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A PERDA DO CAMINHO PARA CASA
EM FADO ALEXANDRINO
DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES
por
VERONICA PRUDENTE COSTA
Departamento de Letras Vernáculas
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Vernáculas, na subárea de Literatura
Portuguesa, Faculdade de Letras, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas
(Literatura Portuguesa). Orientadora: Professora Doutora
Ângela Beatriz de Carvalho Faria
Rio de Janeiro, 2006
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2
COSTA, Veronica Prudente
A Perda do Caminho Para Casa em Fado Alexandrino de
António Lobo Antunes. / Veronica Prudente Costa. Rio de
Janeiro, 2006
Dissertação de Mestrado em Letras Vernáculas -
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Faculdade de
Letras. 2006.
127 p.
Orientadora: Professora Doutora Ângela Beatriz de
Carvalho Faria
1.Literatura Portuguesa 2.Ficção Contemporânea - crítica
3.Annio Lobo Antunes.
I. FARIA, Ângela Beatriz de Carvalho (orientadora)
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade de
Letras
III. Título
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3
DEDICATÓRIA
A você, Mãe, que sempre foi batalhadora e
incansável em todos os momentos de nossas
vidas e que sempre me apoiou em todas as
minhas decisões, mesmo quando não
concordava com elas, eu dedico com muito
amor, a minha dissertação. E sei, que não há
ninguém nesse mundo que valorize mais do
que você todas as minhas conquistas.
Obrigada!
Eu amo você!
4
AGRADECIMENTOS
A Deus, pois, sem ele e sem a força de lutar todos os dias nada seria
possível.
À minha orientadora Ângela Beatriz de Carvalho Faria por toda
paciência, luz e dedicação em corrigir meus erros e apontar novos
caminhos a serem seguidos.
A António Lobo Antunes por ter despertado meu interesse em viajar
com ele “ao negrume do inconsciente e à raiz da natureza humana.”
À minha prima Margarete Batista Dias por ter sido a primeira a me
impulsionar para os estudos na área de Letras, por todos os livros
emprestados e pelo longo caminho em que tem sido minha amiga,
confidente e musa inspiradora.
Ao Professor Sérgio Nazar David por ter me incentivado a alçar vôos
mais altos e por ter me iluminado com seus conhecimentos durante a
graduação e especialização.
Aos meus amigos Joana Baptista Leal Giraldes, Luiz Carlos
Estanqueiro Giraldes e Marcelo Silva da Costa que sempre me
incentivaram a buscar os meus sonhos.
Ao meu pai João de Deus Gomes Costa que junto a minha mãe Vera
Dias Prudente me colocaram neste mundo e me transmitiram o
temperamento que possuo, o qual me tirou da passividade e me fez
questionar a vida.
Ao meu segundo pai Nelson Javier Acosta por ter estado presente
durante minha caminhada e ter me ajudado sempre que possível.
Ao meu amor Renato Silva de Almeida por toda a paciência,
compreensão, amor, paz e força que me transmite em todas as
situações da minha vida. “Gosto de tudo em ti, até o fim do mundo”
5
Now the years are rolling by me
They are rocking evenly
I am older than I once was
Younger than I`ll be
But that`s not unusual
No it isn`t strange
After changes upon changes
We are more or less the same
After changes we are more or
less the same
(PAUL SIMON)
6
SINOPSE
A divio triádica do romance Fado Alexandrino
de António Lobo Antunes. A temática da guerra
em África captada pela memória e pela
reminiscência. A experiência urbana e o retorno à
pátria. O cruzamento de tempos e existências dos
sujeitos descentrados, “prisioneiros da
ambivalência” e inseridos na modernidade. A
presença do feminino e sua significação. As
estratégias discursivas do autor.
7
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO: A PROPÓSITO DO MUNDO CONTEMPORÂNEO E DA
PRODUÇÃO FICCIONAL DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES ...............................p.8
2. A CASA PORTUGUESA E OS MUROS DESGUARNECIDOS: perdas, riscos,
travessias e paixões ..........................................................................................................p.23
2.1 As “províncias ultramarinas” em África e o contexto da guerra colonial..............p.23
2.2 O fado do estranhamento da terra natal: a Lisboa perdida e escatológica ..............p.44
3. A PERDA DO CAMINHO PARA A CASA E O ENCONTRO ILUMINADO COM
A ESCRITA DE LOBO ANTUNES .........................................................................p.60
3.1 “Derrotas cruzadas em fundo de mar”: o percurso existencial das personagens -
ufragas e a fragilidade dos laços de afeto.......................................................p.60
3.2 “O assombrado vaivém das ondas”: o percurso dos leitores a captar a emergência
das vozes narrativas............................................................................................p.97
4. CONCLUSÃO..........................................................................................................p.106
5. BIBLIOGRAFIA......................................................................................................p.113
6. ANEXOS....................................................................................................................p.119
8
1. INTRODUÇÃO: A PROPÓSITO DO MUNDO CONTEMPORÂNEO E DA
PRODUÇÃO FICCIONAL DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Se Deus não existe tudo é permitido
(
DOSTOIEVSKI)
Na época moderna, a cega em Deus e suas ilusões consoladoras já não acalmavam
mais o caos de espírito do homem. Os ideais românticos e o racionalismo científico já não
mais satisfaziam os questionamentos da existência humana, e então, os indivíduos ficaram
perdidos frente a uma nova ordem cultural, à cultura de massa e de risco, principalmente o
risco de guerras maciçamente destrutivas.
As sociedades modernas são sociedades de mudança constante, rápida e permanente e,
por isso, a existência humana antes da essência vem revelar o caos moderno e a busca
incessante pela ordem. Ordem esta que é almejada, porém, nunca plenamente atingida. A
modernidade trouxe, juntamente com o progresso, o entendimento que o homem não pode
mais se entregar ao raciocínio simplista de uma vida regida pelos princípios doutrinários
desta ou daquela religião aguardando com temor o que virá após a morte.
Se antes a grande angústia humana era pensar em como enfrentaria a morte e o seu
porvir, agora na pós-modernidade a grande angústia é o que fazer a cada dia; é como lidar
com as demandas diárias e as escolhas que cada um tem a responsabilidade de fazer na sua
caminhada. Segundo Zigmunt Bauman:
A ordem é o contrário do caos; este é o contrário daquela. Ordem e caos são gêmeos
modernos. Foram concebidos em meio à ruptura e colapso do mundo ordenado de modo
divino, que não conhecia a necessidade nem o acaso, um mundo que apenas era, sem pensar
jamais em como ser. Achamos difícil descrever com seus próprios termos esse mundo
descuidado e irrefletido que precedeu a bifurcação em ordem e caos. Tentamos captá-lo
sobretudo com o recurso a negações: dizemos a nós mesmos o que aquele mundo não era, o
que não continha, o que não sabia, o que não percebia. Esse mundo dificilmente poderia se
reconhecer nas nossas descrições. Ele não compreenderia do que estamos falando. Não teria
sobrevivido a tal compreensão. O momento da compreensão seria o sinal de sua morte
iminente. E foi. Historicamente, essa compreensão foi o último suspiro do mundo agonizante
e o primeiro grito da recém-nascida modernidade (...) Podemos pensar a modernidade como
9
um tempo em que se reflete a ordem ¡ a ordem do mundo, dobitat humano, do eu
humano e da conexão entre os três.
1
Essa conexão desses três elementos que poderiam estabelecer a ordem social é um
tanto difícil, diríamos até impossível, para atingi-la seria necessário negar todas as
ambigüidades contidas nos seres humanos. Ainda não é possível elaborar um conceito que
fale da nossa realidade. Antes, a ilusão de que o mundo seria um lugar melhor não deixava
as pessoas verem as coisas como elas realmente são, ou pelo menos, de como nós achamos
que elas são. E daí, a ambivalência do sujeito é a expressão clara para tentar explicar o que
acontece na pós-modernidade. Bauman explica a ambivalência da seguinte forma:
A ambivalência, possibilidade de conferir a um objeto ou eventos mais de uma categoria, é
uma desordem específica da linguagem, uma falha da função nomeadora (segregadora ) que
a linguagem deve desempenhar. O principal sintoma de desordem é o agudo desconforto que
sentimos quando somos incapazes de ler adequadamente a situação e optar entre ações
alternativas (...) A ambivalência é, portanto, o alter ego da linguagem e sua companheira
permanente ¡ com efeito, sua condição normal.
Classificar significa separar, segregar. Significa primeiro postular que o mundo consiste
em entidades discretas e distintas; depois, que cada entidade tem um grupo de entidades
similares ou próximas ao qual pertence e com as quais conjuntamente se opõe a algumas
outras entidades; e por fim tornar real o que se postula, relacionando padrões diferenciais de
ação a diferentes classes de entidades (evocação de um padrão de comportamento específico
tornando-se a definição operacional de classe). Classificar, em outras palavras, é dar ao
mundo uma estrutura: manipular suas probabilidades, tornar alguns eventos mais prováveis
que outros, comportar-se como se os eventos não fossem casuais ou limitar ou eliminar sua
casualidade.
2
A tarefa, portanto, da ordenação e classificação do mundo é árdua, pressupõe escolher
entre dois ou mais caminhos distintos. Manipular sentimentos ou qualquer acontecimento
que surpreenda o indivíduo requer equilíbrio e uma pretensa sensação de poder. E quando
o ser humano percebe que nem tudo é manipulável e que ele tem de lidar com essa falta,
uma enorme frustração o abate e ele começa a questionar sua própria identidade e as várias
facetas de si mesmo.
1
BAUMAN, Zygmund. Modernidade e ambivalência. RJ: Ed. Jorge Zahar, 1999. p.12.
2
Ibidem, p.9.
10
O estilhaçamento de identidades e a perda de valores morais na pós-modernidade
mostram que ainda não é possível encontrar uma fórmula mágica para criar a sociedade
perfeita.
Segundo Boaventura de Souza Santos, o nome da identidade na modernidade é a
subjetividade, o individual em oposição ao coletivo, e que para tentar compreendê-la temos
que partir do princípio de que “Identidades são, pois, identificações em curso
3
. Portanto,
nenhuma identidade é fixa, está sempre em constante movimento de formação ou
destruição e, cada indivíduo é, ao mesmo tempo, único e múltiplo em sua constituição.
Conceito o qual Stuart Hall confirma em A identidade cultural na pós-modernidade,
quando diz:
Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de
identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não tanto da
plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de
inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós
imaginamos ser vistos por outros.
4
Stuart Hall define dois tipos de conceitos de identidade diferentes, anteriores à do
homem pós-moderno. É importante mencioná-las para mostrar o percurso que a
humanidade e os filósofos ou sociólogos que a analisam percorreram até chegar aos dias
atuais. Em primeiro lugar ele define o homem da época do Iluminismo:
O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um
indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e
de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o
sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo
¡ contínuo ou “idêntico” a ele ¡ ao longo da existência do indivíduo. O centro essencial do
eu era a identidade de uma pessoa.
5
Mais tarde, a noção de sujeito sociológico já mostrava o homem sendo influenciado
pela sociedade em que vivia e pelas relações que ele estabelecia com ela:
3
SANTOS, Boaventura. “Modernidade, Identidade e a Cultura de Fronteira” In: Pela Mão de Alice: o social
e o político na pós-modernidade, 7 ed. SP: Ed. Cortez, 2000.
4
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 7ed. RJ: DP&A, 2003.p.39
5
Ibid, p.10-11.
11
A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a
consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas
era formado na relação com “outras pessoas importantes para ele”, que mediavam para o
sujeito os valores, sentidos e símbolos ¡ a cultura ¡ dos mundos que ele/ela habitava.
6
Já na pós-modernidade uma série de fatores vem concorrer para a formação da
identidade. O sujeito é visto como descentrado e fragmentado, e o núcleo interior antes
citado como responvel pela subjetividade de cada um é agora diluído em vários núcleos.
Sendo assim, o indivíduo é múltiplo em si mesmo e produto das escolhas que faz no
mundo globalizado em que vive:
A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em
relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que
nos rodeiam (Hall, 1987). É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume
identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor
de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes
direções, de tal modo que nossas identidades estão sendo continuamente deslocadas. Se
sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas
porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa
do eu”.
7
Tomando como foco o conceito de identidade na pós-modernidade acima e os fatores
que a constituem; e levando em consideração os teóricos já citados e outros que ainda
serão mencionados, esta Dissertação pretende analisar os conceitos de “Identidade” e
“Ambivalência” do sujeito na obra Fado Alexandrino de António Lobo Antunes, assim
como a fragilidade dos laços de afeto inerentes à pós-modernidade e denominadas “amor
líquido” por Bauman. Busca assinalar, inclusive, de que maneira o contexto histórico (mais
especificamente a problemática da guerra colonial africana) contribui para uma
transformação da vida social cotidiana, com profundas implicações para as atividades
6
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, 7ed. RJ: DP&A, 2003, p.12-13.
7
Ibidem, p.11.
12
pessoais. Pretende discutir como o “eu” se torna um “projeto reflexivo, sustentado por uma
narrativa da identidade passível de revisões”, como nos ensina Anthony Giddens
8
.
Antes de nos determos na análise da vivência traumática das personagens de Fado
Alexandrino e na constituição de suas identidades, convém situar o autor selecionado e
parte de sua produção ficcional.
António Lobo Antunes nasceu em 1942, em Lisboa. Licenciou-se na Faculdade de
Medicina, especializando-se em Psiquiatria. Parte da sua experiência clínica foi aplicada
em Angola, durante a Guerra Colonial, onde vivenciou de forma dolorosa todos os
horrores que uma guerra pode oferecer.
Fado Alexandrino é seu quinto romance e tem, como temática central, o naufrágio de
identidades oriundas da guerra de África. As referências ao fato histórico surgem, de forma
dispersa e, ao mesmo tempo obsessivas, através das reminiscências. O romance focaliza
um grupo de militares que combateu em Moçambique, o retorno destes e a assustadora
experiência urbana em uma Lisboa diferente, registrando impressões físicas e humanas da
cidade da qual ficaram afastados durante aproximadamente dois anos. Por ocasião da
publicação do romance, em 1983, o autor pronuncia-se: “Demorei uns dois anos a escrevê-
lo. No fundo, o livro é uma história, só uma, contada através de cinco personagens, cinco
tipos. A idéia seria essa, contar estes últimos dez anos, com uma chegada de África. Vá lá
entre 72 e 82.”
9
A perspectiva escolhida pelo autor para contar essa história é a de um jantar, ocorrido
na cidade de Lisboa, reunindo um grupo de ex-militares: um soldado (Abílio), um alferes
(Jorge), um oficial de transmissões (Celestino) e o tenente-coronel passado a general
(Artur). Soma-se a eles a figura de um capitão que não toma parte da narrativa contando
8
GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Trad. Plínio Dentzien. RJ: Jorge Zahar Editor, 2002.
9
Lobo Antunes apud ALVES, Clara. “Fado AlexandrinoJornal de Letras, Artes e Idéias, Lisboa, ano III,
nº72, Novembro de 1983.p.3-4.
13
sua própria estória. Essa personagem assemelha-se a um psicoterapeuta, não fala, mas é a
quem os outros se dirigem, contando as brutalidades ocorridas durante e após a guerra
colonial. A revolução, num arco de cinqüenta anos, encadeia os acontecimentos em si
mesmos; é através do diálogo que a “acção” do romance progride. No final, há um
assassínio.
10
O capitão acima referido é evocado pelos outros como interposta pessoa, “consciência
receptora das mensagens narradas”, “instância observadora e tácita, por vezes reflexiva
11
e que o leitor descobre tratar-se do narrador principal. À mesa, os ex-combatentes
procedem ao rememoramento dos dez anos sobre suas vidas e sobre Portugal de antes,
durante e após a Revolução de Abril de 1974, que teve como resultado a independência das
colônias portuguesas em África.
No contexto histórico aludido no plano textual (“I- Antes da Revolução, II -A
Revolução, III-Depois da Revolução”), observa-se um cruzamento de tempos
diferenciados, experiências e de existências que são respectivamente relatadas na noite do
encontro.
A divisão triádica de Fado Alexandrino representa respectivamente: I- o movimento
de regresso do batalhão a Portugal e o jantar de reencontro, II- a revolução e a ida a uma
boate com prostitutas e, III- a ressaca na casa do alferes após a noite em claro, o
assassinato do oficial de transmissões e o desfecho da vida de cada um deles após a
revolução.
As três fases da narrativa são embebidas por álcool, fato este que deixa em suspenso e
nos leva a refletir se tudo que é narrado pode ter credibilidade ou talvez, pensar no álcool
10
ANTUNES, Antonio Lobo. Fotobiografia. Org. Tereza Coelho. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2004.
11
SEIXO, Maria Alzira.Os Romances de Antonio Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002
p.115-116.
14
como libertador da emoção e analgésico da dor. Ainda, este fato também pode ser
relacionado com a ambivancia do sujeito e com as incertezas típicas da modernidade.
Se continuam a beber, e vão continuar a beber, pensei eu observando-lhes os cabelos
despenteados, as caras oleosas de suor, os membros frouxos, sem força, que se moviam na
toalha pendentes como trombas inertes, daqui a nada anda tudo de gatas sob a mesa, a
vomitar restos de febras para cima uns dos outros, a tropeçar, a arrotar, a empurrarem-se em
marradas cegas de bebê, a rebolarem na alcatifa sujíssima do chão, entre grunhidos, miados,
arranhadelas e roncos. (FA,129)
Não é, por acaso, que a saga revivida pelas personagens nesse turbilhão de estórias
contadas por elas leva-as ao aniquilamento emocional e, em alguns casos, até à morte. E,
também, não é por acaso que a palavra “saga” aqui é empregada, já que em uma de suas
definições significa uma canção baseada em uma narrativa histórica em prosa, rica em
incidentes, portanto talvez um fado. Esse sentido será explorado no decorrer da
Dissertação.
Ao pensarmos a organização interna textual dessa “saga” ou desse “fado”, sugerimos
concordar com Maria Alzira Seixo no que se refere à repetição do prefixo re,
a partir de
sua relação com a Revolução, ou seja, a palavra regresso revelando a problemática do
lugar e da deslocação; o termo ressaca, sendo o ponto de encontro dos tempos e falas; e a
repetição e o ato de revolver encetando a insistência na memória e a intensificação da
obsessão e da ausência. Ou ainda, como Maria Alzira Seixo continua a definir:
Daí que possamos entender revolução, aqui, também no sentido que o termo tem emsica,
isto é, enquanto acção giratória de um corpo que alcança a posição contrária ao seu estado
anterior mas volve ao seu ponto de partida, uma vez efectuada a sua órbita, o que, na
mundividência de Lobo Antunes, preenche de ironia e ambivalência a ordem histórica aceite
na sua linearidade pretensamente definida, e se pode correlacionar com uma dialética
habitual, na sua obra, entre o movimento e a fixidez.
12
Através desse revolver contínuo temos a trajetória de vida dos ex-combatentes. Por
trás desse encontro onde as memórias são afloradas de forma dolorosa, temos as relações
12
SEIXO, Maria Alzira.Os romances de Antonio Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002.
p.115.
15
multiplicadas dos quatro ex-militares, nas quais, os planos familiares, profissionais, sociais
e amorosos se misturam. E, através dos quais, podemos observar como eram suas relações
antes da ida para a guerra e após o retorno; a transformação pela qual passaram e as marcas
psicológicas que adquiriram: “(...) tornando dominante a sugestão de um conjunto de
percepções da vida e do mundo que transcendem o ponto de vista individual, embora se
parta dele, porque é de uma perspectiva pessoal que se conta a história, embora o conjunto
dê conta de várias personalidades em jogo...
13
A temática da guerra colonial é recorrente nas obras de Lobo Antunes, antes de Fado
Alexandrino (1983), como vemos em Os Cus de Judas (1979) e As Naus (1988).
Em Os Cus de Judas, o autor também relata de maneira ácida suas experiências na
guerra; utiliza-se da tragédia colonial, ao criar a sua ficção e evidencia a impotência do ser
humano diante da violência que toma o sentido da vida. “O protagonista é um ocupante
involuntário de um país estrangeiro” e “estilhaços da memória recuperam o imaginário
social e cultural” de Portugal e África nas décadas de 60 e 70. A “dolorosa aprendizagem
da agonia” organiza-se em capítulos de A a Z e acentua a impossibilidade de amar de um
sujeito que possui “a noite escura da alma”, pelo fato de ter estado na Baixa do Cassange, e
depois nas chamadas “Terras do Fim do Mundo.
14
Em As Naus, a perspectiva de narrativa escolhida é a dos retornados, aqueles que, ao
voltar da África após a independência das colônias, não se encaixavam mais na sociedade
portuguesa. Esses retornados eram pessoas que foram na intenção de enriquecer e voltaram
com a frustração da derrota. Nessa obra, Lobo Antunes faz uma “paródia” do passado
13
SEIXO, Maria Alzira Os romances de Antonio Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
2002,p.128.
14
A esse respeito, ver a resenha crítica “A noite escura da alma”, da autoria de Ângela Beatriz Faria,
publicada no caderno Idéias, do Jornal do Brasil, por ocasião da edição brasileira de Os cus de Judas, em
06/09/2003. Ver, principalmente, a Dissertação de Mestrado da autoria de Gumercinda Nascimento Gonda: O
Santuário de Judas: Portugal entre a existência e a Linguagem, defendida na Faculdade de Letras da UFRJ
em 1988.
16
glorioso de Portugal utilizando os nomes e características de grandes ícones da história
portuguesa e de escritores consagrados, tais como, como Camões, Diogo Cão, Vasco da
Gama, Pedro Álvares Cabral e outros, aos quais atribui a identidade de “retornados”, o que
legitima a identidade portuguesa:
Nessa obra, os Descobrimentos, como se fossem vistos do avesso, mostram a decadência
de Portugal em todo o seu esplendor. Navegadores, escritores, reis, colonos, regressam à
pátria: Pedro Álvares Cabral procura emprego e vive num quarto nojento de uma pensão
com outras famílias de Angola, Gil Vicente é ourives, Vasco da Gama passeia no Guincho
com o rei Dom Manuel, Dom Sebastião é esperado por um grupo de indigentes. Mesmo
antes disso, A Portuguesa é executado em ritmo de pasodoble.
15
Esses homens, que foram os grandes desbravadores do ultramar são, na ficção
contemporânea, os retornados pobres e decrépitos que chegam a Portugal frustrados com a
derrota e com o fato de não terem feito a riqueza desejada em terra estrangeira: “Por isso,
ao reexaminar a mitologia cultural portuguesa, o autor citado atribui às pessoas-
personagens ¡ emblemáticas e consagradas ¡ uma nova identidade, transformando os
antigos mitos referenciais em seres humanos frágeis, carentes e “derrotados”.
16
Margarida Alves Ferreira, ao refletir sobre o 25 de abril e os náufragos do Império,
declara:
O 25 de Abril dissipou a névoa que encobria o naufrágio; não foi a nau salvadora nem a
ilha da utopia, mas obrigou os reinantes tripulantes que boiavam agarrados em tábuas podres
do Império perdido a chegar à praia, à sua praia, à ocidental praia lusitana, para ali construir
uma casa à sua medida. Voltam portanto, em ruínas as naus, e em farrapos os que escaparam
do naufrágio. A volta dos sobreviventes é o tema do último romance que comentarei: As
Naus, de Lobo Antunes, publicado em 1988. Esse romance acentua a visão carnavalizadora
da conquista, do passado de glórias perdidas há muito tempo. O Império naufragou, e os
sobreviventes voltam a Portugal cada um esperando encontrar o país que deixou e nele
reencontrar-se como quando partiu.
17
15
ANTUNES, Antonio Lobo. Fotobiografia. Org. Tereza Coelho. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
2004.p.93
16
FARIA, Ângela Beatriz de Carvalho “Memória, Linguagem e História na Ficção Portuguesa
Contemporânea” In Linguagem, Identidade e Memória Social: Novas fronterias, Novas Articulações.
RJ:DP&A, 2002,p.40.
17
FERREIRA, Margarida Alves. “Portugal e o Naufrágio do Império” In et alii América: Ficção e Utopias.
José Carlos Sebe Bom Meihy e Maria Lucia Aragão (orgs.). SP: EDUSP, 1994.p.39.
17
A mesma temática da guerra colonial ressurge em O esplendor de Portugal (1997) e
no recém-lançado D´este viver aqui neste papel descripto
¡
Cartas da guerra(2005).
No primeiro romance citado, encontramos, retornados de Angola, os filhos de uma
família colonial expoliada de uma fazenda de algodão pelas tropas revolucionárias após o
período da independência e da implantação da guerra civil. Subjetividades malogradas
manifestam-se nos diversos capítulos, em primeira pessoa, e Isilda, a mãe, a única que
ficou na terra africana, termina sendo executada.
18
Já a obra, lançada recentemente, tem como título a citação de uma carta de Ângelo de
Lima ao Professor Miguel Bombarda por ocasião de sua internação em hospitais
psiquiátricos. O estudo do caso clínico desse poeta propiciou a Lobo Antunes o prêmio
Sandoz de Psiquiatria com o ensaio “Loucura e criação artística: Ângelo de Lima, poeta de
Orpheu. O título escolhido e o subtítulo ¡ Cartas da guerra ¡ resumem a vivência
autobiográfica do autor: um homem isolado de tudo e de todos durante dois anos de guerra
colonial em Angola que escreve à mulher amada sucessivos aerogramas.
19
Vale a pena observar, principalmente, a par da temática erótico-amorosa, a solidão, o
desespero, a desesperança, a tentativa de colocar ordem no caos, através do subterfúgio da
escrita (Lobo Antunes iniciava-se em sua carreira de escritor e enviava trechos de um
romance que desejava publicar para serem lidos e criticados pela mulher Maria José). Em
meio a isso, há alusões à operações de guerra, ao contato com o outro ¡ o africano, ao
18
Ver “O esplendor de Portugal, de Antonio Lobo Antunes: o desencantamento do mundo e a desrazão” da
autoria de Ângela Beatriz Faria. CD-ROM da AIL - Associação Internacional de Lusitanistas. UFRJ/FCC,
1999.
19
Aerograma ¡ envelope-carta gratuito (isento de selo) para uso dos militares e suas famílias, editado pelo
Movimento Nacional Feminino e cujo o transporte era oferta da TAP.
O livro D´este viver aqui neste papel descripto
¡
Cartas da guerra foi publicado pelas filhas de Lobo
Antunes, após a morte da mãe e com expressa autorização desta. Apresenta fotos, mapas, reproduções
manuscritas dos aerogramas e um glossário com siglas e termos africanos utilizados.
18
processo de autoconhecimento, “à secreta loucura, a saltos de imaginação e de humor, ao
medo da morte, às coisas inexprimíveis” (Op. cit., 234), e, à produção literária: “Eu acho
que o romance tem de ser uma espécie de tricot subterrâneo, a correr por baixo da
aparência.” (Idem). Assim, a “identificação em curso” do sujeito manifesta-se através da
escrita.
No caso de Portugal, a questão da “identificação em curso” está totalmente ligada à
casa portuguesa e à maneira como os portugueses lidam com esse país em viagem:
Há na literatura lusíada uma evidente relação entre Portugal e a imagem da casa “como
representação textual da sociedade portuguesa”. Casa-barco, como sintetizou Álvaro de
Campos no poema “Casa branca nau preta”, às vezes mais barco que casa, outras mais casa
que barco. Por vezes encalhado ou à deriva pelos impasses e contradições históricas, mas
sempre luminosamente inquieto na Literatura, casa-barco móvel, se fazendo.
A ficção portuguesa contemporânea escreve Portugal entre a desconstrução do excesso de
identidade e as alternativas de construção de novos caminhos. Esse modo de estar entre ou
“estar na fronteira” deve ser lido não como um dilaceramento ou limiar, possibilidade de
efetivo diálogo, de trânsito entre fronteiras.
20
Jorge Fernandes da Silveira, em Escrever a casa portuguesa, propõe uma nova
interpretação da casa no imaginário português, cujo “destino”, de acordo com a ideologia
expansionista, “era de estar sempre em eterna partida de si mesma”.
21
No entanto, após o
impasse vivido pela Revolução de 25 de Abril de 1974, a nação portuguesa vê-se “forçada
a viver em casa, ou seja, no seu próprio continente “à beira-mar” plantado.
Ao partir do pressuposto de que “a literatura, ao invés de ser um documento social, é
uma forma de representação textual da sociedade”, o professor e ensaísta citado propõe
uma reflexão em torno da casa portuguesa, “entendida agora como uma construção
discursiva que pensa o modo português de fixar-se na casa natal.” Dessa forma, ao
20
SOARES, Maria de Lourdes. “A Ficção Contemporânea: Entre o Brasil, a Europa e a África” In: A Ficção
Portuguesa contemporânea”, p.138.
21
SILVEIRA, Jorge Fernandes da.(Org.) Escrever a casa portuguesa. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. A
partir daqui, todas as referências entre aspas pertencem à apresentação“Casas de escrita”, da autoria do autor
citado. Op. Cit., p. 13-21.
19
interessar-se pelas “casas de escritas”, vê “na imagem da casa um modo seguro de
formular hipóteses acerca do imaginário e da sociedade portuguesa”.
Essas reflexões críticas incentivaram-nos a dedicar um capítulo da Dissertação às
casas presentes em Fado Alexandrino, “cenário das questões-chave” que refletem “a
relação dos portugueses com a sua própria história, consigo mesmos, em suma”.
Convém destacar que essas casas representam o dilema histórico português: uma
sociedade dividida entre a expansão marítimo-colonial e a fixação no solo europeu. Após o
período destinado ao combate em África, os portugueses foram obrigados a retornar à casa
natal, agora metamorfoseada.
Em Fado Alexandrino, o re-ingresso dos ex-combatentes de Moçambique, em um
período prestes a eclodir a Revolução de Abril, mostrou-se traumático e decepcionante,
uma vez que, ao reencontrarem as casas familiares e a casa portuguesa, os sentidos de
intimidade e de partilha (os atos de dividir e pôr em comum) deixaram de existir. A casa
da família ¡ “microcosmo onde se encena a construção da nação”
22
¡ rejeitou os recém-
chegados de África. Tornou-se necessário, da noite para o dia, conviver com novos espos
físico, social e simbólico. E, por isso, coube aos sujeitos descentrados re-encenar o
conhecimento de si próprios, dos outros e do mundo que os cercava. Ao constatarem a
presença de “muros desguarnecidos”, em suas próprias casas, só lhes restou vivenciarem
“perdas, riscos, travessias e paixões”.
As relações intersubjetivas, marcadas pela fragilidade dos laços de afeto e pelas
reconfigurações identitárias, serão apontadas em capítulo específico e eso presentes em
anexo com o objetivo de tornar claras as relações entre as personagens. Julgamos
22
BUESCU, Helena Carvalhão, “A casa e a encenação o mundo: Os fidalgos da casa mourisca, de Júlio
Dinis. In: ¡ et alii. Escrever a casa portuguesa. (Org.) Jorge Fernandes da Silveira. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1999. p. 29.
20
conveniente explicitar os conflitos, as substituições e relações triádicas, a intolerância, a
falta de entendimento, o desalento e a ausência de paz das personagens da trama ou intriga
romanesca de Fado Alexandrino. As seqüências que compõem os episódios e conduzem a
linha da ação ligam-se por encadeamento, encaixe ou entrelaçamento, como veremos em
“derrotas cruzadas em fundo de mar”.
Partindo do princípio de que “o texto literário é produtor de sentido”, aprendemos com
Jean Ricardou que: “ler o texto moderno não é ser vítima de uma ilusão de realidade, é
mostrar-se atento à realidade do texto (...) às leis de sua produção, às do princípio de sua
geração e de sua organização.”
23
Assim, a casa de escrita antuniana reveste-se de uma “opacidade” que se opõe ao
texto da narrativa tradicional, considerado “transparente”. O ponto de vista ou foco
narrativo, ou seja, a perspectiva dentro da qual se estrutura o discurso do narrador, torna-se
singular em Fado Alexandrino, trazendo conseqüências altamente significativas para o
enredo (trama ou intriga) e para a relação do texto com o leitor.
24
Por isso, achamos
pertinente dedicar um capítulo específico ao “encontro iluminado com a escrita de Lobo
Antunes”.
No capítulo 2, veremos como a casa (esfera privada e familiar) pode surgir como
metáfora miniatural do mundo (a esfera pública e social) justamente porque ambos os
espaços simbólicos foram progressivamente construídos como distintos. E, como nos
ensina Helena Buescu, “apenas o distinto pode ser concebido como análogo”.
25
23
RICARDOU, Jean apud MESQUITA, Samira Nahid de O enredo. São Paulo: Editora Ática, 1986. p. 68.
24
Op. Cit., p. 65-68. As definições de “enredo” (“trama” ou “intriga”),, “ponto de vista” e “texto” foram
retiradas do “Vocabulário Crítico” da obra em questão.
25
BUESCU, Helena Carvalhão. “A casa e a encenação o mundo: Os fidalgos da casa mourisca, de Júlio
Dinis. In:_____.et alii. Escrever a casa portuguesa. (Org.) Jorge Fernandes da Silveira. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1999. p.33.
21
Em Fado Alexandrino, os sujeitos anulam-se na casa portuguesa, que transita da casa
sedimentada da época salazarista (“Antes da Revolução”) à casa derrubada e fragilizada
dos períodos revolucionário e pós-revolucionário. A casa presente no imaginário dos
viajantes sofrerá um processo de dissolução e aniquilamento. Retornar à casa significa
tomar posse de uma memória já quase perdida.
No romance de Lobo Antunes, as relações pessoais e a problemática da cidade de
Lisboa e da pátria se interpenetram, sendo impossível dissociá-las. A Lisboa escatológica e
antropológica espelha a degenerescência e o estilhaçamento dos sujeitos fadados ao
fracasso, em meio ao caos social. Os ideais revolucionários se perdem e são satirizados ou
carnavalizados na escrita magistral e iluminada desse escritor contemporâneo.
Então, face ao contexto da guerra colonial, das perdas psicológicas advindas da
guerra e do questionamento da identidade de cada uma das personagens, buscamos
dialogar a obra de Lobo Antunes, Fado Alexandrino, com os textos críticos de Maria
Alzira Seixo e com a obra de Zygmunt Bauman, Modernidade e Ambivalência, entre
outros autores, visando um melhor entendimento e posicionamento do homem
contemporâneo frente à problemática do não-lugar, a uma sociedade de fronteiras diluídas
afetada pela globalização, ao caos moderno e à falta de humanidade, dignidade e respeito
consigo mesmo e com o outro.
