantes, relacionadas à primeira. Dessa maneira, o universalismo clássico do século
XVIII resultou no surgimento de categorias eternas e inquestionáveis, inclusive para a arte,
determinando o Belo estanque, o bom gosto, ligado estreitamente ao bom senso. Nas
palavras de Benedito Nunes, em seu artigo A visão romântica, ocorreu no Classicismo em
voga no momento imediatamente anterior ao surgimento da visão romântica o seguinte
estado de coisas:
Nivelando-o à Natureza física exterior, a que se
encontra ligado por um acordo tácito, esse
achatamento do sujeito, que abstrai a singularidade do
indivíduo, refletiu-se na disciplina canônica do gosto
clássico e na disciplina intelectual da doutrina deísta,
ambas refratárias à dominância da experiência
singular individual subjetiva, transgressora da
uniformidade da razão(...) (NUNES, 1978, p. 57)
Eliminadas as particularidades, as diferenças, estando Sujeito e Natureza nivelados
a partir dos mesmos princípios racionalizantes, não houve espaço na arte clássica para a
diversidade que apontamos existir de modo inerente no Romantismo.
No Romantismo, o Sujeito passa a ser visto como centro a partir do qual se o
conhecimento do mundo e ficam salvaguardadas todas as particularidades do Eu. No lugar
do individualismo racionalista clássico, teremos o individualismo egocêntrico. Assim,
substitui-se o Sujeito nivelado à natureza física exterior, achatado, subtraído de
22
singularidade e regido por regras universais, que marcou o século XVIII, pela originalidade
e pelo entusiasmo do Eu romântico, surgido diretamente de novas matrizes filosóficas
como a transcendência do Eu (Fichte) e a idéia de Natureza como individualidade orgânica
(Schelling).
Esse avultamento do Eu, que ocorre em fins do século XVIII, elimina as
padronizações universalistas e legitimidade às particularidades, às diferenças e à
multiplicidade intrínseca à subjetividade, que geraram a pluralidade da arte romântica.
No entanto, apesar da complexidade do Romantismo, que nos leva a vê-lo como
vários, é possível a identificação de algo que se configuraria como uma espécie de regra,
ou seja, do que se diria ser o seu aspecto canônico. Entendemos, aqui, como canônico o
tipo de produção artística que atende aos preceitos morais de uma época e que é erigido,
pelo que podemos chamar de ideologia dominante socialmente, à categoria do bom e do
bem, a partir de critérios que quase sempre o além do estreito círculo do estético,
inserindo-se na esfera dos valores morais.
Portanto, mesmo sabendo que é interna à própria concepção do que seja
Romantismo a convivência de variados aspectos que, não raro, chegam a ser conflitantes,
insistimos em que, dentro do campo intelectual que produz e da sociedade que consome a
arte, sempre a formação de um cânone e no caso da arte romântica isso não seria
diferente.
Assim, reconhecemos o cânone romântico nos padrões que mais comumente foram
filtrados através do tempo pelo critério moral citado e que corresponderiam, sobretudo, ao
marcante idealismo, ao discurso vinculado ao sublime e ao sentimental, distante, portanto
da ironia, da sátira, do erotismo, que embora saibamos fazer parte do múltiplo Romantismo,
23
não tem sido a sua faceta consagrada através dos anos como a autorizada e mais típica do
estilo, sobretudo na literatura brasileira.
No caso de Álvares de Azevedo, o enfoque dado pela maioria dos estudos críticos,
como apontamos no início de nosso trabalho, e pelas principais antologias, comprova o
dito acima. Entre as faces denominadas pelo próprio poeta como as de Ariel e Caliban,
sempre vimos a pujança do primeiro e o enfraquecimento do segundo. Fixou-se, assim,
como canônica, a poética do “amor e medo”, da sublimação da sensualidade, da culpa em
relação ao desejo e da frustração amorosa, ficando obliteradas as poesias de natureza
irônica e satânica, escritas sob a égide de Caliban.
Fazendo um breve rastreio da ocorrência de textos que discutem ou simplesmente
apresentam os conceitos de poeta e de poesia, tanto na primeira parte da Lira dos Vinte
Anos, onde se manifesta Ariel, quanto nas outras duas restantes, sobretudo na segunda,
onde se deixa ver Caliban, procuraremos ver como Álvares de Azevedo apresenta o poeta e
a poesia. Além de alguns poucos trechos poéticos da primeira parte da Lira, que em
momentos oportunos explicitaremos, constituíram nosso corpus central de análise, os
seguintes poemas: “Um cadáver de poeta”, “Boêmios”, “Vagabundo” (de “Spleen e
charutos”), “O poeta moribundo”, “O Editor”, “Dinheiro”, Minha desgraça” (todos da
segunda parte da Lira) e “Oh! Não maldigam” (da terceira parte). Daremos ênfase ao
poema “Um cadáver de poeta”, que achamos desenvolver a questão trabalhada de maneira
bastante exemplar, abordando somente perifericamente os demais textos.
24
2.2 A visão idealizada do poeta na Lira dos vinte anos
Vivi na solidão – odeio o mundo
E no orgulho embucei meu rosto pálido
Como um astro na treva...
Senti a vida um lupanar imundo...(OC, 2000, p.
275)
O fragmento acima, do poema “12 de setembro”, elucida a grande tensão que irá
determinar o modo como se darão as representações da figura do poeta na Lira dos vinte
anos: aquela que coloca de um lado o Eu e de outro o Mundo. Aqui, essa tensão identifica
o Mundo (ou a vida, como aparece nos versos) a um lupanar imundo, do qual o Eu retira
seu rosto, identificado como astro na treva. A partir dessa caracterização antitética, em que
de um lado temos a escuridão, a sujeira moral do antro de prostituição, representando o
mundo, e do outro temos o brilho do astro (do eu) embuçado exatamente pelas trevas desse
mundo, vemos delinear uma moral tipicamente romântica, que opõe como valores
antagônicos, quase maniqueístas, o que seria o Bem e o que seria o Mal.
Baseada na idéia romântica de culto das individualidades, a moral apontada lança na
esfera do positivo o sujeito, que se sente naturalmente aniquilado pelo mundo no qual vive.
Isso porque:
(...)o artista romântico se atira à luta contra um meio
basicamente hostil e visualiza o inatingível, um ideal
além das possibilidades da adaptabilidade humana.
Assim, por buscar transcender ao que efetivamente se lhe apresenta, o romântico
parece fadado ao desajuste em relação ao Mundo, produzindo uma cosmovisão particular
da qual emanam os valores morais que apontamos.
25
Historicamente, essa moral justifica-se pela inserção do sujeito romântico, que se
sente como único e, como poeta, dominado pelo nio (o que lhe um caráter quase
divino), no mundo francamente capitalista, no qual a própria arte coloca-se como
mercadoria. Benedito Nunes, na obra citada, disse que a visão romântica constrói-se a
partir de fenômenos históricos e sociais tais como:
(...) o nivelamento dos valores morais à regra
benthamiana do maior interesse e da melhor utilidade,
a marginalização social de toda atividade improdutiva,
o princípio fiducário da moralidade burguesa, as
relações possessivas da moral doméstica e do
casamento, o filisteísmo como atitude da maioria
dominante em relação às letras e às artes (...) (NUNES,
1978, p. 55)
Desse modo, tal conjunto de coisas é evidentemente identificado como negativo
pelo Eu, que aprendeu a se ver como medida de tudo e que agora é mensurado por algo vil
como o dinheiro que move o mundo burguês do qual faz parte.
Paradoxalmente, a essa avaliação produzida pelo Mundo e que identifica a arte
como algo improdutivo ou destituído de interesse para o jogo capitalista, existe
ideologicamente o conceito que lança na esfera do sagrado o fazer poético e artístico.
Quando a filosofia, na qual se baseou a visão romântica, leva para o interior do indivíduo a
própria religiosidade, acaba por sacralizar a arte, produzida a partir de fenômenos pouco
racionalizáveis que resultam do nio criador. Ainda lembrando o que nos diz Benedito
Nunes:
Firmava-se, enfim, alçada a um plano ideal, a
superioridade da arte ou da poesia, como um domínio
privilegiado e transcendente, veículo de todos os
valores e princípios da formação espiritual do
homem.(NUNES, 1978, p. 71)
26
À luz dessa realidade dicotômica que se apresenta ao sujeito romântico, é que
discutiremos a construção dos conceitos de poeta e de poesia feita pela obra de Álvares de
Azevedo, que via de regra encontra-se também em permanente tensão.
Como sabemos, a primeira parte da Lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo,
apresenta poemas presos de maneira bastante arraigada aos preceitos canônicos do
Romantismo e, sendo assim, deixam surgir uma imagem também canônica do que seja o
poeta e a poesia. Seguir o cânone pode ser muitas vezes renunciar ao que se tem de mais
criativo e simplesmente copiar um modelo previamente determinado. Por isso, sentimos nas
poesias canônicas da primeira parte da Lira uma visão estereotipada e, portanto, sem
criticidade, do poeta e de sua produção. Podemos mesmo dizer que se acumulam os lugares
comuns sobre o assunto, mostrando um conceito de poeta artificial sobre o qual o autor não
parece ter-se debruçado problematicamente.
Quando dizemos que o poeta apresenta-se de modo artificial, queremos mostrar o
seu distanciamento de uma visão mais próxima da realidade. Ou seja, artificial
corresponderia a uma criação artística, a algo que existe no plano da arte, no caso
canônica, em questão. Seria, dessa forma, parte de um grande fingimento do poeta para
integrar o código do que era considerado legitimamente artístico no campo intelectual no
qual se insere e ao qual, por ora, obedece. Distinguindo a poesia artificial, que se vincula a
um padrão canônico, e a poesia natural, identificada como original e imaginativa, Carlyle,
segundo o que lemos no texto “A estética do Romantismo”, escreveu: A artificial é a
consciente, mecânica; a natural é a inconsciente, dinâmica (p. 188)
27
Tal artificialidade, que remonta ao cânone, integrando-o, aparece na falsa modéstia
com que o autor se apresenta no “Prefácio” à primeira parte da Lira.
São os primeiros cantos de um pobre poeta. Desculpai-
os. As primeiras vozes do sabiá não têm a doçura dos
seus cânticos de amor. É uma lira, mas sem cordas:
uma primavera, mas sem flores, uma coroa, mas sem
viço. (...) Ó meus amigos, recebei-a no peito, e amai-a
como o consolo que foi de uma alma esperançosa, que
depunha na poesia e no amor esses dous raios
luminosos do coração de Deus.(OC, 2000, p. 120)
Apresentar-se como pobre poeta, que se desculpa por sua poesia é certamente
obediência às expectativas de seu tempo, reprodução do cânone, exemplo de falta de
originalidade e de ausência do gênio, que levaria o autor a afirmações mais imaginativas.
Todavia o que mais nos interessa nessa passagem é a aproximação final que é feita entre
poesia e Deus.
havíamos dito anteriormente que fazia parte do Romantismo o que poderíamos
chamar de visão soterológica da poesia e da arte, ou seja, uma visão de que a arte era algo
sagrado e sublime, o que evidentemente se estenderia sobre a figura do poeta,
transformando-o também num ser sacralizado. Essa visão encontra-se intimamente ligada à
idéia de inspiração, central no Romantismo.
Desde os tempos clássicos, a inspiração sempre esteve identificada a uma espécie
de transe, de possessão do indivíduo por algo exterior, desconhecido, estranho e
comumente associado às divindades. A figura da Musa demonstra exatamente isso. Assim,
nesse contexto, o poeta sentia-se um instrumento divino, um vate, através do qual algo
sobrenatural se manifestava. no Romantismo, essa configuração muda um pouco de
contornos, com a interiorização da própria divindade, da religiosidade, como citamos. O
28
Eu grandioso do romântico tem dentro de si o transcendente (que hoje poderíamos
compreender como inconsciente) que lhe grita o poema, sem que a razão possa dominar
esse processo. Houve, portanto, um deslocamento da força motriz da arte, que do espaço
externo do “não-Eu”, ocupado na época clássica, passa para o espaço interno do Eu, no
Romantismo. Apesar dessa diferença que se justifica por fatores históricos, ainda assim
uma espécie de divinização da inspiração, desse inconsciente indomável, pessoal e
intransferível que marca o gênio do poeta. Observe sobre isso, a seguinte citação, do texto
“A estética do Romantismo” (cópia xerox, sem fonte bibliográfica):
A fonte da inspiração estava dentro dele, na parte
inconsciente do seu próprio ser. Em lugar de ser o
instrumento passivo, ou voz, de um poder estranho, o
artista, através da parte inconsciente e involuntária de
si mesmo, se identifica com o absoluto.(p. 188)
Dessa forma, o poeta passa ocupar uma posição ainda mais importante que a de
vate, pois agora é quase um deus, que tem dentro de si algo inato, que o marca como
diferente, superior.
Na poética de Álvares de Azevedo, essa visão do poeta é recorrente sobretudo na
primeira parte da Lira. Ali, é freqüente a associação da figura do poeta a Deus,
confirmando a idéia disseminada no Romantismo a que fizemos referência. A título de
exemplo, observemos as seguintes passagens, nas quais mesmo que indiretamente a palavra
poeta encontra-se sempre cercada por outras que corroboram a visão sacralizada da função.
No poema “A Harmonia”:
Por que foste gemer na orgia ardente
A santa inspiração de teus poetas. (OC,
2000, p. 157, grifos nossos)
29
Percebe-se que apesar de maculada pelas orgias ardentes, a inspiração verdadeira é
santa, tal como indicam os pressupostos canônicos do Romantismo. Também em outros
momentos, mesmo que o eu poético se deixe desviar da santidade, ainda assim afirma-se a
idéia da natureza sublime do ser poeta, como ocorre no fragmento a seguir de “Hinos do
profeta”:
Fui um louco, meu Deus! Quando tentava
Descorado e febril manchar nos vinhos
Meus louros de poeta! (OC,
2000, p. 177, grifos nossos)
No mesmo poema, mais abaixo, é nesse contexto idealizado que a menção ao poeta
é feita:
Meu amor foi o sonho dos poetas
- O belo – o gênio – de um porvir liberto
A sagrada utopia (OC, 2000, p. 177,
grifos nossos)
Mostrando que o que o poeta sonha ascende à posição de sagrada utopia,
ratificando mais uma vez sua construção idealizada.
Ao falar de sua interação com o ambiente natural, é também de maneira sintomática
que o eu lírico refere-se ao poeta, inserindo-o em uma esfera divina, sendo tomado por
anjos, como vemos na passagem do poema “Anima mea”:
Criaturas de Deus se peregrinam
Invisíveis na terra consolando
As almas que padecem, certamente
É um anjo de Deus que toma ao seio
A fronte do poeta que descansa! (OC,
2000, p. 154, grifos nossos)
30
Outro exemplo contundente se quando o poeta, ao cantar sua terra natal, no
poema “Na minha terra”, refere-se a uma flor/que Deus abriu no peito do poeta, que
embora possa ser o sentimento nativista, não se descarta também a leitura de que essa flor
seja uma metáfora da própria inspiração poética nascida das mãos de Deus.
Se adormeço tranqüilo no teu seio
E perfuma-se a flor
Que Deus abriu no peito do poeta,
Gotejante de amor. (OC,
2000, p. 140)
Dessa concepção canônica do poeta e do fazer poético, temos, por conseguinte, o
predomínio de uma atmosfera sublime na qual o eu lírico aparece permanentemente
inserido. Esse é um poeta sentimental, que se entrega basicamente ao tema amoroso, ao
canto da mulher anjo, divina também como a inspiração que o lança aos versos. É evidente
que podem surgir a melancolia e a frustração, sentimentos tão apontados como típicos da
poética azevediana; mas para nós o que parece importante é que ainda assim se mantém
uma visão positiva, idealizada, canônica e superior da figura do poeta. Mesmo no final da
primeira parte, quando o estado anímico do Eu parece cada vez mais tomado pelos dois
sentimentos citados (o que geraria o satanismo marcante da segunda parte), é dessa forma
antológica que o poeta, em “Lembrança de morrer”, caracteriza-se no epitáfio que queria
ver em sua lápide:
Foi poeta sonhou e amou na vida! (OC, 2000,
p. 188)
31
Dessa forma, a identidade do poeta se define dentro de duas esferas altamente
positivas para a visão românica: a esfera do sonho e do amor. Para confirmar a construção
positiva que se faz da poesia e do poeta na primeira parte da Lira, leiamos os versos a
seguir:
Não tardes, minha vida! No crepúsculo
Ave da noite me acompanha a lira...
É um canto de amor... Meu Deus! Que sonhos!
(OC, 2000, “Tarde de verão”, p. 165)
E tu, vida que amei! Pelos vales
com ela sonharei eternamente,
nas noites junto ao mar, e no silêncio,
Que das notas enchi a lira ardente!. (OC, 2000,
“Virgem morta”, p.175)
Mesmo que o pessimismo já contamine tais versos, no juízo de valores feito pelo eu
lírico a partir da moral romântica, percebemos que ser poeta é sublime, ainda que sofrido, e
que a poesia é superior, ainda que expresse ilusão ou tristeza. É isso que depreendemos de
versos, como o seguinte, de “Virgem morta”, no qual o eu lírico se refere a:
Desbotada coroa do poeta (OC, 2000,
p. 175)
Ou em outros, como os de “Tarde de outono”, em que, embora lamente o estado
anímico solitário e saudoso no qual se encontra, reconhece a inspiração poética como
Musa:
Oh! Musa, por que vieste,
E contigo me trouxeste
A vagar na solidão? (OC, 2000, p.