O capítulo 1, ao refletir, brevemente, sobre princípios filosóficos do mundo
contemporâneo, estabelece um diálogo entre a identidade do sujeito na pós-modernidade e
a ficção sobre a guerra colonial da autoria de Lobo Antunes.
O capítulo 2 refere-se ao período histórico da guerra colonial e privilegia a atuação das
personagens afetadas pelo período em que estiveram expostas à cultura africana e às
mazelas da guerra, além de focalizar a reação delas no retorno a Lisboa, plena de “casas”
22
desguarnecidas. A guerra que os portugueses travaram em África nos suscitou a lembrança
da segunda guerra mundial e a exclusão dos judeus. Essa exclusão, por sua vez, acentua o
descentramento dos sujeitos, levando-os a reconfigurações identitárias.
O capítulo 3, por sua vez, trata das relações intersubjetivas e do conflito com o
feminino, passível de aumentar o sentimento de derrota dos ex-combatentes; e busca
aprofundar o caos individual em que cada personagem se encontra. Focaliza, inclusive, a
questão da criação singular de António Lobo Antunes, que tão bem sabe nos enredar no
“assombrado vaivém das ondas” de sua escrita.
23
2. A CASA PORTUGUESA E OS MUROS DESGUARNECIDOS: PERDAS,
RISCOS, TRAVESSIAS E PAIXÕES
26
2.1 As “províncias ultramarinas” em África e o contexto da guerra colonial a
suscitar outros processos de exclusão
O que me ficou da guerra, meu capitão, é um bando de cães vadios no fundo
atormentado da memória (FA)
Antes de falar sobre a guerra em África, pano de fundo da obra de Antonio Lobo
Antunes, Fado Alexandrino, faz-se necessário aludir ao texto de Ângela Beatriz de
Carvalho Faria, cujo título é o mencionado acima, nomeando este capítulo. Ela levanta a
seguinte questão sobre a identidade nacional de Portugal que é fundamental para a
abordagem do assunto da guerra e das conseqüências psicológicas desta nas personagens
de Fado Alexandrino: “Que discurso de nação ainda é possível, em um momento em que
há multiplicação de merias particulares em substituição a uma memória coletiva?”
27
As casas das personagens estão desguarnecidas como a própria alma delas está, uma
vez que elas não sabem se seguem em frente ou se ficam voltadas para trás, alimentando as
reminiscências da guerra em suas memórias. Referimo-nos às casas pessoais, ao “eu” de
cada um, e à casa maior — a pátria portuguesa — a qual não sustenta mais a honra
gloriosa, a qual só pode recobrar nas memórias o seu passado glorioso assinalado pela
hiperidentidade, conforme define Eduardo Lourenço em Nós e a Europa: ou as duas
razões:
“Lourenço afirma que o problema dos portugueses não é o da crise de identidade,
comum a outros povos, mas o de hiperidentidade, de excessivo centramento no glorioso
passado das navegações.”
28
26
Título emprestado do ensaio crítico de Ângela Beatriz de Carvalho Faria. “A Casa Portuguesa e os Muros
Desguarnecidos: Perda, Risco, Travessia e Paixão” In: Anais XVIII Encontro de Professores Brasileiros de
Literatura Portuguesa - Santa Maria, ABRAPLIP, RS: Ed. Pallotti, 2003. Reflexões críticas sobre Não
entres tão depressa nessa noite escura, de António Lobo Antunes, publicado em 2001.
27
Jacques Ravel apud FARIA, Op.cit, p.67.
28
SOARES, Maria de Lourdes. “A Ficção Contemporânea: Entre o Brasil, a Europa e a África” In: A Ficção
Portuguesa contemporânea”. p.131.
24
A casa, em seu sentido mais íntimo, é o espaço que guarda a identidade, os traços
pessoais, as características de cada indivíduo:
(...) lugar em que se enreda a espessura de cada ser, o (des)equilíbrio de cada um. Essas
casas de muros desguarnecidos abrigam a mis-en-scène do “eu” num espaço feito de
palavras, margens, deslocamentos e fronteiras. Esses sujeitos problematizados, ao
empreenderem uma travessia ou uma errância em busca de si mesmos e do outro, deslocam-
se na ordem cultural e social, inscrevem-se em uma escrita de corpos deslocados, sítios
visitados e despaisamento.
29
Por isso, nos romances de Lobo Antunes, a influência de acontecimentos distantes
sobre eventos próximos, e sobre as intimidades do eu se torna cada vez mais recorrente. A
superposição de tempos e espaços diferenciados, recuperados pela memória, contribui para
a fragmentação e a dispersão do sujeito inserido na modernidade. Em Fado Alexandrino,
essa questão assim se manifesta:
O corpo desarticulado do apontador de metralhadora obliquamente estendido sobre o seu, tão
próximo da cara que lhe sentia o odor fétido da morte, deu lentamente lugar à perna nua da
mulher na sua perna, ao ventre liso contra o seu flanco que suava (Tenho de sair daqui, pensou
ele angustiado, tenho de encontrar o camandro do cabo do rádio para chamar Mueda no meio
dos estampidos e dos gritos), ao peso da cabeça adormecida no seu ombro, queimando-lhe o
pescoço de uma tênue respiração tranqüila. À medida que acordava as árvores
transformavam-se em paredes e móveis, o chão de capim convertia-se na paz enrolada dos
lençóis, a tarde de Lisboa substituía-se à manhã de Moçambique, as buzinas dos automóveis
na rua emergiam dos lamentos dos feridos espalhados ao acaso na alcatifa, entre a desordem da
casa e os chinelos da mulher. (FA,52)
As personagens de Fado Alexandrino carregam, em seu presente, o passado de dor e
sofrimento constante, por isso, a impossibilidade de encontrarem a paz interior. Esta, eles
não resgatarão pelo fato de possuírem as marcas da guerra de África.
Em toda a guerra, as marcas que ficam da destruição vivida ultrapassam os limites
físicos; em todas elas, as conseqüências socioeconômicas e psicogicas abalam muito
mais o indivíduo que, ao fim de cada luta, tem que se reerguer, juntar os estilhos e tentar
29
FARIA, Ângela Beatriz de Carvalho. “A Casa Portuguesa e os Muros Desguarnecidos: Perda, Risco,
Travessia e Paixão” Anais XVIII Encontro de Professores Brasileiros de Literatura Portuguesa - Santa
Maria, ABRAPLIP (2001). RS: Ed. Pallotti, 2003. p.66-72.
25
acreditar que, a partir daquele momento, tudo será diferente. Em Fado Alexandrino, no
entanto, não é essa visão de reconstrução identitária que podemos reconhecer. Os ex-
combatentes observam as marcas de sofrimento até nas pessoas que ficaram em Portugal:
“Os que entram e os que saem possuem o mesmo soslaio azedo e turvo, a mesma roupa
escorrida, as mesmas feições envelhecidas infinitamente distantes.” (FA, 17)
O pensamento pós-moderno foi altamente influenciado pelas transformações políticas,
sociais e econômicas advindas da segunda guerra mundial e, após o seu término, os seus
efeitos negativos continuaram a ser sentidos de maneira drástica por vários países. A
segunda guerra foi um duro golpe do evolucionismo pregado até então. A situação dos
judeus se assemelha em teor à situação dos negros subjugados pelos brancos. Os negros
das colônias portuguesas em África também recebiam tratamento indigno à condição de
seres humanos e ficaram sob a dominação de Portugal durante longos anos, sem o direito
de usufruírem sua terra natal livremente. Até que começaram a se rebelar e a tentar
conquistar de volta o que lhes pertencia, por direito de nascença. Infelizmente, os judeus
o conseguiram lutar contra o homicídio coletivo de Hitler e milhares de vida
sucumbiram sem direito de resposta.
Imbuídos de um espírito de cruzada, a barbárie contra os judeus começou na
Alemanha, considerada um modelo de civilização. Hitler apenas colocou em prática o
pensamento que já vinha sendo pregado por mais de um século de teorias eugênicas
advindas no pós-iluminismo, no que se refere à superação de anomalias genéticas e sociais.
Segundo Bauman:
O Estado moderno nasceu como uma força missionária, proselitista, de cruzada,
empenhado em submeter as populações dominadas a um exame completo de modo a
transformá–las numa sociedade ordeira, afinada com os preceitos da razão. A sociedade
racionalmente planejada era a causa finalis declarada do Estado moderno. O Estado moderno
era um Estado jardineiro. Sua postura era a do jardineiro. Ele deslegitimou a condição
presente (selvagem, inculta) da população e desmantelou os mecanismos existentes de
26
reprodução e auto-equilíbrio. Colocou em seu lugar mecanismos construídos com a
finalidade de apontar a mudança na direção do projeto racional. O projeto, supostamente
ditado pela suprema e inquestionável autoridade da Razão, fornecia os critérios para avaliar a
realidade do dia presente. Esses critérios dividiam a população em plantas úteis a serem
estimuladas e cuidadosamente cultivadas e ervas daninhas a serem removidas ou arrancadas.
Satisfaziam as necessidades das plantas úteis (segundo o projeto do jardineiro) e não
proviam as daquelas consideradas ervas daninhas. Consideravam as duas categorias como
objetos de ação e negavam a ambas os direitos de agentes com autodeterminação.
30
Em busca desse “Estado jardineiro” – do Estado Moderno ordenado pela Razão - as
pessoas que eram consideradas “plantas úteis” seriam cultivadas e aquelas consideradas
“ervas daninhas” seriam arrancadas e, assim, os judeus e os aleijões sociais tornaram-se
vítimas dessa engenharia social:
As ervas daninhas são o refugo da jardinagem, ruas feias o refugo do planejamento
urbano, a dissidência o refugo da unidade ideológica, a heresia o refugo da ortodoxia, a
intrusão o refugo da construção do Estado-Nação. São refugos porque desafiam a
classificação e a arrumação da grade. São a mistura desautorizada de categorias que não
devem se misturar. Receberam a pena de morte por resistir à separação (...) Se a
modernidade diz respeito à produção da ordem, então a ambivalência é o refugo da
modernidade.
31
A decisão de ir até o fim e aniquilar vidas humanas foi de Hitler, porém, a lógica da
eugenia foi construída e legitimada por famosos cientistas e teóricos tomados pelo espírito
moderno e a favor do evolucionismo da espécie e do progresso da humanidade. As teorias
eugênicas foram assimiladas em vários países europeus, pois, para o desespero de muitos,
foram acolhidas dentro da atividade intelectual moderna, onde acadêmicos ingleses
disputavam com acadêmicos alemães o orgulho da prioridade.
A eugenia seria a busca pela identidade perfeita, onde uma raça pura e forte seria
capaz de se tornar a nação suprema. E assim, por conta dessa busca, os judeus eram
enquadrados no grupo dos excluídos, ao qual pertenciam todos os aleijões sociais que
existiam naquele momento histórico:
O povo judeu, reconhecidamente rebelde e anarquista era uma das muitas ervas daninhas
que habitavam o lote marcado para o cuidadosamente planejado jardim do futuro. Mas havia
30
BAUMAN, Zygmund. Modernidade e ambivalência,RJ: ed. Jorge Zahar, 1999.p.29
31
Ibidem, p.23
27
também outras ervas daninhas – portadores de doenças congênitas, os mentalmente
inferiores, os fisicamente deformados
.
32
Obviamente que mesmo com a perda da guerra por parte dos alemães, essas idéias de
higiene social que geraram tanto horror ainda rendem frutos de discussão pelas
conseqüências sociais, históricas e morais que causaram. A subjugação de raças que são
consideradas inferiores por outras é algo que acontece desde o início dos tempos em nome
de descobertas e invasões de novas terras, colonizações e poder; foi prática recorrente na
Europa, a qual se tornou um continente miscigenado e, continuou a ser exercida sobre
outros povos da América e da África.
As misturas culturais dos colonizados e dos colonizadores renderam novas línguas e
novas culturas à custa do sangue e do sofrimento de muitos. Sempre os colonizadores são
os que impõem suas características culturais sobre os colonizados, porém, ao mesmo
tempo em que oprimem, eles também são expostos à cultura dos colonizados e poderão se
contagiar por ela ou não.
A religião esteve associada ao poder governamental durante muitos séculos, formavam
uma aliança e, em nome de Deus, vários massacres e atrocidades foram cometidos. Mesmo
estando dissociada do poder do Estado, no século XX, ainda representava motivo de
desentendimentos sociais. No caso dos judeus, eles representavam um povo de credo
diferente e de expressão de pensamento livre, portanto, eram perigosos pela visão
eugênica:
A população deveria ser homogênea; quando existem duas ou mais culturas no mesmo
lugar, provavelmente ou ficarão furiosamente constrangidas ou vão se adulterar. Mais
importante ainda é a formação religiosa; e razões de raça e religião combinam-se para tornar
indesejável um grande número de livres-pensadores judeus. Deve haver um equilíbrio
adequado entre o desenvolvimento urbano e o rural, a indústria e a agricultura. E um espírito
de excessiva tolerância deve ser reprovado.
33
32
BAUMAN, Zygmund. Modernidade e ambivalência. RJ: Ed. Jorge Zahar. p.38.
33
Ibidem, p.43.
28
Não existia a certeza de que a sociedade se tornaria limpa e harmoniosa se fosse
guiada somente por suas inclinações naturais, então, a própria humanidade deveria extirpar
tudo aquilo que não se encaixasse nos padrões estabelecidos. Num mundo ambivalente, no
qual a busca pela nomeação e ordem é constante, não há tolerância àquele que está
excluído do grupo e este ou aquele grupo é sempre determinado pelas relações de poder
estabelecidas na sociedade. Segundo Bauman, a linguagem, instância que diferencia os
humanos dos animais, é a que assume a função de organizar categorias e nomear o mundo
no qual vivemos:
Através da sua função nomeadora/classificadora, a linguagem se situa entre um mundo
ordenado, de bases sólidas, próprio a ser habitado pelo homem, e um mundo contingente de
acaso no qual as armas da sobrevivência humana ¡ a memória, a capacidade de aprender ¡
seriam inúteis, senão completamente suicidas (...) A situação torna-se ambivalente quando os
instrumentos lingüísticos de estruturação se mostram inadequados; ou a situação não
pertence a qualquer das classes lingüisticamente discriminadas ou recai em várias classes ao
mesmo tempo. (...) O ideal que a função nomeadora /classificadora se esforça por alcançar é
uma espécie de arquivo espaçoso que contém todas as pastas que contêm todos os itens do
mundo ¡ mas confina cada pasta e cada item num lugar próprio, separado (com as dúvidas
que subsistam sendo esclarecidas por um índice de remissão recíproca). É a inviabilidade de
tal arquivo que torna a ambivalência inevitável. E é a perseverança com que a construção
desse arquivo é perseguida que produz um suprimento sempre renovado de ambivalência.
Classificar consiste nos atos de incluir e excluir. Cada ato nomeador divide o mundo em
dois: entidades que respondem ao nome e todo resto que não. Certas entidades podem ser
incluídas numa classe ¡ tornar-se uma classe ¡ apenas na medida em que outras entidades
são excluídas, deixadas de fora. Invariavelmente, tal operação de inclusão/exclusão é um ato
de violência perpetrado contra o mundo e requer o suporte de uma certa dose de coerção. (...)
A luta contra ambivalência é, portanto, tanto autodestrutiva quanto autopropulsora. Ela
prossegue com força incessante porque cria seus próprios problemas enquanto os resolve.
Sua intensidade, porém, varia com o tempo, dependendo da disponibilidade da força
adequada à tarefa de controlar o volume de ambivalência existente e também da presença ou
ausência de consciência de que a redão da ambivalência é uma questão de descobrir e
aplicar a tecnologia adequada ¡ uma questão administrativa. Os dois fatores combinaram-
se para fazer dos tempos modernos uma era de guerra particularmente dolorosa e implacável
contra a ambivalência.
34
A impossibilidade de se dar nome a todas as coisas, assim como a de achar um
consenso entre todas as vontades humanas, criam um cenário de disputas entre civilizações
34
BAUMAN, Zygmund. Modernidade e ambivalência. RJ: Ed. Jorge Zahar, 1999.p.10-11.
29
e culturas que se repete ao longo dos tempos. Essas disputas acumulam conseqüências que
agem diretamente na maneira de pensar moderna. Tais conseqüências se refletem na busca
de entendimento de como é constituída a identidade do homem pós-moderno e se é
posvel defini-la, já que, a cada momento, verificamos diferentes tipos de diluição e
estilhaçamento acarretados por desilusões sociais e pessoais.
Tais conseqüências também podemos averiguar através das perdas causadas através de
anos de destruição e desilusão causados pela guerra em África e pela já destruída
identidade nacional de Portugal, após anos de ditadura e dilapidação, não só da riqueza,
mas também do orgulho antes construídos e enaltecidos na época da expansão marítima.
Assim sendo, o movimento reverso deveria ser feito para reconstruir as perdas. Segundo
Bauman:“a prática moderna não visa à conquista de terras estrangeiras, mas ao
preenchimento das manchas vazias no compleat mappa mundi. É a prática moderna, não a
natureza, que realmente não tolera o vazio.”
35
Algumas personagens refletem a fidelidade dos combatentes a uma causa da pátria e a
um espírito de missão, empenhado e construtivo que se mistura ao caráter pós-moderno do
indiferentismo, vanidade e incerteza. Tais sentimentos emergem na ficção de Lobo
Antunes e faz com que os ex-combatentes se deparem com o conflito interior, que causa a
sensação de mal-estar e frustração. Em Fado Alexandrino, por exemplo, o oficial de
transmissões diferencia-se da maioria, pois apesar de lutar em África, é contra a causa
missionária citada; pertence a uma organização revolucionária com pensamentos marxistas
e opõe-se ao regime fascista. Quando retorna da guerra, em 1972, portanto, antes da
Revolução, diz:
— Quando chegamos, em setenta e dois, eu pertencia à Organização há cinco anos. Não
quiseram que eu me pirasse a salto, ou que entrasse na clandestinidade, ou me tornasse
funcionário: era importante para nós, meu capitão, termos gente no Exército, entendermos
35
BAUMAN, Zygmund. Modernidade e ambivalência. RJ: Ed. Jorge Zahar, 1999.p.15-16.
30
por dentro o que acontecia, atuar no interior da máquina: sabíamos que a única possibilidade
de mudança viria forçosamente daí. (FA,29)
Assim como Dália-Odete, personagem ambivalente em sua identidade, Emílio e Olavo
aparecem como membros da organização — elos de ligação e informações entre o oficial e
a Organização:
A Comissão Política do Conselho Permanente, informou o Olavo, agora sentado, de
perna cruzada, num pavoroso canapé de palhinha, a exibir com orgulho os sapatos sem
graxa, decidiu que continues na tropa em nome dos supremos interesses do Proletariado, e
arranjou-te um lugar de secretaria no Ministério do Exército. Precisamos de safar da guerra
companheiros operacionais, precisamos de revolucionários de confiança no interior da
máquina, de orelhas escancaradas e boca que saiba cantar na altura exata. (FA,49)
A ligação do oficial com a Organização era apenas através desses contatos e, como
ele não sabia, na verdade, o que se tramava no núcleo da Organização, questionava essa
falta de conhecimento:
Tudo me passa ao lado, pensou o oficial de transmissões, porque catano nunca me falam
nestes assuntos, porque guardam a carne para eles e me abandonam, de esmola, uns ossitos,
umas peles, umas gorduras, uns restos inúteis? A rapariga (Chama-me Dália, trata-me por
Dália, e ele, ressentido, O nome de guerra do costume, o nome de código da puta que te
pariu, provavelmente és Fátima ou Ana ou Isabel). (FA,103)
Com certeza não é por acaso que a personagem escolhida como vítima para o
cometimento de um crime seja o oficial de transmissões, ao fim de Fado Alexandrino. A
morte de Celestino tem um sentido subentendido, pois era o único que se sublevava contra
o regime instituído. Ele tecia na clandestinidade a Revolução e possuía uma utopia
político-social, até se desiludir com os acontecimentos do período pós-revolucionário. O
crime, que começa na cumplicidade dos assassinos e acaba na combinação da ocultação do
cadáver do oficial, revela ironicamente a morte da consciência política e dos ideais que não
se cumpriram após a Revolução, pois era ele quem lutava pelas mudanças sociais e
políticas necessárias à casa portuguesa.
31
O oficial era o único que percebia que a guerra em África estava a cada dia minando as
forças de Portugal:
Rodou o manípulo, a mesa do costume, os estandartes do costume, os armários do costume
repletos de pastas de cartão que não leria nunca, que se recusava a ler, intermináveis
relatórios confidenciais sobre a Guiné, ou Angola, ou Moçambique, extensos comunicados
acerca da situação logística do Exército, autoritárias e contraditórias ordens do ministro aos
comandos das Regiões Militares. Faça-se isto, faça-se aquilo e nada, compreende, se fazia
de fato, disse-me ele a encolher os ombros, a tropa era uma espécie de máquina mole que
se movia, vagarosamente por inércia, nenhum sangue pulsava já no interior daquilo,
anos e anos de guerra tinham-nos empalhado, ressequido, destruído, substituído o
fígado, o estômago, os pulmões, os nervos, por uma espécie, percebe você, de sumaúma
sem vida. E de ano a ano, foda-se, África. (FA, 83)
O oficial de transmissões é supostamente morto por ter se envolvido amorosamente
com a ex-mulher do tenente, Edite; este acusa Abílio de tê-lo matado, porque o oficial
também se envolveu com o amor de Abílio, Dália - Odete. Apesar desse motivo amoroso
aparente, ele diferenciava-se do grupo de militares ao qual pertencia, pelo idealismo e pela
crença numa sociedade mais justa.
A morte do militar é banalizada da mesma forma que as mortes dos africanos
perpetradas pelos combatentes portugueses o são. Esse fato mostra o quanto os ex-
combatentes foram influenciados pela vivência em África. Além dos atos arbitrários e
aleatórios, observa-se o sentido de exclusão, ao qual são submetidos ao retornar à pátria e
o saberem mais a que lugar pertencem. Diz o oficial recém-chegado de África:
— Morei naquele sítio vinte anos, disse o tenente –coronel a cravar no espaço entre os
meus olhos as pupilazinhas escuras e agudas, e parecia-me que nunca reparara no bairro até
então, que nunca notara os azulejos, os arrebiques de estuque das fachadas, o jardinzito com
coreto e as raízes anêmicas queimadas pelo xixi clandestino dos miúdos e dos gatos, as
apáticas caras desocupadas das pessoas. De modo que me apeei do carro como num país
desconhecido, estrangeiro, em que se aterrou por acaso, a perguntar a mim mesmo:
Mas que caralho é isto, onde é que eu vim parar? (FA, 87)
Como o oficial, todos vivenciam uma crise identitária, e a problemática da identidade
se intensifica por se tratar de personagens que se manifestam em primeira pessoa, cujas
falas se interpõem a todo tempo na narrativa. Personagens das mais diversas camadas
32
sociais e culturais se projetam, surpreendidas no seu quotidiano tragicômico, na irônica e
revelada humanidade (ou falta desta), na destruição dos dias, dos acontecimentos e
principalmente das identidades que se estilhaçaram em busca de si mesmas e do convívio
com a alteridade, nesse turbilhão de acontecimentos que nos são mostrados
incansavelmente em quase seiscentas páginas.
Fado Alexandrino aponta-nos a eliminação daquele que lutou pela tentativa de
libertação das colônias em África, pelo fato de não concordar com os propósitos
ideológicos do governo da nação. Muitos combatentes visavam minar a guerra por dentro,
e um deles era o oficial de transmissões:
— Vocês, os civis, atreviam-se a conspirar no interior do Exército?, perguntou o tenente-
coronel num tom lento, difícil, ultrajado. Vocês tentavam minar o que nos deu tanto trabalho
a construir?
Há séculos que esperava este contato, disse o oficial de transmissões, garantiram-me que
havia mais camaradas a trabalhar comigo no Ministério.
— Uma rede completa, ganiu o tenente-coronel, estupefato. Uma rede completa de
bombistas, treinados do estrangeiro, destinados a esfacelarem o moral dos militares.
(FA,101)
Ao retornar a Portugal, o ex-combatente, como vimos, torna-se um descentrado em sua
própria pátria; contaminado pelos anos de convivência africana, já não reconhece a cidade
de onde partiu e tenta reconstituir uma identidade impossível que foi estilhaçada pelo
combate. A integridade de sua existência individual (se isso é possível) está perdida num
lugar entre a permanência e a mutação, entre Portugal e África.
Apesar de Portugal estar desde 28 de Maio de 1926 vivendo sob regime ditatorial,
somente em 1933 foi institdo o Estado Novo que perdurou até 25 de Abril de 1974.
Desde a instauração da República, em 1910, Portugal vivia uma época de conturbações
políticas, econômicas e sociais, com as quedas de sucessivos governos e uma situação
financeira conturbada, agravada com a participação na 1ª guerra mundial. Havia uma
grande instabilidade no país que propiciou o derrube do regime democrático-parlamentar e
33
a instauração de uma ditadura militar com o golpe de 28 de Maio de 1926, chefiado por
Gomes da Costa.
A partir de 1928, entra na cena política António de Oliveira Salazar, como Ministro
das Finanças. Com uma política de austeridade, Salazar consegue equilibrar a balança
econômico-financeira do país e construir uma imagem de homem de Estado forte. Essa
imagem e a sua influência têm peso para a aprovação da nova Constituição, que instauraria
o regime do Estado Novo. O Oficial de transmissões, ao rememorar a sua luta contra o
regime político, relata o seu trabalho no quartel durante o período do Estado Novo:
— O meu trabalho lá, meu capitão? perguntou o oficial de transmissões a bater no copo de
vinho com a colher do leite-creme. Levantava processos e autos, arquivava fichas, coçava-
me, aborrecia-me de morte, tentava doutrinar cautelosamente alferes e sargentos
mongolóides e idosos instilando-lhes nas ervilhas das cabeças doses homeopáticas de
marxismo. E contribuía para a sociedade sem classes a esfalfar-me a explicar, ao major na
reserva, à hora do almoço, as vantagens das democracias populares. (FA,93)
A Constituão de 1933 vem dar força a um regime autoritário que proíbe os partidos
políticos e as greves, estabelece a censura e cria a polícia política. Esta polícia foi
primeiramente chamada de PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) e depois, em
1945, passa a ter o nome de PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado).
A PIDE exercia atividade em todo o território português no sentido de evitar
dissidências nas organizações civis e militares, usando meios e métodos baseados nas
técnicas alemãs aplicadas na Gestapo, e é considerada por muitos historiadores uma das
polícias mais eficientes de sempre. Justificava as suas atividades com o combate ao
internacionalismo proletário e comunismo internacional. Ela é mencionada pelo oficial:
As precauções do costume, sabes como é. (Uma voz lavada, clara, adolescente, e no
entanto segura, autoritária, pronta a naufragar, cantando A Internacional, no Titanic do
marxismo-leninismo-maoísmo. Possuía mais tomates do que eu, acreditava mais do que eu,
meu capitão, e aposto que continua a acreditar, a reunir-se em caves esconsas, a defender
labirinticamente os chineses.) O Olavo preveniu-te de certeza de que a Organização não
pode permitir-se brincar em questões de segurança: Sempre a mesma conversinha, pensou
ele, sempre a mesma merda de conversa e com tantos panos quentes acaba por não se fazer
34
de fato nada de útil, nada que arranhe, que magoe, que ponha em causa o caralho do regime.
A Pide refina a perseguir-nos e nós, em resposta, cosidos de cagaço, dobramos de
cautelas. (FA,102)
Estas medidas serviram para criar um estado repressivo, que dominava pelo medo e
pela ignorância. Para esta situação ajudavam também as más condições de vida de grande
parte da população e as elevadas taxas de analfabetismo. Era mais fácil para Salazar
dominar uma sociedade pobre e sem cultura:
- Eu sentia o Estado Novo podre, mas firme, meu capitão, disse o oficial de transmissões,
de pálpebras descidas, bafejando os óculos com o hálito. Estávamos fartos da guerra, fartos
das perseguições, fartos da Pide, fartos das promessas não cumpridas, mas não entendia
muito bem como aquilo acabaria, como poderia alguma vez acabar de tal forma se me
afigurava eterno, imóvel, molemente pétreo. Mesmo o senhor, que esteve dentro, acreditava?
(FA, 104)
Porém, a oposão também se manifestava e, em vários momentos, abalou o regime.
Como nas eleições de 1958 e à época da candidatura do General Humberto Delgado, como
no assalto ao paquete Santa Maria, e nas greves acadêmicas de 1962 e 1969. Em vários
pontos da narrativa, as personagens relatam a movimentação que precedeu a Revolução:
— Tens de abrir bem os ouvidos e os olhos, aconselhou ela, tens de intensificar a tua ação:
queremos pelo menos um relatório por semana a partir de agora, a panela vai aquecer como o
diabo. Os capitães inquietam-se, há um descontentamento generalizado, uma onda de
protesto, e tudo isto começa a aglutinar-se a pouco e pouco numa contestação global ao
governo. Bem enquadrados politicamente, devidamente orientados no sentido de
promoverem a defesa intransigente da classe operária e dos seus interesses, os oficiais mais
lúcidos podem apoderar-se com facilidade da situação e provocarem o estouro do fascismo.
(FA, 102)
As bandeiras vermelhas, os hinos revolucionários, gente a correr, gases lacrimogêneos,
tiros, pedras da calçada, sangue, cânticos, slogans, propaganda, a luta firme, intransigente,
vitoriosa, contra os revisionistas de Moscou, os manipuladores dos camponeses, os sutis,
burocratizados traidores da classe operária, a Organização operando na legalidade junto dos
bairros da lata, dos sindicatos, das comissões de fábrica, dos estudantes, o Olavo, o Emílio, o
Careca, eu, com um cartão qualquer pregado na lapela, em cima de um estrado, a perorar
entre aplausos, gritos, confusões, a agressividade ou o contentamento dos rostos obedientes
que nos escutavam: mais um ano, garantia-lhe a rapariga, e o fascismo rebentava como um
furúnculo, a polícia secreta dissolvia-se, a tropa abandonava as colônias e unia-se aos
verdadeiros comunistas, mais um ano de paciência, mais um ano de luta (os olhos brilhantes
de esperança, o sorriso infantil, a mão a apertar-lhe os ossos magros do braço como um feixe
de fósforos) e seremos, estás a ver, sovietes, cooperativas agrícolas, autogestão, felizes.
(FA, 104)
35
Vamos correr com os burgueses, minha senhora, vamos ser livres finalmente, e o punho
fechado da mestra erguia-se num aceno cúmplice, as gigantescas ancas desiguais
cambulhavam de júbilo festivo, o sapato defeituoso esmagava vingativamente as tábuas dos
degraus. Amotinaria o prédio na altura própria, constituiria um núcleo marxista de
moradores esclarecidos, encabeçaria a célula de defesa do bairro destinada a orientar e a
prevenir possíveis desvios conservadores, a lutar contra o obscurantismo da população
desinformada, contra os recuos direitistas, contra o perigoso canto de sereia da social-
democracia em pânico, contra a vertiginosa tentação capitalista. (FA,104-105)
Em 1968, Marcelo Caetano substitui Salazar, que se encontrava gravemente doente.
Apesar das aparências de uma certa liberalização, que ficou conhecida como "primavera
marcelista", as estruturas salazaristas mantinham-se iguais. Continuava a censura, agora
chamada exame prévio, a PIDE, agora chamada DGS (Direção-Geral de Segurança).
Em meio ao regime “ditatorial”, entre 1961 e 1974, Portugal protagonizou uma guerra
colonial (apesar de a denominação precisar ser questionada, uma vez que os dirigentes
portugueses aludiam às ditas “colônias” como “províncias ultramarinas”), que se iniciou
para combater os movimentos de independência que surgiram nas colônias de Angola,
Moçambique e Guiné.
O Portugal salazarista não queria perder o seu império colonial e, por isso, são abertas
várias frentes de guerra que visavam impedir a independência dos países africanos: Angola
em 1961, Guiné em 1963 e Moçambique em 1964.
São mandados sucessivos, e cada vez maiores, contingentes de soldados para o
continente africano. Em África, a guerra fazia-se no mato, enfrentando os movimentos
armados independentistas que praticavam a guerrilha.
A guerra colonial portuguesa foi alvo de severas críticas, dentro e fora do país. Era um
motivo de descontentamento para a população civil que via os seus filhos morrerem numa
guerra que não tinha fim, e as condições de vida a piorar com o esforço financeiro para
sustentar o conflito. Além disso, havia um descontentamento também entre membros das
Forças Armadas:
36
— O estudo da nossa situação comparada com a dos milicianos, meu comandante, explicou
ele num tom aparentemente opaco, superficial. E em adenda meia dúzia de comentários
críticos acerca da situação geral do país, do ultramar: como pode ver quase todos os oficiais
subscreveram. (FA, 143)
No entanto, o regime de Salazar, e depois de Marcelo Caetano, continuava surdo às
oposões internas e às pressões internacionais. Portugal mantinha-se só na tentativa de
evitar a independência e assim, dia após dia, autodestruindo-se econômica e socialmente.