166)
32
Em praticamente toda essa parte da Lira, percebemos que, quando se fala do poeta,
fala-se do próprio eu, o que nos coloca diante do lírico mais típico. Não objetividade no
tratamento do que representaria a figura do poeta, pois aqui o poeta é o próprio eu lírico (ou
o eu lírico percebe-se como poeta, gerando a identidade de elementos). Por isso, está
preocupado eminentemente consigo mesmo, voltando-se para si e para seu mundo interior,
que pode estar povoado por bons ou maus sentimentos, que o apaziguam ou angustiam, mas
todo tempo, como lírico que é, é para si que olha. O Mundo a sua volta, no sentido objetivo,
não o preocupa, não o mobiliza. Por isso, o por que o eu lírico discutir a posição do
poeta em suas tensões, tal como fará na segunda parte da obra. A visão simplista que emana
das poesias citadas tem, portanto, como uma de suas justificativas o fato de tudo ocorrer no
mundo íntimo do eu, no qual não os embates existentes na sociedade. Pode até haver
outros embates, como entre o desejo sexual e a culpa, entre o amor e o medo, indicados
por tantos críticos, como Mário de Andrade. Porém, nenhum desses embates atinge a
imagem construída do poeta, que permanece absolutamente idealizada e canônica. Para que
tal imagem se problematize, seria necessário o deslocamento do eu dele mesmo (ou seja, o
deslocamento do eu da própria imagem do poeta, com a qual se identifica), levando à crise
o lírico mais pico, fazendo instaurar-se a objetividade necessária para a crítica, para a
ironia e para o humor, como veremos ocorrer na segunda parte da Lira.
33
2.3 O poeta visto pelo prisma da ironia
Retomando a tensão que no início do item 2.1 apontamos ser fundamental no
Romantismo (Eu X Mundo), percebemos que enquanto na primeira parte da Lira o foco das
atenções das poesias encontrava-se basicamente no Eu, configurando o lírico mais típico,
na segunda parte esse foco desloca-se para o Mundo. Essa objetivação da subjetividade
implicará algumas mudanças necessárias de perspectiva, responsáveis pelo surgimento da
ironia e do humor. A alterização do objeto poético possibilita a ação crítica sobre ele, por
isso a figura do poeta alterizada é condição sine qua non para seu questionamento.
Interessante sobre o necessário descolamento do Eu dele mesmo para o exercício do
questionamento, sobretudo humorístico, é a seguinte citação de Lélia Parreira Duarte:
Enquanto self mergulhado no mundo, o sujeito
está realmente assujeitado à cultura em que se
insere e será simplesmente elemento de
expressão dessa cultura; ao tomar consciência
dessa sujeição, ele pode entretanto fingir que
tem autonomia e assim fazer um exercício de
liberdade, através do humor. (DUARTE, 1994,
71-2)
Se é basicamente o Mundo que estará sendo enfocado, não será mais aceitável a
manutenção de um tom sublime, associado ao cânone, e surgirá um poeta rebelde que
investirá na criatividade e na problematização de conceitos ingenuamente apresentados nas
poesias da primeira parte da Lira. Isso porque o Mundo reproduz a ideologia do
Capitalismo, que tiraniza o Eu. Nas palavras de Ernest Ficher, assim se justifica a atitude
freqüentemente confusa do romântico em relação ao que significa o seu estar no mundo:
34
No mundo capitalista, o indivíduo se defrontava
sozinho com a sociedade, sem intermediário algum,
como um estranho no meio de estranhos, como um ‘Eu’
isolado em posição ao imenso ‘não-Eu’. Tal situação
estimulava a autovalorização e um orgulhoso
subjetivismo, mas produzia igualmente um sentimento
de fragilidade, perda e abandono. (FICHER, s/d, p. 65)
Dessa forma, não seria coerente manter o discurso da ideologia dominante, pois é
preciso que o Eu supere as limitações que o Mundo lhe impinge. Por isso, ao voltar os
olhos para a arena do mundo que o cerca, o eu poético da segunda parte da Lira (tratado
aqui de maneira genérica) rompe com o cânone, entregando-se ao discurso irônico e
dessacralizante. O Eu não é mais aquilo para o que se olha. O mundo interior, no qual havia
se refugiado e no qual vivia de modo fantasiado o eu lírico dos poemas da primeira parte da
Lira, é substituído pelo Mundo objetivo, social, que julga e avalia tudo a partir de
parâmetros bastante diversos dos valores egocêntricos. Por isso ocorre a inevitável
mudança de tom a que se refere o poeta já no “Prefácio” da segunda parte, com uma lucidez
que nos espanta:
Cuidado, leitor, ao voltar esta página! Aqui
dissipa-se o mundo visionário e platônico.(OC,
2000, p. 190)
Ao contrário de apresentar um prefácio que correspondesse às expectativas
canônicas da época, como vimos ocorrer no prefácio à primeira parte, aqui o autor se deixa
levar pela originalidade de seu gênio. O que parecia absolutamente uma formalidade lá,
agora tem motivo de ser. O grau de autoconsciêcia literária, característico de um prefácio,
intensifica-se aqui, revelando a predisposição do poeta para pensar e discutir, não só a sua
própria obra, como nos lembra Antônio Cândido ao afirmar que não é possível descrever
35
com maior consciência a própria obra, nem resolver de antemão problemas que os críticos
futuros remoerão sem a menor necessidade (CANDIDO, 1981, p. 181), mas também
problematizar outras questões ligadas à própria sociedade de seu tempo.
Essa problematização, no entanto, começa pelo próprio Eu, que se mostra
ambíguo:
Duas almas que moram nas cavernas de um
cérebro pouco mais ou menos de poeta
escreveram este livro, verdadeira medalha de
duas faces. (OC, 2000, 190)
O autor aqui se refere aos moldes que ele mesmo cunhou para definir sua produção
as faces de Ariel e Caliban. O leitor é, portanto, avisado que Ariel, o representante do
sublime e do sagrado, despediu-se e que agora foi entronado Caliban. Antes da Quaresma
o Carnaval (OC, 2000, 190), afirma Álvares de Azevedo, mostrando sua consciência da
inversão carnavalizante de que lançará mão nas ginas da segunda parte da Lira, ao
romper com a atitude canônica. As referências a essa ruptura com o cânone não cessam no
“Prefácio”. Vejamos:
(...)quando os homens se vêem inundados de
páginas amorosas, preferem um conto de
Boccaccio(...) a todas as ternuras elegíacas dessa
poesia de arremedo que anda na moda, e reduz as
moedas de oiro sem liga dos grandes poetas ao
troco de cobre, divisível até ao extremo, dos
liliputeanos poetastros.(OC, 2000, p. 190)
O autor mostra uma incrível consciência das limitações do cânone e do campo
intelectual no qual estava inserido. Se o sucesso e a aceitação fáceis viriam com a poesia de
arremedo, que corresponderia ao padrão canônico, a poética azevediana prefere o caminho
mais difícil da ironia, do sarcasmo, do erotismo, desviando-se daquela dos liliputianos
36
poetastros. É particularmente interessante observar o que Luiz Costa Lima afirma em seu
artigo sobre o sistema intelectual brasileiro à época de Azevedo:
(...)o intelectual oitocentista brasileiro se
contentava em estar em dia, na medida do
possível, com as novidades européias (...) Pois
desde a sua legitimação o sistema intelectual
brasileiro tem receio de ser original.(LIMA,
1981, p. 10)
Sabemos que Luiz Costa Lima encaminha sua discussão para a oposição entre
cultura estrangeira e cultura nacional, porém podemos também afirmar o mesmo que ele
para outra oposição que nos é mais próxima: a que se estabelece entre poesia canônica e
poesia dissonante. Se o público esperava a poesia europeizada, esperava, também, a poesia
canônica; a falta de originalidade a que o crítico se refere é tanto para a ausência de um
traço verdadeiramente nacional, quanto dissonante. Álvares de Azevedo fala em poesia(...)
que anda na moda (OC, 2000, p. 190): não modo mais claro para se referir ao cânone e
ao bom acolhimento que o público fazia dele. Porém, na perspectiva mordaz e crítica de
nosso poeta, tal poesia reduz moedas de oiro(...)ao troco de cobre (OC, 2000, p. 190),
expressando um juízo de valores que só o pode levar aos grandes poetas, que ficam fora da
moda.
Outro detalhe interessante e que agora propriamente discute a questão central
desse trabalho é o tipo de avaliação que no “Prefácio” o autor faz do poeta e da poesia.
Diferente da visão do poeta quase deus que parece marcar a primeira parte da Lira,
aqui textualmente é o que temos:
É quando a poesia cegou deslumbrada de fitar-se
no misticismo, e caiu do céu sentindo exausta as
asas de oiro. O poeta acorda na terra. Demais, o
37
poeta é homem, Homo sum, como dizia o célebre
Romano.
(OC, 2000, p. 190, grifos nossos)
A inspiração sai do plano do divino em que se encontrava: a musa perde suas vestes
angelicais e se lança ao prosaico. Como nos disse Antônio Cândido, Álvares de Azevedo:
Foi o primeiro, quase único antes do
Modernismo, a dar categoria poética ao
prosaísmo quotidiano, à roupa suja, ao cachimbo
surrento; não por exigência da personalidade
contraditória, mas como execução de um
programa conscientemente traçado
(CANDIDO, 1981, 180)
Parece-nos, inclusive, que não cabe falar mais em inspiração (que de fato não deixa
vestígio explícito nos poemas), pois a poética azevediana na segunda parte da Lira
converte-se em produção tão engajada num programa estético consciente que não sobra
espaço para expansões sentimentais típicas daquela categoria, em sua concepção
tradicional. Por isso, sentimos, inclusive, um afrouxamento do gênero lírico, que aparece
substituído por aspectos claramente narrativos ou, ainda com maior freqüência, dramáticos.
Com exceção talvez de “Idéias íntimas”, o restante dos textos dessa parte não é resultado da
impulsão lírica; quando não apresentam claramente uma estrutura dramática ou narrativa,
são francamente satíricos.
No que diz respeito ao aspecto com o qual trabalhamos, é interessante constatar,
ligado ao caráter pouco lírico dessas poesias, que enquanto na primeira parte da Lira o
poeta a que se fazia referência nos versos, via de regra, correspondia ao próprio Eu (era,
portanto o eu lírico); na segunda parte, tais menções são feitas a uma terceira pessoa, que
incorpora a função de poeta (que será uma espécie de personagem). Essa alteridade do
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poeta em relação ao Eu, tal como na essência do humor, configura-se como estratégia
poética que busca favorecer a ampliação do ponto de vista crítico com que nos deparamos
nessa parte da Lira. Dessa forma, faz parte do próprio projeto criador de Álvares de
Azevedo a produção de textos que lançam mão de estrutura narrativa ou dramática, a fim de
conquistar um ponto de vista mais crítico, menos comprometido com a subjetividade e mais
propenso à reflexão sobre a realidade na qual o poeta está inserido.
O primeiro desse tipo de texto da segunda parte da Lira de pronto nos
interessa pelo tema abordado: “Um cadáver de poeta”. Nele, o autor relata acontecimentos
que giram em torno do corpo de Tancredo, poeta de um Reino fictício, abandonado na
estrada. O poema apresenta um misto de estrutura narrativa e dramática e é composto por
sete partes: nas quatro primeiras, predomina a feição narrativa e nas demais, intensifica-se o
caráter dramático. A tônica da história é o completo descaso de todos com a morte do poeta
e, mais ainda, com o fim a dar a seu cadáver. O motivo atribuído ao descaso é fortemente
ligado à sociedade burguesa: o dinheiro (ou a falta dele).
No início do poema, o narrador vai-nos apresentando o poeta já morto, fazendo uma
referência genérica ao que ele era em vida.
De tanta inspiração e tanta vida
Que os nervos convulsivos inflamava
E ardia sem conforto...
O que resta? Uma sombra esvaecida,
Um triste que sem mãe agonizava...
Resta um poeta morto!
(OC, 2000, p.192)
Deslocado do contexto do poema, o fragmento acima poderia muito bem ser lido
como uma referência às transformações que serão experimentadas pelos leitores na segunda
parte da Lira: morre o poeta canônico, que tinha tanta inspiração.
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Porém, inserida no conjunto do texto, a estrofe citada anuncia uma oposição que irá
ser feita sobretudo nas primeiras partes desse texto: de um lado, temos o interior grandioso
do poeta, agora morto, de outro, temos o mundo exterior.
no início do poema, através da escolha lexical feita pelo poeta para caracterizar
os dois pólos apontados, percebemos a tensão, a que já nos referimos, entre o eu e o mundo.
Percorrendo as quatro estrofes da parte I do poema, temos o uso de palavras tais como
ilusões, coração, saudades, sol, aurora, eternidade, estrela, mocidade, ou expressões como
larga fronte, gênio de Deus, de valor claramente positivo, para caracterizar o poeta e o seu
íntimo. Ao contrário, são palavras de cunho negativo, como impura, treva, solidão, fome,
maldita, que são usadas para caracterizar a vida exterior, o mundo em que vivia o poeta.
Observe-se, sobre isso, os seguintes versos:
Apagou-se teu sol da mocidade
Numa treva maldita!
(OC, 2000, p. 192)
Embora a oposição estabelecida pareça se relacionar à vida e à morte, mais abaixo
percebemos que a questão central debatida não é a da interrupção precoce da mocidade pela
treva da morte, mas a que se refere ao fato de o poeta, tão cheio de inspiração, de ilusões,
ter sido aniquilado pelo mundo no qual vivia e não conseguir sequer um túmulo digno:
Pobre gênio de Deus, nem um sudário!
Nem túmulo nem cruz! Como a caveira
Que um lobo devorou!...
(OC, 2000, p. 192)
Embora em tudo o tratamento dado à tensão entre Eu e o mundo lembre o também
canônico spleen byroniano, notamos que o autor não quer reproduzir os padrões da rebeldia
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romântica tradicional (quase sempre sem alvo concreto) e o mundo que o aniquila não é
uma entidade amorfa. Vejamos:
Morrer! E resvalar na sepultura,
Frias na fronte as ilusões – no peito
Quebrado o coração!
Nem saudades levar da vida impura
Onde arquejou de fome... sem um leito!
Em treva e solidão!
(OC, 2000, p. 192)
O tom solene, superior e intensamente anímico dos quatro primeiros versos da
estrofe acima é quebrado pela inserção de um elemento prosaico: a fome. O drama do poeta
não se circunscreve ao âmbito dos sentimentos da alma, das sensações interiores, mas no
das suas necessidades concretas mais básicas. Não é portanto um ser divinal que se
apresenta ao leitor, mas um homem que morre, não por amor ou de tédio e frustração, mas
de fome.
Morreu um trovador – morreu de fome (OC, 2000, p. 193), nos anuncia a parte II do
poema. A partir da parte II, inclusive, esse tipo de construção torna-se freqüente: o poeta
adota o tom sublime, para dessacralizá-lo a seguir, quebrando a expectativa do leitor. É o
que ocorre na passagem abaixo:
Ninguém ao peito recostou-lhe a fronte
Nas horas de agonia! Nem um beijo
Em boca de mulher! Nem mão amiga
Fechou ao trovador os tristes olhos!
Ninguém chorou por ele... No peito
Não havia um colar nem bolsa d’oiro;
Tinha até seu punhal um férreo punho...
Pobretão! Não valia a sepultura!
(OC, 2000, p. 193)
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Versos claramente sublimes, canônicos, assumindo o tom solene e emocional do
Romantismo típico, como os cinco primeiros dessa estrofe, são seguidos pelos três últimos,
nos quais os valores anímicos sem os quais o poeta morreu são substituídos pelos valores
materiais, causa verdadeira, dentro da ótica demolidora e desveladora do autor, do
abandono do poeta. A solidão e a incompreensão, signos do poeta romântico visto como
um ser de exceção, tal como o cânone construiu, são citados nos versos para serem
rechaçados em nome da visão realista e dissonante que o autor quer apresentar do mundo
no qual está inserido. No que tange a isso, é bastante reveladora a última estrofe da parte II
desse poema:
O mundo tem razão, sisudo pensa,
E a turba tem um cérebro sublime!
De que vale um poeta – um pobre louco
Que leva os dias a sonhar – insano
Amante de utopias e virtudes
E num tempo sem Deus, ainda crente?
(OC, 2000, p. 193)
Endossando aparentemente a idéia pragmática que o mundo faz do poeta, o autor
constrói sua ironia, apresentando o poeta como um ser quixotesco. O poeta não tem função
no mundo atual, e o mundo tem razão e a turba cérebro sublime ao constatar isso. No
entanto, esse é um tempo sem Deus, e o poeta, um louco, que ama utopias e é ainda crente.
Delineia-se, assim, um forte juízo de valores e uma moral bastante significativa.
Na perspectiva crítica de Álvares de Azevedo, não espaços para a ilusão: esse
não é um mundo para poetas, pois é um mundo baseado nos valores materiais. E nesse
mundo capitalista, em que a razão dita as regras do jogo, a poesia, vista como loucura, não
é bem vinda. Resta saber de que lado está o autor: do lado do mundo ou do poeta?
42
A visão sagaz do autor sobre o mundo que o cerca o leva a adotar como estratégia
de composição do texto a afirmação como modo de negação. Álvares de Azevedo lança
mão do recurso da polifonia e incorpora o discurso disseminado pelo sistema capitalista,
para nas entrelinhas deixar ecoar sua voz e sua crítica contundente que desconstroem a voz
do senso comum baseado nos valores materiais:
A poesia é de certo uma loucura;
Sêneca o disse, um homem de renome.
É um defeito no cérebro... Que doidos!
É um grande favor, é muita esmola
Dizer-lhes bravo! À inspiração divina,
E quando tremem de miséria e fome,
Dar-lhes um leito no hospital dos loucos...
Quando é gelada a fronte sonhadora,
Por que há de o vivo que despreza rimas
Cansar os braços arrastando um morto,
Ou pagar os salários do coveiro?
A bolsa esvaziar por um misérrimo,
Quando a emprega melhor em lodo e vício!
(OC, 2000, p. 193)
A ironia do autor apresenta as atitudes daqueles que desprezam a poesia por
aderirem à moral do mundo, como natural, porém deixa implícito seu caráter desumano. Se
não se gasta dinheiro com um homem morto (o poeta), gasta-se melhor em lodo e vício.
Continuando a mesma estratégia polifônica a que nos referimos, na sexta e na
sétima estrofes o autor usa a exemplificação como argumento para defender sua tese de que
a poesia e o dinheiro estão em pólos opostos, o que elimina a possibilidade de existência
(ou valorização) da primeira em um mundo como o em que vive o poeta. Traçando um
histórico de poetas famosos, constata o autor a inadequação de todos eles ao mundo dos
valores materiais. O eu lírico só faz duas ressalvas: a Horácio e a Camões. Vejamos porque:
43
Por isso adoro o libertino Horácio
(...)Parasita,
só pedia dinheiro – no triclínio
Bebia vinho bom – e não vivia
Fazendo versos às irmãs de Augusto
(OC, 2000, p. 194)
E quem era Camões? Por ter perdido
Um olho na batalha e ser valente,
Às esmolas valeu.(...)