A guerra colonial acabou em 1974, com a Revolução de 25 de Abril. A própria
revolução foi fruto do descontentamento de alguns setores das Forças Armadas com o
prolongar interminável de uma guerra que estava condenada à derrota e devido à
incapacidade do regime ditatorial em encontrar um desfecho para ela. Também
denominada “Revolução dos Cravos”, a Revolução de 25 de Abril decretou o fim da
ditadura do Estado Novo. E assim, o desejo do oficial se realiza:
A queda do fascismo, percebe tornara-se para mim numa espécie de sonho, numa meta
ilusória. (FA,156)
Sabemos que a Direita conspira nos quartéis, sabemos que os latifundiários e os capitalistas
arregimentam dinheiro para o golpe, sabemos inclusive os nomes de alguns trutas do antigo
regime implicados na conjura. Cabe à Organização Marxista Leninista Maoísta Portuguesa,
na sua qualidade de única e legítima vanguarda dos oprimidos, impedir, através dos meios
que aqui hoje decidirmos, que o cancro do fascismo, injetado por criminosos, descontentes e
oportunistas, mine o organismo agora são, embora vulnerável e jovem, da democracia
lusitana. (FA,286)
Apesar da falta de contato direto com a Organização, o oficial estava a par que o
golpe militar estaria para acontecer, através das informações de Dália:
— Um golpe de Estado, anunciava ela, murmurou o oficial de transmissões a abanar a
cabeça incrédula. Com aquele sossego do catano na rua, nas fábricas, nas conversas do
autocarro, só um lunático como eu, meu capitão, acreditava nisso. E no entanto, de repente,
pumba, o povo no Carmo, tanques na Baixa, soldados de metralhadoras nas esquinas, a Pide
engaiolada, O Governo de pantanas, títulos gigantescos nos jornais. (FA, 122)
— Pode não acreditar, meu capitão, admitiu o oficial de transmissões em tom de
confidência, porque se agitavam cadeiras e preparavam discursos lá no fundo, mas durante
esse tempo todo, até ser preso, foi praticamente só com ela que mantive contatos, de tal
maneira que me chegava a perguntar se a Organização, o Olavo, o Careca, a malta inteira,
continuava a existir. Trabalhava, ia ao cinema às segundas e às quintas, chateava-me de
37
morte, trancava-me no quarto, aos domingos, a ler folhetos mal impressos, de letrinhas
minúsculas, de Engels e de Marx. (FA,139)
A revolução foi pensada, programada e levada a cabo por um grupo de militares
descontentes com o regime e a situação militar resultante da guerra colonial. Estes
militares, na sua maioria capitães, uniram-se no chamado "Movimento das Forças
Armadas" (MFA), e na madrugada do dia 25, tomaram os principais pontos estratégicos da
capital; eles passaram a ser chamados de “Capitães de Abril”. Na tarde desse mesmo dia, o
presidente do Conselho, Marcelo Caetano, rende-se no Quartel do Carmo, pondo fim ao
regime:
Como provavelmente sabem, avisou o capitão Mendes subitamente imperativo, autoritário,
a alojar o cano da arma no sovaco como um termômetro, o Movimento das Forças Armadas
desencadeou desde há horas uma série de patrióticas operações militares que visam à queda
do atual Governo e à sua pronta substituição por um regime que responda às legítimas
aspirações dos portugueses. (Sempre o mesmo discurso, disse-me espantado o tenente-
coronel, sempre a mesma merda de frases, agora inclusive os tropas desataram a falar como
os políticos.) Dou-lhes a minha palavra de honra que antes do anoitecer a ditadura marcelista
chegou ao fim.(FA, 210-211)
A população apoiou desde o primeiro minuto o MFA, fato que se tornou decisivo para
a vitória do movimento. O povo percebeu que os capitães tinham a vontade de restaurar
liberdades há muito perdidas e enterrar um regime podre e caduco:
ABAIXO O ESTADO NOVO VIVA A LIBERDADE, mas um calmeirão de olho
desconfiado perguntou Não serás da Pide por acaso?, e ele calou-se logo como uma flor se
flecha, dissolveu-se apavorado no meio da gente que trotava agora para o Largo do Carmo
chamada por um altifalante invisível, TODOS A DERRUBAR O GOVERNO, carros de
combate, multidão, soldados, uma confusão imensa, garotos pendurados nas árvores diante
do quartel da Guarda Republicana, os cubículos das sentinelas sem ninguém, oficiais nos
tejadilhos dos automóveis, de megafone na boca, impedindo o povo de rebentar a entrada, de
forçar as portas, de cirandar aos tropeços, como baratas cegas, na parada. (FA, 194)
Com a Revolução dos Cravos regressam as liberdades de opinião, de expressão e de
imprensa. Fala-se sem medo de ser punido por aquilo que se diz e pensa e os portugueses
em nesse acontecimento a oportunidade de resgatar tudo o que foi perdido pela opressão
da ditadura e pelas perdas da guerra:
38
O número de pessoas no largo não cessava de aumentar, muitas delas munidas de
bandeiras e aparelhos de rádio como nos desafios de futebol, as árvores eram novelos de
pernas e de braços e de olhos atentos, expectantes, vorazes, um tanque destacou-se da
multidão, avançou para o quartel, bocas abertas, centenas de dentes rebrilhando ao sol na
espuma verde coada pelas folhas, cotovelos que me empurravam, membros que se colavam
aos meus, hálitos azedos que me sopravam no pescoço, um suor entusiástico nas narinas, e
de súbito, meu capitão, senti-me de novo com quatro, cinco, seis, sete anos, submergido
pelas fantásticas, espessas, terríveis proporções dos adultos, a praça transformou-se na
interminável sala de jantar da avó, recheada de pagelas de santinhos e de ninfas duvidosas,
ocupada por centenas e centenas de raparigas estremulhadas, espalhafatosas, lânguidas,
seminuas, que escureciam as pálpebras com pincéis, limavam os calos dos pés, gritavam
mecanicamente, a espaços. LI-BER-DA-DE LI-BER-DA-DE LI-BER-DA-DE, passeando-se
defronte do quartel do Carmo. (FA, 198)
E finalmente, em 1975, as colônias africanas foram libertadas, proporcionando aos
africanos o direito de preservarem seu país e sua cultura sem a intromissão dos
portugueses.
Após a derrota, os portugueses buscam o caminho para entender o Portugal pós-
revolucionário e decidir como se situariam frente a esse novo contexto social. Fado
Alexandrino é relato desse momento histórico de Portugal: da esperança de uma nova casa
portuguesa e do descontentamento político, provocado pela desilusão histórica e
individual:
O conceito de democracia, meu major, existe desde os gregos que é o mesmo que dizer há
que tempos, foram até os gajos por sinal que inventaram a palavra, imagine, velhas a
pedirem esmola, crianças sujíssimas, ciganos, deformados exibindo silenciosamente a
miséria dos cotos ao povo que trotava, apressado, para os barcos, ou seja o governo da
maioria, entende, o nosso governo. (FA,94)
Apesar de ter um pano de fundo político, Lobo Antunes não privilegia essas questões
no espaço ficcional. Embora pontue a simultaneidade dos fatos políticos ocorridos, assinala
a construção e desconstrução das subjetividades problemáticas. Sua especialidade são os
seres humanos, seus sonhos frustrados, a memória inquietante, a possibilidade de um
futuro melhor e principalmente a busca de uma identidade perdida em meio a tantas
mazelas sociais. Através das personagens, só lemos o relato frustrado da guerra e a
39
decepção delas aumenta ao perceberem que, após a Revolução e tantas mortes, quem
manda no país são os mesmos, e por isso, elas têm o sentimento de terem tramado em vão.
Por ocasião da publicação do romance citado, Luís Francisco Rebello manifestou a sua
opinião crítica:
Romance(...)de uma geração que fez a guerra colonial, que dela regressou com o terrível
sentimento de "se ter tramado em vão, se ter gasto sem motivo", que atravessou uma
revolução traída e transviada e se encontrou "na estagnada, serena, cadavérica, imutável
tranqüilidade de outrora" que o manhoso oportunismo de uns quantos ("os vorazes micróbios
cancerosos que da revolução se alimentavam e em torno dela se moviam") fez suceder às
ondas de esperança de uns e do pânico de outros, Fado Alexandrino é o retrato em corpo
inteiro, e ao mesmo tempo a radiografia, da sociedade portuguesa em tempo de mudança.
36
Nenhuma das personagens possui um relato pessoal que seja condizente com a euforia
da população durante a Revolução, nenhuma delas demonstra um sentimento positivo em
relação ao país, após tamanho sofrimento em guerra:
Nenhuma destas experiências pessoais corresponde à visão eufórica e jubilosa que marcou
o 25 de abril de 1974 para uma maioria significativa da população portuguesa, mesmo
admitindo que uma boa parte dela se aproveitou da situação ou que nela se encarreirou por
motivos de interesse, de inércia ou de seguidismo ignorante.
37
Um motivo possível para essa falta de euforia possa ser o fato de Fado Alexandrino ter
sido lançado oito anos após a Revolução, e a visão crítica deste momento revele uma
realidade diferente da que foi pregada anteriormente, já que a grande mudança esperada
pelo povo português não ocorreu. E também porque, segundo Maria Alzira Seixo, a
história nos é apresentada pela perspectiva miúda de pessoas despreparadas intelectual e
politicamente.
O oficial de transmissões, o qual trama a favor da Revolução, é preso em Caxias e,
quando é solto, não sabe o que fazer com a liberdade. Durante sua estada na prisão, ele
questiona seus pensamentos em relação às torturas que sofre e a firmeza de seus ideais:
36
REBELLO, Luís Francisco. “Fado Alexandrino” Jornal de Letras, Artes e Idéias, Lisboa, ano IV, nº89,
Março de 1984.p.5.
37
SEIXO, Maria Alzira.Os romances de Antonio Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
2002.p.124.
40
Quais são os teus contatos? Qual o vosso sistema de mensagens? O endereço da tipografia
que cospe esta merda contra o senhor Ministro? E eu de joelhos, com uma vara de ferro sob
os dedos, a pensar, apavorado, Com o primeiro coice quebram-me os dentes todo, desfazem-
me a mandíbula, como será a dor dos úmeros em migalhas? (...) Permaneceu no cubículo
horas sem fim, primeiro em pé, depois de cócoras, encostado à porta, e finalmente sentado
no chão sujo de tacos, empilhando idéias, preparando respostas, inventando desculpas,
enquanto calculava aproximadamente as horas pela cor do céu no retangulozinho do postigo
junto ao teto, o papel vegetal espesso da manhã, as pequenas nuvens à deriva do meio-dia, a
sombra de pombos da tarde, Quando é que me chamam? Quando é que me dão de comer?,
(FA,161)
O verdadeiro comunista deve ser forte na adversidade, o verdadeiro comunista deve ser
forte na adversidade, o verdadeiro comunista deve ser forte na adversidade. (FA,163)
- A minha cabeça achava-se à altura dos rins dos outros dois, meu capitão, disse o oficial
de transmissões a esfarelar uma rolha, e eu sentia-lhes os bafos enormes, a mínima
ondulação da pele, o jogo dos tendões, e transpirava de pânico, pensava Não tarda nada
começam a bater-me, um punho fechado avançava-me na direção do peito, uma matraca de
borracha trabalhava-me no estômago, o verdadeiro comunista é forte na adversidade, mas
que faria o Lenine no meu lugar?, o mijo evaporava-se lhe das pernas, o careca estalou
as falanges (uma aliança achatada e um anel com as iniciais à frente), dobrou o tronco
obsequioso, e recordou, numa boa educação irônica, O nosso assunto, meu menino.
(FA,164)
Na prisão ele encontra Emílio, outro membro da Organização, e relata como era o
relacionamento da PIDE com os presos informantes da organização:
Quando é que te caçaram, Emílio, há quanto tempo estás cá?, e os dedos dele, meu capitão,
de unhas roxas de pontapés, de pisadelas, de pancadas, tentaram agarrar, sem o conseguir,
uma das pedras soltas, salientes, do muro, os joelhos flectiram um pouco, trazia crostas e
manchas e sujidade nas orelhas, e isto na véspera do golpe, imagine, os sacanas trabalharam
conscienciosamente até ao fim, cheirava, como os velhos, a cocô seco e a remédio, a esses
desinfetantes de pacote que se dissolveram num bidê de água, um pó branco no fundo que é
preciso agitar e remexer com a mão, e não só crostas e manchas mas também cicatrizes de
feridas recentes, grumos de poeira, teias de aranha, lixo, Em que cubículo, perguntou-se o
oficial de transmissões, em que cave fedorenta o meteram? (FA,223-224)
E a mim levaram-me de novo, aos encontrões, à sala dos interrogatórios depois de tanto
tempo de indiferença. Voltavam a dar-me importância, meu capitão, voltavam a preocupar-
se comigo, e à medida que trepava as escadas eu pensava O próximo é o Olavo, o próximo é
o Careca, a próxima é a Dália, talvez que daqui a duzentos anos, quando o regime acabar,
ergam na cidade que nesse tempo já não será cidade, mas outra coisa qualquer, que não
conheço bem o que, um monumento de alumínio e plástico aos defuntíssimos heróis da
resistência, aos defuntíssimos e anônimos precursores do socialismo, talvez que aqui a
duzentos anos alguém se lembre de nós nos compêndios da História. (FA,225)
- Talvez que o meu capitão não perceba, ou se ria, ou ache idiota, explicou o oficial de
transmissões a cuspir triunfalmente a bola prateada do brinco na taça de champanhe,
despertando o líquido adormecido que se apressou a ferver ao longo das paredes do vidro
como centenas de bichinhos em pânico, mas entre os pides e nós, à força de vivermos
juntos, criara-se, por assim dizer, um namoro violento, uma aproximação esquisita,
uma espécie de relação conjugal com as suas inevitáveis tolices, os seus ciúmes, os seus
41
caprichos, as suas reconciliações, as suas crises e invejas, as suas aterradoras
parvoeiras. Eles ordenavam nós obedecíamos, eles batiam nós apanvamos, eles
tratavam-nos mal nós não protestávamos sequer, eles insultavam-noss aceitávamos,
mas isso era um bocado, entende, a forma que estabelecemos de gostar uns dos outros,
o equivalente dos pequenos, ternos atos domésticos dos casais, a exuberante
manifestação da nossa felicidade conjugal. (...) - Não, ouça, se alguém comia porrada em
vez de mim sentia alívio e inveja ao mesmo tempo, se alguém ia aos interrogatórios em vez
de mim sentia alívio e inveja ao mesmo tempo, se alguém era castigado e posto a dieta em
vez de mim sentia alívio e inveja ao mesmo tempo: na época não me apercebia bem, é claro,
faltava-me recuo, faltava-me distância, mas nestes anos todos tenho tido tempo de sobra para
pensar. (FA,226-227)
Elio após ser muito torturado, morre e o oficial teme por sua vida neste momento:
Se calhar, pensava o oficial de transmissões, também mataram o Olavo, se calhar também
deram cabo do Careca, se calhar entornaram a Dália em Peniche ou deportaram-na para
Cabo Verde: apesar de tudo devem ser mais brandos com as mulheres, se calhar amanhã ou
depois fecham-me para aí numa sala qualquer e pregam-me um tiro na nuca, pumba.
(FA, 228)
Quando estoura a Revolução e ele finalmente sai da prisão, é interpelado por
jornalistas em busca de notícias sobre os maus tratos que ele e outros presos sofreram por
estarem a favor da causa revolucionária:
Acabou-se finalmente a ditadura opressora, anunciou beatamente o civil, de gravata torcida
e fralda da camisa a querer pular das calças, raiou hoje a tão ansiada aurora da liberdade e da
democracia, o vosso imerecido e terrível cativeiro (e o que eu tinha naquele momento era
fome e um cansaço do camandro no lombo), meus senhores, terminou. (FA,231)
Especifique para os nossos ouvintes as condições infra-humanas em que viviam aqui, um
fotógrafo ordenou-lhe. Quietinho e cegou-o cruelmente com uma súbita claridade branca,
principiamos a andar, em fila, a caminho do portão da saída, e atrás do muro bocas informes,
que se sentiam ebulir nas trevas, urravam, quis voltar para dentro, correr à camarata, fugir,
meter o lenço por cima da cabeça e esquecer-me, acordar amanhã azeda, familiar,
imperativa rotina do costume, beber o café aguado, comer, vaguear pelo pátio, ouvir o
mar e as lágrimas das gaivotas transviadas, lembrar-me de quando em quando das
ruas da cidade, dos restaurantezinhos manhosos, da Organização, O que se lhe oferece
dizer sobre a queda do regime opressor?, Que suplícios vos eram infligidos aqui? Obrigavam
a praticar atos contranatura uns nos outros? O aviso imperioso Entristeça, e novo
instantâneo, horrível rasgão de cal viva nas pupilas, nova bofetada de luz na atônita cara sem
defesa, as pessoas no pátio, iluminadas por projetores de cinema, de televisão, de jornais de
atualidades. (FA,232)
A morte do oficial ao fim da narrativa não é gratuita e pode ser lida como uma alegoria
da derrota, já que tudo aquilo que ele representava (a utopia revolucionária político-social)
42
perdera o sentido no contexto pós-colonial. Curiosamente, quase todos os ex-combatentes
de Fado Alexandrino também morrem após o relato de suas existências individuais falidas.
Não morrem na guerra, mas talvez por causa dela. Sentem-se excluídos de seus mundos
por não saberem lidar com o horror que a guerra em África causara a eles e pela
convivência com uma cultura diferente que lhes fora imposta. Sentem-se desprotegidos,
nas casas de “muros desguarnecidos”, perante a realidade. Após o regresso de todos de
África, eles retomam uma vida de marasmo rumo ao aniquilamento de cada um. As mortes
e derrotas em África são sintetizadas pela morte final.
Lobo Antunes não pretende engrandecer os fatos históricos que termina por ironizar,
revelando a sua inconsistência e fragilidade. São as mazelas existenciais e o dia-a-dia
rotineiro das personagens que ganham o foco e anulam o valor político dos acontecimentos
oficiais. O relato das personagens vem confirmar que o objetivo de Lobo Antunes é
registrar a história dos homens em sociedade, fazendo referência ao passado histórico e ao
conhecimento de mundo dos leitores:
O 25 de Abril como que passa ao lado, desta maneira, das personagens principais deste
romance, e o modo anódino como o processo revolucionário se desenvolve, numa seqüência de
contingências por elas entrevistas como acasos e sinuosidades da existência, tira-lhes qualquer
significado político para as embeber nos altos e baixos inelutáveis ou almejados de um
quotidiano sempre rotineiro. Por outras palavras, não é da História, enquanto discurso dos factos
engrandecidos, que Lobo Antunes nos fala, mas da pequena história do dia-a-dia que, neste
caso, pertence a personagens distanciadas da média do leitor culto e informado; ou melhor,
Lobo Antunes realiza, neste romance, a História como acontecer miúdo e perspectivado pelo
horizonte estreitado à medida das mentalidades impreparadas ou colaterais, reivindicando o seu
lugar determinante no conjunto dos acontecimentos epicamente isolados, e cuja existência afinal
dissipa as grandezas que o fraseado da memória oficial e autogratulatória (a meta-narrativa da
emancipação política e da libertação, diria Lyotard) elabora e determina.
38
No século XX, como nos ensina Jacques Le Goff, em História e memória, as noções
de “fato histórico” e de “documento” foram revistas: o primeiro não é um objeto dado e
acabado, pois resulta da construção do historiador; assim como o segundo não é um
38
SEIXO, Maria Alzira. Os romances de Antonio Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
2002.p.126.
43
material bruto, objetivo e inocente, uma vez que exprime o poder da sociedade do passado
sobre a memória e o futuro – o documento é monumento. Os documentos, por sua vez,
não se restringem mais aos textos e aos produtos da arqueologia, mas abrangem a palavra e
o gesto. Esses arquivos orais surgem, por exemplo, em vários romances de Lobo Antunes
que tematizam a guerra colonial africana e o período pós-colonial. Referimo-nos a Os Cus
de Judas, As Naus, Fado Alexandrino, O Esplendor de Portugal e D’este viver aqui neste
papel descripto. Cartas da Guerra, entre outros.
A experiência de cerca de vinte e sete meses na guerra vivida pelo autor possibilitou
aquilo que, segundo Jacques Le Goff, é chamado de “história-relato” ou “história-
testemunho”, isto é, a narração daquele que retorna, através da memória, à experiência
vivida e pode dizer: “Eu vi”, “Eu senti”
39
.
Assim, em Fado Alexandrino, a memória e as reminiscências individuais se misturam
com o tempo e com os acontecimentos da História, denotando, em algumas passagens, a
alienação e a obsessão das personagens que se envolveram nos conflitos de guerra em
África.
39
LE GOFF, Jacques. História e memória. 3ed. SP: Editora da UNICAMP, 1994. p.9.
44
2.2 O FADO DO ESTRANHAMENTO DA TERRA NATAL: A LISBOA PERDIDA
E ESCATOLÓGICA
— A porra de tempo que encontramos aqui (...) Lisboa, pensou ele desiludido,
vinte e oito meses a sonhar com a gaita da cidade e afinal Lisboa é isto. (FA)
Ao retornar da guerra em África, os ex-combatentes descrevem Lisboa como um
ambiente urbano sujo, sórdido e feio. Em nada é melhor que o ambiente da guerra. O lugar
tão sonhado por eles para o retorno mudou, eles mudaram, o olhar deles mudou. A sujeira
e decrepitude revelam o estado de espírito em que eles próprios se encontram. D torna-se
impossível adaptarem-se, são estranhos em sua própria pátria, assim como o eram em
África.
Lisboa é desconhecida e não representa mais o berço materno e acolhedor que eles
pensavam ter, daí o entretecer do espaço retido na memória com o atual e a inevitável
comparação. A cidade natal é tão estranha para eles como qualquer outro lugar do mundo
em que eles poderiam aportar. Toda essa “falta de chão” revela a sensação de
desconhecimento em relação ao lugar que guardavam na memória, interrompida pela
guerra, e se configura numa recusa a uma narrativa com delimitações precisas. Segundo
Maria Alzira Seixo em Os Romances de Antonio Lobo Antunes: “ “o caminho para casa”—
que vai abalar a noção de identidade, enquanto relação do corpo com o seu lugar”
40
A memória de um tempo bom, em que se era feliz, de modo geral, não é nem em
África nem na Lisboa atual. As personagens de Fado Alexandrino não demonstram
felicidade nem na época da infância ou juventude, onde o resquício da inocência poderia se
opor aos problemas da vida adulta e trazer uma sensação de paz e evasão a eles. Nos
relatos do período de vida deles antes da ida à África, Jorge se lembra de como começou
40
SEIXO, Maria Alzira.Os romances de Antonio Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
2002.p.120.
45
seu relacionamento com Inês, o tenente-coronel lembra da mãe que se envolvia com vários
homens para susten-lo e Abílio relata que a avó que o criou era dona de um prostíbulo.
O soldado Abílio, ao chegar de África e não encontrar sua irmã esperando por ele,
decide pegar um carro. No percurso que faz, relembra a casa decadente e sua antiga cidade;
no entanto, sua memória ainda está presa à África:
À medida que caminha tenta recordar as divisões: a retrete, o quarto, as tampas de
caixas de bombons a servirem de quadro nas paredes, o autoclismo sempre avariado
brandindo como ossos as travessas dos caixilhos. (FA,16)
O autocarro cruza a gemer um aqueduto derruído, vira á esquerda cerca do caminho-de-
ferro cujas calhas se adivinham a espaços nos intervalos de um canavial, e inicia, asmático, a
rampa da Buraca: há qualquer coisa de familiar aqui, qualquer coisa de indefinível e
íntimo que conheço para além destas pequenas varandas de azulejo, destas gaiolas de
pássaro de fora das janelas, destas camisas dependuradas de barrigas de cordel.
Cresci na época em que essas bandas eram quintarolas de couves e criação (dir-me-
ia mais tarde no restaurante onde nos encontramos tantos anos depois, dez ou onze, a seguir
à volta da guerra). (...) (Dispersar, ordenou o major no ginásio do quartel e acabou-se
Moçambique, bater com força o pé direito no chão e meter nessa força o nojo que vos
tenho, os mortos, os pernetas, os feridos, a falta de cigarros, de comida fresca, de
correspondência, de mulher, salvo uma ou outra negra magríssima, desinteressada,
barriguda, em trapos. (FA,17)
O entretecer na memória das imagens de África e da vio de Lisboa anterior e
posterior à sua partida superpõe tempos, fatos e espaços diferenciados e são comuns aos
ex-combatentes que se sentem confusos quanto ao lugar em que agora estão; sentem-se
vazios porque não se localizam no espaço africano nem em Portugal.
O lugar da casa (lugar do retorno) que deveria ser o mais esperado pelos ex-
combatentes se torna desconhecido e causa desconforto porque lá é o espaço onde a
memória aflora e a inquietude assola, fazendo com que o alferes Jorge prefira não estar lá.
Neste momento,
tolerar o vazio torna-se impossível e o entre-lugar do sujeito se acentua:
A mim o que me custou mais foi a casa, disse o alferes. Chegava do banco e aí sim, meu
capitão, sentia-me estranho. Não no trabalho, nem no restaurante, nem na cidade, dentro do
carro, talvez porque metia a música do rádio ao máximo e os anúncios e a voz do locutor me
distraíam, e depois, sabe como é, quando um gajo guia só não quer bater no da frente nem
que o de trás lhe bata, e há as pessoas nos passeios, essas caras todas, diferentes uma das
outras, sempre a correr e a mudar, mas a seguir arrumava o automóvel, subia as escadas,
enfiava a chave na porta e lá estava, a lixar-me, a impressão esquisita do costume:
46
olhava as mesas, as estantes, os cinzeiros, e perguntava a mim próprio Onde caralho
param as árvores, porque não via as árvores, entende, o arame farpado, os abrigos, a
mata. (FA, 23)
Por não saberem como lidar com essa situação — o retorno à pátria — e
impossibilitados de arcar com o preço que a travessia além mar os fez pagar, enfrentam o
risco da memória que os atormenta e o questionamento do lugar do corpo em relação à
mente. As identidades culturais dos ex-combatentes eso abaladas, porém, eles não se
desvinculam de sua cultura e de seu estatuto de civilizado para adotar o modo de viver e de
pensar dos cafres (os negros agora transformados em primitivos e selvagens pela ótica
colonialista). Boaventura de Sousa Santos, em Entre ser e estar: raízes, percursos e
discursos de identidade, ao comentar sobre os jogos de espelhos entre Próspero (o
colonizador) e Caliban (o colonizado), mostra-nos que:
(...) os portugueses nunca puderam instalar-se comodamente no espaço-tempo originário do
Próspero europeu. Viveram nesse espaço-tempo como que internamente deslocados em
regiões simbólicas que não lhes pertenciam e onde não se sentiam à vontade. Foram objecto
de humilhação e de celebração, de estigmatização e de complacência, mas sempre com a
distância de quem não é plenamente contemporâneo do espaço-tempo que ocupa. Forçados a
jogar o jogo dos binarismos modernos, tiveram dificuldades em saber de que lado estavam.
Nem Próspero nem Caliban, restou-lhes a liminaridade e a fronteira, a inter-identidade
como identidade originária.
41
Desde a primeira página de Fado Alexandrino até a última, começando pelas
descrições de Abílio no ato de sua chegada, Lisboa revela-se como um lugar marcado pela
degenerescência. A cidade nos é apresentada através de inúmeras descrições cheias de
nojo e horror, que se misturam às descrições das matas e dos horrores vividos em África. A
maneira inexpressiva como são recebidos é dolorosa e mostra a questão das casas sem uma
sólida construção objetiva. Lisboa, inclusive, torna-se antropofágica:“— Lisboa engoliu-
41
SANTOS, Boaventura de Sousa. “Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e inter-
identidade.” In: Entre ser e estar: raízes, percursos e discursos de identidade (Orgs.) Maria Irene Ramalho e
Antônio Sousa Ribeiro. Porto: Edições Afrontamento, 2001. p. 53-54.
47
nos a todos, meu capitão, cada um para seu lado como uma ninhada se desfaz, disse o
alferes. E agora aqui juntos, depois de dez anos, não somos os mesmos: aconteceu tanta
coisa neste tempo.”(FA,29)
A superposição de imagens ora faz duvidar se a descrição é de Portugal ou África e,
sob esse ponto de vista, a classificação desses lugares, respectivamente, como civilização e
selva cai por terra:
E ele pensou Estou em Lisboa e em Moçambique, vejo ao mesmo tempo as casas do bairro
econômico e as árvores da mata, os jardinzitos gotosos e as palhotas devastadas pelas
metralhadoras. (FA,11)
Mas não iria haver ataque hoje, não haveria ataques nunca mais: acabaram-se os trilhos, os
bombardeamentos, a fome, os massacres, eis-me de novo no Bairro da Encarnação e nas
casitas podres como dentes cariados, perto das fedorentas gengivas abertas dos esgotos,
que cabo-verdianos de picareta em riste martelam sem vontade. (FA,12)
Conforme o desenrolar da narrativa, o ambiente vai ficando cada vez mais sujo,
revelando-se aos poucos mais nojento, na mesma medida em que as mazelas espirituais e
morais vão se revelando através de novas e piores baixarias. Não somente os que voltam
estão destruídos, todos na cidade envelheceram e sofreram, mesmo não indo à guerra. As
pessoas descritas são sujas e decrépitas, sendo comparadas a animais:
O autocarro roda de novo num vagar difícil, mais fachadas, mais edifícios, mais árvores,
antigos descampados hoje cobertos de uma borbulhagem de casebres, passeios inundados de
lixo, miúdos e cães. Como os cães e os putos se parecem nesta terra. (FA,17)
A vida, a solidão sem fundo e as amarguras das personagens de Fado Alexandrino são
reveladoras da identidade estilhaçada desses ex-combatentes. As questões colocadas são:
Como se localizam os ex-combatentes após o retorno à pátria? Até que ponto eles foram
aniquilados emocionalmente pelas mazelas da guerra?
Quanto ao comportamento de Jorge e Abílio após o retorno, comenta Maria Alzira
Seixo:
Ambos manifestam essa sensação de descoincidência em relação ao lugar que guardavam
na memória, e de desadaptação em relação a uma existência encetada anteriormente,
interrompida pela guerra e, parece, irremediavelmente perdida ou transformada, quer pelos
48
objectos (as modificações na casa do soldado na Buraca), quer pelo olhar do sujeito (a
perspectiva do alferes e o seu constante delírio de visão com África), quer, sobretudo, pela
relação moral afectiva que passou a ligar ambos.
42
O único sentimento que os assola verdadeiramente é “a falta de sentido pessoal, a
sensação de que a vida nada tem a oferecer a eles. E este é um problema psíquico
fundamental na “modernidade tardia”, segundo a reflexão de Giddens. Ao estudar a
cultura, o caráter e a sociedade, o filósofo social inglês chega a conclusão de que: “o
“isolamento existencial” não é tanto uma separação do indivíduo em relação aos outros,
mas uma separação entre o indivíduo e os recursos morais necessários para se viver uma
existência plena e satisfatória.”
43
A cidade, captada através da “arqueologia difícil das emoções”, torna-se
ambivalente, “igual e diferente” ao mesmo tempo; o sujeito, como nos aponta Bauman,
sente-se desconfortável e revela-se incapaz de ler adequadamente a situação e optar por
ações alternativas”:
Talvez que devesse ter ficado em África nessa altura, contou-me o alferes. Antes da
revolução, e da independência, e dos russos tomarem conta daquilo, claro: é que levei uma
porção de tempo a acostumar-me a Lisboa, meu capitão. (...) Habituava-se, espantado, aos
objetos familiares, do mesmo modo que os doentes de trombose reaprendem sílaba a sílaba o
esquecido vocabulário que já sabem: este quadro, este bibelô, esta pintura, aquela porta,
como se as coisas carecessem e possuíssem ao mesmo tempo um passado, penosamente
reconstruído numa espécie de arqueologia difícil das emoções. A própria cidade se tornara
na sua ausência igual e diferente, e deslocava-se num cenário de pasta idêntico à
realidade que perdera e no entanto, sutilmente diverso, onde atores mascarados
representavam, com mais tintas de mechas brancas no cabelo e mais rugas de lápis nas
bochechas, os amigos de três anos antes, quando a guerra se resumira à vaga ameaça
das notícias dos jornais, estropiados, mortes, condecorações, gloriosíssimas vitórias.
(FA,53)
42
SEIXO, Maria Alzira. Os romances de Antonio Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
2002.p.120
43
GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Trad. Plínio Dentzien. RJ: Jorge Zahar Editor, 2002.
contracapa.
49
Quanto ao título escolhido por António Lobo Antunes para narrar as estórias fadadas
ao fracasso desses quatro ex-combatentes, Fado Alexandrino, podemos dizer, que o
substantivo Fado
remete à saudade, à tristeza, à falta de algo e relaciona-se particularmente
à cultura portuguesa e ao destino trágico das personagens, traçado pelo contexto da guerra.
Acerca da palavra “fado”, Robson Pereira Gonçalves diz:
Quando se fala de portugueses, aparecem três vocábulos que, via de regra, tentam
conceituar a cultura lusa: saudade, fado e descobrimento(mar). O Fado é, em nossa opinião,
o ponto nodal dessa tríade, porque abarca aquilo que vemos de vazio do processo de
historicização de uma cultura. É pelo Fado, como sintoma aglutinador, que se estabelece
uma relação entre um passado (a saudade) e o novo, o não antecipável (o descobrimento)(...)
Dessa forma, buscar o sintoma de algo é buscar justamente esse vazio, que aponta o fracasso
da totalização da rede simbólica em determinar e precisar um sujeito histórico. Por isso, o
sintoma retorna no campo dos significantes como algo que marca a insistência da falta,
possibilitando, por outro lado, o aparecimento do novo como lugar da articulação do sentido.
Sentido que pressupõe emergência de sujeito e, mais ainda, desejo de preenchimento daquela
falta.
44
Portanto, o vocábulo Fado
, além de adquirir uma significação de sorte ou destino e
traduzir sentimentos como a dor, sofrimento, mazela,goa, saudade, indica uma
dimensão maior, estruturante do próprio sujeito e que indicia a fatalidade ou destino desse
sujeito assinalado pela falta.
O adjetivo Alexandrino
, por sua vez, refere-se, provavelmente, ao verso alexandrino de
doze sílabas pelo fato de o livro se dividir em três partes de igual tamanho, cada uma com
doze capítulos. Acerca do uso do registro histórico neste fado e, assim, nos suscitar
intertextualidade, nos aponta Foucault:
As fronteiras de um livro nunca são claramente definidas: Para além do título, das primeiras
linhas e do último ponto final, para além da sua configuração interna e sua forma autônoma,
é formado num sistema de referências a outros livros, outros textos, outras frases: é um
núcleo dentro de uma rede.
45
44
GONÇALVES, Robson Pereira .“O Fado como Signo da Poesia Portuguesa” In Anais do XIV Encontro de
Professores Universitários Brasileiros de Literatura Portuguesa. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994. p.18.
45
FOUCAULT, Michel. The Order of Things: An Archaeology of the Human Sciences, NY: Pantheon,
1970,p.127. Texto em inglês traduzido pela autora da Dissertação “The frontiers of a book are never clear-
cut: beyond the title, the first lines, and the last full-stop, beyond its internal configuration and its
autonomous form, it is caught up in a system of references to other books, other texts, other sentences: it is a
node within a network.”
50
Como parte desse fado, a figura do mar confirma sua ligação com a identidade
portuguesa e se apresenta de forma obsessiva ligada ao sujeito, mesmo tanto tempo depois
das grandes viagens ultramarinas. Portugal continua a ver na figura do mar um símbolo
importante de sua cultura. É como se Portugal fizesse mais parte do mar do que do
continente europeu.
O paradigma terra X mar se revela nas imagens desse país em viagem como
deslocamento geográfico da terra natal; o mar é o elo de ligação entre Lisboa e África. No
entanto, pode também ser considerado como deslocamento existencial vivido atras da
memória.
Curiosamente, a ida para a África é empreendida pelas personagens de Fado
Alexandrino de navio e o retorno delas é de avião, e a última imagem vista por um deles é
a de um hidroavião, aquele que levanta vôo, mas pousa no mar, sintetizando a ida e o
retorno. O mar é o lugar entre (da ambivalência). Lugar da náusea, do devaneio, dos
sonhos e da esperança da ida. Maria Alzira Seixo diz acerca da musicalidade do fado e da
estruturação da obra:
O mar foi introduzido no incipit através da alusão ao <<monstro marinho>> da multidão
e reaparece no explicit em posição forte e processual, animando como uma via diferente um
final todo ele de passividade e morte. De potencial canto mais diverso e encadeado, como é
o tipo de fado que este romance designa; e, se o mar existe enquanto espaço de rotas
possíveis e vislumbre constante de uma cintilação de água a iluminar os percursos sórdidos
na cidade e nas existências. A mulher, de existência não apenas simbólica mas objectual, é
sem dúvida um dos corpos polarizadores da derrota (no duplo sentido de rota ou malogro),
sendo que essa derrota é igualmente obra da predisposição dos homens, transformados pela
guerra e psicologicamente alterados. No fundo, neste fado de um destino trágico cuja
música é a própria seqüência ondulada da narrativa, e cuja letra organiza a saga de
conjunto das falas que alternadamente e entre si comunicam, nada se salva, protagonizado o
aniquilamento com os lugares: da Encarnação vai-se ter à Buraca, do sossego dos Anjos
passa-se à vertigem lúdica da Feira Popular, da segurança da rua da Mãe-d’Água
atravessa-se afinal de novo o mar para se ir tocar num outro tipo de identidade rechaçada,
o das cidades do Brasil.
46
46
SEIXO, Maria Alzira. Os Romances de Antonio Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
2002.p.136.
51
As vidas das personagens se apresentam como um caos insuportável e tolerar essa
situação de vida não é posvel para nenhuma delas; a cada dia que passa elas dão voltas ao
redor de si mesmas, ensimesmando-se cada vez mais. O fado pessoal de cada uma se dá de
maneira solitária; as personagens são excluídas do núcleo familiar, como nos casos do
tenente e de Abílio; e outras são introduzidas sem consistência, neste núcleo, como, por
exemplo, o alferes e o oficial. No entanto, o não pertencimento ao núcleo familiar e ao
espaço de Portugal é reflexo do descentramento que é comum a todos:
E pensou Continuo em Moçambique, no arame, sentado no bar a ver chegar a noite: o
enfermeiro distribuiu ao jantar os comprimidos contra o paludismo, um cacimbo miúdo
tomba na tarde da Encarnação, na tarde de Lisboa, fazendo subir dos caixões o cheiro suave
da madeira molhada, o odor redondo da terra, e dentro em breve centenas de insetos vão
surgir no alcatrão e espalhar-se, zunindo, nas ruas da cidade como nos arbustos de Omar, até
se sumirem aos poucos, lá longe, na escuridão dos abrigos. O cabo condutor passou o fardo
de um ombro para o outro, e aspirou indignado a umidade do ar: (FA,12)
Stuart Hall, ao citar Kobena Mercer, nos lembra que:
Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no
final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero,
sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas
localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas
identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados.
Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou
descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento ¡ descentração dos indivíduos tanto de
seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos ¡ constitui uma “crise de
identidade” para o indivíduo. Como observa o crítico cultural Kobena Mercer, “a identidade
somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo,
coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza” (Mercer, 1990, p.
43).
47
Em Fado Alexandrino, todas as personagens confirmam suas trajetórias fadadas ao
fracasso. Traçaremos aqui um breve enredo da história pessoal de cada um, o qual mais
adiante será retomado no capítulo destinado às relações intersubjetivas.
47
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, 7ed, RJ: DP&A, 2003.p.9.
52
Abílio, o soldado, ficou dois anos em Moçambique. Quando chega em Lisboa fica em
dúvida sobre onde está. Após sua chegada é rejeitado pela irmã e não reconhece a casa
onde viveram. Ele procura abrigo e emprego na casa de seu tio Ilídio que vive com tia
Isaura e Odete, e tem a contabilista da empresa de mudanças como amante. Lá, Abílio se
envolve com Odete. Tia Isaura fica doente e ele relata ao capio e aos companheiros o
quanto é difícil conseguir tratamento porque não há vagas no hospital; ele relata, também,
a sua situação ao chegar à casa do tio:
Ao princípio dormia no armazém, embrulhado em podres cobertores esburacados,
com o assento da camioneta, que cheirava a cabedal e a suor, no lugar do travesseiro, e
o céu de tinta-da-china da noite, penetrando pelas janelas estragadas, a gelar-lhe os
ossos e as veias. Apavorava-o a idéia de que os ratos lhe trotassem sobre o corpo,
julgando sentir patinhas minúsculas, ventres minúsculos, dentinhos minúsculos
devorarem-lhe os testículos, julgando distinguir gulosas pupilazinhas minúsculas espiando,
agudas, no escuro. (...) Vestiu-se à pressa, tonto de sono, com o senhor Ilídio a insultá-lo e a
descompô-lo, Não quero ninguém na loja, minha besta, isto é hotel ou quê?, e ao mesmo
tempo ajudava-o a abotoar a camisa, a acertar com as mangas do casaco. (...) - O meu
sobrinho passa a ficar em casa, sibilou o tio na direção do contorno difuso que se movia
vagamente, a meio do corredor, para além de uma porta entreaberta. A casa, àquela hora,
afigurou-se-lhe ainda mais feia, mais rebarbativa, mais gasta, a cheirar ainda mais a pouca
limpeza, a fritos e a mênstruo de gato. O senhor Ilídio rodou o comutador e o soldado
recuou, encolhido, sob a luz violenta: um esconso, uma cama de armar sem lençóis, um
lavatório de esmalte, o retrato de uma velhota numa moldura de búzios: É aqui. (FA, 70-71)
Abílio apaixona-se por Odete, porém, faz programas com homossexuais para ter
dinheiro para sair com ela e reconhece que na guerra também fazia sexo com os negros.
A irmã, que o rejeitou, o procura para pedir ajuda com dez crianças sujas e com fome,
dizendo que o marido a roubou e fugiu com o dinheiro que tinha; ele ajuda a irmã. Depois
ela arruma um velho decrépito para sustentá-la.
Casa-se com Odete, ela o humilha por sua ignorância e indiferença política e eles têm
um filho que morre. Então, descobre que Odete é Dália e esta vai embora com Olavo.
Ficam ele e o tio na solidão, pois, tia Isaura morre e a contabilista vai embora porque o tio
dele não a assume como mulher.
53
Abílio começa a se encontrar com a porteira e ela quer se casar com ele. A irmã
reaparece a pedir auxílio, fala a ele dos negros com os quais convivia. Ela é assassinada,
mas quando ele sabe da morte dela não vai ao enterro. Abílio é despejado e pega
pneumonia. Morre no local onde desembarcou de Moçambique de acidente de carro.
O tenente-coronel, Artur Esteves, depois passado a general, ao voltar da guerra em
1972, vai ao hospital visitar a esposa doente e descobre que ela morreu na véspera de sua
volta. Maria João, sua filha, e seu genro cuidam dele. Depois ela divorcia-se e vai para o
Brasil; ela é também a segunda amante de Inês. O tenente se sente só e fica em dúvida se
deve ou não se relacionar com a porteira. A figura da porteira é asquerosa, porém, ele
acaba tendo um caso com ela. Abandona a porteira e casa-se de novo. Edite, sua mulher, é
amante do oficial de transmissões. Ao mesmo tempo, ele tem como amante Lucilia que,
por sua vez, o enganava com homens mais jovens.
Ele descreve o quartel como decadente e desconhece o lugar onde morou por 20 anos.
Quando vai para a reserva, diz que é o mesmo que a morte; ele se diz inconformado de ser
expulso que é democrata:
A reserva, disse o tenente-coronel a empurrar para longe de si, com uma palmada, o
garrafão vazio, é exatamente a mesma coisa que estar morto. (...) Acordava às cinco ou
seis da manhã, instantaneamente, sem sono, sem cansaço, como se fossem duas ou três da
tarde e nunca se tivesse deitado, apercebia-se de uma forma imprecisa dos contornos do
quarto, do volume da nuvem de perfume a ressonar ao seu lado, das mesinhas-de-cabeceira,
da cômoda, do silêncio de suor da noite, as linhas paralelas dos estores embaciavam-se de
uma claridade gordurosa, no grande espelho oval com retratos entalados na moldura
navegavam os barcos minuciosos da insônia, sonhos. (FA, 551)
Quando volta da bebedeira após o jantar de reencontro, encontra a mulher fazendo a
mala e dizendo que vai encontrar uma amiga. Ele ri porque pensa que ela vai atrás do
oficial e sabe que este está morto.
Jorge, o alferes, casou com Inês já grávida antes de ir para a guerra e dessa relação
nasce Mariana. Comprou uma negra virgem em África e sabe que tem um filho lá.
54
Reconhece que perdeu na mata suas raízes e o convívio social e diz que a África o
transformou em bicho, modificando a sua identidade cultural e social:
— Com a merda que nos davam a comer na mata, meu capitão, esquecera-me por completo
dos miminhos domésticos, do pirex a fumegar como a boca morta do Vesúvio, das etiquetas
que desaprendi na tropa, dos ridículos truquezinhos sociais que me impingiram. (FA, 25)
A gente, em África, pensou ele, desaprende de estar com as pessoas, transforma-se numa
espécie de bichos irascíveis e aflitos, cruéis, amedrontados, estranhos animais carnívoros,
agarrados com desespero às bengalas de inválidos das metralhadoras.(FA, 111)
Em seu retorno, ao invés de pensamentos de alegria por estar de volta ao lar e rever a
família, o alferes sente-se um total estranho no ninho, porque já estava exposto à realidade
africana por algum tempo e havia automatizado o comportamento necessário à
sobrevivência em África. Refere-se, assim, à sua crise de identidade, dando razão ao crítico
cultural Kobena Mercer, como vimos anteriormente:
Apalpavam-me para se assegurarem que era eu, confundiam os seus hálitos vivos com o
meu hálito carregado de defuntos, e nisto veio-me à idéia E agora? O meu capitão não
pensou E agora? Quando chegou a casa? Não pensou Como caralho me vou esquecer disto
tudo? Não ficou aflito, sozinho, em Lisboa, com esse espaço de dias adiante, de horas
necessitadas de se mobilar de qualquer coisa, não pensou que difícil despir o uniforme e
ser civil, só sei pegar numa canhota e andar à caça de pretos, pela mata? (FA, 18)
Na tentativa de se readaptar à nova realidade, nega o passado e vai trabalhar no banco
da família de Inês; tenta fingir que nada daquilo aconteceu e se entrega à relação fria com a
mulher e à monotonia burocrática de um banco. Sonha com Moçambique e confunde o
país africano com o espaço anteriormente habitado, Lisboa. Ao que tudo indica, o sujeito
em si é apagado pelo desejo de esquecimento da barbárie em África:
Apresentei-me no banco uns dias depois, disse o alferes. Sentei-me no gabinete, fechei a
porta e pensei Não houve guerra nenhuma, não andei vinte e tal meses em Moçambique de
espingarda às costas, inventei coisas parvas esta noite: a disenteria, a água choca, os mortos,
os feridos, o oficial de sapadores que ficou sem o braço ao desarmar uma mina. Pensei Não
houve guerra não houve guerra não houve guerra não houve guerra, e comecei devagarinho
a esquecer-me. (FA, 22)
Tenta resgatar na memória falha o que o aproximou de Inês, mas logo vê que tudo
perdeu o sentido. Jorge engravida Ilda, sua colega de trabalho, mas a abandona para ir para
55
o Brasil com a família de Inês fugindo dos comunistas durante a Revolução. Divorcia-se e
perde o contato com a filha; depois volta para Portugal.
O oficial de transmissões, Celestino, ao voltar da guerra continua na tropa e trabalha
para a Organização, como já foi explicitado anteriormente. Apesar de ter afirmado que foi
bom ser órfão durante a guerra, ele volta a morar com a madrinha, com a empregada
Esmeralda e uma cadela:
O oficial de transmissões morava com a madrinha surda e uma cadela gorda, às
manchas brancas e pretas, sem raça, num andar muito velho, de salas enormes, na rua por
trás da Feira Popular: no verão a janela do quarto abria diretamente para os carrosséis
iluminados, de modo que de tempos a tempos um elefante ou um cavalo de madeira giravam
por segundos no soalho, embrulhados no odor açucarado das farturas, antes de se sumirem
de novo na direção da tenda da cigana que previa tromboses, heranças e naufrágios ou das
barracas de refrescos e de sumos, pilotadas por jovens decotadas, de avaliadores olhos
sabidos de prestamistas.
Esmeralda, latiu a madrinha para o quarto dos arrios, rodando com dificuldade a
cabeça sobre os ossos ferrugentos. Esmeralda anda cá ver quem está aqui.Um terceiro ser
decrépito, a cheirar a goma e a roupa quente, surgiu com o hissope de um borrifador
em punho. (FA, 40)
A madrinha e a cadela se assemelham. Na casa velha que habitam e que tem, como
cenário surreal, um parque de diversões, as imagens do espaço exterior invadem o interior
da casa. Quando a cadela fica doente, o oficial relata que em Lisboa não há cuidados
hospitalares nem para um cachorro.
Na época em que Celestino é detido pela PIDE, e fica preso, nem a madrinha nem
Esmeralda aparecem. Quando é libertado, tem medo dessa liberdade e sente vontade de
continuar na mesma rotina anterior: “Qual é a sensação, suponho que inesperada para si, de
se encontrar em liberdade? E apeteceu-lhe responder Uma merda.” (FA, 235)
O próprio oficial de transmissões, ao descrever sua madrinha, a compara à cadela
Lady. Nem mesmo, as pessoas da família dele escapam à amarga virulência de suas
palavras contaminadas pela guerra: “A madrinha e a cadela, parecidas uma com a outra,
56
claudicavam da mesma perna, sofriam os mesmos achaques, partilhavam a dieta de couves
e goraz, e trotavam à sua volta numa alegria de guinchos lamurienta e ramelosa.”(FA, 40)
Desgosta-se da política, sai da Organização e começa a se encontrar com alguém que
não revela, porém deduz-se que se trata de Edite, a mulher do tenente. Ele é morto durante
o encontro por Abílio na casa do alferes supostamente por causa do caso com Edite. O
tenente acusa Abílio de o matar por causa de seu caso com Dália/Odete.
Todos tentam se desfazer do cadáver do oficial e, após o ocultamento deste,
grotescamente em um “urinol público”, retornam temporariamente à monotonia anterior de
suas vidas até ao aniquilamento. O fato de tentarem se desfazer do cadáver confirma a
desejada negação de seus atos. A repetição constante da negação sobre o passado da guerra
revela o desejo de situar-se em sua terra natal, porém, não conseguem desvencilhar-se das
imagens tortuosas de sua memória e, por isso, serão sempre seres liminares e de fronteira.
Dentro de si próprios valores diferentes brigam entre si, ao escolher um caminho, o
outro deveria ser anulado. Em toda escolha algo sempre se perde, no entanto, esses ex-
combatentes, em seus percursos identitários, trazem marcas indeveis do período colonial,
mesmo depois da independência das colônias. Essas contradições impostas pelo mundo
exterior e interior tornam-se obsediantes, e por isso, sentem que já estão mortos estando
vivos: “Já seríamos desta forma há dez anos? perguntei-me eu, já estaríamos tão mortos
como agora, tão definitiva e inapelavelmente mortos como agora? (FA, 31)
A sensação de morte em vida é pior que a espera pela morte física, assim como a
solidão de quem está acompanhado. E é justamente essa sensação de morte que todos
sentem. A banalidade das mortes da guerra e a impossibilidade de resolver a queso
política de forma menos sangrenta é aqui comentada pelo oficial:
— Não sei o que considerar mais chato, meu capitão, queixou-se-me o oficial de
transmissões a raspar com o dedo distraído o rótulo da garrafa de bagaço. Se disparar tiros na
57
mata, se ganhar bolor no segundo andar do Ministério, cercado de sargentos à paisana,
amarelos e puídos, de fígado estragado, cheirando a remédio. Eu via-os da minha secretária e
pensava Se são estes infelizes que a Organização quer que eu doutrine, como caralho se
ensina o Marx a defuntos? As paredes esfarelavam-se devagarinho em grumos de pó,
fragmentos de caliça despegavam-se do teto, o soalho abaulado rangia: tudo desbotado,
monótono, sem vida, e o Tejo pela janela, também pardo, gemendo igualmente o seu
protesto manso se o calcanhar de um barco o pisava. A revolução surgia-me de tal modo
impensável, de tal modo absurda num país carunchoso, resignado e vago, que a minha
existência se me afigurava desenrolar-se como um sonho no interior de um sonho, no qual
flutuassem ao acaso fragmentos impalpáveis de palavras de ordem e de bandeiras
vermelhas. (FA, 76)
Segundo Bauman, a fragmentação é a força primária da modernidade, o mundo se
desintegra em problemas e assim é possível governá-lo. Possuindo autonomia para
administrar cada problema separadamente, cada indivíduo também possui a autonomia de
decidir quando vai ou não ficar de olhos abertos perante o mundo, a alienação e/ou a
conscientização fazem parte das escolhas, portanto, da ambivalência do sujeito e das
situações.
A fragmentação é a possibilidade de separação, de discriminação, de administração de
um espaço ou prioridade individual e, conseqüentemente, de alienação quando não
queremos ver o que há do outro lado da cerca, isto é, o Outro, o estranho a nós. Os
personagens de Fado Alexandrino estão no momento do regresso entre as cercas, eso no
não-lugar. Eles não pertencem nem à África nem à Lisboa, então como fazer para
administrar vidas assim?
A modernidade orgulha-se da fragmentação do mundo como sua maior realização. A
fragmentação é a fonte primária de sua força. O mundo que se desintegra numa pletora de
problemas é um mundo governável. Ou, antes, uma vez que os problemas são manejáveis, a
questão da governabilidade do mundo pode jamais aparecer na agenda ou pelo menos ser
adiada indefinidamente. A autonomia territorial e funcional produzida pela fragmentação dos
poderes consiste primeiro e acima de tudo no direito de não olhar para além da cerca e de
não ser olhado de fora da cerca. Autonomia é o direito de decidir quando manter os olhos
abertos e quando fechá- los, o direito de separar, de discriminar, de descascar e aparar (...)
Os poderes é que são fragmentados; o mundo, teimosamente, não o é. As pessoas
permanecem multifuncionais e as palavras, polissêmicas. Ou melhor, as pessoas tornam- se
58
multifuncionais por causa da fragmentação dos significados (...) Quanto mais segura a
fragmentação, mais incoerente e menos controlável o caos resultante.
48
Em certa parte da narrativa, a cidade de Lisboa é descrita como se fosse uma mulher
idosa que chorasse: “Cá fora, na rua, o março chuvoso da véspera escorria pelas fachadas
decrépitas como a pintura de uma mulher idosa que chorasse.”(FA, 23) E talvez fosse essa
mesmo a melhor descrição para uma cidade que é capital de um país de passado tão
grandioso e que, com o passar dos anos, foi sendo dilapidado por sucessivos governos que
o buscaram o bem-estar do povo como pregava Marx, mas somente o bem-estar
capitalista. Portugal foi sendo destruído, guerra após guerra e se ressentindo com as
derrotas e independências de suas colônias além-mar:
Vagarosamente, penosamente, reconstituiu dentro de si, como se arrumasse no lugar as
peças de um jogo esquecido, a cidade deixada dois anos antes entre apitos de navio e
marchas militares, quando o barco se desprendeu do cais perseguido pelos crocitos de
gaivota das famílias, que voavam em torno do casco à laia de enormes aves aflitas e fúnebres,
acenando sobre as ondas de azeitona os guarda-chuvas abertos de janeiro. (FA, 13)
A explosão da Revolução de 1974 surge no texto, relacionada à imagem de cães
farejando o lixo, e busca expressar a sujeira que era guardada por baixo dos panos da
ditadura e de uma guerra que já havia gasto todas as riquezas humanas e econômicas que o
país tinha disponíveis. O povo empobrecera por conta do desvio de riquezas para sustento
da guerra:
As casas de madeira dos ciganos cercavam o bairro de uma pestilencial desordem de
musseque: crianças, burros coxos, e pedras e pneus de automóvel nas lâminas de zinco dos
telhados. Subsistirá o prédio acanhado da Buraca atrás da linha do comboio e do triste choro
noturno dos apitos? (FA, 16)
Em Fado Alexandrino, personagens das mais diversas camadas sociais se projetam, e
são surpreendidas, por ocasião de seu retorno à cidade de Lisboa, em seu quotidiano
tragicômico, na irônica e revelada humanidade (ou falta desta), na destruição dos dias e
48
BAUMAN, Zygmund. Modernidade e Ambivalência. RJ: Ed. Jorge Zahar, 1999. p.20-21.
59
dos acontecimentos. Identidades estilhaçadas, em busca de si mesmas e do convio com a
alteridade, envolvem-se num turbilhão de acontecimentos que têm como cenário uma
cidade escatológica que não traz sentido algum à vida dos ex-combatentes. Todos esses
acontecimentos nos são mostrados incansavelmente permeados de destruição, sofrimento e
desilusão:
Fado Alexandrino aponta, de facto, para um poderoso exame crítico da vida quotidiana dos
anos setenta em Portugal, na medida em que se constitui como um fresco de depoimentos
cultural e socialmente diferenciados sobre essa época. Os próprios lugares onde a acção se
situa, como que colocados às personagens que os habitam ou neles centralmente se
movimentam, mantêm uma coesão sócio-simbólica de carácter narrativo e, quase diríamos,
escatológico, em relação às personalidades que representam e ao seu tipo de actuação. <<É
assim que as pessoas vivem, (...) é no meio deste absurdo idiota que os dias se sucedem
vegetalmente, sem sobressaltos nem esperança, uns aos outros>>.
Ora é de notar que essa personagem (o oficial de transmissões), sendo a mais
intelectualizada do grupo, acaba por ser, juntamente com o alferes, a mais permeável a
sonhos, pesadelos, obsessões e fobias, transcendendo o plano imediato da existência para
uma busca de sentido inatingível; e, principalmente e conclusivamente, a Encarnação, como
lugar de chegada, após o desembarque no aeroporto, e como lugar de morte final (o soldado,
que matara o oficial de transmissões durante a noite de bebedeira, acaba por perecer num
acidente com a camioneta das mudanças, precipitando-se de um viaduto sobre o mesmo
local), funciona de algum modo como o espaço de corporização do romance. À beira-mar, na
contemplação de um hidroavião (aglutinador do barco da viagem de ida com o avião da
viagem de regresso) que levanta vôo quando a última personagem tomba, assimilado
anteriormente a uma gaivota e a um albatroz.
49
49
SEIXO, Maria Alzira. Os Romances de Antonio Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002.
p.136.
60
3. A PERDA DO CAMINHO PARA A CASA E O ENCONTRO ILUMINADO
COM A ESCRITA DE LOBO ANTUNES
(...) o que me faz mais impressão, meu capitão, (...) é tudo ter mudado na minha
vida sem eu dar por isso, é nada ser igual ao que era dantes, as pessoas, os
sítios, a minha própria idade (...) esta certeza, entende de que é tarde demais e
perdi o caminho para casa. (FA)
3.1 “Derrotas cruzadas em fundo de mar”
50
: o percurso existencial das
personagens-náufragas e a fragilidade dos laços de afeto
PI am the sum total of everything went before me, of all I have been seen done,
of everything done-to-me. I am everyone everything whose being-in-the-world
affected was affected by mine. I am anything that happens after I’ve gone which
would not have happened if I had not come. Nor am I particularly exceptional
in this matter; each “I,” every one of the now-six-hundred-million-plus of us,
contains a similar multitude.P
51
(Salman Rushdie)
O título escolhido por Maria Alzira Seixo para o seu ensaio crítico sobre Fado
Alexandrino, “Derrotas cruzadas em fundo de mar”, sintetiza a idéia das derrotas de cada
uma das personagens pertencentes a esse grupo apontando para o aniquilamento de todas,
e, o fato de serem “cruzadas” assinala que a narrativa se desenvolve por meio de
monólogos cruzados. A expressão, por sua vez, “em fundo de mar”, além de remeter à
imagem já mais do que reconhecida como fundamental da cultura portuguesa, indica o
naufrágio das personagens que soçobram em suas perplexidades e angústias existenciais.
No espaço textual de Fado Alexandrino, a imagem do mar surge diversas vezes de
forma obsediante, ora na paisagem ora no interior das personagens. A imagem do mar
representa o caminho de ida das descobertas ultramarinas e a busca de riquezas, mas
também representa o lugar que esconde os naufrágios das grandes viagens. Convocamos
aqui novamente a imagem do mar, citada anteriormente no capítulo 2.2, com a intenção de
50
Título do ensaio de Maria Alzira Seixo sobre Fado Alexandrino em Os romances de António Lobo
Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002.
51
Tradução de minha autoria: “Eu sou a soma total de tudo que se passou antes de mim, de tudo que eu fui,
fiz e vi, e de tudo que fizeram a mim. Eu sou cada um, cada coisa cujo estar no mundo me afetou e foi
afetado por mim. Eu sou o fruto do que aconteceu nos lugares em que estive, daquilo que não poderia ter
acontecido se eu não estivesse lá. Mas eu não sou particularmente excepcional neste fato, cada “eu”, cada um
dos seis milhões de pessoas que existem além de nós, contém em si uma similar multidão .”
61
reafirmar sua condição de lugar da ambivalência, mas também como o lugar do naufrágio
pessoal. Nesse caso, a imagem contém os naufrágios individuais de cada um, não só pela
falta de rumo ao voltarem à Lisboa, mas sobretudo por conta das decepções amorosas e
das relações de afeto naufragadas. Abaixo, Maria Alzira Seixo explica a escolha do título
de seu ensaio remetendo-se à parte da produção ficcional de Lobo Antunes:
É neste contexto que integramos as <<derrotas>> convocadas no título deste capítulo,
assim como os <<cruzamentos>> que elas sofrem e o <<fundo de mar>> que as contém.
Entendemos, por um lado, que Fado Alexandrino prolonga a problemática específica de Os
Cus de Judas, configurando o sentimento pós-colonial do europeu forçado à guerra (através
da sua força mais determinante, a da alienação ideológica implicadora de uma impreparação
cultural) e desenvolvendo uma sensibilidade pós-moderna de aceitação indiferente do
aleatório e da contingência.
As Naus, retomará, por sua vez, a componente particular do regresso (problemática dos
retornados) com um peculiaríssimo envolvimento num passado de memória histórica, o dos
descobrimentos marítimos, procurando fazer dessa História revoluta o mesmo que, em Fado
Alexandrino, se faz com a história do contemporâneo e com a revolução, isto é, torná-la
rasteira e minimizá-la, trazê-la ao nível do comum ¡ por outras palavras, torná-la devoluta
ao presente que a conforma na sua herança e leitura transformadora. Estes três romances (Os
Cus de Judas, Fado Alexandrino e As Naus) partilham todos, portanto, da problemática da
viagem colonial, mas são escritos com o empenho e a veemência do colonizador que, tendo
vivido a experiência da guerra de libertação do lado do opressor, não se reconhece
posteriormente em nenhum dos territórios, nem na colônia ou ex-colônia, nem na
metrópole ou ex-metrópole, e mistura por isso os seus tempos de vivência concreta
numa reconstrução da identidade impossível, estilhaçada que ela foi pelo combate onde
se não morreu. Os estilhaços que permanecem são os dos restos do desastre, os dos esgares
soltos da gargalhada de irrisão amarga, da cena de bebedeira brincalhona e irresponsável
onde se mata o oficial de transmissões, sacrificando a todas as perdas e a todos os efeitos de
frustração. (...) Vimos como, em Os Cus de Judas, esses estilhaços atingiam a fala do
narrador incomunicável, isto é, dirigindo-se a uma figura sem voz, que a narrativa amputa da
sua fala, e o configuravam numa solidão radical; em As Naus será o contrário, um
ajuntamento também impossível de todas as vozes de todos os tempos que constituíram a
situação colonial e o carnaval da sua dissolução desastrosa. Fado Alexandrino foge à solidão
do primeiro com esse jantar de convívio onde cinco figuras trocam as suas experiências
de mutação num diálogo longo e muito vivo, e escapa ainda ao completo aleatório pós-
moderno da polifonia de tempos e lugares de As Naus. Mas a solidãoo é de todo evitada
(<<Como quer que eu acredite que não estamos sempre sozinhos, meu capitão>>, diz o
alferes), e a identidade é ainda questionada (enquadrada pelas observações que mencionamos
a respeito da relação entre mudança e permanência, entre os dois lugares em confronto que
se interpenetram nas representações mentais das personagens, e até na problematização dos
lugares familiares da origem social). (...) Efectivamente, o grupo dos militares em combate
transforma-se, nos dez anos posteriores ao regresso, em elementos dispersos da teia de um
quotidiano sujeito às contingências, de que a revolução aparece como mero catalizador, e
que a ressaca vai revelar com o discurso desinibido da bebedeira, de forma humorística e
escarninha, por vezes lúdica, não escondendo os fortes ressaibos amargos das decepções e
dos malogros. Daí que as <<derrotas>> que invocamos no título deste capítulo possam
dar conta dos percursos de existência individual, ligados aos rumos da viagem para África
de acordo com o léxico das descobertas (curiosamente, feita de barco). Simultaneamente,
62
essas <<derrotas>>, enquanto perturbações sofridas nesse rumo (de acordo com um
desvio negativo da significação náutica do termo), dão conta também da perda e da
destruição que os malogros das vidas representam, da morte cuja a sombra e arrepio
sempre os acompanhou, uma morte adiada que se representa simbolicamente do crime
final.
52
Se as personagens de Fado Alexandrino não se reconhecem após o retorno em
nenhum dos territórios, nem em África nem em Portugal, se elas misturam os seus tempos
de vivência nesses lugares tentando redescobrir quem são e falham nessa tentativa, parece-
nos impossível juntar os estilhaços resultantes do combate. Portanto, se não sabem quem
são e como prosseguir, como iriam se relacionar de forma satisfatória com o outro?
Perceber que o outro também representa uma infinita gama de possibilidades e
peculiaridades, conforme explicitado na epígrafe de Salman Rushdie, é essencial; e saber
lidar com essa pluralidade não é tarefa fácil. Como esperar que indivíduos sem rumo, de
identidades estilhaçadas possam cumprir essa tarefa? Por isso, as relações intersubjetivas e
amorosas em Fado Alexandrino encetam uma problemática individual que amplia o
abismo existencial dessas personagens, que não sabem lutar contra a ambigüidade de suas
vidas e com as escolhas que deveriam fazer :
É a luta da determinação contra a ambigüidade, da precisão semântica contra a ambivalência,
da transparência contra a obscuridade, da clareza contra a confusão. A ordem como conceito,
como visão, como propósito, só poderia ser concebida para o discernimento da ambivalência
total, do acaso do caos. A ordem está continuamente engajada na guerra pela sobrevivência. O
outro da ordem não é uma outra ordem: sua única alternativa é o caos. O outro da ordem é o
miasma do indeterminado e do imprevisível. O outro é a incerteza, essa fonte e arquétipo de
todo medo. Os tropos do “outro da ordem” são: a indefinibilidade, a incoerência, a
incongruência, a incompatibilidade, a ilogicidade, a irracionalidade, a ambigüidade, a confusão,
a incapacidade de decidir, a ambivalência.
53
Cada ex-combatente faz seu relato de perspectiva, ora parecida, ora diferente,
reafirmando a imagem do caleidoscópio de falas, a ser retomado posteriormente no
decorrer deste capítulo. A problemática da ambivalência vivida por cada um deles
52
SEIXO, Maria Alzira. Os Romances de Antonio Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002.
p.129-131.
53
BAUMAN, Zygmund. Modernidade e ambivalência. RJ: Ed. Jorge Zahar, 1999. p.14
63
confirma a falta de compreensão e de tolerância às diferenças, pois eles não sabem lidar
com as diferenças de classes sociais, com o feminino e com as próprias limitações e
questões pessoais deles. Bauman diz que a intolerância ao outro e a dualidade da própria
identidade são comuns na civilização moderna, e, em favor da construção da ordem X
caos, limites devem ser colocados, fato este que, irremediavelmente, leva à negação dos
direitos e das razões do outro:
A intolerância é, portanto, a inclinação natural da prática moderna. A construção da ordem
coloca os limites à incorporação e à admissão. Ela exige a negação dos direitos e das razões
de tudo que não pode ser assimilado ¡ a deslegitimação do outro. Na medida em que a ânsia
de pôr termo à ambivalência comanda a ação coletiva e individual, o que resultará é
intolerância ¡ mesmo que se esconda, com vergonha, sob a máscara da tolerância (o que
muitas vezes significa: você é abominável, mas eu sou generoso e o deixarei viver).
54
A narrativa em grupo, pelo fato de ser construída por meio de monólogos cruzados,
possibilita que o leitor tenha acesso a diferentes pontos de vista sobre o mesmo assunto, e
capta como pessoas de diferentes classes sociais encaram as marcas e imagens deixadas
pela guerra e pela sua origem burguesa ou proletária. O alferes e o soldado são de origem
humilde, o tenente e o oficial demonstram ser de uma camada social mais elevada. A
família de Inês representa a melhor configuração da alta burguesia citadina e do sistema
capitalista da época; o alferes, rechaçado por eles, acaba cedendo às facilidades da
burguesia quando aceita o trabalho no banco da família, após a guerra mesmo sem querer
continuar casado com Inês. E o oficial de transmissões culpa-se ideologicamente por não
ser de origem humilde apesar da boa educação que preza ter:
Estás a ver que no fundo no fundo és tão burguês como eu, perguntou o alferes, que os mesmos
pequenos, insignificantes pormenores te horrorizam? A única coisa que nos separa é que a
condição de classe não me traz culpabilidade nenhuma a mim, nem me sinto na obrigação de
pagar as favas por isso.
Eu, em contrapartida, pensou com amargura o oficial de transmissões, continuei por muito
tempo dividido entre a obscura, dolorida tristeza de não ter nascido carpinteiro, ou mecânico,
ou canalisador, e o desejo impossível de conciliar esse remorso com a minha atávica aversão
pelos maus modos à mesa, pelos tempos trocados dos verbos, pelos cabelos com caspa e pelo
54
BAUMAN, Zygmund. Modernidade e ambivalência. RJ: Ed. Jorge Zahar, 1999. p.16.