(OC, 2000, p. 194)
Sobre a incompatibilidade que parece existir entre poetas famosos e o dinheiro, o
que acaba gerando uma relação dúbia de desejo e desprezo, é interessante observar o que
nos diz Álvares de Azevedo no poema “O Editor”, cuja estrofe transcrevemos a seguir:
Desde Homero (que até pedia cobre),
Virgílio, Horácio, Calderon, Racine,
Boileau e o fabuleiro Lafontaine
E tantos que melhor decerto fora
Dos poetas copiar algum catálogo,
Todos a mil e mil por ele vivem,
E alguns chegaram a morrer por ele!
Eu só peço licença de fazer-vos
Uma simples pergunta. Na gaveta
Se Camões visse o brilho do dinheiro –
Malfilâtre, Gilbert, o ativo Chatterton
Se o tivessem nas rotas algibeiras
Acaso blasfemando morreriam?
(OC, 2000, p. 243)
A tensão entre poeta e dinheiro parece gerar até mesmo uma espécie de “má
consciência”, a partir da qual se despreza e diminui exatamente aquilo que não se pode ter.
Corrosivo, o autor reproduz o discurso do mundo pragmático para apontar-lhe o
absurdo e a mediocridade. Nesse mundo, em que, sem trocadilhos, a moeda é o dinheiro,
qualquer outro valor é desprezado e a poesia é inútil ou fútil:
44
Deixem-se de visões, queimem-se os versos.
O mundo não avança por cantigas
(...)
Um poema contudo, bem escrito,
Bem limado e bem cheio de tetéias,
Nas horas do café lido fumando,
Ou no campo, na sombra do arvoredo,
Quando se quer dormir e não há sono,
Tem o mesmo valor que a dormideira.
(OC, 2000, p. 194)
E o poema continua apontando a distância que separa a poesia do dinheiro,
colocando aquela em condição absolutamente inferior:
Um poeta no mundo tem apenas
O valor de um canário de gaiola...
(OC, 2000, p. 194)
(...) não há doce lira
Nem sangue de poeta ou alma virgem
Que valha o talismã que no oiro vibra!
(OC, 2000, p. 194)
No final da parte II do poema, Álvares de Azevedo fecha suas considerações sobre o
poeta e a poesia no mundo regido pelo dinheiro e mostra com clareza ao leitor mais
desavisado sua avaliação sobre a visão dominante acerca da inutilidade da literatura,
deixando ecoar sua voz e não mais o discurso dos valores materiais:
Meu Deus! E assim fizeste a criatura?
Amassaste no lodo o peito humano?
Ó poetas, silêncio! É este o homem?
A feitura de Deus! A imagem dele
O rei da criação!...
Que verme infame!
Não Deus, porém Satã no peito vácuo
Uma corda prendeu-te – o egoísmo!
45
Oh! Miséria, meu Deus! E que miséria!
(OC, 2000, p. 195)
Nesse momento, em que não mais escutamos a voz do mundo ironicamente
incorporada pelo autor, o tom se eleva e dramatiza. A pontuação enfática, com
interrogações retóricas reveladoras da perplexidade do poeta, com exclamações e
reticências que demonstram seu forte envolvimento emocional, auxilia na verificação da
moral à qual o poeta quer filiar-se e que se coloca em pólo oposto ao do homem verme
infame que aderiu ao egoísmo do mundo balizado pelo dinheiro.
A partir de então, são-nos apresentados diversos personagens, representantes
metonímicos dos variados segmentos sociais, que vão aviltar ainda mais a figura do poeta,
em situações trágico-cômicas: o Rei preocupa-se com seu cavalo, que pode se assustar com
o cadáver do poeta, o bobo da corte o ridiculariza, a carroça do Bispo o atropela, porém
ninguém se digna a dar-lhe um túmulo. Até que, na quinta parte do poema, entra em cena
um casal: Elfrida e Solfier. Solfier é mais um a não se importar com o cadáver de Tancredo,
o poeta morto, mas Elfrida se apieda e deseja ajudar, dando a um desconhecido, que surge
de uma área sombria, dinheiro para ajudar a enterrá-lo.
O desconhecido, nessa parte dramática do poema (conforme já havíamos
mencionado), assume a voz do autor, apresentando seu juízo de valores e recusa o dinheiro
que foi o motivo da morte e do sofrimento de Tancredo.
Tancredo o trovador morreu de fome;
Passaram-lhe no corpo frio e morto,
Salpicaram de lodo a face dele,
Talvez cuspissem nesta fronte santa
Cheia outrora de eternas fantasias,
De idéias a valer um mundo inteiro!...
Por que lançar esmolas ao cadáver?
(OC, 2000, p. 199-200)
46
A partir desse momento, o tom canônico volta a anunciar-se e o desconhecido,
assumindo um discurso de autopiedade, que de certa maneira destoa da crítica audaciosa
feita nas partes iniciais do poema, assim apresenta o poeta que descobrimos que ele
também é:
Quem sou eu? Um doudo, uma alma de insensato,
Que Deus maldisse e que Satã devora;
Um corpo moribundo em que se nutre
Uma centelha de pungente fogo,
Um raio divinal que dói e mata,
Que doira as nuvens e amortalha a terra!...
Uma alma como o pó em que se pisa;
Um bastardo de Deus, um vagabundo
A que o gênio gravou na fronte – anátema!
(...)
Eu era um trovador, sou um mendigo...”
(OC, 2000, p. 201)
Com exceção da frase final (sou um mendigo), todas as demais que buscam traçar a
definição de trovador recorrem a lugares comuns do Romantismo canônico, identificando o
poeta a um doudo, bastardo de Deus, a quem tem em si um raio divinal, um gênio, que foi
maldito por Deus e devorado por Satã, enfim, endossando a visão dominantemente
romântica da figura do poeta.
É interessante constatar aqui que, exatamente como ocorreu na primeira parte da
Lira, o poeta fala em primeira pessoa, ao contrário do que ocorre nos momentos de visão
crítica mais contundente. O retorno ao mundo interior reforça, portanto, a adesão ao
cânone, cuja atmosfera passa a predominar.
Ao final do poema, o tom sentimental toma conta dos versos, reproduzindo soluções
canônicas. O poeta pobretão, morto de fome, aviltado por todos, que nos foi apresentado
47
pela ironia mordaz do autor em diversos momentos, agora é enterrado pelo desconhecido,
que ninguém mais é do que uma mulher por ele apaixonada. Ou seja, não se tem dinheiro,
mas se tem amor.
Embora aqui o final melancólico rompa com a sátira e com a ironia demolidoras do
cânone, em outros momentos da segunda parte da Lira elas reaparecem cumprindo sua
função. É o caso de algumas passagens do poema “Boêmios”. temos Nini, poeta
canônico, e Puff, representante da visão pragmática do mundo, incorporada ironicamente
pelo autor.
Tenho muito miolo, e a prova disto
É que não sou poeta nem filósofo,
E gosto de beber, como Panúrgio.
(OC, 2000, p. 213)
Diz Puff, alcoolizado, diante de um Nini ingênuo que se acredita poeta de musas e
gênio.
A tensão entre poeta e mundo, entre valores anímicos e materiais, ainda encontra
realização em textos francamente irônicos, tais como “Vagabundo” (de “Spleen e
charutos”), “O poeta moribundo”, “Dinheiro” e “Minha desgraça”.
Em Vagabundo”, o mesmo recurso humorístico usado em poemas como “É ela! é
ela! é ela! é ela!” e “Namoro a cavalo” aparece agora para dessacralizar a figura do poeta
rebelde e marginal que povoa a mitologia romântica. Boêmio, livre de qualquer
compromisso social, o vagabundo que é o eu poético do texto é também poeta e, por isso,
conseqüentemente pobre. Porém aqui a ironia se manifesta exatamente na impossibilidade
de o eu poético ver criticamente a realidade que o cerca, tal como ocorreu em “É ela! é ela!
é ela! é ela!” em que um rol de roupas sujas foi confundido com versos de amor, ou o ronco
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da lavadeira era interpretado como algo mavioso e puro. Por isso, é assim que o eu poético
se apresenta ao leitor:
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso!
(OC, 2000, p. 233)
Aquilo que em “Um cadáver de poeta” marcou a negatividade do ser poeta, qual
seja, a pobreza resultante da falta de reconhecimento social, aqui é visto positivamente
como vemos no verso (antitético) acima. Porém, isso o significa que o poeta esteja
incorporando o discurso canônico, e sim usando uma nova estratégia de debate da questão e
de crítica à moral dos valores materiais dominante.
Para compreender tal estratégia, novamente a imagem quixotesca nos vem à mente.
O eu poético produzido pelo autor apresenta seu potencial de crítica à inserção do poeta no
mundo regido pela moral dos valores materiais exatamente às avessas. Como é ingênuo,
sente-se feliz por ser poeta, mesmo que ande roto, sem bolsos nem dinheiro. As palavras
escolhidas, os cortes no tom sentimental, a ironia patente, transformam em ridícula a
posição desse poeta vagabundo que vive na miséria, mas acha bom.
Embora em alguns momentos pareça mesmo que o discurso do eu poético é literal,
como em:
Canto à lua de noite serenatas,
E quem vive de amor não tem pobreza”
(OC, 2000, p. 233)
Em outras essa visão se desfaz, com a inserção de elementos prosaicos ou grotescos
que não dão sustentação senão à dicção irônica. Vejamos alguns desses momentos:
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Namoro e sou feliz nos meus amores;
Sou garboso e rapaz...Uma criada
Abrasada de amor por um soneto
Já um beijo me deu subindo a escada
(OC, 2000, p. 234)
Tenho por palácio as longas ruas
(OC, 2000, p. 234)
O degrau das igrejas é o meu trono
Minha pátria é o vento que respiro,
Minha mãe é a lua macilenta
E a preguiça a mulher por quem suspiro
(OC, 2000, p. 234, grifos nossos)
O poeta, portanto, continua sendo apresentado como alguém que não tem lugar na
sociedade capitalista, ficando à sua margem. É interessante observar que os espaços
ocupados pelo poeta no texto em questão são marginais (a rua, o degrau da igreja), bem
como o que é ocupado pela própria poesia (Escrevo na parede as minhas rimas) e embora
o eu poético expresse, em sua ingenuidade, a felicidade por essa marginalidade, é evidente
a pertinência da leitura irônica. Comprobatória do deboche que moveu a produção desse
poema é sua estrofe final:
Ora, se por aí alguma bela
Bem doirada e amante da preguiça
Quiser a nívea mão unir à minha
Há de achar-me na Sé, domingo, à missa.
(OC, 2000, p. 234)
O registro de oralidade do primeiro verso, o tratamento dessacralizado dispensado à
amada, a escolha lexical desafinada (vea X preguiça), etc não deixam dúvida sobre a
crítica feita pelo autor e sobre a leitura pelo avesso que devemos fazer.
50
Em “O poeta moribundo”, esse tratamento dispensado à representação feita da
figura do poeta permanece. Agora, trata-se de outro mito romântico, que será
dessacralizado: o mito do desejo de morte pelo poeta.
Poetas! Amanhã ao meu cadáver
Minha tripa cortai mais sonorosa!...
Façam dela uma corda, e cantem nela
Os amores da vida esperançosa!
(OC, 2000, p. 236)
A adoção do tom intensamente sentimental, da pontuação marcadamente enfática e
de um tema tipicamente romântico aponta o que poderíamos chamar de uma espécie de
“autoparódia”. Retomando o próprio discurso canônico do Romantismo, o que o poeta faz é
a sua subversão e superação. Para isso, utiliza-se da técnica de choque, ao colocar lado a
lado elementos dissonantes e inesperados. Depois da evocação sublime Poetas! Amanhã
ao meu cadáver o autor constrói um verso altamente iconoclasta, no qual se refere,
grotescamente às suas tripas. Em vez de adotar as metáforas sublimes como fez nos versos
abaixo, do antológico “Lembrança de morrer”, que tratam do mesmo tema abordado no
poema:
Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto o poente caminheiro
(OC, 2000, p. 188)
O poeta prefere o sarcasmo, a crítica, o deboche de si mesmo e o humor negro do símile a
seguir:
Eu morro qual nas mãos da cozinheira
O marreco piando na agonia
(OC, 2000, p. 236)
51
Assim, o poeta que está moribundo no texto em questão distancia-se longas
passadas daquele que aparecia na poética canônica e que encarava com seriedade e drama
seu destino de quem sofre o mal do século.
Também em “Minha desgraça” parece ser a desmitificação que guia a construção do
texto. A imagem do poeta desgraçado aqui ganha nova dimensão. A desgraça não é de
natureza anímica ou sentimental, mas nasce do descompasso entre o que o poeta tem e o
que ele não tem: inspiração poética e dinheiro, respectivamente.
Minha desgraça, não, não é ser poeta,
Nem na terra de amor não ter um eco,
E meu anjo de Deus, o meu planeta
Tratar-me como trata-se um boneco...
(OC, 2000, p. 245)
Nesses versos também percebemos uma estratégia de construção semelhante a dos
dois últimos poemas estudados. O poeta constrói os primeiros versos em um tom bastante
próximo do canônico, porém a partir do terceiro verso, as metáforas estranhas ao discurso
convencional do Romantismo meu planeta e um boneco - deixam o leitor de sobreaviso
para o caráter irônico do texto. A partir daí, a grande tensão entre poesia e dinheiro começa
a se delinear com mais precisão:
Não é andar de cotovelos rotos,
Ter duro como pedra o travesseiro...
Eu sei... o mundo é um lodaçal perdido
Cujo sol (quem mo dera!) é o dinheiro...
Minha desgraça, ó cândida donzela,
O que faz que o meu peito assim blasfema,
É ter para escrever todo um poema
E não ter um vintém para uma vela.
(OC, 2000, p. 245)
52
O poeta aqui representado opõe claramente os dois pólos que viemos confrontando
poesia e dinheiro somando a eles agora um dado novo. A segunda estrofe parece
mostrar uma certa conformação do poeta com mundo que o cerca: o mundo é assim, tem
por sol o dinheiro. Mesmo que avaliação do poeta acerca do mundo seja negativa, que o
como um lodaçal, o está o grande problema. O problema é mais profundo e
evidencia o desejo do poeta de reorganizar os valores e as morais que até aqui se
encontravam em pólos opostos. Na verdade, embora o mundo capitalista tenha alijado do
rol das atividades produtivas e conseqüentemente rentáveis o fazer poético, o desejo maior
do poeta é modificar o estabelecido. Para o poeta, a desgraça não está em se ser pobre, haja
vista a segunda estrofe, mas na combinação entre ser poeta e pobre.
Se essa visão pode ser lida como uma crítica contundente a um mundo baseado
somente em bens materiais, pode também ser interpretada como uma reação egocêntrica,
daquele que sua inspiração É ter para escrever todo um poema como algo tão bom
que soa absolutamente injusto desgraçado o seu não reconhecimento financeiro. Ao
contrário do que ocorre no mundo organizado a partir dos valores materiais, em que
dinheiro e poesia encontram-se em pólos opostos, o que o autor defende no poemaMinha
desgraça” é a aproximação de ambos. O poeta merece dinheiro, o quer como
reconhecimento, porque seu trabalho é digno, altíssimo e talvez melhor do que qualquer
outro que gera dinheiro nessa sociedade.
Desse modo, temos um poeta que rejeita o modelo de mundo que se lhe apresenta,
buscando colocar sua produção poética contra a moral reinante que localiza em pólos
opostos os valores intelectuais e anímicos (ao lado dos quais se coloca a poesia) e os
valores materiais.
53
3. A INFLUÊNCIA DA LEITURA LITERÁRIA EM ÁLVARES DE AZEVEDO
De formas que não precisam ser doutrinárias, os
poemas fortes são sempre presságios de
ressurreição.
(Harold Bloom)
Além da problematização acerca do papel do poeta e da poesia no mundo capitalista
do século XIX, a autoconsciência poética que marca a obra de Álvares de Azevedo
manifesta-se em outros aspectos. Nesse capítulo, trataremos de um deles ao buscarmos
comprovar que sua obra é resultado de uma intensa relação do poeta com a leitura literária.
A influência dos textos preferidos, de seus poetas mais caros, não se restringe ao campo das
idéias, sendo facilmente perceptível na própria produção poética, o mais das vezes de modo
explícito e consciente.
Como dissemos, a subjetividade inerente à poesia azevediana é, muitas vezes,
formada a partir da fruição de um texto. O poeta não escreve embasando-se na influência
do mundo extra-literário na natureza, na paisagem ou mesmo em um (des)amor real
mas no sentimento despertado pela leitura. É o que chamamos de subjetividade “fruidora”.
Assim, a subjetividade comum a toda obra romântica será, na obra de Álvares de
Azevedo, construída de maneira particular, através da relação do Eu com a poesia, e não do
Eu com a natureza, com o mundo, com as dores pessoais etc.
Caso as dores pessoais encontrem eco no poema escrito por Álvares de Azevedo,
primeiro, certamente, elas encontraram eco em uma leitura feita pelo poeta, que, a partir
dela, produziu seu texto.
54
Percebemos essa intrínseca relação da influência literária com a obra de Álvares de
Azevedo até mesmo no modo como se constrói o próprio eu poético dos textos. O eu
muitas vezes, não se apresenta sozinho, mas costuma ter seus sentimentos referendados por
algum elemento literário. É comum, por exemplo, a identificação do eu lírico com
personagens famosos das leituras feitas, mostrando o eu construído no texto azevediano
como prolongamento do que foi lido na influência:
Passei como Don Juan entre as donzelas,
Suspirei as canções mais doloridas
E ninguém me escutou...
Oh! Nunca à virgem flor das faces belas
Sorvi o mel, nas longas despedidas...
Meu Deus! Ninguém me amou!