64
primarismo dogmático dos autoproclamados condutores dos proletários, repetindo convictamente,
incansavelmente, apaixonadamente, verdades de cem anos atrás, com as mesmas inflexões sinuosas
e ardentes, nos núcleos da Organização, nas reuniões universitárias. (FA, 284)
A família de Inês acredita nos estereótipos sobre o comunismo e preocupa-se, em
decorrência, com a possível perda de dinheiro e de status que poderia advir da ideologia de
uma sociedade sem classes. Por isso, com a deflagração da Revolução, resolve fugir para o
Brasil:
— Leram a pouca vergonha do jornal?, perguntou a mãe da Inês, indignada. Que vão dar o
dinheiro dos ricos a todos, que os católicos se vão poder divorciar, que criam partidos políticos às
dúzias. Ó Jaime, você livre-se de me trazer para casa mais porcarias dessas, ainda por cima com
fotografias de comunistas horrorosos na primeira página. (FA, 252)
— O padre Manuel, escandalizou-se a senhora do cabelo roxo, contou-me de fonte segura que os
socialistas querem obrigar as mulheres todas a usar a pílula só para caírem em pecado mortal, só
para se incompatibilizarem com o papa. Daqui a proibirem os seminários e a Conferência de S.
Vicente de Paula é um passo. (FA, 254)
As marcas sociais são mais um motivo de emperramento nas relações intersubjetivas
das personagens, e por conta também dessas marcas nenhuma das relações amorosas ou
afetivas das personagens pode ser satisfatória. Sejam as relações familiares ou as
extrafamiliares, todas se configuram em decepção e frustração colaborando para o
aniquilamento pessoal das personagens: “Meu capitão, na minha idéia a gente apaixona-se
por uma mulher e começa apodrecer por dentro.”(FA, 259) diz Abílio sobre sua relação
com Odete-Dália.o personagens cujos fracassos individuais revelam que estão à deriva,
em vias de se afundar.
Segundo Bauman, é o percurso da vida, antes da morte, que oferece incerteza. Ele diz
que só o que é visto, através das janelas da vida moderna, e, através da fragilidade das
realizações e dos laços humanos, está encaixado para propor os mistérios e deixar respirar
a ansiedade que tais mistérios fomentam. O mais assustador quebra-cabeças, segundo ele,
está presente nas buscas diárias, no curso da vida de um indivíduo e não no momento da
65
sua morte. É nos altos e baixos da sorte e dos valores que alguém possui, nos caprichos das
regras que se alternam antes de o jogo terminar e na cacofonia de vozes captadas pelo
sujeito que se torna difícil apontar o motivo principal que desafia o entendimento da vida e
do próprio texto. Acerca desses questionamentos, Maria Alzira Seixo relata a relação com
o feminino:
Ora justamente, a figura feminina, que ficara em suspenso, nos seus contornos de
actuação, desde o segundo romance de Lobo Antunes, é agora retomada com insistência e
agudeza ¡ tal como o mar, que desde sempre figurou nos seus livros como imagem de
escape e evasão, numa espécie de sinal de suspensão, utilizado em música (point d’orgue), e
vai ser agora central, em posição, não dominante (como é aqui a da mulher) mas sensível
porque não existe no texto como figura actancial, antes como um recurso expressivo
regular, de contemplação e devaneio, como um ruído de fundo de aparição cintilante
que fixa derivações e insuficiências.
55
Já no primeiro capítulo de Fado Alexandrino, Abílio inaugura o processo recorrente de
decepção em relação ao outro, com quem se convive. Em seu retorno à Lisboa, demonstra
a necessidade de rever a irmã e de resgatar os laços que foram cortados com a distância.
Pom, ela não está lá esperando por ele:
A minha irmã não pôde vir de certeza por causa do miúdo, e o amargo da inveja de
não ter ninguém a chamá-lo, a empurrá-lo, a molhá-lo de beijos, o cabo sorria atarantado,
sem perceber, Estamos ainda em África, seguimos ainda os vestígios dos gajos, atravessamos
ainda a mudez branca das manhãs de guerra, a cheirar à mandioca nas esteiras e ao odor lento
dos negros (...) Saiu a porta de armas a puxar a mala e procurou com os olhos, sem a
encontrar, a paragem do autocarro: até as paragens mudaram nesta terra, caralho... (FA, 16)
Ele, aqui, desculpa a irmã, inventando um possível motivo para se consolar e relata a
sua excluo. O fato de não vê-la em meio à multio de pessoas que esperavam seus
familiares o deixa tonto e o faz relembrar o lugar da guerra e estranhar o lugar onde
nascera, e a partir dessa ausência ele percebe que nada mais é igual a antes e demonstra
essa estranheza até ao comentar a mudança do ponto dos autocarros.
55
SEIXO, Maria Alzira. Os Romances de Antonio Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002.
p.130.
66
Abílio ainda não se dá por vencido e vai até a casa dela. Ele percebe que a irmã não é
mais a mesma pessoa, ela e a casa estão destrdas e para sua surpresa maior ela está
casada com um negro que se comporta como proprietário da casa que antes fora dele e da
irmã:
E o soldado distinguiu uma mulher mais ou menos da sua idade, com um saco de plástico
numa das mãos e um catraio na outra, a fitá-lo com pupilas áridas vagamente contentes,
vagamente maçadas, que segura a porta com a anca, o precede, sacudida, ao longo do
corredor sujo (mais caixotes de lixo, línguas de capacho, o estuque do teto a dissolver-se de
bolor) e vai arrumar o saco na cozinha onde cresce o grunhido de urso-polar do frigorífico,
enquanto o filho, plantado ao meio da sala, o examina com órbitas gigantescas de pasmo,
entre um calendário Móbil exibindo uma rapariga de deslumbrantes tetas nuas, e o aquário da
televisão desligada. (FA, 18)
Após sua estada em Moçambique, os laços de afeto com a irmã se esgarçaram e o
soldado percebe que perdeu o pai durante esse tempo e que ela o trata friamente:
Que distância agora nos separa, refletiu ele: conversas comigo como se eu fosse um
estranho, sem um beijo, sem uma festa, sem uma sombra de ternura: fechou os olhos e o
polvo de caras, de gestos, de exclamações, de risos ansiosos, agitou-se de novo, na sua
cabeça, junto à porta de armas do quartel, na manhã nevoenta da Encarnação. (FA, 19)
Curiosamente, o marido da irmã é um negro. Ele chega e encontra esse negro como
dono da casa que era sua, subvertendo a relação antes vivida em África, quando os
portugueses eram os que ocupavam o espaço pertencente aos negros. Ele percebe essa
inversão quando a irmã pergunta a ele se ele pretendia ficar na casa, colocando-o na
posição de estranho e intruso naquele espaço:
— Perguntou-me se eu tencionava ficar lá em casa, disse-me o soldado, Eu ainda tonto da
mona como se acabasse de acordar e ela só a perguntar-me se eu tencionava ficar lá em casa
como se mais nada no mundo, percebe o meu capitão, lhe interessasse de fato, ficas cá, não
ficas cá, talvez se arranje lugar na sala por uns dias.(FA, 19)
(...) Perdestes o teu lugar cá em casa, vai-te embora, enquanto o mulato metia a chave à
porta (uma rápida chave decidida de proprietário) e o fixava, impenetrável, do umbral,
por detrás dos célebres óculos de armação dourada. (FA, 20)
A rejeição da irmã o faz procurar outro lugar para ficar no mesmo dia em que chega.
Não é posvel para Abílio suportar tamanha indiferença, então ele prefere ir sofrer a
67
desilusão pela rejeição sofrida à distância e foge de lá para tentar encontrar um espaço para
si. No mesmo dia instala-se em uma pensão, um lugar de permanência curta, em transição
até decidir qual rumo tomar. A pensão é tão imunda e decrépita como a casa de sua irmã e
todos os espaços narrados de Lisboa.
Ele vai dormir e sente que sua alma está inquieta, durante o sono tem sonhos confusos
onde o desconforto da cama da pensão mistura-se ao desconforto passado na guerra. A
superposição de lugares se expressa através do desconforto moral que sentiu ao ser
rejeitado no lugar onde deveria ser seu berço natal:
A cama pulou durante horas e vinha-me à idéia que tinha rodas debaixo do colchão e
galopava por um funil de casas, Buraca fora, a caminho de Monsanto, da mata, das flechas,
da igreja, dos bairros horríveis da Amadora, dos canteiros do parque: de forma que acordei
com uma dor do catano nos
rins e um apito de locomotiva nas orelhas que o meu capitão
nem calcula... (FA, 20)
Após essa decepção, Abílio procura resgatar o afeto de outros membros de sua família
e vai procurar emprego no negócio de mudanças de seu tio Ilídio. E, ao morar na casa do
tio, descreve a imundície desse pedaço familiar e do armazém da empresa confirmando a
escatologia presente na narrativa. É bem apropriado aqui o fato de ele ir atrás de um
emprego justamente no ramo das mudanças. Constatar que sua vida havia mudado seria
doloroso, porém, necessário para seguir em frente. Mas é apenas uma promessa que não se
cumpre já que a mudança individual esperada não acontece; ele fica estagnado,
confirmando a problemática da permanência na mudança correlacionada por Maria Alzira
Seixo à epígrafe do livro, como veremos a seguir:
(...)<<after changes we are more or less the same>>, e a problemática da permanência na
mudança (ou o seu contrário, mas não de modo indiferente) é central neste romance, onde o
<<antes>> e o <<depois>> da Revolução de Abril apelam para um exame de eventuais
transformações, e onde simplesmente o antes e o depois do outro acontecimento decisivo das
existências em jogo (e muito mais decisivo, verificar-se-á ao longo da narrativa), a estadia
68
em África para combater os movimentos de libertação, dão contas de miúdas e relevantes
mudanças e fixações no percurso de cada um.
56
A epígrafe de Fado Alexandrino, selecionada para iniciar a Dissertação, é uma canção
de Paul Simon, cuja frase principal diz que “após mudanças nós somos mais ou menos os
mesmos”. Esta frase nos faz analisar que quaisquer mudanças que possam acontecer em
nossas vidas nós podemos ser mais do que éramos antes ou menos do que éramos antes,
mais ou menos humanos, mais ou menos felizes ou mais ou menos racionais.
Porém, após mudanças, por mínimas que elas sejam, não existe a possibilidade de
sermos os mesmos de antes. A problemática da permanência na mudança se reflete não só
nas personagens, mas também em Portugal, já que as mudanças sociais esperadas e
prometidas para o período após a Revolução não se cumprem e Portugal também
permanece estagnado, e, segundo as personagens, quem continua a mandar são os mesmos:
“— Apesar do que o meu capitão supõe, disse o oficial de transmissões, depois da
Revolução a luta tornou-se, em certo sentido, muito mais difícil.” (FA, 38)
Abílio reconhece que continuando apegados à maneira antiga de ser nada poderia
prosperar, como de fato aconteceu na empresa de mudanças de seu tio: “— A gente
fossávamos como burros, contou o soldado, e a empresa prosperava. Se o meu tio não se
pegasse tanto aos métodos antigos éramos ricos hoje.”(FA, 56) E Abílio demonstra sua
origem humilde quando relata a maneira a qual se adaptou ao novo trabalho: “— Se me
custou a adaptar ao trabalho, meu capitão?, riu-se o soldado, divertido, a cuspir caroços de
azeitona para a palma enorme. Se tivesse gramado uma vida como a minha, sabia que a
única coisa que custa é não comer.” (FA, 66)
Depois da revolução, ele conta como a
empresa também se afundou:
56
SEIXO, Maria Alzira. Os Romances de Antonio Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002.
p.120.
69
— Via o negócio lixado, a adornar, a afundar-se, a perder-se sem remédio, explicou o
soldado, os móveis a desfazerem-se na arrecadação sem que ninguém os reclamasse, as
Mudanças Ilídio sem encomendas nenhumas, em ruína e não só as Mudanças Ilídio, meu
capitão, bichas intermináveis para a carne, para os legumes, para o leite, gente magrinha,
malvestida, com cara de fome, matilhas de gatunos de barba crescida roubando as pessoas
honestas nas esquinas, jipes militares que disparavam, depois da sereia de bombeiros do
recolher obrigatório, ondulando imperativa pelas ruas sem luz, sobre vultos furtivos
tombando de bruços, sem ruído, nos passeios, farejados por enormes cachorros desgrenhados
e cinzentos. (FA, 196)
Quando o soldado começa a se interessar por Odete parece-nos revelar uma face
escondida até então de sua personalidade: a da homossexualidade e prostituição masculina.
Abílio faz programas com homossexuais, e, segundo sua explicação, é uma forma de obter
dinheiro para sair com Odete:
O loiro deitou-o de costas na alcatifa como os náufragos na praia e procurou-lhe o espaço
de entre as pernas com a boca esticada. Com os quinhentos escudos posso levá-la a jantar
fora, oferecer-lhe mariscos, vinho fino, meia lagosta, santola, as mulheres são uma questão
de dinheiro.(FA, 79)
— Ia lá de vez em quando, meu capitão, confessou o soldado, se queria dinheiro para sair
com ela, a levar ao cinema, a uma esplanada, à praia. (FA , 83)
Porém, mais adiante ele reconhece que na guerra também fazia sexo com os negros.
Em nenhum momento ele assume a homossexualidade como uma opção, dá-nos a
impressão de que ele sempre arruma subterfúgios para as suas ações: na guerra a questão
era a falta de mulheres e, em Lisboa, ele diz que sua intenção era conseguir dinheiro:
— A gente andava há treze meses sem mulher, justificou-se o soldado a afastar o cabelo da
testa com os dedos áridos. Treze meses, meu capitão, com a guerra, e os mortos, e a falta de
comida, e a falta de cigarros, e o paludismo, e os ratos na caserna, diga lá se não é tempo a
mais aos vinte anos. (Mais meia hora e estás grosso, pensei eu, o briol caiu-te atravessado.)
Hoje, para sua informação, agüentava um século: um sócio caleja-se, ganha chifres no cu
com os coices que apanha. De maneira que se a tesão me apertava ia ao posto de sentinela da
sanzala, chamava o primeiro preto que aparecia, dava-lhe vinte escudos e mandava-o arriar
as calças ali mesmo, atrás do zinco e da madeira. De metralhadora na direita e nota na
esquerda não há quem não obedeça ao que lhe mandam, pianinho, calados, e para a frente
que é serviço. Vinte escudos, meu capitão, vinte escudos para me vir na peida de um
escarumba apatetado, os dois a tremermos, como folhas, de raiva e de nojo. (E o silêncio da
mata, disse-me eu, o aroma de sovaco podre da terra, as capas de oleado sobre os canhões
sem recuo, homens fardados vagueando ao acaso pelas cabanas de palha, uma negra,
antiqüíssima, de cócoras, embrulhada num pano, a cozer lagartos em brasas exangues.) De
cada vez que me lembro (a pele esticou-se nas têmporas, uma veia arroxeada pulsou-lhe
na testa) por pouco, seja cego, que não desato a vomitar. (FA, 91)
70
Porém, mesmo revelando sentir náuseas quando se lembra das suas relações sexuais
com os negros, ele continua a manter relações homossexuais. E quando Desirée, o negro
amante do pintor homossexual com quem ele mantém relações, mata o pintor, Abílio
primeiro sente medo de ser acusado, e de ser descoberto por Odete, mas ao mesmo tempo
fala da vida de profunda solidão dos travestis, revelando na verdade a solidão e tristeza que
era sua vida sem afeto:
Esgotos, a flutuar, disforme, entre excrementos e detritos, os diários publicaram a notícia,
esqueceram-na no dia seguinte, retomaram-na quando o Desiré foi preso, acusado de matá-lo
não me lembro bem como, uma facada, uma corda, os dedos no pescoço, andei aflitos uns
tempos, medroso de ver chegar ao armazém, ou a casa, ou ao café, um par de tipos de farda
ou à paisana, carrancudos e irredutíveis, que me empurrassem para a esquadra, me
fotografassem de frente e de perfil com um número no peito, me enterrassem uma luz nos
olhos, me obrigassem a confessar, à bofetada, dezenas de estupros, de violações, de roubos,
de coisas pavorosas que a Odete leria horrorizada no jornal, que o tio e a irmã escutariam
impressionadíssimos na rádio, mas condenaram o preto a doze anos de cadeia (Os pretos
servem para condenar, berrava o juiz de Lourenço Marques, ou vocês queriam por acaso que
condenássemos brancos?), e ele foi acalmando aos poucos, reencontrando uma espécie de
alegria no complicado, triste milagre de estar vivo. No fundo sentias-te culpado em
relação ao maricas, declarou o oficial de transmissões, culpado de o chular meses a fio, de te
aproveitares dele, de o desprezares. No fundo não te achavas de bem contigo mesmo.
— Culpado como o caneco em relação ao maricas, insistia o oficial de transmissões, a
pensares que foi por tua causa que ele se matou ou que o mataram. (...)
Bom, seria isso e não seria isso, a gente acaba com o tempo por ganhar amizade às pessoas,
meu capitão, alguma estima, e depois os paneleiros não o enojavam por aí além (Aposto que
até gostavas deles, riu-se o alferes, aposto que arranjaste por lá a tua paixãozita), conheci-os
às dúzias, novos e velhos, e em todos eles notara os mesmos frágeis olhos de animais
acossados, a mesma desesperada solidão aflita, se quer saber a verdade despertavam-
lhe mais pena que outra coisa: os travestis, por exemplo, freqüentava vários, um
empregado de café, um estivador, um de boas famílias, filho de um engenheiro, que queria
ser bailarino e se chamava Tó Zé, e os cubículos onde dormiam despertavam-lhe confusão e
dó, aqueles úmidos compartimentos apertados, com janelinhas de saguão tão estreitas que
mal cabia um braço na moldura, e um espantoso monte de roupa de homem e de mulher por
toda a parte, vestidos, sapatos, calças, gravatas, uma espécie de fundas herniárias para
achatar e ocultar os testículos e o pênis, espelhos com lâmpadas à volta como nos camarins
dos teatros, e imensos potes e frascos e bisnagas e ganchos e giletes e fotografias recortadas
de revistas, jogava às damas e às cartas com eles, escutava-lhes as confidências, os
desgostos, as misérias, via-nos barbearem-se e prepararem-se, numa meticulosidade
angustiada, para as suas longas e sinuosas explorações noturnas, de esquina em esquina e de
boate em boate, altivos, receosos, oblíquos e trôpegos, ajudava-os a colocar a cera para os
pêlos das pernas entre desabafos e gritinhos, a enfiar os capacetes. (FA ,262)
71
Ele tenta transformar em afeto a perversão amorosa da cidade em que vive. Relata o
sofrimento do pintor por Desirée quando este sumia durante vários dias sem dar
satisfações:
(...) só doenças venéreas, para não ir mais longe, lhe pregara sete, e o soldado Por que não o
deixa?, Por que não vive sozinho?, e o pintor, em prantos, de maquiagem a escorrer pelas
bochechas, Já não sei passar sem ele, Abílio, habituei-me, o que é que queres, juro-te que já
não sei passar sem ele, Até os maricas se apaixonam, observou o tenente-coronel, ultrajado,
até os panascas sofrem disso, o Desirée chegava a demorar-se quinze dias. (FA, 258)
E também relata como era a rotina dos homossexuais na cidade:
(...) havia quem arredondasse o ordenado no Cais do Sodré, na Avenida 24 de Julho, na
Praça da Ribeira: um mangas encostava-se a um candeeiro e pronto, os maricas desatavam a
zumbir à volta como moscas no verão, duzentos escudos, trezentos escudos, seiscentos
escudos, os velhos bem vestidos escorregavam um conto de réis em troca de umas carícias
murchas, silenciosas, aflitas, furtivas, com medo das patrulhas da polícia ou dos secretas à
paisana, no vão de escada mais próximo. Os colegas convidavam-no para os acompanhar.
Anda gozar um bocado à pala dos xexés, mas quedava-se a espiá-los de longe, entornado
num banco, e ajudava-os depois a trocar o dinheiro por cervejas e caracóis nas espeluncazitas
imundas da parte baixa da cidade, freqüentadas por estivadores, putas exaustas e mendigos
bêbados, à medida que a manhã lúgubre crescia do rio numa claridade baça de espuma de
sabão, tingindo as lívidas casas oxidadas da margem do seu vapor indeciso. Só em África,
veja lá o que é a vida, meu capitão, é que perdi os três e fui eu quem pagou. (F.A,86)
Ele tenta se apegar à Odete como forma de substituir o afeto familiar que não possui.
Ele passa meses a cortejar Odete, apaixonado por ela e ela, aparentemente sempre esquiva
e misteriosa:
Meses e meses a sonhar com uma mulher, meu capitão, disse o soldado a bater com os
dedos na toalha ai ritmo da música, a querer coisas; a inventar coisas, a desesperar: tem um
namorado, não tem um namorado, gosta de mim, não gosta de mim, quantos colegas de
emprego lhe pediram namoro, quantos amigos já teve, será virgem ou dorme às escondidas
com um tipo casado, um gajo de Mercedes verde-alface à espera dela à saída do externato,
pensamentos deste gênero, está a topar, que me envenenavam a cabeça, me doíam nos
pulmões, me provocavam gases, me impediam de me distrair, de andar bem-disposto, de me
concentrar no trabalho. Descarregava um piano e aparecia-me o sorriso dela, ouvia os
resmungos do velho a conduzir a camioneta e era a voz da Odete que eu ouvia, ia ao café e a
sua gargalhada soava-me nas costas, a gozar-me, virava-me de repente, espantadíssimo,
ninguém. Emagreci uma porção de quilos, olheiras, cara de defunto, rugas, não pegava no
sono, o médico da Dona Isaura receitou-me umas injeções de beber para antes do almoço e
do jantar e nem assim, meu capitão, na minha idéia a gente apaixona-se por uma mulher
e começa a apodrecer por dentro. (FA, 257)
72
Mesmo com a opinião contrária de seu tio Ilídio, Abílio casa-se com Odete. Tio Ilídio
tem um relacionamento amoroso com a contabilista, mas não a leva a sério mesmo depois
da morte de tia Isaura e acaba na solidão quando aquela o abandona:
— Casar com a Odete?, ofegou o tio a mirá-lo, por detrás da flor da secretária, com os
olhos mortos de robalo. Não te vem uma idéia melhor aos cornos, meu rapaz?
— O casamento é uma chatice e peras, desabafou o senhor Ilídio baixinho, na esperança de
a contabilista o não ouvir, a compor a flor da jarra com as unhas sujas. (Que medo que tu
tens dela, pensou o soldado, como a gaja te traz à rédea curta, meu marau.) Queres apodrecer
em vida, soprou-lhe o velho, queres morrer aos bocados, queres finar-te às postas? Se eu
fosse a ti deixava-me de lirismos e continuava como estou. (FA, 323)
Sua tentativa de reconstruir seus laços de afeto se frustra quando Odete aceita casar-se
com ele, pom, ela o humilha dia após dia por sua ignorância política e falta de interesse
em aprimorar-se intelectualmente. E, para piorar a situação, eles têm um filho que morre
ainda pequeno. Sua solidão é agravada quando Odete vai embora com Olavo:
A Odete começou a estudar para enfermeira e daí a nada casamos, explicou o soldado.
Escusado será dizer que foi sol de pouca dura.
Nunca lês um livro, nunca lês um jornal, não tens interesses nenhuns, és um idiota
chapado, enfureceu-se ela, de luvas de borracha cor de laranja, a limpar a louça com ódio.
(Pela janela aberta as galinhas pulavam entre as couves, no quintal.) Que maluqueira me
passou pela cabeça para me empandeirar contigo?
Principiou a humilhar-me quase logo a seguir, meu capitão, queixou-se o soldado. A
humilhar-me, a fazer pouco de mim, a mostrar-me o merdas que eu era. E por muito trampa
que a gente seja sempre temos o nosso orgulho, não é? (FA, 322)
Odete tem dupla identidade e um codinome político: estudante e namorada de Abílio,
é, ao mesmo tempo, Dália — ativista política que trabalha na mesma Organização que o
oficial de transmissões. Este também se apaixona por ela, mas na verdade ela é amante de
Olavo, outro militante que sempre participou dos esquemas políticos com ela.
Após certo tempo, a irmã de Abílio o procura para pedir ajuda com dez crianças sujas e
com fome, diz que o marido rouba e fugiu com o dinheiro que tinha. Ao reencontrá-la,
Abílio relembra a maneira como ela o tratou em seu retorno e como ficou desapontado ao
ver o negro em sua casa:
73
Assim, desta maneira, e nem sequer orgulho, pensei eu, nem sequer coragem, nem sequer
memória, puseste-me na rua, da Buraca, quando eu voltei de Moçambique ainda tonto da
guerra, vai à merda: reviu o prediozito apertado, as camisas penduradas de uma corda da sala,
fotografias de finados nas prateleiras, sorrindo de leve com a estranha doçura ausente dos
mortos, o som da chave na porta, o Zeca a entrar, a acender um cigarro, a encostar-se à
parede, a mirá-lo com uma tranqüila expressão vazia, e o soldado, de pronto, dentro dele, Se
eu continuasse tropa e estivéssemos em África levava a culatra atrás e matava-te, e o
soldado, de pronto, dentro dele, Desde quando é que um preto manda em minha casa?
(FA, 327)
— Eu nunca mais tinha visto a minha irmã, meu capitão, disse o soldado, até ao dia em que
ela me apareceu no armazém envelhecida e imunda, com um bebê ao colo, e uma multidão
de garotos de várias idades dependurados da saia. Pediu-me dinheiro emprestado porque
tinham expulso o mulato, por roubar ou qualquer coisa do gênero, do restaurante do
aeroporto.
Ajudava o velho a enfiar um sofá na furgoneta, quando um dos colegas o chamou da base
da rampa de cimento que acedia à rua: Estão à tua espera lá em cima, Abílio, uma gaja e uns
dez putos pretos que não vêem sabão há seis meses. (FA, 325)
Quantas crianças ao certo? Cinco? Seis? Contou-as: oito, carapinhentas, amareladas, com
cara de fome, uma delas de gatos no sobrolho e cotovelo num cilindro já pardo, a desfazer-
se, de gesso (caiu anteontem nas escadas, explicou a Otília, gelada) outra tão vesga que a
pupila se lhe sumia num ângulo da pálpebra, de forma que se desse a peste suína nas tuas
crias, imaginou o soldado, talvez que tornasses a ser o que eras dantes, talvez que pelo
menos a tua vida melhorasse.
— O Zeca não deve estar interessado em trabalhar, disse a irmã. Além disso foi-se embora
a semana passada lá de casa com todo o dinheiro que havia, e desde então não lhe pus a vista
em cima.
— Não conheço um preto que não seja um sacana rematado, avisou o alferes. Meto os
tomates no cepo em como se amigou com uma fedúncia ranhosa num desses bairros de lata
de franja de Lisboa. (FA, 327-328)
Com a morte da irmã, Abílio corta de vez os laços familiares, o destino dos filhos dela
não é relatado e Abílio torna-se ainda mais desiludido com o abandono de Odete. Então,
em total solidão e com a companhia apenas do seu tio, ele começa a se encontrar com a
porteira que já fora amante do tenente e que este a descreve como uma pessoa asquerosa:
— Com a saída da Odete, disse o soldado, o velho e eu ficamos sozinhos em casa, meu
capitão, a mastigar em silêncio os horrorosos cozinhados de tropa da enfermeira, a qual
corria de tempos a tempos um pano vago sobre os móveis e nos trocava os lugares da roupa e
dos talheres nas gavetas do armário. Ainda pensei Agora é que ele se junta com a
contabilista, agora é que vou ter as trombas dessa gaja à mesa, mas vá lá saber-se por que
nunca consentiu que ninguém ocupasse o lugar da Dona Isaura, nunca convidou quem quer
que fosse, bonita ou feia, para a enorme cama de pau-preto. De maneira que à noite nos
sentávamos no mesmo sofá, como um casal sem assunto, diante do televisor ligado,
enquanto ele coçava a barriga por baixo da camisola interior ou espremia a bomba da asma
para as goelas abertas, cada vez mais escarlate, mais ofegante, mais aflito, se arrastava a
chinelar e a soprar, no fim da emissão, rumo às trevas longínquas do quarto, eu ouvia-o
74
assoar-se e tossir nos antípodas, abrir e fechar torneiras, verificar o esquentador de gás,
colocar a tranca na porta, escutava o ranger do colchão e das tábuas. (FA, 401)
Embora, porque é que a gaza se demora aqui. Os peros da sobremesa no fim do jantar,
expliquei eu, afastavas os restos do peixe, com a faca, para a borda do prato, nunca olhavas
para nós, nunca dizias nada, sorrias, e os anos desataram-me a rolar para trás na memória, e
as épocas desataram a misturar-se-me, confusas, na idéia, a chegada de Moçambique, Dona
Isaura, O Externato Republicano, o prédio do meu pai na Buraca, a tua ironia, a tua divertida
indiferença a meu respeito, o mulato de óculos escuros e camisa havaiana a examinar-me em
silêncio do umbral, a tão impiedosa e tão rápida passagem dos meses, mas que caneco de
vida, que complicação de vida, o meu capitão não acha?, como tudo se nos afigurava ir
ser simples e claro no regresso da guerra. (FA , 404)
No momento em que Dália-Odete está saindo de casa, Olavo a espera do lado de fora
e Abílio reflete sobre como as coisas poderiam ter sido diferentes se ele tivesse tido uma
outra postura ao voltar da guerra. O fato de não ter deixado a emoção aflorar afasta-o de
Odete e ele questiona se adiantaria ter estudado, mas ao mesmo tempo afirma que as
pessoas não mudam tão facilmente e o alferes confirma que mesmo depois daquilo tudo
acontecer eles eram sempre os mesmos:
O que a tratava por Dália vacilou amedrontado, recuou para o vestíbulo com a carantonha
ao colo, Já agora leve também a mala, sugeri eu, você não veio aqui para buscar mais coisas?
Tens força, Olavo?, Interrogou a Odete, agüentas isso tudo ou queres ajuda? (...) Se calhar
estava a procurar explicar-te de que passaram uma data de anos por cima de uma data
de coisas e que tu te recusavas a admitir isso, que te recusavas a admitir que nenhum
de vocês era o mesmo de dantes. Dou-te cinco minutos, Abílio, berrou o velho da saleta,
cinco minutos segundo por segundo, As pessoas não mudam assim tanto, meu
comandante, protestou o soldado, as pessoas não se alteram dessa forma, eu por
exemplo sentia-me capaz, imagine, de gramar filmes chatos, de começar a estudar, de
começar a ler, Dália, chamou, preocupado, o sobretudo, ainda te demoras muito, Dália?, O
teu mal é que não aceitas que não sejamos sempre os mesmos, pá, argumentou o
alferes, o teu mal é exigires que o tempo seja um mecanismo avariado, pá, não há
nenhum relógio, percebes, que badale horas que já foram. E contudo, gaita, pensou o
soldado, mantinhas o rosto de dantes, os olhos de dantes, os mesmos ombros, os mesmos
incisivos, o contorno de vagem da boca de dantes, o que aconteceria se eu me agarrasse a ti,
se eu te abraçasse, se eu fechasse a porta a pontapé, se eu te impedisse de sair. (FA, 404-405)
A falta de consciência sobre a necessidade de mudança é que os faz caminhar para o
fundo do poço, uma vez que preferem o marasmo e o sofrimento a se refazerem e
procurarem a felicidade. Logo em sua chegada, ao reencontrar a irmã, Abílio não percebe
que ela ao rejeitá-lo, na verdade, está mostrando a ele que deveria procurar um sentido para
75
a sua vida, que o livrasse da decrepitude. Inevitável será também a comparação com
Moçambique:
— Repara no que aconteceu, disse a irmã na saleta da casa da Buraca, designando
centenas de filhos mulatos com o braço. Os comboios trotavam ruidosíssimos, por trás dela,
o marido, de óculos escuros e camisa havaiana, decifrava o jornal desportivo numa poltrona
rebentada. Não sobrava um único bibelô inteiro, o espelho do armário, quebrado, deixava ver
a madeira bichosa da porta, um odor de jazigo desprendia-se da pia, pratos de comida
amontoavam-se na toalha de oleado. A irmã, com o cabelo a soltar-se, rígido e porco, dos
ganchos do carrapito, avançou um passo sobre as coxas frouxas, empurrando diante de si o
odre mole da barriga: cheirava densamente a lixívia, a suor, a refogado, a mandioca e a
diarréia verde de bebê: Quase como em Moçambique, pensei eu, quase o mesmo lixo, a
mesma miséria, o mesmo abandono resignado, os mesmos famélicos cachorros farejando: É
isto que tu procuras, perguntou ela, é isto que tu ambicionas para ti? (FA, 323)
Abílio é quem mata o oficial de transmissões no final, supostamente como vingança
por ele ser amante de Edite, a segunda esposa do tenente; porém ele também tinha como
motivo o interesse do oficial por Odete/Dália. O assassinato se dá como numa brincadeira:
a faca que estava em sua mão atinge o tenente do mesmo modo corriqueiro com que
metralhadoras disparavam e causavam mortes em África. A conivência e o silenciamento
dos outros atestam que são tão responsáveis pelo crime quanto Abílio. Curiosamente,
Abílio tem uma morte trágica, sofrendo um desastre no caminhão de mudanças no mesmo
lugar em que desembarcara quando voltou de Moçambique e confirma assim o desenlace
de seu fado trágico.
O amor, em Fado Alexandrino, sempre aparece em sua fase terminal, de conflitos
insolúveis e situações bizarras, como por exemplo, a ginecologista anã “de mau feitio”,
amante de Jorge. O encantamento da paixão só aparece na memória e este não perdura em
nenhuma das relações relatadas. Os vários tipos de mulheres apresentados não os
satisfazem afetivamente, segundo o relato masculino. Maria Alzira Seixo nos aponta: “a
partilha do ponto de vista é sempre feita pelo lado dos militares (dos homens, por
76
conseguinte), o que de algum modo deixa as mulheres em exterioridade objectual, porém
aqui agressiva.
57
O caráter deceptivo também aparece como conseqüência da guerra colonial, o fracasso do
amor es diretamente ligado ao fracasso do projeto do Império, colocando a mulher num
papel delicado, o da realização e destruição das imagens afetivas das personagens:
Nenhuma das figuras da extensa galeria feminina do romance corresponde a homologação
entre desejo e comunicação satisfeita, conforme já observamos em excertos que o abonam
parcialmente; todas elas, em contrapartida, se integram numa relação buscada e questionada
entre sexo, gênero e desejo, que se lateraliza ou dispersa (em lesbianismos e travestis), dando
origem à decepção, ao medo ou à descrença.
58
As relações amorosas por elas representadas são frustrantes e o contato intersubjetivo é
emperrado numa dificuldade de comunicação que leva à solidão e à morte do erotismo. As
relações interpessoais se entrecruzam no plano dos acontecimentos e no plano das relações
amorosas; as vidas dos ex-combatentes se entrecruzamo só na convivência em guerra,
mas também no plano amoroso:
Edite, a mulher do tenente-coronel, arranja um apartamento em S. Domingos de Benfica
para ter entrevistas amorosas com o oficial de transmissões, enquanto o marido montara casa
à amante Lucília, que por sua vez o enganava com homens mais jovens. É ainda do alferes
que é apanhado por uma nova mulher, uma ginecologista anã de mau feitio, que não torna a
sua vida exactamente num paraíso. (FA, 133)
Conforme a citação acima, a traição de Odete-Dália com Olavo não é a única. As
trocas de parceiros entre os ex-combatentes só são percebidas por eles quando as
revelações vão sendo feitas ao longo do jantar de reencontro, após os dez anos que se
passaram. O caráter de coincidência desses entrecruzamentos amorosos se desfaz se
levarmos em conta as múltiplas faces do sujeito pós-moderno que Lobo Antunes quer nos
mostrar.
57
SEIXO, Maria Alzira. Os Romances de Antonio Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002.
p.134.
58
ibidem, p.137.
77
Edite é descrita como “a nuvem de perfume” revelando o seu caráter sedutor e/ou
superficial. No final ela decide fazer as malas e diz ao marido que vai ao encontro de uma
amiga que, na verdade, é o oficial; o tenente-coronel escarnece porque sabe que ele es
morto.
A primeira esposa do tenente morre na véspera do retorno dele e ele culpa-se de tê-la
abandonado para ir a guerra, fato este que o faz reconsiderar tudo o que poderia ter vivido
com ela e questionar a validade de seu esforço patriótico e o modo como a tratava. Ele
enxerga a morte da esposa como conseqüência da sua ida para a guerra:
Porque camandro não te mandei ir ter comigo, não te arranjei um sítio sossegado na
vilória mais próxima para te visitar nos períodos de licença, podíamos estar juntos,
conversar, fazer amor, sentir a tua língua lamber-me os cabelos do peito no remoinho do
orgasmo, o torso estendido como um arco a fim de receber, inteiro, as chicotadas do meu
sangue, comer os teus jantares eternamente insossos, aboborar-me contigo na varanda, de
calções, a respirar a noite. (...) Matei-a, o odor da pólvora picava-lhe o nariz, Matei-a
com a minha quase ausência de notícias, o meu desinteresse, a minha frieza. (FA, 35)
Os olhos do preto, percebe, não me acusavam, não me condenavam (disse-me ele a quebrar
novo palito na toalha), era eu que me acusava e condenava, me destruía sem remédio.
(FA, 37)
Se eu estivesse aqui não morrias, pegava-te no pulso e não te deixava morrer,
explicava-te que preciso de ti, que a casa aumenta desmesuradamente, que não consigo
respirar sozinho, trago, uma coisa nas costelas, um torno, uma chave que aperta, um
desconforto, uma agonia, um mal-estar sem nome, amanhã mudo-me para o quartel sem
desfazer as malas (...) Imaginou a mulher no hospital do cancro idêntica às doentes que vira
algumas horas antes, a mesma exaustão, a mesma palidez, a mesma desistência, que caralho,
da morte, o gim faz-me azia, enjoa-me, dá-me ganas de mandar as tripas pela goela. (...)
Morrer na véspera da minha chegada é pelo menos de mau gosto odeio-te. (FA, 38)
E é através dessa morte que a menção aos hospitais de Portugal é feita, revelando a
falta de organização e estrutura destes na época:
Havia muitos doentes na entrada da consulta, silenciosos e ovinos, à espera que uma porta
se abrisse e lhes chamassem o nome, os observassem, os apalpassem, os medicassem, os
aconselhassem, os mandassem embora de receita na mão: Volte para o mês que vem, ou no
outro, ou no outro, ou no outro, tenha paciência, pode ser que haja vaga nessa altura. Sujeitos
em bancos compridos, papéis, pontas de cigarros e cascas de tangerina pelo chão, a cinza de
uma claridade granulosa a turvar as caras de viés, e uma mulher de bata a varrer o lixo, por
entre mil pernas, para um recipiente de madeira. A chupeta de um bebê de colo caiu nos
azulejos imundos e a mãe tornou a enfiar-lhe, expeditiva, na boca que se escancarava para
um berreiro tremendo. O homem amarelento ao seu lado, tão magro que se diria de arame,
lia o jornal vincando cuidadosamente as páginas com a unha do polegar: a derradeira
78
paragem, o último apeadeiro, o fim da linha: os tipos das agências funerárias devem ancorar
aqui diariamente a deitar contas ao negócio, a fazer balanços, a calcular o número de
caixões. (FA, 30)
Pensou Deve ser engano de certeza, nunca nenhuma secretaria funcionou bem em Portugal,
trocam os nomes, trocam as datas, trocam as vidas, trocam os filhos nas maternidades,
quanto mais. Qual é o serviço? perguntou ele. Não há serviço nenhum, respondeu
preguiçosamente o diabético, entrou hoje uma doente para o lugar da finada. A minha
mulher estava a melhorar, recebi carta dela há poucos dias. (FA, 33)
Após a morte de sua mulher ele se entrega ao álcool, conversa com ela em seu estado
de bebedeira, culpando-se por não ter estado perto dela e recebe o apoio de seu genro e sua
filha (Maria João):
O genro, a soprar-lhe na orelha o bafo do tabaco americano, enxugou-lhe a cara e os
objetos foram-se tornando progressivamente nítidos. O tenente-coronel mirou no espelho,
surpreendido, as feições desarrumadas. Passei a idade das orgias de miúdo, pensou, o tempo
de afogar as dores da alma no primeiro gargalo que aparece. (FA, 48)
Ele sente um enorme vazio na casa em que vive, no entanto, a imagem da mulher
morta em todo lugar é obsediante e leva um bom tempo até que essa imagem seja desfeita:
Arranjava trabalho até às tantas para evitar deitar-me, contou o tenente-coronel
extraindo novo palito da caixa e principiando a quebrá-lo meticulosamente em pedaços
exatamente iguais aos anteriores. Ou então lia os jornais sem ver as letras, com as linhas a
dançarem e a misturarem-se numa confusão do caneco, ou passeava na parada, aos pontapés
às pedras, a escutar, distorcidas pela distância e os mil ecos da noite, as gargalhadas e as
conversas dos oficiais na messe iluminada. Mas se ia para a cama e apagava o candeeiro ela
surgia à minha frente, morta, amarela e magra como uma vela de enterro, a culpar-me de a
abandonar sem motivo, de a deixar agonizar no hospital do cancro, de não obrigar, de pistola
em punho, o colega do liceu a salvá-la. (FA, 73)
— O fato é que a pouco e pouco, disse o tenente-coronel chicoteando com o guardanapo
uma mosca invisível, me acostumei à sua ausência: cessei de a ver por toda a parte nos
compartimentos da casa, deixei de esperar a sua careta submissa, na sala, quando entrava,
acabei por guardar os retratos numa gaveta do escritório. Tornei a casar-me uns anos depois
e reparei no outro dia que as fotografias desapareceram: a minha atual mulher não consegue
achar muita graça ao meu passado. (FA, 56)
A porteira, segundo seu relato, apresenta-se como o retrato de toda sujeira física que
se pode encontrar num ser humano. Em todas as vezes que o tenente coronel a descreve é
como se tivesse nojo dela. Quando ele começa a se interessar por ela, se pergunta se ainda
é capaz de ter relações sexuais com alguém, pensa estar impotente após o trauma da morte
79
da mulher. Ela aparece para reacender sua chama sexual, apesar de depois despertar sua
rejeição e ele a mantém como amante antes de se envolver com a figura sedutora de Edite:
— Espero ao menos que conheçam bem o que andam a tramar, afirmou sem convicção
nenhuma à medida que se deitava sobre a mulher-a-dias, pensando Deus queira que desta
vez consiga, Deus queira que desta vez seja capaz. Os ponteiros luminosos do despertador
esbracejavam, o retrato da mulher, perto dele, encorajava-o, muito séria, sob o penteado
armado. (FA, 144)
O andar (elucidou-me ele depois) cessara de ser o andar que conhecia, o silêncio, a ordem,
a ausência de pó, de exaltação, de movimento, e excitou-o a curiosidade de presumir o que
poderia ter sido o seu longo tempo de casado, se no lugar da morta uma criatura diferente
habitasse com ele o prediozito da Graça num rebuliço barulhento, excitou-o calcular a
que ponto a sua vida se modificaria, se tornaria feliz ou infeliz se a cama do quarto
uivasse jubilosos gritos de batalha em vez do morno recato habitual, em que os corpos se
aproximavam, castos, de lâmpada apagada, tateando-se a medo para coitos imóveis de
borboletas. (FA, 90)
O tenente-coronel cirandou um pedaço no apartamento, atemorizado, perdido, tentando
despertar o mínimo barulho possível (mas as tábuas rangiam, mas as solas rangiam, mas as
articulações se calhar rangiam, e a sua respiração de súbito a ferver, rangia, ocupando por
inteiro o espaço do andar), enquanto a porteira, de joelhos, nua por baixo do vestido,
esfregava os azulejos, a sereia dos bombeiros desenrolava o seu apelo, calava-se, tornava a
tocar, Onde será o fogo? perguntou a mulher em voz alta levantando a cabeça para ele, os
peitos subiam e baixavam, inchados, sob a roupa, Ainda serei capaz, interrogou-se o
tenente coronel, ainda conseguirei? Os olhos mediam-no a desafiá-lo, a sereia afogava as
palavras e os gestos no seu uivo espiralado, as cadeiras estremeciam, os armários
estremeciam, as fotografias estremeciam nas molduras, as mesinhas-de-cabeceira
estremeciam, a própria cama estremecia e nós estremecíamos ambos, disse-me ele,
desajeitados, confusos, (...) Vou morrer, pensou o tenente-coronel em pânico, uma mola
qualquer vai-se quebrar em mim, fechou as pálpebras e a esposa e a porteira
sobrepunham-se numa única imagem vacilante, a sereia curvou-se em torno de si
mesma(...) (FA, 92)
A porteira remexe-se, incomodada, ao meu lado, conversando ainda com os esquisitos
animais fantásticos dos sonhos, protesta, debate-se, o mau hálito aumenta, o perfume azedo
dos sovacos ocupa o quarto inteiro, à Iaia de um par de texugos gêmeos fedendo em
uníssono relentos de jazigo, e logo o candeeiro da mesa-de-cabeceira aceso aos apalpões,
claridade súbita que estilhaça os objetos e rebenta os miolos, e depois o compartimento a
reconstituir-se devagar, penosamente, roupa no tapete, caixilhos, um pedaço de estuque
lascado junto ao teto, o carrapito da mulher a emergir, povoado de ganchos, dos lençóis, as
míopes pálpebras estremunhadas, a careta contrariada do costume. (FA, 208)
A figura da porteira é repugnante, porém, é o retrato perfeito de todas as concessões
que uma pessoa se permite fazer para fugir da solidão e preencher a necessidade de ter
80
alguém. Em alguns momentos ele fica em dúvida se deve ou não se casar com ela, mas a
abandona. Ela, após ser abandonada por ele, mantém relações com Abílio:
Tenho de me ir embora, riqueza, e eu sem entender se a detestava ou se gostava dela, se
a estimava de fato ou necessitava somente de uma companhia qualquer,o importava
qual, uma mulher, um gato siamês, um cachorro, um periquito, algo de vivo e quente e
móvel que o fizesse sentir-se vivo também, a odiá-la e a querê-la enquanto a beijava à
despedida, encolhido nos cobertores como um bicho (Tenho de mandar-te sem falta ao
dentista esta semana, tenho de pedir-lhe que te limpe os dentes) e a fitá-la desconcertado
comigo mesmo enquanto chinelavas quarto fora para o patamar e abotoar a camisa, a enfiar o
casaco de malha, a apalpar os ganchos, a transportar consigo aquela repugnante soma de
odores, a porta da rua bateu e o eco, rombo, ficou soando muito tempo pelas salas desertas, o
tenente-coronel colocou o soporífero na língua, engoliu-o sem água e sentiu a pastilha
descer-lhe, a hesitar, pela garganta, apagou o candeeiro e permaneceu muito tempo quieto,
de olhos abertos como um cachorro acossado, atento à suave e enervante textura do
silêncio... (FA, 208-209)
Ao contrário da porteira, Edite é uma mulher perfumada e que o realiza sexualmente,
porém, ela o trai, configurando assim mais uma relação amorosa que não o satisfaz
plenamente: “Edite é - Juro-lhe que foi lindamente, querido, sossegou-o a nuvem de
perfume, estendida de costas nos lençóis como um bacalhau naufragado, a acariciar-lhe a
pila molhada e morta com a mão. Pela minha saúde se tive tanto prazer com alguém, já
.” (FA, 386)
O tenente-coronel também revela que Edite não valoriza seu passado de guerra, talvez
porque ele mesmo não o valorizasse. A essas alturas ele já está na reserva e se sente muito
decepcionado com o período pós-revolucionário e com o tratamento que recebe quando sai
do quartel:
(...) não fosse por completo fascista. Porque continuava a acreditar, meu capitão, porque
continuei a acreditar, palavra de honra, durante uns anos mais, e agora, que não creio em
nada, a que é que um tipo se segura? (FA, 94)
o os anos que passam, perguntou o tenente-coronel ao homem das rugas e das patilhas
grisalhas, que o fitavam numa careta indecifrável e hostil, ou nós nos aproximamos,
independentes do tempo, de uma cama qualquer numa clínica qualquer, da nebulosa de
dor que antecede o tranqüilo vazio completo da morte? (...) como tu morreste entre
moribundos e esverdeadas caveiras de judeus, como os oficiais e os soldados morriam na
guerra, quando a poeira e os estampidos e o odor da pólvora se dissolviam e se topavam os
corpos ainda na cabina dos carros ou ao acaso no capim, ameaçadoramente quietos, gritando
sem som ou protestando sem palavras, como nós morremos aqui, nosso capitão, neste
81
restaurante de bairro, instalados a uma mesa interminável cheia de côdeas e de copos, a
embebedar-nos da aguardente barata do nosso próprio velório. (FA, 89)
A reserva, disse o tenente-coronel a empurrar para longe de si, com uma palmada,
o garrafão vazio, é exatamente a mesma coisa que estar morto. Acordava às cinco ou seis
da manhã, instantaneamente, sem sono, sem cansaço, como se fossem duas ou três da tarde e
nunca se tivesse deitado, apercebia-se de uma forma imprecisa dos contornos do quarto, do
volume da nuvem de perfume a ressonar ao seu lado, das mesinhas-de-cabeceira, da cômoda,
do silêncio de suor da noite, as linhas paralelas dos estores embaciavam-se de uma claridade
gordurosa, no grande espelho oval com retratos entalados na moldura navegavam os barcos
minuciosos da insônia, sonhos. (...) O que farei eu hoje?, e logo, dentro dele, Em que é
que ocupo o dia?, horas e horas ocas, intermináveis, fazer a barba no barbeiro, ler o
jornal, almoçar um peixe desconsolado por aí, ver as montras da Avenida de Roma ou da
Baixa, ir ao cinema, voltar para casa. (FA, 551)
Quando ele ainda era um militar idealista, ouvia os relatos desiludidos dos mais
velhos:
O capitão Mendes avançou uns passos pela alcatifa fora e permaneceu à espera: Eu há
quinze, vinte anos, pensou o tenente-coronel, eu idealista e imbecil com algumas esperanças
ainda: descansa que perdes as ilusões num instante, meu pateta, descansa que depressa
te transformas num cagalhão defunto como eu. Levantou-se e antes de se dirigir à janela
exibiu ao outro um maço de folhas policopiadas, numa estreita letrinha conspirativa eriçada
de emendas: (FA, 142)
Maria Alzira Seixo remete-se a este fato, quando mostra a perda do idealismo dele e
desejo de reformar-se num posto de comando que lhe agradasse. E ela ainda acrescenta a
questão da bebedeira no bar colocando em suspenso as “verdades” que eles contam da vida
presente e da passada:
(...) (<<tanto me fazia quem estivesse no poder desde que me promovessem na devida
altura, me atribuíssem lugares que me não desagradassem, me garantissem a reforma>>,
afirma a dado ponto o tenente-coronel); esta polarização, porém, dissolve-se na dispersão e
frivolidade da conversa convivial do jantar, além do mais acentuada pela etilização geral,
que relativamente a desacredita.
59
Embora a narrativa dos ex-combatentes sobre as mulheres seja deceptiva, em alguns
casos, no retorno da guerra, a figura feminina aparece acolhendo os ex-combatentes. Assim
como Maria João cuida das bebedeiras do pai, a porteira preenche o vazio da morte de sua
mulher, Esmeralda e a madrinha recebem o oficial com afeto, e Inês recebe o alferes de
59
SEIXO, Maria Alzira. Os Romances de Antonio Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
2002.p.140.
82
maneira carinhosa. Por caminhos diversos, elas são coadjuvantes no regresso, mas não
conseguem aliviar a dor deles não serem mais os mesmos.
Na terceira parte do livro, “Após a Revolução”, são os comportamentos femininos que
contribuem para a desorientação total deles:
Este colectivo dá lugar à expressões de mulheres desejantes que se tornam indesejáveis (e
cuja travessia do corpo, por parte do homem, é dada em pormenor, quer em acção ¡ como
no caso do alferes com Inês; quer em cobiça ou fantasia ¡ como no acaso do oficial de
transmissões com Dália e do soldado com Odete; quer em oferenda ¡ como no caso de
Edite ao tenente-coronel), por diversificarem o seu gênero sexual (Inês), cultural (Odete-
Dália), social (Edite) ¡ cuja diversificação implica, em contrapartida, as manifestações
heterossexuais do soldado Abílio, assim como o recolhimento abstracto e quase autista do
oficial de transmissões (o tal que vive junto aos disfarces e deformações das figuras da Feira
Popular, como a Ciganita Dora, familiar do soldado). Mulher, história e narração são, pois,
componentes de uma mesma guerra subjectiva: a de um narrador que se debate com lugares
que o sistema colonial lhe impõe, com desejos a que o sistema colonial o força, com uma
escrita que se embaraça nas teias de uma memória múltipla, inquieta e confusa. Daí que a
questão da identidade, uma vez mais, se articule com a fixação aos pássaros.
60
O alferes, assim que retorna, além de não conseguir se readaptar ao espaço português,
já nem sabe mais por qual motivo se casou com Inês antes de ir para África. Esquece-se do
encantamento que teve por ela e de que finalmente tomou a decisão de casar-se porque ela
engravidou de sua filha Mariana. Tenta resgatar, na memória falha de sua vida anterior, o
que o aproximou de Inês, seus passeios da época de namorados e o encantamento que
sentiam um pelo outro, mas logo vê que tudo em sua vida perdeu o sentido:
Se calhar tínhamo-nos desabituado um do outro, meu capitão:o nos víamos há
meses, funcionávamos como dois estranhos, perdêramos o hábito da vida em comum,
deixáramos por completo de nos conhecer. (FA, 111
)
Que existe de comum entre nós dois, pensou ele, por que raio de idéia nos casamos?
Íamos ao cinema em grupo, íamos às festas em grupo, íamos jantar fora em grupo, íamos
jogar tênis em grupo, fazíamos ski aquático em grupo, eu faltava pontualmente às aulas do
primeiro ano de Economias, tu não punhas os pés na lição de balé da professora húngara nem
no curso de francês da Alliance, agradavam-me os teus modos patetas, a maneira
esparvoada de te rires, de encolher os ombros, de dançar, o teu entusiasmo um pouco
tonto, sem fito, a tua forma de chilrear vulgaridades simpáticas, agradava-me o luxo da
60
SEIXO, Maria Alzira. Os Romances de Antonio Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002.
p.134.
83
vivenda dos teus pais, os móveis, os quadros, as casquinhas, a irrepreensível profusão
de cridas trotando para aqui e para ali numa obstinação de formigueiro. Um sábado
ficamos por acaso ao lado um do outro no Cinema Condes (No Condes?, exclamou o
soldado, surpreendido, eu imaginava que os meninos bem freqüentassem o Tivoli), uma fita
chatíssima passada na Idade Média, com fulanos de barbas a discursarem interminavelmente,
não conseguimos bilhetes para o São Luís e a platéia tresandava a perfume reles, a meias de
náilon e a suor, uma planície de pedras redondas e escuras de cabeças desdobrava-se-lhes à
frente até ao gigantesco retângulo colorido do écran. A Inês agitava-se na cadeira,
aborrecidíssima, o vestido gemia a cada gesto, e era como se eu lhe sentisse no fundo dos
testículos, meu capitão, todos os poros do corpo, todos os centímetros da pele, o atrito suave
da roupa, nas coxas, uma de encontro à outra: apetecia-me chegar-me a ti, apetecia-me dar-te
a mão, e de súbito, sem eu esperar, quando na tela se iniciava uma delirante batalha de
espadas de lata, o teu joelho encostou-se com força às minhas calças e eu quedei-me
absolutamente imóvel, incrédulo, maravilhado, a pensar Foi por acaso, não pode ter sido de
propósito, é mentira, na esperança, sabe como é, de que aquilo durasse para sempre.
(FA, 113)
Desaparecera por inteiro o encantamento de outrora, meu capitão, o entusiasmo de
outrora, a febre de outrora, a inextinguível vontade de a abraçar, de a beijar, de lhe afagar os
seios, de outrora: um leve aborrecimento, uma maçada, um ritual que se esvaziava cada vez
mais de significado, de sentido. (FA,116)
Logo que retorna, ele tem com Inês vários momentos de relações sexuais carregadas
de erotismo, porém, nessas momentos, a memória de África sempre atravessa seus
pensamentos:
Uma tontura, uma vertigem, a tensão alta ou baixa, a emoção do regresso, nada de
importante, já passa. O cheiro a vomitado agoniava-o, as pernas procuravam em vão
equilibrar-se, coxeavam sem destino pelo quarto (meter a cabeça debaixo da torneira e o frio
da água a escorrer na nuca, nos cabelos, no pescoço, ao longo do canal das costas), os
azulejos elevavam-se e desciam como as vagas na praia, o reflexo da lâmpada do lavatório
picava-lhe nas pálpebras mil agulhas leitosas. A mulher retirou o pênis do alferes do interior
da vagina e principiou a acariciá-lo à medida que a língua lhe excitava os mamilos, se
demorava no peito, deslizava ventre fora no sentido do púbis. (FA, 47)
O corpo do alferes sacudiu-se três ou quatro vezes em curtos impulsos decrescentes, e
aterrou nos lençóis como um motor avariado ou um náufrago na praia: a Inês, acocorada
sobre a sua barriga numa postura de feto, continuava a sugá-lo, de bochechas côncavas,
tocando-lhe o períneo com a ponta dos dedos, e o desejo começava de novo a subir,
devagarinho, dentro dele, transformando o sangue numa espuma de bolhas exaltadas.
(FA, 48)
Nessas relações sexuais, Jorge resgata na memória o momento em que ele tirou a
virgindade de Inês no meio do jardim, a atração sexual que sentia por ela e a promessa de
casar-se com ela:
84
O alferes beijou-lhe os joelhos, as coxas, o umbigo, pousou a cabeça no peito, junto à raiz
do pescoço, e fechou os olhos: Acabei de conhecer-te, corremos de mão dada na praia, sigo
para a tropa em abril. Ouve as ondas estalarem no paredão, gargalhadas, gritos, os ganidos
breves, rápidos, instantâneos, dos pássaros, a luta para te subir a saia no pinhal, te
desembaraçar das cuecas, a caruma e os troncos pequenos magoavam-me as pernas, os
cotovelos, as costelas, por dentro da camisa viajavam-me formigas, o sutiã rasgou-se (Olha
para isto olha para isto olha para isto e agora?), mordia-lhe as orelhas, o cabelo, a curva
trêmula dos ombros (Bruto besta pára não quero mais larga-me) e a manchinha de sangue na
terra, as tuas lágrimas, eu de mãos nos bolsos, aflitíssimo, apoiado a um eucalipto (A sério
que te amo caso contigo não chores) e tu de borco no chão, de pernas ainda abertas,
soluçando. (FA, 57)
Quando Jorge conta a estória de seu casamento para os amigos de batalhão durante o
jantar, eles escarnecem e dizem que ele se rendeu ao dinheiro da família de Inês, mas
segundo os relatos dele, esse motivo é remoto. Ele reconhece que para a família dela, ele é
um ser transparente, eles o esnobam e ele não sabe lidar com o luxo e com os bons modos
da família. E mesmo sendo rejeitado, ele continua com ela:
Foi mais ou menos um ano depois que o alferes o conheceu, que entrou pela primeira vez,
sem lugar para o corpo e para as mãos, na casa de Carcavelos, amedrontado logo à entrada
pela quantidade de automóveis no pátio, pelo tamanho do jardim, pela água da piscina onde
se apagavam e se acendiam cardumes de reflexos, pelos painéis de azulejos da fachada,
cobertos de madeixas de glicínias, pelo enjoativo odor remotamente agradável do
dinheiro. (FA,118)
A questão da ambivalência ressurge quando Jorge questiona a sua subjetividade
anterior à guerra e sua vida com Inês. Ele se sente incapaz de determinar quem realmente é
e por isso, torna-se impossível optar por uma ação alternativa. Embora ele se questione, o
alferes coloca-se na posição de vítima em relação ao desprezo da família de Inês e da
forma autoritária com que ela o tratava, mas nunca tentou modificar nada, sua atitude era
nula e muda.
A memória do tempo passado quando tirou a virgindade de Inês e o pedido de
casamento à sogra que neste dado momento o tratou com total desprezo, se entrelaça com a
perda da virgindade da menina africana que ele comprou do tio por dois contos de réis e
violentou:
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— Um conto pela minha sobrinha virgem, nosso alferes? (...) — Saiu de raça pequena,
nosso alferes, mas fez dez, garantiu ele. Veio-lhe o primeiro sangue o mês passado. (FA, 62)
Quietinho, pára com isso, o quero, pedia ela de olhos fechados, afastando-lhe os
braços com os pulsos estendidos de cega. Arranco-te as cuecas, pensou o alferes a quem a
própria ereção dificultava os movimentos, arranco-te as cuecas e consigo. Olhou a Inês
ansiando, perdido, por um auxílio que não vinha, assoou-se, voltou a tossir, e dissolveu-se na
contemplação aflita dos sapatos (...) Penetrou a garota agarrada à boneca, vencendo
furiosamente uma resistência de mucosas, e sentiu que o corpo se lhe amolecia, quase de
seguida, como o dos insetos libertando a umidade das asas das crisálidas esbranquiçadas.
(FA, 64-65)
A descrição da negra virgem comprada pelo Alferes em África é a expreso mais
pura da dor de tantas negras que foram violentadas e obrigadas a manter relações sexuais
com os brancos que lá estavam. A jovem negrinha batia em sua barriga com a própria
boneca para abortar os filhos que esperava dele, portanto, retribuía com violência o que lhe
faziam. Ela o odiava e sempre estava agarrada à boneca quando ele a violentava.
Em uma das vezes que estava grávida, ela não conseguiu fazer perder o bebê e ele
assume que tem um filho em África de mais ou menos dez anos. A violência contra essa
menina é mais uma face da perversão sexual presente em Fado Alexandrino:
— Fiquei com ela que tempos, explicou o alferes a acender um dos charutos que o segundo-
comandante, embrulhado numa nuvem gordurosa de fumo, ia distribuindo ao comprido da
mesa. Engravidou, abortou, tornou a engravidar, de modo que pelas minhas contas,
meu capitão, tenho um bastardo de nove anos em Moçambique. (FA, 71)
Nunca falou comigo, meu capitão, disse o alferes, nunca consegui puxar-lhe uma
palavra. Agarrava-se à boneca o tempo inteiro, a observar as paredes de barro, os postigos, o
teto, na indiferença do costume, como se eu fosse transparente, percebe, como se eu
estivesse morto, como se eu não existisse. De início julguei que era doente, atrasada mental,
idiota, uma coisa qualquer desse estilo, depois lembrei-me que os pretos detestam o cheiro
dos brancos e que devia ser isso, repugnância, nojo, mal-estar, e só passados meses e
meses entendi. (FA, 72-73)
A gaja odiava-me, meu capitão, sussurrou o alferes. De uma das gravidezes cacei-a a
malhar com a boneca de pau na barriga para abortar de propósito. Recusava-se a parir um
filho meu, filho de portuga, filho de branco: que culpa tinha eu da guerra, conte lá? E o
catequista, sempre tão amável, tão simpático, tão subserviente, a dissolver-se em vênias,
odiava-me também, só a boca dele é que sorria, os olhos, senhor, mantinham-se azedos e
hostis. Um fulano a tratá-los bem, a oferecer-lhes álcool, e eles em troca capazes de nos
envenenarem o almoço, toda a gente sabe que os pretos são uns malandros do diabo.
(FA, 74)
86
As memórias entrelaçadas o fazem sofrer, e Jorge não consegue livrar-se delas.
Quando ele questiona o motivo pelo qual a menina africana não queria um filho dele,
talvez não perceba ou não queira perceber que ela sua atitude era uma forma de rejeição e
de resistência ao colonizador. E, provavelmente, também não entendia ainda os motivos
sórdidos que levaram o próprio tio dela a vendê-la para ele.
Com a mesma frieza que ele a violentava em África, ele veio embora para Portugal e a
abandonou com o filho lá; e o mesmo ele fez em Portugal com Ilda, sua colega de banco.
Ele não a violentou, mas teve um caso com ela e quando soube da gravidez a abandonou.
No período da Revolução, quando a família de Inês decide fugir para o Brasil, Jorge teria a
opção de ficar e livrar-se do casamento que ele dizia falido:
O que me teria acontecido, meu capitão, perguntou o alferes ao vidro do cálice, no qual
teimavam em borbulhar vagos pontinhos amarelos, se eu nessa altura me separasse da Inês e
me casasse com a Ilda, se alugássemos um apartamento de duas assoalhadas na Damaia, com
marquise, polibã, poucos móveis, sofás precários, reproduções de má qualidade nas paredes,
o que me teria acontecido, entende, se eu voltasse a ser o que de fato fora, o que de fato
continuava secretamente sendo? Mas nunca pude ter certeza de que gostava de mim
por mim, está a ver? (FA, 246)
No entanto, a descrição de seu relacionamento com Ilda é igualmente decepcionante.
Ela não revela ser para ele uma mulher atraente e, apesar das promessas de ficar com ela, o
envolvimento dos dois parece ser apenas mais uma fuga à solidão que ele sente. A
incerteza de seus sentimentos e a dúvida quanto à permanência ou não de Inês em sua vida,
confirmam mais uma vez a contradição e a ambivalência desse ex-combatente:
A sério que nos vamos ver mais vezes, Ilda, a sério que sinto a tua falta, Ilda, a sério que
passaremos fins de semana fora, e os olhinhos incrédulos dela, os olhinhos desconfiados
dela, os olhinhos que cediam, que consentiam, que se entusiasmavam, dela, estender o meu
corpo sobre o teu, magoar-me nas inesperadas esquinas, nos inesperados nódulos dos teus
ossos, entrar em ti com a cega pressa de um membro numa manga sem fim (...) (FA, 244)
O álcool cai-lhes na fraqueza é o que é, as mulheres são tão diferentes da gente, que
esquisito, a Ilda, apoiada no cotovelo, beijava-me os testículos, o ânus, as pregas moles das
coxas, e a sombra enorme dela ocupava o teto, deslizava nas paredes, explorava-me o
umbigo com a língua, prenderam o Álvaro, prenderam o Né, prenderam o Duarte, gostava
de fazer amor contigo se gostasse de ti, se usasses um perfume de melhor qualidade, se
87
fosses, caraças, menos feia, se o teu corrimento não cheirasse a lulas podres de conserva, os
tios e os irmãos da Inês, de fundas rugas verticais na testa, penduravam-se ao telefone,
perguntavam, ouviam, respondiam, gritavam para a sala informações tenebrosas, os
empregados do banco não consentiam a entrada aos diretores, a tropa inundara as
dependências, tipos carrancudíssimos remexiam nas gavetas, vasculhavam papéis. (FA, 242)
Por um instante, parece que ele vai ter um momento de lucidez, e cogita a idéia de
abandonar sua vida sem sentido e ficar com Ilda. Contudo, decide seguir com a família de
Inês. Mais uma vez Jorge rende-se ao bem-estar dos burgueses, já que ele sabia que
ficando com Ilda teria a vida de pobre de antes. Após cinco anos, ele retorna a Portugal e
tenta achar Ilda, porém não a encontra e, a culpa pelo abandono o atormenta em sonhos.