(OC, 2000, p.179, grifos
nossos)
Embora pudéssemos dizer que as dores do homem que não consegue realizar seu
amor sejam as dores do jovem de vinte anos que foi Álvares de Azevedo, é a partir de uma
comparação literária que esse eu se define. Se as donzelas por quem suspirou são ou não as
mulheres paulistas que jamais despertaram a paixão do jovem Azevedo, pouco importa. O
que ganha relevância é o fato de a própria vivência do poeta ser dimensionada pela fruição
literária, ser compreendida pela obra lida.
Vários são os exemplos de comparações do eu poético das obras de Álvares de
Azevedo com Don Juan, com Lovalace, com Quixote, com Werther, com Faust.... Citemos,
como ilustração, um exemplo de cada uma dessas que são as referências mais recorrentes:
Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas
Se achou-a assim mais bela, - eu mais te adoro
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Sonhando-te a lavar as camisinhas!
(OC,É ela! é ela! é ela! é ela!,2000, p. 238, grifos
nossos)
Eu não desanimei. Se Dom Quixote
No Roncinante erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fui mesmo sujo ver a namorada..
(OC, Namoro a cavalo,2000,p. 243, grifos nossos)
Quantas virgens amei! Que Margaridas,
Que Elviras saudosas e Clarissas
Mais trêmulo que Faust, eu não beijava
Mais feliz que Don Juan e Lovalace
Não apertei ao peito desmaiando!
(OC,Idéias íntimas,2000, p. 208, grifos
nossos)
Dentro desse contexto, em que o próprio eu poético se reconhece como próximo às
personagens que povoam as leituras feitas, as referências literárias, como modo de explicar
ou compreender o sentido ou o vivido, não cessam. A vida vivida objetivamente e a leitura
se fundem constantemente na obra de Azevedo. O poeta parece dar sentido às angústias da
vida a partir das leituras.
Vinte anos! Derramei-os gota a gota
Num abismo de dor e esquecimento...
De fogosas visões nutri meu peito...
Vinte anos!... não vivi um só momento!
Contudo, no passado uma esperança
Tanto amor e ventura prometia,
E uma virgem tão doce, tão divina
Nos sonhos junto a mim adormecia!...
Quando eu lia com ela – e no romance
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Suspirava melhor nota,
E Jocelyn sonhava com Laurence
Ou Werther se morria por Carlota,
Eu sentia a tremer, e a transluzi-lhe
Nos olhos negros a alma inocentinha,
E a furtiva lágrima rolando
Da face dela umedecer a minha!
(OC, Saudades,2000, p.172)
Percebemos no fragmento poético acima que a fruição da leitura é capaz de
substituir a própria vida experimentada objetivamente. A esperança que no passado existiu
para o poeta, encarna-se em uma virgem, cujo contato era intermediado pela leitura. O
amor possível de ser vivido pelo eu lírico e sua virgem é substituído pelo amor lido, que
tanto a ele quanto a ela sensibiliza. O sentimento a furtiva lágrima sintomaticamente
não é despertado pela efetiva relação da amada com o que quer que seja da vida, mas pela
leitura catártica.
Por extensão, poderíamos dizer, sem que isso implique em um juízo de valores
negativo, que a relação amorosa que aparece, via de regra, na obra de Álvares de Azevedo
não é a que ele experimentou (nem precisava ser) e transpôs, a partir de sua subjetividade,
para sua produção, como quis ver, por exemplo, Mário de Andrade, mas aquela que leu nos
romances e nos poemas. Isso porque Álvares de Azevedo produz uma obra de profunda
consciência literária. No século XIX, quando não se ousava falar ainda na essência
dialógica da linguagem, na impossível indissociabilidade de uma obra em relação a todas as
que a antecederam, Álvares de Azevedo aparece lúcido em relação a essas irrecusáveis
influências.
Perdoa-lhes, meu Deus! O sol da vida
Nas artérias inflama o sangue em lava
E o cérebro varia...
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O século na vaga enfurecida
Mergulha a geração que se acordava...
E nuta de agonia!
São tristes deste século os destinos!
Seiva mortal as flores despontam
Infecta em seu abrir
E o cadafalso e a voz dos Girondinos
Não falam mais na glória e não apontam
A aurora do porvir!
Fora como belo talvez, em pé, de novo
Como Byron surgir – ou na tormenta
O homem de Waterloo:
Com sua idéia iluminar um povo,
Como o trovão da nuvem que rebenta
E o raio derramou!
Fora belo talvez sentir no crânio
A alma de Goethe e resumir na fibra
Milton, Homero e Dante
- Sonhar-se num delírio momentâneo
A alma da criação e o som que vibra
A terra palpitante!
(OC, Hinos do profeta,2000, p.
181)
N’O Conde Lopo, Álvares de Azevedo refere-se explicitamente à influência
exercida por Byron em seu texto, transformando o inglês na própria inspiração de seus
versos:
Alma de fogo, coração de lavas,
Misterioso Bretão de ardentes sonhos,
Minha musa serás – poeta altivo
Das brumas de Albion, fronte acendida
Em túrbido ferver! – a ti portanto,
Errante trovador d’alma sombria,
Do meu poema os delirantes versos!
(OC, 2000, p. 419)
58
Vemos, assim, surgir um poeta crítico de seu ato de criação, reflexivo dos meandros
da produção literária que empreende, consciente de que é impossível fugir ao caudaloso
jorro da deriva da literatura na qual se insere.
Em “Sombras de D. Juan”, da terceira parte da Lira dos vinte anos, o personagem
lendário, cuja referência romântica de maior força se encontra na obra de Byron, passa a ser
o próprio tema do poema, estabelecendo a intertextualidade em seu caso mais típico: o de
retomada explícita de outro(s) texto(s). Assim, Álvares de Azevedo insere-se na tradição de
escritura sobre o mesmo mote a figura de Don Juan que desde Tirso de Molina se dá,
produzindo literatura que se alimenta da própria literatura.
Cantando Don Juan morto, o eu poético azevediano nos apresenta novamente a
intensa relação que existe entre a obra do poeta paulista e a influência das leituras literárias.
De forma reveladora, o eu poético identifica-se com Don Juan a ponto de juntar-se a ele no
sepulcro:
Ergue-te um pouco da mortalha branca,
Acorda-te, Don Juan!
Contigo velarei: do teu sudário
Nas dobras negras deporei a fronte,
Como um colo de mãe:
E como leviano peregrino
Da vida as águas saudarei sorrindo
Na extrema do infinito!
E quando a ironia regelar-se
E a morte me azular os lábios frios
E o peito emudecer,
No vinho queimador, no golo extremo,
Num riso à vida brindarei zombando
E dormirei contigo!
(OC, 2000, p. 280)
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O sofrimento do eu poético diante da morte de Don Juan, cujo sudário é comparado
a um colo de mãe, revelando sua essência geradora de influência de modo emblemático,
desdobra-se no desejo de união na morte, explicitado pela exclamação do final. A simbiose
entre o eu poético e a figura de Don Juan prossegue após o surgimento do vulto
fantasmagórico do espanhol:
Do sombrero despiu a fronte pálida,
Ergueu à lua a palidez do rosto
Que lágrimas enchiam...
Cantava: eu o escutei... amei-lhe o canto,
Com ele suspirei, chorei com ele –
- O vulto era Don Juan!..
(OC, 2000, p. 281)
e completa-se quando o eu poético retira-se do texto, cedendo o lugar e a voz ao próprio
Don Juan, que passa a entoar sua cantiga.
3.1 “Idéias íntimas”: a confidência da influência.
O texto em que a influência da leitura literária aparece de forma mais exemplar na
poética de Álvares de Azevedo talvez seja “Idéias íntimas”, da segunda parte da Lira dos
Vinte Anos. No poema, Álvares de Azevedo explicita o que em outras obras fica muitas
vezes latente: a inspiração alcançada na própria literatura. Em “Idéias íntimas”,
encontramos um eu poético circunscrito a um mundo exclusivo o seu quarto e
mergulhado em literatura. As fronteiras concretas e absolutamente limitadas de seu quarto,
60
apagam qualquer traço da realidade objetiva. É um mundo construído por livros, versos e
imagens. Os olhos do eu poético giram à roda de seu quarto, que não apresenta janelas, e
transformam em texto a descrição desse ambiente particular e as sensações que nele são
despertadas. Encontramos um eu poético absorto em suas leituras, entediado da vida,
solitário. O byronismo do texto é evidente, mas isso nos interessa menos do que as pistas
que o discurso poético nos para a compreensão do fenômeno da autoconsciência poética
em Álvares de Azevedo.
Desde o início do texto, percebemos que, embora o poeta se deixe tomar pelo
spleen, e afirme, impregnado de “ironia romântica” que:
Vou ficando blasé (...)
Se assim me continuam por dois meses
Os diabos azuis nos frouxos membros,
Dou na Praia Vermelha ou no Parnaso
(OC, 2000, p. 203)
aquilo que nele gera esse sentimento não é algo explicitado ou que se prenda ao mundo
extraliterário. O eu poético não se refere a experiências de vida que pudessem ser
responsáveis pelo seu tédio, mas, de forma reveladora, se refere a uma experiência de
leitura. Mesmo que no plano da linguagem não tenham sido estabelecidas relações de causa
e efeito entre a leitura de Ossian, Lamartine e Shakespeare e o estado de espírito blasé do
eu poético, é contra ela que ele se coloca claramente:
Ossian o bardo é triste como a sombra
Que seus cantos povoa. O Lamartine
É monótono e belo como a noite,
Como a lua no mar e o som das ondas...
61
Mas pranteia uma eterna monodia,
Tem na lira do gênio uma só corda,
Fibra de amor e Deus que um sopro agita:
Se desmaia de amor a Deus se volta,
Se pranteia por Deus de amor suspira.
Basta de Shakespeare.(...)
(OC, 2000, p. 203)
O eu poético apresenta-se ao leitor como um crítico literário, que denuncia a
monotonia das leituras feitas, para só depois expor seu estado anímico contaminado por um
sentimento análogo ao que as leituras nele despertaram.
A partir da apresentação desse estado anímico, que leva o eu poético à clausura em
seu mundo particular, somos inseridos no espaço físico. Novamente, o eu poético descreve
somente os dados que se referem a um mundo construído ficcionalmente. Ou seja, nãoo
entrar no rol de elementos a serem descritos aqueles que encontrem referentes na realidade
objetiva pouco sabemos dos móveis ou de sua distribuição no ambiente, das cores das
paredes ou de qualquer outro objeto utilitário. Se a estante ou a cômoda aparecem, tal
aparição se justifica por se inserirem no processo de criação do mundo artístico que produz
a subjetividade exposta no texto.
A mesa escura cambaleia ao peso
Do titânio Digesto, e ao lado dele
Childe-Harold entreaberto ou Lamartine
Mostra que o romantismo se descuida
E que a poesia sobrenada sempre
Ao pesadelo clássico do estudo.
(OC, 2000, p. 204)
Outro exemplo dessa abordagem nos é dado quando o eu poético toma o candeeiro
como interlocutor:
Junto do leito, meus poetas dormem
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- O Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron –
Na mesa confundidos. Junto deles
Meu velho candeeiro se espreguiça
E parece pedir a formatura.
Ó meu amigo, ó velador noturno,
Tu não me abandonaste nas vigílias,
Quer eu perdesse a noite sobre os livros,
Quer, sentado no leito pensativo
Relesse as minhas cartas de namoro!
(OC, 2000, p. 204)
Ao dar estatuto literário ao prosaico candeeiro, o poeta nos mostra que a seleção do
que vai ou não figurar em seu texto é guiada exclusivamente pela relevância da relação que
o objeto estabelece com a leitura. O candeeiro é aquele que intermedeia o contato do eu
com seus poetas, daí porque foi eternizado nos versos de modo tão personificado quanto os
próprios livros, que se confundem uns com os outros sobre a mesa, como na alma do poeta.
Ao contrário desse papel relativamente secundário desempenhado pelos objetos de
cunho utilitário, tudo o que for vagamente artístico, e, portanto, construção ficcional,
ganhará destaque na descrição do ambiente sufocante do quarto:
Enchi o meu salão de mil figuras.
Aqui voa um cavalo a galope,
Um Roxo dominó as costas volta
A um cavaleiro de alemães bigodes,
Um preto beberrão sobre uma pipa,
Aos grossos beiços a garrafa aperta...
Ao longo das paredes se derramam
Extintas inscrições de versos mortos
E mortos ao nascer...
(OC, 2000, p. 204)
Nessa descrição, ganham importância os três retratos que pendem nas paredes da
sala. Mais uma vez, aqui, percebemos a importância da literatura na vida do poeta. O
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primeiro retrato é de Victor Hugo, a quem chama de homem sublime. Interessante é
notarmos que também na descrição do poeta francês o eu poético, denunciando o que faz
consigo mesmo, mistura dados literários e biográficos, fazendo da vida uma extensão da
arte. Vejamos:
Na minha sala três retratos pendem.
Ali Victor Hugo. Na larga fronte
Erguidos luzem os cabelos louros
Como c’roa soberba. Homem sublime,
O poeta de Deus e amores puros
Que sonhou Triboulet, Marion Delorme
E Esmeralda – a Cigana ... diz a crônica
Que foi aos tribunais parar um dia
Por amar as mulheres dos amigos
E adúlteros fazer romances vivos.
(OC, 2000, p. 204, grifos nossos)
O segundo retrato é de Lamennais, o bardo santo. Ao descrevê-lo, o eu nos deixa
perceber uma conseqüência interessante de suas investidas metapoéticas: a reflexão sobre o
papel do poeta na sociedade, conforme já apontamos no capítulo 2.
Aquele é Lamennais – o bardo santo,
Cabeça de profeta, ungido crente,
Alma de fogo na mundana argila
Que as harpas de Sion vibrou na sombra
Pela noite do século chamando
A Deus e à liberdade as loucas turbas.
(...)
E o gênio do futuro parecia
Predestiná-lo à gloria. A história dele?...
Resta um crânio nas urnas do estrangeiro...
Um loureiro sem flores nem sementes...
E um passado de lágrimas...
(OC, 2000, p. 205)
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Como em outros textos trabalhados no capítulo 2, a mesma preocupação atinge
Álvares de Azevedo: problematizar o papel do poeta e da própria poesia, mostrando sua
falta de prestígio na sociedade da época.
O terceiro retrato citado é o de uma pálida sombra de mulher formosa, reiterando a
idéia de que as mulheres das poesias de Azevedo não encontram referente na realidade
objetiva, mas na ficção:
(...) Naquele seio
Porventura sonhei doiradas noites:
Talvez sonhando desatei sorrindo
Alguma vez nos ombros perfumados
Esses cabelos negros, e em delíquio
Nos lábios dela suspirei tremendo.
(OC, 2000, p. 206)
Mesmo que o retrato corresponda a uma mulher que efetivamente o poeta conheça,
interessante é perceber que a fonte de inspiração não é ela, mas sua representação na arte.
Além de objetos que de alguma maneira estabelecem vínculo com o ambiente
literário que é a base da produção poética de Azevedo, somente aparecerão, à margem do
que nos remete à influência direta da leitura no poeta, os elementos que compõem a
atmosfera byroniana do texto (que por si são elementos de retomada literária e,
portanto, também metapoéticos e intertextuais em certa medida):
(...) Na minha cômoda
Meio encetado o copo reverbera
As águas d’oiro do Cognac fogoso.
Negreja ao pé narcótica botelha
Que da essência de flores de laranja
Guarda o licor que nectariza os nervos.
Ali mistura-se o charuto havano
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Ao meu mesquinho cigarro e ao cachimbo
(OC, 2000, p. 204)
As referências ao mundo que não seja o literário à natureza, à sociedade etc -
praticamente desaparecem nesse texto. Quando as vemos é quase sempre compondo uma
referência que é antes de tudo literária:
Ossian o bardo é triste como a sombra
Que seus cantos povoa. O Lamartine
É monótono e belo como a noite,
Como a lua no mar e o som das ondas...
(OC, 2000, p. 203)
Nesses versos com que se inicia o “Idéias íntimas”, aparecem algumas das poucas
referências ao mundo extraliterário, à natureza. Entretanto tais referências a noite, a lua
no mar ou o som das ondas - existem na tentativa do eu poético em explicar seu
sentimento fruidor.
Da mesma maneira, quando encontramos o eu poético referindo-se às amadas, não
vemos, como já dissemos, mulheres cujos referentes se encontrem na realidade, mas sim na
própria literatura. Acerca disso, leiamos os antológicos versos a seguir:
Quantas virgens que amei! Que Margaridas,
Que Elviras saudosas e Clarissas,
Mais trêmulo que Faust, eu não beijava,
Mais feliz que Don Juan e Lovalace
Não apertei ao peito desmaiando!
(OC, 2000, p. 208)
Embora, nos versos acima, o eu poético se refira metaforicamente à leitura dos
poetas que fazia em seu pobre leito, o que nos importa é observar como se estabelece a
relação entre ele e tal leitura. O modo como a leitura nos é apresentada evidencia um
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escapismo radical que nos remete mais uma vez a uma espécie de simbiose entre o Eu e o
texto. O eu poético não vive o amor das mulheres, mas o e o sente como um fruidor
obsessivo. A leitura ultrapassa seu caráter de leitura: ela se realiza como vivência, como
construção da subjetividade do eu. Interessante é observar que o leito é o mesmo lugar em
que o poeta e sonha seus devaneios de amor, nos quais as mulheres lânguidas dele se
aproximarem, para depois acordar, beijando o travesseiro. A leitura e o sonho de realizar na
vida o amor sexual desejado correspondem-se, compondo o mesmo ambiente da cama.
É um mundo à parte, o mundo do eu poético:
(...)A roupa, os livros
Sobre as cadeiras poucas se confundem.
Marca a folha do Faust um colarinho
E Alfredo de Musset encobre às vezes
De Guerreiro ou Velasco um texto obscuro.
Como outrora do mundo os elementos
Pela treva jogando cambalhota,
Meu quarto, mundo em caos, espera um
[
Fiat!
(OC, 2000, p. 205)
Sintomática a comparação entre o caos de seu quarto e a criação do mundo.