Talvez, não só o abandono a Ilda e ao filho que ela esperava, mas também ao filho de
África e a falta de Mariana, sua filha com Inês:
E logo a seguir a revolução, a minha ida, à pressa, para o Brasil, na enxurrada da família da
Inês, e quando regressou, cinco anos depois, tentou procurá-la e na seção de pessoal
informaram-na que Fulana Assim-Assim deixara de trabalhar no banco, a casa comprou-a
um engenheiro agrônomo muito prestável e cheio de boa vontade mas que ignorava por
completo a direção da locatária anterior, não se atreveu a entrar na seção e a abordar alguma
amiga da Ilda, se é que por acaso sobravam uma ou duas, que o ajudasse, de maneira que não
só não a tornou a ver como nada soube do filho ou da filha que ela trazia na barriga, se
nascera, se não nascera, se se parecia comigo, e não há semana que não sonhe com uma
criança, de chupeta. (FA, 183)
Ele se sente culpado pelo fato de a filha ter “perdido a virgindade”, após a separação
dos pais, e, culpa-se, pensando que o que a fez agir dessa maneira foi a sua ausência. Logo
após a separação, Inês não o deixa ver a menina porque sente raiva dele por ele ter contado
à família dela sobre seu lesbianismo. Ela diz que vai deixá-lo ver Mariana, mas quando
tenta telefonar ou vê-la ninguém o atende, ele é rejeitado da mesma maneira com que
rejeitou seus outros dois filhos. Mariana engravida do namorado e só o procura para pedir
dinheiro para o aborto. Então, Jorge questiona como seriam as coisas se não tivesse se
divorciado de Inês:
Engravidei aqui do Hélder, preciso de dez contos para o aborto, e eu a olhar para ela, sem
resposta. Isto aos catorze anos, veja lá. (FA, 120)
88
Nunca mais lhes pus a vista em cima, sei da Mariana por aqui e por ali. Nem sequer me
informaram, meu capitão, se chegou a nascer, se é rapaz, se é rapariga, o peso, a saúde, o
cabelo, ninharias assim. Talvez que se me não divorciasse tudo fosse diferente para ela,
continuasse a estudar, lavasse os dentes, fosse ainda virgem, que caralho. (FA, 121)
O comportamento de Mariana é mais um fator para atormentá-lo e aumentar-lhe o
vazio existencial. Após esses acontecimentos, Jorge fica em total solidão, vivendo na
decrepitude de seu apartamento. É nessa época que se envolve com a figura grotesca da
ginecologista anã que atormenta mais ainda sua vida. Jorge é o mais perfeito símbolo de
auto-destruição de Fado Alexandrino, o mal-estar que ele sente é incurável e ele a cada dia
parece procurar mais derrotas para si. A descrição da solidão e da ausência em seu
apartamento revelam o estado de espírito em que se encontra:
Cheirava a madeiras e a cordas podres, a peixe em decomposição, a água choca, a relentos
confusos, e os halos ovais dos candeeiros descobriam poças de chuva, lama, detritos,
vagabundos de bruços em cima de sacos e de fardos: tenho de arranjar outra mulher-a-
dias para me limpar o porto, me varrer os bêbedos, os armazéns, as docas, os guindastes,
outra mulher-a-dias que me cosa capazmente a noite, impedindo a luz da manhã de penetrar
por um rasgão de sombras, impedindo que eu me veja nos espelhos com a cruel
impiedade do sol a entrar pela janela, impedindo que os meus movimentos se tornem
brancos, desajeitados e diurnos como os dos anjos de gesso dos cemitérios de província,
conversando inutilmente com um inacessível céu alheado, impedindo que se me cavem na
cara as rugas da desistência e do cansaço, as fundas pregas dos quarenta anos marcadas no
pescoço, os vincos melancólicos dos ângulos da boca. (FA, 393)
Nunca mais vi a Inês, meu capitão, nunca mais soube nada dela flutuamos numa espessura
de água, corredor fora, até ao quarto defunto, pintado de branco, da Mariana, voltado
para os holofotes apagados, para a fonte na sombra, para o inumerável ciciar das árvores, as
cuecas atropelam-se-me nos joelhos as meias atropelam-se-me nos pés. (Mas qual
revolução caralho, nunca há-de haver uma revolução em Portugal) tropeço no tenente-
coronel que procura, de gatas como uma criança, um gargalo gim, e acabo por me afundar,
com uma manga do casaco suspensa do pulso, no meio das bonecas de pasta, dos patos de
baquelite e dos ursos de peluche, que me examinam, sentados nas prateleiras, com as densas
e inexpressivas pupilas estúpidas de plástico. (FA, 397)
Quanto ao lesbianismo de Inês, ela percebe o casamento frustrado com o alferes e se
envolve com Ilka, a “senhora do cabelo roxo” que é amiga de sua mãe e também
pertencente à alta burguesia. Jorge não aceita essa traição e passa a sentir ódio por Inês e a
sensação de estar morto perante àquelas pessoas que o rejeitavam:
89
Não percebeu que morri?, não percebeu ainda que já deixei de existir?, porque eu
nunca estive vivo naquela casa, meu capitão, porque sempre olharam, compreende, através
de mim como se eu lhes fosse misteriosamente transparente, porque a minha única e quase
nula densidade provinha do fato acessório de ser o marido da Inês que a senhora do cabelo
roxo consolava acariciando-lhe os ombros e o pescoço, puxando-a com toda força a si,
encostando o joelho dela ao seu joelho. (FA, 311)
Minha mulher a descer o vidro, a rodar a boca na minha direção, a olhar-me como se eu
fosse um subalterno, ou um merdas qualquer, ou um criado, a avisar-me. O melhor é
vires atrás de nós para o caso de te enganares no caminho, a subir o vidro, a sorrir à puta da
amiga, a menear os ombros num trejeito coquete, o fumo do escape delas adiante de mim, o
cascalho triturado, a minha raiva, as luzes dos travões que se acendiam e apagavam, a mão
da Mariana a acenar-me rápidos adeuses infantis, Odeio-te, Inês, desejo tanto que tu
morras, ruas e ruas, vivendas quintais, o sol a pino nas árvores de março, e sempre, ao
longe, ora à esquerda ora à direita, obsessiva, intensa, cintilante, quase dourada, a presença
onipresente do mar. (FA, 314)
Após a separação de Jorge, Inês passa a viver com Ilka e mais tarde se envolve com
Maria João, a filha do tenente-coronel. Jorge não entende por que Inês o trocou por Ilka,
não compreende que a falta de amor, companheirismo e o sentido de viver que lhe
faltavam, também afetava a Inês. Ele demonstra seu espanto e sensação de derrota ao
contar para o soldado o dia em que as viu juntas:
Os corpos apertados, as madeixas roxas da velha confundidas com o cabelo castanho-claro
da Inês, dedos de unhas compridas que se entrelaçavam e se desprendiam, arrulhos,
segredos, risinhos, atritos de sais e de meias, as duas caras lambuzadas e aflitas que o
olhavam com espanto: já não estávamos na guerra, amigo, o meu emprego dependia da
família dela, se eu me separasse despediam-me e depois?, a velha engrolou à pressa uma
desculpa qualquer, a Inês engrolou à pressa uma desculpa qualquer, e eu aceitei-as como se
acreditasse nelas, percebes?, como se nada de anormal se tivesse passado, e podes achar
esquisito mas na semana seguinte esquecera-me quase completamente do assunto e até
fazíamos amor de vez em quando, aos fins de semana, num prazer silencioso e medíocre. Se
calhar iam ambas ao cinema, se calhar visitavam-se, se calhar despiam-se uma à outra, aos
suspiros, no meu quarto de dormir, se calhar beijavam-se e mordiam-se e enroscavam-se nos
meus lençóis, se calhar ofegavam como peixes na minha almofada, se calhar convidavam
mais lésbicas e dançavam e bebiam e trocavam de par, se calhar a Inês troçava de mim,
contava histórias ridículas a meu respeito, inventava, aumentava, torcia, e depois? Eu quis
voar alto demais para mim, meu lindo, era justo que pagasse as favas, era justo que lixasse
um bocado, era justo que aprendesse à minha própria custa o que de fato era: um saloio, o
filho de um antigo tipógrafo, um pateta ingênuo à deriva. E isso levei tempo a entender mas
palavra de honra que hoje sei: tu por exemplo, que te vais safando, não arranjas emprego
nas mudanças para um cretino como eu? (FA, 309)
— Se quiser uns ovos mexidos o Fernando anda por aí, ofereceu a senhora do cabelo roxo
num súbito sorriso amável que lhe abriu ao acaso, pela cara toda, fendas de prédio a desabar:
pernas murchas, seios murchos, pescoço murcho de galinha: que graças encontras tu nesta
gaja, Inês que raio de merda é que te prende a ela? (FA, 318)
90
O lesbianismo é mais uma das faces da decepção com o feminino reveladas pelos ex-
combatentes. Jorge não consegue aceitar ser “trocado” por uma mulher, não consegue
admitir a coragem de Inês, já que ele foi um covarde por todo tempo e pagou o preço pela
covardia de não ter feito escolhas melhores para si próprio. A falta de habilidade em lidar
com a contingência de sua existência o reduz a um ser humano solitário e sem rumo.
Segundo Bauman, a contingência revela-se pela falta de certeza da vida e a dificuldade em
construir laços de solidariedade:
A existência contingente significa uma existência desprovida de certeza — e uma certeza
que está faltando neste desolado sítio nosso ou difícil de desencavar por baixo do entulho das
verdades modernas é a certeza da solidariedade. O caminho que leva da tolerância à
solidariedade, como qualquer outro, é um caminho, indeterminado; é ele mesmo contingente.
E assim também o outro caminho, que leva da tolerância à indiferença e isolamento; é
igualmente contingente, portanto, igualmente plausível. O estado de tolerância é intrínseca e
inevitavelmente ambivalente (...) Viver em contingência significa viver sem uma garantia,
apenas com uma certeza provisória, pragmática, de Pirro, até ordem em contrário, e isso
inclui o efeito emancipatório da solidariedade.
61
Em meio à total derrota de relacionamentos e casamentos frustrados, aparece na
contramão o oficial de transmises. Ele não relata nenhum casamento, possui um
isolamento que segundo Maria Alzira Seixo é “quase autista”. Primeiro apaixona-se por
Dália-Odete, mas essa paio fica só no platonismo e depois envolve-se com Edite, a
mulher do tenente. Numa das conversas que tem com Dália, após ser solto da prisão de
Caxias, revela em seu pensamento o desejo de esquecimento do sofrimento que passou e a
confirmação da derrota naufragada na imagem do mar:
— Ora viva, disse a Dália ao oficial de transmissões. Caxias fez-te bem, engordaste, que
boato nojento esse de a Pide tratar mal as pessoas. (E ele fechou os olhos e lembrou-se, como
num sonho, de Caxias, de Peniche, do som de roupa esfregada do mar no escuro da noite,
embaixo, a roer a areia com os teimosos dentes moles da espuma, das luzes, muito ao fundo,
dos barcos, dos reflexos brilhantes e negros da água. Não se recordava das celas, nem dos
corredores, nem dos guardas, nem dos companheiros de cadeia, nem dos tipos ferozes dos
interrogatórios, de assassinos, inexpressivos olhinhos minúsculos de polvo, curvando-se e
batendo: recordava-se do rumor das ondas, dos gemidos das ondas, do cheiro adivinhado,
61
BAUMAN, Zygmund. Modernidade e ambivalência. RJ: Ed. Jorge Zahar, 1999.p.250.
91
mais que sentido, das ondas, dos pássaros brancos da manhã e dos pássaros castanhos da
tarde pousados nas escarpas, da forma como as nuvens se estiravam, alaranjadas, numa
preguiça de mulher que dorme, recordava-se do mar de Caxias, do mar de Peniche, de
acordar de madrugada com um gosto úmido na boca, um sabor de lona molhada, de buas
ferrugentas, de coisas de naufrágio que se lhe enrolavam, salgadas, na boca. É,
respondeu ela à Dália. (FA, 267)
Na verdade, as mulheres de importância afetiva em sua vida são Esmeralda e sua
madrinha. A madrinha o criou junto com Esmeralda, porém o fim das duas é de solidão. O
oficial visita Esmeralda apenas uma vez por ano, após interná-la em um asilo e, quando sua
madrinha era viva, comparava-a à cadela. O oficial reconhece a sua própria existência
soliria e que não haverá ninguém que lamente por ele quando sua morte acontecer:
A minha madrinha morreu em setenta e cinco, disse o oficial de transmissões, gasta de a
Pide ir lá a casa de madrugada, buscar-me para os interrogatórios, para as ameaças, para a
choça. A Esmeralda cegou depois, num lar de pobres no Combro: visito-a no Natal e ela não
fala, não ouve, não compreende, não me conhece. (FA, 41)
— Eu não tive filhos na altura certa, meu capitão, disse-me o oficial de transmissões a
binocular o rótulo descolado, e agora é tarde demais para o fazer. Há-de haver alguém,
quando eu esticar o pernil, que varra para a rua aquele lixo lá de casa. (FA, 82/83)
Ao contrário das outras mulheres que vemos através do discurso masculino, há, no
entanto, uma voz feminina em primeira pessoa que se manifesta no final do romance, a de
Esmeralda, a criada já morta do oficial de transmissões. De forma surpreendente,
Esmeralda torna-se uma voz audível após sua morte. De acordo com Maria Alzira Seixo, é
possuidora de um “discurso recalcado e enjeitado de um feminino desejante e lúcido,
oprimido e dolorido, manifestamente marginal na urdidura do romance, assim lhe dando o
sentido da existência e mesmo da morte”.
62
Esmeralda instalada numa pontinha de poltrona, a apertar o fecho de metal da carteira com
os dedos engelhados, Soube alguma coisa da senhora, menino?, A Esmeralda gostava da
gente, percebe?, passou a vida a ralar-se por mim, e agora, quando a vou visitar ao asilo, não
me ouve, não me conhece, não conversa comigo, arrota uns grunhidos indistintos,
62
SEIXO, Maria Alzira.Os Romances de Antonio Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
2002.p.119.
92
embrulhados em saliva, pelos cantos dos beiços ouço as fezes dela soltaram-se-lhe do corpo
debaixo dos lençóis(...) (FA, 439)
Esmeralda mostra ser sábia ao revelar que “o menino de sua mãe” (da reminiscência
lírica pessoana) “não morre na guerra, mas por causa dela.”. Ela desvenda o motivo real do
desenlace trágico do oficial, o assassinato e a ocultação do cadáver, já previstos pela sua
capacidade de vidência. Cumpre-se, assim, a cantilena de Fado Alexandrino. Segundo
Maria Alzira Seixo, a personagem subalterna, socialmente, detém a “consciência da
História” e sua voz se faz ouvir de forma surpreendente:
Esmeralda, a personagem discreta e segregada da história, é afinal, na medida em que o
romance a representa como vidente (que conhece o crime e as circunstâncias futuras da
morte do seu Menino ¡ um menino de sua mãe que não morre na guerra, mas por causa
dela), a própria, consciência da História (marginal, escondida e sombria), e desse modo
representa a idéia potencialmente positiva de mulher (que, até agora, em Lobo Antunes, se
confina à esposa relegada e idealizada), coincidindo, de modo muito interessante, neste
romance, com o próprio acto de assumir a narração (resultante da sua capacidade de
<<visão>> e, portanto, de perspectiva narrativa, do ponto de vista enunciativo).
63
A necessidade que Esmeralda sente de morrer, antes do oficial, revela o medo de ver o
único motivo de sua vida esvair-se. Por isso, entrega-se à imutabilidade em vida até que o
oficial a leva para o asilo:
Tenho de morrer antes dele, pensava eu, tenho de arranjar uma forma de me escapar
daqui, mas não existia a vila já, não existiam os rostos familiares da infância de modo que
me deitei na cama, na minha própria urina e nas minhas próprias fezes, e cessei de
falar e de ouvir e de responder e de ver até o Menino me transportar para este prédio, ao
pé do rio, com as suas empregadas indiferentes e a sua diretora mudamente repreensiva e
severa, onde não chega o som da sua morte nem os olhos odiosos de outrora, espiando-me
dos caniços que marginam a ribeira, à espera que eu me dispa para se despirem também e
avançarem para mim, em ceroulas, espantando as rãs e os gafanhotos e os lagartos e os
peixes miúdos, transparentes, da margem, se estenderem sem palavras ao meu lado, me
voltarem de costas como uma pedra e me penetrarem tão depressa, de um só golpe, como
uma faca num lombo, fazendo uivar o meu sangue entre os protestos dos sapos. (FA, 585)
63
SEIXO, Maria Alzira. Os romances de António Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
2002.p.139-140.
93
Esmeralda conta sua vida desgraçada ao ser estuprada pelo padrasto e, posteriormente
pelo patrão. Objeto de agressão sexual, talvez pudéssemos compará-la à África —
desejada, explorada, subjugada e penetrada pela força do “colonizador” e/ou do mais forte.
E, no entanto, de forma ambivalente, é aquela que articula “o discurso recalcado e
enjeitado de um feminino desejante”; é a que antevê o curso da História ¡ o fim do oficial
de transmissões, representante de uma utopia político-social e de uma antiutopia, marcada
pelo desencanto.
É a mulher relegada que justamente, de certa forma, comanda os dados narrativos,
compensando o pendor masculino derrotista; e reconhecemos que o acesso à fala é dado
afinal a uma mulher de manifestação textual apendicular e sem interferência diegética, a
criada Esmeralda, que no final se vem manifestar, não como uma chave narrativa essencial
(porque o carácter pós-moderno do romance enjeitaria todo o tipo de chaves narrativas com
efeitos definitivos), mas enquanto o discurso recalcado e enjeitado de um feminino desejante
e lúcido, oprimido e dolorido, manifestamente marginal na urdidura sociocultural do
romance, assim lhe dando o sentido da existência, e mesmo da morte.
64
Esmeralda viveu toda sua vida a cuidar do seu “menino”; ela conta de forma dolorosa
a trajetória de sua vida seca e subserviente e a maneira solitária com que se
masturbava:
A única mulher de marca semântica positiva no romance é a criada Esmeralda, e talvez por
duas razões: por um lado, porque é a mulher explorada e sofredora, homologada ao estatuto
do sofrimento colonial, objecto de agressões sexuais que são indiferentes à sua construção
subjectiva como instância de desejo actuante, reduzida ao funcionamento inane de um
erotismo solitário; por outro lado, porque ela constitui a única expressão narrativa em
primeira pessoa
.
65
Após o trauma do estupro, ela nunca mais teve contato sexual com outros homens:
Nunca mais possuí homem nenhum dentro de mim porque o meu corpo se fechou, e o
sinto fechado há muitos anos, cinqüenta ou sessenta, como as flores gordas à noite, porque
os lábios das pernas se cerraram num mole e teimoso egoísmo de corolas desde que o meu
padrasto me varou e perfurou e vasculhou o peito e o ventre com os dedos manchados de
espanto do meu pai e do íntimo licor da minha mãe, essa aguadilha cerosa que segrego às
vezes se me toco, para sentir na forquilha das coxas uma lombriga úmida que endurece e
oscila, pegada ao osso da bacia, até uma espécie de soluço crescer dentro de mim, um
espasmozinho rápido me contrair os músculos e a pele, os dentes se me rilhares na boca
como um garfo contra um garfo, e as vísceras se aquietarem de novo, pacificadas, num
64
SEIXO, Maria Alzira. Os romances de António Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
2002.p.138.
65
Ibidem, 118-119.
94
enorme cansaço finalmente sem ódio, desprovido de rancor, só o visco do suor nos sovacos,
nas virilhas e nas dobras dos membros, e o coração a correr muito depressa pelo tronco fora,
como um cachorro, atrás da própria cauda do seu sangue. Nunca mais possuí homem
nenhum porque me enojam a sua urgência, as suas mãos e os seus pêlos, os ossos pesados
dos cogumelos e líquenes da própria morte lá dentro, porque me enojam as suas mamas
pequenas e estéreis, secas como passas, e aqueles sacos pendurados e escuros lá embaixo,
balouçando quando andam, quase se soltando do ventre como os umbigos dos recém-
nascidos(...) (FA, 575)
No entanto, Esmeralda não aceita, passivamente, o lugar de vítima e de
subalternidade destinado a ela. Ao ser “devorada” pelo sujeito masculino e opressor,
também efetua um processo de “devoração”, pois opta por um estupro consentido para
odiar o outro mais forte do que ela. Inverte, dessa forma, as regras do jogo. Esmeralda é a
voz que se cala, na relação com o outro (o seu “menino”) para não sofrer tanto a sua
ausência e, ao mesmo tempo, é a voz que emerge no espaço ficcional.
Desnudando valores éticos, as mulheres de Fado Alexandrino constatam a necessidade
de mudança e, por vezes, subvertem comportamentos estabelecidos. Assim como mostra
Esmeralda, elas não são alienadas aos problemas sociais e revelam também a necessidade
de libertação da náusea causada por outros, ao longo da sua existência. Apesar de a figura
da mulher não estabelecer relação satisfatória entre comunicação e desejo, todas se
integram numa relação de busca entre sexo, gênero e desejo que se mistura com
lesbianismo e contato com inúmeros parceiros. Quanto aos homens, um deles estabelece
contato com “paneleiros”, “chibos” e travestis para satisfazer o desejo momentâneo do
corpo, o que termina por originar decepção, medo e descrença.
Como o ato de nomear pressupõe distinguir e individualizar, nota-se que a
intencionalidade da voz narrante é, exatamente, registrar a perda da identidade própria no
teatro mundi resultante de relações humanas desconexas e sem consistência. Os ex-
combatentes também são identificados, de forma recorrente, pela função ou posto que
95
ocupavam na hierarquia militar: tenente-coronel, soldado, oficial de transmissões, general,
capitão, alferes.
Em meio a uma enigmática diversidade de opções e possibilidades amorosas, o “eu
tem que ser construído reflexivamente, como nos aponta Gidens, em Modernidade e
Identidade. Por isso, todos os sujeitos que retornaram de África elegem a figura do capitão
como possível ouvinte e confidente de suas reflexões marcadas por processos de
reorganização de tempos e de espaços captados pela memória. A esse respeito, o sociólogo
citado concluiu que, na “modernidade alta ou tardia”, o “eu” se torna um projeto reflexivo,
sustentado por uma narrativa da identidade passível de revisões”, como já foi citado
anteriormente.
66
E, ao refletir sobre a vida social moderna, Gidens atenta para o fato de
que há “mecanismos de desencaixe que deslocam as relações sociais de seus lugares
específicos, recombinando-as através de grandes distâncias no espaço e no tempo”.
67
E
parece-nos que é exatamente isso que ocorre em Fado Alexandrino.
Os ex-combatentes relacionaram-se com as prostitutas encontradas no bar e o leitor
observa que essas, por sua vez, raramente são nomeadas no espaço textual. O narrador
refere-se a elas como “a ajudante do ilusionista”, “a loira esquetica”, “a mulata”, “a
mea”, “a deusa do strip-tease Melissa.” Entre ambos os sexos, estabelece-se uma relação
antropofágica, ratificada pela área semântica: “(...) a carne do umbigo afigurou-se-lhe
comestível, tenra, suave (...)” (FA, 588); “(...) A Inês, de costas, oferecia agora o pescoço,
o queixo, as orelhas, à avidez da amiga que a mastigava e deglutia em canibais gestos
angulosos de gafanhoto” (FA, 594).
As decepções amorosas aliadas à intolerância ao outro são características de Fado
Alexandrino que estão diretamente relacionadas à problemática pós-moderna da
66
GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Trad. Plínio Dentzien. RJ: Jorge Zahar Editor, 2002.
Orelha.
67
Ibidem, p.10.
96
convivência com as diferenças e com o mal-estar do questionamento das identidades. O
sujeito pós-moderno sente-se fragmentado e não sabe lidar com essa fragmentação, com a
infinidade de possibilidades que lhes são apresentadas a cada dia e com a sensibilidade de
aceitar a contingência. Daí o mal estar da ambivalência, porque sempre tem de optar e
nem sempre consegue.
A fala de Jorge ao soldado sobre suas decepções amorosas sintetiza a frustração
amorosa de todos e o impossível relacionamento com o feminino: “E assim começaste a
apodrecer por dentro, meu cabrão, disse o alferes, e assim começaste a agonizar sem
remédio. Deviam-nos ensinar na escola que nunca se abre uma porta fechada,
principalmente se há uma mulher do outro lado.” (FA, 259)
97
3.2 “O ASSOMBRADO VAIVÉM DAS ONDAS”: O PERCURSO DOS LEITORES
A CAPTAR A EMERGÊNCIA DAS VOZES NARRATIVAS
É preciso que se abandonem ao seu aparente desleixo, às suspensões, às longas
elipses, ao assombrado vaivém de ondas que, a pouco e pouco, os levarão ao
encontro da treva fatal indispensável ao renascimento e à renovação do
espírito. (LOBO ANTUNES)
A escrita de António Lobo Antunes é decerto peculiar. Nós, leitores, devemos
completar os espos deixados por ele em suas inúmeras suspensões, dilatações frásicas,
lacunas, repetições e perceber que tudo isso é feito com o cuidadoso planejamento prévio
do autor. Lobo Antunes reconhece que trabalha mais de dez horas por dia em seus textos e
que cada palavra é burilada como se fosse uma pedra preciosa.
O sentido do texto antuniano não é acabado e, requer a nossa ajuda em completar esses
espos. Lobo Antunes afirma que: “recebemos da vida, é um conhecimento dela que
chega demasiado tarde. Por isso não existem nas minhas obras sentidos exclusivos nem
conclusões definidas: são, somente, símbolos materiais de ilusões fantásticas, a
racionalidade truncada que é a nossa.
68
E esse é o motivo pelo qual Lobo Antunes nos
recomenda a nos embalarmos em seu “assombrado vaivém de ondas”, conforme citado na
epígrafe acima.
Portanto, não é à toa que em suas obras percebemos sempre a formação de um
caleidoscópio de espaços, tempos e falas que ele nos faz visualizar com maestria. Desde
suas primeiras obras até as últimas ele vem aprimorando as características de sua escrita,
tornando a leitura de suas obras uma experiência de descobertas e montagem de um
quebra-cabeças que nos leva para o interior das mentes dos seres humanos que delas
participam.
68
SEIXO, Maria Alzira.Os romances de António Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote. 2002.
p.526.
98
Em Fado Alexandrino não é diferente, pois a própria estrutura do romance, o discurso
narrativo e a linguagem adotada acompanham esse movimento incessante, esse
“assombrado vaivém das ondas” que nunca desfalece, através do qual a realidade de um
país, de um povo, de uma época, aos poucos se vai apossando de nós, levando-nos para o
seu interior através da estória de vida dos personagens, mostrando-nos por dentro a história
que conhecíamos, ou que pensávamos conhecer.
Lobo Antunes faz do relato pessoal uma fonte de história nacional. Através dos relatos
dos personagens temos acesso a fatos da guerra colonial. Ao mesmo tempo em que ele
trabalha com a subjetividade e a noção tradicional de História, ele subverte esses conceitos
quando não apresenta uma linearidade na narrativa e quando carnavaliza a luta dos
militantes políticos, empenhados em construir a Revolução de Abril. A pretensa seqüência
linear dos fatos históricos (o antes, o durante e o após a Revolução) é contraditória e,
apesar da divisão triádica da obra, há todo o tempo mistura de tempos e espaços. Segundo
Maria Alzira Seixo, Fado Alexandrino apresenta:
Uma descrição trabalhada que satura de informação a ilusão de real que o texto nos dá,
elidindo as banalidades de suporte comunicativo, habituais na maioria dos relatos, mas
desenvolvendo, em contra-partida, a carga metafórica das analogias semânticas, num
prolongamento da frase cheia e desdobrada que encontrávamos já nos romances anteriores,
onde a expressividade do talento dominava, e que substitui agora, de preferência, por uma
escrita simultaneamente minimalista e pletórica, espessa, mas desbravada, que confere
contornos severos de composição a excessos de sentido que em contrapartida se vão
construindo e multiplicando; 2. uma objectividade narrativa que acentua decisivamente os
contornos ficcionais de uma experiência individual enunciativa manifestamente
transcendida, se bem que constantemente convocada do ponto de vista da informação, da
sensibilidade e da experiência, e de onde ficam agora excluídos todos os recursos
dissertativos de índole subjectiva; 3. uma organização discursiva de tipo pós-moderno que
se concretiza na articulação narrativa da diversidade, construída sobre falas dispersas,
entrecruzamentos, repetições e analepses, com o correspondente saldo semântico do
aleatório e da indiferença (que substituem o sentimento de absurdo antecedente) e correlativa
desconexão da perspectiva narrativa (os dois últimos capítulos são narrados,
respectivamente, por Esmeralda, a criada velha, e já morta, do oficial de transmissões, e
pelas outras três personagens: o tenente-coronel, o alferes e o soldado, cujo o termo é dado,
nuns casos, como sendo o da morte, e, noutros, como um qualquer outro tipo de
aniquilamento terminal), num conjunto de processos que reelabora, neste caso já de uma
perspectiva ficcional e não apenas estilística, a representação da vida em anamorfose; 4. uma
consideração da figura feminina que encena o carácter problemático da relação amorosa,
99
conjugal e libidinal, numa linha que prolonga, é certo, os malogros e a ausência dos
romances anteriores, mas que faz aqui avultar, já sem elegia nem culpabilidade, o carácter
localizado e determinante da mulher como instância central do desejo e da recusa ¡ e que
dispõe das histórias, das supremacias sociais, dos legados de significação e das autonomias
de desejo, em lugares de sexo ou de gênero que são muitas vezes os próprios, e por eles
alterados ou rejeitados.
69
Lobo Antunes satura a narrativa de descrições e detalhes que nos fazem perceber, por
entre as palavras, os sentimentos, as ansiedades e as derrotas dos ex-combatentes. A
ambivalência desses indivíduos nos é transmitida pelas suas atitudes e pela carga sentica
das palavras que eles empregam no relato de suas existências falidas. É também, através
das mesmas palavras deles, que podemos nos inserir no mundo de contingência e solidão
que eles vivem. Acerca do uso das palavras, nos mostra Saussure:
Saussure argumentava que nós não somos, em nenhum sentido, os “autores” das
afirmações que fazemos ou dos significados que expressamos na língua. Nós podemos
utilizar a língua para produzir significados apenas nos posicionando no interior das regras da
língua e dos sistemas de significado de nossa cultura. A língua é um sistema social e não um
sistema individual. Ela preexiste a nós. Não podemos, em qualquer sentido simples, ser seus
autores. Falar uma língua não significa apenas expressar nossos pensamentos mais interiores
e originais; significa também ativar a imensa gama de significados que já estão embutidos
em nossa língua e em nossos sistemas culturais. (...) As palavras são “multimoduladas”. Elas
sempre carregam eco de outros significados que elas colocam em movimento, apesar de
nossos melhores esforços para cerrar o significado. Nossas afirmações são baseadas em
proposições e premissas das quais nós não temos consciência, mas que são, por assim dizer,
conduzidas na corrente sangüínea de nossa língua. Tudo que dizemos tem um “antes” e um
“depois” ¡ uma “margem” na qual outras pessoas podem escrever. O significado é
inerentemente instável: ele procura o fechamento (a identidade), mas ele é constantemente
perturbado (pela diferença). Ele está constantemente escapulindo de nós. Existem sempre
significados suplementares sobre os quais não temos qualquer controle, que surgirão e
subverterão nossas tentativas para criar mundos fixos e estáveis (veja Derrida, 1981).
70
Lobo Antunes faz uso dessas margens discursivas e deixa os leitores livres para
reescreverem seu entendimento da obra lida. O autor também faz uso da metaficção
historiográfica, ao contestar os limites entre ficção e história. Segundo Linda Hutcheon
71
,
69
SEIXO, Maria Alzira. Os Romances de Antonio Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
2002.p.117/118.
70
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 7ed. RJ: DP&A, 2003.p.40-41.
71
HUTCHEON, Linda. A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction. London: Routledge,1988.
100
o uso da historiografia na ficção contemporânea não é gratuito ou inocente. Um passado
que é recontado no campo ficcional ganha outras vozes, e essas vozes são diferentes das
relatadas nos livros de História. No caso de Fado Alexandrino, temos o discurso do
dominador derrotado através do qual a ironia corrosiva de Lobo Antunes marca a ruptura
com o passado mesmo quando a intertextualidade as conecta.
O uso da paródia, em As naus, por exemplo, não destrói o passado, de fato, ela o
questiona e o ilumina sob outros pontos de vista. A intertextualidade, também encontrada
na obra citada, reflete a relação do autor com seu texto; o seu conhecimento histórico
prévio possibilita criar uma atmosfera mais real e próxima ao leitor.
A literatura pós-moderna tem um vasto diálogo com o passado. Na mistura entre
literatura e história, a polifonia de vozes revela uma infinidade de outros textos dentro de
apenas uma frase. Uma única frase guarda em si as suas palavras e outras tantas não ditas,
mas que já estão registradas na memória de conhecimento de mundo do autor e do leitor.
Ao escolher as palavras, Lobo Antunes reconhece que por vezes escreve os capítulos
salteados e depois os arruma procurando encaixar frases de efeito que possam dar a medida
certa do seu encontro com a escrita que lhe é peculiar. E ele admite que muitas vezes,
passou meses em busca da frase inicial perfeita para um capítulo que já estava escrito.
Na escrita de Lobo Antunes, o fato de ele próprio ter participado da guerra o aproxima
ainda mais do sofrimento e da dor revelados pelo texto. E, através desse mesmo
conhecimento prévio, o leitor absorve novos conceitos e recria seu conceitos anteriores.
Ainda que mantendo um distanciamento de leitor crítico, é difícil não ser pego nas
armadilhas psicológicas de Fado Alexandrino, são como trincheiras de guerra nas quais a
qualquer momento podemos cair. Não é em vão que Lobo Antunes assume suas muitas
horas de trabalho diário; ele coloca em prática seu conhecimento humano adquirido através
101
da psiquiatria. Ele sabe como “mexer” com o sofrimento, com as dúvidas e incertezas de
cada um e levar àqueles que se permitem a um maior auto-conhecimento de suas
fraquezas. A narrativa de Lobo Antunes nos leva a esse exercício de reflexão sobre quem
somos e sobre as conseqüências da pós-modernidade sobre nós mesmos. A respeito dessa
reflexão em sua produção literária, Lobo Antunes busca estabelecer uma relação entre as
personagens fictícias e os leitores reais:
E a surpresa vem de não existir narrativa no sentido comum do termo, mas apenas largos
círculos concêntricos que se estreitam e aparentemente nos sufocam. E sufocam-nos
aparentemente para melhor respirarmos. Abandonem as vossas roupas de criaturas civilizadas,
cheias de restrições, e permitam-se escutar a voz do corpo. Reparem como as figuras que
povoam o que digo não são descritas e quase não possuem relevo: é que se trata de vocês
mesmos. Disse em tempos que o livro ideal seria aquele em que todas as páginas fossem
espelhos: reflectem-me a mim e ao leitor, até nenhum de nós saber qual dos dois somos.
(...) Porque os meus romances são muito mais simples do que parecem: a experiência da
antropofagia através da fome continuada, e a luta contra as aventuras sem cálculo, mas com
sentido prático que os romances em geral são.
72
Os ex-combatentes, de Fado Alexandrino, são pessoas que desistiram de procurar um
sentido para a vida, desistiram de tentar entender os sentimentos e as fragilidades humanas.
Sofrem com os traumas da guerra e por uma causa maior (causa da pátria) aniquilaram a si
mesmos. E por isso, talvez, andem em círculos aumentando o “buraco” em volta deles
mesmos, talvez por isso se neguem ao amor. Segundo o autor, em “Receita para me
lerem”, a viagem que ele quer nos proporcionar é:
A verdadeira aventura que proponho é aquela que o narrador e o leitor fazem em
conjunto ao negrume do inconsciente, à raiz da natureza humana. Quem não entender isso
aperceber-se-á apenas dos aspectos mais parcelares e menos importantes dos livros: o país, a
relação homem-mulher, o problema da identidade e da procura dela, África e a brutalidade da
exploração colonial, etc., temas se calhar muito importantes do ponto de vista político, ou
social, ou antropológico, mas que nada têm a ver com o meu trabalho. Por isso não existem nas
minhas obras sentidos exclusivos nem conclusões definidas: são, somente, símbolos materiais
de ilusões fantásticas, a racionalidade truncada que é a nossa. É preciso que se abandonem a seu
aparente desleixo, às suspensões, às longas elipses, ao assombrado vaivém de ondas que, a
pouco e pouco, os levarão ao encontro da treva fatal, indispensável ao renascimento e à
renovação do espírito. É necessário que a confiança nos valores comuns se dissolva página a
página, que a nossa enganosa coesão interior vá perdendo gradualmente o sentido que não
72
ANTUNES, Antonio Lobo. “Receita para me lerem” Separata encartada no romance Boa tarde às coisas
aqui em baixo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2003.
102
possui e todavia lhe dávamos, para que outra ordem nasça desse choque, pode ser que amargo
mas inevitável. Gostaria que os meus romances não estivessem na livraria ao lado dos outros,
mas afastados e numa caixa hermética, para não contagiarem as narrativas alheias ou leitores
desprevenidos: é que sai caro buscar uma mentira e encontrar uma verdade.
73
Lobo Antunes inova na escrita com a mistura de tempos e espaços, sobrepõe lugares,
cruza histórias, existências, pontos de vista e instâncias discursivas multiplicando os
planos. Ao mesmo tempo em que estamos lendo o relato da volta do alferes, também
estamos lendo a chegada do soldado Abílio. É realmente como numa conversa, onde
vários, que partilharam da mesma experiência, relembram o sofrimento da guerra e o
esvaziamento interior na chegada interrompendo um ao outro e alternando falas e
pensamentos que nos fazem considerar que nenhum ponto de visto é totalmente livre das
contaminações da guerra e das mazelas existenciais de cada um.
Uma das características da escrita de Lobo Antunes é a maneira torrencial com que
escreve; Fado Alexandrino é um relato de memórias de quase seiscentas páginas e nelas,
através das descrições físicas dos espaços geográficos em questão — Portugal e África —
podemos perceber que a repetição e superposição desses espaços revelam o caráter
obsediante da memória que não deixa os ex-combatentes em paz. Então, se faz necessário
ter atenção ao caleidoscópio de imagens e sentimentos, para acompanhar a trajetória de
cada um dos ex- combatentes através dos fatos narrados.
A narrativa das personagens é entrecortada por lapsos de memória, lembranças súbitas
e de imagens que se compõem e se decompõem, refazem-se e voltam a desfazer-se como
se fossem parte de um quebra-cabeças, como já foi citado anteriormente, e, negam a
tentativa de uma escrita fácil de ser lida. Na citação abaixo, observamos o entretecer da
73
ANTUNES, Antonio Lobo. “Receita para me lerem” Separata encartada no romance Boa tarde às coisas
aqui em baixo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2003.
103
memória de Jorge ao atender o telefonema da sogra e ao mesmo tempo lembrar de imagens
de África:
Diz-lhe que saí, alvitrou baixinho. Uma desculpa, sei lá, que tenho um amante, que fui à
missa, ao cabeleireiro, ao supermercado fazer compras: são as únicas quatro coisas que ela
respeita.
O homem cobriu o bocal com a o como se mandasse calar, nas vizinhanças de um
aldeamento, o grupo de combate que se desdobrava em semicírculo no capim:
— Não serve, daqui a dez minutos liga outra vez. Despacha-a com duas tretas e pronto.
Ainda aí está, Jorge?, questionou a sogra, hesitante. Por que é que a Inês não vem ao
telefone? (FA, 56-57)
Nas imagens superpostas, nos é apresentada, além da descrição do espaço africano, a
vida rotineira de Portugal após a revolução, como nos confirma Maria Alzira Seixo:
Fado Alexandrino aponta, de facto, para um poderoso exame crítico da vida quotidiana dos
anos setenta em Portugal, na medida em que se constitui como um fresco de depoimentos
cultural e socialmente diferenciados sobre essa época. Os próprios lugares onde a accão se situa,
como que colocados às personagens que os habitam ou neles centralmente se movimentam,
mantêm uma coesão sócio-simbólica de carácter narrativo e, quase diríamos, escatológico, em
relação às personalidades que representam e ao seu tipo de actuação. <<É assim que as pessoas
vivem, (...) é no meio deste absurdo idiota que os dias se sucedem vegetalmente, sem
sobressaltos nem esperança, uns aos outros>>.
74
Lobo Antunes insere-se na modernidade uma vez que sua escrita abusa de
fragmentações e obsessões textuais que caracterizam o sujeito pós-moderno pela
contradição, por serem a cada momento seres diferentes e multifacetados. No caso de Fado
Alexandrino, Lobo Antunes nos aponta como sua escrita, especial e singular, é capaz de
nos inserir nesse turbilhão de acontecimentos sociais e psíquicos, uma vez que:
O conflito armado que os portugueses travaram durante treze anos em Angola, Guiné e
Moçambique ficou presente no imaginário nacional e no referencial temático de alguns dos
escritores contemporâneos portugueses. E, tal como nos outros países europeus, a guerra
moldou, pois, a paisagem social, política e econômica de Portugal contemporâneo e veio a
ser representada por uma geração literária da guerra colonial, capaz de assumir uma nova
atitude moral, testemunhal e estética, mediatizada pela vitória do sujeito em relação ao
tempo que vai entre o acontecido e o escrito. Esta geração, ao constatar o imaginário
imperial, subitamente dilacerado e morto, tematizou, através de seus escritos, a
74
SEIXO, Maria Alzira. Os Romances de Antonio Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
2002,p.135.
104
desmitificação da utopia revolucionária político-social e sua possível substituição pela
antiutopia e pela utopia da escrita narcísica
e (des)sacralizante.
75
E ainda, outra característica marcante da escrita de Lobo Antunes é o uso de figuras de
linguagem, como por exemplo, as múltiplas metáforas, a animização de objetos e talvez, a
mais marcante, a sinestesia. Através de descrições detalhadas das sensações das
personagens podemos perceber seus momentos de prazer físico, os estados emocionais e
físicos relacionados à bebedeira, o odor das descrições escatológicas e o horror da visão
das imagens decrépitas; tudo isso nos conduzindo às sensações de náusea e ressaca que, a
cada página, aumentam a tormenta psicológica e a sensação de morte em vida de cada uma
das personagens. Acerca de Fado Alexandrino, Maria Alzira Seixo nos aponta:
Um livro de Lobo Antunes parece não ter modelo algum, inventar os seus próprios
cânones, fazer recuar os seus próprios limites.(...) Estas palavras em vaga não são, porém,
uma canção de embalar, mas constituem, ao invés, esse assombro literal por um múltiplo e
renovado intento de dizer que, a cada vaga de sentido formulada, sugere a carga de
saturação, ou plenitude, do seu refluxo (em dor, em conhecimento, em frustração, em
experiência), tanto quanto ao seu avanço por uma terra livre ou pela página em branco, pelo
livro, dá conta de um vazio de escrita e do desejo conseqüente de retorno à criação. Uma
prosa ¡ por vezes, os tópicos aproximam-nos da verdade ¡ de uma beleza estremecedora e
de uma profundidade insondável.
76
A narrativa sem delimitações precisas de António Lobo Antunes requer dos leitores
sua participação subjetiva para completar seus espaços, suas palavras “em vaga”. Para
Linda Hutcheon
77
, o discurso pós-moderno atenta para o fato de que nossas garantias
tradicionais de entendimento da realidade foram quebradas pelos desdobramentos, lacunas
e circularidades. Portanto, o entendimento de realidade que nos é apresentado es
condicionado a discursos diferentes e maneiras diferentes de contá-lo. Como o próprio
75
FARIA, Ângela Beatriz de Carvalho “Memória, Linguagem e História na Ficção Portuguesa
Contemporânea” In Linguagem, Identidade e Memória Social: Novas fronterias, Novas Articulações.
RJ:DP&A, 2002.
76
SEIXO, Maria Alzira. Os romances de António Lobo Antunes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002.
p.540.
77
HUTCHEON, Linda. A Poetics of postmodernism: History, Theory, Fiction. London: Routledge,1988.
p.157.
105
Lobo Antunes afirma sobre a leitura de sua obra: é preciso “convalescer” após ter lido um
texto de sua autoria. Precisamos convalescer e digerir a acidez, a falta de afeto, a
decepção, a ironia e a depressão num exercício de antropofagia de nós mesmos, digerindo
tudo o que já passou e transformando essa vivência em novas perspectivas de estar na pós-
modernidade.
106
4. CONCLUSÃO
Na literatura pós-moderna, a realidade existencial e social do passado é discursiva
quando se torna referente da obra de arte e, para atingir a historicidade autêntica, seria
necessário reconhecer a própria identidade discursiva e contingente, como nos ensina
Linda Hutcheon em Poética do Pós- Modernismo. Lobo Antunes mescla história e ficção
para tratar de assuntos da identidade e subjetividade humana, ao inserir suas personagens
no final do século XX e no início deste em que estamos vivendo.
Partindo desse princípio, parece-nos pertinente afirmar que António Lobo Antunes
propõe uma reflexão que prescinde de respostas para resolver o problema do
estilhaçamento do EU. Esta proposta de reflexão autoral, ainda que não trazendo soluções,
nos possibilita experimentar a angústia das nossas impossibilidades e contingências e
percorrer as profundezas da subjetividade humana, o que nos seduz completamente.
A problemática da identidade e da deslocação, com particular relevância em Fado
Alexandrino, por nele implicar não apenas uma personagem, mas um grupo de personagens
com formações e interesses diferenciados, e explicitar experiências históricas reais, remete
para o fato de que a situação pós-colonial e pós-guerra solapa a existência humana de
forma dolorosa. E, após essa constatação, como se situa o romance português
contemporâneo ao optar por essa temática básica? Uma possível resposta poderia ser a
seguinte:
Ao desvendar a situação de engodo, revisitando determinadas paisagens, os textos
contemporâneos criam e usam múltiplas formas de linguagem e de imagens. Ao
privilegiarem como temática básica “Escrever Portugal” (país-paisagem a ser povoado pelas
“águas-furtadas” da escrita), focalizam o labirinto crítico da saudade e da memória e
problematizam a terra-pátria em sua relação passado-presente. Esses textos literários
interpretam os sentimentos e o imaginário portugueses e procuram fixar a efemeridade do
processo histórico e convertê-la em memória. Ao revisitarem a História em diferença,
possibilitam olhares prismáticos sobre a mesma realidade e inauguram a presença de “vozes
marginais, veiculadoras da perda do Império e dos traumas ideológicos (...) A antiutopia
deflagra a “contra-razão, a desterritorialização (JAMESON, 1992, p. 81-126), a
107
indeterminação do sujeito e da linguagem, a neutralização de todos os valores, da morte da
cultura”
78
Conforme já vimos no decorrer da nossa exposição, em Fado Alexandrino, as
personagens são sujeitos que carregam a ambigüidade que o conceito de pós-modernidade
sustenta. Na incapacidade de lidar com a ambivalência e com a dor de não serem mais os
mesmos, os ex-combatentes não retomam suas existências de cidadãos comuns no que se
refere ao trabalho desejado e ao estabelecimento de relações de afeto com a família, os
filhos e amores eventuais. Todos estão com as identidades em suspenso, não conseguem
estabelecer uma relação harmoniosa com as mudanças e com os reflexos que estas trazem
para eles.
Por não conseguirem aceitar suas identidades como “identificações em curso”, e não
acatarem o desconforto de fazer novas escolhas optando por tentar colocar ordem no caos
individual, vivem angustiados e presos à obsessiva memória do passado e à contingência
do momento presente. Am da questão pessoal, o romance selecionado por nós discute
também a identidade nacional da nação portuguesa, decorrente da Revolução de Abril e
dos períodos que a antecedem ou a sucedem. A divisão triádica do romance, sustentada
pelo fato histórico ficcionado, assinala a casa portuguesa e seus muros desguarnecidos. As
personagens, sujeitas ao fado, vivenciam perdas, riscos, travessias e paixões, em uma
Lisboa perdida e escatológica.
Ao verbalizarem suas “derrotas cruzadas em fundo de mar”, o passado da guerra
colonial vem à tona e passa a coexistir com o presente problemático. O que existe é um
mundo de possibilidades de significação, das quais devemos participar para chegar, talvez,
a novos questionamentos.
78
FARIA, Ângela Beatriz de Carvalho. “Memória, Linguagem e História na Ficção Portuguesa
Contemporânea” In Linguagem, Identidade e Memória Social: Novas fronterias, Novas Articulações.
RJ:DP&A, 2002.p.84.
108
O aprofundamento do colapso do EU e do caos subjetivo reflete-se na impossibilidade
de criar laços de afeto e de convivência familiar e, essa ausência de sentido está
diretamente ligada ao sofrimento e à derrota dupla que essas personagens sofreram: a da
ideologia nacional e a individual.
Segundo Bauman, conviver com o outro, com aquele que é estranho as, é uma
experiência dolorosa. Os ex-combatentes são os estranhos em África e, através do fracasso
vivenciado se tornam estranhos também em Portugal. Portanto, conviver com o outro é,
além de doloroso, impossível, pois, eles não conseguem conviver nem com eles mesmos:
Sendo um evento histórico, tendo um começo, a presença do estranho sempre tem o potencial
de terminar. O estranho tem liberdade para ir. Pode também ser forçado a ir ¡ ou, pelo menos,
pode-se pensar em forçá-lo a ir sem violar a ordem das coisas. Por mais prolongada, a
permanência do estranho é temporária ¡ outra infração à divisão que se deveria manter intacta
e preservada em nome da existência segura, ordeira. O estranho perturba a ressonância entre
distância física e psíquica: ele está fisicamente próximo, mas permanece espiritualmente
distante. Ele traz para o círculo íntimo da proximidade e o tipo de diferença e alteridade que são
previstas e toleradas apenas à distância ¡ onde podem ser desprezadas como irrelevantes ou
repelidas como hostis. O estranho representa uma “síntese” incongruente e portanto ressentida
“da proximidade e da distância”.
79
No mundo contemporâneo tudo é perecível e limitado, o homem pós-moderno já tem
consciência da precariedade das coisas e sabe que tudo que é muito sólido e esvel pode
de repente se desmanchar, pois o desejo da modernidade é ultrapassar os limites pessoais e
da natureza. Nessa busca incessante, o homem moderno quer tudo para ele, é constituído
de hábitos e valores que, se forem rompidos, rompem com o sistema, gerando assim o caos
social e individual. Conseguiu criar o direito de estar só em público, é cosmopolita na
forma de vestir e nos seus hábitos, porém, na verdade, é mais um perdido na multidão.
Em Fado Alexandrino, por exemplo, as personagens apesar de estarem reunidas em
um jantar de convívio, sentem-se perdidas no meio do grupo e, ao se pronunciarem, têm
79
BAUMAN, Zygmund. Modernidade e ambivalência. RJ: Ed. Jorge Zahar, 1999.p.69.
109
consciência da precariedade dos eventos e do fato de não saberem lidar com a dissolução
das situações anteriores de suas vidas.
O homem atual, segundo as reflexões de Bauman, usa o silêncio como forma de
proteção e se isola do domínio público, porém, nesta obra, os ex-combatentes falam sem
parar, de forma compulsiva e encontram-se em pleno espaço público. Seus segredos e
derrotas se tornam audíveis aos conhecidos em volta e por conseguinte aos desconhecidos
também, embora dirijam-se a um destinatário específico, a quem chamam de meu
“capitão”. Eles revelam, no decorrer de suas “confissões”, a impossibilidade de se sentirem
acolhidos na casa portuguesa e a dificuldade de como viver dentro dela e não mais na
eterna partida dela, uma vez que o tempo da partida já terminou.
Através da linguagem, o homem quer nomear, classificar, ordenar conceitos, valores.
Pom, a cada momento que se classifica algo, estamos na verdade incluindo e excluindo
tudo o que pertence e tudo o que não pertence à tal classificação. Por isso, a ambivalência
não é o que é diferente, é aquilo que não possui um lugar fixo, está no lugar entre, é a
tentativa de tentar satisfazer a ansiedade de colocar ordem no caos. Segundo Bauman, a
luta contra a ambivalência, a favor da tentativa de nomear e classificar tudo é, ao mesmo
tempo, autodestrutiva e autopropulsora, resolve e cria problemas simultaneamente.
Portanto, faz-se necessário tirá-la do papel de inimiga e transformá-la em suporte para
compreender a pós-modernidade e vivermos com pelo menos uma certa harmonia.
O indivíduo pós-moderno foi tomado pela cultura de massa, pelo anonimato, pela
fragmentação, tolhido de individualidade e inserido na alienação como se fosse peça de
fabricação em série, mas, no entanto, busca colocar ordem no caos: “Ordem e caos são
meos modernos. Foram concebidos em meio à ruptura e colapso do mundo ordenado de
110
modo divino, que não conhecia a necessidade nem o acaso, um mundo que apenas era, sem
pensar jamais em como ser(...)”
80
O isolamento de cada indivíduo é quebrado no momento em que são forçados a
viverem juntos; o Outro é visto como o estranho, aquele que quer romper essa barreira. E,
é por isso, que as mulheres de Fado Alexandrino ocupam o espo da decepção, já que
para os ex- combatentes, elas são as estranhas que desafiam o entendimento de mundo
deles e querem pertencer ao espaço que já está tomado pela imutabilidade e pelo marasmo.
Por não se encaixarem nesse espaço e também não conseguirem fazê-los enxergar que eles
é que precisam caminhar adiante, elas são configuradas por eles em sofrimento, decepção e
descrença no amor.
Sem a preocupação com a ordem, seria extremamente complicado contornar a situação
de pressão cotidiana que todos os indivíduos enfrentam. Os valores sociais se
desintegrariam e a desumanização tomaria conta do caos já estabelecido, emperrando ainda
mais a busca utópica pelo bem-estar coletivo.
Nessa tensão, percebe-se que não é possível agir isoladamente no mundo. Por mais
que seja difícil conciliar a nossa pulsão pessoal com a opressão externa, se faz necessário
se libertar desse mal-estar gerado pela incompatibilidade dos desejos e buscar pelo menos
um equilíbrio razoável com o ambiente em que vivemos. A partir do momento que
aceitamos o Outro com toda sua alteridade e estranheza, e passamos a olhá-lo com mais
tolerância e solidariedade, conseguimos aceitar as nossas limitações:
Um indivíduo transforma sua contingência em destino se chega à consciência de ter feito o
melhor com suas possibilidades praticamente infinitas. Uma sociedade transforma sua
contingência em destino se os seus membros chegam à consciência de que não prefeririam
viver em nenhum outro lugar e em nenhuma outra época que não aqui e agora (...)
81
80
BAUMAN, Zygmund. Modernidade e Ambivalência. RJ, ed. Jorge Zahar, 1999.p.12.
81
Ibidem, p.17
111
Somos seres mutantes sem destino certo, e a única certeza que temos é a da morte que
nos aguarda. A liberdade que temos de escolher qual caminho seguir é, ao mesmo tempo, a
exclusão de inúmeras possibilidades que poderíamos ter fora desse caminho e, é ela que
alimenta a nossa ambivalência. Se não tivéssemos a possibilidade da escolha, não teríamos
o sofrimento da ambivalência, portanto, se faz necessário viver com a fragmentação que
nos é intrínseca e com a permanente oposição entre as nossas vontades individuais e as
vontades coletivas. Parece-nos que esta reflexão está presente no poema de Robert Frost,
“The road not taken”, que espelha a opção do sujeito pela “estrada menos viajada”:
The road not taken
Two roads diverged in a yellow wood,
And sorry I could not travel both
And be one traveler, long I stood
And looked down one as far as I could
To where it bent in the undergrowth;
Then took the other, as just as fair,
And having perhaps the better claim,
Because it was grassy and wanted wear;
Though as for that the passing there
Had worn them really about the same,
And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black.
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if I should ever come back.
I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and I--
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.
Na multiplicidade de opções e sentimentos que se apresentam a cada dia de nossas
vidas, da qual só sabemos aonde termina, todo o percurso pode ser aproveitado com mais
ou menos sofrimento, dependendo do grau de valor que damos às nossas contingências.
Por isso, optamos por analisar Fado Alexandrino, conscientes da complexidade de tal
112
proposta, implícita na intriga romanesca. Embora o niilismo de Lobo Antunes solape todas
as possibilidades, levando todos os ex-combatentes à morte em vida e/ou à morte final, o
percurso existencial das personagens náufragas vem a ser sublinhado pela admirável
escrita de Lobo Antunes e, seu “assombrado vaivém das ondas” — desafio a ser vencido
pelos leitores atuais, que se identificam com ele.
113
5. BIBLIOGRAFIA
1. ADORNO, Theodor. “Posão do narrador no romance contemporâneo”.
Os Pensadores. SP: Editora Abril Cultural, 1983.
2. ______. “Crítica cultural e sociedade” In: Prismas. SP: Ed. Ática, 1998.
3. ALVES, Clara. “Fado AlexandrinoJornal de Letras, Artes e Idéias, Lisboa, ano
III, nº72, Novembro de 1983.p.3-4.
4. AMORIM, Cláudia Maria de S. “O Avesso da Revolução em Auto dos danados”.
Anais do IV Seminário de Literaturas de Língua Portuguesa Portugal e África:
Revolução, Revoluções. Niterói, UFF. Novembro de 2004. CD-ROM
5. ANTUNES, Antonio Lobo. O esplendor de Portugal. Lisboa: Publicações Dom
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118
75. SOTERO, Paulo. “Portugal Precisa ser Perturbado.Revista Veja. Novembro de
1976.
119
6- ANEXOS
6.1 Relações entrecruzadas das personagens:
Tenente-Coronel Porteira Abílio Odete = Dália Olavo
Homossexuais Oficial de transmissões
Edite
Lucília Tenente-Coronel
homens mais jovens
Alferes
Inês Ilka
Menina africana Maria João
Ilda
Ginecologista anã
D. Isaura
Tio Ilídio Contabilista
120
6.2 Províncias ultramarinas em África
Angola
Angola é um país da costa ocidental de África, cuja capital é Luanda. Os portugueses,
sob o comando de Diogo Cão, no reinado de D. João II, chegam ao Zaire em 1484. É a
partir daqui que se iniciará a conquista pelos portugueses desta região de África, incluindo
Angola. O primeiro passo foi estabelecer uma aliança com o reino do Congo, que
dominava toda a região. Explorando as rivalidades e conflitos entre estes reinos, na
segunda metade do século XVI, os portugueses instalam-se na região de Angola A
penetração para o interior é muito limitada, Angola transforma-se rapidamente no principal
mercado abastecedor de escravos das plantações da cana do açúcar do Brasil.
Durante a ocupação filipina de Portugal (1580-1640), os holandeses procuram
desapossar os portugueses desta região, ocupando grande parte do litoral, porém, em 1648
os portugueses expulsam os holandeses, para contentamento dos colonos do Brasil. A
finais do século XVIII, Angola funciona como um reservatório de escravos para as
plantações e minas do Brasil. A ocupação dos portugueses confina-se às fortalezas da
costa. A colonização efetiva do interior só se inicia no século XIX, após a Independência
do Brasil (1822) e o fim do tráfico de escravos (1836-42), mas não da escravatura.
A colonização de Angola, após a implantação de um regime republicano em Portugal
(1910), entra numa nova fase. Os republicanos haviam criticado duramente os governos
monárquicos por terem abandonado as colônias; o aspecto mais relevante da sua ação
circunscreveu-se à criação de escolas. No plano econômico, inicia-se a exploração
intensiva de diamantes O desenvolvimento econômico só se inicia de forma sistemática,
em finais do anos trinta, quando se incrementa a produção de café, sisal, cana do açúcar,
milho e outros produtos destinados à exportação. A exportação de café, logo a seguir à
121
segunda guerra mundial, abriu um novo ciclo econômico em Angola, que se prolonga até
1972, quando a exploração petrolífera em Cabinda começar a dar os seus resultados; além
destes produtos, desenvolve-se a exploração dos minérios de ferro. O desenvolvimento
destas explorações foi acompanhado por imigrantes incentivados e apoiados muitas vezes
pelo próprio Estado. Entre 1941 e 1950, saíram de Portugal cerca de 110 mil imigrantes
com destino às colônias, a maioria fixou-se em Angola, o fluxo imigratório prosseguiu nos
anos 50 e 60.
Nos anos quarenta, a questão da descolonização emerge no plano internacional e
torna-se uma questão incontornável. Em 1956 é publicado o primeiro manifesto do
Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). No princípio dos anos 60, três
movimentos de libertação (MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola, FNLA
– Frente Nacional de Libertação de Angola e UNITA – União Nacional para a
Independência Total de Angola) desencadeiam uma luta armada contra o colonialismo
português.
O governo de Portugal (uma ditadura desde 1926), recusa-se a dialogar e prossegue na
defesa até ao limite do último grande império colonial europeu. Para África são
mobilizados centenas de milhares de soldados. Enquanto durou o conflito armado, Portugal
procurando consolidar a sua presença em Angola, promove a realização de importantes
obras públicas. Na seqüência do derrube da ditadura em Portugal (25 de abril de 1974),
abrem-se perspectivas imediatas para a independência de Angola. O Governo português
negocia com os movimentos de libertação, o período de transição e o processo de
implantação de um regime democrático em Angola (Acordos de Alvor, janeiro de 1975).
A independência de Angolao foi o início da paz, mas o início de uma nova guerra
aberta. Muito antes do dia da Independência, a 11 de novembro de 1975, já os três grupos
122
nacionalistas que tinham combatido o colonialismo português lutavam entre si pelo
controle do país, e em particular da capital, Luanda. Cada um deles era na altura apoiado
por potências estrangeiras, dando ao conflito uma dimensão internacional.
O Brasil é rápido em restabelecer relações diplomáticas com a nova república que se
instala. Faz isso antes mesmo de qualquer país do bloco comunista. Nenhum país ocidental
ou mesmo africano segue seu exemplo. A decisão de reconhecer como legítimo o governo
de Agostinho Neto foi tomada por Geisel ainda em 6 de novembro, antes da data oficial de
Independência de Angola. em 1976 as Nações Unidas reconheciam o governo do MPLA
como o legítimo representante de Angola, o que não foi seguido nem pelos EUA, nem pela
África do Sul.
Moçambique
Quando Vasco da Gama chegou pela primeira vez a Moçambique, em 1497, já
existiam entrepostos comerciais árabes e uma parte da população tinha aderido ao Islão.
No entanto, a determinação dos portugueses em expandir o seu comércio no mundo levou
a melhor. Os mercadores portugueses, apoiados por exércitos privados, foram-se
infiltrando no império dos Mwenemutapas, umas vezes firmando acordos, noutras
forçando-os. Esses mercadores começaram a se interessar mais pelo marfim. Por volta de
1600, Portugal começou a enviar para Moçambique colonos, na sua maioria de origem
indiana, que queriam fixar-se naquele território. Esses colonos, muitas vezes casavam com
as filhas de chefes locais e estabeleciam linhagens que, entre o comércio e a agricultura,
podiam tornar-se poderosas.
Em meados doculo XVII, o governo português decide que as terras ocupadas por
portugueses em Moçambique pertenciam à coroa e estes passavam a ter o dever de
arrendá-las a prazos que eram definidos por três gerações e transmitidos por via feminina.
123
Esta tentativa de assegurar a soberania na colônia recente, não foi de muito êxito porque,
de fato, os "muzungos" e as "donas" já tinham bastante poder, mesmo militar e muitas
vezes se opunham à administração colonial, que era obrigada a responder igualmente pela
força das armas.
Em 1752, em face da decadência da Ilha de Moçambique, o governo do Marquês de
Pombal decidiu retirar a colônia africana da dependência do Vice-Rei do Estado da Índia e
nomear um Governador Geral, que passou a habitar o Palácio dos Capitães-Generais,
confiscado aos jesuítas. Em 1878, Portugal decide fazer a concessão de grandes parcelas
do território de Moçambique a companhias privadas de capital estrangeiro que passaram a
explorar o território. As principais foram a Companhia do Niassa e a Companhia de
Moçambique.
Para além das várias ações de resistência ao domínio colonial, a última das quais
culminou com a prisão e deportação do imperador Gungunhana, a fase final da luta de
libertação de Moçambique começou com a independência das colônias francesas e inglesas
de África. Em 1959-1960, formaram-se três movimentos formais de resistência à
dominação portuguesa de Moçambique:
UDENAMO - União Democrática Nacional de Moçambique;
MANU - Mozambique African National Union (à maneira da KANU do Quénia); e
UNAMI - União Nacional Africana para Moçambique Independente.
Estes três movimentos tinham sede em países diferentes e uma base social e étnica
também diferentes mas, em 1962, sob os auspícios de Julius Nyerere, primeiro presidente
da Tanzânia, estes movimentos uniram-se para darem origem à FRELIMO - Frente de
Libertação de Moçambique - oficialmente fundada em 25 de Junho de 1962.
124
O primeiro presidente da FRELIMO foi o Dr. Eduardo Chivambo Mondlane, um
antropólogo que trabalhava na ONU e que já tinha tido contactos com um governante
português, Adriano Moreira. Nesta altura, ainda se pensava que seria possível conseguir a
independência das colônias portuguesas sem recorrer à luta armada. No entanto, os
contactos diplomáticos estabelecidos não resultaram e a FRELIMO decidiu entrar pela via
da guerra de guerrilha para tentar forçar o governo português a aceitar a independência das
suas colônias. A Luta Armada de Libertação Nacional foi lançada oficialmente em 25 de
Setembro de 1964.
A guerra de libertação, uma luta de guerrilha, expandiu-se para as províncias de Niassa
e Tete e durou cerca de 10 anos. Durante esse período, foram organizadas várias áreas
onde a administração colonial já não tinha controle - as Zonas Libertadas - e onde a
FRELIMO instituiu um sistema de governo baseado na sua necessidade em ter bases
seguras, abastecimento em víveres e vias de comunicação com as suas bases recuadas na
Tanzânia e com as frentes de combate. Finalmente, a guerra terminou com os Acordos de
Lusaka, assinados a 7 de Setembro de 1974 entre o governo português e a FRELIMO, na
seqüência da Revolução dos Cravos. Ao abrigo desse acordo, foi formado um Governo de
Transição, chefiado por Joaquim Chissano, que incluía ministros nomeados pelo governo
português e outros nomeados pela FRELIMO. A soberania portuguesa era representada por
um Alto Comissário, que foi Víctor Crespo.
Guiné-Bissau
A Guiné-Bissau foi em tempos o reino de Gabú, parte do Império do Mali, e partes do
reino sobreviveram até ao século XVIII. Embora os rios e as costas desta área estivessem
entre os primeiros locais colonizados pelos portugueses e aí tenham iniciado o tráfico de
125
escravos no século XVII, não exploraram o interior até ao século XIX. Durante três séculos
constituiu a colônia da Guiné Portuguesa. Uma rebelião iniciou-se em 1956, liderada pelo
Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), e consolidou o
seu domínio do território em 1973. A independência chegou com a revolução portuguesa
de 1974, tendo sido declarada unilateralmente a 24 de Setembro de 1973.
126
COSTA, Veronica Prudente. A perda do caminho para casa
em Fado Alexandrino de António Lobo Antunes. Dissertação
de Mestrado em Letras Vernáculas - Literatura Portuguesa.
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2006, 127 p.
RESUMO
Análise do romance português contemporâneo, Fado Alexandrino, da autoria de António
Lobo Antunes, publicado em 1983, e que se organiza em torno de três eixos básicos –
temporais e simbólicos – relacionados à identidade da pátria portuguesa: I- Antes da
Revolução, II- A Revolução ( 25 de Abril de 1974) e III- Depois da Revolução. Ao
entrelaçar História e ficção, vida pública e vida privada, o romance em questão resgata as
estórias vividas pelos ex-combatentes portugueses em África e suas “derrotas cruzadas em
fundo de mar”, marcadas pela falta de raízes, estilhaçamento de identidades e perda de
valores morais decorrentes do processo histórico. A Dissertação propõe-se a focalizar a
ambivalência e a modernidade, pertencentes à produção ficcional selecionada , a partir,
principalmente das reflexões críticas de Zygmunt Bauman e de Maria Alzira Seixo,
visando compreender o posicionamento do homem contemporâneo frente à problemática
do não lugar, ao caos moderno e à falta de humanidade, dignidade e respeito do sujeito
consigo mesmo e com o outro, constatando-se que não é possível encontrar uma fórmula
para se criar um sociedade perfeita. Ao “perder o caminho para a casa”, as personagens
masculinas deparam-se com personagens femininas que encetam relações amorosas,
conjugais e libidinais passíveis de refletirem a reconfiguração identitária inerentes à pós-
modernidade. Caberá ao leitor acompanhar as existências fadadas ao fracasso e as
estratégias discursivas do autor.
127
COSTA, Veronica Prudente. A perda do caminho para casa
em Fado Alexandrino de António Lobo Antunes. Dissertação
de Mestrado em Letras Vernáculas - Literatura Portuguesa.
Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2006, 127 p.
ABSTRACT
Analysis of the contemporary Portuguese Fiction, Fado Alexandrino, by Antonio Lobo
Antunes, published in 1983. The book is organized in three basic divisions of time and
symbolic, related to the identity of Portuguese people: I- Before the Revolution, II- The
Revolution (April 25
th
, 1974) and III- After the Revolution. While History, Fiction, private
and public life mixture themselves, the work recollects the life stories from Portuguese ex-
warriors in Africa and their “derrotas cruzadas em fundo de mar”. Their life stories are
marked by their lack of roots, their torn identities and the loss of moral values originated
from the historical process. The Dissertation proposes to focus on ambivalence and
modernity, according to the critical reflections from Zygmunt Bauman and Maria Alzira
Seixo, aiming to comprehend contemporary man’s position faced to the non place
problematic, modern chaos, lack of humanity, dignity and respect towards himself and
towards the others, realizing that it is not possible to find the solution for a perfect society.
PLosing their ways homeP, the male characters face female characters who pose
relationships in which love, marital status and sex are matters to reflect how identity is built
in post-modernity time. The reader has the responsibility to follow their failed existences
and the discourse strategies from the author.
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