O quarto é o mundo desordenado em que os elementos estão misturados, em uma fusão
total. Porém, não temos o céu e a terra, a luz e as trevas ainda sem identidade: temos
fragmentos do eu e a literatura. Suas roupas, elementos concretos do próprio eu poético, e
seus textos preferidos se fundem nesse mundo em caos. Para nós, essa é a metáfora do
próprio projeto criador de Álvares de Azevedo: o de uma poesia que se faz do caos em que
se perderam os limites entre o eu e a literatura.
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3.2 O “Frontispício” de O Conde Lopo: um caso interessante de autoconsciência
poética.
A importância dada à própria literatura na obra de Azevedo, demonstrando sua
autoconsciência literária, cria situações interessantes. Além das que apontamos em
alguns textos da Lira dos vinte anos, em que ou os textos lidos pelo autor são usados nas
imagens e comparações construídas pelo poeta, ou servem de tema para seus textos, merece
destaque a que se dá no “Frontispício” do seu poema narrativo O Conde Lopo.
Nesse texto, em vez de simplesmente contar ao leitor a história de seu personagem
principal, o Conde Lopo, Álvares de Azevedo explicitamente deseja burlar a naturalização
da poesia como objeto artístico, tornando evidente para o leitor os meandros de sua
produção, mesmo que no plano ficcional. Ao elaborar o “Frontispício”, desnecessário para
a compreensão da narrativa poética que a ele se seguirá, Álvares de Azevedo mostra que o
texto não é uma aparição pronta que se entrega ao leitor, mas o produto da ação de um
poeta.
Para alcançar esse fim, Álvares de Azevedo elabora um simulacro em que aparece
um poeta que descobre o manuscrito de outro poeta. Assim, a criação literária se desdobra e
se mostra como tal: cria-se um eu lírico poeta, que leu e apresenta o texto de um outro eu
lírico poeta, que criou um personagem, que protagoniza a narrativa do texto que iremos ler
pela intermediação do primeiro eu lírico.
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a instauração de dois momentos no texto. No primeiro, claramente metapoético,
surge um eu lírico poeta que insere em um contexto de sofrimento e loucura outro poeta por
ele descoberto, através do manuscrito de um poema. A esse momento corresponde o
“Frontispício” de O Conde Lopo. O segundo momento corresponde ao texto em si, ou seja,
à narrativa poética de O Conde Lopo, que dispensaria o “Frontispício”, caso o desejo do
autor fosse simplesmente contar-nos uma história.
No plano ficcional, é a leitura da poesia, feita pelo eu lírico poeta do “Frontispício”,
que gerou a possibilidade da existência do próprio texto O Conde Lopo, que seria o
resultado de um trabalho de edição crítica. A situação é metapoética. O eu lírico poeta do
início do texto, cuja existência justifica-se unicamente pela intenção deliberada do autor de
desvendar os bastidores da produção poética, lança-se a um jogo literário próprio,
escolhendo uma epígrafe e produzindo versos para apresentar ao leitor os versos de um
poeta louco, descobertos sob o colchão de seu leito no hospício.
No “Frontispício”, executando sua tarefa de autoconsciência literária, dedica-se o eu
lírico à apresentação do poeta louco. Constrói-se a imagem, reincidente na poética de
Álvares de Azevedo, do poeta frustrado pela vida. Aqui, a frustração é primeiro creditada
aos males do amor, ao amar sem ser amado. Em seguida, surge a loucura que lhe consome
o siso. Nesse momento, aproximando-se, o poema, da visão crítica que, como já vimos, em
outros textos de Azevedo aparece, o anúncio de uma relação tensa entre o poeta e o
grupo social que o cerca:
Meu Deus! E após de tanto sofrimento,
De tantas baldas lágrimas vertidas,
De tanto fel bebido em taça amarga,
Da plebe estulta no hospital ser inda
Triste ludíbrio de insolente escárnio!
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Foi poeta – cantou – sonhou. – Mas hoje
Era-lhe morta a inspiração no peito,
Fugira a poesia, a insônia sua
Seca das lágrimas a esponja nela.
(OC, 2000, p.385)
Nos versos, percebemos que o eu poético sente-se perplexo diante do destino do
poeta. Após tanto sofrimento, como pode ser alvo da chacota alheia? A indignação do eu
lírico, expressa pelo uso da locução interjetiva Meu Deus!, justifica-se a partir de uma
antítese criada no texto. De um lado temos a plebe, não por acaso, estulta, de outro temos o
poeta. Dos versos deduz-se a natureza da situação de injustiça a que se destinou o poeta.
Representante da intelectualidade, o poeta, que mereceria melhor fim, vê-se sujeito ao
insolente escárnio dos estúpidos e ignorantes. A superioridade do poeta é marcada pela
coordenação de orações feita no primeiro verso da segunda estrofe transcrita: Foi poeta
cantou sonhou. Em tal verso, que remonta, intertextualmente, ao antológico “Lembrança
de morrer”, reforçando o caráter autoconsciente da obra de Azevedo, a ênfase alcançada
pelo uso destacado das três orações quase nucleares colabora para a criação de uma
argumentação praticamente irrefutável, que dispensa desenvolvimento ou explicação, para
justificar a indignação do eu poético diante do destino do poeta. Do ponto de vista do texto
- evidentemente não compartilhado pela sociedade estulta - ,basta que tenha sido poeta, que
tenha cantado e sonhado para tornar-se inadmissível o estado em que se encontra. Além
disso, a repetição enfática do pronome adjetivo tanto e de suas variações tanto
sofrimento/ tantas baldas lágrimas vertidas/ tanto fel bebido em taça amarga - havia
alçado o poeta a lugar altivo, dentro da ótica ultra-romântica que considera condição sine
qua non para o poetar o sofrimento d’alma.
70
Cabe ressaltar, ainda, que não é a loucura, em si, o motivo do lamento do eu lírico e
do desespero do poeta-personagem. Segundo a lógica que se estabelece no “Frontispício”,
mais do que perder o siso, o que aflige o eu lírico e o poeta-personagem é a relação
desprestigiada que será estabelecida pela sociedade com o poeta-louco. Leiamos a
seqüência de versos em que se expõe o temor do poeta-personagem diante da possibilidade
de enlouquecer:
E pensava dos loucos no delírio,
Na escura treva da vertigem tonta;
Temia – a morte não – mas a loucura.
Oh! Livra-se o Senhor que após as mágoas
Que o seio lhe hão crestado em agonias
Da doidice viesse a névoa escura
Mergulhar-lhe o espírito! – Antes, antes
Da agonia mortal o torpor gélido!
Antes a morte fria – o cemitério
Ermo e isolado, com seu chão de lousas,
Antes o sono do úmido jazigo...
Meu Deus! E após tanto sofrimento,
De tantas baldas lágrimas vertidas,
De tanto fel bebido em taça amarga,
De plebe estulta no hospital ser inda
Triste ludíbrio de insolente escárnio!
(OC, 2000, p. 385)
A preferência pela morte à loucura é sustentada por imagens fortes que mostram,
bem ao gosto do mal-do-século, o horror da primeira, com seu torpor, sua frieza, seus
ícones macabros o cemitério, o jazigo, as lousas – para lançar em horror maior a segunda.
Entretanto, não é no plano das imagens que o horror da loucura se sustenta, pois ao
descrevê-la o poeta utiliza-se de verdadeiros eufemismos, referindo-se à voa escura que
viria mergulhar-lhe o espírito ou à escura treva da vertigem. O temor à loucura,
71
considerada um mal maior que a própria morte, justifica-se no encadeamento
argumentativo do texto. O poeta-personagem não parece temer as conseqüências intrínsecas
da loucura nele mesmo, já que a elas não se refere de modo explícito. Na leitura dos versos,
percebemos que o grande temor do poeta-personagem ao ser atingido pela loucura, o que
causa a própria indignação do eu lírico como dissemos, é o desprestígio, o desprezo e a
chacota de que seria vítima, mesmo após seus sofrimentos, mesmo sendo poeta.
Por isso, a loucura por ela mesma não torna, no texto, o poeta ridículo ou menor. Ao
contrário, talvez o eleve ainda mais, por intensificar-lhe o sofrimento e o estado de
alijamento em relação ao social. Tanto assim, que a descrição que se faz a seguir do poeta
louco continua o tom sentimental do início:
Hirsutas as melenas, negras, ásperas
Caíam-lhe na fronte. – O movimento
Abrira-lhe a camisa. Ao magro peito
Os ossos se cantavam a mostrarem
Dos cáusticos ainda as queimaduras.
(OC, 2000, p. 386)
O sofrimento que o atingiu quando poeta lúcido, e que, de certa forma, o fez poeta,
atinge-o ainda após a loucura, mantendo-o em posição semelhante, provando que não eram
as dores da loucura que o assustavam.
A maior prova de que a loucura também não era temida pela alienação ou pela
incapacidade intelectual que poderia trazer é o fato de ser justamente no estado de loucura
que o poeta-personagem produz o texto que o eu lírico nos apresentará. Não foi o poeta em
seu juízo perfeito que escreveu O poema de um louco ou O Conde Lopo, foi o poeta louco,
que assim se fará conhecer pelo público.
72
Costuma-se associar os poetas aos loucos e n’O Conde Lopo isso novamente se
manifesta. Em comum, ambos têm a incompreensão da coletividade, que os lança à
marginalidade. Parece-nos que é exatamente o que nos quer indicar Álvares de Azevedo ao
criar, em O Conde Lopo, a situação metapoética de um poeta que descobre o poema de um
poeta louco e luz a ele. O texto, duplamente à margem, por ser de um poeta e de um
louco, é recuperado por outro poeta, único capaz de reconhecer-lhe o valor negado pelo
coletivo, estabelecendo um jogo de espelhos que tenta fazê-lo escapar do esquecimento e da
destruição a que o relegava a sociedade.
Sem a intervenção do poeta que se converte em eu poético do “Frontispício”, a obra
do poeta-louco permaneceria desconhecida. No entanto, com o resgate, o poema sobrevive
ao poeta, para quem restou a morte anônima.
Outro detalhe interessante de O Conde Lopo é a explicação metapóética de como se
deu a recuperação dos versos do manuscrito quase ilegível do poeta-personagem pelo eu
lírico do “Frontispício”.
Por sobre as palhas do colchão do louco
Achou-se um livro. – Mal escritas letras
Ninguém soube entender – Então eu vi-o,
Levado apenas de curioso instinto
Livrei-o à destruição. – chegando à casa
Abri-o e pus-me a decifrar-lhe o escrito.
Era um grosso caderno. As toscas linhas
Eram versos. – Nem um título escrevera
Na frente ao livro seu cantor ignoto. –
Nem seu nome sequer! – Muita leitura
Mostravam nódoas que imprimiram nele
As mãos sujas do louco. – a letra às vezes
Embranquecida descoraram gotas
De copiosas lágrimas. O morto
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Talvez gravasse aí idéias caras
Do passado da vida! Fosse embora
Qual a razão – as lágrimas caídas
Nas folhas do papel vi-as no livro.
Foi-me insana tarefa o decifrá-las
As mal escritas linhas. – Parecia
Que se esmerara por fazer difícil
Sua leitura o autor. – Algumas vezes
Substituí versos meus a linhas dele
Que eu não soubera traduzir. – contudo,
Por querê-lo não fiz – e a muitas outras
Embora achasse mal torneado o verso
E solto o estilo em liberdade extrema,
Não quis levar-lhes minha mão profana
Dos sonhos dele às expressões selvagens
De inspiração febril. Pus-lhe igual título –
Do Conde Lopo o nome: o herói do canto
O confessava o trovador anônimo.
(OC, 2000, p. 387)
Não a relação ficcional do eu lírico com essa leitura é transformada em tema dos
versos, como a própria ação crítica o é.
De um lado, temos conhecimento de características do processo de composição do
texto que leremos, pela observação privilegiada do eu lírico da materialidade do poema – as
nódoas dos dedos sujos do poeta, as marcas deixadas pelas lágrimas no papel, a letra mal
desenhada e quase ilegível. O poeta que relê seu texto obsessivamente a ponto de marcá-lo
com os dedos, que escreve a partir de emoções cuja origem se desconhece, eis o
personagem construído, que permanece em sua produção literária. O jogo criado,
extremamente moderno, nova dimensão à poesia, que faz questão de se mostrar como
letras escritas sobre papel. Interessante, acerca disso, é o detalhar da parte material do
texto/manuscrito:
Era um grosso caderno. As toscas linhas
74
Eram versos.(...)
(...)A letra às vezes
Embranquecida descoraram gotas
De copiosas lágrimas (...)
(...)as lágrimas caídas
Nas folhas do papel vi-as no livro.
Foi-me insana tarefa o decifrá-las
As mal escritas linhas.(...)
(OC, 2000, p. 387)
De outro lado, temos a ação de editor crítico do poeta que se propõe a recuperar o
texto encontrado. Como poeta que é, sua ação não é de mero compilador, mas também de
criador: algumas vezes/ substituí versos meus a linhas dele/ que não soubera traduzir.
A identificação sentimental do eu lírico que procede à retomada dos versos com a
leitura do manuscrito feita motiva o trabalho de edição. Tal trabalho não é, portanto,
mecânico ou racional; é resultado da fruição artística.
Não maldigam o fel dos cantos dele!
Foi um Tasso sem risos de Leonora!
E pois descreu – e pois maldisse tudo
No catre do hospital, na luz escassa –
A vida e os sonhos e esperanças belas!
Co’a negra dor simpatizei do louco
Com seu cantar de coração dorido,
E amei-lhe essa altivez d’alma quebrada
Que lhe ressumbra no poetar amargo.
(OC, 2000, p. 388)
Exemplar para a explicação do próprio processo de composição da obra de Álvares
de Azevedo é a citação anterior. A criação da situação ficcional de um poeta que se dedica
à obra do outro, que com ela interage e se identifica é paradigmática da própria expressão
poética azevediana. Além disso, a consciência crítica explicitada quando o eu lírico analisa
a obra do poeta-personagem tanto do ponto de vista da linguagem Embora achasse mal
75
torneado o verso/E solto o estilo em liberdade extrema quanto do ponto de vista da
abordagem temática Não maldigam o fel dos cantos dele confirma a forte tendência de
Álvares de Azevedo em discutir a própria literatura na obra poética.
76
4. OS EIXOS PARÁFRÁSICO E PARODÍSTICO: AS ESTRATÉGIAS DE RETOMADA
METAPOÉTICA EM ÁLVARES DE AZEVEDO
Como vimos até então, a autoconsciência poética de Álvares de Azevedo expressa-
se não só na preocupação em discutir a posição do poeta e da poesia no mundo regido pelos
valores materiais, como também se apresenta na valorização do poético como fonte de
inspiração, uma vez que uma estreita relação entre a obra azevediana e a deriva literária
na qual se localiza. No capítulo presente, gostaríamos de trabalhar uma terceira via, na qual
percebemos também a autoconsciência poética de Azevedo, qual seja, a das estratégias de
retomada (ou ruptura) de discursos e de textos, não de outros autores, como do próprio
poeta, em atitude (auto)reflexiva.
4.1 Explicando o posicionamento
Um discurso não vem ao mundo numa inocente
solitude, mas constrói-se através de um já-dito em
relação ao qual toma posição.
(Maingueneau)
Segundo Bakhtin, o diálogo é condição da linguagem e do discurso. Um texto nunca
é sozinho, mesmo que seu desejo seja sê-lo. Tudo que é dito ou escrito por um enunciador,
não pertence a ele. Em todo discurso são percebidas vozes, às vezes infinitamente
distantes, anônimas, quase impessoais, imperceptíveis, assim como vozes próximas que
ecoam simultaneamente. Tanto as palavras quanto as idéias que vêm de outros, como
condição discursiva, tecem o discurso individual de forma que as vozes elaboradas,
77
citadas, assimiladas ou simplesmente mascaradas interpenetram-se. Ao analisar assim o
discurso, Bakhtin referia-se a uma característica intrínseca ao fenômeno da linguagem, e a
via mais bem delineada no discurso literário, particularmente no romance.
Quando aqui em nosso trabalho nos apropriamos do conceito do dialogismo,
estamos procedendo a uma especificação, uma vez que desejamos nos referir ao diálogo do
literário com ele mesmo, ou seja, da instauração de um jogo metapoético e intertextual. As
vozes que pretendemos ouvir nos textos que estudamos são vozes advindas da arena
literária que ecoam em um outro texto também literário, diferente do da origem.
É claro que podemos ouvir nos textos literários vozes de outras esferas como a
filosófica, a sociológica, a política etc, mas o que nos interessa particularmente em nosso
estudo é o desdobrar de discursos literários, é a confluência de múltiplas vozes poéticas
para o texto de Álvares de Azevedo.
Como sabemos, o reconhecimento dos diálogos metapoéticos e intertextuais
mantidos por um texto está intimamente ligado ao repertório ou à memória cultural e
literária daquele que se propõe a decodificá-los. Quanto mais implicitamente o diálogo
acontece, mais o repertório literário do leitor é necessário. Em Álvares de Azevedo, a
condição dialógica da linguagem, tal como a definimos acima, é explicitamente percebida
pelo leitor, por menor que seja a bagagem de informações extratextuais que traga. Nos
poemas de Azevedo, ecoam as vozes dos poetas lidos, da tradição literária, a cada
momento, de modo consciente.
Mesmo que, para Bakhtin, os discursos poéticos, como um todo, caracterizem-se
pela ambivalência intertextual interna que, graças à multiplicidade de vozes e de leituras,
substitui a verdade universal, única, peremptória, pelo diálogo de verdades textuais e
contextuais, acreditamos que em determinadas obras o diálogo seja mais perceptível do que
78
em outras. No caso de Álvares de Azevedo, chegaríamos mesmo a afirmar que o diálogo é
a base do próprio projeto criador do poeta, como já buscamos comprovar.
Ao dialogismo, que é o princípio constitutivo da linguagem e do discurso, qualquer
que seja ele, gostaríamos de somar outro conceito bakhtiniano, que será bastante importante
para discutirmos a obra de Álvares de Azevedo: o conceito de polifonia.
A linguagem e o discurso são dialógicos essencialmente, porém esse dialogismo
pode se manifestar de duas maneiras distintas, produzindo textos polifônicos ou textos
monofônicos, dependendo das estratégias discursivas acionadas pelo produtor.
Chamamos de textos polifônicos aqueles nos quais as vozes múltiplas que nele
ecoam deixam-se ouvir claramente de per si. Denominamos textos monofônicos aqueles em
que as vozes, que ali necessariamente se apresentam, ocultam-se sob a aparência de uma
única voz.
De acordo com nossa ótica, a Lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo, é uma
obra exemplar para verificarmos a ocorrência e as particularidades desses dois tipos de
texto. Nela, encontramos textos dialógicos, porém com grande tendência a se constituírem
como monofônicos, sobretudo na primeira parte. Lá, o que chamamos de cânone
sentimental romântico aparece de forma mais bem acabada. A voz oficial, centrada em si
mesma, séria, oblitera outras, que se calam. Embora saibamos que outras vozes, além da do
eu, estejam presentes, sobretudo através do uso das freqüentes epígrafes, elas não se
contradizem, caminhando na mesma direção, ecoando com o mesmo sentido da voz do
próprio poeta.
Já, sobretudo, nos poemas da segunda parte da Lira dos vinte anos e em alguns da
terceira parte, vemos surgir textos altamente dialógicos e polifônicos em essência. A
polifonia se estabelece devido à intensa veia crítica do poeta em relação ao que leu e em
79
relação ao que escreveu. Rompendo com o cânone sentimental românico e,
conseqüentemente, com o discurso monofônico que produziu, os textos polifônicos de
Azevedo deixam as múltiplas vozes coexistirem e configuram-se como atração e rejeição,
resgate e repelência de outros textos, instaurando a intertextualidade explícita.
Tomando de empréstimo a nomenclatura sugerida por Afonso Romano de Sant’nna,
em seu Paródia, paráfrase e cia, diríamos que, na Lira dos vinte anos, constroem-se dois
eixos, a partir da noção do dialogismo dominante na obra: um eixo parafrásico e um eixo
parodístico.
Ao eixo parafrásico, corresponderiam os poemas monofônicos, nos quais a voz do
cânone sentimental romântico, deixa-se ouvir predominantemente. Tais poesias são, ainda
assim, resultado de um diálogo claramente empreendido pelo autor com suas fontes
literárias, mas que resulta na plena concordância das vozes ali colocadas. A voz do outro é
tomada para com ela concordar a voz do eu, configurando-se, dessa forma, tais textos de
Azevedo, como atualizações de uma espécie de discurso parafraseador.
Antes de continuar a desenvolver a comprovação de nossas observações acerca de
alguns poemas da Lira dos vinte anos, cabe lembrar por que chamamos de “cânone” ao
modelo sentimental romântico de que Álvares de Azevedo se apropria em parte de sua
obra.
Conforme apresentamos no capítulo 2, o cânone é o paradigma de algo, é aquilo,
moral e ideologicamente, considerado o dominante e o aceitável como bom em um
determinado momento, por isso, na nossa compreensão, o cânone necessariamente será
monofônico. O cânone é aquele que utilizaria aquela voz social, recalcando as demais,
falando sempre o mesmo, o idêntico.
80
Mesmo diante da multiplicidade que caracterizou o Romantismo como movimento estético,
ao cânone corresponderia a linha claramente monofônica, porque oficial e séria.
Assim, durante praticamente toda primeira parte da Lira dos vinte anos, o diálogo
que Álvares de Azevedo mantém com suas influências literárias será monofônico ou
parafrásico. Ao contrário disso, na segunda parte da Lira, o que passa a vigorar é uma
relação mais tensa do poeta com a voz monofônica do cânone sentimental romântico,
fazendo com que vozes dissonantes se deixem ouvir simultaneamente, instaurando-se um
diálogo parodístico.
Tomando a metáfora que o próprio Álvares de Azevedo construiu para explicar a
duplicidade da Lira dos vinte anos, no “Prefácio” à segunda parte, ao lado de Ariel, temos
Caliban. Ariel representaria o discurso do sim, da consonância, da paráfrase em relação à
voz do cânone sentimental romântico. Caliban incorporaria o dissonante, o parodístico, a
polifonia, a tensão de vozes. Acerca dessa bipartição, é interessante como Afonso Romano
de Sant’anna, em seu livro Paródia, paráfrase e cia, apresenta a diferença entre a paráfrase
e a paródia:
(...) a ideologia tende a falar sempre do mesmo e
do idêntico, a repetir suas afirmações
tautologicamente diante de um espelho. Por isso é
que, assumindo uma atitude contra-ideológica, na
faixa do contra-estilo, a paródia foge ao jogo de
espelhos denunciando o próprio jogo e colocando
as coisas fora de seu lugar ‘certo’. a paráfrase
é um discurso sem voz, pois quem está falando
está falando o que o outro disse. É uma máscara
que se identifica totalmente com a voz que fala
atrás de si. Nesse sentido, ela difere da paródia,
pois nesta, a máscara denuncia a duplicidade, a
ambigüidade e a contradição. Por isso é que,
usando um paralelo numa linguagem mística, se
pode dizer: a paráfrase faz o jogo celestial, e a
81
paródia faz o jogo demoníaco. O angelical é a
unidade, o demoníaco é a divisão.
(SANT’ANNA, 1988, p. 29, grifos
nossos)
Embora fale teoricamente dos dois conceitos explicados, o texto de Sant’anna
parece referir-se ao percurso que a Lira dos vinte anos cumpre e do qual Álvares de
Azevedo mostra plena consciência em seu “Prefácio” à segunda parte da Lira.
Quando chamamos de parafrásico e de parodístico os dois eixos que vemos
sustentar a Lira, evidentemente estamos usando tais termos de modo extenso. Estamos nos
referindo a uma postura geral do poeta diante da tomada da literatura como fonte da qual
surgem seus textos, como expomos. Acreditando que a poesia de Álvares de Azevedo é
essencialmente uma “poesia da poesia”, por nascer da fruição literária do poeta, e, por isso,
ser extremamente autoconsciente, julgamos que em alguns momentos esse nascer se faz à
moda da paráfrase e em outros à moda da paródia, em que se parafraseia ou parodia nem
sempre um texto especificamente, mas, na maioria dos casos, um discurso ao qual
reconhecemos como canônico, monofônico.
4.2 Primeira parte da Lira: o eixo parafrásico
A primeira parte da Lira dos vinte anos é introduzida por um prefácio curto,
bastante convencional, como apontamos no capítulo 2, no qual, apesar de seu caráter
metapoético, não aparecem referências às influências literárias que vimos predominar na
obra do autor.
82
São os primeiros cantos de um pobre poeta.
Desculpai-os. As primeiras vozes do sabiá não
têm a doçura dos seus cânticos de amor.
É uma lira, mas sem cordas; uma primavera, mas
sem flores; uma coroa de folhas, mas sem viço.
(OC, 2000, p. 120)
Tal fato denuncia que nessa parte a relação estabelecida é, sobretudo, parafrásica,
e o diálogo mantido com o cânone sentimental romântico é afirmativo. A paráfrase,
entendida aqui por nós como a apropriação do discurso do cânone, não deixa espaço para a
autoconsciência. O discurso canônico, sentimental e romântico é mimético. Admite a poesia
como representação estética da natureza, e não como reflexão literária. Acerca dessa
concepção canônica sobre a arte, leiamos o que nos escreve Victor Hugo, em Do grotesco e
do sublime:
Que o poeta se guarde sobretudo de copiar quem
quer que seja, Shakespeare como Molière,
Schiller como Corneille. Se o verdadeiro talento
pudesse abdicar a este ponto de sua própria
natureza, e deixar assim de lado sua
originalidade pessoal, para transformar-se em
outro, tudo perderia ao representar este papel de
Sósia. É deus que se faz valete. É preciso
inspirar-se nas fontes primitivas. (...) Para que se
prender a um mestre? Enxertar-se com um
modelo? Vale mais ainda ser o espinheiro ou
cardo, alimentado com a mesma terra que o
cedro ou a palmeira, que ser fungo ou líquen
destas grandes árvores.
(HUGO, 2004, p. 65-6, grifos nossos)
Embora fale da negação das influências clássicas e da exaltação do gênio, Victor
Hugo apresenta claramente a poesia como imitação da natureza, das fontes primitivas.
83
Recusa o que chama de imitação de modelos, pregando a liberdade criadora romântica, e
acredita na impossível originalidade. Nesse contexto, como produzir uma obra que é acima
de tudo embebida em influências? Como falar da natureza e ir às fontes primitivas, se o que
lhe toma a alma é a literatura, como no caso de nosso poeta?
Álvares de Azevedo adere à paráfrase em parte de sua obra. Não haverá, assim,
tensões evidentes entre a voz autoritária do cânone e a que se faz ecoar no texto de Álvares
de Azevedo. No plano da linguagem, temos a repetição do discurso que se faz ouvir como
oficial. o a ironia, não o humor, não a autoconsciência poética explícita. Tudo
parece o ouvido. No entanto, acreditamos que mesmo nas poesias monofônicas de
Álvares de Azevedo, já existe o embrião de sua superação.
Embora a autoconsciência literária, como a ruptura mais tipicamente azevediana do
padrão canônico, não apareça, explicitamente, nesses textos, parece-nos que ainda assim
temos um poeta que foge da poesia de inspiração na realidade, seguindo, dentre os
caminhos românticos do cânone, aquele que possibilitasse, em certa medida, a sua própria
superação. A essência desse posicionamento é mantida por estratégias discursivas
interessantes. Mesmo que não apresente a autoconsciêcia literária, que vemos marcar as
poesias que se prendem ao eixo parodísticos, Álvares de Azevedo continua a se negar a
inspirar-se nas fontes primitivas, como queria Hugo. O que surge nos poemas monofônicos
da primeira parte da Lira não se assemelha à realidade, não representa a natureza. Aparece
um mundo onírico, criado no inconsciente do eu. O sonho e o sono são os signos
dominantes dessas poesias canônicas de Azevedo.
Ou dorme e sonha o eu poético, abandonando-se a um mundo possível somente em
seu inconsciente, como em “O poeta”:
84
Era uma noite – eu dormia
E nos sonhos meus revia
As ilusões que sonhei!
E no meu lado senti...
Meu Deus! Por que não morri?
Por que do sono acordei?
(OC, 2000, p. 134)
Ou dorme e sonha a amada, mostrando sua interdição ao amor do eu poético,
conflagrando a tão referida temática da idealização amorosa, do “amor e medo”, como em
“No mar”:
Era de noite – dormias,
Do sonho nas melodias,
Ao fresco da viração;
Embalada na falua,
Ao frio clarão da lua,
Aos ais do meu coração!
(OC, 2000, p. 121)
Ou mesmo a natureza, apresentada como prolongamento do eu poético ou como
metáfora da amada impossível, dorme e sonha, como acontece em “Anjos do mar”:
As ondas são anjos que dormem no céu
Que tremem, palpitam, banhados de luz...
São anjos que dormem, a rir e sonhar
E em leito d’escuma revolvem-se nus!
(OC, 2000, p. 129)
Ou, envolvendo tudo eu, amada e natureza tudo entrega-se a um grande êxtase
de sono e sonho, como vemos em “Anima mea”:
É doce então das folhas no silêncio
Penetrar o mistério da floresta,
Ou reclinado à sombra da mangueira
Um pouco dormir, sonhar um pouco!
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Ninguém que turve os sonhos de mancebo,
Ninguém que o indolente adormecido
Roube das ilusões que acalentam
E do mole dormir o chame à vida!
(...)
Tudo dorme, não vês? Dorme comigo,
Pousa na minha tua face bela
E o pálido cetim da tez morena...
Fecha teus olhos lânguidos... no sono
Quero sentir os túmidos suspiros,
No teu seio arquejar, morrer nos lábios
E no sono teu braço me enlaçando!
(OC, 2000, p. 155)
Nosso objetivo não é o de aprofundar o estudo sobre a abordagem temática do sono
e do sonho, explorando seus múltiplos significados na poética de Álvares de Azevedo, mas
parece-nos interessante que ela seja tão recorrente.
Sabemos que tais estados da mente humana o sono e o sonho - eram
supervalorizados pelos românticos como forma de evasão da realidade e como tentativas,
até mesmo, de negação da realidade político-social da época, por possibilitarem a criação
de um mundo paralelo, artístico, no qual a racionalização e a burocratização burguesas não
teriam vez. Como tal, reafirmariam, de certa forma, que a construção literária pode-se
destacar do mundo extra-literário, criando suas próprias regras de mundo articulado pela
linguagem. Angélica Soares (SOARES, 1989) nos lembra Rousseau ao fazer o seguinte
comentário acerca da fixação romântica e azevediana pelo sonho:
O sonho, como postulara Rousseau, em suas Rêveries
du promeneur solitaire, significava a renúncia à
consciência clara, pela qual se confundiam às imagens
externas, impressões puramente psíquicas, até que não
ficasse mais que a sensação de um eterno presente e
86
um sentimento de liberação do esfacelamento em
passado e futuro, próprio dos estados conscientes. (...)
Pelo sonho, compreenderam os românticos que o Real
não se reduz à realidade.
(SOARES, 1989, p. 47)
Parece-nos que exatamente essa compreensão de que o real não se reduz à realidade
sustenta a possibilidade de Álvares de Azevedo levar a cabo seu projeto metapoético e
transforma o estado de sono e de sonho em trampolim para chegar à radicalização da
metapoesia, em que a mímesis imediata é totalmente negada. A poesia é criação; retrata um
mundo inventado pela linguagem, quer a partir dos sonhos do eu, quer reduplicando-se, a
partir da própria linguagem literária.
Na primeira parte da Lira, adotando a postura parafrásica, sem ter desenvolvido
ainda a grande força criativa de seus textos parodísticos, nosso poeta sonha, dorme ou
observa o sono da amada. Mesmo em poesias com maior grau de objetividade, comoNa
minha terra”, único exemplar do nacionalismo romântico na obra de Álvares de Azevedo,
ou em “Cantiga do sertanejo”, em que o poeta investe na cor local, ou ainda em “No
túmulo do meu amigo João Baptista da Silva Pereira Junior”, não deixam de aparecer as
reiteradas referências à atmosfera de sono e sonho, afastando-se o texto da representação da
realidade tal qual ela é.
Apropriando-nos, livremente, das idéias e palavras de Angélica Soares sobre a
poesia de Álvares de Azevedo, diríamos que o velamento marcante em seus poemas em
diversos aspectos, também se faz presente no que diz respeito aos seus procedimentos de
autoconsciência poética, de construção de uma obra marcada pela investigação da própria
linguagem.
87
É o próprio Álvares de Azevedo que nos a chave para a comprovação desse
estado de velamento, em que a ruptura com uma poesia mimética, depois substituída pela
franca poesia da linguagem, esconde-se atrás do discurso parafrásico. Como é necessária a
explicitação da consciência poética, tal chave nos é dada na segunda parte da Lira,
justamente no emblemático poema “Idéias íntimas” (parte X):
Meu pobre leito! Eu amo-te contudo!
Aqui levei sonhando noites belas:
As longas horas olvidei libando
Ardentes gotas de licor doirado,
Esqueci-as no fumo, na leitura
Das páginas lascivas do romance...
Meu leito juvenil, da minha vida
És a página d’oiro. Em teu asilo
Eu sonho-me poeta, e sou ditoso,
E a mente errante devaneia em mundos
Que esmalta a fantasia! Oh! Quantas vezes
Do levante no sol entre odaliscas
Momentos não passei que valem vidas!
Quanta música ouvi que me encantava!
Quantas virgens amei! Que Margaridas,
Que Elviras saudosas e Clarissas,
Mais trêmulo que Faust, eu não beijava,
Mais feliz que Don Juan e Lovalace
Não apertei ao peito desmaiando!
Ó meus sonhos de amor e mocidade
Porque ser tão formosos, se devíeis
Me abandonar tão cedo... e eu acordava
Arquejando a beijar o travesseiro?
(OC, 2000, p. 208)
Percebemos que o eu poético coloca lado a lado o sonho e a leitura. A fronteira
entre ambos é tão tênue que chegamos mesmo a não saber se ele ou sonha com as
referências literárias citadas. A leitura é tão evasiva quanto o sonho, e o sonho se impregna
88
da atmosfera onírica do que foi lido, em uma espécie de reciprocidade. Não há mais clareza
entre seus limites.
havíamos dito alhures, quando estudávamos o poema “Idéias íntimas”, que o
leito do eu poético era, de modo paradigmático, o mesmo lugar em que ele sonhava e lia,
estabelecendo uma correspondência estreita entre as duas atividades. Aqui essa
correspondência se torna mais evidente, quando foi elaborada, para o leito, uma imagem
literária página d’oiro) e quando nele o eu poético sonhou ser, justamente, poeta. Ao
fazer sua leitura da parte X de “Idéias íntimas”, Angélica Soares nos mostra, com mais
clareza ainda a relação estreita que Álvares de Azevedo estabeleceu entre o sonho e seu
procedimento metapoético:
(...) todo o processo de criação, voltado primeiramente
para a manutenção de uma atmosfera onírica, conduz,
através da intertextualidade, à idealização daqueles
comportamentos que distinguiram os mais recriados
modelos do romantismo. Sonhando-se poeta, o“eu”
pode-se imaginar na figura de um Byron ou de um
Goethe, entre outros; pode viver livremente cada
“página d’oiro”, enquanto o sono dure.
(SOARES, 1989, p. 73)
A íntima associação entre o sonho e a leitura, explicitada pelo próprio poeta nos
versos de “Idéias íntimas”, permite-nos ousar afirmar que a atmosfera deliberadamente
onírica que envolve boa parte dos poemas de Azevedo na primeira parte da Lira pode ser
vista, também, como uma espécie de reflexo velado da leitura literária que tomou conta da
subjetividade de Álvares de Azevedo e que tantas marcas patentes deixou em sua obra.
Paralelamente à literatura, vista como construção ficcional, como linguagem que elabora
um outro mundo, o sonho também é, sobretudo, criador de (ir)realidades.
89
O signo do sonho, assim, aparece na obra de Azevedo para mostrar que o mundo
exterior não é, definitivamente, a fonte de inspiração do poeta. Devido aos pontos de
contato que existem entre o sonho e a literatura, sobretudo para o gosto romântico, quando
não era possível que a própria linguagem se contemplasse a si mesma no texto, através dos
diversos procedimentos de autoconsciência poética com sua força dissonante, o poeta
aderiu ao plano onírico.
90
4.3 Sob a égide de Caliban: o eixo parodístico da Lira
Porque os homens de gênio, por grandes que
sejam, têm sempre sua fera que parodia sua
inteligência.
(Victor Hugo)
Se na primeira parte da Lira dos vinte anos predomina o discurso parafrásico em
relação ao cânone sentimental romântico, na segunda parte vemos instituir-se o discurso
parodístico. Enquanto nos textos que chamamos de parafrásicos, as vozes do poeta e do
cânone sentimental romântico se fundiam em uma só, na paródia tal fusão é impossível,
pois as vozes ali colocadas provêm de mundos distintos.
Segundo Linda Hutcheon, devemos lembrar que a definição tradicional de paródia
precisa ser estendida pois:
(...) “para” em grego também pode significar “ao
longo de” e, portanto, existe uma sugestão de um
acordo ou intimidade, em vez de um contraste. É
este segundo sentido esquecido do prefixo que
alarga o escopo pragmático da paródia de modo
muito útil(...).
(...).
A paródia é, pois, na sua irônica
“transcontextualização” e inversão, repetição
com diferença
(HUTCHEON, 1989, p. 48).
A paródia, portanto, é aqui considerada em sua acepção mais ampla, como canto
paralelo, canção cantada ao lado de outra (ou voz que se coloca concomitante à outra).
Nesse sentido, a paródia é necessariamente um tipo de discurso que implica a consciência
dialógica, uma vez que ela é possível de ser instaurada quando da permissão consciente,
por parte do produtor do texto, de que pelo menos duas vozes, o mais das vezes dissonantes
91
entre si, ecoem polifonicamente. Pressupõe, portanto, a compreensão de que o texto é
essencialmente linguagem. Por isso, seu surgimento na poética de Álvares de Azevedo
comprova, de modo irrefutável, a modernidade de seu projeto criador, metapoético,
altamente imbuído de autoconsciência reflexiva. Ao utilizar-se da paródia, Álvares de
Azevedo transforma definitivamente sua poesia em lugar de linguagem, quebrando a ilusão
mimética. Para ilustrar seu procedimento parodístico, tomaremos, a princípio, dois poemas
- “É ela! é ela! é ela! é ela!” e “Namoro a cavalo”, da Lira dos vinte anos- que reelaboram
um dos mais típicos temas da lírica convencional do autor: o tema amoroso.
Os recursos utilizados com mais recorrência, na poética de Álvares de Azevedo,
para deflagrar o discurso parodístico são a ironia e o humor, que, por si só, podem ser
considerados estratégias de autoconsciência literária.
Segundo Lélia Parreira Duarte, a ironia é um recurso que explicita a consciência de
que se efetua um processo literário, que, no texto em que ela aparece, a percepção do
leitor se equilibra com a autoridade do produtor do texto. Nas palavras da autora, a ironia
leva à valorização do leitor e do significante, colocando-se em dúvida a perspectiva que vê
a literatura exclusivamente como mimese, reprodução de realidade (DUARTE, 1994,
p.56). Dessa forma, o texto passaria a ser visto então como produção, linguagem, modo
peculiar de formular um universo, considerando-se a própria linguagem como mundo
(DUARTE, 1994, p. 56).
Na ironia, assume-se que uma voz não é a do produtor do texto, confiando-se na
capacidade do leitor de perceber as incongruências semeadas pelo texto e a presença tácita
da outra voz com a qual o produtor deseja se identificar. No caso de Álvares de Azevedo, a
voz assumida ironicamente é reconhecida como a voz do cânone sentimental romântico, o
92
que nos leva a compreender a intenção parodística do autor, revelando sua autoconsciência
poética.
Ao definir a “ironia romântica”, tão típica da obra de Álvares de Azevedo, Lélia
Parreira Duarte faz o seguinte comentário:
Diferentemente da perspectiva estética idealista, que o
Belo e o Absoluto como intimamente relacionados, e a
representação como tarefa original, primária, da
expressão, a ironia romântica postula a não redução do
poético ao extra-discursivo, idealista e transcendental.
(DUARTE, 1994, p. 63)
Assim, a ironia, em Álvares de Azevedo, teria por pressuposto a reformulação
consciente do fazer literário, através da constante construção/destruição da ilusão ficcional
e do discurso canônico.
Esse é o caso explícito de “É ela! é ela! é ela! é ela!”, que transcrevemos a seguir:
É ela! É ela – murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou – é ela!
Eu vi a minha fada aérea e pura –
A minha lavadeira na janela!
Dessas águas furtadas onde moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas;
Eu a vejo e suspiro enamorado!
Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!
Como dormia! Que profundo sono
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!...
Quase caí na rua desmaiado!
93
Afastei a janela, entrei medroso:
Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido...
Oh! Decerto... (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores;
São versos dela... que amanhã decerto
Ela me enviará cheios de flores...
Tremi de febre! Virtuosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio...
É ela! É ela! – repeti tremendo;
Mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! Meu Deus! Era um rol de roupa suja!
Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim mais bela, - eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!
É ela! É ela! Meu amor, minh’alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela...
É ela! É ela! – murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou – é ela!
(OC, 2000, p. 237-8)
A ironia do texto é flagrante. O autor, simulando a voz do none, no entanto,
dissemina pelo texto pistas que espera sejam decodificadas pelo leitor a fim de que a outra
voz, crítica e dissonante em relação ao cânone, ecoe. Uma dessas pistas encontra-se na
hipertrofia dos próprios aspectos típicos da linguagem canônica, sentimental e romântica. A
começar pelo título, onde a repetição enfática demonstra com clareza a opção pela
hipérbole, tudo no texto está acima do tom. O eu poético encontra-se atingido por forte
comoção, que o leva aos reiterados suspiros emotivos, ao exagero nas exclamações, na
pontuação retórica e nas imagens extremamente afetivas. A adoção do discurso canônico
94
parece evidente, mas o seu exagero é a primeira incongruência atirada ao leitor para
explicitar a ironia.
Além da construção deliberada do tom hiperbólico, como pista ao leitor da ironia do
texto, outro recurso utilizado pelo autor é a alternância entre imagens canônicas em relação
à amada e ao que a ela se refere e imagens dissonantes da tradição. Tal jogo de contrários
se estabelece desde a primeira estrofe. O leitor, desconfiado do teor irônico do texto pela
leitura do título enfático, comprovada sua hipótese ao perceber que a fada aérea o é
representada por uma etérea e pálida virgem, mas por uma mulher concreta, que se dedica
aos seus afazeres de lavadeira. Além da evidente dissonância entre a figura feminina
inacessível, que aparecia nos textos mais típicos da lírica amorosa romântica, e a mulher de
carne e osso que aparece em “É ela! é ela! é ela! é ela!”, a inclusão na poesia de um
representante da classe popular configura o distanciamento do texto em relação ao modelo
idealista romântico.
Da mesma maneira, a antítese, deflagrando a ironia, aparece quando o atrevido eu
poético retira de entre os seios da amada o papel em que julga estarem escritos versos de
amor. O canto agourento da coruja anuncia, porém, a quebra da expectativa, importante
para a instauração da ironia:
Mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! Meu Deus! Era um rol de roupas sujas!
(OC, 2000, p. 237)
As estratégias de criação de suspense e o apelo emocional das expressões
interjetivas imprimem ainda mais valor irônico aos versos. Interessante é ainda notar que,
no jogo antitético estabelecido, de ascensão e queda, além do símbolo maior da poesia
95
romântica sentimental a amada é, justamente, a palavra escrita o alvo da chacota do
poeta. Os versos de amor que seriam enviados cheios de flores correspondem, na verdade, a
um prosaico e dessacralizado rol de roupas sujas.
Além de se sustentar na oposição semântica entre signos idealizados e
dessacralizados, o jogo irônico se sofistica pelo estabelecimento da dissonância entre o
nível da enunciação e o nível do enunciado. O eu poético, embora adote uma dicção solene
e sentimental, representativa do none, apresenta como referentes dessa linguagem
elementos prosaicos do cotidiano, incomuns à poesia tradicionalmente romântica.
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas;
Eu a vejo e suspiro enamorado!
(OC, 2000, p. 237)
Não o relato de enganos; o eu poético não confunde a realidade. Não temos
nenhuma espécie de Quixote que uma dama em Dulcinéia. Não se ridiculariza o eu
poético por idealizar a amada que não faria jus à idealização; ele não se frustra porque a
realidade não é o espaço do Belo convencional.
Nem tampouco o desviante aparece com a intenção de que o canônico se fortaleça,
como acreditava acontecer Hugo na convivência entre o belo e o grotesco. Nesses casos,
teríamos o que Victor Hugo definiu nas linhas que transcrevemos a seguir, em Do grotesco
e do sublime:
O sublime sobre o sublime dificilmente produz um
contraste, e tem-se necessidade de descansar de
tudo, até do belo. Parece, o contrário, que o
grotesco é um tempo de parada, um termo de
comparação, um ponto de partida, de onde nos
elevamos para o belo com uma percepção mais
96
fresca e excitada.a salamandra faz sobressair a
ondina; o gnomo embeleza o silvo.
(HUGO, 2004, 33-4)
Em “É ela! é ela, é ela, ela!”, a beleza está na salamandra e no gnomo, que não são
um tempo de parada, mas o objeto poético em si. O eu poético impregna-se de
sentimentalismo, apreendendo a realidade como esta se lhe apresenta efetivamente. a
lavadeira, contempla suas tarefas, reconhece a chita e não a escamoteia em seda, dando,
deliberadamente, estatuto poético aos elementos considerados marginais, recalcados pelo
discurso monofônico e autoritário do cânone sentimental romântico. Constrói, assim, um
novo julgamento da realidade, avalia o que antes era considerado grotesco como belo.
Nesse contexto, é possível que a lavadeira seja uma fada, que ronque e seja maviosa e pura,
que leve o eu poético ao desmaio ao vê-la dormir tendo na mão o ferro do engomado.
O juízo de valores inovador construído pelo texto evidencia-se em sua estrutura, de
maneira emblemática, na nona estrofe. Após ser desfeita a expectativa em relação ao papel
que pousava junto ao seio da amada, desta maneira revela-se a avaliação do eu poético:
Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim mais bela – eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!
(OC, 2000, p. 238)
A consciência da reelaboração estética é patente nos versos acima e se intensifica
quando na última estrofe a amada, mais bela lavando as camisinhas, é colocada, ao lado,
dos ícones Laura, de Petrarca, e Beatriz, de Dante. O conceito de beleza se relativiza,
descolando-se do cânone e aplicando-se ao que dele desvia. Dessa forma, o poeta,
97
conscientemente, parodia o discurso tradicionalmente romântico, por inverter-lhe o sentido,
mostrando que seu objeto de análise é a própria linguagem literária.
A paródia, porém, o se instaura, no caso do poema citado, no que diz respeito
ao discurso entronado pela tradição; ela se estabelece também como autoparódia. Sabemos
que na lírica amorosa de Álvares de Azevedo, monofônica, parafrásica, o tópico temático
da observação voyeurista do sono da amada é extremamente produtivo. “No mar”, “Quando
à noite no leito perfumado”, “Pálida á luz da lâmpada sombria”, “Virgem morta” são
somente alguns exemplos de poemas em que ele foi centralmente desenvolvido. Em “É ela!
é ela! é ela! é ela!”, o mesmo tópico retorna, para que o poeta proceda à desconstrução de
suas características idealistas. Desmitifica-se o voyeur, colocando-o em uma situação
concreta, dimensionando o espaço físico:
Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!
(OC, 2000, p. 237)
Além disso, ele se mostra ousado, invade o quarto da amada, pretende beijá-la, sem
que isso seja visto como profanação, e toca-lhe o corpo ao roubar o rol de roupas sujas.
Evidentemente, a polifonia necessária para a instauração da ironia faz do poema um
contínuo ir e vir de discursos entrecortantes e opostos, e temos, ainda, como se na
estrofe abaixo, o voyeur platônico, que prefere beijar a folha de papel a seu real objeto de
desejo:
Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
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Eu beijei-a a tremer de devaneio...
(OC, 2000, p. 238)
Lembrando que esse é um texto definitivamente parodístico e, portanto, consciente
do que ele é, ou seja, linguagem construída que desconstrói outra, é reveladora a reiterada
repetição do verbo tremer na estrofe acima. Mário de Andrade, em seu citado estudo
sobre os poetas românticos, buscando comprovar sua tese de que o medo de amar
dilacerava Álvares de Azevedo, fez um cuidadoso levantamento dos momentos em que o eu
poético tremia nas poesias do autor, sobretudo, diante da amada. Na estrofe anteriormente
destacada, ao veicular a voz do cânone, o eu poético também treme, e treme duas vezes,
demonstrando a consciência de que sempre se tratou de fingimento: lá, na poesia
monofônica, canônica, um fingimento que se escamoteava, aqui, um fingimento que se
revela, por se inserir em um texto auto-irônico, que desdiz o já dito.
Para continuar tratando da desconstrução parodística da temática lírico-amorosa
empreendida pelas poesias de Álvares de Azevedo, gostaríamos de propor a leitura de
“Namoro a cavalo”:
Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça
Que rege minha vida malfadada,
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcinéia namorada.
Alugo (três mil réis) por uma tarde
Um cavalo de trote (que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
À minha namorada na janela...
Todo o meu ordenado vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado,
Onde escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito... mas furtado.
99
Morro pela menina, junto dela
Nem ouso suspirar de acanhamento...
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda Comédia – em casamento...
Ontem tinha chovido... Que desgraça!
Eu ia a trote inglês ardendo em chama,
Mas lá vai senão quando uma carroça
Minhas roupas tafuis encheu de lama...
Eu não desanimei. Se Dom Quixote
No Rocinante erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fui mesmo sujo ver a namorada...
Mas eis que no passar pelo sobrado,
Onde habita nas lojas minha bela,
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela...
O cavalo ignorante de namoros
Entre dentes tomou a bofetada,
Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada...
Dei ao diabo os namoros. Escovado
Meu chapéu que sofrera no pagode,
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.
Circunstância agravante. A calça inglesa
Rasgou-se no cair de meio a meio,
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio!...
(OC, 2000, p. 242-3)
Aqui, a ironia se transforma em humor. Segundo Lélia Parreira Duarte:
(...) o humor consiste exatamente numa ironia em
que o objeto é o próprio eu que enuncia, ou a ele
se refere.(...) Ao invés de rir e fazer rir do outro,
através do humor o homem mostra-se capaz de rir
de si mesmo e daquilo que com ele se relaciona.
(DUARTE, 1994, p. 66-7)
100
Ao contrário do que vemos em “É ela! é ela! é ela! é ela!”, a dicção adotada pelo eu
lírico não é semelhante à do cânone. Por isso, também a linguagem poética passa pela
mesma reelaboração que o tema. No plano lexical, vemos a entrada de termos considerados
apoéticos, por serem francamente coloquiais, colaborando para a construção de expressões
dissonantes como: Morro pela menina, E berrando de raiva como um bode, O sangue
pelas ventas me corria etc. No plano sintático, uma evidente preferência pela ordem
direta e pelas frases curtas (Eu moro em Catumbi. Eu não desanimei. Dei ao diabo os
namoros. etc.), demonstrando a opção pela construção de um texto mais próximo à fala
popular.
Com isso, a identificação da voz do cânone, contra a qual se coloca a voz
dissonante, o se faz pelo discurso, no que ele tem de material, mas passa pela
ridicularização do próprio eu poético que se apresenta. É necessário reconhecer que o eu
poético enfrenta o ridículo, por ter adotado um comportamento fiel ao padrão canônico,
fazendo, assim, soar, também, a voz recalcada pela tradição.
O humor e a polifonia dependem, portanto, da criticidade e da objetividade do eu
poético. Não por acaso, o texto é predominantemente narrativo, correspondendo a um
afastamento do eu em relação a seu objeto poético. O resquício lírico que ainda aparecia em
“É ela! é ela! é ela! é ela!”, sobretudo, nas expansões emotivas do eu poético que tomavam
algumas estrofes inteiramente (apesar do traço narrativo daquele poema, também),
desaparece em “Namoro a cavalo”. Há, inclusive, o surgimento de uma voz que comenta,
explicitada, na segunda estrofe, pela colocação dos parênteses, e que evidencia o plano da
enunciação, os bastidores do relato.
101
O eu poético se desdobra. Ao mesmo tempo em que procede como manda a
tradição, critica o próprio comportamento:
Alugo (três mil réis) por uma tarde
Um cavalo de trote (que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
À minha namorada na janela...
Todo o meu ordenado vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado,
Onde escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito... mas furtado.
(OC, 2000, p. 242)
O eu poético se apresenta como aquele que suspira pela amada, que treme ao
escrever-lhe versos de amor, comportando-se como o amante tal como o via a tradição.Com
isso, novamente vemos aqui a consciência do poeta de que essa é uma postura literária
diante da amada. Tremer e suspirar é o que se espera de um eu poético típico da lírica
amorosa romântica, mostrando que tais posturas fazem parte do fingimento poético.
Porém, concomitantemente a essa apresentação paradigmática, ocorre a crítica.
Conceituando o texto humorístico, Lélia Parreira Duarte, tece o seguinte comentário,
aplicável a “Namoro a cavalo”:
(...) em numerosos textos o desdobramento da
voz do autor-poeta-filósofo em duas: a do sujeito
do enunciado, que se diz emocionado e/ou
sofredor e busca fingidamente captar o olhar do
leitor, na expectativa de atuar como autoridade
relativamente àquilo que diz; outra é a daquele
que se observa a si mesmo e à sua obra como
espectador, chegando a rir de sua própria
vulnerabilidade(...)
(DUARTE, 1994, p. 71)
102
Porém, é como autoparódia que Namoro a cavalo mostra-se mais interessante. No
texto, Álvares de Azevedo parodia pelo menos dois tópicos temáticos considerados típicos
de sua poética pelos críticos: o culto à mulher idealizada e a conseqüente frustração
amorosa. É em torno do mote da contemplação da amada à janela que gira o texto. Tal mote
é bastante fecundo na primeira parte da Lira dos vinte anos, quando predominou,
parafrasicamente, a voz canônica. Como exemplo, vejamos o fragmento de “Cismar”:
Ai! Quando de noite, sozinha à janela,
Co’a face na mão eu te vejo ao luar,
Por que, suspirando, tu sonhas, donzela?
(OC, 2000, p. 125)
O poema do qual se extraíram os versos acima é apenas um exemplo, mas traz,
como epígrafe, uma elucidativa passagem de Romeu e Julieta, de Shakespeare, que
comprova a consciência do poeta de que desenvolve um tópico temático da tradição. Tal é a
epígrafe:
Fala-me, anjo de luz! És glorioso
À minha vista na janela à noite,
Como divino alado mensageiro
Ao ebrioso olhar dos frouxos olhos
Do homem que se ajoelha para vê-lo,
Quando resvala em preguiçosas nuvens
Ou navega no seio do ar da noite.
(OC, 2000, p. 125)
Por isso, é conscientemente que “Namoro a cavalo” retoma esse tópico a fim de
desconstruí-lo, o que garante que a obra de Álvares de Azevedo seja reflexiva acerca do seu
fazer literário, tanto quando se estrutura parafrasicamente, quanto parodisticamente.
A janela aparece como símbolo da inacessibilidade da amada tanto na lírica
parafrásica quanto em “Namoro a cavalo”. Entretanto, as razões para que o amor se frustre
103
são bastante diversas nos dois momentos. Se, na rica-amorosa tradicional, a frustração se
devia às características intrínsecas à mulher romântica, à sua pureza imaculada, à sua quase
sobrenaturalidade, na paródia ela se deve a um fato concreto, prosaico:
Mas eis que no passar pelo sobrado,
Onde habita nas lojas minha bela,
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela...
(OC, 2000, p. 243)
Da mesma maneira, a própria rejeição da amada se explicita em ação, extrapolando
o mundo das essências em que platonicamente se colocava o eu, a amada e a frustração
amorosa. Aliás, o processo de concretização do abstrato é o grande diferencial de “Namoro
a cavalo” em relação aos textos canônicos, promovendo a paródia e o humor. o aparece
um mundo que confabula abstratamente contra o eu, levando-o ao spleen. A desgraça que
rege a vida do eu poético, como rege a de todo bom ultra-romântico, personifica-se ao
colocar a amada morando na Rua do Catete e o eu, no Catumbi. A distância entre eles não é
mais simbólica. Da mesma maneira as dores existenciais que dilaceram o eu poético dos
textos sérios, transforma-se em dores físicas, geradas pelo cavalgar a trote inglês. As
mazelas enfrentadas são também concretas e, sobretudo, ridículas: a carroça que lhe enche
a roupa de lama, o cavalo que o derruba, a calça que se rasga. E, para culminar, o que lhe
sangra, após a rejeição da amada, não é, metaforicamente, o coração, mas o nariz.
Além dos textos em que o poeta dedica-se à autoparódia, diversos outros em que
o discurso parodístico se coloca a fim de desconstruir o viés canônico, buscando retirar a
literatura de sua aparência natural, apresentando-a não como imitação da realidade, mas
como invenção. A preocupação em tematizar a literatura e a poesia aparecem, em Álvares
de Azevedo, mesmo quando esse não é o assunto central a ser tratado na obra. Em Macário,
104
temos um exemplo disso. Quando, na estalagem da estrada, Satã vai falar a Macário,
introduz-se a discussão metapoética. Vejamos a seguinte passagem:
O DESCONHECIDO Viste-me duas vezes. Eu vos vi
ainda outra vez. Era na serra, no alto da serra. A tarde
caía, os vapores azulados do horizonte se escureciam.
Um vento frio sacudia as folhas da montanha e vós
contempláveis a tarde que caía. Além, nesse horizonte, o
mar como uma linha azul orlada de escuma e de areia
e no vale, como bando de gaivotas brancas sentadas num
Paul a cidade que algumas horas antes tínheis deixado.
Daí vossos olhares se recolhiam aos arvoredos que vos
rodeavam, ao precipício cheio das flores azuladas e
vermelhas das trepadeiras, às torrentes que mugiam no
fundo do abismo, e defronte víeis aquela cachoeira
imensa que espadaça suas águas amareladas, numa
chuva de escuma, nos rochedos negros do seu leito. E
olháveis tudo isso com um ar perfeitamente romântico.
Sois poeta?
MACÁRIO Enganais-vos. Minha mula estava cansada.
Sentei-me ali para descansá-la. Esperei que o fresco da
neblina a reforçasse. Nesse tempo divertia-me em atirar
pedras no despenhadeiro, e contar os saltos que davam.
(OC, 2000, p. 513)
O fragmento é nitidamente parodístico. Apropriando-se do discurso consagrado pela
tradição como tipicamente romântico, o Desconhecido traz para o texto a voz contra a qual
irá se colocar Macário, portador da voz do próprio autor. Para apresentar sua visão de
mundo pessimista e irônica, dissonante do cânone sentimental romântico, não bastava que
Macário falasse seu próprio discurso, defendendo suas idéias. Era necessário, para ganhar
força persuasiva, que se estabelecesse a paródia. Para isso, estrategicamente, o
Desconhecido, que saberemos depois ironicamente tratar-se de Satã, produz sua fala
altamente sentimental, construída obedecendo à noção de poético, de belo, de sublime em
voga. Descritivo e hiperbólico, no texto não poupa adjetivos, nem são deixadas de lado as
105
mais belas imagens que poderiam, romanticamente, pintar a paisagem natural. A própria
extensão da fala do Desconhecido, bem maior do que as outras do texto, confere a ela valor
irônico, para o leitor que consegue lhe reconhecer como parodística. A consciência do
processo é o próprio Desconhecido que define o quadro apresentado como romântico,
mostrando a intenção metapoética daquela construção discursiva - e a função dele para a
defesa do ponto de vista do autor são anunciadas pelas palavras finais do Desconhecido e,
sobretudo, pela resposta de Macário.
DESCONHECIDO (...)E olháveis tudo isso com um
ar perfeitamente romântico. Sois poeta?
MACÁRIO Enganais-vos. Minha mula estava
cansada(...)
(OC, 2000, p. 513)
Entoando a voz do autor, defendida no texto, Macário substitui o sublime pelo
grotesco: não a contemplação da paisagem que desperta a sensibilidade romântica do
personagem, mas o fato prosaico de a sua mula estar cansada.
Além disso, poderíamos ainda dizer que o fragmento nos leva à confirmação de que
a natureza, elemento entronado pelo romântico como fonte de inspiração, passa ao largo do
despertar poético de Azevedo. Macário sequer percebe a beleza natural tão intensamente
alardeada pelo Desconhecido, pois se dedica ao jogo banal de atirar pedras ao abismo,
procedendo, assim, pela ironia, à construção de uma visão pejorativa dos objetos poéticos
tradicionalmente românticos.
Para intensificar a construção de tal visão pejorativa, na seqüência do texto, temos
as seguintes falas:
106
DESCONHECIDO – É um divertimento agradável.
MACÁRIO Nem mais nem menos que cuspir num
poço, matar moscas, ou olhar para a fumaça de um
cachimbo...
(OC, 2000, p. 513)
No conjunto do texto, o que temos é Macário desdenhando da contemplação da
paisagem natural e preferindo dedicar-se ao jogo de atirar pedras no abismo, como
vimos. No fragmento anterior, a intenção irônica em relação ao enfoque sentimental do
mundo se reitera pela comparação a outras atividades extremamente prosaicas. Interessante
também a referência à fumaça do cachimbo, ícone dos textos ultra-românticos, podendo-
nos levar a crer que até mesmo de si e de seus temas mais caros o poeta é capaz de
desdenhar.
Outro texto em que a autoconsciência literária se une à paródia a fim de criticar o
cânone romântico sentimental, a exemplo do que vimos acima ocorrer em Macário,
apresentando a voz dissonante de Álvares de Azevedo, é o poema “Luar de verão”, quinta
parte de “Spleen e charutos”, que aparece na segunda parte da Lira dos vinte anos. O
poema apresenta uma estrutura dramática, com a alternância de duas vozes. A primeira voz,
anônima, tem como única função anunciar a segunda voz como a de um trovador,
evidenciando o processo metapoético. Tal estratégia parece ter como objetivo, também,
conseguir uma espécie de explicitação do descolamento do eu do texto em relação ao eu do
poeta, conseguindo uma maior objetividade, importante para o alcance do tom crítico que o
poema pretende apresentar.
No jogo das duas vozes, a segunda delas a do trovador que conta à primeira voz o
que a respeito do luar de verão desdobra-se, deflagrando o processo parodístico. O
107
texto se estrutura em um contínuo construir/destruir da expectativa romântica tradicional.
Vejamos o poema:
O que vês, trovador? – eu vejo a lua
Que sem lavor a face ali passeia;
No azul do firmamento inda é mais pálida
Que em cinzas do fogão uma candeia.
O que vês, trovador? – no esguio tronco
Vejo erguer-se o chinó de uma nogueira...
Além se entorna a luz sobre um rochedo
Tão liso como um pau de cabeleira.
Nas praias lisas a maré enchente
S’espraia cintilante d’ardentia...
Em vez de aromas as doiradas ondas
Respiram efluviosa maresia!
O que vês, trovador? – no céu formoso
Ao sopro dos favônios feiticeiros
Eu vejo – e tremo de paixão ao vê-las –
As nuvens a dormir, como carneiros.
E vejo além, na sombra do horizonte,
Como viúva moça envolta em luto,
Brilhando em nuvem negra estrela viva
Como na treva a ponta de um charuto.
Teu romantismo bebo, ó minha lua,
A teus raios divinos me abandono,
Torno-me vaporoso... e só de ver-te
Eu sinto os lábios meus se abrir de sono.
(OC, 2000, p. 236)
A cada estrofe, aderindo em um primeiro momento à voz do cânone sentimental
romântico, o eu poético constrói uma imagem bastante convencional do objeto poético,
para depois destruí-la. Assim é que a lua passeia pálida, no azul do firmamento; ou que nas
praias lisas a maré enchente/ s’espraia cintilante d’ardentia; ou ainda que o próprio eu
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poético se abandona aos raios divinos da lua, bebendo seu romantismo. No entanto, o tom
sentimental construído deve ser compreendido pelo leitor como ironia, pois é rechaçado
logo a seguir, na mesma estrofe em que fora forjado, através da adoção de um novo tom, do
ecoar de uma nova voz dissonante. Essa nova voz é identificada pelo leitor como a voz que
se quer, de fato, fazer ouvir, caracterizando o discurso da voz primeira como um engodo.
Para tanto, a nova voz quebra a expectativa sublime criada, a partir de imagens prosaicas,
dessacralizantes.Uma das estratégias para o alcance da dessacralização das imagens típicas
do cânone sentimental romântico é a comparação inusitada, causando uma espécie de
estranhamento no leitor, que assim reconhece a paródia. Na primeira estrofe, a palidez da
lua, imagem típica da tradição romântica, é ainda maior que em cinzas do fogão uma
candeia. Na segunda estrofe, o rochedo iluminado pela lua é tão liso como um pau de
cabeleira. Na penúltima estrofe, a estrela que brilha em nuvem negra é como na treva a
ponta de um charuto.
No poema, como ocorreu na passagem de Macário que observamos, o procedimento
parodístico se através da incorporação da voz do cânone pelo texto, para posteriormente
ela ser substituída pela voz dissonante. À voz canônica liga-se o ridículo, tirando-a de seu
lugar elevado e lançando-a ao chão.
Na última estrofe do poema “Luar de verão”, esse procedimento se coroa, com o
retorno ao metapoético. Se antes o eu lírico contaminava a paisagem com o prosaico,
dessacralizando-a, agora ele próprio é contaminado, trazendo à baila a discussão do que
ganharia ou não status de objeto poético, na ótica dissonante.
O texto, embora procedesse ao jogo de elevação e queda da paisagem, mantinha-a
ainda como a inspiração dos versos, o que é típico do cânone. Na última estrofe, porém, a
lua, a paisagem natural, não desperta no eu a poesia, mas o sono, deixando de ser válida
109
como objeto poético. A crítica se torna mordaz quando, aderindo, a princípio, à ótica
romântica, deixando-se envolver pelos raios divinos da lua, tornando-se vaporoso, como os
poetas canônicos, o eu poético não consegue senão abrir seus lábios de sono! É, portanto,
de dentro do próprio discurso romântico que o poeta articula sua destruição, através da
paródia.
A ruptura consciente com a voz do cânone sentimental romântico, explicitada
metapoeticamente, aparece ainda em outros momentos da obra de Azevedo. Voltando ao
Macário, temos novo exemplo na passagem a seguir:
MACÁRIO O caso é que preciso que eu pergunte
primeiro. Pois eu sou um estudante. Vadio ou
estudioso, talentoso ou estúpido, pouco importa. Duas
palavras só: amo o fumo e odeio o Direito Romano.
Amo as mulheres e odeio o romantismo.
DESCONHECIDO Tocai! Sois um digno rapaz.
(Apertam as mãos.)
MACÁRIO Gosto mais de uma garrafa de vinho que
de um poema, mais de um beijo que do soneto mais
harmonioso. Quanto ao canto dos passarinhos, ao luar
sonolento, às noites límpidas, acho isso sumamente
insípido. Os passarinhos sabem uma cantiga. O luar
é sempre o mesmo. Esse mundo é monótono a fazer
morrer de sono.
(OC, 2000, p. 516)
Ao definir-se, Macário, de modo revelador, faz referência ao plano literário. Por
mais que a palavra romantismo pudesse estar sendo usada no seu sentido amplo,
evidentemente não podemos descartar sua significação estreita, de denominação do estilo
110
ao qual a obra do poeta se vincula. A consideração de tal acepção da palavra se justifica
inclusive pela posterior referência à poesia.
Mais uma vez temos a prova da importância da discussão metapoética na obra de
Azevedo. Quando Macário poderia se apresentar apontando as mais variadas características
de sua personalidade, apela exatamente para sua relação com a poesia, com o literário.
Macário reitera a desconstrução do cânone sentimental romântico a quehavíamos
nos referido. Aderindo à ironia, prefere o fumo e as mulheres, ao Direito Romano e ao
romantismo. Prefere o vinho e o beijo, ao poema e ao soneto.
Porém parece-nos que quando se refere à poesia - ao poema, ao soneto, ao
romantismo não está falando de qualquer poesia, mas da tradicionalmente romântica, da
que se prende ao cânone sentimental. Tanto assim, que após dizer preferir o vinho à poesia,
passa a atacar alguns dos principais motes daquela poesia sentimental o canto dos
passarinhos, o luar, as noites límpidas.
Nesses motes da poesia sentimental romântica, Macário reconhece a monotonia, o
mesmo canto. Poderíamos dizer que o que Macário defende, em última leitura, é a
dissonância, é a instauração de outras vozes que cantem outras cantigas, tal como
havíamos visto ser defendido no “Prefácio” à segunda parte da Lira dos vinte anos.
Esse mundo é monótono a fazer morrer de sono. Parece-nos interessante aparecer
justamente aí, na frase com que se encerra a fala de Macário, uma referência ao sono,
estado emblemático das poesias mais canônicas de Álvares de Azevedo. Arriscaríamos
dizer que se instauraria um discurso autoparodístico, através do qual o poeta mostra não só
consciência de seus próprios tropos quando poeta tradicional, como revela também seu
desejo de romper com aquela voz canônica.
111
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A obra de Álvares de Azevedo, como buscamos comprovar, é extremamente
imbuída de autoconsciência literária. Tal autoconsciência se expressa, desde logo, por sua
própria gênese, uma vez que acreditamos que a principal influência da criação poética
azevediana é a leitura literária. O poeta é um leitor contumaz e de suas leituras surgem seus
textos, muitas vezes explicitamente intertextuais.
No entanto, não a leitura do outro é objeto de reflexão para o poeta, mas seu
próprio texto também o é. Daí porque surgem várias obras em que a metapoesia aparece
autoreflexiva. Nesse contexto, inserem-se textos autoparodísticos, em que seu próprio
percurso poético é objeto de crítica, ironia e humor.
Outro dado que comprova a reflexão literária empreendida é a freqüência com que
são problematizados os conceitos de poeta e de poesia. Analisando, ainda que
superficialmente, os poemas nos quais de alguma maneira Álvares de Azevedo refere-se ou
discute a figura do poeta ou da própria poesia, percebemos que, à medida que a ironia se
requinta, mais intensa fica a visão crítica do autor. Sobretudo na segunda parte da Lira,
encontramos um poeta consciente de sua condição injustiçada na sociedade capitalista, que
desvaloriza toda e qualquer produção que, como a poesia, não representa o alcance do lucro
financeiro. Rompendo com a visão canônica, que idealizava a figura do poeta e, portanto,
em nada contribuía para a problematização do que significava ser poeta na sociedade
daquele tempo, Álvares de Azevedo constrói um claro projeto criador, engajado no
desvelamento das relações entre a sociedade, baseada na moral dos valores materiais, e o
intelectual e literário.
112
Dessa forma, constrói-se uma nova moral, segundo a qual a poesia e aquele que a
produz são elementos de alto valor, porém não reconhecidos pelo mundo lupanar imundo
incapaz de compreendê-los em sua grandeza. De acordo com essa moral, o justo estaria
na aproximação entre dinheiro e poesia, que nesse mundo estão em pólos opostos. O poeta
e a poesia precisam ser valorizados, mas não com palavras ou sentimentos, não em
avaliações subjetivas, mas sobretudo a partir de uma recompensa concreta.
Para além dos temas e da dicção do Romantismo canônico, coloca-se, portanto, a
obra de Álvares de Azevedo, através da valorização do literário como objeto (meta)poético.
Tal valorização se implicitamente, a partir da sua eleição como fonte maior de
inspiração poética, e explicitamente, através de um permanente questionamento
autoconsciente do fazer artístico e de seu lugar no mundo, atribuindo complexidade e
atualidade à obra azevediana.
113
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